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COGNIÇÃO E LINGUÍSTICA:
explorando territórios, mapeamentos e percursos
2014
Cognição e Linguística 1
FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL
Presidente:
Ambrósio Luiz Bonalume
Vice-presidente:
Carlos Heinen
Reitor:
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Vice-Reitor:
Odacir Deonisio Graciolli
Pró-Reitor Acadêmico:
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Pró-Reitor de Inovação e
Desenvolvimento Tecnológico:
Odacir Deonisio Graciolli
Diretor Administrativo:
Cesar Augusto Bernardi
Chefe de Gabinete:
Gelson Leonardo Rech
Coordenador da Educs:
Renato Henrichs
2 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
COGNIÇÃO E LINGUÍSTICA:
explorando territórios, mapeamentos e percursos
2014
Cognição e Linguística 3
© Ana Cristina Pelosi
Heloísa Pedroso de Moraes Feltes
Emilia Maria Peixoto Farias
(Org.)
Apresenta bibliografia.
ISBN: 978-85-7061-762-0
1. Cognição 165.194
2. Linguística 81’1
Direitos reservados à:
4 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
SUMÁRIO
1 COGNIÇÃO E LINGUÍSTICA / 8
Ana Cristina Pelosi (UFC)
3 COGNIÇÃO E GRAMÁTICA / 51
Maria Angélica Furtado da Cunha (UFRN)
Márcia Teixeira Nogueira (UFC)
Cognição e Linguística 5
Prefácio
A metáfora do título, usada por Pinker em sua recente obra The stuff od thought, é,
ao mesmo tempo, literatura e ciência. Por um lado, ela carrega a força de persuasão
retórica, no sentido de que, através da janela, enxerga-se o mistério da casa por dentro;
por outro lado, ela representa a possibilidade da adequada tensão descritivo-explanatória
da cognição humana, própria do conhecimento científico.
A interface entre Linguística e Psicologia tem sido, de fato, uma longa história de
promessas metodológicas. Ferdinand de Saussure, no final do século XIX, início do
XX, compreendeu a natureza social da linguagem e, na direção de Durkheim, desenhou
a disciplina linguística e seu compromisso descritivista, como um ramo da Semiologia,
em última instância da explanação em Psicologia Social. A linguagem humana, dentro
do estruturalismo europeu, era a janela para se enxergar o caráter sociocognitivo da
comunicação.
Praticamente na mesma época, em território americano, Leonard Bloomfiel,
completamente submetido à ideia de que a natureza da ciência não podia dispensar o
experimentalismo e suas evidências, propunha uma concepão mecanicista de linguagem
como comportamento. Estímulo e resposta eram os sinais básicos e perceptíveis da
comunicação linguística. Mas, assim como em Saussure, Bloomfield traçou o percurso
descritivo da teoria linguística, como devendo encontrar a explicação última de seu
objeto nas raízes da Psicologia behaviorista de Watson. A linguagem natural era, mais
uma vez, o roteiro para o entendimento da cognição humana, ainda que superficializado
pelas suas limitações metodológicas.
Quando, nos anos 50, a sombra de Skinner ainda predominava soberana em
Harvard, a invenção inteligente do milênio, o computador, iluminava a caixa negra da
racionalidade humana e sepultava o mito do observacionismo positivista. Mediante um
desenho da linguagem, como competência e desepenho, ancorado na modelagem de
harward e de software, cuja transparência permitia, pela primeira vez, avançar na
cognição humana, Noam Chomsky, do MIT, desfechava o derradeiro golpe contra o
behaviorismo. Construindo seu objeto, a linguagem humana, como propriedade do
mundo natural, enraizada na genética especializada e única dos seres humanos,
Chomsky inseria a Linguística no quadro das ciências do cérebro-mente, mais
especialmente no âmbito da Psicologia cognitiva. O módulo da gramática universal
estava abduzido. Agora, mais do que nunca, a linguagem era a senha para a obtenção
dos segredos digitais das placas e dos programas, numa perspectiva finalmente ao
dualista.
Mas, nesse ponto, aberto finalmente o cofre de segredos milenares, havia milhares
de caminhos alternativos em que Linguística e Psicologia deveriam se entrecruzar.
Como se poderia, por exemplo, evitar mais uma espécie de dualismo disfarçado, agora
6 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
entre cérebro e corpo. Como poderia o quadro das ciências cognitivas deixar de fora
nosso corpo e suas experiências. E fez-se, como em Lakoff e Johnson, uma Linguística,
parte de uma Psicologia experimental. Como desconsiderar que o segredo de tudo era
sustentado por redes neuroniais, expressão de conexões e seus processamentos, na
intuição forte de Ramelhart e McClelland. E a linguagem sempre como janela aberta a
todas essas modelizações e uma linguística e uma psicologia conexionistas sempre
conectadas. Mas ainda resta, com certeza, o mistério maior a ser investigado. De onde
teria vindo a linguagem? Como ela se situa na perspectiva de uma Psicologia
evolucionária? Ela emerge adaptacionisticamente de um processo de seleção natural
como, de resto, a nossa espécie e os seres vivos, como supõe em princípio Pinker?
Abrupta, contingente, caótica e fragmentária, ou, quem sabe, emerge de repente,
programada, inteligente e otimamente desenhada, como quer Chomsky? Seja como for,
lá está a linguagem-janela aberta aos segredos da cognição e à Psicologia cognitivo-
linguística, amantes metodologicamente indissociáveis.
Cognição e Linguística 7
1
COGNIÇÃO E LINGUÍSTICA
1 Introdução
Cognição e Linguística 9
Desde os anos 70 desenvolveu-se no âmbito do Massachusetts Institute of
Technology (MIT), tendo alcançado reconhecimento internacional no mundo
acadêmico, o que podemos chamar de ciência cognitiva de base simbólica. Este
programa de pesquisa herdou os pressupostos da teoria clássica da representação e
disseminou a metáfora da mente qual computador por meio do seu “modelo
computacional da mente”, amplamente aceito tanto por cientistas como por leigos.
Diga-se aqui de passagem que é comum, implícita ou explicitamente, as pessoas em
geral considerarem a mente como máquina computacional. O que, porém, estava errado
a respeito do modelo promovido pelo MIT? Por que, conforme mais tarde tiveram de
admitir os cientistas da IA, seu modelo simplesmente não funcionou tão bem na
simulação de comportamentos inteligentes, conforme esperavam?
Limitar toda a riqueza, adaptabilidade e dinâmica ligadas ao comportamento
inteligente à afirmação assumida pela IA ortodoxa de que a única forma de explicação
da inteligência e da intencionalidade é a hipótese de que a cognição consiste na ação
baseada em representações fisicamente realizadas sob a forma de um código simbólico
no cérebro ou em uma máquina, criou problemas montanhescos para a simulação de
comportamentos cognitivos. Conforme ressaltam Varela, Thompson e Rosch (2003), o
problema crucial era o de como se estabelecer uma correlação entre a atribuição de
estados intencionais ou representacionais (crenças, desejos, intenções, etc.) e as
alterações físicas às quais se submete um agente, enquanto age. Se, conforme
acreditavam os cognitivistas, os estados intencionais possuem propriedades causais,
seria necessário mostrar como esses estados são fisicamente possíveis e como podem
causar o comportamento. Na busca de solução para o problema, promoveram a noção de
computação simbólica. Veremos a seguir que essa noção, longe de ser a solução
adequada, criou outros problemas.
Uma representação nos termos propostos pela IA simbólica, pressupõe a
existência de elementos imprescindíveis a sua constituição: símbolos físicos dotados de
valores semânticos e a computação de tais símbolos baseada em algoritmos, de modo
que a computação é essencialmente semântica ou representacional. Começam daí os
problemas. Senão vejamos. Ao simularem na máquina (i.e. computador digital), a partir
de operações com a forma física dos símbolos (o computador não tem acesso ao valor
semântico destes), determinados comportamentos inteligentes, os pesquisadores da IA
tem, tradicionalmente, afirmado que a inteligência e a intencionalidade são física e
mecanicamente possíveis. A hipótese é a de que os computadores oferecem um modelo
mecânico dos pensamentos, ou seja, promove-se a ideia de que “o pensamento consiste
em computações físicas, simbólicas”. (VARELA, 1988, VARELA; THOMPSON; ROSCH,
2003). O grande problema parece ser justamente esta tentativa de se querer encontrar um
paralelismo entre inteligência e intencionalidade na máquina e na mente. Um
computador digital opera apenas com a forma física dos símbolos que ele computa, não
tendo assim acesso ao valor semântico destes. Qualquer comportamento “inteligente” na
máquina, as restrições e distinções semânticas que atuam na sua operacionalização se
10 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
constituem unicamente devido à codificação imposta por programadores ao programa,
conforme a sintaxe da linguagem simbólica utilizada. No computador, a sintaxe,
portanto, espelha ou é paralela à semântica atribuída. Certamente tal correspondência
entre sintaxe e semântica impõe limites aos comportamentos engendrados na máquina,
visto que qualquer comportamento supostamente “inteligente” espelhará as limitações
da sintaxe nela embutida. A hipótese cognitivista ortodoxa implica assim uma afirmação
muito vigorosa a respeito das relações entre sintaxe e semântica e, erroneamente, vai ao
ponto, conforme já mencionamos, de promover a ideia da possibilidade de se pensar a
inteligência humana em termos meramente computacionais. Isso simplesmente não é
assim. Por exemplo, nas línguas naturais a sintaxe não espelha a semântica à moda
como acontece num programa computacional. Nesse respeito, basta lembrarmo-nos das
dificuldades enfrentadas pela teoria gerativa padrão lançada em meados dos anos 50,
por Chomsky. A ênfase na sintaxe como componente central da sua gramática gerativo-
transformacional trouxe sérias limitações à proposta gerativista, visto que a evidência
reunida a partir de experimentos psicolinguísticos consistentemente indicou que, na
compreensão e no processamento de sentenças, as pessoas antes de se limitarem
estritamente a aspectos sintáticos, como propunha Chomsky, faziam uso de fatores de
ordem semântica, intencionais (crenças, propósitos comunicativos, pressupostos) e
pragmático-discursivos.
Tal hipótese é insatisfatória visto que, embora em um programa computacional a
sintaxe do código simbólico espelhe ou codifique a sua semântica, isso não é assim nas
línguas naturais. Em se tratando de atuação linguística, está longe de ser óbvio que todas
as distinções semânticas relevantes, em uma explicação do comportamento, possam ser
espelhadas sintaticamente.
Cognição e Linguística 11
quais se assume que haja interações dinâmicas entre módulos) permanece, contudo, a
ideia de “caixas” mentais autônomas exclusivas da linguagem e dissociadas de outros
domínios neuronais relativos, por exemplo, ao processamento sensório-motor. A visão
modular vem sendo, no entanto, sistematicamente posta em xeque por estudos recentes
no âmbito das neurociências, que apontam para a participação de sistemas neuronais
não exclusivos da linguagem no desempenho linguístico. (ELMAN et al., 1999; GALLESE;
LAKOFF, 2005, GARBARINI; ADENZATO, 2004).
Assim, podemos afirmar que tentar igualar comportamentos inteligentes em geral
e, em especial, aqueles ligados à atuação linguística, a processamentos computacionais
mecanicamente operacionalizados a partir de módulos mentais isolados e exclusivos
tem se provado explicação insuficiente e inadequada, especialmente em vista das novas
descobertas a respeito da natureza do cérebro humano e da evidência da interação
dinâmica de outros subsistemas neuronais não exclusivos da linguagem, na emergência
do conhecimento linguístico.
Logo, a visão simbólica de cognição apoiada na teoria clássica da representação
falha, conforme assevera Teixeira (2004, p. 48), pois não resolve o problema da
intencionalidade, “na medida em que a estocagem de informação na forma de símbolos
e sua manipulação não pode conter o elemento extramental ou extrarrepresentacional
que permite estabelecer a relação entre representação e seu referente no mundo”.
A visão conexionista, a ser delineada a seguir, procura suprir lacunas deixadas
pela visão simbólica, ao propor uma visão mais dinâmica de cognição, decorrente do
estabelecimento de estados globais em redes de componentes simples.
O conexionismo, embora não abrace a ideia de uma mente simbólica regida por
regras, nem, obviamente, os desdobramentos que tal ideia tem promovido no âmbito das
ciências cognitivas, ainda assim não rompe totalmente com a visão cartesiana que
promove um distanciamento entre o ser cognoscente e o mundo. Entendemos ser assim
devido à ênfase que o paradigma dá notadamente ao cérebro como sede das atividades
de natureza eletroquímicas consideradas como responsáveis pela aprendizagem. Não se
percebe, nas explicações conexionistas, um aprofundamento sobre o papel das
interações dinâmicas, ecológica e socioculturalmente situadas, que um indivíduo
experiência na emergência do conhecimento.
Assim, o homem continua a ser visto como ser dual (i.e. composto por duas partes
distintas, corpo e cérebro/mente). O corpo apenas provê meios para a entrada de
estímulos que serão processados pelo cérebro, foco central das explicações do
paradigma conexionista. Apesar de se poderem detectar resquícios do cartesianismo no
paradigma em pauta, este, por enfocar o substrato fisiológico na explicação do que seja
cognição, avançou satisfatoriamente em prover uma resposta para a pergunta “o que é
cognição?”, conforme delinearemos a seguir.
12 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
Varela (1988) ressalta que, sob a ótica conexionista, a cognição será entendida
como emergência de estados globais a partir da interação entre componentes simples
(i.e. nodos, na máquina ou neurônios, no cérebro). Neste paradigma, o lócus da
cognição é o cérebro, não a mente. Conforme nos lembra Poersch (2007, p. 11), para o
conexionista, “a mente não se constitui um ens in se; o que tem existência própria é o
cérebro. A mente constitui uma atividade que se processa nas conexões neuronais”. O
cérebro, órgão que interessa ao conexionista entender e simular em redes neuronais
artificiais, opera à base de extensas interconexões, de forma distribuída. Conexões entre
conjuntos de neurônios mudam (se alteram) em resultado da experiência. Estes
conjuntos apresentam uma capacidade de auto-organização que não se adéqua de forma
alguma à hipótese cognitivista promovida pelo paradigma simbólico. O substrato
neurobiológico não suporta a ideia de uma mente simbólica. Antes, as redes neuronais
possuem propriedades emergentes ou de auto-organização, visto que procuram estados
estáveis que podem representar periodicidades tanto no tempo quanto no espaço.
Dessa forma, o conceito de representação mental, ideia-chave no simbolismo,
assume papel secundário ou até mesmo sai de cena, segundo a opinião de adeptos mais
ortodoxos do paradigma. A ênfase é na busca de explicações quanto ao que o cérebro
(ou a máquina, em se tratando de simulação de comportamentos inteligentes) faz ao se
deparar com dados de entrada (input) de natureza externa ou interna ao organismo.
Contrariamente à visão simbólica da cognição, na visão conexionista não há símbolos
ou regras algorítmicas responsáveis pelo processamento de informações. Um estado
mental nada mais é do que uma configuração funcional de padrões ambientais e padrões
emergentes, estando nestes incluídos padrões que direcionam processos perceptuais
diretos. Nesse paradigma, a aprendizagem é, portanto, explicada com base na estrutura
eletroquímica das conexões estabelecidas entre um sem-número de neurônios que
captam o conhecimento, não em forma de símbolos prontos, como um todo, mas de
traços disseminados e engramados nesses neurônios, tridimensionalmente conectados.
Neste paradigma, os processos mentais são explicitados com base em
configurações estabelecidas ad hoc nas redes neuronais. O sistema neuronal lida
dinamicamente com dados recebidos do ambiente que desencadeiam sua ativação
fazendo emergir estados globais a partir das interações de componentes simples
(nodos/neurônios). Contrário ao paradigma simbólico que prevê o processamento a
partir de módulos que interagem de forma linear e sequencial, no conexionismo, o
processamento das unidades de entrada, externas ou internas ao sistema, se dá
simultaneamente e em muitas direções. São muitas as unidades de entrada e estas
interagem com inúmeros componentes internos (nodos/neurônios) em milhares de
direções. Essa atividade dinâmica que caracteriza o modo de funcionamento do cérebro
tem sido chamada de processamento distribuído paralelo, ou processamento em
distribuição paralela (PDP).
Quanto à natureza do conhecimento linguístico, embora não se negue a existência
de um dispositivo cerebral genético para sua aquisição, este resulta, tanto no aspecto
Cognição e Linguística 13
declarativo (verbalizável) quanto procedimental (manifestável por comportamentos), do
convívio com falantes. Ou seja, para sua constituição, são necessários dados externos
provindos da fala de pessoas circundantes e de informações obtidas via discurso (oral e
escrito) e/ou via introspecção (metacognição).
Historicamente, o paradigma conexionista é contemporâneo ao simbolismo. Já nos
primórdios da Cibernética (1943-1953), existiam propostas que delineavam outras
possibilidades ao domínio da lógica no âmbito das ciências cognitivas e, em 1958, numa
série de conferências intituladas Conferências Macy, ocorreram discussões sobre o fato
de que no cérebro não parece existir regras ou um processador central lógico, tampouco
a informação parece estar armazenada em locais específicos.
Contudo, embora contemporâneo do simbolismo, o paradigma conexionista foi,
por muito tempo, relegado a segundo plano e, praticamente, saiu de cena até ressurgir
em 1986, com a publicação dos dois volumes da obra Parallel Distributed Processing,
de Rumelhart, McClelland e membros do grupo de pesquisa em Processamento
Distribuído Paralelo (PDP).1
A abordagem conexionista apresenta várias vantagens em relação ao simbolismo.
Dentre estas podemos citar:
1. os modelos conexionistas estão muito mais próximos dos sistemas biológicos,
o que possibilita um grau de integração entre a Inteligência Artificial (IA) e a
neurociência, até pouco tempo impensável;
2. provê modelos mais adequados da explicação (ou reconstrução) de processos
cognitivos do que a IA de base simbólica ou a neurociência cognitivista;
3. por serem bem gerais, os modelos conexionistas podem ser aplicados com
pequenas modificações, em vários domínios, tais como a visão e o
reconhecimento da fala.
1
Para as razões sobre por que o conexionismo foi relegado a um segundo plano, o leitor é encorajado a consultar o
trabalho de Daniel Dennett (1986).
14 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
No conexionismo, o significado, portanto, deixa de ser entendido como
armazenado na forma de símbolos específicos e é concebido como uma função do
estado global do sistema cognitivo. Assim, não há necessariamente um mapeamento
direto entre um item físico (signo) e uma referência (representação estocada na
memória), mas, sim, emergências de configurações ad hoc, a partir da interação
dinâmica entre inúmeras unidades que se organizam em redes mutáveis, dependendo da
interação entre dados externos e disposições internas do indivíduo. Dessa forma,
Tal dinâmica neuronial, que vem sendo comprovada por estudos acerca do
funcionamento do cérebro no âmbito das neurociências, permite que se abandone o
estudo das “caixas” (boxology, cf. GIBBS, 2006) em favor de uma explicação biológica
da cognição e do papel do funcionamento do cérebro na emergência dos mais variados
tipos de comportamentos cognitivos, inclusive os linguísticos.
Segundo Varela, Thompson e Rosch (2003), a abordagem conexionista se
distancia radicalmente da pressuposição cognitivista fundamental de que deve haver um
nível simbólico separado na explicação da cognição. No entanto, alguns pesquisadores,
menos radicais, reconhecem a possibilidade de se associar símbolos às emergências
(estados globais de sistemas cognitivos). Assim entendem que esses dois pontos de vista
possam ser unidos pragmaticamente de alguma forma mista e considerados como
abordagens complementares que preveem dois níveis de explicação da cognição, um
que ocorreria de baixo para cima (bottom-up) e outro, de cima para baixo (top-down).
Essa visão inclusiva prevê que os símbolos descreveriam um nível superior
(computação simbólica) de propriedades que estariam embutidas em um nível
distribuído subjacente (emergência subsimbólica). (Ver VARELA; THOMPSON; ROSCH,
2003, p. 112–115).
Passemos agora para a terceira visão de cognição a ser discutida aqui – a visão
corporificada (embodied). Estudos no âmbito das ciências cognitivas, especificamente
na neurociência, vêm corroborando com evidências para uma visão integrada da
interação entre cérebro/mente/corpo/mundo no surgimento de comportamentos
cognitivos altamente adaptáveis, ecologicamente situados. Esta visão de cognição,
fortemente abraçada pela vertente da Linguística Cognitiva que surgiu com os estudos
de Lakoff e colaboradores, a partir da década de 80, vem revolucionando o conceito do
que seja cognição bem como o modo de se pensar e de se fazer linguística, conforme
veremos a seguir.
2
A tradução de citações no texto são de minha autoria.
Cognição e Linguística 15
4 A visão atuacionista da cognição (ou a visão de cognição corporificada):
evidências na Linguística
16 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
exercício das capacidades linguísticas, restringindo-se as questões presas à realização
linguística a um mero reflexo externo de representações abstratas de caráter idealizado.
Quanto ao processamento da linguagem, na perspectiva psicolinguística
tradicional, o funcionamento mental tem sido pensado como ocorrendo em módulos
com funções específicas e exclusivas à realização de tarefas pertinentes ao seu uso. Por
exemplo, livros e manuais de psicolinguística, pautados na visão simbólica da mente,
têm tradicionalmente apresentado modelos de compreensão leitora que promovem a
ideia de que a informação é processada sequencialmente em módulos distintos
responsáveis por informações de ordem fonológica, morfológica e sintática,
respectivamente, num processo de “decodificação de unidades linguísticas (fonemas,
grafemas, palavras) construindo o significado de unidades menores para maiores...”, no
caso dos modelos chamados de ascendentes (bottom-up). (CARRELL, 1990). Mesmo
quando o processamento é entendido como ocorrendo de forma interativa, ou seja,
envolvendo a construção e reformulação de hipóteses estabelecidas a partir do
conhecimento prévio mais abrangente que o leitor traz para a tarefa de leitura
(processamento descendente ou top-down), ainda assim persiste a metalinguagem
promovida pela visão simbólica de que as várias etapas envolvidas no processamento da
leitura seriam gerenciadas por módulos centrais e periféricos. (Veja-se, por exemplo,
SCLIAR-CABRAL, 1991, p. 132-143).
A partir do que acabamos de expor, poderemos nos perguntar: será que tal
tratamento das questões linguísticas e psicolinguísticas, conforme brevemente
explicitado, responde de modo adequado a como devemos entender e estudar os
fenômenos linguísticos? Obviamente, do ponto de vista teórico-metodológico, a visão
simbólica de cognição, herdeira da tese racionalista, tem seu mérito, pois nos permite a
formulação de modelos elegantes na explicitação dos fenômenos linguísticos.
No entanto, interessa-nos aqui ressaltar que, como explicação da linguagem
enquanto manifestação dinâmica da cognição, o simbolismo e mesmo o conexionismo
deixam lacunas que têm sido percebidas e tratadas pela Linguística Cognitiva
(doravante, LC). Antes, porém, de nos voltarmos para essa teoria linguística, precisamos
expor a terceira visão de cognição considerada no presente trabalho: a visão atuacionista
de cognição, ou cognição corporificada, adotada pela LC.
Varela (1988, p. 109) responde a pergunta o que é cognição sob a ótica
atuacionista, por dizer que é “ação efetiva: história do acoplamento de estruturas que
atuam (fazem emergir) um mundo”. Com isso quer dizer que cognição é ação. Não se
trata meramente de uma faculdade que nos dota de uma razão transcendental afeita a
princípios lógico-abstratos, desprendida dos limites dos nossos corpos, é tampouco um
mero dispositivo de resolução de problemas por meio de manipulações simbólicas e
regras. Antes, a cognição, nos termos da visão atuacionista, decorre das possibilidades
neurobiológicas dos organismos em constante interação com seus ambientes ecológicos
e socioculturais. Nessa visão entra em cena a atuação do ser sobre seu ambiente,
possibilitada, mas ao mesmo tempo limitada, pela sua própria estrutura e pela estrutura
Cognição e Linguística 17
do mundo que o cerca. Nesse sentido, podemos compreender o termo affordance,
segundo a psicologia ecológica de Gibson (s/d, apud WILSON, 2002), que entende
percepção como emergindo a partir de interações potenciais entre organismo e mundo.
O fazer emergir um significado, o agir cognitivamente, portanto, é assim visto como
resultado de ações e percepções de um agente situado. Sob essa ótica não se considera o
ser como estando no ambiente, antes a pessoa e o ambiente são vistos como partes de
um todo mutuamente construído. Conforme nos informa Bredo,
Percebemos que, sob esta visão de cognição, cai por terra o dualismo cartesiano
por muito tempo promovido a partir da tese de Descartes. Na visão atuacionista, o ser
cognoscente é uma unidade composta de cérebro/mente/corpo na interação com o
mundo. Interação esta que não pode ser descrita a partir de recortes estanques, mas sim
de uma complementariedade na qual homem e mundo se integram indissoluvelmente e
se modificam mutuamente. Tampouco há nessa visão lugar para o posicionamento, por
vezes implicitado pelo paradigma conexionista, de um cérebro a bem dizer
independente, dissociado de um corpo, distante do mundo, lócus autônomo da cognição.
A cognição atuacionista promove uma visão integradora, ao promover a ideia de que
qualquer atividade cognitiva está intrinsecamente ligada à ação incorporada e, portanto,
decorrente dos tipos de experiências possibilitadas ao organismo por suas capacidades
sensório-motoras embutidas em um contexto biológico, psicológico e sociocultural mais
amplo. (VARELA; THOMSPON; ROSCH, 2003).
Na perspectiva da cognição atuacionista, não há lugar para representações
diáfanas engendradas a partir de símbolos descontextualizados, nem é ela tampouco o
resultado de estados emergentes, a partir da maior ou menor probabilidade de ativação
de uma rede neuronal.
Atualmente, a ciência cognitiva caminha para além destas noções. A
representação mental não deve mais ser encarada como um frame interno e separado do
mundo externo, sem qualquer ligação com este. Conceptualiza-se, hoje, uma
representação mental que faz parte do mundo e que emerge a partir do corpo. A ciência
cognitiva caminha, assim, para além da representação tradicional, destacando a
importância do fator biológico. Evidência disso vem à tona quando consideramos o
conceito de autolocomoção, entendido nos seguintes termos: movemo-nos de um lugar
para outro com algum propósito em mente, isto é, na intenção de satisfazer alguma(s) de
nossas necessidades. Desviamo-nos dos objetos para não nos machucarmos e evitar
danos ao nosso corpo, portanto, de certa forma, interagimos com o ambiente. Esta é a
razão pela qual o corpo assume extrema importância na representação do mundo,
18 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
atribuindo a ela um caráter ecológico. Teixeira (2004, p. 55) relata o exemplo de uma
pesquisa feita com rãs, que evidenciou que seu aparelho visual está intimamente ligado
às suas necessidades fisiológicas:
Todo ser vivente precisa categorizar. Até a ameba categoriza as coisas que
encontra como sendo alimento ou não, e o faz por move-se na direção ou por
afastar-se de dados elementos. A ameba não escolhe categorizar, apenas o
faz. (p. 17).
20 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
Gibbs (2006), apoiado em resultados de pesquisas sobre formação e recuperação
de conceitos, afirma que a evidência reunida em estudos sobre simulações
corporificadas favorece mais a visão, em apoio da corporificação de conceitos, e sua
instanciação, como construções temporárias na memória de trabalho, do que a ideia de
que armazenamos na memória de longo prazo traços abstratos e descontextualizados.
Assim, afirma que “uma possibilidade é que conceitos possam ser definidos como
padrões estatísticos em sistemas sensório-motores que assumem formas diferentes em
contextos diferentes”. (p. 86).
Adicionalmente, pesquisas sobre a estreita relação entre linguagem e cognição
vêm, desde os anos 90, apontando para a impossibilidade de se comprovar a hipótese de
uma sintaxe autônoma ou de modularidade no processamento da linguagem.
Neurocientistas têm, por exemplo, descoberto evidência da atuação integrada de áreas
do cérebro responsáveis pelo processamento sensorial e motor com áreas responsáveis
pela linguagem. Por exemplo, descobriu-se que o tecido neuronial em desenvolvimento
é muito plástico. Isso possibilita que, em pessoas surdas de nascença, áreas de
associação auditiva sejam frequentemente empregadas para representar linguagem
visual e gestual. Além disso, embora não se possa negar a especialização do hemisfério
esquerdo para a linguagem verbal, na maioria dos indivíduos, cientistas como Mueller
(1996) e Eltman, Bates e Johnson e colegas (1996), estão convencidos de que do ponto
de vista neurobiológico a visão modularista é altamente questionável. Segundo Mueller
(1996), a especialização funcional de áreas do cérebro mui provavelmente decorre da
proximidade entre o local do input sensorial e sistemas sensoriais para visão e audição.
Elman et al. (1996) acrescentam que por mais que se busque na anatomia e fisiologia do
cérebro humano, não há qualquer evidência da presença de estruturas especializadas
unicamente para a linguagem ou mesmo unicamente pertencentes ao cérebro humano.
Assim, a neurociência tem contribuído para a constatação da natureza epigenética
da linguagem que se constitui, segundo a evidência, como uma das formas de expressão
cognitiva e em dinâmica interação com outros sistemas cerebrais no situamento
ecológico e sociocultural do indivíduo no mundo.
Outra área que tem contribuído para o entendimento da visão de uma cognição
corporificada, ecologicamente situada, é a da Inteligência Artificial de base
conexionista. Evidência positiva nesse respeito foi reunida pelo estudo realizado por
Narayanan (1997) que propôs a tese em favor de uma base neuronal para a formação de
metáforas chamadas básicas ou primárias. Sua pesquisa, que envolveu a projeção e o
treinamento de redes neuronais artificiais reuniu evidência em favor da hipótese de que
a cognição humana esteja intimamente pautada na experiência e de que os mesmos
sistemas neuronais, responsáveis pelas sensações e movimentos, também participem na
conceptualização de conceitos abstratos e metáforas. Em parte, o modelo conexionista
projetado por Narayanan (1997) testou a hipótese de que a constituição de metáforas
primárias envolve coativação de domínios neuronais coocorrentes e recorrentes de
naturezas diversas (perceptual/conceptual), por simular como a projeção entre domínios
Cognição e Linguística 21
possivelmente ocorre. Trabalhando com QUANTIDADE É ELEVAÇÃO VERTICAL
(supostamente uma metáfora primária), o modelo ativava o fluxo de informação
alimentada no sistema em via dupla entre as redes-alvo e fonte. Assim, um decréscimo
na rede do domínio da quantidade se conectava com movimento para baixo na rede do
domínio da verticalidade. Ao analisar a sentença “os preços caíram”, eis o que
acontecia: o termo preços ativava a rede do domínio da quantidade que, por sua vez,
mandava ativação para os elementos correspondentes na rede do domínio-fonte da
verticalidade. O termo “cair” ativava o mecanismo de inferência do domínio-fonte que
computava que a entidade “cair” havia ido na direção descendente até o limite. Depois
de realizadas estas computações, a ativação retornava para a rede do domínio da
quantidade, indicando assim “Mudança Negativa Máxima”. Por meio deste mecanismo,
Narayanan (1997a, b) tentou mostrar que o raciocínio sobre movimento vertical, no
domínio espacial, é utilizado para se raciocinar sobre quantidade, mas não o inverso.
(LAKOFF; JOHNSON, 1999, p. 55-56). O sucesso alcançado com a projeção e o treino da
rede conexionista na simulação da suposta coativação entre domínios neuronais
constitui-se evidência positiva da plausibilidade da estreita correlação entre o sistema
sensório-motor e o sistema conceptual humanos.
Percebemos dessa forma que, à medida que o conhecimento a respeito do cérebro
tem avançado, avolumam-se evidências que nos obrigam a repensar os conceitos
tradicionalmente veiculados a respeito da racionalidade, que se apoiam numa visão
dicotômica de uma mente que vai para além dos limites do corpo, conforme apregoava
Descartes.
Nesse ponto, gostaríamos de introduzir, embora brevemente, o paradigma
linguístico que, a nosso ver, melhor se adapta à visão atuacionista (ou corporificada) da
cognição.
Assim, na seção seguinte que antecede a conclusão deste capítulo, voltamo-nos
para a explicitação de pressupostos teóricos e filosóficos promovidos pela Linguística
Cognitiva.
22 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
Segundo Gibbs (1996, p. 49), a LC “[...] busca conhecer ativamente as
correspondências entre o pensamento conceitual, a experiência corpórea e a estrutura
linguística na intenção de descobrir os verdadeiros conteúdos da cognição humana”.
Fica assim claro que o foco de interesse dessa disciplina não é a mera descrição da
arquitetura da linguagem e do conhecimento, mas sim entender a estreita relação entre
cognição e linguagem e prover modelos capazes de captar esta inter-relação.
A LC rejeita a visão objetivista pautada no idealismo platônico, na relação entre
linguagem e mundo, em favor do paradigma experiencialista, cuja ênfase está na
fenomenologia e na visão corporificada da cognição. Segundo este paradigma, a mente
é corporificada. A estrutura da razão emerge assim dos detalhes pertinentes à nossa
constituição corpórea. Os mesmos mecanismos neuronais e cognitivos, que nos
permitem perceber e nos mover, também originam nossos sistemas conceituais. Para
entender a razão, precisamos entender os detalhes de nosso sistema visual, de nosso
sistema motor e os mecanismos de junção neuronal (neuronial biding). A razão não é,
de modo algum, um traço (feature) transcendental do universo, ou de uma mente
autônoma em relação ao corpo. É moldada pelas peculiaridades de nossos corpos, pelos
detalhes inigualáveis da estrutura neuronal de nossos cérebros e pelos detalhes
específicos do nosso funcionamento diário no mundo. Segundo o experiencialismo, o
pensamento é mais do que uma manipulação de símbolos abstratos; apresenta uma
estrutura ecológica no sentido de que a eficiência do processamento cognitivo depende
da estrutura global do sistema conceitual e não simplesmente de operações entre
símbolos discretos. Lakoff e Johnson (1987, 1999) assumem, dessa forma, que a razão
não é completamente consciente, mas grandemente inconsciente se desenvolvendo
filogenética e ontogeneticamente. A razão não é puramente literal, mas é, em grande
parte, metafórica e imaginativa; assim, o pensamento só pode ser descrito a partir de
modelos cognitivos e não a partir de valores e condições de verdade, como os utilizados
na lógica proposicional.
