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STUDIUM
REVISTA TEOLÓGICA
2
Semestral
ISSN 1981-3155
CDU: 2
SUMÁRIO
Editorial.............................................................................................................................. 5
Ano 9 – 2015
Nº 15
Editor-Chefe
Hélcion Ribeiro – Studium Theologicum, Curitiba, PR.
Conselho Editorial
Alceu Luis Orso - Studium Theologicum, Curitiba, Pr.
Jaime Sánchez Bosch – Studium Theologicum, Curitiba, Pr.
Marcio Luiz Fernandes – Studium Theologicum, Curitiba, Pr.
Teodoro Hanicz – Faculdade S. Basílio Magno, Curitiba, Pr.
4
Valdinei de Jesus Ribeiro – StudiumTheologicum, Curitiba, Pr.
Conselho Consultivo
Angelo Carlesso - Studium Theologicum – Curitiba, PR.
Ricardo Hoepers - Studium Theologicum – Curitiba, PR.
Sávio Scopinho – CLARETIANO, Rio Claro, SP
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Studium Revista Teológica
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Tel. (41)3224-5467 – Fax: (41) 3233-8979
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SUMMARY: Terrorism has immoral purposes of kill men and women, spreading fear and
insecurity, sowing hatred, death, violence, desire for revenge and reprisal. This is its ballistic
tactics and its methods in general, are of war. Not infrequently uses the name of (its) God, in a
fundamentalist fanaticism and a tragic nihilism. Against this, the states and societies, usually, have
relied on technical solutions and also to employ sophisticated surveillance technologies. The text
examines, initially, the thought of the church about terrorism, then ponders on the development,
be it technological in general or on the surveillance capability (including technology). The
Magisterium of the Church always highlights the validity of human growth, and, at the same time,
alerts to the possibilities of technological development becoming a gun against the man himself.
Introdução
1 Cf. GREENWALD, Glenn. Sem lugar para se esconder: Edward Snowden, a NSA e a espionagem do
governo americano. Rio de janeiro: Sextante, 2014.
duo.2 Considerando a problemática do terrorismo e o seu combate a partir da
visão de alguns documentos do Magistério da Igreja, bem como o seu pensamen-
to social sobre as tecnologias, extrairemos alguns elementos para aplicarmos no
uso das tecnologias de segurança para o combate a esse mal que afeta a vida de
pessoas inocentes.
Frente essa situação assombrosa, João Paulo II, em Sollicitudo rei socialis,
define o terrorismo como praga do mundo moderno, cujo propósito é matar ho-
mens e mulheres, disseminando terror e insegurança. Tais atos são considerados
injustificáveis, mesmo se a intenção seja a de construir uma sociedade melhor. É
ainda pior, quando o escopo é apenas matar5 e envolve a comunidade internacio-
nal, semeando ódio, morte, violência, desejo de vingança e represália.6
21 Cf. PONTIFICIO CONSIGLIO DELLA PASTORALE PER I MIGRANTI E GLI ITINERANTI. Segno dei tempi:
“Migrazione e itineranza da e per (verso) i paesi a maggioranza islamica”. (Documento finale,
2006). Enchiridion Vaticanum, v. 23, p. 1376.
22 Cf. PONTIFICIO CONSIGLIO DELLA GIUSTIZIA E DELLA PACE. Since the foundation sul commercio
internazionale delle armi convenzionali. (Dichiarazione, 2006). L’Osservatorio Romano. Città del
Vaticano, 11 ott. 2006, p. 2.
23 Cf. PONTIFICIO CONSIGLIO PER IL DIALOGO INTERRELIGIOSO. Il m’est particulièrement ai
musulmani per la fine del Ramadan. (Messaggio, 2006). L’Osservatore Romano. Città del Vaticano,
29 sett. p. 5.
24 BENEDETTO XVI. Ad receptum Corpus Legatorum. (Allocutiones, 2007). Acta Apostolicae Sedis,
Città del Vaticano, v. 99, n. 2, p. 73, 2007.
25 Cf. Commissione bilaterale delle delegazioni della COMMISSIONE della Santa
Sede per i Rapporti religiosi con l’Ebraismo e del Gran Rabbinato d’Israele per le
Relazioni con la Chiesa Cattolica. Alla VII Riunione de Comitato Misto. (Comunicato con-
giunto, 2007). Disponível em: <http://www.vatican.va/roman_curia/pontifical_councils/chrstuni/
relations-jews-docs/rc_pc_chrstuni_doc_20070313_commissione-bilaterale_it.html>. Acesso
em: 19 novembro 2014..
26 Cf. BENEDETTO XVI. Ad Corpus Legatorum apud hanc Apostolicam Sedem, n. 13. (Discorso, 2008).
Acta Apostolicae Sedis, Città del Vaticano, v. 100, n. 2, p. 78, 2008.
27 Cf. BENEDETTO XVI. Ad Internationale studiorum Seminarium apparatum a Pontificio Consilio de
Iustitia et Pace. (Messaggio, 2008). Acta Apostolicae Sedis, Città del Vaticano, v. 100, n. 5, p. 278-
279, 2008.
nível estrutural, social das desigualdades e dos conflitos, insistindo sobre a neces-
sidade de um trabalho para equalizar melhor tais realidades. Bento XVI parece se
centrar mais sobre os elementos culturais, religiosos e ideológicos, com soluções
que envolvam maior intervenção da comunidade internacional e dos Estados no
combate às armas de destruição de massa, com instrumentais jurídicos e meios
disponíveis para combatê-lo, sejam estes em curto ou em longo prazo.
28 Cf. GRILLO, Girolamo. Sommario della Dottrina Sociale della Chiesa: per storici, studiosi e studenti.
Dalla “Rerum Novarum” alla “Caritas in Veritate”. Genova; Milano: Marietti, 2010.
29 Cf. IOANNES XXIII. Humanae salutis. (Constitutio Apostolica, 1961). Acta Apostolicae Sedis, Città
del Vaticano, v. 54, n. 1, p. 6-8, 1962.
30 Cf. CONCILIUM OECUMENICUM VATICANUM II. Apostolicam actuositatem, n. 7. (Decretum, 1965).
Acta Apostolicae Sedis, Città del Vaticano, v. 58, n. 12, p. 843-844, 1966.
A Constituição Gaudium et spes31 não despreza as questões tecnológicas
referentes ao progresso humano e suas implicações na vida social. Embora não
seja sua função refletir sobre o progresso, em várias partes o texto reconhece a
evolução das ciências matemáticas e naturais e da técnica resultante da ciência,
salientando o seu progresso e a sua importância cada vez maior no agir humano.
Afirma que a mentalidade científica interfere na cultura, e o homem adquire do-
mínio sobre a terra e espaço e pode conhecer-se melhor por meio do progresso
das ciências biológicas, psicológicas e sociais. Destaca o movimento da história
de modo dinâmico e evolutivo e as diferentes problemáticas daí derivantes.32 Re-
conhece também os grandes progressos nas ciências empíricas, nas técnicas e
nas artes liberais resultantes da inteligência humana.33 O ser humano, com a sua
capacidade de trabalho e engenhosidade, amplia o seu domínio sobre a natureza
e o sentido de cada coisa. Essa atividade humana manifesta a grandeza de Deus e
o ser humano, sua imagem, recebe o mandato de governar o mundo segundo a
justiça e a santidade. A Constituição relembra que, quanto mais aumenta o poder
do ser humano, mais cresce a sua responsabilidade pessoal e comunitária. A ativi-
dade humana procede do homem e para ele se ordena, e o trabalho para conse-
16 guir justiça, fraternidade, organização humana das relações sociais vale mais do
que os progressos técnicos.34
31 Cf. CONCÍLIO VATICANO II. Gaudium et spes, 1965. Constituição pastoral sobre a Igreja no mundo
de hoje. In. Compêndio do Vaticano II. Constituições, Decretos, Declarações. Introdução e índice
analítico: Boaventura Kloppenburg. Coordenação geral de Frederico Vier. 29. ed. Petrópolis: Vo-
zes, 2000, p. 143-256.
32 Cf. CONCÍLIO VATICANO II. Gaudium et spes, n. 5, p. 147.
33 Cf. CONCÍLIO VATICANO II. Gaudium et spes, n. 15, p. 156-157.
34 Cf. CONCÍLIO VATICANO II. Gaudium et spes, n. 33-35, p. 176-178.
35 Cf. CONCÍLIO VATICANO II. Gaudium et spes, n. 54-56, p. 205-207.
36 Cf. CONCÍLIO VATICANO II. Gaudium et spes, n. 62, p. 214-215.
economia e a técnica devem estar em função do ser humano e servi-lo. O homem
deve ser senhor de suas ações e juiz do valor daquelas, autor do seu próprio
progresso, consoante com a natureza que lhe foi doada pelo Criador, lembra a
Populorum progressio.37
37 Cf. PAULUS VI. Populorum Progressio, n. 34. (Litterae encyclicae, 1967). Acta Apostolicae Sedis,
Città del Vaticano, v. 59, n. 4, p. 274, 1967.
38 Cf. SACRÉE CONGRÉGATION DE L’ÉDUCATION CATHOLIQUE, Lettre circulaire à leurs Excellences
les Evêques En cette période sur l’enseignement de la philosophie dans les séminaires. La docu-
mentation catholique 69, v. 69, p. 262-267, 1972.
39 Cf. SYNODUS EPISCOPORUM. Ad populum Dei nuntius Cum iam ad exitum de catechesi hoc nos-
tro tempore tradenda praesertim pueris atque iuvenibus (1977). Typis polyglottis vaticanis. Città
del Vaticano, 28 ott. 1977, p. 18.
de grande progresso e também de grande ameaça ao ser humano. O homem
contemporâneo parece estar longe das exigências objetivas da ordem moral e
das exigências da justiça. Conclui o Papa que a verdadeira realeza deve ser aquela
da ética sobre a técnica, das pessoas sobre as coisas e do espírito sobre a matéria,
evitando assim o homem mesmo ser objeto de manipulação.40
Bento XVI, na mensagem pela XLIII Jornada Mundial das Comunicações, su-
blinha as mudanças fundamentais que ocorreram nos modelos de comunicação
e nas relações humanas. Ele declara que a “geração digital” tem em mãos o ex-
traordinário potencial de comunicação das novas tecnologias para favorecerem
19
a compreensão e a solidariedade humana e que isso representa um dom divino
à humanidade. Os celulares, os computadores e a internet apresentam todos os
benefícios à pesquisa, ao relacionamento, ao encurtamento das distâncias e do
desejo humano de comunicação, mas adverte dos perigos do esvaziamento, do
isolamento e lembra que o mundo digital deve ser mais acessível a todos, evitan-
do exclusões.45
Aprofundando o seu pensamento social, Bento XVI, em Caritas in veritate,
sustenta que o desenvolvimento da pessoa é degradante se esta intenciona ser
produtora de si mesma; bem como o progresso dos povos, se a humanidade
pretende recriar-se com os recursos da tecnologia. A técnica é profundamente
humana, ligada à autonomia e à liberdade do homem e, por meio dela, confirma-
se o domínio do espírito sobre a matéria, permitindo melhorar as condições de
vida. Ela se insere no mandato divino ao homem de cultivar e guardar a terra
e reforçar a aliança entre ser humano, ambiente e o amor de Deus criador. O
desenvolvimento tecnológico é ambíguo, criando a ideia de autossuficiência
humana em que o ser humano considera o como e desconsidera os motivos
44 IOANNES PAULUS II. Sollicitudo rei socialis, n. 33. (Litterae encyclicae, 1987). Acta Apostolicae
Sedis, Città del Vaticano, v. 80, n. 5, p. 557, 1988.
45 Cf. BENEDETTO XVI. Messaggio per la XLIII Giornata Mondiale delle Comunicazioni Sociali: ‘nuove
tecnologie, nuove relazioni. Promuovere una cultura di rispetto e dialogo e di amicizia’. In:
Insegnamenti di Benedetto XVI. v. 1 (2009). Città del Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, p.
123-127.
de suas ações. A mentalidade tecnicista faz coincidir a verdade com o factível e
quando o critério de verdade é a eficiência e a utilidade, o desenvolvimento é
automaticamente negado. O Papa critica a concepção de desenvolvimento dos
povos concebida a partir de soluções técnicas. Segundo ele, até mesmo a paz corre
o risco de ser considerada um problema técnico, resultante apenas de acordos
governamentais com tendências a assegurarem ajudas econômicas eficientes.
Entretanto, isso só terá efeitos se forem fundamentados em valores radicados na
verdade da vida e na escuta dos anseios das populações. Sublinha o problema
da permissividade dos mass media e as questões relacionadas à bioética e do
reducionismo antropológico.46 Bento XVI, ao contrastar o ‘absolutismo da técnica’
que se encontra sua máxima expressão nas práticas contrárias à vida, exprime: “os
problemas atuais da humanidade não podem ser somente técnicos, mas devem
considerar todas as exigências da pessoa que é dotada de alma e corpo e levar em
conta o Criador, Deus”.47
Conforme se vê, o Magistério reconhece as implicâncias das tecnologias na
20 vida social e a grande preocupação é evitar a mentalidade tecnocrática, autossu-
ficiente. Insiste que o homem seja protagonista do progresso como bem social a
ser condividido com os demais, na dinâmica da responsabilidade, da liberdade
e da autonomia. O ser humano é fim em si mesmo e jamais poderá ser reduzido
como meio. Esta é a chave para equacionar progresso tecnológico e moral.
46 Cf. BENEDICTUS XVI. Caritas in veritate, n. 68-77. (Litterae encyclicae, 2009). Acta Apostolicae Sedis.
Città del Vaticano, v. 101, n. 8, p. 701-707, 2009. Outros documentos que se referem à difusão das
tecnologias e biotecnologias nos processos da procriação humana, com técnicas de reprodução
artificial, de diagnose fetal que são invasivas e desproporcionadas às crianças e tantas outras que
ferem o desenvolvimento integral do ser humano, desde a sua concepção a sua morte natural e
a sua dignidade, são discutidas pelas Instruções Donum Vitae (1987) e Dignitas personae e pela
encíclica Evangelium vitae. Cf. CONGREGATIO PRO DOCTRINA FIDEI. Donum vitae. (Instructio,
1987), Acta Apostolicae Sedis, Città del Vaticano, v. 80, n. 1, p. 70-102, 1988; CONGREGATIO PRO
DOCTRINA FIDEI. Dignitas personae. (Instructio, 2008). Acta Apostolicae Sedis. Città del Vaticano,
v. 100, n. 12, p. 858-887, 2008; IOANNES PAULUS II. Evangelium vitae. (Litterae encyclicae, 1995).
Acta Apostolicae Sedis, Città del Vaticano, v. 87, n. 5, p. 401-522, 1995.
47 BENEDETTO XVI. La preghiera mariana con i fedeli convenuti in Piazza San Pietro: contro
l’assolutismo della tecnica. In: InsegnamentI di Benedetto XVI. v. 2 (2009). Città del Vaticano:
Libreria Editrice Vaticana, 2010, p. 48.
que contribua para a sua dignificação. Por dignificação, no contexto de nossa ex-
posição, entendemos toda possibilidade de proteção ao ser humano enquanto
cuidado e seguridade social, por conseguinte, segurança. Assim, se a aplicação de
tais tecnologias não cumpre tais requisitos, deve ser sujeita à reflexão crítica por
parte da ética, e, sobretudo, da teologia moral, porque tal engenho, concebido
pelo ser humano, não está contribuindo para expressar a faceta do humano, ima-
gem e semelhança de Deus Criador. “É necessário que cada progresso tecnológico
não perca jamais de vista a sua finalidade que é o desenvolvimento integral de
todos os homens”.48 Esse é o ideal, conforme o ensinamento social da Igreja; no
cotidiano, a realidade se constitui de modo diverso.
Conclusão
RESUMO: Masculino e feminino não se nasce; mas se escolhe sê-lo, faz-se. Tal afirmação brota
candente das páginas e lutas ideológicas da questão de gênero. Este incitante texto propõe-se
a historiar a questão do gênero como ideologia. O texto propõe um percurso do tema desde 25
as raízes do marxismo até conferência, que reuniu especialistas de 29 países, em Yogyakarta,
Indonésia (2006), organizada pela Comissão Internacional de Juristas e o Serviço Internacional
de Direitos Humanos. Da necessidade de uma sociedade de iguais, passando pelas revoluções
do proletariado (Marx), da supressão da família, da propriedade privada e do Estado (Engels), da
desconstrução da família (Lenin/União Soviética), começou-se, no meio comunista um processo
ideológico com nomes como o de Kate Millet e Shulamith Firestone visando o ideal de uma
revolução sexual, onde as mulheres haveriam de se libertar da determinação biológica e elas e
as crianças poderiam viver como quisessem sua sexualidade. Nessa luta a terminologia “gênero”
passaria a ser dissociada da “identidade sexual biológica”, através da dissolução e construção de
um outro projeto político.
SUMMARY: Male and female is not born; but if you choose to do it, it does. This type of statement
springs from ideological struggles of gender issues. This provocative text seeks to historicize
the issue of gender as ideology. It proposes a theme path from the roots of Marxism until the
Conference, which brought together experts from 29 countries, in Yogyakarta, Indonesia (2006).
The need for a society of equals, passing through the revolutions of the proletariat (Marx), the
abolition of the family, private property and the State (Engels), the deconstruction of the family
(Lenin/Soviet Union), began amid a communist world, the ideological process with names such as
Kate Millet and Shulamith Firestone, envisaging to the ideal of a sexual revolution, where women
would get rid of the biological determination. They and the children could choose and live their
* José Eduardo de Oliveira e Silva é graduado em filosofia e teologia; tem mestrado e doutorado pela
Pontificia Università della Santa Croce. Sua tese doutoral tem como título: O PAPEL GLOBAL DA VIRTUDE
DA RELIGIÃO: UMA PROPOSTA A PARTIR DA DOUTRINA DE SÃO TOMÁS. É professor no Instituto de Filosofia
Sede da Sabedoria – IFSS/Brasil e no Instituto de Teologia Mater Ecclesiae – IMME/Brasil. de Filosofia Sede da
Sabedoria, IFSS, Brasil.
sexuality according their will and wish. In this struggle, the terminology “gender” would become
dissociated from the “biological sexual identity”, through the dissolution of existing social process
and the construction of another political project.
I. Introdução
1 Cf. SCALA, J. R., Ideologia de Gênero. O neototalitarismo e a morte da família, Katechesis, São Paulo
2011.
2 Fiz uma análise mais aprofundada desta ideologia, mesmo que de forma muito sintética e
adaptada ao leitor desacostumado com a matéria, numa entrevista concedida ao portal de
notícias Zenit. Cf. http://www.zenit.org/pt/articles/caindo-no-conto-do-genero (visto em
17.12.2014).
3 “Duplex est communitas omnibus manifesta: scilicet civitatis et domus”. Tomás de Aquino, S., Sententia
Libri Politicorum, lib. 1, l. 1, n. 5.
E, diante dos projetos de desconstrução da célula mater da sociedade, re-
cordava-nos profeticamente São João Paulo II, que “é urgente, portanto, realizar
uma ação vasta, profunda e sistemática, apoiada não só na cultura, mas também
nos meios económicos e nos instrumentos legislativos, destinada a assegurar
à família a sua função de ser o lugar primário da ‘humanização’ da pessoa e da
sociedade”4. Se é necessário assegurar, talvez seja porque a família realmente seja
vista como o empecilho para a gênese de uma anti-civilização5.
Poderia começar por diferentes autores. Inicio, porém, por aquele em que o
problema surgiu de modo mais evidente e crônico: Karl Marx.
7 Idem, Sobre a origem da família, da propriedade privada e do Estado, Editorial Vitória Ltda., Rio de
Janeiro 1964.
Lênin chegou a tentar desconstruir a família, mas percebeu que estava des-
truindo a sociedade, ficou hesitante e reverteu o processo.
Este texto é de Kate Millet (1934), uma feminista radical, formada no seio
do partido comunista. Foi a primeira grande expoente do pensamento feminista.
Sua tese doutoral, Política sexual (1970), foi o primeiro grande trabalho científico
sobre o assunto, tornou-se um best-seller pouco tempo após sua publicação, me-
recendo gloriosos apanágios nas páginas de – nada mais, nada menos – que The
New York Times.
Contudo, os marxistas ainda não tinham entendido a centralidade disso. O
texto de Kate Millet equivale, para as feministas, àquilo que o “Manifesto Comu-
nista” foi para os marxistas. Embora seja um texto com bastante rigor científico –
trata-se de uma tese doutoral –, não tinha grande alcance especulativo, permane-
cendo uma muito bem escrita análise histórica, concebida em tom de manifesto
contra a “ordem patriarcal”.
8 Millet, K., Política sexual, Publicações Dom Quixote, Lisboa 1979, pp. 161-163.
III. Iniciativas independentes
SUMMARY: This article intend sto present the gender ideology, base don the feminist movements
that influenced the thinkin gofthenine teen thand twentieth century and branched from Simone
de Beauvoir and structure the sedays. Go through the process deconstruction and denial of
convention sand patriarchal society, asserting as a struggle of classes in search of the rights due
to them. The remain der of this paper, aimsto present themis conceptions presented by gender
ideology and the proposals by philosophy and theology to betterunder standan dissueof critical
judgment.
