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Resumo:
Este trabalho é uma tentativa de, estabelecida a hipótese de minha tese de doutorado em andamento, refletir
sobre uma dimensão prática cara ao professor de história. Refiro-me à premente necessidade em aliar pesquisa
sistemática à prática docente. Neste sentido, proponho que a obra de Antonio Candido de Melo e Souza possa ser
um ponto de inspiração para reflexões desta natureza. A partir da leitura panorâmica de sua obra, estipularemos
que o desafio segundo o qual o professor de história deve, em sala de aula, nutrir práticas de um pesquisador
pode ser solucionado a partir do firmamento de um propósito ético, propósito este capaz de ligar as dimensões do
pensar e do agir, tão amplamente separadas pelo alto grau de especialização do trabalho na sociedade burguesa.
1 Introdução
Exporei uma breve digressão que justifica essa minha afirmação dotada de certo
afinco. Apesar de professor de teoria literária, Antonio Candido teve sua formação em
ciências sociais, bem como exerceu o papel de professor assistente de sociologia na USP,
referente à cadeira de Fernando de Azevedo. Não por acaso, Fernando de Azevedo fora seu
orientador no doutorado, de que resultou a tese “Os parceiros do Rio Bonito”, defendida em
1954 e publicada apenas 10 anos mais tarde. Portanto, a prática de cientista social dificilmente
deixaria de reverberar na escrita crítica de Antonio Candido. Contudo, inúmeros trabalhos
sobre o autor delimitam uma fronteira disciplinar entre as ciências socioais e a crítica literária
e demarcam Candido como um crítico de leitura sociologizante, ou um sociólogo que escreve
sobre crítica literária. O trabalho mais recente a problematizar essa segmentação arbitrária é o
de Rodrigo Martins Ramassote. Nesta tese, Ramassote defende que é impossível não conceber
determinada compenetração dessas duas tendências na obra de Candido. Sobre isso, o autor
considera que
O que me preocupa neste caso é que, a rigor, mantém-se a segregação entre crítica e
ciências sociais. No conjunto de sua tese, Ramassote aponta para determinada unidade interna
da obra de Antonio Candido. Ao estabelecer a hipótese dessa unidade, sua tese ganha em
qualidade interpretativa frente a tantas outras. Contudo, fica-nos a marca de que essa unidade
é um substrato inato, algo de essencialmente produzido pela condição de Antonio Candido
como indivíduo. Minha tentativa é, portanto, nomear essa unidade da obra de Candido como
algo que seja mais intersubjetivo e histórico do que essencialmente individual. A proposta de
que essa unidade é um compromisso ético subscreve essa demanda ao mesmo tempo em que
preserva a autonomia entre as disciplinas em questão.
3 Ética e Crítica em Antonio Candido
Essa hipótese já nos é corroborada pela definição de Candido como crítico antes que
como teórico. Justificar essa autodefinição por meio de sua “tendência para o concreto” é um
elemento a mais para nos ajudar a compor essa postura intelectual do autor. Com efeito,
Antonio Candido possui boa parte de sua formação e produção ligada a um contexto
eminentemente ambíguo (MICELI, 1979)1. O autor se constrói como agente filiado ao
modernismo ao mesmo tempo em que sedimenta, para si, um lugar na academia que, com o
tempo, se concretiza como campo. Se nos voltarmos para as discussões sobre a relação entre
modernismo e ensaísmo, não será difícil identificar uma espécie de conjunção de trabalhos
que, propondo-se acadêmicos, pautavam-se por ensaios de cunho mais interpretativo do que
análises pautadas em rigor metodológico e saber técnico/especializado. Lembremos, a grosso
modo, Casa Grande e Senzala, Raízes do Brasil e Populações Meridionais do Brasil. Não à
toa, essas 3 grandes referências são reconhecidas como obras de “Intérpretes do Brasil”. A
promoção de uma imagem civilizacional a partir da interpretação ensaística, de cunho
modernista, pode ser enxergada nos trabalhos em questão. Se esse ensaísmo ganhava em
sentido interpretativo, a geração de Candido sentia falta disso a que ele se refere como
“tendência para o concreto e para as situações como se apresentam”. Crendo na capacidade da
técnica e do discurso científico em postular uma normativa que se verificasse como fática,
Antonio Candido apreendeu a perspectiva totalizante do ensaísmo ao mesmo tempo em que
implementou, como professor da USP já na década de 1960, um verdadeiro corpo acadêmico
envolvendo orientações, cursos teórico-metodológicos, pesquisas coletivas, sendo um dos
agentes que consolidariam o fomento a área das ciências humanas, letras e linguística na
FAPESP.
