Академический Документы
Профессиональный Документы
Культура Документы
por Letícia Carvalho (PB), Maíra Guedes (BA) e Maria Júlia Montero (SP), militantes da
Marcha Mundial das Mulheres
1. Introdução
Levamos nossa luta, não como uma batalha entre sexos, mas como
uma batalha contra o poder político da classe proprietária, mas como uma
batalha cuja importância se funda antes de mais nada, no fato de que leva à
massa do proletariado o conhecimentos de sua missão histórica e de seu
poder social (...) (Clara Zetkin, trecho do discurso pronunciado na
Conferência de Mulheres Socialistas em 1906)
Contar a história do feminismo popular é contar a história da luta das mulheres pelo poder.
Nesse texto, nos debruçamos sobre a atuação das feministas nos momentos que aprendemos serem
os elos mais avançados. É a partir dessa compreensão que delimitamos qual o feminismo que
orienta as nossas ações e qual seu leito histórico. Esse texto não pretende, portanto, ser um explanar
de correntes teóricas do feminismo e suas diversas expressões na história. Pode ser que muitas/os
sintam falta de outras experiências (feminismo radical, da igualdade, diferença, negro, anarquista,
lesbianidade política e etc…), mas aqui pretendemos abordar as chamadas primeira e segunda ondas
do feminismo1 sem tratar o todo de sua constituição e divergências ao redor do mundo. Trazemos,
portanto, um recorte específico, que diz respeito à luta das mulheres trabalhadoras - normalmente
deixadas de lado nessa “história geral” do feminismo.
1 Usualmente, costuma-se dividir a história do feminismo em “ondas”. Teríamos, de forma geral, a primeira e segunda
onda do feminismo. Costuma-se, ainda, limitar essas duas ondas, primeiro, à luta das sufragistas e, segundo, à
experiência feminista dos anos 60 principalmente nos Estados Unidos.
Nesse sentido, optamos por focar na primeira onda – isto é, final do século XIX e início do
século XX - na atuação das feministas socialistas, principalmente na direção das bolcheviques, e as
questões feministas enfrentados para o triunfo e consolidação da Revolução de Outubro. O período
da segunda onda do feminismo é também vasto e diverso. Aqui, trataremos das revoluções
triunfantes na América Latina (HANDAL), Cuba e Nicarágua, por compreendermos serem
experiências que a questão fundamental da revolução - a questão do poder - foi enfrentada, sendo,
então, caracterizadas por nós como parte do leito histórico do feminismo popular, além da luta contra
as ditaduras militares e pelas redemocratizações, momento que é determinante na conformação do
feminismo brasileiro.
O feminismo, de uma maneira geral, surge balizado pelo pressuposto da “igualdade” das
idéias iluministas do século XVIII, ainda que essa igualdade não tenha sido extendida às mulheres
(muito pelo contrário) ou mesmo à classe trabalhadora. Esse ideário, apesar de surgir a partir de
teóricos liberais, baseou teorias marxistas e feministas, influenciando diferentes contextos da luta pela
libertação dos povos. É com o surgimento dessas idéias que se faz uma reflexão acerca dos direitos
políticos: não é um deus que define nosso destino. Surge, então, a idéia da inteligibilidade humana.
Essa perspectiva também foi parte do que orientou a atuação das mulheres nos grandes períodos
revolucionários do século XVIII, tais como a Revolução Francesa. “Até a segunda metade dos anos
de 1800 a luta pela igualdade era o tema central de mobilização das mulheres, que no geral assumiam
as reivindicações pelo direito a educação, ao trabalho e a igualdade salarial, além dos direitos
políticos.”
No entanto, a conformação de uma perspectiva socialista para luta pela emancipação das
mulheres, para daí pensar a direção do seu movimento e bandeiras políticas não foi caminho simples.
Os Socialistas utópicos
O socialismo, de uma certa forma, sempre tratou da questão da mulher, ainda que muitas
vezes com inúmeros limites. Entre os socialistas utópicos, podemos trazer a figura de Robert Owen –
que chegou a influenciar inclusive as militantes sufragistas liberais dos Estados Unidos.