* Gilberto Aurélio Bordini é presbítero da arquidiocese de Curitiba, é graduado em filosofia e teologia. Tem
Especialização Lato senso em Ética pela Universidade Federal Do Paraná - UFPR (1989 - 1990), Graduação em
Teologia pela Universidade Lateranense de Roma, Mestrado em Teologia Moral Pontificia Universitá Della
Santa Croce (17/06/2008). Doutorado em Teologia pela Pontificia Universitá Della Santa Croce (31/03/2011).
Atualmente é professor de Teologia Moral (Teologia Moral Fundamental e Moral Social) da Faculdade
Claretiana de Teologia de Curitiba. Professor de Teologia Fundamental, Teologia Moral e Teologia Dogmática
da Escola Diaconal São Felipe da Arquidiocese de Curitiba,.Professor de Ética Filosófica e Teodiceia do Centro
Universitário Campos De Andrade - UNIANDRADE
I - Introdução
Quando pensamos na temática da Ideologia de gênero vem à memória
uma história da mitologia grega, mais precisamente o mito da “cama de Procusto”.
Procrusto era um bandido que vivia na serra de Elêusis. Em sua casa, ele tinha
uma cama de ferro, que tinha seu exato tamanho, para a qual convidava todos os
viajantes a se deitarem. Se a vítima era maior que a cama,ele cortava as pernas, se
a vítima era menor, ele a esticava para ajustar ao tamanho da cama.
Esta história pode ser uma metáfora a um pensamento em evidência por
representar a cegueira de conhecimento ou mesmo, a intolerância a uma con-
venção já estabelecida na sociedade, por desejar que todas as pessoas pensem
da mesma forma sobre uma determinada ideia que é imposta por um grupo que
exige uma aceitação imediata a ela com o pretexto de, as pessoas que não a acei-
tarem, estejam sujeitas a punições ou mesmo “perder as pernas”.
A sociedade contemporânea, movida por muitas ideologias, impõe catego-
rias novas de pensar em nome de um progresso que todo ser humano deve pas-
40 sar para viver a nova realidade. Considera-se aqui o caso da ideologia de gênero
que, atualmente procura colocar em relevo a palavra gênero a fim de impor uma
forma de pensar das pessoas sobre o que seja homem e mulher, indo em sentido
contrário à ordem já estabelecida por Deus, dentro de uma lei eterna e natural.
Em primeiro lugar é necessário esclarecer os muitos significados da palavra
gênero. Na gramática da Língua portuguesa, a palavra gênero indica aspectos
que permite classificar certas classes gramaticais, como substantivos, verbos, ad-
jetivos etc., em um número fixo de categorias. Indica também, a flexão pela qual
se exprime o sexo real ou imaginário dos seres.
Na biologia, gênero designa um grupo morfológico intermediário entre a
família e a espécie, como por exemplo, o nome científico do cachorro doméstico
é Canis familiaris. A palavra Canis indica o gênero ao qual pertencem outras espé-
cies como o lobo, por exemplo. Nos seres humanos, o sexo é determinado pelo
sistema XY. Nesse sistema, as fêmeas possuem o cariótipo XX, ou seja, apresentam
o cromossomo X em dose dupla, e os machos apresentam os cromossomos XY.
Não sendo, portanto, fruto de uma convenção que se achou necessária que fosse
assim, mas que está ligado a todo um conjunto que funciona dentro de um siste-
ma harmônico, criado por Deus.
A ideologia de gênero propõe uma mudança na nessa convenção impondo
uma nova ordem que alteraria o conceito e a determinação do que seria o homem
e a mulher, justificando essa mudança pela influência do ambiente, dos meios e
por uma convicção pessoal e cultural.
Chamaremos ideologia, esta teoria, por entender que ela está impondo pa-
drões de comportamento à sociedade como um todo. Comportamentos esses
que se identificam com situações isoladas e individuais de pessoas que não se
aceitam ou protestam contra a própria natureza na qual nasceram. Dessa forma,
eles impõem outro tipo de comportamento à qual deixaria às convenções de
lado, apresentando que uma exceção pode se transformar em uma regra, a partir
da criação de leis que justifiquem tal conduta que representa uma minoria, não
levando em conta a própria natureza da qual todos os seres vivos, inclusive o ser
humano, estão sujeitos.
O presente artigo, portanto, tem a intenção de esclarecer alguns pontos da
ideologia de gênero tão impregnada na cultura contemporânea, a partir de um
esboço histórico proposto pelo professor Mariano Fazio1 que apresenta a origem
desta ideologia, baseado na perspectiva dos movimentos feministas ao longo da
história que originará a discussão sobre a questão do gênero. Pretende também
propor esclarecimentos e algumas respostas em relação à ideologia de gênero a
partir do que é negado por esta, levando em conta a criação do universo e do ser 41
humano a partir da visão criacionista, através da lei eterna e da lei natural, e pela
teoria da paridade baseado nas ideias de Marguerite Peeters2, concluindo com os
aspectos que envolve a dignidade da pessoa humana e da ideia da complemen-
tariedade entre o homem e a mulher.
3 Como a definição de Boécio, onde pessoa é: substância individual de natureza racional (III.ª, q.
2, a. 2; I Sent., dist. XXV, a. 1; De Pot., q. 9, a. 2; De unione Verbi, a. 1).
biologicamente inscrito na natureza humana, antes, formas socialmente variá-
veis de desempenhar um ou vários papéis sexuais. Se trata de lutar por um desa-
parecimento total das diferença sexual.
A ideologia de gênero atinge seu auge de extremo radicalismo com a teoria
do ciborgue. Que se caracteriza em tentar apagar as diferenças entre o humano e
o animal e entre o humano e a máquina. Esta teoria é defendida por Danna Hara-
wai e por Guacira Lopez Louro.
As consequências que se pode tirar do feminismo radical e da ideologia de
gênero é que pretendem a eliminação da natureza humana como foi concebida;
que o sexo é unicamente para o prazer e que as relações sexuais seriam polifor-
mes e livres, nascendo uma sociedade com menos pessoas, com mais prazer se-
xual. A igualdade entre homens e mulheres e consequentemente a eliminação da
figura da “mãe” em tempo integral4.
Desta maneira, vimos como a ideologia de gênero se tranforma em uma
ideologia e se estrutura no feminismo radical. Passamos agora a uma tentativa de
resposta aos que defendem esta ideologia, partindo de conceitos negados por
45
ela e reafirmando conceitos que estão na propria natureza humana.
5 MENESES, Pedro U, L., No princípio Deus criou, Iniciação a teologia da Criação, Diel, Lisboa 2009,
p. 14.
A lei natural é colocada em cheque pela ideologia de gênero que substitui
o centro do universo, a qual foi colocada por Deus, pelo próprio homem que se
torna o centro de suas ações e de seu querer, podendo fazer o que desejar sem se
preocupar com uma lei moral.
É através da lei natural que o homem participa da lei eterna, sendo que esta
lei natural consiste na “luz da inteligência infusa em nós por Deus. Graças a esta
conhecemos o que se deve fazer e o que se deve evitar. Esta luz, esta lei, Deus a
deu na criação” (VS. n. 40). Esta consiste na luz da inteligência infusa em nós por
Deus. Graças a isto, conhecemos o que se deve cumprir e o que se deve evitar. Esta
luz, esta lei, foi nos dada na criação.
A lei natural apresenta duas características: a universalidade e a imutabili-
dade: São duas propriedades onde a primeira, em seus preceitos e sua autoridade
se estende a todos os homens (Catecismo. n. 1956). Tal universalidade encontra
seu fundamento, na substancial unidade da razão humana e da sua participação
na lei eterna.
A lei natural pode requerer uma adaptação à multiplicidade das condições
47
de vida, segundo os lugares, a época e as circunstâncias. Todavia, na diversidade
das culturas, a lei natural fica como uma regra que liga os homens entre eles e lhes
impõem, além deles inevitáveis diferenças, princípios comuns.
É também imutável no sentido que permanece inalterada através da
história, permanece sobre o envolver-se das ideias e dos costumes, suportando
um progresso muitas vezes desordenados.A imutabilidade dos princípios morais
fundamentais, não se opõem ao progresso histórico da consciência moral do ho-
mem, que adquire uma mais forte sensibilidade no confronto de certos valores.
Para entendermos melhor o que seria esta lei natural partimos de um exem-
plo que esta na própria filosofia grega, no mito de Antígona, escrito por Sófocles,
que conta que os dois filhos de Édipo, o rei, Eteócles e Polinice, que lutavam em la-
dos opostos, acabam um matando o outro. O rei Cleontes tinha decretado que os
seus inimigos não deveriam receber uma sepultura e eram deixados para serem
devorados pelos animais. Antígona que era irmã dos dois falecidos, não poderia
deixar que o corpo de Polinice apodrecesse às portas da cidade. Antígona corajo-
samente se opõe ao rei e recorre a uma lei não escrita, como ela mesma diz: “Sim,
porque não foi Júpiter que a promulgou; e a Justiça, a deusa que habita com as
divindades subterrâneas jamais estabeleceu tal decreto entre os humanos; nem
eu creio que teu édito tenha a força bastante para conferir a um mortal o poder
de infringir as leis divinas que nunca foram escritas, mas são irrevogáveis; não
existem a partir de ontem, ou de hoje; são eternas, sim! E ninguém sabe desde
quando vigoram!” (Sófocles, Antígona p. 30). Por sua fidelidade a esta lei não es-
crita, Antígona é condenada pelo rei a ser sepultada viva, e no seu sepulcro ela se
enforca.
Desta forma podemos afirmar que uma lei que não tem como base a lei na-
tural, não obriga o seu cumprimento porque não está escrita no universo; mas o
problema é que quem estabelece as leis cerca de mecanismo punitivo o seu cum-
primento, mesmo ela sendo injusta, porque vemos hoje a lei com um caráter de
segurança: se tem a lei posso agir sem medo e restrições porque ela me protege.
Outro exemplo, que podemos usar para mostrar a existência da lei natural
e sua relação com a lei eterna é uma comparação com um doce italiano chama-
do “Babo de Napoli”, que é uma espécie de um bolinho frito, banhado no licor;
quando se come este doce, precisa tomar cuidado, porque lambuza muito, pois o
licor impregna toda a massa, se torna-se homogênea com ela. Não é um recheio
como num bolo de aniversário, mas o licor impregna a massa, que não tem como
separar, podendo dizer assim, que a lei natural esta impregnada em nós e não
48 conseguimos separá-la de nosso todo humano.
O argumento da lei natural como resposta à teoria de gênero, nos leva a
uma perspectiva em relação à natureza do ser humano, como questiona a ideolo-
gia de gênero: ela é inata, vindo da própria natureza a qual o homem foi criado, ou
é adquirida pelo processo cultural que transformaria esta natureza?
A resposta a ser usada neste caso vem do filósofo e teólogo alemão Robert
Spaemann6, que analisa a questão da natureza, do natural e da segunda natureza
no âmbito filosófico, em relação ao agir do homem, mas que usaremos como ar-
gumento para uma crítica à ideologia de gênero.
Segundo ele, “entende-se que estes conceitos jogam certo papel, lá onde
se trata de exprimir um juízo sobre a eficácia das ações”, e continua, afirmando
que “agir contra a própria natureza é, de qualquer maneira, cansativo, admitindo
que seja possível. E quem não conhece e despreza a lei da natureza, falha certa-
mente nos próprios objetivos”7.
Ele apresenta três teses, que podemos dizer, são usadas pela ideologia de
gênero; a primeira, decorrente de Hume8, diz que para o ser não seja inferida ne-
6 A sua tese principal está fundamentada na personalidade como base da dignidade da pessoa
humana.
7 SPAEMANN, Robert, Cos’è il naturale. Natura, Persona, agire morale, Rosemberg&Sellier, Torino
2012, p. 56.
8 Suas ideias sobre a ética estão concentradas na obra “tratado da natureza humana”, onde
procura fazer um estudo das ações humanas a partir do interior do homem como faz o estudo
de anatomia, sobre o corpo.
nhum dever, e dos dados de fato, não seja inferida nenhuma norma ou prescrição
para agir, mostrando que o agir deve estar desvinculado de leis que determine o
comportamento, onde o ser passa agir sem prescrições morais.
Na segunda tese, que Spaermann chama de “fisicalismo”, contesta a natu-
reza em geral, onde tudo é natural e não tem nada de inatural. Para ele o natural
é o conjunto das leis e das forças do mundo e inatural é sinônimo de impossível,
que vai contra o natural e a natureza, aspecto que é defendido pela ideologia de
gênero que força em afirmar que o gênero como uma opção pessoal, é natural,
E a terceira tese é chamada de cultural antropológica. Ela parte do fato que
o homem é o único ser a não ser por natureza determinado por instintos; o único
ser que, para sobreviver, deve ainda criar-se através da cultura - uma espécie de
segunda natureza - porque a orientação moral, pertence a esta segunda natureza,
dependente da impressão cultural social, que é sempre condicionada ao tempo e
ao lugar e não à própria natureza adquirida na criação9.
Desta maneira fica evidente o processo de desconstrução que sorrateira-
mente propõe a ideologia de gênero em relação à natureza humana. A inten-
49
ção é tornar a criatura humana livre das convenções determinadas pela história,
chegando, por uma suposição, negar como também nega a existência da lei na-
tural, à teoria da evolução, principalmente as teorias de Darwin a partir da seleção
natural, para mostrar que a evolução não se mostra na espécie, mas no gênero.
Curiosamente, quando estava escrevendo este artigo, a folha de São Paulo,
publicou um artigo do colunista Rafael Garcia, intitulado: “Vem aí a nova biologia.
Ou não”, mostrando a pesquisa de dois biólogos, Gerd Muller e Eva Jablonka, que
criaram a “Síntese Evolucionária Estendida” que se caracteriza em um corpo de
conhecimento baseado em fenômenos que ocorreram paralelamente aos des-
critos pela seleção natural de Darwin. Segundo Jablonka: “recorre a fenômenos
como a epigenética –transmissão de características que não requer mudança do
DNA– e à construção de nichos –capacidade de animais de alterarem seu próprio
ambiente e, portanto, modificar as pressões que a seleção natural exerceria sobre
eles mesmos. Também são alvo de estudo da EES o “viés de desenvolvimento” –a
impossibilidade de organismos de adquirirem certas formas enquanto evoluem–
e a plasticidade –capacidade de um indivíduo de adquirir diferentes formas rea-
gindo a seu ambiente”10.
IV - Um processo de reconstrução
v - Conclusão
SUMMARY: The question of – real - end of human life (fear of being buried alive) is a very pertinent
theme for doctors, relatives of a dying man and also for the moral. Since the beginning of modernity,
the Church has also been worrying about the topic, through Popes, theologians and in dialogue with
health professionals. . This text brings us to the fundamental contribution and incisive teaching of
two great popes: Pius XII and John Paul II. Pius XII often claimed about the question life (bios) and its
repercussions in the field of ethics and medicine. He demonstrated the great interest of the Church to
dialogue with science and reflect on the moral challenges arising out of the use of new technologies,
* Ricardo Hoepers e Mestre e Doutor em Teologia Moral pela Accademia Alfonsiana de Roma, Instituto
deTeologia Moral da Universidade Lateranense de Roma, Mestre em Educacao pela Pontificia Universidade
Catolicado Parana e Professor e Diretor do Studium Theologicum, Membro do Comite de Etica em Pesquisa
com Seres Humanos do Setor de Ciencias da Saude do Universidade Federal do Parana.
especially employed at the time of death. The natural reason and Christian morals together are able to
ensure the awareness of law and duty in relation to the conservation of life. John Paul II was aware that
the Church cannot take for herself the responsibility of a scientific decision-making. But it is necessary
to have a continuous dialogue with the anthropology and ethics guaranteeing the respect for life and
the person, given that our dignity, especially at current times, also involves our most profound destiny
towards the Creator.
A tafofobia foi mais acentuada no século XVII e XVIII, embora tenha ainda
seus resquícios no início do século XIX influenciando a prática médica e pastoral.
Podemos encontrar uma verdadeira obra de fisiologia, medicina e teologia escrita
por Padre Ferreres (1881-1936), um sacerdote jesuíta belga que era professor de
Teologia Moral e Direito Canônico na Espanha e, apresentada em 1907 pelo Dr.
Giovanni Battista Geniesse, um médico italiano que fez a tradução, prefácio e no-
56 tas complementares do livro. O título é muito sugestivo: “A Morte real e a morte
aparente em relação aos sacramentos, à frequência das inumações prematuras,
aos meios de reanimar os mortos e para fugir do perigo de ser enterrado vivo”.
No seu primeiro capítulo denota a importância do tratado:
Por isso, o Papa Pio XII afirma que razão natural e moral cristã juntas são
capazes de assegurar a consciência do direito e do dever em relação à conserva-
ção da vida. Segundo Sanna foi o próprio Pio XII que na sua radiomensagem de
Natal de 1942,13 falava da dignidade originária do homem chegando a fazer um
elenco dos “direitos fundamentais da pessoa” que além de inspirar a reconstrução
9 Cf. Tomás De Aquino. Suma Teológica. Texto latino de Editio Leonina, reproduzido na Edição
Marietti. Roma: Turim, 1948ss. I-II, q. 106-108.
10 Schockenhoff, Eberhard. “Il bene dell’uomo nella prospettiva morale”. In: Melina, Livio; Kampowski,
Stephan. Come insegnare teologia morale? Siena: Cantagalli, 2009, 79.
11 Ibid., 81.
12 Faggioni, Maurizio Pietro. La vita nelle nostre mani, manuale di bioetica teologica. Torino: Edizione
Camilliane, 2009, 86.
13 Pio XII levanta cinco pontos fundamentais para uma ordem e pacificação da sociedade humana.
O primeiro ponto é, exatamente, a “Dignidade e direitos da pessoa humana”, cf. Pius PP. XII. A
Summo Pontefice die XXIV mensis Decembris A. MCMXLII, in pervigilio Nativitatis D. N. Iesu Christi,
Universo Orbi datus (24 Decembris 1942). Nuntius Radiophonicus. In: AAS 10 (1943) 9-25.
do pós-guerra, também influenciou a solene Declaração dos Direitos Humanos
da ONU em 194814.
Este dever de autoconservação levantado por Pio XII, e que cada ser hu-
mano tem sobre si mesmo, diante de Deus e diante da sociedade, é derivado se-
gundo o Papa da caridade, da submissão ao Criador e da justiça social. Baseado
na doutrina tomasiana da inclinationes naturae15, o Papa resgata como ponto de
partida essa base teológica para responder as questões sobre a reanimação e que
é constituída da razão moral.
Faggioni explica que na visão de Tomás “cada homem é considerado parte
de um único designo divino universal e, neste sentido, cada homem é parte de
um todo, representado da communitas na qual ele é concretamente inserido”.16
Para o Papa Pio XII esse dever nos obriga a empregar os meios ordinários (segun-
do as circunstâncias da pessoa, dos lugares, do tempo e da cultura) não impondo
assim um dever além da medida com meios extraordinários, lembrando que a
vida, a saúde e todas as nossas atividades são subordinadas a um fim maior, um
fim espiritual. Posteriormente este princípio vem reforçado ainda mais na Encícli- 61
ca Veritatis splendor, de João Paulo II.17
Assim, o Papa Pio XII preparou o terreno de suas respostas com a dimensão
da razão humana e da moral cristã para assegurar a compreensão dos seus inter-
locutores que o chão que ele pisava era dos tradicionais conceitos da Teologia
Moral.
Após explicar os devidos procedimentos gerais para a administração dos
sacramentos o Pontífice lembra, no caso da unção dos enfermos, da clausula si
capax es feito sob condição, no caso de dúvida. Mas logo retoma a questão da
avaliação da morte tanto de fato, quanto de direito, que na época vinha trazendo
uma série de consequências para a Teologia Moral.
14 Cf. Sanna, Ignazio. “La chiesa e la difesa della dignità umana”. In: Dignità umana e dibattito bioetico.
A cura di I. Sanna. Roma: Edizioni Studium, 2009, 105.
15 “Porque o bem tem razão de fim, e o mal, razão do contrário, daí é que todas aquelas coisas para
as quais o homem tem inclinação natural, a razão apreende como bens, e por consequência
como obras a ser procuradas, e as contrárias dessas como males a serem evitados. Segundo,
pois, a ordem das inclinações naturais dá-se a ordem dos preceitos da lei da natureza”, cf. Tomás
De Aquino. Suma Teológica..., I-II, q. 94, a.2, 562-563.
16 Faggioni, M. La vita nelle nostre mani..., 123.
17 Ioannes Paulus PP. II, Veritatis Splendor (9.12.1993). In: AAS 85 (1993) 72: “a moralidade dos atos é
definida pela relação da liberdade do homem com o bem autêntico. Tal bem é estabelecido
como lei eterna pela Sabedoria de Deus, que ordena cada ser para o seu fim: esta lei eterna é
conhecida tanto pela razão natural do homem (e assim é “lei natural”), como — de modo integral
e perfeito — através da revelação sobrenatural de Deus (sendo assim chamada “lei divina”). O
agir é moralmente bom quando as escolhas da liberdade são conformes ao verdadeiro bem do
homem e exprimem, desta forma, a ordenação voluntária da pessoa para o seu fim último, isto é,
o próprio Deus: o bem supremo, no qual o homem encontra a sua felicidade plena e perfeita”.
