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Resumo
Interpelada pelas discussões sobre a saga de Harry Potter, criada por J.K. Rowling, busco
problematizar as representações de escola como parte de um extenso aparato acionado pela
Modernidade com a finalidade de disciplinamento de corpos e mentes, que tem sido
(re)apresentado em constante crise pelos discursos colocados em circulação no âmbito da
cultura contemporânea. Tomo Hogwarts – a escola de magia e bruxaria em que Hermione,
Harry e Rony, protagonistas da trama, aprendem a ser bruxa e bruxos e experienciam suas
vidas a cada ano – como, mais do que um cenário de fundo para as narrativas de Rowling,
como uma ambiência constituída por e constituinte de múltiplas camadas de temporalidades e
espacialidades discursivas, parecendo tornar-se um personagem que rouba a cena. Para tal
foram analisados os quatro filmes já produzidos pela Warner/UK e os seis livros já publicados
no Brasil pela Editora Rocco, por entender que cinema e literatura, como parte de um
dispositivo pedagógico midiático e inseridos nas dinâmicas industrial e comercial da cultura e
do entretenimento, podem ser produtivos para compreender as relações entre escola e
sociedade na contemporaneidade. Este artigo aborda constatações preliminares de uma
pesquisa mais ampla que vem sendo desenvolvida, abordando as aventuras de Harry Potter e a
produção discursiva de identidades juvenis.
Buscando dados sobre a saga do pequeno bruxo Harry Potter, deparei-me com a letra
do Hino de Hogwarts (Devir, 2005), a escola de magia e bruxaria, onde Hermione Granjer,
Harry Potter e Rony Weasley aprendem a ser bruxa e bruxos, vivem suas aventuras a cada ano
escolar e experienciam os conflitos e os prazeres de tornarem-se jovens.A tradução para o
português do hino da escola3 parece mostrar estudantes ávidos por conhecimentos
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Este artigo é parte das investigações que vem sendo realizadas através do Projeto de Pesquisa Interinstitucional As
aventuras de Harry Potter e a produção discursiva de identidades juvenis, pelo Grupo de Pesquisa Cultura e Educação do
PPGEdu/Ulbra sob a coordenação da Prof. Dra. Maria Lúcia Wortmann, em colaboração com o Grupo de Estudos de
Educação e Ciências como Cultura(GEECC) e com o Núcleo de Estudos em Currículo, Cultura e Sociedade ( NECCSO),
ambos da linha de pesquisa Estudos Culturais em educação do PPGEdu/UFRGS e com a Faculdade de Artes e Comunicação
da Universidade de Passo Fundo e contou com a colaboração das alunas do curso de Comunicação Social – Hab. Jornalismo
da UPF, Janaíne de Britto Tristacci e Giovana Carlos.
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A autora é doutoranda junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRGS, na linha de Estudos Culturais em
Educação, Núcleo de Estudos de Currículo, Cultura e Sociedade, Professora da Faculdade de Artes e Comunicação da UPF e
membro do Núcleo de Pesquisa Comunicação e Culturas Urbanas da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares de
Comunicação (Intercom). E-mail: radiocapelinha@terra.com.br
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Letra original em inglês: Hogwarts, Hogwarts, Hoggy Warty Hogwarts,/Teach us something please,/ Whether we be old
and bald/ Or young with scabby knees,/ Our heads could do with filling with some interesting stuff,/For now they're bare and
full of air,/ Dead flies and bits of fluff,/ So teach us things worth knowing, / Bring back what we've forgot,/ Just do your best,
we'll do the rest,/And learn until our brains all rot. Tradução da letra para o português: Hogwarts, Hogwarts, Hoggy Warty
Hogwarts,/ Nos ensine algo por favor,/ Que sejamos velhos e calvos / Quer moços de pernas raladas,/ Temos as cabeças
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precisadas de idéias interessantes / Pois estão ocas e cheias de ar, /moscas mortas e fios de cotão / Nos ensine o que vale a
pena / Faça lembrar o que já esquecemos/ Faça o melhor, faremos o resto/ Estudaremos até o cérebro se desmanchar
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Os seis livros já publicados no Brasil através da Editora Rocco são: Harry Potter e a pedra filosofal (2000); Harry Potter e
a câmara secreta (2000), Harry Potter e o prisioneiro de Azkaban (2000) e HarryPotter e o cálice de fogo(2001),
HarryPotter e a Ordem da Fênix (2003) e HarryPotter e o enigma do príncipe (2005), e os quatro filmes produzidos pela
Warner/UK, apresentados nos cinemas e disponíveis em fita VHS e DVD são: HarryPotter e a pedra filosofal (Columbus,
2001); Harry Potter e a câmara secreta (Columbus, 2002), HarryPotter e o prisioneiro de Azkaban (Cuarón, 2004) e
HarryPotter e o cálice de fogo (Nowell, 2005)
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consumo de artefatos culturais ligados a Harry Potter como marca poderiam nos dizer desde
as práticas cotidianas sobre a escola e seus personagens.
