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Ora, essa agência na última etapa operada pelo psicanalista nos traz a uma outra
diferença entre o psicanalista e o xamã. Enquanto o xamã somente promove a síntese, o
psicanalista, enquanto o paciente continuar voltando ao consultório, trabalha desfazendo
as sínteses anteriores. Por quê? O psicanalista com suas intervenções ajuda o sujeito a
construir o seu passado, mas se o sujeito continua retornando ao consultório, é porque ele
não está satisfeito com a construção (permanece engajado no processo), tem algo ali, um
fragmento (aquilo que Lacan chamou objeto a), que insiste em não caber muito bem na
construção ou de deixar o sujeito insatisfeito com ela. Diante dessa permanência do
fragmento, o psicanalista poderia, digamos, fazer o papel de pôr esse fragmento em algum
lugar – é isso que as religiões ou as seitas fazem, diante da finitude da vida, de algum
vício, de um mal radical ou de um masoquismo exagerado, a religião consegue
redirecionar isso para a devoção a Deus. Mas nesse caso, o de encontrar um lugar para o
excesso, ele não estaria sendo um psicanalista, mas um xamã, um pastor ou um padre.
Ou, uma segunda opção, o de sempre apontar esse excesso ou essa lacuna no mito
individual que o sujeito está construindo e deixar que ele se responsabilize por esse
negócio – por conta disso o psicanalista não é um guru. Essa atitude de nunca construir
um mito para o paciente e de nunca dar uma resposta para um eventual excesso ou
descompasso que aparece em suas tentativas de síntese, o Lacan chamou de “desejo do
psicanalista”. Então, o desejo do psicanalista é o desejo de, enquanto o sujeito insistir em
retornar no consultório, não deixar esse cara constituir uma síntese.
1) Deve trabalhar causando a divisão do sujeito, num processo negativo. Ele aborda
os outros tentando desfazer as sínteses que estes possuem, por isso o militante
grita gritos de ordem na rua, espalha cartazes, às vezes faz umas intervenções
profanas, tudo isso na intenção de quebrar sínteses bem constituídas – me lembro
aqui de um paciente que era ateu, bem intencionado e adolescente, às vezes em
conversas com cristãos sobre a existência de Deus, a manipulação da religião e
afins ele dizia bem alto uma frase pornográfica e a associava a algo sagrado,
depois de um tempo ele me disse: “aquele povo tem que ver que o que é sagrado
pra eles, pra mim é lixo”. Assim, a questão que o militante sério deve se colocar
diz respeito a saber sob quais condições suas palavras de ordem, sua arte e suas
profanações causam uma desagregação nos outros que estão com suas sínteses
bem feitas. Ou seja, quais as condições de possibilidade de promover um sujeito
dividido, ou mesmo, se as há, pois, o ato do militante pode, em vez de promover
um desarranjo na síntese do interlocutor, promover um fortalecimento da síntese
– imagina que um militante diga a um cara que ele é burro porque a Rede Globo
manipula ele, o cara pode pensar, “quem é esse idiota, eu assisto a Globo com
discernimento, ele é que é manipulado pelo MST”.
Contudo, infelizmente não é somente o nosso intrépido militante que consegue
causar desarranjos ou fragmentação psíquica, fragmentação do mito que organiza
a vida das pessoas. O desemprego, a doença, a humilhação, o endividamento, o
perigo jornaleiro e o clima jornaleiro de perigo são, possivelmente, mais efetivos
em causar esse desarranjo que a promoção do choque de cultura que o militante
propõe. Assim, se temos uma base social mais apta à fragmentação, devemos ter
em mente que o mito construído para fazer a síntese de uma vida nesses
parâmetros, deve ser um mito bem forte, um mito bem estruturado,
suficientemente refratário a uma série de fenômenos dos mais variados – um
sujeito que mora num lugar perigoso, para ir trabalhar todos os dias, para dormir
aos sons de tiros, para aceitar a humilhação que é trabalhar para pessoas que
gastam em 15 minutos o que eles ganham em uma semana de trabalho, deve ter
uma construção mitológica ou fantasística que dê a ele muita coragem, um
sentimento de justiça (que será feita ou divina), uma esperança descomunal. Por
essa linha, me parece que diante da realidade, não tem manifestação (artística,
cultural, palavra de ordem, lambe-lambe) que consiga os efeitos desagregadores
que essa própria realidade consegue.
