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FEMINISMO POPULAR

História e contextos da luta das mulheres pelo poder

por Letícia Carvalho (PB), Maíra Guedes (BA) e Maria Júlia Montero (SP), militantes da
Marcha Mundial das Mulheres

1. Introdução

Esquematicamente falando, a acumulação de capital (supondo-se


que a mais-valia apropriada pelo capitalista seja investida na empresa)
varia em razão inversa do capital variável desembolsado, o que significa
que o lucro (expressão empírica da mais-valia) é tanto maior quanto menor
for o número de trabalhadores assalariados da empresa ou quanto menores
forem os salários pagos a eles. A realização desta lei do modo capitalista de
produção encontra na inferiorização social da mulher um elemento
coadjutor de alta relevância. Quer através da marginalização da mulher das
funções produtivas, quer por meio do emprego de sua força de trabalho,
sempre foi possível alterar a composição orgânica do capital pela redução
da parcela variável deste. O caráter submisso que há milênios as sociedades
vinham moldando nas mulheres facilitava enormemente a elevação do
montante de seu trabalho excedente. (Heleieth Saffioti, “A Mulher na
sociedade de classes - mito e realidade”)

Levamos nossa luta, não como uma batalha entre sexos, mas como
uma batalha contra o poder político da classe proprietária, mas como uma
batalha cuja importância se funda antes de mais nada, no fato de que leva à
massa do proletariado o conhecimentos de sua missão histórica e de seu
poder social (...) (Clara Zetkin, trecho do discurso pronunciado na
Conferência de Mulheres Socialistas em 1906)

Contar a história do feminismo popular é contar a história da luta das mulheres pelo poder.
Nesse texto, nos debruçamos sobre a atuação das feministas nos momentos que aprendemos serem
os elos mais avançados. É a partir dessa compreensão que delimitamos qual o feminismo que
orienta as nossas ações e qual seu leito histórico. Esse texto não pretende, portanto, ser um explanar
de correntes teóricas do feminismo e suas diversas expressões na história. Pode ser que muitas/os
sintam falta de outras experiências (feminismo radical, da igualdade, diferença, negro, anarquista,
lesbianidade política e etc…), mas aqui pretendemos abordar as chamadas primeira e segunda ondas

do feminismo1 sem tratar o todo de sua constituição e divergências ao redor do mundo. Trazemos,
portanto, um recorte específico, que diz respeito à luta das mulheres trabalhadoras - normalmente
deixadas de lado nessa “história geral” do feminismo.

1 Usualmente, costuma-se dividir a história do feminismo em “ondas”. Teríamos, de forma geral, a primeira e segunda
onda do feminismo. Costuma-se, ainda, limitar essas duas ondas, primeiro, à luta das sufragistas e, segundo, à
experiência feminista dos anos 60 principalmente nos Estados Unidos.
Nesse sentido, optamos por focar na primeira onda – isto é, final do século XIX e início do
século XX - na atuação das feministas socialistas, principalmente na direção das bolcheviques, e as
questões feministas enfrentados para o triunfo e consolidação da Revolução de Outubro. O período
da segunda onda do feminismo é também vasto e diverso. Aqui, trataremos das revoluções
triunfantes na América Latina (HANDAL), Cuba e Nicarágua, por compreendermos serem
experiências que a questão fundamental da revolução - a questão do poder - foi enfrentada, sendo,
então, caracterizadas por nós como parte do leito histórico do feminismo popular, além da luta contra
as ditaduras militares e pelas redemocratizações, momento que é determinante na conformação do
feminismo brasileiro.

2. Primeira e segunda ondas do feminismo e Feminismo Popular


“...e o que foi feito é preciso conhecer para melhor prosseguir…”

a. A primeira onda e o feminismo socialista

O feminismo, de uma maneira geral, surge balizado pelo pressuposto da “igualdade” das
idéias iluministas do século XVIII, ainda que essa igualdade não tenha sido extendida às mulheres
(muito pelo contrário) ou mesmo à classe trabalhadora. Esse ideário, apesar de surgir a partir de
teóricos liberais, baseou teorias marxistas e feministas, influenciando diferentes contextos da luta pela
libertação dos povos. É com o surgimento dessas idéias que se faz uma reflexão acerca dos direitos
políticos: não é um deus que define nosso destino. Surge, então, a idéia da inteligibilidade humana.
Essa perspectiva também foi parte do que orientou a atuação das mulheres nos grandes períodos
revolucionários do século XVIII, tais como a Revolução Francesa. “Até a segunda metade dos anos
de 1800 a luta pela igualdade era o tema central de mobilização das mulheres, que no geral assumiam
as reivindicações pelo direito a educação, ao trabalho e a igualdade salarial, além dos direitos
políticos.”
No entanto, a conformação de uma perspectiva socialista para luta pela emancipação das
mulheres, para daí pensar a direção do seu movimento e bandeiras políticas não foi caminho simples.

Os Socialistas utópicos

O socialismo, de uma certa forma, sempre tratou da questão da mulher, ainda que muitas
vezes com inúmeros limites. Entre os socialistas utópicos, podemos trazer a figura de Robert Owen –
que chegou a influenciar inclusive as militantes sufragistas liberais dos Estados Unidos.
Os socialistas utópicos, de maneira geral, defendiam questões como união livre (por amor,
por vontade do casal, e não por obrigações), divórcio fácil e barato, falavam em arranjos
habitacionais com arranjos diferentes pra ser tudo coletivizado, com quarto pra todas/os. O trabalho
doméstico era considerado socializado, porém, essa socialização se dava somente entre as mulheres.
Então o trabalho de cuidados era dividido na comunidade, mas continuava nas costas das mulheres.
Alguns desses teóricos, ainda, afirmavam que a personalidade feminina fazia com que as mulheres
se “inclinassem mais ao trabalho doméstico”. Afinal, esses teóricos questionavam muito pouco a
divisão sexual do trabalho. Surgiram, então, os limites dos socialistas utópicos. A idéia de um
“casamento moral”, regido não por obrigações moralistas ou econômicas, chocava-se com o fato de
que aqueles que defendiam essas idéias eram homens ricos, ou seja, que não precisavam do
casamento como uma forma de sobrevivência. Começa, então, uma reflexão sobre a necessidade de
repensar a idéia de propriedade para repensar a idéia de casamento – e essas idéias somente
apareceram por conta dos protestos das mulheres. Sem repensar a propriedade e a pobreza das
mulheres, o casamento livre não seria necessariamente uma emancipação para a mulher tal qual para
o homem.
Em seu livro União Operária (1843) Flora Tristan, para além de propor uma associação
internacional de trabalhadoras e trabalhadores, propõe, com grande antecipação, que a luta da classe
trabalhadora é indissociável da luta das mulheres. Escreveu também o livro A condição de trabalho
na Inglaterra, em que defendeu a igualdade do salário para homens e mulheres.

O Socialismo científico

Os marxistas, ainda que não tenham se aprofundado em um primeiro momento na “questão


feminina”, não deixaram de escrever sobre ela. São vários os trabalhos em que Marx e Engels falam
sobre a entrada das mulheres no mercado de trabalho. Engels, em seu livro A situação da classe
trabalhadora na Inglaterra (1844), discute a substituição dos trabalhadores por mulheres e crianças
em situações degradantes, e com um salário menor. Os bebês morriam de fome, e as mães eram
obrigadas a trabalhar com os seios inchados da amamentação e mulheres grávidas eram multadas por
sentar para descansar. O debate, nesse momento, ainda apontava para o trabalho feminino como um
destruidor da família, uma visão confusa, que vai sendo amadurecida ao longo de sua obra.
Em A Ideologia Alemã, Marx e Engels começam a questionar a idéia de uma divisão natural
do trabalho, e colocam, pela primeira vez a produção da vida material e a relação entre homens e
mulheres, pais e filhos, a família, como premissas básicas da existência humana – o que hoje
chamamos de trabalho reprodutivo. Já consideravam a família como um ser social mutável, o que é
um enorme avanço. Infelizmente, o movimento operário não acompanhou no mesmo ritmo o
desenrolar das idéias de Marx e Engels, e foi, durante muitos anos, resistente à entrada das mulheres
no mercado de trabalho. Em 1884, logo após a morte de Marx, Engels escreve A Origem da Família,
da Propriedade Privada e do Estado, reconhecendo a centralidade da reprodução para os processos
históricos, com importantes contribuições para o debate sobre as mulheres, muito mais avançadas
que as anteriores.
Na Alemanha, em 1879, é lançada a primeira obra socialista dedicada exclusivamente à
questão das mulheres: A mulher e o socialismo, de Auguste Bebel, dirigente do Partido Social-
Democrata Alemão. Não se pode deixar de citar que o movimento de mulheres socialistas alemão era
extremamente organizado, sendo o PSD alemão um dos primeiros a elaborar um programa para as
mulheres, incluindo questões como o direito ao voto, educação igualitária para todas e todos, entre
outros. Trazemos à tona a figura de Clara Zetkin, dirigente do partido e uma das principais lideranças
das mulheres. Zetkin “foi a primeira a situar a opressão às mulheres dentro de uma compreensão
mais sutil de classe.” (GOLDMAN, 2014), atuou por anos com as mulheres trabalhadoras, sendo
grande conhecedora das teorias de Engels e Bebel.
Na União Soviética também era grande a reflexão acerca da situação das mulheres, havendo
grande debate especificamente sobre a família. Falaremos sobre esse debate mais adiante, ao
focarmos especificamente no processo da Revolução Russa.