O fato é que o Papa, de certa forma, pressionou a medicina à busca cientí-
fica de sinais mais plausíveis de comprovação da morte: “Pertence ao médico, e
particularmente ao anestesista, de dar uma definição clara e precisa da “morte” e
do “momento da morte” de um paciente que caiu em estado de inconsciência”18.
Naturalmente que aqui, o Papa busca um diálogo entre ciência e fé na tentativa
de aprimorar os critérios, tanto científicos quanto teológicos (no caso da separa-
ção definitiva da alma do corpo). Porém, ele também admite a possibilidade de
uma “dúvida insolúvel” e se poderia recorrer à presunção de direito e de fato. De
modo geral prevalece a manutenção da vida por ser um dom recebido do Criador,
o qual, antes de qualquer procedimento se deve provar que realmente ela não
existe mais.19
Para Becchi, de todas as perguntas feitas ao Papa Pio XII, a mais importan-
te é se o paciente pode ser considerado morto enquanto o respirador está liga-
do. Como resposta, o Papa afirmou que “algumas considerações de ordem geral
permitem de acreditar que a vida humana continua, até que suas funções vitais
62 – diferente da simples vida dos órgãos – se manifestem espontaneamente ou
com a ajuda de procedimentos artificiais”20. Segundo Becchi a confirmação des-
se pressuposto do qual, a pessoa com o respirador ligado ainda está viva, é que
o Sacramento da Extrema Unção só pode ser ministrado se o ser humano está
vivo e, por isso, segundo o Papa Pio XII é possível prolongar a respiração artificial
para poder ministrar o sacramento. Mas por outro lado, admite que nos casos em
que os aparelhos estão sendo usados somente para protelar a morte do paciente
é admissível retirá-los licitamente baseado no princípio do duplo efeito: “Neste
caso, não tem nenhuma disposição direta da vida do paciente, e nem mesmo eu-
tanásia, que nunca seria lícita; também quando provoca o término da circulação
sanguínea, a interrupção das tentativas de reanimação é uma causa indireta do
término da vida, e em tal caso necessita aplicar o princípio do duplo efeito e do
“voluntarium in causa””21.
Portanto, algumas portas foram antecipadamente abertas por Pio XII. Na-
turalmente que não era possível resolver em detalhes toda a situação da reani-
mação, pois a questão médica ainda estava ampliando suas pesquisas e somente
10 anos mais tarde iria acontecer o primeiro transplante de órgãos, tornando o
problema mais complexo. Segundo Becchi, a dúvida insolúvel que o Papa cita se
refere àqueles casos em que o indivíduo, mesmo ligado ao respirador, permane-
18 Pius PP. XII. Summus Pontifex propositis quaesitis de “reanimatione” respondit (24.11.1957). In: AAS
24 (1957) 1031.
19 Cf. Ibidem.
20 Ibid., 1033.
21 Pius PP. XII. Summus Pontifex..., 1032.
cendo em coma irreversível, não pode ser considerado morto. Mas, para Becchi a
questão ainda não estava resolvida:
“No entanto, uma fresta foi deixada aberta e, depois quando a atenção mu-
dou do problema da liceidade da interrupção da respiração artificial para o trans-
plante de órgãos, aquela fresta transformou-se em uma porta completamente
aberta: o transplante de órgãos pode então ser considerado lícito, mas só se pro-
vasse com certeza que a remoção dos órgãos fosse realizado de cadáveres”22.
2. Os pronunciamentos de João Paulo II e a Pontifícia Academia das Ciências
Os pronunciamentos de Pio XII marcaram época e mostraram eficácia tanto
na medicina quanto na sociedade. Mas a discussão em torno da definição de mor-
te continuou, tanto que a Pontifícia Academia das Ciências organizou um Grupo
de Estudos em 1983 para aprofundar o tema The artificial Prolongation of Life and
the Determination of the Exact Moment of Death, onde houve uma participação de
especialistas da comunidade científica. Porém, após a publicação dos resultados
do Grupo de Estudos houve certa reação por parte de alguns filósofos e teólogos
em oposição às conclusões tomadas.
63
A Pontifícia Academia das Ciências juntamente com a Congregação da Dou-
trina da Fé, achou oportuno, então, convocar, em 1989, outro Grupo de Estudos,
porém mais amplo, com a participação de filósofos, teólogos e juristas. O objetivo
era estudar mais profundamente os princípios científicos dentro de um amplo
contexto cultural levando em conta a especial natureza da pessoa humana.23
Houve um intercâmbio interdisciplinar e consideraram três pontos impor-
tantes no seu estudo:
- primeiro, é que se a morte cerebral for a supressão de uma função essen-
cial da pessoa humana é um indício suficiente da morte real;
- segundo, se existem outros sinais experimentais que podem ser incluídos
junto a morte cerebral como indicações válidas de certeza de “morte real”;
- terceiro, as normas que envolvem a morte cerebral quando ela é conside-
rada, na prática, um critério válido e a necessidade de medidas imediatas a fim de
evitar possíveis abusos.
O Papa João Paulo II pronunciou um discurso para os participantes do
Grupo de Estudos e salientou vários pontos. Destacamos aqui alguns deles.
22 Becchi, Paolo. Morte cerebrale e trapianto di organi. Brescia: Morcelliana, 2008, 120.
23 Cf. Pontificiae Academiae Scientiarum. “Working Group on The determination of Brain death and its
relationship to human death” (10-14 december 1989). Scripta Varia 83. Vatican City: Edited by R.J
White – H. Angstwurm – I. Carrasco de Paula, 1992, XIII.
O primeiro fato a considerar é a importância do tema para a Igreja. João Pau-
lo II enfatiza essa importância pelo motivo que a Congregação para a Doutrina da
Fé também colaborava com a discussão e organização do Grupo de Estudos. Isto
significa dizer que convocar filósofos e teólogos juntamente com a Congregação
da Doutrina da Fé, ao lado de cientistas e médicos, para discutirem as questões do
critério da validade do conceito de morte cerebral e os possíveis abusos em torno
das suas consequências, é uma questão a ser enfrentada também no âmbito da
fé e da doutrina da Igreja. E, para confirmar ainda mais esta unidade com o cami-
nho doutrinal e pastoral da Igreja João Paulo II cita sete vezes (no seu pequeno
discurso de seis pontos), a Constituição Pastoral Gaudium et spes, uma vez a Carta
Apostólica Salvifici doloris e uma vez o Concílio de Viena. Poderíamos afirmar, com
isso, que João Paulo II desejava reforçar um aspecto mais eclesial e pastoral para
o assunto, do que simplesmente respostas científicas e técnicas como havia acon-
tecido no primeiro Grupo de Estudos. Apesar de manter, no que se refere à defi-
nição do momento exato da morte, como responsabilidade da ciência, por outro
lado, abre as portas de discussão com a filosofia, a teologia e o próprio Magistério
64 da Igreja representado pelas palavras do Concílio Vaticano II.
Consideramos seu discurso como sete chaves que abrem portas para final-
mente colocar o tema em seu adequado lugar de discussão. Vejamos os trechos
do Discurso do Papa ao Working Group on the determination of Brain death (1989)24
nos quais ele justifica os argumentos com citações da Constituição Pastoral Gau-
dium et spes.
24 Ioannes Paulus PP. II. Ad eos conventui Romae habito, de puncto temporis quo mors hominum evenit
recognocendo, interfuerunt coram admissos (14.12.1989). Allocutio. In: AAS 82 (1990) 766-771.
25 Ioannes Paulus PP. II, De puncto temporis quo mors hominum…, (14.12.1989). In: AAS 82 (1990) 767;
Gaudium et spes 1 (7.12.1965). In: AAS 58 (1966) 1026: “Com efeito, a sua comunidade se constitui
de homens que, reunidos em Cristo, são dirigidos pelo Espírito Santo, na sua Peregrinação para
o Reino do Pai. Eles aceitaram a mensagem da salvação que deve ser proposta a todos. Portanto,
a comunidade cristã se sente verdadeiramente solidária com o gênero humano e sua história”.
A tradução utilizada para este documento será de Kloppenburg, F. Boaventura O.F.M. Compêndio
Vaticano II. Petrópolis: Editora Vozes, 1968. Gaudium et spes 3: «É a pessoa humana que deve ser
salva. É a sociedade humana que deve ser renomada. É portanto o homem - considerado em sua
unidade e totalidade, corpo e alma, coração e consciência, inteligência e vontade - que será o
eixo de toda a nossa explanação”.
2- “Quando a realidade em questão é vida humana em relação ao
seu início e seu fim temporal é de interesse da Igreja: faz parte
de sua missão, pois a vida, em sua unidade espiritual e somática,
merece nosso respeito”26.
3- “O corpo é de uma pessoa, um ser que está aberto a valores su-
periores, um ser capaz de cumprimento no conhecimento e no
amor de Deus”27.
4- “Quando consideramos que todo o indivíduo é uma expressão
viva da unidade e que o corpo humano não é apenas um ins-
trumento ou item de propriedade, mas partilha do valor do in-
divíduo como um ser humano, então se conclui que o corpo não
pode em circunstância alguma ser tratado como algo a ser elimi-
nado na vontade”28.
5- “Mesmo os benefícios tecnológicos mais promissores podem tra-
zer benefícios aparentes e de natureza ilusória”29.
6- “Essencialmente, o que é a morte? Não é fácil chegar a uma defi-
nição de morte que possa ser compreendida e aceita por todos.
A morte pode significar decomposição, desintegração, separa-
ção”30.
26 Ioannes Paulus PP. II. De puncto temporis quo mors hominum…, In: AAS 82 (1990) 767; Gaudium et 65
spes 14. In: AAS 58 (1966) 1035, “Corpo e alma, mas realmente uno, o homem, por sua própria
condição corporal, sintetiza em si os elementos do mundo material, que nele assim atinge
sua plenitude e apresenta livremente ao Criador uma voz de louvor. Não é, portanto, lícito ao
homem desprezar a vida corporal; mas, ao contrário, deve estimar e honrar o seu corpo, porque
criado por Deus e destinado à ressurreição do último dia”.
27 Ioannes Paulus PP. II. De puncto temporis quo mors hominum…, In: AAS 82 (1990) 767; Gaudium et
spes 15. In: AAS 58 (1966) 1036: “Enfim, a natureza intelectual da pessoa humana se aperfeiçoa e
deve ser aperfeiçoada pela sabedoria. Esta atrai de maneira suave a mente do homem à procura
e ao amor da verdade e do bem. Impregnado de sabedoria o homem passa das coisas visíveis às
invisíveis”.
28 Ioannes Paulus PP. II, De puncto temporis quo mors hominum…, In: AAS 82 (1990) 767; Gaudium
et spes 14. In: AAS 58 (1966) 1036: “Com efeito, por sua vida interior, o homem excede a
universalidade das coisas. Ele penetra nesta intimidade profunda quando se volta ao seu coração,
onde o espera Deus, que perscruta os corações, e onde ele pessoalmente sob os olhares de Deus
decide a sua própria sorte. Deste modo, reconhecendo em si mesmo a sua alma espiritual e
imortal, longe de tornar-se joguete de uma criação imaginária que se explicaria somente pelas
condições físicas e sociais, o homem, ao contrário, atinge a própria profundeza da realidade”.
29 Ioannes Paulus PP. II. De puncto temporis quo mors hominum…, In: AAS 82 (1990) 768; Gaudium et
spes 27. In: AAS 58 (1966) 1047, “O Concílio inculca o respeito ao homem; que cada um respeite o
próximo como “outro eu”, sem excetuar nenhum, levando em consideração antes de tudo a sua
vida e os meios necessários para mantê-la dignamente, a fim de não imitar aquele rico que não
teve nenhum cuidado com o pobre Lázaro”.
30 Ioannes Paulus PP. II, De puncto temporis quo mors hominum…, In: AAS 82 (1990) 768; Gaudium et
spes 18. In: AAS 58 (1966) 1038: “Diante da morte, o enigma da condição humana atinge o seu
ponto alto. O homem não se aflige somente com a dor e a progressiva dissolução do corpo, mas
também, e muito mais, com o temor da destruição perpétua. Mas é por uma inspiração acertada
do seu coração que afasta com horror e repele a ruína total e a morte definitiva de sua pessoa. A
semente da eternidade que leva dentro de si, irredutível a só matéria, insurge-se contra a morte.
Todas as conquistas da técnica, ainda que utilíssimas, não conseguem acalmar a angústia do
homem. Pois a longevidade, que a biologia lhe consegue, não satisfaz o desejo de viver sempre
mais, que existe inelutavelmente no seu coração”.
7- “A investigação científica e a reflexão moral devem continuar lado
a lado em um espírito de ajuda mútua. Nunca devemos perder de
vista a suprema dignidade da pessoa humana, cuja pesquisa de
bem estar e a reflexão são chamados a servir e nos quais o crente
reconhece a Imagem do próprio Deus”31.
Pela primeira vez o debate sobre morte cerebral estava sendo colocado no
contexto da doutrina da Igreja pós Vaticano II. E, não é por acaso que o Papa es-
colheu a Constituição Pastoral Gaudium et spes para inspirar o Grupo de Estudos
da Pontifícia Academia das Ciências juntamente com a Congregação da Doutrina
da Fé. E, como vimos acima, os pontos mais cruciais sobre a questão dos critérios
da definição de morte não pertencem só às ciências, mas é uma questão ética
diretamente ligada a dignidade da pessoa humana que envolve o destino mais
profundo do homem em direção ao seu Criador.
Outro ponto importante para a nossa reflexão é que o Papa retoma o tema
da consciência evidenciando assim, o contributo que a Igreja pode oferecer: “Para
66 cumprir seu papel de guia da consciência e para não decepcionar aqueles que
esperam dela uma luz, a Igreja precisa estar bem informada sobre estas realidades
que apresentam um vasto campo de novas descobertas e novos dados científicos
e técnicos de maneira audaz e desconcertante, que muitas vezes põem as consci-
ências em desordem”32.
Para garantir esse processo de discernimento o Papa conclui sua carta so-
licitando duas tarefas imprescindíveis: primeiro que os cientistas prossigam com
as pesquisas e estudos para que cada vez mais possam alcançar o momento mais
exato possível do sinal incontestável da morte. Isto asseguraria resultados mais
adequados para resolver o conflito da doação de órgãos, em salvar uma vida sem
desrespeitar a dignidade da outra. E, o segundo ponto é que moralistas, filósofos
e cientistas devem buscar realizar um trabalho em conjunto, com o exercício das
virtudes da tradição moral como a prudência, que pressupõe a retidão moral e
fidelidade ao bem, evitando soluções fáceis ou a utilização de falsos princípios. “A
investigação científica e o pensamento moral devem andar juntos, num espírito
de cooperação. Nunca devemos perder de vista a suprema dignidade da pessoa
31 Ioannes Paulus PP. II. De puncto temporis quo mors hominum…, In: AAS 82 (1990) 771; Gaudium
et spes 12. In: AAS 58 (1966) 1034, “O que é porém o homem? Ele emitiu e ainda emite muitas
opiniões a respeito de si mesmo, variadas e contrárias entre si. Numas muitas vezes se exalta
como norma absoluta. Noutras deprime-se até o desespero. Donde sua hesitação e angústia.
A Igreja percebe claramente estas dificuldades. Instruída pela revelação de Deus pode dar-lhes
uma resposta, na qual se delineia a verdadeira condição humana, explicam-se as suas fraquezas
e ao mesmo tempo se reconhecem de modo correto sua dignidade e vocação”.
32 Ioannes Paulus PP. II. De puncto temporis quo mors hominum…, In: AAS 82 (1990) 767.
humana, cuja pesquisa e reflexão são chamadas a servir o bem-estar, e que os
crentes não deixam de reconhecer nada menos que a imagem do próprio Deus”33.
O resultado do Grupo de Estudos foi significativo no sentido que havia con-
seguido ampliar a discussão para além do campo médico científico com uma re-
flexão filosófica e teológica que garantiam assim, um avanço para compreender a
dimensão do problema. Porém, como em 1986, não houve um consenso absoluto
sobre suas conclusões. A solicitação do Papa Pio XII para estabelecer o momento
exato da morte não foi realizada e João Paulo II reconhece também a dificuldade
dizendo: “Como vocês sabem, e como demonstraram por suas discussões, não é
fácil chegar a uma definição de morte compreendida e aceita por todos”34.
As conclusões do Grupo de Estudos da Pontifícia Academia das Ciências
foram baseadas em três pontos: Primeiro, trata-se da confirmação do elemento
espiritual, a alma que determina a unidade de todas as funções físicas e espirituais
e, portanto a morte é a separação desse princípio espiritual do corpo. Para eles,
a destruição total do encéfalo é um sinal visível que assegura uma certeza moral,
diminuindo as dúvidas, incertezas e ambiguidades, pois com essa destruição são 67
comprometidas também todas as funções orgânicas e vitais. Nestes casos, com a
devida comunicação à família pode estabelecer-se a suspensão da utilização dos
instrumentos artificiais de acordo com princípios éticos e solidários. Em segundo
lugar, o Grupo de Estudos esclareceu que a doação de órgãos é um ato de soli-
dariedade louvável e aceito, com a devida autorização, com respeito às normas
jurídicas, sem provocar ou acelerar a morte, ou qualquer tipo de omissão que des-
respeite a pessoa humana na sua dignidade35. E, finalmente, o Grupo de Estudos
recorda o papel fundamental da Teologia Moral e dos princípios que iluminam a
reta ação e garantem sua praticabilidade. Tanto as situações de interrupção de
medidas artificiais, como os critérios dos transplantes de órgãos são decisões éti-
cas que não podem prescindir a sua relação fundamental com a moralidade e a
teologia.
No ano do Jubileu do Milênio, o Papa João Paulo II manifestou-se nova-
mente sobre a questão da morte cerebral quando fez sua alocução no Congresso
Internacional da Sociedade de Transplantes, em agosto de 2000. Merece desta-
que suas palavras em relação à morte cerebral onde dois pontos se impõem. Em
primeiro lugar, o Papa refaz a pergunta: “Quando a pessoa pode ser considerada
33 Ibid., 771.
34 Ibid., 768.
35 Lembramos aqui a definição de eutanásia do documento Iura et Bona de 1980 da Congregação
da Doutrina da Fé: “Nomine euthanasiae significatur action vel omission quae suapte natura
vel consilio mentis mortem affert, ut hoc modo omnis dolor removeatur. Euthanasia igitur in
voluntatis propósito et procedenti rationibus, quae adhibentur, continetur” cf. Congregatio Pro
Doctrina Fidei. Declaratio de Euthanasia (05.05.1980). In: AAS 72 (1980) 546.
morta com plena certeza?”36 colocando o cerne do problema em destaque e, ao
mesmo tempo recuperando a sua dimensão que extrapola os parâmetros exclu-
sivamente científicos:
36 Ioannes Paulus PP. II. Ad eos qui conventui de chirurgicis transplantationibus interfuerunt (29 Augusti
2000). Allocutio. In: AAS 92 (2000) 823.
37 Ibid., 824.
38 Ibidem.
39 Ibidem.
40 Ibidem.
de 2005, na qual João Paulo II deixou uma carta aos seus participantes, sendo esse
um dos seus últimos escritos.
Nesta ocasião João Paulo II enfatizou que, na medida em que a ciência vai
progredindo no conhecimento na área dos transplantes, procurando assegurar o
sucesso das intervenções e uma melhor sobrevivência dos receptores, torna-se
ainda mais necessário um contínuo diálogo com a antropologia e a ética garan-
tindo o respeito da vida e da pessoa. Para o Papa é a antropologia cristã que for-
nece o significativo dado de que no momento da morte de cada pessoa acontece
a perda da unidade constitutiva corpóreo-espiritual, “Cada ser humano está vivo,
de fato, precisamente na medida em que é corpore et animus unus (Gaudium et
spes, n.14: EV 1/1363), e ela permanece assim enquanto subsiste em sua substan-
cial unidade na totalidade”41.
João Paulo II recorda que cabe ao médico de dar uma definição clara e pre-
cisa da morte, como havia afirmado Pio XII, mas ao mesmo tempo reforça o papel
da antropologia e da reflexão ética com o Magistério da Igreja para uma análise
rigorosa sobre o tema, de maneira particular apresentando os resultados para a 69
Congregação da Doutrina da Fé.
“Gostaria de vos assegurar que seus esforços são louváveis e, certa-
mente, serão úteis para os Dicastérios competentes da Santa Sé - es-
pecialmente a Congregação para a Doutrina da Fé - que não deixará
de ponderar os resultados da sua reflexão, e poderão oferecer os es-
clarecimentos necessários para o bem da comunidade, em especial,
os pacientes e os especialistas que são chamados a dedicar as suas
especialidades profissionais ao serviço da vida”42.
Não temos dúvida, toda a discussão que antecedeu a Evangelium vitae foi
de grande importância para solidificar seus fundamentos e motivado pelos escri-
tos do Papa Pio XII. O pontificado de Wojtyla pode mergulhar com todas as forças
na defesa da vida e no enfrentamento dos perigos éticos e morais que decorrem
da biotecnologia43.