Atualmente, são inúmeros os estudos em que, através do conceito de pedagogia
cultural, a noção de pedagogia se vê alargada, possibilitando uma melhor compreensão das
articulações dos saberes adquiridos e vivenciados nas escolas com a cultura contemporânea,
atuando na produção de identidades e de representações de escola, família, juventudes,
professores, estudantes. É nesta perspectiva que situo o cinema, através dos filmes como
artefatos culturais, e a literatura, através de livros e e-books – livros em formato digital –,
também como artefatos culturais, dentro de suas especificidades – o audiovisual e a mídia
gráfica e digital, na perspectiva de serem parte de um dispositivo pedagógico midiático que,
através das suas narrativas, coloca em circulação representações de escola, de professoras e
professores, e de alunas e alunos que os constituem de tal ou qual forma.
Um outro fato já havia capturado a minha atenção relativamente : por que razão,
contrariamente à maioria dos livros e filmes infanto-juvenis com os quais tenha tido contato, a
escola, como coloca Costa( 2003), roubava a cena? Também foi o título de um livro, escrito
nos anos 1970 por Bruce Coville, que fez com que meu olhar se voltasse para a literatura
infanto-juvenil, o cinema e o fenômeno Harry Potter, com todas as discussões que têm
acompanhado cada novo livro ou filme. Na lombada de uma edição datada de 1976, muito
manuseada por mãos infantis, estava escrito: My teacher is an alien. Peguei o livro, fisgada
pela relação imediata com o texto de Green e Bigun (2002), Alienígenas na sala de aula.
Levei o livro comigo. Na capa, um ser com forma humana e pele verde, terno e gravata,
dentro de uma sala de aula, e dois meninos olhando pelo lado de fora muito assustados. A
leitura foi positiva. Ele é atual, quase 30 anos depois da sua edição: aborda as representações
de professoras e professores, alunas e alunos como diferentes em sala de aula. Aquele
professor era um alienígena para os estudantes e para a instituição, porque ousou conectar os
saberes que invadem cotidianamente a escola a partir da cultura da mídia e do consumo com
aqueles que a escola está programada para ensinar.
A partir deste olhar e mais uma vez interpelada pelas discussões em torno do
lançamento do sexto livro de J.K. Rowling, no verão norte-americano de 2005, fui à festa que
estava marcada para às 24 horas, com direito a fogos e fantasias. Ali, como uma alienígena,
um outro, pude constatar em que intensidade a literatura infanto-juvenil e o cinema integram
o circuito cultural proposto por Hall (1997) e nele atuando como uma importante pedagogia
cultural, ao lado da televisão, dos videogames, dos filmes, dos jornais, das revistas, todos eles
vistos como locais pedagógicos nos quais o poder se organiza e exercita. Ali, no parque de
estacionamento, crianças, jovens e adultos de todas as idades foram se acomodando como
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podiam e alheios aos fogos, fantasias e outras promoções mercadológicas, iniciaram a leitura
das 682 páginas do livro, esperado como um presente de Natal muito desejado.