O feminismo e o socialismo: a experiência soviética

A experiência soviética, até hoje, permanece como uma das maiores experiências socialistas
que tivemos no mundo. Muito se estudou sobre ela, e muito se estuda sobre o pensamento
bolchevique. Com relação às mulheres, talvez seja o período do qual se tem mais informação sobre a
luta feminista socialista organizada, porém, ainda permanece muito invisibilizada tanto por setores
burgueses que querem limitar a luta feminista ao sufragismo, quanto por machistas da esquerda, que
insistem em secundarizar a pauta das mulheres, tratando-a como se não tivesse importância.
A experiência soviética não só até hoje é ainda considerada a maior experiência socialista,
como também é uma das maiores experiências feministas. A questão da mulher e da família se
colocava como central para os bolcheviques, havendo inúmeras reflexões e trabalhos acerca dessa
questão:
Os bolcheviques argumentavam que somente o socialismo poderia resolver a
contradição entre trabalho e família. Sob o socialismo, o trabalho doméstico seria
transferido para a esfera pública: as tarefas realizadas individualmente por milhões
de mulheres não pagas em suas casas seriam assumidas por trabalhadores
assalariados em refeitórios, lavanderias e creches comunitários. Só assim as
mulheres se veriam livres para ingressar na esfera pública em condições de
igualdade com os homens, desvencilhadas das tarefas de casa. As mulheres seriam
educadas e pagas igualitariamente, e seriam capazes de buscar seu próprio
desenvolvimento e seus objetivos pessoais. Sob tais circunstâncias, o casamento se
tornaria supérfluo. Homens e mulheres se uniriam e se separariam como quisessem,
desassociados das pressões deformadoras da dependência econômica e da
necessidade. A união livre substituiria gradualmente o casamento à medida em que o
Estado deixasse de interferir a união entre os sexos. Os pais, independentemente de
seu estado civil, tomariam conta de seus filhos com a ajuda do Estado; o próprio
conceito de ilegitimidade se tornaria obsoleto. A família, arrancada de suas
funções sociais prévias, definharia gradualmente, deixando em seu lugar indivíduos
completamente autônomos e iguais, livres para escolher seus parceiros com base no
amor e respeito mútuos. (GOLDMAN, 2014, p.21)

Foram muitos, na URSS, aqueles a tratar da questão da mulher, Nikolai Bukharin, por
exemplo, teorizou sobre como o avanço do sistema capitalista influenciaria no funcionamento das
famílias, ao comparar grupos familiares camponeses e trabalhadores de fábricas. Segundo ele, a
função produtiva da famílía seria desfeita na transição à vida urbana e ao trabalho assalariado, já que
as mulheres passariam a participar do trabalho produtivo. Nadehda Krupskaia, em sua obra A mulher
trabalhadora (1900), a primeira no país a trabalhar a questão da mulher de um ponto de vista
marxista, indicava a extrema exploração sofrida pelas mulheres nas fábricas e já afirmava a
necessidade da participação das mulheres na luta, lado a lado dos homens.
Muitos outros escreveram sobre a questão da família e das mulheres, mas queremos dar
especial destaque a Alexandra Kollontai, dirigente bolchevique e feminista, uma das figuras mais
destacadas no que diz respeito à organização das mulheres trabalhadoras, e única mulher a compor o
comitê central do partido bolchevique. Escreveu sobre a necessidade da participação das mulheres
no partido, a questão da família, sobre as relações entre homens e mulheres, união livre, entre outros.
Os temas abordados por ela foram parte de um debate inovador no movimento revolucionário, e
basearam grande parte das políticas direcionadas às mulheres no período pós tomada do poder. Entre
seus escritos de maior destaque estão, certamente, A nova mulher e a moral sexual e O amor na
sociedade comunista.
O partido bolchevique foi grande pioneiro na organização das mulheres. Lenin, em seu
texto “O dia internacional da mulher”, de 1921, afirmava:

Não é possível, porém, atrair as massas para a política se não se atraem as


mulheres. No regime capitalista, de fato, a metade do gênero humano, constituída
pelas mulheres, sofre dupla opressão. A operária e a camponesa são oprimidas pelo
capital e, além do mais, mesmo nas repúblicas burguesas mais democráticas,
persiste, em primeiro lugar, a desigualdade jurídica, porque a lei não lhes concede
igualdade com os homens e, em segundo lugar — e essa é a questão essencial —
elas sofrem a «escravidão doméstica», são «escravas domésticas» (LENIN, 1921)
A questão essencial apontada por Lênin, quase 4 anos depois do triunfo da Revolução
Proletária e hoje definida por nós como divisão sexual do trabalho 2, se expressa politicamente na
bandeira da socialização do trabalho doméstico e de cuidados com o estado (a socialização com os
homens seria pautada com força somente mais adiante). Nesse aspecto a Revolução Russa avança e
desafia as bases do patriarcado. Lênin repetiu como uma ladainha que nenhuma democracia
burguesa avançou tanto rumo à emancipação da mulher quanto a Revolução Proletária. O partido
bolchevique incorporou quatro pontos programáticos que fizeram da legislação do Estado Proletário
a mais avançada em todo o mundo: 1. A socialização do trabalho doméstico e de cuidados; 2. A
inclusão das mulheres no trabalho assalariado; 3. A extinção (progressiva) da família; 4. A união
livre. Talvez não seja óbvio afirmar que nenhum dos pontos do programa surge que não da ação
organizada das mulheres bolcheviques. As lavanderias e refeitórios comunitários, por exemplo,
foram ações chamadas de “germes do comunismo” (LENIN, 1919). A Revolução incorporou em
suas leis a legalização do aborto; união livre; educação; igualdade econômica para homens e
mulheres; salário independente para as mulheres; fim da desigualdade de direitos entre as crianças
(filhas/os “ilegítimos” de casamentos ilegais e os “legítimos” de casamentos legais) e a igualdade em
todos os aspectos perante a lei.
Nesse sentido, afirmamos que os bolcheviques atuaram na vanguarda no que diz respeito
aos direitos das mulheres. Não somente elaboraram teoricamente a respeito da questão, como a
colocaram em prática. Há inúmeras discussões que podem ser feitas a respeito do declínio dessas
políticas posteriormente, mas é inegável o avanço dos direitos das mulheres no período da
Revolução Russa.

b. Partido e Tática: o movimento feminista de massas, auto-organizado e


internacional

No congresso de fundação da II Internacional, 1907, Clara Zetkin realiza um de seus


primeiros discursos sobre a questão da mulher, sendo uma das oito mulheres entre os 400 delegados.
O discurso de Clara Zetkin causou tanto impacto que foi aprovada uma resolução favorável à
luta das mulheres por igualdade salarial. Foi também nesse momento (1907) que se realizou a
primeira Conferência Internacional das Mulheres Socialistas. Além disso, ratifica-se, dentro da
Internacional, o princípio do direito da mulher ao trabalho e a criação de espaços auto- organizados

2 Ver Caderno de Debates sobre Feminismo da CP, 2009, texto “Da divisão do Trabalho entre os sexos”, de Daniele
Kergoat.
de mulheres dentro de todos os partidos socialistas, além de uma posição a favor da organização
ativa em prol do sufrágio feminino. “Finalmente se formava uma estratégia oficial para a libertação
plena da mulher, nos sentidos político, econômico e social.” (GOLDMAN, 2014) Na época, a luta
pelo sufrágio feminino estava sendo dirigida pelas burguesas que também lutavam pelo direito ao
voto:
O direito ao voto ajuda as mulheres da burguesia a derrubar as barreiras
que, sob a forma de privilégios masculinos, limitam as suas possibilidades de acesso
à educação e à vida profissional. E arma as mulheres proletárias na luta que levam a
cabo contra a exploração e a dominação de classe para conseguirem ser
reconhecidas como seres humanos de corpo inteiro. (ZETKIN,1907, p.165)

As socialistas vão atuar internacionalmente organizadas em uma tática comum alterando o


curso da luta em questão. O direito ao trabalho, a auto-organização e ação de massas vão ser a linha
política para a construção de um grande força feminina operária, fundamental para o triunfo da
Revolução em 1917. Dirigir a luta pelo sufrágio com seu caráter de massas e a partir de uma
bandeira democrática pautar a questão do poder foi um importante desafio enfrentado pelas
feministas socialistas. O debate e ação em torno do caráter da luta pelo sufrágio e de seu papel na
luta revolucionária foi fundamental para a consolidação do posicionamento político do movimento
no sentido de articular a luta das mulheres com a luta pela emancipação humana. “O direito de voto
para as mulheres unificará nossa força na luta pelo socialismo” (KOLLONTAI, 1920).

