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Studium Theologicum de Curitiba

STUDIUM
REVISTA TEOLÓGICA
2

Studium: revista teológica/ Studium Theologicum de Curitiba - Ano 9


n. 15 - 2015.

Semestral

ISSN 1981-3155

1. Teologia – Periódicos. I. Studium Theologicum de Curitiba.


CDU: 2
SUMÁRIO

Editorial.............................................................................................................................. 5

BLOCO TEMÁTICO: MORAL


Terrorismo e tecnologias de vigilância: algumas reflexões a partir de
alguns ensinamentos do Magistério da Igreja..................................................... 9
Rogério Gomes

Perspectiva historica das questões de gênero.................................................... 25


José Eduardo de Oliveira e Silva

A ideologia de gênero e suas consequências para a sociedade


contemporânea......................................................................................................................... 39
Gilberto Aurélio Bordini

O prolongamento artificial da vida e a determinação do exato momento


da morte nos pronunciamentos de Pio XII e João Paulo II............................. 55
Ricardo Hoepers

Educação sexual, ética de crescimento e moral missionária. Elementos


para uma ética mais misericordiosa....................................................................... 73
Ronaldo Zacarias

BLOCO DE TEMAS DIVERSOS: OUTRAS QUESTÕES TEOLÓGICAS


Perspectivas cruzadas da tradutologia cristã canônica e extra-canônica:
Um olhar sobre Transmissão, Recepção e Sitz im Leben................................. 85
Elias Jr

Et incarnatus est. “Carne” de Deus........................................................................... 103


Xabier Pikasa

O Legado da espiritualidade de Teilhard de Chardin....................................... 113


Agustín Udías Vallina

O amor provém de Deus. Breve abordagem sobre o amor de Deus na


Sagrada escritura........................................................................................................... 127
Daniel Luiz Medeiros
STUDIUM
Revista Teológica

Ano 9 – 2015
Nº 15

Revista semestral de Teologia do Studium Theologicum de Curitiba


ISNN 1981-3155

Editor-Chefe
Hélcion Ribeiro – Studium Theologicum, Curitiba, PR.

Conselho Editorial
Alceu Luis Orso - Studium Theologicum, Curitiba, Pr.
Jaime Sánchez Bosch – Studium Theologicum, Curitiba, Pr.
Marcio Luiz Fernandes – Studium Theologicum, Curitiba, Pr.
Teodoro Hanicz – Faculdade S. Basílio Magno, Curitiba, Pr.
4
Valdinei de Jesus Ribeiro – StudiumTheologicum, Curitiba, Pr.

Conselho Consultivo
Angelo Carlesso - Studium Theologicum – Curitiba, PR.
Ricardo Hoepers - Studium Theologicum – Curitiba, PR.
Sávio Scopinho – CLARETIANO, Rio Claro, SP
Vitor P. Calixto dos Santos – CLARETIANO, Batatais, SP

Abstract: Joachim Andrade

ADMINISTRAÇÃO E REDAÇÃO
Contato e assinatura
Studium Revista Teológica
Av. Getúlio Vargas, 1193
80.250-180 Curitiba, PR.
Tel. (41)3224-5467 – Fax: (41) 3233-8979
e-mail: studium.sec@studium.com.br

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Nota: os autores das contribuições desta publicação assumem a


responsabilidade das idéias e teses defendidas nos seus textos.
Editorial
Vivemos sempre mais as mudanças desta época de mudanças. A ética e a
cultura judaico-cristãs – que marcaram vários séculos, inclusive até recentemen-
te – têm sido sempre mais confrontadas por costumes e discursos novos, que,
muitas vezes, não se apresentam – e nem têm ainda consistência para isso – su-
ficientes. A quebra desta hegemonia judaico-cristã tem raízes na modernidade,
com suas revoluções. Princípios desenvolvidos por Darwin, Marx e Freud, entre
outros, atingiram profundamente antigos princípios de sustentação do modelo
social vigente no ocidente. A explosão técnica e científica da modernidade e, so-
bretudo, da posmodernidade, aprofundou a mudança cultural. Provocou trans-
formações nos sistemas e as organizações sociais desde o estado até a família,
incluindo relações pessoais. A cultura ilustrada emancipou-se da tutela religiosa e 5
fragmentou-se filosoficamente. Povos inteiros propugnaram libertações político-
-sociais. Muitos grupos sociais melhoraram suas condições de vida, apesar de os
pobres terem se tornado milhões. Enfim, o mundo ocidental, mais depressa que
o oriental, está modificado.
Muitos pensadores descrevem esses tempos atuais como fragmentados
numa insustentável leveza do ser, com um pensamento fraco, etc. Por um lado,
há estilhaços culturais por toda parte; por outro, não se pode negar o desenvolvi-
mento técnico-científico surpreendente, nem a superação de doenças milenares,
do analfabetismo, do controle da natureza física e psíquica. Os meios de comu-
nicação a cada dia superam mais o tempo e as distancias. As ciências biológicas,
físicas e cosmológicas, entre as outras, dão saltos a ponto de parecerem incontro-
láveis.
Tudo vai aparecendo em uma grande ebulição. – Para onde vamos? – O que
se pretende? – Em tudo isso aparece mais o mal que o bem ou o bem que o mal?
- Quem se beneficia com tudo isso? Enfim, perguntas necessárias para respostas
insatisfatórias.
- É preciso ter presente que o ser humano não é unidirecional, por sua liber-
dade e por sua racionalidade. Ele é ambíguo. É polifacético.
Deste modo, num contexto de mudanças – inclusive epocais -, os cristãos,
por serem cidadãos de dois mundos, estão inseridos nesta “turbulência dos tem-
pos” e ao mesmo tempo mantêm a certeza – o que não é mera passividade – de
que existe algo maior. A caminharem no caminho de Jesus, Verdade e Vida, têm a
certeza de que o ser humano é feito também para além das contingencias desta
história. É certo que se para os homens e as mulheres o caminho se faz caminhan-
do, também o caminho de Jesus – que trilham os cristãos - é feito no caminhar
deles. A diferença, porém, está em que os cristãos, mantendo um olho na história,
têm um olhar perseverante no céu. É daí que lhes advém a segurança capaz de
dar sentido e iluminar sua fé - mesmo que isto seja uma luta diária. Caminha-se
nas incertezas da história, rumo à certeza do novo céu e da nova terra de Deus.
A certeza da fé dá a segurança ao caminhar entre as incertezas da história.
Por isso, entre os fatos e atos cotidianos dos homens e das mulheres, tão agita-
dos em seus afazeres (cf. Lc. 10, 41), os crentes olham para o alto e vão discer-
nindo princípios e comportamentos, pessoais e sociais, decorrentes da Boa Nova
anunciada por Jesus, capazes de dar consistência à própria fé. Os cristãos, ade-
quando-se ao presente com os olhos no futuro, sentem que a barca que conduz
a humanidade, nestas atuais águas tão agitadas, sabem que seu Senhor está com
eles e os demais (cf. Mt. 8, 23 ss e paralelos), mais que para eliminar os percalços,
assegurar-lhes o caminho com sua presença e apoio.
6 Isso vem a proposito das grandes mudanças socioculturais, das mudanças
nos comportamentos morais que afetam a todos. São extremamente adequados
aos cristãos, neste momento mais que nunca, a oração, o discernimento da von-
tade de Deus e o compromisso com a humanidade, local e global. O discernimen-
to, em particular, não pode resultar em condenações prévias e fáceis; antes, visa
às aberturas construtivas para se perceber e ajudar homens e mulheres a terem
a certeza, que para além da violência, do terrorismo, da injustiça, da exploração
pessoal, da ideologia etc., é possível buscar relações de solidariedade e miseri-
córdia, capazes de enfrentar as periferias sociais e existenciais, a solidão dos in-
dividualismos, as escravizações econômicas, além das industrias de anulação das
pessoas., sobretudo dos pobres.
Se nos tempos presentes, todo moralismo deve ser considerado pernóstico
e letal, por seu veneno hipócrita, a moral cristã pode ser uma ajuda e um remédio
para todos os homens e mulheres da boa vontade, independentemente desta
ou daquela pertença religiosa. O valor desta moral, que provém do alto, de Deus
mesmo, é válido porque é humanista.
O presente número de nossa Revista STUDIUM quer abordar alguns temas
da teologia moral como um serviço à reflexão e o debate de questões de atua-
lidade. Neste sentido, são nos propostos temas como terrorismo, ideologização
do gênero, momento da morte clínica e educação sexual – desde uma ética de
crescimento. Outros temas completam este número, como problemas da tradu-
tologia, a “carne de Deus”, o legado da espiritualidade de Teilhard de Chardin e o
amor de Deus.
O texto de Rogério Gomes, com o título: Terrorismo e tecnologias de vi-
gilância: algumas reflexões a partir de alguns ensinamentos do Magistério da
Igreja, torna-se oportuno, por sua atualidade na realidade internacional, mas so-
bretudo por fornecer os critérios morais do Magistério da Igreja a todos quantos
se envolvem com o tema/fato e devem emitir juízo sobre as situações concretas.
O texto aborda duas questões no Magistério: o terrorismo e a tecnologia de vili-
gância para daí inferir as posturas morais da Igreja.
Candente é a questão da ideologia do gênero, tema sempre mais frequente
na cultura contemporânea e que tem nas escolas – no processo educativo – um
espaço cada vez maior, com ou sem aquiescência dos pais. Dois moralistas de-
batem, oportuna e complementarmente, a questão. José Eduardo de Oliveira
e Silva, com texto: Perspectiva historica das questões de gênero, apresenta a
história da questão a partir do vies marxista – que é a orientação de muitos peda-
gogos, educadores e administradores escolares entre nós. Ele situa a questão da
ideologização do problema nos que querem suprimir as superestruturas sociais
(p.ex. a família) – fontes de opressão sobretudo para mulheres e crianças – em
vista de uma sociedade igualitária onde homem e mulher, livres da determinação
biológica, podem se fazer homem ou mulher, como lhes apras.
7
No outro texto, A ideologia de gênero e suas consequências para a socie-
dade contemporânea, Gilberto Aurélio Bordini  refaz, inicialmente o processo
da conceitualização e ideologização da questão. Passa pelo processo, especial-
mente dos diversos feminismos, da desconstrução e da negação das convenções
e da sociedade patriarcal, que se afirma como uma verdadeira luta de classes.
Depois o autor se detem – desde a teologia moral – numa reflexão sobre os equí-
vocos apresentados por tal ideologia e suas saídas propostas pela filosofia e pela
teologia para uma melhor compreensão e emissão de um juízo crítico.
Ricardo Hoepers se apresenta neste fascículo com o tema: O prolongamen-
to artificial da vida e a determinação do exato momento da morte nos pronun-
ciamentos de Pio XII e João Paulo II O autor historia a significativa contribuição
dos dois mais longevos papas do século XX sobre a questão. Se inicialmente os
papas tinham em vista situações religiosas pontuais, na verdade eles deram con-
tribuições expressivas ao campo da medicina, pois estavam convictos que o ser
humano, especialmente em seus momentos derradeiros de vida, não pode ser
considerado apenas como corpo moribundo, mas sobretudo como filho/a de
Deus, portador de uma dignidade que ninguém, na história, nas ciências e na
humanidade, pode conferir-lhe ou sequestrar.
Ronaldo Zacarias, em Educação sexual, ética de crescimento e moral
missionária. Elementos para uma ética mais misericordiosa, propõe uma pe-
dagogia educativa que tenha sempre presente, não apenas o ideal moral, mas as
reais possibilidades de pessoas concretas para quem o mínimo é muitas vezes o
máximo possível. O autor propõe – numa ética do crescimento – uma perspectiva
missionária, capaz de, com misericórdia, aceitar como válido o “onde mínimo” em
que se encontram muitas pessoas limitadas em seus comportamentos sexuais.
Só a partir dai seria possível o convite ao ideal, mesmo que se precise esperar o
momento oportuno de fazer o convite.
Em Perspectivas cruzadas da tradutologia cristã canônica e extra-ca-
nônica: Um olhar sobre Transmissão, Recepção e Sitz im Leben, o professor Elias
Paraizo Jr. aborda a importancia da questão das traduções, especialmente dos
textos bíblicos. Indica a necessidade dos diversos critérios técnicos que levem em
conta a intenção dos textos, de seus autores e seus contextos, a fim de superar
os diversos desafios que envolvem a tradutologia contemporânea, quiça a mais
privilegiada de todos os tempos pelos imensos recursos atuais,
A contribuição de Xabier Pikasa, Et incarnatus est. “Carne” de Deus, evi-
dencia algo fundamental da fé, mas que com frequência não é bem compreendi-
do mesmos pelos próprios cristãos – chegando por vezes a um evidente gnosti-
cismo. Deus assumiu a “carne do homem” para torna-la “carne de Deus”, que por
8 sua vez, em Jesus, é elevada à estatura de Deus, da qual, o próprio Jesus não quer
e não pode se desfazer.
O jesuíta Teilhard de Chardin, falecido há 60 anos (dia 10 de abril), perma-
nece importante inovador na cultura atual, que permeia as relações entre a fé e
a ciência. Agustín Udías Vallina elaborando uma síntese de O Legado da espiri-
tualidade de Teilhard de Chardin, perpassa as questões mais fundamentais que
deram sentido às atividades e à própria vida de Chardin, que propunha “cristificar
o universo” e “universalizar Cristo”.
O bacharel em teologia, do nosso Studium Theologicum, Daniel Luiz Me-
deiros, em O amor provém de Deus. Breve abordagem sobre o amor de Deus
na Sagrada Escritura, realça a revelação e a presença do amor de Deus nos tex-
tos da Sagrada Escritura, como um amor fontal e ao mesmo tempo com sua impli-
cação de reciprocidade : Deus ama sua criatura, o ser humano – que responde ao
amor de Deus – e, por isso, também deve amar seu próximo. Esta divina experien-
cia humana é manifesta em plenitude no Filho de Deus, nosso irmão encarnado:
Jesus de Nazaré.
Desejamos que este número de STUDIUM possa, cumprindo sua função,
satisfazer nossos leitores e leitoras e ajudá-los na construção do mundo querido
por Deus para seus filhos e filhas.
Artigos
TERRORISMO E TECNOLOGIAS DE
VIGILÂNCIA: algumas reflexões a
partir de alguns ensinamentos do
Magistério da Igreja
TERRORISM AND SURVEILLANCE TECHNOLOGIES: some reflections from
some teachings of the Magisterium of the Church

Prof. Dr. Pe. Rogério Gomes*


9
RESUMO: O terrorismo tem propósitos imorais de matar homens e mulheres, disseminando medo
e insegurança, semeando ódio, morte, violência, desejo de vingança e represália. Esta é sua tática
bélica e seus métodos, em geral, são de guerra. Não infrequentemente se utilizado do nome de
(seu) Deus, numa fanatismo fundamentalista e num nihilismo trágico. Frente a isto, os estados
e as sociedades, normalmente, têm invocado soluções técnicas e, passam também a empregar
sofisticadas tecnologias de vigilância. O texto analisa, inicialmente, o pensamento (moral) da
Igreja sobre o terrorismo, para depois deter-se sobre a validade do desenvolvimento, seja o do
tecnológico geral ou o recurso da vigilância (inclusive tecnológica). O magistério da Igreja ressalta
sempre a validade do crescimento humano, e, ao mesmo tempo, alerta para as possibilidades do
desenvolvimento tecnológico se tornar uma arma contra o próprio homem. Frente ao terrorismo
e ao uso das tecnologias de vigilância, o Magistério propõe, além das soluções técnicas, o
desenvolvimento social, a prática da justiça e a leitura do fenômeno sob aspectos políticos,
ideológicos e religiosos. O combate ao terrorismo deve acontecer no plano político e pedagógico,
cultural e ideológico, propõe a Igreja.

PALAVRAS CHAVE: terrorismo, vigilância, desenvolvimento, tecnologia, conflitos, ser humano.

SUMMARY: Terrorism has immoral purposes of kill men and women, spreading fear and
insecurity, sowing hatred, death, violence, desire for revenge and reprisal. This is its ballistic
tactics and its methods in general, are of war. Not infrequently uses the name of (its) God, in a
fundamentalist fanaticism and a tragic nihilism. Against this, the states and societies, usually, have
relied on technical solutions and also to employ sophisticated surveillance technologies. The text
examines, initially, the thought of the church about terrorism, then ponders on the development,
be it technological in general or on the surveillance capability (including technology). The
Magisterium of the Church always highlights the validity of human growth, and, at the same time,
alerts to the possibilities of technological development becoming a gun against the man himself.

* Professor convidado da Accademia Alfonsiana, Roma, Itália. Lattes: http://lattes.cnpq.


br/3342824164751325. webpage pessoal: http://teologiaeciencia.webnode.com.br/.
Atualmente é Superior Provincial dos Missionários Redentoristas da Província de São Paulo.
Against the terrorism and the use of surveillance technologies, the Magisterium proposes, besides
the technical solutions from Governments, the social development, the practice of justice and
the reading of the phenomenon under political, ideological and religious. The Church proposes
that the fight against terrorism must take place in the political and ideological, cultural and
pedagogical grounds.

KEY WORDS: terrorism, surveillance, development, technology, conflicts, human being.

Introdução

A sociedade atual, pela sua complexidade e necessidade, constitui-se uma


sociedade de vigilância. Esta, por si, não é uma novidade no mundo dos huma-
nos, surge nos primórdios da humanidade, todavia, enquanto interesse socioló-
10 gico é bem recente. A percepção desta realidade explode, de modo especial, a
partir do 11 de setembro, com a queda das Torres Gêmeas, que coloca a socie-
dade americana, caracterizada pela excelência tecnológica e pela sua vigilância,
em xeque/choque, provocando um recrudescimento da vigilância em todos os
níveis internos do país que ressoa automaticamente em todos os países do globo.
Com o pretexto de combater o terrorismo, a sociedade americana passou a ser
espionada e a vida de todos estrangeiros e cidadãos passam pelo crivo do Patriot
Act que autoriza o governo americano a bisbilhotar a vida de qualquer pessoa
ou instituição estrangeiros e inclusive dos cidadãos americanos. Tal política era
mantida sobre certo sigilo até o surgimento de um personagem profundamente
conhecedor dos sistemas de vigilância, Edward Snowden, um funcionário tercei-
rizado da National Security Agency (NSA) que evidencia as tramas dos processos
de vigilância e coloca em questão a privacidade das pessoas e outras realidades
obscuras desta instituição,1 revelando ao mundo tudo aquilo que Estados Uni-
dos e seus aliados praticam para obterem dados de outros países para diferentes
escopos. Assim, a vigilância antes e pós Snowden ganha contornos muito mais
agressivos e complexos.

Diante desta realidade de avanços na área tecnológica, fazendo com que


os processos de vigilância se tornem muito mais complexos e invasivos e dos par-
cos estudos abordando esta temática sob um enfoque teológico-moral, decidi
ocupar-me deste tema, com a intenção de oferecer uma contribuição neste vasto
campo com tantos desafios que afetam a privacidade e a autonomia do indiví-

1 Cf. GREENWALD, Glenn. Sem lugar para se esconder: Edward Snowden, a NSA e a espionagem do
governo americano. Rio de janeiro: Sextante, 2014.
duo.2 Considerando a problemática do terrorismo e o seu combate a partir da
visão de alguns documentos do Magistério da Igreja, bem como o seu pensamen-
to social sobre as tecnologias, extrairemos alguns elementos para aplicarmos no
uso das tecnologias de segurança para o combate a esse mal que afeta a vida de
pessoas inocentes.

1. O pensamento da Igreja sobre o combate ao terrorismo

O Magistério da Igreja tem se pronunciado em relação ao terrorismo e


como instituição que procura ler os sinais dos tempos, posicionou-se sobre esse
mal. A Gaudium et spes nota que os danos morais e materiais da guerra ainda con-
tinuam a devastar e se recorre ao terrorismo como método de guerra muitas ve-
zes.3 Diante disso, a Pontifícia Comissão de Justiça e Paz apresenta sua proposta
de institucionalização de medidas policiais contra o terrorismo. A posição é de
condenação de tais atos como imorais, todavia, a reflexão eclesial sobre essa reali-
dade vai além das soluções técnicas invocadas pelos governos, procura relacionar
a problemática da disseminação do terror ao desenvolvimento social, à prática da 11
justiça e à leitura do fenômeno sob aspectos políticos, ideológicos e religiosos.4

Frente essa situação assombrosa, João Paulo II, em Sollicitudo rei socialis,
define o terrorismo como praga do mundo moderno, cujo propósito é matar ho-
mens e mulheres, disseminando terror e insegurança. Tais atos são considerados
injustificáveis, mesmo se a intenção seja a de construir uma sociedade melhor. É
ainda pior, quando o escopo é apenas matar5 e envolve a comunidade internacio-
nal, semeando ódio, morte, violência, desejo de vingança e represália.6

Após o atentado de 11 de setembro, em 2001, o Sínodo dos Bispos reuni-


dos em Roma condena o terrorismo absolutamente.7 João Paulo II denuncia que,
após a Guerra Fria, o terrorismo se transformou em uma rede sofisticada de con-
veniências políticas, técnicas e econômicas que se espalha pelo mundo inteiro,

2 Cf. GOMES, Rogério. Vigilância e segurança na sociedade tecnológica: fundamentos éticos.


Aparecida: Santuário, 2014.
3 Cf. CONCÍLIO VATICANO II. Gaudium et spes, 1965. Constituição pastoral sobre a Igreja no mundo
de hoje. In. Compêndio do Vaticano II. Constituições, Decretos, Declarações. Introdução e índice
analítico: Boaventura Kloppenburg. Coordenação geral de Frederico Vier. 29. ed. Petrópolis:
Vozes, 2000, n. 79, p. 239-240.
4 Cf. PONTIFICIA COMMISSIONE GIUSTIZIA E PACE. La Santa Sede e il disarmo generale, 1976. L’
Osservatorio Romano. Città del Vaticano, 3 giugno 1976, p. 6-7.
5 Cf. IOANNES PAULUS II. Sollicitudo rei socialis, n. 33. (Litterae encyclicae, 1987). Acta Apostolicae
Sedis, Città del Vaticano, v. 80, n. 24, p. 541-543.
6 Cf. Catechismus Catholicae Ecclesiae. Città del Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 1997, n.
2297, p. 586.
7 Cf. SINODO DEI VESCOVI (X Assemblea generale ordinaria). Riuniti a Roma. (Messaggio, 2001). In:
L’Osservatore Romano. Città del Vaticano, 27 ott. 2001, p. 5.
cujas organizações possuem recursos financeiros e estratégias de longa escala,
afetam inocentes, geram morte e violência, fundando-se sobre o desprezo pela
vida humana. É um crime contra a humanidade e se há o direito de defender-
se contra ele, identificando culpados que devem ser penalizados. Para isso, deve
haver colaboração internacional no plano político, diplomático e econômico para
resolver eventuais situações de exclusão que podem ser a origem do terrorismo.
As injustiças não devem ser usadas para justificarem o terrorismo que não age em
nome dos pobres, mas é filho do fundamentalismo fanático que impõe aos outros
a própria visão de verdade, instrumentalizando Deus, que é contrário à violên-
cia. Afirma o Pontífice que se proclamar terrorista em nome de Deus é profanar
a religião, e tal violência é contrária à fé em Deus e, em particular, a fé em Cristo.8
De acordo com a Congregação da Doutrina da Fé, a paz exige a rejeição radical e
absoluta da violência e do terrorismo9 e este não pode ser justificado por nenhum
líder religioso, pois viola a santidade da vida, contradiz a fé em Deus que criou o
ser humano, que deste cuida e o ama.10 O nome de Deus não deve ser usado para
suscitar violência, terrorismo, ódio e exclusão.11

12 O direito internacional deve buscar oferecer soluções para os conflitos


resultantes do mundo contemporâneo, cujos atores não são os Estados, mas
grupos de organização criminal. O terrorismo é uma praga que produz massacres,
obstaculiza o diálogo e as negociações, agravando problemas no Oriente Médio,
e a luta para combatê-lo não pode ser somente repressiva ou punitiva, mas se
devem analisar também motivações subjacentes a esses atos. O combate deve
ocorrer também sobre o plano político e pedagógico, remover as causas de
injustiças que estão na origem dessas ações desesperadas e sanguinárias e insistir
sobre o valor da vida humana. Desse modo, o direito internacional é chamado a
elaborar instrumentos jurídicos dotados de mecanismos eficientes de prevenção,
de monitoramento e de repressão feitos a partir do estado de direito.12 Também
os católicos e ortodoxos são comprometidos a sanar com amor tal praga,
infundir esperança de paz e contribuir para sanar conflitos dolorosos.13 Embora
se constatem suas ameaças e destruição, provocando a morte, o combate requer
8 Cf. GIOVANNI PAOLO II. The World Day of Peace, n. 4-7. (Messaggio, 2001). Acta Apostolicae Sedis,
Città del Vaticano, v. 94, n. 2, p. 134-135, 2002.
9 Cf. CONGREGAZIONE PER LA DOTTRINA DELLA FEDE. L’impegno del cristiano, n. 4. (Nota dottrina-
le, 2002). Acta Apostolicae Sedis, Città del Vaticano, v. 96, n. 6 , p. 365, 2004.
10 Cf. COMMISSIONE MISTA PER IL DIALOGO CATTOLICO EBRAICO. After a preliminary. (Comunicato
congiunto, 2003). L’Osservatore Romano. Città del Vaticano, 3-4 mar. 2003, p. 7.
11 Cf. PONTIFICIO CONSIGLIO PER LA PROMOZIONE DELL’UNITÀ DEI CRISTIANI - COMMISSIONE PER
I RAPPORTI RELIGIOSI CON L’EBRAISMO - e DELEGAZIONE DEL GRAN RABBINATO DI ISRAELE.
After two meetings dell’incontro congiunto. (Comunicatio finale), 2003. L’Osservatore Romano.
Città del Vaticano, 9-10 dic. 2003, p. 6.
12 Cf. GIOVANNI PAOLO II. Je m’adresse à vous, n. 8. (Messaggio, 2003). Acta Apostolicae Sedis, Città
del Vaticano, v. 96, n. 2, p. 118-119, 2004.
13 Cf. GIOVANNI PAOLO II e BARTHOLOMAIOS I. Nello spirito di fede, n. 10. (Dichiarazione comune,
2004). Acta Apostolicae Sedis, Città del Vaticano, v. 96, n. 11, p. 739, 2004.
firmeza e decisão, operando naquilo que pode favorecê-lo: a miséria, o desespero,
o vazio do coração; as pessoas não se devem fechar no medo, no egoísmo, mas
globalizar a solidariedade e a paz.14

Conforme o Pontifício Conselho de Justiça e Paz,

O terrorismo é intrinsecamente malvado e não pode ser justificado


por nenhuma razão, qualquer origem sejam suas raízes, as suas fi-
nalidades, os seus motivos, este permanecerá sempre injustificado,
enquanto modalidade – talvez sofisticada – de comportamento sel-
vagem e de ausência de racionalidade, alimentada por uma atitude
cordada, mentirosa e desumana.15

O fenômeno da violência e do terrorismo pode levar o mundo inteiro a


um futuro de medo e de angústia.16 O terrorismo usa de todos os meios e até de
Deus para se opor à convivência pacífica e serena. Qualquer que seja sua extirpe,
tal escolha é perversa e cruel, espezinha o direito à vida e os fundamentos da con-
vivência civil.17 Cristãos e muçulmanos são convidados a extirparem do coração 13
sentimentos de rancor e se oporem a qualquer forma de violência.18 Ao negar
a paz por meio de ameaças e atos criminosos, o terrorismo deixa o mundo em
estado de ansiedade e insegurança. Ele é inspirando por um niilismo trágico e
fundamentalista, modos errados de compreender a verdade. Ao analisá-lo, além
de buscar elementos de caráter político e social, devem-se compreender suas
matrizes culturais religiosas e ideológicas.19

A sua ameaça em nível planetário, com suas ideologias político-religiosas,


coloca em pânico populações para obter resultados que lhe sejam favoráveis.20 De-
ve-se evitar o uso da religião para inculcar ódio a crentes de outras religiões ou por
14 Cf. GIOVANNI PAOLO II. Mi è particolarmente gradito in occasione del XVIII Incontro internazionale
“Uomini e religioni” promosso dalla Comunità Sant’Egidio sul tema “Religioni e culture: il
coraggio di un nuovo umanesimo”. (Messaggio, 2004). L’Osservatore Romano. Città del Vaticano,
9 sett. 2004, p. 6.
15 PONTIFICIO CONSIGLIO DELLA GIUSTIZIA E DELLA PACE. Terrorismo. In: PONTIFICIO CONSIGLIO
DELLA GIUSTIZIA E DELLA PACE. Dizionario di dottrina sociale della Chiesa. Roma: Libreria Ateneo
Salesiano, 2005, p. 755.
16 Cf. GIOVANNI PAOLO II. All’inizio del nuovo anno, n. 4. (Messaggio, 2004). Acta Apostolicae Sedis,
Città del Vaticano, v. 97, n. 2, p. 177-178, 2005.
17 Cf. BENEDETTO XVI. Ad legatos Islamicos apud archiepiscopalem Coloniae sedem. (Discorso, 2005).
Acta Apostolicae Sedis, Città del Vaticano, v. 97, n. 9, p. 915-916, 2005.
18 Cf. PONTIFICIO CONSIGLIO DELLA PASTORALE PER I MIGRANTI E GLI ITINERANTI. Segno dei tempi:
“Migrazione e itineranza da e per (verso) i paesi a maggioranza islamica”. (Documento finale,
2006). Enchiridion Vaticanum, Città del Vaticano, v. 23, p. 1362, 2006.
19 Cf. BENEDETTO XVI. Nella verità, la pace, n. 9-10. (Messaggio, 2005). Acta Apostolicae Sedis, Città
del Vaticano, v. 98, n.1, p. 60-61, 2006.
20 Cf. BENEDETTO XVI. Ad Corpus Legatorum apud Apostolicam Sedem. (Allocutiones, 2006). Acta
Apostolicae Sedis, Città del Vaticano, v. 98, n. 2, p. 123, 2006.
razões políticas ou ideológicas, constituindo um desafio para intelectuais muçul-
manos e cristãos.21 A venda e transferência de armas convencionais é um problema
conexo ao terrorismo internacional.22 A liberdade de religião e rejeição ao terro-
rismo, que faz numerosas vítimas, é incapaz de resolver conflitos, mas fomentar o
ódio e destruição em detrimento do homem e da sociedade.23

Bento XVI afirma que as “questões de segurança, agravadas pelo terroris-


mo, que necessita condenar fortemente, devem ser tratadas com uma abordagem
global e de longo alcance”.24 O Estado não deve interferir, em princípio, na liberda-
de religiosa nem dos indivíduos e das comunidades e nem na consciência moral,
mas deve garantir o bem-estar, a segurança da sociedade e é obrigado a intervir
quando existem iniciativas, ensinamentos, atos de violência, de modo especial, do
terrorismo e manipulação psicológica da religião25 e deve haver um compromisso
global em favor da segurança, impedindo o acesso dos terroristas às armas de des-
truição de massa.26

Embora a sociedade tenha alcançado grande progresso científico e téc-


nico e produzido notável desenvolvimento, existem áreas de globo subdesen-
14 volvidas humana e materialmente, marcadas por desigualdades sociais, medo,
insegurança e o terrorismo que tornaram mais lábeis os confins entre guerra e
paz, prejudicando a esperança do futuro da humanidade, conforme afirma Bento
XVI.27

Em termos reflexivos, parece haver uma diferença sutil na abordagem des-


sa temática pelos últimos dois Pontífices. João Paulo II focaliza as questões no

21 Cf. PONTIFICIO CONSIGLIO DELLA PASTORALE PER I MIGRANTI E GLI ITINERANTI. Segno dei tempi:
“Migrazione e itineranza da e per (verso) i paesi a maggioranza islamica”. (Documento finale,
2006). Enchiridion Vaticanum, v. 23, p. 1376.
22 Cf. PONTIFICIO CONSIGLIO DELLA GIUSTIZIA E DELLA PACE. Since the foundation sul commercio
internazionale delle armi convenzionali. (Dichiarazione, 2006). L’Osservatorio Romano. Città del
Vaticano, 11 ott. 2006, p. 2.
23 Cf. PONTIFICIO CONSIGLIO PER IL DIALOGO INTERRELIGIOSO. Il m’est particulièrement ai
musulmani per la fine del Ramadan. (Messaggio, 2006). L’Osservatore Romano. Città del Vaticano,
29 sett. p. 5.
24 BENEDETTO XVI. Ad receptum Corpus Legatorum. (Allocutiones, 2007). Acta Apostolicae Sedis,
Città del Vaticano, v. 99, n. 2, p. 73, 2007.
25 Cf. Commissione bilaterale delle delegazioni della COMMISSIONE della Santa
Sede per i Rapporti religiosi con l’Ebraismo e del Gran Rabbinato d’Israele per le
Relazioni con la Chiesa Cattolica. Alla VII Riunione de Comitato Misto. (Comunicato con-
giunto, 2007). Disponível em: <http://www.vatican.va/roman_curia/pontifical_councils/chrstuni/
relations-jews-docs/rc_pc_chrstuni_doc_20070313_commissione-bilaterale_it.html>. Acesso
em: 19 novembro 2014..
26 Cf. BENEDETTO XVI. Ad Corpus Legatorum apud hanc Apostolicam Sedem, n. 13. (Discorso, 2008).
Acta Apostolicae Sedis, Città del Vaticano, v. 100, n. 2, p. 78, 2008.
27 Cf. BENEDETTO XVI. Ad Internationale studiorum Seminarium apparatum a Pontificio Consilio de
Iustitia et Pace. (Messaggio, 2008). Acta Apostolicae Sedis, Città del Vaticano, v. 100, n. 5, p. 278-
279, 2008.
nível estrutural, social das desigualdades e dos conflitos, insistindo sobre a neces-
sidade de um trabalho para equalizar melhor tais realidades. Bento XVI parece se
centrar mais sobre os elementos culturais, religiosos e ideológicos, com soluções
que envolvam maior intervenção da comunidade internacional e dos Estados no
combate às armas de destruição de massa, com instrumentais jurídicos e meios
disponíveis para combatê-lo, sejam estes em curto ou em longo prazo.

2. Alguns ensinamentos do Magistério sobre o progresso tecnológico

Posta a visão do Magistério sobre o terrorismo é fundamental compreen-


der qual a visão da Igreja em relação ao progresso tecnológico. Em relação às
tecnologias da vigilância, a Igreja não tem uma palavra propriamente dita. Os
seus ensinamentos referentes às técnicas e tecnologias estão dissolvidos na sua
Doutrina Social. Quando se trata do âmbito tecnológico, ela sempre ressalta os
elementos positivos que concorrem à humanização do ser humano e ao desen-
volvimento, dentro dos parâmetros éticos. Em cada tempo, o Magistério sempre
se pronunciou sobre as transformações sociais, não se esquecendo do progresso 15
científico e tecnológico. Tomaremos algumas indicações mais recentes sobre essa
temática, tendo como limiar o Vaticano II e demais documentos promanados de
suas orientações, bem como dos últimos Pontífices, pois recolhem as tendências
mais atuais nesse campo, embora reconheçamos que, desde a Rerum novarum,
a reflexão sobre os efeitos do progresso são contemplados.28 A exposição de tal
pensamento é fundamental à reflexão ética posteriormente.

João XXIII, na constituição apostólica Humanae Salutis, ressalta que a so-


ciedade moderna distingue-se pelo grandioso progresso científico, mas que ain-
da não atingiu o mesmo patamar no campo moral. O progresso científico possi-
bilita ao ser humano criar instrumentos catastróficos para a destruição e suscita
questões angustiantes, fazendo ponderar sobre os próprios limites e a desejar a
paz.29 O excesso de confiança no progresso das ciências naturais e da técnica e a
idolatria das coisas materiais faz o homem escravo, ao invés de senhor, relembra
o decreto Apostolicam actuositatem.30

28 Cf. GRILLO, Girolamo. Sommario della Dottrina Sociale della Chiesa: per storici, studiosi e studenti.
Dalla “Rerum Novarum” alla “Caritas in Veritate”. Genova; Milano: Marietti, 2010.
29 Cf. IOANNES XXIII. Humanae salutis. (Constitutio Apostolica, 1961). Acta Apostolicae Sedis, Città
del Vaticano, v. 54, n. 1, p. 6-8, 1962.
30 Cf. CONCILIUM OECUMENICUM VATICANUM II. Apostolicam actuositatem, n. 7. (Decretum, 1965).
Acta Apostolicae Sedis, Città del Vaticano, v. 58, n. 12, p. 843-844, 1966.
A Constituição Gaudium et spes31 não despreza as questões tecnológicas
referentes ao progresso humano e suas implicações na vida social. Embora não
seja sua função refletir sobre o progresso, em várias partes o texto reconhece a
evolução das ciências matemáticas e naturais e da técnica resultante da ciência,
salientando o seu progresso e a sua importância cada vez maior no agir humano.
Afirma que a mentalidade científica interfere na cultura, e o homem adquire do-
mínio sobre a terra e espaço e pode conhecer-se melhor por meio do progresso
das ciências biológicas, psicológicas e sociais. Destaca o movimento da história
de modo dinâmico e evolutivo e as diferentes problemáticas daí derivantes.32 Re-
conhece também os grandes progressos nas ciências empíricas, nas técnicas e
nas artes liberais resultantes da inteligência humana.33 O ser humano, com a sua
capacidade de trabalho e engenhosidade, amplia o seu domínio sobre a natureza
e o sentido de cada coisa. Essa atividade humana manifesta a grandeza de Deus e
o ser humano, sua imagem, recebe o mandato de governar o mundo segundo a
justiça e a santidade. A Constituição relembra que, quanto mais aumenta o poder
do ser humano, mais cresce a sua responsabilidade pessoal e comunitária. A ativi-
dade humana procede do homem e para ele se ordena, e o trabalho para conse-
16 guir justiça, fraternidade, organização humana das relações sociais vale mais do
que os progressos técnicos.34

Com essas profundas transformações sociais e culturais ocorridas


na vida do homem moderno se pode falar de uma nova época histórica. As
ciências naturais, humanas e sociais avançaram, desenvolveram-se as técnicas,
a industrialização e a urbanização, criaram-se novas formas de cultura, de
comunicação e novos hábitos e aumentaram a autonomia e a responsabilidade
importantes à maturidade espiritual e moral do gênero humano. A Gaudium et
spes lembra ainda que é preciso, no meio de todas essas antinomias, que a cultura
humana progrida de tal modo a ajudar no desenvolvimento harmônico e integral
da pessoa e auxilie os seres humanos no desempenho das tarefas a que todos e,
sobretudo, os cristãos, são chamados pela fraternidade universal.35 Por fim, afirma
que as recentes investigações e descobertas científicas, da história e da filosofia
levantam novos problemas que têm implicâncias à vida humana, e isso exige
dos teólogos novos estudos. Conclama que se possam conciliar conhecimentos
científicos com a fé cristã, a partir de parâmetros da retidão moral.36 Além disso, a

31 Cf. CONCÍLIO VATICANO II. Gaudium et spes, 1965. Constituição pastoral sobre a Igreja no mundo
de hoje. In. Compêndio do Vaticano II. Constituições, Decretos, Declarações. Introdução e índice
analítico: Boaventura Kloppenburg. Coordenação geral de Frederico Vier. 29. ed. Petrópolis: Vo-
zes, 2000, p. 143-256.
32 Cf. CONCÍLIO VATICANO II. Gaudium et spes, n. 5, p. 147.
33 Cf. CONCÍLIO VATICANO II. Gaudium et spes, n. 15, p. 156-157.
34 Cf. CONCÍLIO VATICANO II. Gaudium et spes, n. 33-35, p. 176-178.
35 Cf. CONCÍLIO VATICANO II. Gaudium et spes, n. 54-56, p. 205-207.
36 Cf. CONCÍLIO VATICANO II. Gaudium et spes, n. 62, p. 214-215.
economia e a técnica devem estar em função do ser humano e servi-lo. O homem
deve ser senhor de suas ações e juiz do valor daquelas, autor do seu próprio
progresso, consoante com a natureza que lhe foi doada pelo Criador, lembra a
Populorum progressio.37

Na carta circular sobre o ensino de Filosofia nos Seminários, a Congrega-


ção para a Educação Católica afirma que o espírito tecnológico tende a reduzir o
homo sapiens ao homo faber. A técnica comporta inumeráveis vantagens, entre-
tanto nem sempre favorece ao ser humano os valores do espírito. A mentalidade
do homem parece reduzir-se ao mundo material, concreto, mediante o progresso
científico e técnico e o conhecimento ao método das ciências positivas. A cren-
ça no progresso científico faz esquecer o caráter permanente dos valores morais
e espirituais e parecer supérflua a especulação filosófica indispensável para tais
mudanças. A busca séria da verdade é desprezada na atual realidade cada vez
mais antimetafísica.38 As novas técnicas dão origem a diversos valores e os pro-
põem indiscriminadamente, tocando e transformando as relações entre as pes-
soas, influenciam na compenetração das culturas e divulgam novos modos de
comportamento, de mentalidades, de formas expressivas, de linguagem e de re- 17
lações humanas.39

Diante de tantas transformações ocorridas, João Paulo II, na encíclica Re-


demptor hominis, expõe uma espécie de inquietude em que vive o ser humano
em relação àquilo que produz e que pode ser utilizado contra si mesmo, de modo
que a sua criação o ameaça. A técnica deve ser compreendida em um plano com
perspectivas universais e humanas com proporcional desenvolvimento da vida
moral e da ética. Deve-se interrogar se o progresso do qual o ser humano é prota-
gonista torna a sua vida mais humana e mais digna; se neste contexto de avanços,
ele se encontra melhor, mais amadurecido espiritualmente, mais consciente da
própria dignidade e humanidade, mais responsável e aberto aos demais, sobre-
tudo com os mais necessitados e fracos, e solidário com todos. Recorda que o ser
humano não se deve deixar levar pela euforia, mas colocar-se com absoluta dig-
nidade, objetividade, sentido e responsabilidade moral, verificando se suas con-
quistas alcançadas estão de acordo com o progresso moral e as expectativas do
ser humano, do crescimento do amor social, evitando egoísmos, nacionalismos
e domínio sobre outros em formas de imperialismo. A encíclica ressalta o tempo

37 Cf. PAULUS VI. Populorum Progressio, n. 34. (Litterae encyclicae, 1967). Acta Apostolicae Sedis,
Città del Vaticano, v. 59, n. 4, p. 274, 1967.
38 Cf. SACRÉE CONGRÉGATION DE L’ÉDUCATION CATHOLIQUE, Lettre circulaire à leurs Excellences
les Evêques En cette période sur l’enseignement de la philosophie dans les séminaires. La docu-
mentation catholique 69, v. 69, p. 262-267, 1972.
39 Cf. SYNODUS EPISCOPORUM. Ad populum Dei nuntius Cum iam ad exitum de catechesi hoc nos-
tro tempore tradenda praesertim pueris atque iuvenibus (1977). Typis polyglottis vaticanis. Città
del Vaticano, 28 ott. 1977, p. 18.
de grande progresso e também de grande ameaça ao ser humano. O homem
contemporâneo parece estar longe das exigências objetivas da ordem moral e
das exigências da justiça. Conclui o Papa que a verdadeira realeza deve ser aquela
da ética sobre a técnica, das pessoas sobre as coisas e do espírito sobre a matéria,
evitando assim o homem mesmo ser objeto de manipulação.40

A encíclica Laborem exercens,41 embora considerando as questões do tra-


balho humano, ressalta os avanços na área das tecnologias modernas, nos cam-
pos da miniaturização, da informática, da telemática, destacando seus papeis nos
processos interativos, como aliados do ser humano, facilitando o trabalho, aper-
feiçoando-o, acelerando-o e multiplicando-o. Adverte também que, em alguns
casos, a técnica de aliada pode se transformar em adversária do homem, quando
mecaniza os trabalhos e suplanta-os. Quando a máquina é exaltada, o homem é
reduzido.