41 Giovanni Paolo II. “Segni di morti e trapianti da cadavere” (01.02.2005). Discorso. In: Inchiridium
Vaticanum 23. Bologna: EDB, 2006, 238.
42 Ibid., 240.
43 Evangelium vitae 64: “Por meio de sistemas e aparelhagens extremamente sofisticadas, hoje a
ciência e a prática médica são capazes de resolver casos anteriormente insolúveis e de aliviar ou
eliminar a dor, como também de sustentar e prolongar a vida até em situações de debilidade
extrema, de reanimar artificialmente pessoas cujas funções biológicas elementares sofreram
danos imprevistos, de intervir para tornar disponíveis órgãos para transplante”.
BIBLIOGRAFIA
1- FONTES MAGISTERIAIS
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Torino: Edizioni Camilliane, 2009.
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rente. Roma: Scuola Tipografica Salesiana, 1907.
Sanna, Ignazio (Ed.). Dignità umana e dibattito bioetico. Roma: Edizioni Studium,
2009.
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Schockenhoff, Eberhard. “Il bene dell’uomo nella prospettiva morale”. In: Come in-
72 segnare teologia morale? A cura di Melina, Livio; Kampowski, Stephan. Siena: Canta-
galli, 2009, 79-90.
S. Tomae Aquinatis. Summa Teologiae. Torino: Editio Leonina, Roma: Marietti, 1948.
Artigos
EDUCAÇÃO SEXUAL, ÉTICA
DE CRESCIMENTO E MORAL
MISSIONÁRIA:
elementos para uma ética mais
misericordiosa
SEXUAL EDUCATION, ETHICAL GROWTH MISSIONARY MORALS:
elements for a more compassionate ethic
73
Ronaldo Zacharias*
RESUMO: A tarefa da educação moral é propor sempre os ideais mais elevados, sobretudo no se-
guimento de Jesus. Mas, todo educador não pode deixar de considerar o contexto social que vivem
as pessoas concretas. Mesmo quando elas são chamadas a viver o melhor possível, nem sempre tem
condições concretas de fazê-lo. Dai, é papel do educador, em ajudá-las a viver o possível, mesmo
que nem sempre seja o desejável. Propor o possível não é negar o ideal, mas auxiliar numa situação
provisória, desde a responsabilidade e obrigação moral. Isto vale também para muitas pessoas que
se envolvem em intimidade. O autor propõe três aplicações concretas das “expressões mínimas”: o
esforço de não fazer o mal, não mentir e não cometer violência alguma, visando garantir um míni-
mo de dignidade.. Em síntese: a combinação dos três elementos propõe uma ética de crescimento.
Além de educativa e ética, esta tarefa para educadores se tornam uma atividade ministerial, que se
transforma em missionária, embasada numa metáfora bíblica da terra prometida – devidamente
explorada no texto.
ABSTRACT: The task of moral education is to propose always higher ideals, particularly in the fol-
lowing of Jesus. But, every educator must consider the social context in which the concrete people
live. Even if they are called to live the best possible concrete conditions, not always they have the
* Ronaldo Zacharias é Doutor em Teologia Moral (Weston Jesuit School of Theology - Cambridge
- USA) e Reitor do Centro Universitário Salesiano de São Paulo (UNISAL); http://lattes.cnpq.
br/3151031277743196.
conditions to do so. This is where we find the role of the educator, to help them to live (at least
minimal conditions), even though it is not desirable. To propose the possible is not to deny the
ideal, but accompany them with the responsibility and moral obligation in their passing situation.
This also applies to those many people who engage in sexual intimacy. The author proposes three
concrete applications of the “minimum expressions”: the effort to do no harm, not to lie and not to
commit any violence, in order to ensure a minimum of dignity. In short: the combination of these
three elements gives the opportunity for an ethic of growth. Besides the education and ethics, this
task for educators becomes a ministerial activity, which in turn transformed into missionary activity
based on the biblical metaphor, of the promised land – properly explored in the text.
KEY WORDS: : the possible, the ideal, ethic of growth, provisional, moral education.
74
Introdução
São inúmeros os jovens que, apesar do esforço pessoal para serem bons
e fazerem o bem, têm relações sexuais em contextos que não correspondem ao
ideal moral proposto pela Igreja católica. Mais ainda, muitos são sexualmente ati-
vos em contextos que, justamente por contradizerem explicitamente esse ideal,
são considerados ilícitos. Sendo ilícitos, tornam ilícitos também os relacionamen-
tos de intimidade que neles acontecem. Esse seria o juízo de valor mais objetivo
sobre tantas “experiências juvenis” à luz do ensino do Magistério. Mas isso não
significa que tal juízo esgote toda a questão ética. Quando situamos pessoas con-
cretas no centro de nossa reflexão, não basta constatar que seus relacionamentos
contradizem objetivamente determinadas normas. Precisamos oferecer-lhes uma
proposta ética que as ajude a viver seus relacionamentos da maneira mais huma-
na possível, mesmo em contextos considerados ilícitos.
A reflexão a seguir quer projetar uma luz a mais sobre o tema, a fim de ofe-
recer aos educadores alguns elementos que os ajudem na difícil tarefa de propor
ideais para os jovens e, ao mesmo tempo, fazer isso com espírito verdadeiramente
missionário.
1. Em vista de ideais mais elevados 1
Muitas vezes, as pessoas não contam com as melhores condições para vi-
verem os ideais morais a elas propostos. É preciso levar em conta que qualquer
proposta de relacionamento sexual ideal não pode ignorar o contexto social no
qual acontece e a condição concreta das pessoas envolvidas. Quando levamos
em conta esses fatores, percebemos que: as condições sociais não são sempre
concebidas de modo igual para homens e mulheres, heterossexuais e homosse-
xuais; nem todos são inclinados ao bem e dispostos a escolher fazer o bem e evi-
tar o mal; as estruturas sociais podem condicionar as opções que a serem feitas.
Mas, mesmo quando as pessoas não podem contar com as melhores condições
para fazer o bem, elas são chamadas ao dever ético de se esforçar por fazer o
melhor possível na situação na qual se encontram. Isso implica, no mínimo, que
as pessoas exercitem, com responsabilidade, sua capacidade de auto-direção em
questões sexuais, vivam seus relacionamentos de intimidade com honestidade e
responsabilidade e encontrem maneiras respeitosas de acolher o outro na intimi-
dade interpessoal. 75
Não há dúvida de, na nossa tarefa educativa, precisarmos propor ideais ele-
vados.2 Mas não podemos fazer isso sem levar em conta que estamos propondo
ideais a pessoas que, muitas vezes, não podem fazer mais do que apreciar o valor,
o significado e a importância deles, sem poder vivê-los concretamente. O que
podemos fazer para ajudar essas pessoas no seu esforço de viver relacionamen-
tos responsáveis e significativos, a assumir como eticamente significativo o que é
“possível” e não tanto o que é “desejável”?
1 Vou recorrer às obras de Roger Burggraeve: “Une éthique de miséricorde”. In: Lumen Vitae (1994)
: 281-296; “De uma sexualidade responsável a uma sexualidade significativa: uma ética de
crescimento como ética de misericórdia pelos jovens nesta era de AIDS”. In: James F. Keenan
(org.). Eticistas católicos e prevenção da AIDS. São Paulo: Loyola, 2006, p. 309-323. Inspirei-me
no estudo feito por Burggraeve, primeiro, porque partilho profundamente de suas convicções;
segundo, por ser ele salesiano e, portanto, dedicado à educação dos jovens, representa para
mim um incentivo a ser sensível aos apelos de tantos jovens que desejam viver experiências
significativas, mas precisam de tempo para descobrir como, quando e com quem e, por isso,
querem ser respeitados e assistidos nas suas tentativas mesmo que essas não sejam as mais
desejáveis.
2 Vou aprofundar aqui o que apenas mencionei como preocupação no artigo: “Para além
do Davi de Michelangelo e da Vênus de Boticelli: o que fazer quando a realidade não
tem nada a ver com o ideal proposto”. In: Leo Pessini – Ronaldo Zacharias (orgs.). Ser e
fazer. Teologia Moral: do pluralismo à pluralidade, da indiferença à compaixão. Aparecida/
São Paulo: Santuário/Centro Universitário São Camilo/Sociedade Brasileira de Teologia Moral,
2012, p. 247-248.
porque terminá-los seria prejudicial para elas, ou porque os consideram subjeti-
vamente bons. Diante de situações como essas, constatamos ser preciso elaborar-
mos uma ética que leve a sério a fraqueza humana, acolha a pessoa humana na
sua fragilidade e afirme a capacidade humana para o bem, mesmo em condições
caóticas, reconhecendo existirem determinadas situações em que não há outra
escolha a não ser a de se esforçar por realizar o que é menos desumano, única
possibilidade restante.
Alguém poderia argumentar que uma postura como essa é uma afronta à
radicalidade do Evangelho, entendido como um chamado a refletir, da melhor
maneira possível, a imagem de Deus em todas as dimensões da própria vida, pro-
curando o verdadeiro sentido do amor - ou do vere bonum - ao qual todos somos
chamados, porque diminui as exigências dos ideais morais, empobrecendo e fal-
sificando seu significado. Para Burggraeve, isso nem sempre é verdade, porque
antes de propor o que é possível - o minus malum, em sentido negativo, ou o mi-
nus bonum, no sentido positivo - é necessário que se tenha pelo menos uma ideia
76 da excelência moral da dignidade humana que poderia ser plenamente realizada.
A questão em jogo não é a oposição ao chamado evangélico, mas a possibilidade
concreta de vivê-lo.3
Na prática, optar pelo que é possível fazer não significa renunciar ao ideal
proposto. Pelo contrário, tal opção supõe que a pessoa confronte o ideal com
a sua condição concreta e admita que, nesta condição específica, ela não pode
realizá-lo plenamente. Isso não quer dizer que esse ideal não possa ser realizado
amanhã, se as condições mudarem. O ideal moral é sempre um ponto de refe-
rência e um chamado permanente com o qual temos o dever ético de nos con-
frontar. Pode ser que, para algumas pessoas, o ideal será sempre inatingível. Isso
não é o que mais conta. O que, de fato, importa é permanecerem elas abertas ao
apelo desse ideal. Para outras pessoas, atingir o ideal é simplesmente questão
de tempo e paciência. Para estas, a opção pelo que é possível representa apenas
uma opção transitória, um caminho a ser seguido até o momento de abraçar o
ideal. No entanto, é bom ter presente que não é o caráter transitório da opção que
anula seu significado ético, pois não podemos negar que, ao seguir um caminho
não ideal, as pessoas podem fazer experiência do bem e encontrar significado
profundo no que vivenciam.
Não é por tais pessoas não estarem vivendo, nem serem jamais capazes
de viver o significado pleno do ideal moral a elas proposto, que se pode inferir
que seus relacionamentos não tenham valor e não possam expressar valor algum.
A mera conformidade com normas não é suficiente para justificar a intimidade
3 BURGGRAEVE. “Une éthique de miséricorde”..., p. 285-286.
sexual, simplesmente porque essa conformidade não é sempre sinônimo de rela-
cionamentos significativos e qualidade de presença. Alguma tensão entre a radi-
calidade do Evangelho e o possível de se fazer vai sempre existir. Não há dúvida
de que há riscos inerentes envolvidos na tentativa de resolver esse conflito, tais
como reduzir a moralidade do relacionamento à conformidade com “é isto que é
possível”, ou aprovar qualquer espécie de relacionamento em nome de “era isso
que era possível”. O fato de, em algumas circunstâncias, o máximo a se poder fazer
é escolher o possível, não diminui a responsabilidade e a obrigação moral de a
pessoa estar aberta ao apelo do ideal proposto.
Voltando à questão inicial: é um dado de fato que o contexto no qual mui-
tas pessoas se envolvem em intimidade sexual carece de qualquer perspectiva
de estabilidade, exclusividade e compromisso. Essa realidade convida-nos a re-
pensar nosso esforço educativo em termos de propor o que seriam as mínimas
expressões necessárias de bondade moral a serem respeitadas pelas pessoas que
se envolvem em intimidade sexual ocasional ou casual.4
Novamente aqui alguém poderia dizer que “expressões mínimas” ainda es- 77
tão longe do ideal e qualquer abordagem educativa tem de ser feita em termos
de se proporem valores mais elevados e, portanto, a perfeita expressão da bonda-
de moral. Muitas vezes tendemos a pensar a moralidade em termos de tudo ou
nada. Temos dificuldade em admitir que o que parece um ponto de partida ne-
gativo — expressões mínimas — possa ser a mais realista das possibilidades para
“esta” pessoa “nesta” fase particular de sua vida. Precisamos convir que um ponto
de partida negativo pode ser o ponto de partida mais conveniente para a pessoa
poder, progressivamente, alcançar patamares ricos na vivência de determinados
valores e/ou virtudes.
Seguem, a título de exemplificação, três aplicações concretas das “expres-
sões mínimas” a serem salvaguardadas nas relações, mesmo em contextos não
ideais para a vivência da sexualidade. As referências às expressões mínimas das
virtudes da justiça, da fidelidade e do autocuidado serão feitas no negativo – não
fazer isso, não fazer aquilo – porque acredito que a forma negativa ajuda a evitar
a ideia de que expressões mínimas sejam meramente uma visão de possibilidade
pela qual devemos esforçar-nos. Pelo contrário, quero enfatizar que tais expres-
sões mínimas são um dever moral concreto a ser cumprido pelas pessoas em to-
das as circunstâncias.
4 Não estou incluindo na categoria de sexo ocasional as relações caracterizadas pela violência,
exploração, ganho financeiro, desvio e compulsão. Meu interesse é focalizar os relacionamentos
sexuais com alguma qualidade, mas de caráter temporário e descompromissado.
Não fazer o mal como expressão mínima de justiça.5 Os que se envolvem em
sexo casual têm o dever ético de não introduzir nenhum mal no mundo, de não
tirar vantagem de situações caracterizadas por uma desigual consideração pelas
pessoas envolvidas ou pelo bem comum e de não tratar os outros como meios
para satisfazerem interesses pessoais. Na prática, essas pessoas deveriam com-
prometer-se a defender e promover os direitos de cada pessoa, especialmente
das que poderiam ser mais facilmente magoadas, tais como mulheres e crian-
ças; a evitar comportamentos sexuais irresponsáveis tais como os que resultam
na difusão de doenças sexualmente transmissíveis. Em algumas circunstâncias,
evitar a gravidez, quando esta seria totalmente destituída de estruturas sociais
protetoras, é um modo concreto de não fazer o mal ao indivíduo que poderia
vir a ser concebido e à sociedade como um todo. Em outras, não se envolver em
intimidade sexual pode ser um modo concreto de evitar tirar vantagem do outro
e do relacionamento.
Não mentir para o outro, como expressão mínima de fidelidade.6 Os que se
78 envolvem em sexo ocasional têm o dever moral de não atribuir a um gesto o sen-
tido que ele não tem. Isso implica, em algumas circunstâncias, a obrigação de
dizer “não” à intimidade sexual. Em outras, o direito de retirar o consentimento
prévio quando o gesto se torna uma mentira. O princípio de “não mentir” requer
consentimento bem informado de ambas as partes. A pessoa tem de dizer à outra
quem é e o que quer a fim de estar genuinamente presente na relação e de não
esperar mais do que ambas podem dar, nem mais do que o próprio relaciona-
mento promete.
Não cometer violência contra si mesmo como expressão mínima de auto-cui-
dado. Na prática, isso implica o dever moral de não se submeter a qualquer tipo
7
5 FORTUNE, Marie M. Love Does no Harm: Sexual Ethics For the Rest of Us. New York: Continuum,
1995; BURGGRAEVE. “De uma sexualidade responsável a uma sexualidade significativa”..., p. 310-
311.
6 WALLACE, Catherine M. For Fidelity: How Intimacy and Commitment Enrich Our Lives. New York:
Alfred A. Knopf, 1998; BURGGRAEVE. “De uma sexualidade responsável a uma sexualidade
significativa”..., p. 315-317.
7 NODDINGS, Nel. Caring: A Feminine Approach To Ethics and Moral Education. Berkeley: University
of California Press, 1984; BURGGRAEVE. “De uma sexualidade responsável a uma sexualidade
significativa”..., p. 312-313.
É inegável que o esforço de não fazer o mal, não mentir e não cometer vio-
lência contra si mesmo não garante, por si só, a qualidade de qualquer relaciona-
mento. Mas “garante um mínimo de dignidade humana em situações em que o
significativo é apenas mínima ou parcialmente realizado”,8 e isso não deveria ser
subestimado. O esforço de assumir as expressões mínimas de tais virtudes pode
ser educativo em si mesmo: é com a prática que a pessoa se torna virtuosa. A prá-
tica do “mínimo” pode preparar o caminho para ideais mais elevados.
Há três conclusões práticas derivadas do que foi dito. Primeira: a determina-
ção do comportamento virtuoso não pode ser separada do indivíduo, da situação
e das circunstâncias em que ocorre. O fato de algumas pessoas não poderem fa-
zer mais do que o mínimo não significa que não sejam virtuosas. O mínimo pode
ser o máximo que podem dar, nesse estágio específico de suas vidas e sob essas
circunstâncias específicas.
Segunda: a proposta de expressões mínimas das virtudes caracteriza-se por
ser provisória. O fato de o mínimo ser tudo o que a pessoa pode dar hoje não 79
implica que não deva procurar o máximo amanhã. O mínimo serve para abordar
uma determinada situação ou estágio da vida devido, por exemplo, em termos de
temporalidade, a uma liberdade ainda não desenvolvida, a uma maturidade afe-
tiva ainda não alcançada, ou à falta de capacidade pessoal para o compromisso.
Terceira: a gradualidade é inerente a qualquer processo de educação mo-
ral. Mesmo as expressões mínimas das virtudes propostas não podem ser todas
9
10 DILLON, Martin C. Beyond Romance. Albany: State University of New York Press, 2001, p. 63, para
quem as categorias do vir-a-ser são também as categorias do amor.
11 Chamo de situações “caóticas” os relacionamentos aquém do ideal moral proposto pela Igreja e
que, por isso, são consideradas objetivamente ilícitas ou desordenadas.
12 Embora a abordagem das questões morais, por Martin, não represente uma abordagem
eclesiástica oficial, é muito estimulante como tentativa de repensar a teologia moral como
uma proposta que convida as pessoas a descobrirem a alegria de viver os valores do Reino, um
esforço que, segundo ele, deve preceder a formulação de normas. Ver Leonard M. Martin. “Moral
Missionária para o Novo Milênio”. In: Vida Pastoral 38, n.º 194 (1997) : 23-29; “Exílio, Sodoma e o
Deserto: uma ética teológica a partir das culturas dos submundos”. In: Márcio Fabri dos Anjos
(ed.). Teologia Moral e Cultura. Aparecida: Santuário, 1992, p. 89-113; “Moral Sexual Missionária
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(1990) : 515-536; “ ‘I Fed You With Milk’: A Missionary Morals in Brazil in a Time of AIDS”. In: James
F. Keenan (ed.). Catholic Ethicists on HIV/AIDS Prevention. New York/London: Continuum, 2000, p.
128-135.
Às vezes, as pessoas tendem a crer - na lógica do tudo ou nada – que, por
não poderem abraçar o ideal a elas proposto, o que fazem não tem valor algum.
Somos chamados a discernir os valores presentes na vida das pessoas, ajudá-las
a confrontar a própria vida com outros valores que podem ter sido ignorados. Ao
oferecer uma nova luz a essas pessoas, tornamo-nos responsáveis por ajudá-las
no esforço de caminhar com as próprias pernas e no chão em que vivem.
Não há dúvida de que a compreensão dessa tarefa é profundamente con-
dicionada — ou inspirada — pela experiência que temos de Deus. Se Deus é co-
nhecido como alguém que leva a sério a fraqueza humana, não para condená-la,
mas, sobretudo, para redimi-la, como alguém que confia na capacidade humana
para o bem, será mais fácil compreender que se deve dar prioridade ao tipo de
pessoa em que se está tornando aquele que está sendo transformado pelo amor
de Deus, e ao esforço feito para produzir frutos de caridade em qualquer que seja
o seu estado ou condição de vida.
Essas convicções constituem a base para outra tarefa moral: ajudar e as-
sistir as pessoas na sua confrontação com as normas morais tidas como universal- 81
mente válidas. Nessa tarefa, os insights de Martin podem ser de grande valia.13
Para Martin, é preciso distinguir entre moral missionária e moral pastoral,
distinção fundada em uma outra mais ampla, atividade missionária e atividade
pastoral.14 A primeira é dirigida às pessoas para quem o Evangelho “ainda não
é” boa-nova, àquelas para quem o Evangelho “não é” uma boa-nova devido ao
contexto inumano em que vivem e àquelas para quem o Evangelho “não é mais”
uma boa-nova. A segunda é dirigida àquelas que abraçaram e vivem o Evangelho
“como” boa-nova, mas precisam do apoio da comunidade à qual pertencem para
alimentar e sustentar o seu discipulado.