Foram 7 décadas de reivindicação pelo direito ao sufrágio que mobilizou


as mulheres em diferentes países e regiões do mundo. De início, tanto nos Estados
Unidos quanto em alguns países da Europa, as sufragistas tinham como estratégia a
busca de apoio parlamentar a partir de uma ampla mobilização popular. Assim, o
movimento chegou a envolver milhões de mulheres e realizou inúmeras ações de
grande envergadura social. (MACIEL, 2009, p.13)

(...) as socialistas politizavam o debate sobre o sufrágio universal,


diferenciando, por um lado, da posição do feminismo burguês que defendia um
sufrágio feminino limitado para manter seus privilégios de classe, e por outro das
antisufragistas, cujo argumento para não defender o voto para as mulheres
repousava no reforço da sua importância na família e no trabalho de filantropia.
(BEZERRA, 2014)
Identificada como uma corrente do movimento feminista internacional, a “sufragista”
caracterizou-se por sua moderação e reformismo, apesar de algumas vezes assumir táticas mais
radicalizadas, como foi o caso do sufragismo inglês. Em geral, porém, essa corrente limitava-se a
reivindicar uma série de reformas jurídicas quanto ao status da mulher, com base na noção de que a
igualdade nas leis bastaria para solucionar todos os problemas de caráter discriminatório que as
mulheres sofriam. Em nenhum momento questionam o papel de mãe e de esposa, como considerados
pelas sociedades patriarcais, em termos das obrigações esperadas das mulheres, inclusive na
utilização desses papéis como argumentos para as reivindicações.
Clara Zetkin defendia que a luta das trabalhadoras pelo sufrágio direto e universal
intensificava a luta do proletariado pela sua libertação e era imprescindível para a mobilização e
educação política das proletárias. Ao contrário das burguesas, Clara Zetkin não considerava o voto
das mulheres como o “objetivo final”, porque a concessão do direito ao voto não bastava “para
suprimir o antagonismo de classe entre exploradores e explorados” (ZETKIN, 1907, p.166). Em
1910, na II Conferência Internacional de Mulheres Socialistas, Zetkin propõe a criação de um Dia
Internacional da Mulher Trabalhadora, conformando uma ação internacional comum pela
emancipação das proletárias e pelo sufrágio universal, aprovando nova resolução sobre o direito ao
voto para as mulheres: “...o sufrágio universal, atribuído a todas as maiores de idade e que não
dependa da propriedade, nem do imposto, nem do grau de cultura, nem de outras condições que
excluam os membros da classe operária do gozo deste direito…” (Resoluções da II Conferência
Internacional das Mulheres Socialistas).
Zetkin relata no jornal Die Gleichheit, em português, A Igualdade - fundado em 1891, em
que ela é redatora-chefe até 1917, tornando-o um dos órgãos mais importantes da imprensa operária
– que a primeira celebração do dia Internacional das Mulheres foi considerada a maior manifestação
do movimento pela emancipação das mulheres, com mais de um milhão de mulheres nas ruas de
cidades da Alemanha, Suíça, Áustria e Dinamarca. Só em Berlim foram realizadas 42 reuniões
simultâneas e centenas de outras em toda a Alemanha. No final das reuniões, as mulheres saíram às
ruas visibilizando suas reivindicações. Na Áustria, mais de 30 mil mulheres se manifestaram nas
ruas de Viena. O Dia Internacional da Mulher Trabalhadora tornou-se um momento privilegiado de
agitação entre as proletárias politicamente menos conscientes. Um dia de “militância das mulheres
trabalhadoras que ajuda a aumentar a consciência e a organização das mulheres proletárias”
(KOLLONTAI, 1920)
A proposta dava resposta à realidade em questão e impulsionava a luta
organizada das operárias internacional numa época em que a entrada massiva das
mulheres no trabalho fabril e o desenvolvimento do movimento comunista conduziram à
intensificação da luta das mulheres por melhores condições de trabalho, melhores salários
e por direitos sociais e políticos.
No outono de 1920, Lênin, em conversa com Clara Zetkin sobre o movimento
feminino operário, afirma a necessidade da construção de um movimento feminino
internacional de massas, firmado sobre a base teórica marxista:
Devemos criar necessariamente um poderoso movimento feminino
internacional, fundado sobre uma base teórica clara e precisa» —
começou ele, depois de haver- me saudado. «É claro que não pode haver
uma boa prática sem teoria marxista. Nós, comunistas, devemos manter
sobre tal questão nossos princípios, em toda sua pureza. Devemos
distinguir-nos claramente de todos os outros partidos. Infelizmente,
nosso II Congresso Internacional não teve tempo de tomar posição sobre
esse ponto, embora a questão feminina tivesse sido ali levantada. A
culpa é da comissão, que faz com que as coisas se arrastem. Ela deve
elaborar uma resolução, teses, uma linha precisa. Mas até agora seus
trabalhos não avançaram muito. Deveis ajudá-la. (ZETKIN, 1920, p.1)

Nesse sentido, reafirma-se a necessidade da (auto) organização das mulheres no


partido, colocando o feminismo (ainda que não com esse nome) não como algo
meramente tático, para aumentar as fileiras do partido, mas como algo estratégico: a
libertação da classe trabalhadora não se dará sem a libertação das mulheres, e vice-versa.
Tendo isso claro, coloca-se na ordem do dia a organização de um movimento feminista de
massas, dirigido pelo partido revolucionário.

3. O Feminismo latino-americano
“Te cuida, te cuida, te cuida imperialista, que a América Latina vai ser toda feminista!”

a. A 2ª onda do feminismo na América Latina


Costumeiramente, afirma-se o surgimento da segunda onda feminista na América
Latina e Caribe a partir dos anos 70. Porém, julgamos não ser essa data uma definição
precisa, uma vez que acaba por ignorar a organização das mulheres em processos de luta
anteriores. Usualmente, quando contamos a história do feminismo latino-americano,
muito se deixa de lado com relação à organização das mulheres nos partidos e
movimentos populares, ainda que esses tenham sido lugares de forte organização das
mulheres. De uma certa maneira, o mesmo ocorre quando discutimos as revoluções (ou
os processos de resistência) na América Latina: uma tentativa de afastá-las da luta
feminista atual, como se fossem coisas distintas. De fato, muitos partidos e movimentos
de esquerda consideravam (e ainda consideram) o feminismo como algo pequeno-
burguês e liberal, o que não impediu a organização das mulheres, nesses espaços, que
comumente eram permeados de tensões entre homens e mulheres.
Incluímos na segunda onda feminista o processo de organização das mulheres
cubanas, e também das mulheres na Frente Sandinista, no processo nicaguarense, as
revoluções trifunfantes na América Latina. A seguir, passamos para a organização das
mulheres durante os processos de resistência às ditaduras e redemocratização de seus
países.

b. O feminismo nas revoluções triunfantes

Descrever a presença das mulheres, seu protagonismo nas revoluções, ou mesmo


pontuar todas as atrocidades que seus corpos, transformados em territórios de “conquista
de guerra” sofrem, seria apenas abrir o ponto da discussão da presença dessas lutadoras
nesses processos. Ao contrário das introduções que fazem sobre a nossa presença em
quaisquer espaços/movimentos políticos, queremos ratificar e ilustrar como as bandeiras
de lutas e a auto- organização foram cruciais para a tomada do poder e as vitórias que se
seguiram, em ambos processos revolucionários.