A instrução Libertatis conscientia ressalta as novas desigualdades que se


interpõem entre aqueles que não possuem o domínio tecnológico e aqueles que
o detêm e as desigualdades decorrentes desse processo.
18
A força libertadora do conhecimento científico concretiza-se nas
grandes realizações tecnológicas. Quem dispõe das tecnologias pos-
sui o poder sobre a terra e sobre os homens. Daí nascem formas de
desigualdade, até então desconhecidas, entre os detentores do saber
e aqueles que simplesmente utilizam a técnica. A nova potência tec-
nológica está ligada ao poder econômico e leva à sua concentração.
Dessa forma, no interior dos povos e entre os povos, formaram-se re-
lações de dependência que, nos últimos vinte anos, deram ocasião a
uma nova reivindicação de libertação. Como impedir que a potência
tecnológica não se torne um poder de opressão de grupos humanos
ou de povos inteiros?42

Assim sendo, os cristãos devem exercitar a sua responsabilidade como


senhores da ciência e da tecnologia e não como servos delas. Faz-se necessária a
união de todos para afirmar o que na cultura promove a dignidade do homem e
o que lhe provoca danos, colocando em perigo a espécie humana.43 O verdadeiro
40 Cf. IOANNES PAULUS II. Redemptor hominis, n. 15-16. (Litterae encyclicae, 1979). Acta Apostolicae
Sedis, Città del Vaticano, v. 71, n. 4, p. 286-295, 1979.
41 Cf. IOANNES PAULUS II. Laborem exercens, n. 5. (Litterae encyclicae, 1981). Acta Apostolicae Sedis,
Città del Vaticano, v. 73, n. 9, p. 586-589, 1981.
42 CONGREGATIO PRO DOCTRINA FIDEI. Libertatis conscientia de libertate christiana et liberatione,
n.12. (Instrucio, 1986). Acta Apostolicae Sedis, Città del Vaticano, v. 79, n. 5, p. 559, 1987.
43 Cf. SYNODUS EPISCOPORUM. Elenchus ultimus propositionum Post disceptationem de vocatione
et missione laicorum in ecclesia et in mundo viginti annis a concilio Vaticano II elapsis, Textus
septimo coetui synodi episcoporum reservatus [sub secreto] (1987). Typis polyglottis vaticanis.
Città del Vaticano, 29 ott. 1987, p. 95.
desenvolvimento é aquele que respeita e promove os direitos humanos pessoais
e sociais. João Paulo II, ao refletir sobre as transformações do mundo contempo-
râneo na esfera do desenvolvimento econômico e social, enuncia:

Não seria verdadeiramente digno do homem um tipo de desenvolvi-


mento que não respeitasse e não promovesse os direitos humanos,
pessoais e sociais, econômicos e políticos, incluindo os direitos das
nações e dos povos. [...] A conexão intrínseca entre o desenvolvimento
autêntico e o respeito dos direitos do homem revela uma vez mais o
seu caráter moral: a verdadeira elevação do homem, conforme com
a vocação natural e histórica de cada um, não se alcança só com o
desfrute da abundância dos bens e dos serviços, ou dispondo de in-
fraestruturas perfeitas.44

Bento XVI, na mensagem pela XLIII Jornada Mundial das Comunicações, su-
blinha as mudanças fundamentais que ocorreram nos modelos de comunicação
e nas relações humanas. Ele declara que a “geração digital” tem em mãos o ex-
traordinário potencial de comunicação das novas tecnologias para favorecerem
19
a compreensão e a solidariedade humana e que isso representa um dom divino
à humanidade. Os celulares, os computadores e a internet apresentam todos os
benefícios à pesquisa, ao relacionamento, ao encurtamento das distâncias e do
desejo humano de comunicação, mas adverte dos perigos do esvaziamento, do
isolamento e lembra que o mundo digital deve ser mais acessível a todos, evitan-
do exclusões.45
Aprofundando o seu pensamento social, Bento XVI, em Caritas in veritate,
sustenta que o desenvolvimento da pessoa é degradante se esta intenciona ser
produtora de si mesma; bem como o progresso dos povos, se a humanidade
pretende recriar-se com os recursos da tecnologia. A técnica é profundamente
humana, ligada à autonomia e à liberdade do homem e, por meio dela, confirma-
se o domínio do espírito sobre a matéria, permitindo melhorar as condições de
vida. Ela se insere no mandato divino ao homem de cultivar e guardar a terra
e reforçar a aliança entre ser humano, ambiente e o amor de Deus criador. O
desenvolvimento tecnológico é ambíguo, criando a ideia de autossuficiência
humana em que o ser humano considera o como e desconsidera os motivos

44 IOANNES PAULUS II. Sollicitudo rei socialis, n. 33. (Litterae encyclicae, 1987). Acta Apostolicae
Sedis, Città del Vaticano, v. 80, n. 5, p. 557, 1988.
45 Cf. BENEDETTO XVI. Messaggio per la XLIII Giornata Mondiale delle Comunicazioni Sociali: ‘nuove
tecnologie, nuove relazioni. Promuovere una cultura di rispetto e dialogo e di amicizia’. In:
Insegnamenti di Benedetto XVI. v. 1 (2009). Città del Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, p.
123-127.
de suas ações. A mentalidade tecnicista faz coincidir a verdade com o factível e
quando o critério de verdade é a eficiência e a utilidade, o desenvolvimento é
automaticamente negado. O Papa critica a concepção de desenvolvimento dos
povos concebida a partir de soluções técnicas. Segundo ele, até mesmo a paz corre
o risco de ser considerada um problema técnico, resultante apenas de acordos
governamentais com tendências a assegurarem ajudas econômicas eficientes.
Entretanto, isso só terá efeitos se forem fundamentados em valores radicados na
verdade da vida e na escuta dos anseios das populações. Sublinha o problema
da permissividade dos mass media e as questões relacionadas à bioética e do
reducionismo antropológico.46 Bento XVI, ao contrastar o ‘absolutismo da técnica’
que se encontra sua máxima expressão nas práticas contrárias à vida, exprime: “os
problemas atuais da humanidade não podem ser somente técnicos, mas devem
considerar todas as exigências da pessoa que é dotada de alma e corpo e levar em
conta o Criador, Deus”.47
Conforme se vê, o Magistério reconhece as implicâncias das tecnologias na
20 vida social e a grande preocupação é evitar a mentalidade tecnocrática, autossu-
ficiente. Insiste que o homem seja protagonista do progresso como bem social a
ser condividido com os demais, na dinâmica da responsabilidade, da liberdade
e da autonomia. O ser humano é fim em si mesmo e jamais poderá ser reduzido
como meio. Esta é a chave para equacionar progresso tecnológico e moral.

3. Algumas considerações sobre o uso das tecnologias de vigilância

Daquilo que a Igreja expõe como reflexão sobre as tecnologias em geral,


podemos interpretar que os mesmos princípios valem para aquelas referentes à
vigilância e à segurança. Enquanto resultado da capacidade da inteligência hu-
mana, deve ser utilizado em benefício do próprio humano, como instrumento

46 Cf. BENEDICTUS XVI. Caritas in veritate, n. 68-77. (Litterae encyclicae, 2009). Acta Apostolicae Sedis.
Città del Vaticano, v. 101, n. 8, p. 701-707, 2009. Outros documentos que se referem à difusão das
tecnologias e biotecnologias nos processos da procriação humana, com técnicas de reprodução
artificial, de diagnose fetal que são invasivas e desproporcionadas às crianças e tantas outras que
ferem o desenvolvimento integral do ser humano, desde a sua concepção a sua morte natural e
a sua dignidade, são discutidas pelas Instruções Donum Vitae (1987) e Dignitas personae e pela
encíclica Evangelium vitae. Cf. CONGREGATIO PRO DOCTRINA FIDEI. Donum vitae. (Instructio,
1987), Acta Apostolicae Sedis, Città del Vaticano, v. 80, n. 1, p. 70-102, 1988; CONGREGATIO PRO
DOCTRINA FIDEI. Dignitas personae. (Instructio, 2008). Acta Apostolicae Sedis. Città del Vaticano,
v. 100, n. 12, p. 858-887, 2008; IOANNES PAULUS II. Evangelium vitae. (Litterae encyclicae, 1995).
Acta Apostolicae Sedis, Città del Vaticano, v. 87, n. 5, p. 401-522, 1995.
47 BENEDETTO XVI. La preghiera mariana con i fedeli convenuti in Piazza San Pietro: contro
l’assolutismo della tecnica. In: InsegnamentI di Benedetto XVI. v. 2 (2009). Città del Vaticano:
Libreria Editrice Vaticana, 2010, p. 48.
que contribua para a sua dignificação. Por dignificação, no contexto de nossa ex-
posição, entendemos toda possibilidade de proteção ao ser humano enquanto
cuidado e seguridade social, por conseguinte, segurança. Assim, se a aplicação de
tais tecnologias não cumpre tais requisitos, deve ser sujeita à reflexão crítica por
parte da ética, e, sobretudo, da teologia moral, porque tal engenho, concebido
pelo ser humano, não está contribuindo para expressar a faceta do humano, ima-
gem e semelhança de Deus Criador. “É necessário que cada progresso tecnológico
não perca jamais de vista a sua finalidade que é o desenvolvimento integral de
todos os homens”.48 Esse é o ideal, conforme o ensinamento social da Igreja; no
cotidiano, a realidade se constitui de modo diverso.

A aproximação às tecnologias por parte da Doutrina Social deve


ser considerada no contexto da visão integral do homem, inspirada
pela fé evangélica, e dos seus valores como parâmetros prioritários e
constantes. A este nível antropológico e ético se coloca a contribuição
da Igreja em favor da dignidade da pessoa e de uma sociedade livre.
[...] A contribuição do Magistério social contribui para superar a
ideologia tecnocrática que domina a nossa cultura e testemunha a
extrema pertinência seja da verdade sobre Deus e sobre o homem, 21
como condição primeira da liberdade e do reto ordenamento das
necessidades e exigências que a técnica deve servir, seja da visão de
dignidade do trabalho humano como base da produtividade e da
eficácia da técnica.49

Para a Igreja, as tecnologias trouxeram profundas transformações históricas


com implicações à vida e às relações humanas, especialmente nos últimos tempos
com as tecnologias da informática e da telemática. À medida que tais conquistas
aumentam o poder do ser humano, também a sua responsabilidade pessoal em
relação a seus semelhantes tanto em nível pessoal quanto comunitário. É impor-
tante combater o perigo do esvaziamento dos valores humanos, do reducionismo
antropológico, da autossuficiência, do empirismo, buscar equacionar progresso
científico e moral e desenvolver o respeito pessoal e os direitos humanos.
No âmbito das tecnologias da segurança, houve um recrudescimento do
discurso que elege o terrorismo como álibi para justificar uma série de atos go-
vernamentais à sociedade civil dessas tecnologias. A própria Igreja, como uma
das intérpretes dos sinais dos tempos e das angústias humanas, traz a sua refle-
xão sobre esse mal social. Nesse ponto, nota-se uma diferença essencial entre o
discurso do combate ao terrorismo pelos governos e o pensamento eclesial. Os
48 PONTIFICIO CONSIGLIO DELLA GIUSTIZIA E DELLA PACE. Progresso tecnologico. In: PONTIFICIO
CONSIGLIO DELLA GIUSTIZIA E DELLA PACE. Dizionario di dottrina sociale della Chiesa, p. 646.
49 MANZONE, Gianni. Invito alla dottrina sociale della Chiesa. Roma: Borla, 2004, p. 175.
governantes tendem a resolver a situação pelo emprego da força, isto é, do ponto
de vista militar e pela proliferação da instrumentalização tecnológica. A Igreja não
desconsidera tais meios, compreende que é preciso ir além deles, resolvendo os
problemas de desenvolvimento social. “O desenvolvimento não se reduz a um
simples crescimento econômico. Para ser autêntico, deve ser integral, quer dizer,
promover todos os homens e o homem todo...”.50 Além disso, a Igreja possui uma
‘fé antropológica’ diferentemente do pensamento hobbesiano que permeia a so-
ciedade atual, de que o homem é o lobo do homem, ainda que essa realidade pa-
reça ser a mais concreta em nível das relações sociais. Portanto, a concepção ecle-
sial é muito mais profunda, complexa, lenta, porque parte do princípio da própria
transformação humana que, a partir de si, de sua responsabilidade, cria condições
humanas à sobrevivência e à seguridade. Nesse sentido, o pensamento eclesial
pode ser considerado utópico, aos ‘homens de boa vontade’, independente de
credo religioso, cultura ou etnia, e pensa a humanidade como um lugar seguro,
não a partir de armas, da vigilância, mas do respeito ao outro.

22 Uma das preocupações da Igreja, bem como da teologia moral, é a frag-


mentação humana. O ser humano é concebido de maneira integral e se apresenta
ao mundo como totalidade e mistério. A lógica da vigilância e da concepção de
segurança fragmenta-o a partir de categorias pré-estabelecidas por classes, em
um clima sempre de desconfiança do outro. O discurso teológico-moral busca
libertar o ser humano, muitas vezes acorrentado por Kratos e Bias e representa a
flauta de Hermes, capaz de libertar o ser humano das miríades de olhos que o re-
duzem a algoritmos alfanuméricos e busca pensá-lo integrado socialmente, e não
em uma situação de medo social do outro. Isso não significa ausência de tensões
entre indivíduo e comunidade. Para o pensamento eclesial e teológico-moral, o
ser humano é vislumbrado em relação à comunidade. Não se trata de pensar em
um comunitarismo hermético em que todos se tornam massa, e o indivíduo é
sacrificado. Ao contrário, reconhece-se a individualidade e consciência de que as
ações pessoais têm implicações sobre a comunidade. Assim como o indivíduo tem
suas obrigações de criar ambiente favorável para o convívio social, a comunidade
tem o dever de ajudá-lo, por meio de suas instituições, a viver em um clima de se-
gurança.
“As autoridades públicas devem legislar e vigiar de modo que no âmbito
das novas inovações tecnológicas não ajam de modo incontrolável, colocando
em perigo o bem comum da sociedade”.51 Além da legislação sobre a tecnologia
em si mesma, também considerar seus efeitos sobre as pessoas. No que diz res-
50 PAULUS VI. Populorum Progressio, n. 14, p. 264.
51 PONTIFICIO CONSIGLIO DELLA GIUSTIZIA E DELLA PACE. Progresso tecnologico. In: PONTIFICIO
CONSIGLIO DELLA GIUSTIZIA E DELLA PACE. Dizionario di dottrina sociale della Chiesa, p. 646.
peito à vigilância, sabemos que, embora o discurso sobre a privacidade não seja
suficiente para contrapor a ação das tecnologias de vigilância, é preciso reafirmar
que o indivíduo deve possuir seus espaços de intimidade onde a pessoa constrói
a identidade de si mesma. “A intimidade é o âmbito interior da pessoa mais pro-
fundo, mais recôndito, secreto ou escondido dentro dela. É, assim, algo inacessí-
vel, invisível, que só ela conhece, onde ela só elabora ou constrói livremente seu
próprio agir e onde se processa sua vida interior. Na intimidade, a pessoa constrói-se
e descobre-se a si própria”.52

Nesse processo, as tecnologias de vigilância devem ter a finalidade de co-


laborar com a comunidade não do ponto de vista do mero panopticismo, e sim
como instrumental de apoio para o gerenciamento social, auxiliando na previsão
de ações que coloquem em risco inocentes e combate às ações danosas que vio-
lam a vida humana e desgastam o tecido social. Nesse sentido, a aplicação dessas
tecnologias, de modo prudencial,53 é viável por ser uma contribuição para geren-
ciar melhor a sociedade. Porém, com uma postura crítica para que as tecnolo-
gias não se transformem em uma forma de governança (governance), adquirindo
uma espécie de poder para determinar os destinos da sociedade. “A vigilância por 23
meios eletrônicos é um modo cada vez mais significativo de governança nas cha-
madas sociedades baseadas no conhecimento ou na informação”54 que serve para
organizações sociais e contribuir para a ordenação social, por meio do biopoder,
fazendo as pessoas serem classificadas conforme categorias.55

Conclusão

O terrorismo tem estimulado o uso das tecnologias de vigilância. Isto é um


fato. Entretanto, pensar somente a partir deste prisma é incorrer em reducionis-
mos. Atualmente estas tecnologias estão presentes desde os brinquedos infantis,
como os vídeo-games, que são capazes de emitir certas informações a uma cen-
tral controlada pelos pais, aos mais avançados centros especializados nesta área.
Neste arco de possibilidades estão os mais diferentes usos: prevenção (terrorismo,
52 Alonso, Felix Ruiz. Pessoa, intimidade e o direito à privacidade. In: Martins, Ives Gandra da
Silva e Pereira JÚNIOR, Antônio Jorge (Coord.). Direito à privacidade. Aparecida: Ideias & Letras;
São Paulo: Centro de Extensão Universitária, 2005, p. 17.
53 Conforme MÜNK “É necessária especialmente a virtude da prudência que busca o reto meio
entre os extremos de uma tecnofilia acrítica e da tecnofobia e sabe distinguir com realismo
pragmático entre as ciência objetivas aparentes e autênticas e levem a sério uma mediação
equilibrada entre a razão técnica, científica, econômica, ecológica e ética. MÜNK, Hans-Jürgen.
Técnica. In: ROTTER, Hans; VIRT, Günter (Dir.). Nuevo diccionario de moral cristiana, p. 562.
54 LYON, David. Everyday surveillance: personal data and social classifications. In: HIER, Sean P.;
GREENBERG, Joshua (Eds.). The surveillance studies reader, p. 136.
55 Cf. LYON, David. Everyday surveillance: personal data and social classifications. In: HIER, Sean P.;
GREENBERG, Joshua (Eds.). The surveillance studies reader, p. 141.
crime organizado, doenças, etc), cuidado, organização da vida social, etc. Em ou-
tras palavras, a vigilância faz parte da sociedade complexa que aí está.
As tecnologias de vigilância respondem ao progresso tecnológico e até
certo ponto ao desejo de segurança das pessoas. Em nome da segurança, a
privacidade, a autonomia individual e outros bens pessoais/sociais podem ficar
comprometidos. O panopticismo pode revelar muitas coisas, dentre as quais, o
desejo de controlar o outro, bem como a insegurança social. Ambas as realidades
são extremamente complicadas socialmente. É fundamental que se resgate a
dimensão da confiança no outro, algo que se torna cada vez mais difícil, devido
à própria insegurança estrutural da sociedade. Nesse sentido, o pensamento
da Igreja é capaz de propor alternativas além do uso maciço de tecnologias de
vigilância para o combate ao terrorismo, ao crime organizado, etc. A Igreja não
se opõe a tal uso, desde que não viole e exponha cidadãos de bem, mas propõe
outros valores, tais como a qualificação das estruturas sociais, de modo que as
pessoas, sobretudo os mais pobres, tenham acesso aos bens necessários para
24 terem dignidade e não serem explorados por grupos que se constituem um poder
paralelo por meio de suas milícias criminais.
A vigilância tem implicações a nossa vida concreta. É preciso explorar cada
vez mais as suas diferentes interfaces, sobretudo no campo da ética ou da moral. É
preciso maior conscientização para melhor lidarmos com este recurso que a socie-
dade pós moderna nos dispõe, fruto da inteligência humana. Só assim podemos
lidar com os lados obscuros da vigilância que nos põem questões sérias a serem
discutidas.
Artigos
PERSPECTIVA HISTÓRICA DAS
QUESTÕES DE GÊNERO
Historical perspective of gender issues

Pe. Dr. José Eduardo de Oliveira e Silva *

RESUMO: Masculino e feminino não se nasce; mas se escolhe sê-lo, faz-se. Tal afirmação brota
candente das páginas e lutas ideológicas da questão de gênero. Este incitante texto propõe-se
a historiar a questão do gênero como ideologia. O texto propõe um percurso do tema desde 25
as raízes do marxismo até conferência, que reuniu especialistas de 29 países, em Yogyakarta,
Indonésia (2006), organizada pela Comissão Internacional de Juristas e o Serviço Internacional
de Direitos Humanos. Da necessidade de uma sociedade de iguais, passando pelas revoluções
do proletariado (Marx), da supressão da família, da propriedade privada e do Estado (Engels), da
desconstrução da família (Lenin/União Soviética), começou-se, no meio comunista um processo
ideológico com nomes como o de Kate Millet e Shulamith Firestone visando o ideal de uma
revolução sexual, onde as mulheres haveriam de se libertar da determinação biológica e elas e
as crianças poderiam viver como quisessem sua sexualidade. Nessa luta a terminologia “gênero”
passaria a ser dissociada da “identidade sexual biológica”, através da dissolução e construção de
um outro projeto político.

PALAVRAS CHAVE: revolução sexual, estruturas de poder, determinação biológica, desconstrução,


ideologia.

SUMMARY: Male and female is not born; but if you choose to do it, it does. This type of statement
springs from ideological struggles of gender issues. This provocative text seeks to historicize
the issue of gender as ideology. It proposes a theme path from the roots of Marxism until the
Conference, which brought together experts from 29 countries, in Yogyakarta, Indonesia (2006).
The need for a society of equals, passing through the revolutions of the proletariat (Marx), the
abolition of the family, private property and the State (Engels), the deconstruction of the family
(Lenin/Soviet Union), began amid a communist world, the ideological process with names such as
Kate Millet and Shulamith Firestone, envisaging to the ideal of a sexual revolution, where women
would get rid of the biological determination. They and the children could choose and live their

* José Eduardo de Oliveira e Silva é graduado em filosofia e teologia; tem mestrado e doutorado pela
Pontificia Università della Santa Croce. Sua tese doutoral tem como título: O PAPEL GLOBAL DA VIRTUDE
DA RELIGIÃO: UMA PROPOSTA A PARTIR DA DOUTRINA DE SÃO TOMÁS. É professor no Instituto de Filosofia
Sede da Sabedoria – IFSS/Brasil e no Instituto de Teologia Mater Ecclesiae – IMME/Brasil. de Filosofia Sede da
Sabedoria, IFSS, Brasil.
sexuality according their will and wish. In this struggle, the terminology “gender” would become
dissociated from the “biological sexual identity”, through the dissolution of existing social process
and the construction of another political project.

KEY WORDS: sexual revolution, power structures, biological determination, deconstruction,


ideology.

I. Introdução

Nos últimos tempos, muito têm-se falado sobre a “ideologia de gênero”,


que surgiu no horizonte como um projeto político cuja força encontra-se propria-
mente em seu desconhecimento. Trata-se de uma falácia verbal, construída para
não ser entendida, usada como instrumento para imposição de um totalitarismo
26 político.
O estudo sobre o tema é ainda incipiente. O presente artigo, quase a modo
de ensaio, parte do estudo feito por Jorge Scala1, deixando de lado uma minucio-
sa análise do conteúdo mesmo da ideologia2 e concentrando-se exclusivamente
na apresentação de seus escopos políticos.
Haveria muito mais a se falar, sobretudo aproximando-se da questão a partir
de outros de seus proponentes. Ademais, poder-se-ia ainda desenvolver muitís-
simo a análise a partir da consideração acerca do tipo de sociedade vislumbrada
pelos atores principais desta ideologia, desde seus pressupostos até a concreção
dos mesmos, confrontando-o com os fundamentos da civilização ocidental, ou
mesmo de qualquer outro tipo de civilização. Contudo, deixo esta importante re-
flexão para outro momento, limitando-me a reafirmar aquilo que, no ocidente,
sempre se creu: “todos sabem que existem dois tipos de comunidade: a cidade e a
família”3, e ambas são mutuamente ordenadas, sem se oporem de nenhum modo,
antes, fundando-se a primeira na segunda.

1 Cf. SCALA, J. R., Ideologia de Gênero. O neototalitarismo e a morte da família, Katechesis, São Paulo
2011.
2 Fiz uma análise mais aprofundada desta ideologia, mesmo que de forma muito sintética e
adaptada ao leitor desacostumado com a matéria, numa entrevista concedida ao portal de
notícias Zenit. Cf. http://www.zenit.org/pt/articles/caindo-no-conto-do-genero (visto em
17.12.2014).
3 “Duplex est communitas omnibus manifesta: scilicet civitatis et domus”. Tomás de Aquino, S., Sententia
Libri Politicorum, lib. 1, l. 1, n. 5.
E, diante dos projetos de desconstrução da célula mater da sociedade, re-
cordava-nos profeticamente São João Paulo II, que “é urgente, portanto, realizar
uma ação vasta, profunda e sistemática, apoiada não só na cultura, mas também
nos meios económicos e nos instrumentos legislativos, destinada a assegurar
à família a sua função de ser o lugar primário da ‘humanização’ da pessoa e da
sociedade”4. Se é necessário assegurar, talvez seja porque a família realmente seja
vista como o empecilho para a gênese de uma anti-civilização5.
Poderia começar por diferentes autores. Inicio, porém, por aquele em que o
problema surgiu de modo mais evidente e crônico: Karl Marx.

II. Marxismo, o berço da questão de gênero

Karl Marx (1818-1883) concebeu um ideal de sociedade igualitária que viria


à luz pela concentração de poder, mediante a ditadura do proletariado, que esta-
tizaria todos os meios de produção, revolucionando a estrutura econômica, o que 27
causaria ipso facto o desaparecimento sumário de todas as superestruturas. Para
ele, a “ideologia” como tal era uma excrescência burguesa, pela qual moldava o
comportamento da sociedade em corroboração ao establishment, a si favorável, e
desapareceria com o advento de uma economia igualitária.
“Ideologia”, para Marx, era a filosofia como tal, e não recairia nela apenas
a “ação revolucionária” pura e simples, que causasse a transformação da realida-
de imediatamente6. Portanto, sua própria teoria incorria naquilo que ele pensava
ser a causa mesma da “alienação”. Obviamente, Marx era um burguês, e pensava
como tal, mas era consciente de que sua abordagem deveria ser encarada apenas
como uma engrenagem do processo revolucionário, cujas etapas são sempre au-
to-aniquilatórias, contraditórias por definição, o que contrasta grandemente com
a pretensão de qualquer coerência lógica.
Portanto, o “primeiro” Marx estava concentrado sobre a revolução econô-
mica, pensando ser a “propriedade privada” o grande obstáculo para a igualdade.
Entretanto, Marx estudava muito. Dedicou anos à reflexão e a análise.
E como todo aquele que pondera os fatos vai aprimorando com o passar dos
tempos sua percepção e vai refinando a qualidade de seus juízos, também ele
4 João Paulo II, S., Exortação apostólica pós-sinodal Christifideles Laici (30.12.1988), n. 40.
5 Cf. João Paulo II, S., Carta às famílias (2.02.1994), n. 13.
6 Cf. Marx, K., Teses sobre Feuerubach, Editorial Avante! & Edições Progresso, Lisboa-Moscovo
1982, 11a. Tese.
mudou, adquiriu maior argúcia em seus arrazoados, chegando à consideração de
um aspecto que passou inadvertido nos primeiros anos de sua reflexão.
Na obra “Sobre a Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado”7
– Der Ursprung der Familie, des Privateigentums und des Staats – , de autoria inaca-
bada de Marx, mas publicada e assinada por Friedrich Engels, chega à conclusão
de que a verdadeira causa da desigualdade social é a família. Nesta obra, excogita
fantasiosamente uma mirabolante teoria sobre a origem da família. Resumida-
mente, afirma que os homens primitivos viviam em hordas nas quais havia total
liberdade sexual e, portanto, predominava um modelo tendencialmente mais
matriarcal, já que se ignoraria a própria procedência paterna. Num determinado
momento, os machos, pela força física, exigiram fidelidade das fêmeas, fazendo-
-as tornarem-se sua propriedade privada, juntamente com seus filhos. A partir de
então, construiu-se o conceito de patrimônio (ligado ao pater), do qual decorreu
o de matrimônio (no qual a mater é propriedade do macho). Como sustento deste
sistema de submissão surgiu o Estado, reconhecedor e garante do mesmo.
28 Para Marx e Engels, a família é uma instituição endemicamente perversa e
precisa ser pulverizada, para que haja a revolução. Notem que Marx percebeu que
o seu ideal de igualdade era naturalmente inviável, e a família era uma demons-
tração disso. No entanto, ao invés de reconhecê-lo, aferrou-se obstinadamente
em sua utopia preferindo atribuir à instituição familiar a culpa pela inviabilidade
de seu delírio.
Esta sua conclusão, todavia, permaneceu ignota para a maior parte de seus
discípulos. De fato, a Rússia não possuía grande tradição filosófica e, por isso,
foi nas mãos de Lênin e Stalin que o marxismo deixou de ser filosofia e tornou-
-se uma guerrilha. Os realizadores da revolução marxista na Rússia, os primeiros
propugnadores de uma práxis revolucionária segundo aquele modelo, concen-
traram-se apenas nos aspectos diretamente políticos e econômicos da teoria de
Marx, gerando o mais terrível dos regimes jamais visto em toda a história humana.
Marx concebeu a revolução como protagonizada pelos operários; Lênin
foi o primeiro a perceber que isso não bastava, seria necessário incorporar nela
também os camponeses. Desde então, não se deixaram de envolver mais e mais
agremiações na dinâmica revolucionária, mas nunca se chegou realmente a uma
alteração eficaz dos padrões psicossociais. De algum modo, a revolução permane-
cia sempre bloqueada. Para utilizar a linguagem de Marx, os padrões ideológicos
impunham-se como freio aos impulsos revolucionários.

7 Idem, Sobre a origem da família, da propriedade privada e do Estado, Editorial Vitória Ltda., Rio de
Janeiro 1964.
Lênin chegou a tentar desconstruir a família, mas percebeu que estava des-
truindo a sociedade, ficou hesitante e reverteu o processo.

A União Soviética fez de fato um esforço consciente para pôr fim ao


sistema patriarcal e reestruturar a sua instituição mais fundamental
— a família. Depois da revolução, foram votadas todas as leis pos-
síveis para libertar o indivíduo das amarras familiares: liberalização
do casamento e do divórcio, contraconcepção e aborto autorizado.
Sobretudo, mulheres e crianças escaparam ao controle econômico
do marido. Sob o regime coletivo, a família começou a desintegrar-
se, e as fissuras produziram-se seguindo exatamente o traçado que
tinha presidido à sua construção. O sistema patriarcal começou, por
assim dizer, a fazer marcha atrás, enquanto a sociedade voltava à
comunidade de trabalho democrática que as autoridades socialistas
descrevem sob o nome de matriarcado. (...) À parte o fato de decla-
rar que a família como instituição obrigatória devia desaparecer, a
teoria marxista não tinha conseguido fornecer uma base ideológica
suficiente para uma revolução sexual e subestimava com uma inge-
nuidade notável a força histórica e psicológica do sistema patriarcal.
(…). Por consequência, quando a velha ordem patriarcal desabou,
não existia uma teoria positiva e coerente para remediar a confusão
que devia inevitavelmente seguir-se8. 29

Este texto é de Kate Millet (1934), uma feminista radical, formada no seio
do partido comunista. Foi a primeira grande expoente do pensamento feminista.
Sua tese doutoral, Política sexual (1970), foi o primeiro grande trabalho científico
sobre o assunto, tornou-se um best-seller pouco tempo após sua publicação, me-
recendo gloriosos apanágios nas páginas de – nada mais, nada menos – que The
New York Times.
Contudo, os marxistas ainda não tinham entendido a centralidade disso. O
texto de Kate Millet equivale, para as feministas, àquilo que o “Manifesto Comu-
nista” foi para os marxistas. Embora seja um texto com bastante rigor científico –
trata-se de uma tese doutoral –, não tinha grande alcance especulativo, permane-
cendo uma muito bem escrita análise histórica, concebida em tom de manifesto
contra a “ordem patriarcal”.

8 Millet, K., Política sexual, Publicações Dom Quixote, Lisboa 1979, pp. 161-163.
III. Iniciativas independentes

Na verdade, Marx havia entendido, no final de sua vida, que a revolução


somente aconteceria se houvesse uma profunda subversão da ordem social, não
bastando para isso a alteração dos padrões econômicos. A morte, porém, ceifou-
-o antes que pudesse desenvolver melhor esta constatação. Seus conseguidores
não se deram conta disso, e tiveram de aprender, por tentativa e erro, que seus
objetivos não poderiam ser atingidos eficazmente de outro modo.
O “manifesto” de Kate Millet levantou a bandeira da revolução sexual. Para
os marxistas, foi abjeto; mas, para as feministas, foi sua pedra de toque. A partir
de então, começarem-se a produzir profundíssimos estudos sobre esta temática.

Um estudo mais expressivo, que transportou o feminismo do “manifesto”


para a “ideologia política” foi a Dialética do Sexo (1970), de Shulamith Firestone
(1945-2012). Sintetizando as ideias de Freud, Reich, Marx, Engels e Simone de Be-
30 auvouir, Firestone desceu mais profundamente ainda ao ideal de uma revolução
sexual, demonstrando como a mesma seria o único detonador possível de uma
autêntica revolução social e econômica. Na conclusão de sua obra, afirma:
Eis aqui algumas sugestões do sistema alternativo:
1) A libertação das mulheres da tirania de sua biologia reprodutiva
por todos os meios disponíveis e a ampliação da função repro-
dutiva e educativa a toda a sociedade globalmente considerada.
(…) Estamos falando de uma mudança radical. Libertar as mulhe-
res de sua biologia significa ameaçar a unidade social, que está
organizada em torno da sua reprodução biológica e da sujeição
das mulheres ao seu destino biológico, a família.
2) A total autodeterminação, incluindo a independência econômi-
ca, tanto das mulheres quanto das crianças. (…) É por isso que
precisamos falar de um socialismo feminista. (…) Com isso ataca-
mos a família em uma frente dupla, contestando aquilo em tor-
no de que ela está organizada: a reprodução das espécies pelas
mulheres, e sua consequência, a dependência física das mulheres
e das crianças. Eliminar estas condições já seria deficiente para
destruir a família, que produz a psicologia do poder. Contudo,
nós a destruiremos ainda mais.
3) A total integração das mulheres e das crianças em todos os ní-
veis da sociedade. Todas aquelas instituições que segregam os
sexos ou separam as crianças da sociedade adulta, por exemplo,
a escola elementar, devem ser destruídas. Abaixo a escola! (...) E,
se as distinções culturais entre homens e mulheres e entre adul-
tos e crianças forem destruídas, nós não precisaremos mais da
repressão sexual que mantém estas classes diferenciadas, sendo
pela primeira vez possível a liberdade sexual “natural”. Assim, che-
garemos, à
4) liberdade sexual para que todas as mulheres e crianças possam
usar a sua sexualidade como quiserem. Não haverá mais nenhu-
ma razão para não ser assim. (…) Em nossa nova sociedade a
humanidade poderá finalmente voltar à sua sexualidade natural
“polimorfamente diversa”. Serão permitidas e satisfeitas todas as
formas de sexualidade. A mente plenamente sexuada tornar-se
-ia universal9.

Shulamith conseguiu entender que a revolução sexual deveria acontecer,


mas não entendeu como se deveria dar, quais instrumentos poderiam ser utiliza-
dos.
Paralelamente, Kingsley Davis (1908-1997) dava um novo contorno à po-
lítica de controle populacional10, mostrando que não bastava a facilitação dos
instrumentos anticonceptivos e ao aborto, mas era necessário mudar o padrão
mesmo das condutas sociais, a tessitura mesma da sociedade, composta de usos
cristalizados em costumes, que eram positivados em legislações. Sem a alteração
desta estrutura, nenhuma mudança seria realmente eficaz.
Kingsley Davis chegava, por conta própria, àquela psicologia pressuposta
na teoria revolucionária. Com efeito, a revolução se autoprojeta como pretensão 31
de reconstrução de toda a realidade segundo um determinado fim, vislumbrado
pelo agente revolucionário.
Ao mesmo tempo, o movimento comunista passava por um longo proces-
so de revisionismo interno. O marxismo ortodoxo sustentava que a mudança da
estrutura econômica causaria o desaparecimento da superestrutura. Contudo,
esta tese não se verificou. Onde a ditadura do proletariado fora instaurada, conti-
nuava a existir o “freio” ideológico, que permanecia inexpugnável.
Foi então que, em 1923, Karl Korsch (1886-1961) escreveu seu conhecido
artigo Marxismo e filosofia.
Assim como a ação econômica da classe revolucionária não torna supérflua
a ação política, tampouco as ações econômicas e políticas juntas não tornarão
supérfluas a ação espiritual; esta, ao contrário, deve desenvolver-se até o fim, teó-
rica e praticamente, como crítica científica e revolucionária e trabalho de agitação
antes da tomada do poder pelo proletariado, e como trabalho científico de orga-
nização e ditadura ideológica, depois da tomada do poder11.
Em outras palavras, Korsch dizia que a revolução deveria ver pela superes-
trutura, se quisesse ser eficaz, e tornar-se uma superestrutura que mantivesse a
9 Firestone, Sh., La dialectica de los sexos. En defensa de la revolucción feminista, Editorial Kairós,
Barcelona 1976, pp. 258-262.
10 Davis, K., Population policy: will current programs succeed?, “Science” (10.11.1967), pp. 730-739.
11 Korsch, K., Marxismo y filosofía, Editorial Era, México 1971, p. 53.
estrutura econômica dentro dos novos padrões comunistas. Ele não foi entendi-
do, e a IIIa. Internacional o expulsou do Partido.
Louis Althusser (1918-1990) concretizou esta teoria de Korsch em seu arti-
go Contradição e sobreterminação (1965), explicando como se dá a interação entre
o nível da estrutura e o da superestrutura para que se possa eclodir a revolução.
Para ele, não basta a revolução operária, pois esta não consegue detonar a contra-
dição em nível de sociedade se os demais níveis desta não estiverem em sintonia
com ela; pois isso, elas precisam ser sobredeterminadas.
Quando nesta situação entra em jogo, no mesmo jogo, uma prodigiosa
acumulação de “contradições”, das quais algumas são profundamente heterogê-
neas, e nem todas têm a mesma origem, nem o mesmo sentido, nem o mesmo
nível e lugar de aplicação, e que entretanto se fundem numa unidade de ruptura,
já não se pode falar mais de uma única virtude simples da “contradição”. (…) Não
se pode pretender com todo o rigor que estas “contradições” e a sua “fusão” sejam
seu puro fenômeno. (…) Constituindo esta unidade, constituem e levam a cabo a
32 unidade fundamental que as anima, mas, fazendo-o, indicam também a natureza
desta unidade: que esta “contradição” é inseparável da estrutura do corpo social
todo inteiro, no qual ela atua, inseparável das condições formais de sua existência
e das instâncias mesmas que governa; que ela é a primeira afetada, no mais pro-
fundo do seu ser, por estas instâncias, determinante mas também determinada
por um só e mesmo movimento, e determinada pelos diversos níveis e as diversas
instâncias da formação social que ela anima; poderíamos dizer: sobredeterminada
em seu princípio12.
Mas é num seu ensaio posterior, Aparelhos ideológicos do Estado (1970), no
qual apresenta o arcabouço adequado para o justo balizamento de como se deve
realizar a sobreposição das contradições.
Nós designamos por Aparelhos Ideológicos do Estado (AIE) um certo nú-
mero de realidades que se apresentam ao observador imediato sob a forma de
instituições distintas e especializadas. (…) AIE religioso, AIE escolar, AIE familiar,
AIE jurídico, AIE político, AIE sindical. (…) Os AIE funcionam de forma massiva-
mente prevalente à ideologia, mas tudo para o funcionamento secundário da re-
pressão13.

12 Althusser, L., Contradicción y sobredeterminación in Idem, La revolución teórica de Marx, Siglo


veintuno editores, México 1967, pp. 80-81.
13 Idem, Les appareils ideologiques d’Etat in Idem, Idéologie et appareils idéologiques d’Etat. Notes pour
une recherche, Édition életronique, Les classiques des sciences sociales, Québec 2008, pp. 21-23.
Resumidamente, estes AIE correspondem às estruturas ideológicas que
dão sustentação ao Aparelho Repressivo de Estado. Para Althusser, todos estes
aparatos, sobretudo a escola, precisam gerar o homem revolucionário, que fará a
revolução do Aparelho Repressivo de Estado. Trata-se da reconstrução de toda a
sociedade pelo seu anterior aniquilamento.
Na sequência, Jacques Derrida (1930-2004) formulou o desconstrucionis-
mo. Partindo da linguística de Ferdinand de Saussure (1857-1913), concebeu a
ideia de que a história está fundamentada em discursos passíveis de serem de-
compostos e, no fundo, subjaz a eles apenas a “vontade de poder”.
Por fim, Michael Foucault (1926-1984) reduziu as instituições a discursos.
Em sua conferência A Ordem do Discurso (1970) , ele afirma:
Creio que essa vontade de verdade assim apoiada sobre um suporte e uma
distribuição institucional tende a exercer sobre os outros discursos – estou sem-
pre falando de nossa sociedade – uma espécie de pressão e como que um poder
de coerção. (…) Se o discurso verdadeiro não é mais, com efeito, desde os gregos,
aquele que responde ao desejo ou aquele que responde ao poder, na vontade de
33
verdade, na vontade de dizer este discurso verdadeiro, o que está em jogo, senão
o desejo de poder?14
Deste modo, o grande revisionismo marxista foi se dando conta que, se-
gundo sua linguagem, as estruturas sociais são pura ideologia, e sua subversão
pode se dar eficazmente somente através de uma manipulação da linguagem.
No mesmo período, um médico neozelandês, Dr. John Money (1921-2006),
professor da Universidade de Johns Hopkins, Baltimore, EUA, psicólogo, sexólogo
e pesquisador especializado em identidade sexual excogitava sua teoria segundo
a qual as identidades sexuais são construções convencionadas a partir da biologia
dos corpos, mas não necessárias. Foi o Dr. Money que inventou o termo gênero
com o significado utilizado pelos ideólogos, uma identidade arbitrária relativa-
mente ao corpo com o qual o indivíduo nasceu.
Foi em 1965 que Dr. Money realizou sua conhecida “experiência”. Um casal
teve gêmeos univitelinos, homens. Quando foram circuncidar um deles, o médico
usou uma agulha de eletrocauterização, e acabou por destruir o órgão genital de
Brien. O casal procurou-o e ele lhe fez uma cirurgia de mudança de sexo e pediu
que seus pais nunca lhe contassem o ocorrido, o criassem como menina e lhe
chamassem de Brenda.

14 Foucault, M., A Ordem do discurso. Aula inaugural do Collège de France, pronunciada em 2 de


dezembro de 1970, Loyola, São Paulo 1999, pp. 18-20.
Anos depois, quando o caso tinha sido já “esquecido”, um médico chamado
Dr. Milton quis conferir a situação15. Descobriu que “Brenda” se rebelava contra as
roupas femininas desde os dois anos de idade, mas sempre teve comportamento
visivelmente masculino. A mãe tentou suicidar-se várias vezes, tornou-se depres-
siva e morreu. O pai contou-lhe toda a verdade aos 14 anos de idade e, depois
de inúmeras cirurgias, reverteu a situação, passou a viver como homem, trocou o
nome para David e casou-se. Brien tentou suicidar-se aos 20 anos, teve uma de-
pressão incurável, foi abandonado pela mulher, seu pai tornou-se um alcoólatra,
seu irmão um drogado que terminou por se matar medicamentosamente, e ele,
por fim, aos 38 anos, em 2003, matou-se com um tiro no peito. Este foi o “lindo”
experimento de Dr. Money.
Entretanto, ele se tornou famoso e sua herança tinha ficado à posteridade.
Ele era o pai da terminologia “gênero” dissociada da “identidade sexual biológica”.
Sendo assim, visando o ideal revolucionário de dissolução e reconstrução
da sociedade, 1) as feministas tinham entendido o que se deve fazer: a revolução
34 sexual é a única maneira de se chegar à desconstrução da desigualdade; 2) os de-
mógrafos sociólogos entenderam qual deveria ser o nível da transformação: uma
alteração no próprio comportamento dos indivíduos, nos usos e costumes da
sociedade; 3) os marxistas perceberam como isso seria possível: mediante a des-
construção dos discursos, base ideológica das instituições da sociedade, de modo
que se precisava de um aparato verbal adequado; 4) e Dr. Money lhes deu aquilo
que queriam, o instrumento dessa desconstrução: a terminologia de gênero.
IV. Um projeto político
Faltava quem se desse ao trabalho de “juntar as peças” e realizar a síntese
que colocaria todos estes elementos em ordem para a obtenção do resultado re-
volucionário.
Judith Butler (1956) foi a responsável pela articulação do conceito de “gê-
nero”, segundo a formulação de Money, contextualizado-o num projeto político.
Mais do que qualquer coisa que possa eu dizer, ouçamos o que ela mesma tem a
nos falar:
Durante a maior parte do tempo a teoria feminista supôs que haveria uma
identidade existente, entendida através da categoria da mulher, que não ape-
nas inicia os interesses e os objetivos feministas no discurso, mas que também
constitui o sujeito para o qual se constrói a representação política. Para a teoria
feminista, o desenvolvimento de uma linguagem que plena ou adequadamente
15 Colapinto, J., As Nature Made Him: The Boy Who Was Raised as a Gir, HarperCollins, 2000.
representa as mulheres pareceu necessária para promover a visibilidade política
das mulheres. (…) Recentemente esta concepção da relação entre a teoria femi-
nista e a política foi questionada a partir de dentro do próprio discurso feminista.
O próprio sujeito ‘mulher’ não pode ser mais entendido em termos estáveis ou
permanentes.
O filósofo Michel Foucault mostra que os sistemas jurídicos de poder pro-
duzem os sujeitos que eles em seguida passam a representar. Os sujeitos regra-
dos por estas estruturas são, pelo fato de estarem submetidos a elas, formados,
definidos e reproduzidos segundo as exigências de tais estruturas. (…) A crítica
feminista deveria entender como a categoria ‘mulher’, o sujeito do feminismo, é
produzida e oprimida pelas próprias estruturas de poder através das quais se pro-
cura a sua emancipação.
Além das ficções que fundamentam a noção do sujeito, entretanto, temos
também o problema político que o feminismo encontra ao supor que o termo
“mulher” denota uma identidade comum. A hipótese política segundo a qual
deve haver uma base universal para o feminismo frequentemente acompanha 35
a noção de que deve haver alguma forma singular visível na estrutura universal
ou hegemônica da dominação patriarcal ou masculina. A urgência do feminismo
em estabelecer um status universal para o patriarcado para fortalecer a aparên-
cia representativa dos apelos feministas tem levado a uma ficção universalista da
estrutura da dominação, sustentada para produzir uma experiência comum da
sujeição das mulheres. Embora a denúncia de um patriarcado universal não goze
mais da mesma credibilidade de outrora, a noção de uma concepção comum de
mulher, que é o corolário deste quadro, é de muito mais difícil desconstrução. (…)
Mas talvez o problema seja ainda mais sério. A construção da categoria “mu-
lher” como um sujeito coerente e estável não seria uma reificação de uma relação
de gênero? E esta reificação não seria exatamente o contrário do que pretende o
feminismo? Até que ponto a categoria ‘mulher’ alcança estabilidade e coerência
somente no contexto da matriz heterossexual? Se uma noção estável de gênero
não pode mais provar ser a premissa fundacional da política feminista, talvez seja
desejável um novo tipo de política feminista para contestar as próprias reificações
de gênero e de identidade, uma nova política que fará da construção variável da
identidade não apenas como um pré-requisito metodológico e normativo, mas
também como um objetivo político.
A identidade do sujeito feminista não pode ser o sujeito da política feminis-
ta, se a formação deste sujeito ocorre dentro de um campo de poder que o apri-
siona através da afirmação desta formação. Paradoxalmente, a representação no
feminismo somente poderá fazer sentido se o sujeito ‘mulher’ não for assumido
de nenhum modo16.
A Fundação Ford começou a financiar, em 1972, o “Women’s Studies”, dedi-
cado aos estudos políticos pela emancipação da mulher. Em 1990, acoplou sim-
plesmente a palavra “gênero” ao seu nome: “Women’s and Gender Studies”.
Em 1995, a Conferência de Pequim introduziu, de modo ainda muito bran-
do e discreto a terminologia de “gênero”.
Judith Butler encontrava-se no comitê de diretores da Comissão Internacio-
nal de Direitos Humanos dos Gays e Lésbicas. Seu pensamento tinha conseguido
criar influência, a tal ponto que Peter Beckman e Francine D’Amico chegaram a
escrever:
A concepção de gênero como poder nos permite dar um passo além: suge-
rir que toda a nossa forma de pensar e falar sobre as pessoas se baseia no poder.
Os termos “mulher” e “homem” são um reflexo deste poder. Etiquetar as pessoas
36 como “mulheres” (ou “homens”) é o exercício do poder, porque a etiqueta cria para
os seres humanos um conjunto de expectativas sobre quem são, quem não são e
quais sãos as opções disponíveis para eles. O gênero como poder argumenta que
a mulher e o homem se fazem, não nascem. São criados por estas etiquetas – eti-
quetas que abrem algumas portas e fecham outras. Etiquetar cria um ser fictício...
e perpetua as desigualdades porque os humanos que carregam uma etiqueta
têm mais direitos e privilégios do que os que levam outra etiqueta17.
Conforme o testemunho de Dale O’Leary, a Conferência de Pequim termi-
nou por permitir, não sem uma certa perplexidade e explicitando que entendia o
termo gênero em seu sentido ordinário, duas recorrências desta palavra. Os pro-
motores desta agenda se sentiram vitoriosos com a indefinição, pois tinham con-
seguido introduzir este conceito de “gêneros construídos socialmente” de forma
bastante discreta.
O parágrado 50 (48) se refere à “rigidez dos papéis de gênero atribuídos
à sociedade”. O parágrafo 28 (27) diz, em parte: “Os limites da divisão de gênero
do trabalho entre os papeis produtivos e reprodutivos estão se cruzando gradu-
almente, enquanto a mulher começou a entrar nas áreas de trabalho anterior-
mente dominadas pelos homens e os homens começaram a aceitar maiores res-
ponsabilidades nas tarefas domésticas, incluindo o cuidado dos filhos. Entretanto,
as mudanças nos papeis da mulher foram maiores e muito mais rápidas que as
16 Butler, J., El género en disputa. El feminismo y la subversión de la identidade, Barcelona, Paidea
2007, pp. 45-53.
17 Beckman, P & D’Amico, F., Women, Gender, and World Politics, Bergin & Garvey, Westport 1994, p. 7.
mudanças nos papeis do homem. Em muitos países, as diferenças entre as con-
quistas e as atividades da mulher e do homem não se reconhecem ainda como
consequências dos papeis de gênero construídos socialmente, além do que pelas
diferenças biológicas imutáveis”18.
Neste ínterim, financiaram centenas de entidades ocupadas na aplicação
de um novo conceito de gênero. Encubado em Pequim, foi explicitado somente
dez anos depois.
Em novembro de 2006, em Yogyakarta, Indonésia, foi realizada uma con-
ferência organizada por uma coalizão de organismos internacionais coordenada
pela Comissão Internacional de Juristas e o Serviço Internacional de Direitos Hu-
manos. Tal reunião, que contou com especialistas de 29 países, teve o objetivo
de sacralizar as premissas anteriores num projeto politico mediante a concepção
de ações que visam implantar nas legislações de todo o mundo a ideologia de
gênero.
Entendendo “identidade de gênero” como estando referida à experiência
interna, individual e profundamente sentida que cada pessoa tem em relação
37
ao gênero, que pode, ou não, corresponder ao sexo atribuído no nascimento,
incluindo-se aí o sentimento pessoal do corpo (que pode envolver, por livre esco-
lha, modificação da aparência ou função corporal por meios médicos, cirúrgicos
ou outros) e outras expressões de gênero, inclusive o modo de vestir-se, o modo
de falar e maneirismos19.
Como consequência disso, afirma o documento “Princípios de Yogyakarta”:
Todos os Estados deverão tomar todas as medidas legislativas, administrati-
vas e de outros tipos que sejam necessárias para respeitar plenamente e reconhe-
cer legalmente a identidade de gênero autodefinida por cada pessoa20.
Deste modo, põe-se em nível programático aquilo que está teoricamente
muito bem formulado por Judith Butler.
VI. Uma palavra conclusiva
Diante desta genealogia da ideologia de gênero, fica evidente a pretensão
de se dissolver a família como a conhecemos mediante a desconstrução intencio-
nal de seus papeis fundantes.
Ao longo dos séculos, a instituição familiar se foi construindo espontane-
amente, entre luzes e sombras, erros e acertos. Nenhuma autoridade humana
18 O’Leary, D., Agenda de género, Edición eletrónica, pp. 89-90.
19 Princípios de Yogyakarta, Preâmbulo.
20 Princípios de Yogyakarta, Princípio 3,b.
constituiu os papeis familiares por decreto legislativo. O Estado não cria a família,
mas a pressupõe, e a deve defender por sua função insubstituível: a família é o
lugar da humanização, por excelência.
Ninguém é gerado pelo Estado, nem pode ser realmente amado por um
ente jurídico. Quando nascemos, salvo experiência dolorosamente excepcional,
fomos acalentados por um cuidado materno e por um zelo paterno, aprendemos
no seio de nossa parentela os valores que nos permitiram construir uma perso-
nalidade equilibrada e uma moralidade transparente, e sobretudo nos fizeram
aprender a viver em sociedade.
O homem não cai no universo lançado ao esmo. Antes de pensar por si
mesmo é amado por outros, porque gerado por eles.
A sociedade doméstica é o viveiro dos bons cidadãos, a cimeira onde se
cultivam as virtudes daqueles que podem incrementar verdadeiramente a nossa
nação. A ideologia de gênero, destruindo a identidade, destrói consigo a possibi-
lidade de que exista família.
38
Estamos apenas defendendo nosso direito de existir, de educar, o direito de
continuar a aventura de ser, sem manipulações, sem o engenho de quem se erige
usurpadoramente em detentor dos destinos da humanidade.
Artigos
A IDEOLOGIA DE GÊNERO E
SUAS CONSEQUÊNCIAS PARA A
SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA
GENDER IDEOLOGY AND ITS CONSEQUENCES FOR
CONTEMPORARY SOCIETY

Gilberto Aurélio Bordini *


39
RESUMO: O artigo tem a intenção de apresentar é a ideologia de gênero, partindo dos movimentos
feministas que influenciaram o pensamento do século XIX e XX e que se ramificaram a partir de
Simone de Beauvoir e sua estrutura nos dias de hoje. Passa pelo processo de desconstrução e de
negação das convenções e da sociedade patriarcal, afirmando-se como uma verdadeira luta de
classes em busca dos direitos a eles devidos. As demais partes deste artigo, tem como objetivo
apresentar os equívocos apresentados pela ideologia de gênero e as saídas propostas pela
filosofia e pela teologia para uma melhor compreensão e emissão de um juízo crítico.

