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DEPARTAMENTO DE HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS
ANO
Salvador
2013
2
ANO
374
DA DEGLUTIÇÃO DO BISPO SARDINHA:
a escrita da história nos poemas Pau-Brasil
Salvador
2013
3
Banca Examinadora
____________________________________________
Profª. Drª. Lícia Soares de Souza
Doutora em Semiologia, Université Du Quebec
Universidade Estadual da Bahia
____________________________________________
Profª. Drª. Lívia Maria Natália de Souza
Doutora em Letras e Linguística, UFBA
Universidade Federal da Bahia
____________________________________________
Profª. Drª. Márcia Rios da Silva
Doutora em Letras e Linguística, UFBA
Universidade Estadual da Bahia
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AGRADECIMENTOS
Confesso que me sinto desconfortável cumprindo esse ritual de agradecimento que fica
flutuando nas páginas teóricas de uma dissertação. E não é por eu não ter a quem agradecer, é
justamente o contrário, pois considerando que um trabalho começa muito antes de
imaginarmos que aquela ideia aquele poema, aquele autor, farão parte de uma pesquisa,
Torna-se enorme o número de pessoas que contribuíram com o trabalho mesmo de forma
indireta. A essas pessoas é impossível agradecer aqui, nesse espaço limitado, com a
intensidade que elas merecem. Então me escuso de fazê-lo.
Restringirei, portanto, o agradecimento as pessoas que tiveram participação direta no processo
de construção da dissertação, inicialmente, a orientação de Lícia Soares de Souza. Como
também, à Márcia Rios e Lívia Natália pelas contribuições muito preciosas, e aqui não estou
cumprindo ritual, foram de fato contribuições que me auxiliaram a pensar o trabalho.
À Capes, por permitir que eu faça o que gosto sem ter que vender meus livros.
À minha queridíssima turma de tirocínio, e a professora Iraci Rocha.
À Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos. João Cabral de Melo Neto,
Oswald de Andrade, Guimarães Rosa, Vladímir Maiakóvski, irmãos da família de náufragos
bracejando no tempo e no espaço.
À Carlos Arouca, Neli Magalhães e Tatiane Muniz, companheiros de boemia nesse período de
escrita. Porque sem boemia, não há teoria possível. Pois como poderia ter dito Nietzsche: não
queremos servir a teoria senão à medida que ela sirva a vida.
À Ubiraneila Capinan Barbosa, pela ajuda decisiva em momentos decisivos. Mas ela sabe que
seria ridículo agradecê-la por isso, então agradeço por ela fazer parte da minha vida, e me
deixar amá-la com um amor que só as amizades sabem fazer eternos.
Agradeço muito as companheiras de mestrado, as amigas Thais Pellegrine, Taíse Teles e
Eliete Gusmão, além do chatíssimo amigo Ednei, com quem gastei muitas conversas no
ônibus a caminho de casa.
À Henrique Freitas, Sinval Araújo, e Lívia Natália por me mostrarem como a docência pode
ser uma atividade cheia de potência criativa e inquietação.
À Elisângela dos Passos Mendes por sempre ter entendido que amizade é um amor que não
sabe acabar.
E por fim, agradeço a pessoa sem a qual nada disso teria muito sentido, porque nos últimos
sete anos, nada sem ela tem tido a menor graça, Tatiane Pereira Muniz. A quem também é
ridículo esse agradecimento pelo pouco que ele representa diante o tamanho do meu amor e
de tudo que ela representa na minha vida.
Saravá, saravenha.
5
Michel Foucault
Décio Pignatari.
7
RESUMO
O presente trabalho discute as relações entre literatura e história a partir dos poemas do livro
Pau-Brasil de Oswald de Andrade. Buscamos identificar como o poeta, em sua escrita da
história do Brasil, rasura e desautoriza a homogeneidade e unidade das narrativas oficiais
como discursos representativos da nação. Para isso, destacamos duas noções pelas quais os
projetos de nação, romântico e realista/naturalista, faziam funcionar a ficção de uma
identidade harmônica. São elas a origem e o progresso. A primeira operava a invenção de um
começo mítico, que transformava a história numa explicação metafísica. A segunda
caracteriza a história como linear e evolutiva, que condenava o diferente do europeu, ao atraso
e a violência. Ambos são contrapostos a uma dialética antropofágica, que consiste na maneira
peculiar com que Oswald de Andrade concebeu a historia como processo cujo
desenvolvimento não nos leva ao futuro, mas a um passado, que não é mítico e sim material:
o Matriarcado de pindorama. Em seguida, mostramos como, através da descontinuidade, da
desconstrução e do descentramento das narrativas da história oficial, Oswald de Andrade
desrecalca do enredo nacional, o período colonial, os nativos, a terra, para evidenciar uma
representação plural da nação brasileira, que, em detrimento da homogeneidade fictícia dos
projetos anteriores, põe a identidade da nação como significação obtida no jogo das
diferenças. Para empreender as discussões propostas, dialogamos com as concepções de
história de Michel Foucault (2008), Jaques Derrida (1971), e sua proposta de desconstrução,
ainda, Nietzsche (2005), com suas considerações intempestivas sobre a história, entre outros
autores.
ABSTRACT
This work discuss the relationship between literature and history through the analysis of the
poems of Oswald de Andrade‟s book, Pau Brasil. We seek toidentify how the poet, through
his writing on Brazil‟s History,rasure and deauthorizethe homogeneity and unityas
representative discourses of official narratives about nation. Therefore, we highlight two ideas
through which the projects of nation, romantic and realist/naturalist, supported the fiction of a
harmonic identity. There they are: the origin and progress. The first one operated the
invention of a mythic beginning that transformed history in metaphysical explanation. The
second characterized History as linear and evolutive, what relegated Non-Europeans to
backwardness and violence. Both are against a “anthropofagicaldialetics” that consists in the
peculiar way in which Oswald de Andrade conceived History as a process whose
development do not led us to a future, but to a past that is not mythical, but material: The
Pindorama‟s Matriarchy. Then we demonstrates how the author, through discontinuity,
deconstruction and decentering of official narratives, disrupting blinded views that
suppressed/repressed the colonial period, the natives and the land, to put in evidence a plural
representation of Brazilian nation, that, despite of a fictitious homogeneity of precedent
projects, take nation identity as a meaning obtained from the game of differences. Thus, for
engender all these propositions presented, we dialogue with Michel Foucault History
comprehension (2008), Jacques Derrida (1971), and his deconstruction purpose, Nietzsche‟s
considerationsintempestivesof History (2005), and so forth.
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO 10
REFERÊNCIAS 159
10
1. Introdução
“Não queremos servir a história senão na medida em que ela sirva à vida.”
Nietzsche
também, pelos estudos culturais. Nessa última vertente há trabalhos de Giussepe Cocco, Vera
Follain, Silviano Santiago e Osmar Moreira, entre outros, que leem a obra oswaldiana a partir
de repertório teórico, temas e discussões, da contemporaneidade, mostrando a potência e a
atualidade de várias questões, presentes na obra de Oswald de Andrade, para pensarmos a
sociedade brasileira atual.
A partir dos Estudos Culturais despontam, também, vários trabalhos que privilegiam a
antropofagia como a principal contribuição de Oswald de Andrade para a cultura brasileira,
utilizando o conceito não apenas circunscrito no período histórico do modernismo, mas como
chave de leitura para discutir a cultura e a literatura nacional.
São exemplos diversas dissertações e teses, das quais tivemos conhecimento ao longo
da nossa pesquisa, como a tese defendida por Maria Cândida Ferreira de Almeida em 1999 na
Universidade Federal de Minas Gerais, que viria a ser publicada sob o título de “Tornar-se
outro – o topos canibal na literatura brasileira”, ou ainda, a tese de Maria Eugenia Boaventura,
defendida na USP em 1980, que veio a ser publicada em 1985 sob o título de “A vanguarda
Antropofágica”, entre outras.
Também, alguns livros são exemplos da discussão do conceito e dos usos da
antropofagia, entre eles Uma literatura antropofágica (1983) de Lúcia Helena e Antropofagia
oswaldiana um receituário estético e científico, (1999) de Adriano Bitarães Netto, além do
livro catálogo da exposição que aconteceu no Museu de Arte Brasileira entre 30 de novembro
de 2002 e 03 de março de 2003. Um robusto compêndio de textos críticos e fotos que desde o
título escolhe a antropofagia como ponto central que norteará a organização da obra,
empreendimento delegado a Jorge Schwartz.
Tanto a exposição quanto o livro levam o mesmo título: da Antropofagia à Brasília
(2002), uma mostra da cultura brasileira no período de 1920 a 1950. O título ilustra, de
forma decisiva, a importância que vem sendo conferida à antropofagia para a leitura da
cultura brasileira.
Não é risco afirmar que, a partir de mais ou menos 1970, Oswald de Andrade tem sido
cada vez mais lido como um importante escritor brasileiro, o que de forma alguma significa
que ele é um dos mais festejados, e muito menos que a crítica ao poeta modernista seja
sempre positiva e jubilatória. Como processo comum a toda obra que começa a ser
ostensivamente lida, embora a leitura da obra de Oswald de Andrade não me pareça nem
perto de alcançar índices próximos aos de Guimarães Rosa, Machado de Assis, ou Clarice
Lispector, por exemplo, a crítica faz surgir suas lacunas, seus engodos e suas polissemias. Em
relação a Oswald, destaca-se sempre o uso conturbado das teorias que ele se propõe a
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Seduzido pelas analogias que entre si apresentam certas ideias, correntes religiosas e
tendências filosóficas, analogias rapidamente convertidas em relações essenciais,
Oswald de Andrade corre de generalização a generalização, numa dança de
conceitos, extremamente célebre e sugestiva, mas que abstrai as exigências do
método histórico e despreza as lacunas lógicas que vai deixando pelo caminho.
(1979, p. 75).
Além dessa leitura crítica de um Oswald que se pretendeu, muitas vezes, mais teórico
que poeta e romancista, há duas outras dimensões em que a figura oswaldiana ganha
contornos mais tensos, uma como vanguardista, outra como intelectual. A primeira toma a
obra do poeta como um malabarismo de inversões sintáticas e digressões mal arranjadas, que
teria como qualidade maior seu aspecto irônico e cômico.
Essa vertente crítica da obra oswaldiana que privilegiava o comentário do piadista e
polemista, em detrimento do escritor e da obra, caiu em obsolência após a releitura de Oswald
pela vanguarda concretista, como também, por Antônio Candido e Roberto Schwarz. Suas
críticas sólidas e bem embasadas, a despeito de seu caráter diverso, só mostraram que, por
qualquer ângulo que se aborde a obra oswaldiana, o sociológico ou o formalista, ela fornece
contribuições importantes para pensarmos a literatura e a cultura brasileira.
São mostras significativas dessa validação contemporânea da obra de Oswald de
Andrade e da abordagem diversa que lhe tem sido destinada o livro Oswald Plural lançado
em 1995, reunindo textos de dois seminários, “100 anos de Oswald” e “Oswald na mira”,
ocorridos em 1990 no Rio de Janeiro, acrescidos de textos de pesquisadores da obra de
Oswald, e também o livro Antropofagia hoje lançado em 2011 na esteira das comemorações
dos 90 anos do modernismo brasileiro. O livro promove a discussão sobre a leitura
contemporânea do conceito de antropofagia reunindo vários autores nacionais e estrangeiros.
Já o papel de Oswald como intelectual encontra ainda um espaço a ser explorado pela
crítica brasileira. Em nenhum momento da nossa pesquisa, nem nos diversos livros
consultados, nem na consulta ao banco de teses da capes, como também, os artigos e ensaios
que utilizamos, encontramos um estudo de fôlego, restrito à figura de Oswald de Andrade
como intelectual. O estudo de maior abrangência nessa área é o livro Intelectuais a Brasileira
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(2001), de Sérgio Miceli, que busca construir, a partir de uma leitura sociológica, um retrato
da relação entre o intelectual modernista e as classes dirigentes no Brasil. Mas, apesar de citar
Oswald de Andrade junto a vários outros autores, não lhe dedica atenção especial.
A discussão de Sérgio Miceli prima pelo estabelecimento de uma relação direta da
produção da vida material com a atividade intelectual, o que lhe rendeu já no prefácio, escrito
por Antônio Candido, para Os Intelectuais e as classes dirigentes no Brasil, livro que consta
na citada edição de Intelectuais a Brasileira, a seguinte ressalva:
Nessa batalha das interpretações ele nem sempre escapa ao risco de condenar ao
invés de compreender, embora o faça o mais das vezes de maneira implícita ou
lateral, como quando alude aos „patrões‟ dos intelectuais, deslizando com certa
dureza sobre a palavra mais cabível que seria patrono. Ou quando reduz um tipo de
produção intelectual a um “álibi perfeito”, por meio do qual eles se submeteriam aos
critérios da cooptação oficial e tudo o que daí decorre, fingindo trabalhar num nível
alto de generalidade desinteressada. É quando no fundo a atitude de Miceli é
polêmica, e talvez, ele “julgue” mais do que seria preciso (CÂNDIDO, 2001, p. 73).
Antônio Cândido alerta ainda sobre o perigo das análises de tipo ideológicas, quando
buscam misturar “desde o começo do raciocínio a instância de verificação com a instância de
avaliação” (2001, p. 73). O autor continua, anotando que a dimensão política, ou seja, a
situação de classe, o papel social, o poder econômico, em suma, todos os aspectos que
constituem o campo da vida material e seus desdobramentos ideológicos para o intelectual e
sua obra devem ser considerados, mas não podem imperar como critério absoluto de
avaliação.
Antônio Candido acentua, mesmo com a ressalva que citamos, o caráter pioneiro e
inovador da importante pesquisa de Sérgio Miceli. Além de coadunarmos com a opinião de
Candido em sua recusa a um determinismo entre situação de classe e obra artística,
salientamos que a arte, em sua dimensão polissêmica, tem por função colocar os sentidos em
jogo, desestabilizando a centralidade do poder. E isso só é possível porque os efeitos de
sentido decorrentes da leitura de um quadro, de um livro ou de um filme, independem de uma
fenomenologia, não está estritamente ligada ao sentido que lhe quis imputar o seu autor, como
artista ou como intelectual. Há contribuições diversas sobre essa questão como a dos autores
pós-estruturalistas entre os quais Michel Foucault, em seu O que é um autor, e Roland
Barthes em seu A morte do autor, além de toda a discussão acerca do leitor empreendida pela
Estética da recepção.
15
Como aponta Nietzsche (2005), não se pode definir aquilo que tem história, pois o
movimento histórico põe também o sentido em movimento. Assim, a produção crítica de um
intelectual e as obras de um artista, são históricas, como é histórico o homem e sua leitura, por
isso, os sentidos devem ser colocados sempre em jogo, no sentido derridiano.
Como elemento complicador da análise do intelectual Oswald, temos as sucessivas
mudanças de postura e os movimentos ideológicos na própria obra do autor. Decerto, falando
de Oswald de Andrade não estaremos falando de um mesmo intelectual de 1920 a 1950. Isso é
possível apenas se estivermos dispostos a rasurar a própria ideia de intelectual como homem
sempre coerente a si, preso a uma ideologia e um objetivo estático. Oswald de Andrade foi
sempre o homem da contradição e do movimento.
Em 1933, no prefácio de Serafim Ponte Grande, Oswald de Andrade faz uma mea
culpa, condenando-se por ter “passado por Londres, de barba, sem perceber Karl Marx”, e
segue no tom languido, “Fui com eles [Emílio de Meneses e Blaise Cendrars] um palhaço de
classe. Acoroçoado por expectativas, aplausos e quireras capitalistas, o meu ser literário
atolou diversas vezes na trincheira social reacionária” (1987, p. 10). No mesmo texto Oswald
evidencia sua filiação ao marxismo e anota sua vontade em “Ser, pelo menos casaca de ferro
da revolução proletária” (idem, p. 11).
Oswald de Andrade assume, política e esteticamente, a partir de então, sua filiação ao
partido comunista que data de 1930 e durará até 1945, quando as repercussões da segunda
guerra, os desdobramentos e violências dos regimes socialistas e leninista desintegram a
utopia marxista. Após a metade da década de quarenta, depois de abandonar o partido
comunista, Oswald empreende o que Benedito Nunes (1979) chamou de um retorno à
antropofagia. O autor defende que, mesmo depois de esconjurar a antropofagia no prefácio de
Serafim, as marcas das ideias antropofágicas do poeta modernista continuaram „ardendo em
fogo brando‟.
Essa retomada da antropofagia não poderia ser, sendo Oswald de Andrade quem era,
um devorador, um retorno ao mesmo. Antes filiava nessa retomada postulados antropófagos e
marxistas na elaboração da Crise da filosofia messiânica e A marcha das utopias, textos de
1950, nos quais formula sua crítica a sociedade patriarcal. Propõe, então, o matriarcado de
pindorama, uma síntese entre a floresta e a escola, que culminaria numa sociedade sem
classes, responsável por suplantar, no desenvolvimento da história, a sociedade ocidental
patriarcal e dividida em classes. Unia-se o primitivismo de 1924 e o marxismo de 1930, numa
terceira fase de produção intelectual, a partir de 1945.
16
A dança de conceitos a que se referiu Benedito Nunes na sua apreciação crítica da obra
oswaldiana serviria também como metáfora para pensar um intelectual sempre em
movimento, sempre dançando com gestos que se deslocam no espaço e no tempo.
Há, portanto, diversas portas de entrada para a obra oswaldiana, dentre as quais
destacamos o poeta, o vanguardista, o intelectual, o teórico e a que privilegia a antropofagia
como categoria para pensar a cultura brasileira, sempre oscilando entre uma leitura
sociológica ou formalista.
Quando conheci a literatura de Oswald de Andrade, por meio da leitura mal traçada
que fiz dos poetas concretos, houve, desde o primeiro contato, uma estranheza absoluta com o
Pau-Brasil, diluída ao longo do tempo pela leitura da teoria da poesia concreta e da leitura das
estéticas de vanguarda, e posteriormente tornada admiração, já a partir da leitura de outras
obras de Oswald, sobretudo, Memórias Sentimentais de João Miramar e Serafim Ponte
Grande.
Após o processo de familiarização com a obra de Oswald de Andrade, passou a
inquietar-me certa característica da crítica em relação a sua obra, sempre compartimentada em
abordagens formalistas ou sociológicas. A relação entre estéticas de rupturas, como é a de
Oswald e das vanguardas em geral, com transformações históricas e sociais, me parecia pouco
explorada pela crítica brasileira. Interessava-me compreender a mensagem que as
transformações formais engendravam não enquanto rupturas estéticas apenas, mas como
instauração de um novo discurso. A nova forma teria que trazer, portanto, rupturas no plano
discursivo, senão seriam rupturas apenas no plano estético, mantendo os sentidos e relações
de poder no mesmo jogo de significações, o que constituiria, quiçá, as propostas de ruptura
estética em falsas vanguardas.
Até que em 2010 surgiu a necessidade de escrever dois trabalhos de conclusão de
cursos de especialização, uma monografia sobre a textualidade afrobrasileira, e um artigo de
conclusão de curso que empreenderia uma análise do discurso da lei 10.639/2003. Este último
trabalho me obrigou a leituras no campo interdisciplinar da Análise do discurso em que a
história tem função decisiva na atribuição de sentido ao enunciado. Abre-se para mim uma
abordagem metodológica que (creio) me acompanhará definitivamente, mas, sobretudo,
apresentava-se um campo de estudos com o qual eu não tinha aproximação, o campo da
historia.
Meu contato com a história marcou minhas leituras e motivações de pesquisa a partir
de então, mas talvez caiba aqui um esclarecimento: não era a história no sentido clássico do
termo que me interessava, a história definida como a ciência que estuda o homem no tempo e
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no espaço, a partir da narração de seus principais feitos, dos grandes eventos e acontecimentos
que marcam a evolução da humanidade ou seja, a história como registro do passado.
Instigava-me mais a historiografia, compreendida como o fazer a história, ou seja, uma
discussão crítica “que corresponde ao acúmulo do trabalho já realizado pelos historiadores, e
à reflexão mais sistemática sobre esse trabalho” (BARROS, 2011, p. 13).
Eram, em suma, as relações de poder que constituíam a escrita da história que me
inquietavam, na verdade, deslocando a famosa frase do Teoria da poesia concreta, eu digo
que na história me interessa o que não é história.
É nessa trilha que as especializações vêm unir uma paixão antiga e uma nova, a
literatura e a história. A monografia que incluiria um capítulo que discutia como a
textualidade afrobrasileira reescreve a história oficial da nação me trouxe um lugar de
encontro. Um lugar discursivo de onde queria enunciar, pelo menos por enquanto, minhas
produções teóricas. Ainda com a monografia inconclusa passei no mestrado em Estudo de
Linguagens na Universidade do Estado da Bahia, com um projeto que propunha a leitura das
relações entre literatura e história em Viva o povo brasileiro de João Ubaldo Ribeiro.
Mas havia uma presença que me acompanhara desde minhas primeiras leituras mais
efetivas no campo da literatura que não estava nessa minha empreitada, e que, confesso, fazia
muita falta, a vanguarda. Sem ela minha inquietação com a distinção entre as análises
estruturalistas e sociológicas continuaria adiada. Então, propus à minha orientadora, que
muito gentilmente aceitou, a apresentação de um outro projeto, no qual eu continuaria
estudando a relação entre literatura e história só que, em Oswald de Andrade, mais
especificamente no livro de Poemas Pau-Brasil de 1925. Havia encontrado meu objeto de
pesquisa.
Inicialmente a pesquisa pretendia discutir como Oswald de Andrade antecipava, em
sua escrita da história do Brasil, pressupostos que Linda Hutcheon chamou de metaficção
historiográfica, que, em suma, defende que a interação do historiográfico com o ficcional
“coloca igualmente em evidência a rejeição das pretensões de representação autêntica e cópia
inautêntica” (1991, p. 150). Nessa perspectiva, história e literatura não teriam mais uma o
status de verdade e outra o de invenção, ambas irmanavam-se na dimensão do discurso.
No entanto, o contato sistemático com o objeto mostrou que a dimensão histórica na
obra oswaldiana ultrapassava muito a escrita de alguns poemas no livro Pau-Brasil.
