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Ca ost VO MU at ete CO Con U Te ORCA ORM LE 4 EMSs Rete Wey-Ue! is importante do guundo.” See AE esa THE BEATLES | 4 Biocraria BOB SPITZ Texto da apresentacao brasileira Sérgio Dias Consultoria da edigao de texto Bruno SR e Fernando Nuno LAROUSSE ‘Titulo original The Beatles: The Biegrapyy digo original publicada por Litde, Brown and Company, Nova York, Nova York, EUA. Todos os direitos reservados. Copyright © 2005 Bob Spitz Copyright © 2007 Larousse do Brasil Edigio brasileira Diresio editorial Soraia Luana Reis Editor assstnteIsney Savoy Assisténcia editorial Leila Toriyama ‘Coordenagio ¢ edgdo Esto Sabi Traducdo Antonio de Padua Danesi, Aurea Arata, Candombé, Cid Knipel, Elvira Serapicos, Gilson César Cardoso de Sousa, Luis Fragoso, Marina Petroff Garcia e Mariana Varella Priparaia de texto Ceci Meira e Diego Rodrigues Revisdo Capitu Escobar de Assis, Céia Regina de Lima, Hebe Ester, Luciana Soares, Marin da “Anuociacio Rodrigues, Mariana Vatella, Paola Morsello e Valéria Sanalios Capa e digramagia SGuerra Design Gertnte de produsio Fernando Borsetti “Twenty Flight Rock” Letra e miisica de Ned Fairchild e Eddie Cochran © 1957 (renovado) Unichappell Music Inc. & Elvis Presley Music Inc ‘Todos os direitos administrados por Unichappell Music In. Reprodugio autorizada por Warner Bros, Publications “Todos os diteitos reservados Dados Internacionais de Catalogagio na Publicagio (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Spitz, Bob ‘The Beatles : a biografia / Bob Spitz. ~ Sio Paulo : Larousse do Brasil, 2007. ‘Titulo original: The Beatles : the biography. Varios tradutores. Bibliografia. ISBN 978-85-7635-264-8 1. Beatles 2. Misicos de rock - Biografia LTitulo. 07-6987 DD-782.42166092 indice para catilogo sisternatico: 1. Masicos de cock : Biogeafia e obra 782.42166092 1 edigio brasileira: 2007 Direitos de edicio em lingua portuguesa, para o Brasil, adquiridos por Larousse do Brasl Participacoes Ltda. Av: Prof? Ida Kolb, 551 ~ 3° andar ~ Sao Paulo/SP CEP 2518-000 Telefone (11) 3855-2290 / Fax (11) 3855-2280 E-mail info@larousse-com.br wwwletoussecombr Para Sandy & Angie D'Amato e Libs, ¢ a lodos aqueles cuyja vida se enriquece com a mitsica dos Beatles ‘Quando 0 modo da musica muda, os muras da cidade tremern. PLATAO APRESENTACAO (e eles precisam?...) Number nine... Number nine... Number nine. le seja este o momento melhor para explicar o caleidoscopio que os Beatles langa- ram € langavam a cada novo compacto, musica, atitude, LP — e, (des)compondo 0 som 0 sentido, a enorme confusio ¢ superposigao de idéias sons atos e fatos que se sucedem em sua carteita ¢ nos anos de 1960. “Revolution 9” pode (talvez) dar idéia da complexidade dos tempos que quatro pobres garotos ~ com tudo contra si— tiaham que enfrentar, bem como de sua intrepidez. Ao colocar essa composicio no “Album Branco”, eles simplesmen- te expressaram o instantineo de um segundo transcendental dentro de uma época. ‘Assim como a (re)composicio que tem o niimero 9 no titulo, em cada misica eles forneciam sempre, a cada pergunta e anseio que nds criangas tinhamos, a resposta imediata. ‘A sabedoria 0 som certo € 0 sentimento que faltava para nos refletir no espelho do toca- discos da vida, que rodava implacivel enquanto os graos de areia do tempo solidificavam nossa juventude e maneita de pensar... Fomos sendo forjados, um a um, em uma tinica e consistente idéia: a de que ser livre eta uma possibilidade ¢ no mais precisivamos nos trancar como Eleanor ¢ nos isolar inter- namente como um Fool on the Hill ou nos transformar em um simples Nowhere Man... Agora era possivel ser e se expressar livremente: muito — ¢ dizer muito é pouco - dessa liberdade foi conquistado gracas a bravura e & tenacidade de um bandinho de gente do povo das docas de uma cidade incégnita como Liverpool ‘A sensagio de imortalidade e indestrutibilidade que nos getou — € que é inerente & juventude — se tornou realmente eterna pela graca com que se solidificou por meio de suas mitisicas, letras € atos. Ela nos fazia esperar pelo préximo passo no compasso da vida e no tempo do giro da roda da fortuna. E nos colocava sempre em atitude meio guerreira na guarda do idealismo cultural, aceitando como realmente valido e concreto apenas 0 que nos muda € nos transforma em nosso cetne — apenas 0 que consegue, como acontecia com os Beatles, transcender nossos filtros e barreiras intelectuais, que sempre tendem a resistit a0 novo € a nossa conseqiiente mudanga. Nés todos, nds mutantes, nds resultado da graca recebida ¢ assimilada, conseguimos deixar de alguma forma indelével o nosso reflexo, 0 eco da imagem € do som que os Beatles nos deram como matéria-prima para esculpir a nossa historia. ‘The dream is over...P22 $6 quando voltamos para nossa pobre realidade ¢ descobrimos que John, Paul, George ¢ Ringo eram humanos (€ para isso Bob Spitz da grande contribuigio com esta biografia) € que nos demos conta de nossa fragilidade e da fragilidade etérea de idéias revolugdes, ¢ tantas vezes essas mesmas idéias so apossadas pela “faccio inimiga” ¢ usadas na contra-tevolucio pelo establishment do maldito ¢ fedorento statu guo ~ que nos traz € arrasta sempre e sempre 4 realidade com sua crueza sem arte, com verdadeiros e sélidos Blue Meanies nas fronteiras a afundar quase para sempre nosso submariao, com cargas sem profundidade que ao detonar arrasam a nossa frégil inocente cruzada. Restavam ainda os discos a meméria a certeza ea forma que nos foram dadas pelos grandes artifices da mudanca que tesultou em nossa geracio: cada um de nés também era (e 6) um beatle, éramos (¢ somos) parte de um estilhaco. Agora, a0 nos reunirmos novamente nas paginas do livro de Bob Spitz, podemos cantar “all you need is Love”, e nos vemos refle- tir de novo em vivida e forte imagem, solidificada hoje por mais trés geragdes que cantam as mesmas miisicas idéias ¢ ideais. Nesta nova mostra de meras mil paginas, o pilido brilhante resumo de uma eternidade de um primeito beijo, de um primeiro passo para a vida que nos foi agtaciada, e cuja trilha sonora se fez eterna. Pois um morango pode ser eterno e seu sabor sempre ¢ eternamente doce.. Um enorme agradecimento aos ferteitos forjadores da minha idéia ¢ sentido de ser... George, John, Paul, Ringo... Sinceramente, muito obrigado pela vida que propor- cionaram a todos nés... Boa leitura, bom mergulho neste empolgante relato de afligdes € tragédias, de unio € ruptura, de alegrias e sucessos sem igual — uma hist6ria sem paralelo... Sérgio Dias Mutantes Number nine ‘umaber nine. E agora com wncts, comigo, com todos nis eles, 05 quatro senhores de todos as ntimeros: SUMARIO Prélogo 3 MERCE 1. Uma educagio adequada 15 2. Achegada do messias 34 3. Misculo ¢ tendo 47 4. O dono do paleo 68 5. Uma simples coincidéncia do destino 93 6. Uma peca que faltava 115 7. Uma boa atragio secundéria 129 8. O conjunto da escola 141 9. Aguae vinho 151 10. Os Caes da Lua 160 11. Com o pé na estrada 175 12. Batismo de fogo 200 13. Uma revelacio a ser contemplada 231 14. O senhor X 251 15. Um gigantesco ato de fé 269 16. © caminho de Londres 281 17. Faca a coisa certa 302 18. A hora de Starr 322 19. Um toque de Barnum and Bailey 345 20. Todos prosa 364 MANIA 21. Os tambores da selva 381 22. Os reis da selva 403 23. Entio é isso a beatlemania 422 24, Era uma vez na América 452 25. O amanha nunca sabe 481 26. No olho do furacio 500 27. Lennon e McCartney salvam o filme 531 28. A consciéncia césmica 557 MAESTRIA 29. Um espeticulo de horrores 587 30. Tempestade em copo de agua 622 31. Uma experiéncia muito estranha 653 32. O Verio do Amor 677 33. De mala pior 703 34. Outro ambiente 731 35. Adeus aos rapazes da banda! 