Quanto à relação entre linguagem e pensamento, a LC afirma que a linguagem,
longe de ser uma faculdade inata e autônoma em relação aos demais sistemas
cognitivos, conforme o posicionamento objetivista, é uma das manifestações cognitivas
no homem e como tal se baseia na experiência do indivíduo com o mundo, não tendo
existência autônoma, mas estando vinculada a outras capacidades cognitivas voltadas
para diversos propósitos. Assim, não se pode estabelecer uma dicotomia entre sintaxe
/semântica /sistemas perceptuais/sistemas conceptuais. É a partir das especificidades
neurobiológicas com as quais entramos no mundo e das interações que emergem, a
partir dessas especificidades em nível fisiológico, ecológico, no situamento
sociocultural, que se constituem os conceitos sejam eles de natureza semântica, seja
sintática. Assim, conforme apregoado pelo experiencialismo, os conceitos são
configurações complexas ad hoc, que emergem a partir da natureza de nossos corpos,
especificamente das peculiaridades dos nossos sistemas sensoriais e motores, mas
Cognição e Linguística 23
também a partir das crenças e dos valores sócio-históricos que absorvemos, em contato
com a cultura da qual somos parte.
Segundo a LC, as formas linguísticas são emergências que se fundam a partir de
conceitos pré-linguísticos. Supostamente, na interação com o mundo, o homem
internaliza esquemas de imagem de natureza cinestésica, que formam a base de
determinadas formas linguísticas. Por exemplo, esquemas tais como os de PERCURSO,
RECIPIENTE e BALANÇO, constituídos a partir de experiências sejam elas diretas, sejam
indiretas do indivíduo com o meio, subjazeriam a formas linguísticas, tais como os
termos “de” e “para”, “dentro” “fora”, “mais” e “menos”. O argumento é o de que é a
natureza do nosso corpo, com os potenciais de interações que ele nos possibilita com o
ambiente, que estaria na base dos esquemas imagético-cinestésicos que internalizamos,
dando origem aos conceitos que se manifestam nas formas linguísticas. Seguindo esse
argumento, poderíamos dizer que se fôssemos seres esféricos, por exemplo, não
teríamos certas formas linguísticas que denotam localização em relação ao corpo, tais
como “em frente”, “atrás”, “do lado”. Percebemos, portanto, que para a LC, as formas
linguísticas são emergências de representações cujas origens estão em ações situadas.
Isso nos faz lembrar o posicionamento expresso por Teixeira, quanto ao status que o
conceito de representação deve assumir, sob a ótica atuacionista:
24 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
como experiências indistintas (período da conflação), tais experiências seriam
diferenciadas ao longo do desenvolvimento cognitivo, quando o mapeamento entre
domínios neuronais (metafóricos) se consolidaria formando as ditas metáforas
primárias, também chamadas de básicas. Segundo os proponentes da hipótese, o fato de
possuirmos redes sinápticas coativadas, a partir de experiências envolvendo domínios
perceptuais, tais como: calor, proximidade física, elevação vertical, o ato de engolir e
domínios conceptuais (respostas cognitivas a tais percepções), (i.e. afeto, intimidade,
quantidade e aceitar), nos possibilita compreender, sem qualquer esforço cognitivo,
expressões tais como: “ele é uma pessoa fria”; “eles são muito próximos”, “os preços
subiram assustadoramente e “tive que engolir o que ele me disse”, decorrentes dos
mapeamentos: AFETO É CALOR, INTIMIDADE É PROXIMIDADE FÍSICA, QUANTIDADE É
ELEVAÇÃO FÍSICA e ACEITAR É ENGOLIR, respectivamente.
Segundo a hipótese, as metáforas primárias têm base neuronal, mas estão
fundadas na experiência sensorial e motora. Assim, nosso sistema conceptual se
desenvolveria a partir de percepções possibilitadas pela natureza e pelas especificidades
do nosso corpo, na interação com o ambiente. Em harmonia com a evidência já relatada
neste capítulo, na seção que trata da cognição atuacionista a respeito da relação entre
conceptualização e sistemas neuroniais sensório-motores,3 a HMP, veiculada no âmbito
da LC, parece-nos cientificamente plausível. Tal visão de metáfora coloca o paradigma
lakofiano em harmonia com a visão de uma cognição integrada, resultante da atuação
efetiva de agentes cognitivos na emergência do conhecimento em geral e do linguístico
em particular.
Outro conceito que incorpora a tese atuacionista da cognição é o de Modelo
Cognitivo Idealizado (MCI). Segundo a teoria lakofiana, tais modelos são conceitos
complexos – gestalts experienciais – representações mentais das formas com as quais
organizamos o mundo. Um MCI é um todo estruturado, complexo, um gestalt, que usa
quatro tipos de princípios estruturadores. (LAKOFF, 1987, p. 68). Os princípios
estruturadores constituem submodelos de naturezas imagética, proposicional, metafórica
e metonímica. Tais organizações conceituais resultam das interações do indivíduo com
o ambiente físico, além de incluírem fatores sociais e culturais pertinentes a uma dada
comunidade.
Segundo a teoria lakofiana, são estes modelos que, juntamente com a capacidade
humana da categorização, nos possibilitam a compreensão metafórica e metonímica. Os
MCIs são estruturas organizadoras do conhecimento, das quais provém a base para a
estruturação de categorias e para os efeitos de protótipos pertinentes às formas de
conceber e organizar as coisas, na nossa interação com o mundo. Para lidar com
categorias, precisamos dos quatro tipos de MCIs já elencados. Os submodelos de
natureza imagética são esquemáticos, os submodelos proposicionais especificam
propriedades e relações entre elementos, os metafóricos possibilitam mapeamentos entre
3
Para uma descrição exaustiva da evidência reunida entre corporificação e formação conceitual, no âmbito da
psicologia cognitiva e das neurociências, recomenda-se a leitura de Gibbs (2006), especialmente o capítulo 5.
Cognição e Linguística 25
domínios-fonte e alvo, e os metonímicos mapeiam relações entre elementos de um
mesmo domínio.
Os MCIs não são representações internas abstraídas de uma realidade externa.
(LAKOFF, 1987, p. 341). Primeiro, porque são entendidos a partir do conceito de
corporificação, constituindo-se, portanto, como uma forma de representação situada,
que emerge a partir da interação do sujeito cognoscente com o mundo e, segundo,
porque incluem aspectos imaginativos da cognição, como a metáfora e a metonímia. O
pensamento faz uso desses modelos presentes no sistema conceitual, para orientar
adequadamente a produção e compreensão linguística.
Podemos, assim, perceber que o conceito de MCI como representação mental
situada, adapta-se à perspectiva adotada recentemente, no âmbito das Ciências
Cognitivas de uma cognição corporificada, e que integra subsistemas cerebrais de
naturezas diversas na emergência de comportamentos significativos.
Em vista dos argumentos apresentados nas seções anteriores, quanto a lacunas
deixadas pelas visões simbólica e conexionista da cognição e, em especial, levando-se
em consideração as evidências reunidas pelas neurociências, apresentadas na seção
anterior, acreditamos que a LC apresenta-se como a teoria linguística que mais
adequadamente propõe modelos teóricos para o estudo científico da linguagem.
6 Comentários finais
Referências
26 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
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28 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
2
COGNIÇÃO E CATEGORIZAÇÃO:
uma revisão teórica
1 Introdução
Cognição e Linguística 29
A categorização não é um processo que deva ser estudado superficialmente.
Não há nada mais básico do que a categorização para o nosso pensamento,
percepção, ação e discurso. Cada vez que nós vemos algo como um ‘tipo de
coisa’, por exemplo, uma árvore, nós estamos categorizando. (LAKOFF,
1987, p. 5)
1
O conjunto de saberes denominado de Ciências da Cognição é entendido como um campo interdisciplinar de
investigação, que envolve várias áreas do conhecimento, principalmente estudos de áreas da Filosofia, da Psicologia,
das Neurociências, da Linguística, das Ciências da Computação e da Inteligência Artificial (AI). Seu objetivo básico
é compreender a estrutura e o funcionamento da mente humana, através dos estudos dos processos cognitivos a ele
subjacentes (percepção, atenção, memória, conceptualização, categorização, etc.).
2
A visão simbólica da cognição (ou hipótese cognitivista) tem suas raízes em grande parte nos pressupostos
filosóficos do dualismo psicofísico cartesiano, que pressupõe, entre outras coisas, a separação entre realidade física e
realidade mental, demarcando a cisão mente/corpo. Para compreender melhor essa questão, ver Teixeira (1998).
30 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
forma simples, quer sob uma forma complexa. A pesquisa sobre a organização simples
investiga o modo como diferentes categorias semânticas podem ser agrupadas sob um
conceito comum, e como essas entidades se relacionam umas com as outras.
Consideraremos aqui a Teoria dos Protótipos proposta por Rosch e colaboradores, como
ponto central para a discussão dessa linha de pesquisa.
Os estudos sobre a organização complexa apontam em direção ao modo como
grandes agrupamentos e conceitos se estruturam e como são utilizados em diversas
tarefas cognitivas complexas, como, por exemplo, na compreensão de uma história, de
um episódio narrado, ou mesmo de um evento. A ênfase dada aqui é sobre a estrutura do
conhecimento dos eventos do cotidiano e a organização dessas sequências em planos
maiores ou outras estruturas preditivas de conhecimento. Como ponto de partida dessa
linha de pesquisa, temos a teoria de esquemas de Rumelhart (1984), cuja base remonta
aos estudos de Bartllet (1932) e à teoria dos roteiros de Schank e Abelson (1977), assim
como seus desenvolvimentos posteriores sobre redes semânticas.
Isto nos possibilita investigar um tema que há alguns anos tem chamado a atenção
de muitos psicólogos e psicolinguistas, relativo aos efeitos das experiências de eventos
diários sobre processos como a memorização, interpretação e compreensão e, em
especial, a categorização. Vejamos isso mais detalhadamente.
Imaginemos a seguinte situação, representada através deste enunciado “João saiu
da casa lotérica muito feliz.” Podemos concluir, dentre diversas outras coisas, que João
é homem, que casa lotérica é o lugar onde se fazem apostas, que feliz é um estado de
alegria intensa e que se João estava feliz é porque provavelmente (inferência) deve ter
acertado na loteria, etc. Como se pode ver, podemos compreender tal frase e interpretá-
la, pois além de apresentar uma estrutura linguística coerente, toda a bagagem de
informação que ela traz (explícita e implícita) constitui uma parcela de todo o
conhecimento de mundo que temos e compartilhamos uns com os outros.
A análise de tal enunciado demonstra que a extensão do conhecimento que
utilizamos é demasiado grande e, conscientemente, nem conseguimos perceber. Desse
modo, podemos dizer que a quantidade de informações que apreendemos do mundo não
poderia estar armazenada de forma aleatória, o que seria caótico. Então, pressupõe-se
que o conhecimento tenha algum tipo de organização, a qual permite que o
armazenamento e o acesso às informações sejam mais eficientes e econômicos.
Mas, afinal, o que é conhecimento? Eysenck e Keane retratam essa questão
asseverando que os cognitivistas, seguindo a perspectiva simbólica, normalmente
rotulam conhecimento como qualquer “informação que é representada mentalmente em
um formato específico e estruturada e organizada de alguma forma”. (EYSENCK; KEANE,
1996, p. 221). Aqui, um outro conceito aparece que é o de representação mental, cujos
formatos se apresentam sob duas formas, que são as representações proposicionais e as
representações analógicas. As primeiras se configuram como entidades semelhantes à
linguagem e abstratas (proposições), enquanto as últimas, de caráter secundário dentro
Cognição e Linguística 31
do quadro da organização das representações mentais, são semelhantes a imagens,
dotadas de características especiais.
Continuando essa questão, observamos o fato de que a maioria das abordagens
cognitivas supõe, explícita ou implicitamente, que os conceitos são representados por
alguma forma de representação proposicional. Isso se verifica porque, em primeiro
lugar, os pesquisadores partem de uma perspectiva atomística dos conceitos, sendo
vistos como unidades atômicas que, uma vez combinadas, gerariam estruturas mais
complexas de conhecimento. Em segundo lugar, os modelos computacionais, cujo
registro de proposições tem sido feito através do cálculo de predicados, têm dado
suporte para o desenvolvimento de pesquisas sobre o processamento da informação em
seres vivos.
A figura, a seguir, proposta pelos autores referidos acima (EYSENCK; KEANE, 1996,
p. 222), é um esboço geral de como esse assunto é tratado no âmbito da pesquisa
cognitiva e linguística. Demonstra as várias maneiras de como os temas de pesquisa,
relacionados a essa área, estão divididos, sendo que, numa divisão mais ampla, abarca
as pesquisas voltadas para a organização simples e as pesquisas sobre organização
complexa.
Conhecimento
32 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
em memória semântica e memória episódica. A memória semântica é formada de
proposições abstratas genéricas e relacionais voltadas à organização do léxico mental e
ao conhecimento dos demais símbolos verbais, sendo descontextualizada dos fatos,
como, por exemplo, que os pássaros têm asas e que um canário é um pássaro. A
memória episódica, por sua vez, armazena conteúdos contextualizados espacial e
temporalmente, sendo autobiográfica, por ser constituída de experiências pessoais,
como, por exemplo, “minhas férias em Jericoacoara”. Tais estruturas têm grande
importância para o entendimento da teoria dos esquemas.
Os autores ressaltam também que ambos os tipos de conhecimento encontram-se
imbricados, sendo dissociados apenas para fins didáticos e de pesquisa, pois uma
memória episódica contém elementos de uma memória semântica (e.g., o que é uma
praia), assim como o significado de uma palavra pode ter características episódicas.
Uma segunda divisão separa o que podemos denominar de conhecimento
declarativo, ou seja, que pode ser expresso em termos de signos verbais e conhecimento
processual ou não declarativo, como, por exemplo, habilidades motoras, perceptivas e
cognitivas.
Cognição e Linguística 33
todos os seus membros, e um membro só pode ser considerado exemplar se possuir
todas as características necessárias e suficientes da categoria.
Ainda na Filosofia e na Lógica, essa concepção de categorização foi aprimorada
no trabalho pioneiro de Frege (1952). Este sustenta que um conceito é formado por um
conjunto de atributos de definição que definem o que é necessário para ser um membro
daquele conceito. A isto ele denominou de intensão de um conceito. Já a extensão é o
conjunto de entidades que são membros do conceito. Desse modo, a intensão (conjunto
de atributos) é que determina a extensão de uma categoria (quais itens são membros).
Na pesquisa experimental, essa questão foi desenvolvida também pelos trabalhos de
Hull (1920) sobre o estabelecimento dos conceitos.
Sumariamente falando, podemos dizer que a teoria de atributos de definição
considera os atributos como unidades atômicas ou primitivas, que são a base dos
conceitos. Pressupõe que os conceitos dividem os objetos existentes no mundo em
classes distintas e que os limites entre as categorias são rígidos e bem-definidos. Afirma
também que todos os membros da categoria são igualmente representativos, ou seja,
nenhum membro pode ser considerado como um melhor exemplar para a categoria;
assim também o subordenado possui todos os atributos do seu supraordenado.
Outra teoria pautada nos atributos de definição é o modelo de rede de Collins e
Quillian (1969), que proporcionou significativos avanços no estudo da cognição. A
partir de um modelo computacional, concebe os conceitos como uma hierarquia de
nodos inter-relacionados, onde os subordenados geralmente herdam os atributos de seus
conceitos supraordenados.
Apesar de o modelo clássico de atributos de definição ter tido grande influência
nas diversas áreas de conhecimento, apresenta muitas falhas e limitações, pois não
atesta o modo como as pessoas adquirem conceitos, ou como estes se correlacionam na
vida real. Ele falha porque tenta estabelecer uma filiação de atributos necessários e
suficientes ao predizer que um conceito subordenado deve conter todos os atributos de
seu conceito supraordenado. É uma questão de tudo ou nada, tornando as categorias
conceituais rigidamente delimitadas, fato contestado por diversos autores, em especial
Rosch (1973a, 1975b). Smith e Medin (1981) fazem algumas objeções, alegando que a
existência de conceitos disjuntivos, a existência de casos confusos (e.g., baleia é um
mamífero) e a insuficiência geral, para especificar características definidoras para a
maioria dos conceitos, são apontadas como pontos frágeis dessa teoria.
Adicionalmente, o ponto de vista dos atributos de definição foi alvo de severas
críticas, entre as quais se destacam como as mais importantes:
(1) a suposição de que todos os atributos são igualmente importantes na
determinação de um membro de um conceito está totalmente errada; ao contrário,
alguns atributos são mais salientes que outros, como demonstra Conrad (1972), em que
o atributo cor de rosa para salmão é mais frequentemente mencionado que o tem
nadadeira;
34 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
(2) nem todos os membros de uma mesma categoria são igualmente
representativos. Isso foi confirmado nos estudos de Rosch (1973a), nos quais se
verificou que existem graus de tipicidade entre os membros de uma categoria, ou seja,
uns membros eram mais representativos que outros.
Também devemos considerar os estudos de Wittgenstein (1953), precursor da
Semântica Cognitiva. Em suas investigações filosóficas, ele analisou a categoria jogo, e
concluiu que seus membros não compartilham atributos essenciais, e não há sequer um
traço que a multiplicidade de atividades, designadas pela palavra, compartilhe e sobre
que base se decida que seja um jogo ou que não o seja:
Cognição e Linguística 35
atributos de definição, partilhados por todos os membros, e de atributos característicos
que determinarão a tipicidade de um membro de uma categoria. Apesar de explicar
algumas das objeções levantadas contra o ponto de vista do atributo de definição, é
criticada pelo fato de haver poucas evidências que comprovem a existência de atributos
de definição, que tornam as categorias bem-delimitadas. (RIPS; SHOBEN; SMITH, 1973).
36 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
nível básico, em que os conceitos têm o maior número de atributos
distintivos de outros conceitos do mesmo nível, variando em função de
diferenças individuais e culturais;
nível subordenado, para conceitos específicos.
Cognição e Linguística 37
favoráveis como os dos fenômenos perceptivos, como no caso da maioria das categorias
naturais.
Vale assinalar, ainda, que os problemas apresentados pela teoria dos protótipos
levaram seus formuladores a modificá-la profundamente, de um modo tal que, de uma
simples revisão, se tornou uma verdadeira ruptura teórica com o modelo anterior. Isso
porque a ideia central de protótipo e a de que as categorias se estruturam a partir do grau
de semelhança dos seus elementos com o exemplar prototípico, da versão anterior, são
abandonadas: o protótipo se converte em efeitos de prototipicidade e o conceito de
semelhança de família passa a ter um papel decisivo, sugerindo que os itens de uma
categoria não mais se agrupam em torno de um atributo comum a todos eles, mas um a
um, formando uma espécie de cadeia lateral. Assim, dois itens que não compartilham
atributos podem ser vinculados, ao levar-se em consideração toda a cadeia.
38 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
do ambiente e explicam o comportamento humano. Desse modo, a noção de esquema
foi desenvolvida como um construto utilizado para explicar a organização complexa do
conhecimento.
Eysenck e Keane (1996) explicam que a partir de tais questionamentos surgiu uma
outra linha de pesquisa, que pressupõe que o conhecimento é organizado de uma forma
mais complexa do que simples agrupamentos hierárquicos de conceitos. Esse conjunto
de pesquisas trata do que é chamado de organização complexa do conhecimento e
considera que os conceitos se relacionam em conjunto e de diversas maneiras, de modo
a refletir a estrutura causal e temporal do meio ambiente. Isso deu margem à
estruturação de diversos construtos mentais (esquemas, roteiros, quadros, etc.), que
pudessem explicar a organização de eventos complexos, através do comportamento
observado nas pessoas.
A organização complexa do conhecimento normalmente é explicada utilizando-se
o conceito de esquema. Segundo Eysenck e Keane, “um esquema é um agrupamento
estruturado de conceitos; normalmente ele envolve conhecimento genérico e poderá ser
utilizado para representar eventos, sequência de eventos, preceitos, situações, relações e
até mesmo objetos.” (1996, p. 245). Tal noção já é antiga e pode ser encontrada nas
teorias filosóficas de Kant (1787), nas quais esquemas são vistos como estruturas inatas
para a organização de nossa percepção do meio ambiente.
Anos mais tarde, Bartlett (1932), um dos precursores do estudo da compreensão
linguística do ponto de vista cognitivo e consensual, ao realizar um estudo sobre a
lembrança de eventos, verificou que esta é moldada pelas expectativas dos sujeitos. A
compreensão não seria um mecanismo de reprodução, mas um processo construtivo que
usa não só as informações dadas no discurso, mas também um conhecimento prévio
extraído da experiência pessoal. Tal conhecimento não está armazenado como uma
sucessão de fatos e experiências desordenadas entre si, mas organizadas em estruturas
cognitivas denominadas esquemas.
Piaget (1967), ao procurar entender as mudanças ocorridas na cognição das
crianças em desenvolvimento, definiu os esquemas como conjuntos de ações que
caracterizam o estágio de desenvolvimento cognitivo da criança.
A partir da década de 70, houve um crescente interesse na psicologia cognitiva
pelo conceito de esquema, observado de fato nos estudos sobre a representação mental
de textos e discursos verbais de onde surgiram teorias como a dos marcos (frames) de
Minski (1975), dos roteiros (scripts) de Schank e Abelson (1977) e dos esquemas de
Rumelhart (1980). Eles são representantes da vertente simbólica da neófita ciência
cognitivista, na qual a Inteligência Artificial3 se constitui como sua aplicação mais
literal. Essa efervescência é assim descrita por Eysenck e Keane:
3
Conforme Varela, Thompson e Rosch (2003), decorrente da Cibernética, o Cognitivismo teve suas origens, assim
como o conceito de Inteligência Artificial como hoje é aceito nas ciências computacionais, em 1956, por ocasião de
uma conferência no Dartmouth College, em New Hampshire (EUA). A Inteligência Artificial, para os mesmos
autores, é a implementação literal da hipótese cognitivista (i.e. a visão simbólica da cognição).
Cognição e Linguística 39
O conceito assumiu várias formas diferentes: os atos primitivos de Schank
(1972) são uma instância de um esquema pequeno para a organização de
conceitos previstos por uma relação; as “gramáticas de histórias” foram
propostas por Rumelhart e outros para a compreensão de histórias
(Rumelhart, 1975; Stein e Glenn, 1979; Thordike, 1977), e os “roteiros”
foram propostos por Schank e Abelson (1977), para explicar o conhecimento
estereotipado que as pessoas têm de situações freqüentemente encontradas
(ex. ida a um restaurante). De uma forma mais generalizada, Rumelhart e
Ortony (1977; e também Rumelhart, 1980) propuseram uma teoria geral dos
esquemas e, na inteligência artificial, Marven Minski (1975) sugeriu
estruturas semelhantes chamadas “quadros” as quais ele julgava serem
utilizados principalmente na percepção visual. (EYSENCK; KEANE, 1996,
p. 245).
40 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
dizer que ela trata de esquemas mais complexos, denominados roteiros (scripts), que
tentam capturar o conhecimento que subjaz à nossa compreensão de eventos do
cotidiano, como a ida a um restaurante, exemplo clássico oferecido por Schank e Kass
(1988) para descrever o conhecimento de uma pessoa (ator), na sequência de eventos
que acontecem na ação de ir ao restaurante.
Cognição e Linguística 41
profissional. No segundo caso, temos que o MOP viagem de negócios implica outros
MOPs como viagem de avião, hospedagem em hotel e almoço de negócios.
Tais estruturas (MOPs e TOPs) permitem nos sobrepor às estruturas rígidas dos
roteiros e entender as ações e metas dos outros em situações nunca experimentadas
pessoalmente. Foi uma reelaboração do conceito denominado por ele de plano, haja
vista não haver uma delimitação clara entre plano e roteiro.
Partindo da perspectiva de que os esquemas são estruturas de um certo modo
maleáveis, que assumem diversas formas para representar os diferentes tipos de
conhecimento, suas características básicas podem ser assim resumidas:
• são compostas de variáveis/fendas (slot-fillers) e valores (conceitos
específicos) para estas variáveis;
• as relações podem ser de várias formas, do tipo é-um, ou então causais;
• um esquema pode conter outros subesquemas inter-relacionados;
• codificam o conhecimento geral que pode ser aplicado a várias situações
específicas.
Vale considerar que não há clareza sobre como os esquemas são formados e/ou
adquiridos, havendo a possibilidade de uma indução mal-especificada para a
concatenação de experiências específicas. Rumelhart e Norman (1981) propuseram três
modos básicos em que o aprendizado pode ocorrer dentro de um sistema baseado em
esquemas:
Apesar de tais autores terem proposto um possível modo como os esquemas são
adquiridos, poucas tentativas foram feitas no intuito de provar tal teoria.
Conforme Eysenck e Keane (1996), as teorias de esquemas, de modo geral,
possuem muitas falhas em seu corpo teórico, apesar de aparentemente apresentarem
propostas consistentes e ainda válidas sobre a estrutura e organização da memória,
dentro de um paradigma simbólico, a saber:
42 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
2.4 Outros caminhos para o estudo dos conceitos, esquemas e categorização
Cognição e Linguística 43
3 Conexionismo: uma nova perspectiva para os conceitos e esquemas
4
Desde seu surgimento na década de 40, o movimento cibernético esteve dividido entre o estudo da mente humana,
que deu origem à Inteligência Artificial Simbólica, e o estudo do cérebro, que deu origem aos estudos conexionistas
de redes neurais. Ambos coexistiam, mas somente a partir da década de 80, o conexionismo teve seu vigor com o
advento da ideia de Processamento Distribuído Paralelo (PDP), desenvolvido por Rumelhart, McClelland e
colaboradores. (Cf. RUMELHART; McCLELLAND, 1986).
44 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
comunidade (definição) é fruto apenas de uma necessidade de expressão da
subjetividade, com o propósito da comunicação.
O mesmo princípio aplica-se às estruturas cognitivas globais (esquemas mentais).
Tais estruturas não têm existência própria: são elaboradas de acordo com as solicitações
impostas dentro da atividade discursiva. O que queremos dizer com isso é que elas
ocorrem no espaço, só que distribuídos pela rede de conexões entre as unidades e na
forma de um processo global do sistema, embora não possamos dizer exatamente onde
eles ocorrem.
De acordo com Rumelhart, McClelland e colaboradores (RUMELHART et al., 1986),
os esquemas (schemata) são definidos como estruturas de dados que representam os
conceitos genéricos armazenados na memória. Desse modo, existem esquemas para
conceitos generalizados subjacentes a objetos, situações, eventos, sequências de
eventos, ações e sequências de ações. Seriam, dessa forma, modelos do mundo exterior,
resultado de um conjunto de conexões fortes que, quando ativadas, trazem
implicitamente a habilidade para gerar estados que correspondem aos esquemas
instanciados.
Uma vez que as representações mentais deixam de ser entidades estáticas e
passam a ser vistas como traços de atividade eletroquímica (sinapses) engramados
(configurados) nas células nervosas do cérebro, o processo de categorização passa a ser
visto de outra forma. Tomando por base a ideia conexionista de que a cognição é a
emergência de estados globais em uma rede de componentes simples (neurônios), que
funciona através de regras locais de operação individual e regras de mudança na
conectividade entre os elementos, e que resulta em estruturas que correspondem a
capacidades cognitivas específicas (VARELA; THOMPSON; ROSCH, 2003), a categorização,
assim como o conceito e os esquemas mentais, é uma propriedade global de organização
cognitiva. Ela emerge em um processo ad hoc, não existindo a priori (embora surja a
partir de dados de que dispõe o cérebro), mas que passa a existir em determinado
momento para atender ao interesse e às expectativas dos indivíduos.
Apesar de resolver muitos dos problemas deixados pela hipótese cognitivista, o
conexionismo não esteve a salvo de críticas. Dentre elas ressaltamos as de Fodor e
Pylyshyn (1988), citados por Teixeira (1998), na qual os modelos conexionistas que,
por não operarem com regras abstratas de composição e representações simbólicas, são
incapazes de modelar representações complexas, em particular processos complexos
como a linguagem e o pensamento.
Ellis (1999) comenta que o conexionismo, por apresentar muitas aproximações
com o behaviorismo e o associacionismo, é alvo de críticas semelhantes. O autor
complementa que os modelos conexionistas não conseguem explicar a criatividade e
negam a representação interna, assim como a influência de aspectos socioculturais e
motivacionais experimentados pelo indivíduo na construção do conhecimento.
Cognição e Linguística 45
No entanto, as críticas mais contundentes à perspectiva conexionista vêm da
perspectiva enatista (ou atuacionista), que refuta a ideia de uma dicotomia mente-
cérebro-organismo e de uma cognição desencorporada, como veremos a seguir.
5
A Enactive View, desenvolvida por Varela, Thompson e Rosch (1991), compõe a chamada Cognição Situada, que
abrange diversas outras abordagens como a Biologia do Conhecer, proposta por Maturana e Varela (2001); Cognição
Situada, designada por Clancey (1997); e Ecologia da Mente, analisada por Bateson (1972). Essas abordagens têm
como premissa fundamental a existência do organismo-em-seu-ambiente, em que organismo e ambiente constituem
uma unidade inseparável, numa dinâmica de interação contínua e simultânea.
46 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
possuímos linguagem verbal, veículo que viabiliza grande parte das categorizações que
fazemos. Categorizar, nesse sentido, ao invés de ser um processo mental
descontextualizado, é uma condição sine qua non de sobrevivência e de integração
biopsicossociocultural-ecológica do indivíduo com o mundo.
Dentro da perspectiva dos Modelos Cognitivos Idealizados (MCI), desenvolvida
por Lakoff (1987), o processo de categorização é o elemento central na constituição de
tais modelos, dos quais as estruturas categoriais são derivadas.6 Uma implicação da
teoria é que a categorização só é possível por meio dos MCI, uma vez que estes são os
grandes domínios pelos quais a experiência de mundo é organizada. Disso resulta que as
categorias são o resultado da relação que se estabelece entre modelos cognitivos,
experienciais, e o mundo.
5 Considerações finais
O grande desafio das Ciências Cognitivas é tentar elucidar como o ser humano
representa mentalmente a realidade percebida e experienciada nas suas relações com o
mundo e quais são e como atuam as estruturas da mente nas atividades cognitivas
responsáveis pela organização da arquitetura mental. Quando Lakoff (1987) nos aponta
que não existe nada mais básico que a categorização para o nosso pensamento, a
percepção, ação e fala, ele ressalta o caráter imprescindível desse processo para
compreendermos o que nos faz humanos. Nesse ínterim, a categorização aparece como
processo cognitivo basilar, que nos possibilita a inteligibilidade do mundo, e nos coloca
em relação direta e profunda com ele, em um movimento dialético do conhecer.
Este trabalho procurou sucintamente delinear o percurso epistemológico dessa
discussão no âmbito da pesquisa científica contemporânea, apresentando alguns
paradigmas que tentaram desenvolver em suas teses aproximações sobre o que é a
mente e como esta se estrutura e se relaciona com o mundo.
Atualmente, toda a sociedade científica está de olhos voltados para visões cada
vez mais abrangentes, mais ecológicas, como as abordagens da perspectiva de uma
Cognição Situada, que, de modo abrangente, procura elucidar os grandes
questionamentos epistemológicos sobre o que chamamos de cognição. Mas não
podemos esquecer que, apesar de tantos paradigmas rompidos, ainda somos impelidos a
pensar o conhecimento de forma que seja um saber compartilhado, situado na relação
organismo-meio. De quantos símbolos precisaremos para dar conta da existência, para
explicar e simplificar aquilo que, apesar de concreto, nos escapa à racionalidade, que
ainda nos parece extremamente complexo e, por vezes, intangível? Por quanto tempo o
homem se verá como uma metáfora e quantas metáforas utilizaremos para tentar
compreender a tessitura de uma realidade que nos parece ininteligível? Até que se
6
Em linhas gerais, os MCI são macroestruturas pelas quais organizamos nosso conhecimento e que permitem que
criemos categorias e que façamos relações entre elas. Caracterizam-se por serem experienciais, possuírem uma
natureza gestáltica, uma estrutura ecológica e serem imaginativos. Eles podem ser organizados em cinco modelos
estruturais, a saber: de esquemas imagéticos, proposicionais, metafóricos, metonímicos e simbólicos. Para maiores
detalhes, consultar a obra de Lakoff (1987).
Cognição e Linguística 47
vislumbre uma nova alternativa, um novo olhar sobre o fenômeno da categorização e da
arquitetura da mente, contentar-nos-emos – ainda que com um contentamento
descontente – com a representação mental como a grande metáfora do conhecimento
humano.
Referências
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50 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
3
COGNIÇÃO E GRAMÁTICA
Maria Angélica Furtado da Cunha (UFRN)
Márcia Teixeira Nogueira (UFC)
1 Introdução
1
Tanto a Linguística Cognitiva quanto a Linguística Funcional rejeitam o postulado da Autonomia da Sintaxe,
defendido pelos seguidores da Gramática Gerativa. Vale notar que, historicamente, a Linguística Cognitiva emergiu
Cognição e Linguística 51
contudo, que a abordagem funcional não afirma que todas as estruturas da língua são
determinadas por sua função, no sentido de serem iconicamente relacionadas ao seu
significado. Um SN, por exemplo, é relacionado a sua função comunicativa por
convenção, do mesmo modo que os itens lexicais estão convencionalmente associados
às suas funções comunicativas, e essas convenções podem variar de língua para língua.
O que se defende é que tanto os produtos culturais quanto as estruturas biológicas são
compreendidos primeiramente em termos de suas funções. Logo, a análise de
fenômenos linguísticos deve estar baseada no uso real da língua pelos interlocutores, em
situação concreta de comunicação linguística. A proposta é que o estudo do discurso2 e
da gramática sejam simultâneos, para que se possa entender como a língua vem a ser o
que ela é. Parte-se do princípio de que há uma simbiose entre discurso e gramática: o
discurso e a gramática interagem e se influenciam mutuamente, de tal modo que, no uso
real da língua, um não pode ser acessado, ou até mesmo explicado, sem referência ao
outro. O desafio, portanto, é investigar o discurso para descobrir como ele modela a
gramática do mesmo modo que a gramática condiciona o discurso. Pesquisas que
combinam discurso e gramática têm demonstrado que, apesar das idiossincrasias, tanto
no discurso quanto na gramática, é possível descobrir padrões e generalizações, de tal
modo que, quando há um padrão fundamental na estrutura gramatical, muito
provavelmente se descobre um padrão fundamental paralelo, se não idêntico, na função
discursiva. Além dessa orientação funcional geral, os linguistas que seguem essa linha
buscam explicações em fatores comunicativos e cognitivos, que permeiam o processo
de interação, alinhando-se, assim, tanto quanto possível, aos construtos teóricos das
Ciências Cognitivas. A linguagem é tida como um mosaico complexo de atividades
comunicativas, cognitivas e sociais estreitamente integradas aos outros aspectos da
psicologia humana. (TOMASELLO, 1998). Nesse sentido, as construções linguísticas são
concebidas como esquemas cognitivos do mesmo tipo que encontramos em outras
habilidades linguísticas, ou seja, como procedimentos relativamente automatizados, que
se utilizam para realizar coisas comunicativamente. Esse conhecimento o falante
adquire à medida que aprende a usar a sua língua.