Os socialistas utópicos, de maneira geral, defendiam questões como união livre (por amor,
por vontade do casal, e não por obrigações), divórcio fácil e barato, falavam em arranjos
habitacionais com arranjos diferentes pra ser tudo coletivizado, com quarto pra todas/os. O trabalho
doméstico era considerado socializado, porém, essa socialização se dava somente entre as mulheres.
Então o trabalho de cuidados era dividido na comunidade, mas continuava nas costas das mulheres.
Alguns desses teóricos, ainda, afirmavam que a personalidade feminina fazia com que as mulheres
se “inclinassem mais ao trabalho doméstico”. Afinal, esses teóricos questionavam muito pouco a
divisão sexual do trabalho. Surgiram, então, os limites dos socialistas utópicos. A idéia de um
“casamento moral”, regido não por obrigações moralistas ou econômicas, chocava-se com o fato de
que aqueles que defendiam essas idéias eram homens ricos, ou seja, que não precisavam do
casamento como uma forma de sobrevivência. Começa, então, uma reflexão sobre a necessidade de
repensar a idéia de propriedade para repensar a idéia de casamento – e essas idéias somente
apareceram por conta dos protestos das mulheres. Sem repensar a propriedade e a pobreza das
mulheres, o casamento livre não seria necessariamente uma emancipação para a mulher tal qual para
o homem.
Em seu livro União Operária (1843) Flora Tristan, para além de propor uma associação
internacional de trabalhadoras e trabalhadores, propõe, com grande antecipação, que a luta da classe
trabalhadora é indissociável da luta das mulheres. Escreveu também o livro A condição de trabalho
na Inglaterra, em que defendeu a igualdade do salário para homens e mulheres.
O Socialismo científico
A experiência soviética, até hoje, permanece como uma das maiores experiências socialistas
que tivemos no mundo. Muito se estudou sobre ela, e muito se estuda sobre o pensamento
bolchevique. Com relação às mulheres, talvez seja o período do qual se tem mais informação sobre a
luta feminista socialista organizada, porém, ainda permanece muito invisibilizada tanto por setores
burgueses que querem limitar a luta feminista ao sufragismo, quanto por machistas da esquerda, que
insistem em secundarizar a pauta das mulheres, tratando-a como se não tivesse importância.
A experiência soviética não só até hoje é ainda considerada a maior experiência socialista,
como também é uma das maiores experiências feministas. A questão da mulher e da família se
colocava como central para os bolcheviques, havendo inúmeras reflexões e trabalhos acerca dessa
questão:
Os bolcheviques argumentavam que somente o socialismo poderia resolver a
contradição entre trabalho e família. Sob o socialismo, o trabalho doméstico seria
transferido para a esfera pública: as tarefas realizadas individualmente por milhões
de mulheres não pagas em suas casas seriam assumidas por trabalhadores
assalariados em refeitórios, lavanderias e creches comunitários. Só assim as
mulheres se veriam livres para ingressar na esfera pública em condições de
igualdade com os homens, desvencilhadas das tarefas de casa. As mulheres seriam
educadas e pagas igualitariamente, e seriam capazes de buscar seu próprio
desenvolvimento e seus objetivos pessoais. Sob tais circunstâncias, o casamento se
tornaria supérfluo. Homens e mulheres se uniriam e se separariam como quisessem,
desassociados das pressões deformadoras da dependência econômica e da
necessidade. A união livre substituiria gradualmente o casamento à medida em que o
Estado deixasse de interferir a união entre os sexos. Os pais, independentemente de
seu estado civil, tomariam conta de seus filhos com a ajuda do Estado; o próprio
conceito de ilegitimidade se tornaria obsoleto. A família, arrancada de suas
funções sociais prévias, definharia gradualmente, deixando em seu lugar indivíduos
completamente autônomos e iguais, livres para escolher seus parceiros com base no
amor e respeito mútuos. (GOLDMAN, 2014, p.21)
Foram muitos, na URSS, aqueles a tratar da questão da mulher, Nikolai Bukharin, por
exemplo, teorizou sobre como o avanço do sistema capitalista influenciaria no funcionamento das
famílias, ao comparar grupos familiares camponeses e trabalhadores de fábricas. Segundo ele, a
função produtiva da famílía seria desfeita na transição à vida urbana e ao trabalho assalariado, já que
as mulheres passariam a participar do trabalho produtivo. Nadehda Krupskaia, em sua obra A mulher
trabalhadora (1900), a primeira no país a trabalhar a questão da mulher de um ponto de vista
marxista, indicava a extrema exploração sofrida pelas mulheres nas fábricas e já afirmava a
necessidade da participação das mulheres na luta, lado a lado dos homens.