PALAVRAS CHAVE: Feminismo, gênero, ideologia, natureza humana, lei natural.

SUMMARY: This article intend sto present the gender ideology, base don the feminist movements
that influenced the thinkin gofthenine teen thand twentieth century and branched from Simone
de Beauvoir and structure the sedays. Go through the process deconstruction and denial of
convention sand patriarchal society, asserting as a struggle of classes in search of the rights due
to them. The remain der of this paper, aimsto present themis conceptions presented by gender
ideology and the proposals by philosophy and theology to betterunder standan dissueof critical
judgment.

KEY WORDS: Feminism, genre, ideology, human nature, natural law

* Gilberto Aurélio Bordini é presbítero da arquidiocese de Curitiba, é graduado em filosofia e teologia. Tem
Especialização Lato senso em Ética pela Universidade Federal Do Paraná - UFPR (1989 - 1990), Graduação em
Teologia pela Universidade Lateranense de Roma, Mestrado em Teologia Moral Pontificia Universitá Della
Santa Croce (17/06/2008). Doutorado em Teologia pela Pontificia Universitá Della Santa Croce (31/03/2011).
Atualmente é professor de Teologia Moral (Teologia Moral Fundamental e Moral Social) da Faculdade
Claretiana de Teologia de Curitiba. Professor de Teologia Fundamental, Teologia Moral e Teologia Dogmática
da Escola Diaconal São Felipe da Arquidiocese de Curitiba,.Professor de Ética Filosófica e Teodiceia do Centro
Universitário Campos De Andrade - UNIANDRADE
I - Introdução
Quando pensamos na temática da Ideologia de gênero vem à memória
uma história da mitologia grega, mais precisamente o mito da “cama de Procusto”.
Procrusto era um bandido que vivia na serra de Elêusis. Em sua casa, ele tinha
uma cama de ferro, que tinha seu exato tamanho, para a qual convidava todos os
viajantes a se deitarem. Se a vítima era maior que a cama,ele cortava as pernas, se
a vítima era menor, ele a esticava para ajustar ao tamanho da cama.
Esta história pode ser uma metáfora a um pensamento em evidência por
representar a cegueira de conhecimento ou mesmo, a intolerância a uma con-
venção já estabelecida na sociedade, por desejar que todas as pessoas pensem
da mesma forma sobre uma determinada ideia que é imposta por um grupo que
exige uma aceitação imediata a ela com o pretexto de, as pessoas que não a acei-
tarem, estejam sujeitas a punições ou mesmo “perder as pernas”.
A sociedade contemporânea, movida por muitas ideologias, impõe catego-
rias novas de pensar em nome de um progresso que todo ser humano deve pas-
40 sar para viver a nova realidade. Considera-se aqui o caso da ideologia de gênero
que, atualmente procura colocar em relevo a palavra gênero a fim de impor uma
forma de pensar das pessoas sobre o que seja homem e mulher, indo em sentido
contrário à ordem já estabelecida por Deus, dentro de uma lei eterna e natural.
Em primeiro lugar é necessário esclarecer os muitos significados da palavra
gênero. Na gramática da Língua portuguesa, a palavra gênero indica aspectos
que permite classificar certas classes gramaticais, como substantivos, verbos, ad-
jetivos etc., em um número fixo de categorias. Indica também, a flexão pela qual
se exprime o sexo real ou imaginário dos seres.
Na biologia, gênero designa um grupo morfológico intermediário entre a
família e a espécie, como por exemplo, o nome científico do cachorro doméstico
é Canis familiaris. A palavra Canis indica o gênero ao qual pertencem outras espé-
cies como o lobo, por exemplo. Nos seres humanos, o sexo é determinado pelo
sistema XY. Nesse sistema, as fêmeas possuem o cariótipo XX, ou seja, apresentam
o cromossomo X em dose dupla, e os machos apresentam os cromossomos XY.
Não sendo, portanto, fruto de uma convenção que se achou necessária que fosse
assim, mas que está ligado a todo um conjunto que funciona dentro de um siste-
ma harmônico, criado por Deus.
A ideologia de gênero propõe uma mudança na nessa convenção impondo
uma nova ordem que alteraria o conceito e a determinação do que seria o homem
e a mulher, justificando essa mudança pela influência do ambiente, dos meios e
por uma convicção pessoal e cultural.
Chamaremos ideologia, esta teoria, por entender que ela está impondo pa-
drões de comportamento à sociedade como um todo. Comportamentos esses
que se identificam com situações isoladas e individuais de pessoas que não se
aceitam ou protestam contra a própria natureza na qual nasceram. Dessa forma,
eles impõem outro tipo de comportamento à qual deixaria às convenções de
lado, apresentando que uma exceção pode se transformar em uma regra, a partir
da criação de leis que justifiquem tal conduta que representa uma minoria, não
levando em conta a própria natureza da qual todos os seres vivos, inclusive o ser
humano, estão sujeitos.
O presente artigo, portanto, tem a intenção de esclarecer alguns pontos da
ideologia de gênero tão impregnada na cultura contemporânea, a partir de um
esboço histórico proposto pelo professor Mariano Fazio1 que apresenta a origem
desta ideologia, baseado na perspectiva dos movimentos feministas ao longo da
história que originará a discussão sobre a questão do gênero. Pretende também
propor esclarecimentos e algumas respostas em relação à ideologia de gênero a
partir do que é negado por esta, levando em conta a criação do universo e do ser 41
humano a partir da visão criacionista, através da lei eterna e da lei natural, e pela
teoria da paridade baseado nas ideias de Marguerite Peeters2, concluindo com os
aspectos que envolve a dignidade da pessoa humana e da ideia da complemen-
tariedade entre o homem e a mulher.

II - Esboço histórico da ideologia de gênero

Para compreendermos a situação atual que passam as diversas sociedades


em relação à ideologia de gênero, é preciso buscar esta compreensão a partir de
sua origem que está diretamente ligada as correntes feministas que apareceram
ao longo da história entre o século XIX e o século XX.

A proposta deste movimento esta ligada a dissociação entre a sexualidade


e a procriação, formando a base da revolução sexual com implicações sociais e
contraceptivas e também uma mudança sócio política que inverteria os valores e
os privilégios do homem e a subordinação da mulher.

1 Sacerdote Argentino, foi professor de filosofia na Universidade da Santa Cruz em Roma.


Apresenta a ideologia de gênero em sua obra: História de lasideas contemporâneas. Uma
lecturadel processo de secularizacion, EdicionesRialp, S.A., Madrid, 2012.
2 Consultora do Pontifico Conselho da Cultura.
O feminismo tem uma origem ideológica ilustrada na defesa de uma igual-
dade de direitos e uma visão progressista da história, vinculados ao socialismo
utópico, que prega a ideia de que para libertar a sociedade era preciso destruir a
família e instaurar o amor livre. O feminismo liberal, inspirado em algumas obras
de John Stuart Mill que pregava uma autonomia pessoal, profissional, político
esocial, está diretamente ligado a movimentos culturais que tem sua origem já no
séc. XIX e se estende ao séc. XX, propondo uma revolução cultural para quebrar
com os movimentos hierárquicos e patriarcais que dominavam as culturas. Prega-
va, ainda, uma revolução sexual, na qual a sexualidade estava ligada à própria li-
berdade, tornando sinônimos, como podemos ver já na primeira guerra mundial,
onde muitas mulheres vieram a ocupar lugares que eram reservados aos homens.
Algumas linhas do feminismo são influenciadas pelas ideias da psicologia
freudiana, os movimentos culturais como a Escola de Frankfurt, a revolução cul-
tural de Paris em maio de 1968 que tinha o caráter de revolução não somente
política e cultural, mas também contrária às convenções padrões que achavam
42 imposições da sociedade. Outro movimento de caráter revolucionário foi o mo-
vimento “Hippie”, comportamento coletivo de contracultura dos anos 1960, que
pregava uma sociedade alternativa, na qual a sexualidade era movida pelo ins-
tinto e a busca desordenada pelo prazer, assim como as drogas, que se pregava a
sua liberação.
Neste ambiente de revolução, surge o pensamento de Simone de Beauvoir,
que propõem romper as cadeias biológicas que oprimem as mulheres: a rejeição
a maternidade por meio do controle da natalidade e pelo uso de métodos contra-
ceptivos, a liberação do aborto e a libertação de sua alienação.
Beauvoir vai mais longe em sua teoria, tendo sido influenciada pelo seu
companheiro, Sartre, usando argumentos existencialistas para justificar suas teo-
rias, partindo do princípio da precedência da existência sobre a essência, negan-
do assim a interioridade, a composição interna de uma pessoa que passava a ser
marcada somente pela sua existência, à qual era livre para querer e fazer o que
desejasse, negando assim a existência de uma feminilidade natural e sublinhando
os condicionamentos sociais sobre a identidade sexual, originando sua famosa
expressão: “que não se nasce mulher, mas que se faz mulher”.
O feminismo proclamado por Simone de Beauvoir se transforma em uma
antropologia reducionista, dando origem ao feminismo radical que apresenta
como característica a centralidade na sexualidade considerada como fonte de
opressão para a mulher, se transformando em um tipo de feminismo mais influen-
te da cultura atual fazendo surgir nomes como Sulamith Firestone e Kate Miller. A
primeira autora, uma feminista canadense, centrava seus estudos na procura da
raiz da opressão, encontrada na maternidade, partindo de uma concepção mar-
xista da luta de classes entre os sexos a partir da lei e da história e a destruição das
estruturas de poder criadas pela natureza e pelos homens. Já a segunda autora,
considera que o objetivo da luta feminina deve ser a destruição do patriarcado
que consolidou os padrões sociais de estruturas sociais, econômicas e culturais
que colocaram o homem em uma posição privilegiada, trazendo consigo a des-
truição de instituições, como a família e a Igreja, com a pretensão de legalizar o
matrimônio de pessoas do mesmo sexo.
A partir deste feminismo radical surgem outros feminismos centrados em
aspectos mais objetivos como respostas a outros segmentos da sociedade, como
é o caso do feminismo psíquico-analítico, que sustenta a ideia que as raízes da
opressão da mulher está em sua psiché, aparecendo a figura de Nancy Chodorov,
que prega uma equiparação dos papéis do homem e da mulher na sociedade.
Outros expoentes desta corrente consideram que a principal forma de resistência
contra as consequências do complexo de Édipo, é a independência erótica femi- 43
nina que leva a homossexualidade.
Outra versão do feminismo radical é o feminismo marxista socialista que
apresenta duas fontes de opressão, a classe social e o sexo, onde a derrota do ca-
pitalismo trará a igualdade dos sexos. A defensora desta ideia é Juliet Mitchell que
afirma que esta revolução tem que alcançar a derrota dos homens.
Aparece também o feminismo liberal-reformador, que trabalha dentro das
instituições querendo uma reforma jurídica que elimine as descriminações, Seu
expoente é a americana Betty Friedan, onde propõem a diferença entre o feminis-
mo liberal e o feminismo radical, sendo que o primeiro define os desafios da mu-
lher como uma superação da desigualdade, enquanto o radical se refere a uma
exploração e uma opressão.
Por fim, se apresenta o feminismo ligadoa teologia como é o caso do fe-
minismo teológico, principalmente em um ambiente protestante, proclamando
o sacerdócio feminino, à qual pretende depurar a tradição bíblica dos elemen-
tos machistas, transformando esta tradição em uma visão feminina, criando uma
nova religião feminina, a religião de uma “deusa”.
Descendente do feminismo radical, a ideologia de gênero distingue entre
as diferenças sexuais biológicas, relativa ao sexo, e os papeis que a sociedade atri-
bui aos homens e as mulheres, relativo ao gênero, que mudaria as funções femi-
ninas tradicionais, como a maternidade que se apresenta como uma construção
cultural e não algo natural, para propor como objetivo uma desconstrução das
convenções tradicionais, como família, maternidade, procriação, heterossexuali-
dade, que não seria somente um problema de linguagem ou de semântica, mas
que perderia as referências naturais, inerentes ao ser humano, para reconstruir
conceitos a partir de um produto cultural representado por uma reestruturação
dos valores, propondo uma equiparação entre os matrimônios, aparecendo o ca-
samento homossexual e as famílias alternativas, como o matrimônio heterossexu-
al aberto à procriação.
Dentro desta desconstrução, a ideologia de gênero nega a natureza na qual
nascemos, e separa o ser humano entre o corporal, aspecto biológico, e o psíqui-
co, construído socialmente em torno da sexualidade, mostrando que o gênero
seria o sexo construído socialmente, passando a ser mais importante que a natu-
reza, sendo este gênero a nova construção social e cultural da própria sexualida-
de, onde as normas e as expectativas sociais sobre o papel, atributos e condutas
do homem e da mulher, são determinados pelo gênero.
Outro argumento utilizado pela ideologia de gênero é a mudança ou uma
44 redefinição do conceito de pessoa, que não seria mais um daqueles proposto pela
filosofia3, mas um conceito que permitiria a mulher competir com o homem, le-
vando não só a uma igualdade mas também uma luta pelo poder que geraria
uma homogeneidade absoluta.
A ideologia de gênero influenciada por algumas correntes marxistas, nega
a existência da natureza humana, negando as consequências que esta apresen-
ta, com um sentido normativo que a rege e a organiza, para fundamentá-la no
gênero, onde o ser humano decide sua natureza, se tornando autor das próprias
normas e ações.
Aqui se revela o ponto central de discussão que a ideologia de gênero pro-
cura impor e argumentar, que é sobre o problema do inato e do adquirido, o que
provem da natureza e o que provem da cultura, onde ela nega qualquer possibi-
lidade da existência do inato e natural, mas defendendo o adquirido como fruto
de uma construção cultural.
A partir dos anos 90 a teoria de gênero assume uma postura mais extre-
ma com a teoria queer, onde para este grupo o gênero é performativo, ou seja,
são os próprios atos que determinam a identidade sexual, que muda segundo
as ações que realizam. É uma teoria sobre o gênero que afirma que a orientação
sexual e a identidade sexual ou de gênero dos indivíduos são o resultado de
umavconstrução social e que, portanto, não existe papel sexual essencial ou

3 Como a definição de Boécio, onde pessoa é: substância individual de natureza racional (III.ª, q.
2, a. 2; I Sent., dist. XXV, a. 1; De Pot., q. 9, a. 2; De unione Verbi, a. 1).
biologicamente inscrito na natureza humana, antes, formas socialmente variá-
veis de desempenhar um ou vários papéis sexuais. Se trata de lutar por um desa-
parecimento total das diferença sexual.
A ideologia de gênero atinge seu auge de extremo radicalismo com a teoria
do ciborgue. Que se caracteriza em tentar apagar as diferenças entre o humano e
o animal e entre o humano e a máquina. Esta teoria é defendida por Danna Hara-
wai e por Guacira Lopez Louro.
As consequências que se pode tirar do feminismo radical e da ideologia de
gênero é que pretendem a eliminação da natureza humana como foi concebida;
que o sexo é unicamente para o prazer e que as relações sexuais seriam polifor-
mes e livres, nascendo uma sociedade com menos pessoas, com mais prazer se-
xual. A igualdade entre homens e mulheres e consequentemente a eliminação da
figura da “mãe” em tempo integral4.
Desta maneira, vimos como a ideologia de gênero se tranforma em uma
ideologia e se estrutura no feminismo radical. Passamos agora a uma tentativa de
resposta aos que defendem esta ideologia, partindo de conceitos negados por
45
ela e reafirmando conceitos que estão na propria natureza humana.

III - O Processo de desconstrução da Ideologia de gênero

Primeiramente partimos do ponto em que a ideologia de gênero nega ou


é indiferente à ideia de que a criação é vinda de Deus; procura excluir Deus como
criador do universo e de todas as coisas para centrar o poder de criação no pró-
prio homem, como centro desta criação.
Já Aristoteles, no II livro da Metafísica, fala da existência de um motor imó-
vel, não criado por ninguêm, mas que existiu desde sempre e que deu o primeiro
impulso para que tudo existisse. Eliminariamos de começo que o homem não
poderia ter criado o mundo e o universo porque não é um ser perfeito, imutável
e infinito.
No primeiro versículo do livro do Gênese, já se explicita que “Deus no prin-
cípio criou os céus e a terra”, e que mais adiante, no sexto dia criou o homem e a
mulher a sua imagem e semelhança para que povoassem a terra.

4 Cf. FAZIO, Mariano, História de lasideas contemporâneas. Uma lecturadel processo de


secularización, EdicioneRialp, Madrid 2012, pp. 354-367.
Santo Tomás prova a existência de Deus através das cinco vias, mostrando
que a criação existe por causa de um ser superior infinito e perfeito. Podemos
dizer então que Deus criou o mundo para que pudessem habitar as criaturas que
criou, comos os animais, as aves e o homem, sendo que este, dotado de razão,
participa da transcendência de Deus que se revela5.
Ao criar o universo Deus estabelece uma organização que se encontra na
chamada lei eterna que ordena e organiza a criação. No pensamento greco-ro-
mano existia já uma importante reflexão sobre a lei eterna, particularmente nos
estóicos que a adequava sobre a ordem cósmica.
Santo Agostinho, servindo-se da definição de Cícero, define a lei eterna
como “a razão ou a vontade de Deus que manda observar a ordem natural e proí-
be perturbá-la (Conta Faustum, 22, 27).
A lei eterna trabalha com a consideração do universal desígnio salvífico de
Deus como lei eterna que constitui a chave do pensamento cristão. Ela tem um
ciclo ordenado por Deus. É eterna porque não muda e ordena de um modo per-
46 feito as coisas criadas. Partindo de Ef. 1, 4-5, pode ser chamada de lei eterna uma
“ordem”, ou plano, segundo a qual a sabedoria divina criou o universo e governa
com excelência todas as coisas (Sab. 8,1).
Para Santo Tomás a lei eterna não é só o plano da criação, mas também, o
plano que vem atuado da providência divina. Define lei eterna como a razão da
divina sabedoria que move tudo ao fim devido (I-II, q. 93, a. 1).
O Concílio Vaticano II fala de uma norma suprema da vida humana, objeti-
va e universal, por meio da qual Deus, com um desígnio de sabedoria e de amor,
ordena, dirige e governa todo o mundo e os caminhos da comunidade humana
(Dignitatis humanae, n. 3; Veritatis Splendor, n. 43).
Evidentemente quando se nega a lei eterna, a potência de Deus em criar o
universo e o homem, automaticamente se nega a existência dele.
Se partimos da existência da lei eterna que organiza a criação e a cobre de
uma transcendência, esta lei vai dar origem a outra lei que não é escrita e que foi
colocada no coração do homem a qual este não pode mudar, que é a lei natural,
que organiza as inclinações naturais à qual todo ser humano possui, como por
exemplo, a inclinação natural a sobrevivência, a vida em sociedade, a liberdade e
a procriação.

5 MENESES, Pedro U, L., No princípio Deus criou, Iniciação a teologia da Criação, Diel, Lisboa 2009,
p. 14.
A lei natural é colocada em cheque pela ideologia de gênero que substitui
o centro do universo, a qual foi colocada por Deus, pelo próprio homem que se
torna o centro de suas ações e de seu querer, podendo fazer o que desejar sem se
preocupar com uma lei moral.
É através da lei natural que o homem participa da lei eterna, sendo que esta
lei natural consiste na “luz da inteligência infusa em nós por Deus. Graças a esta
conhecemos o que se deve fazer e o que se deve evitar. Esta luz, esta lei, Deus a
deu na criação” (VS. n. 40). Esta consiste na luz da inteligência infusa em nós por
Deus. Graças a isto, conhecemos o que se deve cumprir e o que se deve evitar. Esta
luz, esta lei, foi nos dada na criação.
A lei natural apresenta duas características: a universalidade e a imutabili-
dade: São duas propriedades onde a primeira, em seus preceitos e sua autoridade
se estende a todos os homens (Catecismo. n. 1956). Tal universalidade encontra
seu fundamento, na substancial unidade da razão humana e da sua participação
na lei eterna.
A lei natural pode requerer uma adaptação à multiplicidade das condições
47
de vida, segundo os lugares, a época e as circunstâncias. Todavia, na diversidade
das culturas, a lei natural fica como uma regra que liga os homens entre eles e lhes
impõem, além deles inevitáveis diferenças, princípios comuns.
É também imutável no sentido que permanece inalterada através da
história, permanece sobre o envolver-se das ideias e dos costumes, suportando
um progresso muitas vezes desordenados.A imutabilidade dos princípios morais
fundamentais, não se opõem ao progresso histórico da consciência moral do ho-
mem, que adquire uma mais forte sensibilidade no confronto de certos valores.
Para entendermos melhor o que seria esta lei natural partimos de um exem-
plo que esta na própria filosofia grega, no mito de Antígona, escrito por Sófocles,
que conta que os dois filhos de Édipo, o rei, Eteócles e Polinice, que lutavam em la-
dos opostos, acabam um matando o outro. O rei Cleontes tinha decretado que os
seus inimigos não deveriam receber uma sepultura e eram deixados para serem
devorados pelos animais. Antígona que era irmã dos dois falecidos, não poderia
deixar que o corpo de Polinice apodrecesse às portas da cidade. Antígona corajo-
samente se opõe ao rei e recorre a uma lei não escrita, como ela mesma diz: “Sim,
porque não foi Júpiter que a promulgou; e a Justiça, a deusa que habita com as
divindades subterrâneas jamais estabeleceu tal decreto entre os humanos; nem
eu creio que teu édito tenha a força bastante para conferir a um mortal o poder
de infringir as leis divinas que nunca foram escritas, mas são irrevogáveis; não
existem a partir de ontem, ou de hoje; são eternas, sim! E ninguém sabe desde
quando vigoram!” (Sófocles, Antígona p. 30). Por sua fidelidade a esta lei não es-
crita, Antígona é condenada pelo rei a ser sepultada viva, e no seu sepulcro ela se
enforca.
Desta forma podemos afirmar que uma lei que não tem como base a lei na-
tural, não obriga o seu cumprimento porque não está escrita no universo; mas o
problema é que quem estabelece as leis cerca de mecanismo punitivo o seu cum-
primento, mesmo ela sendo injusta, porque vemos hoje a lei com um caráter de
segurança: se tem a lei posso agir sem medo e restrições porque ela me protege.
Outro exemplo, que podemos usar para mostrar a existência da lei natural
e sua relação com a lei eterna é uma comparação com um doce italiano chama-
do “Babo de Napoli”, que é uma espécie de um bolinho frito, banhado no licor;
quando se come este doce, precisa tomar cuidado, porque lambuza muito, pois o
licor impregna toda a massa, se torna-se homogênea com ela. Não é um recheio
como num bolo de aniversário, mas o licor impregna a massa, que não tem como
separar, podendo dizer assim, que a lei natural esta impregnada em nós e não
48 conseguimos separá-la de nosso todo humano.
O argumento da lei natural como resposta à teoria de gênero, nos leva a
uma perspectiva em relação à natureza do ser humano, como questiona a ideolo-
gia de gênero: ela é inata, vindo da própria natureza a qual o homem foi criado, ou
é adquirida pelo processo cultural que transformaria esta natureza?
A resposta a ser usada neste caso vem do filósofo e teólogo alemão Robert
Spaemann6, que analisa a questão da natureza, do natural e da segunda natureza
no âmbito filosófico, em relação ao agir do homem, mas que usaremos como ar-
gumento para uma crítica à ideologia de gênero.
Segundo ele, “entende-se que estes conceitos jogam certo papel, lá onde
se trata de exprimir um juízo sobre a eficácia das ações”, e continua, afirmando
que “agir contra a própria natureza é, de qualquer maneira, cansativo, admitindo
que seja possível. E quem não conhece e despreza a lei da natureza, falha certa-
mente nos próprios objetivos”7.
Ele apresenta três teses, que podemos dizer, são usadas pela ideologia de
gênero; a primeira, decorrente de Hume8, diz que para o ser não seja inferida ne-
6 A sua tese principal está fundamentada na personalidade como base da dignidade da pessoa
humana.
7 SPAEMANN, Robert, Cos’è il naturale. Natura, Persona, agire morale, Rosemberg&Sellier, Torino
2012, p. 56.
8 Suas ideias sobre a ética estão concentradas na obra “tratado da natureza humana”, onde
procura fazer um estudo das ações humanas a partir do interior do homem como faz o estudo
de anatomia, sobre o corpo.
nhum dever, e dos dados de fato, não seja inferida nenhuma norma ou prescrição
para agir, mostrando que o agir deve estar desvinculado de leis que determine o
comportamento, onde o ser passa agir sem prescrições morais.
Na segunda tese, que Spaermann chama de “fisicalismo”, contesta a natu-
reza em geral, onde tudo é natural e não tem nada de inatural. Para ele o natural
é o conjunto das leis e das forças do mundo e inatural é sinônimo de impossível,
que vai contra o natural e a natureza, aspecto que é defendido pela ideologia de
gênero que força em afirmar que o gênero como uma opção pessoal, é natural,
E a terceira tese é chamada de cultural antropológica. Ela parte do fato que
o homem é o único ser a não ser por natureza determinado por instintos; o único
ser que, para sobreviver, deve ainda criar-se através da cultura - uma espécie de
segunda natureza - porque a orientação moral, pertence a esta segunda natureza,
dependente da impressão cultural social, que é sempre condicionada ao tempo e
ao lugar e não à própria natureza adquirida na criação9.
Desta maneira fica evidente o processo de desconstrução que sorrateira-
mente propõe a ideologia de gênero em relação à natureza humana. A inten-
49
ção é tornar a criatura humana livre das convenções determinadas pela história,
chegando, por uma suposição, negar como também nega a existência da lei na-
tural, à teoria da evolução, principalmente as teorias de Darwin a partir da seleção
natural, para mostrar que a evolução não se mostra na espécie, mas no gênero.
Curiosamente, quando estava escrevendo este artigo, a folha de São Paulo,
publicou um artigo do colunista Rafael Garcia, intitulado: “Vem aí a nova biologia.
Ou não”, mostrando a pesquisa de dois biólogos, Gerd Muller e Eva Jablonka, que
criaram a “Síntese Evolucionária Estendida” que se caracteriza em um corpo de
conhecimento baseado em fenômenos que ocorreram paralelamente aos des-
critos pela seleção natural de Darwin. Segundo Jablonka: “recorre a fenômenos
como a epigenética –transmissão de características que não requer mudança do
DNA– e à construção de nichos –capacidade de animais de alterarem seu próprio
ambiente e, portanto, modificar as pressões que a seleção natural exerceria sobre
eles mesmos. Também são alvo de estudo da EES o “viés de desenvolvimento” –a
impossibilidade de organismos de adquirirem certas formas enquanto evoluem–
e a plasticidade –capacidade de um indivíduo de adquirir diferentes formas rea-
gindo a seu ambiente”10.

9 Cf., SPAEMANN, Robert, op. cit., pp. 57-58.


10 Folha de são Paulo de 14/10/2014. Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/
ciencia/2014/10/1532105-rafael-garcia-vem-ai-a-nova-biologia-ou-nao.shtml> acesso em
15 dez.2014.
Desta forma vemos que a ideologia de gênero tenta com bases cientificas
justificar suas teorias, como um pressuposto a partir da teoria da desconstrução
de em Jacques Derrida11, que precisa destruir as velhas estruturas e criar novas a
partir de uma nova realidade apresentada pela nova cultura que emerge diferen-
te dos valores convencionais imposto pela sociedade.
A partir desta desconstrução, a ideologia de gênero projeta mudanças em
busca de uma cultura “mundializada”, como afirma Marguerite Peeters, que atinja
a todos e que todos possam passar a pensar de um modo igual, propondo uma
mudança cultural em larga escala, imposta artificialmente, para que as pessoas,
primeiramente, tomem consciência dos problemas que não estão resolvidos ain-
da, com uma carga de informações dadas pela mídia na tentativa de formar a
consciência para esta nova ideia que se apresenta como justa diante dos confli-
tos12.
A ideologia de gênero propõe uma nova ética que vincule, não através de
normas políticas e culturais, mas através de um imperativo ético, vinculado a um
50 discurso e uma norma que a obrigue, sendo que esta ética celebra uma liberdade
de escolha e impõe a sua interpretação como uma livre escolha sem os pressu-
postos morais que a obrigue.
Esta mudança cultural que propõe a ideologia de gênero somente vai ser
realizada a partir de uma imposição que mude a mentalidade e o comportamen-
to, através da propaganda, dos lobbs, ou como a venda de um produto, que fica
vários dias em evidência até que a pessoa decide comprar, ou seja, busca, com
empenho, uma mudança de consciência em que passe a ser normal aceitar algo
em que muitos estão aderindo, a partir de uma formação da consciência em uma
direção errada, utilizando técnicas e estratégias “doces e sedutoras” através da
educação13.
Outro erro que comete a ideologia de gênero é a questão da “paridade”
14
, que já desde o rei Luís XIV e depois com a declaração dos direitos humanos
em 1948, que já declaravam que todos os seres humanos ao nascerem são livres
e iguais em dignidade e em direito. Esta paridade de dignidade e de direito é
reconhecida como um princípio democrático e inalienável, onde a paridade da
dignidade não é autoatribuída como pensam as feministas e os seguidores da

11 Filósofo francês, que iniciou durante os anos 1960 a Desconstrução em filosofia.


12 Cf. PEETERS, Marguerite. Il Gender. Uma questione política e culturale, San Paolo, Milano 2014,
pp. 83-90.
13 Cf. Ibidem, pp. 90-94.
14 Qualidade do que é par; característica do que é igual ou semelhante.Comparação efetuada para
provar que uma coisa pode ser igual ou semelhante a outra.
ideologia de gênero; mas ela é dada, por uma fonte transcendente que não es-
capa da ideia da criação feita por Deus e de sua imagem e semelhança com ele,
voltando à questão da lei natural.
A ideologia de gênero em perseguição a uma autoafirmação de que a pari-
dade não vem de Deus, mas do gênero que se altera pelos meios culturais, propõe
uma revolução cultural onde se faça presente uma paridade dos sexos, de um
caráter imperativo dentro de uma ética governamental de caráter mundial que
caracterize o motor da desconstrução cultural entre homens e mulheres, entre
homossexuais e heterossexuais, família tradicional e as novas famílias, sendo que
estas “conquistas da ideologia de gênero não levam a uma verdadeira diversidade
de pessoas, do seu caráter único e insubstituível e sobretudo da complementa-
riedade entre um homem e uma mulher.
No fundo a ideologia de gênero quer instaurar nas culturas um processo de
negação, onde impere uma imposição política e cultural e uma desconstrução da
verdade, imperando uma mentira sobre o verdadeiro sentido do que significa a
paridade. 51
Dentro deste processo de negação das convenções, a ideologia de gênero
recusa o uso da razão, afirmando de uma maneira arbitraria que tudo é uma cons-
trução social, um mero produto do discurso, uma construção dos fins opressivos,
onde a razão recusa reconhecer isto que é verdadeiro, bom e amável.
Recusa também a consciência, ou seja, a negação da realidade mediante
um discurso que tem como objetivo permitir ao indivíduo de fugir do empenho
pessoal, de colocar em jogo a própria existência, fugindo de si mesmo e das exi-
gências da realidade e do amor, de violar os fins e de explorar identidades sem
essência, ou seja de empenhar a própria consciência na negação.
Por fim, a ideologia de gênero recusa o coração, o amor. Desconstrói as
condições do dom em si, o feminino e o masculino, querendo fazer de todas as
pessoas humanas cidadãos igualitários, atacando a maternidade como se fosse
uma injustiça social, reduzindo a vocação do homem e da mulher às suas funções
sociais, fazendo das relações um contrato e não uma relação que nasce da própria
natureza humana15.
Desta forma, não é difícil imaginar como fica a sociedade com este proces-
so de desconstrução e de negação, na qual o ser humano é tratado como algo
que não tem valor em si e por isso pode ser manipulado pelos estereótipos im-
posto por uma cultura que passa a ser a detentora dos valores que deve modelar
15 Cf. PEETERS, Marguerite, op. Cit., pp. 116-122.
o homem para ele, ir contra as convenções de sua própria natureza, modificando
não somente o nível externo e corporal, mas o interno, a partir de sua consciência.

IV - Um processo de reconstrução

Diante da destruição cultural imposta pela ideologia de gênero, nos com-


pete não somente dar soluções a um problema que se alastra e que aparente-
mente parece não ter solução. Muitas vezes pensamos mais em deixar como
está, ao invés de apresentar alguns caminhos que possam ajudar numa reflexão
contrária; preerimos simplesmente respeitar ou aceitar esta situação que atinge
a muitas pessoas, que ficam em dúvida e não sabem como agir.
Penso que a tática usada por esta ideologia nos chama a atenção por-
que entra justamente pela nossa condição natural, a inclinação natural ao co-
nhecimento e ao aprendizado, que todos nós possuímos e que forma a nossa
52 consciência. Devemos refazer o caminho da educação como eles estão fazendo,
aprovando leis para modificar o currículo escolar para formar a consciência des-
de criança, afirmando os valores contrários. Reafirmando que o que está aconte-
cendo não é normal ou que significaria um progresso da natureza humana; mas,
pelo contrário, significa a degradação da espécie humana. Por isso, diante des-
sas afirmações, recorremos, primeiramente, a um verdadeiro sentido da edu-
cação, uma educação pelas virtudes e pelos valores que levam o ser humano a
responder à dignidade para a qual foi criado.
É preciso nos dias de hoje educar as pessoas a terem um discernimento
em suas vidas, que passa pela inteligência, como o ver, o entender, o saber e o
conhecer, para chegar à vontade; que é o fazer, caracterizando o ato humano
que passa pela razão, pela consciência e pelo coração, e que se caracterizam
ações livres que não passam somente pela verdade, mas também pelo bem e o
amor, entendendo que o ser humano foi criado livre, e somente é capaz de se
desenvolver na liberdade, indo em sentido contrário às configurações impostas
pela cultura normativa da ideologia de gênero que caminha na direção contrá-
ria da dignidade da pessoa humana. Pois, mesmo que aquela tente dominar,
não tem o poder de restringir a consciência das pessoas e dos povos e impedi-
-los de avaliar a realidade que o cerca.
Este discernimento leva a ter uma perspectiva de esperança que nem
tudo esta perdido, um caminho no qual se deseja introduzir uma só regra de
conduta: tomar sempre como ponto de partida e como perspectiva a realidade
e a verdade do que se é: pessoa, homem e mulher, filho/filha de um Pai que
ama, criado do amor em vista do amor, que se torna uma realidade inalienável,
universalmente percebível e indestrutível.
Dentro desta lógica do amor, entre um homem e uma mulher, a identida-
de essencial do amor não separa aqueles que se amam; não cria novas formas
de amor a partir do gênero, porque a identidade insubstituível da pessoa ama-
da é a substância mesma do amor da pessoa que ama e da comunhão inter-
pessoal dos dois; não existe, na perspectiva do gênero, este amor de entrega,
onde a única finalidade é a busca do prazer sexual e não de uma verdadeira
alteridade16.
E por fim, não se poderia deixar de responder às correntes feministas que
defendem a ideologia de gênero que é preciso pensar em uma complementa-
riedade, onde as lutas parecem justas em si mesmas, mas não resultando em
uma tendência de imitação do modelo masculino de vida. A feminilidade pos-
sui valores específicos, como a acolhida, a co-naturalidade em cuidar da outra
pessoa, manifestada em sua abertura à maternidade, não somente no sentido 53
biológico, mas que se faz presente em todos os ambientes da vida social.
Não podemos nos esquecer de um feminismo cristão, que luta a favor
da dignidade da mulher, principalmente a partir do séc. XX e tem figuras como
Edith Stein, Gertrud von Le Fort17 e Haaland Matlary18. Tal feminismo permane-
cendo fiel à tradição de sua religião, que afirma a igual dignidade de mulheres
e homens enquanto filhos de Deus, revolucionou e revolucionará as categorias
culturais machistas da antiguidade e da atualidade19

v - Conclusão

A reflexão sobre a ideologia de gênero é um tema que apresenta muitas


perspectivas de reflexão e de argumentos, porque é um assunto que na atualida-
de está em evidência na história e no pensamento da sociedade.

16 Cf. PEETERS, Marguerite, op. Cit., pp. 123-134.


17 Escritora alemã, morreu em 1971. Entre as suas publicações esta a obra intitulada: “A mulher
eterna”, onde faz uma análise modernista do feminismo, não com argumentos polêmicos, mas
sobre a feminilidade.
18 Cientista política norueguesa, conselheira do pontifício conselho Justiça e paz e do conselho
pontifício para a família.
19 Cf. FAZIO, Mariano, op. cit., pp. 366-367.
Desta forma, a ideologia de gênero:
1- Erra ao proclamar a igualdade biológica entre homem e mulher sem le-
var em consideração a diferença que cada um possui na criação para
desenvolver o papel justo na sociedade.
2- Não se importa que o que está em jogo não são as suas reivindicações,
mas a dignidade que cada ser humano possui ao ser criado por Deus.
3- Não contribui para o progresso do ser humano quando aplica conceitos
equivocados sobre a educação e a pessoa humana.
Os argumentos contrários à ideologia de gênero são:
1- Reafirmar uma educação que ensine a lógica do amor ao outro como
pessoa possuidora de uma dignidade transcendental.
2- A justa luta e as reivindicações dos direitos da mulher onde apareça a
cooperação e a complementariedade mútua entre o homem e a mulher.
54 3- Que o desenvolvimento de uma sociedade se mostra também na exis-
tência do homem e da mulher, da família dentro da perspectiva do amor
entre um homem e uma mulher, e no verdadeiro sentido de uma entre-
ga e de uma doação mútua entre um homem e uma mulher.
Artigos
O PROLONGAMENTO ARTIFICIAL
DA VIDA E A DETERMINAÇÃO DO
EXATO MOMENTO DA MORTE NOS
PRONUNCIAMENTOS DE PIO XII E
JOÃO PAULO II
THE ARTIFICIAL PROLONGATION OF LIFE AND DETERMINING THE EXACT
MOMENT OF DEATH IN THE PRONOUNCEMENTS OF PIUS XII AND JOHN 55
PAUL II
Dr. Pe. Ricardo Hoepers *
RESUMO: A questão do fim – real – da vida humana (tafofobia) é uma questão muito pertinente
para médicos, familiares e para a moral. Desde o início da modernidade, a Igreja também vem se
preocupando do tema, através dos papas, teólogos e em diálogo com os profissionais da saúde. O
presente texto de teologia e história da moral nos remete à contribuição fundamental e incisiva do
Magistério de dois grandes papas: Pio XII e João Paulo II.
Pio XII avocou a si, muitas vezes, questão da vida (bios) e suas repercussões no campo da ética e
da medicina. Demonstrou o grande interesse da Igreja em dialogar com as ciências e refletir sobre
os desafios morais advindos do uso das novas tecnologias. A razão natural e moral cristã juntas são
capazes de assegurar a consciência do direito e do dever em relação à conservação da vida. João
Paulo II tinha consciência de que a Igreja não pode assumir para si uma tomada de decisão científica. É
necessário um contínuo diálogo com a antropologia e a ética garantindo o respeito à vida e à pessoa,
dado que a dignidade nossa, sobretudo na hora da morte, também envolve nosso destino mais
profundo em direção ao Criador.

PALAVRAS CHAVE: Ética, ciência, diálogo, instrumentos artificiais, morte cerebral.

SUMMARY: The question of – real - end of human life (fear of being buried alive) is a very pertinent
theme for doctors, relatives of a dying man and also for the moral. Since the beginning of modernity,
the Church has also been worrying about the topic, through Popes, theologians and in dialogue with
health professionals. . This text brings us to the fundamental contribution and incisive teaching of
two great popes: Pius XII and John Paul II. Pius XII often claimed about the question life (bios) and its
repercussions in the field of ethics and medicine. He demonstrated the great interest of the Church to
dialogue with science and reflect on the moral challenges arising out of the use of new technologies,

* Ricardo Hoepers e Mestre e Doutor em Teologia Moral pela Accademia Alfonsiana de Roma, Instituto
deTeologia Moral da Universidade Lateranense de Roma, Mestre em Educacao pela Pontificia Universidade
Catolicado Parana e Professor e Diretor do Studium Theologicum, Membro do Comite de Etica em Pesquisa
com Seres Humanos do Setor de Ciencias da Saude do Universidade Federal do Parana.
especially employed at the time of death. The natural reason and Christian morals together are able to
ensure the awareness of law and duty in relation to the conservation of life. John Paul II was aware that
the Church cannot take for herself the responsibility of a scientific decision-making. But it is necessary
to have a continuous dialogue with the anthropology and ethics guaranteeing the respect for life and
the person, given that our dignity, especially at current times, also involves our most profound destiny
towards the Creator.