Diversas pesquisas confirmam (THOMPSON; HOPPER, 2001; TAYLOR, 1995; LAKOFF,
1987; LABOV, 1973) que as categorias linguísticas se comportam como as categorias
conceituais humanas de modo geral. Para citar um exemplo, a gramática da cláusula ou
estrutura argumental (a relação entre o predicado e seus argumentos) é formada do
mesmo modo que as outras categorias: por meio do contínuo processo cognitivo de
classificação, refinamento e generalização a partir das interações comunicativas diárias.
Como defendem Thompson e Hopper (2001), o sentido de um verbo ou predicado está
da Gramática Gerativa, dada a insatisfação de alguns dos seus praticantes, em especial Lakoff e Langacker, com o
desprezo pelas dimensões cognitivas e sociais do paradigma formalista.
2
Tal como tomado aqui, o discurso compreende qualquer instância de uso autêntico da língua em todas as suas
manifestações, o que equivale a dizer qualquer ato motivado de produção e compreensão da linguagem, através de
qualquer meio, seja ele falado, escrito, ou outro qualquer (DU BOIS, 2003).
52 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
relacionado aos esquemas léxico-gramaticais em que ele pode ocorrer, e a estrutura
argumental é essencialmente um subconjunto desses esquemas.
A frequência de ocorrência de uma determinada construção leva a seu
estabelecimento no repertório do falante e faz dela uma unidade de processamento, o
que implica que o falante explora recursos gramaticais disponíveis para atingir seus
objetivos comunicativos. No entanto, o discurso exibe padrões recorrentes que
extrapolam o que é predizível pelas regras gramaticais, apenas, e a explicação para a
existência desses padrões deve ser procurada no âmbito da cognição e da comunicação.
A constatação desses padrões aponta para a utilização sistemática da estrutura sintática,
como uma moldura que serve à organização e ao gerenciamento dos custos cognitivos
envolvidos na produção e compreensão do discurso. Enquanto alguns aspectos do
processamento do discurso demandam alto custo cognitivo, outros são relativamente
menos exigentes. Ao investigar o estatuto informacional dos referentes, por exemplo,
Chafe (1994) conclui que a identificação de referentes novos no discurso é mais
dispendiosa, enquanto a identificação de referentes acessíveis é mais barata. A
distribuição de custos cognitivos, através do arranjo gramatical da cláusula, não é nem
casual nem constante, mas sistematicamente enviesada.
A consideração dos aspectos cognitivos e sociais que dizem respeito ao modo
como as pessoas “empacotam” conteúdos ideacionais nas interações verbais, ou seja, as
mudanças no estatuto dos referentes (entidades discursivas), no que concerne à
codificação de informação dada/nova pode ser encontrada em diferentes modelos
funcionalistas. Como preferência discursiva mensurável por meio da estrutura
gramatical, a hipótese de uma estrutura argumental preferida (DU BOIS, 1987) restringe a
expressão de mais de um argumento lexical e novo por oração, bem como a manifestação
desse argumento como sujeito transitivo (daí a frequência de pronomes e anáforas zero nessa
posição). Para Du Bois (2003), os falantes sabem onde produzir, e os ouvintes sabem
onde esperar, em uma cláusula, as demandas mais pesadas de processamento, como
aquelas associadas à introdução de informação nova no discurso.
Sob a perspectiva cognitivo-funcional, a gramática da língua constitui um
arcabouço arquitetônico adaptativo para a função cognitiva. (DU BOIS, 2003). Uma vez
cristalizada como estrutura gramatical, a arquitetura se torna um recurso cognitivo
disponível a todos os membros da comunidade de fala. Quando se descobre a mesma
regularidade discursiva, sem que haja obrigatoriedade por parte da gramática da língua
em questão, no discurso real de diferentes falantes, conversando em diversos contextos
sobre tópicos variados, e quando se descobre o mesmo padrão em línguas de regiões
distantes, com histórias diferentes e tipos gramaticais divergentes, então temos base
para invocar um universal do discurso mais amplamente fundamentado, mais estável e
mais empiricamente confirmável do que muitos que têm sido propostos para a gramática.
Descobre-se, então, um padrão recorrente de uso linguístico, que não pode ser reduzido a
uma regra gramatical. De acordo com essa concepção, a gramática contribui com um
arcabouço arquitetônico, no qual o processamento cognitivo se realiza.
Cognição e Linguística 53
3 Gramaticalização: paradigma e processo
3
Givón (1979) utiliza os termos ‘sintaticização’ e ‘morfologização’ ao invés de ‘gramaticalização’.
4
Embora os linguistas compartilhem a visão geral de gramaticalização como o desenvolvimento de itens lexicais em
formas gramaticais, e de estruturas gramaticais em estruturas ainda mais gramaticais, há, na literatura, um grande
leque de orientações teóricas diferentes. (HEINE, 2003).
54 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
conceitualização de domínios abstratos da cognição (como o domínio dos significados
gramaticais) em termos de domínios concretos. A metáfora, vista como processo
constitutivo da linguagem, encontra-se quando nos referimos a uma categoria “mais
abstrata”, em termos de uma categoria “menos abstrata” ou concreta, na seguinte escala
de abstração crescente:
PESSOA > OBJETO > ATIVIDADE > ESPAÇO > TEMPO > QUALIDADE
5
A frequência de uso é um dos traços caracterizadores do processo de regularização linguística. Quando uma forma
ou combinação de formas passa a ocorrer no discurso com frequência crescente, ela deixa de ser um modo
“inesperado” de reforçar um ponto discursivo e começa a ser interpretada como o modo “normal” e despercebido de
procedimento. A recorrência de tais expressões é um dos fatores que indica se elas são ou não consideradas pela
comunidade linguística como gramaticais.
Cognição e Linguística 55
“ressemantização” de um item que, em dada construção e contextos de uso específicos,
adquire significado gramatical. Nos estágios iniciais de gramaticalização, pode haver
uma mudança de significado menos gramatical para mais gramatical, embora não haja
ainda mudanças pragmáticas, morfossintáticas ou fonéticas perceptíveis associadas a
essa mudança.
A gramaticalização é concebida como um processo pancrônico que apresenta uma
perspectiva diacrônica, já que envolve mudança, e uma perspectiva sincrônica, já que
implica variação que pode ser descrita como um sistema sem referência a tempo. Como
tal, o paradigma de gramaticalização pode ser aplicado tanto aos padrões fluidos do uso
da língua que se observam num corte sincrônico quanto aos processos de mudança que
se depreendem na trajetória diacrônica. Uma vez que um elemento linguístico é capaz
de adquirir e reter novos sentidos e usos sem perder os antigos, seu estudo requer uma
perspectiva pancrônica. É possível afirmar que a gramaticalização acontece
espontaneamente e da mesma forma em períodos diferentes e em todas as línguas.
Vejamos, mais uma vez, o exemplo do verbo ir. O processo de auxiliarização do verbo
ir em português é bastante interessante como um fato isolado sobre essa língua, mas
adquire uma grande importância quando se verifica que, em outras línguas, não
necessariamente relacionadas genética ou geograficamente, podem ser encontrados
casos análogos. De fato, esse processo é regular e produtivo, e pode ser constatado no
francês (Je vais aller à la plage), no espanhol (Yo voy a hacer uma dieta) e no inglês
(I’m going to study). Um outro exemplo diz respeito à evolução do sufixo –mente a
partir de um item lexical pleno, cujo uso se conservou no português atual. Bybee (2003,
p. 148) relata que o sufixo –ly do inglês, que marca advérbios de modo, é derivado de
um substantivo que, no inglês antigo, significava corpo e tinha a forma liç. A palavra
composta mann-liç, que significava originalmente “tendo o corpo ou aparência de um
homem”, se generalizou para “tendo as características de um homem”, o sentido
moderno de manly. Essa é uma evidência adicional de que trajetórias de
gramaticalização vem das línguas pidgins e crioulas.6 Estudos sobre o modo como a
gramática dessas línguas se desenvolve revelam que o processo é o mesmo que o
processo de gramaticalização em línguas mais estabelecidas. (ROMAINE, 1995; SANKOFF,
1990).
O conceito de gramaticalização representa um desafio às abordagens linguísticas
que pressupõem categorias discretas encaixadas em sistemas fixos e estáveis. Segundo
essa visão, a gramática de uma língua é dinâmica, incompleta e maleável. As
regularidades convivem com aspectos instáveis, não completamente determinados. O
surgimento de novas estruturas gramaticais é motivado quer por necessidades
comunicativas não satisfeitas, quer pela presença de conteúdos cognitivos para os quais
não existem designações linguísticas adequadas, quer pela própria dinâmica das
6
Crioulos são definidos como línguas que se desenvolveram historicamente de um pidgin, uma forma relativamente
simplificada de falar que surgiu através do contato, geralmente comercial, entre grupos linguísticos heterogêneos.
Quando o pidgin se torna a língua materna de uma comunidade de fala e passa a ser usado para todos os fins, ele é
chamado crioulo. Ex.: Tok Pisin.
56 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
tendências em curso.7 O paradigma de gramaticalização focaliza a interdependência
entre langue e parole, entre estrutura e uso, entre o categórico e o menos categórico na
língua. Trata da codificação de categorias, tanto diacrônica quanto sincronicamente.
Nesse sentido, o processo de gramaticalização é um tipo de mudança linguística que
afeta as categorias morfossintáticas e, portanto, a própria gramática da língua. Como
diretriz teórica, o parâmetro analítico de gramaticalização, tal como concebido na
literatura linguística contemporânea, é fonte para o entendimento de estruturas
linguísticas sincrônicas.
7
Ao utilizar argumentos como “necessidade comunicativa” ou “ausência de expressão para conteúdos cognitivos”
não estamos nos referindo à existência de lacunas que precisam ser preenchidas, mas sim a estratégias usadas pelos
interlocutores na produção e compreensão online do fluxo do discurso. Consideramos que essas estratégias refletem
processos cognitivos gerais, na linha de Hopper e Traugott (1993) e Bybee (1985).
8
Em sentido estrito, considera-se como um universal linguístico uma propriedade que todas as línguas têm (por
exemplo, todas as línguas têm elementos que são foneticamente vogais). Mais recentemente, admite-se que os
universais linguísticos não são absolutos, mas uma questão de grau ou tendência, de modo que refletem uma
propriedade que se manifesta na maioria das línguas.
Cognição e Linguística 57
temporais, focalização de atenção, gerenciamento de informação, para citar alguns
aspectos. Sendo a língua um sistema simbólico por excelência, utilizado para comunicar
informação sobre o mundo, naturalmente ela reflete essas conceitualizações. A
motivação para a existência de universais linguísticos deve também ser procurada na
comunicação humana, na medida em que os objetivos e as necessidades comunicativas
dos humanos parecem ser universais, o que não descarta a possibilidade de que alguns
deles sejam específicos a comunidades linguísticas particulares. Do mesmo modo,
estudos translinguísticos (GIVÓN, 1979; BYBEE et al., 1994) têm demonstrado que parece
haver trajetórias de gramaticalização universais que levam ao desenvolvimento de novas
construções gramaticais. Essas trajetórias são universais porque o desenvolvimento das
construções ao longo delas ocorre independentemente, em línguas não aparentadas.
Pode-se citar, como exemplo, a passagem de um verbo auxiliar a verbo pleno (como o
caso do verbo ir), ou o recrutamento de itens lexicais com o mesmo significado ou
significados bastante semelhantes para desempenhar funções gramaticais em línguas
não relacionadas (como se deu com -mente, em português, e -ly, em inglês). Essas
trajetórias comuns de gramaticalização podem ser explicadas em termos de processos
cognitivos e comunicativos, como automatização, habituação, descontextualização,
categorização, inferenciação pragmática, dentre outros. Esses processos se dão quando
os falantes usam expressões linguísticas para se comunicar ao longo do tempo e,
portanto, têm a ver com o modo como os usuários da língua “embalam” suas
conceitualizações visando à comunicação interpessoal. A investigação sobre os
processos de gramaticalização em muitos domínios gramaticais e em muitas línguas
diferentes sinaliza que os verdadeiros universais linguísticos são universais de mudança.
Contudo, os verdadeiros mecanismos que motivam a mudança refletem processos
cognitivos e interacionais básicos que permeiam o uso real da língua.
Como é possível explicar que o mesmo significado lexical, ou significados
lexicais bem semelhantes, tenda a ser gramaticalizado em línguas não aparentadas?
Pesquisadores nessa área observaram que os itens que compõem esse conjunto são, em
grande medida, independentes da cultura, o que significa que eles são universais para a
experiência humana. Além disso, eles representam aspectos concretos e básicos das
relações humanas com o ambiente, com forte ênfase no ambiente espacial, incluindo
partes do corpo humano. (HEINE et al., 1991). Até mesmo noções gramaticais mais
abstratas, como a de casos gramaticais (nominativo, acusativo, dativo, etc.), têm sua
origem em conceitos bem concretos, frequentemente físicos ou locativos, que envolvem
o movimento e a orientação do corpo humano no espaço. A esse respeito, Anderson
(1971) propôs que um termo relacional que signifique “em direção a” pode, mais tarde,
desenvolver-se para significar “para” e daí se tornar um marcador de dativo (como no
inglês, I gave the book to John), ou mesmo se desenvolver em um marcador de
acusativo (como no espanhol, Vi a Juan). Assim, as formas gramaticais têm origem em
conceitos e palavras que denotam os aspectos mais concretos e básicos da experiência
humana. A comprovação de universais fortes de gramaticalização faz surgir
58 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
semelhanças entre as línguas. Subjacentes a esses universais de mudança estão
universais cognitivos e comunicativos.
Vejamos, agora, o aspecto da aquisição da linguagem. Para Slobin (1991), cada
língua “treina” a criança para prestar atenção a um conjunto particular de distinções no
curso da aquisição da gramática. Com o intuito de verificar sua hipótese, esse autor
realizou um experimento em que um livro de estórias com gravuras, mas sem palavras,
era apresentado a crianças e adultos de várias línguas, que deveriam então descrever os
eventos representados nas figuras do livro.9 Esse experimento demonstrou que o modo
como os sujeitos da pesquisa codificaram os eventos varia de acordo com a sua língua
materna. Os resultados obtidos por Slobin fornecem evidência de que a gramática como
um todo não lida com imagens mentais ou realidade perceptível. Ao contrário, a maior
parte da gramática marca distinções que são relevantes para o discurso, como a noção
de aspecto ou de evidência.10 Além das distinções gramaticais, quando apresentamos
uma situação ao nosso interlocutor em qualquer língua, assumimos um ponto de vista
gramaticalizado. Tomemos, como exemplo, a possibilidade de codificação de um
evento transitivo por uma forma ativa ou passiva. Assim, posso dizer, em português: “O
menino quebrou a vidraça” ou “A vidraça foi quebrada pelo menino”, em que cada uma
dessas orações apresenta o mesmo evento sob um ponto de vista diferente. Note-se que
nenhum desses pontos de vista está presente na percepção do próprio evento. Ativa e
passiva, nesse caso, têm uma função textual: servem para organizar o fluxo de atenção
no discurso encadeado. Ponto de vista (PV) e fluxo de atenção (FA) são duas noções
psicológicas a que DeLancey (1981) atribui papel essencial no condicionamento da
ordem dos constituintes, tendo em vista os papéis semânticos que as entidades
desempenham em um estado de coisa designado pela predicação. É o falante que
determina o FA linguístico, que diz respeito à ordem em que ele deseja que o ouvinte
preste atenção ao enunciado. Nem sempre o fluxo de atenção linguístico coincide com o
fluxo de atenção natural, ou seja, com o modo como a cognição estrutura um evento
natural, porém pesquisas revelam uma tendência à articulação entre eles e, de modo
geral, o ponto de vista costuma obedecer à seguinte Hierarquia de Empatia (DeLANCEY,
1981):
[P1, P2]11 > P3 humano > animado > [força inanimada] > inanimado
Logo, mesmo se considerarmos uma única língua como o português, vemos que a
gramática fornece um conjunto de opções para esquematizar a experiência com a
finalidade de expressão verbal. Qualquer enunciado é, portanto, determinado de forma
múltipla por aquilo que o falante viu ou experienciou, por seu propósito comunicativo
9
O experimento consistiu em pedir a crianças em idade pré-escolar (3 a 5 anos) e escolar (9 anos) e a adultos
(estudantes universitários) de diferentes países para contar estórias sobre as mesmas figuras e ver se as estórias
diferiam consistentemente, dependendo da língua que os sujeitos do experimento falavam.
10
Evidenciais são partículas ou morfemas flexionais que codificam a fonte da evidência em que se baseia um
enunciado.
11
P1, P2 e P3 representam, respectivamente, primeira, segunda e terceira pessoas do discurso.
Cognição e Linguística 59
ao contar isso ao seu interlocutor, e pelas distinções que são incorporadas na gramática
da sua língua.
Interessado no modo como os humanos categorizam e interpretam o mundo para
propósitos de comunicação interpessoal, Tomasello (1999) defende postura bem
próxima à de Slobin com relação ao processo de aquisição da linguagem. Para esse
psicolinguista, à medida que a criança aprende ou adquire as convenções linguísticas do
seu grupo social, ela adquire também a habilidade de adotar, simultaneamente,
perspectivas múltiplas sobre a mesma situação perceptual. O que torna os símbolos
linguísticos únicos do ponto de vista cognitivo é o fato de que cada símbolo incorpora
uma perspectiva particular de uma entidade ou evento. Em situações comunicativas
diferentes, o mesmo objeto pode ser interpretado como um cão, um animal ou um
animal de estimação; o mesmo evento pode ser interpretado como mover, correr ou
fugir; o mesmo lugar pode ser interpretado como o litoral, a praia, a areia – a forma de
codificação depende dos propósitos comunicativos do falante. Assumindo que os
símbolos linguísticos são representações cognitivas fundamentadas em perspectivas,
Tomasello propõe que eles não se baseiam no registro de experiências sensoriais ou
motoras diretas, mas sim nos modos pelos quais os indivíduos optam por interpretar os
eventos dentre uma série de possibilidades de interpretação, incorporadas em outros
símbolos linguísticos disponíveis, que poderiam ter sido escolhidos, mas não foram.
Desse modo, os símbolos linguísticos liberam a cognição humana da situação perceptual
imediata, não apenas permitindo referência a coisas fora da situação, mas permitindo
representações simultâneas múltiplas de cada situação perceptual. O ponto teórico
central dessa abordagem é que os símbolos linguísticos incorporam os muitos modos de
interpretar intersubjetivamente o mundo, acumulados numa cultura ao longo do tempo
histórico, e o processo de adquirir o uso convencional desses artefatos simbólicos, e,
assim, internalizar essas interpretações, transforma fundamentalmente a natureza das
representações cognitivas da criança. As línguas naturais contêm recursos cognitivos
que permitem separar o mundo em eventos e participantes e, desse modo, formar
categorias abstratas de tipos de eventos e participantes; contêm, ainda, recursos
cognitivos para interpretar eventos ou situações em termos de um outro evento ou
situação, isto é, para criar os vários tipos de analogia e metáfora tão importantes na
cognição adulta. Nesse sentido, o inventário de símbolos e construções linguísticas
específicas de cada língua se fundamenta em estruturas universais da cognição e da
comunicação humanas. As particularidades de línguas específicas resultam de
diferenças, entre as várias culturas, nos tipos de coisas sobre as quais as pessoas acham
importante falar e sobre os modos em que acham útil falar sobre elas.
5 Considerações finais
A relação entre gramática e cognição está cada vez mais valorizada nos estudos
linguísticos. Vale lembrar que, de algum modo, uma concepção cognitivista nos estudos
gramaticais encontra-se também nas ideias de Chomsky, que, de um ponto de vista
60 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
racionalista, chamou a atenção para a criatividade linguística, atribuída a um sistema de
regras interiorizadas na mente humana. Mas os estudos da ciência cognitiva pertencem à
tradição funcionalista. É dentro desse paradigma que a linguística cognitiva dá ênfase à
função semiótica da linguagem e ao papel crucial das conceitualizações na interação
social. (LANGACKER, 1998).
Se o sistema linguístico tende a estruturar-se, a motivação para tal tendência
encontra-se nas relações entre palavras e conceitos, e entre estes e a experiência de uso
linguístico. Com efeito, itens do léxico não se relacionam por hiponímia, metonímia,
antonímia, senão porque estão relacionados a uma experiência humana. (CROFT; CRUSE,
2004). A diferença central dos estudos funcionalistas que relacionam gramática e
cognição encontra-se no fato de a gramática não ser vista como organização cognitiva
de um sistema linguístico, mas sim como representação cognitiva da experiência de um
dado usuário com a língua. Desse modo, a gramática dependerá não apenas das
capacidades cognitivas gerais do cérebro humano, que não só lhe permitem categorizar
e procurar por identidade, similaridade e diferença, mas também operam sobre eventos
linguísticos com os quais um indivíduo se defronta, categorizando e inserindo na
memória tais experiências. Há, portanto, evidências de que a representação articulatória
de palavras e sequências é constituída de rotinas neuromotoras que, quanto mais
repetidas, mais fluentes se tornam. (BYBEE, 2006).
Segundo tal perspectiva, o que reconhecemos como gramática diz respeito a uma
representação cognitiva da experiência com a linguagem, que responde não apenas pela
fixação de padrões regulares em determinados contextos e consequente resistência à
mudança, mas também pela inovação linguística, por meio de processos cognitivos
metafóricos e metonímicos.
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62 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
4
COGNIÇÃO E SEMÂNTICA:
da representação formal à conceptualização
Cognição e Linguística 63
estruturas, especialmente as léxico-sintáticas, refletem a natureza dos objetos dados a
conhecer. Tal posicionamento constitui forte tendência filosófica que ainda hoje goza de
prestígio nas abordagens realistas sobre cognição e semântica.
Assim, para Aristóteles, a função primeira da linguagem seria a de traduzir o
mundo, uma vez que as estruturas daquela refletiriam e nos permitiriam conhecer este.
Suas principais teses postularam a existência de uma lógica preexistente ao mundo
organizado, o que determinaria qualquer forma de conhecimento; o caráter secundário,
derivado, da linguagem e seu reflexo do mundo; e a possibilidade de se ganhar acesso às
estruturas do mundo pela análise das estruturas da linguagem.
A visão de que a linguagem é representação e reflexo do mundo e que, através
dela, este nos é dado a conhecer sobreviveu vinte séculos, assumiu novas posturas
através do impasse nominalismo/realismo na Idade Média, revigorando-se nas hipóteses
sobre o caráter secundário da linguagem em relação à referência, e sobre o caráter
também secundário do uso da linguagem em relação a sua gramática, para chegar até
nós, no século XX, esboçada no programa da semântica verificacionista e nas teorias
sobre significação e referência, defendidas por Frege. ([1892] 1977).
Na contraparte cognitiva, parece ter sido o postulado de Von Humboldt a respeito
da infinitude discreta da linguagem humana (comparável aos números naturais),
biologicamente isolada na espécie, a primeira “revolução” cognitivista a fornecer uma
explicação para a natureza do conhecimento fora dos domínios epistemológico-
objetivistas.1 A capacidade biológica inata para o conhecimento linguístico, defendida
por Hume (1748), e o fato de a língua possuir meios finitos para produzir uma sequência
infinita de enunciados, nos termos de Von Humboldt, tornaram-se premissas caras ao
cognitivismo do século XX que, não obstante, adotou também a representação formal na
semiologização do conhecimento e da linguagem.
A investigação cognitiva, embora tenha ganhado fôlego e relativa autonomia com
Von Humboldt, avançou para outras preocupações, mormente as oriundas do programa
investigativo de Descartes, que procuravam delimitar a extensão do cérebro em relação
à mente, para se saber o que é possível conhecer, ou seja, para explicar os limites que
levariam o objeto cognoscível a ser processado, apreendido e descoberto pelo sujeito
cognoscente. No panorama geral da teoria lógico-formal e sua implicação na semântica
moderna, o problema levantado por Descartes, quanto aos processos internos e externos
de se obter acesso ao conhecimento e às experiências, levou à supervalorização da
lógica matemática e, como consequência, à necessidade de equacionar o dualismo
mente e corpo, através da representação e da manipulação dos fenômenos externos na
mente.
Locke e Descartes conceberam, pois, a ideia de que as coisas no mundo são
representadas na mente por meio de símbolos formais, ou seja, o conhecimento do
mundo nos chega à razão através da representação simbólico-formal. Os símbolos não
1
Bakhtin/Volochinov (1929), por exemplo, inclui von Humboldt como um dos representantes da corrente filosófica
denominada de Subjetivismo Individualista.
64 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
se parecerem com as coisas representadas e são passíveis de manipulação por um
conjunto de regras lógicas, que os combinam entre si produzindo operações complexas.
Um símbolo é, portanto, na lógica matemática, um elemento estável (que sofre
alterações sem perder identidade) e discreto, isto é, distinto dos demais símbolos.
Dada a relação entre processos cognitivos e significação, não é de se espantar que
a teoria cartesiana tenha sido amplamente aplicável aos ramos do saber que trabalham
com a linguagem e o sentido. No caso da semântica enquanto disciplina, percebe-se o
forte apelo da operação formal-simbólica nos estudos de Frege sobre significado e
referência. Associado a Russell, Frege aposta na formalização, descrição em forma de
símbolos, de qualquer pensamento do tipo lógico-matemático, cuja maior vantagem
seria a possibilidade de manipulação simbólica sem a indesejável intromissão da
interpretação e da intuição subjetiva. A inexistência das ambiguidades, resultado desse
tipo de formalização, produziria uma linguagem artificialmente construída, cujo grau de
certeza quanto aos cálculos simbólicos seria praticamente absoluto e não dependeria do
grau de intuição de quem executasse tais cálculos.2
Quando se fala que o período cartesiano (e pós-cartesiano) concebeu e delineou o
que se pode chamar de Idade da Forma, não se pode assumir que essa Era já tenha
passado. Basta olhar em volta para perceber que a forma (simbolicamente processada)
reflete o domínio da realidade em todas as esferas. Cognição e Semântica na era da
forma não poderiam ter repercussões diferentes. A semântica formal, por exemplo,
fortemente vinculada à lógica filosófica, teve aplicação profícua nos estudos sobre a
possibilidade de uma linguagem artificial. Esta é a mesma lógica cognitiva que, entre os
anos 20 e 60 do século passado, geraram um programa de estudos (um consórcio entre
várias disciplinas) que ficou conhecido como cibernética. Ora, a finalidade da
cibernética, não levando em conta, para os propósitos deste trabalho, todo o lobby
político-bélico típico de um mundo em plena guerra, era colocar em prática a ideia de
uma máquina universal capaz de reproduzir a inteligência humana, não apenas em
operações matemáticas, mas na comunicação (notadamente na codificação e
decodificação de mensagens e na tradução automática). O resultado desse programa,
após muitos esforços e algumas desilusões, tem forte correlato em nosso cotidiano,
preenchido por atividades que exigem o domínio de algum tipo de familiaridade com
processos digitais cada vez mais sofisticados.
A primeira metade do século XX foi, portanto, a protagonista do avanço do
formalismo simbólico como matriz teórica, e também assistiu ao avanço das ciências
cognitivas em detrimento do esvaziamento da semântica na Linguística, reduzida ora a
componente de análise da lógica matemática (pela aplicação frequente do princípio da
composicionalidade de Leibniz3 na análise formal), ora à estrutura periférica do sistema
2
Na Matemática, por exemplo, Turing também adota esta teoria ao propor que qualquer função descrita por meio de
formalização simbólica poderia ser executada mecanicamente por uma máquina universal, independentemente da
complexidade e do comprimento da função. Este programa de pesquisa é referência nos estudos do século XX das
ciências da computação.
3
Uma operação lógica, descrita aproximadamente pela fórmula: “tome um objeto x, opere sobre ele uma função y e
gere outro objeto, z.”
Cognição e Linguística 65
da linguagem, em que seu papel era, quase sempre, restrito à contraparte
subdeterminada pelo significante, na teoria do signo linguístico. Outras preocupações
semânticas daquela época eram do tipo componenciais e correspondiam à identificação
de traços mínimos dos constituintes da estrutura linguística. A análise destes traços não
repousava sobre o conteúdo preciso da significação, mas sobre o valor linguístico, ou
seja, o significante, que apontava para aquele conteúdo. Ora, o sentido era então
primariamente linguístico e, de maneira semelhante à semântica lógico-formal,
rechaçava a necessidade da intuição e interpretação subjetiva na significação.
A segunda metade do século produziu, no entanto, a “arena” adequada na qual
forma e sentido poderiam batalhar pelo seu espaço autônomo. E pode-se supor que
naquele momento cognição e semântica haviam definitivamente se separado, como
campos de estudo, o que ocorre após isso é uma verdadeira redefinição (em algumas
áreas expoentes, pelo menos) do papel da semântica, da cognição e até da linguagem no
conhecimento humano sobre a língua, o pensamento, o raciocínio e o próprio cérebro.
Tal período torna-se conhecido por muitos como o compromisso cognitivista (ou
segunda revolução) das ciências da linguagem.
A distinção que se propõe neste trabalho é entre semântica cognitiva (do ponto de
vista de um dos tipos de funcionalismo)5 e semântica lógico-formal (do ponto de vista
do formalismo cartesiano, aqui esboçado no programa gerativista). As correlações que
faremos entre cognição e semântica se dão, portanto, sob dois aspectos: a) o aspecto das
divergências usualmente pressupostas entre a semântica formal e a semântica cognitiva
relacionadas ao amplo espectro das ciências cognitivas; b) e o aspecto da convergência
em que semântica e cognição assumem conjuntamente uma visão explicativa da
construção do sentido para dar conta de seus próprios objetos de estudo.
Enquanto não há dúvida de que a semântica cognitiva tenha um programa
investigativo diferente da semântica formal,6 não é possível dizer que seu diálogo com
os estudos das ciências cognitivas tenha sido impossível, pois é verdade que as teorias
semânticas de base lógico-formal a que subscreveram disciplinas como a Matemática, a
Lógica e a Filosofia, constituíram matéria-prima de um modelo cognitivo-formal
ocupado com a compreensão das estruturas representacionais da mente humana, em
termos de atividades computacionais.
4
Fazemos a distinção apenas entre semântica formal, tomada em seu sentido mais amplo, e semântica cognitiva, uma
teoria nascida por volta da década de 70 do séc. passado. Isto não quer dizer que, no período aqui delimitado, outras
teorias semânticas não tenham surgido e se firmado no cenário linguístico. Para os propósitos deste trabalho, no
entanto, optamos por focalizar apenas as duas correntes citadas.
5
O esvaziamento semântico do termo funcionalismo deve-se em parte à existência de programas de pesquisa cujos
objetos são tão difusos e cuja abordagem envolve aspectos tão disparatados reunidos sob a denominação de
funcionais, que a existência de uma única grade programática seria incapaz de resolver.
6
Embora alguns estudos semânticos tenham postulado fenômenos como a pressuposição como uma base de contraste
entre as diversas teorias semânticas (PIRES DE OLIVEIRA, 2001), a semântica cognitiva oferece explicações mais
completas sobre a significação em contraste com a semântica formal, como, por exemplo, o processo de
conceptualização.
66 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
O cognitivismo, portanto, entendido a partir do papel crucial da representação
mental – a mente opera manipulando símbolos formais que representam as
características do mundo – e da tendência a utilizar sistemas formais, especialmente
modelos computacionais, na descrição do fenômeno cognitivo, constituiu o núcleo do
projeto das ciências cognitivas, para o qual convergiu a semântica formal.
Nos estudos gerativos,7 a noção de cognição e, consequentemente, de
conhecimento é pautada numa tentativa racionalista de processamento informacional, na
identificação de processos mentais com estruturas computacionais, através de uma
simbologia matemática que se propunha a converter (traduzir) símbolos linguísticos em
algoritmos, para as finalidades de um programa de investigação destinado à construção
das inteligências artificiais. Nos termos de Lakoff (HUCK; GOLDSMITH, 1995, p. 109), tal
compromisso levava a sério resultados empíricos sobre a natureza da mente, de modo a
fazer com que toda a teoria se adequasse à concepção da linguagem como espelho da
mente – concepção já sustentada pelo idealismo metafísico de Platão, para o qual apenas
a capacidade inata da mente universal nos pode fazer chegar ao conhecimento das
coisas tal como são. Tal objetividade confere ao sujeito cognitivo chomskyano um
caráter descorporificado (disembodied) do contexto social em que se insere, já que seu
repertório conceptual prescinde da experiência. (SALOMÃO, 1999, p. 72-73).
Não há dúvida, para Chomsky, de que linguagem seja um componente da mente
humana8 dedicado ao conhecimento e uso da língua e que a faculdade da linguagem
constitua verdadeiro aparato neurobiológico utilizado para processar este conhecimento.
Uma língua natural é, neste caso, um estado da faculdade da linguagem que é composta
por um sistema cognitivo utilizado para armazenar informações; e por sistemas de
performance, localizados fora da faculdade da linguagem, mas dedicados
especificamente a ela. Estes, por sua vez, incluem sistemas sensório-motores (para
articulação e percepção auditiva) e sistemas conceptuais-intencionais, envolvidos na
correlação entre os sons e os significados.
A faculdade da linguagem está, assim, inserida em uma arquitetura mais ampla da
mente e interage com outros sistemas que lhe impõem condições de legibilidade para o
uso de representações fornecidas pela linguagem, como é o caso dos sistemas
articulatórios e perceptivos que exploram a Forma Fonética (em um nível de
representação) e do sistema conceptual, que explora a Forma Lógica (em outro nível de
representação da língua).
Assim, a linguagem atua em dois níveis de representação que correspondem,
grosseiramente, à ligação que fazemos entre sons e significados: um que se ocupa das
representações da pronúncia e o outro, que se ocupa das representações das
7
O gerativismo é identificado com o próprio surgimento das ciências cognitivas pela inclusão da linguística no antigo
projeto cibernético e pelo denominado compromisso cognitivista, pelo qual Chomsky redefine o objeto da linguística
como fenômeno mental.
8
Chomsky se recusa a discutir a noção de mente como sendo um conceito dualista (mente x corpo de Descartes), por
considerar que não há critérios para se estabelecer o que constitui o corpo. Entretanto, para o autor, a linguagem
humana é um objeto biológico e deve ser analisada segundo a metodologia das ciências naturais. (CHOMSKY,
2000).
Cognição e Linguística 67
propriedades lógicas das palavras. Uma expressão gerada pela linguagem contém uma
representação legível aos sistemas sensório-motores (fonética) e uma representação
legível aos sistemas conceituais e outros sistemas de pensamento e ação (semântica).
Nos termos chomskyanos acima expostos, a relação entre a estrutura do
significado (representação lógica) e a estrutura da linguagem enquanto sistema
cognitivo (correlação entre representação lógica e representação fonética) se apresenta
como parte de uma teoria de linguagem que justifica seu funcionamento interno, a partir
de sua compatibilidade com os princípios gerais inatos de aquisição e com as restrições
geneticamente determinadas da estrutura formal das línguas naturais. Tal teoria reforça
a percepção de cognição como sendo um fenômeno interno e individual, com
propriedades formais essenciais já prontas na mente do indivíduo e muito próximas à
perfeição.