2) Por outro lado, tal como o xamã, o pastor ou padre, o militante deve trabalhar
promovendo uma síntese, um mito, uma fantasia coletiva. Ele trabalha quebrando
certos tabus para que, com isso, um outro tipo de síntese ou de mito possa ser
colocado. Mas, à diferença do xamã, do pastor, do padre (e também do
psicanalista) o militante que não gozar do prestígio ou do respaldo desses atores
não terá suas palavras ouvidas; visto ser a crença a priori no xamã que permite
que sua ritualística surta efeito.
Aqui novamente as lições do Levi-Strauss nos podem ser úteis. Um mito possui
duas características, é a sobreposição de todas as narrativas que envolvem o mito e é um
modo de resolver uma contradição social pelas vias da imaginação. Encontramos esse
duplo aspecto nesse nosso Mito contemporâneo, os gostos e os ódios se dão por
motivações diversas e todas essas narrativas sobrepostas formam um todo autocompleto.
E todas as fantasias ou mitos individuais juntados sincronicamente constituem um modo
de resolver uma contradição social: o Mito concentra:
Em suma, para uns o Mito é um Messias, para outros, o próprio Anticristo. Notem
aí como o Mito que media os dois campos impede a interpenetração entre eles, ao mesmo
tempo em que cria uma relação co-respondência perfeita. E a atitude que tomamos nesse
momento, porque é um momento crítico, é o recrudescimento, a campanha, o panfleto –
novamente, não critico isso, talvez seja importante –, mas se se assume que já perdemos,
na meia noite que será o dia 28 nós teremos que tratar desse momento crítico, sugiro que
com crítica. Dos dois grupos propostos, um vai sair desse pleito com o mundo ainda mais
esfacelado e, provavelmente, não serão eles (espero estar errado, mas acho que o texto
ainda vale mesmo com a vitória do lado de cá).
O Malcolm X dizia que não desejava igualdade com o homem branco porque o
branco não é um critério, não era por essa categoria que ele se media, porém, tal atitude
não se tratava de nenhum sentimento revanchista com relação aos brancos que circulam
por aí, mas de extirpar o Branco, como medida e como ideal, que reside dentro de cada
negro americano. Baeado nesse ensinamento, uma primeira sugestão, seria, portanto,
evitar a correspondência e tentar, com isso, não usar o Mito como medida, tentar acabar
com o Mito que mora dentro da gente – essa operação seria aquilo que Lacan chama de
mostrar que o Outro é castrado. Outra sugestão, decorrente da primeira, é tentar usar
outros critérios. Quando dividimos o mundo entre fascista e não-fascista a gente não teve
muito sucesso, primeiro que essa palavra não faz sentido para muita gente, segundo, ela
impede de olhar para as pessoas de um modo mais flexível (um fascista é um sujeito
horrendo, profundamente maldoso, sem nenhuma compadecimento da posição dos
outros). Por outro lado se a gente o diagnostica como um bobão, um sujeito confuso,
como uma pessoa desesperada, o nosso trato com esse sujeito é diferente. A esperança no
Bolsonaro é um mito que organiza a vida de muita gente, não digo que não haja fascistas
verdadeiros nesse meio, mas se deixarmos que esse mito desorganize a nossa, nós
entramos no jogo. Aquele grande impasse a que me referi acima pode começar a tomar
outras formas, constituir um novo mito, se esse nosso personagem, que não é nem o xamã,
nem o psicanalista, também começar a tomar outras formas.