760 36. Perturbacio da paz 790 37. Eno fim... 816 Nota final $47 Agradecimentos 849 | PROLOGO 27 de dexembra de 1960 C= a chegar em grandes levas a Litherland como sempre faziam: meia hora antes que as portas se abrissem. Notivagos: os corpos jovens e esguios, as pernas arrastando-se nas calgadas, exageradas pelo fulgor azul da luz da rua, Nessa epoca do ano, as 6b30 da tarde a Sefton Road ji estava escura; a noite baixava cedo do céu desolado, raiada de nuvens cinza- chumbo que vagavam para leste, vindo do outro lado do rio sumo 2 estagnada Liverpool. Normalmente, as tercas-feiras no centro comunitario de Litherland ram 0 que os omotores de eventos chamayam de “noites fracas” — ou seja, atragGes de meio de semana 5 com pablico de no maximo uns seixcentos ou setecentns garoros € garotas, longe da massa de 1,300 dos fins de semana ~, mas o agito daquela noite era anuaciado como um baile de Natal, 0 que explicava a excepcional multidao. De cinco em cinco minutos mais um Snibus de dois andares gemia e parava A porta do centro, despejando no passeio uma carga mo- dorrenta de adolescenres. A multidao, movendo-se a esmo pelo ar rarefeito da notte, infava como um balio & espera de arranque. A ateacio principal, como depois se ficava sabendo, ainda nao chegara. Sempre atra- sada na programacio, a banda saita de West Derby Village mais tarde que o previsto, aps defini, por consenso, as misicas para a apresentagio daquela noite, O processo de escolha io era nada complicado, considerando o repertério de mais de 150 rocks-baladas, desde 9s sucessos mais originais (“Whole Lotta Shakin’ Goin’ On", “What'd 1 Say"), passando pors conhecidas (“You Don't Understand Me”). Nenhuma delas demandava muita discussio. ndards pop (“Better Luck Next Time”, “Red Sails in the Sunset”), até pérolas des- Depois, o equipamento foi carregado na velha perua verde-garrafa que s6 naquela manha fora recturada para 0 servico. (Os quatto rapazes, viajando na carroceria escura ¢ encardida como astronauras numa capsula espacial abarrotada, seguravam-se um no outro com suas maos tarimbadas enquanto Tue Brau © velho engradado chocalhava pela Stanley Road, as lojas ficando para tris salpicadas por uma fluorescéncia cerosa. A estrada contornava a linha costeira, onde se viam as luzes € os cais do porto distante, depois quebrava para o interior ao longo do Canal Leeds & Liverpool. Mesmo para um nativo do lugar, como todos eles eram, era dificil dizer onde terminava um baitro € comegava outro: Crosby se tornava Kirkdale e, por fim, Coote e, entao, Litherland, os limites marcados apenas por entroncamentos mais largos ¢ a ocasional placa de loja incorporando a seu nome alguma coisa da tradigio local. Por um instante, olharam calados pelo vidro traseiro, absorvendo a escuridio aluci- natéria, Paul McCarmey ¢ George Harrison, ambos prodigiosamente belos, empoleirados em dois amplificadores, enquanto Pete Best, instavel ¢ evasive, montava como um caubéi o estojo do bumbo. Também calado, John Lennon, que ja estivera duas vezes antes em Lither: land, viajava na boléia para orientar o motorista até o local certo. Chas Newby sabia que estava sobrando, Perigosamente agachado junto ao arco ¢ maltado que guarnecia a toda, observava seus parceiros com respeitoso distanciamento. Até uma semana antes, quase metade do ano se passara desde a tiltima vez que os ouvira tocar. Naqueles poucos meses, continuavam a ser como a maioria das outras bandas novatas de Liverpool, talentosos mas no excepcionais, executando versées de sucessos do momento praticamente idénticas as que todas as outras estavam tocando. “Claro que eu nio achava que eles causariam boa impressio”, diz ele, evocando 0 som confuso, a entrada canhestra e mecinica, a anarquia involuntatia. De fato, a banda anterior de Newby, The Blackjacks, na qual Pete Best havia tocado, no era melhor nem pior para entreter as garotos que seguiam os grupos locais de clube em clube de dana. Numa noite qualquer, cinco bandas seguidas executavam o mesmo re- pertorio — da mesma forma. A homogeneidade era o critério em torno do qual girava todo 0 cenitio, Agora, de stibito, tudo mudara. Quando Chas chegara a casa de Pete em West Der- by na semana anterior, estava totalmente despreparado para o que ia encontrar, A sala de estar estava muito mais quente ¢ clara do que de costume. Um guarda-chuva de fumaca purpura pairava sobre a mesa de centro. Garrafas de coca-cola estavam espalhadas como pecas de xadrez. Enquanto Newby se dirigia para o sofé, seus olhos se encheram de uma visio semelhante a uma monocromia gética de Rouault: quatro figuras estavam agrupa- das ali, semelhantes a corvos, vestidas em agourenta mistura de couro puido ¢ negrume — calgas, camisetas, jaquetas, botas, uma orgia em negro. Foram-lhe necessirios alguns segundos sondando os rostos do quarteto encapotado para perceber que pertenciam a Pete Best ¢ aos miisicos que ele conhecera antes pelo nome coletivo de The Quarry Men [Os Cavouqueiros}. Fazia semanas que a banda nao tocava, gracas a um insidioso mal-estar que quase os extinguira. Uima semana antes, quatro trabalhos decentes se concretizaram, ¢ eles os haviam aceitado com sofreguidio, apesar de um obsticulo evidente: o baixista, Stuart Sutcliffe, es- tava na Alemanha pasando o feriado com a namorada, “Precisamos de um baixista”, queixou-se um dos miisicos, provocando Newby. Best 0 secundou com firmeva: rrume um baixo € pratique conosco”, disse ele. Newby ficara contente ¢ sensibilizado pelo convite. Sua experiéncia se estendia so- mente a guitarra-base, mas ele conhecia figuras que tocavam um baixo que apenas marcava as nota , repetindo-as, ¢ George Harrison, o verdadeiro técnico da banda, se proncificara a simplificar a coisa para ele. Chas pegou emprestado um baixo de seu amigo Tommy McGurk € concordou em participar de um ensaio. Montaram um estidio num espacoso porio pertencente 4 familia Best ~ um salio que funcionava & noite como clube de jazz, 0 Casbah, onde os gatotos vinham se encontrar ¢ dancar — ¢ repassar algumas cangoes. “O tipo de misica que eles tocavam era bem Facil de pegar”, diz Newby. Porém © som que faziam o irritava. O repertério deles ainda se constituia ape- nas de versdes dos sucessos do momento, mas, em ver de repetit as cOpias reverentes executadas por todas as outras bandas de Liverpool, elas penetravam numa dimensio inteiramente nova. Essas versdes nfo constituiam imitagdes meticulosas, nelas ni ha via nada de arrumadinho ou controlado. Eram intensas, apaixonadas, tinham forcga de verdade, sublinhada pela vigorosa percussio de Best ~ uma torrente luxuriante, propul- sora, que levava cada musica para cima de um penhasco ~ e pelas acrobacias vocais de McCartney, Newby ficou impressionado pelo modo como Paul, em particular, havia se transformado de crooner competenre em um vocalista cujo alcance vocal parecia fazer os arranjos crescerem em espiral. “Paul tinha desenvolvido um jeito de cantar em falsete que me deixou embasbacado”, diz cle. “Ninguém em Liverpool cantava assim, como Little Richard... ninguém.” eee Mais do que ninguém, Lennon sabia que haviam feito grandes progressos. (Anos depois, ele revelaria “Achavamos que éramos os melhores, antes mesmo que alguém mais ti- vesse nos ouvido, em Hamburgo ou em Liverpool”) Mas s6 naquele agosto a banda causara em Liverpool um embaraco implicito. Ela tocava de modo irregular, e no tinha uma linha definida de trabalho, O que circulava na cidade era que © conjunto tinha a pior