Muitos outros escreveram sobre a questão da família e das mulheres, mas queremos dar
especial destaque a Alexandra Kollontai, dirigente bolchevique e feminista, uma das figuras mais
destacadas no que diz respeito à organização das mulheres trabalhadoras, e única mulher a compor o
comitê central do partido bolchevique. Escreveu sobre a necessidade da participação das mulheres
no partido, a questão da família, sobre as relações entre homens e mulheres, união livre, entre outros.
Os temas abordados por ela foram parte de um debate inovador no movimento revolucionário, e
basearam grande parte das políticas direcionadas às mulheres no período pós tomada do poder. Entre
seus escritos de maior destaque estão, certamente, A nova mulher e a moral sexual e O amor na
sociedade comunista.
O partido bolchevique foi grande pioneiro na organização das mulheres. Lenin, em seu
texto “O dia internacional da mulher”, de 1921, afirmava:
2 Ver Caderno de Debates sobre Feminismo da CP, 2009, texto “Da divisão do Trabalho entre os sexos”, de Daniele
Kergoat.
de mulheres dentro de todos os partidos socialistas, além de uma posição a favor da organização
ativa em prol do sufrágio feminino. “Finalmente se formava uma estratégia oficial para a libertação
plena da mulher, nos sentidos político, econômico e social.” (GOLDMAN, 2014) Na época, a luta
pelo sufrágio feminino estava sendo dirigida pelas burguesas que também lutavam pelo direito ao
voto:
O direito ao voto ajuda as mulheres da burguesia a derrubar as barreiras
que, sob a forma de privilégios masculinos, limitam as suas possibilidades de acesso
à educação e à vida profissional. E arma as mulheres proletárias na luta que levam a
cabo contra a exploração e a dominação de classe para conseguirem ser
reconhecidas como seres humanos de corpo inteiro. (ZETKIN,1907, p.165)
3. O Feminismo latino-americano
“Te cuida, te cuida, te cuida imperialista, que a América Latina vai ser toda feminista!”
Nicarágua
Cuba
Desde a luta pela independência de Cuba, temos registro da luta das mulheres. O
que não significa apenas a composição numérica da força social, mas a auto-organização,
bandeiras políticas e o direito às armas. No século XIX, ainda sob domínio espanhol,
inicia-se em Cuba um movimento independentista, que lutava contra a escravidão e a
colonização. Mariana Grajales Cuello foi uma das primeiras mulheres que lutou pela
liberdade de seu país. Nascida em Santiago de Cuba, em 1815, teve treze filhos e foi com
a maioria deles embora de sua cidade para juntar-se à luta. Criou os Maceos, para lutarem
pela independência, combatentes de destaque. Seu filho, Antônio Maceo foi o maior
general do Exército Libertador e era reconhecido pelas suas táticas militares. Junto com
seus filhos e netos, Mariana Grajales organizou um lugar de apoio para os combatentes
cubanos, fornecendo comida, remédios, descanso, banho e o que mais precisassem,
Em 1918, as mulheres sufragistas organizaram o “Clube Feminino de Cuba”,
essa organização fundou escolas noturnas para as trabalhadoras e a primeira escola para
meninas no país, a partir da independência cubana, o movimento de mulheres se
desenvolve, acompanhando a onda feminista no ocidente. Em 1921 criam a Federação
Nacional de Associações Femininas de Cuba, que reunia o Clube Feminino de Cuba, o
Congresso Nacional de Mães, a Associação das Católicas Cubanas, a Associação Nacional
de Enfermeiras e o Comitê da Creche Havana Nova. Em 1923 acontece o Primeiro
Congresso de Mulheres é realizado em 1923, pela Federação, pautando o direito ao
sufrágio, igualdade de direitos e deveres sociais, políticos e econômicos, combate às
drogas e à prostituição, leis protetoras das crianças e modificação do ensino médio. Em
1934 conquistam o direito ao voto universal.