Nicarágua

Ao iniciar a organização dos/as militantes que se incorporaram à luta para


derrubada do governo opressor e burguês de Anastasio Somoza, apoiado pelos EUA, o
recrutamento dentro do movimento estudantil, sindicatos, movimentos campesinos e
frentes de luta diversas, arrastou uma variedade de pessoas, pertencentes a várias classes,
que se dispuseram a entrar na luta armada, largando família, residência fixa e identidade.
As mulheres somaram-se em massa e durante mais de uma década de luta, que
incorporou lutadores/as de todo o território nacional, se propuseram a lutar com seus
companheiros, ocupando também seus próprios espaços e pautas de luta, para fazer o
contraponto na já estabelecida tradição de que só os companheiros poderiam ocupar
espaços decisórios da política.
É bom lembrar que em ambos processos revolucionários, as mulheres estavam na
luta contra o imperialismo, no combate diário ao patriarcado, forte marca da colonização
hispânica e perpetuado por nossa sociedade, mesmo diante de um processo de ruptura
política. As mulheres nicaraguenses sabiam disso e fizeram do cotidiano de luta, um
campo de batalha dessas ideias e práticas não condizentes com os/as lutadores/as do povo.
Norita Astorga fue fundadora de la Asociación de Mujeres ante
la Problemática Nacional, y también fue conocida por un golpe
espectacular en 1978, como fue el secuestro y ajusticiamiento del
general Reynaldo “El Perro” Pérez Vega, un 8 de marzo,
coincidentemente, el día Internacional de la Mujer. Pero su principal
ejemplo fue la renuncia a una vida cómoda en pos de asumir sin
vacilaciones las tareas que se le demandaron. (BALTODANO, 2008)

Muito do que se tem disponível para a pesquisa sobre as mulheres na Revolução


Nicaraguense, especialmente no espaço urbano, dão conta de mostrar como elas se
incorporaram a luta, muitas vezes tendo que deixar seus filhos na casa de parentes e
enfrentaram um ambiente hostil, onde os lutadores do povo, capazes de esforços
imagináveis para se alcançar a liberdade proporcionada pela revolução proletária e
socialista, foram os mesmos capazes de cometer grandes injúrias e violências contra suas
companheiras. Era quase uma unanimidade entre os dirigentes, a decisão de que as
mulheres não estariam aptas para ocupar espaços de decisão política, mesmo que elas já
fossem dirigentes. Em que ponto avançamos e aprendemos com esses processos
revolucionários? Que revolução queremos construir?
Letícia Herrera, dirigente da Frente Sandinista de Libertação Nacional, conta, em
suas memórias registrada em livro3, as dificuldades e as conquistas das mulheres, que,
desafiando a posição em que sempre as colocaram, foram fortemente comprometidas com
a revolução. Como dito anteriormente sobre as mulheres das camadas urbanas, se tem
registrado mais a participação das dezenas delas, com seus nomes, um pouco do percurso
de luta e suas princpais frentes de batalha. Já sobre as mulheres do campo, é possível de
encontrar suas princpais ações, formalizadas em organizações, em torno da pauta das
mulheres.
Um dos grandes ensinamentos das mulheres que lutaram na revolução da
Nicarágua foi o da necessidade urgente (ainda o é) da radicalização de nossas práticas

3 Consultar o livro: Guerrilhera, Mujer y Comandante de la Revolución Sandinista. Memorias de


Leticia Herrera
cotidianas. É necessário que o feminismo se infiltre em todos os aspectos da vida em
sociedade, para que um dia as mulheres não sofram violência, nem por parte do sistema,
nem pelos seus companheiros. Muitas vezes, as violências são ressignificadas, mas elas
são as mesmas, sentimos a opressão diariamente, nas ruas e dentro de nossas casas. Uma
lição para nossa prática cotidiana, para a nossa conduta política e para deixarmos claro
que o feminismo é incontornável:
Si el feminismo no crece, si no se amplía, si no se populariza,
no se radicaliza. El feminismo se debe impregnar en la vida social, en la
vida política, mientras nos preguntamos ¿cuál es la forma de democracia
que queremos, representativa, participativa o directa?. Debemos
reconocer todas las formas de lucha cotidiana, las luchas de las mujeres
en las instituciones, en las comunidades, vamos forjando un movimiento
de mujeres con una relación directa con el feminismo. Combatir las
formas tradiciones del sistema y las tradiciones políticas autoritarias.
Buscar la radicalización de la democracia, enfrentar el conflicto y no
negarlo, la democracia política exige una nueva cultura política,
construir la autonomía dentro del movimiento y fuera de él, en cada
espacio que nos presente un desafío. Demandó la movilización y la
conciencia critica, la formación política, la socialización de los saberes,
las experiencias alternativas, el internacionalismo crítico y activo frente
al guerrerismo y los fundamentalismos. (PIZARRO, 2005, p.3)

É necessário constatar como o machismo pode ser extremamente prejudicial até


após a vitória de uma revolução. Muitas mulheres destacaram como, após a conquista do
poder, os homens atuaram com o intuito de acabar com muito das dos trabalhos iniciados
pelas mulheres, ilustrando assim, como se a classe esquece as diferenças de gênero, não as
destruindo, tudo tende a dissolver e perder-se, mesmo dentro de um processo que deveria
ser comemorado.
As mulheres que se organizaram no campo, e também incorporaram as
companheiras da cidade na luta, foram responsáveis por um protagonismo bem
característico. Elas criaram o Comitê de/as Trabalhadores/as do Campo (CTC), que
posteriormente foi transformado na Associação dos/as Trabalhadores/as do Campo. Após
a tomada do poder, essa associação irá impulsionar a Secretaria da Mulher, que dentre
suas conquistas, está a formação e capacitação das mulheres para ocuparem os diversos
postos de trabalho, além dos cuidados em assistência de saúde e higiene.
A participação das mulheres na guerrilha chegou a 1/3 do todo e mesmo com
todas as medidas realizadas para extinguir a diferença de gênero, as militantes relembram
como as dificuldades persistiam. Em 1977, é criada a Associação de Mulheres ante a
Problemática Nacional, sendo transformada depois na Associação de Mulheres
Nicaraguenses Luisa Amanda Espinosa. Na
década de 60 também foram criadas outras organizações: Organização das Mulheres
Democráticas da Nicarágua e a Aliança Patriótica de Mulheres Nicaraguenses.

Cuba

Desde a luta pela independência de Cuba, temos registro da luta das mulheres. O
que não significa apenas a composição numérica da força social, mas a auto-organização,
bandeiras políticas e o direito às armas. No século XIX, ainda sob domínio espanhol,
inicia-se em Cuba um movimento independentista, que lutava contra a escravidão e a
colonização. Mariana Grajales Cuello foi uma das primeiras mulheres que lutou pela
liberdade de seu país. Nascida em Santiago de Cuba, em 1815, teve treze filhos e foi com
a maioria deles embora de sua cidade para juntar-se à luta. Criou os Maceos, para lutarem
pela independência, combatentes de destaque. Seu filho, Antônio Maceo foi o maior
general do Exército Libertador e era reconhecido pelas suas táticas militares. Junto com
seus filhos e netos, Mariana Grajales organizou um lugar de apoio para os combatentes
cubanos, fornecendo comida, remédios, descanso, banho e o que mais precisassem,
Em 1918, as mulheres sufragistas organizaram o “Clube Feminino de Cuba”,
essa organização fundou escolas noturnas para as trabalhadoras e a primeira escola para
meninas no país, a partir da independência cubana, o movimento de mulheres se
desenvolve, acompanhando a onda feminista no ocidente. Em 1921 criam a Federação
Nacional de Associações Femininas de Cuba, que reunia o Clube Feminino de Cuba, o
Congresso Nacional de Mães, a Associação das Católicas Cubanas, a Associação Nacional
de Enfermeiras e o Comitê da Creche Havana Nova. Em 1923 acontece o Primeiro
Congresso de Mulheres é realizado em 1923, pela Federação, pautando o direito ao
sufrágio, igualdade de direitos e deveres sociais, políticos e econômicos, combate às
drogas e à prostituição, leis protetoras das crianças e modificação do ensino médio. Em
1934 conquistam o direito ao voto universal.
Em 1952, com um golpe, Fulgencio Batista chega ao poder, instaurando uma
ditadura imperialista. Nesse período surgem em Cuba dezenas de organizações de
mulheres de caráter político-social e assistencial, juntamente com outras organizações,
armadas, majoritariamente masculinas, que lutavam contra a ditadura.
Dentre as organizações femininas, uma de maior destaque foi a Frente Nacional
de Mulheres Martianas (FCMM). O grupo revolucionário se organizou meses depois do
golpe com o objetivo de pôr fim da ditadura mediante a revolução armada e a instalação
do poder popular e se
estender por quase todo o país, agindo muito próximo ao Movimento 26 de Julho. As
mulheres já haviam organizado anteriormente a Frente Cívico de Mulheres Cubanas e o
Frente Cívico de Mulheres Martianas.
Não foram muitas as mulheres que participaram da luta armada desde seu início.
Entre elas, está Haydée Santamaría Cuadrado (1922-1980) que participou ativamente do
assalto ao quartel Moncada, em 1953. Muitos combatentes foram capturados pelo exército
de Batista, como Fidel, Haydée e seu irmão e marido, que foram torturados e
assassinados. No discurso “A história me absolverá”, Fidel relembra:
Com um olho humano ensanguentado em mãos, apresentaram-
se um sargento e vários homens no calabouço onde se encontravam as
companheiras Melba Hernández e Haydée Santamaría e, dirigindo-se à
última, mostrando-lhe o olho, lhe disseram: "Este é de seu irmão, se
você não diz o que ele não quis dizer, vamos arrancar-lhe o outro." Ela,
que amava a seu valente irmão acima de todas as coisas, lhes respondeu
cheia de dignidade: "Se vocês lhe arrancaram um olho e ele não lhes
disse, muito menos o direi eu." Mais tarde voltaram e as queimaram nos
braços com cigarros acesos, até que, por fim, cheios de desespero, lhe
disseram novamente à jovem Haydée Santamaría: "Já não tens seu
companheiro, porque o matamos também." E ela respondeu-lhes,
imperturbável, outra vez: "Ele não está morto, porque morrer pela pátria
é viver4.