Percebemos, no decorrer da pesquisa, que a história ocupava parte significativa dos
manifestos, Pau Brasil de 1924 e Antropófago de 1928, e que a história no pensamento
oswaldiano tinha função decisiva, desde os citados manifestos, passando pelo livro de poemas
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salientamos aqui é que ela não será a categoria teórica central a partir da qual abordaremos a
obra oswaldiana, mas sua presença é constante em nosso texto, como não poderia deixar de
ser. Decidi por concentrar a pesquisa na relação entre literatura e história no livro poesia Pau-
Brasil.
Essa escolha justifica-se por aspectos importantes. Primeiro, se tem sido recorrente a
discussão da obra oswaldiana, ela, na maioria das vezes, é feita a partir do conceito de
antropofagia, enquanto nós a abordaremos buscando identificar sua relação com a história.
Segundo, o estudo da obra oswaldiana é quase sempre efetuado tomando como corpus seus
romances, porventura seus textos teóricos, mas escassamente seus poemas.
É de nosso conhecimento apenas dois estudos na área de literatura que se debruçaram,
de forma ostensiva, sobre os poemas Pau-Brasil, ambos publicações relacionadas ao
movimento modernista com capítulos dedicados a Oswald de Andrade.
O primeiro data de 1972, edição comemorativa dos cinqüenta anos da semana de arte
moderna, é uma antologia crítica de poetas do modernismo editado pelo Ministério da
Educação e Cultura, na qual consta um capítulo sobre a responsabilidade de Costa Lima, em
que o autor analisa alguns poemas oswaldianos.
Outro estudo é o de Vera Lúcia de Oliveira, Poesia e Mito no Modernismo Brasileiro,
fruto de uma tese de doutorado. Publicado em 2002, o livro é também dedicado ao
movimento modernista, e com um capítulo referente a Oswald, em que a autora analisa
poemas do Pau-Brasil. Essa não recorrência da abordagem teórica dos poemas oswaldianos
contou para nossa escolha do livro Pau-Brasil como corpus central da nossa pesquisa, mais
especificamente as três primeiras seções do livro: História do Brasil, Poemas da Colonização
e São Martinho.
Duas medidas tornaram-se então necessárias. A primeira buscava compreender com
qual noção de história Oswald de Andrade buscaria escrever a sua história do Brasil, pois, se
o poeta propunha uma escrita de ruptura e um discurso novo, para pensar a cultura brasileira,
como o faria a partir dos modelos românticos e evolucionistas de história, que já circulavam
há tempos na produção artística e intelectual do Brasil? A esta questão destinamos o primeiro
capítulo, na tentativa de compreender que historiografia Oswald adota, inventa, ou devora,
para elaborar seu projeto de nação modernista e antropófaga. Buscamos mostrar como na sua
maneira de pensar a história o poeta instaura sua primeira e mais decisiva ruptura com os
modelos de importação de uma racionalidade europeia. A segunda questão é que a relação
entre história e literatura nos levará inevitavelmente para as representações construídas acerca
da nação brasileira no início do século XX.
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da realidade nacional nas letras brasileiras, mas recorre ao modelo dialético do materialismo
histórico, não para adotá-lo em sua integridade, mas para devorá-lo.
Oswald de Andrade compreendera que, por meio da história com seu modelo vetorial
e sua lógica universal, instaurava-se o império da razão iluminista, e, a partir de então,
propõe, nos manifestos e no livro de poemas Pau-Brasil, uma releitura da história do Brasil,
que era ao mesmo tempo uma proposta de compreensão do fenômeno histórico, não mais
como homogêneo e linear, mas como plural e descontínuo. Esse último aspecto, Heloísa
Helena (1985), em Totens e tabus na modernidade brasileira, destaca brevemente, afirmando
que o poeta percebeu que a cultura encontrada pelo colonizador resiste sob formas diversas,
fragmentárias e dispersas, ou seja, descontínuas.
Abordaremos os poemas do livro Pau-Brasil buscando evidenciar seu aspecto
desconstrutor a partir da representação de uma nação heterogênea e multitemporal. No
entanto, devido à amplitude de abordagens e ao grande fôlego que a questão da historiografia
adquire na obra oswaldiana, nos deteremos nos seus escritos poéticos da primeira fase
modernista, a chamada ortodoxa, mais especificamente, o livro de poemas Pau-Brasil (1925)
e os manifestos, Pau-Brasil (1924) e Antropófago (1928). Assim, nosso corpus limita-se aos
escritos de período de 1924 a 1928, subtraindo textos em prosa escritos pelo poeta, na década
de 20. Apesar de o núcleo do pensamento de Oswald está sinalizado já no primeiro manifesto,
como defende Abílio Guerra (2010), eventualmente, dialogaremos com textos ensaísticos do
poeta, mas só na medida em que esses contribuam com as questões já inseridas no corpus
deste estudo.
Privilegiamos esse recorte temporal porque o início do século XX marca um momento
fundamental no projeto de construção de uma identidade nacional. A força das teorias raciais
de cunho determinista, o projeto moderno de formulação de uma nação híbrida, a proposta
culturalista de Gilberto Freire, todos esses embates teóricos, aliados ao contexto da
relativamente recente proclamação da república, do primeiro centenário da independência,
além do início do processo de industrialização paulista, do nascimento de uma classe
comerciante, e do processo de urbanização das cidades, potencializam o período como
momento fértil para a compreensão das concepções de nação que circulavam na sociedade
brasileira.
Nosso intuito, portanto, é identificar como, através da proposição de uma nova
concepção de história, o poeta modernista empreende uma escrita da história nacional, que
privilegiará uma representação descontínua e plural em detrimento da homogeneidade e
similitude, pretendidas pelas narrativas históricas e projetos nacionais anteriores.
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centrais: origem e progresso, e com isso instaurou sua ruptura com os projetos nacionais
anteriores.
Na terceira seção, já tendo lido as noções de origem e progresso como estratégias
discursivas que fundamentam as representações sobre a nacionalidade construídas pelos
projetos nacionalistas do século XIX, buscaremos identificar como Oswald de Andrade
escreve a sua história do Brasil e quais elementos privilegia na sua narrativa descontínua e
plural da nação. Se, no capítulo dois, discutiremos como o poeta modernista desconstrói a
lógica da evolução positivista e da origem metafísica da história nacional, e em consequencia
disso desautoriza as representações do nacional elaboradas pelos projetos anteriores, o
terceiro bloco do nosso texto será dedicado a compreender como Oswald inscreve em sua
história do Brasil os elementos recalcados nas narrativas anteriores: os nativos, a terra e o
período colonial.
Tentaremos evidenciar como as figurações do nacional que prezam pela homologia
são substituídas, em Pau-Brasil, por uma escrita da história que não dissimula a dupla
violência que marcou a construção da nação brasileira: a violência do processo histórico e da
escrita da história. A homologia, a unidade nacional, o pertencimento coletivo só podem ser
conseguidos se a violência do processo de sua construção for silenciada ou lançada para um
passado imemorial, fazendo com que a coerência e a harmonia da unidade apareçam como
essência da própria identidade. Para apagar as marcas de hostilidade, os traumas da história é
que ocorrem as interdições, estereotipações e os silenciamentos de eventos, personagens, e
períodos históricos inteiros.
Se, no romantismo, o período colonial foi recalcado para remeter a memória à origem
mítica da nação, e, no realismo/naturalismo, o evolucionismo condenava, graças à
mestiçagem, o período colonial como atraso e degenerescência, Oswald de Andrade trará para
sua história do Brasil o período colonial e seus personagens, sempre atravessados pela
violência da história e sua escrita.
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A condição da nação como uma invenção recente é ponto de consenso entre muitos
teóricos que discutem a questão nacional. É essa característica de artefato novo, pertencente à
modernidade, que permitiu Benedict Anderson (2008) denominar a nação como uma
comunidade imaginada. Para acionar as discussões que sintetizam o processo de construção
simbólica e política das nações modernas, recorremos à cronologia desenhada por Marilena
Chauí (2000) em Brasil, mito fundador e sociedade autoritária.
Antes da modernidade, descreve a autora, a palavra “nação” designava uma
comunidade de indivíduos de origem comum, enquanto “povo” indicava uma organização
social coletiva, estruturada a partir de regras, normas e leis. Assim, povo “era um conceito
jurídico-político, enquanto nação era um conceito biológico” (CHAUÍ, 2000, p. 15). “Nação”
continuou como um conceito marginal, destinado a “índios, negros e judeus” até o início do
século XIX.
Por volta de 1830, para tentar regular e estabelecer, na Europa, critérios para
legitimação dos Estados-nação, são postulados os “princípios de nacionalidade” pautados no
território extenso, população numerosa e capacidade de expansão. Graças a este último
critério a língua ganha notoriedade no “princípio de nacionalidade”, pois seria o elo entre os
territórios conquistados e o Estado. Para Chauí a partir de 1880, porém, um cenário novo se
desenrola no continente europeu e as lutas sociais e políticas põem em cena a massa
trabalhadora, assim, “os poderes constituídos tiveram que disputar com os socialistas e
comunistas a lealdade popular, [...] O Estado precisava de algo mais que a passividade de seus
cidadãos precisava mobilizá-los e influenciá-los a seu favor” (idem, p. 18).
Mas a formação do Estado moderno, como unidade territorial e política, independente
e autônoma, necessitava da adesão da nação ao Estado politicamente constituído. Daí surgiam
duas questões que lhe eram impostas: a) todos os habitantes deveriam ser incluídos na esfera
da administração. b) deveria haver a lealdade dos habitantes ao sistema dirigente. Nesse
contexto, “como dar a divisão econômica, social e política, a forma da unidade indivisa?
Pouco a pouco, a ideia de nação surgirá como solução dos problemas.” (idem, p. 27).
26
Houve então a ampliação estratégica dos elementos de definição da nação, a partir dos
quais o povo passa a ser o referente principal sobre e sob o qual se buscará vincular as
referências à nacionalidade. Ocorre, pois, a invenção do “espírito do povo” e dele serão
tirados os símbolos que representarão a nacionalidade. Assim, tradição, raça, língua, folclore,
costumes e crenças são agora os signos de uma nacionalidade que busca sua imagem através
da produção e reprodução cotidiana desses símbolos. Através desse processo é que o Estado-
Nação começa a viabilizar seu projeto político de equacionar a diversidade sociopolítica,
religiosa e étnica, em uma identidade relativamente fechada e homogênea.
A nacionalidade, um fenômeno recente na história moderna, passava a reivindicar suas
raízes no que o povo tinha de mais antigo, que era a produção de sua vida cotidiana. No
entanto os símbolos eleitos para representar a nação não davam conta de todas as práticas e
costumes cotidianos de todos os grupos étnicos e classes que compunham os Estados em
formação. Por isso, essa tradição (costumes, lendas e crenças etc.), que passa a representar a
nacionalidade e reivindicar a fidelidade dos diferentes grupos, é postulada dentro do que
Walter Benjamim (1985) chamou de “tempo homogêneo e vazio”, ou seja, a história da
tradição do povo foi lançada a um passado imemorial, longe do alcance da memória e da
prova, em que a tradição pudesse ser inventada, irmanando a todos no laço teológico da
origem.
Essa digressão a um passado quimérico e impossível caracteriza a identidade nacional
como aspecto não restrito ao âmbito político, mas antes a configura como signo
antropológico, ligado ao mítico, ao imaginário, e claro, ao discursivo. É nesse contexto que as
discussões sobre a nacionalidade chegam aos países recém-independentes na América do
século XIX, sobretudo, através do Romantismo, quando não era mais possível definir uma
27
nação apenas por critérios políticos como o território e a língua, mas através da politização de
aspectos antropológicos do povo.
Esse processo de invenção de uma tradição, tal como propôs Eric Hobsbawn (2002),
“implica automaticamente uma continuidade com o passado”. No entanto, se pensarmos na
conjuntura sócio-histórica dos países americanos e, sobretudo, na do Brasil, esse passado,
com o qual a história deveria se filiar para a construção de uma tradição homogênea que
representasse toda a nação, mal acabara de passar. A independência e, outrora, a recém-
proclamada república exigiam de imediato a construção de uma identidade nacional que tinha
por função distinguir o Brasil da metrópole colonizadora. Dessa maneira, se, como um
território relativamente jovem, em relação ao velho mundo, já tínhamos uma história curta e
recente, deveríamos nos desvencilhar de tudo que nessa história fosse eminentemente
metropolitano. Deveríamos buscar a distinção, a diferença, as características que nos
marcariam como nação.
Opera-se, então, um primeiro impasse, pois, se a invenção da tradição remete sempre a
um traço de continuidade, e a nação brasileira deveria ser imaginada a partir da diferença em
relação ao passado colonial, quais seriam as bases historiográficas para a constituição do
projeto de nação que ocupava a intelectualidade brasileira? Decerto, essa encruzilhada teórica
fez com que o primeiro projeto assumidamente nacionalista entre nós fizesse a digressão
histórica ao passado imemorial e decretasse, em sua busca da origem, o indianismo como
mito fundador da nação.
Quando acionamos a palavra “fundação” é para remeter diretamente a diferença que
Marilena Chauí (2000) estabelece em relação ao termo “formação”. Essa oposição encena
competentemente o direcionamento e as estratégias de construção de uma tradição entre nós, a
partir da digressão imemorial a que estamos nos referindo. Enquanto a “formação” é um
processo que remete às condições sócio-históricas, econômicas, culturais e políticas que
produzem um “acontecimento histórico”, como também, suas transformações, a “Fundação”
nos remete ao plano do mítico, do lado de fora da história, buscando reconstituir um instante
originário e eterno. Portanto, quando falamos em “formação”, estamos nos referindo a um
processo sempre em mudança, uma série de acontecimentos que, através da sua estrutura
múltipla de causalidade, mantém com o passado uma relação dialógica e criativa. Ao
contrário, a “fundação”, pressupondo “um vínculo interno com o passado como origem, isto é,
com um passado que não cessa nunca, que se conserva perenemente presente”, (idem, p. 9)
estabiliza e institucionaliza um significado, uma identidade para a nação através do vínculo de
todos com a origem.
28
Esse procedimento trans-histórico, essa “metafísica da origem”, foi o modo pelo qual a
nação começou a ser construída como uma “comunidade imaginada”, e passou, a partir do
índio mítico romântico, a instituir a ficção de uma coerência discursiva em torno da
identidade nacional, bem ao gosto do nativismo característico dos países colonizados na ânsia
de negar a presença do colonizador. Isso só seria revisto na poética, talvez, também, trans-
histórica, mas não metafísica de Pau-Brasil, do poeta Oswald de Andrade, como
perceberemos adiante.
É justamente essa metafísica da origem que nos traz outra encruzilhada, pois, se a
estratégia para construir discursivamente a nação foi a “fundação”, e não a “formação”, isso
ocorreu pela necessidade de negar a condição colonial como identidade fundante, e remeter
para fora da história da colonização as marcas da nossa diferença, do que nos constituiria
enquanto nação independente política, mas também, culturalmente. Ou seja, essa postura
buscava erigir a diferença entre Brasil e Europa, essa última na figura de Portugal.
No entanto, e aí as bifurcações aparecem, essa estratégia de remeter a temporalidades
imemoriais nas quais os laços teológicos da origem dão à nação o caráter homogêneo, para
tecer, a partir deste, o pertencimento compartilhado entre indivíduos e Estado, coloca de novo
o Brasil, sob a égide, ou tutela teórica da Europa, já que, através dessa operação
historiográfica de invenção da tradição através do passado homogêneo e vazio, a
intelectualidade brasileira associa-se ao evolucionismo histórico em voga na Europa.
Estávamos, como propõe o Roberto Schwartz (1988), manipulando um conjunto de “ideias
fora do lugar”.
Bem ao gosto evolucionista, a lógica da gênese servia para marcar, entre nós, não a
saída da história, mas o contrário, a inserção nela, já que o pensamento evolucionista,
cunhado na ideia de linearidade e progresso, pressupõe a origem, seja o “espírito” na
metafísica hegeliana, ou o “divino” na história teológica, judaico-cristã. O mito fundador, que
lança o passado na metafísica da origem e simula lançá-lo para fora da história, faz
simultaneamente seu inverso. À medida que insere a história particular e recém-inventada da
nação brasileira no télos histórico ocidental e a inscreve no mapa evolucionista, compartilha
com o pensamento desta a noção de uma história vetorial e universal, que condenará
fatalmente o Brasil à posição de país atrasado em relação à civilização e progresso do velho
mundo.
Pensar a nação era, portanto, significar o passado, ou melhor, politizar a história,
elaborar uma unidade discursiva que pudesse simular uma identidade harmônica e emprestar
ao povo um sentido para o pertencimento. Mas como as ideias continuavam fora do lugar, a
29
Desde a Carta de Pero Vaz de Caminha, passando por Pero Lopes de Sousa, Manuel
da Nóbrega, André Trevet, Jean de Léry, Hans Staden, José de Anchieta, Magalhães Gandavo
e Gabriel Soares de Souza, entre outros, foram muitos os relatos empreendidos diante do novo
mundo. Os textos desses viajantes e cronistas são as primeiras formações discursivas acerca
da terra do Brasil e marcam, através do olhar europeu, os primeiros gestos de invenção do
lugar, ou melhor, como veremos, não propriamente de invenção, mas de identificação desse
novo espaço.
O que a incorporação desses textos, como arquétipos da literatura e da história
nacional demarcam, é a penetração decisiva do imaginário europeu na definição desse novo
lugar. Quando aportados, os europeus trazem consigo toda a carga de significação que
compõe a cultura do velho continente, achando aqui um espaço ideal para a presentificação do
mito edênico da terra prometida.
E é quando muito à guisa de metáfora, que o enlevo ante a vegetação sempre verde,
o colorido, variedade e estranheza da fauna, a bondade dos ares, a simplicidade e
inocência das gentes – tal lhes parece, a alguns, essa inocência que, dissera-o Pero
Vaz de Caminha, “a de Adão não seria maior quanto à vergonha”, - pode sugerir-
lhes a imagem do paraíso terrestre. (HOLANDA, 1994, p. 10).
outras matérias primas, e a terra que recupera um estado original, de natureza, que civilização
europeia não pode mais vivenciar em seus próprios domínios, é a encarnação do mito do
paraíso, alusão à terra prometida pelo cristianismo.
Dessa forma, o contato com o novo lugar animava as velhas fantasias medievais, dava-
lhes um fôlego novo, re-editando a fé no paraíso terrestre que a teologia cristã propagava,
deixando claro que “Os mitos oriundos do imaginário medieval sobre a existência de um
paraíso terrestre condicionaram a tradução por eles [europeus] feita dos discursos dos naturais
da terra”. (SILVEIRA, 1990, p. 28). Dessa forma, as impressões, traduções e interpretações
sobre o novo mundo foram registradas a partir de modelos cognitivos e, sobretudo, pelos
regimes de verdade vigentes na cultura europeia de então, e se isso era inevitável, naquela
época, o foi também, o fato de que, a partir dessa perspectiva, a alteridade esteve sempre
reduzida a um traço metonímico, uma reprodução defasada ou fantasiada, rasurada ou
atrasada de si mesmo.
Outro elemento vem juntar-se à visão do paraíso, atrelado à percepção da terra-só-
natureza, como mote que norteará os futuros projetos de nação ao longo do século XIX e XX,
a saber, a figura do nativo. Signo mais tenso que a natureza por colocar em jogo as recentes
postulações da racionalidade moderna, o nativo é edenizado, junto com a terra ou demonizado
a partir da diferença em relação ao europeu.
A experiência do contato com o nativo foi de estranhamento, pondo em xeque a visão
universalista da cultura europeia, já que as sociedades “primitivas” funcionavam através de
uma série de “questões tabus” à cultura eurocêntrica, como o incesto, o canibalismo, a
poligamia, o politeísmo entre outros. A esse respeito, é emblemática a breve passagem de
Gabriel Soarez de Souza: “É este gentil tão luxurioso que poucas vezes tem respeito às irmãs
e tias” (1851, p. 287). É essa diferença que vai marcar a alteridade nativa como não-civilizada
e atrasada em relação ao paradigma cultural europeu.
Para Lília Schwarcz (1996), “Talvez o grande momento inaugurador da percepção da
diferença date mesmo da descoberta do novo mundo”, quando se opera “o deslocamento do
paraíso terrestre que sai da Ásia, e também um pouco da África, e vai para a América”. Mas,
para a autora, no decorrer do século do descobrimento, há uma mudança na ênfase e no objeto
central das especulações dos viajantes e cronistas que corresponde a voltar às atenções antes
destinadas a valorizar o exotismo da fauna e flora, e a grandiosidade da natureza exuberante,
para as “novas gentes”.
32
marcasse uma diferença em relação à Europa. O que se buscava, de fato, era marcar a
diferença da colônia em relação à metrópole, era decretar uma independência que extrapolasse
o plano político e chegasse ao cultural. Para efetivar esse projeto de escrita de uma história
nacional, a literatura passa a pôr em prática o que mencionamos anteriormente como
digressão a um passado imemorial, “homogêneo e vazio”. Não interessava ficcionalizar uma
nacionalidade que remetesse às raízes coloniais de dominação, pois o que se buscava negar
era o próprio passado colonial e subalterno como origem. Estávamos, então, em plena
construção metafísica da origem, e para tanto recorreu-se aos textos dos cronistas, como única
ponte possível entre a escrita e o retorno a um passado pré-colonial. Estava em curso a
instituição dos primeiros mitos fundacionais da nação. “Esses mitos, é possível afirmar desde
já, no caso brasileiro, estão intimamente ligados aos arquétipos da “terra” como paraíso
edênico, e ao “homem”, como síntese (mistura, mestiçagem) em comunhão com a terra”.
(SILVEIRA, 2009, p. 21).
Em Tupi or not Tupi, Éder Silveira demonstra como esses topos são encarnados pelo
romantismo na construção do projeto de nação romântico, o que vai costurar certa
continuidade apontada pelo autor entre o projeto romântico e o modernista. No entanto,
mesmo sinalizando certa coerência entre os dois projetos, há marcas de distinções
inconciliáveis como o sentido histórico empregado em ambos, que circula entre a
secularização e mitificação, no que nos deteremos em breve.
signo original de sua singularidade, marca distintiva de sua existência, não corresponde ao
indígena no sentido antropológico, homem particularizado, representado através de suas
idiossincrasias. É antes uma transplantação cultural do herói medieval europeu, do bom
selvagem de Rousseau. É o gesto que, remetendo-se para fora da história material da
colonização, emerge de um tempo sem história, ou seja, busca-se apagar um passado que lhe
condenava a um lugar subalterno dentro do evolucionismo histórico, para criar um passado
que lhe permita postular concomitantemente uma singularidade e uma continuidade com a
cultura europeia.