formacio do circuito ~ nem sequer era um conjunto, quando se levava em conta que nao conseguiam ‘THE BEATLES manter um baterista. Howie Case’ y, que liderava os Seniors ¢ um dia tocaria no Wings, diz: “Com certeza no os conhecfamos, ¢ acho que mais ninguém... os conhecia”. Somente 0 lider de um grupo importante foi capaz de lembrar o pesadelo de um programa triplo em que tocaram naquele més de maio no auditério Lathon, em Seaforth, subixbio de Liverpool. “Bles eram to ruins”, lembra cle, “[que 0 promotor do evento] simplesmente fechou as cortinas do palco!” ‘Assim, a banda partira para Hamburgo; depois disso s6 restava a fria probabilidade de conseguir trabalho de aprendiz, nas docas de Liverpool, um cargo de escrituririo na Cotton Exchange ou na British Rail ou 0 servigo de rebitador em uma das fibricas de automéveis que proliferavam nos subiirbios. Sem chivida, depois da Alemanha no haveria mais vida clegante. John Lennon fora expulso da escola de artes por sua extrema indife- renga, uma desgraga que ele parecia cortejar, como se um sinistro diagnéstico se tivesse confirmado, Paul McCartney havia desbaratado sua promessa académica inicial ao sair-se tao mal nas provas que os professores abandonaram toda esperanga de que ele chegasse & universidade. George Harrison, que encarava a escola como um terrivel aborrecimento, de- cidira esperar as provas ~ ¢ fracassara em todas. Animado com a perspectiva de tocar, Pete Best deixara de lado os planos de freqiientar uma faculdade de pedagogia. Apenas Stuart Sutcliffe, que era um artista convincente e apaixonado por sua arte, tinha alguma esperanga de sucesso, ¢ seus colegas de banda sabiam que ele acabaria abandonando a misica para seguir seu destino de pintor. Mas Hamburgo deta uma poderosa guinada na vida dos trés. Algo estranhamente significativo ocorrera li algo intangivel abrira uma pequena janela de esperanga e dera a seus sonhos um impeto novo ¢ imprevisivel. Seus shows ganhavam um entusiasmo que beirava a anarquia, Frustrados com a mesmice em que bandas do rock inglés haviam se acomo- dado, exploraram sua nototiedade como “um bando de nojentos” ¢ detonaram o volume do som. Comecaram a reformular as apresentagdes para atingir a platéia com extravagincias recolhidas de tipos endiabrados como Gene Vincent € Jerry Lee Lewis. Nesse processo, tornaram-se no s6 rigorosamente competentes no palco como muitissimo populares entre 0 ratos de boate alemies. Ai, com a mesma voracidade, tudo desabou. © periodo de Hamburgo terminara em tumulto, com os rapazes deportados de ma- neira pouco elegante e embarcados pata o norte mais uma vez em baldeagGes irregulares, onerosas, Durante duas semanas vadiaram por Liverpool, tristes sem rumo, um evitando © outro como animais obrigados a dividir uma jaula no zoolégico. Paitava sobre eles, crua- mente, a prova de que seu sonho havia acabado e 0 peso da presenga mitua tornava aquilo ainda mais dificil de suportar. PROLOGO Foi em meio a essa crescente depressiio que John e Pete apareceram no mindsculo café Jacaranda. Haviam chegado para tomar um café e, por acaso, encontraram Bob Wooler, uum sujeito esperto, obsequioso, de 28 anos, sem nada de jovem além da paixio pela musica popular. Ninguém estimulava a comunidade do rock’r’roll de Liverpool com mais habili- dade que Wooler, compositor fracassado, até que alguns anos depois ela foi jogada para escanteio pelo rolo compressor de Brian Epstein. Bob projetava a clogiiéncia deshumbrante de um atot ¢ empostava a voz. com uma ressonfincia décil e floreada que passava a sensagio entavam irritados, ataran- de confianca a seus jovens pupilos. Toda tarde Lennon ¢ Best s tados, a uma das miniaturas de mesas, cercados por bandos de universitarios barbudos, ¢ se lamuriavam com Wooler sobre sua situagio profissional. Eles queriam trabalhar de novo — desesperadamente. Qualquer coisa serviria: um show, um baile, um clube, até uma festa, Ele tinha de ajudé-los, s6 isso, insistiram, © tinico evento importante a seguir era o préximo baile de Natal no centro co- munitario de Litherland. Da cozinha do Jacaranda, Wooler ligou para 0 empresitio Brian Kelly, com Lennon e Best ao scu lado, ligados em cada palavra que ele dizia. Na outra ponta da linha, o suspiro teatral de Kelly exalava impaciéncia, Empresirio rabugento do pequeno grupo de missiondrios que propagavam o evangelho do rock'n'roll, ele ja tinha ouvido aquilo tudo antes ¢ estava habituado ao vento forte da retorica de Wooler quando se tratava de promover miisicos. No entender de Kelly, Wooler estava tentando bater sua carteira. Além disso, ele ja havia programado trés bandas para o evento. Mas Wooler era persuasivo. “Eles sio fantisticos”, garantiu ele a Kelly, que rebareu 0 clogio com um nitido grunhido. “Vocé nao podia encaixd-los como atragio extra? Como eu disse, eles tocaram em Hamburgo.” Para pontuar essa distingao, Wooler pediu a ele um honoritio de 8 libras para 0 con- junto, uma quantia excepcional para uma atracio local. Kelly no precisou de mais de um segundo para responder: “Ridiculo!” Decidido, Wooler procurou outra linha de argumentagio para reforcar sua posicao. “Sim, mas agora eles sio profissionais”, disse ele. Isso levou Kelly a gaguejar de repulsa. “Pro-profissionais! Nao dou a minima se cles sio profissionais”, respondeu. Wooler lancou por sobre 0 ombro um olhar incomodado aos vigilantes rapazes, os dois rostos entrando e saindo das sombras do fim da tarde. Hamburgo os havia amadureci- do, pensou. Best, o mais alto dos dois, tinha cabelo ericado, uma transparéncia fantasmago- rica nos olhos ¢ as feigdes suaves do gala de matiné que fazia 0 coragio das meninas bater mais forte; Lennon, embora alguns centimetros mais baixo, parecia mais no comando, dado © olhar duro que langou ¢ 0 tom de sua face, composta numa expressio de insatisfagio THE BEATLES com os li bios comprimidos. E para os dois era evidente que a conversa no estava andando conforme o pretendido. Distraido, Wooler lancou-lhes um sotriso ligeito, profissional, antes de voltar av seu diapasao de vendas. Ele ¢ Brian Kelly continuaram naquilo pot mais cinco minutos, aparando e devolvendo golpes com pormenores em favor de suas tespectivas cau- sas, até que chegaram a um acordo aceitavel. Pouco depois, Wooler enfrentou outra ardua batalha: convencer Best ¢ Lennon a aceitar a oferta de 6 libras de Kelly. Era bem menos do que haviam ganho no ultramar, nada que os incentivasse muito. Mas, afinal, era um trabalho, era mais uma oportunidade de tocar rock. Por enquanto, estavam de novo no ramo. Depois da velha doca de contéineres de Bootle, a Stanley Road se abria em duas vias secundarias de pista dupla que desembocavam na Linacre Road. A rua descia a partir dali ¢, numa cutva, os rapazes avistaram a parte central da cidade, que se estendia pilida sob a luz pouco favordvel do inverno. Litherland tinha muitas ¢ muitas lojas, além do edificio de uma missio metodista cuja sélida massa de tijolos em tom creme e vermelho fora usada como ne- crorério durante a Barz alema. A placa da salsicharia iluminada por holofotes, com seu porco tonto de neon marchando com uma fieira de salsichas, provia um farol para o sul; o inflado dossel a0 Jado do Regal Cinema brilhava no extremo oposto; o resto do baitro existia em dia- gonal atris da via principal. Nao havia horizonte visivel, apenas quadras ¢ quadras de filas de casas muito estreitas, unidas pelo telhado e estendendo-se como surradas contas de plastico. Houve um tempo em que Litherland, com suas férteis fazendas verdejantes, se impunha or- gulhosa na fox do Mersey, mas a Luftwaffe arruinara seus