Esse lugar fronteiriço de Candido não está apenas no plano de sua rememoração
pessoal. Com efeito, Formação da literatura brasileira exprime bem essa condição
(CANDIDO, 1962). Neste livro, Antonio Candido Realiza uma verdadeira interpretação geral
de nossa formação social, bem ao modo dos ensaístas de 1930, ao mesmo tempo em que
1
Além de Miceli, algumas referências sobre este contexto podem ser encontradas em:
JACKSON, Luiz Carlos. A tradição esquecida: Os Parceiros do Rio Bonito e a Sociologia de Antonio Candido.
BH: Ed. UFMG; SP: FAPESP, 2002.
CORRÊA, Mariza. Traficantes do simbólico e outros ensaios sobre a história da antropologia. Campinas:
Ed. UNICAMP, 2013.
PONTES, Heloisa. Ar de Família: A turma de Clima. In: Literatura e sociedade (n. 12), 2009.
implementa uma discussão técnica de alto nível sobre os pressupostos da interpretação crítica.
É nesse cruzamento de rememoração e interpretação de sua ação pessoal com a análise dos
pressupostos epistemológicos de sua obra que julgo ser possível apreender o pressuposto ético
que concatena teoria e prática, sociologia e literatura, no bojo da vida social de Antonio
Candido. Esse fundamento ético está pautado na autoconstrução de Candido como crítico
literário. A partir deste lugar social e da especificidade da função do crítico na sociedade
contemporânea, Candido irá compor uma verdadeira imagem de civilização, capaz de definir
o lugar da técnica, orientar e delimitar sua ação política e concatenar o debate literário em
torno das especificidades do problema do Brasil como projeto nacional.
Sem aprofundar nos detalhes desta questão, passo a especificar uma reflexão sobre a
função do crítico e como ela se relaciona, intrinsecamente, com a prática do professor. Antes
de mais nada, é preciso dizer que o crítico literário, nos termos em que Candido nos incita a
pensar, é uma figura mediadora. Sua intenção é compor uma chave interpretativa. A partir de
sua técnica, seja impressionista ou rigorosamente metodológica, o crítico crê no
estabelecimento de postulados que funcionem como diretriz para a leitura de uma obra.
Nestes termos, o crítico literário é aquele capaz de empenhar-se na composição de um
entendimento da obra por parte do público mais amplo. Ao definir-se como crítico, portanto,
Antonio Candido assume esse papel de mediador entre obra e leitor. Por isso, a prática do
crítico é essencialmente pública. Por julgar estabelecer a chave de leitura para determinada
obra, o crítico promove a ligação desta obra com seu público e, num escopo mais amplo, com
o seu próprio tempo. A função do crítico, nestes termos, pode ser compreendida como uma
função atualizadora. O crítico literário é aquele que manifesta uma disposição em encenar,
para a vida pública, os problemas contidos nas obras que ele julga indispensáveis.
Nestes termos, o crítico é alguém imerso num circuito, num sistema de comunicação
social em que a obra literária é a proa nas discussões estéticas que respaldam um projeto,
capaz de aprofundar e condensar os problemas do seu tempo em realização formal. O debate
público de Antonio Candido, desde seu Introdução ao Método Crítico de Silvio Romero,
passando pela já mencionada Formação da Literatura Brasileira, até trabalhos que já se
estendem das décadas de 1970 a 1990, como Dialética da malandragem e De cortiço a cortiço,
é todo centrado no desafio de ampliar a capacidade da técnica de pesquisa em tratar do
assunto que quer se especializar em concatenação com uma generalização interpretativa de
nossa vida social. É nesse desafio que Candido se realiza duplamente: como professor e
historiador da cultura.