Keywords: ethics, science, dialogue, artificial instruments, brain death.

A tafofobia foi mais acentuada no século XVII e XVIII, embora tenha ainda
seus resquícios no início do século XIX influenciando a prática médica e pastoral.
Podemos encontrar uma verdadeira obra de fisiologia, medicina e teologia escrita
por Padre Ferreres (1881-1936), um sacerdote jesuíta belga que era professor de
Teologia Moral e Direito Canônico na Espanha e, apresentada em 1907 pelo Dr.
Giovanni Battista Geniesse, um médico italiano que fez a tradução, prefácio e no-
56 tas complementares do livro. O título é muito sugestivo: “A Morte real e a morte
aparente em relação aos sacramentos, à frequência das inumações prematuras,
aos meios de reanimar os mortos e para fugir do perigo de ser enterrado vivo”.
No seu primeiro capítulo denota a importância do tratado:

“Uma questão muito prática de extraordinária importância para a


salvação das almas e para a preservação da vida humana, se agita na
atualidade, chamando sobre si a atenção de acadêmicos e de dou-
tores, médicos e de teólogos: consiste em determinar o ponto exato
em que um homem realmente morre para a separação da alma do
corpo. A questão não é de hoje, mas é um pouco mais antiga: desde
o século XVII se ocupou do assunto, em uma dificuldade, P. La Croix,
e no século XVIII, tratou sobre isso um distinto e instruído espanhol,
o Padre Feijoo; mas os avanços da ciência médica têm chamado a
questão sobre a mesa, e muitas experiências com diversos processos,
provaram que o homem, sempre ou quase sempre, ainda está vivo
algum tempo após o instante em que geralmente se acreditava estar
morto” 1.

A questão foi abertamente debatida no meio médico e teológico já que


estamos falando em um ambiente em que o diálogo entre teologia moral e me-
dicina era uma práxis mais frequente. São muitos os tratados morais escritos por
médicos e, que anteciparam a base para a ética médica que seria desenvolvida
posteriormente. Nesta época, as técnicas de reanimação ainda não tinham se de-
1 Ferreres, Juan Bautista; Geniesse, Giovanni Battista. La Morte Reale e la Morte Apparente. Roma:
Scuola Tipografica Salesiana, 1907, 1.
senvolvido e, mesmo assim, a dúvida sobre os sinais de vida e morte causavam
as polêmicas que continuam até hoje. Ferreres e Geniesse desenvolveram seu iti-
nerário moral ajudando aos leitores sacerdotes, médicos e familiares de um mori-
bundo a conduzir o final da vida de uma maneira digna e, especialmente, com a
possibilidade de administrar os sacramentos. Tratam da questão do Batismo, mais
especialmente do Sacramento da Unção dos Enfermos. A questão central está em
torno da insuficiência dos sinais de morte como comprovação da mesma.
Os relatos são interessantes e foram recolhidos tanto da experiência médi-
ca-científica das pesquisas realizadas na época, quanto da experiência pastoral
dos sacerdotes em relação à concessão ou não dos sacramentos. Um fato relevan-
te é a iniciativa da Academia de Medicina de Paris que propôs um prêmio a quem
determinasse um sinal comprobatório da morte. Isto foi motivado pelo fato de
que, além da putrefação e do rigor mortis, não era possível existir nenhum outro
sinal pelo qual se pudesse conhecer, com certeza, que um homem estivesse mor-
to2.
Citando o anatomista Dr. Pierre-August Béclard (1817-1887), Ferreres e Ge- 57
niesse já antecipavam a discussão posterior que resultaria de Harvard, quando foi
acolhido o novo critério da morte encefálica (1968). Dr. Béclard afirmava em seus
escritos que “a aparente cessação da ação do cérebro e a suspensão dos movi-
mentos respiratórios podem ser constatados mesmo sem que a vida seja neces-
sariamente terminada” 3.
Apesar da tentativa de Ferreres e Geniesse de darem as melhores respostas
baseadas nas suas pesquisas e nos relatos científicos da época, as dúvidas perma-
neceram e, com os avanços da medicina na década de 50, a questão voltou a ser
debatida pelos médicos e mereceu uma audiência com o então Papa Pio XII.

2 “O Marquês de Ourches, com o testamento de 11 de fevereiro de 1866, institui dois prêmios: um


de 2000 liras pela descoberta de um meio simples e popular de reconhecer, de modo certo e
indiscutível, os sinais da morte real. A condição absoluta desse prêmio era que o meio pudesse
ser praticado também pelos agricultores pobres sem instrução. Outro prêmio era de 5000 liras
pela descoberta de um meio de reconhecer, com parâmetros de modo certo e indiscutível, os
sinais da morte real, mediante um processo que exija, seja uma intervenção no homem de um
especialista, seja a aplicação de conhecimentos científicos, o uso de instrumentos ou substâncias
que não estão ao alcance de todos. O concurso foi aberto em 1868, e o julgamento para conferir
os prêmios aos autores das 102 trabalhos foi realizado em 1873. A comissão foi composta de sete
membros tendo como relator il Devergie, determinou que o prêmio de 2000 liras não poderia
ser conferido a nenhum dos participantes e, assim o premio foi em beneficio da Administração
de Assistência Pública. Quanto ao prêmio de 5000 liras, foi dividido entre cinco concorrentes,
que apresentaram quatro sinais diversos, isto é, de levedura do cadáver, a absorção do cadáver
do globo dos olhos, ou seja, uma mancha negra esclerosada, o resfriamento verificado com
termômetro, e os efeitos das queimaduras...” in Ferreres, G.B.; Geniesse G. B. La Morte Reale..., 39.
3 Ibid., 41.
1. Os pronunciamentos de Pio XII
O Papa Pio XII dedicou aos cientistas, médicos e profissionais das diferen-
tes áreas da saúde uma série de discursos e admoestações4. Aos médicos, por
exemplo, destacava a missão privilegiada diante das famílias e da sociedade, bem
como do projeto de Deus na economia da salvação. Segundo Mons. Fiorenzo An-
gelini, para Pio XII, é pelas mãos do médico que se passa o sofrimento das pes-
soas, também se torna sinal eficaz de expiação, de redenção e propiciação. Pelas
mãos do médico passam homens e mulheres de todas as raças, ideologias, e sem
discriminação, ele os atende como um sacerdote que leva até Deus as almas atra-
vés do cuidado do corpo. Essa visão positiva de Pio XII sobre os médicos tornou-o
um símbolo do diálogo entre as ciências e a Igreja investindo constantemente em
uma ciência médica cristã que fosse capaz de respeitar a ordem moral5.
Todos os discursos de Pio XII direcionados aos médicos e na área da saúde
demonstram o grande interesse da Igreja em dialogar com as ciências e refletir
sobre os desafios morais advindos do uso das novas tecnologias. Em relação à
58 morte cerebral podemos destacar o discurso sobre a reanimação em 1957 que
buscou esclarecer as dúvidas dos médicos católicos sobre o assunto e ficou muito
famoso pelas respostas que são atuais até hoje. Dentro de um contexto hospita-
lar, de morte cerebral, o Pontífice expõe as questões práticas que podem suceder
tanto com o anestesista, quanto com a família do paciente em situação de uma
possível morte encefálica.
Em primeiro lugar, neste discurso o Papa lembra que alguns problemas re-
lacionados à morte encefálica também fazem parte do que ele chama de “moral
médica” 6, bem como da filosofia natural. Todas as intervenções que são feitas têm
em vista o restabelecimento do paciente. Ou seja, graças aos novos aparelhos
tecnológicos que permitem a respiração e a alimentação artificiais é possível re-
4 Muitos foram os temas e os estudiosos e cientistas que vieram a Roma para Congressos
temáticos e, muitos foram os temas de relevância moral com as ciências e medicina nos quais
Pio XII antecipou o debate bioético atual, como por exemplo: fecundação artificial (29.09.1949),
in: AAS 16 (1949) 557-561; os métodos de experimentação com seres humanos (13.09.1952),
in: AAS 19 (1952) 779-789; princípios morais aplicados a psicoterapia (13.04.1953), in: AAS 20
(1953) 278-286; princípios morais das cirurgias de mutilação (8.10.1953), in: AAS 20 (1953) 673-
679; anestesiologia (24.02.1957), in: AAS 24 (1957) 129-147; reanimação (24.11.1957), in: AAS 24
(1957) 1027-1033; hematologia (12.09.1958), in: AAS 25 (1958) 732-740; genética (7.09.1953),
in: AAS 20 (1953) 596-607; psicologia aplicada (30.04.1958), in: AAS 25 (1958) 268-282; neuro-
fármacos (9.11.1958), in: AAS 25 (1958) 687-696; cirurgia plástica (4.10.1958), in: AAS 25 (1958)
952-961.
5 Cf. Angelini, Fiorenzo. Pio XII discorsi ai medici. Roma: Edizioni Orizzonte Medico, 1960, IX.
6 Cf. Pius PP. XII. Adstantibus multis honorabilibus Viris ac praeclaris Medicis et Studiosis, quórum
plerique Nosocomiis praesunt vel in magnis Lyceis docent, qui Romam convenerant invitatu
et arcessitu Instituti Genetici “Gregorio Mendel”. Summus Pontifex propositis quaesitis de
“reanimatione” respondit (24 Novembris 1957). Allocutio. In: AAS 24 (1957) 1027.
equilibrar o sistema circulatório do doente e reabilitar a respiração espontânea.
Porém, lembra o Papa, que algumas lesões são tão graves que comprometem o
estado geral do paciente podendo levá-lo a morte.
O Papa admite a dificuldade do papel médico neste momento usando a
expressão: “angustiante questão de valor e do sentido da prática da reanimação”7
para expressar o pesado sentimento que paira no coração dos profissionais e fa-
miliares ao saber que depois de todos os procedimentos realizados não existe
probabilidade de sobrevivência. E pior ainda, recorda o Pontífice, quando a família
pressiona o anestesista a não realizar o procedimento de respiração artificial por
considerá-lo inconveniente. Por mais que no início o respirador artificial ajudasse
a certo conforto ao paciente já que esse não conseguia respirar por conta própria,
percebia-se que o procedimento não mudava em nada o seu estado clínico, e
somente a intervenção artificial que o mantinha em vida. Assim se perguntava se
deveria continuar a tentativa de reanimá-lo, e se a alma já poderia ter deixado o
corpo. Muitas vezes, acrescenta o Papa, a família obriga o médico a retirar o apa-
relho de respiração artificial para permitir que o paciente “virtualmente falecido” 59
morra em paz.
Pio XII diante dessa realidade apresenta algumas questões que devem ser
esclarecidas: “A partir daí surge uma pergunta fundamental do ponto de vista re-
ligioso e da filosofia da natureza: segundo a crença cristã, quando advém a morte
aos pacientes nos quais foram utilizados os meios de reanimação moderna? A
extrema-unção é válida, pelo menos enquanto você pode ver os batimentos car-
díacos, mesmo que as funções vitais já desapareceram e a vida não depende mais
que do funcionamento de um respirador?”8.
A estrutura da alocução papal se organiza de modo a responder às ques-
tões formuladas acima esclarecendo de maneira lógica e sistemática os casos pro-
postos. Dentro deste esquema organizado para responder às perguntas advindas
do problema formulado podemos destacar alguns pressupostos fundamentais
do discurso.
Em primeiro lugar, o Pio XII constrói seu discurso sob o prisma de alguns
princípios. Quais são esses princípios? Especificamente são dois: a razão natural e
a moral cristã. É sobre a inspiração desses dois princípios que podemos justificar o
ato da busca de conservar a vida e a saúde própria e do próximo. O que é natural
não se opõe ao divino, mas faz parte dele, e conforme São Tomás de Aquino, po-
7 Pius PP. XII. Summus Pontifex propositis quaesitis de “reanimatione” respondit (24.11.1957). In:
AAS 24 (1957) 1029: “…la question angoissante de la valeur et du sens des manoeuvres de
réanimation”.
8 Pius PP. XII. Summus Pontifex..., 1029.
demos entender essa lei natural como uma luz da inteligência que nos é dada por
Deus graças à qual podemos discernir aquilo que devemos fazer e aquilo que de-
vemos evitar. E, essa lei natural, está sempre em consonância com a Lei Nova que
é escrita no coração pela graça infusa pelo Espírito Santo recebida da fé em Jesus
Cristo e realizada através da caridade9. Segundo Schockenhoff “a prática moral
não é orientada ao dado fatídico; essa procura levantar as várias possibilidades
na qual se manifesta a existência, as quais são descritas na realidade, e de cada
vez realizar uma aproximação ao optimum do máximo daquilo que se pode ser”10.
Porém, relembrando São Tomás, Schockenhoff recorda que para agir eticamente
é necessário secundum rationem vivere, isto é, agir eticamente significa agir racio-
nalmente de frente à realidade. A razão ética aparece, segundo ele, como um ver-
dadeiro bem do homem: verum bonum hominis que não só nos faz refletir sobre
o bem, mas nos impulsiona a agir eticamente11. Faggioni lembra que esses são al-
guns princípios éticos elaborados no contexto da moral de inspiração casuística,
porém são ainda usados da medicina católica como, por exemplo, o princípio do
duplo efeito, o princípio da totalidade e o princípio da lícita cooperação.
60
“Esses princípios tradicionais tem o objetivo de levar o sujeito a pro-
duzir a norma da ação concreta sobretudo no caso que, pelo conflito
de valores em jogo ou, pela incerteza sobre a norma a observar, a es-
colha eticamente correta não seja de imediato evidente: se trata em
outras palavras, de modelos de decisão úteis para interpretar com a
devida clareza situações duvidosas ou de conflitos. Do ponto de vista
metaético poderia ser interpretado como um tipo de corretivo teleo-
lógico da norma deontológica formulada, e ele representaria então
uma tentativa de separar a rigidez da deontologia forte sem perder a
firmeza e a universalidade normativa”12.

Por isso, o Papa Pio XII afirma que razão natural e moral cristã juntas são
capazes de assegurar a consciência do direito e do dever em relação à conserva-
ção da vida. Segundo Sanna foi o próprio Pio XII que na sua radiomensagem de
Natal de 1942,13 falava da dignidade originária do homem chegando a fazer um
elenco dos “direitos fundamentais da pessoa” que além de inspirar a reconstrução
9 Cf. Tomás De Aquino. Suma Teológica. Texto latino de Editio Leonina, reproduzido na Edição
Marietti. Roma: Turim, 1948ss. I-II, q. 106-108.
10 Schockenhoff, Eberhard. “Il bene dell’uomo nella prospettiva morale”. In: Melina, Livio; Kampowski,
Stephan. Come insegnare teologia morale? Siena: Cantagalli, 2009, 79.
11 Ibid., 81.
12 Faggioni, Maurizio Pietro. La vita nelle nostre mani, manuale di bioetica teologica. Torino: Edizione
Camilliane, 2009, 86.
13 Pio XII levanta cinco pontos fundamentais para uma ordem e pacificação da sociedade humana.
O primeiro ponto é, exatamente, a “Dignidade e direitos da pessoa humana”, cf. Pius PP. XII. A
Summo Pontefice die XXIV mensis Decembris A. MCMXLII, in pervigilio Nativitatis D. N. Iesu Christi,
Universo Orbi datus (24 Decembris 1942). Nuntius Radiophonicus. In: AAS 10 (1943) 9-25.
do pós-guerra, também influenciou a solene Declaração dos Direitos Humanos
da ONU em 194814.
Este dever de autoconservação levantado por Pio XII, e que cada ser hu-
mano tem sobre si mesmo, diante de Deus e diante da sociedade, é derivado se-
gundo o Papa da caridade, da submissão ao Criador e da justiça social. Baseado
na doutrina tomasiana da inclinationes naturae15, o Papa resgata como ponto de
partida essa base teológica para responder as questões sobre a reanimação e que
é constituída da razão moral.
Faggioni explica que na visão de Tomás “cada homem é considerado parte
de um único designo divino universal e, neste sentido, cada homem é parte de
um todo, representado da communitas na qual ele é concretamente inserido”.16
Para o Papa Pio XII esse dever nos obriga a empregar os meios ordinários (segun-
do as circunstâncias da pessoa, dos lugares, do tempo e da cultura) não impondo
assim um dever além da medida com meios extraordinários, lembrando que a
vida, a saúde e todas as nossas atividades são subordinadas a um fim maior, um
fim espiritual. Posteriormente este princípio vem reforçado ainda mais na Encícli- 61
ca Veritatis splendor, de João Paulo II.17
Assim, o Papa Pio XII preparou o terreno de suas respostas com a dimensão
da razão humana e da moral cristã para assegurar a compreensão dos seus inter-
locutores que o chão que ele pisava era dos tradicionais conceitos da Teologia
Moral.
Após explicar os devidos procedimentos gerais para a administração dos
sacramentos o Pontífice lembra, no caso da unção dos enfermos, da clausula si
capax es feito sob condição, no caso de dúvida. Mas logo retoma a questão da
avaliação da morte tanto de fato, quanto de direito, que na época vinha trazendo
uma série de consequências para a Teologia Moral.
14 Cf. Sanna, Ignazio. “La chiesa e la difesa della dignità umana”. In: Dignità umana e dibattito bioetico.
A cura di I. Sanna. Roma: Edizioni Studium, 2009, 105.
15 “Porque o bem tem razão de fim, e o mal, razão do contrário, daí é que todas aquelas coisas para
as quais o homem tem inclinação natural, a razão apreende como bens, e por consequência
como obras a ser procuradas, e as contrárias dessas como males a serem evitados. Segundo,
pois, a ordem das inclinações naturais dá-se a ordem dos preceitos da lei da natureza”, cf. Tomás
De Aquino. Suma Teológica..., I-II, q. 94, a.2, 562-563.
16 Faggioni, M. La vita nelle nostre mani..., 123.
17 Ioannes Paulus PP. II, Veritatis Splendor (9.12.1993). In: AAS 85 (1993) 72: “a moralidade dos atos é
definida pela relação da liberdade do homem com o bem autêntico. Tal bem é estabelecido
como lei eterna pela Sabedoria de Deus, que ordena cada ser para o seu fim: esta lei eterna é
conhecida tanto pela razão natural do homem (e assim é “lei natural”), como — de modo integral
e perfeito — através da revelação sobrenatural de Deus (sendo assim chamada “lei divina”). O
agir é moralmente bom quando as escolhas da liberdade são conformes ao verdadeiro bem do
homem e exprimem, desta forma, a ordenação voluntária da pessoa para o seu fim último, isto é,
o próprio Deus: o bem supremo, no qual o homem encontra a sua felicidade plena e perfeita”.
O fato é que o Papa, de certa forma, pressionou a medicina à busca cientí-
fica de sinais mais plausíveis de comprovação da morte: “Pertence ao médico, e
particularmente ao anestesista, de dar uma definição clara e precisa da “morte” e
do “momento da morte” de um paciente que caiu em estado de inconsciência”18.
Naturalmente que aqui, o Papa busca um diálogo entre ciência e fé na tentativa
de aprimorar os critérios, tanto científicos quanto teológicos (no caso da separa-
ção definitiva da alma do corpo). Porém, ele também admite a possibilidade de
uma “dúvida insolúvel” e se poderia recorrer à presunção de direito e de fato. De
modo geral prevalece a manutenção da vida por ser um dom recebido do Criador,
o qual, antes de qualquer procedimento se deve provar que realmente ela não
existe mais.19
Para Becchi, de todas as perguntas feitas ao Papa Pio XII, a mais importan-
te é se o paciente pode ser considerado morto enquanto o respirador está liga-
do. Como resposta, o Papa afirmou que “algumas considerações de ordem geral
permitem de acreditar que a vida humana continua, até que suas funções vitais
62 – diferente da simples vida dos órgãos – se manifestem espontaneamente ou
com a ajuda de procedimentos artificiais”20. Segundo Becchi a confirmação des-
se pressuposto do qual, a pessoa com o respirador ligado ainda está viva, é que
o Sacramento da Extrema Unção só pode ser ministrado se o ser humano está
vivo e, por isso, segundo o Papa Pio XII é possível prolongar a respiração artificial
para poder ministrar o sacramento. Mas por outro lado, admite que nos casos em
que os aparelhos estão sendo usados somente para protelar a morte do paciente
é admissível retirá-los licitamente baseado no princípio do duplo efeito: “Neste
caso, não tem nenhuma disposição direta da vida do paciente, e nem mesmo eu-
tanásia, que nunca seria lícita; também quando provoca o término da circulação
sanguínea, a interrupção das tentativas de reanimação é uma causa indireta do
término da vida, e em tal caso necessita aplicar o princípio do duplo efeito e do
“voluntarium in causa””21.
Portanto, algumas portas foram antecipadamente abertas por Pio XII. Na-
turalmente que não era possível resolver em detalhes toda a situação da reani-
mação, pois a questão médica ainda estava ampliando suas pesquisas e somente
10 anos mais tarde iria acontecer o primeiro transplante de órgãos, tornando o
problema mais complexo. Segundo Becchi, a dúvida insolúvel que o Papa cita se
refere àqueles casos em que o indivíduo, mesmo ligado ao respirador, permane-
18 Pius PP. XII. Summus Pontifex propositis quaesitis de “reanimatione” respondit (24.11.1957). In: AAS
24 (1957) 1031.
19 Cf. Ibidem.
20 Ibid., 1033.
21 Pius PP. XII. Summus Pontifex..., 1032.
cendo em coma irreversível, não pode ser considerado morto. Mas, para Becchi a
questão ainda não estava resolvida:
“No entanto, uma fresta foi deixada aberta e, depois quando a atenção mu-
dou do problema da liceidade da interrupção da respiração artificial para o trans-
plante de órgãos, aquela fresta transformou-se em uma porta completamente
aberta: o transplante de órgãos pode então ser considerado lícito, mas só se pro-
vasse com certeza que a remoção dos órgãos fosse realizado de cadáveres”22.
2. Os pronunciamentos de João Paulo II e a Pontifícia Academia das Ciências
Os pronunciamentos de Pio XII marcaram época e mostraram eficácia tanto
na medicina quanto na sociedade. Mas a discussão em torno da definição de mor-
te continuou, tanto que a Pontifícia Academia das Ciências organizou um Grupo
de Estudos em 1983 para aprofundar o tema The artificial Prolongation of Life and
the Determination of the Exact Moment of Death, onde houve uma participação de
especialistas da comunidade científica. Porém, após a publicação dos resultados
do Grupo de Estudos houve certa reação por parte de alguns filósofos e teólogos
em oposição às conclusões tomadas.
63
A Pontifícia Academia das Ciências juntamente com a Congregação da Dou-
trina da Fé, achou oportuno, então, convocar, em 1989, outro Grupo de Estudos,
porém mais amplo, com a participação de filósofos, teólogos e juristas. O objetivo
era estudar mais profundamente os princípios científicos dentro de um amplo
contexto cultural levando em conta a especial natureza da pessoa humana.23
Houve um intercâmbio interdisciplinar e consideraram três pontos impor-
tantes no seu estudo:
- primeiro, é que se a morte cerebral for a supressão de uma função essen-
cial da pessoa humana é um indício suficiente da morte real;
- segundo, se existem outros sinais experimentais que podem ser incluídos
junto a morte cerebral como indicações válidas de certeza de “morte real”;
- terceiro, as normas que envolvem a morte cerebral quando ela é conside-
rada, na prática, um critério válido e a necessidade de medidas imediatas a fim de
evitar possíveis abusos.
O Papa João Paulo II pronunciou um discurso para os participantes do
Grupo de Estudos e salientou vários pontos. Destacamos aqui alguns deles.

22 Becchi, Paolo. Morte cerebrale e trapianto di organi. Brescia: Morcelliana, 2008, 120.
23 Cf. Pontificiae Academiae Scientiarum. “Working Group on The determination of Brain death and its
relationship to human death” (10-14 december 1989). Scripta Varia 83. Vatican City: Edited by R.J
White – H. Angstwurm – I. Carrasco de Paula, 1992, XIII.
O primeiro fato a considerar é a importância do tema para a Igreja. João Pau-
lo II enfatiza essa importância pelo motivo que a Congregação para a Doutrina da
Fé também colaborava com a discussão e organização do Grupo de Estudos. Isto
significa dizer que convocar filósofos e teólogos juntamente com a Congregação
da Doutrina da Fé, ao lado de cientistas e médicos, para discutirem as questões do
critério da validade do conceito de morte cerebral e os possíveis abusos em torno
das suas consequências, é uma questão a ser enfrentada também no âmbito da
fé e da doutrina da Igreja. E, para confirmar ainda mais esta unidade com o cami-
nho doutrinal e pastoral da Igreja João Paulo II cita sete vezes (no seu pequeno
discurso de seis pontos), a Constituição Pastoral Gaudium et spes, uma vez a Carta
Apostólica Salvifici doloris e uma vez o Concílio de Viena. Poderíamos afirmar, com
isso, que João Paulo II desejava reforçar um aspecto mais eclesial e pastoral para
o assunto, do que simplesmente respostas científicas e técnicas como havia acon-
tecido no primeiro Grupo de Estudos. Apesar de manter, no que se refere à defi-
nição do momento exato da morte, como responsabilidade da ciência, por outro
lado, abre as portas de discussão com a filosofia, a teologia e o próprio Magistério
64 da Igreja representado pelas palavras do Concílio Vaticano II.
Consideramos seu discurso como sete chaves que abrem portas para final-
mente colocar o tema em seu adequado lugar de discussão. Vejamos os trechos
do Discurso do Papa ao Working Group on the determination of Brain death (1989)24
nos quais ele justifica os argumentos com citações da Constituição Pastoral Gau-
dium et spes.

1- “Definir conhecimentos de natureza estritamente científica não


é papel da Igreja, porém ela não pode ignorar ou negligenciar
questões relacionadas à sua missão de levar a mensagem do
Evangelho a todas as culturas”25.

24 Ioannes Paulus PP. II. Ad eos conventui Romae habito, de puncto temporis quo mors hominum evenit
recognocendo, interfuerunt coram admissos (14.12.1989). Allocutio. In: AAS 82 (1990) 766-771.
25 Ioannes Paulus PP. II, De puncto temporis quo mors hominum…, (14.12.1989). In: AAS 82 (1990) 767;
Gaudium et spes 1 (7.12.1965). In: AAS 58 (1966) 1026: “Com efeito, a sua comunidade se constitui
de homens que, reunidos em Cristo, são dirigidos pelo Espírito Santo, na sua Peregrinação para
o Reino do Pai. Eles aceitaram a mensagem da salvação que deve ser proposta a todos. Portanto,
a comunidade cristã se sente verdadeiramente solidária com o gênero humano e sua história”.
A tradução utilizada para este documento será de Kloppenburg, F. Boaventura O.F.M. Compêndio
Vaticano II. Petrópolis: Editora Vozes, 1968. Gaudium et spes 3: «É a pessoa humana que deve ser
salva. É a sociedade humana que deve ser renomada. É portanto o homem - considerado em sua
unidade e totalidade, corpo e alma, coração e consciência, inteligência e vontade - que será o
eixo de toda a nossa explanação”.
2- “Quando a realidade em questão é vida humana em relação ao
seu início e seu fim temporal é de interesse da Igreja: faz parte
de sua missão, pois a vida, em sua unidade espiritual e somática,
merece nosso respeito”26.
3- “O corpo é de uma pessoa, um ser que está aberto a valores su-
periores, um ser capaz de cumprimento no conhecimento e no
amor de Deus”27.
4- “Quando consideramos que todo o indivíduo é uma expressão
viva da unidade e que o corpo humano não é apenas um ins-
trumento ou item de propriedade, mas partilha do valor do in-
divíduo como um ser humano, então se conclui que o corpo não
pode em circunstância alguma ser tratado como algo a ser elimi-
nado na vontade”28.
5- “Mesmo os benefícios tecnológicos mais promissores podem tra-
zer benefícios aparentes e de natureza ilusória”29.
6- “Essencialmente, o que é a morte? Não é fácil chegar a uma defi-
nição de morte que possa ser compreendida e aceita por todos.
A morte pode significar decomposição, desintegração, separa-
ção”30.

26 Ioannes Paulus PP. II. De puncto temporis quo mors hominum…, In: AAS 82 (1990) 767; Gaudium et 65
spes 14. In: AAS 58 (1966) 1035, “Corpo e alma, mas realmente uno, o homem, por sua própria
condição corporal, sintetiza em si os elementos do mundo material, que nele assim atinge
sua plenitude e apresenta livremente ao Criador uma voz de louvor. Não é, portanto, lícito ao
homem desprezar a vida corporal; mas, ao contrário, deve estimar e honrar o seu corpo, porque
criado por Deus e destinado à ressurreição do último dia”.
27 Ioannes Paulus PP. II. De puncto temporis quo mors hominum…, In: AAS 82 (1990) 767; Gaudium et
spes 15. In: AAS 58 (1966) 1036: “Enfim, a natureza intelectual da pessoa humana se aperfeiçoa e
deve ser aperfeiçoada pela sabedoria. Esta atrai de maneira suave a mente do homem à procura
e ao amor da verdade e do bem. Impregnado de sabedoria o homem passa das coisas visíveis às
invisíveis”.
28 Ioannes Paulus PP. II, De puncto temporis quo mors hominum…, In: AAS 82 (1990) 767; Gaudium
et spes 14. In: AAS 58 (1966) 1036: “Com efeito, por sua vida interior, o homem excede a
universalidade das coisas. Ele penetra nesta intimidade profunda quando se volta ao seu coração,
onde o espera Deus, que perscruta os corações, e onde ele pessoalmente sob os olhares de Deus
decide a sua própria sorte. Deste modo, reconhecendo em si mesmo a sua alma espiritual e
imortal, longe de tornar-se joguete de uma criação imaginária que se explicaria somente pelas
condições físicas e sociais, o homem, ao contrário, atinge a própria profundeza da realidade”.
29 Ioannes Paulus PP. II. De puncto temporis quo mors hominum…, In: AAS 82 (1990) 768; Gaudium et
spes 27. In: AAS 58 (1966) 1047, “O Concílio inculca o respeito ao homem; que cada um respeite o
próximo como “outro eu”, sem excetuar nenhum, levando em consideração antes de tudo a sua
vida e os meios necessários para mantê-la dignamente, a fim de não imitar aquele rico que não
teve nenhum cuidado com o pobre Lázaro”.
30 Ioannes Paulus PP. II, De puncto temporis quo mors hominum…, In: AAS 82 (1990) 768; Gaudium et
spes 18. In: AAS 58 (1966) 1038: “Diante da morte, o enigma da condição humana atinge o seu
ponto alto. O homem não se aflige somente com a dor e a progressiva dissolução do corpo, mas
também, e muito mais, com o temor da destruição perpétua. Mas é por uma inspiração acertada
do seu coração que afasta com horror e repele a ruína total e a morte definitiva de sua pessoa. A
semente da eternidade que leva dentro de si, irredutível a só matéria, insurge-se contra a morte.
Todas as conquistas da técnica, ainda que utilíssimas, não conseguem acalmar a angústia do
homem. Pois a longevidade, que a biologia lhe consegue, não satisfaz o desejo de viver sempre
mais, que existe inelutavelmente no seu coração”.
7- “A investigação científica e a reflexão moral devem continuar lado
a lado em um espírito de ajuda mútua. Nunca devemos perder de
vista a suprema dignidade da pessoa humana, cuja pesquisa de
bem estar e a reflexão são chamados a servir e nos quais o crente
reconhece a Imagem do próprio Deus”31.

Pela primeira vez o debate sobre morte cerebral estava sendo colocado no
contexto da doutrina da Igreja pós Vaticano II. E, não é por acaso que o Papa es-
colheu a Constituição Pastoral Gaudium et spes para inspirar o Grupo de Estudos
da Pontifícia Academia das Ciências juntamente com a Congregação da Doutrina
da Fé. E, como vimos acima, os pontos mais cruciais sobre a questão dos critérios
da definição de morte não pertencem só às ciências, mas é uma questão ética
diretamente ligada a dignidade da pessoa humana que envolve o destino mais
profundo do homem em direção ao seu Criador.
Outro ponto importante para a nossa reflexão é que o Papa retoma o tema
da consciência evidenciando assim, o contributo que a Igreja pode oferecer: “Para
66 cumprir seu papel de guia da consciência e para não decepcionar aqueles que
esperam dela uma luz, a Igreja precisa estar bem informada sobre estas realidades
que apresentam um vasto campo de novas descobertas e novos dados científicos
e técnicos de maneira audaz e desconcertante, que muitas vezes põem as consci-
ências em desordem”32.
Para garantir esse processo de discernimento o Papa conclui sua carta so-
licitando duas tarefas imprescindíveis: primeiro que os cientistas prossigam com
as pesquisas e estudos para que cada vez mais possam alcançar o momento mais
exato possível do sinal incontestável da morte. Isto asseguraria resultados mais
adequados para resolver o conflito da doação de órgãos, em salvar uma vida sem
desrespeitar a dignidade da outra. E, o segundo ponto é que moralistas, filósofos
e cientistas devem buscar realizar um trabalho em conjunto, com o exercício das
virtudes da tradição moral como a prudência, que pressupõe a retidão moral e
fidelidade ao bem, evitando soluções fáceis ou a utilização de falsos princípios. “A
investigação científica e o pensamento moral devem andar juntos, num espírito
de cooperação. Nunca devemos perder de vista a suprema dignidade da pessoa
31 Ioannes Paulus PP. II. De puncto temporis quo mors hominum…, In: AAS 82 (1990) 771; Gaudium
et spes 12. In: AAS 58 (1966) 1034, “O que é porém o homem? Ele emitiu e ainda emite muitas
opiniões a respeito de si mesmo, variadas e contrárias entre si. Numas muitas vezes se exalta
como norma absoluta. Noutras deprime-se até o desespero. Donde sua hesitação e angústia.
A Igreja percebe claramente estas dificuldades. Instruída pela revelação de Deus pode dar-lhes
uma resposta, na qual se delineia a verdadeira condição humana, explicam-se as suas fraquezas
e ao mesmo tempo se reconhecem de modo correto sua dignidade e vocação”.
32 Ioannes Paulus PP. II. De puncto temporis quo mors hominum…, In: AAS 82 (1990) 767.
humana, cuja pesquisa e reflexão são chamadas a servir o bem-estar, e que os
crentes não deixam de reconhecer nada menos que a imagem do próprio Deus”33.
O resultado do Grupo de Estudos foi significativo no sentido que havia con-
seguido ampliar a discussão para além do campo médico científico com uma re-
flexão filosófica e teológica que garantiam assim, um avanço para compreender a
dimensão do problema. Porém, como em 1986, não houve um consenso absoluto
sobre suas conclusões. A solicitação do Papa Pio XII para estabelecer o momento
exato da morte não foi realizada e João Paulo II reconhece também a dificuldade
dizendo: “Como vocês sabem, e como demonstraram por suas discussões, não é
fácil chegar a uma definição de morte compreendida e aceita por todos”34.
As conclusões do Grupo de Estudos da Pontifícia Academia das Ciências
foram baseadas em três pontos: Primeiro, trata-se da confirmação do elemento
espiritual, a alma que determina a unidade de todas as funções físicas e espirituais
e, portanto a morte é a separação desse princípio espiritual do corpo. Para eles,
a destruição total do encéfalo é um sinal visível que assegura uma certeza moral,
diminuindo as dúvidas, incertezas e ambiguidades, pois com essa destruição são 67
comprometidas também todas as funções orgânicas e vitais. Nestes casos, com a
devida comunicação à família pode estabelecer-se a suspensão da utilização dos
instrumentos artificiais de acordo com princípios éticos e solidários. Em segundo
lugar, o Grupo de Estudos esclareceu que a doação de órgãos é um ato de soli-
dariedade louvável e aceito, com a devida autorização, com respeito às normas
jurídicas, sem provocar ou acelerar a morte, ou qualquer tipo de omissão que des-
respeite a pessoa humana na sua dignidade35. E, finalmente, o Grupo de Estudos
recorda o papel fundamental da Teologia Moral e dos princípios que iluminam a
reta ação e garantem sua praticabilidade. Tanto as situações de interrupção de
medidas artificiais, como os critérios dos transplantes de órgãos são decisões éti-
cas que não podem prescindir a sua relação fundamental com a moralidade e a
teologia.
No ano do Jubileu do Milênio, o Papa João Paulo II manifestou-se nova-
mente sobre a questão da morte cerebral quando fez sua alocução no Congresso
Internacional da Sociedade de Transplantes, em agosto de 2000. Merece desta-
que suas palavras em relação à morte cerebral onde dois pontos se impõem. Em
primeiro lugar, o Papa refaz a pergunta: “Quando a pessoa pode ser considerada
33 Ibid., 771.
34 Ibid., 768.
35 Lembramos aqui a definição de eutanásia do documento Iura et Bona de 1980 da Congregação
da Doutrina da Fé: “Nomine euthanasiae significatur action vel omission quae suapte natura
vel consilio mentis mortem affert, ut hoc modo omnis dolor removeatur. Euthanasia igitur in
voluntatis propósito et procedenti rationibus, quae adhibentur, continetur” cf. Congregatio Pro
Doctrina Fidei. Declaratio de Euthanasia (05.05.1980). In: AAS 72 (1980) 546.
morta com plena certeza?”36 colocando o cerne do problema em destaque e, ao
mesmo tempo recuperando a sua dimensão que extrapola os parâmetros exclu-
sivamente científicos:

“Neste sentido, é útil recordar que a morte da pessoa é um evento


único, consiste na total desintegração daquele todo unitário e inte-
grado que é o eu pessoal. É o resultado da separação do princípio (ou
alma) da realidade corporal da pessoa. A morte da pessoa, entendida
neste sentido original, é um evento que nenhum método científico
ou empírico técnico pode identificar diretamente”.37

Em segundo lugar, o Papa recorda da mudança do critério cardiorrespirató-


rio para o critério neurológico, que foi adotado pela comunidade científica inter-
nacional como o sinal de que, com a cessação completa e irreversível de toda a
atividade cerebral38, o organismo do indivíduo perde sua capacidade integradora.
68 Mas o Pontífice, por outro lado, deixa claro que a Igreja não pode assu-
mir para si uma tomada de decisão científica sobre qual é o melhor parâmetro a
ser adotado, pois não é esse seu papel: “a Igreja não toma decisões técnicas, ela
limita-se ao direito Evangélico de comparar os dados oferecidos por médicos e
Ciência com o entendimento Cristão da unidade da pessoa...”39. Mas no caso do
profissional da saúde, que deve utilizar um critério nos casos específicos, como
no transplante de órgãos, por exemplo, a cessação completa e irreversível de toda
a atividade cerebral parece, segundo o Papa, não entrar em conflito com os ele-
mentos essenciais de uma saudável antropologia, recorrendo ao critério da moral
certainty: “Essa certeza moral é considerada a base necessária e suficiente para um
curso de ética da ação”40.
Portanto, a partir desses dados, podemos considerar a importância que
João Paulo II deu ao tema da morte cerebral e os avanços que ele proporcionou
à reflexão reconhecendo que o tema não pode ser tratado somente no âmbito
científico, mas cabe também à teologia colaborar nessa discussão. E, de fato, a
discussão continuou pertinente e uma terceira reunião foi convocada pela Ponti-
fícia Academia das Ciências com o tema “Segni della morte” de 3 a 4 de fevereiro

36 Ioannes Paulus PP. II. Ad eos qui conventui de chirurgicis transplantationibus interfuerunt (29 Augusti
2000). Allocutio. In: AAS 92 (2000) 823.
37 Ibid., 824.
38 Ibidem.
39 Ibidem.
40 Ibidem.
de 2005, na qual João Paulo II deixou uma carta aos seus participantes, sendo esse
um dos seus últimos escritos.
Nesta ocasião João Paulo II enfatizou que, na medida em que a ciência vai
progredindo no conhecimento na área dos transplantes, procurando assegurar o
sucesso das intervenções e uma melhor sobrevivência dos receptores, torna-se
ainda mais necessário um contínuo diálogo com a antropologia e a ética garan-
tindo o respeito da vida e da pessoa. Para o Papa é a antropologia cristã que for-
nece o significativo dado de que no momento da morte de cada pessoa acontece
a perda da unidade constitutiva corpóreo-espiritual, “Cada ser humano está vivo,
de fato, precisamente na medida em que é corpore et animus unus (Gaudium et
spes, n.14: EV 1/1363), e ela permanece assim enquanto subsiste em sua substan-
cial unidade na totalidade”41.
João Paulo II recorda que cabe ao médico de dar uma definição clara e pre-
cisa da morte, como havia afirmado Pio XII, mas ao mesmo tempo reforça o papel
da antropologia e da reflexão ética com o Magistério da Igreja para uma análise
rigorosa sobre o tema, de maneira particular apresentando os resultados para a 69
Congregação da Doutrina da Fé.

“Gostaria de vos assegurar que seus esforços são louváveis ​​e, certa-
mente, serão úteis para os Dicastérios competentes da Santa Sé - es-
pecialmente a Congregação para a Doutrina da Fé - que não deixará
de ponderar os resultados da sua reflexão, e poderão oferecer os es-
clarecimentos necessários para o bem da comunidade, em especial,
os pacientes e os especialistas que são chamados a dedicar as suas
especialidades profissionais ao serviço da vida”42.

Não temos dúvida, toda a discussão que antecedeu a Evangelium vitae foi
de grande importância para solidificar seus fundamentos e motivado pelos escri-
tos do Papa Pio XII. O pontificado de Wojtyla pode mergulhar com todas as forças
na defesa da vida e no enfrentamento dos perigos éticos e morais que decorrem
da biotecnologia43.

41 Giovanni Paolo II. “Segni di morti e trapianti da cadavere” (01.02.2005). Discorso. In: Inchiridium
Vaticanum 23. Bologna: EDB, 2006, 238.
42 Ibid., 240.
43 Evangelium vitae 64: “Por meio de sistemas e aparelhagens extremamente sofisticadas, hoje a
ciência e a prática médica são capazes de resolver casos anteriormente insolúveis e de aliviar ou
eliminar a dor, como também de sustentar e prolongar a vida até em situações de debilidade
extrema, de reanimar artificialmente pessoas cujas funções biológicas elementares sofreram
danos imprevistos, de intervir para tornar disponíveis órgãos para transplante”.
BIBLIOGRAFIA

1- FONTES MAGISTERIAIS

Concilium Oecumenicum Vaticanum II. Gaudium et spes (Roma, 7 Decembris 1965).


Constitutio pastoralis de Ecclesia in mundo huius temporis. In: AAS 58 (1966)
1025-1120.
Pius PP. XII. Participantibus conventus internationalis quarti medicorum catholico-
rum, Romae coadunatis (29 Septembris 1949). Allocutio. In: AAS 16 (1949) 557-561.
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matis nervorum, Romae habito (13 Septembris 1952). Allocutio. In: AAS 19 (1952)
779-789.
____.  Iis qui interfuerunt Conventui internationali quinto de psychotherapia et
psychologia, Romae habito (13 Aprilis 1953). Allocutio. In: AAS 20 (1953) 278-286.
____.  Iis qui interfuerunt Conventui XXVI a Sodalitate Italica de Urologia indicto (8
70 Octobris 1953). Allocutio. In: AAS 20 (1953) 673-679.
____. Summus Pontifex, coram praeclaris medicis, chirurgis atque studiosis, quaesitis
respondit de catholica doctrina quoad anaesthesiam, a Societate Italica de anaesthe-
siologia propositis (24 februarii 1957). Allocutio. In: AAS 24 (1957) 129-147.
____. Adstantibus multis honorabilibus Viris ac praeclaris Medicis et Studiosis, quó-
rum plerique Nosocomiis praesunt vel in magnis Lyceis docent, qui Romam convene-
rant invitatu et arcessitu Instituti Genetici “Gregorio Mendel”, Summus Pontifex pro-
positis quaesitis de “reanimatione” respondit (24 Novembris 1957). Allocutio. In: AAS
24 (1957) 1027-1033.
____. Iis qui interfuerunt Conventui VII internationali a “Societate internationali He-
matologiae” Romae habito, cuius propositis quaesitis Summus Pontifex respondit (12
Septembris 1958). Allocutio. In: AAS 25 (1958) 732-740.
____. Iis qui interfuerunt “primo Symposio Internationali Geneticae Medicae” Romae
habito (7 Septembris 1953). Allocutio. In: AAS 20 (1953) 596-607.
____.  Iis qui interfuerunt Conventui XIII Societatis internationalis “de Psychologie
appliquée”, Romae habito (30 Aprilis 1958). Allocutio. In: AAS 25 (1958) 268-282.
Pius PP. XII. Iis qui interfuerunt Conventui internationali, Romae habito, a “Collegio In-
ternationali Neuro-Psycho-Pharmacologico” (9 Septembris 1958). Allocutio. In: AAS
25 (1958) 687-696.
____. Iis qui interfuerunt Conventui decimo nationali a Societate Italica de Chirurgia
Plastica Romae indicto (4 Octobris 1958). Allocutio. In: AAS 25 (1958) 952-961.
____. A Summo Pontefice die XXIV mensis Decembris A. MCMXLII, in pervigilio Nativi-
tatis D. N. Iesu Christi, Universo Orbi datus (24 Decembris 1942). Nuntius Radiopho-
nicus. In: AAS 10 (1943) 9-25.
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71
violabili bono. In: AAS 87 (1995) 401-522.
____.  Ad eos qui conventui de chirurgicis transplantationibus interfuerunt (29 Au-
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____. “Segni di morti e trapianti da cadavere” (1 febbraio 2005). In: Inchiridium Va-
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Congregatio de Cultu Divino, Ordo Unctionis infirmorum eorumque pastoralis cura (7
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2- OUTRAS FONTES

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Becchi, Paolo. Morte cerebrale e trapianto di organi. Brescia: Morcelliana, 2008.
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Torino: Edizioni Camilliane, 2009.
Ferreres, Juan Bautista; Geniesse, Giovanni Battista. La Morte Reale e la Morte Appa-
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Sanna, Ignazio (Ed.). Dignità umana e dibattito bioetico. Roma: Edizioni Studium,
2009.
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Schockenhoff, Eberhard. “Il bene dell’uomo nella prospettiva morale”. In: Come in-
72 segnare teologia morale? A cura di Melina, Livio; Kampowski, Stephan. Siena: Canta-
galli, 2009, 79-90.
S. Tomae Aquinatis. Summa Teologiae. Torino: Editio Leonina, Roma: Marietti, 1948.
Artigos
EDUCAÇÃO SEXUAL, ÉTICA
DE CRESCIMENTO E MORAL
MISSIONÁRIA:
elementos para uma ética mais
misericordiosa
SEXUAL EDUCATION, ETHICAL GROWTH MISSIONARY MORALS:
elements for a more compassionate ethic
73

Ronaldo Zacharias*

RESUMO: A tarefa da educação moral é propor sempre os ideais mais elevados, sobretudo no se-
guimento de Jesus. Mas, todo educador não pode deixar de considerar o contexto social que vivem
as pessoas concretas. Mesmo quando elas são chamadas a viver o melhor possível, nem sempre tem
condições concretas de fazê-lo. Dai, é papel do educador, em ajudá-las a viver o possível, mesmo
que nem sempre seja o desejável. Propor o possível não é negar o ideal, mas auxiliar numa situação
provisória, desde a responsabilidade e obrigação moral. Isto vale também para muitas pessoas que
se envolvem em intimidade. O autor propõe três aplicações concretas das “expressões mínimas”: o
esforço de não fazer o mal, não mentir e não cometer violência alguma, visando garantir um míni-
mo de dignidade.. Em síntese: a combinação dos três elementos propõe uma ética de crescimento.
Além de educativa e ética, esta tarefa para educadores se tornam uma atividade ministerial, que se
transforma em missionária, embasada numa metáfora bíblica da terra prometida – devidamente
explorada no texto.