Em 1952, com um golpe, Fulgencio Batista chega ao poder, instaurando uma
ditadura imperialista. Nesse período surgem em Cuba dezenas de organizações de
mulheres de caráter político-social e assistencial, juntamente com outras organizações,
armadas, majoritariamente masculinas, que lutavam contra a ditadura.
Dentre as organizações femininas, uma de maior destaque foi a Frente Nacional
de Mulheres Martianas (FCMM). O grupo revolucionário se organizou meses depois do
golpe com o objetivo de pôr fim da ditadura mediante a revolução armada e a instalação
do poder popular e se
estender por quase todo o país, agindo muito próximo ao Movimento 26 de Julho. As
mulheres já haviam organizado anteriormente a Frente Cívico de Mulheres Cubanas e o
Frente Cívico de Mulheres Martianas.
Não foram muitas as mulheres que participaram da luta armada desde seu início.
Entre elas, está Haydée Santamaría Cuadrado (1922-1980) que participou ativamente do
assalto ao quartel Moncada, em 1953. Muitos combatentes foram capturados pelo exército
de Batista, como Fidel, Haydée e seu irmão e marido, que foram torturados e
assassinados. No discurso “A história me absolverá”, Fidel relembra:
Com um olho humano ensanguentado em mãos, apresentaram-
se um sargento e vários homens no calabouço onde se encontravam as
companheiras Melba Hernández e Haydée Santamaría e, dirigindo-se à
última, mostrando-lhe o olho, lhe disseram: "Este é de seu irmão, se
você não diz o que ele não quis dizer, vamos arrancar-lhe o outro." Ela,
que amava a seu valente irmão acima de todas as coisas, lhes respondeu
cheia de dignidade: "Se vocês lhe arrancaram um olho e ele não lhes
disse, muito menos o direi eu." Mais tarde voltaram e as queimaram nos
braços com cigarros acesos, até que, por fim, cheios de desespero, lhe
disseram novamente à jovem Haydée Santamaría: "Já não tens seu
companheiro, porque o matamos também." E ela respondeu-lhes,
imperturbável, outra vez: "Ele não está morto, porque morrer pela pátria
é viver4.
4 Essas informações constam nos testemunhos do comandante Francisco Arno, que lutou ao lado de
Mariana Grajales.
Ainda é necessário citar Vilma Espín que ingressou à luta no Movimento 26 de
Julho. Estudando nos EUA, quando regressava, por ordem do movimento, fez uma escala
no México, onde conheceu Raul e Fidel. Quando volta para Cuba, é nomeada
coordenadora do Movimento 26 de Julho da província do Oriente, com o pseudônimo de
Mônica.
A revolução triunfa em 01 janeiro de 1959, sendo importante o papel das
organizações revolucionárias e estudantis, que foram e são essenciais para a formação da
unidade do povo cubano. Vilma Espín funda em agosto de 1960 a Federação de Mulheres
Cubanas (FMC), unificando todas as organizações femininas que lutaram pela revolução.
A FMC hoje (2015), compõe a Marcha Mundial das Mulheres, teve e tem papel
importante na construção do feminismo em Cuba. Após sua criação, ela foi decisiva no
acompanhamento junto ao Ministério da Educação, para o acompanhamento dos livros
didáticos e conteúdo que seria ensinado às crianças. Também foi fundamental na abertura
de mais espaços de estudos para as mulheres, favorecendo sua maior entrada no mercado
de trabalho. A educação, oriunda do período anterior, era fortemente marcada pela base
patriarcal e a inserção das mulheres no mundo do laboral era limitada por valores morais
e religiosos. Outro acompanhamento político foi o da comunicação e propaganda.