As metáforas bíblicas do exílio e do deserto são usadas por Martin para
simbolizar as condições de vida daqueles aos quais é dirigida a atividade missio-
nária da Igreja. As pessoas vivem, muitas vezes, em situações em que se tornam
presas fáceis de sistemas opressores, manipuladores, exploradores e, consequen-
temente, perdem a própria liberdade. Algumas são suficientemente fortes para se
libertarem desses sistemas, mas, exatamente como o povo no deserto, precisam
de tempo para restaurar suas vidas e definir um novo projeto de vida. É quase
como se precisassem aprender, de novo, a andar com suas próprias pernas. Essas
pessoas sonham com a terra prometida, mas estão muito longe dela. Outras se
sentem tão machucadas pela marginalização e exclusão a que tiveram de se sub-
13 Minha reflexão será baseada especialmente no artigo de Martin: “Moral missionária para o Novo
Milênio”.
14 MARTIN. “Moral Missionária para o Novo Milênio”..., p. 24.
meter que nem ousam sonhar com um novo projeto de vida. Precisam de tempo
para demolir as estruturas pecaminosas anteriores e coletar os destroços antes de
pensarem em reconstruir suas vidas.15
A metáfora bíblica da terra prometida é usada para dar uma ideia das con-
dições de vida das pessoas a quem é dirigida a atividade pastoral da Igreja. Elas
não estão no exílio ou no deserto. Saíram dessas situações e estão usufruindo, em
maior ou menor grau, dos benefícios da terra prometida. Por causa da formação
recebida e do apoio comunitário, podem, agora, dar mais do que antes.16
A distinção entre as atividades missionária e pastoral e as metáforas bí-
blicas que as definem nos ajudam a compreender que é preciso articular uma
proposta ética para os diferentes contextos de vida. Isso, aplicado à ética e à edu-
cação sexual, significa que não se pode exigir dos que estão no “exílio” ou no “de-
serto” da vida que abracem – da mesma maneira, com as mesmas convicções e
pelas mesmas razões — os mesmos valores e normas daqueles que se encontram
na “terra prometida”. Os que têm mais condições objetivas para “dar mais” deve-
82 riam ser estimulados a fazê-lo. Os que estão em situações caracterizadas por pou-
ca liberdade e forte opressão precisam, primeiro, ser estimulados a recuperar sua
liberdade perdida, afirmar sua dignidade e readquirir confiança em si mesmos.
Só então podem dar os primeiros passos para a “terra prometida”. Não podemos
nunca esquecer que as pessoas se movem do “exílio” para o “deserto”, para a “terra
prometida” e vice-versa muito facilmente. Nenhuma condição de vida é estática.
Consequentemente, o que é possível fazer hoje pode não ser possível amanhã;
quem tem força para incorporar algumas virtudes hoje pode não ter a mesma
força amanhã. O contrário também é verdade: o que se pensava não ser jamais
possível fazer pode ser feito hoje, e a força que não se imaginava jamais poder ter
pode ser a motriz do que se está fazendo hoje.
A questão que emerge naturalmente dessas considerações refere-se ao
lugar e papel das normas morais em situações de “exílio”, “deserto” e “terra prome-
tida”. Não há dúvida de que essas situações exigem apresentações diferentes das
normas morais. Em cada uma delas, as normas devem ter papel pedagógico. É a
situação específica que vai definir a abordagem mais pedagógica para as pessoas:
não deveria haver problema em admitir que as normas pudessem ser apresenta-
das como regras concretas permitindo ou proibindo certos comportamentos e/
ou como um apelo à autenticidade e à autonomia. Mas, a despeito de todas as
diferentes formulações que as normas pudessem ter, a prioridade, em todas as
situações, deve ser dada aos valores que elas querem expressar. O importante é
15 MARTIN. “Moral Missionária para o Novo Milênio”..., p. 24-25.
16 MARTIN. “Moral Missionária para o Novo Milênio”..., p. 25-26.
o convite para abraçar e incorporar valores. Nessa perspectiva, as normas morais
têm um papel relativo: são importantes na medida em que se tem necessidade
delas.
O que foi dito não contradiz o fato de que somos todos chamados a bus-
car ideais mais elevados e a propô-los em nossa tarefa educativa. Como cristãos,
o ideal mais elevado a ser incorporado e proposto é o seguimento a Cristo, um
seguimento que requer adesão à sua pessoa e ao seu projeto de vida. Na prática,
isso significa que todos os requisitos morais deveriam derivar dessa opção. Na
perspectiva de uma ética de crescimento, até mesmo o seguimento a Jesus tem
um caráter gradual. Não requer, como ponto de partida — ou como condição
fundamental — a adesão a uma doutrina específica, mas a disposição de acolher
o Reino de Deus na própria vida, um Reino onde “santidade” se exprime de muitas
expressões diferentes.17
Conclusão
83
As indicações de Burggraeve e os insights de Martin levam-nos a afirmar
que a nossa proposta educativa não pode ser excludente ou deixar à margem
aqueles que vivem em situações aquém do ideal moral. À luz dos atos de Jesus,
nossa proposta educativa tem de ser inclusiva. Isso implica que, como Jesus, ela
deve pôr as pessoas no centro da sua reflexão, devolver a elas a voz que perderam
ou que não se faz mais ouvir devido à distância do ideal proposto, considerar as
dificuldades, necessidades, desejos e esperanças concretas mesmo se, aparente-
mente, não sejam tão evangélicas e, sobretudo, reconhecer que entre o rigor e a
misericórdia, a segunda tem prioridade, pois é ela que salva.
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ficativa: uma ética de crescimento como ética de misericórdia pelos jovens nesta
era de AIDS”. In: James F. Keenan (org.). Eticistas católicos e prevenção da AIDS. São
Paulo: Loyola, 2006, p. 309-323.
17 Ver: ZACHARIAS, Ronaldo. “De uma crise sem precedentes aos precedentes de muitas crises. A
urgência de uma nova compreensão da sexualidade.” In: João Décio Passos e Afonso M. L. Soares
(eds.). Francisco: renasce a esperança. São Paulo: Paulinas, 2013, p. 69-70.
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Universitário São Camilo/Sociedade Brasileira de Teologia Moral, 2012, p. 247-251.
Artigos
PERSPECTIVAS CRUZADAS DA
TRADUTOLOGIA CRISTÃ CANÔNICA
E EXTRA-CANÔNICA: Um olhar sobre
Transmissão, Recepção e Sitz im
Leben
CANONICAL AND EXTRA CANONICAL CROSSING PERSPECTIVES OF THE
CHRISTIAN TRANSLATION: a look on transmission, reception and Sitz in Leben
85
Elias Paraizo Jr *
de partículas gregas para trazer distinções sutis de relacionamento que o hebraico não pode
expressar adequadamente. Em mais de uma passagem Symmachus tinha uma tendência para
suavizar expressões antropomórficas do texto hebraico.” No entanto, seu objetivo era o de
preservar o significado do texto através uma tradução mais literal que a LXX.
10 Edição, tradução e leitura de divulgação popular.
11 PAPA BENTO XVI citando HIERONYMUS, Eusebius Sophronius. Ep. LVII, 5 – (Para Pammachius) –
De optima genere interpretandi. [trad. anom.]. (on-line) < http://www.vatican.va/ holy_father/
benedict_xvi/audiences/2007/documents/hf_ben-xvi_aud_20071107_po.html >, acessado
25/10/2012. —— As citações provêm de uma variedade de línguas, nas quais o material de
pesquisa encontra-se disponível. As traduções destas, quando não identificados os tradutores
(caso de terceiros), foram realizadas por este pesquisador.
12 Trata-se de personagens romanas – Lucius Calpurnius Piso (senador e cônsul) e seus dois filhos
– que nos permitem identificar melhor a datação do poema e seu objetivo.
13 MOUNIN, Georges. Teoria e storia della traduzione. Torino: 1965, Einaudi, p.63.
orge Chapman14. De Martin Luther destaca-se, a partir de suas Tischreden,
uma “teorização” tradutória associada a uma “diretriz hermenêutica teoló-
gica” ao estilo popular, comunicativo e marcadamente humanista no uso
filológico de originais, como temos em Sendbrief vom Dolmetschen (1530) e
Summarien über die Psalmen und Ursache des Dolmetschens (1531)15.
Portanto, ao se perceber a riqueza de aspectos que envolvem a tradutolo-
gia de textos advindos de contextos antigos e sagrados, e para alcançar ao desíg-
nio aludido no parágrafo inicial introdutório, mostra-se cada vez mais tangível a
imprescindível necessidade de instruir-nos com os métodos clássicos das teorias
da tradução. Assim, um dos objetivos da presente ensaio é destacar aspectos ba-
silares e norteadores da prática tradutória de escritos provindos do ambiente cris-
tão dos primeiros séculos, particularmente para o português brasileiro. Questões
aparentemente sem grande relevância em uma conjuntura secular, são tomados
de “grande valor sociolinguístico no contexto bíblico”, e que pesem, especialmen-
te às alusivas à “canonicidade, credibilidade nos textos, diferenças dialetais, níveis
de linguagem, graus de literalidade, arranjo formal”, e outras como material suple-
mentar de notas, introduções, prefácios, κτλ.16 89
É necessário, portanto, discernir o favorecimento histórico da longa tradi-
ção de tradutores de textos cristãos, com sua ênfase na práxis e o seu significado
para o tradutor de textos da Antiguidade cristã na atualidade, bem como ele deve
trabalhar. Estaremos, assim, estudando a sua teoria e prática, o caráter vital da
sua tradução, a natureza da motivação, a necessidade da experiência com aspec-
tos da teologia cristã, os atributos que devem caracterizá-lo e, especialmente, sua
competência tradutória. Este é o retrato do tradutor de textos sagrados cristãos,
uma efígie redesenhada pela história a partir do século XVI, durante a Alta Renas-
cença, que se torna exemplo para os séculos seguintes.
A partir de um grupo de pesquisas: (i) pesquisa ‘Retratos da Leitura no Bra-
sil’ do Instituto Pró-Livro, em conjunto com Observatório do Livro e da Leitura,
17
14 FURLAN, Mauri. A teoria de tradução de Lutero. – in: Annete Endruschat; Axel Schönberger (orgs.).
Übersetzung und Übersetzen aus dem und ins Portugiesische. Frankfurt am Main: Domus
Editoria Europӕa, 2004, pp.11-21.
15 idem. ibidem.
16 NIDA, Eugene Albert. Bible Translation. – in: Mona Baker (ed.), Routlegde Encyclopedia. London;
New York: Routledge, 2001, pp.24-5.
17 Dimensionamento amostral nacional, com a margem de erro máxima estimada 1,4 p.p. A Bíblia é
apontada várias vezes nos resultados: i) é o gênero mais lido (acima de livros didáticos, romance,
livros religiosos, contos, literatura infantil, história de quadrinhos, κτλ); ii) em 2007 com 57,0
milhões de leitores (45% da base de leitores), em 2001 com 41,1 (42%); 1º. lugar em ‘Gêneros que
costumam ler’, ‘Livro mais marcante’, ‘O último livro que leu ou está lendo’, κτλ. Escopo da pesquisa:
medir intensidade, forma, motivação e condição de leitura da população brasileira. Metodologia,
resultados, e outros – in: Pró Livro. (on-line) < prolivro.org.br/ipl/publier4.0/dados/anexos/2834_10.
pdf >, acessado em 19/12/2012.
IBOPE Inteligência, ABRELIVROS, CBL & SNEL (Brasília, 29 de março de 2012) que
objetiva um amplo diagnóstico nacional do comportamento de leitura do brasi-
leiro que norteia decisões do mercado editorial; (ii) ‘Pesquisa internacional sobre
leitura da Bíblia, na perspectiva ecumênica’ (Vaticano, novembro de 2007 - julho
de 2008)18; (iii) pesquisas do CEBI – Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, CERIS
– Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais, et aliӕ; pode-se afirmar
que milhões de leitores ou ouvintes, diariamente, entram em contato com um
texto sagrado19 através da leitura direta destes textos traduzidos, pela audição de
sermões e palestras ou através de comentários e devocionais. Porém, para este
amplo público nos deparamos com um número ainda insuficiente de teóricos
que estudam com cuidado a tradução, recepção e comunicação20 destes escritos
cristãos.
A complexidade da tradução da literatura cristã antiga aponta os para os
consequentes desafios: (i) embora pareça óbvio, as publicações religiosas, e.g. as
Bíblias Ave Maria21 e a versão da New Internacional Version22 demonstram a neces-
90 sidade de se evitar uma superficialidade ingênua no trato com tais textos; (ii) de
não escamotear as conjunturas histórico-literárias que surpreendem pelo rebrote
18 DIOTALLEVI, Luca (org.). La ricerca dei dati JFK-Eurisko. JFK-Eurisko & Ecclesia. Vaticano:
Departamento de Sociologia – Università Roma TRE, 2008. Apresentada pelo presidente do
Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos, Cardeal Walter Kasper e o
secretário-geral das Sociedades Bíblicas, Rev. Archibald Miller Milloy apontam que no período
da pesquisa: os níveis mais baixos de leitura bíblica dos países cristãos pesquisados encontram-
se na França e Espanha (20%) e o mais alto nos EUA (75%). Outros dados: na Europa, ao contrário
das Filipinas e EUA, as homilias não são apreciadas. Nos EUA, Alemanha e Itália a televisão é o
meio de comunicação religiosa preferido.
19 As pesquisas (i) e (ii), isoladas, já nos permitem vislumbrar milhões de leitores diários da Bíblia.
Mas temos leitores do Bhagavad-Gita, Tanakh, Tri-Pitakas, Riq veda, Amnaya, Alcorão, Sunnah ou
Hadith, Livro de Mórmon, Talmude, Livro dos Espíritos, Livro dos Médiuns, Kojiki, Zend Avesta, Guru
Granth Sahib, Mahabharata, Nihon Shoki, Evangelho segundo o Espiritismo, Espírito de Profecia et
alii.
20 O termo aqui será empregado na perspectiva ‘social’, ou seja, “comunicação social” conforme
art. MASON, Ian. Communicative/funcional approaches. – in: Mona Baker (ed.), Routlegde
Encyclopedia. London; New York: Routledge, 2001, pp.30-1. Este artigo perpassa os trabalhos de
cf LASSWELL-1945 e NORD-1991, onde a noção comunicação e alteridade concebem a aspiração
de partilha de uma extensa gama de sentidos, particularmente os extralinguais (culturais,
psicológicos, antropológicos, sociolinguísticos, sócio-históricos, κτλ). Segundo HYLMES-1971 o
conceito de “communicative competence” contrapõe “capacidade e manifestação” da “linguagem
e da língua”, conforme a dicotomia formal chonskyana-1965 de “competence / performance”.
Neste mesmo sentido, uide STEINER, George. Depois de Babel. Curitiba: UFPR, 2005, pp.77-9, a
compreensão, resultado efetivo da comunicação, é vista como tradução (ambos meios de acesso
social).
21 A mais comercializada e popular versão entre católicos brasileiros; uma re-tradução a partir do
francês.
22 Mais conhecida como NIV ou NVI, a mais vendida entre protestantes no Brasil, tão alterada de
edição a edição, por questões comerciais, que atualmente é amplamente reconhecida como
“família NVI”.
destas, e.g. versões bíblicas parafraseadas: BNL, NTLH23; (iii) de distinguir e lidar
com a resistência dos fundamentalismos já sedimentados; (iv) e de entender que
a interpretação desta literatura e as questões da sua tradução ‘oscilam historica-
mente de um lado para o outro’. A despeito do problema desta complexidade
acima referida, é instigante estarmos abertos a novos olhares acerca das deman-
das tradutórias do material textual do período subapostólico no contexto do
cristianismo nascente (deuterocanônicos, apócrifos, apócrifo-gnósticos, judaico-
-cristãos, κτλ).
Por fim, o ápice na busca por traduções da corpora24 dos textos apó-
crifos gnóstico-cristãos deu-se, de forma enviesada, com a polêmica obra
de vendagem magistral25 – The Da Vince Code. Brown, mundo afora, sacu-
diu a fé de milhões com a abordagem de temas como prelados, irman-
dades, movimentos religiosos diversos, alguns abduzidos da historicidade,
fruto de labor tradutório silencioso a partir das três décadas anteriores;
também de outros mais contemporâneos26. Nesse ressurgir do interesse
pelos “apócrifos”, Brown reinventa na literatura27 a possibilidade de que no 91
cristianismo nascente28 teria encetado uma conspiração para dissimular o
“episódio” que Jesus se casara com Maria de Magdala29, personagem que
traz retratada por Da Vinci na Última Ceia.
Um aspecto é de particular interesse à discussão: a tessitura desta trama
subjaz, em certa medida, estruturada no achado, também na dilatação do espec-
além do cânon católico 3 e 4 Mac, o acréscimo aos Salmos – Sl 151, 1Ed, o Livro de Enoque, o
Livro dos Jubileus (estes dois últimos sequer compõem a LXX); no NT também é diferente, onde
constam como canônicos AtsPl, I Clemens e o Pastor de HERMAS (gr.: Ποιμήν του Ερμά; heb.:
;סמרה העורou chamado simplesmente de O Pastor); (vii) outras Igrejas Ortodoxas que adotam a
orientação dos Concílios Ortodoxos de Jassy (Romênia, 1642) e Jerusalém (1672), além do católico
recebem como canônicos o acréscimo Sl 151, 1Ed e a Oração de Manassés; (viii) a Igreja Ortodoxa
Síria acrescenta a estes o Pastor de Hermas; (ix) as Epístolas Católicas Menores (canônicas) de II
Pe, Jd, Tg, II e III Jo mais o Ap (de João) foram bastante contestadas na Antiguidade e a Bíblia
Ortodoxa Siríaca – Peshita os exclui; (x) nem o Quarto Evangelho (de João) escapou à crítica e
aparece pela primeira vez em alguma lista do cânon apenas c.a 170; (xi) de outro lado, o Pastor
93
de Hermas, Epístola(s) de Policarpo, Ep.(s) de Inácio, Ep.(s) de Clemens tiveram grande aceitação
e circulação nas antigas listas canônicas do NT, os melhores códices para atual crítica textual
bíblica – Codex Alexandrinus, Sinaiticus e Vaticanus – testemunham isso; (xii) os cristãos da Igreja
Copta (norte África) conhecem as palavras de Jesus através do “pseudoepígrafo” Ev. de Tomé
– λόγια (= coletânea ditos de Jesus); (xiii) Igrejas como a Ortodoxa Armênia, Ortodoxa Russa,
Ortodoxa Grega, κτλ, têm ainda hoje cânones diferentes destes anteriores ou atribuem níveis
de inspiração diferenciados; (xiv) Martin Luther chamou a Ep. de Tiago (canônica) de “epístola
de palha” devido a sua vontade de subtraí-la do cânon, não ocultou sua intenção; também
reacendeu o debate sobre os ἀντιλεγόμενα (escritos “disputados”, que há alguém proeminente
“contrário a ela”) no Pais da Igreja, que levou que se chama de Antilogoumenas de Lutero; (xv)
John Calvin afirmou nas Institvtio Christianæ religionis (maior obra teológica protestante até a
atualidade) que o Apocalipse (de João; canônico) “mais atrapalhava do que ajudava com sua
presença no canôn”; (xvi) Os Ev(s) dos Hebreus e dos Ebionitas (não canônicos) ainda circulam
em algumas listas de cânon. Cada parte insiste na visão de harmonia, mas essas divergências
representam uma visão mais objetiva da questão canônica ainda hoje. Isto sem adentrar na
desarmonia intra dos textos aceitos comumente como canônicos, e.g. os quatro Evangelhos.
(xvii) Ainda no séc. VIII, na lista de ἀντιλεγόμενα, do Patriarca Nicéforo I de Constantinopla figura
o Apocalipse ou Revelação.
35 Expressão especializada, que no sentido atual ocorre a primeira vez com o Imperador Teodósio,
381. Apesar de tal expressão cristalizada entre nós, o Dictionnaire Grec-Français A. Bailly sequer
faz menção. Igualmente o Lexicon Liddel & Scott que não possui um verbete próprio para o termo
(apenas uma menção marginal). O conceituado internacionalmente DPAC (it.) – BERARDINO,
Angelo Di (org.). Dizionario Patristico e di Antichità Cristiane (it.), Rome: Instituto Patristico
Augustinianum 1988; e DPAC (pt.), São Paulo; Petrópolis: Paulus; Vozes, 2002, p.1054, indica o
uso especializado deste termo aos tempos subapostólicos das cartas pastorais (1Tm 1.3; 6.3)
o que não corresponde, pois os termos empregados lá são outros ἑτεροσδιδασκεῖν (1.3) e
ἑτεροσδιδασκεῖ (6.3), que aplicadas ao rigor exegético não restariam sequer conotativos. No
aparato crítico NGT (Greek New Testament – 4ª. Rev. Ed.), mais atual texto crítico do NT, não temos
manuscritos discordantes das palavras gr. supra nem K ou P ou qualquer Pai da Igrejavid até 381;
resta a hipótese hermenêutico-teológica evidente.