sonhos. A fibrica de fosforos, com a fachada de tijolo aparente, atingida por bombas incendidias alemas, continuava a ser uma concha explodida e enegrecida, enquanto, mais adiante, fendas achatadas em casas geminadas ¢ tetos esburacados de igrejas eram como tabuletas indicativas s do turbulento passado da area. Frank Garner, motorista da banda (ninguém da familia deles tinha carro), encostou a perua o mais perto que conseguiu da entrada para que os rapazes pudessem desembarcar © equipamento, Na escuridao crescente, conseguiram ver s6 uns dez adolescentes parados junto 3 entrada, A falta de uma fila compacta deixou 0 grupo incomodado, até que percebe- ram que todos os outros ja haviam entrado para fugic do forte cheieo de caca que exalava do curtume na Field Lane, logo depois do centro social. A duras penas, arrastando o equipamento, sairam agachados e apressaram-se a entrat por um velho e remendado corredor de madeira que dava para um vestiatio aberto recen- A camara do conselho distrital ¢ os ¢s dendo a laqué ¢ desinfetant ctitérios secundatios, onde os moradores pagavam suas contas, estavam fechados desde as 17h30, de modo que a banda enveredou por um corredor ladeado por salas desertas até a area dos bastidores, onde Bob Wooler estava as voltas com a lista de misicas da noite. PROLOGO Para Wooler, vé-los foi uma surpresa agradavel. No processo de programar 0 show, John Lennon tinha reclamado que 0 caché nio valia 0 esforco todo e Wooler implorara: “Pelo amor de Deus, nio me decepcionem”. Lennon lhe garantiu que eles apareceriam, mas Wooler estava cético. Mesmo assim, resolveu programi-los para as 9 horas — a “atracio do meio”, como se dizia -, entre os Deltones ¢ os Searchers. “Isso queria dizer que todos jé estariam no audi- trio”, embra Wooler, “ninguém entrando atrasado ou saindo antes do que devia. Durante meia hora, cles teriam toda a atengio de Liverpool.” Por que Wooler fez isso continua a ser um mistério ~ até para ele mesmo. Embora ja tivesse ouvido o conjunto numa outra ocasifio, fora s6 durante uma cangio, antes de se mandar para o refiigio de um bar, o que nao Ihe permitira formar exatamente uma opiniao. Tampouco fora a atitude deles que o havia motivado. Mas, como vitima de frustragio artistica, era inevitavel que Bob fosse atraido pela dificil situaciio da banda, principalmente pela vulnerabilidade de John. Wooler sentia em Lennon uma pessoa de impressionante complexidade ¢ ambic&o; o rapaz parecia emanar calor, denotando uma espécie de talento bruto, inquieto. Havia ali alguma coisa que valia a pena explorar, concluiu el . “Por isso, confici na minha intui¢ao de que eles iriam causar uma sensacao incomum, importante.” ‘A casa estava cheia, composta em confusa silhueta - mio a de um esquadrio de marinheiros bébados, mas a de adolescentes locais, muitos dos quais ex-colegas de escola. Wooler estava ocupado com os preparativos, porém, entre o segundo € 0 terceiro discos do intervalo (havia uma regea: .6 trés muisicas gravadas entre as entradas dos conjuntos, nto mais, para evitar a possibilidade de brigas), ele se aproximou para dar um aviso de dltima hora, “Eu vou anunciar vocés”, apressou-se a dizer aos rapazes, “e ai vocés entram direto numa musica assim que a cortina abrir. Observou o sinal de concordincia no rosto deles, mas notou uma ligeira desaprova- cao em seus gestos, Entdo seja o que Deus quiser, pensou. Da frente do palco, podiam ouvir a multidio acalorada, a atenco voltada para longe. A massa de adolescentes queria acio. Perdidos em pensamentos, eles dangavam entre as apresentagoes; os discos nao substituiam a coisa de verdade, e agora, enquanto o som de fundo abaixava, suas risadas soltas e sua estridéncia assinalavam uma excitagio que procu- rava condensar-se em impaciéncia. Além disso, havia uma curiosidade geral em torno do prdximo conjunto, que tinha sido acrescentado 20 programa no tltimo momento e era anunciado como “diretamente de Hamburgo”. Uma atragio alemi, Seria interessante ver 0 contraste que seu sotaque e sua interpretacio fariam com a pr. bandas de Liverpool, dio habitual das principais Tue Brats © auditério estava apinhado de adolescentes, muitos dos quais se haviam reunido em mesas de baralho ao longo das duas paredes laterais para aguardar a proxima atracio. A maioria estava vestida da forma que eta comumente chamada de “fantasia” para as: stir a0 que restava das festividades do feriado. Os rapazes de banho tomado, cujos ternos escutos também exam seus uniformes escolares, pareciam rigidos ¢ timidos, enquanto as garotas, embainhadas em saias justas que desciam até a barriga da perna ¢ blusas brancas, desfilavam alegtes indo e vindo do banheiro do andar de cima, onde davam os retoques de tiltima hora na maquiagem. Os que dangavam moviam-se a esmo pela grande pista aberta, s empre com um olho no palco & medida que a banda se preparava atras da cortina. Logo a resistencia dos amplificadores crepitou: John ¢ George se plugaram no mesmo Truvoice, enquanto Paul ligava seu fiel Ampigo verde-marinho. A platéia se agitou ¢ se voltou quando Bob Wooler entoou no microfone: “E agora, com vocés, a banda que todos estavam esperando. Direta- mente de Hamburgo...” Mas, antes que ele pudesse anunciar o nome, Paul McCartney atacou numa explosio bruta, estridente, enquanto a cortina se abria, ¢ deslanchou: “Tim gonna tell Aunt Mary | ‘bout Uncle Jobm 1 be said be had the misry / buthegataltofias. Ob, baby! A dana a esmo da platéia parou no meio do camino. A zeagio foi tao inesperada que Wooler, num primeiro instante, nfo conseguiu percebé-la, Parte do motivo foi a explo- sio que abalou 0 auditdrio. Um toque forte do bumbo acompanhava cada semiinima com forga fenomenal. O primeiro, logo apés Paul gritar “Tell”, soou de tal forma que 0 ataque ticocheteou furios pois uma saraivada que tinha 0 conhecido “bam-bam-bam” de um av mente nas paredes. Houve um segundo em “Mary” ¢ mais outro, ¢ de- > da Segunda Guerra descarregando 0 inferno todo num alvo local: era um ataque inacente de loucura. As panca- iio havia onde das vinham em ondas ritmicas e, uma vez iniciadss, nao se interromperam. } se abrigar no chao exposto. Todas as cabecas se atiraram para a frente e estatelaram os olhos em face da emboscada ensurdecedora. Os jovens poderiam dizer que a mtsica ribombando a0 sev redor era uma espécie de rock'n'roll, mas tocado de um jeito diferente de tudo 0 que ja tinham ouvido antes. Oh ba-by, yeabhbhhh | now ba-by, woooooo... Exa convulsiva, assustadora e visceral no modo como desencadeava o frenesi na multidao. A aparéncia fisica do conjunto criou ourra comogao, Por um instante tenso, a mul- tidio $6 olhou, aténita, tentando assimilar a cena inteiramente desconcertante. Quatro dos miisicos vestiam conjuntos pretos, que haviam comprado na ‘Texas Shop de Hamburgo: * "Vou falar com a tia Mary sobre 0 tio Jon, fle disse gue bao fo unr ten 6, } mas na rerdade ele se divert pra arama.” (N. do TE) 10 PROLOGO. belas jaquetas de couro rachado com ombreiras ¢ forro de pele artificial de carneiro, que se mostrava sufocante sob os holofotes, camisetas negras e calcas justas sedosas. Com os ins- trumentos atravessados abaixo do tronco, os guitarristas pareciam a materializacio de uma fantasia de rebeldia juvenil. Ninguém tampouco conseguia desviar os olhos das rudes botas de vaqueito com saltos baixos, cortados, que cada um deles usava, sobretudo as de John Lennon, que eram otnadas com as Twin Eagles, com galdes de passaros entalhados tanto na frente como atras e costura branca nas bordas. “Eu nunca vira um conjunto como aquele antes”, diz Dave Foreshaw, um