Como aprendizado, a histórica auto-organização das mulheres cubanas nos
mostra que a revolução não traz o fim do machismo. A não vacilação perante a
erradicação do patriarcado é urgente e não se espera pela pós-revolução para se andar os
primeiros com o objetivo de superá-lo.
O que foi verificado após a revolução, que pontuamos a crítica e, portanto,
aprendemos com algumas limitações, é que se o cuidado com as crianças é estatitzado,
por exemplo, (importante luta de creches de toda a classe trabalhadora) não
necessariamente a responsabilidade deve ser dada a outras mulheres. Tal lógica ocorreu na
URSS, ao se construir creches e restaurantes coletivos, coube as mulheres se ocuparem
desses postos, historicamente desempenhados por nós. E aos homens, caberá sempre os
espaços de direção? E a igualdade?
A revolução, em especial, a histórica auto-organização, levou as mulheres à
ocupação de postos de trabalho e espaços políticos determinantes, mas ao passo que isso
foi conquistado, os homens, companheiros de vida e de luta, aumentaram a cobrança
sobre elas, acusando por vezes, do abandono da família e da casa. A exigência da comida
feita, dos filhos cuidados, com frequência é exposta pelas mulheres cubanas que se
organizam tanto na FMC como no PCC. Sobre esses dois, cabe lembrar a vinculação
estreita que ambos mantém, não deveria ser ao contrário.
A auto-organização ainda não conseguiu sanar os problemas gerados e recriados
diariamente pelo patriarcado. Ora, ele é tão antigo quanto o sistema capitalista, no
entanto, em uma sociedade que é permeada pela busca da igualdade, seria incoerente sua
permanência. Mais de 50%
das mulheres cubanas se organizam na FMC, organização que tem reconhecimento a nível
mundial. As dificuldades pelas quais se passa no combate ao patriarcado fazem parte do
processo de transição socialista: é preciso que alteremos a base material da exploração das
mulheres, a divisão sexual do trabalho, e esse processo não está separado do restante das
tarefas exigidas para a superação da sociedade de classes.
As mulheres continuam em luta. Esse sim, é um dos grandes desafios ainda da
revolução, a igualdade também é revolucionária!
momento histórico em que a mulher deixa de ser ao menos em lei propriedade do marido 6.
6 Mesmo que até hoje, 2015, a mulher afirmar que não é propriedade do homem leva à morte. Isso se
evidencia no dado de que mais de 80% do feminicídio no Brasil é cometido pelos cônjugues, destacando
que a cada 2 horas uma mulher é morta no país.
Por outro lado, há uma grande invisibilização das mulheres quando falamos das
organizações de esquerda que não auto-organizadas, ainda que esses movimentos sejam
8 http://blogueirasfeministas.com/2013/03/mulheres-e-a-reconstrucao-da-democracia/
compostos majoritariamente por mulheres (ocupações de terrenos urbanos, movimentos
de saúde, transporte etc). A análise da participação das mulheres na política acaba se
restringindo a movimentos que discutiam diretamente “questões femininas”, ou ligadas à
reprodução. Ou, ainda, acaba por afirmar que as mulheres participavam da política por
conta de seus maridos, pais ou irmãos. Não se discute nem se problematiza o lugar das
mulheres na esfera política (LOBO, 1991).
Se a participação das mulheres não é reconhecida em espaços majoritariamente
femininos, que se dirá de espaços com uma maioria masculina (ou tidos dessa maneira),
ou o movimento sindical e a luta armada. Sobre essa última, algumas pesquisas de
estudiosos marxistas afirmam que a luta armada é aspecto fundamental na constituição do
feminismo brasileiro na 2ª onda. Um fenômeno interessante é que nas organizações
guerrilheiras o número de mulheres militantes ultrapassava em muito o número de
mulheres que participavam dos Partidos tradicionais de esquerda em décadas anteriores.