Neste momento, parece ser apropriado encaminhar dois outros momentos de
investigação da cognição que correspondem, aproximadamente, ao questionamento da
tendência simbólico-formal no sentido das teorias pós-cartesianas, das quais a lógica
formal que deu lugar à teoria semântica é um desdobramento.
Em um primeiro momento,9 instala-se no cognitivismo uma crítica ao modelo
vigente de processamento de símbolos como veículo adequado para representações,
pondo em xeque a própria herança cartesiana de representação formal-simbólica. O
posicionamento conexionista se interessa pela implementação física dos algoritmos na
arquitetura da mente e postula a existência de um nível neural básico nesta arquitetura.
Esta visão contrasta fortemente com a concepção formal-simbólica de que o mental não
deve ser reduzido ao físico.
Outro tópico de dissensão é a tese da modularidade da mente10 defendida pelos
cognitivistas, especialmente os gerativistas. Para o conexionismo, os processos mentais
são executados em rede, através da formação de conjuntos de nódulos organizados por
neurônios fortemente interconectados. A representação em um modelo conexionista não
acontece em um módulo especializado, mas caracteriza-se pelo uso de um conjunto de
nódulos (ou nós) muito simples e de capacidade limitada, interligados entre si,
formando a rede neural, um nível emergente de abstração.
O segundo momento de questionamento do representacionismo formal-simbólico
é de maior interesse para a linha argumentativa aqui traçada. É nele que se postula a
existência de processos de conceptualização infensos à necessidade de representação
formal. Trata-se da visão atuacionista ou enacionista de cognição.
A crítica fundamental do campo da atuação repousa na inadequação do conceito
de representação como pedra de ângulo das ciências cognitivas. Uma tendência
9
Tentaremos apresentar uma visão abreviada e simplificada da posição conexionista, dada a extensão do tema e os
limites teóricos deste trabalho.
10
O Modularismo ou a modularidade (FODOR, 1975) entende que a mente é composta por módulos autônomos,
altamente especializados para as tarefas do sistema que compõem.
68 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
enacionista dá lugar, ao contrário, a uma agenda investigativa fulcrada na corporificação
sensório-motriz, e posteriormente social,11 da mente e da cognição.
Esta teoria, em geral, elege problemas não resolvidos pelo cognitivismo simbólico
para demonstrar a insuficiência desse programa. Uma das questões malresolvidas se
refere, por exemplo, ao problema mente/corpo que gera a disputa entre visões
funcionalistas e materialistas12 sobre a natureza da mente, nas ciências cognitivas. O
enacionismo se propõe a resolver esta questão ao postular mente e corpo como
entidades não estanques, sensíveis às pressões de um sobre o outro, na teoria da mente
corporificada. Também a disputa entre nature e nurture (o conhecimento da língua
como proveniente de sua natureza inata ou do aprendizado) encontra resposta
enacionista da teoria da ação situada que, ao contrário dos sistemas de símbolos físicos,
não adota a centralidade do cérebro no processo de conhecimento, mas vê o
comportamento inteligente como produto da interação entre processos mentais internos
e processos sociais externos e de fatores históricos que constituem o contexto da ação
humana.
Tal concepção de cognição surge com o objetivo de libertar as ciências cognitivas
do modelo realista e, logo, representacional da cognição, que se sustém na compreensão
do processamento cognitivo, a partir do tratamento da informação como procedente de
propriedades formais lógicas preexistentes no ambiente contextual. Duas posições
teóricas contribuíram para a elaboração desta concepção: a teoria da mente
corporificada (VARELA; THOMPSON; ROSCH, 1991), que sustenta a visão de que a
cognição depende dos tipos de experiência que derivam do fato de termos um corpo
com várias capacidades sensório-motrizes individuais, embutidas em um contexto
biológico, psicológico e cultural mais fechado; e o realismo experiencialista de Lakoff e
Johnson (1980) e Lakoff (1987).
Lakoff e Johnson (1980) defendem que o nosso sistema de conceptualização se
assenta na utilização das nossas experiências enquanto organismos dotados de certa
configuração biológica. Esta projeção do corpo na mente é denominada embodiement
hypothesis, ou hipótese da corporificação (LAKOFF; JOHNSON, 1980; LAKOFF, 1987). Uma
noção central a esta teoria é a de image schema, modelo (ou matriz) cognitivo
determinado de forma genérica, recorrente na nossa experiência sensorial e motora, que
é projetado noutros domínios da experiência, determinando a sua configuração.
Lakoff (1988) propõe uma crítica paralela à de Varela, Thompson e Rosch, ao
opor a concepção objetivista de cognição à concepção experiencialista. A primeira
revela um realismo metafísico em que os símbolos são representações internas de uma
realidade externa. A segunda, ao contrário, se fundamenta sobre os símbolos
11
Confira os trabalhos de Lorenza Mondada (1994, 2003) a respeito da corporificação social.
12
Esta discussão é muito mais complexa e produz um número muito grande de tendências explicativas que se
polarizam entre a consideração da mente e do cérebro como sendo da mesma natureza (teorias monistas) e a
consideração da mente como sendo de natureza diferente do cérebro/corpo (dualismos). Há monismos e dualismos de
diversas orientações, desde aqueles que reduzem a mente às propriedades físicas do cérebro (fisicalismo) até aqueles
que consideram a mente uma espécie de software (componente lógico-simbólico), que roda na estrutura física do
cérebro (hardware). Confira Teixeira (1998, 2000) a respeito dessa discussão.
Cognição e Linguística 69
significantes e não finitos, que funcionam segundo esquemas imagéticos baseados em
processos perceptivo-conceptuais elementares. O autor considera a experiência como
ativa, funcionando como parte de um ambiente natural e social, motivando o que é
significativo no pensamento humano. (p. 120).
A hipótese realista-experiencialista propõe a plasticidade de operações cognitivas,
como a categorização e a conceptualização, e seu condicionamento ao ambiente cultural
da comunidade linguística. Lakoff (1987, p. xiv) destaca como atributos dessas
operações a sensibilidade das categorias conceptuais às contingências sensório-motrizes
dos falantes, sem a necessidade de sua correlação com fenômenos reais, mas com os
esquemas imaginativos de base; a estruturação ecológica (contextualmente situada) da
conceptualização, não restrita à formalização de complexos por meio de regras lógico-
específicas; e a descrição das estruturas conceptuais, a partir de domínios mentais
estáveis ou modelos cognitivos idealizados.
Ainda que Lakoff (1988) e Varela, Thompson e Rosch (1991) assumam a
cognição como fenômeno corporificado, saber onde situar tal dimensão e superar sua
redução à sensório-motricidade é um problema que subsiste nos estudos atuais de
cognição e semântica. Corporificação, para os autores, não significa conceber a
cognição como situada em uma prática social (como fazem os estudos
etnometodológicos que atuam na distinção entre o mundano e o ideal). O que essa
concepção permite, ao contrário, é uma visão endógena dos processos que se constituem
na interação e na ação. É por isso que o debate se fixa na esfera dos condicionamentos
genéticos e não pode se deslocar para a interação social.
É efetivamente a hipótese experiencialista que instaura, no campo funcional da
linguística, uma disciplina cognitiva de semântica que rejeita o objetivismo
epistemológico e a noção de representação formal, para construir uma visão de que o
raciocínio humano é determinado pela corporificação orgânica e pela experiência
individual e coletiva. Para a semântica cognitiva, são premissas fundamentais a
centralidade do estudo do significado na investigação sobre a linguagem e a noção de
que a forma deriva da significação, isto é, é apenas a partir da construção dos
significados que aprendemos a lógica e a linguagem. A significação linguística emerge,
portanto, de nossas significações corpóreas e de nossa interação com o meio (adoção
integral do realismo experiencialista).
O significado é natural e experiencial e se constrói a partir de nossas interações
físicas com o ambiente, não sendo nem exclusivo nem prioritariamente linguístico. O
significado não é, portanto, arbitrário, já que deriva dos esquemas sensório-motores.
São nossas ações no mundo que permitem apreender esquemas imagéticos de base, os
quais configuram o significado de nossas expressões linguísticas. Os esquemas e as
organizações cinestésicos carregam os dados da experiência que dão estrutura ao nosso
falar e pensar. Significar passa a ser, assim, uma questão de cognição geral e não um
fenômeno linguístico de base.
70 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
Parece fazer sentido, portanto, o fato de que cognição e semântica – especialmente
como disciplinas de fronteiras – sempre caminharam em direção complementar. Isto
pode significar que a semântica cognitiva, seguindo os avanços das discussões das
ciências cognitivas, que contrapunham cognitivismo formal-simbólico e cognitivismo
conexionista, adere a uma terceira opção – o cognitivismo enacionista – por uma
questão epistemológica, enquanto que a semântica formal – que epistemologicamente
bebe do mesmo manancial do cognitivismo simbólico-formal – não teria como deixar de
adotar uma perspectiva de cognição em que os fenômenos são conceptualizados como
símbolos armazenados em estruturas associativas.
O objetivo desta discussão quase histórica é simplesmente mostrar que as relações
cognição-semântica nos permitiram explicar de diversas maneiras o processo pelo qual
o indivíduo “conhece a si mesmo” e o mundo em que vive. A finalidade de significar é
fortemente voltada para o processamento do conhecimento. É o conhecimento, portanto,
em última instância, o fim de toda teoria semântica e cognitiva.
Conhecer, entretanto, tem apelos diferentes nos campos diversos da cognição e da
semântica. Este apelo se assenta nas representações que a ciência faz das relações
indivíduo-linguagem-mundo. Em momento inicial destas teorias, conhecer é representar
simbolicamente por meio da linguagem a lógica preexistente no mundo que, em razão
de sua objetividade, existiria independentemente do sujeito cognoscente. Conhecer é,
deste modo, formalizar. A língua tem um papel de mediação entre o sujeito e a realidade
objetivamente tomada. Significar é executar uma sequência de operações formais,
através de símbolos que emulam a lógica preexistente. As palavras têm relação
biunívoca com o mundo no sentido de que o espelham.
Conhecer, na perspectiva enacionista, deixa de ser formalizar. Não se nega algum
tipo de representação, porém se contesta o caráter primário e formal desta
representação. Conhecer é experienciar, inclusive biologicamente. Não se individualiza
o conhecimento, vez que a corporificação social exerce papel delimitador do
funcionamento mental, ao mesmo tempo em que este se distribui entre os indivíduos.
Numa versão menos biologizante, conhecer é construir, é conceptualizar. Não se assenta
em pura subjetividade, vez que a objetividade é um fato, porém não se assume uma
visão objetivista independente do sujeito, que é agente conceptualizador e ulteriormente
produz significação em suas interações sociais.
Nossa argumentação, neste trabalho, decorre do reconhecimento de algumas
questões como relevantes à investigação do conhecimento. Uma destas questões diz
respeito à consideração do conhecimento como não sendo determinado exclusivamente
pela realidade física dos objetos do mundo, nem por uma verdade dada a priori, que
constituiria a âncora objetiva do processo de conhecer, sem cair na tentação de optar por
um empirismo grosseiro, nos termos de Rakova (2002). Ao analisar esta questão,
Marcuschi (2003, p. 4) nos informa que a experiência não é um dado, mas uma
construção cognitiva, assim como a percepção não se dá diretamente com os sentidos,
mas é uma organização de sensações primárias, como já pontuava Putnam (1981),
Cognição e Linguística 71
acerca de as cores não serem propriedades intrínsecas nem dos objetos, nem dos
sujeitos, mas o produto da relação entre necessidade biológica e contingência histórico-
cultural. O mundo comunicado é sempre fruto da ação cognitiva e não da identificação
de realidades discretas apreendidas diretamente; é um contínuo de sensações e a
realidade empírica não tem contorno imediatamente apreensível.
13
Mesclagem, Integração e Compressão Conceptual constituem operações mentais complexas capazes de explicar a
rede de significações tecida pelos sujeitos, no curso da utilização dos objetos-de-discurso e categorias para a
elaboração de objetos-de-sentido e de conhecimento. Confira discussão apresentada na sequência.
72 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
que nenhum deles individualmente conduz inteiramente às ações. Um exemplo clássico
de atividade conjunta e cognição distribuída é apresentado por Hutchins (1995), ao
ilustrar a interação entre equipes rotativas de navegadores, membros de tripulação,
outros navegadores e até instrumentos de navegação, na tarefa de conduzir um porta-
aviões com sucesso e coerência de ações a um determinado local. Tal exemplo explora a
maneira como as contingências e os ambientes físicos influenciam o raciocínio, como os
seres humanos organizam os contextos de forma a produzir, estender e alterar seu
raciocínio ou, metaforicamente, como dependem dos contextos para efetuar seus
raciocínios. (TURNER, 2001, p. 43).
Esta concepção colaborativa indica que o trabalho de concepção, tanto quanto o
trabalho coletivo, é publicamente explicitado e organizado para a interação, e que a
relação entre cognição, sociedade e linguagem é fundamental para se pensar a dimensão
corporificada da cognição. A existência de diferentes níveis em uma atividade de
coconcepção não significa, necessariamente, a existência de um acordo entre os
participantes, mas, para que a atividade seja possível, as proposições devem ser
mutuamente disponíveis, isto é, asseguradas graças a um dispositivo de publicização
constituído tanto pela fala quanto pelos gestos na interação. As categorias estão
submetidas às negociações locais, ao curso das quais, suas fronteiras semânticas são
ativamente mantidas ou transformadas pelos participantes. (MONDADA, 2003, p. 23).
Numa direção semelhante, Langacker (1997) propõe o conceito de
conceptualização como o locus da significação na base da gramática cognitiva. Este
conceito impõe a necessidade de consideração da importância de fatores contextuais na
esquematização das estruturas semânticas.14 Tal posição estabelece uma concepção
contextualmente ancorada do sentido, ou seja, uma visão conceptual sensível às relações
entre cognição e natureza do conhecimento linguístico; à relação entre língua, cognição
e cultura; bem como ao papel do conceptualizador na estrutura semântica. Para
Langacker:
14
Na teoria conhecida como gramática cognitiva, a gramática de uma língua é totalmente redutível a conjuntos de
estruturas simbólicas. Uma dessas estruturas, a semântica, diz respeito à função semiológica da língua e permite a
simbolização de conceptualizações por meio de sequências fonológicas, apreendidas diretamente pela ocorrência de
expressões explícitas (LANGACKER, 1995).
Cognição e Linguística 73
significado linguístico residem na apreensão pelo falante do contexto imediato,
incluindo o discurso prévio e a própria interação linguística”. (LANGACKER, 1997, p. 235).
Os significados das expressões linguísticas são as conceptualizações. Dois níveis
de conceptualização podem ser verificados na teoria cognitiva de gramática: o primeiro
nível em que o conteúdo semântico restringe as estruturas linguísticas para aquelas
diretamente apreendidas pelos falantes. Essas estruturas operam com os dois polos dos
eventos de uso da língua: o polo fonológico, que compreende o enunciado em todo seu
detalhe fonético; e o polo semântico, que consiste em como a expressão é realmente
recepcionada – sua compreensão contextual completa e detalhada. Assim, apenas as
estruturas fonológicas, semânticas e simbólicas (correlações entre estruturas semânticas
e fonológicas) são atribuíveis ao sistema linguístico. O segundo nível de
conceptualização é aquele em que o conteúdo semântico restringe as estruturas
derivadas do primeiro nível, que são apreendidas por meio dos processos cognitivos
básicos de abstração (esquematização) e categorização. A abstração das estruturas
linguísticas dos eventos de uso envolve a completa compreensão contextual das
expressões, incluindo a apreensão pelo falante da interação discursiva e sua correlação
com o discurso em progresso.
74 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
apreensão pelo falante do discurso anteriormente produzido e do contexto interativo
imediato se qualifica como um processo de conceptualização.
A descrição semântica de uma expressão [...] tem como ponto de partida uma
concepção integrada de complexidade arbitrária e alcance possivelmente
enciclopédico. A observação básica que sustenta esta posição é o fato de que
algumas concepções pressupõem outras para sua adequada caracterização.
Podemos assim postular hierarquias de complexidade conceptual em que as
estruturas em um dado nível emergem através de operações cognitivas
(incluída a simples coordenação) realizadas sobre as estruturas em níveis
mais básicos. (LANGACKER, 2006, p. 32).
Cognição e Linguística 75
dadas como pistas no curso das enunciações do falante e acionam processos de
inferenciação interpretáveis pelos participantes da comunicação. Independentemente de
as proposições desempenharem um papel na teoria semântica ou na lógica da língua
natural, as sentenças não são, em si, portadoras das proposições. O acesso às conexões
conceptuais é um componente da construção do sentido que a língua reflete de maneira
geral, regular e sistemática, independentemente de seus domínios particulares de
aplicação.
Esta abordagem possibilita explicar a mediação entre conhecimento acumulado
em modelos culturais e pessoais e sua ativação nos eventos comunicativos em
desenvolvimento, na forma de esquemas conceptuais, modelos cognitivos idealizados e
espaços mentais. (LAKOFF, 1987; FAUCONNIER, 1994, 1997; FAUCONNIER; TURNER, 2002).
A emergência da significação, deste modo, tem uma dimensão essencialmente pública e
sua interpretação é tanto ato cognitivo como ato social. (SALOMÃO, 1997, p. 33).
76 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
domínios-fonte e alvo para a construção de um terceiro domínio, que utiliza os
conteúdos estruturados nos dois níveis anteriores. Demonstramos abaixo com um
exemplo.15
15
Os exemplos analisados neste trabalho são parte do corpus coletado no âmbito do grupo de pesquisa INTERCOG
Interação e Cognição. As convenções das transcrições utilizadas são: 1. [...] = pausa (0.5s); 2. (XXX) = trecho não
compreensível; 3. ::: = alongamento de vogal; 4. Página = ênfase; 5. fa-zer = silabação; 6. ((comentários))=
comentários do observador; 7. [ ] = sobreposição de voz localizada; 8. A= aluno; 9. P= professor.
Cognição e Linguística 77
Enquanto esta teoria procura explicar as associações estáveis entre domínios
conceptuais, a teoria da mesclagem dos EM de Fauconnier (1997, 2002) não só engloba
estas relações como permite explicar a inovação conceptual. O modelo EM entende a
metáfora e a metonímia, centrais na teoria de Lakoff, como um caso particular de um
processo mais geral e constantemente presente na nossa atividade cognitiva,
denominado mesclagem ou integração conceptual.
78 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
Modelos Cognitivos Idealizados), mas, diferentemente destes, os EM são representações
de curto prazo, cuja função é responder às necessidades de conceptualização, muitas
vezes novas e mesmo únicas, dos falantes.
Esta teoria postula a existência de quatro (ou mais) espaços mentais envolvidos no
processo de projeção conceptual entre domínios: dois espaços de input (espaços
influentes correspondentes ao domínio-fonte e ao domínio-alvo), um espaço genérico
que comporta a estrutura abstrata partilhada pelos dois espaços anteriores (e
eventualmente por muitos outros) e ainda um espaço-mescla (blend), em que se verifica
a combinação, a mistura, de representações dos espaços influentes e, por vezes, também
de outros espaços mentais cuja informação é mobilizada. É desta mesclagem que resulta
uma nova conceptualização, não submissível a uma soma das estruturas dos espaços
influentes, nem a um mero conjunto de correspondências previsíveis fora deste
processo.
Espaço
Espaço Influente 2
Influente 1
●● ●
●● ●●
●
●
●● Espaço-Mescla
●●● Estrutura Emergente
Cognição e Linguística 79
• O mapeamento entre espaços conecta as contrapartes dos espaços influentes
através do Princípio de Identidade (linhas sólidas) ou de projeção (linhas
tracejadas). Na projeção seletiva nem todos os elementos de um input são
projetados na mescla.
• O Espaço Genérico é mapeado sobre cada um dos espaços influentes e contém
o que aqueles têm em comum.
• Espaço-Mescla resulta da fusão dos espaços influentes. É uma estrutura
projetada dos espaços influentes.
• A Conexão integra diferentes fontes em uma unidade. Ex.: Se eu fosse você
(domínio-fonte), usaria o vestido vermelho (domínio alvo).
• As linhas no diagrama básico de integração conceptual dinâmica, que
representam projeções e mapeamentos conceptuais, podem ser pensadas como
correspondentes das coativações neuronais e conexões no cérebro.
80 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
4.3. Conceptualização e processos de mesclagem
O valor das formas mais simples, como certas construções gramaticais, por
exemplo, repousa na complexa dinâmica emergente que elas acionam no mundo
imaginativo. A construção de sentidos é feita, assim, graças a operações básicas
efetuadas na mesclagem conceptual. Estas operações são chave para o sentido cotidiano
e a excepcional criatividade humana e envolvem, segundo Fauconnier e Turner (2002,
p. 6), operações como Identidade, Integração e Imaginação.
A Identidade é uma operação que permite reconhecer a equivalência, a
uniformidade, ou a oposição, a diferença. Estes não são pontos de partida primitivos,
nem cognitiva nem neurobiologicamente, nem em termos evolucionários. São produtos
que dependem de elaborado trabalho imaginativo. A Integração é o processo de busca
de identidade e oposição, que ocorre nas redes de integração conceptual e que tem
estrutura elaborada, propriedades dinâmicas e restrições operacionais. Já a Imaginação
trata-se de uma operação crucial às duas anteriores. O cérebro executa simulações
imaginativas, mesmo sem estímulo externo. A ficção, os cenários contrafactuais, os
sonhos e as fantasias operam do mesmo modo que outras construções de sentidos mais
simples graças à Imaginação.
Cognição e Linguística 81
problema comunicativo acionado pela pergunta na linha 1, de modo
surpreendentemente simples para os termos do conhecimento humano, porém, através
de uma sequência bastante complexa de operações cognitivas, que reforça o papel do
contexto e da colaboração mútua entres os conceptualizadores para a produção de
significação.
Desse modo, vê-se o papel da Identidade na operação cognitiva de destacar duas
entidades da realidade (pássaro e ser humano), correlacioná-las entre si, delinear os
limites de uma em relação à outra, para encontrar suas semelhanças e discrepâncias. Em
seguida, opera-se a Integração entre a identidade de traços semelhantes ou opostos,
recorrendo-se a categorias conceptuais, cuja estrutura elaborada fornece restrições
operacionais de modo a manter o significado estável (a partir de modelos cognitivos
idealizados). Finalmente, a ação da Imaginação recai sobre as operações anteriores, de
forma a atender às exigências locais, dinâmicas e contextuais da comunicação.
Este exemplo evidencia a insuficiência da representação simbólica para a
compreensão de fenômenos que não são puramente linguísticos e que não têm
correspondência com uma realidade objetiva. Evidencia ainda que os processos
cognitivos empregados na conceptualização de categorias como mamífero e ave
dependem em grande parte de aportes socioculturais, utilizados na negociação
contextual e que têm finalidades práticas apenas para a atividade em curso.
Um dos benefícios centrais da mesclagem conceptual é a habilidade de executar
compressões para uma escala humana de ordens difusas de eventos, como, por exemplo,
cerimônias e ritos existentes em nossas culturas. O indivíduo estabelece espaços
mentais, conexões entre eles e espaços mesclados, porque isto o conduz a uma
percepção global, à compreensão em termos humanos de novos significados, além de
torná-lo eficiente e criativo. Um dos aspectos mais importantes de nossa eficiência,
percepção e criatividade é a compressão de relações conceptuais a que chegamos
através da mesclagem. Algumas destas relações conceptuais são, de acordo com
Fauconnier e Turner (2002, p. 93-101):
82 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
(‘desanalogia’) um tijolo e o oceano Atlântico, mas entre este e o oceano Pacífico. Uma
dessemelhança, por exemplo, entre os vários tipos de primatas dos quais o
homem descendeu, em diferentes estágios evolutivos, corresponde, no
espaço-mescla, à mudança em um único tipo de homem moderno.
Categoria A compressão de relações de categoria opera com relações de identidade,
mudança e analogia. Executamos estas operações quando mapeamos o
domínio da biologia no domínio da informática, ao cunharmos programas
destrutivos de ‘vírus’. Esta analogia aparentemente simples produziu uma
transmutação categórica inigualável na sociedade tecnológica atual.
Juntamente com a nova categoria de ‘vírus’, mesclamos os significados
biológicos e produzimos itens como ‘antivírus’, ‘vacina’, ‘infecção e
desinfecção’, ‘quarentena’, etc.
Singularidade É obtida naturalmente dos elementos do espaço-mescla, como a apreensão
da fotografia de alguém em relação a esta exata pessoa, embora não nos
demos conta desta relação. As relações vitais aqui apresentadas são
comprimidas em Singularidade.
Cognição e Linguística 83
Uma primeira tentativa de conceptualização do objeto em foco é empreendida por
A (linha 19), que assume a aparente divergência de grafia do termo estudado como
derivada do fato de ‘João Pessôa’ referir-se ao ‘nome do cara’. Esta tentativa é feita
graças à operação de mapeamento de Identidade, responsável pela construção
conceptual do tipo X é K. Nesta operação, espaços mentais influentes são criados a
partir do input de dados como a questão dos nomes, nomes próprios de lugares e de
pessoas, os quais são comprimidos em Singularidade pela integração entre analogia,
identidade e categoria.
nome do cara
84 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
quanto ao termo focalizado referir-se ao nome da personagem histórica, ‘o cara’. O uso
do pronome relativo confirma a escolha em ‘vocês sabem quem foi João Pessoa (X)?’
A sequência descrita nas linhas 29-34 é uma tentativa de responder a indagação de
P através de versões que podem ser descritas como ‘saber K’ e ‘não saber K’, em que
um erro na versão de saber K resulta em não saber K neste contexto de aula. Nossa
indagação, neste sentido, repousa sobre verificar como um erro de conceptualização é
correntemente tratado em ambientes de escolarização formal e como eles deveriam ser
tratados segundo um ponto de vista de uma semântica construcionista. No caso do
objeto em foco, é preciso definir se a interpretação de eventos históricos pode ser feita
de forma exclusivamente objetiva e, senão, até que ponto a objetividade pode ser
desconsiderada na construção dos significados da realidade. Esta definição remete ao
problema do erro em saber K. Se na aula há espaço para que os alunos apresentem
versões dos significados dos objetos em discussão, como devem ser tratadas as versões
que se desviem de uma concepção original de tal objeto? A apresentação de versões
consideradas absurdas (de um ponto de vista objetivo), como aquela descrita na linha 29
(X ser um assassino), compromete a construção do conhecimento em foco? Ou tais
versões são apenas ferramentas interacionais que encorajam a participação dos alunos
na negociação de objetos-de-discurso? Se é possível falar em objetividade histórica,
como falar em construção conceptual imaginativa em sala de aula?
Não nos compete, neste trabalho, resolver propriamente estas questões. O próprio
levantamento delas é resultado de uma análise feita a partir de processos de
conceptualização de sentido e do próprio conhecimento. Imaginamos que tal perspectiva
é capaz de produzir indagações ainda mais sérias sobre as atividades de categorização
no discurso cotidiano, bem como no discurso institucional. Nossa pretensão limita-se,
porém, a descrever o que os falantes fazem quando utilizam processos sociocognitivos
para “construir” o sentido de mundo.
Duas diferenças, porém, marcam o trabalho cognitivo empregado no exemplo
acima, em contraste com o exemplo 2: a primeira é o papel do contexto na negociação
das possibilidades de cálculo dos significados pretendidos. O contexto espontâneo,
verificado no exemplo 2, poderia pressupor a suficiência de conteúdos práticos para a
apreensão do objeto em concepção, enquanto que o contexto institucional do exemplo 3,
além de conteúdos práticos, exigiria a precisão conceptual ao postular a significação de
categorias do discurso acadêmico. A segunda diferença está no papel dos
conceptualizadores. Poder-se-ia dizer que, em ambos os contextos, um participante
exerce a função de mediador em virtude de suas experiências, habilidades e
competências. Enquanto no exemplo 2, o conceptualizador-mediador parece utilizar-se
do contexto como instrumento de conceptualização eficaz, levando o segundo
conceptualizador à significação praxeológica mais adequada, o conceptualizador-
mediador do exemplo 3, atuando no contexto institucional, focaliza mais a produção
linguístico-discursiva dos demais conceptualizadores do que a instrumentalidade do
contexto no fechamento da concepção adequada das categorias sob análise.
Cognição e Linguística 85
4 Questões finais
Referências
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86 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
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Cognição e Linguística 87
5
COGNIÇÃO E METÁFORA:
a teoria da metáfora conceitual
Heloísa Pedroso de Moraes Feltes (UCS)
Ana Cristina Pelosi (UFC)
Paula Lenz Costa Lima (UECE)
1 Introdução
1
Não introduziremos neste texto os estudos de Barcelona, mas o estudo de Radden (2005) faz referência às suas
pesquisas.
88 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
Esse processo de geração de metáforas conceituais deve-se à capacidade
imaginativa da razão humana, uma razão corpórea, no sentido de que as estruturas
diretamente significativas para o ser humano derivam de sua experiência corporal. Essa
experiência orienta a geração de esquemas de imagens de natureza cinestésica, que têm
o corpo como ponto de referência; são esquemas basilares para a formação das demais
estruturas cognitivas humanas.2 Todos esses processos são inconscientes e automáticos
em sua origem. Como se disse, as metáforas conceituais estão presentes em toda
experiência humana e encontram-se em diversas formas de discurso.
Como professoras universitárias são incontáveis as vezes em que ouvimos de
nossos alunos perguntas como: “Como a senhora quer que a gente faça este trabalho?”,
“Estou fazendo como a senhora quer?” Nessa categoria de perguntas, percebemos que a
expectativa do aluno é a de que o professor estabeleça os propósitos, a linha de
raciocínio da tarefa e, até, o roteiro para sua apresentação formal, mesmo que
reiteradamente se estabeleça para a tarefa a liberdade de realizá-la da forma que for
julgada mais apropriada para cada um. Outras vezes ouvimos: “Não consigo
acompanhar o que a senhora está dizendo.”; “Dá para ir mais devagar? A senhora está
indo muito rápido.”; “Não está dando para seguir seu raciocínio.”; “Acho que estou
indo na direção certa.” Percebe-se, a partir dos últimos exemplos de enunciados, que o
processo de ensino e aprendizagem é entendido pela metáfora conceitual:
COMPREENDER É CAMINHAR ou COMPREENDER É CAMINHAR ACOMPANHADO DE UM
GUIA ou, então, que A APRENDIZAGEM É UMA CAMINHADA ou APRENDER É CAMINHAR
ACOMPANHADO DE UM GUIA. Com maior grau de abstração, poder-se-ia levantar a
metáfora conceitual A APRENDIZAGEM É UMA VIAGEM. Essa metáfora conceitual tem
vários acarretamentos metafóricos: que ao aprendiz, na situação formal de
aprendizagem, cabe seguir os passos do professor; que ele segue “atrás” do
professor/educador; e que se trata de uma “travessia” linear. O professor é entendido
como um CONDUTOR. Poder-se-ia depreender que: os aprendizes são os passageiros, o
professor/educador é o condutor/guia, a compreensão/aprendizagem é um destino, o
processo de aprendizagem é o percurso/travessia para atingir o destino, ao longo do qual
passageiros e condutor trocam “mercadorias” (ideias) entre si, por exemplo: “Eu tenho
uma dúvida, mas não sei como colocar para senhora.”; “Vou tentar passar para
senhora o que entendi.”; “O que eu coloquei no papel foram apenas as ideias mais
importantes.”3 Às vezes, essa viagem é uma CAMINHADA, uma “travessia” linear,
cabendo aos aprendizes seguirem os passos do condutor/guia.
Uma metáfora conceitual é, portanto, uma construção cognitiva, baseada nas
experiências socioculturais vividas; é um modo de construção de conhecimento na
forma de um mapeamento entre domínios de conhecimentos, em geral orientado por
relações analógicas motivadas por propósitos e interesses, por determinadas situações e
2
Obras que dão sustentação à base corpórea da razão humana, que fundam o chamado Experiencialismo Cognitivo
estão em Lakoff (1977, 1982, 1985, 1987, 1988 e outras), Johnson (1988) e Lakoff e Johnson (1980, 1999, entre
outras publicações). Veja-se também Feltes (1992a, 1992b, 2003 e 2007).
3
Nesses últimos exemplos de enunciado, está envolvida a METÁFORA DO CANAL, como se verá mais adiante.
Cognição e Linguística 89
suas demandas. Não se está aqui falando de metáfora como figura de linguagem, mas,
nos termos de Johnson e Lakoff (1980, 1985, 1987) e Lakoff e Johnson (1999), como
um mecanismo imaginativo da razão que se configura como um modo fundamental de
compreendermos e fazermos emergir sentidos.
Outra metáfora que surge, nas mais variadas formas de expressão nos discursos
sobre o que se está pensando, como se está pensando, tanto em situações cotidianas,
como quando frente a dificuldades em tarefas complexas, é a de A MENTE COMO UM
LUGAR.
O registro de alguns dados, a partir da interação com alunos em diversas ocasiões
torna isso claro. Por exemplo, em uma situação, indagando aos estudantes qual o sentido
de ‘ver’, na construção “Não vejo como isso possa fazer sentido: estou completamente
perdido”, conduziu-se uma discussão seguindo um raciocínio do seguinte tipo: num
primeiro momento, é necessário entender que ‘ver’ nessa construção carrega a metáfora
conceitual COMPREENDER É VER; num segundo momento, analisando “estou perdido”,
alcança-se outra metáfora a partir da ideia de que o estado mental COMPREENSÃO se dá
em um LUGAR, a mente. Assim, A MENTE É UM LUGAR. Não compreender é PERDER-SE
NESSE LUGAR.
É importante observar que a formulação de uma metáfora conceitual pode ser
expressa pelo analista de diferentes formas, desde que respeitado o “coração” de sua
estrutura possível. Portanto, alguns acarretamentos para essa metáfora seriam: A MENTE
POSSUI CAMINHOS, PERCORREM-SE ESSES CAMINHOS, ESSES CAMINHOS NEM SEMPRE
SÃO DE FÁCIL ACESSO.
Quando em operações de solução de problemas surge algo como “Estou num beco
sem saída”, parece que a mente é entendida como um LUGAR com espécies de ‘ruas’ ou
‘caminhos’, ‘trajetos’ que podem estar ‘livres’, ‘bloqueados’ ou ser ‘interceptados’. O
aprendiz pode expressar suas ideias e sentimentos através de metáforas conceituais, ou
seja, mapeia dois domínios: o domínio-alvo, uma categoria ou conceito mais abstrato
que ele busca entender; e o domínio-fonte, as categorias ou conceitos que ele
compreende a partir de alguma experiência mais direta, em geral de base perceptual, a
qual organiza tal domínio-fonte. Assim, o aprendiz associa (mapeia) um domínio ao
outro através do estabelecimento de alguma relação (em geral) analógica possível e a
seu alcance.