empresitio de Liverpool, que contemplou 0 espetaculo com extrema perplexidade. “E pensei: ‘Que sio eles? Quem sio eles?” Como se alguém tivesse disparado uma senha pré-combinada, a multidio toda se ptecipitou para diante, pressionando exaltada os que estavam na frente rumo as luzes da bei- rada do palco. Garotas e rapazes impetuosos abandonaram o decoto social em troca de uma reagio puramente emocional. Todos tisham parado de dangat; havia agora uma gravitagdo total rumo ao paico. Achando que uma briga comecara, Brian Kelly correu para o salio com varios ledes-de-chacara em fila. O organizador da noitada passou por um momento de verdadeito pinico. Segundo Bob Wooler: “Muito tempo depois, [Kelly] me contou que ja estavam a ponto de usar a forga bruta, quando por fim perceberam a razio do alvoroco”. ‘A banda também chegou 4 mesma conclusio ¢ comecou a botar a multidio para suat, Os miisicos aceleraram o ritmo e atacaram num furioso improviso. Aproveitando ca- coetes de palco que haviam inventado na Alemanha, sacudiam e revolviam 0 corpo com crescente energia. John ¢ George passaram a dar estocadas no tablado como cachortos bravos, batendo os pés para acompanhar o tempo da misica. (Newby, obrigado a observar as maos de Harrison para seguir as mudancas de acorde, entrava na farra a intervalos irregu- lares, embora, para seu desalento, a falta de botas decentes de caubéi tornasse “bem menos eficaz” sua participagio nas palhacadas.) “Era muito diferente”, lembra Bill Ashton, aprendiz de mecinico da tede ferroviéria briténica, a British Rail, que nas horas vagas cantava como Billy Kramer numa banda chama- da The Coasters e viera a Litherland para avaliar a concorréncia “estrangeira”. “Agir daquele jeito no palco e fazer aquele tipo de som, aquilo me deixou totalmente perplexo.” Come todos os demais, Kramer estava habituado a bandas que se pautavam por Cliff Richard and The Shadows, a principal atragio do rock'n'roll inglés, adeptos de uma coreo- grafia suave ¢ cuidadosamente servida, Até entio, todos tinham seguido os passos delicados dos Shadows. Esse conjunto novo, porém, era um animal de natureza diferente. Segundo Dave Fo- “Normalmente, [grupos populares de Liverpool como] 0 Remo Four ou os Domi- 11 THE BEATLes noes chegavam e... se apresentavam de uma maneira polida, ordeira. O desempenho dessa outra banda atingia o puiblico com contundéncia. Eles [tocavam] com agressividade e muito menos respeito, Eles atacavam o publico!” E, quando John Lennon foi para o microfone ¢ desafiou 0 pubblico a “baixar as cal- cas!”, a platéia, em estado de euforia inconsciente, indiscriminada, gritou e ergueu os bracos em delitio. Brian Kelly percebeu uma mudanca sismica na paisagem e se apressou a conté-la postando ledes-de-chacara junto as portas para proibir que empresarios concorrentes como Foreshaw viessem cacar ilegalmente o seu butim. Mas era tarde demais para medidas ind- cuas como essa, A casa estava em plena erupgio de histeria quando o grupo concluiu seu programa de meia hora com uma versio excitante de “What'd I Say”, na qual Paul McCart- ney deu um salto ornamental e ficou entre o publico, instigando os garotos a um confronto arrebatado, Durante o tltimo aplauso entusiistico, Bob Wooler conseguiu dizer: “Isso foi fantistico, caras”, mas era duvidoso que alguém prestasse muita atencao a ele. Estavamn ocu- pados demais tentando entender o que acabara de acontecer ali naquele palco, o que havia transformado seu bailinho de Natal numa total epifania. Era inevitavel: de algum modo a banda espremera cada nervo da cena local do rock, € essa cena nunca mais voltaria a ser a mesma. Na parede de som ribombante ¢ no traje de couto negro, aqueles jovens misicos tinham acabado de postular seu direito a histéria. E, naquele instante, haviam-se transformado nos Beatles. 12 MERCE Capitulo 1 Uma educagao adequada oO A gua. Os que eram atraidos para ela — os marinheiros para quem o marulhar infinite- simal contra a proa e o borrifo branco prefiguravam uma janela para o mundo, os mercadores ¢ artesios que transportavam mercadorias do norte e do centro do pais pata as dinastias comerciais, os trabalhadores das docas e operarios treinados para manter as ma- quinas em movimento — deixavam que o mistétio do Mersey dominasse sua imaginacio. O rio, com seu magnetismo escuro, sinistro, dirigia a cidade como se ao longo de sua existéncia tivesse esperado por um stidito tio flexivel e puro quanto aquelas margens, aquelas docas de madeira espinhosa, aquela beira-mar. Nao era uma linha costeira tipica do Lancashire, ideal para barcos de lazer e banhistas, mas formava um notdvel porto natural de 12 quilometros, adornado com rochas cor de chocolate escuro que se agarravam na elevada paisagem urbana de Liverpool como uma bainha de costureira. O micleo do sistema de docas, com sua massa imponente de estruturas antigas — armazéns, diques, pontes giratérias, fertovia suspensa e portdes ~, alimentava um denso centro urbano em rampa, de tijolo vermelho e piniculos de igreja, em si mesmo uma espécie de salpico de ferro que dotava as cercanias de uma mara- vilhosa simetria de apoio. As pessoas que moravam nessas paragens viam porto maritimo como um limiar no horizonte. Além dele, um mundo invisivel acenava. Nem um dia se passava sem que frotas de navios de mastros altos estivessem em répido movimento, com destino a um dos cantos do globo que povoavam as imaginagoes. Liverpool se considerava “o Portal do Império Britinico”, por seu dominio do co- mércio imperial. E no entanto, para 0 resto do pais, principalmente os que viviam na menos formal Londres, Liverpool era uma sibéria anglicizada: desolada, insular, insignificante — longe dos olhos, longe do coragio. Trabalhando duro, vestindo cores escuras e esquecida. O preconceito no era nenhum segredo, ¢ tornava os homens ¢ mulheres do Norte temiveis 15 THE BEATLES € companheitos. As pessoas de Liverpool chamavam a si proprias de “scousers”, atribuindo a seu parentesco comum uma magia exaltada, quase da mesma forma como os moradores do monte Ozark’ sio tratados como matatos. A palavra derivava do termo niutico /abscouse, tum prato de marinheiro que consiste em guisado de carne com legumes e uma bolacha de bordo, mas corrigida ao longo dos anos pelo costume itlandés de manter uma panela desse guisado chiando no fogio a semana toda, qual eram adicionadas sobras de comida e miga- Ihas da mesa a medida que se tornavam disponiveis, “Os sconsers tem um ardente pattiotismo local”, diz Bill Harty, que cresceu no centro da cidade na mesma época que os Beatles ¢ fundou o Mersey Beat. E como ter um pais pré- prio. Um verdadeiro seouer acredita que esta lutando contra todos no mundo e que todos sio contra ele, principalmente os londrinos, Ele defende essa posi¢io com elogiiéncia: com os punhos. Como muitos meninos do litoral, os quatro jovens que formariam os Beatles eram absurdamente modestos, considerando a saida que a agua propiciava: “ser o melhor conjun- to de Liverpool” era 0 maximo que eles almejavam que acontecesse algum dia. O Mersey era seu tinico tio. Duzentos anos antes de os Beatles cruzarem a agua para “tomar a América de as- salto”, os navios de Liverpool singraram os mares para suprir as novas colénias, cujos pro- prictirios de terras desejavam escravos afticanos corpulentos. Os magnatas do Merseyside”, abominando a pritica da escravidio mas embriagados com os lucros que cla propiciava. fretavam “pequenos navios intépidos”, carregados de tecidos verdes ¢ azuis de algodao de Manchester e tangas listradas chamadas de anabasses, que desciam o Atlintico até