Em 1954, sai da prisão e começa a articular o movimento revolucionário, com o


pseudônimo de Maria. Outra revolucionária de destaque foi Célia Sanchéz, com o
codinome de Norma ou Aly, fundadora e dirigente do Movimento 26 de Julho, participou
do Partido do Povo Cubano junto a Fidel quando jovem. Célia não participou do assalto
ao quartel, mas, logo após, começou a organizar campanhas financeiras para ajudar os
prisioneiros e as famílias. Além disso, juntamente a Frank País, articulou uma rede de
apoio à guerrilha, através da qual foi possível que os doze homens sobreviventes do
Granma formassem em pouco tempo um forte Exército Rebelde. Em 1957, foi para Sierra
Maestra, sendo a primeira mulher a participar do Exército Rebelde. Em 1958, forma junto
com outras revolucionárias de destaque, como Haydée e Melba Hernandéz, o Pelotão
Mariana Grajales, exclusivamente feminino. Como é possível observar, a auto-
organização das mulheres em Cuba é parte da história da ilha que resiste.

4 Essas informações constam nos testemunhos do comandante Francisco Arno, que lutou ao lado de
Mariana Grajales.
Ainda é necessário citar Vilma Espín que ingressou à luta no Movimento 26 de
Julho. Estudando nos EUA, quando regressava, por ordem do movimento, fez uma escala
no México, onde conheceu Raul e Fidel. Quando volta para Cuba, é nomeada
coordenadora do Movimento 26 de Julho da província do Oriente, com o pseudônimo de
Mônica.
A revolução triunfa em 01 janeiro de 1959, sendo importante o papel das
organizações revolucionárias e estudantis, que foram e são essenciais para a formação da
unidade do povo cubano. Vilma Espín funda em agosto de 1960 a Federação de Mulheres
Cubanas (FMC), unificando todas as organizações femininas que lutaram pela revolução.
A FMC hoje (2015), compõe a Marcha Mundial das Mulheres, teve e tem papel
importante na construção do feminismo em Cuba. Após sua criação, ela foi decisiva no
acompanhamento junto ao Ministério da Educação, para o acompanhamento dos livros
didáticos e conteúdo que seria ensinado às crianças. Também foi fundamental na abertura
de mais espaços de estudos para as mulheres, favorecendo sua maior entrada no mercado
de trabalho. A educação, oriunda do período anterior, era fortemente marcada pela base
patriarcal e a inserção das mulheres no mundo do laboral era limitada por valores morais
e religiosos. Outro acompanhamento político foi o da comunicação e propaganda.
Como aprendizado, a histórica auto-organização das mulheres cubanas nos
mostra que a revolução não traz o fim do machismo. A não vacilação perante a
erradicação do patriarcado é urgente e não se espera pela pós-revolução para se andar os
primeiros com o objetivo de superá-lo.
O que foi verificado após a revolução, que pontuamos a crítica e, portanto,
aprendemos com algumas limitações, é que se o cuidado com as crianças é estatitzado,
por exemplo, (importante luta de creches de toda a classe trabalhadora) não
necessariamente a responsabilidade deve ser dada a outras mulheres. Tal lógica ocorreu na
URSS, ao se construir creches e restaurantes coletivos, coube as mulheres se ocuparem
desses postos, historicamente desempenhados por nós. E aos homens, caberá sempre os
espaços de direção? E a igualdade?
A revolução, em especial, a histórica auto-organização, levou as mulheres à
ocupação de postos de trabalho e espaços políticos determinantes, mas ao passo que isso
foi conquistado, os homens, companheiros de vida e de luta, aumentaram a cobrança
sobre elas, acusando por vezes, do abandono da família e da casa. A exigência da comida
feita, dos filhos cuidados, com frequência é exposta pelas mulheres cubanas que se
organizam tanto na FMC como no PCC. Sobre esses dois, cabe lembrar a vinculação
estreita que ambos mantém, não deveria ser ao contrário.
A auto-organização ainda não conseguiu sanar os problemas gerados e recriados
diariamente pelo patriarcado. Ora, ele é tão antigo quanto o sistema capitalista, no
entanto, em uma sociedade que é permeada pela busca da igualdade, seria incoerente sua
permanência. Mais de 50%
das mulheres cubanas se organizam na FMC, organização que tem reconhecimento a nível
mundial. As dificuldades pelas quais se passa no combate ao patriarcado fazem parte do
processo de transição socialista: é preciso que alteremos a base material da exploração das
mulheres, a divisão sexual do trabalho, e esse processo não está separado do restante das
tarefas exigidas para a superação da sociedade de classes.
As mulheres continuam em luta. Esse sim, é um dos grandes desafios ainda da
revolução, a igualdade também é revolucionária!

c. O feminismo nas ditaduras e redemocratizações


A segunda onda do movimento feminista na América Latina deu-se,

principalmente, no processo de luta contra as ditaduras militares do continente 5 e,


portanto, integrou-se à luta pela redemocratização, estabelecendo relações com outros
movimentos sociais. A conjuntura de enfrentamento às ditaduras constitui a coluna
vertebral da luta feminista em nosso continente, que vai se conformar especificamente no
Brasil, com grande influência do pensamento socialista prevalecendo a idéia de que as
opressões de gênero e classe estão interrelacionadas.
No geral, no Brasil, principalmente durante os anos 70, as feministas atuavam em
movimentos auto-organizados de mulheres, e/ou movimentos de luta pela terra, luta por
moradia, além dos partidos, sindicatos, organizações clandestinas, luta armada,
conciliando a atuação em diferentes organizações, que comumente tinham caráter e
organicidades diferentes. A construção dos movimentos auto-organizados de mulheres
pendia para uma articulação entre mulheres militantes de partidos, movimentos, grupos e
coletivos diferentes, na tentativa de unidade em torno da ação concreta de luta das
mulheres. Reúnem-se na mesma frente mulheres orientadas por estratégias diferentes, mas
que em âmbito tático atuam em unidade. Nem tudo eram flores nessa pretensa unidade: as
feministas autônomas identificavam as militantes dos partidos como “políticas”,
5 As ditaduras Peru (1968 e 1992), Bolívia (1964; 1971; 1980), Argentina (1966 e 1972), Chile (1973),
Uruguai (1973), Brasil (1964)
afirmando que não eram “feministas de fato”, além das divergências teóricas. A exemplo,
alguns grupos afirmavam o cultural como determinante enfatizando a necessária
“mudança de mentalidade”, “a consciência feminista”: eram os chamados grupos de
reflexão que no mais tardar vão desaguar numa atuação em âmbito legislativo, o que
divergia substancialmente das socialistas. Elas, por sua vez, enfrentavam nos partidos a
concepção de que a luta feminista era “coisa da classe média”, “pequeno-burguesa”, suas
bandeiras democrático-burguesas e, por vezes, a compressão da necessidade de organizar
as mulheres “somente” por serem quantitativamente importantes, mas sem incorporar as
bandeiras políticas feministas. A famosa afirmação “Sem mulheres não tem revolução” é
óbvia, são mais da metade do povo, mas as feministas apontavam que era preciso que nos
programas fossem incorporadas as lutas tidas como específicas das mulheres. As mulheres
socialistas apontavam para esquerda que a luta feminista era luta de todo o povo e
precisava ser dirigida para o horizonte de ruptura com o capitalismo e que o trabalho
assalariado não havia superado as contradições do patriarcado, pelo contrário, o
capitalismo o incorpora como parte constitutiva do seu funcionamento.
A polarização ideológica e organizativa entre capitalismo e socialismo que
dividiu o mundo também se expressava nas políticas para as mulheres. Além disso, a
existência de grupos autônomos já citados, com forte crítica à política sexista dos partidos
de esquerda e sindicatos, quando fóruns do movimento de mulheres, acusavam as
militantes dos partidos de serem dirigidas por uma política não feminista quando
abandonavam bandeiras políticas das mulheres nas suas organizações em nome de uma
pretensa luta geral. Entre trancos e barrancos, no esforço da unidade na ação, foram
possíveis algumas importantes conquistas no Brasil. O direito ao divórcio, que é de 1977,

momento histórico em que a mulher deixa de ser ao menos em lei propriedade do marido 6.

Em 19617 com a chegada dos anticoncepcionais no Brasil, quando se pode começar a


separar transar com homens e querer ser mãe, a dimensão do exercer da sexualidade sem
a obrigação da maternidade. Ambas as lutas estão diretamente relacionadas ao

6 Mesmo que até hoje, 2015, a mulher afirmar que não é propriedade do homem leva à morte. Isso se
evidencia no dado de que mais de 80% do feminicídio no Brasil é cometido pelos cônjugues, destacando
que a cada 2 horas uma mulher é morta no país.