Nos grupos de guerrilha urbana do Brasil, Marcelo Ridenti calcula em torno de 18% de
mulheres, e sabemos que possivelmente eram mais, já que o percentual é calculado com
base nos processos movidos contra os militantes pela justiça.
Em inúmeras organizações armadas as mulheres enfrentaram a disputa política
pelo direito às armas, trazendo à tona o debate central do poder militar e o feminismo.
Elizabeth Lobo afirma que o enfrentamento ao conservadorismo foi (e é) incessante por
parte das militantes, conservadorismo esse que acaba mobilizando as mulheres sempre em
torno de valores domésticos, também perpetuados pela esquerda brasileira, quando a
mulher aparece como a guardiã dos valores pacíficos e numa posição defensiva.
Enfrentando, como ela diz, o papel de “apoio” nas lutas políticas, e não de legítimos
sujeitos políticos.
A luta armada quando leva ao centro a luta pelo poder coloca em questão
também a luta das mulheres pelo poder. E essa é a questão central, porque se “não se faz
revolução sem um fula na mãe sem justiça não há paz só escravidão” (Racionais MC) e
às mulheres foi (e é) negado o direito às armas nas organizações de luta armada. É preciso
rever essa concepção de poder e o próprio programa político. Não basta afirmar a
presença das mulheres na luta armada, é preciso compreender que essa presença se deu
com tensões e disputas por dentro das organizações que, mesmo sustentando ideais
revolucionários, não compreendiam a superação da divisão sexual do trabalho e a luta
pelo fim da violência contra as mulheres como bandeiras políticas classistas. Ao exigir
lutar em armas, as mulheres expressaram de forma organizada que os homens precisavam
reformular sua concepção de poder e revolução. Beth Lobo vai dizer que “a resistência ao
regime autoritário, a busca de uma nova utopia, a experiência do exílio, as práticas
políticas no masculino e a divisão entre vida privada e vida política” foram o bojo do
movimento/experiência de luta armada em que o feminismo construiu diálogo e prática
com o que haviam sido as esquerdas nos anos 60/70.
Em 1975, na I Conferência Internacional da Mulher, no México, a Organização
das Nações Unidas (ONU) declarou os próximos dez anos como a década da mulher. No
Brasil, aconteceu, naquele ano, uma semana de debates sob o título “O papel e o
comportamento da mulher na realidade brasileira”, com o patrocínio do Centro de
Informações da ONU. Era a ação direta do imperialismo no movimento de mulheres
latino-americano em meio à luta pela redemocratização em vários países do continente, e
de processos revolucionários em ascensão na Nicarágua e El Salvador. A classe dominante
não perdeu tempo: era necessário minar a organização das mulheres que articulavam a
luta feminista e classista.
4 .A década de 90
Nesse sentido, ainda que tenhamos forçado uma separação entre “movimento
geral” e “movimento de mulheres”, pode-se perceber que o movimento feminista não está
apartado daquilo que é a “conjuntura geral”: a reorganização das mulheres em nível
internacional se dá juntamente com a reorganização dos outros movimentos - a campanha
da MMM, contra a pobreza e a violência sexista, ocorre em 2000, justamente um ano
antes do I Fórum Social Mundial, do qual participará ativamente. As mobilizações das
mulheres se inserem nos mesmos contextos das outras.
A Marcha participou do Fórum Social Mundial desde seu surgimento, também
participou ativamente do Plebiscito Popular Contra a Alca. Essas mobilizações foram
cruciais para a conformação de um campo político feminista anticapitalista e anti-
imperialista e a consolidação da MMM enquanto um movimento contínuo, mais do que
uma articulação. O Plebiscito Contra a Alca, em específico, serviu para o fortalecimento
da MMM no Brasil - não à toa, hoje a MMM brasileira é um exemplo de mobilização de
massas para os outros países em que ela está organizada.