a Africa ocidental, onde, na itha de Gorée, pantanosa e assolada pelo impaludismo, negociavam com mascates de carne Arabes e afticanos trocando téxteis por carga humana. Essa, de acordo com diitios de bordo e registros portudrios, era a primeira perna de uma rota triangular para 0 chamado comércio africano, uma jornada de doze meses que exigia uma ardua “passagem do meio”, atracando proximo & Virginia ou as Indias Ocidentais, onde 0 algodio ou 0 ag car, tespectivamente, eram entio despachados para Liverpool Liverpool prosperou nas costas dos escravos — prosperou € adensou-se. © histo- riador J. A. Picton destaca que as novas estruturas expressavam uma elaborada influéncia grega, com colunas ornamentais ¢ telhados pontiagudos, para que “tudo tivesse como mo- * Montatha do Arkansas, nos Estados Unidos, (N. do T.) "0 condado a que pertence Liverpool. (N. do T.) 16 delo o Partenon”, A cidade teve um crescimento rapido e desordenado, e marinheiros ¢ trabalhadores das docas, confiando na promes a de riqueza, chegavam para reivindic4-la. Por volta de 1800 Liverpool se tornara a cidade mais rica da Inglaterra, e em toda a Europa perdia apenas para Lyon. Uma nova ¢ decidida leva de estivadores precipitou-se ao longo do grande armazém aduaneiro de tabaco da Kings Dock ¢ adentrou os meandros do terminal do Duke’s Warehouse, onde as barcacas eram descarregadas enquanto flutuavam em suas cavernas de tijolos arqueadas nada convencionais, Os armazéns expostos ao sol que atra- vancavam a Jamaica Street se inflavam constrangedoramente com a pridiga carga. Novas construcdes proliferavam como serralha. Geralmente. nos lugares aonde o dinheiro € 0 sucesso aftuiam seguia-s¢ 0 orgulho civico, mas nio nesse caso. O trifico de escravos, tornado grotesco € insustentavel devido 4 indignagio pitblica, foi por fim abolido, em 1807. Os principes mercantes converteram convenientemente seus navios para transportar produtos e, por alguns anos, houve prospe- tidade. No final, porém, os frutos nao se mostraram to rentiveis. Sua consciéncia foi salva por ctimplices americanos, cujo infalivel poder de recupera- Gao desafiava toda razio. Cultivadas em fazendas dispersas por todas as Indias Ocidentais, quantidades irregulares de algodao sedoso, de fibra larga, sempre haviam sido misturadas com cargas maiores que continham acticar, rum, tabaco, gengibre e café ~ que vinham em troca de escravo: A maior parte do algodao nao era beneficiada, sendo usada para roupas intimas e pavios, mas prdximo a Manchester, ponto de afluéncia de trabalhadores téxteis que, séculos antes, haviam sido expulsos da Flandres pelo duque de Alva, a manufatura de algodio desenvolveu-se em ritmo acelerado, Em 1800, 27,3 milhées de toneladas de algodio eram importadas pela Gra-Bretanha; até o tiltimo chumaco, cle era destinado a Manchester € dai redirecionado, por negociantes, para moinhos no sudeste de Lancashire, que estavam operando a plena capacidade. Quando explodiu a revolucio industrial inglesa, 0 mesmo aconteceu com 0 mercado de téxteis. E Liverpool, & espera de oportunidade semelhan- te, encontrava-se na posicio ideal, em termos financeiros ¢ geogréficos, para controlar a inddistria. O algodio era desembarcado em Liverpool em tamanha quantidade que havia engarrafamento de barcos no Narrows, um canal a céu aberto entre a cidade e Birkenhead: cles eram obrigados a formar fila, aguardando a ver de descarregar. Quase da noite para o dia, a atarracada linha de docas cresceu para cinco, estendendo-se a norte ao longo do tio, enquanto as instalacdes portudrias devoravam as ruas que circundavam 0 porto como ar- cadas dentarias. Banco: alfindegas, uma bolsa mercantil, escritérios de seguros e cartérios se entremeavam no tecido confuso de novos armazéns, cuja vastidao, escreve Picton, “ui- trapassa a pirimide de Quéops”. Trés igrejas magnificas, construidas inteiramente de ferro pré-fabricado, foram erigida entre 1812 e 1814, permitindo aos venturosos dar gracas por 17 ‘THE BEATLES tanta riqueza. Editicios utbanos, imitando com pericia os palazz’ dos Médicis, conferiam a grandeza e a versatilidade devidas a um prdspero eixo comercial. O algodio trouxe respeitabilidade a Liverpool. Mas a gua era avassaladora e, embora seu recurso infinito guiasse as oportunidades rumo ao porto maritimo, também o engolfava. De 1845 a 1849, quase 50 mil refugiados irland cando uma situacio préxima da calamidade publica. A escassez de batata obrigou aldeias s amontoaram-se em Liverpool, provo- inteiras a deixar suas terras e precipitou levas inteiras de suas vitimas nas docas do Mersey- side, despejando-as ali como a esquilida presa de algum baleeiro a espera de ser reclamada. Entre elas estavam as familias de John O’Leannain (0 sobrenome da familia seria alterado ¢ James McCartney II. Um total de 1,5 milo de para contornar a divisio entre as seitas) irlandeses atravessaram o estreito, alguns parando apenas o tempo suficiente para conseguir um navio para a América, enquanto outros, vulnerabilizados pela doenga e pela sibita po- breza, procuravam residéncia permanente no que j era uma cidade de crescimento rapido e superpovoada, Numa referéncia desdenhosa, que mesmo assim contém alguma verdade, 0 historiador Quentin Hughes afirma que “Liverpool ficou com a escoria”, Familias inteiras, cujos recursos em geral se limitavam as roupas do corpo, aglomeravam-se em bairros-dor- mitérios impréptios para ocupacio humana, “Muitas casas em que residia uma tinica familia agora tinham... cinco familias”, destaca Hughes, “com pessoas vivendo no porio, onde o chao era de terra batida ¢ [no havia] nenhuma ventilacio.” Numa tentativa precipitada de remediar a situacio, urbanistas assentaram pessoas em areas de casas enfileiradas, geminadas de ambos 0s lados e dando fundos com fundos, de forma que as tinicas janelas e a venti- lacio ficavam na frente. Tanto para os moradores urbanos como para os recém-chegados, Liverpool se tornou uma cidade feia e hostil. Os irlandeses eram acusados de criar um sem- ntimero de problemas sociais, sendo os mais graves o incéndio premeditado, a violéncia de gangues e um surto de célera que devastou todo o centro da cidade. Inversamente, era a fria insensibilidade dos habitantes antigos, atirmavam os recém-chegados, que alimentava cssas condigées € temores. Os McCartneys, biscateiros de oficio, encontraram residéncia temporiria proximo as docas, onde Joseph, avé de Paul, nasceu em 1866. Os Lennons foram atraidos para as vizi- nhangas de Vauxhall, um baitro de imigrantes na maioria irlandeses, logo ao norte da cidade, na zona portusria, Para o avé materno de John, George Earnest Stanley, a forca da agua era mais atraente ¢ segura do que tudo 0 que a protecio da terra podia oferecer. Descrito como “um lobo-do-mar auténtico”, nos moldes do Ismael de Moby Dick, cle passou trés quartos da vida a bordo de navios mercantes a servigo da Coroa. Nao havia nada de incomum em jovens da Area partirem e ficarem meses, ou até anos a fio, longe de casa, Na verdade, muitas vezes essa cra uma alternativa razoavel a0 nimbo 18 Uma EDU CAO ADEQUADA de miséria que encontravam na volta, Stanley nio tinha nenhuma intencio de ganhar a vida em meio A varfola das fabricas e dos matadouros a0 longo do cais. A vida no mar significava menos dificuldades ¢ uma oportunidade de prosseguir sua busca espiritual por “ver o mun- do civilizado”. Embora jamais tenha ascendido na cadeia de comando, George tornou-se um consumado fabticante de velas de navios ¢ foi engajado num dos primeiros navios de teés m: stros a dar a volta a0 mundo. Isso deixava poucas ocasides para manter