7 Interessante observar que o laboratório responsável pelo desenvolvimento da primeira pílula


anticoncepcional a ser lançada no mercado brasileiro e europeu( Anovlar®), a Bayer Schering Pharma, está
presente no Brasil desde 1923.
enfrentamento do controle da sexualidade, corpo e vida das mulheres. Direitos possíveis
nos marcos da democracia burguesa, mas que por conta da nossa burguesia interna
conservadora e atrasada foram conquistados há pouquíssimo tempo.
A 2ª onda do feminismo será marcada por um movimento que, a partir do
questionamento tanto das relações sociais da produção material, quanto das relações
efetivas e sexuais entre os seres humanos, propõe-se a lutar por mudanças históricas.
Buscando uma transformação mais profunda na sociedade, o feminismo tem que travar
uma luta ideológica contra os valores patriarcais representados diretamente pelos pais,
pelos maridos, companheiros, amigos, colegas de trabalho etc. Para as mulheres, esse
feminismo significa também um processo de reeducação, ruptura com uma história de
submissão e descobrimento das próprias potencialidades.
Havia, por exemplo, os Clubes de Mães que levantavam a bandeira política da
socialização do trabalho doméstico e de cuidados, organizaram mulheres trabalhadoras,
pobres e negras nas periferias das grandes cidades. Esses movimentos eram muito ligados
à Igreja. Esses Clubes organizaram mulheres em torno do combate ao alto custo de vida,
que viria a resultar no Movimento do Custo de vida, futuro Movimento contra a Carestia.
Ressalta-se, aqui, a publicação da Carta das Mães de Periferia de São Paulo, denunciando
a alta dos preços dos alimentos e a impossibilidade de dar conta dos gastos familiares. É
nos anos 70 também que se cria o Movimento de Luta pelas Creches. Em seu manifesto,
as mulheres denunciavam a divisão sexual do trabalho e a invisbilização e desvalorização
do trabalho doméstico:
Somos trabalhadoras um pouco diferentes (…) somos
diferentes, em primeiro lugar, porque não nos reconhecem como
trabalhadoras quando trabalhamos em casa 24 horas por dia para criar
condições para todos descansarem e trabalharem. Não reconhecem, mas
nosso trabalho dá mais lucro que vai direto para o bolso do patrão.
Somos diferentes porque, quando trabalhamos também fora,
acumulamos os dois serviços – em casa e na fábrica. E sempre nos
pagam menos pelo trabalho que fazemos. Trabalhamos mais e ganhamos
menos (…) A mulher é que mais sente o problema. Isto todo mundo vê.
Se bem que os filhos, como não são só filhos da mãe, interessam a toda
a sociedade. A sociedade é que deve criar condições para que esses
trabalhadores de amanhã possam se desenvolver em boas condições de
saúde e de formação (…) Creches são nosso direito 8.

Por outro lado, há uma grande invisibilização das mulheres quando falamos das
organizações de esquerda que não auto-organizadas, ainda que esses movimentos sejam

8 http://blogueirasfeministas.com/2013/03/mulheres-e-a-reconstrucao-da-democracia/
compostos majoritariamente por mulheres (ocupações de terrenos urbanos, movimentos
de saúde, transporte etc). A análise da participação das mulheres na política acaba se
restringindo a movimentos que discutiam diretamente “questões femininas”, ou ligadas à
reprodução. Ou, ainda, acaba por afirmar que as mulheres participavam da política por
conta de seus maridos, pais ou irmãos. Não se discute nem se problematiza o lugar das
mulheres na esfera política (LOBO, 1991).
Se a participação das mulheres não é reconhecida em espaços majoritariamente
femininos, que se dirá de espaços com uma maioria masculina (ou tidos dessa maneira),
ou o movimento sindical e a luta armada. Sobre essa última, algumas pesquisas de
estudiosos marxistas afirmam que a luta armada é aspecto fundamental na constituição do
feminismo brasileiro na 2ª onda. Um fenômeno interessante é que nas organizações
guerrilheiras o número de mulheres militantes ultrapassava em muito o número de
mulheres que participavam dos Partidos tradicionais de esquerda em décadas anteriores.
Nos grupos de guerrilha urbana do Brasil, Marcelo Ridenti calcula em torno de 18% de
mulheres, e sabemos que possivelmente eram mais, já que o percentual é calculado com
base nos processos movidos contra os militantes pela justiça.
Em inúmeras organizações armadas as mulheres enfrentaram a disputa política
pelo direito às armas, trazendo à tona o debate central do poder militar e o feminismo.
Elizabeth Lobo afirma que o enfrentamento ao conservadorismo foi (e é) incessante por
parte das militantes, conservadorismo esse que acaba mobilizando as mulheres sempre em
torno de valores domésticos, também perpetuados pela esquerda brasileira, quando a
mulher aparece como a guardiã dos valores pacíficos e numa posição defensiva.
Enfrentando, como ela diz, o papel de “apoio” nas lutas políticas, e não de legítimos
sujeitos políticos.
A luta armada quando leva ao centro a luta pelo poder coloca em questão
também a luta das mulheres pelo poder. E essa é a questão central, porque se “não se faz
revolução sem um fula na mãe sem justiça não há paz só escravidão” (Racionais MC) e
às mulheres foi (e é) negado o direito às armas nas organizações de luta armada. É preciso
rever essa concepção de poder e o próprio programa político. Não basta afirmar a
presença das mulheres na luta armada, é preciso compreender que essa presença se deu
com tensões e disputas por dentro das organizações que, mesmo sustentando ideais
revolucionários, não compreendiam a superação da divisão sexual do trabalho e a luta
pelo fim da violência contra as mulheres como bandeiras políticas classistas. Ao exigir
lutar em armas, as mulheres expressaram de forma organizada que os homens precisavam
reformular sua concepção de poder e revolução. Beth Lobo vai dizer que “a resistência ao
regime autoritário, a busca de uma nova utopia, a experiência do exílio, as práticas
políticas no masculino e a divisão entre vida privada e vida política” foram o bojo do
movimento/experiência de luta armada em que o feminismo construiu diálogo e prática
com o que haviam sido as esquerdas nos anos 60/70.
Em 1975, na I Conferência Internacional da Mulher, no México, a Organização
das Nações Unidas (ONU) declarou os próximos dez anos como a década da mulher. No
Brasil, aconteceu, naquele ano, uma semana de debates sob o título “O papel e o
comportamento da mulher na realidade brasileira”, com o patrocínio do Centro de
Informações da ONU. Era a ação direta do imperialismo no movimento de mulheres
latino-americano em meio à luta pela redemocratização em vários países do continente, e
de processos revolucionários em ascensão na Nicarágua e El Salvador. A classe dominante
não perdeu tempo: era necessário minar a organização das mulheres que articulavam a
luta feminista e classista.