PALAVRAS CHAVE: o possível, o ideal, ética do crescimento, o provisório, educação moral.

ABSTRACT: The task of moral education is to propose always higher ideals, particularly in the fol-
lowing of Jesus. But, every educator must consider the social context in which the concrete people
live. Even if they are called to live the best possible concrete conditions, not always they have the

* Ronaldo Zacharias é Doutor em Teologia Moral (Weston Jesuit School of Theology - Cambridge
- USA) e Reitor do Centro Universitário Salesiano de São Paulo (UNISAL); http://lattes.cnpq.
br/3151031277743196.
conditions to do so. This is where we find the role of the educator, to help them to live (at least
minimal conditions), even though it is not desirable. To propose the possible is not to deny the
ideal, but accompany them with the responsibility and moral obligation in their passing situation.
This also applies to those many people who engage in sexual intimacy. The author proposes three
concrete applications of the “minimum expressions”: the effort to do no harm, not to lie and not to
commit any violence, in order to ensure a minimum of dignity. In short: the combination of these
three elements gives the opportunity for an ethic of growth. Besides the education and ethics, this
task for educators becomes a ministerial activity, which in turn transformed into missionary activity
based on the biblical metaphor, of the promised land – properly explored in the text.

KEY WORDS: : the possible, the ideal, ethic of growth, provisional, moral education.

74

Introdução

São inúmeros os jovens que, apesar do esforço pessoal para serem bons
e fazerem o bem, têm relações sexuais em contextos que não correspondem ao
ideal moral proposto pela Igreja católica. Mais ainda, muitos são sexualmente ati-
vos em contextos que, justamente por contradizerem explicitamente esse ideal,
são considerados ilícitos. Sendo ilícitos, tornam ilícitos também os relacionamen-
tos de intimidade que neles acontecem. Esse seria o juízo de valor mais objetivo
sobre tantas “experiências juvenis” à luz do ensino do Magistério. Mas isso não
significa que tal juízo esgote toda a questão ética. Quando situamos pessoas con-
cretas no centro de nossa reflexão, não basta constatar que seus relacionamentos
contradizem objetivamente determinadas normas. Precisamos oferecer-lhes uma
proposta ética que as ajude a viver seus relacionamentos da maneira mais huma-
na possível, mesmo em contextos considerados ilícitos.
A reflexão a seguir quer projetar uma luz a mais sobre o tema, a fim de ofe-
recer aos educadores alguns elementos que os ajudem na difícil tarefa de propor
ideais para os jovens e, ao mesmo tempo, fazer isso com espírito verdadeiramente
missionário.
1. Em vista de ideais mais elevados 1
Muitas vezes, as pessoas não contam com as melhores condições para vi-
verem os ideais morais a elas propostos. É preciso levar em conta que qualquer
proposta de relacionamento sexual ideal não pode ignorar o contexto social no
qual acontece e a condição concreta das pessoas envolvidas. Quando levamos
em conta esses fatores, percebemos que: as condições sociais não são sempre
concebidas de modo igual para homens e mulheres, heterossexuais e homosse-
xuais; nem todos são inclinados ao bem e dispostos a escolher fazer o bem e evi-
tar o mal; as estruturas sociais podem condicionar as opções que a serem feitas.
Mas, mesmo quando as pessoas não podem contar com as melhores condições
para fazer o bem, elas são chamadas ao dever ético de se esforçar por fazer o
melhor possível na situação na qual se encontram. Isso implica, no mínimo, que
as pessoas exercitem, com responsabilidade, sua capacidade de auto-direção em
questões sexuais, vivam seus relacionamentos de intimidade com honestidade e
responsabilidade e encontrem maneiras respeitosas de acolher o outro na intimi-
dade interpessoal. 75
Não há dúvida de, na nossa tarefa educativa, precisarmos propor ideais ele-
vados.2 Mas não podemos fazer isso sem levar em conta que estamos propondo
ideais a pessoas que, muitas vezes, não podem fazer mais do que apreciar o valor,
o significado e a importância deles, sem poder vivê-los concretamente. O que
podemos fazer para ajudar essas pessoas no seu esforço de viver relacionamen-
tos responsáveis e significativos, a assumir como eticamente significativo o que é
“possível” e não tanto o que é “desejável”?

Há situações em que as circunstâncias ou convicções pessoais não permitem


às pessoas desistirem de relacionamentos considerados objetivamente ilícitos,

1 Vou recorrer às obras de Roger Burggraeve: “Une éthique de miséricorde”. In: Lumen Vitae (1994)
: 281-296; “De uma sexualidade responsável a uma sexualidade significativa: uma ética de
crescimento como ética de misericórdia pelos jovens nesta era de AIDS”. In: James F. Keenan
(org.). Eticistas católicos e prevenção da AIDS. São Paulo: Loyola, 2006, p. 309-323. Inspirei-me
no estudo feito por Burggraeve, primeiro, porque partilho profundamente de suas convicções;
segundo, por ser ele salesiano e, portanto, dedicado à educação dos jovens, representa para
mim um incentivo a ser sensível aos apelos de tantos jovens que desejam viver experiências
significativas, mas precisam de tempo para descobrir como, quando e com quem e, por isso,
querem ser respeitados e assistidos nas suas tentativas mesmo que essas não sejam as mais
desejáveis.
2 Vou aprofundar aqui o que apenas mencionei como preocupação no artigo: “Para além
do Davi de Michelangelo e da Vênus de Boticelli: o que fazer quando a realidade não
tem nada a ver com o ideal proposto”. In: Leo Pessini – Ronaldo Zacharias (orgs.). Ser e
fazer. Teologia Moral: do pluralismo à pluralidade, da indiferença à compaixão. Aparecida/
São Paulo: Santuário/Centro Universitário São Camilo/Sociedade Brasileira de Teologia Moral,
2012, p. 247-248.
porque terminá-los seria prejudicial para elas, ou porque os consideram subjeti-
vamente bons. Diante de situações como essas, constatamos ser preciso elaborar-
mos uma ética que leve a sério a fraqueza humana, acolha a pessoa humana na
sua fragilidade e afirme a capacidade humana para o bem, mesmo em condições
caóticas, reconhecendo existirem determinadas situações em que não há outra
escolha a não ser a de se esforçar por realizar o que é menos desumano, única
possibilidade restante.

Alguém poderia argumentar que uma postura como essa é uma afronta à
radicalidade do Evangelho, entendido como um chamado a refletir, da melhor
maneira possível, a imagem de Deus em todas as dimensões da própria vida, pro-
curando o verdadeiro sentido do amor - ou do vere bonum - ao qual todos somos
chamados, porque diminui as exigências dos ideais morais, empobrecendo e fal-
sificando seu significado. Para Burggraeve, isso nem sempre é verdade, porque
antes de propor o que é possível - o minus malum, em sentido negativo, ou o mi-
nus bonum, no sentido positivo - é necessário que se tenha pelo menos uma ideia
76 da excelência moral da dignidade humana que poderia ser plenamente realizada.
A questão em jogo não é a oposição ao chamado evangélico, mas a possibilidade
concreta de vivê-lo.3
Na prática, optar pelo que é possível fazer não significa renunciar ao ideal
proposto. Pelo contrário, tal opção supõe que a pessoa confronte o ideal com
a sua condição concreta e admita que, nesta condição específica, ela não pode
realizá-lo plenamente. Isso não quer dizer que esse ideal não possa ser realizado
amanhã, se as condições mudarem. O ideal moral é sempre um ponto de refe-
rência e um chamado permanente com o qual temos o dever ético de nos con-
frontar. Pode ser que, para algumas pessoas, o ideal será sempre inatingível. Isso
não é o que mais conta. O que, de fato, importa é permanecerem elas abertas ao
apelo desse ideal. Para outras pessoas, atingir o ideal é simplesmente questão
de tempo e paciência. Para estas, a opção pelo que é possível representa apenas
uma opção transitória, um caminho a ser seguido até o momento de abraçar o
ideal. No entanto, é bom ter presente que não é o caráter transitório da opção que
anula seu significado ético, pois não podemos negar que, ao seguir um caminho
não ideal, as pessoas podem fazer experiência do bem e encontrar significado
profundo no que vivenciam.
Não é por tais pessoas não estarem vivendo, nem serem jamais capazes
de viver o significado pleno do ideal moral a elas proposto, que se pode inferir
que seus relacionamentos não tenham valor e não possam expressar valor algum.
A mera conformidade com normas não é suficiente para justificar a intimidade
3 BURGGRAEVE. “Une éthique de miséricorde”..., p. 285-286.
sexual, simplesmente porque essa conformidade não é sempre sinônimo de rela-
cionamentos significativos e qualidade de presença. Alguma tensão entre a radi-
calidade do Evangelho e o possível de se fazer vai sempre existir. Não há dúvida
de que há riscos inerentes envolvidos na tentativa de resolver esse conflito, tais
como reduzir a moralidade do relacionamento à conformidade com “é isto que é
possível”, ou aprovar qualquer espécie de relacionamento em nome de “era isso
que era possível”. O fato de, em algumas circunstâncias, o máximo a se poder fazer
é escolher o possível, não diminui a responsabilidade e a obrigação moral de a
pessoa estar aberta ao apelo do ideal proposto.
Voltando à questão inicial: é um dado de fato que o contexto no qual mui-
tas pessoas se envolvem em intimidade sexual carece de qualquer perspectiva
de estabilidade, exclusividade e compromisso. Essa realidade convida-nos a re-
pensar nosso esforço educativo em termos de propor o que seriam as mínimas
expressões necessárias de bondade moral a serem respeitadas pelas pessoas que
se envolvem em intimidade sexual ocasional ou casual.4
Novamente aqui alguém poderia dizer que “expressões mínimas” ainda es- 77
tão longe do ideal e qualquer abordagem educativa tem de ser feita em termos
de se proporem valores mais elevados e, portanto, a perfeita expressão da bonda-
de moral. Muitas vezes tendemos a pensar a moralidade em termos de tudo ou
nada. Temos dificuldade em admitir que o que parece um ponto de partida ne-
gativo — expressões mínimas — possa ser a mais realista das possibilidades para
“esta” pessoa “nesta” fase particular de sua vida. Precisamos convir que um ponto
de partida negativo pode ser o ponto de partida mais conveniente para a pessoa
poder, progressivamente, alcançar patamares ricos na vivência de determinados
valores e/ou virtudes.
Seguem, a título de exemplificação, três aplicações concretas das “expres-
sões mínimas” a serem salvaguardadas nas relações, mesmo em contextos não
ideais para a vivência da sexualidade. As referências às expressões mínimas das
virtudes da justiça, da fidelidade e do autocuidado serão feitas no negativo – não
fazer isso, não fazer aquilo – porque acredito que a forma negativa ajuda a evitar
a ideia de que expressões mínimas sejam meramente uma visão de possibilidade
pela qual devemos esforçar-nos. Pelo contrário, quero enfatizar que tais expres-
sões mínimas são um dever moral concreto a ser cumprido pelas pessoas em to-
das as circunstâncias.

4 Não estou incluindo na categoria de sexo ocasional as relações caracterizadas pela violência,
exploração, ganho financeiro, desvio e compulsão. Meu interesse é focalizar os relacionamentos
sexuais com alguma qualidade, mas de caráter temporário e descompromissado.
Não fazer o mal como expressão mínima de justiça.5 Os que se envolvem em
sexo casual têm o dever ético de não introduzir nenhum mal no mundo, de não
tirar vantagem de situações caracterizadas por uma desigual consideração pelas
pessoas envolvidas ou pelo bem comum e de não tratar os outros como meios
para satisfazerem interesses pessoais. Na prática, essas pessoas deveriam com-
prometer-se a defender e promover os direitos de cada pessoa, especialmente
das que poderiam ser mais facilmente magoadas, tais como mulheres e crian-
ças; a evitar comportamentos sexuais irresponsáveis tais como os que resultam
na difusão de doenças sexualmente transmissíveis. Em algumas circunstâncias,
evitar a gravidez, quando esta seria totalmente destituída de estruturas sociais
protetoras, é um modo concreto de não fazer o mal ao indivíduo que poderia
vir a ser concebido e à sociedade como um todo. Em outras, não se envolver em
intimidade sexual pode ser um modo concreto de evitar tirar vantagem do outro
e do relacionamento.
Não mentir para o outro, como expressão mínima de fidelidade.6 Os que se
78 envolvem em sexo ocasional têm o dever moral de não atribuir a um gesto o sen-
tido que ele não tem. Isso implica, em algumas circunstâncias, a obrigação de
dizer “não” à intimidade sexual. Em outras, o direito de retirar o consentimento
prévio quando o gesto se torna uma mentira. O princípio de “não mentir” requer
consentimento bem informado de ambas as partes. A pessoa tem de dizer à outra
quem é e o que quer a fim de estar genuinamente presente na relação e de não
esperar mais do que ambas podem dar, nem mais do que o próprio relaciona-
mento promete.
Não cometer violência contra si mesmo como expressão mínima de auto-cui-
dado. Na prática, isso implica o dever moral de não se submeter a qualquer tipo
7

de violência física, psicológica, moral ou social. Em algumas circunstâncias, o prin-


cípio da não-violência implica a obrigação de desistir de um relacionamento não
caracterizado pelo respeito no modo de abordar o outro. Em outras circunstân-
cias, significa não se forçar a fazer o que não quer fazer, nem se forçar a fazer o que
os outros fazem simplesmente por que outros o fazem.

5 FORTUNE, Marie M. Love Does no Harm: Sexual Ethics For the Rest of Us. New York: Continuum,
1995; BURGGRAEVE. “De uma sexualidade responsável a uma sexualidade significativa”..., p. 310-
311.
6 WALLACE, Catherine M. For Fidelity: How Intimacy and Commitment Enrich Our Lives. New York:
Alfred A. Knopf, 1998; BURGGRAEVE. “De uma sexualidade responsável a uma sexualidade
significativa”..., p. 315-317.
7 NODDINGS, Nel. Caring: A Feminine Approach To Ethics and Moral Education. Berkeley: University
of California Press, 1984; BURGGRAEVE. “De uma sexualidade responsável a uma sexualidade
significativa”..., p. 312-313.
É inegável que o esforço de não fazer o mal, não mentir e não cometer vio-
lência contra si mesmo não garante, por si só, a qualidade de qualquer relaciona-
mento. Mas “garante um mínimo de dignidade humana em situações em que o
significativo é apenas mínima ou parcialmente realizado”,8 e isso não deveria ser
subestimado. O esforço de assumir as expressões mínimas de tais virtudes pode
ser educativo em si mesmo: é com a prática que a pessoa se torna virtuosa. A prá-
tica do “mínimo” pode preparar o caminho para ideais mais elevados.
Há três conclusões práticas derivadas do que foi dito. Primeira: a determina-
ção do comportamento virtuoso não pode ser separada do indivíduo, da situação
e das circunstâncias em que ocorre. O fato de algumas pessoas não poderem fa-
zer mais do que o mínimo não significa que não sejam virtuosas. O mínimo pode
ser o máximo que podem dar, nesse estágio específico de suas vidas e sob essas
circunstâncias específicas.
Segunda: a proposta de expressões mínimas das virtudes caracteriza-se por
ser provisória. O fato de o mínimo ser tudo o que a pessoa pode dar hoje não 79
implica que não deva procurar o máximo amanhã. O mínimo serve para abordar
uma determinada situação ou estágio da vida devido, por exemplo, em termos de
temporalidade, a uma liberdade ainda não desenvolvida, a uma maturidade afe-
tiva ainda não alcançada, ou à falta de capacidade pessoal para o compromisso.
Terceira: a gradualidade é inerente a qualquer processo de educação mo-
ral. Mesmo as expressões mínimas das virtudes propostas não podem ser todas
9

incorporadas imediatamente. Algumas pessoas, por exemplo, não serão capazes


de evitar fazer mal às outras se não evitam, primeiro, fazer mal a si mesmas. No
que diz respeito ao ideal moral de se envolver em intimidade sexual no contexto
de relacionamentos estáveis e compromissados, é possível que algumas pessoas
queiram construir um relacionamento estável e fiel, mas necessitam de tempo
para aprender a amar, e tempo para encontrar um parceiro adequado por meio
de um difícil processo de tentativas.
Todos esses elementos, combinados, constituem o que podemos chamar
de ética de crescimento. As pessoas são chamadas a viver uma sexualidade res-
ponsável e significativa, a abraçar e deixar-se transformar pela prática das virtu-
des. Mas, na perspectiva da ética de crescimento, são chamadas a fazer isso de
maneira progressiva. Não há como atingir os ideais mais elevados se não admitir-

8 BURGGRAEVE. “De uma sexualidade responsável a uma sexualidade significativa”..., p. 311.


9 JOÃO PAULO II. Exortação Apostólica Familiaris Consortio. Sobre a função da família cristã no
mundo de hoje (22.11.1981), n.º 34. In: Acta Apostolicae Sedis 74 (1982).
mos que desejo, esforço, mudança e crescimento — categorias do vir-a-ser — são
categorias inerentes ao processo educativo.10
Sendo a educação sexual parte do processo educativo, está também sujeita
a essas categorias. Levar essas categorias a sério implica que, ao propor ideais
mais elevados, não se ignore que a excelência moral é sempre gradual e parcial.
Consequentemente, além de apreciar eticamente o esforço feito para realizar o
possível, devemos ajudar as pessoas nesse esforço mesmo quando estamos cons-
cientes de que o possível não é o idealmente desejável.

2. Em vista de uma moral missionária


Nossa tarefa de ajudar as pessoas no processo de se realizarem como seres
sexuados e de desenvolverem as disposições que as ajudem a iniciar, sustentar e
alimentar relacionamentos de intimidade é muito mais do que uma simples ta-
refa educativa e ética: é também uma tarefa ministerial. Somos chamados a ser
80 “sacramentos” da presença e do amor de Deus para as pessoas, para os jovens e
para os que vivem em situações caóticas.11
No exercício desse ministério, frequentemente nos defrontamos com o
dilema: como podemos ajudar as pessoas a iniciar, manter e alimentar seus rela-
cionamentos de intimidade sexual se esses relacionamentos são proibidos pela
Igreja para todos os que não são casados? Será possível exercer esse ministério e
ainda permanecer católico?
Para responder a essas questões, vou-me apoiar na contribuição de
Leonard M. Martin, teólogo moralista irlandês que viveu no Brasil e procurou
abordar as questões morais segundo uma proposta que ele chamou de “moral
missionária”.12

10 DILLON, Martin C. Beyond Romance. Albany: State University of New York Press, 2001, p. 63, para
quem as categorias do vir-a-ser são também as categorias do amor.
11 Chamo de situações “caóticas” os relacionamentos aquém do ideal moral proposto pela Igreja e
que, por isso, são consideradas objetivamente ilícitas ou desordenadas.
12 Embora a abordagem das questões morais, por Martin, não represente uma abordagem
eclesiástica oficial, é muito estimulante como tentativa de repensar a teologia moral como
uma proposta que convida as pessoas a descobrirem a alegria de viver os valores do Reino, um
esforço que, segundo ele, deve preceder a formulação de normas. Ver Leonard M. Martin. “Moral
Missionária para o Novo Milênio”. In: Vida Pastoral 38, n.º 194 (1997) : 23-29; “Exílio, Sodoma e o
Deserto: uma ética teológica a partir das culturas dos submundos”. In: Márcio Fabri dos Anjos
(ed.). Teologia Moral e Cultura. Aparecida: Santuário, 1992, p. 89-113; “Moral Sexual Missionária
de Paulo. Subsídios para uma moral do matrimônio no Brasil”. In: Revista Eclesiástica Brasileira 50
(1990) : 515-536; “ ‘I Fed You With Milk’: A Missionary Morals in Brazil in a Time of AIDS”. In: James
F. Keenan (ed.). Catholic Ethicists on HIV/AIDS Prevention. New York/London: Continuum, 2000, p.
128-135.
Às vezes, as pessoas tendem a crer - na lógica do tudo ou nada – que, por
não poderem abraçar o ideal a elas proposto, o que fazem não tem valor algum.
Somos chamados a discernir os valores presentes na vida das pessoas, ajudá-las
a confrontar a própria vida com outros valores que podem ter sido ignorados. Ao
oferecer uma nova luz a essas pessoas, tornamo-nos responsáveis por ajudá-las
no esforço de caminhar com as próprias pernas e no chão em que vivem.
Não há dúvida de que a compreensão dessa tarefa é profundamente con-
dicionada — ou inspirada — pela experiência que temos de Deus. Se Deus é co-
nhecido como alguém que leva a sério a fraqueza humana, não para condená-la,
mas, sobretudo, para redimi-la, como alguém que confia na capacidade humana
para o bem, será mais fácil compreender que se deve dar prioridade ao tipo de
pessoa em que se está tornando aquele que está sendo transformado pelo amor
de Deus, e ao esforço feito para produzir frutos de caridade em qualquer que seja
o seu estado ou condição de vida.
Essas convicções constituem a base para outra tarefa moral: ajudar e as-
sistir as pessoas na sua confrontação com as normas morais tidas como universal- 81
mente válidas. Nessa tarefa, os insights de Martin podem ser de grande valia.13
Para Martin, é preciso distinguir entre moral missionária e moral pastoral,
distinção fundada em uma outra mais ampla, atividade missionária e atividade
pastoral.14 A primeira é dirigida às pessoas para quem o Evangelho “ainda não
é” boa-nova, àquelas para quem o Evangelho “não é” uma boa-nova devido ao
contexto inumano em que vivem e àquelas para quem o Evangelho “não é mais”
uma boa-nova. A segunda é dirigida àquelas que abraçaram e vivem o Evangelho
“como” boa-nova, mas precisam do apoio da comunidade à qual pertencem para
alimentar e sustentar o seu discipulado.
As metáforas bíblicas do exílio e do deserto são usadas por Martin para
simbolizar as condições de vida daqueles aos quais é dirigida a atividade missio-
nária da Igreja. As pessoas vivem, muitas vezes, em situações em que se tornam
presas fáceis de sistemas opressores, manipuladores, exploradores e, consequen-
temente, perdem a própria liberdade. Algumas são suficientemente fortes para se
libertarem desses sistemas, mas, exatamente como o povo no deserto, precisam
de tempo para restaurar suas vidas e definir um novo projeto de vida. É quase
como se precisassem aprender, de novo, a andar com suas próprias pernas. Essas
pessoas sonham com a terra prometida, mas estão muito longe dela. Outras se
sentem tão machucadas pela marginalização e exclusão a que tiveram de se sub-
13 Minha reflexão será baseada especialmente no artigo de Martin: “Moral missionária para o Novo
Milênio”.
14 MARTIN. “Moral Missionária para o Novo Milênio”..., p. 24.
meter que nem ousam sonhar com um novo projeto de vida. Precisam de tempo
para demolir as estruturas pecaminosas anteriores e coletar os destroços antes de
pensarem em reconstruir suas vidas.15
A metáfora bíblica da terra prometida é usada para dar uma ideia das con-
dições de vida das pessoas a quem é dirigida a atividade pastoral da Igreja. Elas
não estão no exílio ou no deserto. Saíram dessas situações e estão usufruindo, em
maior ou menor grau, dos benefícios da terra prometida. Por causa da formação
recebida e do apoio comunitário, podem, agora, dar mais do que antes.16
A distinção entre as atividades missionária e pastoral e as metáforas bí-
blicas que as definem nos ajudam a compreender que é preciso articular uma
proposta ética para os diferentes contextos de vida. Isso, aplicado à ética e à edu-
cação sexual, significa que não se pode exigir dos que estão no “exílio” ou no “de-
serto” da vida que abracem – da mesma maneira, com as mesmas convicções e
pelas mesmas razões — os mesmos valores e normas daqueles que se encontram
na “terra prometida”. Os que têm mais condições objetivas para “dar mais” deve-
82 riam ser estimulados a fazê-lo. Os que estão em situações caracterizadas por pou-
ca liberdade e forte opressão precisam, primeiro, ser estimulados a recuperar sua
liberdade perdida, afirmar sua dignidade e readquirir confiança em si mesmos.
Só então podem dar os primeiros passos para a “terra prometida”. Não podemos
nunca esquecer que as pessoas se movem do “exílio” para o “deserto”, para a “terra
prometida” e vice-versa muito facilmente. Nenhuma condição de vida é estática.
Consequentemente, o que é possível fazer hoje pode não ser possível amanhã;
quem tem força para incorporar algumas virtudes hoje pode não ter a mesma
força amanhã. O contrário também é verdade: o que se pensava não ser jamais
possível fazer pode ser feito hoje, e a força que não se imaginava jamais poder ter
pode ser a motriz do que se está fazendo hoje.
A questão que emerge naturalmente dessas considerações refere-se ao
lugar e papel das normas morais em situações de “exílio”, “deserto” e “terra prome-
tida”. Não há dúvida de que essas situações exigem apresentações diferentes das
normas morais. Em cada uma delas, as normas devem ter papel pedagógico. É a
situação específica que vai definir a abordagem mais pedagógica para as pessoas:
não deveria haver problema em admitir que as normas pudessem ser apresenta-
das como regras concretas permitindo ou proibindo certos comportamentos e/
ou como um apelo à autenticidade e à autonomia. Mas, a despeito de todas as
diferentes formulações que as normas pudessem ter, a prioridade, em todas as
situações, deve ser dada aos valores que elas querem expressar. O importante é
15 MARTIN. “Moral Missionária para o Novo Milênio”..., p. 24-25.
16 MARTIN. “Moral Missionária para o Novo Milênio”..., p. 25-26.
o convite para abraçar e incorporar valores. Nessa perspectiva, as normas morais
têm um papel relativo: são importantes na medida em que se tem necessidade
delas.
O que foi dito não contradiz o fato de que somos todos chamados a bus-
car ideais mais elevados e a propô-los em nossa tarefa educativa. Como cristãos,
o ideal mais elevado a ser incorporado e proposto é o seguimento a Cristo, um
seguimento que requer adesão à sua pessoa e ao seu projeto de vida. Na prática,
isso significa que todos os requisitos morais deveriam derivar dessa opção. Na
perspectiva de uma ética de crescimento, até mesmo o seguimento a Jesus tem
um caráter gradual. Não requer, como ponto de partida — ou como condição
fundamental — a adesão a uma doutrina específica, mas a disposição de acolher
o Reino de Deus na própria vida, um Reino onde “santidade” se exprime de muitas
expressões diferentes.17

Conclusão
83
As indicações de Burggraeve e os insights de Martin levam-nos a afirmar
que a nossa proposta educativa não pode ser excludente ou deixar à margem
aqueles que vivem em situações aquém do ideal moral. À luz dos atos de Jesus,
nossa proposta educativa tem de ser inclusiva. Isso implica que, como Jesus, ela
deve pôr as pessoas no centro da sua reflexão, devolver a elas a voz que perderam
ou que não se faz mais ouvir devido à distância do ideal proposto, considerar as
dificuldades, necessidades, desejos e esperanças concretas mesmo se, aparente-
mente, não sejam tão evangélicas e, sobretudo, reconhecer que entre o rigor e a
misericórdia, a segunda tem prioridade, pois é ela que salva.

Referências Bibliográficas

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era de AIDS”. In: James F. Keenan (org.). Eticistas católicos e prevenção da AIDS. São
Paulo: Loyola, 2006, p. 309-323.
17 Ver: ZACHARIAS, Ronaldo. “De uma crise sem precedentes aos precedentes de muitas crises. A
urgência de uma nova compreensão da sexualidade.” In: João Décio Passos e Afonso M. L. Soares
(eds.). Francisco: renasce a esperança. São Paulo: Paulinas, 2013, p. 69-70.
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li: o que fazer quando a realidade não tem nada a ver com o ideal proposto”. In:
Leo Pessini – Ronaldo Zacharias (orgs.). Ser e fazer. Teologia Moral: do pluralismo
à pluralidade, da indiferença à compaixão. Aparecida/São Paulo: Santuário/Centro
Universitário São Camilo/Sociedade Brasileira de Teologia Moral, 2012, p. 247-251.
Artigos
PERSPECTIVAS CRUZADAS DA
TRADUTOLOGIA CRISTÃ CANÔNICA
E EXTRA-CANÔNICA: Um olhar sobre
Transmissão, Recepção e Sitz im
Leben
CANONICAL AND EXTRA CANONICAL CROSSING PERSPECTIVES OF THE
CHRISTIAN TRANSLATION: a look on transmission, reception and Sitz in Leben
85
Elias Paraizo Jr *

RESUMO: Traduzir é sempre um empenho exigente para que se expresse correntamente a


tricotomia das perspectivas de leitura: a intenção do autor, a compreensão do leitor e a fidelidade
ao texto. Traduzir texto antigos é algo mais exigente. Traduzir texto bíblicos ainda é tarefa mais
complexa. O autor deste artigo caminha pela teorização destas questões, embasado na história
da ciência da tradução (tradutologia). Ao enfatizar o “sitz in lebem”, aponta importância atual do
método exegético histórico-crítico, para destacar aspectos basilares e norteadores da prática
tradutória de escritos provindos do ambiente cristão dos primeiros séculos, particularmente
para o português brasileiro. Além levar em conta questões como canonicidade, credibilidade nos
textos, diferenças dialetais, níveis de linguagem, graus de literalidade, arranjo formal”, e outras
como material suplementar de notas, introduções, prefácios, κτλ, o tradutor há de ter presente
traduções consagradas que estão repletas de desafios, como fundamentalismos, superficialidade
ingênua (típica da dogmática religiosa diversa), suposições, entre outros.

PALAVRAS CHAVE: tradução, critérios, método, fidelidade, sitz in leben.

ABSTRACT: TTranslate is always a demanding commitment to express correctly the Trichotomy


of the prospects of reading: the author’s intention, the understanding of the reader and the
fidelity to the text. Translate ancient texts is something more demanding. Translate biblical texts
is still more complex task. The author of this article walks on the theorization of these questions,

* Professor no Studium Theologicum, de Curitiba. Especializações: Bacharel em Teologia (UMESP). Bacharel


em Estudos Pastorais (UMESP). Bacharel em Letras Português-Grego - ênfase em Estudos da Tradução
(UFPR). Especialista em Teologia Wesleyana (UMESP/UNIMEP). Doutor em Estudos da Tradução (UFSC)
based on the history of science of translation (translation process). By emphasizing the “sitz
in leben”, points out current importance of exegetical, historical-critical method to highlight
cornerstones and guidelines of practice of translating of Christian environmental writings of
centuries, particularly for Brazilian Portuguese. Besides taking into account the issues such as
canonicity, credibility in the texts, dialectical differences, language levels, degrees of literalness,
formal arrangement, and others as supplementary material of notes, introductions, preface, the
translator should have consecrated translations filled with challenges such as fundamentalism,
naïve superficiality (typical of diverse religious dogmatic), assumptions, among others.

KEY WORDS: translation, criteria, method, fidelity, sitz in leben.

Quando o intento primeiro é o de oferecer ao leitor lusófono uma tradução,


de contínuo anotada e comentada, de alguma perícope bíblica ou, sobretudo, de
86 um escrito extracanônico – “apócrifo” (gnóstico-cristão, judaico-cristão, cristão de
composição tardia, κτλ), qualquer obra de grande circulação na Antiguidade com
pretensões canônicas e, a nós legada normalmente envolta em uma heterogenei-
dade fragmentária de material manuscrito e manus-crítico1 hebreo-siríaco-copto-
-greco-latina; assim sendo, para embasar esta lida, torna-se imperioso sopesar
algumas teorias que atendam aspectos teóricos da tradução. Particularmente,
aspectos que estão dedicados aos motes dos, assim chamados, ‘textos sensíveis’,
hoje reconhecidos, entre outros, nos textos sagrados advindos do ambiente dos
cristianismos nascentes. Poder-se-ia aludir: Friedrich Daniel Ernst Schleiermacher,
Eugene Albert Nida, Antonie Berman, e mais recentemente, de Lawrence Venuti e
Ernst-August Gutt, dentre vários.
Nas questões exegéticas e, por consequência, tradutórias de determinado
escrito cristão-palestinense, privilegia-se, na atualidade, o valor de se abarcar um
contexto histórico mais dilatado, qual seja: o sitz im leben2, conceito de cunho teu-
tônico comumente aplicado a este arquétipo escritural. Será delineado adiante e
estará assentado à luz da crítica, resultando assim, no emprego do método exe-
gético histórico-crítico.

1 O próprio material crítico e comentários é, muitas vezes, manuário, ao menos póscentenário e,


comumente, em línguas distintas. Isto demanda um razoável volume de notas.
2 Expressão dos exegetas alemães – sitz (= lugar, assento) im leben (= na vida) para dizer sobre o
‘contexto vital’ ou ‘lugar vivencial’ (alguns traduzem por ‘situação geratriz’), visa delinear o lugar,
a ocasião e, particularmente, os contornos sócio-comunitários e supra-individuais de quando
uma obra foi escrita; usada em outras línguas.
Ao considerar a história da tradução – a no entorno bíblico, em específico
– esta nos legou um rastro de reflexões encetando com as traduções do Antigo
Testamento: os ‫ =( םוגרת‬targumins)3, particularmente o Onkelos (sobre a ‫ )הָרֹוּת‬e o
Yonatan ben Uziel (sobre os ‫ ;םיאיבנ‬ambos heb.→aram.) que, talvez, sejam as pri-
meiras traduções críticas de que tenhamos conhecimento. Emolduradas por estu-
dos posteriores, quando aventam, segundo Lanzetti, as categorias de “fidelidade”
e “recepção” de obras traduzidas.4
A Septuaginta - LXX feita na Alexandria sob encomenda do rei egípcio-ma-
cedônio Πτολεμαῖος B› ὁ Φιλάδελφος5 (heb.→gr.)6 foi um outro marco, seguido
das traduções do prosélito judeu 7‫( רגה סליקע‬Ἀκύλας; heb.→gr. em 125 d.C.8), do
copto Teodosius I (de Alexandria, séc. VI, heb.→gr.), de Ἐβιωνίτης Σύμμαχος9 (séc.
3 O targumim (heb.: ‫)םוגרת‬, formas parafraseadas, explicações e expansões das escrituras judaicas
que um rabino daria na linguagem comum dos ouvintes, durante a época em que isto era
comum, mas não exclusivamente, em aramaico. Tal prática tornou-se necessária ao final séc.
I, antes da era cristã, quando a linguagem comum estava em transição e hebraico foi utilizado
para pouco mais do que a escolaridade e adoração. Tornava-se necessário dar explicações e
paráfrases na língua falada após a escritura hebraica lida. O substantivo targum é derivado da
raiz semítica quadriliteral raiz ‫םגרת‬, e o termo targummanu refere-se a “tradutor”. 87
4 LANZETTI, Rafael. Anais do VIII Congresso Nacional de Linguística e Filologia. Rio de Janeiro: 23-
27/08/2004, (on-line) < http://www.filologia.org.br/viiicnlf/anais/caderno03-14.html >. Acessado
em 04/12/2013. Embora discordemos do “séc. IV” e da “o mais ‘fiel’ ao original” mencionados.
5 Ptolomaios II Philadelfus (309-†246 a.C.).
6 A lenda conta que a terra escureceu-se por três dias por causa da tradução da Torah →gr. e
que teria sido feita por seis sábios de cada tribo, ao todo setenta e dois, uma encomenda da
biblioteca de Alexandria. Segundo BRIGTH, John. História de Israel. São Paulo: Paulus, 2003,
pp.491-7, teria sido acabada ainda durante o reinado de Ptolomeu II – 281-246 a.C., cf a Carta
de Aristeas, um documento eivado de dados mitológicos e fictícios. Note-se, porém, que na
atualidade tem-se posto dúvidas sobre a datação e autoria da LXX, pois não há registro na
literatura judaica (relativamente bem documentada) de sábios à época com este preparo
tradutório heb.↔gr. nem de tal empreitada, que seria certamente notabilizada, e nem que
houve algum deslocamento para Alexandria de tantos eruditos. Além disso, as dez tribos do
Reino do Norte já se encontravam perdidas desde o terceiro quartel do séc. VIII a.C. diante de
Teglatfalasar III, cf idem, ibidem, p.328, assim como temos na atualidade. Aqueles que defendem
a lenda utilizam-se basicamente da Ἑξαπλά (= Hexapla), de Ὠριγένης (Origenes Adamantius),
do séc. III d.C., porém, a quinta coluna destinada ao original LXX contém apócrifos que sabemos
hoje sequer haviam ainda sido escritos.
7 quila de Sinope, Ponto (50-55-†135).
8 Doravante, como este ensaio está ambientado quase que integralmente depois de Cristo,
dispensaremos o uso sistemático de d.C. – usaremos apenas a.C., quando necessário.
9 Symmachus, o ebionita (viveu fins séc. II), tradutor do heb.→gr., cujo texto ocupa a col. depois de
Áquila e antes da LXX na Ἑξαπλά de Ὠριγένης. Segundo METZGER, Bruce Manning. Theories of
Translation Process. art. 2/4 de Translating the Bible: An Ongoing Task. – in: Bibliotheca Sacra 150.
Dallas, out/dez 1993, pp.140-50, a tradução bíblica heb.→gr. de Symmachus seguiu uma “teoria
e método (...) em contraposição à Áquila”. Isto porque, “seu objetivo era fazer uma tradução
em um grego elegante. A julgar a partir dos fragmentos dispersos que permanecem de sua
tradução, Symmachus tendia a ser perifrástico em representar o original hebraico. Ele preferiu
construções gregas idiomáticas em contraste com as outras versões em que as construções
hebraicas eram preservadas. Assim, ele geralmente convertia em um particípio grego o primeiro
de dois verbos finitos relacionados com uma cópula. Ele fez uso abundante de uma ampla gama
II; heb.→gr), as diversas versões antigas da Vetus Itala (ou Latina), et aliӕ. Outro
período em relevo é o da Vulgata editio, versio et lectio10 (heb.→lat.), por Eusebius
Sophronius Hieronymus, apologista ilírio, clérigo, mas sobretudo célebre como
tradutor bíblico, de quem o Papa Bento XVI disse em Audiência geral, em 07 de
novembro de 2007:
A preparação literária e a ampla erudição permitiram que Hierony-
mus fizesse a revisão de muitos textos bíblicos: um precioso trabalho
para a Igreja latina e para a cultura ocidental. Com base nos textos
originais em grego e em hebraico e graças ao confronto com versões
anteriores, ele realizou a revisão dos quatro Evangelhos em língua
latina, depois o Saltério e grande parte do Antigo Testamento. (...) É
interessante ressaltar os critérios aos quais o grande biblista se ateve
na sua obra de tradutor. Revela-o ele mesmo quando afirma respeitar
até a ordem das palavras das Sagradas Escrituras, porque nelas, diz,
“até a ordem das palavras é um mistério”.11

No entanto, Hieronymus, como tradutor de Marcus Tullius Cicero, vivencia-


ra antes um dos preceitos levantado por Cicero – o do intérprete: uerbum pro uer-
88 bo, mantendo-as adnumerare (numericamente equivalentes), na obra cicereana
Libellus de optimo genere oratorum, de 46 a.C. E que, mais tarde, em 18 a.C., na
Epistola ad Pisones12 de Ars Poetica ou, como a conhecemos, Ars Poetica, de Quin-
tus Horatius Flaccus, se perpassaria tal princípio com o fim relativizar a questão da
fidelidade. Esta será a principal demanda teórica da tradução no transcurso dos
últimos dois mil anos, segundo Mounin13: “fidelidade às palavras de um texto ou
ao pensamento contido nele”?
Durante a Renascença, no entanto, é que temos disseminados os prin-
cípios fundantes da tradutologia moderna. Estes esforços estão associados
com trabalhos como os de: Leonardus Brunus Aretinus, Martin Luther, Io-
annes Lodovicus Vives, Sebastiano Fausto da Longiano, Étienne Dolet e Ge-

de partículas gregas para trazer distinções sutis de relacionamento que o hebraico não pode
expressar adequadamente. Em mais de uma passagem Symmachus tinha uma tendência para
suavizar expressões antropomórficas do texto hebraico.” No entanto, seu objetivo era o de
preservar o significado do texto através uma tradução mais literal que a LXX.
10 Edição, tradução e leitura de divulgação popular.
11 PAPA BENTO XVI citando HIERONYMUS, Eusebius Sophronius. Ep. LVII, 5 – (Para Pammachius) –
De optima genere interpretandi. [trad. anom.]. (on-line) < http://www.vatican.va/ holy_father/
benedict_xvi/audiences/2007/documents/hf_ben-xvi_aud_20071107_po.html >, acessado
25/10/2012. —— As citações provêm de uma variedade de línguas, nas quais o material de
pesquisa encontra-se disponível. As traduções destas, quando não identificados os tradutores
(caso de terceiros), foram realizadas por este pesquisador.
12 Trata-se de personagens romanas – Lucius Calpurnius Piso (senador e cônsul) e seus dois filhos
– que nos permitem identificar melhor a datação do poema e seu objetivo.
13 MOUNIN, Georges. Teoria e storia della traduzione. Torino: 1965, Einaudi, p.63.
orge Chapman14. De Martin Luther destaca-se, a partir de suas Tischreden,
uma “teorização” tradutória associada a uma “diretriz hermenêutica teoló-
gica” ao estilo popular, comunicativo e marcadamente humanista no uso
filológico de originais, como temos em Sendbrief vom Dolmetschen (1530) e
Summarien über die Psalmen und Ursache des Dolmetschens (1531)15.
Portanto, ao se perceber a riqueza de aspectos que envolvem a tradutolo-
gia de textos advindos de contextos antigos e sagrados, e para alcançar ao desíg-
nio aludido no parágrafo inicial introdutório, mostra-se cada vez mais tangível a
imprescindível necessidade de instruir-nos com os métodos clássicos das teorias
da tradução. Assim, um dos objetivos da presente ensaio é destacar aspectos ba-
silares e norteadores da prática tradutória de escritos provindos do ambiente cris-
tão dos primeiros séculos, particularmente para o português brasileiro. Questões
aparentemente sem grande relevância em uma conjuntura secular, são tomados
de “grande valor sociolinguístico no contexto bíblico”, e que pesem, especialmen-
te às alusivas à “canonicidade, credibilidade nos textos, diferenças dialetais, níveis
de linguagem, graus de literalidade, arranjo formal”, e outras como material suple-
mentar de notas, introduções, prefácios, κτλ.16 89
É necessário, portanto, discernir o favorecimento histórico da longa tradi-
ção de tradutores de textos cristãos, com sua ênfase na práxis e o seu significado
para o tradutor de textos da Antiguidade cristã na atualidade, bem como ele deve
trabalhar. Estaremos, assim, estudando a sua teoria e prática, o caráter vital da
sua tradução, a natureza da motivação, a necessidade da experiência com aspec-
tos da teologia cristã, os atributos que devem caracterizá-lo e, especialmente, sua
competência tradutória. Este é o retrato do tradutor de textos sagrados cristãos,
uma efígie redesenhada pela história a partir do século XVI, durante a Alta Renas-
cença, que se torna exemplo para os séculos seguintes.
A partir de um grupo de pesquisas: (i) pesquisa ‘Retratos da Leitura no Bra-
sil’ do Instituto Pró-Livro, em conjunto com Observatório do Livro e da Leitura,
17