Essa ficção de uma origem a-histórica busca apenas, através da negação das condições
materiais de nossa existência, responder, de forma insatisfatória, às encruzilhadas postas pelas
teorias raciais do século XIX. Em suma, institucionalizando um início histórico,
compartilhávamos a concepção evolucionista da história (começo, meio e fim), na qual
éramos de antemão condenados ao atraso. Nesse sentido, cabe aqui deslocar uma citação
oportuna de Sussekind, “Se o regresso à origem é uma impossibilidade e o que se faz é “fingir
a volta a casa”, fundar uma paisagem, uma cena histórica ou familiar, um marco aprazível a
que se nomeiam “Brasil”, “Origem” “natureza”, é preciso com uma das mãos empreender a
fundação e com a outra negá-la” (1996, p. 37).
O projeto romântico, embora efetivo, viu, nas transformações sociais da sua época, um
empecilho ao desenvolvimento do seu programa de nação, pois teve que rever a exclusão do
negro do processo de formação da nação. Em suma, estávamos de vez, imersos nas discussões
teóricas acerca da raça (homem) e meio, (terra) que norteariam todos os projetos de nação no
decorrer do século XX.
Temos aí uma questão crucial, pois, se o pensamento brasileiro buscava conceber uma
nova nação, como o faria a partir de teorias que preconizavam a sua inferioridade no processo
36
sociocultural negando a metrópole, e negar essa diferença afirmando uma igualdade com o
continente europeu.
Dessa maneira, as categorias “homem” e “terra”, recuperadas dos relatos de viajantes
para acionar a origem metafísica da nação, bem ao gosto do messianismo romântico, e marcar
a nossa especificidade em relação à metrópole, chegam ao pré-modernismo transmutadas no
livro Os Sertões de Euclides da Cunha, graças às teorias raciais e ao cientificismo da época
como “raça” e “meio”. Se no romantismo alencariano o “homem” e a “terra” compõem
basicamente uma mesma paisagem do país “só-natureza”, encenam e encarnam o imaginário
eurocêntrico da terra prometida e do bom selvagem, no pré-modernismo euclidiano, a
integração homem e meio marca a degenerescência da raça. Aliás, a composição raça e meio,
após o Romantismo, foi negativa de diversas formas, no pragmatismo da estética realista, na
decadência do homem diante da mestiçagem e o meio no naturalismo, e no determinismo
científico pré-moderno.
Portanto, oscilando entre a busca de uma particularidade empreendida pela literatura
romântica e a vontade de universalidade presente no cientificismo positivista moderno,
acumularam-se os paradoxos em que os projetos de nação entravam e saíam sem resolvê-los.
A busca de uma origem distintiva em uma textualidade escrita e impregnada pela cultura
europeia, a aceitação das teorias evolucionistas, mesmo tendo nelas uma condenação a priori,
a eleição do índio como paradigma de nacionalidade e o apagamento dos traços de nativismo
desse índio, tornando-o um espelhamento de modelos europeus de representação heróica, em
suma, essas e outras encruzilhadas teóricas resumem-se na necessidade de afirmar-se e negar-
se num mesmo gesto, ou seja, concomitantemente diferenciar-se da metrópole e igualar-se ao
resto da Europa, sobretudo, a França. Assim, tanto a negação quanto a afirmação da
identidade dava-se em relação ao mesmo Outro, o europeu.
Esse gesto simultâneo de afirmação e negação de uma identidade que oscilava,
portanto, num movimento incessante e deixava sempre vazio o lugar da identidade, talvez
justifique o que Sussekind (1990) chamou, num primeiro momento, de “obsessão pela
origem” e que se conservou durante grande parte do século XX como uma ânsia quase doentia
pela identidade nacional, da qual nos serve como símbolo o patriotismo extremo de um
Policarpo Quaresma.
Desde certo messianismo romântico, que, acionando valores judaico-cristãos como
paraíso terreal, origem, tradição, faziam funcionar uma temporalidade metafísica, até o
evolucionismo histórico do século passado, através da concepção de linearidade e
universalidade da história, dividida em suas fases evolutivas, o que deixou sempre vago o
38
lugar da nossa identidade foi a absorção do télos da cultura europeia. O sentido histórico do
velho mundo esteve sempre, com suas raízes teológicas ou hegelianas, embasando a forma
com que concebíamos a nação, e aí estava o primeiro e dissimulado paradoxo, a contradição
fundamental, queríamos pensar a nossa história a partir do arcabouço epistemológico da
cultura europeia, e assim, nos condenávamos sempre a um paradoxo novo, era necessário
pensar a diferença com diferença.
Era preciso uma proposta que não acionasse nem a metafísica romântica nem o
pragmatismo cientificista, e ela surge no modernismo brasileiro, através da vanguarda artística
do movimento paulista, e de novo, através da literatura, mais especificamente através da
filosofia da história proposta pela dialética da antropofagia, na figura de Oswald de Andrade.
O livro de poemas Pau-Brasil instaura, quiçá, pela primeira vez, na cultura brasileira,
uma ruptura radical com o paradigma epistemológico eurocêntrico que norteou os projetos de
nação. A concepção de história empreendida por Oswald de Andrade ia de encontro tanto ao
modelo de historiografia dos românticos, como ao dos positivistas, mas sobretudo desses
últimos, já que, como aponta Eder Silveira (2009), há ainda uma via de continuidade entre o
romantismo e o modernismo que é o indígena como motivo, embora as representações de um
e outro sejam díspares, enquanto o romântico idealizava, o modernismo oswaldiano
materializava-o.
Através da metáfora do matriarcado de pindorama, Oswald de Andrade efetuou uma
crítica ao modelo de história positivista, significando a noção de progresso de forma diversa
da corrente da filosofia de Comte, e criticando também a racionalidade ocidental, através da
inscrição do primitivismo como modelo ideal de sociedade, invertendo, assim, o sentido
vetorial da história. No entanto, cremos que para compreender as reais dimensões das rupturas
instauradas por Oswald, é necessário conhecer a paisagem do pensamento historiográfico na
passagem do século XIX para o século XX.
Esse contexto é marcado pelo cientificismo, em que a teoria darwinista funcionava
como discurso subjacente, seja no positivismo de Comte, os estudos de H. Taine, na
antropologia de Taylor, nas teorias raciais de C. Lombroso. Era sempre o sentido vetorial de
evolução e desenvolvimento que norteava o pensamento ocidental, bem ao gosto de uma
39
moral burguesa, cunhada na ética protestante de que falou Marx Weber 2, que emergia a partir
dos novos modos de produção possibilitados pela revolução industrial. Se, com a história
teológica, caminhava-se sempre para um fim último, proscrito desde o início dos tempos, na
racionalidade moderna, a história continuava sua caminhada, só que ela seria balizada pelo
desenvolvimento técnico. É com essa premissa que o positivismo, com seu lema de “ordem e
progresso”, fez tanto sucesso entre a intelectualidade brasileira, pois surgia como mais um
caminho possível em busca da civilização.
Portanto, com a hegemonia dessa racionalidade moderna, fundada no “cogito”
cartesiano, a teologia da história é preterida por uma metafísica da própria história. Ou seja, o
que aponta para uma ruptura não passa, em certa medida, de uma reforma. Ao pensamento
pré-moderno, cunhado primeiro no mito, depois no cristianismo, apontando sempre para uma
transcendência, e uma submissão ao já estabelecido, aos desígnios divinos, é oposta a
racionalidade absoluta que caracterizaria a modernidade, a secularização do homem e da sua
história. Esta deixa de pertencer aos espaços míticos e divinos para fazer parte da realização
racional da civilização.
Essa racionalização da história encontra seu ápice em Hegel, que se propôs a pensar “a
razão como base da História”, ou melhor, racionalizar o processo histórico, compreender a
existência humana, dando-lhe um encadeamento racional. Para isso, Hegel propõe uma
universalidade do espírito, que deriva a universalização da história, que continua a ser, como
em Santo Agostinho, contínua, uma história vetorial em direção ao seu fim, porém não é mais
linear, já que Hegel instaura a dialética 3 como processo de desenrolamento da história, como
o fará também, principalmente nos manifestos Antropófago e Pau Brasil, Oswald de Andrade.
Ao contrário da solução divina da teoria de Santo Agostinho, Hegel postula uma
história com fim em si, “Esse „estar em si mesmo‟ do espírito é a autoconsciência de si
mesmo” (1995, p. 24). Acreditamos que Hegel postula que o conhecimento da história nela
mesma, é a elaboração de um conhecimento do homem sobre o homem, não havendo mais as
determinações divinas sobre o ser, mas sim a racionalização: “conforme essa determinação
2
Em “Antropofagia ao alcance de todos” Benedito Nunes discutindo Oswald de Andrade, assinala que o autor
era “A favor da Contrarreforma e do catolicismo, que se opôs à usura, condenando o Protestantismo, em cuja
ética Max Weber ensinou-lhe a enxergar um fator de acumulação capitalista” (NUNES, 2011, p. 51). Ver: “A
ética Protestante e o Espírito do Capitalismo” (2001).
3
“O movimento dialético, na perspectiva hegeliana, prevê uma tese inicial que logo será confrontada pelo
desenvolvimento de uma contradição saída de si mesmo de modo a formar uma antítese. O Confronto entre Tese
e Antítese – isto é, entre duas realidades contraditórias que se confrontam dialeticamente – gera ao final do
processo a Síntese: um novo momento do processo que, então pode reiniciar da mesma maneira o movimento de
transformações dialéticas”. (BARROS, 2011, p. 39).
40
forma de ciência”, ou seja, é racionalizar a existência desse povo e torná-lo universal através
dessa razão que só pode ser uma e una; a razão ocidental com sua lógica vetorial.
Sobre a racionalidade eurocêntrica, que, é claro, apresenta uma possibilidade de
racionalidade entre todas as outras, como propõem as teorias de meados do século XX em
diante, denominadas pós-modernas e pós-coloniais, numa visada antropofágica, disse Oswald,
“não tivemos especulação. Mas tínhamos adivinhação [...] acreditar nos sinais nos
instrumentos e nas estrelas”, (ANDRADE, 2011, p. 73). Se, para a modernidade, a
racionalidade científica era o regime de verdade através do qual o homem buscava explicar e
explicar-se, para Oswald, a racionalidade não necessariamente correspondia aos modelos
cognitivos importados da epistemologia europeia, afinal “Se Deus é a consciência do
Universo Incriado, Guaraci é a mãe dos viventes. Jaci é a mãe dos vegetais”, e ainda,
“Sem nós a Europa não teria se quer a sua pobre declaração dos direitos do homem”, ou seja,
o modelo emprestado pela razão europeia, engessada pelo discurso burguês do progresso, e de
uma história vetorial e evolucionista não daria conta de compreender que “Os casebres de
açafrão e de ocre nos verdes da Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos”
(ANDRADE, 2011, p. 59).
Dessa maneira, outro ponto nodal em que Oswald e Hegel distanciam-se, e aí para
nunca mais filiar suas dialéticas, é a finalidade da história, ou seja, o rumo para onde o
desenvolvimento dialético da história nos levaria. Como vimos, para Hegel, o Estado é o
ponto máximo do desenvolvimento histórico, ou ainda, o Estado racionaliza a história. Nos
pressupostos levantados nas discussões sobre a histórica empreendidas por Oswald de
Andrade, ocorre o oposto, é justamente o Estado o que é negado como autoridade patriarcal
que precisa ser destruída para o surgimento do matriarcado de pindorama, uma sociedade sem
classes. Essa é a finalidade da dialética oswaldiana, reencenar a sociedade primitiva, mas não
através de uma volta ao passado, mas sim através da síntese da “floresta com a escola”, da
civilização com a barbárie, essa é, em suma, a dialética oswaldiana, que gerará o termo novo,
“o bárbaro tecnizado”. Outra vez, Oswald se apropria do marxismo para diferenciar-se da
dialética hegeliana, e propor uma síntese particular para o seu projeto histórico, e assim
antropofagizar a filosofia hegeliana.
É através dessa razão postulada como próprio fundamento da história que se constrói a
diferença entre o “progresso” nas teologias da história e na filosofia da história. Na primeira,
conforme Barros (2011) é a providência divina que direciona a história a tornar-se o que é,
tornando-a transcendente, enquanto na segunda a pretensão é uma lógica inerente à própria
43
história, “mesmo que o filósofo atribua essa lógica a um propósito divino” (BARROS, 2011,
p. 120), como, às vezes, Hegel parece fazer.
Essa filosofia da história, que encontra em Hegel sua especulação mais difundida,
ganha a partir de meados do século XIX, outra proposta epistemológica através da
disciplinarização da história e sua construção como saber científico, na Teoria da História. Se
a filosofia da história é caracterizada desde a antiguidade clássica pela busca de um telós, ou
seja, “a questão do sentido, da finalidade da história” (PECORRARO, 2009, p. 7), a teoria
marca a emergência da história como ciência, inscrita na maré cientificista que correria todo o
século XIX. A história tinha agora, como todo objeto científico, que atender aos requisitos de
uma ciência, com método, objetividade, pretensão à imparcialidade, e claro, racionalidade. É
importante salientar que filosofia e teoria da história não se excluem enquanto forma de
pensamento histórico, antes dialogam e, guardadas as devidas particularidades, encontram
uma na outra substância para suas argumentações.
Essa passagem de uma filosofia a uma teoria é marcada pelo pensamento de Augusto
Comte, e seu Positivismo. O filósofo propôs que as ciências humanas abarcassem em seus
estudos uma metodologia de pesquisa científica e, a partir de então, empreendeu também uma
discussão sobre a postura do sujeito frente ao seu objeto. Barros (2011) chama atenção para o
caráter eminentemente teórico dessas formulações, mas sinaliza também uma postura
especulativa do positivismo comtiano em relação ao pensamento sobre a história, quando este
propõe uma compreensão de desenvolvimento progressivo do homem e do conhecimento,
dividido em três estágios,
acreditava que o progresso dava-se de acordo com uma grande lei, exposta no seu
„Curso de Filosofia Positiva‟ (1930-1842) segundo o qual, „ cada uma das nossas
principais concepções e cada ramo dos nossos conhecimentos passam
necessariamente por três estágios teóricos diferentes, o estado teológico ou fictício,
o estado metafísico teórico ou abstrato e o estado científico ou positivo‟. (BARROS,
2011, p. 130).
Ora. Eis aqui um importante aspecto em que a maior parte das “filosofias da
História” do Século XVIII irmana-se ao conjunto de “Teorias da História” do século
XIX. Em umas como nas outras, emerge vitoriosa esta nova concepção de tempo:
vetorial, progressiva, voltada para o futuro, mais claramente delineadora destas
instâncias temporais que são o Passado, o Presente e o Futuro, e mesmo de outros
modos mais sofisticados de conceber a temporalidade histórica, que hoje já são, de
certo modo, tão corriqueiros. (2011, p. 234).
4
“[...] as considerações de Silvio Romero sobre o Português, de Euclides da Cunha sobre a origem bandeirante
do nordestino, os escritos de Nina Rodrigues, refletem todos a ideologia da supremacia racial do mundo branco.
„Estamos condenados à Civilização‟ dirá Euclides da Cunha, o que pode ser traduzido pela análise de Nina
Rodrigues: 1) as raças superiores diferenciam-se das inferiores; 2) no contato inter-racial e na concorrência
social vence a raça superior; 3) a história se caracteriza por um aperfeiçoamento lento e gradual da atividade
psíquica, moral e intelectual. Associa-se, desta forma, a questão racial ao quadro mais abrangente do progresso
da humanidade. Dentro desta perspectiva, o negro e o índio se apresentam como entraves ao processo
civilizatório.” (ORTIZ, 2006, p. 20). Dessa maneira, crendo na supremacia da raça branca o Estado estimula a
imigração e miscigenação acreditando que assim, os mestiços e negros desapareceriam gradualmente.
49
É preciso ver como tem razão os que acreditam no progresso humano e mesmo no
apogeu, agora mais próximo do que nunca, desse progresso. A guerra, os terrores do
fascismo. O apelo As forças primitivas da humanidade, tudo isso, só, significa
descalabro e morte para um ciclo – o ciclo individualista burguês. Nunca para a
Humanidade (ANDRADE, 2011, p. 82).
Importante para a compreensão dessas rasuras que Oswald de Andrade instaura nos
projetos românticos e positivistas é atentarmos para como essa dialética com a qual o poeta
pensa o processo histórico passa também, pela fome antropofágica do anticolonialismo Pau
Brasil.
Se a adoção do modelo dialético através do materialismo histórico já era em si uma
ruptura na forma de pensar a história nacional, opondo-a decisivamente ao paradigma de
evolução linear e a universalidade da história no projeto positivista e a metafísica da origem
no romântico, ela não explica ainda a abrangência da ruptura oswaldiana, pois deixa em
aberta a possibilidade da compreensão da diferença como síntese, e não como tensão, além de
manter funcionando sem problematização a ideia de continuidade. Isso nos levaria quiçá, de
volta à unidade e a evolução respectivamente.
Como sinaliza Leo Kofler em “História e Dialética”, o específico do materialismo
histórico, ou “da teoria marxista da sociedade, consiste “em considerá-la como uma totalidade
que se desenvolve continuamente” (2010, p. 204). Tanto a ideia de totalidade como a
evolução não comportam o movimento plural e descontínuo que compõem a poesia Pau-
Brasil. A nação imaginada por Oswald de Andrade, não é nem contínua nem universalista,
52
antes são essas características que o poeta desconstrói em suas poesias do História do Brasil.
A dialética proposta por Oswald no par opositivo do Manifesto Pau Brasil, a “floresta e a
escola”, não deve ser compreendida como a dialética hegeliana, da qual a síntese geraria um
novo absoluto.
O próprio Leo Kofler destaca que, “justamente nisso reside o significado da dialética
da concepção materialista da história: ela não cancela enquanto tais, os elementos
contraditórios; em outras palavras, não concebe a sua unidade metafísica, mas a apreende,
precisamente na unidade do contraditório” (idem, p. 114). Essa expressão paradoxal “unidade
do contraditório” nos remete ao que Oswald chamou no Manifesto Antropófago de “bárbaro
tecnizado”, que seria o resultado do processo dialético entre o primitivo e a civilização, a
tecnologia (escola) e a floresta. A dialética histórica compreendida dessa maneira nos serviria
para pensar um aspecto da escrita da história em Pau-Brasil, mas deixariam outros ainda em
suspenso.
Esse par opositivo com que é sempre pensada a dialética atende no pensamento
oswaldiano a uma demanda sobre a representação do nacional, que, em detrimento da
representação sempre homogênea de si mesmo e a imitação do outro, ou seja, em detrimento
de uma proposta de pensar-se sempre como semelhança, ele propõe a diferença através da
antropofagia, em que o particular e o universal instauram dialogicamente uma representação
que pretere a igualdade pela diferença.
Há, porém, ao menos dois entraves: primeiro, a dialética não prescreve a ideia de
evolução, muito pelo contrário, como vimos, tanto nas discussões de Barros (2011) como em
Kofler (2010), a teoria marxista privilegiou a ideia de desenvolvimento vetorial; segundo, a
ideia de uma unidade contraditória, parece nos remeter àquela noção de embricamento e
mistura ao invés de multiplicidade, e, como veremos, a poesia Pau-Brasil caracteriza-se pelo
múltiplo. Assim, entendemos que a dialética, ou melhor, antidialética oswaldiana caracteriza-
se melhor como tensão ao invés de síntese.
Nesse sentido, faz-se necessário que a escrita da história empreendida pelo poeta
modernista seja posta em diálogo com algumas propostas de Nietzsche sobre a história, com
as quais a arquitetura da proposta oswaldiana fica mais nítida. Em seus “Fragmentos
póstumos e aforismos”, o filósofo alemão marca sua posição descrente de ante a história
compreendida como processo de evolução, “A humanidade não representa de maneira
nenhuma uma evolução para a melhor, para o que é mais forte, para o que é mais elevado, no
sentido em que se acredita agora. O progresso é apenas uma ideia moderna, quer dizer uma
ideia falsa.” (2005, p. 206).
53
A concepção de uma história que não se desenrola através de uma evolução, como
vimos, pode muito bem ser uma influência em Oswald de Andrade das suas leituras de
Nietzsche. O que nos importa aqui é que essa ideia é decisiva na forma como o poeta paulista
compreendeu o processo histórico, e a partir do qual ele propôs uma nova forma de
compreender a história do Brasil.
Outros diálogos aparecem entre Nietzsche e Oswald de Andrade, os mais decisivos
são sem dúvida aqueles nos quais Nietzsche se opõe a Hegel em suas leituras sobre a história.
Assim, o papel do Estado na filosofia hegeliana que, como vimos, era central, para Nietzsche
é secundário, diz o filósofo “Mas um Estado não tem um fim: somos nós que damos a ele este
ou aquele fim”, ou ainda, “Se o Estado é somente um meio para assegurar a sobrevivência de
um certo número de indivíduos, como poderia ele constituir um fim” (2005, p. 239). Em
Oswald, no seu pensamento utópico-revolucionário, a ideia do fim do Estado aparecerá como
a própria condição de instauração da sociedade matriarcal.
Como percebemos nas discussões traçadas até aqui, o que faz o Estado constituir um
fim, para espanto de Nietzsche e alegria de Hegel, é a racionalidade que ele empresta ao
processo histórico. É justamente o funcionamento racional do Estado, guiado e conduzido
pela razão que confere a ele seu caráter soberano. Ao inverso, tanto Oswald de Andrade
quanto Nietzsche verão nessa ideia de uma razão soberana e universal o ponto central de onde
se formula a crítica à modernidade e à história pensada nos moldes dessa racionalidade.
Contra esse aspecto desferia Nietzsche sua crítica, “Até agora toda a história foi escrita do
ponto de vista do que foi vitorioso e também com a hipótese de que há uma razão nessa
vitória” (2005, p. 243). O ponto central dessa passagem é que a história é compreendida, lida
e escrita, sempre a partir dessa racionalidade que busca justificá-la. Não é outra a crítica
efetuada por Oswald em várias passagens dos Manifestos Antropófago e Pau Brasil, ou ainda,
no texto “A crise da filosofia messiânica”.