4 .A década de 90

Os anos 90 foram anos de dificuldades para as organizações políticas de


esquerda. O fim da União Soviética, e as derrotas das experiências de transição socialista
no abalo do imaginário da transformação social somente “são comparáveis com os
impactos que a própria Revolução Russa causou no sentido de colocar a revolução como
uma possibilidade concreta para milhões em todo o mundo”. (GEBRIM, 2011) A década
“perdida” teve como marco a ação ofensiva da burguesia imperialista, e o
aprofundamento da crise ideológica, organizativa e de programa da esquerda. Essa crise
vai transformar a tática eleitoral no auge da estratégia hegemônica, expressa na meta
síntese Lula lá. Do discurso e mobilizações, o destaque passa a ser o marketing político, o
imediatismo substitui o acúmulo de forças, a perspectiva de ruptura com o Estado burguês
é substituída pela ação em favor da gestão do Estado.
Com fortes ataques à classe trabalhadora, foram anos de difícil de mobilização. O
avanço do neoliberalismo sobre a organização dos movimentos populares não deixou de
alcançar o feminismo. No final dos anos 80, há um processo de fragmentação do
movimento feminista, que resulta, em grande parte, nos grupos posteriormente conhecidos
como as ONGs. Esses grupos passaram a atuar por dentro do Estado, assessorando
governos com capacitação de profissionais.
Esse processo se acentua com a entrada do PMDB em vários governos estaduais,
estruturando os Conselhos da Condição Feminina ou dos Direitos das Mulheres - o
primeiro foi criado em São Paulo, em 1983. Em 86 cria-se o Conselho Nacional dos
Direitos da Mulher (CNDM). Esses conselhos marcaram um período de disputa dentro do
movimento feminista, que se divide entre as que priorizariam a luta institucional, e as
mais críticas ao neoliberalismo e ao próprio Estado. Pode-se trazer como exemplo a luta
feminista durante o processo constituinte, principalmente em torno da pauta da
legalização do aborto. Com a fragmentação do movimento, o CNDM acaba sendo o
articulador do movimento durante esse processo, e a resistência ao pré- projeto de
Constituição (que colocava o direito à vida desde a concepção) se deu via Conselhos,
muito mais através de um lobby institucional do que por uma luta envolvendo grandes
movimentos. A luta em torno da pauta do aborto até hoje é levada dessa maneira, mais por
articulações por dentro das instituições, normalmente encabeçadas por ONGs, do que por
um processo de massificação da pauta no país.
O processo de globalização neoliberal dos anos 90 acentua essa atuação e divisão
do movimento feminista. Há um deslocamento do debate em torno de mudanças
estruturais para um em torno da normatização dos direitos, cujo maior horizonte era a
realização de políticas públicas - posição no mínimo contraditória, já que estamos falando
de governos neoliberais, ou seja, de redução de políticas sociais. Nesse sentido, tornou-se
hegemônica na América Latina a posição do “feminismo institucionalizado”. Esse setor
colocava como definidores da plataforma do movimento os espaços da ONU, que seriam
espaços prioritários de intervenção e articulação. Prevalece a avaliação, ainda, de que,
nesses lugares, as mulheres teriam conseguido importantes conquistas, e que agora o
papel do movimento feminista seria garantir e monitorar as políticas públicas feitas com
base nas plataformas da ONU (as “políticas com enfoque de gênero”). É nesse momento
que se reforça a atuação das ONGs como “parceiras do Estado”. Elas seriam as
responsáveis por ministrar cursos de capacitação profissional para funcionários do
governo, ou mesmo realizar cursos para as “mulheres em situação de risco”, isto é,
pobres. Algumas ONGs chamadas “híbridas” (ALVAREZ) tentam, minimamente, realizar
um trabalho de acompanhamento de comunidades, mais próximo do que seria uma
atuação de um movimento (por isso “híbridas”), porém, essas próprias organizações ou
mudam seu discurso e sua prática para conseguir financiamentos de instituições
internacionais, ou são deixadas de lado pelos governos para dar lugar a ONGS de
“feminismo profissionalizado” (ALVAREZ):

Minhas entrevistas no Chile, em particular, sugerem que,


apesar da nomenclatura parecida, os efeitos políticos da capacitação com
perspectiva de gênero podem variar bastante. As integrantes de uma
pequena ONG que trabalha com grupos de mulheres populares
afirmaram que seus programas se diferenciam marcadamente de aqueles
oferecidos pela Prodemu (Fundação para a Promoção e
Desenvolvimento da Mulher), uma fundação para-estatal criada em 1990
pelos setores democratas-cristãos da coalizão governista. Quando
perguntei como exatamente suas próprias capacitações e oficinas para as
mulheres se diferenciavam das da Prodemu, me enfatizaram que
“quando é solicitado por um grupo local de mulheres”, a Prodemu
simplesmente responde à demanda “oferecendo apoio individual e
pontual” por um determinado período de tempo, enquanto “nós estamos
sempre aqui, respondendo às necessidades e acompanhando as lutas
coletivas dessas mulheres, ajudando-nas a se organizar de maneira
autônoma”
(...)
As líderes de uma organização de mulheres em um dos
povoados que visitei em Santiago insistiram que “aos integrantes da
Prodemu não lhes interessa a organização e muito menos a mobilização
das mulheres, só lhes interessam os cursos” (ALVAREZ, p.11, s/d.
tradução livre)

Essas políticas representam duas questões: 1) a diminuição do Estado na criação


de políticas públicas, havendo a contratação de ONGs para que possam fazer seu trabalho;
2) a política de contratação de ONGs como uma forma de combater a organização coletiva
das mulheres. Trabalhar com mulheres tornou-se, além de um negócio muito lucrativo e
“moderno”, uma forma de conter sua organização e mobilização. O discurso era o de que
era necessário ser propositivo e trabalhar em parceria - e não questionar o modelo
econômico vigente. A tarefa do movimento feminista seria, em tese, a de garantir e
monitorar as políticas públicas elaboradas nas plataformas da ONU. Constatava-se, por
exemplo, que as mulheres haviam conseguido direitos no papel, mas que não se
traduziram na vida concreta. Porém, o debate sobre essa problemática girava em torno do
discurso sobre a necessidade de intervir para que esses direitos fossem concretizados, e
não em torno de um questionamento do próprio modelo neoliberal, este sim impedidor da
plena realização dos direitos das mulheres.
Havia - e ainda há -, portanto, uma disputa entre as feministas e a burguesia no
que concerne à organização das mulheres. Essa disputa passa desapercebida por boa parte
da esquerda organizada quando afirma que a luta feminista é algo liberal e pequeno-
burguês. A burguesia cria mecanismos organizativos para as mulheres, não somente as
burguesas, mas também e principalmente as trabalhadoras - atitude que as direções das
organizações de esquerda, no auge de sua ortodoxia, se negavam a tomar.

5. Década de 2000: a re-conformação do campo político do Feminismo


Popular no Brasil

No final da década de 90 e início dos anos 2000, abre-se um novo leque de


oportunidades para a esquerda na América Latina. Foram grandes os efeitos do
neoliberalismo para os povos latinoamericanos. Aumento do desemprego, da miséria,
poucas ou nenhuma políticas sociais, e muita repressão às mobilizações. Nesse cenário, os
setores populares buscam se reorganizar, reagindo à política neoliberal.
Como exemplos dessa reação, temos a mobilização do Exército Zapatista de
Libertação Nacional (ELZN) durante a celebração do acordo do NAFTA, no México, em
janeiro de 1994, com a publicação da “Primeira Declaração da Selva Lacandona”; em
1997, centrais sindicais de várias partes do continente americano (entre elas, a CUT) se
reúnem para a construção de uma articulação continental contra o neoliberalismo e a
ALCA (o III Fórum Sindical). Surge, então, a Aliança Social Continental (ASC), que
construirá a I Cúpula dos Povos, no México. É importante ressaltar, que a conformação da
Consulta Popular, em 1997 é determinante para a unidade da luta anti- imperialista no
Brasil, expressa no plebiscito contra a ALCA.
No mesmo ano, Hugo Chávez Frias vence as eleições presidenciais na Venezuela,
pautando-se principalmente no combate ao neoliberalismo e à ALCA. Temos, ainda, as
grandes mobilizações em Seattle, nos Estados Unidos, durante a Cúpula da Organização
Mundial do Comércio.
Em 2001, ocorre, em Porto Alegre, o primeiro Fórum Social Mundial “Um Outro
Mundo é Possível”. Diversas organizações e movimentos sociais realizam uma aliança
internacional contra o neoliberalismo, firmando a Declaração dos Movimentos Sociais. A
partir daí, inicia-se uma grande articulação de resistência ao neoliberalismo:

Esse campo político articulado no Fórum Social Mundial inicia


articulações regionais. Na América, se inicia um processo de unidade
contra a implementação da ALCA, com reuniões em Quebec (Canadá),
Florianópolis (Brasil) e Havana (Cuba) durante o mesmo ano de 2001.
Em 2002, no II Fórum Social Mundial, novamente sediado em Porto
Alegre, é lançada a Campanha Continental de Luta Contra a ALCA,
celebrada com uma marcha de 60 mil pessoas na capital gaúcha
(JAKOBSEN, 2002). É importante salientarmos que a formação
deste campo político alça os movimentos sociais mais organizados à
vanguarda do processo de lutas. O lugar antes ocupado pelos partidos
comunistas tradicionais (no pós- Revolução Russa), pelos movimentos
guerrilheiros de libertação nacional (inspirados pela Revolução Cubana
de 1959) e pelas organizações sindicais e partidárias (reorganizadas a
partir da luta pela redemocratização), agora cabia aos movimentos
sociais de massas organizadas. É a partir desses movimentos que a
Campanha Continental Contra a ALCA é impulsionada, abrindo um
novo ciclo da esquerda latinoamericana (BOCCA, 2013, p.56)

O movimento feminista não ficou de fora dessa conjuntura de reorganização da


esquerda. Esse novo momento na América Latina, com a crise do modelo neoliberal, junto
ao esgotamento da agenda vinculada às Conferências da ONU, levaram a novas reflexões
e ao reposicionamento de vários grupos e organizações, incluindo as organizações
feministas. Em 1997, mesmo ano do III Fórum Sindical, temos a fundação da Rede
Latino-americana Mulheres Transformando a Economia (REMTE):