O resultado proclamado pela imprensa diária norte-americana não poderia ser outro,
como não o foi neste mês de novembro com o lançamento mundial do filme Harry Potter e o
cálice de fogo – as vendas haviam batido todos os recordes. Analistas comentavam que, desde
o lançamento do primeiro livro, Harry Potter e a pedra filosofal, pesquisas têm mostrado que
a leitura entre os jovens de 10 a 19 anos cresceu em 19%, e não se restringe às histórias do
pequeno bruxo inglês (Hallett, 2005). As escolas haviam se tornado o local de encontro dos
jovens leitores que passavam a se organizar num misto de fã-clubes e clubes de leitura para
discutir, recontar e reescrever as histórias de Harry. A notícia publicada no site da Warner
Brasil, em 29 de novembro de 2005, destaca esta situação:
Lá na Inglaterra, as lojas abrem de madrugada cada vez que um novo livro da série
Harry Potter é lançado, sinal que a franquia continua fazendo muito sucesso na terra
da Rainha. Por aqui, não é muito diferente. No último fim de semana, Harry Potter e
O Cálice de Fogo, adaptação do quarto livro da série, levou 1,115 milhão de
espectadores aos cinemas, maior bilheteria de estréia no país em 2005 (superando em
77% a segunda maior bilheteria: Guerra dos Mundos), recorde que provavelmente não
será batido até o final do ano – mesmo porque esta é a segunda maior abertura de
todos os tempos no país. Só para se ter uma idéia do sucesso do filme no resto do
mundo, o longa já acumulou mais de US$ 402 milhões em dez dias de exibição. E isso
porque o filme ainda nem foi lançado em países como Austrália e Japão. Nos Estados
Unidos, a produção é a mais vista no dois últimos finais de semana. J.K Rowling,
autora dos livros, pode continuar comemorando o sucesso de suas obra.
subordina ao magro, pequeno e fraco, que detém o poder por ter nascido em uma família de
linhagem puramente bruxa e ter muito dinheiro no banco de Gringotes.
Em Hogwarts, como em muitas escolas espalhadas pelo mundo, convivem as
representações dos alunos pobres e honestos, dos filhos de servidores públicos – o Ministério
da Magia é uma instância de poder regulatório de estado sobre a população bruxa –, dos
alunos de traços orientais, dos alunos ricos e desonestos, dos alunos esforçados na
contraposição dos alunos inteligentes. Contudo, mas fundamentalmente, existe a
representação de um diferente/outro que é especial, porque foi destituído de família, mas é
interpelado pela escola a utilizar sua capacidade de resiliência. Que tem poderes, porém
precisa estudar para aprender a usá-los de forma técnica e eticamente adequada. Que é
ameaçado a todo o momento pelo mal – representado pelo mau uso dos conhecimentos de
bruxaria, e para quem a escola é ao mesmo tempo o lar e o mundo lá fora: Harry Potter.
Na obra de Rowling, a escola também é representada como um lugar onde a tradição,
a tecnologia e a intuição são preservadas, desenvolvidas, qualificadas, corporificando a noção
de escola, comentada por Morin (2000), um lugar onde o passado, o presente e o futuro se
cruzam incessantemente a partir do ensinar o conhecimento já produzido, depositado nos
livros (a tradição); do repensar estes conhecimentos desde as práticas culturais
contemporâneas (a tecnologia) e da produção de solução de problemas que aliam os
conhecimentos aprendidos às reflexões (o conhecimento novo). Hogwarts é a representação
de uma escola que privilegia a cabeça bem-feita em detrimento da cabeça cheia, um lugar da
memória, da experiência e da utopia.
Todavia, a escola representada é simultaneamente um lugar pós-moderno do “tudo ao
mesmo tempo agora” que cruza, desde a narrativa proposta ao imaginário infanto-juvenil, um
conjunto de elementos que capturam pessoas/consumidores de todas as gerações: apesar de
muitos países como o nosso não terem o modelo da escola em tempo integral, cada vez mais
crianças, jovens e adultos têm a escola como a grande referência, o lugar de sua experiência
cotidiana.