É justamente contra essa racionalidade da história que desenha uma linha evolutiva,
seja ela linear, como no evolucionismo positivista ou através de uma evolução não-linear
como na dialética, que Nietzsche se manifesta, quando se referindo a Hegel fala sobre uma,
A desconstrução operada por Oswald de Andrade nos textos dos cronistas em História
do Brasil busca nada além dessa desconstrução do lugar da origem na história nacional, para,
a partir de então, representar a nação sempre como plural, em que o diverso figura sempre
como tensão e não como síntese. Portanto, a desconstrução da ideia de evolução e origem que
Oswald empreendera no Pau Brasil exige uma leitura da história da nação, que não se
explicaria mais apenas com a dialética, devido à pluralidade que passa a significar a nação
brasileira. Pluralidade que se conserva como tal, em suas diferenças de classe, gênero, etnias,
longe do produto final ou paradoxal, de uma síntese dialética. É assim que a nação aparece
nos poemas de Pau Brasil. Assim também parece compreender Oswald de Andrade, Giuseppe
Cocco em seu Antropofagia, racismo e ações afirmativas, quando diz, “O engajamento
estético, político e literário de Oswald faz-se sempre num esforço de liberação afirmativa,
não-dialética”, ou ainda quando discutindo a ideia de mestiçagem, na obra do poeta, afirma
que
Oswald dizia que as raças caldeavam-se. Nada a ver com alguma sopa na qual todas
as diferenças desaparecessem e cedessem lugar a alguma identidade que, embora
mestiça, fosse homogênea e nacional. O que interessa ver é que a antropofagia é a
multiplicação das diferenças; não o caldo, mas o „caldeamento‟. (2008, p. 274).
místico, no qual a diferença poderia existir em sua pluralidade. A essa manutenção da tensão
ao invés da síntese unificadora, marca da especificidade da escrita da história nos poemas Pau
Brasil, chamamos de dialética antropofágica.
ocupar nesse capítulo, e a nação imaginada através da poética oswaldiana nos poemas Pau-
Brasil, que são, a nosso ver, uma prática ainda mais potente que a esboçada pelos manifestos,
pois, através da literatura, o projeto “pau-Brasil”, marcando a ruptura com a literatura
anterior, marca concomitantemente sua dissidência em relação ao projeto nacional por elas
empreendidos. Essa guerrilha poética oswaldiana, que é o Pau-Brasil, construiu suas raízes
nas formulações teóricas dos manifestos, que desde a oposição entre “Floresta e Escola” do
primeiro manifesto, anuncia a contradição entre matriarcado e patriarcado.
A contradição expressa no “Manifesto da poesia Pau-Brasil”, entre a floresta e a
escola, re-editada no “Manifesto Antropófago” através do “barbáro tecnizado”, é sintetizada
na filosofia da história que Oswald expressa na “Crise da Filosofia Messiânica”, e condensada
da seguinte forma “I- termo: tese – o homem natural; 2 – termo: antítese – o homem
civilizado; 3- termo: síntese – o homem natural tecnizado” (GUERRA, 2010, p. 274). Com
essa proposta, Oswald combatia, de uma só vez, os projetos nacionalistas que pregavam o
retorno a um indianismo mitificado, tomando o nativo como representante da nacionalidade,
5
corrente presente no Grupo Anta do próprio modernismo, como também os projetos que
buscavam a identidade nacional através da bajulação e incorporação do estrangeiro. E na
tensão entre ambos, a nação emergia, não apenas como uma construção histórica, condizente
com o materialismo histórico marxista partilhado por Oswald, mas com uma identidade plural
e híbrida, graças a sua constituição dialógica, privilegiando sempre a tensão em detrimento da
síntese.
Na teoria histórica oswaldiana, esse bárbaro tecnizado corresponde no plano da nação
à cultura antropofágica, que seria o processo dialógico de construção da identidade, logo o
que estava posto no processo histórico dialético imaginado pelo poeta para a nação eram as
temporalidades primitivas e a tecnológica, o passado e o presente, que gerariam a síntese de
uma nação tecnizada, mas que não apagaria suas marcas primitivas, ou seja, não negaria sua
história na constituição de sua identidade. Mais uma vez, a síntese dialética é substituída por
uma “tensão antidialética”.
Dessa forma, a escrita da história efetuada por Oswald de Andrade, e em conseqüência
seu projeto de nação, conservam aspectos pontuais dos projetos que a estética pau-brasil
rasurou. Em paralelo com as rupturas apontadas, em relação aos paradigmas históricos
5
“O que os partidários da Anta mitificavam então era o trajeto da história brasileira , transformando numa gesta
indígena custodiada pela providencia” (NUNES, 2011, p. 35) Diz antes o autor, “[...] tornava-se o descendente
de Peri, depois de ter sido, com Alencar, um ilustre varão da independência, com sentimentos de nobre
português, um guardião das instituições conservadoras” (idem, p. 35).
58
anteriores, há ao menos duas linhas de vinculação centrais para discutirmos as questões aqui
expostas, são elas: 1 - a eleição do índio como o primitivo que representa a nação na dialética
antropofágica guardaria uma simetria entre os projetos romântico e modernista; 2 – o
entusiasmo oswaldiano com a ideia de progresso tecnológico, que estabelece um diálogo
direto com a proposta positivista.
Essas afinidades não significam nenhuma contradição teórica, antes são constituintes
do próprio processo dialético, que propõe a síntese dos contrários, e não seu apagamento nem
exclusão. Por isso, havia na dialética histórica do poeta, uma “presença subsidiária do
evolucionismo” (GUERRA, 2010, p. 175), cuja presença está explícita no entusiasmo nunca
disfarçado, e muito presente, nos poemas de Pau-Brasil, pela ideia de progresso
Metalúrgica
Essa suposta crença no progresso técnico marcava inicialmente uma sutura entre Oswald e o
evolucionismo positivista com o qual ele havia estabelecido rupturas já discutidas. Essas
semelhanças, porém, não podem ser vistas como reprodução dos símbolos românticos, nem
como filiação ao ideal burguês de progresso, pois, são antes, intersecções temáticas, não
trazem continuidades ideológicas e discursivas. O poeta transforma e ressignifica as versões
anteriores, tanto o primitivo, quanto do progresso, dando um sentido antropofágico a suas
utilizações.
59
sua materialidade histórica, a estética Pau-Brasil o representa através das condições históricas
das comunidades indígenas, o canibalismo, a poligamia, ausência de classes, em suma, a
organização social matriarcal.
Outra pretensa continuidade, a segunda, é tecida entre a exaltação oswaldiana do
progresso técnico e as propostas evolucionistas e positivistas do avanço contínuo. O fato é
que o desenvolvimento postulado pelo Positivismo é sempre vetorial, linear e crescente e
amarra o conceito de civilização ao de técnica, sugerindo que a organização social e os
regimes de saber da sociedade moderna estarão inevitavelmente embasados pelo
desenvolvimento tecnológico contínuo e pelo saber científico.
A concepção de progresso oswaldiana é mais complexa, porque defende a hipótese de
um desenvolvimento tecnológico que não nos levará, em sua função histórica, para o estágio
de civilização aos moldes europeus. A tese de Oswald é que “No mundo supertecnizado que
se anuncia, quando caírem as barreiras finais do Patriarcado, o homem poderá cevar sua
preguiça inata, mãe da fantasia, da invenção e do amor” (ANDRADE, 2010, p. 146). Ou seja,
o progresso tecnológico servirá apenas para devolver ao homem a sua capacidade do ócio
tirada do homem primitivo pela lógica burguesa do trabalho. Para Oswald,
O homem aceita o trabalho para conquistar o ócio. E hoje, quando, pela técnica e
pelo progresso social e político, atingimos a era em que, no dizer de Aristóteles, “os
fusos trabalham sozinhos”, o homem deixa sua condição de escravo e penetra de
novo no limiar de uma idade do Ócio. É um novo Matriarcado que se anuncia.
(idem, p. 145).
para Oswald, a evolução passa, paradoxalmente, por um retrocesso temporal, que nos levará a
reeditar vários aspectos da sociedade primitiva e matriarcal,
6
“[...] Graças a esses autores, eles descobrem uma formação pré-capitalista exemplar, diferente do sistema
feudal exaltado pelos românticos „clássicos‟: a comunidade primitiva” (LÖWY, 1990). Ver Michel Löwy,
Romantismo e Messianismo (idem, p. 11-34).
62
desempenham papel central, pois funcionam como estratégias discursivas que põem sempre,
como fundamento dos projetos nacionalistas, a lógica da promessa do movimento evolutivo
na história, a saber: origem e progresso. Essas duas noções subsidiam o tema da continuidade,
a primeira no projeto romântico, e a segunda no positivismo das estéticas realistas. Por isso,
uma ruptura com as concepções nacionalistas dos projetos anteriores ao modernismo
antropofágico, só é possível se instaurar-se uma rasura na lógica da continuidade que mantém
os discursos sobre a nação sempre na esteira da semelhança e nunca da diferença. A partir de
então, procuraremos identificar como esses temas, origem e progresso, aparecem nos
capítulos de Pau-Brasil, em que Oswald de Andrade propõe uma releitura e uma escrita da
história nacional.
64
Cada projeto de nação equaciona, ao seu modo, a diversidade que a compõe, expressa
pelos distintos grupos, classes, culturas e regiões. Esses aspectos plurais da realidade de um
povo são sempre suprimidos em detrimento da construção de uma representação singular da
nacionalidade. Como vimos, o programa romântico, com sua imersão no passado homogêneo
e vazio, buscou lançar a narrativa da nação para fora da memória, recorrendo ao mito para
apagar a história. O programa realista/naturalista, por sua vez, com sua vinculação ao
evolucionismo histórico, legitimou a diferença como inferioridade e atraso, tomando a nação
pela parte e não pelo todo. A dialética antropofágica de Oswald de Andrade busca uma
representação do nacional que assumia a diversidade histórica e material de sua sociedade,
não como síntese, e sim tensão.
Essa dialética antropofágica, com a proposta de traçar uma representação do nacional
que considerasse sua composição múltipla, “acabaria por se configurar como uma verdadeira
chave de leitura para a história do Brasil” (SILVEIRA, 2009, p. 210), possibilitando o
empreendimento da escrita da história pelo poeta modernista. Essa possibilidade de escrever,
em chave dialética, a história, rasurando a narrativa oficial da nação, como anunciado nos
manifestos, Pau Brasil, e Antropófago, evidencia, em início do século XX, o caráter
discursivo da identidade nacional, porque expõe a multiplicidade sincrônica dos programas
nacionalistas7.
É essa veiculação das representações da nação com o discursivo que possibilita
Oswald de Andrade compreender a nação como algo plural e empreender em seu livro de
poemas Pau-Brasil, uma releitura e uma escrita da história do Brasil, através da poesia,
ficcionalizando a história nacional e instaurando a primeira fissura na narrativa oficial. Esse
arranho na história oficial é operado através do imbricamento entre literatura e história, que
busca a desconstrução dos postulados de objetividade e verdade da história como ciência, o
que Hutcheon (1991) chamou de metaficção historiográfica, e que nos é útil para entender a
representação plural que Oswald de Andrade propõe da história e da nação: “A metaficção
7
No caso do modernismo brasileiro podemos citar os projetos nacionais que giravam em torno do grupo Grupo
Anta. Verde Amarelismo, o que era defendido pelo grupo da Revista de Antropofagia, e na década seguinte, A
Escola de Recife propõe um regionalismo que exibiria uma outra face da nação modernista.
65
que está em ação em Lévi-Strauss, quando ele exuma as sociedades primitivas, é ela
que permite a Lacan cuidar de seus pacientes, é ainda ela que consente a Foucault
encontrar-se junto dos esquecidos, dos rejeitados dos prisioneiros. Ardis de uma
razão que trabalha para sua própria descentralização (DOSSE, 2007, p. 449).
Essa crise do paradigma da razão, que muda aspectos decisivos dos regimes de
verdade vigentes na modernidade, e se estende e intensifica ao longo de todo século XX,
transforma decididamente a concepção de história e sua relação com a literatura, através da
“crise dos referentes – ou seja, a idéia de que a história dificilmente poderia apreender algo de
67
8
Freud “O futuro de uma ilusão” (1996).
70
Os negros discutiam
Que o cavalo sipantou
Mas o que mais sabia
Disse que era
Sipantarrou
brasileira. Além de expor a vontade oswaldiana de narrar um Brasil não oficial, marginal e
silenciado.
Podemos compreender que a língua funciona aqui como metonímia de uma discussão
racial e social, posta em elipse no poema. Pois, se as teorias raciais de início do século XX
determinavam o atraso histórico do Brasil, com base na inferioridade das raças, em especial,
dos negros de origem e descendência africana, e principalmente do mestiço, condenado pela
degenerescência da mestiçagem, era com base em uma ficção de etnicidade que começava já
pelas representações essencialistas de cada raça em si.
Dessa maneira, para fazer funcionar, de forma simplificada e extremamente redutora,
os argumentos das ciências de cunho raciológicos, os grupos étnicos eram representados como
homogêneos, quando sabemos que a diversidade étnica que constituiu a população negra
trazida pelo tráfico escravo ao Brasil colônia era diversa e oriunda dos vários grupos étnicos
do continente africano.
O que Oswald mimetiza nessa variedade de realização da língua é a variedade étnica
do povo negro brasileiro, desautorizando os essencialismos que determinavam o negro
brasileiro como um só grupo étnico, questionando o discurso científico que, a partir da
segunda metade do século XIX, pensa a nação através de um conceito essencialista de raça
como pureza. Outro aspecto do poema a destacar é que ele sinaliza ainda uma hierarquia e um
jogo de poder, expresso no verso, “o que mais sabia”. Nesse sentido, Oswald de Andrade
aponta uma diversidade ainda sociocultural da presença do negro na sociedade brasileira. Por
isso, postulamos que o princípio da mestiçagem presente em Pau-Brasil não vislumbra um
apagamento da questão racial, antes mantém, ambos, o negro e o mestiço, como signos em
jogo no campo da identidade nacional.
Mas uma abordagem possível do poema mostra-se de grande potência para
compreendermos esse aspecto racial na poética de Oswald, que se refere sempre ao nativo
como signo positivo da diferença. Essa diversidade constituinte do grupo étnico negro-
brasileiro, que o poema alude, através da metonímia da diversidade de realização da língua, é
toda ela homogeneizada num gesto de inversão, uma duplicação da textualidade nela mesma,
de onde emerge seu contrário, significação essa que o poema opera em relação a seu título: “O
gramático”. Esse é notoriamente alguém fora da diversidade representada no poema. Uma
metonímia da classe dominante que pretende transformar a variedade de registro numa forma
homogênea de realização e significação, em oposição a esse gramático, a diferença múltipla
ganha direção, e se solidariza, simulando uma homogeneidade em um discurso contra-
hegemônico.
72
Outro poema que ilustra essa composição plural no livro, é alvo da leitura de Roberto
Schwartz, com a qual dialogaremos, “Pobre alimária”,
o cavalo e a carroça
estavam atravancados no trilho
e como o motorneiro se impacientasse
porque levava os advogados para os escritórios
desatravancaram o veículo
e o animal disparou
mas o lesto carroceiro
trepou na boleia
e castigou o fugitivo atrelado
com um grandioso chicote
Nesse poema, através da oposição entre cavalo e trilho, bonde e carroça, advogados e
carroceiro, estão postos em cena tanto os temas do progresso, como da divisão social, ou
melhor, o desenvolvimento aparece como motivo de tensão entre as classes sociais, presentes
no desenho da nação oswaldiana. Ambos plurais, o progresso sempre paradoxal de uma nação
que adentra o urbano dentro de uma estrutura ainda rural, e a classe que requer o domínio
socioeconômico, e, consequentemente, o direito à escrita da história clivada entre a antiga
oligarquia e a incipiente burguesia.
Roberto Schwartz expõe o caráter complexo das relações sociais no Brasil de então,
através da justaposição operada por Oswald entre o “Brasil burguês” e o “Brasil colonial”,
síntese essa que segundo o sociólogo produz um resultado contraditório. Mas é justo nessa
contradição, nesse jogo da diferença, que Oswald constrói sua representação da nação,
elegendo um “produto desconjuntado por natureza – a dignidade de alegoria nacional”
(SCHWARTZ, 1987, p. 12).
A questão levantada pelo sociólogo é que Oswald expõe os conflitos de uma sociedade
dividida em classes ao mesmo tempo em que faz essa realidade parecer mais inocente, “Em
miniatura, a cena de rua resume um romance realista, com seu sistema de desníveis sociais e
sentimentos tortuosos”, porém, problematiza o autor, “enche também de inocência os nossos
73
olhos”, fazendo com que a cena funcione “como figurinha num álbum de iconografia
ufanista” (SCHWARTZ, 1987, p. 20). Há, sem dúvida, nessa inocência sugerida pelo autor a
elipse polissêmica de uma ironia desconstrutora, na qual
[...] não era um lugar fixo mas uma função, uma espécie de não-lugar no qual se
faziam indefinidamente substituições de signos. Foi então o momento em que a
9
Ver SCHWARZ, Roberto. “A Carroça o Bonde e o Poeta Modernista” em “Que horas são” (SCHWARZ, 1987.
p. 11-28).
74
mostrar que ela não é natural e nem inevitável mas uma construção, produzida por
discursos que se apóiam nela, e mostrar que ela é uma construção num trabalho de
desconstrução que busca desmantelá-la e reinscrevê-la - isto é, não destruí-la mas
dar-lhe uma estrutura e funcionamento diferentes (CULLER, 1999, p. 122).
A literatura e a história nacional no primeiro quarto do século XIX eram tidas como
disciplinas ainda incipientes, em formação, mas já responsáveis por uma abordagem
nacionalista dos temas que trabalhavam. Sobre a literatura, falava-se de seu caráter ainda
colonizado e lusitano, que funcionava como mimese ordinária das produções de Portugal, em
suma, formava-se ainda, em terras brasileiras, o que Antonio Cândido veio a chamar de
sistema literário 10, tanto que a revista que figura como marco da fundação do movimento
romântico entre nós foi lançada na França, evento que se repetirá ainda no modernismo. Já a
história, institucionalizada e produzida pela intelectualidade brasileira data de 1838, com a
supracitada fundação do IGHB, que explicitava no propósito de “tirar a escrita da história
brasileira das mãos dos estrangeiros” (SILVEIRA, 2009, p. 82), a busca de uma expressão
eminentemente nacional, tão cara ao projeto romântico.
Nessa conjuntura, pressionadas pela recente independência da nação, história e
literatura eram incumbidas de representar a tradição, expor o conjunto dos elementos
históricos e culturais que compunham o cerne de nossa identidade, de nossa diferença, pois a
independência política precisava ser acompanhada por uma movimentação no sentido de
10
Literatura como sistema em “Formação da Literatura Brasileira” de Antônio Cândido (2007).
76
marcar uma ruptura com a metrópole lusitana no plano cultural. Aqui se instala o paradoxo ao
qual nos referimos no início desse texto, pois, como queríamos afirmar uma independência
cultural, em relação à metrópole colonizadora, devíamos expor nossa diferença, nossa
particularidade. É esse o projeto central do romantismo brasileiro, e dessa estética em geral,
como afirma J. Guinsburg, o Romantismo, “na sua propensão historicizante, aglutina as
sociedades em mundos, comunidades, nações, raças, que tem antes culturas do que
civilizações, que secretam uma individualidade peculiar, uma identidade, não de cada
indivíduo, mas do grupo específico, diferenciado de quaisquer outros” (1978, p. 15).
Assim, a afirmação de uma história e uma identidade marcada pela diferença
implicava a negação do passado colonial, como origem da nação. O que instaurava um
entrave, pois era necessário negar a história colonial, única narrativa onde a nação era inscrita,
para escrever uma história estritamente nacional, que, dialogando com o contexto histórico,
narrasse as particularidades e as diferenças da nação brasileira.
Essa postura obriga a intelectualidade brasileira a recorrer, por meio dos pressupostos
idealistas do romantismo a um passado quimérico, às margens da história colonial, mas
também, além da história material, ou seja, um passado mítico, que buscava, para além da
historiografia, os signos para narrar a nação, “com isso precisamente, a História, conquanto
bastante permeada pelo tempo mítico e psicológico, passa a inscrever-se num tempo „real‟”
(GUINSBURG, 1978, p. 16), através dos mitos de origem que, lançados ao passado
imemorial, homogêneo e vazio, buscam legitimar discursivamente a unidade das nações
modernas.
É nessa busca mítica da originalidade que Alencar vai, em Iracema e Ubirajara,
construir a imagem de um indígena puro, ainda não tocado pela cultura européia, e de uma
língua original. Em suma, como expôs Silveira (2009), no autor romântico o mito tem papel
fundamental na compreensão da história. Dessa maneira, a construção da narrativa nacional
ganhava um fundo mítico que, de forma ambígua, ao mesmo tempo que lhe tirava da história,
lhe inscrevia nela pelo mito.
Como vimos, nessa movimentação para um passado mítico, a história e a literatura
encontraram, através da leitura dos cronistas, as categorias de “homem” e “natureza” como os
símbolos da diferença colonial. Mas com as transformações epistemológicas trazidas pela
onda cientificista de metade do século XIX em diante, essas postulações idealizantes do
romantismo vinculadas à ideia de origem e pureza perdem força, e encontram no realismo e
no naturalismo a transformação dessas categorias em “raça” e “meio”.
77
Recapitulamos esse cenário para enfatizar que, mesmo com o protagonismo das teorias
científicas, tanto a literatura como a história continuaram ecoando, cada uma à sua maneira,
os mitos fundacionais construídos pelo romantismo. A Literatura com o apagamento do negro
e do mestiço reeditava a negação do indígena. Assim, este era interditado pelo mito, enquanto
aquele, pelo pressuposto científico-político da inferioridade. Na história, o IGHB continuava,
como vimos, apostando ora na condenação ou não do nativo, mas sempre defendendo a
natureza como originalidade da nação, estratégia retórica para tirar o foco narrativo da falta de
civilização do homem americano.