Um dos grandes méritos da REMTE foi escolher o tema do


trabalho das mulheres, dando-lhe uma perspectiva política que
considerava a articulação entre produção e reprodução. Nessa
perspectiva, a primeira investigação coletiva da Rede, organizada em
seis países, já demonstrava o sentido de sua posição poítica ao escolher
como tema as condições de trabalho das mulheres, no auge do
neoliberalismo na região, onde predominava a visão de que não era
possível pensar em emprego para todos(as) e a maioria das propostas se
concentrava em políticas focais, lançando sobre as(os) trabalhadoras (es)
a responsabilidade por sua condição de desemprego. Essa posição da
REMTE foi particularmente importante, pois, nesse momento, setores
do movimento de mulheres argumentavam que a globalização ampliava
o emprego para as mulheres. O estudo da Rede demonstrou quais eram
as condições de emprego para as mulheres que ingressavam no mercado
de trabalho: justamente os precários e sem direitos. Outra ação dessa
organização foi seu engajamento em campanhas que abordavam os
temas macroeconômicos em uma perspectiva de questionamento do
neoliberalismo, inicialmente contra o pagamento da dívida externa e
posteriormente contra a formação da Alca (Área de Livre Comércio das
Américas). (FARIA, 2005, p.30)

Para além disso, as mulheres atuaram, de forma organizada, dentro da Aliança


Social Continental (ASC) desde o seu início. Em um primeiro momento, o fizeram em um
grupo temático, depois, foi se estabelecendo uma grande articulação de mulheres - com a
participação do que já seria a Marcha Mundial das Mulheres, junto com a REMTE -,
criando um coletivo de mulheres da Aliança.
Em 1995, cerca de 900 mulheres realizam uma marcha de 200 quilômetros, no
Quebec (Canadá), exigindo “Pão e Rosas”, colocando-se contra as políticas de austeridade
neoliberais. Ao final dessa ação, conquistam-se direitos como aumento do salário e mais
direitos para as mulheres imigrantes. A partir daí, as mulheres do Quebec entraram em
contato com organizações de outros países, a fim de realizar uma campanha global. No
Brasil, as primeiras a serem contatadas foram as mulheres da CUT. Em 1998, é realizado
o I Encontro Internacional da MMM, com a participação de 145 mulheres de 65 países.
Foi elaborado um documento com 17 pontos de reivindicação, e convocada a Marcha
Mundial das Mulheres, como uma grande campanha para o ano de 2000: “2000 razões
para marchar contra a pobreza e a violência sexista”:

A convocatória para a campanha realizada no ano 2000 teve


largo alcance e deu origem à construção da MMM como um movimento
internacional. A ação mobilizou milhares de grupos de mulheres em
mais de 150 países e territórios, em atividades de educação popular e
manifestações públicas de apoio às 17 reivindicações mundiais.
No Brasil, entre 8 de março e 17 de outubro, foram realizadas
atividades em todos os estados. O grande momento nacional desta ação
foi a realização da Marcha das Margaridas, proposta pelas mulheres da
Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag). O
nome dessa marcha, uma referência a Margarida Alves, tornou visível a
trajetória de lutas das mulheres rurais que, desde os anos 1980, atuam de
forma organizada no Brasil.
As mobilizações culminaram em 17 de outubro, dia de luta
pela erradicação da pobreza, com marchas simultâneas em 40 países, e
atos em frente à sede do Banco Mundial e do Fundo Monetário
Internacional, em Washington, nos EUA. As mulheres denunciaram os
efeitos devastadores do neoliberalismo em seus países e em suas vidas.
Em um ato simbólico em frente à sede da ONU, em Nova York, foram
apresentadas mais de 5 milhões de assinaturas recolhidas em apoio às
demandas da Marcha. Logo após esse ato público, as delegadas de
diferentes países se reuniram no II Encontro Internacional da MMM, e
ali decidiram que era necessário continuar o movimento. (cartilha
“Seguiremos em marcha até que todas sejamos livres”, 2014, p.2)

Nesse sentido, ainda que tenhamos forçado uma separação entre “movimento
geral” e “movimento de mulheres”, pode-se perceber que o movimento feminista não está
apartado daquilo que é a “conjuntura geral”: a reorganização das mulheres em nível
internacional se dá juntamente com a reorganização dos outros movimentos - a campanha
da MMM, contra a pobreza e a violência sexista, ocorre em 2000, justamente um ano
antes do I Fórum Social Mundial, do qual participará ativamente. As mobilizações das
mulheres se inserem nos mesmos contextos das outras.
A Marcha participou do Fórum Social Mundial desde seu surgimento, também
participou ativamente do Plebiscito Popular Contra a Alca. Essas mobilizações foram
cruciais para a conformação de um campo político feminista anticapitalista e anti-
imperialista e a consolidação da MMM enquanto um movimento contínuo, mais do que
uma articulação. O Plebiscito Contra a Alca, em específico, serviu para o fortalecimento
da MMM no Brasil - não à toa, hoje a MMM brasileira é um exemplo de mobilização de
massas para os outros países em que ela está organizada.
Esse processo de recomposição do campo político do feminismo popular não se
dá somente a partir da ação da MMM. Podemos citar mais uma vez a própria REMTE, e
as mulheres da Via Campesina, com quem a MMM têm aliança prioritária. Esse campo se
torna uma alternativa ao feminismo institucionalizado, propondo uma mudança de agenda
para o movimento. A mobilização realizada no ano 2000, por exemplo, ocorre no meio do
processo de Pequim +5, a avaliação da IV Conferência da Mulher da ONU, fazendo
abertamente uma crítica ao sistema capitalista como um todo, e não somente ao seu
caráter neoliberal. Em 2005, realiza-se a II Ação Internacional da MMM, com a
elaboração da Carta Mundial das Mulheres para a Humanidade. No Brasil, o 8 de março,
marco de início da ação, contou com a participação de 30 mil mulheres na Avenida
Paulista. Esse campo político do feminismo retoma as mobilizações de rua como ação
prioritária para o movimento.
Ainda nesse mesmo período, em 2004, temos o surgimento do Movimento de
Mulheres Camponesas, na construção do feminismo popular camponês. Como afirmamos,
as mulheres camponesas se organizam há tempos (Ligas Camponesas, Sindicatos rurais,
Movimentos de luta pela terra), mas com pouco reconhecimento. Em 1995, cria-se a
Articulação Nacional de Mulheres Trabalhadoras Rurais, reunindo mulheres do MST, da
Comissão Pastoral da Terra, Pastoral da Juventude Rural, MAB, MPA e sindicatos de
trabalhadores rurais. A articulação se pautava principalmente pelo reconhecimento e
valorização das trabalhadoras rurais, sindicalização, documentação etc. Em 2003, após
inúmeras atividades para a realização do Curso Nacional de Formação da articulação,
fincam-se as bases do Movimento de Mulheres Camponesas.
É importante afirmar que, ainda que se tenha reorganizado o campo político do
feminismo popular, isso não significa que não haja disputa. Ainda, grande parte do
movimento feminista se orienta por agendas reformistas, mesmo com grandes
movimentos de esquerda sendo referência para o movimento organizado de mulheres.
Durante o plebiscito da ALCA, por exemplo, um setor do movimento feminista optou por
tentar incluir a “questão de gênero” nas negociações, para “amenizar” os impactos
negativos do tratado sobre as mulheres. O campo político da MMM manteve-se firme na
posição de que não havia o que disputar. Essa discussão ainda existe hoje: as feministas
lutarão por pequenas reformas de “redução de danos”, para “amenizar” os impactos do
capitalismo sobre as mulheres, ou colocarão na pauta do dia o combate radical ao
capitalismo e a tomada do poder?
Em 2006, na madrugada do dia 08 de março, 1.600 Mulheres da Via realizaram
uma ação no monocultivo de eucalipto no Rio Grande do Sul que marca essa
reconformação no Brasil. A ação teve abrangência de massas, e não somente ampliou o
debate sobre os malefícios sociais, ambientais e econômicos sobre esse tipo de cultura,
mas também colocou em evidência a ação anticapitalista sob o comando das mulheres. Na
Via Campesina, as mulheres entravam em um período de ascensão, no qual participavam
mais intensamente dos debates e da luta feminista: “Essa ação nos projetou enquanto
referência política da luta de classe. Nós temos que responder a altura e isso ultrapassa as
pautas dos movimentos”, explica Ana Hanauer, do MST. O protagonismo das mulheres na
ação também é destacado pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). De
acordo com Patrícia Prezotto, “Foi um momento histórico para as mulheres. Elas
começam a não aceitar o que o capital impõe. ” A luta do 8 de março de 2006 questionou
a opção de parte da esquerda de apostar no processo eleitoral para fazer mudanças
estruturais na sociedade em favor dos trabalhadores. “Aquela ação mostrou que as
mulheres pobres que se movimentavam ali não se sentiam incluídas neste poder, na
medida em que denunciavam que o governo Lula liberou os transgênicos e flexibilizou as
leis ambientais.” O feminismo popular se conforma e reconforma a partir das bandeiras
políticas que colocam o poder político como central.

Sem feminismo não há


socialismo, Sem socialismo
não há feminismo! Pátria
livre, venceremos!
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