Trago um caso curioso, quase ritualístico, de homenagem entre gerações para
encaminharmos as conclusões sobre o que considero importante para refletirmos a respeito da
demanda de unificação entre pesquisa e prática de ensino em história. Em 1941 é lançado o
primeiro número da “Revista Clima”. A revista era um projeto de estudantes da USP que se
dedicavam à crítica dos vários campos artísticos. Antonio Candido era, dentro da revista, o
responsável pela crítica literária. Para a edição inaugural da revista, o grupo Clima convidou,
à época já consagrado, Mário de Andrade a escrever o artigo de abertura. Neste artigo,
chamado Elegia de Abril, Mário de Andrade reflete sobre as perdas e ganhos na passagem de
sua geração modernista à geração acadêmica de Candido e do grupo à frente de Clima. Suas
agruras entre a autonomia da técnica e uma sentida necessidade de princípio moral para esta
tomam, na dinâmica do próprio texto, um movimento pendular que se resolve na declaração
de que o intelectual só se realiza como tal quando empreende um esforço técnico capaz de
atender a um princípio de verdade construído pelo agente como necessidade histórica. Sobre
isso, Mário de Andrade afirma:
Talvez seja necessário que as inteligências moças mais capazes se esqueçam por completo
das elásticas verdades transitórias e revalorizem o ideal da verdade absoluta. Não será este
o mais patriótico...pragmatismo nacional? É possível acreditar sem fé. Acreditar é muitas
vezes um ato de caridade. E se o homem não pode viver sem seus mitos, imagino que seria
sublime os mais capazes, mesmo sem fé, se porem na religião da uma só verdade. Fazerem
da verdade absoluta o seu mito e o seu estágio de purificação. Ou de superação. Não
convém à inteligência brasileira se satisfazer tão cedo de suas conquistas. A satisfação,
como a felicidade, é um empobrecimento. E a palavra de Goethe não deverá jamais ser
esquecida: superar-se. Imagino que uma verdadeira consciência técnica profissional poderá
fazer com que nos condicionemos ao nosso tempo e os superemos, o desbastando de suas
fugaces aparências, em vez de a elas nos escravizarmos. Nem penso numa qualquer
tecnocracia, antes, confio é na potência moralizadora da técnica. E salvadora... Essa mesma
técnica que se salvou Sócrates e Rikiú pela morte, salvou Fídias, salvou o Bach da Missa
em Si Menor, salvou os medievais, os egípcios e tantos outros, dentro da mesma vida. O
intelectual não pode mais ser um abstencionista; e não é o abstencionismo que proclamo,
nem mesmo quando aspiro ao revigoramento novo do "mito" da verdade absoluta. Mas se o
intelectual for um verdadeiro técnico da sua inteligência, ele não será jamais um
conformista. Simplesmente porque então a sua verdade pessoal será irreprimível; Ele não
terá nem mesmo esse conformismo "de partido", tão propagado em nossos dias. E se o
aceita, deixa imediatamente de ser um intelectual, para se transformar num político de ação.
Ora, como atividade, o intelectual, por definição, não é um ser político. Ele é mesmo, por
excelência, o out-law, e tira talvez a sua maior força fecundante justo dessa imposição
irremediável da "sua" verdade. Será preciso ter sempre em conta que não entendo por
técnica do intelectual simploriamente o artesanato de colocar bem as palavras em juízos
perfeitos. Participa da técnica, tal como eu a entendo, dilatando agora para o intelectual o
que disse noutro lugar exclusivamente para o artista, não somente o artesanato e as técnicas
tradicionais adquiridas pelo estudo, mas ainda a técnica pessoal, o processo de realização
do indivíduo, a verdade do ser, nascida sempre da sua moralidade profissional. Não tanto o
seu assunto, mas a maneira de realizar o seu assunto. Que os assuntos são gerais e eternos, e
entre eles está o deus como o herói e os feitos. Mas a superação que pertence à técnica
pessoal do artista como do intelectual, é o seu pensamento inconformável aos imperativos
exteriores. Esta a sua verdade absoluta (ANDRADE, 2002, p. 4-5).