Nesse sentido, acreditamos que, tanto a retomada do nativo, positivando o
primitivismo, quanto a discussão da mestiçagem, ou as paisagens como postais industriais,
são na poética Pau-Brasil a negação de reencenar esse mito de origem que atravessou o século
XIX na literatura e história nacional. Por isso, concordamos com Lucia Helena quando afirma
que,
uma significação relativamente estanque em que a identidade se põe à margem dos jogos de
significação, funcionando como sentido já pronto e definido. E como estamos percebendo é
outra a concepção de nação que Oswald faz funcionar num movimento que se caracteriza
especialmente por desestabilizar essa identidade que se queria imóvel.
É por esse motivo que, pensando na escrita da história nacional empreendida pelos
primeiros capítulos de Pau-Brasil, preferimos não procurar o eco da origem, mas empreender
uma análise de como o poeta problematiza esse tema em sua textualidade. Essa escolha
justifica-se pela estratégia discursiva privilegiada pelo autor para dialogar com a história, que
é a paródia, entendida aqui, como propõe o poeta e teórico brasileiro Affonso Romano de
Sant´ana, para quem o texto paródico “é exatamente uma reapresentação daquilo que havia
sido recalcado. Uma nova e diferente maneira de ler o convencional. É um processo de
libertação do discurso. É uma tomada de consciência crítica” (1985, p. 31). Dessa maneira, o
texto paródico está sempre do lado da ruptura, da fissura, da polifonia. Enquanto a origem,
como discurso sempre repetido, só pode existir através da paráfrase, que se caracteriza pela
duplicação do mesmo, estabilizando o sentido e engessando a identidade. A linguagem da
paráfrase é corpo estranho na poesia oswaldiana, não podendo haver, portanto, duplicação do
discurso da origem.
Nesse sentido, a concepção de história que irrompe dos poemas Pau-Brasil, devido ao
aspecto descentrado de sua composição e sua negação de um marco de origem a partir do qual
a narrativa se duplique indefinidamente, afasta decididamente a escrita da história oswaldiana
da concepção tradicional de história, da qual ele se desligou desde o primeiro manifesto. A
dialética antropofágica de Oswald de Andrade, com sua concepção de história cíclica que
culmina sempre na síntese, como um novo estágio e um novo começo, sempre a se reinventar
indefinidamente, dando começo a outra história, permite-nos aproximá-la da noção de
genealogia proposta pelo filósofo francês Michel Foucault, para quem a história não é
11
Na primeira edição lia-se “A Blaise Cedrars por ocasião da descoberta do Brasil”.
81
evolucionista e universalista, determinando para cada povo seu estágio civilizatório, no qual
estávamos em débito contínuo com o velho mundo.
É por esse caráter de verdade que toda origem carrega, como seu significante, que o
projeto de leitura e escrita da história brasileira, pela ficção Pau-Brasil, não se limita a
reescrever ou substituir, parafrasear ou atualizar, os mitos do “homem” e da “terra”. Além de
ressignificar esses mitos fundacionais, secularizando o mito do primitivo indígena e
visibilizando o mestiço, enquanto variante da interdição do homem colonial, o poeta revisa
ainda representações edênicas sobre a terra. Escreve-a nas suas dimensões histórica e
material, construindo imagens de uma sociedade onde se aglutinam a realidade colonial e o
progresso técnico e industrial.
As propostas de descontinuidade histórica estão presentes na obra de Oswald de
Andrade: a) no manifesto, propondo uma nova concepção temporal, b) através da
compreensão de uma sociedade marcada por várias temporalidades, c) pela escrita de Pau-
Brasil ser em si a pretensão de um novo marco. Essa recorrência do descontínuo, da ruptura,
do plural, sinaliza que Oswald não se restringiu a parodiar e inverter os temas sagrados da
origem, mas, buscou sim questionar a possibilidade de uma origem como fundamento da
história nacional.
Nesse sentido, tomando a identidade como um processo de significação, pouco difere
se a relação entre palavra e coisa é sempre arbitrária, como propôs Ferdinand Saussure, ou se
ela se perdeu na cadeia indefinida das significações, como prefere Charles S. Pierce. O fato é
que, em Pau-Brasil, a identidade nacional como significante não remete mais a um
significado original, essencial e único, antes aciona uma teia diversa e polissêmica de
significações, em que os discursos acionam cada qual a sua maneira a nação como identidade.
No conjunto de poemas de História do Brasil, o tema da origem é abordado através de
três procedimentos: 1) a intenção de marcar com a escritura uma nova origem, já discutida por
nós, através do título de abertura do livro: “Por ocasião da descoberta do Brasil”; 2) no
poema-epígrafe “Escapulário” que abre o livro; e 3) pela dessacralização dos textos que
construíram os mitos de origem românticos. Como já abordamos o primeiro tópico, passemos
à leitura do poema,
Escapulário
No Pão de Açucar
De Cada Dia
Daí-nos Senhor
83
A Poesia
De Cada Dia.
história, é o silêncio significante.” (ORLANDI, 2007, p. 23). Por isso, as elipses em Pau-
Brasil fazem falar os discursos sempre interditados na historia oficial do Brasil.
Proponho, pois, uma comparação entre a textualidade explícita, a profana, e a
implícita, a sagrada, de “Escapulário”, para que possamos, posteriormente, acessar as
significações em seu interdiscurso.
O Pão Nosso
De Cada dia
Daí-nos Hoje ao perdoar as nossas ofensas (...)
Amém.
História do Brasil, e já foi ligeiramente pontuada nesse texto. No seu projeto de reescrita da
história nacional, o poeta não empreende a recontagem dos grandes homens e grandes feitos,
aquela que Nietzsche chamou de “história monumental”, não se propôs a levantar eventos
catalogados pelos historiadores do IHGB, muito menos transformou seus poemas num
encadeamento épico de acontecimentos históricos. A estratégia de Oswald foi análoga a
utilizada em “Escapulário”, parodiar e desautorizar os textos que instituem e legitimam a
origem das representações, agora, da nação. E como vimos anteriormente, tanto a história
oficial proposta pelo IHGB como a literatura romântica, e ainda o pensamento positivista,
debateram-se em torno dos mitos de origem construídos pelos textos dos cronistas e
viajantes, a fim de, em nome da nossa singularidade ou do nosso atraso, construir suas
representações da nação.
A operação textual que Oswald escolheu, para ficcionalizar a história do Brasil e
expor as relações de poder que permeiam sua escrita, foi retirar a aura e a autoridade desses
textos que fundamentaram a história e a literatura nacional, dirigindo a eles seu riso paródico
e desconstrutor. É nesse sentido que a reescrita da história pelo poeta “nos ensina a rir das
solenidades da origem” (FOUCAULT, 2008, p. 18), estabelecendo descontinuidades na
narrativa oficial da nação.
Oswald recupera os textos dos cronistas em chave irônica e paródica instaurando um
nível de intertextualidade que só acha par no modernismo brasileiro no Macunaíma de Mário
de Andrade, e, através da aparente duplicação do mesmo, vai instaurando fissuras que
deslocam, descentram e põem em movimento os sentidos construídos sobre a história do
Brasil. Linda Hutcheon compreendeu bem essa relação da literatura com a história,
comprometidas em relativizar e desautorizar os discursos históricos oficiais como verdades,
procedimento que a mesma denominou, como já citado, de Metaficção-Historiográfica. A
autora percebeu esse fenômeno estudando as narrativas que ela classifica como pós-
modernas. Nesse sentido, a metaficção, como categoria teórica, nos instrumentaliza para a
compreensão da reescrita oswaldiana, ao mesmo tempo que mostra o caráter antecipador da
poesia Pau-Brasil, que seria, portanto,
Oswald procede dessa maneira ao longo de todo o primeiro capítulo, operando desvios
na textualidade dos cronistas que ressignificam completamente o produto final das suas
antigas representações, como podemos ver no poema “País do Ouro”.
Esse poema estabelece uma intertextualidade direta com o parágrafo final do capítulo
IV da História da Província de Santa Cruz de Pero Magalhães Gandavo, onde se lê:
Estes moradores todos pela maior parte se tratão muito bem, e folgão de ajudar huns
aos outros com seus escravos, e favorecem muito os pobres que começão a viver na
terra. Isto geralmente se costuma nestas partes, e fazem outras muitas obras pias, por
onde todos tem remedio de vida, e nenhum pobre anda pelas portas a mendigar
como nestes Reinos. (1999, p. 123).
12
“O movimento dada (ou dadaísmo) foi histórico e literariamente uma reunião de pelo menos três dos
principais movimentos de vanguarda na Europa conturbada pela Primeira Guerra Mundial. Tanto o futurismo,
89
desconstrução da arte e chega a Oswald graças ao seu contato com as vanguardas da Europa.
Mas trata-se apenas de uma incorporação de procedimentos estéticos e não de discursos, pois
a relação de Oswald com as vanguardas européias foi sempre antropofágica.
Para Haroldo de Campos, poeta e crítico brasileiro, essa apropriação da textualidade
dos cronistas, e tantas outras que o poeta realiza em Pau-Brasil, inclusive na incorporação dos
registros da língua falada, definem a poética oswaldiana como “uma poesia read made”, que
acusa duas vertentes: “a destrutiva, dessacralizante, e a construtiva, que rearticula os materiais
preliminarmente desierarquizados” (CAMPOS, 2000, p. 25). Esse procedimento na poesia
oswaldiana é frequentemente abordado para referir o uso já citado da linguagem coloquial, “a
frase pré-moldada dos rituais cotidianos, dos anúncios, da cultura codificada”, enquanto, em
relação aos poemas históricos do primeiro capítulo, o crítico assinala que são
como o expressionismo e o cubismo [...] já haviam se definido como revolucionários desde 1914.” Gilberto
Mendonça Teles (1976, p. 123).
90
(GANDAVO, 1980, p. 7)
Mas há outra dimensão no poema que podemos abordar em diálogo com o que propôs
Antelo. O texto põe duas imagens em jogo, a do movimento e da estabilidade, por isso
Oswald retirou do texto o trecho que falava do movimento do vento entre norte, sul, e as
vezes leste e oeste. Isso porque a ideia de um vento que se mobiliza, apenas internamente, é
para simular uma atrofia, uma paralisia, enquanto a imagem do vento que cruza o país inteiro
e circula fora e dentro dele remete à ideia de movimento. A nação, para Oswald, tem que estar
em constante diálogo com “os ventos que lhe vêm de fora”, um movimento constante e
concomitante de interiorização e exteriorização. É essa ideia de uma nação que existe para
fora de si, e que nunca se extrapola completamente que está na raiz das metáforas da
antropofagia e do pau Brasil, que, segundo Oswald, é “a coincidência da primeira construção
brasileira no movimento de reconstrução geral” (2011, p. 62).
O que os dois poemas, “País de Ouro” e “Salubridade” expõem é, no primeiro, a
representação metonímica da nação, e no segundo, a vontade de construir uma nação que
valorize a constituição dialógica de sua identidade, a revelia dos projetos essencialistas que
rondavam o imaginário nacional ainda no modernismo. Essas leituras expõem mais um
aspecto paradoxal de nossa identidade nacional: ora a identidade é buscada sempre pela
negação do que lhe é externo e afirmação da sua formatação interna, ora é procurada na
negativa em relação aos elementos internos e apropriação do que lhe é externo. Oswald
buscou equacionar esse impasse através da antropofagia como paradigma teórico, mas
também, como práxis, através da escrita de Pau-Brasil.
Dessa maneira, dobrando a linguagem sobre si, instaurando a repetição como desvio
para por de novo no jogo da significação os textos que fundamentaram as narrativas míticas
da origem, a História do Brasil de Oswald de Andrade, desautoriza, relativiza e ri da aura de
verdade e poder que cercaram esses textos até o século XX. A retomada desses textos de
origem da literatura e da história nacional em chave paródica, como vimos, expõe os
mecanismos de poder que circulam em torno da escrita da história. Assim, “Escapulário”,
“País do Ouro” e “Salubridade” estão atravessados pela negativa da repetição indefinida dos
mitos fundacionais, mostrando que a noção de origem serve para legitimar a história como
verdade, e, como anunciava o manifesto, a verdade é a mentira mil vezes repetida, ou melhor,
Pau-Brasil é “contra a verdade dos povos missionários, definida pela sagacidade de um
antropófago, o Visconde de Cairu: é a mentira mil vezes repetida” (ANDRADE, 2011, p. 71).
93
A felicidade anda a pé
Na Praça Antônio Prado
São 10 horas azuis
O café vai alto como a manhã de arranha-céus
Cigarros Tietê
Automóveis
A cidade sem mitos
continua redundando a lógica da promessa, à medida que ele não ocorre de maneira
planificada em toda a sociedade, ao contrário, o desenvolvimento tecnológico, como saber
que emergia para transformar as condições de produção material da vida, é apropriado por
uma classe burguesa, que o transforma em poder.
O próprio modernismo brasileiro é exemplo desse processo desigual do progresso,
pois São Paulo servia mal como metonímia do Brasil, ainda rural e oligárquico em
proporções significativas, contraposto a uma cidade que adentrava a industrialização e o
desenvolvimento econômico à frente de todas as outras cidades nacionais. Essa incapacidade
do projeto modernista da primeira fase, cunhado nesse discurso de progresso técnico e
desenvolvimento econômico em representar a diversidade regional do Brasil, é explicitada
pelos trabalhos da “Escola de Recife” e o desdobramento do movimento paulista, no
Regionalismo de 30, que visibilizava um Brasil com suas temporalidades múltiplas e
impossíveis de serem alinhadas numa mesma sintonia do progresso cantado pelo primeiro
modernismo.
A leitura apressada de poemas, como o citado “Metalúrgica” ou “Aperitivo”, em que
Oswald evoca sem ressalvas a presença do progresso tecnológico, sugere que o poeta paulista
tinha uma visão limitada do Brasil, ou, o que é pior, do alto do seu discurso burguês,
propunha apenas o desenvolvimento de sua própria classe. Ou ainda, que o poeta não
conseguiu compreender o lado dicotômico do progresso, tão assinalado por Adorno em seu
texto Progresso, ou ainda seu lado restritamente negativo, mas sublinhado por Walter
Benjamin, nas suas famosas Teses sobre a História. Para Adorno, existe uma dialética do
progresso, que impõe uma postura crítica diante dessa noção, “que implica uma crítica a
noção de progresso sem removê-lo do horizonte conceitual”. Para o autor, a ideia de
progresso “porta a esperança de que as coisas vão melhorar de que um dia os homens
poderão respirar” (LÖWY; VARIKAS, 1992, p. 207), e ao mesmo tempo, pode implicar
numa regressão do homem, no sentido de direcioná-lo a uma desumanização pelo uso
exacerbado e contínuo da máquina. Esse processo ocorreria porque cada vez mais a
mecânica, ao invés de produzir para suprir as necessidades do homem, iria construir essas
necessidades através de seus procedimentos.
Para Michel Löwy, esse processo de desmistificação da evolução histórica de que
falamos instaura uma outra muito mais terrível, pois “desmitificando as superstições do
mundo animista que havia atribuído erma alma as coisas, o progresso acabou por submeter-se
a uma mistificação muito mais terrível: a de um mundo que transforma a alma do homem em
coisa” (idem, 209).
97
Junto a essa crítica ao progresso, uma outra teria escapado a Oswald de Andrade,
aquela em que o desenvolvimento técnico é veementemente negativo. Como na, já clássica,
Tese IX de Benjamin, em que o autor se apropria de um quadro de Klee, Angelus Novus, para
traçar uma imagem devastadora e apocalíptica da presença do progresso na sociedade
europeia.
[...] Seus olhos estão arregalados, sua boca está aberta e suas asas estão estiradas. O
anjo da história tem de parecer assim. Ele tem seu rosto voltado para o passado.
Onde uma cadeia de eventos aparece diante de nós, ele enxerga uma única
catástrofe, que sem cessar amontoa escombros sobre escombros e os arremessa a
seus pés. Ele bem que gostaria de demorar-se, de despertar os mortos e juntar os
destroços. Mas do paraíso sopra uma tempestade que se emaranhou em suas asas e
é tão forte que o anjo não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele
irresistivelmente para o futuro, para o qual dá as costas, enquanto o amontoado de
escombros diante dele cresce até o céu. O que nós chamamos de progresso é essa
tempestade. (1985, p. 226).
Esse painel traçado por Benjamin é uma declaração de guerra ao postulado ufanista
do progresso. O autor, crítico voraz das concepções de evolução contínua da história
hegeliana e positivista, enxerga, na devoção ao progresso técnico, ameaças importantes para
o desenvolvimento do homem. A exacerbação técnica traria, entre outros males, a guerra e a
coisificação do homem. Argumenta Löwy (1990) que esse era o motivo pelo qual Benjamin
distinguia entre progresso tecnológico e desenvolvimento da humanidade. Para ele, era um
mito que um progresso humano resultasse das descobertas técnicas, das forças produtivas e
da dominação crescente sobre a natureza.
O que tanto Adorno como Benjamin faziam, ainda que de maneira não idênticas, era
retirar da ideia de progresso a aura e a mistificação em torno dela, desvelar suas relações com
capitalismo e com a classe burguesa, indicar seus desdobramentos perigosos e, sobretudo, a
coisificação do homem, apontada em Adorno como “regressão”, e, em Benjamin como a
“perda da experiência", tema clássico e amplamente discutido em seu ensaio “O narrador”.
Ambos foram buscar nas críticas marxistas ao trabalho repetitivo na operação de máquinas
nas fábricas inspiração para problematizar a relação do homem com o trabalho técnico, que
eliminava o aspecto criativo na dimensão da vida do homem.
Portanto, essas críticas à ideia de progresso, contemporâneas ao poeta paulista, não
são, aparentemente, sequer mencionadas nos dois poemas citados, e sendo elas de fundo
marxista, não deixa de nos causar estranheza à total afonia delas nos dois poemas. Oswald de
98
Andrade, sem ressalva, seria um ufanista burguês do progresso? Antes de uma resposta
apressadamente negativa ou positiva, nos propomos a compreender melhor a dimensão da
ideia de progresso na poética Pau-Brasil.
Iremos recorrer a uma vertente da leitura da poesia oswaldiana sugerida pela própria
“arquitextura” do livro, que é uma relação gestáltica da parte com o todo. Como sugeriu
Costa Lima, “o texto não esgota suas virtualidades significativas em seu corpo separado. Ele
é a peça disposta dentro de um painel”. Para o crítico, em Pau-Brasil, “textos absolutamente
despojados de valia a adquirem ao serem contextualizados”, (1972, p. 61). Com esse
procedimento a polissemia arquitetônica do texto se potencializa, pois à leitura do poema,
como organismo isolado e autônomo, se aglutina a leitura que privilegia sua relação com o
grupo de poemas no qual está inserido. Nessa operação, talvez um tanto diferente da que
propôs Lima, não pretendemos isolar os sentidos que o poema adquire quando lido
separadamente, mas também não daremos prioridade aos que advêm de sua compreensão
como parte do conjunto. Antes pretendemos contaminar os sentidos de ambas leituras e
ampliar as possibilidades de significação do poema.
Tomaremos a série de poemas “São Martinho”, nome de uma fazenda de Paulo Prado
no interior paulista, e analisaremos alguns poemas, colocando-os, quando necessário, em
relação de significação entre si. Os quinze poemas que compõem esse conjunto dialogam
numa relação de complementariedade e contigüidade. O cenário de fundo para a paisagem
isolada de cada poema ser uma fazenda, alude, decerto, à condição rural de uma sociedade
que vai se transformando em urbana, e que no processo incompleto de sua mutação forma um
quadro inusitado, no qual a contradição é o próprio elemento constitutivo da sociedade.
“São Martinho” põe em questão a construção de uma sociedade, multitemporal, como
sinalizou Vera Follain (1995), socialmente antagônica, segundo Schwartz (1987),
etnicamente plural conforme Santiago, (1992) em que o que está sempre em jogo não é a
vontade de construir uma representação homogênea, linear da nacionalidade, antes é mostrá-
la em sua dimensão prismática, fragmentária, dialética e contraditória, de onde a nação
emerge sempre como síntese da floresta com a escola.
O poema “Metalúrgica” encerra a série que é aberta pelo pequeno “Noturno”;
Oswald ameaça duplicar esse gesto e redundar o discurso edênico do mito de origem
romântico, mas já vimos que esse não é o caminho oswaldiano. Em contraste com o
paradigma de um poema campestre, marcado pela tranqüilidade e harmonia do homem com a
natureza, este “Bucólica” mostra um movimento e um dinamismo diverso da estética árcade,
por exemplo. Esse aspecto é destacado na análise que Costa Lima faz do poema, afirmando
que “a bucólica já divergia de uma visão clássica porque o dinamismo e o cinético haviam
substituído sua tranqüilidade campestre” (1972, p. 75). O crítico elenca outro aspecto
decisivo no poema: a presença do homem na natureza. O primeiro verso do poema nos
convidaria para “um pomar antigo”, quando o homem era “o senhor que usufruía de seu
poder na natureza assim ordenada. A harmonia campesina supunha um investimento
creditado pela criatura humana ao mundo” (idem, p. 75), assim, o homem, era apenas um
convidado a observar “a alegria a que se doam os outros seres, não sujeitos a seu contato”
(idem, p. 76).
A leitura de Costa Lima parte, para discutir a presença humana, do primeiro e do
último verso, em que o pomar antigo seria pensado sem a figura do homem. Nesse sentido,
cremos que o verso “e uma passarinhada nos vaia” é bem significativo dessa relação que o
teórico tenta estruturar. Decerto, não é gratuita a escolha do verbo vaiar e a inclusão discreta
do homem no cenário natural. A vaia denuncia uma tensão entre o homem e a natureza, essa
tensão como sabemos, é constitutiva da modernidade e da ideia de progresso. O que Oswald
nos sugere com o título é que uma natureza sem a presença do homem é um cenário que
ficou na história.
O que marca a modernidade é justamente a apropriação da natureza pelo homem, em
detrimento de uma integração entre ambos, o homem moderno objetiva a natureza,
desconstrói seu caráter divino, e, através da técnica, transforma a natureza em matéria-prima.