36 LAYTON. Bentley. As escrituras gnósticas. São Paulo: Loyola, 2002, p.XVII.
Nunca houve uma era tão bem servida de recursos como este derra-
deiro meio século decorrido: surpreendentes achados arqueológicos (Qu-
mran, Nag Hammadi et alii), avanços da Ecdótica, a Linguística aflora neste
século para oferecer seu contributo, a conexionalidade e disponibilização
de pesquisas digital-virtualmente, avanço nos estudos filológicos, desco-
bertas de substâncias para o trato com pseudoepígrafos, κτλ. Sem qual-
quer pretensão na demanda teológica, é presumível que estejamos agora
em melhor ponto de vista por dispormos de outros evangelhos, atos e epístolas,
alguns fonte dos próprios gnósticos, e que nos permitem melhor juízo no
que acreditavam ou o que foi axiológico no(s) cristianismo(s) primitivo(s).
Não é Brown o único exemplar deste reabrolhar dos apócrifos. Há
uma gama de textos e suas versões fílmicas que são dignos de menção37. A
cada dia, novas abordagens voltadas às pedras angulares do cristianismo
têm sido difundidas por material de leitura fácil e em especiais de televisão
sobre Maria de Magdala, o Código da Vinci e muito mais, por scholars bem
94 articulados como King38, Pagels39 e Ehrman40.
Neste ponto, avulta-se a relevância dos Estudos da Tradução para
o trato com textos sagrados – tão privados e sensíveis, suas demandas
tradutórias – não só quantitativas, mas igualmente qualitativas e a
consequente lide hermenêutica envolvida nesse processo. Por este cami-
nho, neste ensaio se pretende deliberar por pressupostos das teorias de
tradução que norteiem um plano tradutório para textos do ambiente cris-
tão dos séculos I-II. Com o uso de teóricos variados e diacronicamente, se
tentou evitar o sobressair de algum destes com tal superioridade que mar-
que ou acastele alguma tradução41.
37 e.g., a milionária trilogia de filmes dos irmãos Wachowski – Matrix, Matrix Reloaded e Matrix
Revolutions que lucraram além de um bilhão de dólares e fascinaram com muitos oscars;
outros como: Minory Report de Spielberg, O Troco de J. Woo, os clássicos da série Blade Ranner
de R. Scott, o Stigmata de R. Wainwrigtht cuja temática é um diálogo extraído do Ev. de Tomé
com desdobramentos nas questões sobre liberdade e a austeridade hierárquica vaticana
e a prodigiosa ficção de Philip K. Dick, site oficial, (on-line) < http://www.philipkdick.com/
>, acessado em 19/10/2010, todos estes também captaram esta demanda. Para abreviar a
vastíssima lista ainda cito os best-sellers e filmes: The Bible Code, Bible Code II: The Countdown e
Bible Code III: Saving the World de Michael Drosnin.
38 Karen King – Universidade de Harvard.
39 Elaine Pagels – Universidade de Princeton.
40 Bart D. Ehrman – Universidade da Carolina do Norte.
41 e.g. de outras escrituras sagradas para as quais cabem os mesmos cuidados teóricos: o Bhagavad-
Gita do hinduísmo; Bíblia Hebraica do judaísmo (heb. ך״נת, transl. Tanakh: Torah, Profetas e
Escritos); o Tri-Pitakas do budismo; o NT do cristianismo e o Alcorão dos muçulmanos. Há uma
extensa gama de textos sagrados (outros chamados “apócrifos”, diferenças entre os cânones,
κτλ) que se tem notícia, no entanto estes são mais conhecidos e também pela maior parte da
população mundial.
Apartada a antiga acusação de que alguma tradução que preten-
da ser bela deve ser arrolada entre as belles infidèles, a acepção do termo
‘tradução’ aqui avança a partir do modelo benjaminiano de “forma” – “A tra-
dução é uma forma. Concebê-la como tal implica regressar ao original.”42
Assim sendo, se “reconceitua a tarefa do tradutor: trans-pôr, trans-formar.
Entenda-se, formar noutra língua, re-formar na língua da tradução a arte
do original.”43 Quando encerra seu ensaio, Walter Benjamin define tradução
de textos sagrados:
Não existe, no entanto, nenhum texto além do sagrado no qual o
sentido deixe de ser o separar das águas entre as torrentes da língua
e as torrentes da revelação. No momento em que o texto, imediata-
mente, sem sentido intermediário, pertence, na sua literalidade, à
verdadeira língua, à verdade ou à doutrina, aí ele é pura e simples-
mente traduzível. E não por sua vontade, mas por vontade das lín-
guas. É exigida em relação a ele uma confiança ilimitada da tradu-
ção, de tal modo que, sem tensão, língua e revelação têm aqui de se
reunir, sob a forma de versão inter-linear (sic), como no outro caso
literalidade e liberdade. Pois todos os grandes escritos contêm num
certo grau – os sagrados, porém, no mais alto grau – entre as linhas
a sua tradução virtual. A versão inter-linear (sic) do texto sagrado é a
imagem originária ou ideal de qualquer tradução.44 95
Através de Benjamin percebemos que a tradução sacra é “desassossegada”
tal como a própria literatura sagrada o é. Sendo, por vezes, paradoxal em certos
aspectos, o que nos leva a não nos valermos tão somente de esquemas prontos
e ajustados para atingir nossos fins tradutórios. Por outro lado, tem sido fácil fi-
car apreensivo com as disputas, ou até com a falta, de método. Tem-se ansiado
pelo “teor” e “acepção”, porém deslembrados de que não existe ingresso direto ao
conteúdo e à significação à parte de algum dos possíveis métodos legítimos de
tradução. Para demonstrar, são muitos os exemplares exegéticos que fazem apro-
ximações ao texto com suposições, acomodações e ferramentas de análise que
levam a eleger uma ou outra categoria do escrito e arranjar, realçar e interpretar
tais aspectos como arquétipos significativos. Portanto, não se deve passar rápido
à prática sem uma cuidadosa ponderação. As teorias nos lançam luz supina sobre
os assuntos, sobre a metodologia e as implicações da nossa prática tradutória.
Nesta mesma direção, quando Borges discute a questão da obscuridade,
do enigma e da transposição linguística num artigo acerca das traduções de Ho-
mero, “sem destacar nenhuma delas como ‘superior’ as demais”, acaba por definir
42 BENJAMIN, Walter. A Tarefa do Tradutor (Die Aufgabe des Übersetzers, Gesammelte Schriften,
1921, IV.1, pp.9-21). Lisboa: 1999, p.13. (on-line) < http://www.c-e-m.org/wp-content/uploads/
a-tarefa-do-tradutor.pdf >, acessado 13/09/2012.
43 FURLAN, Mauri. Linguagem e tradução em Walter Benjamin. – in: Anais do XI Encontro Nacional da
Anpoll. João Pessoa: 1996, pp.551-6.
44 BENJAMIN. op.cit., p.13. Ensaio que tanto furor acendeu nos teóricos da Teoria da Recepção.
a tradução feita a partir de uma língua clássica como: “Nenhum problema é tão
consubstancial com as letras [clássicas] e com seu modesto mistério com o que
propõe uma tradução.”45
Somente com visão equilibrada e a consciência ajustada do uso do méto-
do, enquanto verdadeiro e diligentemente justaposto ao texto antigo, teremos
condições: (i) de perceber porque alguns exegetas bíblicos têm tanto discordado
em suas conclusões; (ii) de proporcionar relato contemporâneo seguro e afiançá-
vel; (iii) e prover arguição apologética que resguarde nossos próprios métodos e
procedimentos.
Tem-se dado, na atualidade, primazia ao método histórico-crítico, cuja es-
colha implica na necessidade de tentar re-criar46 o legado da Antiguidade, quanto
foi possível, dentro do âmbito e da extensão propostas pela pesquisa: (i) as prá-
ticas e hábitos sociais; (ii) argumentações e raciocínios desenvolvidos no texto a
partir de normas e regras decodificadas através de textos paralelos; (iii) e, também,
aspectos intelectivos e morais da época. Isto como forma de provocar a recompo-
96 sição de algumas das representações do orbis, do cotidiano, do(s) cristianismo(s)
nascentes, da política e praxis do Império Romano no período subapostólico. Dis-
pensa-se sempre maior atenção aos entretons de cunho cronológico e termino-
lógico, colocando em interface informações de múltiplas fontes, tendo o cuidado
da crítica histórica apropriada, da crítica textual e literária, e finalmente, sempre
justificando as opções escolhidas. Nem se despreza a riquíssima iconografia autô-
mona, que importa fontes e media rastros de reflexão da Antiguidade.
Elege-se, insistimos, neste norte, o método histórico-crítico, usado em
averiguas diacrônicas47, em detrimento aos métodos fundamentalista48 e o es-
45 BORGES, Jorge Luis. As versões homéricas. – in: Discussão. São Paulo: Difel, 1985, p.71.
46 Para justificar este “re-criar” temos de EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura: Uma introdução. São
Paulo: Martins Fontes, 2006, pp.18-9 quando trata de obras literárias que atravessaram séculos,
menciona que: “Pode acontecer, é claro, que ainda conservemos muito das preocupações
inerentes à própria obra, mas pode ocorrer também que não estejamos valorizando exatamente
a ‘mesma’ obra, embora nos pareça. O ‘nosso’ Homero não é igual ao Homero da Idade Média,
nem o ‘nosso’ Shakespeare é igual ao dos contemporâneos desse autor. Diferentes períodos
históricos construíram um Homero e um Shakespeare ‘diferentes’, encontrando em seus textos
elementos a serem valorizados ou desvalorizados, embora não necessariamente os mesmos.
Todas as obras literárias, em outras palavras são ‘reescritas’, mesmo que inconscientemente, pelas
sociedades que as leem (sic); na verdade, não há releitura de uma obra que não seja também
uma ‘reescritura’. Nenhuma obra, e nenhuma avaliação atual dela, pode ser simplesmente
estendida a novos grupos de pessoas sem que, nesse processo, sofra modificações, talvez quase
imperceptíveis.”
47 Visada sob o prisma da gênese e gradativa evolução de dado escrito, conjecturando elucidar a
acepção mais original quanto possível, dentro dos diversos estágios transmissivos.
48 Sua hermenêutica sobrevém de um ponto de vista literal e histórico. Mostra-se contrário a
análises críticas por pressupor certos dogmas (e.g. canonicidade) e aponta constantemente em
direção a inerrância de textos, comunidades e autores.
truturalista49. Sendo ‘crítico’, deve emitir uma série ponderações acerca das fontes
do seu objeto de estudo. Neste particular, abandona-se a hermenêutica alegórica
medieval, na busca de um sentido literal, que também mira na relativização de
determinados postulados dogmáticos. É uma metodologia por essência racio-
nal50 e insistentemente inquiritiva. É também ‘histórica’ porque labuta com fon-
tes históricas que remontam séculos, ou até milênios, cujos estágios formativo-
-transmissivos restam contaminados pelo processo tradição oral e da evolução do
texto que nos legou, criando eras ou sítios distintos de compreensão do mesmo.
Analisando, portanto, a substancialidade das categorias históricas que motivaram
essas fontes em seu vario espectro evolutivo.
Outra decorrência metodológica preliminar: opta-se, normalmente, por de-
senvolver resumos breves sobre a prática tradutória, noções literárias, questões
históricas e teológicas, κτλ. em textos sagrados no contexto do(s) cristianismo(s)
nascentes51. Nesta temática existe uma ampla gama de conhecimentos e abor-
dagens psicológicas, religiosas, místicas, estéticas, pessoais e até coletivas. Não
há como abordá-las todas; alguns aspectos mais periféricos permanecerão into- 97
cados. Sob este ponto de vista metodológico, elege-se formular proposições su-
cintas, o que nos ajuda a envolver um número maior de questões que exigem a
nossa atenção, assim como evitar o impulso de dar respostas definitivas que se li-
mitam sempre a um determinado ponto de vista. Os documentos que usa-se para
esta (re)construção mental do passado são submetidos a pontos de vista díspares,
49 É a interpretação que desconsidera a transmissibilidade de textos, ou seja, sincrônica. O foco dá-
se nos atuais intérpretes, nas “estruturas de linguagem”: a manifesta e a profunda, na pragmática,
na semântica e na linguística-sintática.
50 Na acepção do Iluminismo e posterior.
51 A Bíblia provocou um círculo literário ao seu entorno, fato que é reconhecido hoje por ser o
único livro declarado Patrimônio da Humanidade, o mais vendido no mundo. Além de o mais
lido, certamente, também o mais citado e estudado em trabalhos científicos e ensaísticos.
Traduzido completamente ou em porções para mais de 2287 línguas e dialetos diferentes,
talvez por isso o identifiquemos apenas como “o Livro”, ou precisamente, o coletivo n. pl. gr. “os
Livros” – τά βίβλια, que pelo latim vulgar restou-nos chamado pelo sg. – a Bíblia. Judeus e cristãos
o têm como sagrado por crerem que tenha sido revelado por Deus e até ateus e incrédulos
leem estes escritos, alguns com mais de 3000 anos, com admiração e respeito. Muito da grande
literatura clássica mundial tem sua construção imagética nestes textos. Aqui no Brasil, é comum
mesmo em casas de descrentes, ver-se a Bíblia aberta num atril, em algum lugar de destaque
na sala principal da casa, numa forma de trato especial, como se outros livros carecessem
disso. Sem falar dos nomes bíblicos dados a maioria das crianças mundo a fora, das edições
cinza colocadas nas mesinhas de cabeceira dos hotéis, presídios, organizações militares, κτλ.
O texto bíblico contém todos os gêneros literários: poesia, narrações históricas, contos, hinos,
provérbios, profecias, orações, κτλ. com o melhor dos ingredientes da grande literatura mundial:
violência, erotismo, intriga, humor, denúncia, mistério, curiosidades, κτλ. Acrescido ainda, das
especulações, no suposto “código secreto matemático do texto hebraico”, que ao que alguns
têm tentado demonstrar com ajuda de poderosos computadores, apontaria para a previsão de
eventos futuros. Mentes brilhantes deram os melhores anos das suas vidas nesta mesma busca:
e.g. Isaac Newton, Miquèl de Nostradama, Leonardo da Vinci, κτλ.
no sentido de produzir uma multiplicidade de olhares – até paradoxais, às vezes.
As próprias fontes numinosas (textuais, iconográficas, literárias, κτλ.) são contradi-
tórias. Não poucas vezes, dão-nos várias representações, mas que foram mantidas
cativas aos pressupostos epistemológicos anunciados aqui. E com o apropriado
cruzamento de informes interdisciplinares provindos da história das religiões (es-
pecialmente, a história do cristianismo), da linguística, antropologia, psicologia,
literatura, arqueologia e até numismática (nos casos de menção a valores). Isto
posto, para que de alguma forma o (re)construir se dê o mais sustentável possível
– dentro da delimitação e limitação de certa pesquisa – do discurso ideológico in-
cômodo que alguns textos suscitaram na Antiguidade (e também na atualidade).
Por opção metodológica, costuma-se trabalhar com exaustão o modelo
canônico, seu sitz im leben, sua cultura vivencial, história, forma, estilo, sintaxe e
outras variáveis sutis que podem implicar numa tradução cristã. E os escritos que
foram denominados de “apócrifos” pelo seu conteúdo, forma e pela disputa da
paternidade apostólica, invariavelmente, devem ser remetidos ao cotejo com os
98 modelos canônicos. Qualquer escrito é depositário de alguma tradição literária
ou textual e a exempla, em maior ou menor grau de originalidade – um “apócrifo”
não é exceção. Além disso, pelo fato de ter sido legado da Antiguidade e nor-
malmente, fragmentado em diversas línguas, o desafio da distância temporal é
potencializado pelas demandas multilinguísticas, pluriculturais, κτλ. O que eleva
a complexidade para a visão contígua do texto na sua leitura e, do consequente
procedimento tradutório que caminha de contínuo na tentativa de reconstrução
do texto na Antiguidade. Um número substancial de notas de aparato crítico e
comentários evidencia este esforço tradutório.
Particularmente, um introito à tradução deverá apresentar uma (re)visão da
riqueza crítica que revolve a obra, como problemas e tendências relativas à gê-
nese da literatura cristã, definição de conceitos operatórios e critérios de análise,
transmissão e recepção do texto na ainda na Antiguidade, revisão datal, identi-
dade autoral, questões de gênero literário e estrutura narrativa; além de algumas
generalidades necessárias ao início deste estudo. Analisa, além dos estudos mais
recentes, apontamentos que, mesmo sendo seculares, constituem uma valiosa
fonte argumentativa à ensaística sobre determinado texto na atualidade.
Portanto, propõe-se um ensaio interpretativo da obra, a partir da tricoto-
mia das perspectivas de leitura tal como situadas por Eco52, quais sejam, intentio
auctoris, intentio operis e intentio lectoris: (i) auctoris, uma coletânea das referên-
cias biográficas provindas da Antiguidade. Embora esteja bastante sedimentado,
na crítica literária, o caráter imanente desta obra, um resgate dos testemunhos
52 ECO, Umberto. Os Limites da Interpretação. Lisboa: Difel, 1992, pp.29-31.
biográficos sobre personagens que abalizaram a recepção da obra será vital, até
mesmo para podermos propor algumas reavaliações; (ii) operis, tem lugar uma
releitura dessa riqueza biográfica tradicional, visando uma interpretação da obra
não apenas através de testemunhos históricos, mas principalmente, através do
conteúdo e forma expressa pela própria obra; (iii) derradeiramente, lectoris, um
cenário da recepção do personagem nas literaturas de expressão lusófona, que
constitui da análise das citações já existentes em português. Também está de-
dicado às questões tradutórias, entre elas: as decorrências advindas de um tex-
to legado via tradição oral, constitutivos literários resultantes de uma síntese de
línguas no ambiente minorasiático-palestiniano, a distância temporal de uma
língua clássica e as acepções de ‘Equivalência Dinâmica’, ‘movimento hermenêu-
tico’, ‘alteridade’, ‘estrangeirização’, ‘etnocentrismo’, ‘fidelidade’ e ‘transparência’. Por
fim, suscitando discussões entre a Teoria da Pragmática e a tradutologia de textos
apócrifo-cristãos.
Outras demandas metodológicas práticas da tradutologia cristã:
I) Identificar o tipo de linguagem e recorte de língua empregado nos ma- 99
nuscritos, particularmente, para a tentativa de ‘re-construção’ do grego
κοινή (língua original) cujos rastros estão presentes nas largas porções
legadas através de traduções53, notório pressuposto de qualquer tradu-
ção, se revela tarefa bastante complexa ao se tratar dos escritos apó-
crifos gnóstico-cristãos. Entre os tópicos estão: a noção abrangente da
estratificação textual e das linguagens, os critérios de análise como ‘his-
toricidade’ e ‘não-historicidade’, a problematização das traduções da An-
tiguidade com a língua original da obra, análise das formas subgêneros,
aparato crítico, textos e versões, bem como o possível local de composi-
ção. Deseja-se que tenha havido um preparo prévio e amadurecido nas
línguas e culturas grega, latina e hebraica (algum do aramaico), a detida
revisão do léxico especializado e constante aprimoramento da língua,
que devem ser supridos com o estudo individual mediante consulta a
especialistas.
II) A metodologia passa pela elaboração dos procedimentos técnicos da
tradução à luz das teorizações nas manifestações tradutórias de scholars.
Tal esforço certamente alivia a tensão entre tradução livre e literal e cuja
eleição da metodologia “passaria a ser informada pela teoria das funções
53 Os termos principais não são apenas escorregadios: eles estão muito claramente marcados por
uma dupla acusação, moral e pragmática, o que pode tornar muito forçoso o uso neutro, onde
há de se obedecer ao “movimento hermenêutico”, o ato de extração e transferência apropriadora
do significado, em seus estágios cf STEINER. 2005, op.cit., pp.317ss.
da linguagem, pelo tipo de texto e pela finalidade da tradução”.54 É um
programa de tradução, ou seja, uma interpretatio tanto na sua acepção
tradutória, quanto na hermenêutica, fruto da exegese do documento
original e da revisão crítica de uma certa tradição em língua portugue-
sa. A tradução é uma procura, search55. Sob esse prisma, toda tradução
requer um programa, mesmo que não explicitamente declarado, a fim
de garantir sua coerência interna e, atendendo ao requerimento das afi-
nidades, de desvelar a construção de sua pretensa paridade.
III) Deve haver um labor na tentativa de identificação das organizações como
fontes de dados e pessoas que desenvolvem trabalhos coordenados e
estruturados em torno destes textos. Outra vez, para a pesquisa em cur-
so, fez-se uso além dos materiais especializados, de um rol de obras de
referência, thesaurus, guias enciclopédicos da literatura patrística. Notes-
-se que para contextualização e tradução, às vezes faz necessário alcançar
a literatura cinzenta56, tendo em vista à formação de um aceitável banco
100 de dados. Gestão junto às bibliotecas para o acesso aos documentos é
o componente mais difícil, pois se tratam de livros e materiais bastante
antigos, muitos “semipublicados” e não facilmente encontrados. Sem a as-
sistência de pessoas especializadas será quase impossível.