14 FURLAN, Mauri. A teoria de tradução de Lutero. – in: Annete Endruschat; Axel Schönberger (orgs.).
Übersetzung und Übersetzen aus dem und ins Portugiesische. Frankfurt am Main: Domus
Editoria Europӕa, 2004, pp.11-21.
15 idem. ibidem.
16 NIDA, Eugene Albert. Bible Translation. – in: Mona Baker (ed.), Routlegde Encyclopedia. London;
New York: Routledge, 2001, pp.24-5.
17 Dimensionamento amostral nacional, com a margem de erro máxima estimada 1,4 p.p. A Bíblia é
apontada várias vezes nos resultados: i) é o gênero mais lido (acima de livros didáticos, romance,
livros religiosos, contos, literatura infantil, história de quadrinhos, κτλ); ii) em 2007 com 57,0
milhões de leitores (45% da base de leitores), em 2001 com 41,1 (42%); 1º. lugar em ‘Gêneros que
costumam ler’, ‘Livro mais marcante’, ‘O último livro que leu ou está lendo’, κτλ. Escopo da pesquisa:
medir intensidade, forma, motivação e condição de leitura da população brasileira. Metodologia,
resultados, e outros – in: Pró Livro. (on-line) < prolivro.org.br/ipl/publier4.0/dados/anexos/2834_10.
pdf >, acessado em 19/12/2012.
IBOPE Inteligência, ABRELIVROS, CBL & SNEL (Brasília, 29 de março de 2012) que
objetiva um amplo diagnóstico nacional do comportamento de leitura do brasi-
leiro que norteia decisões do mercado editorial; (ii) ‘Pesquisa internacional sobre
leitura da Bíblia, na perspectiva ecumênica’ (Vaticano, novembro de 2007 - julho
de 2008)18; (iii) pesquisas do CEBI – Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, CERIS
– Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais, et aliӕ; pode-se afirmar
que milhões de leitores ou ouvintes, diariamente, entram em contato com um
texto sagrado19 através da leitura direta destes textos traduzidos, pela audição de
sermões e palestras ou através de comentários e devocionais. Porém, para este
amplo público nos deparamos com um número ainda insuficiente de teóricos
que estudam com cuidado a tradução, recepção e comunicação20 destes escritos
cristãos.
A complexidade da tradução da literatura cristã antiga aponta os para os
consequentes desafios: (i) embora pareça óbvio, as publicações religiosas, e.g. as
Bíblias Ave Maria21 e a versão da New Internacional Version22 demonstram a neces-
90 sidade de se evitar uma superficialidade ingênua no trato com tais textos; (ii) de
não escamotear as conjunturas histórico-literárias que surpreendem pelo rebrote
18 DIOTALLEVI, Luca (org.). La ricerca dei dati JFK-Eurisko. JFK-Eurisko & Ecclesia. Vaticano:
Departamento de Sociologia – Università Roma TRE, 2008. Apresentada pelo presidente do
Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos, Cardeal Walter Kasper e o
secretário-geral das Sociedades Bíblicas, Rev. Archibald Miller Milloy apontam que no período
da pesquisa: os níveis mais baixos de leitura bíblica dos países cristãos pesquisados encontram-
se na França e Espanha (20%) e o mais alto nos EUA (75%). Outros dados: na Europa, ao contrário
das Filipinas e EUA, as homilias não são apreciadas. Nos EUA, Alemanha e Itália a televisão é o
meio de comunicação religiosa preferido.
19 As pesquisas (i) e (ii), isoladas, já nos permitem vislumbrar milhões de leitores diários da Bíblia.
Mas temos leitores do Bhagavad-Gita, Tanakh, Tri-Pitakas, Riq veda, Amnaya, Alcorão, Sunnah ou
Hadith, Livro de Mórmon, Talmude, Livro dos Espíritos, Livro dos Médiuns, Kojiki, Zend Avesta, Guru
Granth Sahib, Mahabharata, Nihon Shoki, Evangelho segundo o Espiritismo, Espírito de Profecia et
alii.
20 O termo aqui será empregado na perspectiva ‘social’, ou seja, “comunicação social” conforme
art. MASON, Ian. Communicative/funcional approaches. – in: Mona Baker (ed.), Routlegde
Encyclopedia. London; New York: Routledge, 2001, pp.30-1. Este artigo perpassa os trabalhos de
cf LASSWELL-1945 e NORD-1991, onde a noção comunicação e alteridade concebem a aspiração
de partilha de uma extensa gama de sentidos, particularmente os extralinguais (culturais,
psicológicos, antropológicos, sociolinguísticos, sócio-históricos, κτλ). Segundo HYLMES-1971 o
conceito de “communicative competence” contrapõe “capacidade e manifestação” da “linguagem
e da língua”, conforme a dicotomia formal chonskyana-1965 de “competence / performance”.
Neste mesmo sentido, uide STEINER, George. Depois de Babel. Curitiba: UFPR, 2005, pp.77-9, a
compreensão, resultado efetivo da comunicação, é vista como tradução (ambos meios de acesso
social).
21 A mais comercializada e popular versão entre católicos brasileiros; uma re-tradução a partir do
francês.
22 Mais conhecida como NIV ou NVI, a mais vendida entre protestantes no Brasil, tão alterada de
edição a edição, por questões comerciais, que atualmente é amplamente reconhecida como
“família NVI”.
destas, e.g. versões bíblicas parafraseadas: BNL, NTLH23; (iii) de distinguir e lidar
com a resistência dos fundamentalismos já sedimentados; (iv) e de entender que
a interpretação desta literatura e as questões da sua tradução ‘oscilam historica-
mente de um lado para o outro’. A despeito do problema desta complexidade
acima referida, é instigante estarmos abertos a novos olhares acerca das deman-
das tradutórias do material textual do período subapostólico no contexto do
cristianismo nascente (deuterocanônicos, apócrifos, apócrifo-gnósticos, judaico-
-cristãos, κτλ).
Por fim, o ápice na busca por traduções da corpora24 dos textos apó-
crifos gnóstico-cristãos deu-se, de forma enviesada, com a polêmica obra
de vendagem magistral25 – The Da Vince Code. Brown, mundo afora, sacu-
diu a fé de milhões com a abordagem de temas como prelados, irman-
dades, movimentos religiosos diversos, alguns abduzidos da historicidade,
fruto de labor tradutório silencioso a partir das três décadas anteriores;
também de outros mais contemporâneos26. Nesse ressurgir do interesse
pelos “apócrifos”, Brown reinventa na literatura27 a possibilidade de que no 91
cristianismo nascente28 teria encetado uma conspiração para dissimular o
“episódio” que Jesus se casara com Maria de Magdala29, personagem que
traz retratada por Da Vinci na Última Ceia.
Um aspecto é de particular interesse à discussão: a tessitura desta trama
subjaz, em certa medida, estruturada no achado, também na dilatação do espec-

23 Respectivamente: Bíblia na Linguagem de Hoje; Nova Tradução na Linguagem de Hoje.


24 O uso de corpus (nom. sg.) é mais usual para se referir a um coletivo de textos (pt.) devido ao
latim vulgar. Porém, preferimos aqui uso da expressão latina corpora (n. pl.) que expressa com
mais riqueza o sentido deste coletivo (tão diverso) não só por uma questão lexicográfica, mas de
estilística.
25 Com mais de 80 milhões de exemplares este romance, paradoxalmente histórico-ficcional,
já despontava como sucesso, mas não se tinha noção da extensão colossal que esta teoria
conspiratória despertou junto ao grande público com o lançamento da versão fílmica.
26 e.g. Opus Dei, Iluminatti, Priorado de Sião, Templários, Maçonaria, κτλ.
27 lustram a anterioridade deste gênero literário de tênue linha divisória entre história e ficção: A
Relíquia de Eça de Queiroz (1887), O Evangelho Segundo Jesus Cristo de José Saramago (1981)
e The Escaped Cock (reintitulado posteriormente para The Man Who Died) de David Hebert
Lawrence (1929)
28 Ainda nem católico nem ortodoxo e nem protestante.
29 HASKINS, Susan. María Magdalena: mito y metáfora. Barcelona: Herder, 1993, p.35, este nome
teria vindo do heb. El-Mejdel ou migdal e do aram. magdala, significando torre. Centro comercial
da época do Segundo Templo. Rota internacional onde pessoas de religiões e costumes distintos
se encontravam no mercado; localidade que se destacava na produção do peixe salgado, tecido
tingido e agropecuária; e onde coexistiam pacificamente as culturas judaica e helênica. Foi
arruinada em razão da ignomínia e do comportamento devasso de seus habitantes, em 75, o
que poderia, de certa forma, ter contribuído para mudar o nome e a reputação de Maria de
Magdala.
tro de uso, dos escritos apócrifo-gnósticos de Nag Hammadi, 194530, cuja afirmati-
va está no personagem Teabing: “80 evangelhos foram estudados para compor o
Novo Testamento e, no entanto apenas alguns foram escolhidos – Mateus, Marcos,
Lucas e João”31. Esta tessitura faz um construir sobre, recuperando questões no
ponto em que ocorre a tênue linha divisória entre a história (descrição dos histo-
riadores) e a ficção (imaginação, fantasia do autor)32.
Mas, faz-se imperioso abordar os reptos mais sérios levantados com
este romance daquilo Ehrman33 definiu, hoje comumente aceitos, como
“escrituras perdidas” e “cristianismos perdidos”. Não poucos scholars ava-
lizam que o cânon34 de livros do NT deu-se de modo bastante arbitrário e
30 De onde também provêm textos rechaçados tão veemente quanto foi a sua circularidade e a
pretensão canônica do autor. —— Brown utiliza-se de simbologias, eventos e personagens
extraídos dos textos apócrifos gnóstico-cristãos.
31 BROWN, Dan. O Código da Vinci. São Paulo: Sextante, 2003, p.220.
32 É fato também que a obra de BOCK, Darrell L.; BOCK, Heiko. Breaking The Da Vinci Code: Answers
to the Questions Everybody’s Asking. Nashville: Nelson Books, 2004A-B, in to.op., atrelada a
outras tantas contestações como de Martin Lunn, Erwin W. Lutzer, Dan Burstein, Carl E. Olson
& Sandra Miesel, Steve Kellmeyer tenham refutado-a com notável facilidade à classificação
92 de romance ficcional. — Representam uma modesta amostra da inexorável reação religiosa:
LUNN, Martin. Da Vinci Code Decoded: The Truth Behind the New York Times #1 Bestseller. New York:
Disinformation Company, 2004. LUTZER, Erwin W. The Da Vinci Deception. Illinois: Tyndale House
Publishers, 2004. BURSTEIN, Dan. Secrets of the Code – The unauthorized Guide to the Mysteries
behind the Da Vinci Code, New York: CDS Books & LLC, 2004. OLSON, Carl E. & MIESEL, Sandra,
The Da Vinci Hoax. San Francisco: Ignatius, 2004. KELLMEYER, Steve. Fact and Fiction in the Da
Vinci Code. Peoria: Bridegroom Press, 2004.
33 EHRMAN, Bart. D. Site oficial. (on-line) <http://www.bartdehrman.com/biography.htm>,
acessado em 03/02/2010. Informações oficiais noticiam que o professor e chefe do departamento
de religião da Universidade da Carolina do Norte, USA, foi protestante, mas atualmente
considera-se agnóstico, porque considera a Bíblia adulterada, uma vez que não temos acesso
aos manuscritos originais. Paradoxalmente, é ocupa posição no topo da lista de scholars para
estudos do NT. Presença constante em programas de TV e rádio; uma autoridade internacional
nos estudos sobre o cristianismo e vida de Jesus. Sua pesquisa é constantemente usada pelas
redes NBC, CNN e History Channel entre outras.
34 Por si só, a questão do cânon é bastante emblemática; e.g., na época de Jesus, do AT havia três
cânones: (i) o dos fariseus, eleito Escritura Sagrada, posteriormente, no Concílio judaico de
Jâmnia, 90, sendo atual cânon judaico de onde advém o ™ (usado pelas Bíblias protestantes);
(ii) o dos saduceus, extremamente curto (Torah e mais alguns livros) e (iii) a LXX – m (trad. gr.
em 270 a.C.) que continha outros livros totalizando 53 livros e alguns acréscimos em livros já
existentes; era o mais usado na época de Jesus, pois das aproximadamente 350 citações do
AT no NT, mais de 300 vêm da LXX. Os cânones cristãos são ainda mais muito variados hoje:
(i) o católico para o AT tem 46 livros e 27 para o NT (diferente da LXX para o AT); Jerônimo,
uma voz destoante, foi para Belém estudar hebraico com os rabinos e defendeu o cânon de
Jâmnia (39 para o AT), mas assim mesmo traduziu os deuterocanônicos; (ii) os anglicanos foram
os primeiros a adotar o cânon judaico para o AT, após a morte do Rei Tiago – a versão antiga da
King James version mantinha os 46 livros para o AT, hoje 39 e 27; (iii) o protestante luterano tem
39 no AT e 27 no NT (e mantém os 7 deuterocanônicos em apêndice, como leitura edificante,
não são sagrados ou inspirados); (iv) o protestante contemporâneo exclui este apêndice; (v) os
cânones ortodoxos são muito diversificados uns dos outros e normalmente mantém os 53 livros
da LXX no AT e 27 no NT. (vi) as Igrejas Ortodoxas Não-Calcedocianas – rejeitam o Concílio da
Calcedônia sobre a dualidade de naturezas de Cristo, e.g. a Igreja Ortodoxa Etíope, que mantém
a formação de uma ὀρθοδοξία35 (ὀρθός + δόξα + ια = opinião reta expressando
qualidade) não se deu unicamente pelo seu mérito, todavia pela perspicácia polí-
tica de um lado vitorioso. A despeito deste tema, Layton afirma que:
Uma das principais linhas divisórias no vasto terreno da história
cristã antiga é a ascensão ao trono do imperador pró-cristão
Constantino Magno, em 306 d.C. A partir daí, o cristianismo começou
a ser adotado, mais e mais abertamente, como a religião do governo
imperial romano. Com isso, a idéia (sic) e a realidade de uma Igreja
única, unificada e ortodoxa foram, aos poucos, se estabelecendo.
Mas nos três séculos antes de Constantino é mais difícil encontrar
algo semelhante a uma Igreja principal ou a uma tradição central:
em vez de uma corrente principal, encontram-se vários afluentes.36

além do cânon católico 3 e 4 Mac, o acréscimo aos Salmos – Sl 151, 1Ed, o Livro de Enoque, o
Livro dos Jubileus (estes dois últimos sequer compõem a LXX); no NT também é diferente, onde
constam como canônicos AtsPl, I Clemens e o Pastor de HERMAS (gr.: Ποιμήν του Ερμά; heb.:
‫ ;סמרה העור‬ou chamado simplesmente de O Pastor); (vii) outras Igrejas Ortodoxas que adotam a
orientação dos Concílios Ortodoxos de Jassy (Romênia, 1642) e Jerusalém (1672), além do católico
recebem como canônicos o acréscimo Sl 151, 1Ed e a Oração de Manassés; (viii) a Igreja Ortodoxa
Síria acrescenta a estes o Pastor de Hermas; (ix) as Epístolas Católicas Menores (canônicas) de II
Pe, Jd, Tg, II e III Jo mais o Ap (de João) foram bastante contestadas na Antiguidade e a Bíblia
Ortodoxa Siríaca – Peshita os exclui; (x) nem o Quarto Evangelho (de João) escapou à crítica e
aparece pela primeira vez em alguma lista do cânon apenas c.a 170; (xi) de outro lado, o Pastor
93
de Hermas, Epístola(s) de Policarpo, Ep.(s) de Inácio, Ep.(s) de Clemens tiveram grande aceitação
e circulação nas antigas listas canônicas do NT, os melhores códices para atual crítica textual
bíblica – Codex Alexandrinus, Sinaiticus e Vaticanus – testemunham isso; (xii) os cristãos da Igreja
Copta (norte África) conhecem as palavras de Jesus através do “pseudoepígrafo” Ev. de Tomé
– λόγια (= coletânea ditos de Jesus); (xiii) Igrejas como a Ortodoxa Armênia, Ortodoxa Russa,
Ortodoxa Grega, κτλ, têm ainda hoje cânones diferentes destes anteriores ou atribuem níveis
de inspiração diferenciados; (xiv) Martin Luther chamou a Ep. de Tiago (canônica) de “epístola
de palha” devido a sua vontade de subtraí-la do cânon, não ocultou sua intenção; também
reacendeu o debate sobre os ἀντιλεγόμενα (escritos “disputados”, que há alguém proeminente
“contrário a ela”) no Pais da Igreja, que levou que se chama de Antilogoumenas de Lutero; (xv)
John Calvin afirmou nas Institvtio Christianæ religionis (maior obra teológica protestante até a
atualidade) que o Apocalipse (de João; canônico) “mais atrapalhava do que ajudava com sua
presença no canôn”; (xvi) Os Ev(s) dos Hebreus e dos Ebionitas (não canônicos) ainda circulam
em algumas listas de cânon. Cada parte insiste na visão de harmonia, mas essas divergências
representam uma visão mais objetiva da questão canônica ainda hoje. Isto sem adentrar na
desarmonia intra dos textos aceitos comumente como canônicos, e.g. os quatro Evangelhos.
(xvii) Ainda no séc. VIII, na lista de ἀντιλεγόμενα, do Patriarca Nicéforo I de Constantinopla figura
o Apocalipse ou Revelação.
35 Expressão especializada, que no sentido atual ocorre a primeira vez com o Imperador Teodósio,
381. Apesar de tal expressão cristalizada entre nós, o Dictionnaire Grec-Français A. Bailly sequer
faz menção. Igualmente o Lexicon Liddel & Scott que não possui um verbete próprio para o termo
(apenas uma menção marginal). O conceituado internacionalmente DPAC (it.) – BERARDINO,
Angelo Di (org.). Dizionario Patristico e di Antichità Cristiane (it.), Rome: Instituto Patristico
Augustinianum 1988; e DPAC (pt.), São Paulo; Petrópolis: Paulus; Vozes, 2002, p.1054, indica o
uso especializado deste termo aos tempos subapostólicos das cartas pastorais (1Tm 1.3; 6.3)
o que não corresponde, pois os termos empregados lá são outros ἑτεροσδιδασκεῖν (1.3) e
ἑτεροσδιδασκεῖ (6.3), que aplicadas ao rigor exegético não restariam sequer conotativos. No
aparato crítico NGT (Greek New Testament – 4ª. Rev. Ed.), mais atual texto crítico do NT, não temos
manuscritos discordantes das palavras gr. supra nem K ou P ou qualquer Pai da Igrejavid até 381;
resta a hipótese hermenêutico-teológica evidente.
36 LAYTON. Bentley. As escrituras gnósticas. São Paulo: Loyola, 2002, p.XVII.
Nunca houve uma era tão bem servida de recursos como este derra-
deiro meio século decorrido: surpreendentes achados arqueológicos (Qu-
mran, Nag Hammadi et alii), avanços da Ecdótica, a Linguística aflora neste
século para oferecer seu contributo, a conexionalidade e disponibilização
de pesquisas digital-virtualmente, avanço nos estudos filológicos, desco-
bertas de substâncias para o trato com pseudoepígrafos, κτλ. Sem qual-
quer pretensão na demanda teológica, é presumível que estejamos agora
em melhor ponto de vista por dispormos de outros evangelhos, atos e epístolas,
alguns fonte dos próprios gnósticos, e que nos permitem melhor juízo no
que acreditavam ou o que foi axiológico no(s) cristianismo(s) primitivo(s).
Não é Brown o único exemplar deste reabrolhar dos apócrifos. Há
uma gama de textos e suas versões fílmicas que são dignos de menção37. A
cada dia, novas abordagens voltadas às pedras angulares do cristianismo
têm sido difundidas por material de leitura fácil e em especiais de televisão
sobre Maria de Magdala, o Código da Vinci e muito mais, por scholars bem
94 articulados como King38, Pagels39 e Ehrman40.
Neste ponto, avulta-se a relevância dos Estudos da Tradução para
o trato com textos sagrados – tão privados e sensíveis, suas demandas
tradutórias – não só quantitativas, mas igualmente qualitativas e a
consequente lide hermenêutica envolvida nesse processo. Por este cami-
nho, neste ensaio se pretende deliberar por pressupostos das teorias de
tradução que norteiem um plano tradutório para textos do ambiente cris-
tão dos séculos I-II. Com o uso de teóricos variados e diacronicamente, se
tentou evitar o sobressair de algum destes com tal superioridade que mar-
que ou acastele alguma tradução41.
37 e.g., a milionária trilogia de filmes dos irmãos Wachowski – Matrix, Matrix Reloaded e Matrix
Revolutions que lucraram além de um bilhão de dólares e fascinaram com muitos oscars;
outros como: Minory Report de Spielberg, O Troco de J. Woo, os clássicos da série Blade Ranner
de R. Scott, o Stigmata de R. Wainwrigtht cuja temática é um diálogo extraído do Ev. de Tomé
com desdobramentos nas questões sobre liberdade e a austeridade hierárquica vaticana
e a prodigiosa ficção de Philip K. Dick, site oficial, (on-line) < http://www.philipkdick.com/
>, acessado em 19/10/2010, todos estes também captaram esta demanda. Para abreviar a
vastíssima lista ainda cito os best-sellers e filmes: The Bible Code, Bible Code II: The Countdown e
Bible Code III: Saving the World de Michael Drosnin.
38 Karen King – Universidade de Harvard.
39 Elaine Pagels – Universidade de Princeton.
40 Bart D. Ehrman – Universidade da Carolina do Norte.
41 e.g. de outras escrituras sagradas para as quais cabem os mesmos cuidados teóricos: o Bhagavad-
Gita do hinduísmo; Bíblia Hebraica do judaísmo (heb.  ‫ ך״נת‬, transl. Tanakh: Torah, Profetas e
Escritos); o Tri-Pitakas do budismo; o NT do cristianismo e o Alcorão dos muçulmanos. Há uma
extensa gama de textos sagrados (outros chamados “apócrifos”, diferenças entre os cânones,
κτλ) que se tem notícia, no entanto estes são mais conhecidos e também pela maior parte da
população mundial.
Apartada a antiga acusação de que alguma tradução que preten-
da ser bela deve ser arrolada entre as belles infidèles, a acepção do termo
‘tradução’ aqui avança a partir do modelo benjaminiano de “forma” – “A tra-
dução é uma forma. Concebê-la como tal implica regressar ao original.”42
Assim sendo, se “reconceitua a tarefa do tradutor: trans-pôr, trans-formar.
Entenda-se, formar noutra língua, re-formar na língua da tradução a arte
do original.”43 Quando encerra seu ensaio, Walter Benjamin define tradução
de textos sagrados:
Não existe, no entanto, nenhum texto além do sagrado no qual o
sentido deixe de ser o separar das águas entre as torrentes da língua
e as torrentes da revelação. No momento em que o texto, imediata-
mente, sem sentido intermediário, pertence, na sua literalidade, à
verdadeira língua, à verdade ou à doutrina, aí ele é pura e simples-
mente traduzível. E não por sua vontade, mas por vontade das lín-
guas. É exigida em relação a ele uma confiança ilimitada da tradu-
ção, de tal modo que, sem tensão, língua e revelação têm aqui de se
reunir, sob a forma de versão inter-linear (sic), como no outro caso
literalidade e liberdade. Pois todos os grandes escritos contêm num
certo grau – os sagrados, porém, no mais alto grau – entre as linhas
a sua tradução virtual. A versão inter-linear (sic) do texto sagrado é a
imagem originária ou ideal de qualquer tradução.44 95
Através de Benjamin percebemos que a tradução sacra é “desassossegada”
tal como a própria literatura sagrada o é. Sendo, por vezes, paradoxal em certos
aspectos, o que nos leva a não nos valermos tão somente de esquemas prontos
e ajustados para atingir nossos fins tradutórios. Por outro lado, tem sido fácil fi-
car apreensivo com as disputas, ou até com a falta, de método. Tem-se ansiado
pelo “teor” e “acepção”, porém deslembrados de que não existe ingresso direto ao
conteúdo e à significação à parte de algum dos possíveis métodos legítimos de
tradução. Para demonstrar, são muitos os exemplares exegéticos que fazem apro-
ximações ao texto com suposições, acomodações e ferramentas de análise que
levam a eleger uma ou outra categoria do escrito e arranjar, realçar e interpretar
tais aspectos como arquétipos significativos. Portanto, não se deve passar rápido
à prática sem uma cuidadosa ponderação. As teorias nos lançam luz supina sobre
os assuntos, sobre a metodologia e as implicações da nossa prática tradutória.
Nesta mesma direção, quando Borges discute a questão da obscuridade,
do enigma e da transposição linguística num artigo acerca das traduções de Ho-
mero, “sem destacar nenhuma delas como ‘superior’ as demais”, acaba por definir

42 BENJAMIN, Walter. A Tarefa do Tradutor (Die Aufgabe des Übersetzers, Gesammelte Schriften,
1921, IV.1, pp.9-21). Lisboa: 1999, p.13. (on-line) < http://www.c-e-m.org/wp-content/uploads/
a-tarefa-do-tradutor.pdf >, acessado 13/09/2012.
43 FURLAN, Mauri. Linguagem e tradução em Walter Benjamin. – in: Anais do XI Encontro Nacional da
Anpoll. João Pessoa: 1996, pp.551-6.
44 BENJAMIN. op.cit., p.13. Ensaio que tanto furor acendeu nos teóricos da Teoria da Recepção.
a tradução feita a partir de uma língua clássica como: “Nenhum problema é tão
consubstancial com as letras [clássicas] e com seu modesto mistério com o que
propõe uma tradução.”45
Somente com visão equilibrada e a consciência ajustada do uso do méto-
do, enquanto verdadeiro e diligentemente justaposto ao texto antigo, teremos
condições: (i) de perceber porque alguns exegetas bíblicos têm tanto discordado
em suas conclusões; (ii) de proporcionar relato contemporâneo seguro e afiançá-
vel; (iii) e prover arguição apologética que resguarde nossos próprios métodos e
procedimentos.
Tem-se dado, na atualidade, primazia ao método histórico-crítico, cuja es-
colha implica na necessidade de tentar re-criar46 o legado da Antiguidade, quanto
foi possível, dentro do âmbito e da extensão propostas pela pesquisa: (i) as prá-
ticas e hábitos sociais; (ii) argumentações e raciocínios desenvolvidos no texto a
partir de normas e regras decodificadas através de textos paralelos; (iii) e, também,
aspectos intelectivos e morais da época. Isto como forma de provocar a recompo-
96 sição de algumas das representações do orbis, do cotidiano, do(s) cristianismo(s)
nascentes, da política e praxis do Império Romano no período subapostólico. Dis-
pensa-se sempre maior atenção aos entretons de cunho cronológico e termino-
lógico, colocando em interface informações de múltiplas fontes, tendo o cuidado
da crítica histórica apropriada, da crítica textual e literária, e finalmente, sempre
justificando as opções escolhidas. Nem se despreza a riquíssima iconografia autô-
mona, que importa fontes e media rastros de reflexão da Antiguidade.
Elege-se, insistimos, neste norte, o método histórico-crítico, usado em
averiguas diacrônicas47, em detrimento aos métodos fundamentalista48 e o es-
45 BORGES, Jorge Luis. As versões homéricas. – in: Discussão. São Paulo: Difel, 1985, p.71.
46 Para justificar este “re-criar” temos de EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura: Uma introdução. São
Paulo: Martins Fontes, 2006, pp.18-9 quando trata de obras literárias que atravessaram séculos,
menciona que: “Pode acontecer, é claro, que ainda conservemos muito das preocupações
inerentes à própria obra, mas pode ocorrer também que não estejamos valorizando exatamente
a ‘mesma’ obra, embora nos pareça. O ‘nosso’ Homero não é igual ao Homero da Idade Média,
nem o ‘nosso’ Shakespeare é igual ao dos contemporâneos desse autor. Diferentes períodos
históricos construíram um Homero e um Shakespeare ‘diferentes’, encontrando em seus textos
elementos a serem valorizados ou desvalorizados, embora não necessariamente os mesmos.
Todas as obras literárias, em outras palavras são ‘reescritas’, mesmo que inconscientemente, pelas
sociedades que as leem (sic); na verdade, não há releitura de uma obra que não seja também
uma ‘reescritura’. Nenhuma obra, e nenhuma avaliação atual dela, pode ser simplesmente
estendida a novos grupos de pessoas sem que, nesse processo, sofra modificações, talvez quase
imperceptíveis.”
47 Visada sob o prisma da gênese e gradativa evolução de dado escrito, conjecturando elucidar a
acepção mais original quanto possível, dentro dos diversos estágios transmissivos.
48 Sua hermenêutica sobrevém de um ponto de vista literal e histórico. Mostra-se contrário a
análises críticas por pressupor certos dogmas (e.g. canonicidade) e aponta constantemente em
direção a inerrância de textos, comunidades e autores.
truturalista49. Sendo ‘crítico’, deve emitir uma série ponderações acerca das fontes
do seu objeto de estudo. Neste particular, abandona-se a hermenêutica alegórica
medieval, na busca de um sentido literal, que também mira na relativização de
determinados postulados dogmáticos. É uma metodologia por essência racio-
nal50 e insistentemente inquiritiva. É também ‘histórica’ porque labuta com fon-
tes históricas que remontam séculos, ou até milênios, cujos estágios formativo-
-transmissivos restam contaminados pelo processo tradição oral e da evolução do
texto que nos legou, criando eras ou sítios distintos de compreensão do mesmo.
Analisando, portanto, a substancialidade das categorias históricas que motivaram
essas fontes em seu vario espectro evolutivo.
Outra decorrência metodológica preliminar: opta-se, normalmente, por de-
senvolver resumos breves sobre a prática tradutória, noções literárias, questões
históricas e teológicas, κτλ. em textos sagrados no contexto do(s) cristianismo(s)
nascentes51. Nesta temática existe uma ampla gama de conhecimentos e abor-
dagens psicológicas, religiosas, místicas, estéticas, pessoais e até coletivas. Não
há como abordá-las todas; alguns aspectos mais periféricos permanecerão into- 97
cados. Sob este ponto de vista metodológico, elege-se formular proposições su-
cintas, o que nos ajuda a envolver um número maior de questões que exigem a
nossa atenção, assim como evitar o impulso de dar respostas definitivas que se li-
mitam sempre a um determinado ponto de vista. Os documentos que usa-se para
esta (re)construção mental do passado são submetidos a pontos de vista díspares,
49 É a interpretação que desconsidera a transmissibilidade de textos, ou seja, sincrônica. O foco dá-
se nos atuais intérpretes, nas “estruturas de linguagem”: a manifesta e a profunda, na pragmática,
na semântica e na linguística-sintática.
50 Na acepção do Iluminismo e posterior.
51 A Bíblia provocou um círculo literário ao seu entorno, fato que é reconhecido hoje por ser o
único livro declarado Patrimônio da Humanidade, o mais vendido no mundo. Além de o mais
lido, certamente, também o mais citado e estudado em trabalhos científicos e ensaísticos.
Traduzido completamente ou em porções para mais de 2287 línguas e dialetos diferentes,
talvez por isso o identifiquemos apenas como “o Livro”, ou precisamente, o coletivo n. pl. gr. “os
Livros” – τά βίβλια, que pelo latim vulgar restou-nos chamado pelo sg. – a Bíblia. Judeus e cristãos
o têm como sagrado por crerem que tenha sido revelado por Deus e até ateus e incrédulos
leem estes escritos, alguns com mais de 3000 anos, com admiração e respeito. Muito da grande
literatura clássica mundial tem sua construção imagética nestes textos. Aqui no Brasil, é comum
mesmo em casas de descrentes, ver-se a Bíblia aberta num atril, em algum lugar de destaque
na sala principal da casa, numa forma de trato especial, como se outros livros carecessem
disso. Sem falar dos nomes bíblicos dados a maioria das crianças mundo a fora, das edições
cinza colocadas nas mesinhas de cabeceira dos hotéis, presídios, organizações militares, κτλ.
O texto bíblico contém todos os gêneros literários: poesia, narrações históricas, contos, hinos,
provérbios, profecias, orações, κτλ. com o melhor dos ingredientes da grande literatura mundial:
violência, erotismo, intriga, humor, denúncia, mistério, curiosidades, κτλ. Acrescido ainda, das
especulações, no suposto “código secreto matemático do texto hebraico”, que ao que alguns
têm tentado demonstrar com ajuda de poderosos computadores, apontaria para a previsão de
eventos futuros. Mentes brilhantes deram os melhores anos das suas vidas nesta mesma busca:
e.g. Isaac Newton, Miquèl de Nostradama, Leonardo da Vinci, κτλ.
no sentido de produzir uma multiplicidade de olhares – até paradoxais, às vezes.
As próprias fontes numinosas (textuais, iconográficas, literárias, κτλ.) são contradi-
tórias. Não poucas vezes, dão-nos várias representações, mas que foram mantidas
cativas aos pressupostos epistemológicos anunciados aqui. E com o apropriado
cruzamento de informes interdisciplinares provindos da história das religiões (es-
pecialmente, a história do cristianismo), da linguística, antropologia, psicologia,
literatura, arqueologia e até numismática (nos casos de menção a valores). Isto
posto, para que de alguma forma o (re)construir se dê o mais sustentável possível
– dentro da delimitação e limitação de certa pesquisa – do discurso ideológico in-
cômodo que alguns textos suscitaram na Antiguidade (e também na atualidade).
Por opção metodológica, costuma-se trabalhar com exaustão o modelo
canônico, seu sitz im leben, sua cultura vivencial, história, forma, estilo, sintaxe e
outras variáveis sutis que podem implicar numa tradução cristã. E os escritos que
foram denominados de “apócrifos” pelo seu conteúdo, forma e pela disputa da
paternidade apostólica, invariavelmente, devem ser remetidos ao cotejo com os
98 modelos canônicos. Qualquer escrito é depositário de alguma tradição literária
ou textual e a exempla, em maior ou menor grau de originalidade – um “apócrifo”
não é exceção. Além disso, pelo fato de ter sido legado da Antiguidade e nor-
malmente, fragmentado em diversas línguas, o desafio da distância temporal é
potencializado pelas demandas multilinguísticas, pluriculturais, κτλ. O que eleva
a complexidade para a visão contígua do texto na sua leitura e, do consequente
procedimento tradutório que caminha de contínuo na tentativa de reconstrução
do texto na Antiguidade. Um número substancial de notas de aparato crítico e
comentários evidencia este esforço tradutório.
Particularmente, um introito à tradução deverá apresentar uma (re)visão da
riqueza crítica que revolve a obra, como problemas e tendências relativas à gê-
nese da literatura cristã, definição de conceitos operatórios e critérios de análise,
transmissão e recepção do texto na ainda na Antiguidade, revisão datal, identi-
dade autoral, questões de gênero literário e estrutura narrativa; além de algumas
generalidades necessárias ao início deste estudo. Analisa, além dos estudos mais
recentes, apontamentos que, mesmo sendo seculares, constituem uma valiosa
fonte argumentativa à ensaística sobre determinado texto na atualidade.
Portanto, propõe-se um ensaio interpretativo da obra, a partir da tricoto-
mia das perspectivas de leitura tal como situadas por Eco52, quais sejam, intentio
auctoris, intentio operis e intentio lectoris: (i) auctoris, uma coletânea das referên-
cias biográficas provindas da Antiguidade. Embora esteja bastante sedimentado,
na crítica literária, o caráter imanente desta obra, um resgate dos testemunhos
52 ECO, Umberto. Os Limites da Interpretação. Lisboa: Difel, 1992, pp.29-31.
biográficos sobre personagens que abalizaram a recepção da obra será vital, até
mesmo para podermos propor algumas reavaliações; (ii) operis, tem lugar uma
releitura dessa riqueza biográfica tradicional, visando uma interpretação da obra
não apenas através de testemunhos históricos, mas principalmente, através do
conteúdo e forma expressa pela própria obra; (iii) derradeiramente, lectoris, um
cenário da recepção do personagem nas literaturas de expressão lusófona, que
constitui da análise das citações já existentes em português. Também está de-
dicado às questões tradutórias, entre elas: as decorrências advindas de um tex-
to legado via tradição oral, constitutivos literários resultantes de uma síntese de
línguas no ambiente minorasiático-palestiniano, a distância temporal de uma
língua clássica e as acepções de ‘Equivalência Dinâmica’, ‘movimento hermenêu-
tico’, ‘alteridade’, ‘estrangeirização’, ‘etnocentrismo’, ‘fidelidade’ e ‘transparência’. Por
fim, suscitando discussões entre a Teoria da Pragmática e a tradutologia de textos
apócrifo-cristãos.
Outras demandas metodológicas práticas da tradutologia cristã:
I) Identificar o tipo de linguagem e recorte de língua empregado nos ma- 99
nuscritos, particularmente, para a tentativa de ‘re-construção’ do grego
κοινή (língua original) cujos rastros estão presentes nas largas porções
legadas através de traduções53, notório pressuposto de qualquer tradu-
ção, se revela tarefa bastante complexa ao se tratar dos escritos apó-
crifos gnóstico-cristãos. Entre os tópicos estão: a noção abrangente da
estratificação textual e das linguagens, os critérios de análise como ‘his-
toricidade’ e ‘não-historicidade’, a problematização das traduções da An-
tiguidade com a língua original da obra, análise das formas subgêneros,
aparato crítico, textos e versões, bem como o possível local de composi-
ção. Deseja-se que tenha havido um preparo prévio e amadurecido nas
línguas e culturas grega, latina e hebraica (algum do aramaico), a detida
revisão do léxico especializado e constante aprimoramento da língua,
que devem ser supridos com o estudo individual mediante consulta a
especialistas.
II) A metodologia passa pela elaboração dos procedimentos técnicos da
tradução à luz das teorizações nas manifestações tradutórias de scholars.
Tal esforço certamente alivia a tensão entre tradução livre e literal e cuja
eleição da metodologia “passaria a ser informada pela teoria das funções

53 Os termos principais não são apenas escorregadios: eles estão muito claramente marcados por
uma dupla acusação, moral e pragmática, o que pode tornar muito forçoso o uso neutro, onde
há de se obedecer ao “movimento hermenêutico”, o ato de extração e transferência apropriadora
do significado, em seus estágios cf STEINER. 2005, op.cit., pp.317ss.
da linguagem, pelo tipo de texto e pela finalidade da tradução”.54 É um
programa de tradução, ou seja, uma interpretatio tanto na sua acepção
tradutória, quanto na hermenêutica, fruto da exegese do documento
original e da revisão crítica de uma certa tradição em língua portugue-
sa. A tradução é uma procura, search55. Sob esse prisma, toda tradução
requer um programa, mesmo que não explicitamente declarado, a fim
de garantir sua coerência interna e, atendendo ao requerimento das afi-
nidades, de desvelar a construção de sua pretensa paridade.
III) Deve haver um labor na tentativa de identificação das organizações como
fontes de dados e pessoas que desenvolvem trabalhos coordenados e
estruturados em torno destes textos. Outra vez, para a pesquisa em cur-
so, fez-se uso além dos materiais especializados, de um rol de obras de
referência, thesaurus, guias enciclopédicos da literatura patrística. Notes-
-se que para contextualização e tradução, às vezes faz necessário alcançar
a literatura cinzenta56, tendo em vista à formação de um aceitável banco
100 de dados. Gestão junto às bibliotecas para o acesso aos documentos é
o componente mais difícil, pois se tratam de livros e materiais bastante
antigos, muitos “semipublicados” e não facilmente encontrados. Sem a as-
sistência de pessoas especializadas será quase impossível.
Entre os motes desejáveis, estabelece-se realizar uma tradução e comentá-
rio crítico de acordo com o seguinte enquadramento: (i) tradução dupla coluna,
bilíngue (gr., cop. e/ou lat. → pt.); (ii) edições críticas, traduções que existem, pes-
quisas em curso, κτλ; (iii) ideário teológico; (iv) caráter da obra; (v) tipologia dos
personagens; (vi) o problema das fontes primárias (utilização da Bíblia, romance
grego, outras fontes e intertextualidades); (vii) questão da língua original (como
sabemos se é tradução ou original?); (viii) o escopo deste texto; (ix) lugar possível
da composição; (x) valor histórico; (xi) legenda posterior; e (xii) a ligação com ou-
tros textos, κτλ. E ao final, uma singela indaga: Que personagem surge destes tex-
tos? É o personagem canônico? Dito de outra forma, buscar delinear a figura do
protagonista dessa obra, traçando paralelos, contrastes, pontos convergentes e
divergentes com as várias imagens segundo as outras fontes documentais cristãs.

54 BARBOSA, Heloisa Gonçalves. Procedimentos Técnicos da Tradução – Uma nova proposta.


Campinas: Pontes, 1990, p.111.
55 “Translation is a search for an equivalent, not for a substitute. It requires stylistic, if not psychological
congeniality”, cf BRODSKY, Joseph. Quase uma elegia. Rio de Janeiro: Sete Letras, 1996, p.140.
56 Tradução literal de grey literature, usado para designar documentos não convencionais e
semipublicados bastante utilizada nesta área dos estudos cristãos antigos. Designa documentos
que têm pouca probabilidade de serem adquiridos através dos canais usuais de publicação.
Contrapõe o que caracteriza os documentos convencionais ou formais, ou seja, a literatura
branca.
Recorre-se sempre que foi possível às fontes primárias, inclusive fac-símiles,
em grego, latim, copta (hebraico e aramaico em alguma ocasião) para o melhor
aprofundamento da questão. Em muito destes textos, cuja crítica textual não está
suficientemente assentada, pode significar grande ajuda na interpretatio, o cui-
dado comparativo das edições e traduções em cotejo com elementos textuais
mais antigos. Também outro esforço se dirige a evitar a ‘imaginação criativa’ na
leitura de uma época, língua e lugar tão particulares, bem como a transposição de
modelos interpretativos anacrônicos e aplicações que atendem a outras épocas.
Evita-se passar muito próximo de variantes-dogmas, que ao se apropriarem de
certos resultados da pesquisa laboram como inibentes do juízo lógico-histórico.
Neste mesmo propósito, por vezes, deverá haver um empenho ao de distanciar-se
da demanda teológico-religiosa sempre que possível.
Isto porque o comprometimento sempre empenhado será o de evitar uma
superficialidade ingênua (típica da dogmática religiosa diversa). Também, por ou-
tro lado, de não escamotear as conjunturas literário-teológicas que surpreendem
pelo rebrote destas, de reconhecer a resistência dos fundamentalismos religiosos 101
já sedimentados e de entender que a interpretação desta literatura ‘sensível’ e das
questões da sua própria tradução ‘oscila de um lado para o outro’. Mesmo assim é
instigante estar aberto a uma nova perspectiva acerca das questões da tradução
de textos produzidos no período subapostólico no contexto dos cristianismos
nascentes (deuterocanônicos, apócrifos, apócrifo-gnósticos, judaico-cristãos,
κτλ).
102
Artigos
Et incarnatus est. “Carne”
de Deus*
Et incarnatus est. “Flesh” of God

Xabier Pikaxa Ibarronda **

RESUMO: Deus se fez carne humana. Esta verdade da fé é o mistério mais importante entre nós,
mas também é o mais difícil de ser acreditado e compreendido, pelos cristãos que tanta vezes são
mais monofisitas, platônicos ou gnósticos. Mas, Jesus é a “carne de Deus” e é a “carne dos irmãos”.
Perpassando os textos sinóticos, e em comparação com gnósticos, o autor se fixa em dois textos 103
joaninos e estabelece a exegese devida, para ressaltar a história da biografia de Deus e afirmar
que nós também nascemos de Deus, mesmo que tenhamos nascido da carne e da história.Por fim
chama a atenção para uma necessária ligação na leitura de Jo 1, 13 com Jo 1,14, para podermos
afirmar que Deus se fez nossa carne e a divinizou, e, por fim Jesus não quer nem pode separar de
nós.

PALAVRAS CHAVE: carne de Jesus, carne dos irmãos, evangelho, nascer (nascimento), sangue/
sangues. .

ABSTRACT: God became human flesh. This truth of faith is the most important mystery among
us; but it is also the most difficult to be understood and believed by Christians, who many
times are almost monophysites, platonic or Gnostics. Jesus, however, is the “flesh of God” and
is the “flesh of the brothers”. By going through the evangelical texts, and in comparison with
other gnostics, the author settles on two texts from the Gospel of John to establish the proper
exegesis, aiming to highlight the history of biography of God and to affirm that we too are born
of God, even if we have born of blood and history. Finally, the author draws attention to the link
that is imposed on reading Jn 1, 13 with Jn 1,14, so that we may be able to affirm that God made
himself our flesh and made it divine, and thus Jesus doesn’t need nor can be separated from us.

KEY WORDS: flesh of Jesus, flesh of the brothers, Gospel, born (birth), blood/bloods.

* Texto enviado pelo autor e arquivado no blog Igreja Instituções, Jesus, Nuevo Testamento,
María, 02.01.15
** Doutor em filosofia, teologia e Sagrada Escritura. Foi catedrático na Universidade do Episcopado Espanhol e
professor da Pontifícia Universidade de Salamanca. Autor de artigos científicos e inúmeros livros, dos quais
o último: Historia de Jesús, Navarra: Editorial Verbo Divino, 2013.
Esta é a palavra mais significativa da história de ocidente, e para nós,
cristãos, a mais importante da humanidade: Deus se “encarnou¨, se fez vida
na “carne/história” dos homens, e assim o acolhemos com fé, e celebramos seu
mistério em Jesus de Nazaré, que nos dias de Natal nasce na Liturgia..

Uma fé “difícil”
Muitos homens e mulheres não entendem, não podem aceitar esta
palavra, pois não creem que haja um Deus que possa e queira encarnar-se
(fazer-se humano); não creem quiçá nem tão pouco no homem como “capaz de
ser Deus”. Por isso, um gênio da filosofia como o judeu L. Wittgenstein (tão amigo
dos cristãos, porém não cristão) dizia que o maior que existe é um tipo de filosofia
como a de Platão, ou um tipo de religião como a de Buda ou Maomé, onde Deus
está sempre separado, ou não existe, ou não se encarna.
Muitos “crentes” da Igreja, tão pouco, entendem e também não acei-
104 tam de verdade esta palavra da “encarnação” (pois são no fundo mais pla-
tónicos que cristãos). Dizem que Deus se encarnou, porém depois entendem
essa encarnação de uma forma “espiritualista” (como raio de luz por um cristal!),
sem aceitar de verdade a “carne” de Maria (a mãe de Jesus), nem a carne de Je-
sus. K. Rahner dizia que no fundo somos “monofisitas” (não cremos no homem);
eu acrescentaria que somos “gnósticos” (não cremos na carne de Deus, nem por
conseguinte na carne humana)

A fé no menino, carne de Deus, o mais fácil


Pois bem, sem negar os valores de Buda, de Platão ou de Maomé e os de
tantos outros pensadores e profetas (incluídos muitos “platónicos eclesiais”), os
cristãos confessamos a encarnação de Deus, tal como foi formulada pelo evan-
gelho de João (J 1, 14) e pelo Credo ( e se encarnou por obra do Espírito Santo).
Deus continua sendo Deus (mais Deus que nunca, mais misterioso e distinto),
e o homem humano (pequeno e grande…). Porém esse mesmo Deus quis ser Deus
em forma humana, partilhar conosco sua vida, para que nós vivamos na sua.
Isso significa que “todo menino” nasce de Deus, com Jesus (Jo 1, 14), como
Jesus (Jo 1, 12-13), sendo carne e sangue, desejo de vida, porém carne e sangue
de Deus , necessitando a ajuda de outros homens (mulheres e homens) que o
acolham).
Este é o mistério central da “terceira missa” do Natal, também é o evan-
gelho do Segundo Domingo de Natal (Jo 1, 1-18), um texto que ainda não
penetrou de verdade na consciencia cristã, pois somos mais monofisitas que
messianicos, mais gnósticos que cristãos.
Dizemos sem dúvida essa palavra (e inclinamos a cabeça quando se canta
na missa solene Et incarnatus est!). Porém depois não cremos de verdade nela
(ainda que o “segundo evangelho”, Jo 1-18m se tenha lido em todas as missas até
o Vaticano II).
Não custa ver a Deus na carne/história da história, nos meninos que nas-
cem, nos pobres expulsos da terra, como “carne” de fome ou de canhão... Por isso
é urgente este evangelho da carne de Deus que nasce e espera (germina) na
debilidade forte da vida dos homens e mulheres da terra..