Portanto, como Benjamin e Adorno, Oswald de Andrade não ignora a questão da natureza na
modernidade, nem propõe uma dissolução, a burguesa, da natureza para empreender o
progresso técnico. O que diferencia Oswald do escritor das “Teses sobre a História”, por
exemplo, é antes, o tom otimista e pessimista que caracterizam seus pensamentos. Enquanto
o poeta brasileiro acreditava, na utopia de um desenvolvimento que seria a síntese entre
técnica e primitivismo, Benjamim, via o progresso como uma tempestade que só deixaria
ruínas e escombros.
Essa utopia oswaldiana da possibilidade da síntese concreta entre floresta e escola nos
parece permear a construção dos poemas “Metalúrgica” e “Bucólica”, ambos indicando as
realidades opostas através das quais se concebia a nação. Mas acreditamos que fiel ao seu
101
nenhuma das partes ficava condenada ao desaparecimento”, e conclui de forma certeira que
“Oswald perseguia a miragem de um progresso inocente” (1987, p. 24).
Como sabemos, esse “progresso inocente”, a que se refere Schwartz, é a utopia de que
o desenvolvimento técnico livrará o homem da carga de trabalho extenuante e propiciará o
tempo livre, o ócio. E a partir de então, retornaríamos a sociedade matriarcal, sem classes, e
sem o poder patriarcal, representado pelo Estado. Essa possibilidade de um retorno ao
passado primitivo, que, como já vimos, esteve presente em leituras modernas do marxismo,
faz parte também das discussões empreendidas pelo teórico acima mencionado, Benjamin.
Analisando a IX Tese de Benjamin, Michel Löwy (2005), destaca que a tempestade
profana que é o progresso está sempre nos afastando do paraíso, que corresponde, em uma
análise profana, “a sociedade primitiva sem classes”, tal como o matriarcado oswaldiano.
Para Löwy, desde um artigo escrito, em 1935, portanto, sete anos após o Manifesto
Antropófago, e cinco antes da Crise da filosofia messiânica, Benjamin
seu projeto de nação não é aquele que recorre ao tema da continuidade e insere a nação na
marcha da história, é antes, marcado pela descontinuidade, já que não estipula uma
temporalidade e uma história homogênea em que as diferenças da nação sejam aglutinadas e
representadas como uma unidade coesa. A história da nação em Oswald é descontínua
porque considera diferentes atores, vozes e contextos representados sempre a partir de um
tempo heterogêneo.
Portanto, buscaremos identificar na poética do modernista uma crítica que evidencie
aquela espécie de progresso, linear e homogêneo, como um discurso elitista. A fim de
compor a resposta negativa à pergunta que fizemos acima e definir que o poeta de fato não é
um burguês ufanista do progresso, ao menos não do avanço técnico proposto pelo projeto
positivista, pois, como vimos o progresso proposto por Pau-Brasil é outro, dicotômico,
rasurado, e paradoxalmente retrospectivo. Para isso empreenderemos uma discussão acerca
do poema “Civilização pernambucana”.
Esse poema não consta no conjunto de poemas de São Martinho, está inserido no
grupo que compõe História do Brasil, é composto pelo esquema de desmontagem e
montagem, com o qual analisamos os poemas referentes ao tema da origem. Em “Civilização
pernambucana”, a linguagem expressa seu contrário, invertida no jogo de espelhos
oswaldiano. O desvio, ou a inversão da imagem, ocorre no título irônico, “Civilização
pernambucana”. Preferimos aqui a leitura pela chave de uma intertextualidade paródica, como
vínhamos procedendo, mas acrescentamos o jogo irônico que o poeta instaura já no título do
106
poema. A ironia compreendida aqui como propõe Beth Brait, um discurso “que joga
essencialmente com a ambigüidade, convidando o leitor a, no mínimo, uma dupla leitura, isto
é, linguística e discursiva” (1996, p. 126). Não há, pois, como nos textos anteriores de
História do Brasil, a rasura do texto original, seu apagamento ou deslocamento; não
buscaremos no silenciamento e na margem seus significados. Nessa leitura, preferimos
considerar o que no texto é mantido intacto, seu discurso oficial, pois, nesse poema, o
discurso do cronista não precisa ser ridicularizado ou desconstruído. Ele depõe contra si
mesmo e desmorona perdido no jogo de espelhos que o duplica e o inverte
concomitantemente.
Assim, a paródia e a ironia dialogam nesse poema. Correspondem a procedimentos
que instalam a ambigüidade no seu jogo significante, ou seja, “Tanto a ironia quanto a paródia
são caracterizadas por apresentarem uma duplicidade em sua estrutura.” (ALAVARCE, 2009,
p. 119). A ironia, ao contrário da paródia, não necessita obrigatoriamente de uma rasura
intertextual, opera sua duplicidade no plano semântico. É o caso do poema “Civilização
pernambucana”, pois a ambigüidade se instaura mais pelo deslocamento espaço-temporal da
cena descrita do que pelo desvio ou duplicação do texto original. Assim, ao lermos a palavra
“civilização” empregue em relação ao contexto do Brasil colônia, instaura-se, decerto, a
ambigüidade da ironia, já que na literatura brasileira, o período colonial era justamente
caracterizado pela dependência e pelo atraso.
Nesse poema, a ironia e a paródia são construídas a partir de uma relação de
intertextualidade e interdiscursividade, que, diferente dos outros poemas, exige menos o
conhecimento do texto original, podendo ser lido igualmente sem o cotejo dos textos, porque
a relação de significação mais urgente no texto ocorre no plano do interdiscurso, no plano
semântico, na memória discursiva em torno da palavra “civilização” e o que ela significou nos
discursos positivistas de meado do século XIX até o século XX.
A antropologia do século XIX propunha, através de Lewis Henry Morgan, Edward
Burnett Tylor e James George Frazer, o Evolucionismo Cultural, que compreendia, como
discutido, a história do homem dividida em estágios de desenvolvimento. A história era
tomada como evento universal e homogêneo, o que implicava no reconhecimento das
diferenças culturais como meras divergências do estágio evolutivo de cada povo. Dessa
forma, ser diferente não significava ser outro, mas estar imerso num período histórico ou
superior, ou inferior a outro povo e cultura ao qual se compara. Para Morgan, por exemplo,
“As principais instituições da humanidade tiveram origem na selvageria, foram desenvolvidas
107
Oswald de Andrade parece querer nos indicar é que esse progresso material que pretende nos
levar ao desenvolvimento, conforme a promessa positivista, atende apenas à vontade de classe
e constrói uma representação da nação, nas palavras de Hobsbawn (2000), como um
fenômeno político visto do alto. Nem ditada pela oligarquia, nem pela burguesia, a nação em
Pau-Brasil é desconjuntada e contraditória, extrapola, com sua configuração múltipla e
prismática, a lógica dialética, mantendo sua diversidade, sempre, como tensão.
Portanto, a temática do progresso em Oswald não implica uma aceitação do modelo
positivista, muito menos a defesa de um desenvolvimento técnico irrefreável, nem ainda o
desconhecimento de que o discurso do progresso representava as aspirações de uma elite
econômica. O poeta, alinhado aos críticos da modernidade, como os citados Benjamin e
Adorno, entende o caráter faustico da ideia moderna de progresso positivista e a critica. O
ufanismo progressista, acusado no poeta por parte da crítica, de fato existe, mas não é elitista,
nem positivista, é, no máximo, marxista, e, com certeza, utópico. Como perfeitamente
sinalizou Schwartz, vale ressaltar que Oswald acreditou e propalou a miragem de progresso
inocente.
A ruptura que Oswald de Andrade operou em relação aos projetos de nação,
românticos e realista/naturalista é contraposta ao caráter universalista e linear das concepções
desses últimos. Recorrendo ao mítico ou ao científico, ambos construíram uma ideia de nação
homogênea e narrada a partir de um modelo evolutivo de historiografia. Nessa perspectiva as
singularidades de cada época e de cada povo, que compunham o cenário social do Brasil,
eram interditadas e silenciadas na narrativa da nação. A supressão da diferença era justificada
em nome de um processo evolutivo que igualaria a todos num estágio final da história. Por
isso, era preciso manter vivo e atuante o discurso da continuidade, função que cada projeto
cumpriu através de estratégias discursivas que se estruturavam a partir de categorias teóricas
que legitimavam o tema da continuidade. No projeto romântico, a origem, no positivista, o
progresso. A poética Pau-Brasil caracteriza-se como uma utopia revolucionária, à medida que
propõe a desconstrução desses temas, fraturando a lógica da promessa evolutiva e negando a
continuidade, através de sua dialética bárbara.
O projeto oswaldiano concebe a temporalidade múltipla da nação, com suas diferenças
regionais e culturais. Desse modo, descentra a narrativa da nação e concebe a história e a
nacionalidade como fenômenos plurais. A nação perde sua relação com os temas da
continuidade, fraturando a origem, e assim, retirando da identidade sua máscara de essência e
verdade, pondo, novamente e sempre a identidade da nação no jogo da significação.
109
13
Em trecho do livro “Ponta de Lança” Oswald é perguntado sobre o que deveria ser feito da Alemanha Nazista
no pós-guerra. “Perguntava-se a Revista Diretrizes [...] Que se deveria fazer da Alemanha depois da guerra?
111
Esfolar inteira? Comunizar? Entregar todinha aos noruegueses, aos gregos e aos russos? Aos filhos dos
fuzilados, dos enforcados e dos bombardeados do mundo inteiro? Dá-la aos judeus? – Não! É preciso alfabetizar
esse monstrengo. Há dentro dela um raio esquivo de luz. É o do seu Humanismo. É o que vem de Goethe e
através de Heine produz Thomas Mann. A Alemanha racista purista e recordista, precisa ser educada pelo nosso
mulato, pelo chinês, pelo índio mais atrasado do Peru ou do México, pelo africano do Sudão. E precisa ser
misturada de um vez para sempre. Precisa ser desfeita no melting-pot do futuro. Precisa mulatizar-se.” (2004, p.
31).
112
suas releituras históricas, a partir das quais podemos compreender a história como um saber
produzido como poder.
Gilles Deleuze, em Foucault explicita a formação dos saberes através da relação entre
o “enunciável” e o “visível”. O primeiro corresponderia não a uma frase, palavra ou
proposição, mas existiria na dimensão do discurso, um não-dito sempre já-dito. De maneira
análoga, o segundo não se confunde com o visível, “As visibilidades não são formas de
objetos” (DELEUZE, 2005, p. 62). Não se trata em ambos de um sentido oculto que se
esconde atrás de um evidente, antes o sentido está já em funcionamento, mas não evidente,
pois o enunciado deve ser apreendido a partir da relação descontínua e dispersa que mantém
com outros enunciados e visibilidades.
Assim, de forma sucinta, poderíamos dizer que a escravidão, no Brasil colônia,
corresponderia a uma „visibilidade‟, enquanto a superioridade da raça ariana, o processo
evolutivo retardado do negro africano e do indígena, e a ciência como lugar de verdade,
seriam „enunciados‟. Estes compreendem as formações discursivas, aquele as instituições, ou
seja, enunciados não-discursivos. É nessa relação entre o „visível‟ e „enunciável‟ que se
produz um saber sobre a história do Brasil. Um saber que, é claro, deve sua
institucionalização a sua existência como poder.
É nesse sentido que não podemos fazer uma distinção arbitrária entre poder e saber.
Por isso, Deleuze fala continuamente numa primazia do „enunciável‟ sobre o „visível‟, porque
“não há nada antes do saber”, (2005, p. 62). É a partir dessa relação intrínseca entre os lugares
de poder, as instituições ou, seja, os „visíveis‟ e o conjunto de enunciados que compõem um
saber, ou seja, os „enunciáveis‟, que podemos compreender a escrita da história como
violência sendo contígua e inseparável da violência na história do Brasil. Ambos aspectos, os
„visíveis‟ e os „enunciáveis‟, compõem um mesmo saber, a história nacional.
Nesse sentido, devemos compreender, por exemplo, como o genocídio indígena no
Brasil, vinculado diretamente à expropriação da terra indígena pelo colono, sobretudo, a partir
da Carta Régia que autorizou a guerra justa14 e resultou no extermínio de grande parte da
14
Se até o século XVIII, a transformação dos índios em mão de obra era a principal preocupação dos
colonizadores, a partir do século XIX é a ocupação das terras que vai atrair a atenção da metrópole
(AMANTINO, 2011), assim, após 1808, descreve a autora um fato que iria impactar a relação da colonização
com o indígena, a saber, a “assinatura da Carta Régia autorizando a guerra justa contra os botocudos”. (idem, p.
37) os Botocudos, assim, como os Aimorés, e outras etnias indígenas que eram hostis a catequização, ou
praticavam a antropofagia, em suma, que negavam-se a passividade diante a violência colonial e sobretudo, não
aceitaram a expropriação de suas terras de forma passiva. A Carta sendo revogada em 1831, teve validade de 23
anos, assim, como salienta a autora, “como vários índios eram identificados como parte desse grupo, inúmeros
foram os casos de extermínio nas capitanias de Minas Gerais, Bahia, Espírito Santo, São Paulo, Paraná, Goiás e
114
população indígena pela missão bandeirante, é, então, uma „visibilidade‟. Lugar e forma de
exercício do poder, diretamente vinculado a um saber histórico e literário que
institucionalizou a representação do índio através da figura do bom selvagem de Rousseau, ou
a partir das descrições demoníacas e inferiorizantes do nativo ameríndio.
Essa mesma conexão entre poder e saber é evidenciada quando relacionamos a
violência do trabalho escravo, do castigo, da apropriação do corpo, do abuso sexual, sofridos
pelo escravo e negro-brasileiro, com a representação do negro e do mestiço como raças
inferiores, como também, da insistente comparação destes com animais.
A violência opera, dessa forma, sua dupla inscrição na história colonial, como
exercício ou poder, e como regulamento, ou saber, ambos enunciados, discursos que
constroem o saber histórico sobre o Brasil.
O exercício do poder na sociedade colonial é, portanto, se quisermos dizer de outra
maneira, co-extensivo do plano da infraestrutura ao da superestrutura. É dessa forma que a
violência da colonização continua e se amplia, numa escrita da história como violência,
porque conserva intactos os lugares de poder e de verdade que executavam cotidianamente a
violência colonial.
A história tradicional continuava essa violência de modo paradoxal, à medida que
expunha a violência do processo histórico, mas fazendo-o a partir de postulados de
neutralidade e ciência, significando-a como mero relato de um passado estático, que faz os
excessos e tensões figurarem algo distante, e quase sempre conseqüência inevitável do
desenvolvimento histórico.
Havia, portanto, uma exposição dessa violência para em seguida esvaziá-la de tensão,
naturalizando-a e isolando-a num tempo remoto. É dessa maneira que certa corrente hegeliana
propõe “uma leitura da História, fundada na idéia da violência e nas relações de força. Kojève
insistia, particularmente, na concepção da História como “lugar da violência”. Mais do que a
razão, as lutas sangrentas fazem avançar a História em direção a um desfecho positivo”
(SILVA, 2001, p. 47).
A escrita da história como violência não se caracteriza, então, pelo que ela narra e
expõe como guerras, combates, heróis, batalhas épicas, conquistas enfim, mas pela
perspectiva historiográfica que ela adota para efetuar essas narrativas. A história como campo
de batalhas que é torna-se uma escrita de interditos, de mascaramentos e, principalmente,
silenciamentos. Por isso, a violência da escrita da história manifesta-se no momento mesmo
Mato Grosso [...]. Nesses 23 anos, milhares de índios forem mortos ou escravizados em diferentes partes do país.
(idem, p. 37).
115
15
Mais interessante do que o vencedor é a tese defendida: "Devia ser ponto capital para o historiador reflexivo
mostrar como no desenvolviilzento sucessivo do Brasil se acham estabelecidas as condições para o
aperfeiçoamento das três raças humanas que nesse país são colocadas uma ao lado da outra, de uma maneira
desconhecida da história antiga, e que devein servir-se mutuamente de meio e fim"2:3U. tilizando-se da metáfora
de uin poderoso rio, que correspondia a herança portuguesa, que deveria " absorver os pequenos confluente das
raças India e Ethiopia o Brasil surgia representado a partir da particularidade de sua miscigenação.
(SCHWARCZ, 1996, p. 87).
16
Ficou famosa a polêmica em que se envolveu H. Von Ihering, em 1911, por causa do problema criado pela
construção da estrada de ferro Noroeste do Brasil, que deveria passar exatamente nas terras dos Kaingang. Nessa
ocasião, o zoólogo teria utilizado as páginas do jornal O Estado de São Paulo para pedir o extermínio desse
grupo que, por habitar no caminho da estrada, impedia o "desenrolar do progresso e da civilização". Nesses
momentos selecionados é que se percebe como o saber distante da ciência ao se encontrar com as questões mais
imediatas e mundanas pode ser impiedoso em sua condenação ao atraso e a diferença. Mas Von Ihering não
estava só. Também João Batista Lacerda, então diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro, quando convidado
a participar do I Congresso Internacional das Raças, realizado em julho de 1911, defendeu uma tese clara e direta
com relação ao futuro do país. Em Sur Ies métis au Brésil Lacerda afirmava que "o Brasil mestiço de hoje tem
no branqueamento em um século sua perspectiva, saída e solução", em uma evidente afirmação de que o
presente negro de hoje seria substituido por um futuro cada vez mais branco. (SCHWARCZ, 1996, p. 97).
116
oficial a partir da textualidade desta, operando uma releitura dos textos quinhentistas e não
promovendo uma narrativa de fatos históricos, dessa vez, ele busca situar-se à margem da
história oficial, recorrendo justamente ao que essa narrativa exclui. A saber, a voz do povo
negro, suas memórias que circulavam através da oralidade na vida diária da colônia.
Esse retrato do Brasil colônia é composto por fragmentos do cotidiano que juntos
compõem uma espécie de etnografia da colônia, na qual se descreve “a vida dos escravos, o
seu cotidiano, o abuso as mulheres, os sentimentos, o desespero, os terríveis massacres contra
os negros que conseguiam fugir das fazendas. São Flashes de vida real, cenas de uma história
ainda não escrita, a da trágica epopeia negra” (OLIVEIRA, 2001, p. 133) Mas não só, além
dessa existência concreta da vida da colônia, esse conjunto de poema põe em evidência aquilo
que Foucault (1999), chamou de uma “reviravolta do saber”, referindo-se a uma crítica
efetuada com base em sua localidade, ou seja, é a partir da realidade material da colônia que
Oswald der Andrade buscará efetuar uma crítica à racionalidade histórica do ocidente. E não o
contrário.
Foucault anota que, a partir dessa “reviravolta dos saberes”, viu acontecer a
insurreição dos “saberes sujeitados”, que, segundo o autor, tem duas dimensões: com a
primeira quer “designar os conteúdos históricos sepultados e mascarados em coerências
funcionais, ou em sistematizações formais”; em segundo lugar, por saberes sujeitados, o
autor entende “toda uma série de saberes que estavam desqualificados como saberes não
conceituais” (1999, p. 12). Os primeiros corresponderiam a um conhecimento meticuloso,
erudito e organizado, enquanto outro se referia aos saberes locais, das pessoas, construído e
compartilhado na vida cotidiana, saberes que tinham sido deixados de lado.
Para o filósofo francês, foi justo nessa intersecção entre a erudição dos saberes
dominantes e dos saberes subalternos que a crítica de metade do século passado em diante
construiu sua potência. Para Foucault, a intersecção entre ambos espaços, o dos saberes
sepultados da erudição e dos saberes sujeitados das pessoas, guarda um aspecto comum e
central: ambos detinham o saber histórico das lutas.
com sua hierarquia e com todos os privilégios das vanguardas teóricas. (1999, p.
13).
Esse ambiente violento, essa tensão constante nos “Poemas da colonização”, é o ponto
no qual o poeta modernista fissura, mais uma vez, a homogeneidade da história oficial, que
emerge problematizada como lócus de conflito e contradição, sem a harmonia, coesão e
coerência que pretensamente norteiam as narrativas institucionais da nação.
Porém, se no conjunto de poemas, “História do Brasil”, vimos que Oswald de Andrade
busca impingir uma rachadura na história nacional, utilizando a própria textualidade que
embasou esse fazer historiográfico, a saber, os textos dos cronistas, duplicando num gesto
paródico sua escritura e fazendo rachar sua uniformidade, visibilizando suas contradições e
suas relações de poder, dessa vez, o poeta não recorre à estratégia da paródia e desconstrução
dos textos históricos. Mas faz circular uma história ainda inédita, sem textualidade escrita. Por
isso, Andrade teria que recorrer a um instrumento novo até então na composição do Pau-
Brasil, a memória.
A memória nos “Poemas da Colonização” se instala como fissura no jogo de
significados e silêncios que a história oficial faz funcionar como violência, através do poder
dizer e do poder calar. Por isso, o aspecto fragmentário e fragmentado dos poemas, porque a
memória evocada pelo poeta não busca estabelecer com a narrativa da nação uma
continuidade, pretende antes funcionar como suplemento que, ao invés de estabelecer com o
passado uma relação de contiguidade, quer marcar sua diferença.
A memória diferente da história estabelece com o passado uma relação de dinamismo,
de movimento, “Para a memória, a ideia de passado ganha dimensão do presente; no entanto,
para a consciência histórica, o passado é passado” (TEDESCO, 2004, p. 58). No segundo
capítulo de Pau-Brasil, a memória opera seus deslocamentos, colocando-se sempre à margem
da história instituída. A periferia da escritura torna-se o lugar de negociação da história e da
120
identidade da nação, como pontua Homi Bhabha: “O ato da rememoração (seu conceito de
criação da memória popular) transforma o presente da enunciação narrativa no memorial
obsessivo do que foi excluído, amputado, despejado, e que por esta mesma razão se torna um
espaço unbeimlich para a negociação da identidade e da história” (2001, p. 275).
Essa espécie de „etnografia poética‟, que Oswald empreende em “Poemas da
Colonização”, só foi possível pela sua estratégia de recorrer deliberadamente a uma memória
não institucionalizada e que só pode ser acionada graças ao repertório oral do povo negro da
sociedade colonial brasileira, uma memória que, tecida num esquecimento dissimulado pelo
silêncio, pode reinventar cotidianamente sua relação com o passado. A memória e sua
potência criativa tiveram, nas sociedades coloniais, o papel fundamental de impedir no
colonizado a interiorização de sua não-humanidade, sempre afirmada por uma metafísica, ou
uma ciência de matriz etnocêntrica, e reafirmada pelo poder oligárquico, ou monárquico
vinculado a metrópole. A criação e a invenção da memória, enfim, mantinham sempre viva a
dignidade do humano.