Entre os motes desejáveis, estabelece-se realizar uma tradução e comentá-
rio crítico de acordo com o seguinte enquadramento: (i) tradução dupla coluna,
bilíngue (gr., cop. e/ou lat. → pt.); (ii) edições críticas, traduções que existem, pes-
quisas em curso, κτλ; (iii) ideário teológico; (iv) caráter da obra; (v) tipologia dos
personagens; (vi) o problema das fontes primárias (utilização da Bíblia, romance
grego, outras fontes e intertextualidades); (vii) questão da língua original (como
sabemos se é tradução ou original?); (viii) o escopo deste texto; (ix) lugar possível
da composição; (x) valor histórico; (xi) legenda posterior; e (xii) a ligação com ou-
tros textos, κτλ. E ao final, uma singela indaga: Que personagem surge destes tex-
tos? É o personagem canônico? Dito de outra forma, buscar delinear a figura do
protagonista dessa obra, traçando paralelos, contrastes, pontos convergentes e
divergentes com as várias imagens segundo as outras fontes documentais cristãs.
RESUMO: Deus se fez carne humana. Esta verdade da fé é o mistério mais importante entre nós,
mas também é o mais difícil de ser acreditado e compreendido, pelos cristãos que tanta vezes são
mais monofisitas, platônicos ou gnósticos. Mas, Jesus é a “carne de Deus” e é a “carne dos irmãos”.
Perpassando os textos sinóticos, e em comparação com gnósticos, o autor se fixa em dois textos 103
joaninos e estabelece a exegese devida, para ressaltar a história da biografia de Deus e afirmar
que nós também nascemos de Deus, mesmo que tenhamos nascido da carne e da história.Por fim
chama a atenção para uma necessária ligação na leitura de Jo 1, 13 com Jo 1,14, para podermos
afirmar que Deus se fez nossa carne e a divinizou, e, por fim Jesus não quer nem pode separar de
nós.
PALAVRAS CHAVE: carne de Jesus, carne dos irmãos, evangelho, nascer (nascimento), sangue/
sangues. .
ABSTRACT: God became human flesh. This truth of faith is the most important mystery among
us; but it is also the most difficult to be understood and believed by Christians, who many
times are almost monophysites, platonic or Gnostics. Jesus, however, is the “flesh of God” and
is the “flesh of the brothers”. By going through the evangelical texts, and in comparison with
other gnostics, the author settles on two texts from the Gospel of John to establish the proper
exegesis, aiming to highlight the history of biography of God and to affirm that we too are born
of God, even if we have born of blood and history. Finally, the author draws attention to the link
that is imposed on reading Jn 1, 13 with Jn 1,14, so that we may be able to affirm that God made
himself our flesh and made it divine, and thus Jesus doesn’t need nor can be separated from us.
KEY WORDS: flesh of Jesus, flesh of the brothers, Gospel, born (birth), blood/bloods.
* Texto enviado pelo autor e arquivado no blog Igreja Instituções, Jesus, Nuevo Testamento,
María, 02.01.15
** Doutor em filosofia, teologia e Sagrada Escritura. Foi catedrático na Universidade do Episcopado Espanhol e
professor da Pontifícia Universidade de Salamanca. Autor de artigos científicos e inúmeros livros, dos quais
o último: Historia de Jesús, Navarra: Editorial Verbo Divino, 2013.
Esta é a palavra mais significativa da história de ocidente, e para nós,
cristãos, a mais importante da humanidade: Deus se “encarnou¨, se fez vida
na “carne/história” dos homens, e assim o acolhemos com fé, e celebramos seu
mistério em Jesus de Nazaré, que nos dias de Natal nasce na Liturgia..
Uma fé “difícil”
Muitos homens e mulheres não entendem, não podem aceitar esta
palavra, pois não creem que haja um Deus que possa e queira encarnar-se
(fazer-se humano); não creem quiçá nem tão pouco no homem como “capaz de
ser Deus”. Por isso, um gênio da filosofia como o judeu L. Wittgenstein (tão amigo
dos cristãos, porém não cristão) dizia que o maior que existe é um tipo de filosofia
como a de Platão, ou um tipo de religião como a de Buda ou Maomé, onde Deus
está sempre separado, ou não existe, ou não se encarna.
Muitos “crentes” da Igreja, tão pouco, entendem e também não acei-
104 tam de verdade esta palavra da “encarnação” (pois são no fundo mais pla-
tónicos que cristãos). Dizem que Deus se encarnou, porém depois entendem
essa encarnação de uma forma “espiritualista” (como raio de luz por um cristal!),
sem aceitar de verdade a “carne” de Maria (a mãe de Jesus), nem a carne de Je-
sus. K. Rahner dizia que no fundo somos “monofisitas” (não cremos no homem);
eu acrescentaria que somos “gnósticos” (não cremos na carne de Deus, nem por
conseguinte na carne humana)
O EVANGELHO CRISTÃO
Segundo essa passagem (Jo 1, 1-18), que se lê e canta de forma solene na 105
missa deste domingo, os cristãos afirmamos que Jesus é a encarnação de Deus , é
“todo Deus” sendo “todo homem”, quer dizer, carne da história. Mais que isso não
se pode dizer, nem menos tão pouco se se quer manter em sua plenitude a he-
rança do evangelho. Nesse sentido afirmará o concilio de Nicea que Jesus é Deus
(de natureza divina) e o de Calcedonia que é perfeito Deus e perfeito homem (de
natureza divina e de natureza humana)… Essas formulações conciliares refletem
um tipo de pensamento quiçá abstrato, que pode e deve ser re-traduzido. Porém
em sua base segue estando este evangelho que nos diz que Jesus é “a carne hu-
mana” de Deus.
(a) o mesmo Jesus histórico, nascido, morto e ressuscitado é a Carne
de Deus. Por isso, os cristãos buscamos e vemos a Deus na “carne”, quer dizer, na
história (a mensagem, o amor, o caminho) de Jesus, a quem chamamos o filho de
Deus.
(b) Se Jesus é “carne” de Deus, nele e com ele são carne de Deus todos
os seus “irmãos” e de um modo especial os pobres (como sabe e diz Mt 25, 31-
46)... E nesse sentido, conforme a linguagem mais filosófica dos Concilios (Nicea
e Calcedonia) deve-se dizer que toda a “natureza” humana é carne de Deus (reve-
lação de seu Ser).
(c) Celebrar a encarnação de Deus em Jesus significa celebrar o valor
divino do humano e comprometer-se no serviço qo homem, de todos os ho-
mens, e em especial dos excluídos desta sociedade imperial de consumo, que são
irmãos de Jesus, carne de sua carne, sangue de seu sangue, para empregar uma
linguagem bíblica e eucarística.
Cristãos e gnósticos
Significativamente, os sinóticos, a partir de Mc, contaram a história do
Jesus Messias, porém não como encarnação de um ser divino preexistente, mas
como caminho de entrega e morte do Cristo humano, que realiza sua ação salva-
dora entregando a vida em favor do reino. Eles contêm, sem dúvida, elementos
que podem ser situados na linha da preexistencia (em especial desde a visão de
Jesus como Sabedoria), porém os re-interpretam desde a perspectiva do mistério
pascal: de morte e ressurreição. Nesse aspecto, os mesmos relatos da concepção
virginal e do nascimento de Jesus pelo Espírito (Mt 1-2; Lc 1-2) intentam expressar
o sentido divino da origem de Jesus (brota do amor do Pai, por meio do Espírito),
porém sem apelar à preexistencia. eles supõem que Jesus é filho de Deus em
sua vida concreta de ser humano na história de sua entrega pascal, ratificada por
Deus na ressurreição.
Ao contrário disso, a visão gnóstica defende a preexistencia das almas
humanas que caíram do plano superior do divino e se misturaram com a matéria
ruim, como chispas de luz perdidas no mundo; para libertá-las desceu também
do plano superior divino um salvador preexistente. Só porque vem de cima e nos
ensina a superar o mundo pode libertar-nos. Esse mito gnóstico, desenvolvido
amplamente no II séc. d. C., parece destruir o valor da história e a independencia
dos seres humanos. Tempo e eternidade tendem a se opor como entre os gregos:
a preexistencia se torna supra-existencia, de maneira que Jesus perde sua base
histórica e se converte em sinal eterno de uma humanidade já sem tempo.
Leitura no plural…
A maior parte dos manuscritos tem o texto no plural e assim o coloca o
texto litúrgico. Nessa linha, todos os que creem em Jesus nascem de Deus, não
provêm do desejo da carne e do sangue (da vontade do varão…). Pois bem, essa
leitura plural, que é predominante, pode ser entendida desde várias perspectivas:
111
Conclusões:
a) Creio que o texto de Jo 1, 13 é um texto radical e inclusive «peri-
goso», pois pode levar-nos a uma visão gnóstica de Cristo (que teria aparecido
em forma humana sem nascer de verdade) e a uma visão “puramente carnal” dos
cristãos, condenados a uma vida de carne/sangue/desejo… sem chegar nunca a
Deus, sem ser “encarnação” de Deus.
b) Mais ainda, este texto deu lugar a muitos problemas na Igreja …
Parte da condenação da sexualidade (sangue de mulher, desejo de varão, desejo
mútuo) está vinculada a uma visão errada desta passagem, separada de Jo 1, 14
onde se diz que a carne é Deus (palavra de Deus). Só ali onde reunimos Jo 1, 12-
13 com Jo 1, 14 podemos afirmar algo mais profundo: Deus se fez carne, divini-
zou a carne de nossa história, pois Jesus não pode nem quer separar-se de nós.
112
Artigos
O LEGADO DA ESPIRITUALIDADE
DE TEILHARD DE CHARDIN *
THE SPIRITUAL LEGACY OF TEILHARD DE CHARDIN
ABSTRACT: Teilhard de Chardin died April 10, 60 years ago. An expressive international group
of intellectuals, by creating the Teilhard Project, proposes to recover his legacy, who was and
who continues to remain as an innovating scientist, unorthodox philosophy, Jesuit mystic
and a stunning poet; finally a man who has been discussed, whose contributions have become
part of the cultural heritage of mankind. This essay summarizes some traces of his spirituality.
For Teilhard, the scientific work constituted in itself already a form of adoration. Science
and religion form two faces of the same movement of knowledge od reality founded in an
evolutionary process. In his Cosmo vision resumes his activity: “universalize Christ” and “Christify
the universe”. Hence, his ascetic Christian spirituality becomes a process of divinization of
activities and human passivity directed towards the cosmic and universal Christ, in the world –
half divine – in order to celebrate the famous “Mass about the world”.
KEY WORDS: Spirituality, legacy, worldview, cosmic Christ, activity and passivity.
Fontes inacianas
Teilhard separou claramente seu trabalho científico de sua reflexão religio-
sa, e desta forma em seus mais de 200 artículos científicos não se menciona para
nada o problema religioso. Como cientista foi um verdadeiro profissional, reco-
nhecido por seus trabalhos de geologia e paleontología. Sem dúvida, para ele o
trabalho científico constituia já em si mesmo uma forma de adoração e afirma
que ciencia e religão formam duas faces de um mesmo movimento do conheci-
mento da realidade. Encontrava no trabalho científico uma forma de alimento
115
espiritual. E ao mesmo tempo, em seu trabalho científico, Teilhard realiza uma
contínua produção de seu pensamento filosófico e religioso, detrás do qual se
encontra uma verdadeira experiencia mística.
As notas de seus Exercícios Espirituais, nos permitem constatar como estas
ideas, são também as constantes anotações que formam o núcleo de sua oração
e meditação. Nestas notas descobrimos que sua visão de Cristo e do mundo não
é só um pensamento teórico para apresentá-lo aos outros, mas sim o motor e cen-
tro de toda sua vida espiritual. As anotações dos seus Exercícios se centram nas
mesmas ideas. O Cristo-Omega aparece já em suas notas de 1922 e se repetem
em todos os anos sucessivos.
Em 1940 aparece o termo “omegalizar” para expresar a unão do universo
com o Cristo total, e no ano seguinte apresenta as duas perspectivas, que a partir
dessa data se convertem no resumo de sua atividade: “universalizar a Cristo” e
“Cristificar o universo”.
Teilhard concebe toda a sua vida como fidelidade ao Cristo-Omega.
Finalmente em 1950 afirma que em sua vida não deve entrar mais nada
que não seja “Cristificável” e mostra sua preocupação em “acabar bem,
quer dizer, em plena confissão e em plena fé com o Cosmos e com Cristo-
Omega. Terminar bem, quer dizer, ter tido tempo e ocasão de formular minha
mensagem essencial, a essencia de minha mensagem”. No último dia de seus
últimos exercicios, em 1954, resume toda sua visão com uma só palavra “Pan-
Cristianismo”.
Matéria e Espírito
Teilhard rechaça todo dualismo materia-espírito e apresenta um conceito
unificado de matéria que inclui em si mesma a dimensão espiritual. Esta dimen-
são está relacionada com a “complexidade”. A maior complexidade maior dimen-
são espiritual.
El materialismo busca entender ao homem só desde a matéria. Teilhard
segue o caminho contrario busca entender a matéria desde o fato da presença
da consciencia em o ser material que é o homem. Se o homem é um ser material
autoconsciente, esta qualidade da consciencia tem que estar de alguma maneira
também presente em toda a matéria.
Isto o leva a propor a ideia de que na matéria há um “interior” além de um
“exterior”. O interior da matéria está ligado à complexidade, de forma que quan-
do esta aumenta, cresce também seu grau de interioridade. A complexidade, por
sua vez, está relacionada com a consciencia e a dimensão espiritual.
O incremento em complexidade em a evolução se identifica com uma
maior dimensão espiritual. A este duplo carácter da matéria (interior e exterior)
correspondem também dois tipos de energia: uma energia “tangencial”, que cor-
responde à energia física com a que as coisas interagem umas com outras nu
mesmo nível e outra energia “radial” o “espiritual”, que é responsável pela con-
vergencia da evolução da matéria em linha de uma maior complexidade e uma
maior consciencia, quer dizer, na direção do espírito.
Para Teilhard estes dois tipos de energia são em realidade os dois compo-
nentes de uma só energia fundamental que inclui as duas. O caminho da evolu-
ção é o do múltiplo para a unidade. a evolução progride para o espírito. Esta
dimensão pode ser acompanhada em seu famoso “Hino à Materia”.
O Cristo Cósmico
As ciencias tem demonstrado que o universo está sujeito a uma evolução
na linha do incremento de complexidade desde as partículas elementares em 119
direção à vida e à consciencia no homem.
Segundo Teilhard esta evolução deve convergir para um ponto Omega,
que deve ser transcendente e pessoal. Por outro lado, a fé nos diz que esse ponto
Omega é Cristo por sua encarnação e ressurreição. Cristo é assim o centro cós-
mico da criação.
O Deus transcendente que se tem formulado tradicionalmente como “o
Deus no Alto” é também “o Deus para a frente”, quer dizer, o centro para o qual
tende toda a evolução.
Se o universo é convergente e Cristo ocupa a função de Centro-Omega a
cosmogenese se converte em uma Cristogenese. Toda a evolução é, portanto, um
processo pelo qual se vai construindo o corpo de Cristo. No se pode pensar no
universo sem seu centro em Cristo, nem em Cristo sem formar o centro do univer-
so. Sua ação cósmica é a que faz convergir tudo para si mesmo.
O Cristo universal
Outra formulação de Teilhard é a do “Cristo-Universal ”. Em seu ensaio Note
sur le Christ universel (1920) o define da seguinte forma:
“Eu entendo por Cristo-Universal, o Cristo centro orgânico do univer-
so inteiro-Centro orgânico, quer dizer, do que dependem fisicamente
todos o desenvolvimento do universo inteiro… não só da terra e a
humanidade, mas de Sirio e Andromeda e todas as realidades das
quais dependemos fisicamente; … não só os esforços morais e reli-
giosos, sino todo crescimento do corpo e o espírito. Este Cristo-Uni-
versal é o que nos apresentam os evangelhos, em especial S. Paulo e
S. João. Aquele do qual têm vivido os grandes místicos”.
122
Conclusão: Teilhard místico
A espiritualidade de Teilhard não era só o resultado de uma reflexão
teológica, mas sobre todo o fruto de uma experiencia mística, em que a presença
e ação de Cristo envolvem o universo evolutivo. Para ele, nem Cristo pode ser
concebido separado do universo, nem o universo separado de Cristo. Teilhard vi-
veu com paixão esta presença e esta ação de Cristo no mundo e se esforçou por
comunica-las desde seus trabalhos científicos, de todas as formas possíveis, ape-
sar de todos os obstáculos e incompreensões que encontrou.
Bibliografía:
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Martelet, G. (2005), Teilhard de Chardin, prophète d’un Christ toujours plus grande.
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Moonei, C. F. (1968). Teilhard de Chardin and the mistery of Christ. Gardem City,
N.I. : Doubledai-Image,
Rideau, E. (1965). La pensée du Père Teilhard de Chardin. Paris: Éditions du Seuil.
Teilhard de Chardin, P. Oeuvres de; Vol. 1 – 13, (1955-1976). Paris: Éditions du
Seuil.
Por sugestão do Editor, também aqui estão anexados quatro comen- 123
tários ao texto, feitos por autores de relevo. (Nota do editor brasileiro).
Saudações,
Carlos Palacios
4. Publicado por Pedro Rubal (18/01/2015)
Permítam-me sugerir algo que vejo pouco abordado nos comentários so-
bre a intuição da dinamica evolucionista de Teilhard, ao que me convidam, mais
ou menos explicitamente, alguns dos comentaristas anteriores. Uma inteligen-
cia tão aguda e um genio tão perspicaz como a deste jesuíta, quero pensar que,
a esta altura de nosso tempo, teria feito algumas precisões terminológicas, para
manter cientificamemte sustentáveis suas teses. E creio, com todo o respeito que
me inspiram os comentaristas, sobretudo desde minha modesta ótica, que ele
não se sentiria comodo com as justificações semanticas que costumam dar de
algum de seus conceitos fundamentais. Talvez não se lê isto fazendo muita justiça
ao ilustre pensador deixando sua dinamica evolutiva um tanto, teoricamente, es-
tancada em alguns pontos chaves da mesma.
Suponho também que o “livre arbítrio” na evolucão espiritual, que não sei se o
que hoje ele chamaria de “cultura de impulso espiritualizante”, requer de uma pre-
126 cisão semantica, porque no caso peculiar do homem, por exemplo, talvez possa ter
alguma função contextualmente seletiva: a investigação me parece que é o ponto
de possíveis contatos de evolucão cultural, e, se não me equivoco, é pre-seletiva.
Não me cabe a menor dúvida de que Teilhard não entendia a matéria sem a
espiritualidade de Cristo; porém tão pouco a Este sem a matéria. Como aplicaria
hoje estes conceitos? Encontraria recursos na realidade quantica? Não esqueça-
mos que ele era cientista e teólogo, quer dizer, um teólogo cientista, e vejam,
por onde hoje os cientistas - no mais profundo da realidade que intuem como
consequencia de suas pesquisas - me parece que também se sentem, inconfes-
savelmente, algo teólogos. Por quê? - Minha ignorancia me leva a pensar que é
porque as duas perspectivas se exigem: a realidade universal é teologicamente
material e materialmente teológica. Talvez aqui possamos encontrar o fundamen-
to da dimensão teologal do homem, em cuja realidade pessoal brilham aquelas
polaridades com uma evidencia que se nos impõe: nosso esforço intelectual e seu
mecanismo “mediático” creio que possam ser bons exemplos.
ABSTRACT: God’s love is a theme present throughout the whole of Scripture. For the love of
God, refers either to the love that God has for human beings, the love of humans for God and
the love of humans among themselves, according to the commandment of mutual love. The
God´s love has been revealed gradually throughout the sacred text. However, it is in Jesus
Christ, the love incarnate, that God expresses totally his love. Jesus teaches to his own, in words
and actions – with totality of his life - to love as he loved them. According to the Johanine
writings the mutual love is the brand of Christians, the way to recognize the disciples of Jesus.
The living of this love is still a result of an experience of God.
KEY WORDS: Love of God, Scripture, ‘ āhab, agapao, commandment, mutual love.
2. O amor de Deus no AT
O verbo hebraico ’āhab possui diferentes conotações, de maneira seme-
lhante ao termo amor na língua portuguesa. Seus significados3, por exemplo,
compreendem os campos: sexual e conjugal, familiar, da amizade, religioso, so-
cial e político. A terminologia4 ’āhab está relacionada não somente às relações
interpessoais e à relação com Deus, mas pode também estar relacionado a coisas,
1 cf. PALMER, F. H. Amor, Amado. – in: O Novo Dicionário da Bíblia. [trad. João Bentes]. São Paulo:
Vida Nova, 1988. vol.I. J. D. Douglas (ed.). p.71. —— Vale lembrar também que o mandamento
do amar a Deus está vinculado ao mandamento do amor ao próximo (Lc 10,27) é como que uma
resposta do homem ao Deus que o amou por primeiro.
2 MEDEIROS, Daniel Luiz. Referências cruzadas acerca do amor de Deus na Sagrada Escritura.
[monografia de graduação em Teologia]. Curitiba: Faculdade Claretiano, 2014.
3 Amar, querer, desejar, enamorar-se, afeiçoar-se, enternecer-se, sentir amor, carinho,
afeto, afeição, inclinação, atração, paixão; ser leal, fiel (SCHÖKEL, Alonso Luis. Dicionário
Bíblico Hebraico-Português. [trad. Ivo Storniolo; José Bortolini]. São Paulo: Paulus, 2012,
p.29).