um namoro comum, mas em 1885 George Stanley estava casado com uma galesa de 22 anos chamada Annie Jane Millward, uma das trés filhas de um cli metodista muito tigido cuja matriarca, Mary, recusava-se a proferix uma palavra sequer na lingua do diabo, o inglés. Sendo ela pro- ptia uma religiosa praticante, com pouca tolerincia para a vida mundana, Annie arriscava sua devogio trabalhando para um advogado especialista em diteito consuetudinario em Chester, e foi la, no antigo e animado porto maritimo romano, que ela acabou conhecendo George Stanley. George tinha “um génio forte”: inflexivel sem complacéncia, exigente sem concessdes. No entanto, era responsivel ¢ bem-disposto para sustentar uma familia, Depois de vet quatro de seus tios mozrerem de tuberculose conttaida de leite produzido na fazenda leiteira da familia, Annie estava decidida, quase obsessivamente, a ressemear a arvore gene- alogica, e assim que se casou dedicou-se quase exclusivamente a ter filltos. Em répida sucesso — pelo menos no cronograma petmitido pelos periodos em que George passava no mar —, Annie deu a luz cinco criangas, todas meninas: Mary Elizabeth, também conhecida como Mimi; Elizabeth, chamada carinhosamente de Betty ¢, mais tarde, de Mater; Anne; Harriet; e a cacula, Julia, apelidada de Judy, mie de John Lennon, nascida em 1914. Matido consciencioso que era, George Stanley acabou se rendendo i realidade do- méstica e, a contragosto, aposentou-se da navegaciio para assumir um emprego em terra firme na Liverpool and Glasgow Tug Salvage Company, que resgatava de leitos ocednicos traicoeiros os destrogos de submarinos naufragados. Em vez de morar no centro de Liver- pool, que ainda era inacreditavelmente perigoso, os Stanleys se estabeleceram em Woolton, um subtirbio delineado por estradas de terra e fazendas. As cinco irmas cresceram fortes ¢ muito apertadas numa modesta casa geminada, no mimero 9 da Newcastle Road, no distrito conhecido como Penny Lane. Anos mais tarde, John diria: “Aquelas mulheres exam fantisticas... cinco mulheres forte, inteligentes, bonitas, cinco irmas”, como se fossem um niimero de teatro de revista: as Stanley Girls. Ele admirava seu espirito coletivo, ¢, pelo que a histéria mostrou, eram realmente um grupo notavel, Mimi, a mais velha, assumiu um papel matriarcal, cuidando da irmas de uma forma que se substituia * © primeiro filho do casal era um menino, que morreu logo apés 0 patto. 19 Tue Bi EATLES A abstrata mie. Mimi era ajuizada: enfermeira sem titulo, amante da cultura, de lingua afiada ¢ principios elevados, jovem cumpridora de seus deveres, trajava o tipo de vestido recatado que parecia escolhido para o encontro semanal do clube de jardinagem, “Ela nasceu com um senso agucado de decoro”, recordou um de seus sobrinhos. Seu método era muito sim- ples: tudo funcionava no eixo do decoro e da honestidade. Eta tudo preto no branco: ou vocé era bom ou nio era. “Ela tinha um grande senso do que era certo e errado”, lembra Pete Shotton, amigo de infincia de John Lennon. Nao havia nada, nenhuma situagdo ou dilema com que Mimi nao estivesse aparelha- da para lidar. E, enquanto as mais novas devaneavam sobre constituir familia, Mimi sonhava com desafios e aventuras — o tipo de anseio que exigia uma independéncia extraordinaria- mente obstinada. “Eu nfo tenho nenhuma intengio de me casar”, disse ela a um admirador, temendo a perspectiva de “ficar amarrada a uma pia de cozinha”. Quando se aproximava o seu vigésimo aniversétio, as aspiragdes de Mimi Stanley pareciam estat bem encaminhadas. Sua busca de uma vocacio respeitivel logo se revelou bem-sucedida, primeito como enfermeira residente num hospital de convalescentes de Woolton e, mais tarde, como secretéria particular de Ernest Vickers, um magnata da industria com residéncias elegantes em Manchester e no Pais de Gales. Por necessidade pessoal, Mimi dedicou-se inteiramente a seu patrio, certa de que, assim que a oportunidade se apresentasse, ela investiria suas economias “em uma modesta fazenda na qual poderia recepcionar estudiosos ¢ dignitarios de uma amostra seleta da sociedade de Liverpool”. Um concurso de circunstincias, porém, colocon 0 sonho de Mimi fora de seu al- cance. Na primavera de 1932, aos 26 anos de idade, um criador de gado Iciteiro, de baixa estatura mas de compleicio robusta, chamado George Smith, que morava bem defronte e toda manhi entregava leite cru no hospital, comecou a cortejé-la seriamente. Seus esforgos cram baldados pela frustrante indiferenga de Mimi pelo olhar vigilante de seu pai, que tratava todos os pretendentes das filhas como adversirios. “Vové. tornava as coisas impos- siveis para Mimi ¢ George”, disse Stanley Parkes, sobrinho de Mimi, que se lembrava de ter observado sua tia com olhos incisivos e admirados. Noite apés noite, ele via o jovem casal sentado no cémodo dos fundos da casa da Newcastle Road, “sob constante companhia: meu avé € minha avé sempre no quarto vizinho”. Quando ainda era absurdamente cedo, 0 velho George Stanley invadia a sala e gritava: “Pronto, ja chega! Agora vocé vai... par casal”, impossibilitando que a relacdo se desenvolvesse. © namoro se arrastou dese jeito por quase nto com o leite. “Othe sete anos até que, por fim, George Smith entregou um ultimato j aqui! Bu jé estou farto de vocél Ou se casa comigo, ou nada! O casamento de uma jovem tio dedicada & carreira com um homem relativamente trivial e modesto podetia tet provocado um efeito mais perturbador do que exerceu sobre 20 UMA EDUC. CAO ADEQUADA a familia Stanley, nao fosse por outra unific, mais problematica, acontecida com outra das muito ligadas irmis, Seis meses antes, no dia 3 de dezembro de 1938, Julia, a filha favorita e mais animada de George Stanley, deixou 0 pai atordoado quando entrou em casa depois de um encontro com o namorado de longa data ¢ anunciou: “Pronto! Eu me casei com cle”, agitando como prova a certiddo. Foi apenas de modo relutante, depois que o pai ameagou Julia de expulsio cla fosse morar com um amante, que ela propds casamento ao jovern asseado e de “perfil petfeito” e espitito agil chamado Freddie Lennon, fy] Se John Lennon romantizava a lembranca de sua mie, tinha uma imagem completa- mente oposta de seu pai. Ao longo da vida de John, Freddie Lennon permaneceu uma vaga silhneta, um desterrado; com excecio de duas breves aparigGes, niio teve nenhuma influéncia direta na educagio do filho. Afora o ressentimento que perdurou em razio dessa circunstiin- cia, a consciéncia que John tinha de seu pai passou a ficar ano a ano mais fraca, “Logo esqueci meu pai”, disse ele a Hunter Davies em 1968, “Era como se ele tivesse mortido.” Os Stanleys fizeram um bom trabalho ajudando a “enterrar” Freddie Lennon. “Des- de © comeco nao queriam ter nada a ver com ele”, afirmou sua sobrinha Leila Harvey. O pai de Julia o considerava abaixo da condigio de sua familia, “certamente nao {eral da classe média”, ¢ Mimi mais tarde disse que “sabfamos que ele nao serviria de nada para ninguém, muito menos para nossa Julia”. Embora por nenhuma gindstica da imaginacio se pudesse dizer que fosse refinado, Freddie eta “muito inteligente... um rapaz esperto”, sem duivida conseqiiéncia de longos anos sobrevivendo de expedientes. Filho de Jack Lennon, tefinado trovador inglés morto em 1919, Freddie, entio com 7 anos, ¢ 0 irmio mais velho, Charles, foram parar no Hospital Bluecoat. Situado na esquina da Newcastle Road, esse prestigiado orfanato de Liverpool se orgulhava da educacio marcante ¢ independente que dava a seus jovens pupilos. Ali, em meio a uma turma que competia febrilmente por alcancar as