O EVANGELHO CRISTÃO
Segundo essa passagem (Jo 1, 1-18), que se lê e canta de forma solene na 105
missa deste domingo, os cristãos afirmamos que Jesus é a encarnação de Deus , é
“todo Deus” sendo “todo homem”, quer dizer, carne da história. Mais que isso não
se pode dizer, nem menos tão pouco se se quer manter em sua plenitude a he-
rança do evangelho. Nesse sentido afirmará o concilio de Nicea que Jesus é Deus
(de natureza divina) e o de Calcedonia que é perfeito Deus e perfeito homem (de
natureza divina e de natureza humana)… Essas formulações conciliares refletem
um tipo de pensamento quiçá abstrato, que pode e deve ser re-traduzido. Porém
em sua base segue estando este evangelho que nos diz que Jesus é “a carne hu-
mana” de Deus.
(a) o mesmo Jesus histórico, nascido, morto e ressuscitado é a Carne
de Deus. Por isso, os cristãos buscamos e vemos a Deus na “carne”, quer dizer, na
história (a mensagem, o amor, o caminho) de Jesus, a quem chamamos o filho de
Deus.
(b) Se Jesus é “carne” de Deus, nele e com ele são carne de Deus todos
os seus “irmãos” e de um modo especial os pobres (como sabe e diz Mt 25, 31-
46)... E nesse sentido, conforme a linguagem mais filosófica dos Concilios (Nicea
e Calcedonia) deve-se dizer que toda a “natureza” humana é carne de Deus (reve-
lação de seu Ser).
(c) Celebrar a encarnação de Deus em Jesus significa celebrar o valor
divino do humano e comprometer-se no serviço qo homem, de todos os ho-
mens, e em especial dos excluídos desta sociedade imperial de consumo, que são
irmãos de Jesus, carne de sua carne, sangue de seu sangue, para empregar uma
linguagem bíblica e eucarística.

Texto básico (condensado)


[Deus é Palavra] no principio era a palavra e a palavra era junto a Deus, e a
palavra era Deus. Estava no principio junto de (em)Deus.
[Palavra Criadora, luz] Todas as coisas foram feitas por ela, e sem ela não se
fez nenhuma. O que oi feito era (tinha) vida nela e a vida era a luz dos homens
(Jo 1,1-4).
[Todos nascemos de Deus] a palavra era a luz verdadeira, que alumina a todo
homem … Veio a sua casa, e os seus não a receberam, porém a quantos a rece-
beram, lhes dá poder de ser filhos de Deus, se creem em seu nome. Estes não
nasceram do sangue, nem do amor carnal, nem do amor humano, mas de Deus.
106 [Encarnação plena] e a palavra se fez carne e habitou entre nós e temos vis-
to sua glória, glória de Unigénito do Pai, cheio de graça e verdade (1, 14).
[Revelação] A Deus ninguém o viu jamais; o Deus unigénito, que
estava no seio do Pai nos foi revelado (1, 18)

BREVE COMENTARIO, DESDE O FINAL


– A Deus ninguém viu jamais.
Esta frase pode ser interpretada num sentido israelita; foram precisamente
eles, os judeus, os que afirmaram que ninguém pode ver a Deus sem morrer;
eles são os que depois acrescentaram que o nome de Yahvé é silencio, que não
se pode nem dizer; eles são os que, conforme a 2 Cor 3-4, quiseram por um véu
sobre os olhos para não profanar o mistério de Deus.
A Deus ninguém viu: seu mistério continua sendo inacessível. Esta é a ver-
dade final do mais profundo judaísmo que, sem embargo, de forma admirável,
século após século, tem sabido tirar forças dessa transcendencia divina, para con-
fessar a Deus, através da fidelidade à Lei e às tradições. Não creem os judeus no
filho de Deus que é Jesus, porém a confissão do mistério divino lhes faz viver em
atitude de confissão intensa.
– O Deus (Filho) Unigenito que estava no seio do Pai...
Alguns manuscritos dizem “o filho Unigenito”, porém os mais significativos
mantêm esta leitura mais difícil, chamando a Jesus Deus Unigenito (monogenest
theou, que habita no seio do Pai, como Luz e Palavra. Estritamente falando, a pa-
lavra que traduzimos como seio do Pai (kolpon tou patrou) significa peito e, em al-
gum sentido, coração. É como se o filho existisse reclinado no peito do Pai, como
o Discípulo Amado esteve no peito de Jesus (Jn 12, 23). Porém essa imagem pode
levar-nos a tomar a Deus como “um seio de mãe” onde habita e cresce o filho/
Deus unigenito. Esta afirmação paradoxal do Deus materno, do Pai em cujo seio
(materno) surgiu e se mantem o filho, é o cume da confissão cristã.

Isso nos foi revelado


Habitando no Seio do Pai, Jesus vive (viveu) ao mesmo tempo entre os hu-
manos, numa história bem concreta de amor e entrega em favor deles. Só aquele
que viveu no seio de Deus pode revelar seu amor de Pai. Este é o segredo, este o 107
mistério radical do evangelho, que todo o resto do livro de João quis descrever.
Não podemos resumir aqui a mensagem de Jo sobre o Pai, pois essa men-
sagem se expande em todo o evangelho, de maneira que só lendo-o por inteiro
podemos conhecê-lo. Para isso deveríamos escrever um tratado completo sobre
o amor do Pai e do filho segundo João. Porém com isto rompemos nosso esque-
ma. Baste, portanto, o que já foi dito.
Por principio, o cristianismo formulou a experiencia cristã desde uma pers-
pectiva pascal, partindo da visão do Cristo crucificado e ressuscitado. Porém, uma
vez que os cristãos interpretam a Jesus como o filho de Deus enviado pelo Pai,
estão já formulando o tema de sua preexistencia e o fazem antes de tudo desde as
perspectivas e colocações que lhes oferece o contexto judeu ou, dizendo melhor,
judeu-helenista.

Cristãos e gnósticos
Significativamente, os sinóticos, a partir de Mc, contaram a história do
Jesus Messias, porém não como encarnação de um ser divino preexistente, mas
como caminho de entrega e morte do Cristo humano, que realiza sua ação salva-
dora entregando a vida em favor do reino. Eles contêm, sem dúvida, elementos
que podem ser situados na linha da preexistencia (em especial desde a visão de
Jesus como Sabedoria), porém os re-interpretam desde a perspectiva do mistério
pascal: de morte e ressurreição. Nesse aspecto, os mesmos relatos da concepção
virginal e do nascimento de Jesus pelo Espírito (Mt 1-2; Lc 1-2) intentam expressar
o sentido divino da origem de Jesus (brota do amor do Pai, por meio do Espírito),
porém sem apelar à preexistencia. eles supõem que Jesus é filho de Deus em
sua vida concreta de ser humano na história de sua entrega pascal, ratificada por
Deus na ressurreição.
Ao contrário disso, a visão gnóstica defende a preexistencia das almas
humanas que caíram do plano superior do divino e se misturaram com a matéria
ruim, como chispas de luz perdidas no mundo; para libertá-las desceu também
do plano superior divino um salvador preexistente. Só porque vem de cima e nos
ensina a superar o mundo pode libertar-nos. Esse mito gnóstico, desenvolvido
amplamente no II séc. d. C., parece destruir o valor da história e a independencia
dos seres humanos. Tempo e eternidade tendem a se opor como entre os gregos:
a preexistencia se torna supra-existencia, de maneira que Jesus perde sua base
histórica e se converte em sinal eterno de uma humanidade já sem tempo.

108 Pois bem, ao contrário do risco gnóstico, o evangelho de João desen-


volveu a história biográfica de Deus, partindo de sua encarnação. Esta é a sua
mensagem: Jesus é a carne de Deus. Isso significa que, nascendo de Deus (sendo
Deus de Deus), Jesus nasce na história, na carne dos homens, sendo assim “carne
divina”. Porém não nasce isolado, para ficar separado, mas para mostrar que todos
nascemos de Deus, sendo filhos da carne e da sangue.

TODOS NASCEMOS DE DEUS


Existindo na eternidade, Deus, a palavra de todas as palavras, se fez Carne,
ser pessoal, na história. Por isso, quando dizemos que «Deus é Palavra», estamos
aludindo de fato a Jesus, que é o Unigenito (= Filho) de Deus Pai. Deus é Palavra,
porém não uma palavra qualquer (de palavrório e esquecimento, de imposição e
crítica, de inveja e separação), mas uma palavra que escuta e aprende, que se dei-
xa iluminar e que dessa forma ilumina… isso significa que encontramos a palavra
de Deus na palavra dos homens.
A partir disso quero comentar o tema central de este evangelho: Todos nas-
cemos de Deus!

Palavras centrais (Jo 1, 12-13)


A palavra era a luz verdadeira, que ilumina todo homem. Veio ao mundo e es-
tava no mundo; o mundo se fez por meio dela, e o mundo não a conheceu. Veio a sua
casa, e os seus não a receberam.
Porém a quantos a receberam, lhes deu o poder de serem filhos de Deus, se cre-
em em seu nome. Estes não nasceram de sangue, nem de amor carnal, nem de amor
humano, mas de Deus.
E a palavra se fez carne, e habitou entre nós, e temos contemplado sua glória:
glória própria do filho único do Pai, cheio de graça e de verdade.

Delimitação e sentido geral


Quero insistir em Jo 1, 12-13, traduzindo suas palavras ao pé da letra:
a. aos que a receberam (a palavra de Deus), deu lhes o poder de serem fi-
lhos de Deus
b. “os quais» [o qual] não foram nascidos (não foram gerados) nem dos san-
gues, nem do desejo (=vontade) da carne, nem do desejo (vontade) de um varão,
a’. mas que foram nascido de Deus.
É evidente que a primeira e a terceira parte (a e a’) se correspondem: elas
109
dizem que os que escutam a palavra (os que acolhem a Jesus) são filhos de Deus,
no sentido.....e no plano do significado profundo: que significa não nascer dos
sangues e do desejo do varão/carne?

Leitura no singular: o que nasce sem desejo da carne é Cristo


Quem é ou quais são os que não nascem dos sangues… do desejo de va-
rão? Há uma leitura menos utilizada, porém atestada em muitos códigos antigos e
em diversas tradições onde o texto está no singular: não está hoi egennethêsan…
(os quais não nascem… da carne, mas de Deus), mas hos egennethê (o qual não
nasce da carne, mas que nasce de Deus).
Se a segunda leitura é mais primitiva e se toma ao pé da letra, como fazem
muitos,… o texto quer falar de Jesus… e contrapô-lo ao resto dos homens, que
nascem dos sangues (sangues menstruais e puerperais das mulheres e do desejo
da carne/varão). Jesus, em contrapartida teria nascido de um modo puramente
virginal... sem desejo de varão (José), sem sangues de mulher (sem menstruação,
sem parto normal). Em outras palavras: não teria havido em sua concepção ne-
nhum desejo de varão (o desejo da mulher não era levado em conta, naquele
contexto); não tinha havido sangue menstrual de Maria… mais ainda, ela teria
permanecido virgem no parto (um parto sem sangue).
Alguns pensamos que, se as coisas são assim, tornar-se-ia difícil dizer que
Jesus foi um homem verdadeiro. Porém esta leitura poderia ser tomada também
sentido simbólico… e dizer que Jesus nasceu do desejo de Deus, não do desejo
humano, entendido de um modo radical, não em plano biológico

Leitura no plural…
A maior parte dos manuscritos tem o texto no plural e assim o coloca o
texto litúrgico. Nessa linha, todos os que creem em Jesus nascem de Deus, não
provêm do desejo da carne e do sangue (da vontade do varão…). Pois bem, essa
leitura plural, que é predominante, pode ser entendida desde várias perspectivas:

Perspectiva radical, de tipo gnóstico… Toda geração é má


Alguns gnósticos antigos ( e alguns cristãos normais) consideram tudo
110 quanto está relacionado com o sangue menstrual e o desejo da carne/varão
como algo pecaminoso, como se pode ver em muitos textos de Santo Agostinho.
Eles interpretam de modo literal a palavra de um salmo que diria: “et in peccatis
concepit me mater mea”. Os meninos nascem do pecado da mãe e do pecado do
pai… os verdadeiros gnósticos não nascem dessa forma, mas somente de Deus,
pois todo o processo da geração está manchado por um tipo de pecado original
que continua. Por isso dever-se-ia buscar um mundo sem desejo de varões, sem
sangue menstrual e desejo de mulheres.
Perspectiva simbólica… Há uma geração superior (todos viemos de
Deus), mesmo que tenhamos nascido da carne e sangue da história.
A maioria dos cristãos interpreta esta passagem no plural: por obra de Deus,
como irmãos de Jesus, todos nascemos de Deus. Por isso tem-se que distinguir (não
separar) os dois níveis:
a) Num plano cósmico, os homens nascem dos sangues da mulher (não
se conhecia antigamente o óvulo feminino; pensava-se que a mãe dava somente o
sangue…) e do esperma do varão… Nascemos do sangue da história (simbolizada
na mulher) e do desejo da vida (simbolizado no esperma do varão, que é desejo de
carne…). Deus mesmo quis se encarnar nesse plano de “carne, expresso na vida dos
homens e das mulheres. Assim nasceu Jesus, assim nascemos todos nós.
b) Porém, num plano superior, os crentes nascem da Palavra, quer dizer,
nascem da vontade e da vida de Deus, somos com Jesus a encarnação de Deus…
E nesse nível todos nascemos de uma forma imaculada (quer dizer, superior à
ordem biológica)… Há algo no homem que algo que nasce de Deus: a palavra
(alguém diria a alma…).
Vinculação criadora: o desejo de Deus no desejo e no amor humanos, de
homem e mulheres…
Quando João 1, 14 diz que o Verbo se fez Carne… está dizendo algo mais
profundo… Deus mesmo entrou na carne e no sangue, no desejo de varão ( e
no desejo da mulher… que também o tem). Desde essa perspectiva temos que
reinterpretar o texto, contrariando a letra do próprio João, dizendo:
Os que escutam a Palavra… Nascem não só do sangue-carne-varão… mas
que nascem do Deus que atua como palavra fundante através desse mesmo
sangue-carne-varão… o sangue/desejo da mulher (biologicamente seu óvulo) e
o desejo/carne do varão (biologicamente seu espermatozoide) podem ser e são
veículos da palavra de Deus, de tal maneira que toda autentica concepção huma-
na é concepção imaculada…

111
Conclusões:
a) Creio que o texto de Jo 1, 13 é um texto radical e inclusive «peri-
goso», pois pode levar-nos a uma visão gnóstica de Cristo (que teria aparecido
em forma humana sem nascer de verdade) e a uma visão “puramente carnal” dos
cristãos, condenados a uma vida de carne/sangue/desejo… sem chegar nunca a
Deus, sem ser “encarnação” de Deus.
b) Mais ainda, este texto deu lugar a muitos problemas na Igreja …
Parte da condenação da sexualidade (sangue de mulher, desejo de varão, desejo
mútuo) está vinculada a uma visão errada desta passagem, separada de Jo 1, 14
onde se diz que a carne é Deus (palavra de Deus). Só ali onde reunimos Jo 1, 12-
13 com Jo 1, 14 podemos afirmar algo mais profundo: Deus se fez carne, divini-
zou a carne de nossa história, pois Jesus não pode nem quer separar-se de nós.

c) Esta passagem deve ser reinterpretada na atualidade… desde a


nova perspectiva biológica e humana que se abre a partir do evangelho e desde
a própria ciência moderna….porém na sua base continua sendo exemplar: o nas-
cimento humano é lugar mais preciso e mais profundo de experiência de Deus.
d) Por isso, Jesus quis nascer como nascem os seres humanos, em tudo
menos no pecado… Só assim faz parte de nossa família humana. Esta é a
mensagem que quis expressar no centro de meu livro a FAMILIA na BIBLIA (Ver-
bo Divino, Estella 2014).
Este é o principio do compromisso cristão (não platónico) a favor da carne,
quer dizer, da história concreta de os homens, como história de Deus.
(Nota Erudita: Sobre a leitura plural ou singular do texto de Jo 1, 12-13...,
em sentido erudito, com a grande disputa de fundo que ocorreu desde o princí-
pio da Igreja também tratei em meu livro sobre a família).

112
Artigos
O LEGADO DA ESPIRITUALIDADE
DE TEILHARD DE CHARDIN *
THE SPIRITUAL LEGACY OF TEILHARD DE CHARDIN

Agustín Udías Vallina**

RESUMO: Teilhard de Chardin morreu dia 10 de abril, há 60 anos. Um expressivo grupo


internacional de intelectuais, ao criar o Teilhard Project, propõe recuperar o legado deste que foi e
continua sendo um cientista inovador, filósofo heterodoxo, místico jesuita e poeta deslumbrante;
enfim um homem discutido, cujas contribuições já fazem parte do patrimonio cultural da
113
humanidade. O presente ensaio sintetiza alguns traços da sua espiritualidade. Para Teilhard, o
trabalho científico constituia já em si mesmo uma forma de adoração e afirma que ciencia e
religão formam duas faces de um mesmo movimento do conhecimento da realidade. Realidade
esta fundada um proceso evolutivo. Em sua cosmovisâo resume sua atividade: “universalizar a
Cristo” e “Cristificar o universo”. Daí, em sua ascética cristã, como um processo de divinização das
atividades e passividades humanas direcionadas a Cristo Cósmico e Universal, luz diáfana de
Deus, no mundo – meio divino – pode celebrar a sua famosa “Missa sobre o mundo”.

PALAVRAS CHAVE: Nudez; vergonha; pecado; Adão; Eva; vestes. .

ABSTRACT: Teilhard de Chardin died April 10, 60 years ago. An expressive international group
of intellectuals, by creating the Teilhard Project, proposes to recover his legacy, who was and
who continues to remain as an innovating scientist, unorthodox philosophy, Jesuit mystic
and a stunning poet; finally a man who has been discussed, whose contributions have become
part of the cultural heritage of mankind. This essay summarizes some traces of his spirituality.
For Teilhard, the scientific work constituted in itself already a form of adoration. Science
and religion form two faces of the same movement of knowledge od reality founded in an
evolutionary process. In his Cosmo vision resumes his activity: “universalize Christ” and “Christify
the universe”. Hence, his ascetic Christian spirituality becomes a process of divinization of
activities and human passivity directed towards the cosmic and universal Christ, in the world –
half divine – in order to celebrate the famous “Mass about the world”.

KEY WORDS: Spirituality, legacy, worldview, cosmic Christ, activity and passivity.

* Texto cedido pelo editor da REVISTA ELECTRÓNICA DE CIENCIA, TECNOLOGÍA, SOCIEDAD e


CULTURA. ISSN 2174-6850, Tendencias21 de las Religiones.
** Catedrático de Geofísica en la Universidad Complutense de Madrid, é colaborador da Cátedra Ciencia,
Tecnología y Religión e de Tendencias21 de las Religiones
INTRODUÇÃO
As contribuições de Teilhard já fazem parte do patrimonio cultural huma-
no. Em abril se completam os 60 anos do falecimento do cientista, teólogo e
filósofo que propos uma espiritualidade cósmica. Na ocasião, um grupo de inte-
lectuais de entidades internacionais recordarão a data do falecimemto de Pierre
Teilhard de Chardin (1881-1955). O Teilhard Project pretende recuperar e poten-
ciar aquelas dimensões de Teilhard que já fazem parte do patrimonio cultural da
humanidade. Talvez seja a proposta de uma espiritualidade cósmica o traço mais
significativo de Pierre Teilhard de Chardin, um dos personagens do século XX
sobre o que mais se tem escrito e sobre o que as penas mais apaixonadas tenham
escrito mais louvores e mais críticas.
Dia 10 de abril de 1955 falecia em Nova Iork de forma súbita Pierre Teilhard
de Chardin (1881-1955). Havia nascido em 1881 e passou uma parte importante
de sua vida trabalhando como geólogo e paleontólogo em China. Cientista ino-
vador, filósofo heterodoxo, místico jesuita e poeta deslumbrante, continua sendo
114 um homem discutido.
O chamado Teilhard Project, por ocasião dos 60 anos de seu falecimento,
tem reunido muitos esforços humanos para recuperar seu legado para o novo
milenio. Neste ensaio sintetizamos alguns traços da espiritualidade deste perso-
nagem histórico e recolhemos material procedente de um Master em espiritua-
lidade inaciana, com o título “A espiritualidade de Teilhard de Chardin. Uma espi-
ritualidade desde a visão científica do mundo”, foi realizado pelos estudantes, em
2014.

Uma cosmovisão evolutiva


Como sacerdote e como jesuita, a maior preocupação de Teilhard foi como
integrar o pensamento cristão dentro da nova cosmovisão apresentada pelas
ciencias de um mundo em evolução. Esta preocupação está já presente em seus
primeros escritos de juventude, continuará até as últimas páginas escritas uns
dias antes de sua morte e se apoiam as dua colunas que embasam toda a sua
vida, seu trabalho científico e sua experiencia mística.
Pierre Teilhard de Chardin, depois de sua entrada na Companhia de Jesus,
manteve este interesse pela ciencia e pela espiritualidade; e entre 1905 e 1908
foi profesor de ciencias no colegio dos jesuitas no Cairo, onde começou a realizar
trabalhos de campo de geología. Terminada sua licenciatura em ciencias naturais
em Paris, em 1919, começa sua docencia de geologia no Institut Catholique que
terá de interromper de repente.
Em 1923 Teilhard realiza sua primeira viagem à China, onde trabalha com
geologia no norte de China e Mongolia. Desde essa primeira viagem, sua vida fica
vinculada ao trabalho geológico e paleontológico na China.  A partir de 1939, Tei-
lhard é já uma figura reconhecida nos círculos científicos, realiza viagens à França
e aos Estados Unidos, e em colaboração com outros cientistas, realiza trabalhos
de campo, além da China,  em Cachemira, Java, Birmania e África do Sul, vinculan-
do seu trabalho cada vez aos estudos sobre  as origens do homem.

Fontes inacianas  
Teilhard separou claramente seu trabalho científico de sua reflexão religio-
sa, e desta forma em seus mais de 200 artículos científicos não se menciona para
nada o problema religioso. Como cientista foi um verdadeiro profissional, reco-
nhecido por seus trabalhos de geologia e paleontología.  Sem dúvida, para ele o
trabalho científico constituia já em si mesmo uma forma de adoração e afirma
que ciencia e religão formam duas faces de um mesmo movimento do conheci-
mento da realidade. Encontrava no trabalho científico uma forma de alimento
115
espiritual. E ao mesmo tempo, em seu trabalho científico, Teilhard realiza uma
contínua produção de seu pensamento filosófico e religioso, detrás do qual se
encontra uma verdadeira experiencia mística.
As notas de seus Exercícios Espirituais,  nos permitem constatar como estas
ideas, são também as constantes anotações que formam o núcleo de sua oração
e meditação.  Nestas notas descobrimos que sua visão de Cristo e do mundo não
é só um pensamento teórico para apresentá-lo aos outros, mas sim o motor e cen-
tro de toda sua vida espiritual. As anotações dos seus Exercícios se centram nas
mesmas ideas. O Cristo-Omega aparece já em suas notas de 1922 e se repetem
em todos os anos sucessivos.
Em 1940 aparece o termo “omegalizar” para expresar  a unão do universo
com o Cristo total,  e no ano seguinte apresenta as duas perspectivas,  que a partir
dessa data se convertem no resumo de sua atividade: “universalizar a Cristo” e
“Cristificar o universo”.
Teilhard concebe toda a sua vida como fidelidade ao Cristo-Omega. 
Finalmente em 1950  afirma que em sua vida não deve entrar mais nada
que não seja “Cristificável” e mostra sua preocupação em “acabar bem,
quer dizer, em plena confissão e em plena fé com o Cosmos e com Cristo-
Omega. Terminar bem, quer dizer,  ter tido tempo e ocasão de formular minha
mensagem essencial, a essencia de minha mensagem”. No último dia de seus
últimos exercicios, em 1954, resume toda sua visão com uma só palavra “Pan-
Cristianismo”.

Textos chave para entender a espiritualidade de Teilhard


O desenvolvimento da espiritualidade de Teilhard pode ser seguido através
dos textos chaves que vão desde o primeiro escrito, durante a guerra até o último,
uns meses antes de sua morte.
As linhas fundamentais estão já presentes no primeiro texto, porém não
estão ainda desenvolvidas com toda clareza como no último e definitivo texto.
Estes livros são:  La Vie Cosmique (1916) (A Vida Cósmica), Mon Universe (1918)
(Meu Universo), a Messe sur le Monde (1923) (A Missa sobre o Mundo), Le Milieu Divin
(1927) (O Meio Divino); Commem t je crois (1934) (Como eu Creio), Le Phenoméne
Humain (1947) (O fenomemo Humano); Le coeur da matiere (1950) (O Coração da
Materia) e Le Christique (1955) (O Crístico).
116 Estos textos chaves nos servirão para estabelecer as linhas gerais da
espiritualidade de Teilhard e o papel que nelas joga a visão científica do mundo.
Em definitiva, uma vida em busca de Deus.

Filho da Terra e filho do Céu


Teilhard repite a memudo que se sente ao mesmo tiempo um “filho da Ter-
ra ” (a Terra aparece em maiúsculas)  e um “filho do Céu”. Assim afirma: “Eu amo
apaixonadamente o Mundo, porém eu amo com a mesma paixão a Deus que se
expressa a si mesmo em Cristo”.
A base de sua espiritualidade está, portanto,  na síntese destes dois amores
que se realiza no Cristo-Universal onde se unem os dois e cujo sentido veremos
mais adiante. Estes dois pólos estão presentes em sua vida e tenta sintetizá-los.
Os dois processos para realizar esta síntese são Cristificar o Universo e Uni-
versalizar a Cristo. Por um lado o universo necessita de Cristo para chegar a sua úl-
tima perfeição. Sem Cristo o universo está sem cabeça, falta-lhe a peça chave que
completa e sustenta todo o edifício. Por outro lado Cristo só pode ser entendido
de todo como, precisamente, o Alfa e Omega deste Universo. 
Quer dizer, Cristo aparece como criador e, através de sua Encarnação, como
fim último ou ponto Omega do universo e para o qual o universo é atraído em
sua culminancia.  Cristo encarnado não pode ser entendido separadamente do
universo material, onde ele se faz presente.
O papel da ciencia
Teilhard é consciente do papel que tem no mundo moderno a ciencia e a
tecnologia como as duas grandes forças que movem hoje o progresso humano.
Teilhard fala pouco da tecnologia já que a considera  incluída na ciencia que o
considera em um sentido amplo.
Por isso quando Teilhard fala da ciencia se tende incluir também a tec-
nologia. Em o mundo moderno a ciencia é, segundo ele,  o Grande Affaire du
Monde,  e constitui “uma função humana tão vital como a alimentação e a
reprodução”.  Isto deve ser entendido dentro de sua visão evolutiva do mundo.
Para o a evolução cómica que se prolonga em a biológica sobre a terra tem sua
continuação em a evolução humana.  ao nível humano, quer dizer, da “Noosfera
”, o capa consciente e pensante da Terra o trabalho científico   ocupa a o termo
da evolução.
É através da ciencia que hoje progride a evolução humana.  Vista desde
esta perspectiva a ciencia e tendo em conta que a evolução vai rumo ao ponto
Omega que Teilhard identificou com o Cristo da fé, ele pode afirmar: “Não existe
117
um alimento natural mais poderoso para a vida religiosa que o contato com as
verdades científicas bem compreendidas”. Quer dizer, a ciencia mesma é um fator
importante na vida religiosa. Ela nos mostra o caminho de procura dos homens
que na realidade, ainda que inconscientemente vá em direção de sua convergen-
cia em Cristo.  
Em um passo mais adiante Teilhard afirma: “A pesquisa científica é uma
forma de adoração, nela se esconde e opera ao nosso redor o poder criador de
Deus”. Este caráter de adoração da ciencia nasce de ver como a ciencia nos vai
descobrindo a natureza do universo e a dinamica de sua evolução que tem como
fim último sua perfeição última por sua união no divino, ponto Omega que é o
Cristo Cósmico.
Desde o ponto de vista da ciencia como trabalho dos homens, Teilhard a vê
como o esforço comum da humanidade que consciente ou inconscientemente a
vai levando para seu fim último.  Desta maneira pode dizer: Na ciência, só se ela-
bora “a mística humano-cristã  que pode erigir uma unanimidade humana, no fu-
turo”. O esforço comum da ciencia vai levando a humanidade para sua unificação,
através do processo que Teilhard chama de socialização. Assim para ele o trabalho
científico em si mesmo tem um valor religioso.
Linhas mestras de uma proposta de espiritualidade
Em seu ensaio Comment je crois (1934) em o que Teilhard trata de formular
as líneas gerais de sua espiritualidade põe ao principio como síntese as seguintes
linhas:  
Je crois que l’Univers est une Évolution
Je crois que  l’Évolution va vers l’Esprit
Je crois que l’Esprit s’achève em du Personnel
Je crois que le Personnel suprême est le Christ-Universel [Eu
creio que o Universo é uma Evolução/ Eu creio que a Evolu-
ção se dirige para o Espírito/Eu creio que o Espírito se apoia
numa Pessoa/ Eu creio que a Pessoa suprema é o Cristo
Universal].
Nestas quatro linhas está resumido todo seu pensamento. Começa com a
118 visão evolutiva do universo que a ciencia descobriu, desde o big-bang até a vida
inteligente sobre a terra.  Evolução que continua hoje a nível da noosfera. A evo-
lução descobre a direção da matéria em direção ao espírito. O espírito tem sua
culminancia no pessoal, por isso o ponto Omega para o qual a evolução se dirige
deve tem uma dimensão pessoal. Essa pessoa supremo cume de toda a evolução
é o Cristo-Universal.  Por isso, todo ser se sente inclinado a adorar e confiar.

Matéria e Espírito
Teilhard rechaça todo dualismo materia-espírito e apresenta um conceito
unificado de matéria que inclui em si mesma a dimensão espiritual. Esta dimen-
são está relacionada com a “complexidade”. A maior complexidade maior dimen-
são espiritual.
El materialismo busca entender ao homem só desde a matéria. Teilhard
segue o caminho contrario busca entender a matéria desde o fato da presença
da consciencia em o ser material que é o homem. Se o homem é um ser material
autoconsciente, esta qualidade da consciencia tem que estar de alguma maneira
também presente em toda a matéria.
Isto o leva a propor a ideia de que na matéria há um “interior” além de um
“exterior”.   O interior da matéria está ligado à complexidade, de forma que quan-
do esta aumenta, cresce também seu grau de interioridade. A complexidade, por
sua vez, está relacionada com a consciencia e a dimensão espiritual.
O incremento em complexidade em a evolução se identifica com uma
maior dimensão espiritual. A este duplo carácter da matéria (interior e exterior)
correspondem também dois tipos de energia: uma energia “tangencial”, que cor-
responde à energia física com a que as coisas interagem umas com outras nu
mesmo nível e outra energia “radial” o “espiritual”, que é responsável pela con-
vergencia da evolução da matéria em linha de uma maior complexidade e uma
maior consciencia, quer dizer, na direção do espírito.
Para Teilhard estes dois tipos de energia são em realidade os dois compo-
nentes de uma só energia fundamental que inclui as duas. O caminho da evolu-
ção é o do múltiplo para a unidade.  a evolução progride para o espírito.  Esta
dimensão pode ser acompanhada em seu famoso “Hino à Materia”.

O Cristo Cósmico
As ciencias tem demonstrado que o universo está sujeito a uma evolução
na linha do incremento de complexidade desde as partículas elementares em 119
direção à vida e à consciencia no homem.
Segundo Teilhard esta evolução deve convergir para um ponto Omega,
que deve ser transcendente e pessoal.  Por outro lado,  a fé nos diz que esse ponto
Omega é Cristo por sua encarnação e ressurreição.  Cristo é assim o centro cós-
mico da criação.
O Deus transcendente que se tem formulado tradicionalmente como “o
Deus no Alto”  é também “o Deus para a frente”, quer dizer, o centro para o qual
tende toda a evolução.
Se o universo é convergente e Cristo ocupa a função de Centro-Omega a
cosmogenese se converte em uma Cristogenese. Toda a evolução é, portanto, um
processo pelo qual se vai construindo o corpo de Cristo. No se pode pensar no
universo sem seu centro em Cristo, nem em Cristo sem formar o centro do univer-
so. Sua ação cósmica é a que faz convergir tudo para si mesmo.

O Cristo universal
Outra formulação de Teilhard é a do “Cristo-Universal ”. Em seu ensaio Note
sur le Christ universel (1920) o define da seguinte forma:
“Eu entendo por Cristo-Universal, o Cristo centro orgânico do univer-
so inteiro-Centro orgânico, quer dizer, do que dependem fisicamente
todos o desenvolvimento do universo inteiro… não só da terra e a
humanidade, mas de Sirio e Andromeda e todas as realidades das
quais dependemos fisicamente; … não só os esforços morais e reli-
giosos, sino todo crescimento do corpo e o espírito. Este Cristo-Uni-
versal é o que nos apresentam os evangelhos, em especial S. Paulo e
S. João. Aquele do qual têm vivido os grandes místicos”.
 

A divinização das atividades


Desde sua visão Cristocentrica do universo e do homem, Teilhard reformula
a ascética cristã como um processo de divinização de as atividades e as passivida-
des. Nesta formulação tem-se que superar o esquema tradicional da boa intenção
em que os fins terrestres em si não valem nada, mas somente como ocasião para
um fim sobrenatural.
Há que se considerar agora o esforço como cooperação para a realização
do Mundo em Cristo. Portanto, as obras mesmas tem um valor em si como parte
da evolução do mundo até sua culminancia em Cristo. Em virtude da Encarnação
pela qual Deus entra na evolução do universo e ocupa o lugar do centro para o
120 qual tudo tende, nada é profano. Todas as ações são partes da construção o Corpo
de Cristo. Porém a ação implica também o desprendimento de o que nos estorva
ou impede esse processo. (Le milieu Divin, 1927, pág. 31-65). Esta apresentação,
inspirada em um texto de Teilhard, expressa esta aspiração:

A divinização das passividades


As passividades, quer dizer, todo o negativo que nos sucede, faz parte da
metade da existencia humana. As passividades de diminuição que nos afetam
podem ser externas e internas. Elas também fazem parte do processo da evolução
até a formação do Corpo de Cristo. O que parece vazio e plural é em realidade ins-
trumento de plenitude e unidade. Na vida há um tempo para crescer e um tempo
para diminuir. Os dois colaboram para a construção do Cristo Total. Existe uma
comunhão pela ação e outra pela diminuição. Na segunda em lugar do nosso
agir, é Deus quem age em nós. (Le Milieu Divin, 1927, 71-101)

O Meio Divino. A diafania de Deus


O Meio Divino é um Centro no qual se unem e tocam todos os elementos do
Universo. Num mundo animado pela Encarnação, o Meio Divino se nos descobre
como uma modificação do ser profundo das coisas. O mundo aparece banhado
por uma luz interna que lhe intensifica ou destaca a estrutura e as profundidades.
Por a síntese em Jesus de todos os elementos do mundo por sua Encarnação, se
produz a Diafania de Deus no Universo. O Meio Divino se nos manifesta como uma
incandescencia das capas interiores do ser. Tudo fica penetrado da presença de
Cristo.  
Assim, a presença do Meio Divino está por toda parte em torno de nós, só
faz falta vê-la (Domine, fac ut videam). O caminho dentro do Meio Divino é aces-
sado pela pureza, fé e fidelidade. O objetivo é a comunhão na caridade, pela qual
todos formamos um só corpo. (Le Milieu Divin, 1927,  133-191) Esta apresentação
incide nesta espiritualidade.

A Missa sobre o Mundo


Nesta oração de Pierre Teilhard de Chardin, inspirada em seu texto o Sacer-
dote (1918) e reelaborada em 1923  encontramos  o aspecto eucarístico da espi-
ritualidade de Teilhard. Ele estava no Deserto de Ordos, na Mongólia. Parece que
era o dia da Transfiguração do Senhor. Não tem pão nem vinho para a Eucaristia. E 121
oferece na patena do Universo tudo o que supõe o esforço humano.
O Mundo é agora a Hóstia total que se transforma em cada celebração Eu-
carística no Corpo e Sangue de Cristo.  Esta oração pode ser considerada como
resumo de toda sua espiritualidade.
Oferenda: Recebe, Senhor, esta Hóstia total que a Criação transformada por
vossa atração te oferece na nova aurora. Este pão, nosso esforço. Este vi-
nho, nosso sofrimento.
Consagração: O Fogo, uma vez mais penetra a Terra. O Universo, hóstia
imensa se converte em Carne. Toda a matéria está desde agora encarnada,
Deus meu, por vossa encarnação.
Comunhão: Eu estenderei a mão sobre o pão ardente que me apresentas.
Senhor Jesus, eu aceito ser possuído por ti. Como recusarei este cálice, Se-
nhor, quando pelo pão penetrou-me uma paixão de unir-me a ti mais dis-
tante da vida, através da morte.
Oração: Mestre, por fim, através de todos os poderes da Terra te reconheço
como meu soberano e me entrego a ti. Cristo glorioso, influencia difusa no
seio da Matéria e Centro deslumbrante onde se unem a fibras sem conta do
Múltiplo... É a ti a quem meu ser clama com um desejo tão grande como o
Universo.
   
O Crístico
O último ensaio escrito antes de sua morte Le Cristique (1955) representa
uma última versão de sua visão sobre o Mundo e Cristo. é uma síntese entre a
convergencia cósmica e a emergencia crística.
Por um lado a ciencia descobriu a evolução cósmica na direção de Com-
plexidade-Consciencia de dimensões planetárias que continua a nível humano e
deve ser convergente. A fé cristão descobre a inserção de Cristo no processo da
evolução pela encarnação que se expande por sua ressurreição para integrar
num só corpo toda a humanidade. O universo e Cristo se completam e conjugam
num universo cristificado.
Realiza-se assim a consumação do Universo por Cristo e a de Cristo pelo
Universo. Com um Universo cristificado o um Cristo universalizado aparece um
super-meio evolutivo, o Meio Divino. O Crístico é a união e síntese das exigencias
cósmicas dum Verbo encarnado e as potencialidades de um Universo convergente.

122
Conclusão: Teilhard místico
A espiritualidade de Teilhard não era só o resultado de uma reflexão
teológica, mas sobre todo o fruto de uma experiencia mística, em que a presença
e ação de Cristo envolvem o universo evolutivo. Para ele, nem Cristo pode ser
concebido separado do universo, nem o universo separado de Cristo. Teilhard vi-
veu com paixão esta presença e esta ação de Cristo no mundo e se esforçou por
comunica-las desde seus trabalhos científicos, de todas as formas possíveis,  ape-
sar de todos os obstáculos e incompreensões que encontrou. 

Bibliografía:

Boudignon, P.  (2008), Pierre Teilhard de Chardin. Sa vie, são oeuvre, sa reflexión.
Paris: Cerf.
Crespi, P.  (1961). La pensée théologique de Teilhard de Chardin, Paris: Éditions
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Cuenot, C.  (1967), Pierre Teilhard de Chardin, las grandes etapas de su evolución.
Madrid: Taurus;
De Lubac, H.   (1962), La pensée religieuse du Père Pierre Teilhard de Chardin. Paris:
Aubier;
Héronnière, E. da (2003). Teilhard de Chardin, une mistique de la traversée. París: Al-
bin Michel ;
King, T. M. (1988). The wai of the Christiam mistics: Teilhard de Chardin. Wilmington:
Michael Glazier ;
Martelet, G.  (2005), Teilhard de Chardin, prophète d’un Christ toujours plus grande.
Bruselas: Lessius.
Moonei, C. F.  (1968). Teilhard de Chardin and the mistery of Christ. Gardem City,
N.I. : Doubledai-Image,
Rideau, E. (1965). La pensée du Père Teilhard de Chardin. Paris: Éditions du Seuil.
Teilhard de Chardin, P.  Oeuvres de;  Vol. 1 – 13, (1955-1976). Paris:  Éditions du
Seuil.

Por sugestão do Editor, também aqui estão anexados quatro comen- 123
tários ao texto, feitos por autores de relevo. (Nota do editor brasileiro).

1. Publicado por Pedro Rubal, dia 15/01/2015


No Forum sobre Teilhard já tive ocasião de fazer um comentario sobre o
essencial deste trabalho e quero evitar a reiteração. Portanto, não vou repetir-
-me aqui. Quero apenas dizer que a adaptação deste texto aqui foi afortunada
e oportuna, porque o que, mais-ou-menos, subjaz do pensamento teilhardiano
em nossos tempos considero um germem da racionalidade que em tenho sus-
tentado, ainda que muito modestamente, como um selo do século XXI, em meus
escritos. E continuo pensando que, com independencia da fé de cada um, algo
muito consubstancial à pessoa humana, é no caminho da razão no que, como
intuiu Teilhard, pode encontrar o homem interessantes explicações reveladas na
mesma dinamica do Universo.
Nós crentes não podemos desautorizar este caminho traçado e facilitado
por essa Mente Universal, se não queremos contradizer os mesmos princípios do
evolucionismo. É aquí onde devemos nos encontrar todos, crentes, agnósticos
e ateus, e num espaço, que buscam hoje em dia prestigiosos intelectuais, tem
diem do puem tes, para salvar nossas limitações, imostas essencialmente pelo
que somos, e acidentalmente pelas circunstancias espaciais e temporais de cada
um: Evitemos que o essencial fique transformado no meramente acidental, der-
rubando os muros da incompreensão. Isto já nos havia ensinado T. de Chardin
com a terminologia de sua época, e que hoje deveriamos aplicar com o rigor que
manejamos na nossa.

2. Publicado por Alfonso Sáenz Lorenzo (16/01/2015)


Na minha opinão a ideia mais importante de Teilhard, como se expressa no
preambulo do excelente trabalho do Agustín Udías, é a elaboração por sua parte
de uma espiritualidade cósmica ligada ao pensamento científico . Afirmando que
ciencia e religão formam duas faces de um mesmo movimento do conhecimento
da natureza e de que a ciencia mesma é um fator importante da vida religiosa,
propõe o melhor antídoto contra a pretensa confrontação entre ciencia e religião.
Quando o cientista Teilhard afirma que a investigação científica é uma for-
ma de adoração, coloca a ciencia em outra perspectiva. O processo universal e
que não se pode deter na socialização da ciencia, tanto em seu aspecto de cria-
124 ção, como em sua dimensão de culturalização e desenvolvimento técnico e prá-
tico, é para o jesuíta o caminho da humanidade até seu fim último. Nem o mais
atrevido dos paladinos atuais do cientificismo se atreveria a tanto e é o que um
cientista como Teilhard se atreve a fazê-lo nada menos que desde a dimensão
religiosa.
Como dizia Ortega e Gasset em “Que é filosofía”, referindo-se precisamen-
te à mesma filosofia, parece como se o jesuíta fora “a caçar a fera confome vive
na selva”. Teilhard parece comportarse, como diz Ortega na mesma obra e mais
adiante, como “o cientista que necessita uma verdade íntegra e, queira ou não,
pela constitucão de sua própria vida, se forma uma concepcão enteriza do Uni-
verso”.
E é oportuno citar a Ortega por ser muito adequado no marco de um estu-
do sobre as contribuições de Teilhard ao patrimonio cultural humano, e no espi-
rito de estender pontes de entendimento entre crentes, agnósticos e ateus, como
bem expressa no último comentário Pedro Rubal. Ortega, além de espanhol e
contemporaneo seu, pois viveram os dois praticamente nos mesmos anos, é pos-
sivelmente o melhor e, sem dúvida, o mais claro dos filósofos espanhois e, curio-
samente, propõe já em sua primeira obra de juventude, “Meditaciones do Quijote”,
a ideia da “ interioridade da matéria como sua terceira dimensão frente à exterior
e superficial”, semelhantemente a uma das ideias centrais de Theillard.
Em minha opinião, a recusa teilhardiana da dualidade matéria-espírito é
onde sua contribuição se acha mais perto das recentes descobertas sobre a na-
tureza da matéria da Física moderna. A matéria hoje não pode ser entendida em
profundidade sem se aceitar também uma “interioridade” da mesma, extraordi-
nariamente complexa que resiste ser interpretada unívocamente pelos procedi-
mentos mais sofisticados e mais difíceis da matemática moderna. A interioridade
da materia do filósofo, similar em sua expressão literal à do teólogo, parecem
hoje uma evidencia científica. Milagres inesperados da convergem cia.

3. Publicado por Carlos Palacios (17/01/2015)


É inegável a contribuição cultural que a visão cósmica de Tei-
lhard de Cardin significa. É um admirável olhar para o futuro infinito.
Usa conceitos e atitudes com os quais, em boa medida, me identifico.
Não obstante, não posso deixar de assinalar certos aspectos que me parece que
terem ficado soltos.
1. Que a consciencia seja atributo da materia é uma generalização que me-
rece alguma precisão. Não me imagino como poderia isso ser certo em se tra- 125
tando da materia inanimada. Ela, antes, parece estar indefectívelmente sujeita à
leis naturais gerais, não a direcionamentos emanados da consciencia. Distinto é
o caso da materia biológica, a qual evolui até o ponto em que de ela emergem
diferentes graus de consciencia (segundo a natureza do ser de que se trata), que
de alguma maneira condicionam o curso de ação do ser consciente. Não parece
que de uma rocha possa emergir algum grau de consciencia, nem que tal cons-
ciencia incida sobre o curso de ação deste ser inanimado. Tudo isto é assim, salvo
se se queira dar à “consciencia” um significado diferente daquele que usualmente
lhe atribuimos.
2. Que papel jogam a vontade e o livre arbítrio na evolucão espiritual? Na
biológica, não parecem ter papel algum as notas espirituais do ser humano. Po-
rém poderíamos dizer o mesmo do que concerne à evolucão espiritual? E então,
que importancia têm a vontade e o livre arbrítio na evolucão espiritual? E que
papel joga o mal nesta evolução?