4 Leva-se em consideração na pesquisa também os termos de mesma raiz: ’ =( בֵהֺאōhēb – amigo,
companheiro, partidário; amante, querido; aliado), ’ =( בַהַאahab – amor, amores, amoricos),
’ =( בַהֺאōhab – amor; carícias; amado) e ’ =( הַבֲהַאahăbah – amor, carinho, inclinação; amizade,
companheirismo).
qualidades, virtudes, vícios, valores ou ações5. Esse termo é o principal conceito
para significar o amor6.
Dentro do bloco da =( הָרֹוּתthôrāh – Torá), constata-se 42 vezes o verbo’āhab.
Destas, merece destaque as ocorrências do termo no livro de Deuteronômio, visto
que é principalmente neste texto que ’āhab é usado para se referir ao amor de
Deus. Observa-se que nesse livro seis vezes7 o verbo ’āhab tem =( הוהיYahweh)
como sujeito e o homem como destinatário. Ora, o número seis, em oposição ao
número sete, é considerado um número imperfeito8. Este raciocínio concorda
com a ideia de imperfeição da antiga Lei9. Deste modo, abarcando o conjunto de
toda a Sagrada Escritura, pode-se afirmar que a expressão de totalidade do amor
de Deus pelo seu povo encontrará a plenitude com a pessoa de Jesus Cristo10.
As ocorrências em que Yahweh é o destinatário do amor e o homem o su-
jeito, ocorridas a modo de exortações, são expressas doze vezes11. O número doze
possui um significado especial na Sagrada Escritura e aponta para a totalidade12.
5 idem. ibidem, pp.29-30.
6 idem. ibidem, p.29. 129
7 Dt 4,37; 7,8.13; 10,15.18; 23,6.
8 Na Sagrada Escritura, a principal situação em que o número seis aparece é o da criação: em seis
dias Deus cria todas as coisas. No entanto, é no sétimo dia que ele conclui sua obra. O número
seis está presente também no contexto da agricultura: “durante seis anos semearás a tua terra
e recolherás os seus frutos. No sétimo ano, porém, a deixarás descansar e não a cultivarás (...)”
(Ex 23,10s). É notável, ainda, a ocasião da recordação da fuga do Egito e celebração da Páscoa:
“Durante seis dias comerás ázimos e no sétimo dia haverá uma solene reunião em honra de
Iahweh teu Deus” (Dt 16,8). O livro de Apocalipse atribui ao número seis e seus compostos o
significado de imperfeição humana. O número sete, ao contrário, será sempre expressão de
totalidade e terá uma solenidade particular. Significativa importância quanto a este número
encontra-se também nos Evangelhos: sete cestos recolhidos (Mc 8,5-8), Jesus expulsa sete
demônios de Maria Madalena (Lc 8,2) (LURKER, Manfred. Dicionário de figuras e símbolos bíblicos.
[trad. João Rezende Costa]. 2ª ed. São Paulo: Paulus, 2006, pp.221-2 e 227-8).
9 FRAINE, J. de. Lei. – in: Dicionário Enciclopédico da Bíblia. [trad. Frederico Stein]. 2ª ed. Petrópolis:
Vozes, 1977. A. Van Den Born (red.). p.880.
10 WARNACH, Salzburg Viktor. Amor – in: Dicionário de Teologia Bíblica. [trad. Helmuth A. Simon].
São Paulo: Loyola, 1973. Johannes B. Bauer (org.). p.53. —— Tendo em vista o contexto onde se
constrói o livro do Deuteronômio, é insensato postular que o autor sagrado tivesse a intenção
de querer expressar esta ideia. Não obstante, considerando que Deus prepara a revelação
evangélica já no AT e que ele próprio, através do Espírito Santo, é o redator de toda a Sagrada
Escritura, é possível enxergar na estatística apresentada em Deuteronômio um aceno à plenitude
da Revelação e da expressão total do amor de Deus, que vem a acontecer em Jesus Cristo (cf.
CONSTITUIÇÃO DOGMÁTICA Dei Verbum, nn.3.4.9.11. – in: Compêndio do Vaticano II: constituições,
decretos, declarações. 29ª ed. Petrópolis: Vozes, 2000).
11 Dt 5,10; 6,5; 7,9; 10,12; 11,1; 11,13; 11,22; 13,4; 19,9; 30,6; 30,16, 30,20.
12 O número doze tem um significado particular porque faz referência ao número total do povo
de Deus: doze filhos de Jacó que dão origem às doze tribos de Israel. De importante relevância
é também o número dos profetas menores (doze). Em continuidade ao AT, Jesus escolhe doze
apóstolos. O livro de Apocalipse dá grande importância a este número: coroa de doze estrelas
(Ap 12,1), vinte e quatro ancião – doze mais doze (Ap 4,4), doze mil assinalados de cada uma das
doze tribos (Ap 7,4-10), doze alicerces da cidade (Ap 21,12) (LURKER. op.cit., pp.82-3).
A partir desta observação pode-se considerar que, embora o projeto divino de
salvação ainda não se tenha realizado de maneira plena, todos são chamados in-
sistentemente por Deus a amá-lo e a observar seus mandamentos, de maneira
íntegra.
Ainda a respeito do bloco da Torá, é interessante notar que a primeira e a úl-
tima ocorrência (cf. Gn 22,2; Dt 30,19c-20a) do termo dentro do bloco emolduram
a Lei com o tema do amor de Deus: os dois textos, se relacionados, conjugam a fé
em Yahweh, a obediência e o amor devido a ele, assim como a escolha pela vida.
A fé em Yahweh e o mandamento do amor são os elementos que garantem a vida
e a verdadeira felicidade aos descendentes de Abraão.
Com relação ao bloco dos ְ =( םיׅאיׅבנnebî’îm – Profetas) o termo ’āhab apa-
recerá pela primeira vez numa exortação de Josué (Js 22,5), na qual ele pede ao
povo para que se lembre de pôr em prática o mandamento do amor a Deus. O
contexto onde isso acontece é a realização da promessa da terra. Apesar disso, o
conjunto dos Profetas terminará com a infidelidade a este mandamento do amor,
130 que, aliás, é a grande temática destes livros. É justamente neste contexto de infi-
delidade que o verbo ’āhab situa-se pela última vez no bloco (Ml 2,11). Aqui se vê
que a lei do amor a Yahweh não é cumprida.
Conquanto a Lei seja perfeita no sentido de exortar a amar a Yahweh (12
exortações em Deuteronômio) o povo não foi capaz de colocar em prática tal Lei
(35 vezes os termos são usados para expressar a rebeldia do povo em relação a
Deus13, dentro do bloco dos Profetas), pois ainda é incompleta (seis afirmações do
amor de Yahweh pelos homens em Deuteronômio), faltando a sétima declaração
de amor de Yahweh, ou seja, a encarnação do Filho14. A sétima exortação, ou seja,
a plenitude do amor de Deus, se dará em Jesus, com a doação total de sua vida.
Apesar do povo não corresponder ao amor de Yahweh, ele não cessa de reafirmar
seu amor, continuamente.
No que se refere ao bloco dos =( םיׅבּותְּכkhetûbîm – Escritos) o termo ’āhab
e seus variantes ocorrem 114 vezes. Destas, 42 vezes o termo está direta ou indi-
retamente relacionado a Yahweh, sendo que 33 destas ocorrências estão no livro
dos Salmos. Neste livro, o apelo de Yahweh Deus diante da transgressão do povo,
para que este povo volte-se a ele e o ame, conforme a Lei exorta insistentemente,
abre a temática do amor de Deus no bloco dos Escritos (Sl 4,3). Mas, o que predo-
mina nos Salmos é o uso da forma positiva de ’āhab, no sentido de se expressar
o amor por Yahweh, por sua glória, pelos seus mandamentos e por sua salvação.
3. O amor de Deus no NT
Em continuidade à LXX, o NT também irá dar preferência ao termo agapáo,
em oposição à literatura grega profana18. Se na LXX havia ainda duas ocorrências
de eráo, agora nem mesmo este termo encontra lugar no NT; somente a termino-
131
15 Existem, na língua grega, basicamente três conceitos que, de maneira geral, se
traduz por amor, conforme a língua portuguesa. De maneira bem resumida, pode-se
compreender estes conceitos da seguinte forma: (i) ἐράω (= eráo) – sentido platônico:
para Platão, o amor seria um processo de ascensão, do qual se começa a amar as coisas
sensíveis, buscando, porém, sempre o Belo em si. Dessa forma, o amor fica restrito
a uma busca. Sua essência será a falta e o desejo do Belo. Esta categoria de amor
coincide com o amor sexual. (ii) philéo – sentido aristotélico: Aristóteles apresenta o
conceito de phílos, traduzido ao português como amizade. Esse amor seria uma forma
de estabelecer relações e associações para garantir o bom ordenamento da sociedade.
Em outras palavras, seria a virtude capaz de garantir a justiça. Pode-se também afirmar
que a amizade seria um meio para um fim, podendo ser compreendida como um
simples instrumento necessário para todas as pessoas. (iii) agapáo – sentido objetivo:
este conceito era raramente utilizado na literatura profana da época; referia-se ao
amor objetivo, no sentido de valorização. Aproxima-se da ideia de compromisso.
Distancia-se completamente da ideia de desejo e paixão em possuir algo, excluindo
tudo o que seja amor próprio. Embora a origem do conceito não seja cristã, o termo
convencionou-se posteriormente como cristão devido ao sentido que se atribuiu à
palavra: amor de abnegação, amor de benevolência, amor incondicional, doação total.
Para Pieper, este conceito significa “um amor desinteressado e desprendido quase em
seu sentido absoluto, o amor que se dá, em lugar de impor-se, e que antes de ganhar a
vida, quer arriscar a perdê-la” (PIEPER, Josef. Las virtudes Fundamentales. 9ª ed. Madrid:
Rialp, 2007, p.481. trad.n.).
16 A Septuaginta não é apenas a tradução dos textos hebraicos para o grego. Nesta obra, estruturada
em duas partes (I. leis e livros históricos; II. livros poéticos e proféticos) estão contidos também
os chamados livros deuterocanônicos e alguns livros apócrifos (I Esdras, III e IV Macabeus, Odes,
Salmos de Salomão e o Salmo 151).
17 O verbo eráo é utilizado somente duas vezes: Est 2,17; Pr 7,18.
18 BENTO XVI (papa). Deus caritas est. São Paulo: Paulus; Loyola, 2006, n.3.
logia φίλος (= phílos) e ἀγάπη (= agápe)19 é usada. Enquanto que o conceito ’āhab
referia-se a um amplo campo de significados no AT, o termo agapáo20 é usada
para se referir ao amor de Deus, salvo algumas exceções.
Os sinóticos utilizam este termo pela primeira vez no episódio do batismo
de Jesus, quando se houve uma voz vinda dos céus: “Este é o meu Filho amado
[ἀγαπητός (= agapetós)], em quem me comprazo” (Mt 3,17b e paralelos). Coloca-
do este versículo em paralelo ao acontecimento da transfiguração, segundo Mar-
cos (segunda vez em que agapáo ocorre neste livro) “este é o meu Filho amado;
ouvi-o” (Mc 9,7), é plausível dizer que Jesus, prefigurado na antiga Lei recebida no
Monte Sinai por Moisés, é agora apresentado pelo Pai como a nova Torá, à qual se
deve ouvir e acreditar21.
O verbo ἀκούω (= akoyo – ouvir) acena também para o ouve Israel de Deute-
ronômio22 (Dt 6,4). Se o amar a Yahweh e crê-lo como único Senhor é o conteúdo
da mensagem a ser ouvida, Jesus é a exortação encarnada, para que se ame o
Deus único. Portanto, ele é quem ensina perfeitamente a amar a Deus de maneira
132 plena.
Isso já se evidencia na perícope das tentações no deserto, que ocorrem logo
após o Batismo, de acordo com os sinóticos. Observa-se que, diante das tentações,
Jesus responde sempre citando Deuteronômio (capítulos 6-8), contexto onde está
presente o ouve Israel. Isso talvez ocorra porque as três tentações descritas em
Mateus e Lucas simbolizam as várias formas de pecado contra o grande manda-
mento de amar a Deus com todo o coração, com toda a alma e com toda a força23.
19 NEUMANN, Klaus. Amor. – in: Dicionário de termos teológicos fundamentais do Antigo e do Novo
Testamento. São Paulo: Loyola, 2011. Angelika Berlejung; Christian Frevel (org.). p.104.
20 Considera-se o verbo agapáo, o substantivo ágape e o adjetivo agapetós.
21 RATZINGER, Joseph. Jesus de Nazaré: do Batismo no Jordão à Transfiguração. [trad. José Jacinto
Ferreira de Farias]. São Paulo: Planeta do Brasil, 2007. p.269.
22 “Escuta Israel corresponde à fórmula bastante empregada pelo mestre de sabedoria
para introduzir seu ensino: Escuta, meu filho (cf. Pr 1,8; 4,1.10; 5,7)” (LÓPEZ, Félix García.
Deuteronômio – comentário. – in: [trad. José Joaquim Sobral]. São Paulo: Ave-Maria,
2002. Santiago Guijarro Oporto; Miguel Salvador García (comissão editorial). p.272).
—— O verbo akoyo pode se referir também às três predições da paixão de Jesus
(HARRINGTON, Daniel J. O Evangelho Segundo Marcos – com... – in: Novo Comentário
Bíblico São Jerônimo: Novo Testamento e artigos sistemáticos. [trad. Celso Eronides
Fernandes] São Paulo: Paulus, 2011. R. E. Brown; J. A. Fitzmyer; R. E. Murphy (eds.). p.102),
pois o contexto narrativo de Marcos insere a transfiguração dentro das predições. Por
conseguinte, pode-se considerar que a maneira plena de amar ao único Deus é até
às últimas consequências, neste caso, até a morte. Agapáo é, então, doação total. Isto
concorda com a afirmação do mandamento de amar a Deus com toda a alma.
23 cf. VIVIANO, Benedict T. O evangelho Segundo Mateus – com... – in: Novo Comentário Bíblico São
Jerônimo... op.cit., p.146.
Ao vencer as tentações durante os quarenta dias – toda sua vida, pois o número
quarenta abrange todo o drama histórico que Jesus sintetiza, acolhendo em si
mesmo24 – Jesus cumpre perfeitamente o primeiro grande mandamento de amar
a Deus25.
Assim sendo, Jesus exorta também a todos para que cumpram este man-
damento. De maneira diferente ao AT, o mandamento do amor já não é somente
algo a ser ouvido e colocado em prática, mas é também seguimento de Jesus. O
próprio Jesus afirma que para ser discípulo dele é necessário tomar a sua cruz e
segui-lo. Deste modo Jesus mostrou o que significa amar a Deus: “submeter-se
inteiramente a Ele, estar a seu serviço (...) suportar com alegria perseguições, des-
prezo, mesmo a morte pela causa de Deus e do seu Enviado26.
Concernente ao mandamento do amor ao próximo, toma-se como ponto
de partida a segunda ocorrência do verbo agapáo no NT. Este verbo está situa-
do no acontecimento do Sermão da Montanha. O contexto da montanha sugere
um grande peso ao conteúdo apresentado por Jesus, pois, conforme se verificou
acima, Jesus é apresentado pelo evangelista Mateus como a nova Lei27. Fazendo 133
menção a Levítico 19,18, Jesus exorta a amar não somente o próximo, mas inclusi-
ve os inimigos (Mt 5,43-46).
Considerando as narrativas de Mateus e Lucas, nota-se que o mandamento
do amor ao próximo e o mandamento de amar aos inimigos são equivalentes.
Observa-se que Jesus faz menção ao mandamento do amor ao próximo e insere
também o conceito de inimigo, ausente no mandamento citado. Ao invés de falar
a respeito do amor ao próximo ele exorta a amar os inimigos e a orar pelos perse-
guidores (Mt 5,44).
Com relação ao Evangelho de João, nota-se que logo na primeira ocorrência
do verbo agapáo se depara com um dos mais significativos testemunhos do amor
de Deus pela humanidade: “pois Deus amou tanto o mundo, que entregou o seu
Filho único, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo
3,16). Pode-se considerar que esta afirmação joanina completa as seis afirmações
do amor de Deus pelos homens presente em Deuteronômio.
Merece destaque ainda outra afirmação explícita do amor de Deus pelos
homens: “antes da festa da Páscoa, sabendo Jesus que chegara a sua hora de
passar deste mundo para o Pai, tendo amado os seus que estavam no mundo,
32 Para uma melhor compreensão desta chave de leitura uide MEDEIROS. op.cit. pp.50-3.
33 LE FORTE. As epístolas. – in: COTHENET, E.; DUSSAUT L.; LE FORTE, P.; PRIGENT, P. Os escritos de São
João e a Epístola aos Hebreus. [trad. M. Cecília de M. Duprat]. São Paulo: Paulinas, 1988, p.172,
p.184.
34 JOÃO CRISÓSTOMO (santo). Comentário às Cartas de São Paulo/1. [trad. Mosteiro de Maria Mãe
de Cristo]. São Paulo: Paulus, 2010. (Coleção patrística, vol.27/1). pp.47-8.
O fato é que o termo amados pode indicar, sem dúvida, uma afirmação da
parte do escritor sagrado que os destinatários são amados por Deus, conforme
em Romanos. Este seria o sentido primeiro que agapetós quer aqui exprimir35. Não
obstante, é possível compreender também este adjetivo no sentido de que o au-
tor ama fortemente seus destinatários. Mas este último sentido fica colocado em
segundo plano.
O mandamento do amor recíproco, em forma de exortação, está presente
em quase toda a I Carta de João, pois o contexto dos separatistas exigia que o
autor desse uma atenção especial a este tema. De fato, o grupo dos dissidentes,
mesmo que afirmasse que amavam a Deus, “não considerava importante o amor
ao irmão”36.
A respeito do mandamento do amor ao próximo, constatou-se anterior-
mente que existe certa evolução quanto a este mandamento37. Em Levítico, por
exemplo, o mandamento do amor ao próximo, ainda imperfeito, compreende
este próximo como o israelita ou o identificava com o estrangeiro que convivia
136 junto na mesma terra (Lv 19,18.34). Conforme se viu acima, Jesus amplia a catego-
ria próximo até aos inimigos. O Evangelho de João vai mais longe ao não se referir
à categoria próximo, apontando, invés, para o próprio Cristo como referência e
exemplo a ser imitado no amor (cf. Jo 13,34).
Na mesma linha do Evangelho de João, a exortação presente na I Carta de
João fala a respeito do amor de uns para com os outros, de maneira recíproca. A
respeito disto, Spicq afirma: “sem dúvida, Jesus prescreveu (o dever de) amar o
próximo, mas não é uma obrigação arbitrária, uma fidelidade entre outras, nem
mesmo um ‘espírito’; trata-se de uma exigência essencial, visto que ‘Deus é amor’
”38.
A carta joanina afirma, ainda, que o amor recíproco deve acontecer porque
o amor provém do próprio Deus. Este amor é presente em toda a história da sal-
vação. O amor provém de Deus porque ele toma a iniciativa no ato da criação, vai
à busca do homem pecador e se revela gradativamente. Além disso, Deus nunca
35 THÜSING, Wilhelm. As Epístolas de São João. [trad. Ludovico Gomes de Castro]. Petrópolis: Vozes,
1983, pp.157-8.
36 TUÑÍ; ALEGRE. op.cit., p.160.
37 Esta evolução deve ser compreendida no sentido de que a interpretação corrente da categoria
próximo no tempo de Jesus era errônea, e não que a Torá ensinava a odiar os inimigos (cf. Mt
5,43) e, consequentemente, desprezar aqueles que não faziam parte do mesmo povo. Tanto
o AT como o NT reconhecem no próximo “uma compreensão que supera fronteiras, mas que
esta se realiza, na prática, no contexto social mais estreito (clã, vizinhança, povo, comunidade)”
(KAMPLING, Rainer. Próximo/Amor ao próximo. – in: Dicionário de termos teológicos fundamentais
do Antigo e do Novo Testamento. São Paulo: Loyola, 2011. Berlejung, A; Frevel, C. (org.). p.380).
38 SPICQ. op.cit., p.103.
desiste de chamar o homem a si, mesmo com o pecado sempre presente, confor-
me se observa fortemente no contexto dos Profetas. A expressão total deste amor
que vem de Deus deu-se com a encarnação do Verbo eterno: o próprio amor exor-
ta, a partir da condição da vida humana, a amar perfeitamente a Deus. Entretanto,
mais que exortar, o próprio Deus expressa seu amor de maneira plena, até as últi-
mas consequências. Deste modo, “o amor mútuo deve ser manifestação do amor
que Deus tem pelos homens”39.
O texto em questão expressa também que aquele que ama é gerado em
Deus. Esta afirmação alude ao diálogo de Jesus com Nicodemos, quando Je-
sus afirma que é necessário nascer de novo para ver o Reino de Deus. O adjetivo
̓άνωθεν (= ánothen), traduzido por de novo, pode significar também do alto, de
cima40. Portanto, a tradução (versículo 7) poderia ser também nascer do alto. Este
significado é possível e inclusive sugerido ao considerar a expressão paralela pre-
sente no prólogo de João41:
55 JOÃO CRISÓSTOMO. Comentário às Cartas de São Paulo/1. [trad. Mosteiro de Maria Mãe de
Cristo]. São Paulo: Paulus, 2010. (Coleção patrística, vol.27/1). p.428.
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