maiores honratias académicas, Freddie ganhou fama por ser cabega-fresca. “Sempre que Freddie aparecia, sabia-se que a diversio estava chegando”, disse um parente. “Ele no conseguia passat sem diversao.” Nao havia um lugar que ele no pudesse animar com uma observacio espirituosa ou uma réplica oportuna. A resposta mordaz. Ihe vinha naturalmente, transmitida com tamanha joie de viore que os amigos supunham que ele acabaria capitalizando isso em favor de sua personalidade. ‘Mas Freddie nunca foi capaz de juntar todas as pecas. Frivolo demais para dominar uma profissio, saltava de um emprego fixo para um bico, vivendo de pedir dinheiro aos amigos 21 ‘THE BEATLES ou ao irmao mais velho, Sydney, que trabalhava horas e horas fazendo bainhas de calgas ‘numa alfaiataria em Ranelagh Place. Freddie passava noites interminaveis numa das dezenas de casas de suudeville da cidade, onde conhecia pelo nome as belas “vaga-lumes” de pernas compridas que desfilavam pelos corredores. No Trocadero, um cinema adaptado para tea- tro na Camden Road, ele quase sempre ficava de olho na mais bela atendente, uma garota estonteante com as magis do rosto altas e um sorriso envolvente emoldurado por cabelos castanhos lisos e compridos, mas na verdade ainda nfo falara com ela, Julia Stanley. Foi somente num encontro casual no Sefton Park, aonde ele ¢ um amigo tinham ido numa tarde em pleno verio pata paquerar, que Freddie Julia travaram um rapido co- nhecimento. Seu encontro, como Freddie o relatou, podia ser visto como o roteiro de uma comédia romantica. Ele seguia lépido e fagueito por uma trilha com calgamento de parale- lepipedo, trajando roupa de criquete e manuseando uma piteira, quando topou com “aquela pivetinha” cmpoleirada num banco de ferro. “Quando passei por cla, ela disse: Voc tem cara de idiota’”, recordou ele. “Eu disse: ‘Vocé tem uma cata linda’, € me sentei ao lado dela.” Lancando-lhe um olhar brincalhao de esguelha, Julia insistiu em que ele tirasse 0 “cha- péu de idiota”, ¢ assim, com um sentido impecavel de oportunidade, Freddie prontamente 0 atirou no lago. Era o gesto perfeito para receber um convite para ir dancar ¢, em witima instincia, para o seu coracio. Fazia muito que Julia se sentia atraida pelo tipo de sensibilida- de cémica personificada por Freddie Lennon. Como Freddie, “ela fazia piada com qualquer coisa”, recordou um sobrinho que a adorava. “Se a casa estivesse pegando fogo em volta de Judy, ela sairia para a rua dando # da — faria uma piada sobre isso. De todas as irmis Stanley — todas “verdadeitas beldades... realmente belissimas”, de acordo com uma parente -, apenas Julia sabia como explorar seu precioso recurso. Em lugar de levantar 0 queixo quando um estranho a media com o olhar, Julia abria um amplo sor- siso e piscava astutamente para ele. Sempre que passavam por cla, os homens a encaravam. Com apenas um metro ¢ cingtienta e cinco de altura ¢ usando salto alto, um corpo rolico € atraente e grandes olhos castanhos que pareciam flutuat em seu rosto, Julia tinha uma beleza dbvia, provocante, que exagerava seu encanto. “Judy era muito feminina, era linda”, plicou sua sobrinha, “nunca estava desarrumada, A gente aunca a viu com 0 cabelo despenteado. Ela ia para a cama com maquiagem para estar bonita de manhi.” Mas nem toda a maquiagem do mundo conseguiu atrair 0 tipo certo de homem. Desde 0 momento em que saiu do controle da familia, Julia Stanley andou em companhia de uma s icessio de patifes bonitdes que the p: avam cantadas ripidas para escapadas ainda mais rapidas. Noite apés noite, cantarolando com animagio, ela fazia a ronda dos sales locais de dangas ¢ clubes ao ar livre, onde se congregava 4 multidio desenraizada de estivadores, soldados, garcons, operitios € rregadores em hora de folga. Dangarina 22, Uma EDUCACAO ADEQUADA gil com sensualidade despreocupada, Julia se via em grande demanda como patceira nos elegantes concursos de danca de suingue que se estendiam até as primeiras horas da mahi Ela contava piadas tio pesadas ¢ obscenas como as de qualquer homem, o que lhe trazia uma abundancia de admiradores. E cantava — “com uma voz parecida com a de Vera Lynn”, diziam ~ sem se fazer de rogada. A primeira vista, Freddie e Julia pareciam um casal implausivel, mas a partir do mo- mento em que se conheceram tornaram-. Hill vivia a alguns quarteirdes da escola, perto de Penny Lane, ¢, tendo em vista que sua mie trabalhava fora, os dois podiam passar uma ou duas horas escutando discos de 78 rotagdes na casa vazia. Gragas a algum milagre, Mike Hill tinha todos os discos de Elvis Presley, além de compactos de Hank Ballard and The Midnighters, Johnny Ottis, Lloyd Price e Fats Domino. “Ele também tinha discos da Dutch Sw estilo, mas que [..] adorévamos.” ig Band”, diz Pete Shotton, “que nio era la o nosso 62 MUscULO E TENDAO Uma tarde em que os rapazes beliscavam um almoco A base de batatas fritas e cigartos, John ficou sem palavras quando Hill pousou a agulha em “Long Tall Sally”, de Little Richard, Como lembraria posteriormente John: “[Mike] disse que tinha um disco [.] de um cara melhor que Elvis. Quando ouvi, era tio bom que fiquei sem palavras”. John ficou estupefato, completamente dominado pelo vocal cru ¢ uivante de Little Ri- chard acompanhado por uma linha selvagem de baixo boogie-woogie ¢ por um piano frenético, onipresente da abertura da miisica ao iiltimo compasso. “Olhamos uns pata os outros, ¢ eu no queria falar nada contra Elvis, nem mesmo em pensamento. Como eta possivel que os dois estivessem entrando na minha vida? E entio alguém disse: E um negro que est cantando’. Eu nao sabia que negros cantavam.’ Entio Elvis era branco € Little Richard era negro.” John jé estava sentindo um certo abalo em sua fé no onipotente Elvis. E ic, por exemplo, percebeu que, apesar de guardar os primeiros sucessos no fundo do coracio, “al- gumas coisas simplesmente nio se encaixavam mais”. Ao lembrar um dia de 1957 em que caminhavam para as aulas da tarde, Eric diz que eles fizeram um ligeiro desvio e foram até Liverpool para assistir 4 matiné de Love Me Tender. “Fomos nos sentar nas poltronas do cinema na Lime Street ¢ estouramos de tir [de Elvis]. John achava que ele estava ridiculo.” E, apesar disso, aquele fiasco, um escorregio artistico, no parecia minar nem um pouco do prazer que ele sentia com a misica, Imediatamente depois de assistirem ao filme, os Quarry Men comegaram a ensaiar “Don’t Be Cruel”, “Heartbreak Hotel” e “All Shook Up”. Exam vers6es simples ¢ sem muita energia, mas que satisfaziam o apetite dos garotos por rock'n'roll sem desagradar aos ouvidos que queriam skiffle. (Eles também tentaram tirar “Slippin’ and Slidin’”, lado B do compacto “Long Tall Sally”, mas sem muito sucesso.) “Nos passamos a tocar cada v z mais miisicas de Elvis”, diz Colin Hanton, que, como baterista, era receptivo a toda e qualquer oportunidade de imprimir um ritmo mais sensual as muisicas. “As platéias estavam comecando a pedit por isso; John jé estava sentindo. Nés estavamos prontos para seguir em frente.” ‘Mas a disposig20 nao substitui o talento. primeiro sinal auténtico de que havia problemas aconteceu durante a estréia do conjunto no Cavern, no final da primavera de 1957, © Cavern era territério inimigo; um clube de jazz tio tradicional quanto 0 jazz tradicional pode ser: eservado, segregador, exclu- sivo como uma autdpsia, santuirio dos aficionados por jazz de Liverpool, com uma clieatela de “supostos intelecruais” inflexiveis no que dizia respeito a0 culto & sua virtuosa musica. * Isso é claramente um exagero. 63

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