Ao educador cabe atentar para esses comportamentos e para as metáforas
conceituais presentes no discurso do aprendiz. Essas metáforas podem ser excelentes
pistas para conhecer o modo como o aprendiz dá sentido aos próprios processos mentais
e como raciocina sobre a aprendizagem em si. Várias metáforas podem guiar o modo
como pensamos sobre nossos processos mentais, como conduzimos nossos processos
inferenciais, como facilitamos ou criamos obstáculos para o autoconhecimento e o
conhecimento de outros; portanto, afetam nossas operações metacognitivas e o
conhecimento metacognitivo que possam gerar. São espécies de ‘teorias sobre a mente’.
90 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
Veja-se também o caso de como correntemente se define ‘memória’, tanto em
nível de senso comum como em termos científicos. Note-se o exemplo, com grifos
nossos, do jornal Diário do Nordeste (Regional: Tesouros Históricos, 20/7/2008):
“Quando somente o baú da memória não é mais suficiente para guardar o passado, os relicários
guardam as lembranças de tempos distantes de pessoas tão [...].”
“O acervo de nossas memórias faz com que cada um de nós seja o que é [...]” (p. 9).
“Um traumatismo craniano ou um eletrochoque, minutos depois da aquisição, costumam ter um
feito similar ou até mais intenso: anulam completamente a gravação que está sendo feita [...]”
(p. 26).
“Assim, enquanto estamos evocando determinada experiência, conhecimento ou procedimento,
ativa-se a memória de trabalho para verificar se essa memória consta ou não em nossos
‘arquivos’ [...]” (p. 31).
“Don Santiago Ramón y Cajal postulou, em 1893, que o armazenamento das memórias
obedece a alterações morfológicas nas sinapses envolvidas em cada uma delas.” (p. 46).
“Como processo a memória se refere aos mecanismos dinâmicos associados com armazenagem,
retenção e acesso à informação sobre a experiência passada [...]. De fato os psicólogos
cognitivos identificam três operações comuns de memória: codificação, armazenagem e
recuperação [...]. Cada operação representa uma etapa no processamento da memória. Na
codificação, transformam-se dados sensoriais em uma forma de representação mental. Na
armazenagem, mantêm-se informações codificadas na memória. Na recuperação você retira ou
usa as informações armazenadas na memória.” (2008, p. 156).
Cognição e Linguística 91
a própria língua que é a base de muitas teorias científicas da comunicação. A base dessa
difundida teoria popular é o que Michael Reddy chamou de metáfora do CANAL. A
estrutura conceitual é destacada a partir de enunciados como os que seguem (SILVEIRA;
4
FELTES, 2002, p. 18): Não consigo tirar essa ideia da cabeça; É preciso colocar estas
ideias em palavras; Não consigo passar o que estou pensando; Suas palavras são
vazias.
Ou seja, a partir de enunciados desse tipo, Reddy formulou a metáfora do CANAL
como: A MENTE É UM RECIPIENTE (de ideias); AS IDEIAS (ou os sentidos) SÃO OBJETOS;
AS EXPRESSÕES LINGUÍSTICAS SÃO RECIPIENTES (para ideias-objetos); COMUNICAR É
MANDAR: COMUNICAR é mandar tais RECIPIENTES (expressões linguísticas) como
OBJETOS (ideias); o recebedor retira os OBJETOS (ideias) dos RECIPIENTES (expressões
linguísticas).
De acordo com essa metáfora, aquele que fala ou escreve tira as ideias de sua
mente, coloca-as em palavras e as manda por um canal (acústico ou visual) para o que
ouve ou lê, que, então, “extrai” os sentidos-objetos das palavras-recipientes. Reddy
mostra que essa metáfora (com variações desimportantes) dá conta de parte
preponderante de nossa linguagem sobre a linguagem e também de nosso pensamento
sobre a linguagem. A maioria das teorias da comunicação também se baseia nessa
metáfora; em particular, todas as teorias que encaram a língua como código, e a
comunicação como transmissão de uma mensagem de um emissor para um receptor. O
meio pelo qual a mensagem é mandada corresponde ao canal. Conforme Reddy, para
que essa metáfora fosse eficaz como meio de definir o processo comunicacional, certas
condições deveriam ser o caso: (a) os participantes seriam falantes igualmente
competentes do mesmo dialeto da mesma língua, e a variação individual, insignificante;
(b) no que diz respeito ao assunto e ao contexto: (i) os participantes compartilhariam os
mesmos pressupostos culturais, (ii) o mesmo conhecimento relevante do mundo, (iii) os
mesmos pressupostos de fundo relevantes do contexto de fala, (iv) o mesmo
entendimento daquilo a que a conversação diz respeito (v) as mesmas metáforas
conceituais e teorias populares relevantes. A norma, entretanto, não é essa, o que torna a
metáfora perniciosa. Ela não abarca os casos em que o conhecimento relevante, os
pressupostos e mesmo a visão de mundo não são compartilhados, e em que uma
habilidade comunicativa especial é necessária até mesmo para atingir um parco grau de
compreensão.
Além do mais, considerando que a forma como conceitualizamos as coisas tem
implicações importantes, na maneira como as tratamos (LAKOFF; JOHNSON, 1980),
conceitualizar a comunicação como a metáfora do canal pode trazer e tem trazido
graves implicações para a educação em geral, e para o ensino de línguas, em particular,
como argumenta Lima:
4
Veja-se Grady (1998) para uma ampla discussão sobre a metáfora do CANAL.
92 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
lidamos com certa tranqüilidade com as ambigüidades: ninguém teria
dificuldade de perceber que a frase Precisamos de novas fontes alternativas
de energia4 teria sentidos diferentes se pronunciada pelo presidente da
Petrobrás ou pelo presidente do Partido Verde. Entretanto, na sala de aula,
especialmente quando se trata do estudo da língua, percebem-se muitas vezes
resultados nada frutíferos, quando não prejudiciais. E isso ocorre nas etapas
da aprendizagem mais singelas, como quando a criança retira do dicionário o
primeiro significado das palavras desconhecidas de um texto, sem fazer
qualquer relação com o contexto em que estão inseridas, e a professora
assume como corretas as respostas. (2005, p. 103).
“No mesmo dia em que terminaram os quatrocentos e trinta anos, os exércitos de Javé saíram
do Egito.” (Êxodos 12:41).
“E entoavam o cântico de Moisés, o servo de Deus, e o cântico do Cordeiro: ‘Grandes e
maravilhosas são as atuas obras, Senhor Deus Todo-Poderoso! Teus caminhos são justos e
verdadeiros, Rei das nações!’” (Apocalipse 15:3).
“Para socorrer os homens em sua fome de sagrado, nos 19 séculos que seriam necessários à
preparação da televisão e dos atores, a tevê foi inventando Platão, Dante e Michelângelo,
anões...” (Folha de S. Paulo, 27/12/1997).
5
Fonte: <www.virtualbooks.terra.com.br/biblia/PDFvelho/livrodossalmos.pdf>.
6
O Sistema da Metáfora Moral, tal como apresentado em Lakoff e Johnson (1999), tem como uma das hipóteses que
nosso sistema moral se baseia na moralidade da família. PAI SEVERO representa a autoridade não legitimada
(autoritária, guiada por punições e recompensas); e o PAI PROTETOR, a autoridade legitimada (guiada pelo amor,
pela proteção e pelos cuidados). Os seres humanos, pelo Sistema da Metáfora Moral, são comparados (por
mapeamentos metafóricos) aos membros de uma família e seus papéis culturais.
7
Para uma leitura esclarecedora desse tema, ver Granzotto (2007), Feltes (2007), Granzotto e Feltes (2007) e Feltes e
Granzotto (2007).
Cognição e Linguística 93
“No entanto, em todos nós existe – e forte – a sede de Deus.” (Folha de S. Paulo, 29/01/2000).
“Bem-aventurados os que tem fome e sede de justiça, porque eles serão fartos.” (Mateus 5:6)
“Como a corça anseia por águas correntes, a minha alma anseia por ti, ó Deus. A minha alma
tem sede de Deus, do Deus vivo.” (Salmos 42:1-2).
mostram que conceitualizamos nosso desejo pela presença de Deus de forma tão intensa
quanto as nossas necessidades básicas de sobrevivência, expressas pela depleção de
alimento.8
Já no campo da poética, com Lakoff e Turner (1989), vê-se um estudo de
metáforas conceituais, como a da personificação de TEMPO. Trazemos um Soneto XIX
de William Shakespeare, no qual identificamos o tempo personificado através de
metáforas conceituais.9
“Tempo voraz, ao leão cegas as garras/E à terra fazes devorar seus genes;/Ao tigre as presas
hórridas desgarras/ E ardes no próprio sangue a eterna fênix./ Pelo caminho vão teus pés
ligeiros/ Alegres, tristes estações deixando; Impõe-te ao mundo e aos gozos passageiros,/ Mas
proíbo-te um crime mais nefando:/ De meu amor não vinques o semblante/ Nem nele
imprimas o teu traço duro./ Oh! Permite que intacto siga avante/ Como padrão do belo no
futuro./ Ou antes, velho Tempo, sê perverso:/ Pois jovem sempre há-de o manter meu verso.”
8
Ver Lima, Gibbs e Françozo (2001).
9
O Soneto XIX é apresentado pela tradução de Ivo Barroso, em Shakespeare (1975b, p. 74-75), mas a numeração
desse soneto está de acordo com Shakespeare (1975a, p. 1194). Soneto original: Devouring Time, blunt thou the
lion’s paws,/And make the earth devour her own sweet brood; /Pluck the keen teeth from the fierce tiger’s jaws,/ And
burn the long-liv’d phoenix in her blood;/Make glad and sorry seasons as thou fleets,/And do whate’er thou wilt,
swift-footed Time,/To the wide world and all her fading sweets;/ But I forbid thee one most heinous crime:/ O! carve
not with thy hours my love’s fair brow,/ Nor draw no lines there with thine antique pen; Him in thy course untainted
do allow/ For beauty’s pattern to succeeding men./ yet, do thy worst, old Time: despite thy wrong,/ My love shall in
my verse ever live young.
10
A expressão “velho Tempo” mereceria uma análise mais profunda, numa interpretação mais cuidadosa. Essa
referência deveria ser analisada na relação com o verso “Nem nele imprimas o teu traço duro.”
94 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
Os exemplos acima são apenas uma pequena amostra da infinidade de sistemas
metafóricos que utilizamos no nosso dia a dia, quer na linguagem ordinária cotidiana,
quer na linguagem científica ou poética, como têm sido demonstrado por vários
estudiosos (LAKOFF; JOHNSON, 1980; KÖVECSES, 1996, 2002; GRADY, 1997a). Lima, Gibbs
e Françozo (2001) mostram, por exemplo, que a metáfora DESEJAR É TER FOME ocorre
em variados gêneros discursivos (e.g. linguagem cotidiana, publicitária, jornalística,
técnico-científica, poética) e relacionada a diferentes tópicos (e.g. economia, finanças,
biologia, física, química, agronomia, astronomia, sociologia, informática, antropologia,
política, esporte, artes, literatura, violência, vingança, comunicação, conhecimento,
amor, desejo sexual).
A seguir, para aprofundar o que temos trazido à discussão, passamos a tratar com
mais detalhes a Teoria da Metáfora Conceitual.
De acordo com Lakoff e Turner (1989, p. 55), a metáfora varia ao longo de dois
parâmetros: (1) Ela é mais convencional ou menos convencional, “à medida que é
automática, livre de esforço e, geralmente, estabelecida como um modo de pensar entre
Cognição e Linguística 95
os membros de uma comunidade linguística”. (2) Ela é conceitualmente indispensável
ou básica à medida que dispensá-la é, em alguma medida, mudar o modo de pensar.
Lakoff (1985), a partir de Lakoff e Johnson (1980), define três tipos de metáforas
conceituais:11
11
Como se verá mais adiante, essa tipologia vem cedendo lugar à outra, associada com a Teoria Integrada da
Metáfora Primária, seção 2.2.1.
96 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
convencional, inconsciente, automático e, tipicamente, despercebido.” (LAKOFF;
TURNER, 1989, p. 80).
A expressão ‘metáfora literal’ refere-se às metáforas comumente usadas na
linguagem convencional. A contradição aparente ocorre porque na semântica e na lógica
filosófica clássicas, i.e., na nossa visão tradicional, a linguagem convencional é literal.
Lakoff (1986), no entanto, explica que os nossos conhecimentos e a definição de literal
são baseados em um modelo de língua idealizado e simplificado, que não oferece uma
explicação bem-definida do que é literal. Segundo o autor, há diferentes significados de
literalidade: a literalidade convencional, que é a linguagem cotidiana convencional, que
contrasta com a linguagem poética, indireta, exagerada; a literalidade de tópicos
especializados, que é a linguagem objetiva geralmente usada para se referir a um
determinado tópico especializado; a literalidade condicionada à realidade, que é a
linguagem que se refere à realidade objetivamente, ou ao que é objetivamente falso ou
verdadeiro; e a literalidade não metafórica, que é a linguagem direta, não metafórica,
que não usa, mesmo que parcialmente, termos de alguma outra coisa que não dela
própria. Na visão da Linguística Cognitiva, apenas o último tipo de literalidade não se
utiliza de metáforas.
Lakoff (1987, p. 384) afirma que “o número de expressões linguísticas que
codificam uma dada metáfora conceitual é uma medida da produtividade da metáfora”.
A produtividade da metáfora, na verdade, é medida pelo número de acarretamentos
metafóricos produzidos a partir das correlações estruturais com o domínio-fonte. Aqui,
um exemplo já “clássico” é o do conceito RAIVA, amplamente estruturado em termos
metafóricos e metonímicos.12 Segue uma síntese do estudo apresentado em Lakoff
(1987), também publicado em Lakoff e Kövecses (1987).13 Para o autor, os conceitos
emocionais são exemplos muito claros de conceitos abstratos que têm uma base
corporal evidente.
Lakoff afirma que subjaz às expressões linguísticas convencionais, para falar
de/sobre raiva, modelos cognitivos, uma organização conceitual, de natureza metafórica
e metonímica. Sua análise começa com a apresentação da teoria popular do senso
comum sobre os efeitos fisiológicos da raiva: “Os efeitos fisiológicos da raiva são
12
A Teoria da Metáfora Conceitual volta-se, também, para os processos metonímicos dentro da mesma perspectiva
(corpórea) de que trata as metáforas conceituais. Os mapeamentos são, entretanto, diferentes, e há diferentes versões,
entre autores (por exemplo, Lakoff e Johnson, Barcelona, Faucounnier e Turner, entre outros), sobre como se dão
esses mapeamentos. A título de exemplo, Lakoff (1987) sustenta que: (a) são “representados estruturalmente pelo
esquema CONTAINER, e o mapeamento é representado pelo esquema ORIGEM-PERCURSO-META”. (p. 288); (b)
consistem em tomar “um aspecto bem-entendido ou fácil de perceber de alguma coisa e usá-lo para estar pela coisa
como um todo, por algum outro aspecto ou parte dela” (p. 77), o que, processualmente, significa que: (c) há um
conceito A a ser compreendido para algum propósito, em algum contexto; (d) há uma estrutura conceitual contendo
tanto A como um outro conceito B; (e) B ou é parte de A ou está intimamente associado com ele nessa estrutura
conceitual, e a escolha de B tipicamente determinará A nesta estrutura conceitual; (f) comparado com A, B é ou mais
fácil de compreender, ou mais fácil de lembrar ou mais fácil de reconhecer ou mais imediatamente utilizável para a
situação; (g) e, sendo assim, um modelo metonímico é um modelo de como A e B estão relacionados na estrutura
conceitual, sendo a relação especificada por uma função de B para A.
13
Esta análise foi feita por Lakoff e Zoltán Kövecses, publicada, pela primeira vez, em 1986, por Kövecses em
Metaphors of anger, pride and love: a lexical approach to the structure of concepts, com o intuito de aplicar as teses
básicas de Lakoff e Johnson (1980). Lakoff (1987) assume que se trata de um trabalho conjunto com Kövecses.
Apresentam-se, aqui, apenas os aspectos-chave da análise do conceito, que é originalmente mais extensa.
Cognição e Linguística 97
aumento de calor do corpo, aumento da pressão interna (pressão sanguínea, pressão
muscular), agitação e interferência na percepção”. (p. 381). Segundo essa teoria popular,
se a raiva cresce os seus efeitos fisiológicos também crescem, até um ponto em que tais
efeitos prejudicam o funcionamento normal do ORGANISMO. Tendo como base um
princípio metonímico geral, segundo o qual os efeitos fisiológicos de uma emoção são
tomados pela emoção como um todo, a teoria popular da raiva, afirma Lakoff, fornece
um sistema de metonímias. Por exemplo:
Calor do corpo: “Não o provoque, ele logo fica esquentado!”
Pressão interna: “Ele quase teve uma hemorragia ao falar no assunto.”
Vermelhidão de face/pescoço por maior calor corporal e pressão do sangue: “Ele
ficou vermelho de raiva.”
Agitação: “Ela pulava de raiva.”
Interferência na percepção: “Eu estava tão furioso que nem podia ver direito.”
As metáforas conceituais específicas formam-se a partir da ideia de que A RAIVA É
CALOR. Quando aplicada a coisas fluidas, essa ideia mais geral passa a ser: A RAIVA É
UM FLUIDO EM AQUECIMENTO NUM RECIPIENTE, motivada por CALOR, PRESSÃO
INTERNA e AGITAÇÃO. Quando aplicada a coisas sólidas, a metáfora passa a ser: A
RAIVA É FOGO, motivada por CALOR e VERMELHIDÃO. Essas metáforas específicas
seriam mais elaboradas, principalmente porque se baseiam numa metáfora mais geral do
sistema conceitual global: O CORPO É UM RECIPIENTE PARA AS EMOÇÕES, expressa, por
exemplo, em: “Ela não podia conter sua alegria.”
No caso da metáfora A RAIVA É UM FLUIDO EM AQUECIMENTO NUM RECIPIENTE,
que é desenvolvida como exemplo desse modelo cognitivo, tem-se, de um lado, a ideia
de calor associada à presença da raiva; de outro, temos a ideia de frio associada a sua
ausência: “Você faz o meu sangue ferver”; “Fique frio”.
Tomando o domínio-fonte UM FLUIDO EM AQUECIMENTO NUM RECIPIENTE e o
domínio-alvo RAIVA, Lakoff analisa alguns acarretamentos metafóricos (A), a partir do
detalhamento do domínio-fonte (F), com base nas correlações estruturais entre os
domínios:
98 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
Exemplo: Não toleramos mais suas explosões.
(F) Numa explosão, partes do recipiente voam pelos ares.
(A) Quando uma pessoa explode, partes voam pelos ares.
Exemplo: Meus olhos saltaram de raiva!
(F) Quando algo explode, o que está dentro do recipiente vai para fora.
(A) Quando uma pessoa explode, o que está dentro dela vai para fora.
Exemplo: Minha raiva veio subindo e queimando pela garganta.
Cognição e Linguística 99
as metáforas de imagem, de semelhança e de nível genérico. Essa distinção proposta por
Grady (1997a) faz referência aos tipos de metáforas anteriormente examinadas por
Lakoff e colaboradores: claramente as não correlacionais referem-se ao trabalho de
Lakoff e Turner (1989), enquanto as correlacionais são reelaborações das metáforas
orientacionais, ontológicas e estruturais, conforme poderá ser observado nas próximas
seções. A seção 2.2.1 trata das metáforas correlacionais e as demais seções tratam de
algumas metáforas não correlacionais. Especificamente, a seção 2.2.2 trata das
metáforas de semelhança, geradas pela percepção de traços compartilhados entre
esquemas coativados; a seção 2.2.3 refere alguns casos de metáforas geradas a partir de
metonímias; e a seção 2.2.4 apresenta uma síntese de componentes dos processos
envolvidos na geração de metáforas elaborada por Kövecses (2005).
14
Veja-se Gibbs (1998), para uma discussão ampla sobre as críticas à TMC.
100 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
espectro de áreas da experiência humana, enquanto outras são resultados da combinação
de metáforas primárias.
As metáforas primárias são altamente corpóreas, diretamente dependentes da
interação dos seres humanos com seu ambiente e com a forma de seu corpo. São
adquiridas de forma inconsciente a partir dessa interação com o mundo. Segundo ele,
conceitos ditos literais, não metafóricos, são baseados na experiência sensória básica, o
que Lakoff (1987) denominou conceitos diretamente significativos.
Em suma, nessa obra, Grady propõe que metáforas complexas são compostas a
partir de metáforas primárias. As metáforas primárias, segundo sua hipótese, são
geradas a partir de correlações entre dimensões distintas de experiências corpóreas
recorrentes e coocorrentes. Essas experiências são de tipos básicos, associadas de forma
significativa com as nossas interações com o mundo e independentes de influências
culturais. Por exemplo, as metáforas DESEJAR É TER FOME (e.g. “Ele tem fome de
reconhecimento”; “Ela tem sede de poder”), DIFICULDADE É PESO (e.g. “Este ano vai ser
muito pesado”; “Tudo isso tem sido um fardo na minha vida”) e QUANTIDADE É
ELEVAÇÃO VERTICAL (e.g. “O crime violento está baixo pelo segundo ano consecutivo”;
“A população mundial continua subindo”) são geradas pela correlação,
respectivamente, entre a sensação física da fome e o desejo por comida simultâneo que
a acompanha, entre a percepção de peso e a sensação de esforço/desconforto ao levantar
alguma coisa e entre a quantidade e a alteração do nível de coisas ou fluidos à medida
que são acrescentados a um recipiente ou retirados dele. Nesse sentido, as metáforas
primárias teriam um certo caráter universal, sendo, portanto, comuns em toda
cultura/língua.
A geração dessas metáforas dá-se unidirecionalmente, ou seja, do domínio-alvo
para o domínio-fonte.15 Nessa nova tipologia, os domínios fonte e alvo são
caracterizados da seguinte forma: (1) o domínio-fonte tem (i) base sensória (ii) com
esquemas de imagem mais genéricos, (iii) os quais se qualificam como universais
através das experiências humanas bio-socioculturais (iv) e de natureza relacional; e (2) o
domínio-alvo (i) não tem conteúdo de imagem e (ii) é mais abstrato, no sentido de que,
com relação ao domínio-fonte primário, é menos ligado a fatores sensoriais e
perceptivos e, além disso, refere-se a unidades ou parâmetros de função cognitiva num
nível de consciência mais baixo, no qual respostas cognitivas a experiências perceptuais
de natureza cinestésicas e/ou sensoriais-motoras estariam engramadas.
As metáforas complexas são estruturas moleculares estáveis e têm um papel muito
importante no sistema conceitual. O ponto é que o que funda os mapeamentos para a
metáfora complexa, molecular, são as metáforas primárias com suas partes ou
compósitos mais atômicos – não atômicos em sentido restrito. Em outras palavras, o
todo é justificado por suas partes.
Um exemplo retirado de Lakoff e Johnson (1999, p. 60-63):
15
Da mesma forma que na formação de metáforas na primeira versão da teoria, a direcionalidade sempre foi um
aspecto importante para a metáfora conceitual e questionada para metáforas que, depois, Grady classificou como não
correlacionais.
16
Conflation é uma expressão comum no vocabulário linguístico quando se trata de idiom conflation, ou seja, o
processo de fundir duas expressões diferentes, do que resulta uma expressão nova, que expressa uma ideia que não se
compreende literalmente. No contexto dos estudos sobre a cognição, refere-se a uma operação que preferimos chamar
de fusão, em função de que a fusão é um processo comum nas mesclagens. Grady (1997a, 1997b) defende que a
mesclagem é o mecanismo pelo qual as metáforas primárias criam metáforas complexas.
102 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
caso dessa metáfora, com a expressão linguística: “Eu vejo o que você está dizendo.”
Aqui CONHECER é o tema, sendo VER o domínio-fonte. Na revisão desse estudo, Lakoff
e Johnson trazem alguns detalhes sobre essa pesquisa, tomando o caso do sujeito Shem:
Johnson descobriu que, antes de usar metáfora, Shem entrou num estágio em
que os domínios de conhecer e ver estavam fusionados [conflated]. Visto que
adquirimos a maioria de nosso conhecimento através de ver, uma fusão
desses domínios seria esperada. Em tais fusões, os domínios de conhecer e
ver estão co-ativos, e a gramática de saber é usada com o verbo ver num
contexto em que ver e conhecer ocorrem juntos – por exemplo, “Vejamos o
que há na caixa”. Aqui, ver o que há na caixa correlaciona-se com saber o
que há na caixa. Casos metafóricos como “Eu vejo o que você está dizendo,”
que não envolvem um ver literal estão ausentes nesse estágio. Tais casos
metafóricos se desenvolvem mais tarde, de acordo com a hipótese de
Johnson. As fusões fornecem a base para a aprendizagem das metáforas
conceituais primárias. Após a experiência de fusão, a criança está apta a
diferenciar os dois domínios conceituais. Só então a metáfora conceitual
emerge. Na teoria neural, as fusões são instâncias de coativação de ambos os
domínios, durante as quais conexões neurais permanentes entre os domínios
se desenvolvem. (1999, p. 48).
104 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
acarretamento metafórico. Pode-se dizer que esse padrão de ativações
constitui uma espécie de processo inferencial instanciado em nível neural.
(d) Teoria da mesclagem conceitual: De forma resumida, de acordo com essa
teoria, os domínios conceituais podem ser coativados, “e, sob certas
circunstâncias, conexões entre os domínios podem ser formadas, levando a
novas inferências” (p. 47), que são as mesclas conceituais. Estas podem ser
tanto convencionais como originais. A teoria da mesclagem conceitual aplica-
se às metáforas primárias, porque, conforme Grady, Oakley e Coulson
(1999), elas envolvem uma classe especial de associações que não são nem de
similaridade, nem de analogia, mas conexões do tipo em que as mesclagens
se baseiam.
17
Lakoff e Turner (1989) apresentam a METÁFORA DA GRANDE CADEIA, que é, na verdade, uma metáfora de
nível genérico. Relacionada a ela está o modelo cultural da GRANDE CADEIA DO SER: certos tipos de seres e suas
Provérbio: “Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura.”
Situação: Pela terceira vez no mês entro na sala de meu chefe para pedir um aumento.
Ao sair, agora tendo a garantia de um aumento, profiro “Água mole em pedra dura,
tanto bate até que fura”.
Genérico é específico: Várias situações podem “cair” na situação específica do
provérbio. A água mole caindo insistentemente sobre a pedra dura até furá-la pode
servir como esquema conceitual para caracterizar metaforicamente uma imensa
variedade de situações.
propriedades são posicionados em uma escala vertical onde seres e propriedades “mais altos” estão acima de seres e
propriedades “mais baixos”. Assim, numa escala de superior a inferior, tem-se: HUMANOS (atributos e
comportamentos de ordem superior; pensamentos, caráter, etc.); ANIMAIS (atributos e comportamentos instintivos);
PLANTAS (atributos e comportamentos biológicos); OBJETOS COMPLEXOS (atributos estruturais e
comportamentos funcionais); COISAS FÍSICAS NATURAIS (atributos físicos naturais e comportamento físico
natural). Para ilustrar a METÁFORA DA GRANDE CADEIA, Lakoff e Turner chamam o clássico exemplo “Aquiles
é um leão”.
106 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
Tomando essas discussões em conjunto, Grady (1997a, 1999a) defende que, no
caso das metáforas do tipo GENÉRICO É ESPECÍFICO, é necessário que se estabeleça uma
relação de similaridade entre, conforme o nosso exemplo, a “lógica” dos eventos
colocados em relação: a ação contínua da pedra/a ação insistente do empregado e os
efeitos que geram. No caso de um exemplo, ARRISCAR É APOSTAR (RISK-TAKING-IS-
GAMBLING), citado por Grady (1999a), pode-se entender que APOSTAR “envolve” RISCO.
No grande domínio genérico das AÇÕES ARRISCADAS encontra-se APOSTA (em “jogos
de azar”).18
18
Particularmente não vemos problemas em tomar este exemplo como um caso de mapeamento metonímico. Ver a
obra organizada por Barcelona ([2000] 2003) para discussões sobre as relações entre processos metafóricos e
metonímicos.
(III) MUDANÇA É MOVIMENTO: Novamente uma metáfora primária que seria baseada
numa metonímia. Para Radden, esse é um exemplo mais óbvio de metáforas baseadas
na estrutura de uma categoria. O movimento é o tipo “mais saliente de ação e faz parte
de um grande número de ações” (p. 102), de modo que, em geral, algo muda quando o
ser humano realiza, intencionalmente ou não, um movimento. Assim, movimento está
incluso em mudança. Outro exemplo similar é o que envolve a metáfora primária
CAUSA É FORÇA: as causas são mais imediatamente experienciadas na forma de forças
físicas.
(IV) COMUNICAÇÃO É MANDAR. Essa metáfora, estudada por Reddy, conforme tratado
anteriormente, é formulada por Radden como COMUNICAÇÃO É TRANSFERIR. Um
exemplo: “Não consegui passar meu ponto de vista.” Trata-se de algo tão comum que
muitas pessoas nem a veem como uma metáfora. Metonimicamente, tratar-se-ia de
tomar-se, em nossos termos, o MEIO PELO CONTEÚDO, como no exemplo: “Você não leu
minha carta”, em que ‘carta’, o meio, é tomada pelo “conteúdo que veicula”.
108 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
experiência corpórea pode ser usada seletivamente na criação de metáforas; (iii) a
experiência corpórea pode ser sobrepujada por processos culturais e cognitivos; (iv)
metáforas primárias não são necessariamente universais; (v) metáforas complexas
podem ser potencial ou parcialmente universais; e (vi) metáforas podem não ser
necessariamente baseadas na experiência corpórea, pois muitas são baseadas em fatores
culturais e processos cognitivos de vários tipos.
(d) Estruturas neurais no cérebro correspondentes a (a) e (b): A experiência
corpórea resulta em certas conexões neurais entre áreas do cérebro. Exemplo: Quando a
área do cérebro correspondente à afeição é ativada, aquela correspondente ao calor
também o é.
(e) Relações entre a fonte e o alvo: A relação entre a fonte e o alvo é tal que um
domínio-fonte pode aplicar-se a vários alvos, e um alvo pode ligar-se a várias fontes.
Exemplo: o domínio VIAGEM pode ser aplicado tanto à VIDA quanto a AMOR.
(f) Expressões linguísticas metafóricas: A ligação de domínios-fonte e domínios-alvo
dá origem a expressões metafóricas, de tal modo que expressões linguísticas derivam da
conexão entre dois domínios conceituais. Exemplo: “uma relação calorosa” (a partir de
AFEIÇÃO É CALOR).
Cada vez mais a TMC, em sua versão original ou expandida, tem servido a várias
aplicações em diferentes campos e em seus discursos e, de modo crescente, em estudos
sobre aquisição da linguagem. Além disso, inscreve-se numa discussão mais ampla
sobre universalidade e variabilidade das estruturas cognitivas, como aquela em que está
envolvido Kövecses (2005) e vários outros estudiosos no campo das variações
transculturais e intraculturais das metáforas.
Tem-se constatado, no curso da evolução da Linguística Cognitiva e, em especial,
da Semântica Cognitiva, que as análises propostas pela TMC restringem-se a um grupo
de fenômenos em geral não problemáticos. Pesquisas experimentais ligadas à aquisição
de primeira língua, ao ensino de línguas estrangeiras, à avaliação de processos
neuropsicológicos e neurolinguísticos, em sujeitos com danos cerebrais ou com déficits
em diferentes capacidades cognitivas, por exemplo, têm alavancado muitos dos
aprimoramentos agregados a essa teoria.
Tem-se verificado tentativas de articulação entre a Teoria da Integração
Conceitual/Mesclagens (Blending) e a Teoria da Metáfora Conceitual. Entretanto, é
muito cedo para avaliar a extensão, níveis e, portanto, a proficuidade dessas
articulações. Por outro lado, vê-se a necessidade de, em ambas as teorias, integrar-se
uma discussão sobre processos inferenciais – tipos e formas de funcionamento ou
operações que servem de base para a derivação ou geração das inferências semântico-
pragmáticas que estão presentes nos mecanismos de interpretação de enunciados e
discursos, conforme discussão já apresentada em Feltes (2007).
Deignan (2005) considera a TMC como uma “ferramenta esclarecedora” para
identificar significados subjacentes. Mas a autora alerta para a necessidade de serem
estabelecidos procedimentos consistentes para a identificação de metáforas, advertindo
para os perigos das supergeneralizações realizadas a partir das evidências linguísticas.
Casasanto (2007), com base em pesquisa experimental, vai mais longe. O autor, a
partir dos resultados de experimentos sobre julgamentos de similaridade entre pares de
110 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
palavras ou figuras, conclui que “as relações entre domínios não linguísticos de
conhecimento não podem ser necessariamente inferidas a partir de metáforas na
linguagem”. Estas “revelam apenas um subconjunto de metáforas conceituais que
aparecem para estruturar nossas representações mentais de similaridade e tempo”.
Também conclui que, “mesmo quando metáforas linguísticas não conseguem prever as
relações exatas reveladas pelos testes comportamentais, elas, apesar disso, apontam para
a importante ligação entre os domínios fonte e alvo”.19 Em função disso, o autor afirma
que “as metáforas linguísticas deveriam ser tratadas como uma fonte de hipóteses sobre
a estrutura de conceitos abstratos”. É necessário, afirma ele, testar a TMC
experimentalmente, já que alguns testes sugerem que “não é possível inferir a relação
entre similaridade e proximidade em representações mentais não linguísticas com base
apenas nos padrões da linguagem metafórica”. Assim, “determinar quando a metáfora
linguística reflete uma metáfora conceitual subjacente requer tanto métodos linguísticos
como extralinguísticos”, o que representa um trabalho de cooperação interdisciplinar em
Ciências Cognitivas.
Uma das críticas que a TMC tem recebido é a de que ela lida apenas com dois
domínios para mapeamento (o domínio-fonte e o domínio-alvo), em uma relação
bidimensional e unidirecional. Ou seja, trabalha com dois domínios de cada vez, e o
mapeamento se dá apenas em uma direção, da fonte para o alvo. Nesse sentido, a
interpretação de discursos que envolveria mapeamentos/projeções mais complexos não
seria adequadamente descrita ou explicável por essa teoria. Uma teoria alternativa que
tem sido bem-sucedida nesses casos de análises pluridimensionais é a Teoria da
Integração Conceitual/Teoria das Mesclagens (Blending), de Fauconnier e Turner
(1996, 2002, para citar algumas obras mais centrais), objeto de discussão em outro
capítulo desta obra. Não se pode negar, apesar dessas críticas, que a Teoria da Metáfora
Conceitual lançou luzes sobre importantes aspectos da cognição humana e sobre o modo
como os seres humanos expressam linguisticamente suas experiências.