Mas Hogwarts tem peculiaridades: mistura a escola da experiência e a escola do
desejo. Como escola/experiência mostra um mundo onde varinhas mágicas salvam vidas e são
elementos de identidade, vassouras voam e tem a mesma lógica de mercado de qualquer
produto. Há professores que ensinam com base no conhecimento já adquirido dentro de uma
lógica da complexidade e progressividade, há uma rede de discursos de autoridade e
hierarquia e poder que aparece através das falas e relacionamentos regulados pela tradição,
pelo Ministério da Magia e Bruxaria e pelo fator econômico e há, fundamentalmente, o
trabalho físico e intelectual dos aprendizes através do ato de estudar traduzido nas escritas dos
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pergaminhos a partir de longas e profundas pesquisas que são explicitadas nos espaços
coletivos de convivência – nas salas das comunidades e na biblioteca –, na leitura, no
experimento e na pesquisa pura e aplicada.
Neste cenário, convive também a escola/utopia onde o estudante, ainda que
magicamente pela ação de um chapéu seletor, é selecionado de acordo com suas
potencialidades individuais e tem respeitado o seu direito a desenvolvê-las; onde o
questionamento, ainda que permeado pelo medo da autoridade, pelo sentimento de amizade e
confiança, pelo constrangimento da possibilidade do ridículo, tem lugar e é um caminho para
o novo; onde professores admitem que não sabem tudo, falham, não são super-homens que
existem num imaginário globalizado, já construído através do século XX pelas grandes
corporações de entretenimento, como alargamento do espaço pedagógico na cultura
contemporânea marcada pelo consumo, com grande participação da mídia e da indústria do
entretenimento.
Todos, bruxos e “trouxas”5, estão constituídos pelos conflitos de bem e mal, da ética,
da honestidade e da desonestidade, da relação entre meios e fins. Perguntam-se sobre seus
atos e são responsabilizados pelas suas condutas, fugindo a uma perspectiva do bem e do mal
como componentes de um destino inescapável, mas como conseqüência de um código de
conduta compartilhado através da cultura e da tradição, que não é evocado na sua forma
escrita, exceto quando se trata do manual sobre Animais fantásticos e onde habitam, escrito
por Scamander6, que serve de base à disciplina lecionada pelo gigante Hagrid, em O
prisioneiro de Azkaban (2000).
Hogwarts, como escola, também aparece como o espaço da aventura, do gozo de
correr riscos, da confraternização onde os rituais comuns à cultura, principalmente ocidental,
cristã são rememorados – o Natal, a Páscoa, o Dia das Bruxas –, assim como aniversários de
amigos e fantasmas, a chegada dos alunos no outono e a sua despedida no início do verão. A
narrativa de Rowling, em Harry Potter, não parece propor um discurso de “terra do nunca e
Peter Pan”, onde os meninos não crescem e a eles é dado o direito à aventura, à agressividade.
As meninas são espécie de fadas bem comportadas, princesas. Meninos e meninas crescem e
crescer dói, gera conflitos, separações e novas cumplicidades, que muitas vezes, têm
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A população não bruxa, na tradução para a língua portuguesa é chamada de “trouxa” a partir do inglês “muggle”,
coloquialmente também dito “fool”, que na Inglaterra não está investido de carga semântica negativa, a semelhança da
utilização da palavra “trouxa” em português, no Brasil.
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O Manual Criaturas Fantásticas e onde habitam foi escrito por J. K. Rowling sob o pseudônimo de Newt Scamander. É um
dos produtos chamados spin-off ( Heilman, 2003) ou licenciados como itens comercializáveis, originados a partir de um
produto âncora, no caso os livros sobre as aventuras de Harry Potter, que podem incluir materiais de uso escolar,
indumentária, brinquedos e outros produtos que o mercado identifique como consumível. Esta publicação, assim como
Quadribol através dos séculos, ficticiamente escrita por Kennilworthy Whisp, foram traduzidos por Lia Wyler para a Ed.
Rocco, a mesma que detém os direitos autorais da série Harry Potter. A renda obtida com a comercialização destas
publicações é destinada a Comic Relief, uma organização não governamental que mantém “ projetos de ajuda às populações
mais pobres e vulneráveis, nos países mais carentes do mundo”. www.comicrelief.com/harrysbooks
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Referências Bibliográficas