Saudações,

Carlos Palacios
4. Publicado por Pedro Rubal (18/01/2015)
Permítam-me sugerir algo que vejo pouco abordado nos comentários so-
bre a intuição da dinamica evolucionista de Teilhard, ao que me convidam, mais
ou menos explicitamente, alguns dos comentaristas anteriores. Uma inteligen-
cia tão aguda e um genio tão perspicaz como a deste jesuíta, quero pensar que,
a esta altura de nosso tempo, teria feito algumas precisões terminológicas, para
manter cientificamemte sustentáveis suas teses. E creio, com todo o respeito que
me inspiram os comentaristas, sobretudo desde minha modesta ótica, que ele
não se sentiria comodo com as justificações semanticas que costumam dar de
algum de seus conceitos fundamentais. Talvez não se lê isto fazendo muita justiça
ao ilustre pensador deixando sua dinamica evolutiva um tanto, teoricamente, es-
tancada em alguns pontos chaves da mesma.

Suponho também que o “livre arbítrio” na evolucão espiritual, que não sei se o
que hoje ele chamaria de “cultura de impulso espiritualizante”, requer de uma pre-
126 cisão semantica, porque no caso peculiar do homem, por exemplo, talvez possa ter
alguma função contextualmente seletiva: a investigação me parece que é o ponto
de possíveis contatos de evolucão cultural, e, se não me equivoco, é pre-seletiva.
Não me cabe a menor dúvida de que Teilhard não entendia a matéria sem a
espiritualidade de Cristo; porém tão pouco a Este sem a matéria. Como aplicaria
hoje estes conceitos? Encontraria recursos na realidade quantica? Não esqueça-
mos que ele era cientista e teólogo, quer dizer, um teólogo cientista, e vejam,
por onde hoje os cientistas - no mais profundo da realidade que intuem como
consequencia de suas pesquisas - me parece que também se sentem, inconfes-
savelmente, algo teólogos. Por quê? - Minha ignorancia me leva a pensar que é
porque as duas perspectivas se exigem: a realidade universal é teologicamente
material e materialmente teológica. Talvez aqui possamos encontrar o fundamen-
to da dimensão teologal do homem, em cuja realidade pessoal brilham aquelas
polaridades com uma evidencia que se nos impõe: nosso esforço intelectual e seu
mecanismo “mediático” creio que possam ser bons exemplos.

Meu agradecimento a quantos contribuem com suas contribuições nesta


temática tão apaixonante. Sinceramente, eu não me atrevi abordar o problema
da “consciencia”, ainda que pensei muitas vezes, o que muito bem expõe Carlos
Palacios, e, além do que, em minha perspectiva zubiriana, me vejo obrigado a
questionar até onde se pode aceitar, metafísica e psicologicamente, uma subs-
tantivação da consciencia, se do que realmente se trata é de uma adjetivação de
certos atos do homem como livres. Se fosse assim, ter-se-ia que enfocar e articular
esta particular temática em outro marco.
Artigos
O AMOR PROVÉM DE DEUS:
BREVE ABORDAGEM SOBRE
O AMOR DE DEUS NA SAGRADA
ESCRITURA
THE LOVE COMES FROM GOD. Brief analises about the Love of God in
Sacred Scripture

Daniel Luiz Medeiros *


127
RESUMO: O amor de Deus é um tema presente em todo o conjunto da Sagrada Escritura. Por
amor de Deus, quer se referir (i) ao amor que Deus tem pelos homens, (ii) ao amor do homem
para com Deus e (iii) ao amor dos homens entre si, conforme o mandamento do amor mútuo. O
amor de Deus é revelado gradativamente ao longo do texto sagrado. Porém, é em Jesus Cristo, o
amor encarnado, que o Deus manifesta plenamente seu amor. Jesus ensina os seus, em palavras
e ações – com toda a sua vida – a amar conforme ele os amou. Conforme os escritos joaninos, o
amor mútuo é a marca dos cristãos, a maneira de se reconhecer os discípulos de Jesus. A vivência
deste amor é ainda fruto de uma experiência de Deus.

PALAVRAS CHAVE: 1. Amor de Deus; 2. Sagrada Escritura; 3. ’āhab, agapáo; 4. João.

ABSTRACT: God’s love is a theme present throughout the whole of Scripture. For the love of
God, refers either to the love that God has for human beings, the love of humans for God and
the love of humans among themselves, according to the commandment of mutual love. The
God´s love has been revealed gradually throughout the sacred text. However, it is in Jesus
Christ, the love incarnate, that God expresses totally his love. Jesus teaches to his own, in words
and actions – with totality of his life - to love as he loved them. According to the Johanine
writings the mutual love is the brand of Christians, the way to recognize the disciples of Jesus.
The living of this love is still a result of an experience of God.

KEY WORDS: Love of God, Scripture, ‘ āhab, agapao, commandment, mutual love.

* Bacharel em Teologia pela Pontifícia Universidade Lateranense de Roma.


1. Introdução
Quando se fala em amor de Deus é comum que se entenda, por esta ex-
pressão, o amor com que Deus ama os homens. Porém, estas palavras querem
significar mais do que isto: indicam, além do referido, o amor dos homens para
com Deus e o amor mútuo entre os homens, conforme o mandamento do amor
aos irmãos presente no Novo Testamento (NT)1. O amor de Deus, dessa forma
compreendido, está presente em toda a Sagrada Escritura. É justo afirmar, con-
tudo, que no NT isso seja mais evidente. No entanto, o Antigo Testamento (AT)
também pode ser visto através desta ótica.
O presente artigo pretende apresentar, de maneira sintética, uma abor-
dagem a respeito do amor de Deus no texto sagrado. Este texto baseia-se na
pesquisa Referências cruzadas acerca do amor de Deus na Sagrada Escritura2. Este
trabalho deve ser consultado caso queira-se maiores esclarecimentos.
Organizou-se o presente texto com base nos resultados da pesquisa feita
a partir dos principais textos em que os termos ‫’=( בַהָא‬āhab) e ἀγαπάω (= aga-
128 páo) são utilizados no texto bíblico. Isto é apresentado nos subtítulos o amor
de Deus no AT (2) e o amor de Deus no NT (3). Apresenta-se ainda algumas consi-
derações feitas a partir do texto de I Jo 4,7-8, parte intitulada o amor provém de
Deus (4).

2. O amor de Deus no AT
O verbo hebraico ’āhab possui diferentes conotações, de maneira seme-
lhante ao termo amor na língua portuguesa. Seus significados3, por exemplo,
compreendem os campos: sexual e conjugal, familiar, da amizade, religioso, so-
cial e político. A terminologia4 ’āhab está relacionada não somente às relações
interpessoais e à relação com Deus, mas pode também estar relacionado a coisas,

1 cf. PALMER, F. H. Amor, Amado. – in: O Novo Dicionário da Bíblia. [trad. João Bentes]. São Paulo:
Vida Nova, 1988. vol.I. J. D. Douglas (ed.). p.71. —— Vale lembrar também que o mandamento
do amar a Deus está vinculado ao mandamento do amor ao próximo (Lc 10,27) é como que uma
resposta do homem ao Deus que o amou por primeiro.
2 MEDEIROS, Daniel Luiz. Referências cruzadas acerca do amor de Deus na Sagrada Escritura.
[monografia de graduação em Teologia]. Curitiba: Faculdade Claretiano, 2014.
3 Amar, querer, desejar, enamorar-se, afeiçoar-se, enternecer-se, sentir amor, carinho,
afeto, afeição, inclinação, atração, paixão; ser leal, fiel (SCHÖKEL, Alonso Luis. Dicionário
Bíblico Hebraico-Português. [trad. Ivo Storniolo; José Bortolini]. São Paulo: Paulus, 2012,
p.29).
4 Leva-se em consideração na pesquisa também os termos de mesma raiz: ‫’ =( בֵהֺא‬ōhēb – amigo,
companheiro, partidário; amante, querido; aliado), ‫’ =( בַהַא‬ahab – amor, amores, amoricos),
‫’ =( בַהֺא‬ōhab – amor; carícias; amado) e ‫’ =( הַבֲהַא‬ahăbah – amor, carinho, inclinação; amizade,
companheirismo).
qualidades, virtudes, vícios, valores ou ações5. Esse termo é o principal conceito
para significar o amor6.
Dentro do bloco da ‫ =( הָרֹוּת‬thôrāh – Torá), constata-se 42 vezes o verbo’āhab.
Destas, merece destaque as ocorrências do termo no livro de Deuteronômio, visto
que é principalmente neste texto que ’āhab é usado para se referir ao amor de
Deus. Observa-se que nesse livro seis vezes7 o verbo ’āhab tem ‫ =( הוהי‬Yahweh)
como sujeito e o homem como destinatário. Ora, o número seis, em oposição ao
número sete, é considerado um número imperfeito8. Este raciocínio concorda
com a ideia de imperfeição da antiga Lei9. Deste modo, abarcando o conjunto de
toda a Sagrada Escritura, pode-se afirmar que a expressão de totalidade do amor
de Deus pelo seu povo encontrará a plenitude com a pessoa de Jesus Cristo10.
As ocorrências em que Yahweh é o destinatário do amor e o homem o su-
jeito, ocorridas a modo de exortações, são expressas doze vezes11. O número doze
possui um significado especial na Sagrada Escritura e aponta para a totalidade12.
5 idem. ibidem, pp.29-30.
6 idem. ibidem, p.29. 129
7 Dt 4,37; 7,8.13; 10,15.18; 23,6.
8 Na Sagrada Escritura, a principal situação em que o número seis aparece é o da criação: em seis
dias Deus cria todas as coisas. No entanto, é no sétimo dia que ele conclui sua obra. O número
seis está presente também no contexto da agricultura: “durante seis anos semearás a tua terra
e recolherás os seus frutos. No sétimo ano, porém, a deixarás descansar e não a cultivarás (...)”
(Ex 23,10s). É notável, ainda, a ocasião da recordação da fuga do Egito e celebração da Páscoa:
“Durante seis dias comerás ázimos e no sétimo dia haverá uma solene reunião em honra de
Iahweh teu Deus” (Dt 16,8). O livro de Apocalipse atribui ao número seis e seus compostos o
significado de imperfeição humana. O número sete, ao contrário, será sempre expressão de
totalidade e terá uma solenidade particular. Significativa importância quanto a este número
encontra-se também nos Evangelhos: sete cestos recolhidos (Mc 8,5-8), Jesus expulsa sete
demônios de Maria Madalena (Lc 8,2) (LURKER, Manfred. Dicionário de figuras e símbolos bíblicos.
[trad. João Rezende Costa]. 2ª ed. São Paulo: Paulus, 2006, pp.221-2 e 227-8).
9 FRAINE, J. de. Lei. – in: Dicionário Enciclopédico da Bíblia. [trad. Frederico Stein]. 2ª ed. Petrópolis:
Vozes, 1977. A. Van Den Born (red.). p.880.
10 WARNACH, Salzburg Viktor. Amor – in: Dicionário de Teologia Bíblica. [trad. Helmuth A. Simon].
São Paulo: Loyola, 1973. Johannes B. Bauer (org.). p.53. —— Tendo em vista o contexto onde se
constrói o livro do Deuteronômio, é insensato postular que o autor sagrado tivesse a intenção
de querer expressar esta ideia. Não obstante, considerando que Deus prepara a revelação
evangélica já no AT e que ele próprio, através do Espírito Santo, é o redator de toda a Sagrada
Escritura, é possível enxergar na estatística apresentada em Deuteronômio um aceno à plenitude
da Revelação e da expressão total do amor de Deus, que vem a acontecer em Jesus Cristo (cf.
CONSTITUIÇÃO DOGMÁTICA Dei Verbum, nn.3.4.9.11. – in: Compêndio do Vaticano II: constituições,
decretos, declarações. 29ª ed. Petrópolis: Vozes, 2000).
11 Dt 5,10; 6,5; 7,9; 10,12; 11,1; 11,13; 11,22; 13,4; 19,9; 30,6; 30,16, 30,20.
12 O número doze tem um significado particular porque faz referência ao número total do povo
de Deus: doze filhos de Jacó que dão origem às doze tribos de Israel. De importante relevância
é também o número dos profetas menores (doze). Em continuidade ao AT, Jesus escolhe doze
apóstolos. O livro de Apocalipse dá grande importância a este número: coroa de doze estrelas
(Ap 12,1), vinte e quatro ancião – doze mais doze (Ap 4,4), doze mil assinalados de cada uma das
doze tribos (Ap 7,4-10), doze alicerces da cidade (Ap 21,12) (LURKER. op.cit., pp.82-3).
A partir desta observação pode-se considerar que, embora o projeto divino de
salvação ainda não se tenha realizado de maneira plena, todos são chamados in-
sistentemente por Deus a amá-lo e a observar seus mandamentos, de maneira
íntegra.
Ainda a respeito do bloco da Torá, é interessante notar que a primeira e a úl-
tima ocorrência (cf. Gn 22,2; Dt 30,19c-20a) do termo dentro do bloco emolduram
a Lei com o tema do amor de Deus: os dois textos, se relacionados, conjugam a fé
em Yahweh, a obediência e o amor devido a ele, assim como a escolha pela vida.
A fé em Yahweh e o mandamento do amor são os elementos que garantem a vida
e a verdadeira felicidade aos descendentes de Abraão.
Com relação ao bloco dos ְ‫ =( םיׅאיׅבנ‬nebî’îm – Profetas) o termo ’āhab apa-
recerá pela primeira vez numa exortação de Josué (Js 22,5), na qual ele pede ao
povo para que se lembre de pôr em prática o mandamento do amor a Deus. O
contexto onde isso acontece é a realização da promessa da terra. Apesar disso, o
conjunto dos Profetas terminará com a infidelidade a este mandamento do amor,
130 que, aliás, é a grande temática destes livros. É justamente neste contexto de infi-
delidade que o verbo ’āhab situa-se pela última vez no bloco (Ml 2,11). Aqui se vê
que a lei do amor a Yahweh não é cumprida.
Conquanto a Lei seja perfeita no sentido de exortar a amar a Yahweh (12
exortações em Deuteronômio) o povo não foi capaz de colocar em prática tal Lei
(35 vezes os termos são usados para expressar a rebeldia do povo em relação a
Deus13, dentro do bloco dos Profetas), pois ainda é incompleta (seis afirmações do
amor de Yahweh pelos homens em Deuteronômio), faltando a sétima declaração
de amor de Yahweh, ou seja, a encarnação do Filho14. A sétima exortação, ou seja,
a plenitude do amor de Deus, se dará em Jesus, com a doação total de sua vida.
Apesar do povo não corresponder ao amor de Yahweh, ele não cessa de reafirmar
seu amor, continuamente.
No que se refere ao bloco dos ‫ =( םיׅבּותְּכ‬khetûbîm – Escritos) o termo ’āhab
e seus variantes ocorrem 114 vezes. Destas, 42 vezes o termo está direta ou indi-
retamente relacionado a Yahweh, sendo que 33 destas ocorrências estão no livro
dos Salmos. Neste livro, o apelo de Yahweh Deus diante da transgressão do povo,
para que este povo volte-se a ele e o ame, conforme a Lei exorta insistentemente,
abre a temática do amor de Deus no bloco dos Escritos (Sl 4,3). Mas, o que predo-
mina nos Salmos é o uso da forma positiva de ’āhab, no sentido de se expressar
o amor por Yahweh, por sua glória, pelos seus mandamentos e por sua salvação.

13 Ao todo, são 93 ocorrências dos termos em questão nos Profetas.


14 cf. WARNACH. Amor. – in: Dicionário de Teologia Bíblica... op.cit., p.47.
Concernente aos livros escritos em grego, denominados deuterocanônicos,
nota-se que não há um padrão estabelecido para o uso de agapáo e φιλέω (=
philéo)15, correspondentes gregos da terminologia ’āhab. No que se refere à tradu-
ção grega dos escritos hebraicos, Septuaginta16 (LXX), houve grandes dificuldades
de tradução, referentes não somente à linguística, como também às diferenças
culturais. Como correspondente do hebraico ’āhab utilizou-se os conceitos aga-
páo, philéo e ἐράω (= eráo)17 (conforme o contexto). Todavia, o que predomina é
o primeiro termo. É importante ressaltar que o termo agapáo raramente era uti-
lizado na literatura grega. Assim, na Sagrada Escritura, agapáo terá um conteúdo
novo, quase que exclusivamente religioso.

3. O amor de Deus no NT
Em continuidade à LXX, o NT também irá dar preferência ao termo agapáo,
em oposição à literatura grega profana18. Se na LXX havia ainda duas ocorrências
de eráo, agora nem mesmo este termo encontra lugar no NT; somente a termino-
131
15 Existem, na língua grega, basicamente três conceitos que, de maneira geral, se
traduz por amor, conforme a língua portuguesa. De maneira bem resumida, pode-se
compreender estes conceitos da seguinte forma: (i) ἐράω (= eráo) – sentido platônico:
para Platão, o amor seria um processo de ascensão, do qual se começa a amar as coisas
sensíveis, buscando, porém, sempre o Belo em si. Dessa forma, o amor fica restrito
a uma busca. Sua essência será a falta e o desejo do Belo. Esta categoria de amor
coincide com o amor sexual. (ii) philéo – sentido aristotélico: Aristóteles apresenta o
conceito de phílos, traduzido ao português como amizade. Esse amor seria uma forma
de estabelecer relações e associações para garantir o bom ordenamento da sociedade.
Em outras palavras, seria a virtude capaz de garantir a justiça. Pode-se também afirmar
que a amizade seria um meio para um fim, podendo ser compreendida como um
simples instrumento necessário para todas as pessoas. (iii) agapáo – sentido objetivo:
este conceito era raramente utilizado na literatura profana da época; referia-se ao
amor objetivo, no sentido de valorização. Aproxima-se da ideia de compromisso.
Distancia-se completamente da ideia de desejo e paixão em possuir algo, excluindo
tudo o que seja amor próprio. Embora a origem do conceito não seja cristã, o termo
convencionou-se posteriormente como cristão devido ao sentido que se atribuiu à
palavra: amor de abnegação, amor de benevolência, amor incondicional, doação total.
Para Pieper, este conceito significa “um amor desinteressado e desprendido quase em
seu sentido absoluto, o amor que se dá, em lugar de impor-se, e que antes de ganhar a
vida, quer arriscar a perdê-la” (PIEPER, Josef. Las virtudes Fundamentales. 9ª ed. Madrid:
Rialp, 2007, p.481. trad.n.).
16 A Septuaginta não é apenas a tradução dos textos hebraicos para o grego. Nesta obra, estruturada
em duas partes (I. leis e livros históricos; II. livros poéticos e proféticos) estão contidos também
os chamados livros deuterocanônicos e alguns livros apócrifos (I Esdras, III e IV Macabeus, Odes,
Salmos de Salomão e o Salmo 151).
17 O verbo eráo é utilizado somente duas vezes: Est 2,17; Pr 7,18.
18 BENTO XVI (papa). Deus caritas est. São Paulo: Paulus; Loyola, 2006, n.3.
logia φίλος (= phílos) e ἀγάπη (= agápe)19 é usada. Enquanto que o conceito ’āhab
referia-se a um amplo campo de significados no AT, o termo agapáo20 é usada
para se referir ao amor de Deus, salvo algumas exceções.
Os sinóticos utilizam este termo pela primeira vez no episódio do batismo
de Jesus, quando se houve uma voz vinda dos céus: “Este é o meu Filho amado
[ἀγαπητός (= agapetós)], em quem me comprazo” (Mt 3,17b e paralelos). Coloca-
do este versículo em paralelo ao acontecimento da transfiguração, segundo Mar-
cos (segunda vez em que agapáo ocorre neste livro) “este é o meu Filho amado;
ouvi-o” (Mc 9,7), é plausível dizer que Jesus, prefigurado na antiga Lei recebida no
Monte Sinai por Moisés, é agora apresentado pelo Pai como a nova Torá, à qual se
deve ouvir e acreditar21.
O verbo ἀκούω (= akoyo – ouvir) acena também para o ouve Israel de Deute-
ronômio22 (Dt 6,4). Se o amar a Yahweh e crê-lo como único Senhor é o conteúdo
da mensagem a ser ouvida, Jesus é a exortação encarnada, para que se ame o
Deus único. Portanto, ele é quem ensina perfeitamente a amar a Deus de maneira
132 plena.
Isso já se evidencia na perícope das tentações no deserto, que ocorrem logo
após o Batismo, de acordo com os sinóticos. Observa-se que, diante das tentações,
Jesus responde sempre citando Deuteronômio (capítulos 6-8), contexto onde está
presente o ouve Israel. Isso talvez ocorra porque as três tentações descritas em
Mateus e Lucas simbolizam as várias formas de pecado contra o grande manda-
mento de amar a Deus com todo o coração, com toda a alma e com toda a força23.

19 NEUMANN, Klaus. Amor. – in: Dicionário de termos teológicos fundamentais do Antigo e do Novo
Testamento. São Paulo: Loyola, 2011. Angelika Berlejung; Christian Frevel (org.). p.104.
20 Considera-se o verbo agapáo, o substantivo ágape e o adjetivo agapetós.
21 RATZINGER, Joseph. Jesus de Nazaré: do Batismo no Jordão à Transfiguração. [trad. José Jacinto
Ferreira de Farias]. São Paulo: Planeta do Brasil, 2007. p.269.
22 “Escuta Israel corresponde à fórmula bastante empregada pelo mestre de sabedoria
para introduzir seu ensino: Escuta, meu filho (cf. Pr 1,8; 4,1.10; 5,7)” (LÓPEZ, Félix García.
Deuteronômio – comentário. – in: [trad. José Joaquim Sobral]. São Paulo: Ave-Maria,
2002. Santiago Guijarro Oporto; Miguel Salvador García (comissão editorial). p.272).
—— O verbo akoyo pode se referir também às três predições da paixão de Jesus
(HARRINGTON, Daniel J. O Evangelho Segundo Marcos – com... – in: Novo Comentário
Bíblico São Jerônimo: Novo Testamento e artigos sistemáticos. [trad. Celso Eronides
Fernandes] São Paulo: Paulus, 2011. R. E. Brown; J. A. Fitzmyer; R. E. Murphy (eds.). p.102),
pois o contexto narrativo de Marcos insere a transfiguração dentro das predições. Por
conseguinte, pode-se considerar que a maneira plena de amar ao único Deus é até
às últimas consequências, neste caso, até a morte. Agapáo é, então, doação total. Isto
concorda com a afirmação do mandamento de amar a Deus com toda a alma.
23 cf. VIVIANO, Benedict T. O evangelho Segundo Mateus – com... – in: Novo Comentário Bíblico São
Jerônimo... op.cit., p.146.
Ao vencer as tentações durante os quarenta dias – toda sua vida, pois o número
quarenta abrange todo o drama histórico que Jesus sintetiza, acolhendo em si
mesmo24 – Jesus cumpre perfeitamente o primeiro grande mandamento de amar
a Deus25.
Assim sendo, Jesus exorta também a todos para que cumpram este man-
damento. De maneira diferente ao AT, o mandamento do amor já não é somente
algo a ser ouvido e colocado em prática, mas é também seguimento de Jesus. O
próprio Jesus afirma que para ser discípulo dele é necessário tomar a sua cruz e
segui-lo. Deste modo Jesus mostrou o que significa amar a Deus: “submeter-se
inteiramente a Ele, estar a seu serviço (...) suportar com alegria perseguições, des-
prezo, mesmo a morte pela causa de Deus e do seu Enviado26.
Concernente ao mandamento do amor ao próximo, toma-se como ponto
de partida a segunda ocorrência do verbo agapáo no NT. Este verbo está situa-
do no acontecimento do Sermão da Montanha. O contexto da montanha sugere
um grande peso ao conteúdo apresentado por Jesus, pois, conforme se verificou
acima, Jesus é apresentado pelo evangelista Mateus como a nova Lei27. Fazendo 133
menção a Levítico 19,18, Jesus exorta a amar não somente o próximo, mas inclusi-
ve os inimigos (Mt 5,43-46).
Considerando as narrativas de Mateus e Lucas, nota-se que o mandamento
do amor ao próximo e o mandamento de amar aos inimigos são equivalentes.
Observa-se que Jesus faz menção ao mandamento do amor ao próximo e insere
também o conceito de inimigo, ausente no mandamento citado. Ao invés de falar
a respeito do amor ao próximo ele exorta a amar os inimigos e a orar pelos perse-
guidores (Mt 5,44).
Com relação ao Evangelho de João, nota-se que logo na primeira ocorrência
do verbo agapáo se depara com um dos mais significativos testemunhos do amor
de Deus pela humanidade: “pois Deus amou tanto o mundo, que entregou o seu
Filho único, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo
3,16). Pode-se considerar que esta afirmação joanina completa as seis afirmações
do amor de Deus pelos homens presente em Deuteronômio.
Merece destaque ainda outra afirmação explícita do amor de Deus pelos
homens: “antes da festa da Páscoa, sabendo Jesus que chegara a sua hora de
passar deste mundo para o Pai, tendo amado os seus que estavam no mundo,

24 RATZINGER. op.cit., p.42.


25 Mt 4,1, BJ, nota.
26 IMSCHOOT, Paul Van. Amor. – in: Dicionário Enciclopédico... op.cit., pp.61-2.
27 RATZINGER. op.cit., p.269.
amou-os até o fim” (Jo 13,1). Este solene prefácio do bloco da última hora de Jesus28
expressa perfeitamente o amor com que Deus ama (na pessoa do Filho) a huma-
nidade. Merece ênfase neste versículo a expressão amou-os até o fim. Mais do que
indicar duração, a expressão sugere a intensidade com que Jesus ama os seus29.
Jesus ama até as últimas consequências, dando sua vida por seus amigos (Jo 15,13).
Jesus também pede para que os discípulos permaneçam em seu amor (Jo
15,9b). A maneira de assim permanecer é observando os mandamentos, guar-
dando a palavra revelada e amando uns aos outros como ama o próprio Jesus (Jo
15,10.12.17). Esta exortação a permanecer no amor tem ecos também na I Carta
de João, expressando que a vivência do amor implica uma sintonia com Deus:
“aquele que permanece no amor permanece em Deus e Deus permanece nele” (I
Jo 4,16b).
Referente ao amor mútuo, João, diferentemente dos sinóticos, não apre-
senta o termo próximo ou inimigo. João não faz, conforme se constata, referên-
cia ao AT. Antes, o autor sagrado apresenta na boca de Jesus um mandamento
134 novo: “dou-vos um mandamento novo: que vos ameis uns aos outros. Como eu
vos amei, amai-vos também uns aos outros” (Jo 13,34). A vivência do amor mútuo
é, em João, maneira de se reconhecer os discípulos de Jesus (Jo 13,35). O disci-
pulado cristão não é compreendido sem o amor de uns pelos outros, pois aquele
que ama a Deus deve necessariamente observar seus mandamentos (Jo 14,15).
Na I Carta de João este tema do mandamento novo entra em questão novamente
e é a linha condutora de toda a carta30. De fato, o contexto de I João, divergências
na comunidade, grupo separatistas31, faz com que este tema ressurja de maneira
insistente e predomine ao longo do escrito.
28 SPICQ, Ceslas. O amor de Deus revelado aos homens nos escritos de são João. São Paulo: Paulinas,
1981, p.23. —— O bloco corresponde aos cap. 13 a 20.
29 SCHÖKEL, Alonso Luis. Nota referente a João 13,1. – in: Bíblia do Peregrino (BP). São Paulo: Paulus,
2002.
30 cf. MEDEIROS. op.cit., apêndice F, p.94.
31 Na I Carta de João não se encontram referências aos judeus nem às autoridades judaicas, festas
judaicas, etc. O tom polêmico do escrito não diz respeito ao judaísmo (SCHNACKENBURG,
Rudolf. Cartas de San Juan: versión, introducción y comentario. Barcelona: Herder, 1980, p.265.
– trad.n.). Há, contudo, um grupo de opositores provindos de dentro da comunidade cristã.
A estes, o autor chama de “mentirosos” (2,4), “homicida” (3,15), “falsos profetas” (4,1). O grupo
pertencia à comunidade joanina (cf. 2,19), à mesma tradição do autor da I Carta (mesma tradição
do Evangelho de João), e é razoavelmente numeroso (cf. 4,5). O contexto indica que era muito
provável que os dissidentes continuassem considerando-se cristãos (cf. 4,20). “(...) é possível que
os separatistas tenham uma doutrina ortodoxa sobre o amor. O problema coloca-se a partir
do fato de que esta doutrina não se traduzia em ações” (TUÑÍ, Josef-Oriol; ALEGRE, Xavier.
Escritos joaninos e cartas católicas. [trad. Alceu Luiz Orso]. 2ª ed. São Paulo: Ave-Maria, 2007,
p.160). Para Schnackenburg, o tom polêmico se dá devido aos gnósticos, os quais acreditavam
atingir o conhecimento perfeito através da contemplação de Deus. Os falsos profetas seriam os
propagadores desta tendência (SCHNACKENBURG. ibidem, p.265.).
Para os demais escritos do NT (exceto os demais escritos joaninos), limita-
-se aqui somente a afirmar que as compreensões de amor incondicional, amor
enquanto dom e amor enquanto virtude, servem de chave de leitura para uma
abordagem do tema do amor nesses textos32.

4. O amor provém de Deus


Considera-se que nos escritos joaninos (evangelho e cartas) os verbos crer,
conhecer e amar estão entrelaçados e são como que sinônimos33. Isso porque a fé
exige uma decisão, da qual decorre a responsabilidade e o compromisso de amar
como Jesus amou. A fé, entretanto, é fruto de um conhecimento, de uma experi-
ência, que neste caso, identifica-se com a experiência do amor de Deus. Esta é a
chave de leitura para o seguinte texto ao qual se comenta neste tópico: “amados,
amemo-nos mutuamente porque o amor provém de Deus; todo o que ama foi
gerado em Deus e conhece a Deus. O que não ama não conhece a Deus, porque
Deus é amor” (I Jo 4,7-8).
O texto se inicia com o vocativo ἀγαπητοί (= agapetói – amados). Dentro do
135
NT o termo já se faz presente outras vezes. Este adjetivo é empregado nos sinóti-
cos somente a Jesus. Nas cartas, contudo, o termo ocorre diversas vezes, das quais
se destaca aqui a seguinte: “a vós todos que estais em Roma, amados de Deus e
chamados à santidade, graça e paz (...)” (Rm 1,7). São João Crisóstomo, ao comen-
tar este versículo afirma que logicamente entre os fiéis de Roma havia pessoas de
diversas classes sociais (livres e escravos, governantes e homens vulgares). Toda-
via, Paulo dirige-se a todos (vós que estais em Roma) por amados de Deus, procu-
rando expressar, desta forma, que a santidade se origina do amor, independente
da condição social de cada um34.
A considerar esta ideia presente no início de Romanos, pode-se tentar uma
aproximação para se compreender a forma adjetiva de agapáo na I Carta de João.
Embora não haja, neste caso, a expressão amados de Deus, o adjetivo agapetós
pode ter sido usado dentro da mesma ideia, visto que não há destinatários nome-
ados na carta. Quanto a isto, no entanto, não é possível precisar, dado que é outro
o contexto em que emerge o texto joanino.

32 Para uma melhor compreensão desta chave de leitura uide MEDEIROS. op.cit. pp.50-3.
33 LE FORTE. As epístolas. – in: COTHENET, E.; DUSSAUT L.; LE FORTE, P.; PRIGENT, P. Os escritos de São
João e a Epístola aos Hebreus. [trad. M. Cecília de M. Duprat]. São Paulo: Paulinas, 1988, p.172,
p.184.
34 JOÃO CRISÓSTOMO (santo). Comentário às Cartas de São Paulo/1. [trad. Mosteiro de Maria Mãe
de Cristo]. São Paulo: Paulus, 2010. (Coleção patrística, vol.27/1). pp.47-8.
O fato é que o termo amados pode indicar, sem dúvida, uma afirmação da
parte do escritor sagrado que os destinatários são amados por Deus, conforme
em Romanos. Este seria o sentido primeiro que agapetós quer aqui exprimir35. Não
obstante, é possível compreender também este adjetivo no sentido de que o au-
tor ama fortemente seus destinatários. Mas este último sentido fica colocado em
segundo plano.
O mandamento do amor recíproco, em forma de exortação, está presente
em quase toda a I Carta de João, pois o contexto dos separatistas exigia que o
autor desse uma atenção especial a este tema. De fato, o grupo dos dissidentes,
mesmo que afirmasse que amavam a Deus, “não considerava importante o amor
ao irmão”36.
A respeito do mandamento do amor ao próximo, constatou-se anterior-
mente que existe certa evolução quanto a este mandamento37. Em Levítico, por
exemplo, o mandamento do amor ao próximo, ainda imperfeito, compreende
este próximo como o israelita ou o identificava com o estrangeiro que convivia
136 junto na mesma terra (Lv 19,18.34). Conforme se viu acima, Jesus amplia a catego-
ria próximo até aos inimigos. O Evangelho de João vai mais longe ao não se referir
à categoria próximo, apontando, invés, para o próprio Cristo como referência e
exemplo a ser imitado no amor (cf. Jo 13,34).
Na mesma linha do Evangelho de João, a exortação presente na I Carta de
João fala a respeito do amor de uns para com os outros, de maneira recíproca. A
respeito disto, Spicq afirma: “sem dúvida, Jesus prescreveu (o dever de) amar o
próximo, mas não é uma obrigação arbitrária, uma fidelidade entre outras, nem
mesmo um ‘espírito’; trata-se de uma exigência essencial, visto que ‘Deus é amor’
”38.
A carta joanina afirma, ainda, que o amor recíproco deve acontecer porque
o amor provém do próprio Deus. Este amor é presente em toda a história da sal-
vação. O amor provém de Deus porque ele toma a iniciativa no ato da criação, vai
à busca do homem pecador e se revela gradativamente. Além disso, Deus nunca
35 THÜSING, Wilhelm. As Epístolas de São João. [trad. Ludovico Gomes de Castro]. Petrópolis: Vozes,
1983, pp.157-8.
36 TUÑÍ; ALEGRE. op.cit., p.160.
37 Esta evolução deve ser compreendida no sentido de que a interpretação corrente da categoria
próximo no tempo de Jesus era errônea, e não que a Torá ensinava a odiar os inimigos (cf. Mt
5,43) e, consequentemente, desprezar aqueles que não faziam parte do mesmo povo. Tanto
o AT como o NT reconhecem no próximo “uma compreensão que supera fronteiras, mas que
esta se realiza, na prática, no contexto social mais estreito (clã, vizinhança, povo, comunidade)”
(KAMPLING, Rainer. Próximo/Amor ao próximo. – in: Dicionário de termos teológicos fundamentais
do Antigo e do Novo Testamento. São Paulo: Loyola, 2011. Berlejung, A; Frevel, C. (org.). p.380).
38 SPICQ. op.cit., p.103.
desiste de chamar o homem a si, mesmo com o pecado sempre presente, confor-
me se observa fortemente no contexto dos Profetas. A expressão total deste amor
que vem de Deus deu-se com a encarnação do Verbo eterno: o próprio amor exor-
ta, a partir da condição da vida humana, a amar perfeitamente a Deus. Entretanto,
mais que exortar, o próprio Deus expressa seu amor de maneira plena, até as últi-
mas consequências. Deste modo, “o amor mútuo deve ser manifestação do amor
que Deus tem pelos homens”39.
O texto em questão expressa também que aquele que ama é gerado em
Deus. Esta afirmação alude ao diálogo de Jesus com Nicodemos, quando Je-
sus afirma que é necessário nascer de novo para ver o Reino de Deus. O adjetivo
̓άνωθεν (= ánothen), traduzido por de novo, pode significar também do alto, de
cima40. Portanto, a tradução (versículo 7) poderia ser também nascer do alto. Este
significado é possível e inclusive sugerido ao considerar a expressão paralela pre-
sente no prólogo de João41:

Mas a todos que o receberam deu o poder de se tornarem filhos de


Deus: aos que creem em seu nome, eles, que não foram gerados nem
137
do sangue, nem de uma vontade da carne, nem de uma vontade do
homem, mas de Deus (Jo 1,12s).

A expressão a todos que o receberam denota a abertura e acolhida na fé. De


fato, a fé é condição primária para o nascimento em Deus. Contudo, como com-
preender este nascimento em Deus? Não se pode discorrer a respeito do nasci-
mento em Deus sem considerar também o verbo γινώσκω (= ginósko – conhecer),
situado no mesmo texto que se analisa (versículo 7). Deste modo, vale fazer aqui
um breve levantamento a respeito do tema do conhecimento de Deus.
Já no AT o tema do conhecimento de Deus está presente, principalmente
em Jeremias e em Oseias: “eles não terão mais que instruir seu próximo ou seu
imão, dizendo: ‘conhecei a Iahweh!’ Porque todos me conhecerão, dos menores aos
maiores, (...) porque perdoarei sua culpa e não me lembrarei mais de seu pecado”
(Jr 31,34); “eu te desposarei a mim na fidelidade e conhecerás a Iahweh” (Os 2,22);
“porque é misericórdia que eu quero e não sacrifícios, conhecimento de Deus mais
do que holocaustos” (Os 6,6). O verbo ‫ =( עַד ׇי‬yāda‘ – conhecer) não significa um
conhecimento intelectual, mas sim um conhecimento baseado na experiência.
39 RAMOS, Felipe F. João – comentário. – in: Comentário ao Novo... [trad. Alceu Luiz Orso]. 2ª ed. São
Paulo: Ave-Maria, 2009. Santiago G. Oporto; Miguel S. García (comissão editorial). p.310.
40 RUSCONI, Carlo. Dicionário do Grego do Novo Testamento. 1ª ed. [trad. Irineu Rabuske]. São Paulo:
Paulus, 2012, p.57.
41 NICCACCI Alviero; BATTAGLIA, Oscar. Comentário ao Evangelho de São João. [trad. Ney Brasil
Pereira]. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 1985, p.67.
Dentro do contexto que se estuda aqui, o verbo em questão pode ter o significa-
do de reconhecimento, dar-se conta, experienciar42.
No NT, merece destaque algumas referências no Evangelho de João, das
quais se destaca: “se me conheceis, também conhecereis meu Pai. Desde agora o
conheceis e o vistes” (Jo 14,7). Dentro do mesmo discurso Jesus afirma: “se me
amais, observareis meus mandamentos” (Jo 14,15). Ao observar estas referências,
tendo em vista o versículo que se analisa, é possível considerar que o tema do
conhecimento de Deus, em continuidade ao AT, está vinculado necessariamente
à experiência que se tem de Deus, bem como à observância dos mandamentos,
fundamentados no amor. Neste sentido, o nascimento em Deus é fruto também
da experiência de fé e amor: “acreditarmos em seu nome, ou seja, aderirmos ao
dinamismo de vida, de inteligência e de amor que ele significa, é tornar-nos ‘filhos
de Deus’ ”43.
Somente aquele que fez a experiência de Deus, tomando conhecimento
de sua ação salvífica e experienciando esta ação em sua própria vida, pode amar
138 a Deus. Consequentemente, esta pessoa está apta a observar os mandamentos,
a começar pelo segundo maior mandamento (pois o primeiro já busca cumprir):
amar o próximo, ou, conforme João, buscar viver o amor mútuo. De maneira opos-
ta, aquele que não fez a experiência de Deus não é capaz de amar. O filho mais
velho da parábola do Pai misericordioso pode servir de protótipo, segundo essa
perspectiva, daquele que não conhece a Deus e que, por isso, é incapaz de amar44.

A aptidão para amar de caridade é também uma aptidão do filho de


Deus para conhecer seu Pai, isto é, Deus como amor. Torna-se impos-
sível adquirir esta “apreensão” se somos desprovidos do agape pois
se trata de um conhecimento filial45.

42 SCHÖKEL. Dicionário Bíblico... op.cit., pp.268-70.


43 LELOUP, Jean-Yves. O Evangelho de João. [trad. Guilherme João de Freitas Teixeira]. Petrópolis:
Vozes, 2000, p.184.
44 O filho mais velho, apesar de ter permanecido com o pai, parece ter tido apenas uma relação fria
com ele, e não um relacionamento filial. Isso ocorre, todavia, devido ao próprio filho, e não ao
pai. O relacionamento assemelha-se, segundo a própria narrativa, à função patrão-empregado:
“há tantos anos que te sirvo, e jamais transgredi um só dos teus mandamentos”. Diante do
retorno do irmão, o filho mais velho, além de sentir raiva e não participar da comemoração do
retorno de filho mais novo, ainda reclama pelo fato de que seu pai nunca lhe tenha dado um
cabrito para festejar. No entanto, conforme o pai afirma, ele estava sempre em sua companhia,
dando a entender que sua vida era pra ser vivida em alegria e clima de festividade: “filho, tu
estás sempre comigo, e tudo que é meu é teu”. É notável também que este filho não se dirige
ao pai com a expressão pai, diferentemente de seu irmão. Deste modo, o filho mais velho,
embora aparentemente em comunhão com seu pai, parece não conhecer o amor de seu pai.
Consequentemente, ele também não se alegra com seu irmão, o que permite deduzir que
também não é capaz de amar o irmão.
45 SPICQ. op.cit., p.104.
O versículo 8 se encerra com a afirmação básica sobre a essência divina46:
Deus é amor. Esta declaração joanina não é fruto de um processo reflexivo filosó-
fico ou uma definição especulativa47. Também não se compreende essa expressão
como uma definição do ser de Deus, entende-se, invés, que o amor é presente em
toda a atividade de Deus, logo, está presente na natureza divina48. Neste sentido,
é possível inferir que a expressão é fruto do conhecimento de Deus, tal como se
apresentou acima. “Conhecer Deus não é discernir seu poderio, sua santidade, sua
sabedoria, mas captar, perceber que ele é amor”49.
Para melhor compreender a declaração Deus é amor é necessário ter em
vista todo o conjunto da Escritura. O amor de Deus permeia todo a AT, ainda que
isso não esteja expresso de maneira explícita. Constata-se já no texto veterotes-
tamentário que o amor de Deus pelo homem é incondicional, pois, não obstante
os pecados, Deus age continuamente para exortar à conversão e oferecer gra-
tuitamente o seu perdão. Por conseguinte, é razoável assegurar que a atividade
específica de Deus é amar50.
Embora o AT seja um testemunho do amor divino, com Jesus Cristo o amor 139
de Deus se expressa plenamente. É possível, inclusive, afirmar que na pessoa do
Filho o próprio amor se encarna51. De fato, Deus, invisível, se deu a conhecer fa-
zendo-se ser humano, na pessoa do Filho. E é Jesus mesmo quem demonstra o
amor de Deus de maneira viva: “Jesus se apresenta como o amor vivo e personifi-
cado, e é por ele que se pode realmente reconhecer o que seja o amor em Deus.
Se Cristo é todo amor, seu Pai o é também”52. Destarte, não se pode considerar a
expressão Deus é amor como sinônimo de Deus é benigno ou Deus é bondade, pois
a expressão neste contexto joanino denota muito mais que isto53: “o seu amor é a
mais alta forma de amor, a mais pura, ao ponto de ser chamado de amor”54.

46 SCHNACKENBURG. op.cit., p.254.


47 idem. ibidem, p.257.
48 SPICQ. op.cit., p.106.
49 idem. ibidem, p.148.
50 RAMOS. Primeira Carta de São João – com... – in: Comentário ao Novo... op.cit., p.676.
51 PALMER. Amor, Amado. – in: O Novo Dic... op.cit. p.71. Também uide BENTO XVI. Deus caritas est.
op.cit., n.12.
52 SPICQ. op.cit., p.148.
53 THÜSING. op.cit., p.160.
54 CHAMPLIN, Russell Norman. O Novo Testamento Interpretado Versículo por Versículo. 1ª ed. São
Paulo: Milenium, 1983. vol.2, p.311.
5. Conclusão
Conforme se discorreu acima, simbolicamente falando, constatam-se seis
declarações explícitas do amor de Deus pelo homem na Lei de Moisés. Porém, a
plenitude, ou seja, a sétima declaração de amor aos homens encontra-se em Je-
sus Cristo. “Pois Deus amou tanto o mundo, que entregou o seu Filho único, para
que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3,16). O Filho
de Deus foi quem sintetizou toda a Lei e os Profetas em sua própria existência. O
ápice da Revelação coincide com a plena e total revelação do amor de Deus. De
fato, o amor se encarnou e, na condição humana, cumpriu o que a Antiga Lei não
fora capaz de realizar.
Jesus não cessou de afirmar e reafirmar o amor de Deus pelos homens. Isto
ele o fez em palavras e ações. O amor encarnado não parou de amar até que, na
sua condição humana, se esvaziasse completamente. “Tendo amado os seus que
estavam no mundo, amou-os até o fim” (Jo 13,1). Doando totalmente sua vida em
favor dos homens ele mostrou o que significa agápe, cuja literatura profana da
140 época não foi capaz de compreender (I Cor 1,23).
Aqueles que o viram, que o ouviram, que o contemplaram... (I Jo 1,1) tes-
temunharam e testemunham a experiência do encontro com Deus. Experiência!
Não mero conhecimento intelectual. Aliás, é isto que João exprime em sua I Carta,
refutando o pensamento gnóstico que teria influenciado parte da comunidade
joanina, a ponto de alguns se distanciarem do ideal do amor revelado e proposto
por Jesus Cristo. Se ele próprio deu o exemplo o que resta àqueles que levam
também o nome de cristãos? Resta-lhes simplesmente que amem. É isto que São
João Crisóstomo exorta ao discorrer sobre o agápe: “Amemo-nos, portanto, mutu-
amente, a fim de amarmos desta forma a Deus, que nos amou”55.
Somente aquele que faz a experiência de Deus é capaz também de amar e
de procurar colocar em prática o dom do amor de Deus. Que resposta deve dar
o homem diante de tamanho dom? Jesus, o amor encarnado, também responde
ao amor de seu Pai. Ele dá sua resposta servindo aos irmãos e ensinando os seus
a fazerem o mesmo: “dei-vos o exemplo para que, como eu vos fiz, também vós o
façais” (Jo 13,15).

55 JOÃO CRISÓSTOMO. Comentário às Cartas de São Paulo/1. [trad. Mosteiro de Maria Mãe de
Cristo]. São Paulo: Paulus, 2010. (Coleção patrística, vol.27/1). p.428.
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