Essa escolha pelo trabalho poético que se relaciona a uma oralidade do negro
brasileiro acaba por romper silêncios na narrativa da nação e guarda grande afinidade com a
discussão que traçamos até aqui, porque, como aponta João Carlos Tedesco (2004), a história
oral ganha certo protagonismo no decorrer do século XX, pois, desenvolve uma crítica ao
positivismo e ao evolucionismo. Crítica essa, como vimos, empreendida, também, por Oswald
de Andrade.
Mas o papel da oralidade na poética oswaldiana depõe ainda contra o paradigma de
racionalidade, tantas vezes criticado e satirizado nos manifestos Antropófago e Pau Brasil.
Portanto, se a história brasileira, a partir da metade do século XIX, tinha pretensão científica,
como demonstram as propostas do IHGB, a poesia Pau-Brasil trilhava a direção contrária. Já
no Manifesto Antropófago, Oswald decretava sua luta, “Contra a memória fonte do costume”,
ou seja, o passado sempre engessado, nas páginas oficiais da história, pela “experiência
pessoal renovada”, ou melhor, por um passado sempre em movimento, e, sobretudo, não
totalizador.
Assim, entre a história estática, fonte dos costumes que reproduziam ad infinitum a
sociedade oligárquica e pequeno burguesa do Brasil colônia, e a memória com suas
infiltrações e deslocamentos, Oswald preferiu a última, preterindo o saber científico do
europeu aos saberes sujeitados, ou ainda, a uma memória histórica das lutas.
Um terceiro aspecto, que relaciona Oswald de Andrade, à escrita da oralidade, é sua
predileção pela narrativa dos pequenos gestos cotidianos. Nenhum dos conjuntos de poemas
121
esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos
indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas. Os
esquecimentos e os silêncios da história são reveladores desses mecanismos de
manipulação da memória coletiva. (1990, p. 368).
história oral, e doméstica não são, porém, privilégio do passado” (ANDRADE, 1990, p. 23).
Vejamos o primeiro poema,
A mulatinha morreu
E apareceu
Berrando no moinho
Socando Pilão
Em “Caso”, o título aglutina a relação entre escrita e oralidade, sinalizando que aquele
é um dos enredos que circulam nas contações de casos pelos negros. A compreensão da
memória evocada por esse poema passará por relações de significação e poder que a
entrelaçam com a história oficial. É nesse processo que a oralidade, os casos e contações,
transformam-se em história oral. “A história oral é uma fonte, um documento diferente, que
pode ser uma entrevista gravada...” (TEDESCO, 2004, p. 114). O registro de memórias em
fontes escritas e documentos é já um movimento epistemológico para a história, ou seja, da
dispersão e fragmentação da memória para a coerência e causalidade da história. Por isso,
dizemos que a escritura de uma memória a põe numa rede de sentidos que passaram a
significá-la, sempre em continuidade ou ruptura em relação à história. A memória, após a
violência da escrita, perde, quiçá, sua dispersão, seu movimento.
É por isso que a leitura do poema de Oswald nos direciona a uma tentativa de
estabelecer relações entre a narrativa daquele „Caso‟ e a narrativa oficial do Brasil colônia.
A sociedade patriarcal tinha rígidas suas hierarquias, e mesmo com a tese defendida
por Gilberto Freire, na qual haveria uma mitigação das tensões entre Casa Grande e Senzala,
devido a um traço de cordialidade peculiar à colonização lusitana, as divisões de classe na
colônia, os lugares socialmente marcados e definidos, normalmente pela raça, continuavam
praticamente imóveis para o grupo étnico negro.
Acusando as rígidas hierarquias da sociedade colonial, Costa Lima, referindo-se a
“mulatinha que soca o pilão” defende que “Tamanha a estaticidade [social] que a vida do
morto surge como a repetição da vida dos dias na fazenda” (1972, p. 72). Como assinala ainda
o crítico, a rigidez da divisão social absorveria até a saída pela morte. Leitura essa, que
124
veremos mais adiante, é contrariada nos poemas “A Fazenda Antiga” e “Medo da Senhora”,
nos quais a morte restitui certa dignidade e humanidade ao escravo.
Já o poema, “Levante”
outro lado, nenhum escravo habitaria aquelas paragens que, através da memória que evocava,
afirmava a dependência e inferioridade do negro.
Mas há uma dimensão que ambos compartilham como significado comum, para um e
para outro, a fazenda é o lugar do assombro, do medo, do horror, atmosfera mística e
assustadora que Oswald de Andrade empresta ao poema. A fazenda significa, para uns a
ameaça direta que contesta a arbitrariedade do poder patriarcal e a dimensão da sua força, e
para outros, o receio de ter, de novo, o corpo apropriado pelo regime escravo. Dessa forma, “a
fazenda é dasabitada tanto pelo levante que a sacudira quanto pelo assombro que resulta da
repressão. Repressores e reprimidos são entes presentes na mesma cena, consumidos pelas
fúrias e pavores, lado a lado correlacionados (LIMA, 1972, p. 74).
O interessante é compreendermos como esse funcionamento da memória, que assusta
e repele da fazenda tanto o senhor de engenho quanto o escravo, depõe contra a onipotência
do regime patriarcal narrado pela história oficial. É esse papel da memória que sublinhamos
sempre aqui. Através dessas memórias recortadas e transmitidas pela oralidade do povo
negro, podemos compreender melhor as formas de resistência cotidianas desenvolvidas pelos
escravos, suas produções simbólicas, tirando-as assim, do esquecimento da história.
Junto com esses dois poemas, outro, “Medroso”, alinha-se na composição de um
quadro que retrata a presença de uma dimensão mítica e religiosa no cotidiano da população
escrava, segue o poema;
Essa dimensão da violência como signo do regime colonial, se espraia pelos “Poemas
da Colonização”, vejamos seus desdobramentos no primeiro poema da série, “A Transação”:
127
interpretação dada como evidência. Nosso interesse é buscar nas suas elipses e fragmentos os
sentidos em jogo na escrita da história de Oswald de Andrade.
Assim, chamamos atenção para o fato de que os únicos verbos de ação no poema
predicam o fazendeiro, os demais elementos enumerados parecem ser um a um inclusos num
mesmo campo semântico, objetos igualmente dispostos como adornos da paisagem colonial.
Vejam que os “Escravos e escravas” do segundo verso, no quinto, já se misturam à paisagem,
“As gabirobas e os coqueiros”, perdendo o resquício de humanidade que lhe significava no
verso anterior, e reduzindo-se a simples “carne preta e musculosa”. Decerto o poema expõe
como a personagem do negro colonial foi apagado no relato dos processos de transações que
envolveram a passagem da monarquia à república, ou seja, apagado, silenciado e ignorado em
meio às transformações políticas da sociedade brasileira.
Ainda no “A Transação”, e creio ser essa a leitura que mais nos interessa, a mutação
na figura do escravo, do segundo para o quinto verso, alude ao processo de desumanização
operado nas representações do negro presentes na história e na literatura brasileira. Uma
“carne preta e musculosa” envolvida no processo de troca da sociedade como os “coqueiros”.
Essa desumanização é artifício antigo na dominação colonial brasileira e americana. Desde os
primeiros relatos, a negação da humanidade do autóctone autoriza a consciência européia a
pilhar suas terras e explorar sua natureza.
Em Gandavo, no que se refere aos indígenas, lia-se: “mui desonestos e dados a
sensualidade”, “como se neles não houvesse razão de humanos”. Essa mesma negação da
plena humanidade do outro chegaria a 1888 quando Nina Rodrigues propõe em “As Raças
Humanas e a responsabilidade penal no Brasil” um código jurídico específico para as raças,
negra e branca, devido ao acentuado nível de diferença no desenvolvimento de ambas, com
vantagens para a raça branca.
Como alertou Sartre no famoso e polêmico pré-fácil ao livro “Os Condenados da
Terra” de Franz Fanon, “A violência Colonial não se atribui apenas o objetivo de controlar
esses homens dominados, ela procura desumanizá-los” (SARTRE, 2010, p. 33). É essa crítica
à escravidão que atravessa o poema. A máquina colonial, para justificar seu meio de produção
e legitimar a arbitrariedade das suas hierarquias, desautoriza a alteridade como humanidade, e
como veremos mais adiante, significa a diferença como monstruosidade.
129
A violência do suicídio tem ainda suas teias polissêmicas, pois, podemos entendê-lo
como Antonio Risério (2007), que citando Alípio Goulart, o classificou como uma das
“pequenas sedições do cotidiano”, nas quais caberiam, ainda, segundo o autor, a fuga, o
aborto, a mentira, a sabotagem, entre outros. Sobre a mentira, afirma Risério, “O escravo era
um especialista em simulações. Por necessidade. Mas também, porque mentir era afirmar uma
verdade própria” (2007, p. 327). Essas transgressões, nem sempre pequenas violências
cotidianas, indicam que “O homem colonizado se liberta na e pela violência” (FANON, 2010,
p. 104), ou melhor, como propôs Risério, após essas infrações “não estava mais ali a mera
máquina produtiva, o animal de trabalho, a coisa possuída. Brilhava assim, em cada mínimo
momento de transgressão, o diamante da pessoa humana” (2007, p. 329).
Assim, a violência contra si era também uma violência que auto-significava o sujeito
da ação enquanto humano, mas que buscava concomitante ao gesto extremo de erradicar a
própria vida, sabotar as engrenagens do funcionamento colonial. Era, sobre esse ponto de
vista, uma revolução pessoal, a absoluta contrariedade em ser algo que não fosse um homem,
livre. Nesse sentido, o corpo ganha significados densos, pois é o que constitui parte
importante de sua identidade, ao mesmo tempo em que é propriedade do senhor. O suicídio é
a negativa em dar o corpo como força de trabalho e significá-lo apenas como máquina
produtiva, como afirma Risério,
O suicídio escravo foi, antes de mais nada, expressão de um mal estar essencial. De
um desajuste de base – o do ser humano submetido ao sistema social reificador por
excelência. Fruto da depressão, do medo ou do ódio, sim. Mas fruto sobretudo, de
uma violência sistêmica. Durkheim fala, a propósito, de suicídio “fatalístico”. E é
também nessa direção que Ortiz pode definir o suicídio escravo como um último
medio de emanciparse. De uma parte, este suicídio era recusa. De outra, como
aborto voluntário, representava prejuízo para as finanças e a produção do sistema
senhorial. (2007, p. 328)
O Narciso marceneiro
Que sabia fazer moinhos e mesas
E mais o Casemiro da cozinha
Que aprendera no Rio
E o Ambrósio que atacou seu Juca de Faca
E suicidou-se
As dezenove pretinhas grávidas
devem operar a partir de um logos que favoreça a escrita ininterrupta de uma outra História a
partir do presente” (FREITAS, 2009, p. 95).
Mas há outro aspecto que queremos relacionar no cotejo entre os dois textos, a
sugestão oswaldiana de que a relação sexual entre senhor e escrava alimenta a força produtiva
do sistema colonial, ou como mostra Bernardo Ricupero, discutindo Casa Grande e Senzala,
“A falta de homens brancos que pudessem realizar o trabalho na colônia teria sido
compensada pela mobilidade do colonizador e, principalmente sua miscibilidade”. O autor
acentuava o caráter peculiar de nossa colonização, expondo a inclinação do português à
sociabilidade com o colonizado, e assinala “Tal tendência possibilita que uns poucos homens
brancos minorassem, o problema da ausência de braços, “fazendo filhos” nas mulheres índias
e negras” (2008, p. 91).
Essa relação entre natalidade e modo de produção colonial aparece no fato da mãe
jogar-se no rio com a filha nas costas, além de negar-se ao castigo e a ira da senhora, como
vimos, ela também busca negar ao sistema escravocrata sua sustentabilidade, que é o corpo
escravo. Mas no poema “Fazenda Antiga”, essa relação é muito mais explícita. Após
Ambrósio assassinar seu Juca e suicidar-se, o último verso aponta dramaticamente para a
continuidade intacta do sistema colonial. Para suprir a morte daquele escravo, conta Oswald
de Andrade, “as dezenove pretinhas grávidas”.
Portanto, em “Poemas da Colonização”, Oswald de Andrade vai expor a violência na
história nacional, visibilizando as tensões e hostilidades que caracterizaram a sociedade
colonial. A violência sexual contra a escrava, a apropriação e coisificação do corpo, o
apagamento das memórias, a desumanização do negro, as resistências, os suicídios, o
misticismo e a soberania do senhor de engenho compuseram a paisagem hostil do período
colonial. Apresentada por Oswald, através de uma estética do fragmento, que não tem igual
em nenhum outro capítulo do livro, a dispersão e descontinuidade deste conjunto denuncia,
em sua técnica dadaísta, uma forma de falar da violência, através da própria violência da
forma. 17
A violência, em “Poemas da Colonização”, é signo de uma escrita que luta contra a
história oficial, à medida que traz a alteridade para o centro da narrativa re-configurando
desenhos instituídos, fazendo com que os corpos outrora dóceis, porque apagados, em grande
parte da narrativa nacional, figurem como lócus de deslocamento do poder, onde o corpo
escravo aparece significado por uma semiótica da resistência.
17
Deslocamos aqui uma citação de Lucia Helena, em Uma Literatura Antropofágica: O dadaísmo enquanto
negação da arte é “uma forma onde se fala da morte, através da morte da forma”.
134
18
O novo mundo entre deus e o diabo de Laura de Melo e Souza (1986, p. 21,40).
136
foi instruído não enxerga a realidade tal como é, mas a partir de como o sistema de signos da
sua cultura o compreende. Acreditamos que é essa definição que aponta Marcelo Duprat, na
sua leitura da obra de Cézanne,
Entretanto, se por um lado o pintor representa o que vê tal como vê, por outro,
também vê a partir de um sistema de representação e interpretação que direciona seu
olhar. Imitar a natureza, pintar o que se vê, é uma maneira de interpretá-la a partir de
um sistema de representação. Podemos constatar esse fenômeno acompanhando os
primeiros passos dos pintores que, a princípio, aprendem a ver não somente os entes
“reais” (figura, paisagem, natureza-morta), mas também os entes visuais (linha, tom
e cor). Nas primeiras sessões de modelo-vivo de um estudante, a compreensão
analítica da realidade freqüentemente interfere na configuração. Por saber que o
globo ocular é branco, o estudante assim o representa, sem perceber que quase nunca
o olho é o ponto mais iluminado de um rosto. Por saber que uma mão tem cinco
dedos, o estudante desenha cinco dedos, mesmo que a distância seja tal que
impossibilite distinguir visualmente qualquer dedo. (DUPRAT, 1998, p. 42).
lembra a busca romântica de uma memória nacional, cabe ressaltar que esta foi buscada no
passado e fora da história, no mito do paraíso terrestre, e da terra exuberante. A memória da
nação em Oswald tem o sentido nietzscheniano de servir sempre ao presente, essa memória é
empregue para significar o presente e, também, ao modo oswaldiano, anunciar um futuro.
Oswald enumera uma série de aspectos que remetem sempre à história da nação em
suas bases matérias de produção da vida. Escravos, agricultura, fazendas, usinas e igrejas,
todos elementos que compõem o cenário da sociedade brasileira. Não há indicação de
continuidades nem com o discurso romântico da natureza idílica nem com o discurso
pessimista da terra degenerada dos realistas/naturalistas, a leitura evolucionista e metafísica
são abandonadas em detrimento de uma leitura da história com bases num materialismo
histórico.
O poema “Paisagem” citamos apenas para ilustrar como a ironia de Oswald é
desferida contra as descrições idílicas da terra. A paisagem da nação mudou, aponta o poeta.
Antes mitológica e europeia, ela é agora histórica e nacional. Há um imbricamento das
imagens da natureza e da vida material, ou seja, os pés de café remetem ao mar, enquanto as
nuvens lembram cidades. Só assim a natureza pode existir em Oswald, relacionada à sua
vitalidade de produção da vida material do homem.
19
Atavismo deve ser aqui entendido como uma lei antropológica inevitável que faz com que os indivíduos
resultantes da mestiçagem tendam a retornar as características físicas, morais e intelectuais das raças originais.
(MUNANGA, 1999, p. 68).
142
intelectualmente. Mas Viana põe a ressalva de que essa evolução não levará a um completo
fenótipo branco devido ao clima e as especificidades dos trópicos.
O que há comum em todos esses autores com variações e distorções que se relacionam
à forma com que cada um achou para deslocar as teorias raciais da Europa para pensar a
realidade brasileira, é a aceitação da categoria raça como central para a explicação do atraso
da civilização brasileira. Como sempre, apesar de serem esmagadora maioria no contexto
intelectual do Brasil, os partidários da “raça” não eram unanimidade. Conforme informa
Kabengele Munanga em “Rediscutindo a Mestiçagem no Brasil”, “Manuel Bonfim constituiu
com Alberto Torres, voz discordante das doutrinas racistas em voga na sua época” (1999, p.
62).
Exceto esses dois autores, todos os citados condenam a mestiçagem definindo-a como
processo de degeneração e inferiorização. A busca de uma „raça pura‟, que igualasse os
paradigmas de civilidade do europeu, faziam com que a diferença fosse continuamente
recalcada, agora pela ciência.
A ruptura decisiva é quando Gilberto Freire, já na década de 30, propõe uma leitura da
mestiçagem a partir do método culturalista, defendido pelo antropólogo americano Franz
Boas. Nessa análise, a mestiçagem não é mais pensada através da categoria de raça, Freire
empreende uma análise que tomava a cultura como categoria central do seu estudo. A partir
disso, grosso modo, em seu, Casa Grande e Senzala, Freire ressaltará, como assinalamos
acima, aspectos positivos da mestiçagem que se devem a forma peculiar da colonização
lusitana, na qual, teria sido possível uma convivência mais harmônica entre casa grande e
senzala.
A partir dessa leitura de Freire, a mestiçagem passa de dado a ser recalcado a aspecto
positivo e democrático de nossa identidade. Essa questão foi, após algumas décadas,
sobretudo na metade do século XX, problematizada pela escola de sociologia de São Paulo,
tendo como um de seus principais expoentes Florestan Fernandes20. A escola paulista, apoiada
em interpretações da obra de Freire, a responsabiliza por ter produzido uma leitura da
realidade nacional que possibilitou e fortaleceu o mito de uma democracia racial na sociedade
brasileira. O que teria dificultado decisivamente a mobilidade do negro na sociedade de
classes, pois manteria velada a prática cotidiana do racismo.
Esse painel sobre as relações entre a intelectualidade brasileira e a representação do
mestiço deve ser somado ao painel traçado anteriormente para justificar a exclusão do
20
Um livro de muita importância nesse período, sobre a questão aqui discutida, foi. “A inserção do Negro na
Sociedade de Classes” de Florestan Fernandes.
143
indígena. Em suma, o nativo não-europeu: índio, negro ou mestiço, esteve alijado do projeto
de formação da nação brasileira, pois constituíam a marca da diferença. Portanto, constituíam
o recalque no projeto de afirmar sempre a semelhança em relação ao Outro europeu.
Essa obsessão pela semelhança que marcou os primeiros projetos de construção de
uma nacionalidade nas letras brasileiras implicou numa série de recalques que estamos
discutindo ao longo desse texto, a saber, o do indígena, o do negro, do período da colonização
e do mestiço. Os apagamentos referentes aos nativos produziram-se no índio e no mestiço,
sobretudo, pela produção de um discurso que lhes negava a humanidade. Embaralhados no
imaginário monstruoso e selvagem da Europa renascentista, ou condenado pelas teorias
raciais, ambos estiveram sempre acompanhados da figura da animalidade, como podemos ler
nesses excertos,
E são cruéis e bestiais, que assim matam quem nunca lhe fizeram mal, clérigos,
frades, mulheres de tal parecer, que os brutos animais se contentariam dela e lhes
não faria mal...”21 ou, “ A excessiva crueldade do indígena repugna a condição
humana, dizia gandavo na História da Provincia de Santa Cruz: não apenas matam
todos aqueles que não são de seu rebanho como também os comem, “usando nesta
parte de cruezas tão diabólicas, que ainda nelas excedem aos brutos animais que não
tem uso de razão22. (MELO, 1986, p. 67).
Ou ainda,
21
Fala do Padre Manoel da Nobrega em “O novo mundo entre deus e o diabo” (SOUZA, 1986).
22
Texto do Jesuíta Antonil em “O novo Mundo entre deus e o diabo” (idem)
144
mestiços, já que a mestiçagem do mameluco teria para o autor de “Os Sertões”, dado origem a
raça sertaneja, que era distinta em força e resistência.
Entretanto, Munanga (1999) nos informa que é Oliveira Viana que faz uma distinção
decisiva para a compreensão do papel do mulato na sociedade brasileira. O autor explica que
pelos mamelucos não descenderem da raça escrava e se aproximarem mais do tipo somático
do homem branco, teriam uma ascensão maior na sociedade colonial. Conforme a discussão
empreendida por Munanga, percebemos que Viana refutaria, em parte, seu argumento,
afirmando que os mulatos tinham mais eugenia que os mamelucos, mas que lhes faltavam
ainda, “a solidez e estrutura moral e equilíbrio de caráter” (1999, p. 77). Assim, fosse pela
característica atávica mais forte no mulato que no mameluco, ou por uma força ética maior no
segundo, a superioridade do mameluco lhe permitia uma mobilidade maior na sociedade.
Assim, a imobilidade social do negro na sociedade é agravada pela mestiçagem que a
personagem do poema carrega, a “mulatinha” não tem o direito de abandonar o trabalho
escravo e árduo nem após a morte. Quiçá fosse um mameluco? Parece nos perguntar Oswald
no silêncio polifônico de suas elipses. A partir daqui, o procedimento é o mesmo aplicado ao
poema “A transação”, escreve-se na história o que lhe foi recalcado, o mestiço. Mostra-lhe a
arbitrariedade do seu esquecimento, promove a auto-escuta da história para que, quiçá, a
partir dela, desapareça o sintoma, que é àquela altura, sem dúvidas, a exclusão do negro da
sociedade de classes.