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Disponível em: <http://www.stanford.edu/~casasan/Casasanto_CV.pdf>. Acesso em: 15 mar. 2008.
19
Partindo do objeto de seus experimentos, Casasanto diz que “espaço e tempo, velocidade e tempo e proximidade e
similaridade não estão desconectados: antes, eles aparecem relacionados de modos mais complexos do que as
análises linguísticas podem descobrir”. Através dos experimentos, verificou que a “noção de similaridade parece
depender em parte de nossa experiência de proximidade espacial, mas nem sempre como predizem as metáforas
espaciais na linguagem”. Ou seja, “quando os participantes fizeram julgamentos perceptuais sobre entidades abstratas
ou propriedades de objetos não visíveis, os estímulos apresentados mais próximos foram julgados como mais
similares do que estímulos apresentados com maior distanciamento, consistente com as previsões baseadas nas
metáforas linguísticas”. Entretanto, “quando os participantes fizeram julgamentos perceptuais sobre propriedades de
estímulo visível, estímulos apresentados mais próximos foram julgados como menos similares do que estímulos
apresentados com mais distanciamento, contrários às predições baseadas em metáforas linguísticas”.
112 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
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1 Introdução
1
Para discussão detalhada a respeito desses modelos, remetemos o leitor a Varela (1998) e a Leite (2007).
114 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
(simbolismo-computacional), como rede de ativação sináptica (conexionismo) e como
corpo biológico em interação com o ambiente (atuacionismo) responde muito mais às
questões ontológicas do fenômeno metafórico do que ao estudo de sua manifestação
textual. Para não nos alongarmos neste tema, basta citarmos as vertentes
experiencialistas da metáfora, de base atuacionista, assumidas por Lakoff e Johnson
(1980, 1999) e seguidores (GIBBS, 1994, 2008; FAUCONNIER; TURNER, 2002, 2008). Sendo
assim, para os fins deste capítulo, pomos à deriva o exame desses três paradigmas
clássicos, muito embora reconheçamos sua contribuição teórica para o estudo cognitivo
da metáfora.
Na proposta sociocognitivista, por outro lado, assume-se que o mundo
comunicado resulta de uma ação decorrente de nossa atuação linguístico-cognitiva
“sobre” o mundo e não “uma identificação de realidades discretas apreendidas
diretamente”. (MARCUSCHI, 2003, p. 47).
Mondada (2003) assume a mesma opinião, ao defender a posição de que as
categorias conceituais estão submetidas às negociações locais, ao curso das quais suas
fronteiras semânticas são mantidas ou transformadas pelos participantes. A ação de
discretização do mundo comunicado, bem como a regulagem de nossos enquadres
cognitivos (espaços mentais, esquemas, etc.), constitui um trabalho sociocognitivo
sistemático. Consoante a autora, a compreensão/interpretação não pode ser tratada como
um estado ou processo cognitivo puramente intramental ou extramental, mas como uma
realização coletiva, publicamente exibida no emprego da sequencialidade da interação.
Não obstante os esforços do sociocognitivismo para defender a ideia de que a
construção do sentido é postulada como decorrência da interação de sujeitos em ações
comunicativas socialmente partilhadas, essa proposta ainda carece de sistematicidade,
além de não tocar diretamente no problema da metáfora, que, como sabemos, constitui
ponto importante na agenda dos estudos cognitivos atuais. Por conta disso, preferimos
adotar a expressão cognição distribuída (LEITE, 2007), para explicar a base cognitiva da
metaforização. Não se trata, deixemos claro, de um modelo teórico de cognição, mas de
um ponto de vista a respeito da relação da cognição com o fenômeno da metáfora,
quando este se manifesta no texto, ultrapassando, assim, os domínios da palavra e da
sentença.
Haselager e Gonzalez (2004), por exemplo, defendem a ideia de uma cognição
fundada em crenças, valores e estereótipos sociais, por indivíduos ativos, na qual o
conhecimento é entendido como inteiramente incorporado e situado na natureza,
consistindo de padrões potenciais de interação dos indivíduos com o mundo. Os autores
sustentam a noção de que o conhecimento não deve ser visto como uma crença
verdadeira justificada a respeito do meio ambiente, mas, sim, como disposições para
interagir nesse meio. Tais disposições resultam de acoplamentos dinâmicos e auto-
organizados entre o corpo e o mundo, sendo, antes de tudo, incorporados, em vez de
representados.
116 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
sentidos metafóricos em um texto? Ou melhor, Quais dispositivos ou mecanismos de
interpretação são mobilizados na metaforização?
Vimos que o nosso objeto de estudo é ainda pouco estudado, porquanto não foram
propostas, até o momento, categorias de análise para investigá-lo. Diante disso,
propomos a descrição do processo de metaforização textual por meio da seguinte
sequência de passos: a cooperação textual, a abdução, a seleção de propriedades
conceituais e a isotopia. Essas operações, citadas no âmbito das teorias semióticas
textuais de Eco (2000, 2004) e Bertrand (2003), podem ser aplicadas a qualquer tipo de
texto (seja um romance, poema, conto e outros), e não apenas aos textos metafóricos.
Pelo fato, contudo, de a metaforização se revelar como um fenômeno que se efetiva
concomitante à leitura, partimos da assunção de que examinar tais dispositivos
interpretativos implica, de certo modo, descrever a própria metaforização em etapas.
É preciso notar, entretanto, que esses mecanismos não atuam isoladamente na
interpretação, nem acontecem numa ordem fixa, cronológica. Cada um deles pressupõe
a coexistência dos outros para se manifestar. A análise ideal, como sabemos, é aquela
em que vemos a totalidade do fenômeno através da simultaneidade desses processos.
Diante dessa impossibilidade, resta-nos proceder à descrição isolada de cada um deles
cônscio, entretanto, de que esta separação, bem como a ordem de apresentação de cada
mecanismo, é tão somente uma opção metodológica, com finalidade didática. Ao
atuarem na interpretação, esses dispositivos evidenciam o caráter sociocognitivo da
significação, ao mesmo tempo em que estabilizam o fenômeno de produção do sentido
metafórico, de modo a evitarmos uma semiose ilimitada: interpretação que enseja outra
interpretação e, assim, indefinidamente. Vejamos, sucintamente, cada um deles,
mostrando, sempre que possível, a simultaneidade de ocorrência desses mecanismos de
interpretação.
118 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
apreensão de objetos de discurso focados na estrutura textual – muito embora isso não
implique sua presença real ou concreta na interpretação.
Em decorrência das dimensões desse capítulo, destacamos, resumidamente, um
exemplo por nós analisado, no qual percebemos o papel do leitor-observador na
metaforização:
Aquário
Lembram-se do procurador [grifo nosso] Luiz Francisco de Souza, aquele
que vivia processando o governo Fernando Henrique Cardoso? Agora ele está
quietinho e longe dos holofotes. Desde que voltou de Portugal, onde foi fazer
uma especialização, submergiu [grifo nosso] e não se ouviu falar mais dele.
(ÉPOCA, 23/05/2005 apud LEITE, 2007, p. 144).
120 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
Tal seleção é realizada, na metaforização, por meio de dois mecanismos
semióticos propostos por Eco (2000, 2004), a magnificação e a narcotização de semas
(denominados, aqui, propriedades conceituais). Estas operações apresentam-se como
um mecanismo capaz de proporcionar a multiplicidade de efeitos de sentido alcançados
pelo leitor na metaforização, uma vez que, na focalização de um objeto textual pela
abdução, somente certas propriedades são focalizadas (magnificadas) enquanto outras
ficam, temporariamente, desativadas (narcotizadas). Pelo fato de permanecerem
virtualizadas em torno de um campo figural, as propriedades não dependem dos limites
castradores de uma semântica de designadores rígidos, apoiada em traços discretos e
suficientes para gerar os significados dos objetos textuais. Por isso, podem ser
enriquecidas à medida que o leitor, para atualizar o texto, convoca uma determinada
propriedade, mobiliza seu conhecimento socialmente partilhado e faz suas abduções.
Tomemos o seguinte exemplo:
Este propagandístico institucional poderia ser lido como um texto injuntivo que
orienta o folião sobre a necessidade de proteger seus documentos pessoais nos dias de
Carnaval, diante da possibilidade de molhá-los, sujá-los ou amassá-los durante a folia.
Ao confrontar-se, todavia, com a expressão Campanha Nacional de Combate à AIDS, o
leitor percebe a quebra de expectativa, da coerência semântica do texto. Diante do
estranhamento da relação entre uma campanha publicitária para a plastificação de
documentos durante o carnaval e outra propaganda de combate à AIDS, redimensiona, à
custa do princípio de cooperação e de suas abduções, a interpretação, com o intuito de
alcançar o sentido metafórico, no qual a expressão seus documentos refere-se ao órgão
sexual masculino, ou seja, o pênis.
Embora alguém possa supor que a interpretação é óbvia, pelo fato de documentos
ser uma metáfora popular, socialmente partilhada, entre pessoas de gerações passadas,
usada para significar órgãos sexuais masculinos, a seleção de propriedades, por meio da
magnificação e narcotização, possibilita desfazer-se a ambiguidade de sentido do
anúncio para aqueles leitores que não conhecem a metáfora.
Desse modo, pelo compartilhamento de propriedades conceituais do sintagma
seus documentos e das expressões sinta-se seguro e Campanha Nacional de Combate à
AIDS, revela-se a metaforização de seus documentos em pênis: uma abdução do leitor
magnifica algumas propriedades pertencentes ao domínio conceitual do objeto textual
seus documentos como, por exemplo, objetos plastificados, individualizados, que se
guardam dentro da roupa e de uso pessoal, enquanto outras permanecem narcotizadas,
tais como registro escrito e instrumento de prova ou testemunho, à espera de
atualização ou não, de acordo com o esforço inferencial do leitor. O efeito metafórico,
entretanto, somente é alcançado quando o leitor confronta as propriedades magnificadas
de seus documentos com as pistas textuais sinta-se seguro e Campanha Nacional de
3.5 A isotopia
A isotopia,2 por fim, diz respeito à estratégia textual que possibilita a leitura
uniforme e coerente do texto metafórico, diante da possibilidade de ocorrência
simultânea de dois planos de significação durante a interpretação. Em outras palavras, o
surgimento de uma figura no texto causa uma tensão semântica que relaciona dois
conjuntos sêmicos ou domínios conceituais, distintos em certos aspectos e semelhantes
em outros. Neste momento, inaugura-se uma configuração de sentido que pode ser lida
de dois modos, sobre duas isotopias. Essa sobreposição de sentidos permite ao leitor a
passagem de uma para outra, e, por conseguinte, a leitura plural do texto.
Sendo assim, a presença de uma figura na superfície textual pode funcionar ora
como um conector de isotopia ora como um desencadeador de isotopia, porque
introduz uma isotopia inicial no campo de atração da segunda isotopia (no caso da
metáfora, o campo figural do metaforizado no campo figural do metaforizante). Com
isto, abre-se um novo universo de sentido, desde essa significação inicial
(KLINKENBERG, 2003; BERTRAND, 2003).
A isotopia se delineia por meio da solidariedade entre um plano figurativo e um
plano temático, que produzem cadeias inferenciais na superfície textual. Grosso modo, o
plano figurativo significa a presença de figuras do mundo natural (elementos mais
concretos) na superfície do texto, enquanto o plano temático diz respeito às palavras ou
expressões que representam algo não existente no mundo natural, como felicidade,
humanidade ou feminilidade, por exemplo. Este último expressa, com efeito, elementos
abstratos, cuja função seria explicar a realidade e representar o mundo mediante um
investimento conceptual. Os temas organizam, categorizam e ordenam a realidade
significante, de modo a permitir sua interpretação.
O plano figurativo, por sua vez, estabelece significação para tudo o que se liga à
nossa percepção do mundo exterior (pelos cinco sentidos: visão, tato, olfato, audição e
gustação) por meio do discurso (verbal ou não verbal). Com isso, passa a ser um
processo – a figurativização – que articula “propriedades sensíveis” com “propriedades
discursivas”. Greimas, contudo, adverte:
2
Isotopia é um termo que migrou da Física para a Semiótica, usado, naquela, para designar propriedade de elementos
que possuem o mesmo número atômico, mas cujos números de massa são distintos; nesta, foi definida, a princípio, no
âmbito da semântica estrutural de A. J. Greimas (1966) como a iteração de semas ao longo de uma cadeia
sintagmática. Segundo o semioticista, essa iteração é efetuada pelos elementos de significação e não pelas palavras,
pelas figuras e não pelos signos. Há, assim, traços que se reiteram, repetem-se e são recorrentes ao longo do
enunciado, cuja função é assegurar a coesão semântica e a homogeneidade do discurso enunciado. O contexto
mínimo necessário para o estabelecimento de uma isotopia é, nesse caso, a ocorrência, em um sintagma, de duas
figuras sêmicas.
122 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
A figuratividade não é mera ornamentação das coisas; é essa tela do parecer cuja
virtude consiste em entreabrir, em deixar entrever, em razão de sua imperfeição
ou por culpa dela, como que uma possibilidade de além sentido. Os humores do
sujeito reencontram, então, a imanência do sensível. (2002, p.74).
O plano temático se liga ao seu suporte figurativo pela tematização – por meio da
qual se dota uma sequência de figuras “de significações mais abstratas que têm por
função alicerçar os seus elementos e uni-los, indicar sua orientação e finalidade, ou
inseri-los num campo de valores cognitivos ou passionais”. (BERTRAND, 2003, p. 213).
Consequentemente, a coerência semântica do texto/discurso é função tanto de
isotopias figurativas quanto de isotopias temáticas: enquanto a isotopia figurativa atribui
ao texto/discurso uma imagem organizada e completa da realidade ou uma ilusão total
do irreal, através da redundância de traços figurativos, a isotopia temática revela sua
dimensão abstrata. Visualizadas por meio da figurativização e tematização, as isotopias
são, na maioria das vezes, complexas, assim como podem se encontrar entrelaçadas
dentro do texto, ou seja, essencialmente figurativas em uma receita de culinária ou em
um manual de instruções, podem perfeitamente se cruzar em um poema ou em textos
socialmente partilhados, como é o caso dos exemplos analisados neste capítulo. Caberá
à leitura hierarquizar, reconhecer e isolar uma ou mais isotopias que comandam a
significação global do texto.
Na metaforização, a identificação de uma isotopia figurativa exige do leitor o
estabelecimento da isotopia temática que a fundamenta, pois esta, na maioria das vezes,
não se encontra textualizada. Por isso, a escolha de determinados temas e figuras,
durante a ação interpretativa, tanto expõe os valores socioculturais implícitos no texto,
para persuadir aquele que o interpreta quanto indica a estratégia adotada pelo leitor para
multiplicar ou reduzir os sentidos metafóricos potencialmente contidos no texto.
Vejamos o funcionamento da isotopia na metaforização do texto seguinte:
Chita
Atuante e empreendedora em Trancoso, paraíso de milionários no sul da
Bahia, além de politicamente mais que correta, Elba Ramalho caiu nas graças
do novo prefeito de Porto Seguro, Jânio Natal. Ela foi convidada por ele e vai
comandar a organização de todos os festejos de São João no eixo Trancoso-
Arraial d’Ajuda-Porto Seguro. (ÉPOCA, 31/01/2005).
Pelo que foi explicado anteriormente, o texto ora reproduzido pode ser lido sob a
isotopia de festas juninas. A presença da expressão festejos de são-joão assegura a
coerência semântica do texto e a referência ao termo chita como sendo o tecido de
algodão de pouco valor, estampado em cores, típico dos festejos juninos. Nesse caso, há
uma espécie de relação metonímica entre as duas expressões linguísticas, já que chita
inclui-se no mesmo domínio conceitual a que pertence festejos de são-joão.
Essa relação convoca, de imediato, um esquema ou roteiro cognitivo de festejos
juninos, com tempo, espaço, atores, objetos e valores, no qual o termo chita é um
desses elementos constituintes, juntamente com outros, como, por exemplo, o matuto
124 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
estabelecida a estratégia de cooperação, que provoca o efeito da crença compartilhada
na superfície textual: a ilusão referencial cuja aceitação por parte do leitor/enunciatário
implica encontrar, nas figuras do texto, as marcas de persuasão do autor/enunciador para
confrontá-las com suas crenças e convicções.
Diante desse fato, o leitor assume uma posição cognitiva socialmente situada em
relação ao texto: passa a ser um elemento gerador de significação e não somente um
decodificador das informações textuais. Desse modo, a leitura do texto suscita outros
feixes de significação, que incluem a visão de mundo do leitor, estereótipos
socioculturais, bem como a possibilidade do efeito de absurdidade ou irrealidade. Este é
um dos motivos pelos quais a metaforização atinge vários elementos textuais, sobretudo
Elba Ramalho e o novo prefeito Jânio Natal, fazendo com que aquela passe a ser vista
como chita e este como Tarzan; no entanto, a metaforização não se esgota nesse
momento. É preciso descobrir em que medida Elba Ramalho se assemelha a chita e o
prefeito Jânio Natal a Tarzan.
Supomos que o leitor realize uma abdução, na qual atualiza outras expressões
linguísticas do plano textual, tais como Trancoso, atuante, empreendedora,
politicamente mais que correta e caiu nas graças, novo prefeito, convidada por ele e
comandar a organização de todos os festejos, com o propósito de estabelecer um novo
sentido para o texto. Ocorre, por conseguinte, a constituição de um campo figural em
que as propriedades são selecionadas não somente de chita, Elba Ramalho ou novo
prefeito de Porto Seguro, Jânio Natal, mas também das outras expressões antes
mencionadas.
Após o estabelecimento desse campo conceitual, dá-se o encadeamento isotópico
dos elementos textuais. Frisamos que esse encadeamento acontece, agora, em um nível
discursivo, de natureza figurativa ou temática, que ultrapassa a esfera das relações
semânticas termo a termo, já codificadas e dicionarizadas. Assim, o jogo interpretativo
magnifica e reitera, na dimensão sintagmática do texto, algumas propriedades desse
campo figural discursivo, enquanto mantém outras narcotizadas. Por conta dessa
saliência e reiteração de traços de significação, produz-se uma cadeia inferencial
solidária entre o conector de isotopia e as pistas textuais focalizadas pela abdução, que
enriquece as propriedades conceituais destes, revelando, dessa forma, a semelhança
entre os objetos de discurso.
Um detalhe importante, todavia, deve ser lembrado. Para que haja o
encadeamento isotópico, não necessariamente devem participar todos os elementos
textuais, porém, aqueles focalizados pela inferência abdutiva. Vejamos como isso
acontece no exemplo sob análise.
Suponhamos que o encadeamento inicialmente estabeleça uma relação de
semelhança entre os objetos do discurso chita e Trancoso, em que este se metaforiza: de
chita, o leitor magnifica propriedades como chimpanzé, vive na selva e mora em cima
das árvores, enquanto narcotiza, temporariamente, companheira de Tarzan, esperta,
inteligente e engraçada; de Trancoso, o leitor magnifica isolamento, Mata Atlântica,
126 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
coexistência de, pelo menos, dois planos de significação na superfície textual. Assim, o
plano textual funciona como um corredor isotópico que possibilita a criação de sentidos
metafóricos originais, ad hoc, refletores das práticas culturais de uma comunidade.
4 Considerações finais
128 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
7
COGNIÇÃO, METÁFORA E LINGUÍSTICA DE CORPUS
1 Introdução
Acreditamos que o Brasil tem condições de crescer no futuro. Mas vai ter de
atacar as reformas, é preciso investir mais em infra-estrutura. Este momento
vai chegar. (ZERO HORA, 14 jan. 2007, p. 4).
1
Agradeço à Capes a bolsa-sanduíche que possibilitou a realização deste estudo na Universidade da Califórnia, Santa
Cruz sob a supervisão do Prof. Raymond Gibbs Júnior.
2
Fonte: Conceitual Metaphor Home Page. Disponível em: <http://cogsci.berkeley.edu/lakoff/MetaphorHome.html>.
Acesso em: 26 jan. 2007.
130 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
domínio-alvo, ao qual as inferências se aplicam. Para estes autores, “a essência de uma
metáfora é compreender e experienciar uma coisa em termos de outra”. (1980, p. 47).
Por exemplo, entendemos a metáfora conceitual AMOR É UMA VIAGEM porque temos
um conhecimento sistematicamente organizado sobre o domínio conceitual VIAGEM, no
qual nos apoiamos para compreender o domínio conceitual AMOR. Portanto, a metáfora
conceitual é chamada assim porque ela conceitualiza algo, nesse caso o amor.
Compreendemos e experienciamos o amor em termos de viagem, pois quando
amamos, seguimos algumas rotinas e conceitualizamos sistematicamente o amor como
uma viagem. Usamos a nossa experiência cotidiana com viagens para conceitualizar o
amor em termos de trajetória, partida, despedida e chegada. Por exemplo, utilizamos as
seguintes metáforas linguísticas:
132 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
algumas ou todas as correspondências associadas com a metáfora conceitual, quando
processam expressões metafóricas convencionais motivadas por determinada metáfora
conceitual. A literatura na área de linguística cognitiva não apresenta uma resposta para
esta pergunta porque ela nunca havia sido colocada anteriormente. Já sob uma
perspectiva psicolinguística, provavelmente existam várias respostas, dependendo do
momento da compreensão analisado. Outro objetivo do estudo foi descobrir por que
algumas correspondências de metáforas conceituais estão mais relacionadas do que
outras. Por exemplo, ao ouvir o enunciado metafórico “I was given new strenght by his
love” [Recebi nova força por meio do seu amor],3 perguntou-se se o indivíduo
reconhecia que as várias correspondências associadas com a metáfora conceitual AMOR
É ALIMENTO estavam implicadas. Ou se o sujeito ao ler “I was given new strenght by his
love”, julgava expressões como “Their relationship is really going somewhere” [O seu
relacionamento realmente vai dar em alguma coisa] ou “They are making great progress
in their marriage” [Eles estão fazendo um grande avanço no seu casamento] como não
sendo relacionadas com a primeira, porque elas são motivadas por uma metáfora
conceitual distinta que é AMOR É UMA VIAGEM, embora se refiram ao mesmo domínio-
alvo AMOR, mas têm um domínio-fonte diferente (VIAGEM) que dá origem a um
conjunto diferente de correspondências do que para a metáfora conceitual AMOR É
ALIMENTO. A hipótese preditiva foi de que itens com uma metáfora conceitual,
metáfora linguística e correspondência consistentes, por exemplo, o enunciado
metafórico “O relacionamento deles não vai dar em lugar nenhum” combinado com “os
objetivos que as pessoas têm em relacionamentos amorosos correspondem aos objetivos
que as pessoas têm em viagens”, cuja metáfora conceitual é AMOR É UMA VIAGEM,
assim como itens que têm enunciados metafóricos com um domínio-fonte comum, tal
como VIAGEM em “Their relationship is really going somewhere” [O seu
relacionamento realmente vai dar em alguma coisa] ou “They are making great progress
in their marriage” [Eles estão dando um grande avanço no seu casamento] seriam
julgados com uma pontuação alta. Por outro lado, também foi previsto que os sujeitos,
ao lerem enunciados metafóricos com domínios-fonte diferentes e, portanto, não
relacionados, como “Eles se alimentam de amor” (DF: ALIMENTO) não conseguiriam
associá-los à correspondência “impedimentos para a viagem representam problemas no
relacionamento amoroso” (DF: VIAGEM). Os resultados apontam que os sujeitos
realmente julgaram com pontuação maior os enunciados metafóricos com as
correspondências consistentes do que os não relacionados. Isso sugere que os indivíduos
parecem reconhecer que uma metáfora verbal implica certos significados relacionados à
metáfora conceitual subjacente, embora a compreensão de metáforas verbais não pareça
implicar diretamente correspondências com o domínio-alvo que emergem de metáforas
conceituais diferentes. Tal resultado representa evidência de que as pessoas conseguem
inferir ao menos uma pequena gama de correspondências motivadas por uma metáfora
3
Esta é uma possibilidade de tradução das metáforas com a qual a autora do estudo trabalhou.
4 O experimento
(5) …the most recent season of corporate financial manipulations has as its
latests storms…
Tradução literal: ...a estação mais recente de manipulações financeiras
corporativas tem como suas últimas tempestades...
Sentido metafórico: ...a estação mais recente de manipulações financeiras
corporativas tem como seus últimos distúrbios...
4
Esta é uma possibilidade de tradução das metáforas com a qual a autora do estudo trabalhou.
134 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
(1) To get a pound of flesh from human beings.
Tradução literal: tirar uma libra de carne dos seres humanos
Sentido metafórico: explorar alguém
136 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
como o uso de certas metáforas animadas no corpus vem a implicar certo potencial para
o controle, enquanto o uso de metáforas inanimadas implica a falta de controle.
Outro autor que também se dedica ao estudo de metáforas conceituais em um
corpus, no caso de textos de economia, é Boers (1999). Boers utilizou a análise de
corpus em seu estudo sobre metáforas da área da saúde em textos socioeconômicos. Ele
contou sistematicamente o número de metáforas linguísticas derivadas do domínio-fonte
da saúde nos editoriais semanais da revista The Economist, comparando as edições de
um período de dez anos. Essa análise obteve um total de 1.137.000 palavras. Boers
constatou que a base corpórea da metáfora motivou a produção de metáforas linguísticas
com o domínio-fonte SAÚDE, principalmente nos meses de inverno, isto é, quando a
saúde é um tópico mais recorrente devido às doenças de inverno. Tal resultado foi
tomado como um indício do papel da motivação a partir da nossa experiência corpórea,
na compreensão de enunciados metafóricos. Boers destaca que a adoção de um
princípio de frequência na análise de corpus não reflete necessariamente as intuições do
falante individual. Ele aponta que a análise da frequência de ocorrência pode ser tomada
como um dado válido somente com respeito a tendências na comunidade linguística.
Boers chama a atenção principalmente para o fato de que a pesquisa baseada em dados
de corpus não representa evidência do que realmente ocorre na mente do falante
individual. Finalmente, ele adverte para a necessidade de pesquisa experimental que
complemente a pesquisa baseada em corpus. O resultado do estudo da frequência de
ocorrência de Boers reforça a nossa crença de que a linguística de corpus é uma
ferramenta metodológica valiosa, que deve ser agregada à pesquisa psicolinguística.
Um importante argumento contrário ao uso restrito de conhecimento intuitivo dos
linguistas, como fonte de informação, é o fato de que os pesquisadores de corpus e os
lexicógrafos frequentemente encontram usos não previstos de vocábulos. (DEIGNAN,
2005). Evidências da linguística de corpus apontam que os falantes têm dificuldades para
descrever o conhecimento linguístico fora de contexto, por exemplo. Fatos óbvios sobre
o uso da metáfora, que, no entanto, passam despercebidos, apontam para o caminho da
consulta de grandes corpora, a fim de se investigar metáforas linguísticas. Os resultados
do estudo de concordâncias6 para muitas palavras em linguística de corpus demonstram
que a frequência de ocorrência dos sentidos metafóricos talvez seja maior do que a
frequência de ocorrência de sentidos não metafóricos. (DEIGNAN, 1999).
O registro do número de ocorrências de cada expressão metafórica em toda a Web
é relevante para se estabelecer uma comparação baseada na realidade de uso da língua
escrita, como os resultados da pesquisa de corpus realizada na Web por meio da
ferramenta WebCorp, contrastada com os dados obtidos com os falantes nativos de
inglês, que consistem aqui nos resultados do experimento psicolinguístico. Para a
pesquisa de corpus apresentada aqui, utilizaram-se as dez metáforas linguísticas
selecionadas de jornais em língua inglesa,7 as quais compõem o instrumento
6
Listagem de contextos em que itens linguísticos ocorrem.
7
A utilização de textos selecionados de várias sessões, tais como moda, esportes e política, de jornais em língua
inglesa como o The New York Times, International Herald Tribune (inglês norte-americano) e The Guardian (inglês
Q1 COMPREENSÃO
7 6,7 6,7
6,4
6 5,7 5,6
4,9
5
VALORES 1 - 7
4,3
4 3,7 3,8
3,5
0
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
QUESTÕES
Segundo a hipótese preditiva, a falta de um contexto deveria ser uma barreira para
a compreensão das expressões (3) To trade the keys to the kingdom; (4) You are in the
middle of a dark forest e (5) …the most recent season of corporate financial
manipulations has as its latests storms, dado que a dificuldade para a compreensão de
tal expressão apareceu nas entrevistas preliminares com falantes nativos (FN) de inglês8
feitas no Brasil. Quando inquiridos sobre o motivo da dificuldade de compreensão, os
FNs apontaram a falta de referências contextuais para subsidiar a interpretação do texto.
Na verdade, os participantes aparentemente experienciaram a expressão (5) …the most
recent season of corporate financial manipulations has as its latests storms (3,8 sobre
britânico) justifica-se tendo em vista que o objetivo do presente estudo é a compreensão da metáfora no quadro da
Teoria da Metáfora Conceitual de Lakoff e Johnson (1980), baseada principalmente na análise de metáforas da vida
cotidiana.
8
Tais entrevistas foram realizadas com oito falantes nativos de inglês no Brasil.
138 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
7) como mais difícil de entender do que as expressões (3) To trade the keys to the
kingdom (4,9 sobre 7) e (4) You are in the middle of a dark forest (5,7 sobre 7). Não há
como confirmar a predição de que o significado literal das expressões (4) You are in the
middle of a dark forest e (6) The temperature went from boiling to subzero interferiu na
compreensão, já que os sujeitos marcaram valores maiores na compreensão
(Questionário 1) dessas expressões, isto é, eles julgaram o item (4) You are in the
middle of a dark forest com 5,7 e o item (6) The temperature went from boiling to
subzero com 6,7, embora os sujeitos talvez quisessem dizer que compreenderam o
significado literal do enunciado. Tal fato aponta um problema na escolha dessa metáfora
para compor os questionários. Embora seja possível que a estreita relação do significado
dessas duas metáforas primárias com experiências corpóreas mais básicas percebidas
pelos sentidos, como é o caso da visão (a percepção do escuro) e a sensação de calor,
tenham influenciado o julgamento dos participantes.
Cabe ressaltar que o questionário respondido pelos falantes nativos de inglês
apresentou expressões metafóricas sem o respectivo contexto discursivo. A
compreensão de (5) …the most recent season of corporate financial manipulations has
as its latests storms foi considerada como média pelos falantes nativos de inglês (3,8
sobre 7) e a expressão (6) The temperature went from boiling to subzero foi julgada
como de fácil compreensão pelos falantes nativos de inglês (6,7 sobre 7).
Figura 2 – Resultado do julgamento sobre a intuição dos participantes sobre o quão comum é cada
expressão
Q2 CONVENCIONALIDADE
7 6,8
6,4 6,4
6,2
6
5,6
OCORRÊNCIAS GOOGLE
5
4,6
4,2
4
4
3,6 3,6
0
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
METÁFORAS
Optou-se por usar o WebCorp,9 que é uma ferramenta que apresenta exemplos de
uso da linguagem extraídos da Web em uma forma adequada para análise linguística. O
WebCorp foi desenvolvido para operar usando as ferramentas de busca disponíveis e
usa, entre algumas opções, o Google para localizar páginas relevantes na Web, acessa
cada uma dessas páginas e extrai todas as ocorrências da palavra ou frase especificada
pelo pesquisador. O resultado é apresentado em um contexto contendo de 1 a 50
palavras à esquerda e à direita em forma de concordâncias. O WebCorp acessa cada
uma dessas páginas e extrai linhas de concordância. No Google, um termo pesquisado
pode aparecer repetido na mesma busca, mas o usuário só vai descobrir isso clicando
em cada um dos links manualmente. O WebCorp apresenta opções como o spam de
concordâncias e o formato do output, desenvolvidos especificamente para pesquisa
linguística.
A seguir estão os resultados da pesquisa sobre o número de concordâncias das
metáforas utilizando o WebCorp.
9
O WebCorp foi criado e é operado e mantido pela Escola Superior de Inglês da Universidade da Inglaterra Central,
Birmingham, sendo de livre acesso na Web.
140 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
Tabela 1 – Resultados da pesquisa WebCorp10
Expressões metafóricas Páginas Número de Uso literal da Uso
acessadas concordâncias expressão metafórico
To get a pound of flesh from human beings. 75 58 2 56
To bump its premium subscribers up to a virtually 9 7 - 7
unlimited capacity.
To trade the keys to the kingdom. 36 23 3 20
You are in the middle of a dark forest. 134 99 90 9
…the most recent season of corporate financial 5 5 - 5
manipulations has as its latests storms.
The temperature went from boiling to subzero. 1 1 - 1
I was at the edge of my limit. 14 12 - 12
It has managed to sneak into their hearts. 7 7 - 7
It exploded onto the radar. 6 6 - 6
It disappeared later in quick rotation. 54 33 25 8
10
Acesso em 13.9.2006.
11
Havia sido realizado um estudo preliminar utilizando a pesquisa avançada do Google.
142 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
com 6,8 no questionário 2). Os falantes nativos de inglês julgaram a compreensão da
expressão (10) com 4,3 e consideraram tal expressão como de média compreensão (3,6).
Os falantes nativos de inglês julgaram a compreensão da expressão (10) com 4,3 e
considerararam o grau de convencionalidade (Questionário 2) desta expressão como
médio (3,6). Tal expressão acusou uma baixa ocorrência de usos metafóricos constatada
na pesquisa com o WebCorp (somente oito usos metafóricos). Os falantes nativos
julgaram que têm uma boa compreensão da expressão (9) It doesn’t often explode onto
the radar (5,6 no questionário 1) e que tal expressão é comum (tal expressão foi julgada
como sendo a mais comum no questionário 2 com 6,8 sobre 7), ainda que a mesma
expressão só tenha gerado seis concordâncias na Web. Os falantes nativos de inglês
consideram a expressão metafórica (8) como de fácil compreensão (julgada com 6,4) e
convencional (julgada também com 6,4 no questionário 2). Tais julgamentos revelam
como a intuição dos falantes sobre o uso da linguagem pode ser refutada por dados
oriundos da Web, já que a expressão (8) Somebody has managed to sneak into their
hearts gerou somente sete concordâncias e é, como vimos, uma metáfora nova de uso
raro. Enfim, todas as metáforas do estudo são de uso raro, como foi verificado por meio
da pesquisa utilizando o WebCorp.
A comparação dos resultados do estudo experimental, com os resultados do
estudo que utilizou metodologia da linguística de corpus, revelou que nem sempre a
intuição dos falantes acerca do seu conhecimento linguístico coincide com a realidade
dos dados da língua, nesse caso dados sobre a língua escrita. Isso fica evidente no
julgamento da expressão (7) I was at the edge of my limit, considerada pelos
participantes, falantes nativos de inglês, como a segunda expressão mais comum da lista
de metáforas (6,4 sobre 7), mas que é uma expressão de uso raro, segundo revelam os
resultados da pesquisa utilizando o WebCorp, que gerou somente doze concordâncias
para tal expressão, todas usos metafóricos. Enfim, se a pesquisa feita com as metáforas
utilizando a ferramenta WebCorp tivesse sido realizada previamente à elaboração dos
questionários do estudo experimental, o objetivo do estudo poderia ter sido alcançado,
qual seja investigar a compreensão de cinco metáforas linguísticas novas e de cinco
metáforas linguísticas convencionais. A partir desse estudo, recomenda-se a utilização
de metodologia da linguística de corpus como uma ferramenta auxiliar na elaboração de
instrumentos psicolinguísticos.