Esse processo de recomposição do campo político do feminismo popular não se
dá somente a partir da ação da MMM. Podemos citar mais uma vez a própria REMTE, e
as mulheres da Via Campesina, com quem a MMM têm aliança prioritária. Esse campo se
torna uma alternativa ao feminismo institucionalizado, propondo uma mudança de agenda
para o movimento. A mobilização realizada no ano 2000, por exemplo, ocorre no meio do
processo de Pequim +5, a avaliação da IV Conferência da Mulher da ONU, fazendo
abertamente uma crítica ao sistema capitalista como um todo, e não somente ao seu
caráter neoliberal. Em 2005, realiza-se a II Ação Internacional da MMM, com a
elaboração da Carta Mundial das Mulheres para a Humanidade. No Brasil, o 8 de março,
marco de início da ação, contou com a participação de 30 mil mulheres na Avenida
Paulista. Esse campo político do feminismo retoma as mobilizações de rua como ação
prioritária para o movimento.
Ainda nesse mesmo período, em 2004, temos o surgimento do Movimento de
Mulheres Camponesas, na construção do feminismo popular camponês. Como afirmamos,
as mulheres camponesas se organizam há tempos (Ligas Camponesas, Sindicatos rurais,
Movimentos de luta pela terra), mas com pouco reconhecimento. Em 1995, cria-se a
Articulação Nacional de Mulheres Trabalhadoras Rurais, reunindo mulheres do MST, da
Comissão Pastoral da Terra, Pastoral da Juventude Rural, MAB, MPA e sindicatos de
trabalhadores rurais. A articulação se pautava principalmente pelo reconhecimento e
valorização das trabalhadoras rurais, sindicalização, documentação etc. Em 2003, após
inúmeras atividades para a realização do Curso Nacional de Formação da articulação,
fincam-se as bases do Movimento de Mulheres Camponesas.
É importante afirmar que, ainda que se tenha reorganizado o campo político do
feminismo popular, isso não significa que não haja disputa. Ainda, grande parte do
movimento feminista se orienta por agendas reformistas, mesmo com grandes
movimentos de esquerda sendo referência para o movimento organizado de mulheres.
Durante o plebiscito da ALCA, por exemplo, um setor do movimento feminista optou por
tentar incluir a “questão de gênero” nas negociações, para “amenizar” os impactos
negativos do tratado sobre as mulheres. O campo político da MMM manteve-se firme na
posição de que não havia o que disputar. Essa discussão ainda existe hoje: as feministas
lutarão por pequenas reformas de “redução de danos”, para “amenizar” os impactos do
capitalismo sobre as mulheres, ou colocarão na pauta do dia o combate radical ao
capitalismo e a tomada do poder?
Em 2006, na madrugada do dia 08 de março, 1.600 Mulheres da Via realizaram
uma ação no monocultivo de eucalipto no Rio Grande do Sul que marca essa
reconformação no Brasil. A ação teve abrangência de massas, e não somente ampliou o
debate sobre os malefícios sociais, ambientais e econômicos sobre esse tipo de cultura,
mas também colocou em evidência a ação anticapitalista sob o comando das mulheres. Na
Via Campesina, as mulheres entravam em um período de ascensão, no qual participavam
mais intensamente dos debates e da luta feminista: “Essa ação nos projetou enquanto
referência política da luta de classe. Nós temos que responder a altura e isso ultrapassa as
pautas dos movimentos”, explica Ana Hanauer, do MST. O protagonismo das mulheres na
ação também é destacado pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). De
acordo com Patrícia Prezotto, “Foi um momento histórico para as mulheres. Elas
começam a não aceitar o que o capital impõe. ” A luta do 8 de março de 2006 questionou
a opção de parte da esquerda de apostar no processo eleitoral para fazer mudanças
estruturais na sociedade em favor dos trabalhadores. “Aquela ação mostrou que as
mulheres pobres que se movimentavam ali não se sentiam incluídas neste poder, na
medida em que denunciavam que o governo Lula liberou os transgênicos e flexibilizou as
leis ambientais.” O feminismo popular se conforma e reconforma a partir das bandeiras
políticas que colocam o poder político como central.