A estratégia oswaldiana em relação ao negro-mestiço era, portanto, articulada
duplamente, tanto para visibilizar sua participação e inscrever sua presença na história quanto
para escrever uma „micro-história‟ da sua presença no Brasil colônia, como demonstramos na
análise dos poemas “O caso” e “A transação”. Em relação ao indígena, o procedimento é
ressignificar a forma como este foi visibilizado, propondo uma releitura de algumas
representações do indígena, formuladas desde a literatura de viagem até o romantismo.
Como não bastasse a releitura de um aspecto essencial do índio histórico, o
canibalismo, através da metáfora antropofágica, Oswald de Andrade o inscreve já nas
primeiras páginas do conjunto de poemas de “História do Brasil”. A sua leitura do nativo
ameríndio busca desconstruir os estereótipos que interditaram a presença do indígena na
história e na literatura nacional. Escolhemos para essa leitura, diferente dos poemas
anteriores, talvez o mais conhecido e lido poema de Andrade, “As meninas da Gare”,
146
Como procedeu com quase todos os poemas da seção “História do Brasil”, o poeta
duplica a textualidade praticamente integral da carta de Pero Vaz de Caminha, e instaura em
sua escritura um desvio nas bordas do texto, ou seja, no seu título. A paródia, de novo, é o
mecanismo central da inversão semântica de Oswald. A textualidade do cronista é retomada
para fazer apagar-se em seu próprio discurso a violência do estereótipo.
Oswald de Andrade recorre, de novo, a Paul Cézanne, e retira de uma de suas obras o
título com o qual vai rasurar a textualidade da Carta de Caminha. A gare é uma estação de
trem na frança daquela época onde ocorria a prática da prostituição pelas mulheres. A partir
dessa relação Sant´anna (1985), destaca que “as índias do texto original se misturam às
meninas expostas na gare de uma sociedade moderna e industrial”. O autor sugere uma
continuidade entre a situação das índias e das meninas da gare, mesmo quase 500 anos depois.
Por fim, diz; “As moças da gare, em seu primitivismo, lembram ao poeta aquelas índias”
(1985, p. 82).
Oliveira (2002), dialogando com a leitura de Sant´anna, coaduna com a idéia de uma
continuidade entre o texto original e o texto rasurado, ou seja, entre a carta de caminha e o
poema de Oswald haveria um diálogo que se resumia em superpor um título moderno a um
texto antigo e assim, através do primeiro texto, remeter “ao contexto atual, ou seja, ao
processo de exploração da mulher, praticamente iniciado com a colonização e nunca mais
interrompido no país”, conclui Oliveira. A realidade que Sant´anna pretende explicitar
permaneceu substancialmente a mesma, apesar dos quinhentos anos.
Essa é a leitura normalmente veiculada sobre o poema, mas acreditamos que ela mitiga
a potencia da paródia inscrita na duplicação do texto de Caminha, além de marginalizar um
aspecto central do poema, que foi questão tabu no contato do europeu com o ameríndio: a
nudez do indígena. Márcia Amantino, em História do Corpo no Brasil, diz que grande parte
dos problemas que perturbavam a relação do indígena com os padres jesuítas “eram
decorrentes, direta ou indiretamente, dos usos que os indígenas faziam de seus corpos e dos
147
alheios. O corpo indígena nu, e praticante de atos considerados pelos religiosos como
ofensivos a Deus, precisava ser domado” (2011, p. 18).
Se a poligamia, o canibalismo e a nudez foram os atributos pelos quais a alteridade
indígena foi sempre animalizada e demonizada, é preciso compreender aí o papel decisivo que
o uso do corpo ganha na significação da especificidade indígena. É muito ilustrativo a esse
respeito que o padre Manoel da Nóbrega tenha identificado que a nudez indígena deveria ser
combatida urgentemente, e mais ainda, conta-nos Armantino que os índios aceitavam as
roupas dadas como presentes, mas a usavam como queriam? “Para desespero do Padre
Anchieta, em um dia saíam com alguma peça na cabeça e mais nada; em outro, apenas
sapatos.” (2011, p. 18).
A esse respeito é decisiva a discussão empreendida por Schwarcz, quando
descrevendo o famoso elogio feito por Montaigne, em os “Canibais”, à guerra na sociedade
Tupinambá. A autora mostra como a visão do francês era em vários aspectos positiva
considerando, inclusive, certa relativização do canibalismo. Mas a frase final do ensaio é
lapidar, transcrevemos: “Tudo isso é verdade interessante, mas, que diabo essa gente não usa
calças” (MONTAIGNE, 1971 apud SCHWARCZ, 1996, p. 80).
Essa nudez, portanto, era sempre relacionada a não consciência moral, a não
cristandade. Marca suprema da diferença, a nudez denuncia uma alteridade quiçá, irrevogável.
Graças ao que Viveiros de Castro chamou de a inconstância da alma selvagem, em livro
homônimo, a catequese não conseguiu aplacar a nudez do índio.
Essa proverbial inconstância não foi registrada apenas para as coisas da fé. Ela
passou, na verdade, a ser um traço definidor do caráter ameríndio, consolidando-se
como um dos estereótipos do imaginário nacional: o índio mal-converso que, à
primeira oportunidade manda Deus, enxada e roupas ao diabo, retornando feliz à
selva presa de um atavismo incurável. A inconstância é uma constante da equação
selvagem. (CASTRO, 2011, p. 186).
Assim, a nudez não era a patologia de uma animalidade, ou efeito colateral de uma
inferioridade, era um traço constituinte da cultura ameríndia. Era, porém, justamente o
contrário que sugeria a representação do indígena na história e na literatura brasileira. A
nudez surgia como traço de irracionalidade e animalidade, à medida que depunha contra todo
o senso de civilização. A nudez pertencendo só ao reino animal, desumanizava e, de certa
forma, infantilizava o indígena, dando um caráter de inocência ao uso do seu corpo.
148
23
Poema “erro de português” do livro Caderno de poesia do aluno Oswald de Andrade (2010).
24
Claude Levy Strauss afirma em tristes trópicos que “o encontro de dois grupos, quando pode desenvolver-se
de forma pacífica, tem por conseqüência uma série de presentes recíprocos; o conflito cede lugar a negociação.
(2000, p. 322).
149
isso o índio que interessa ao poeta, não é o do romantismo nem o dos cronistas, é antes, o
índio nas suas formas concretas de existência, o canibalismo, a poligamia, a nudez. É isso que
ele nos diz no manifesto antropófago, “Contra o índio de tocheiro. O índio filho de Maria,
afilhado de Catarina de Médicis e genro de D. Antônio de Mariz”. E quando Oswald de
Andrade rasura o texto de caminha e põe na seção “História do Brasil” o índio nu, é de novo,
a afirmação do indígena desmitificado, sem os estereótipos e interdições da catequese, que ele
quer escrever na sua história do Brasil.
Essa escrita oswaldiana da história na poesia Pau-Brasil, quando põe a formação em
detrimento da fundação como começo e construção da nação, insere nesse processo os
elementos recalcados pela narrativa da nação como fundação. Então, o índio, o negro-mestiço,
o período colonial, todos aparecem na fotografia oswaldiana do período colonial, e Oswald
parece querer nos indicar no poema “Relicário”, que são justamente essas aparições, essa
materialidade da história, longe dos mitos e universalismos, que fazem a beleza da história
nacional, como podemos ler abaixo,
No baile da corte
Foi o Conde d´Eu quem disse
Pra Dona Benvinda
Que farinha de Suruí
Pinga de Paratí
Fumo de Baependi
É comê bebê pitá e caí
O título “Relicário” significa, em suma, uma caixa onde se guarda coisas de valor. No
início do poema, o poeta descreve a fala do Conde, em conversa com Dona Benvinda. O que
chama atenção de imediato é a característica da língua no diálogo entre os nobres colonos da
terra. Como anota Fonseca “As declarações do interlocutor nobre estão impregnadas de
marcas de oralidade, o que causa estranheza se considerarmos o status social muito elevado
das pessoas em foco” (2008, p. 108). Como já sinalizamos em poemas como “Civilização
Pernambucana”, analisado no capítulo anterior, o poeta busca sempre mostrar a vontade de
150
semelhança com o europeu, que rege a vida dos colonos, como caricatura. Oswald de Andrade
denuncia essa semelhança sempre como um teatro dantesco e descontextualizado.
Mas há uma dimensão ainda nesse poema que precisa ser explorada, diz respeito à
representação dessa realidade colonial a partir de uma ideologia do contágio. Oswald
carnavaliza na língua as contaminações, trocas e influências que caracterizam o contato entre
as várias culturas no período colonial. Num pequeno poema mistura o vocabulário indígena,
com o registro oral do negro do Brasil colônia, e o põe na fala de um nobre da Corte. Esse
contágio, essa mistura cultural é que deve ser guardada em nosso relicário, essa é a
valiosíssima contribuição da vida colonial para a história nacional. O apagamento desse
período acarretaria a perda dessa consciência positiva do contágio.
É importante notarmos como esse contágio é inverso ao que será proposto pelas
teorias raciais que buscavam na mestiçagem um processo de embranquecimento da nação, há
antes, sua inversão. É o colonizador, o europeu que incorpora em seu repertório cultural as
contribuições milionárias da cultura afro-indígena. Assim, de duas maneiras o poema põe o
contágio fora das teorias do embranquecimento. Primeiro, porque inscreve o contágio no
campo da língua, da culinária e dos costumes, portanto, no da cultura e não no da raça, e isso
quase oito anos antes do “Casa Grande de Senzala” de Gilberto Freyre. Segundo, porque a
assimilação do Outro no poema não é feita pelo nativo, mas sim pelo colono europeu, para
expor as influências inevitáveis das culturas entre si, sem hierarquias.
Portanto, Oswald busca mostrar a importância do período colonial e seus agentes para
a formação da cultura nacional, expôs a violência da vida colonial, a violência do estereótipo
sobre o indígena e a violência do apagamento do negro-mestiço, para afirmar sempre a
dimensão plural que constituiu a vida material do Brasil colônia.
Dessa forma, os recalques e interdições operados pela história oficial da nação são
alvos da narrativa contra-hegemônica do poeta modernista. Em resposta ao apagamento do
período colonial, para buscar na metafísica da origem um começo harmonioso e mítico,
Oswald, recorrendo à oralidade do homem negro da colônia, acessa uma memória interditada
na história oficial e escreve o período colonial acentuando a violência que o caracterizou. À
mitificação da terra e do nativo Oswald de Andrade opôs uma história com base em uma
dialética materialista, representou a terra e o índio em sua materialidade histórica, a primeira
através de sua transformação material pela incorporação da técnica e surgimento das cidades,
o segundo a partir da representação do índio histórico, através da nudez, tantas vezes apagada
ou condenada pelo europeu. Já em oposição à busca da pureza racial que interditava a
presença mestiça, Oswald, além da série inteira de “Poemas da Colonização”, visibiliza a
151
presença do mestiço como também, a problematiza por meio da discussão de sua não-
mobilidade social no Brasil colônia.
Os elementos recalcados pela metafísica da origem, ou da razão universalista, vão em
tons diversos e a partir de estratégias discursivas diferentes, aparecendo na escrita da história
oswaldiana. A rasura em relação à historiografia oficial da nação não consiste em infiltrar em
suas rígidas estruturas narrativas uma textualidade e um enredo que lhe são estranhos, ao
contrário, a escrita da história em Pau-Brasil, consiste em fazer a história ouvir o seu próprio
silêncio. Um silêncio que compõe a própria escritura, mas não como dado marginal, e sim
como significante. Assim, as elipses, as duplicações textuais, as paródias e as colagens, não
informam à história um dado estranho e novo, antes escrevem na narrativa nacional os
significados de seus próprios silêncios.
152
5. Considerações finais
Nada mais avesso às características desse estudo do que a intenção de uma conclusão e
um fechamento, ainda que seja ele atenuado pela simulação de um rompimento que não
conclui nada, como sugere a expressão “considerações finais”. Então, buscaremos fazer dessa
etapa final do trabalho uma passagem, uma abertura, tentando vislumbrar alguns
desdobramentos, em detrimento de conclusões, das questões expostas ao longo desse texto.
Ao longo do texto, falamos inúmeras vezes num trabalho de escrita da história na
poesia Pau-Brasil, e não de re-escritura como preferem muitos pesquisadores. Essa escolha é
bastante significativa da leitura que empreendemos da obra oswaldiana, e da rasura que
procuramos impor a mesma. Essa opção denuncia perspectivas centrais do nosso trabalho,
uma vez que não identificamos nas poesias Pau-Brasil, em nenhum momento, a vontade de
sobrepor uma narrativa histórica a outra, de mover o lugar da verdade, ocupando-o com um
enunciado novo e igualmente autoritário e centralizador. O que percebemos foi o contrário, a
escrita oswaldiana da história põe a História no jogo das significações, descentra suas
narrativas e desconstrói suas verdades.
A opção por uma re-escritura impunha uma ideia de reocupação do centro da narrativa
histórica, quando o trabalho desconstrutor de Oswald de Andrade queria mostrar que “o
centro não tinha lugar natural, que não era um lugar fixo mas uma função, uma espécie de
não-lugar no qual se fazia indefinidamente substituições de signos” (DERRIDA, 1967, p.
232). Colocar os sentidos, as significações sobre a nação em movimento foi a grande
contribuição oswaldiana para a cultura brasileira. Primeiro, enquanto a maioria esmagadora da
intelectualidade brasileira pensava a nação e o homem a partir de uma lógica evolucionista,
ele devora, num mesmo prato, a dialética, o materialismo histórico e o próprio evolucionismo,
propondo uma evolução que culminaria num retrocesso para o futuro, o Matriarcado de
pindorama. Uma proposição utópica sim, mas de uma utopia revolucionária e não mítica.
Assim, opera uma releitura das correntes historiográficas do século XIX e XX e acaba
expondo uma sociedade multifacetada e plural, que não poderia ser explicada nem por uma
história evolutiva e linear, nem por uma metafísica da origem e sua fundação mítica, nem
ainda, por uma dialética de síntese totalizadora, mas sim por uma espécie de dialética
antidialética, na qual os contrários não se misturavam para uma síntese, antes mantinham-se
como tensão, coexistindo em suas relações de força e sentido. A essa devoração da
153
escrita dos poemas Pau-Brasil. Não há nesses textos uma representação singular da nação,
antes uma multiplicidade de vozes, processos, e personagens que coaduna com o processo
desconstrutor e descentralizador do qual falamos.
Nesse sentido, é importante percebermos, por exemplo, que Poemas da colonização
segunda seção de Pau-Brasil, depõe em certos aspectos, sobretudo, na descrição da violência
colonial contra uma aproximação entre Oswald de Andrade e Gilberto Freyre. O livro de
Oswald, escrito cerca de oito anos antes do Casa Grande e Senzala, marca em relação a esse,
não apenas uma distancia temporal mas também discursiva. Por isso, uma leitura sobre a ideia
de mestiçagem que tome como corpus a obra de Oswald de Andrade deverá ocupar-se
primeiro desta distinção essencial: um recorte temporal, que considere não apenas o poeta
antes e depois da leitura de Freyre, mas antes e depois da guerra contra o nazismo, pois, o
elogio da mestiçagem no fronte da segunda guerra, e no pós-guerra marca também, um
combate as ideologias nazistas. A esse respeito, é ilustrativa a opinião de Oswald sobre o
futuro da Alemanha nazista transcrita ao longo desse texto.
A crítica à ideia de pureza e origem, como vimos, é de fato constituinte do pensamento
oswaldiano, o que não devemos, a fim de contradizer sua própria „essência‟ é ler a ideia de
contaminação como produção de síntese, e produção de um novo ser. Como a já citada ideia
de uma raça cósmica, na qual o processo de mestiçagem levaria a uma raça nova, proposta
pelo grupo Anta, ao qual se opôs veementemente o grupo da revista de Antropofagia.
Talvez tenha sido justamente essa compreensão de Oswald de Andrade como um
escritor que buscava sempre, através do processo dialético, uma síntese que nos manteria
sempre no processo de devoração da diferença para afirmação da unidade, que impediu,
durante algum tempo, sua leitura em chave contemporânea. Como as que buscam já nesse
século XXI, Gilberto Cocco, Silviano Santiago e Vera Follain, entre outros. Pois, como
aponta Linda Hutcheon, discutindo a relação de desconstrução que a literatura metaficcional
opera em relação aos discursos históricos, “No pós-moderno não existe dialética: a auto-
reflexão se mantém distinta daquilo que tradicionalmente se aceita como seu oposto – o
contexto histórico político no qual se encaixa” (1991, p. 12). Embora essa afirmação
merecesse uma consideração mais demorada, devido à afirmação de uma totalização que ela
mesma pretende negar, não nos ocuparemos agora dessa discussão. O que nos interessa é
ressaltar a desconfiança que a pós-modernidade tem em relação aos discursos totalitários que
podem ser originados da síntese dialética. O que pode ter gerado certo receio na leitura de
Oswald de Andrade, através das categorias teóricas da crítica pós-estruturalista.
155
Mas, como buscamos evidenciar ao longo de nosso estudo, leituras recentes devoram
junto com Oswald a dialética, e a crítica começa a compreender que o poeta a devorou desde
os primeiros escritos. Diante desse direcionamento, outra questão apresenta-se como central,
como devemos ler Oswald de Andrade de forma que a crítica possa contribuir para uma
discussão contemporânea dos problemas sociopolíticos e culturais da nação, da America
Latina e do mundo.
A primeira atitude envolve uma proposta metodológica de abordagem da obra
oswaldiana, a saber, sua não delimitação e filiação ao espaço restrito do movimento
modernista. Uma leitura que se propõe a abarcar a densidade e complexidade teórica que a
obra de Oswald de Andrade ganha em seu cotejo com o contexto contemporâneo deve
privilegiar uma lógica da descontinuidade, e não buscar compreendê-lo num desenvolvimento
linear da história da literatura brasileira. Nesse sentido, o da afirmação de uma
descontinuidade inerente à própria história da literatura, a crítica concretista antecipou-se
quase cinqüenta anos em relação aos estudos mais contemporâneos.
Recusada a possibilidade de nortear as leituras da obra oswaldiana com uma filiação
direta ao modernismo, poderíamos devido ao caráter desconstrutor de seus textos e a crítica
que desde os manifestos até A crise da filosofia messiânica, desferiu contra a racionalidade
europeia universalista e centralizadora, abordar seus textos a partir da premissa pós-moderna.
Mas se considerarmos o lugar de enunciação, desse saber como crítica à modernidade,
veremos que o discurso oswaldiano “pressupõe a exterioridade das vítimas, daquelas que só
foram parte da modernidade pela violência, exclusão e discriminação que esta lhes impôs”
(SANTOS, 2004, p. 7). Por esse critério, Oswald de Andrade estaria mais fielmente
enquadrado numa crítica pós-colonial, já que enuncia de um lugar periférico em relação à
própria modernidade.
No entanto, apesar de muito pertinente, essas classificações não abarcam toda a
extensão da textualidade oswaldiana, restringindo-a ou contradizendo-a, ora num ponto, ora
em outro. Se, como propõe Boaventura de Souza Santos (2004), em Do pós-colonial ao pós-
moderno, a crítica à racionalidade europeia operada pelo pós-modernismo pressupõe uma
localidade do discurso interna às próprias estruturas da modernidade, ou seja, é uma
autocrítica europeia as falhas de sua razão universal, Oswald de Andrade não pode caber
confortável nessa delimitação, pois enuncia de um lugar marginal ao centro da modernidade,
que era a Europa.
Mas, se Oswald de Andrade teve o mérito inquestionável de propor, quiçá, uma nova
epistemologia pela qual deveria ser lida a história e a identidade nacional, através da dialética
156
invertendo a equação de Costa Lima, uma crítica e não um pensador, para sustentar a potência
e diversidades de efeitos de sentidos abertos pela obra de Oswald de Andrade.
Portanto, a busca de um modelo epistemológico próprio para pensar a história da
nação, a negação de uma metafísica da origem, de uma evolução linear e universalizante e a
colocação da história no divã para fazê-la ouvir o seu próprio silêncio foram os gestos
desconstrutores da escrita da história na poesia Pau-Brasil. Mas, quais os significados dos
escombros? Qual a efetiva contribuição da dialética antropofágica, ou antidialética, essa
autofagia? Pois, o objeto devorado é, no caso, a própria história da nação.
A contribuição oswaldiana, como não poderia deixar de ser, é paradoxal, e
descentralizadora, porque à medida que a identidade se afirma em relação ao outro se nega em
relação a si mesma, para pôr-se sempre em movimento.
Nossa interpretação dos escombros oswaldianos gira em torno da compreensão da
identidade como diferença, uma diferença que se constrói em e na relação com o Outro, mas
que também instaura uma fissura na própria identidade que se afirma nesse processo
dialógico, pois a identidade está sempre em devir. Um devir sempre como diferença. Assim, a
diferença existe sempre em relação a si e ao outro. Portanto, não há essencialismos. Essa é
sem dúvida uma das discussões mais fundamentais da contemporaneidade e da sociedade
brasileira hoje. Quando os processos de significação da identidade não ocorrem mais, apenas
ou preponderantemente, em relação à nação, encontram seus significantes em grupos
politicamente organizados, no consumo, nas redes sociais da internet, na profissão, nos
sindicatos entre outras formas de sociabilidade contemporâneas.
A identidade se constrói em relação ao Outro, que não é mais a nação, e sim, uma
multiplicidade de instituições e „visibilidades‟ que podem significar o indivíduo, e definir seu
lugar de enunciação. A contribuição oswaldiana, ou dessa nossa leitura rasurada de Oswald de
Andrade, é que esses espaços múltiplos de enunciação sejam sempre vistos como um “não-
lugar” desconfortável e deslocado e inviabilizem, assim, a acomodação e o centramento do
poder.
Aprendemos na leitura de Oswald, a partir da lógica desconstrucionista, que a
existência do plural e do múltiplo, ou seja, a diferença entendida como diferença só é possível
como tensão, se colocamos indefinidamente em jogo os processos de significação do homem,
da nação, dos grupos de minoria, da cultura e da identidade. O processo de desconstrução é,
dessa forma, sempre um processo de desconstrução de si, para, a partir de então, fazer de
novo parte do jogo da significação, porque só assim é possível tomar a diferença em suas
dimensões positivas, quando aprendemos a lê-la em nossa própria identidade.
158
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Augusto de Jesus Silva . - Salvador, 2013.
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Contém referências.
CDD: B869.09