Outro problema desse estudo empírico é o fato de os questionários não estarem
paralelos o suficiente quanto à extensão dos enunciados e aos tipos de metáforas. As
metáforas selecionadas para compor os questionários são de tipos diferentes, isto é, há
metáforas com diferentes motivações, tais como relações atemporais (IMPORTANTE É
CENTRAL) e relações sociais (INTENSIDADE DE EMOÇÕES É CALOR). Cada metáfora do
estudo está relacionada a diferentes domínios experienciais, como tato (CALOR),
orientação espacial (CENTRO) e funcionamento sensório-motor (CONTÊINER,
MOVIMENTO). Tal fato já explicita a dificuldade em quantificar e estabelecer
comparações entre experiências corpóreas tão distintas, embora haja um aspecto sob o
9 Considerações finais
144 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
LAKOFF, G.; JOHNSON, M. Metaphors we live by. Chicago: University of Chicago Press, 1980.
[Tradução para o português: Metáforas da vida cotidiana; coordenação da tradução Mara Sophia Zanotto,
Campinas, SP: Mercado de Letras; São Paulo, 2002].
LAKOFF, G.; JOHNSON, M. Philosophy in the flesh. New York: Cambridge University Press, 1999.
LAKOFF, G; TURNER, M. More than cool reason: a field guide to poetic metaphor. Chicago:
University of Chicago Press, 1989.
SIQUEIRA, M. As metáforas primárias na aquisição da linguagem: um estudo interlinguístico. 2004.
252p. Tese (Doutorado em Linguística) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto
Alegre, 2004.
TENG, N. Metaphor and coupling: an embodied, action-oriented perspective. Metaphor and Symbol, n.
21, v. 2, p. 67- 86, 2006.
WEBCORP User Guide. Disponível em: <www.webcorp.org.uk/guide/>. Acesso em: 25 set. 2006.
ZERO HORA, Porto Alegre, 14 de jan. 2007.
146 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
e faz questionamentos, cujos resultados formariam a base de sua abordagem para a
geração da metáfora primária, que será posteriormente apresentada.
O modelo proposto pelo autor destaca sobremaneira a participação da experiência
corpórea na geração de metáforas. De forma sistematizada, Grady demonstra como
metáforas primárias resultam da combinação da conformação biológica humana, de suas
características cognitivas e da experiência acumulada. Os princípios da metáfora
conceitual discutidos pelo autor em sua obra são:
148 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
chinês. As bases para discussão se fundamentam em Kövecses (2002, 2005) e Yu
(1998).
FELICIDADE É LUZ
Ing. Her face brighted up.
Hun. Derüs alkat.
Chi. Tamen gege xing-gao cai-lie.
Por. Ela estava radiante de felicidade.
Cabe indagar como é possível que línguas tão diferentes e tão distantes em suas
origens possuam em seus léxicos as mesmas metáforas? Kövecses e Yu acreditam haver
uma motivação universal na emergência desses conceitos em culturas tão diferentes.
Para FELIZ É PARA CIMA, os autores afirmam haver uma razão com base na experiência
corpórea. A motivação deve-se à associação da postura ereta com emoções positivas e
aos estados físicos. Sempre que estamos bem, temos uma postura “erguida” diante da
vida. Quando estamos tristes ou doentes, posicionamo-nos de forma curvada. Essa
motivação perpassa fronteiras culturais.
Para a metáfora FELICIDADE É LUZ, Yu (1998) aponta a base experencial como
motivação conceitual. Segundo o autor, quando estamos felizes os olhos se tornam
“mais brilhantes”. Essa “luz” parece originar-se da energia interna que transparece no
semblante. Ainda com o autor, o estado de felicidade nos leva a sorrir mais e ser mais
dinâmicos. Quando estamos tristes, ficamos mais retraídos, sorrimos menos e essas
reações são também facilmente identificadas. Essa motivação perpassa também
fronteiras culturais.
Há casos também em que modelos culturais revelam conceptualizações bem
distintas do mundo, resultando de experiências particulares dos homens. Saber como as
expressões linguísticas mostram essas variações é uma forma de aproximação da
multiplicidade cultural.Vejamos alguns exemplos apresentados em Ponterotto (1994).
Em português e em inglês, DOCE É BOM, mas em japonês, DOCE É RUIM.
1
Aqui, os exemplos em português são tradução nossa.
3 Figuratividade e ensino
2
“O pensamento simbólico nos permite aprender sobre os dinossauros apesar de jamais termos visto um de verdade.”
(DELOACHE, 2006, p. 70).
152 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
Devemos também lembrar que a metonímia deve ser discutida em sala de aula, da
mesma forma como a metáfora. É necessário que os aprendizes se familiarizem com o
princípio da metonímia ser parte de atividade cognitiva usada na elaboração e
compreensão dos sentidos. Talvez mereça ser sempre reforçado o postulado defendido
por Gibbs (1994, p. 320), que trata a metonímia como um recurso cognitivo usado por
pessoas “quando um aspecto bem compreendido ou facilmente percebido de alguma
coisa é usado para representar ou estar no lugar da coisa como um todo ou outro aspecto
da coisa”.
Como discutido anteriormente, metáfora e metonímia se assemelham por serem
recursos cognitivos e por resultarem de mapeamentos e por integrarem nosso dia a dia
nas formas linguísticas das quais fazemos uso para funcionar no mundo. Vejamos
alguns exemplos apresentados em Gibbs (1994):
Ing. Washington has started negotiating with Moscow.
Por. Washington começou a negociar com Moscou.
Ing. The White House isn’t saying anything about the scandal.
Por. A Casa Branca não está dizendo nada sobre o escândalo.
Ing. She was reading Proust.
Por. Ela estava lendo Proust.
Nos exemplos acima, percebemos que as expressões linguísticas utilizadas não
foram elaboradas aleatoriamente. Ao contrário, elas são manifestações de formas de
raciocínio a respeito dos fatos aí comunicados. Temos, por exemplo, presidente de
nação ou seus representantes por cidades administrativas ou sedes de governo e autor
por sua obra. O fundamento básico que alicerça esses raciocínios é o processamento
metonímico.
Se estamos tratando de figuratividade no processo de ensino e aprendizagem,
devemos também incluir as expressões idiomáticas por terem recebido o mesmo
tratamento clássico, como a metáfora e a metonímia. Longe de ser um tema simples, as
expressões idiomáticas incluem uma extensa lista que inclui, segundo Kövecses (2002,
p.192): metáforas como “cuspir fogo”, metonímias como “ficar amarelo de medo”,
binômios como “altos e baixos”, símiles como “surdo como uma porta”, provérbios
como “mais vale um pássaro na mão do que dois voando”, dentre outras expressões.
Como vemos, há uma grande diversidade de fenômenos reconhecidos como
expressões idiomáticas que, tradicionalmente, são tratadas como fenômenos
linguísticos, com propriedades sintáticas específicas e cujos sentidos não podem ser
abstraídos de seus elementos constituintes.
Na visão tradicional, essas expressões são independentes de processos cognitivos
e não compartilham qualquer aproximação conceitual, ou seja, seus sentidos são
aprendidos e ensinados de forma isolada. Não é discutida também a gradualidade da
idiomaticidade (TAGNIN, 2005), em que o grau mais alto está na metáfora. Em “white lie
154 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
Se tomarmos como exemplo o enunciado “ela governa com mão de ferro”,
metonimicamente alguém substituído por mão mantém a disciplina rígida sob controle.
Detalhadamente podemos demonstrar como o sentido idiomático, o mecanismo
cognitivo, os domínios conceptuais, as formas linguísticas e os seus sentidos servem
para explicar a geração do enunciado acima:
Sentido idiomático especial: “manter disciplina rígida”.
Mecanismo cognitivo: metonímia: INSTRUMENTO PELO CONTROLE.
Domínios conceptuais: INSTRUMENTO e CONTROLE.
Formas linguísticas: governar com mão de ferro.
Sentidos das formas: “governar com”, “mão”, “de ferro”.
4 Considerações finais
Referências
156 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
9
COGNIÇÃO E APRENDIZAGEM DE L2:
uma abordagem conexionista
1 Introdução
1
Este estudo não faz a diferenciação entre os termos língua estrangeira e L2, uma vez que essa distinção implicaria
uma visão teórica típica do cognitivismo, baseada em dicotomias do tipo aquisição e aprendizagem, que se quer
evitar.
2
O emergentismo conexionista casa muito bem com a noção de cognição corporificada (embodied) esposada por
linguistas cognitivos como Lakoff e Johnson (1999) e Johnson e Rohrer (2006), e por conexionistas como Klatzky,
MacWhinney e Behrmann (2008) entre outros, pois ambas as visões partem do pressuposto de que as estruturas
conceitual e linguística são moldadas pelas peculiaridades das estruturas perceptuais humanas, a partir de um corpo
que está situado cognitivamente.
158 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
fazer a língua na mão, por exemplo, como nas línguas de sinais. Língua é
gesto. (ALBANO, 2005, p. 26).
3
Os termos ‘input’ e ‘insumo’ serão utilizados como sinônimos neste artigo. Como a palavra input, emprestada da
língua inglesa, já consta em dicionários do Português brasileiro, como o Aurélio, optou-se por não apresentá-la em
itálico.
4
A noção de gramática estocástica vem sendo preconizada em estudos conexionistas por psicólogos como Bates e
Goodman (1999, 2001) e Seidenberg e MacDonald (1999). Contudo, Eleonora Albano já vem utilizando este termo
para caracterizar a inseparabilidade entre léxico e gramática, como “indissociável de um conjunto de vieses nas
distribuições de probabillidade das unidades fônicas e mórficas que constituem o léxico”. (ALBANO, 1999).
160 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
Ao aprofundar o status teórico do fenômeno da transferência e ao investigar
as regularidades que a governam, cumpriram-se duas metas adicionais. Em
primeiro lugar, a investigação superou a confusão inicial entre aprendizagem
e uso, estabelecendo distinções claras no que diz respeito ao papel da
transferência no processamento e armazenamento de dados lingüísticos e da
recuperação e uso da informação em tempo real. Segundo, esta intenção de se
adentrar profundamente no fenômeno vem sendo guiada por algo que
mencionávamos a princípio: se trata de uma investigação centrada no
aprendiz, no sentido de que o marco teórico no qual se enquadra esta
investigação é a dos processos subjacentes à aprendizagem e uso de uma L2;
é, por assim dizer, um referencial cognitivo. (RUIZ, 2001, p. 20, tradução e
grifo nosso).
162 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
4 Substratos neuropsicológicos da fossilização e da transferência L1-L2
5
Para maiores detalhes relativos ao papel da frequência e da consistência do input no conexionismo, ver Zimmer
(2007).
164 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
autor questiona por que a percepção e a produção de alguns sons da L2 se mostram tão
dificultosos, sobretudo para falantes adultos.
Para responder a essa indagação, pode-se invocar Kuhl (2000), que afirma que a
experiência linguística com a língua materna atua como uma espécie de filtro perceptual
que faz com que alguns detalhes fonéticos da L2, inexistentes na L1, passem
despercebidos. McClelland (2001) sugere que as falhas de distinção dos sons
caracterizam um fortalecimento indesejado de ativações inapropriadas preexistentes.
Assim, o aprendiz em questão estará ativando a representação do som da sua língua
materna, sem sequer notar que está reforçando com mais intensidade o padrão da sua
primeira língua, numa espécie de assimilação perceptual. (BEST et al., 2001).
Percebe-se, conforme explica McClelland, que o aprendizado não pode acontecer
se o aprendiz não conseguir discriminar os detalhes fonéticos distintivos presentes no
insumo, pois enquanto o aprendiz não conseguir perceber as diferenças entre as formas
da L2 e da L1, os padrões do sistema da sua língua materna continuarão sendo
reforçados indevidamente, isto é, haverá uma fossilização de determinadas formas da
interlíngua. Depreende-se, dessa forma, que o primeiro passo para impedir esse reforço
indesejado, ou seja, superar a fossilização na produção oral da L2 é perceber e notar
(conforme SCHMIDT, 2001) os detalhes do input nativo, ou semelhante ao nativo.
McClelland (2001) consegue demonstrar isso muito bem através de uma simulação
conexionista, que partiu da hipótese de que o uso de um estímulo exagerado, que fosse
facilmente discriminado pelo aprendiz da língua estrangeira, levaria a um progresso
mais rápido no seu aprendizado. Zimmer e Alves (2006) afirmam que, com a instrução
explícita de determinados detalhes da forma-alvo, o insumo pode ser mais facilmente
notado. O conhecimento formal, sobre a maneira como as estruturas são produzidas
pelos falantes nativos, propicia que tais formas comecem a ser percebidas e faz emergir,
ao longo do tempo, formas semelhantes às formas-alvo.
Do ponto de vista conexionista, a “fossilização” não é uma estabilização perene da
interlíngua a que a vasta maioria dos aprendizes esteja condenada. A princípio, todos os
efeitos da aprendizagem hebbiana de construções linguísticas, em um nível não ótimo
de fluência, complexidade ou acurácia, podem ser superados, já que a aprendizagem –
linguística e não linguística – é dinâmica.
A interlíngua é vista, então, como um processo contínuo e gradual de apropriação
de elementos gramático-pragmáticos da língua-alvo, que podem ser acessados em
diferentes estágios. Quanto à característica da continuidade do processo, a interlíngua
pode ser caracterizada como um sistema mutável, altamente dinâmico, permeável, sem
deixar de ser sistemático. Como a interlíngua pode incluir padrões dos sistemas
linguístico-pragmáticos da língua materna e da segunda língua, o aprendiz constrói
estratégias adaptativas com a finalidade de estabelecer a comunicação. (MÜLLING;
ZIMMER, 2007).
166 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
e repetitivo, a fim de superar a ativação das associações desviantes advindas do córtex,
onde o conhecimento da L1 está entrincheirado. (SEIDENBERG; ZEVIN, 2006).
O fato de a L1 estar entrincheirada na memória neocortical pode impedir o
aprendizado perceptual implícito da L2, ou seja, sua adequada consolidação e
automatização. Segundo Ellis (2005), em geral uma diferença sutil, como aquela que
distingue atos de fala como mais ou menos polidos em uma língua, pode ser mais
perceptível para falantes dessa língua do que para falantes de outra língua. Um exemplo
de sutileza é o emprego, por exemplo, de uma mudança na prosódia quando falantes do
PB (Português Brasileiro) usam o imperativo para fazer pedidos. Ora, em inglês, o uso
do imperativo dificilmente indicará pedido sem ser considerado rude, a menos que
acompanhado de um modalizador. Mülling e Zimmer (2007), ao tratarem da
transferência pragmática, mencionam essa interação necessária entre o conhecimento
implícito, fruto do processamento neocortical, e do conhecimento explícito, processado
pelo hipocampo e consolidado gradualmente, mediante repetidas instanciações.
A integração entre os sistemas do hipocampo e do neocórtex permite não apenas
compreender por que a produção da fala em L2 é tão complexa, mas também por que a
interação entre os conhecimentos implícito e explícito é tão importante na aprendizagem
da L2.
5 Conclusão
Referências
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6
Para uma discussão aprofundada sobre a interação entre os conhecimentos implícito e explícito, ver Zimmer, Alves
e Silveira (2006).
168 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
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170 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
10
COGNIÇÃO E METACOGNIÇÃO:
aplicação em uma atividade psicolinguística com Teste Cloze
1 Introdução
Não apenas temos atividades cognitivas, mas parece que elas podem aplicar-
se sobre si mesmas: temos cognições sobre cognições. A possibilidade de
metacognição parece típica da espécie humana e pode ser relacionada a
sermos animais lingüísticos. Permanece como uma das diferenças
importantes entre a cognição animal e humana, e a existência da psicologia é
prova de nosso interesse por nossos próprios processos mentais. (1998, p. 1,
grifos nossos).
1
Não é possível em um espaço bastante restrito para escrita esclarecer o que são processos cognitivos. O que é
considerado cognitivo depende de qual modelo epistemológico/teórico estejamos adotando. Para os efeitos de um
entendimento mais imediato, cognição refere, aqui, estruturas e processos de representação construídos e ativados ao
longo de diferentes formas de relação com objetos (como fenômenos) no mundo. Ou seja, são operações de primeiro
nível. A metacognição é uma operação de segundo nível, tomando representações e processos de primeiro nível como
objeto cognitivo. Desse modo, metacognição é também cognição, apenas atuando em níveis mais altos de
representação, de forma altamente recursiva.
2
Conforme Taylor, W. L. Cloze procedure: A new tool for measuring readability. Journalism Quarterly, n. 30, p.
415-433, 1953. Para fins de esclarecimento, a Lei da Boa Forma (ou Pregnância) pode ser resumida da seguinte
maneira: Todo objeto é percebido de modo a apresentar uma forma harmoniosa, boa, estável, regular, simétrica ou
mais simples. (a) Regra de fechamento: A fim de completar uma figura (ou texto) a mente experiencia elementos que
não estão diretamente acessíveis à percepção, mas que completam tal figura (ou texto) para aumentar sua
regularidade. (b) Regra de agrupamento ou proximidade: elementos próximos uns aos outros parecem fazer parte de
172 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
um instrumento de avaliação em ensino e aprendizagem, mais geral, aplicável, de
acordo com propósitos bem-estabelecidos, em atividades psicolinguísticas,
particularmente em compreensão em leitura. A construção do sentido de um texto
envolve processos inferenciais que levam o sujeito/aprendiz a situar-se no contexto
temático, a fazer seleções de natureza semântico-pragmáticas na escolha do léxico. (Ver
seção sete sobre especificidades deste teste.).
Uma consequência do que foi dito até aqui sobre a metacognição é que
habilidades metacognitivas podem desenvolver-se de modo natural no curso do
desenvolvimento cognitivo humano e, ao mesmo tempo, podem ser “ensinadas”,
aprendidas e fortalecidas. E é isso que pretendemos propor na seção 7 deste capítulo.
Não se trata, aqui, de, num sentido estrito, realizar um experimento em uma situação de
ensino e aprendizagem, mas de fazer uso de um teste como um instrumento para
atividades de ensino.
um mesmo todo. (c) Regra de agrupamento por similaridade: elementos semelhantes ou iguais parecem fazer parte de
um mesmo todo. (d) Regra de continuidade: elementos que estão na mesma direção de partes do padrão regular são a
ele integrados, dando continuidade a esse padrão.
3
Em inglês, há uma diferença conceitual entre consciousness e awareness. Em português, ambas passíveis de serem
traduzidas pelo uso de consciência. Entretanto, esse termo é utilizado para nomear vários fenômenos. Veja-se Feltes
(2001) para um amplo tratamento da questão da consciência. Neste caso, consciência refere-se a awareness, estado de
consciência desperta.
174 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
3 No universal e no variável: o perguntar
É correto dizer que, embora a metacognição seja uma propriedade que os seres
humanos compartilham e, portanto, universal através da espécie, não existem fórmulas
ou técnicas amplamente eficazes para seu desenvolvimento, pois cada indivíduo é único
em sua constituição cognitivo-emocional, passa por flutuações motivacionais, de
atenção e de interesses; é diferentemente sensível a determinados contextos e formas de
interação. Além disso, em atividades grupais lida-se com indivíduos com diferentes
estilos cognitivos e que, em geral, também diferem grandemente entre si quanto aos
seus propósitos na interação ou quanto aos propósitos qualitativos e/ou quantitativos de
conhecimento.
Assim sendo, por exemplo, toda atividade proposta voltada para o
desenvolvimento da metacognição deve ser ao mesmo tempo bem planejada e
suficientemente flexível. Essa flexibilidade só pode ocorrer a partir de indícios
oferecidos pelos aprendizes. A percepção desses indícios demanda um grande esforço
do professor/educador, uma aguçada sensibilidade aos diferentes fatores que atuam no
ambiente de aprendizagem. O professor/educador é, sempre, um aprendiz e, como tal,
ao longo de sua atuação, vai desenvolver progressivamente essas percepções e
sensibilidades.
Como diz Gadamer ([1986], 1999, [304]), “a compreensão começa aí onde algo
nos interpela”. Coloca-se aqui, entretanto, o perguntar como um ato frente ao qual tanto
aprendiz como professor desafiam-se. Aprendendo a perguntar, o jogo da compreensão
altera-se. E, novamente, como afirma Gadamer, com a pergunta, o interrogado é
colocado sob uma determinada perspectiva, e essa pergunta rompe o ser do interrogado
[368].
Mantendo-se essa linha de reflexão hermenêutica, chega-se ao que é mais central:
(a) “Perguntar é mais difícil do que responder” [368]
(b) “Para perguntar, temos que querer saber, isto é, saber que não se sabe” [369]
(c) “Todo saber passa pela pergunta” [369]
(d) “Perguntar quer dizer colocar no aberto” [369]
(e) “Somente pode possuir algum saber aquele que tem perguntas” [371]
(f) “A arte de perguntar é a arte de continuar perguntando; isso significa, porém,
que é a arte de pensar” [372]
(g) “Aquele que possui a ‘arte’ de perguntar sabe defender-se do modo de
perguntar repressor que a opinião dominante mantém” [373]
4
De acordo com a exposição de Schwartz e Perfect (2002) sobre a história da pesquisa sobre metacognição,
destacam-se duas “raízes” de pesquisa: J. T. Hart, em psicologia cognitiva, ao longo da década de 60, foi o primeiro a
investigar julgamentos de sentimentos-de-conhecer (SON; SCHWARTZ, 2002) e a de J. H. Flavell, na psicologia do
desenvolvimento pós-piagetiana, estabelecida ao longo da década de 70. Muitas das pesquisas de Piaget foram
profícuas para que se construísse uma compreensão sobre o que se denomina atualmente metacognição. Segundo
Piaget ([1967], 1983), o pensamento formal, que, segundo ele, inicia a partir dos 11, 12 anos e se desenvolve ao
longo da adolescência, permite que o indivíduo reflita fora do presente e elabore teorias sobre as coisas. Chama a esse
pensamento pensamento refletido. Trata-se de um tipo de pensamento distinto daquele que se refere à própria
realidade, baseado em operações de primeiro grau. O pensamento formal, entretanto, consiste em refletir sobre essas
operações de primeiro grau, caracterizando-se, portanto, em operações de segundo grau. Piaget ([1964], 1989, p. 62)
afirma que o adolescente, além de pensar sobre os problemas que a realidade propõe, liga suas soluções a teorias
gerais. Estas podem manifestar-se oralmente, mas a maioria dos indivíduos “fala pouco de suas produções pessoais
limitando-se a ruminá-las de maneira íntima e secreta”. Analisando as condições de construção do pensamento
formal, Piaget afirma que consistem em uma reflexão de segundo grau. Enquanto o pensamento concreto é uma
representação de uma ação possível, o formal é “a representação de uma representação de ações possíveis”. (p. 64). É
essa forma de reflexão que torna possível a libertação do pensamento, uma nova forma de poder cognitivo. Há, nesse
estágio, de acordo com Piaget ([1964], 1989), uma nova forma de egocentrismo – o egocentrismo intelectual –
manifestada pela crença na onipotência da reflexão. O autor afirma ser esta a idade metafísica por excelência. Depois
de um certo período, esse egocentrismo corrige-se através de uma reconciliação entre o pensamento formal e a
realidade: o equilíbrio é atingido quando a reflexão compreende que sua função não é contradizer, mas adiantar-se e
interpretar a experiência.
Piaget ([1967], 1996, p. 77) sustenta que o conhecimento consiste não apenas em adquirir e acumular informações,
mas em “organizá-las e regulá-las por sistemas de autocontroles orientados no sentido das adaptações, isto é, no
sentido da solução de problemas”.
Entre os precursores, encontra-se, também, Vygotsky, com pesquisas desenvolvidas na década de 30, sobre gênese da
fala privada.
Vygotsky ([1930] 1989, p. 29-30), analisando a fala de crianças em atividades práticas em situações controladas,
constata que (a) essa fala é tão importante quanto a própria ação desenvolvida para atingir um objetivo, constituindo
uma mesma função psicológica complexa, a qual se dirige para a solução do problema que se coloca a ela; e (b) e
“quanto mais complexa a ação exigida pela situação e menos direta a solução, maior a importância que a fala adquire
na operação como um todo”. (p. 28). Em outras palavras, um processo psicológico complexo substitui as operações
práticas, fazendo com que a criança: (a) planeje como solucionar o problema que lhe é colocado; e (b) execute a
solução elaborada de forma visível. Para o autor, “a motivação interior e as intenções, postergadas no tempo,
estimulam o seu próprio desenvolvimento e realização”. Em linhas gerais, o que acontece, nesse processo, é que a
criança vai adquirindo a capacidade de “ser tanto sujeito como objeto de seu próprio comportamento”. Esse processo
é o que se entende aqui como sendo de natureza metacognitiva. É justamente quando as demandas para a execução de
uma atividade tornam-se mais difíceis e complexas que a fala egocêntrica aumenta. Essa fala é entendida por
Vygotsky como uma forma de transição entre a fala exterior e a interior. A criança precisa aumentar seus esforços
para tornar a solução menos automática, e esse esforço é demonstrado pela verbalização de novos planos de ação. A
tese do autor é a de que em vez de “apelar para o adulto, as crianças passam a apelar a si mesmas; a linguagem passa,
assim, a adquirir uma função intrapessoal, além de seu uso interpessoal”. Isso significa dizer que há tanto um uso
interpessoal – fala comunicativa – como um uso intrapessoal, em que a criança guia a si mesma, organiza sua
atividade, impõe a si mesma uma atitude social.
176 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
Os estudos sobre vários aspectos ligados ao funcionamento da memória humana,
realizados por Endel Tulving e colaboradores, ao longo da década de 60, influenciaram
as pesquisas de Flavell.5
Flavell (1971) introduz o termo metamemória (p. 277), para designar a
consciência dos sujeitos sobre as estratégias usadas ou que deveriam ser usadas na
realização de determinadas tarefas. A metamemória refere-se, então, a uma
característica da inteligência humana que permite a construção e retenção de
conhecimentos sobre sistemas e estratégias da memória.
Se o conhecimento for entendido como representações internas, construídas a
partir de determinadas experiências, a metamemória envolveria o que o indivíduo sabe
sobre essas representações – conhecimento metacognitivo, como elas operam –
estratégias ou habilidades metacognitivas e como se sente sobre elas – experiências
metacognitivas. De acordo com Flavell, com base na noção de metamemória, o
indivíduo tem a consciência de si mesmo como um agente em seu ambiente,
entendendo-se como um ser que de forma ativa e deliberada, constrói informações,
retém e recupera informações na e da memória.
Flavell e Wellman (1977) distinguem duas categorias de metamemória: a
sensibilidade e as variáveis. A categoria sensibilidade inclui o conhecimento sobre a
própria memória, sobre quando a atividade de memória é necessária. Ela corresponde ao
conhecimento procedural e envolve predominantemente atividades mnemônicas
implícitas e inconscientes. Já a categoria de variáveis corresponde a componentes de
conhecimento declarativo, e envolve conhecimento factual consciente e explícito, sendo
influenciada por diferentes fatores e variáveis.
Examinando o desenvolvimento da metamemória em crianças, mas que seguem
ao longo de todo o desenvolvimento cognitivo humano, Flavell, Miller e Miller ([1993],
1999) destacam três tipos de memória: a memória sobre a memória de pessoas, de
tarefas e estratégias, e a cada um desses tipos de memória corresponde um tipo
específico de conhecimento. Para os autores, disso deriva o conhecimento
metacognitivo: o conhecimento e as crenças sobre a própria mente e o seu
funcionamento acumulados através da experiência e armazenados na memória de longo
prazo. Assim, segue-se a caracterização de cada uma dessas categorias, as quais, via de
regra, interagem entre si.
5
Entre elas, Flavell cita E. Tulving. Subjective organization in free recall of unrelated words. Psychology Review, n.
69, p. 344-354, 1962.
178 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
metacognitiva para avaliar o processo de compreensão de um texto ou como uma
estratégia para obter maior conhecimento ao longo de uma leitura.
Monitorar-se metacognitivamente em uma atividade é um processo que permite
ao indivíduo observar e refletir sobre seus processos cognitivos, com base em seus
objetivos de compreensão e lembrança. Autorregular-se metacognitivamente em uma
atividade envolve planejar, direcionar o comportamento e tomar decisões conscientes ou
não com base nas conclusões resultantes do monitoramento metacognitivo. Para Nelson
e Narens (1990), o automonitoramento é um processo do tipo bottom-up, enquanto a
autorregulação é do tipo top-down. Esses dois processos metacognitivos situam-se em
níveis diferentes mas interagem de variadas formas.
Outras formas de referir-se à metacognição são: sistema de controle executivo
ou processo de autorregulação. Tais autores empregam essas expressões como formas
intercambiáveis em diferentes abordagens e/ou áreas de aplicação. Essa
intercambialidade seria devida à ideia de que os processos em que atuam de modo
central são, por exemplo: planejamento de várias espécies em diferentes áreas; solução
de problemas; (autoavaliação; vários estágios de aprendizagem (estratégias de
aprendizagem); compreender e desenvolver estilos cognitivos.
Há uma distinção entre conhecimento metacognitivo e consciência
metacognitiva oferecida em Flavell (1979) e Flavell, Miller e Miller ([1993], 1999) e já
mencionada quando se definiu metamemória. Enquanto o conhecimento metacognitivo
refere-se ao conhecimento explícito que um indivíduo tem sobre suas forças e
fraquezas, a consciência metacognitiva refere-se aos sentimentos e às experiências que
se tem quando se está envolvido em um processo cognitivo. A consciência
metacognitiva também é chamada experiência metacognitiva. Ou seja, ao longo dos
processos de monitoramento e autorregulação, acabam surgindo experiências
metacognitivas do tipo: sentir-se confuso diante da escolha entre alternativas, frustrar-se
ao não encontrar uma resposta, vibrar quando se deslinda um problema, por exemplo.
Nelson e Narens (1990) distinguem monitoramento e controle metacognitivo.
Parece-nos que controle metacognitivo e autorregulação metacognitiva seriam
expressões intercambiáveis.
O monitoramento permite ao indivíduo observar, refletir ou experienciar seus
próprios processos cognitivos, informando-o sobre o estado de sua cognição
relativamente ao seu objetivo atual. Já, o controle metacognitivo refere-se às decisões
conscientes ou não conscientes que são tomadas baseadas no output dos processos de
monitoramento. Por exemplo: se o indivíduo sente que não entendeu uma passagem de
um texto que está lendo, ele pode decidir relê-la. Portanto, ele usa seus julgamentos para
alterar o comportamento. Os autores afirmam que, existindo processos de controle que
influenciam o comportamento humano e a cognição, pode ser possível melhorar ou
alterar os processos de controle de forma a melhorar o aprendizado humano. Tome-se a
aprendizagem como exemplo. Para os autores, há, teoricamente, uma estrutura com dois
níveis inter-relacionados: o metanível e o nível-do-objeto. O metanível é dinâmico e
6
Conforme William James. The principles of psychology. New York: Holt, 1983. v. 1, citado por Koriat (1998).
7
Conforme J. T. Hart. Memory and feeling-of-knowing experience. Journal of Educational Psychology, n. 56, p.
208-216, 1965; J. T. Hart. Memory and the memory-monitoring process. Journal of Verbal Learning and Verbal
180 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
[p]ostula a existência de um módulo de monitoramento especial que tem
acesso privilegiado a traços de memória e pode detectar a disponibilidade, no
estoque da memória, de um alvo de outro modo inacessível. Portanto, a
qualquer momento que uma pessoa é solicitada a lembrar um alvo, o módulo
de monitoramento é ativado para assegurar que o alvo está presente na
memória antes que a tentativa seja feita para recuperá-la. (Apud KORIAT,
1998, p. 19, grifos nossos).
Behavior, n. 6, p. 685-691, 1967; e J. T. Hart. Second-try recall, recognition and the memory-monitoring process.
Journal of Verbal Learning and Verbal Behavior, n. 58, p. 193-197, citados por Koriat (1998).
182 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
7 Mecanismos do comportamento “inteligente”
8
Conforme BINET, A. The development of intelligence in children. Baltimore: William & Wilkins, 1916; BINET,
A.; SIMON, T. The review of intelligence in children. Baltimore: William & Wilkins, 1916, citados por Sternberg
(1992, 2000), respectivamente.
Tarefa-objetivo:
Escrever um trabalho de conclusão
Metacomponentes (metacognição):
(a) decidir o assunto;
(b) planejar o trabalho;
(c) monitorar a redação;
(d) avaliar se o produto foi bem-sucedido quanto à realização do objetivo.
Componentes de desempenho:
Redação real.
184 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
sequência didática ou, ainda, servir como guia para experimentos. Nesse último caso,
deve ser elaborado um projeto no qual constem todas as etapas de controle e de registro
necessárias para a avaliação dos resultados.
A oficina é organizada da seguinte forma:
(1) Apresentação de informações sobre o instrumento e/ou sobre o aporte teórico
mínimo em que se baseia a proposta de atividade. Essas informações visam a
orientar o professor tematicamente e devem, preferencialmente, ser lidas ou
estudadas previamente. Essas informações podem ser objeto de trabalho com
os alunos, dependendo do nível de formação escolar em que esteja sendo
aplicado, mas não necessariamente na forma como estão apresentadas aqui, já
que estão numa linguagem ajustada à formação do educador.
(2) Estabelecimento de objetivos para a tarefa a ser realizada; levantamento das
atividades cognitivas e metacognitivas propiciadas; caracterização do material
(textos, questionários, filmes, gravações em áudio, etc.) a ser utilizado.
(3) Instruções sobre como proceder para a realização da tarefa.
(4) Apresentação da atividade.
Esta oficina, que já foi “testada” com diferentes grupos, ainda mantém uma feição
idealizada. Cada grupo reage de forma bastante diferenciada em cada caso. A
sensibilidade do orientador de aprendizagem é fator fundamental nessas atividades.
Pelas características do texto, esta oficina pode ser realizada com estudantes desde o
ensino médio.
A oficina não possui o caráter de técnica ou modelo. Como foi afirmado
anteriormente, trata-se de uma proposta que visa a demonstrar quão sistemático deve ser
o planejamento de atividades que têm por objetivo o desenvolvimento de metacognição.
Para trabalhar nesta oficina, o professor deve ter alguns conhecimentos básicos
sobre o Teste Cloze.