Acredito que é este espírito autocrítico, mas não relativista, que anima e confere aquela
unidade interna apontada pela tese de Ramassote, mas que permanece, durante seu trabalho,
silenciada, seja por não consideração do problema, seja por não se atrever a tocar no assunto
diante de um meio acadêmico que tem a questão da verdade e do absoluto como um dado de
ingenuidade a priori. Por isso também enunciei que o que pode nos dar a dimensão de
unidade entre pesquisa e ensino de história está fora da própria história. Com efeito, podemos
continuar fazendo pesquisas crendo na nossa capacidade de especialização técnica. Nada nos
impede de procedermos com recortes analíticos, de particularizarmos questões e objetos de
pesquisa, de empreendermos leituras rigorosas dos sujeitos que pesquisamos. No entanto, se
quisermos que esse saber altamente especializado sirva, de fato, para um público mais amplo,
devemos ter um senso crítico. Com censo crítico, não me refiro à crítica como embate teórico,
mas à função pública da crítica, tal como exercida por Antonio Candido e sua geração.
5 Considerações Finais
Bem examinadas, ambas as condições de pensar e agir têm muita coisa em comum,
sobretudo nos dilemas que envolvem a “ciência” e o ensino numa sociedade
capitalista. O historiador, enquanto cientista, e o professor, enquanto profissional e
simples técnico ou intermediário da formação de consciências (ao lado do livro
didático), não podem ser separados das determinações implícitas nas ligações do
saber e do poder na ordem burguesa. O ensino atravessa, à sua maneira, uma das
grandes contradições da ciência atual, que é, de um lado, o seu próprio crescimento
(o “progresso científico”), expresso na sua amplitude, na sofisticação de suas
técnicas, na quantidade de informações, no triunfo do cálculo e do número e na
diversificação de suas teorias; de outro, em contrapartida, a sua completa
fragmentação em ramos compartimentados de saber altamente especializado, nas
suas informações e nos seus campos de aplicação. Não sem motivos, para
contrabalançar e disfarçar a dispersão, organizam-se encontros e criam-se locais
onde a “comunidade científica” troque entre si um oxigênio comum e onde, por
momentos, se refaçam algumas mediações perdidas e se tente colocar as questões
particulares em um movimento transformador (MARSON, 1984, p. 39).
Outro dado curioso: Quando chegou à futura UNESP/Assis para ministrar a cadeira de
literatura brasileira, por volta de 1958, Candido se deparou com sua disciplina inaugural
constando de apenas uma aluna matriculada. Posteriormente, em entrevista, essa aluna disse
que a disciplina consistiu em reuniões periódicas destinadas à leitura de Memórias de um
Sargento de Milícias. As reuniões centradas neste único livro foram base para uma leitura
pormenorizada do romance em que se delineou todo o ementário da disciplina a partir de
aspectos formais do texto selecionados pelo autor (RAMASSOTE, 2013). 10 anos mais tarde,
Candido publicaria Dialética da Malandragem, em que sua análise do romance de Antonio
Manuel de Almeida se pauta na rejeição da vinculação deste à tradição pícara para defender a
ideia de que haveria, no texto, a formação de um tipo literariamente muito mais adequado
para a representação dos problemas nacionais, a saber, o malandro. É nesse jogo entre aula,
crítica e compromisso com uma interpretação da vida social que, acredito, pesquisa e ensino
de história podem formar a tão almejada auspiciosa compenetração de que falava Antonio
Candido.
Referências