O Teste Cloze visa verificar a capacidade de previsão de ocorrência de uma
palavra, tendo em vista o contexto em que está inserida. Esse teste – teste com lacunas –
avalia, portanto, a compreensão verbal, pois, conforme Hunt (1992, p. 55), “a
sensibilidade para o contexto que está sendo construído pela mensagem é uma parte
importante da capacidade verbal”.
Os resultados desse tipo de teste, conforme Brown (1996), são boas medidas de
proficiência geral em conhecimentos linguísticos. Para ele,
Segundo Brown, uma outra forma de teste, mas que tem uma certa inspiração nos
testes Cloze, é o método dictation, que consiste na leitura de uma passagem curta pelo
professor. A passagem é lida três vezes. Inicialmente a passagem é lida numa
velocidade normal, enquanto os alunos escutam-na. Na segunda leitura, a passagem é
partida em frases ou fragmentos suficientemente desafiadoras para os estudantes, e estes
escrevem o que ouviram durante as pausas. Na terceira leitura, os estudantes ouvem a
passagem novamente numa leitura pelo professor, em velocidade normal, e checam os
resultados de sua escrita.
É importante observar que o Teste Cloze deve levar em consideração as
experiências socioculturais dos leitores, pois sua competência de leitura, em avaliação,
reporta-se a um vocabulário adquirido em condições socioculturalmente determinadas.
O Teste Cloze que é apresentado nesta oficina é construído segundo o método
fixed-ratio, em que a quinta palavra da sequência é apagada. O primeiro parágrafo é
mantido para fornecer elementos contextuais mínimos para avançar na leitura.
186 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
tratadas. Tendo os resultados dessa primeira fase, o professor pode avaliar,
comparativamente, o sucesso de seus resultados com as oficinas, em que, então,
implementam-se as atividades que propomos. Fica a critério do professor avaliar os
resultados qualitativa e/ou quantitativamente, de acordo com o tempo e os recursos de
que dispõe. No plano de uma pesquisa-ensino, ter-se-ia, então, uma pesquisa
longitudinal. O aprendiz tornar-se-ia um agente conhecedor de suas ações reflexivas e
processos de decisão, trabalhando pela sua autonomia, ao mesmo tempo em que o
professor, colaborador nesse processo, avalia seus procedimentos com vistas a futuros
planejamentos de ações. Novamente se está situado no âmbito de uma aprendizagem
colaborativa.9
A atividade envolve trabalhar-se com um texto adaptado de John Wilkins,
Mercury: or the secret and swift messenger ([1641], apud ECO, 1993, p. 47-48). O texto
original, traduzido para o português, tem a seguinte forma:10
O quanto essa Arte de Escrever pareceu estranha quando da sua Invenção primeira é algo
que podemos imaginar pelos Americanos recém-descobertos, que ficaram espantados ao ver
Homens conversarem com Livros, e não conseguiam acreditar que um Papel pudesse falar...
Há um Relato excelente a este Propósito, referente a um Escravo Índio; que, ao ser
mandado por seu Senhor com uma Cesta de Figos e uma Carta, comeu durante o Percurso uma
grande Parte de seu Carregamento, entregando o Restante à Pessoa a quem se destinava; que,
ao ler a Carta e não encontrando a Quantidade de Figos correspondente ao que se tinha dito,
acusa o Escravo de comê-los, dizendo-lhe que a Carta afirmava aquilo contra ele. Mas o Índio
(apesar dessa Prova) negou o Fato com a maior segurança, acusando o Papel de ser uma
Testemunha falsa e mentirosa.
Depois disso, sendo mandado de novo com um Carregamento semelhante e uma Carta
expressando o Número exato de Figos que deviam ser entregues, ele, mais uma vez, de acordo
com sua Prática anterior, devorou uma grande Parte deles durante o Percurso; mas, antes de
comer o primeiro (para evitar as Acusações que se seguiriam), pegou a Carta e a escondeu sob
uma grande Pedra, assegurando-se de que, se ela não o visse comer os Figos, nunca poderia
acusá-lo; mas, sendo agora acusado com mais rigor do que antes, confessou a Falta, admirando
a Divindade do Papel e, para o futuro, promete realmente toda a sua Fidelidade em cada Tarefa.
Um Senhor solicitou a seu escravo índio que entregasse uma cesta de figos e uma carta a
uma certa pessoa. Esta, ao receber a cesta e ler a carta, não encontrou a quantidade de figos
exatamente correspondente ao que estava dito e acusou o índio de comê-los, dizendo que a
carta afirmava aquilo contra ele. O índio, apesar dessa acusação, negou o fato com a maior
segurança, acusando o papel de ser uma testemunha falsa e mentirosa.
Depois disso, sendo mandado de novo com um carregamento igual e uma carta
9
Agradeço à Profa. Emília Maria Peixoto Farias por ter-me alertado para este ponto em especial.
10
A tradução é referida apenas como: “Tradução: MF”, tendo como revisora de tradução e de texto final Monica
Stahel. Obra original citada por Eco: John Wilkins. Mercury; or the secret and swift messenger. 3. ed. Londres:
Nicholson, 1707, p. 3-4.
Texto adaptado de John Wilkins, Mercury: or the secret and swift messenger ([1641], apud
ECO, 1993, p. 47).
Um Senhor solicitou a seu escravo índio que entregasse uma cesta de figos e uma carta a uma
certa pessoa. Esta, ao receber a __________ e ler a carta, __________ encontrou a quantidade
de __________exatamente correspondente ao que __________dito e acusou o __________ de
comê-los, dizendo que __________ carta afirmava aquilo contra __________. O índio, apesar
dessa __________, negou o fato com __________ maior segurança, acusando o __________de
ser uma testemunha falsa e mentirosa.
Depois disso, sendo mandado __________ novo com um carregamento __________ e
uma carta expressando __________ número exato de figos __________ deviam ser entregues,
ele, __________, de acordo com sua __________ anterior, devorou grande parte
__________durante o percurso, mas, __________ de comer o primeiro, __________evitar as
acusações que __________seguiriam, pegou a carta__________ a escondeu sob uma
__________ pedra, assegurando-se de que, __________ ela não o visse__________ os figos,
nunca poderia __________, mas sendo agora acusado __________ ainda mais rigor do
__________ antes, confessou a falta, __________ a estranha divindade do __________ e, para
o futuro, prometeu realmente toda a sua fidelidade em cada tarefa.
Texto adaptado de John Wilkins, Mercury: or the secret and swift messenger ([1641], apud
ECO, 1993, p. 47).
Um Senhor solicitou a seu escravo índio que entregasse uma cesta de figos e uma carta a uma
certa pessoa. Esta, ao receber a __________ e ler a carta, __________ encontrou a quantidade
de __________exatamente correspondente ao que __________dito e acusou o __________ de
comê-los, dizendo que __________ carta afirmava aquilo contra __________. O índio, apesar
dessa __________, negou o fato com __________ maior segurança, acusando o __________de
ser uma testemunha falsa e mentirosa.
Depois disso, sendo mandado __________.novo com um carregamento __________ e
uma carta expressando __________ número exato de figos __________ deviam ser entregues,
ele, __________, de acordo com sua __________ anterior, devorou grande parte
__________durante o percurso, mas, __________ de comer o primeiro, __________evitar as
acusações que __________seguiriam, pegou a carta__________ a escondeu sobre uma
188 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
__________ pedra, assegurando-se de que, __________ ela não o visse__________ os figos,
nunca poderia __________, mas sendo agora acusado __________ ainda mais rigor do
__________ antes, confessou a falta, __________ a estranha divindade do __________ e, para
o futuro, prometeu realmente toda a sua fidelidade em cada tarefa.
Texto adaptado de John Wilkins, Mercury: or the secret and swift messenger ([1641], apud
ECO, 1993, p. 47).
Esta alteração (‘sob’ para ‘sobre’) é realizada como uma forma de introduzir um
elemento cujo reconhecimento exige um processo bottom-up de processamento na
segunda leitura. Em geral, na segunda leitura, o aumento da previsibilidade dos
elementos levaria a um menor número de movimentos sacádicos regressivos entre
palavras e/ou seus componentes morfológicos, ou seja, neste trecho, em especial, em
geral é esperado que o leitor não execute um parsing do sintagma inteiro.11 De qualquer
modo, esse elemento é introduzido para propiciar uma atividade de monitoramento
bottom-up de fácil reportabilidade.
Observação: Os textos são sempre digitados em espaço duplo ou acima, para que
o aluno tenha espaço para as suas anotações ao longo da leitura.
11
Para uma leitura sobre esse tema, veja-se Maia, Lemle e França (2007).
(1) Solicitar aos alunos uma leitura inspecional do Texto A, fixando um tempo
máximo. Após essa leitura, o aluno deve manter a folha em que se
encontra o texto virada para baixo e aguardar até que o último colega
finalize a leitura.
(2) Informar o tempo para a atividade com o Texto A.
(3) Dar as seguintes instruções aos alunos, preferencialmente com apoio de
texto impresso, para a condução do teste:
190 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
(1ª) Preencha as lacunas com uma única palavra. Palavras com pronomes
oblíquos átonos pospostos (por exemplo: dizê-la) contam como uma única
palavra.
(2ª) Preencha as lacunas linearmente, conforme for sendo feita a segunda
leitura. Caso uma palavra ou trecho demande mais de uma leitura, assinale
a passagem por esta palavra ou trecho com um traço horizontal sobre eles.
Exemplo:
__________
_______________
“Palavras com pronomes oblíquos átonos pospostos (por exemplo: dizê-
la) contam como uma única palavra.”
Nesse caso, verifica-se que o leitor releu ‘átonos pospostos’ duas vezes e
‘pospostos’ três vezes.
(4ª) Após ter preenchido todas as lacunas, reavalie as escolhas feitas
anteriormente.
(5ª) Se houver alterações, não apague a escolha anterior, apenas coloque a
nova palavra acima da anterior, sejam quantas forem as alterações.
(4) Finda essa etapa, o Texto A deve permanecer com o aprendiz, mas sem a
possibilidade de consulta.
(5) Entregar o Texto B e estabelecer o tempo máximo para essa atividade.
(6) Essa versão (Texto B) será preenchida novamente, sendo o aluno instruído
a lembrar da primeira experiência de leitura e redobrar a atenção. No caso
de observar algum elemento dissonante, este deve ser sublinhado.
(7) Após passar por essas duas atividades com os Textos A e B, o aprendiz é
instruído a relatar, por escrito, sucintamente, o processo de construção do
sentido dos textos, levando em consideração: (a) suas dificuldades tanto de
leitura, quanto de realização do teste em si; (b) comentar algumas das
escolhas mais problemáticas, justificando-as; (c) identificar elementos do
texto que possam parecer-lhe dissonantes ou diferentes da primeira versão.
O aprendiz pode consultar ambas as versões, mas não pode promover
alterações. Caso desperte o interesse de alterar escolhas, deve apresentá-las
no relato. Esse relato pode ser na forma de uma lista ou de um texto, num
nível mais formal de estruturação dependendo do tempo disponível para a
atividade.
(8) Somente neste ponto é possível realizar um intervalo. Esse intervalo,
dependendo da situação de ensino, pode ser de vários dias. É opção do
professor recolher o material trabalhado ou deixá-lo com os alunos até a
retomada das atividades. De qualquer modo, havendo um intervalo, na
retomada das atividades será necessária uma revisão de todo o processo
vivenciado na etapa anterior. Em seguida, é entregue uma cópia do Texto-
Base, bem como os Textos A e B por eles preenchidos, para que analisem,
comparem as escolhas e completem seu relato.
(9) É-lhes entregue a versão do texto completa para que cada aluno analise e
compare as escolhas feitas, completando seu relato. De qualquer modo,
Vários tipos de julgamentos (EOL, JOL, FOK), além do fenômeno TOT, estão
presentes ao longo de todo o procedimento com Teste Cloze. Apenas a partir dos relatos
apresentados pelos aprendizes seria possível analisar quais julgamentos, por hipótese,
poderiam ter surgidos, em diferentes momentos da atividade. Deve ficar claro que o
aprendiz, quando julga seu desempenho, está formulando hipóteses com graus variados
de confiança. Desse modo, a avaliação feita pelo professor constitui-se de hipóteses
baseadas em hipóteses que surgem do output (reportado) oferecido pelo aprendiz.
Nossa proposta, mais de caráter ilustrativo, visa oferecer um caminho para o
desenvolvimento conjunto de habilidades cognitivas e metacognitivas, com ênfase no
desenvolvimento do conhecimento metacognitivo.
De acordo com Rey ([1996], 2002), toda competência é adquirida no contexto de
um conteúdo, e este a acompanha quando usada. Apesar disso, o autor, como cientista
da educação, discute a possibilidade de uma competência transversal, aquele tipo de
competência que pudesse atravessar os limites de uma área específica de aprendizagem.
A ideia é que através de uma competência transversal se pudesse resolver o problema da
transferência na aprendizagem.
O autor afirma que, no momento em que um professor espera que o aprendiz
transfira o que aprendeu para uma nova situação, esse professor deve ter detectado
elementos comuns – homologias – entre tais situações. Essa homologia, entretanto, é
observada por ele que bem conhece os objetos, as estruturas, os processos (lógicos,
analógicos, etc.), problemas que ligam as duas situações. O aprendiz, ao contrário, “não
percebe essa homologia; de toda maneira, se vier a percebê-la, isso só acontecerá a
posteriori, ou seja, depois que houver assimilado, separadamente, as duas competências
que apresentam a mesma estrutura”. (p. 169).
192 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
O que o autor quer dizer é que a homologia só se tornará ativa quando for
detectada e tornada consciente, passando a gerar um efeito de sentido. Duas situações
com homologias potenciais não necessariamente serão percebidas da mesma maneira
por sujeitos movidos por projetos ou interesses diferentes. Rey esclarece, com relação
ao aprendiz, que
é preciso que diferentes indicações ou incitações o levem a tomar consciência
do isomorfismo entre os problemas. Portanto, não é a identidade de estrutura
que se imporia para o sujeito e que, por sua vez, deslancharia na utilização de
um procedimento, tal como aconteceria com um estímulo. O sujeito que (sic)
poderá, segundo as circunstâncias, prestar ou não atenção a essa
particularidade dos objetos ideais que se lhe apresentam. O fato de ele tomar
consciência é que será decisivo, e não a identidade de estrutura em si. (2002,
p. 170).
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Caxias do Sul: Educs; Porto Alegre, Edipucrs, 2001. p. 155-174.
194 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
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1992. p. 17-42.
STERNBERG, Robert. Psicologia cognitiva. Porto Alegre: ArtMed, 2000.
1 Introdução
Tomamos, neste estudo, as noções de relação de Charlot (1997), das relações com
os saberes, segundo as quais a pessoa a quem nos dirigimos, neste estudo as mães, está
inserida numa relação plena de sentimentos, de afeição e de cumplicidade com seu filho
enfermo. Valorizando seu cotidiano, este estudo se engajou fortemente em suas
memórias, suas histórias e suas aprendizagens. A presença da doença nas conversas
provocava espontaneamente reflexões sobre sua história de vida. Ligadas ao testemunho
das mães, surgem as aprendizagens diversas que o momento representa; uma aquisição
de um novo léxico e de novas noções, vivenciadas a partir do novo cotidiano.
Filósofo do “eu”, Descartes se expõe em evidência de sua história com a intenção
de chegar a um conhecimento que passe além da intencionalidade das vivências e se
196 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
firme no conhecimento da segurança, o que Marton (2004) denominou autobiografia
intelectual. Para Reitman (1970), toda forma de representação da memória se constitui
num exercício triplo, que abrange 1) o uso de evidências introspectivas como guia; 2)
uso da reencenação interna construtiva, para a representação verbal e 3) uso de um
sistema de reações operacionais complexas que exige um sistema geral de estratégia. O
autor questiona se qualquer processo unitário de busca, com um único conjunto de
características e de relações input-output, seria suficiente e capaz de abranger todo o
processo de recordar. Eysenck e Keane (1994) afirmam que existem dois tipos de
memória: a de recordação e a de reconhecimento. Os autores argumentam que é a
relevância do que se aprende o fator determinante para a retenção da memória. Se
considerarmos essa explicação plausível, é aceitável intuir que podem ser encontradas
evidências de uma mediação no contato médico-mãe. Engelman (2004) defende que a
“sensibilidade é a faculdade das intuições”. Mas para o conhecimento e a formação de
conceitos, é necessário o entendimento de onde provêm os conceitos que são, também,
puros ou empíricos. Para a autora,
Para dar conta dessa intuição, ao descrever e/ou explicar detalhes sobre a doença
do filho, a mãe parece basear-se tanto em modelos de compreensão fundamentados
exclusivamente na decodificação, como também em modelos baseados exclusivamente
em inferências. Esses dois modelos de memória se configuram complexamente na
relação, no reconhecimento e na intuição. Ao mesmo tempo em que está imbuída de
sentimento de proteção, a mãe força seu intelecto para essa nova maneira de ver seu
filho. Engelman (2004) argumenta que a distinção entre intuição e conceito reside no
fato de que a intuição se fundamenta na dicotomia imediatez-singularidade e o conceito
em mediatez-universalidade. Conforme Kant (1996), “construir um conceito significa
apresentar a priori a intuição que lhe corresponde”.
Para Nelson (1998), a base da aprendizagem da criança é sua própria experiência
de mundo. Pela experiência a criança, e aqui por extensão o adulto, constrói
representações a partir de princípios implícitos ao sistema cognitivo humano. A autora
traz à tona a tese de que a criança dá relevância aos fatos dos quais ela participou, sejam
experiências positivas, sejam negativas. Para a autora, o estado de conhecimento da
criança depende inexoravelmente de suas experiências anteriores. Nelson argumenta
que existem “representações de modelos mentais – REMs” que se organizam, no
decorrer do desenvolvimento biológico da criança, como um construto de um modelo de
mundo. Consideramos, por essa perspectiva, que os modelos criados pela criança, neste
estudo adaptado ao adulto, definirão sua postura diante de novas aquisições, num
198 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
noções significativas do que Nietzsche, citado por Milon et al. (2006), chamou de palco,
não de sujeito. O sujeito que vive uma história não é o sujeito que a conta, mas o
cenário cognitivo do sujeito que verbaliza essa história com a qual ele entra em relação.
Contrariamente ao que Marton (2004) propõe como distanciamento do adulto em
relação à criança, a relação entrevista no quadro hospitalar é constituída de um misto de
angústia e de submissão das mães. Essa submissão se aproxima mesmo da doença, em
que a vítima e o algoz estão na mesma pessoa, esse filho e esse corpo que se desfaz. O
testemunho dessas mulheres assíduas ao lado do filho doente é um discurso patológico,
no sentido duplo da palavra, ao mesmo tempo de dor e amor. Juntam-se a esses fatores o
paradoxo das lacunas, o esquecimento de fatos e a aprendizagem de novas estruturas,
como se elas estivessem em uma vaga infinita de ternura e aniquilamento.
As lacunas percebidas em seus testemunhos estão possivelmente ligadas ao que
Anna Freud (1968) chamou de desarmonia. Cyrulnik (1999) nos afirma que quando o
dito não é fácil, o para-dito se expressa, mas com frequência as testemunhas fecham os
olhos e tapam os ouvidos. Tomando esse viés, podemos compreender a afirmação do
autor, de acordo com a maneira como se veem as mães, em que elas não reconhecem,
salvo instintivamente, as aprendizagens adquiridas ao longo do tratamento. É uma nova
história inserida na história anterior que se estabelece; o que significa, provavelmente,
fechar os olhos, dizer sem ter conhecido a priori as palavras, sem reconhecer os ditos,
haja vista que o inexprimível, segundo o autor, sombreia a consciência da
aprendizagem.
O grande paradoxo da questão se funda sobre a necessidade de apreender a rotina
do tratamento e, em consequência, tentar dissimular um conhecimento sobre o assunto,
fechar os olhos mais uma vez, como quem revela não querer saber sobre a realidade,
esquecer a gravidade do problema e ao mesmo tempo dominar os fatos. A implicação se
põe no universo do “insu”, não pensar para tentar fazer desaparecer o que se sabe já.
Quanto mais vivência essa mãe acumula da rotina do filho, mais ela conhece sobre a
doença, muitas vezes refletindo no conhecimento sobre a agressividade da doença.
Paradoxalmente, elas vivem o desafio de ter de saber e não querer saber, como se não
houvesse nada a saber. E, no entanto, elas aprendem muito sobre a nova condição do
filho, sobre a doença propriamente dita e sobre o tratamento oferecido. Aqui retomamos
a tese de Nelson sobre a aquisição pela experiência. A mãe em processo de sofrimento e
dor vai buscar, no conhecimento sobre a doença, uma força sobre-humana; é talvez essa
a razão para que essa mãe não consiga facilmente abstrair o conhecimento que detém,
pela representação que a doença impera sobre seu cotidiano. Muitas de suas respostas
são um misto de generalizações e especificidades, que pode significar o não
reconhecimento do saber adquirido.
Um hospital não é um lugar desprovido de significações. Nenhum lugar é vazio de
sentido. Cada lugar apresenta uma representação especial, segundo os eventos que o
englobam. O ambiente hospitalar comporta notadamente uma representação
suplementar de tristeza. A pessoa se dirige ao hospital para se tratar, o que deduz a
1
Algumas mães costumavam dizer sentir dores no útero quando o filho estava muito mal. Essa foi a razão para o
neologismo.
200 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
Em contrapartida, diante do filho moribundo, não é raro ver a mãe pedir a Deus
que o leve logo, que acabe com aquele sofrimento. Solicitar a morte do filho é um
desejo que aparece em seu discurso e que pode tocar a “pulsão de morte” freudiana, mas
é ao mesmo tempo um paradoxo do medo do desconhecido. São esses conhecimentos
emergentes que permitem compreender e interpretar, pelo menos superficialmente, a
justificativa dessas mães em sofrimento e em autossuperação. Une-se a isso o fato de
com frequência elas afirmarem não saber o que fazer pelo filho, ou, ainda, dizerem que
nada podem fazer. Entre o nada poder fazer e o não saber o que fazer, surgem
conhecimentos adquiridos durante todo o processo.
O que sempre está presente nos discursos das mães é a demonstração da perda,
esta divisão do corpo do filho que lhe sai do controle, reacendendo o desejo da gravidez
às avessas já tratada aqui. Isso fica claro em algumas declarações das mães. Sua fala
toma o viés do plural rapidamente. O “ele” relativo ao filho torna-se um “nós”
absolutamente engajado de forças de participação no tratamento, como no depoimento
“Quando a leucopenia atacava, nós corríamos para o hospital e sofríamos o que
tínhamos de sofrer.”
Os discursos não são mais separados dos de seu filho. Cada vez mais a intimidade
do cuidado a aproxima desse filho promovendo uma identidade corpórea que reencena a
gravidez. Essas informações só são possíveis de se compreender, graças ao arcabouço
cultural que nos indica o papel social da maternidade. Então, quando uma mãe afirma
não poder fazer nada por seu filho doente, o sofrimento que se percebe é resultante do
conhecimento cultural de mãe. Em outras palavras, existe claramente a sensação de
nada poder fazer pelo filho nesse momento difícil. Nada poder fazer pelo filho doente é
uma manifestação verbal de desespero. Esse “nada” muitas vezes enunciado toma uma
concepção ambígua. Nesse contexto, todas as palavras e expressões que surgem em
nossas conversas são carregadas de significados, pelo sentimento, pela dor, pela
incerteza da realidade. Essas construções implicam sentidos e crenças diversas. Percebe-
se na palavra NADA, tão repetida, tão recorrente, um termo que espera um significado.
E em seguida o silêncio se torna o recuo diante da verdade.
A questão que emerge toca as crenças e toda a simbologia da situação. Quando
enuncia que “nada” pode fazer pelo filho, essa mãe põe em evidência uma negativa do
nada que pode ser lido como “eu posso fazer alguma coisa, mas não sei o quê”. Dessa
forma, entendemos que nada é alguma coisa, mas alguma coisa desconhecida, o que não
se sabe, que passa além do entendimento, formando um vazio pessoal que ganha grande
espaço na linguagem agora utilizada. Mesmo quando a relação estreita não mais existe,
a relação primeira está presente, marcada pela gravidez, pelo nascimento, pela
maternidade inevitável de uma mãe. É por esta razão que esse “alguma coisa” se abre
sobre as maneiras de aprender dessas mães feridas, dilaceradas pela doença do filho,
pelo medo da perda.
Elas sabem sobre a doença do filho, às vezes sem o saber, sem terem aprendido
conscientemente; elas conhecem sem nunca terem visto de maneira formal, mas não
202 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
mãe se põe entre o filho e a doença, polarizando a relação, e investe num mundo que é,
para ela, um espaço de significações. A esse respeito, Charlot (1997, p. 62) defende que
a relação com o conhecimento é um conjunto de relações que um sujeito entretém com
um objeto, um “conteúdo de pensamentos e ideias”, uma relação interpessoal com o
mundo. Daí a aquisição de conhecimentos sobre a doença do filho, pela relevância que
essa relação mantém com a mãe de criança doente. Essa ideia pode, por inferência ou
pressuposição, parecer lógica em função da necessidade do cuidar, logo que as mães
afirmam que a casa, os outros membros da família podem esperar que “a história se
termine”. Como não há nesse estudo intenção de trabalhar conceitos de morte e doença
com as mães, compreendemos que a expressão “história se termine” é uma marca da
relevância e da prioridade que a mãe concede agora a seu filho. Não se pode garantir
que “termine” signifique morte ou cura. A mãe apenas, como era de se esperar, deseja o
retorno do filho à vida normal, igual à de qualquer criança de sua idade.
Para Rumelhart e Ortony (1997), as inferências ocorrem de maneira espontânea,
buscando a compreensão do que se passa ao redor ou no texto que se expõe. Assim, as
mães, embora não cientes de fazê-lo, aceitam de maneira inconteste o tratamento por
compreenderem por pressuposição que o médico é o cuidador mais preparado. Essa
pressuposição é social, baseada em evidências ou experiências de outras pessoas ou dela
própria, constituindo-se o arcabouço da memória social e histórica que a fará: seguir a
rotina médica; apreender cuidados antes nunca desenvolvidos; desenvolver habilidades
fundamentalmente médicas e obedecer aos esquemas de participação do cuidador
familiar no tratamento do paciente.
Na experiência hospitalar, as mães têm um ganho cognitivo surpreendente no que
diz respeito notadamente ao vocabulário. Para Eysenck e Keane (1994, p. 294), a
aquisição do léxico apreendido por uma criança ou por um adulto se realiza “ao usar
informações contextuais para traçar inferências plausíveis sobre o significado de uma
palavra desconhecida”. Também podemos retornar aqui ao conceito de relevância do
assunto como fator incentivador da aquisição. Como a mãe necessita fornecer
essencialmente uma proteção ao seu filho, ela organizará seu pensamento de maneira a
compreender o que se passa em seu entorno, tomar consciência dos riscos e dos fatores
de proteção e assim ter em mãos a situação pela qual passa no momento. Isso se
configura muitas vezes, em relação à família, como uma superioridade. A mãe, como
dominadora do conhecimento sobre o estado e sobre o tratamento de seu filho, terá um
estatuto superior diante da situação. Sem exorbitâncias de orgulho ou pretensões de
status, no meio em que vive, a mãe adquire o maior contingente de conhecimentos
possíveis sobre a doença do filho, a fim de acompanhar intimamente o que se passa com
ele.
204 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
mães no mesmo ambiente. Nas enfermarias, nos corredores e durante a pesquisa,
informações eram constantemente trocadas entre elas. Percebe-se uma relação
fortemente afetivizada e estimulada pelo desejo de compreender o que se passa com o
filho, os motivos para o pedido de exames, o porquê de prescrições e a explicação dos
resultados, com esclarecimentos sobre os passos seguintes. Entre as mães participantes
deste estudo, muitas concordavam em dizer que nenhum medicamento era administrado
ao filho sem que ficassem sabendo antes do que se tratava.
Fica claro, nesse sentido, que não se trata de um interesse de aprender como
processo de aprendizagem formal ou para uma formação, mas de um interesse de
aprender como proteção ao filho em sofrimento. Na verdade, trata-se de uma
aprendizagem inconsciente ou intuitiva, quase instintiva, mas, em todo caso, uma
aprendizagem movida e estimulada pela emoção e justificada pelo quase sempre
inquestionado amor materno.
Aprender nesse ambiente significa poder proteger o filho de uma possível piora,
do mal maior, sobretudo porque a criança já tem sofrimento suficiente. Tangenciamos
de modo singular, neste instante, a relação com os saberes dessas mães. Essa relação,
aparentemente esquecida no sentido de escolarização, põe-se em evidência no sentido
de afetividade. Segundo Charlot (1997, p. 68), a aquisição de saberes permite maior
segurança, uma certa mestria do mundo no qual se vive. Se essa mulher vive esta
realidade dolorosa com algum filho, é natural que ela procure saber o que se passa nesse
mundo e que se coloque em relação com os detalhes que dizem respeito a esse mundo.
Essa realidade abrange muito mais que a aquisição de um léxico específico, abrange
também uma realidade que leva em conta aspectos linguísticos, sociais e cognitivos.
Isso se faz presente, sobretudo, porque o entendimento desse mundo específico implica
a conquista da possibilidade de levar o hospital para sua casa, atendendo a todos seus
contratos, o tratamento, logo que o filho pode ficar em casa. Tendo em vista que
conhecem bem os efeitos das drogas administradas aos filhos, a mãe se sente muito
mais segura após a vivência hospitalar que teve e após ter feito contato com médicos e
cuidadores do hospital, que lhe explicaram sobre a doença, sobre o tratamento e sobre
os riscos sofridos pelo filho.
R. Hess (1994), citado por Charlot (1997, p.79), nos apresenta a aprendizagem por
situações de aprendizagens que dizem respeito ao espaço, ao momento, ao entorno, mas
também à necessidade e ao objetivo. Aprendemos o quê e pra ter que domínio? Assim
se dá a relação epistêmica da aprendizagem. É a epistemologia da necessidade, a força
que leva à e ajuda na aquisição de saberes até então insignificantes e agora plenos de
sentido. A relação ao saber se torna nesse contexto a representação social do saber sobre
a doença e sobre o filho, como se saber sobre um fosse saber sobre o outro. É a mãe
talvez a primeira a construir, a representar seu filho como doente, sem se dar conta da
representação negativa que faz daquele a quem ela tanto ama e de quem cuida
integralmente.
4 Reflexões finais
206 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
atribui a essa mãe um acréscimo que ela não intui como aprendizagem. O incremento de
seu léxico é marcado por um novo registro do qual ela se nutre, como fator de
segurança, na tentativa de compreensão do momento em que vive e enfrenta as
adversidades. Não visto como aprendizagem, entretanto, elas assumem que realmente
tiveram a necessidade de enfrentar um novo mundo de palavras até então estranhas ao
seu cotidiano. É interessante notar que esse novo mundo de palavras traz consigo uma
nova experiência semântica para essas mães que cuidam de filhos, e não somente uma
experiência lexical. Cada palavra, que envolve o estado de saúde do filho, será
representante de uma nova realidade que essa mãe deverá dominar dia a dia.
Os conhecimentos advindos das consultas com o médico, durante o período de
tratamento, mais as informações adquiridas durante os períodos de hospitalização,
formam o conjunto de aprendizagens das mães sobre a doença de seu filho. Com
frequência, elas não têm uma experiência anterior do assunto. Tudo lhes parece novo,
inclusive as fragilidades do filho, pelo qual ela será muito mais que antes responsável.
As aquisições não serão contadas por essas mulheres como novos conhecimentos
desenvolvidos nesse momento de difícil prática da maternidade. Seus discursos são
modestos e excluem os ganhos de conhecimentos que elas têm no hospital. Os
procedimentos de tratamento são aprendidos sem que elas se deem conta da gama de
informações que dominam e sobre as quais elas fazem reflexões constantes. Essas mães
vivem uma realidade de renovação de sua expressividade e de sua relação com o filho.
Esse filho muda de aparência e de necessidades, filho as quais essas mães vão conhecer
e descrever de outra maneira, mais dolorida e mais cruel.
Referências
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CYRULNIK, B. Un merveilleux malheur. Paris: O. Jacob, 1999.
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EYSENCK, M. W.; KEANE, M. T. Psicologia cognitiva: um manual introdutório. Trad. de Wagner
Gesser e Maria Helena Fenalti Gesser. Porto alegre: Artes Médicas, 1994.
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MARTON, S. A recusável busca de sentido: autobiografia intelectual. São Paulo: Ateliê, 2004.
208 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
12
COGNIÇÃO E GÊNERO TEXTUAL
Adair Bonini (UFSC)
1 Introdução
A relação entre gênero textual e cognição pode ser entendida antes de tudo como
conhecimento e linguagem imersos na prática social. Como componente eminentemente
social, o gênero desestabiliza as teorias tradicionais da cognição, enriquece esse debate,
mas também lhe impõe problemas teóricos e metodológicos, que ainda estão longe de
ser resolvidos.
Para os que aceitam as críticas endereçadas ao cognitivismo clássico, o
surgimento da noção de gênero tornou-se um modo privilegiado de repensar explicações
até então bastante estáveis e aceitas entre os pesquisadores da cognição e da linguagem.
Nesse contexto de discussão estabelecido mais recentemente, então, os estudiosos
procuram formular novas respostas para questões antigas, tais como: o que é leitura? O
que é escritura? O que é conhecimento?
Neste capítulo, procuro realizar um balanço teórico e metodológico da relação
entre gênero e cognição. Nesse sentido, primeiramente, vou delinear um panorama
histórico e teórico da relação entre gênero e cognição e, em seguida, apresentar e
defender a existência de duas linhas de trabalho dentro do que se tem convencionado
chamar de sociogonitivismo: uma perspectiva externa e outra interna.
2 Gênero e cognição
1
Um paradigma teórico é uma explicação abrangente de um determinado objeto, de modo que estabelece as bases
ontológicas e metodológicas para se abordar tal objeto. Por ser abrangente, serve como diretriz (paradigma) para a
construção de muitas outras teorias.
210 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
entendido como decorrente da imersão bem-sucedida de um indivíduo em um mundo de
significados preexistentes.
A segunda explicação alternativa para a cognição pode ser chamada de dinamista,
uma vez que se baseia na hipótese dinâmica da mente. Segundo essa abordagem,
proposta por estadunidenses e outros pesquisadores aliados a esse grupo (VAN GELDER,
1997), a mente não é computacional (regida por regras simbólicas, de caráter universal e
independentes do meio), mas dinâmica (regida pelas relações dinâmicas estabelecidas
entre ela como sistema e os demais sistemas aos quais está acoplada e dos quais
depende). Os estados cognitivos pertencem a um indivíduo, visto como sistema, e têm
sua estabilidade, sempre relativa, dependente da estabilidade da relação que o indivíduo
mantém com outros sistemas.
A explicação dinâmica, a meu ver, é extremamente parecida com a explicação
enatista. Existe aí, ao que parece, apenas uma divergência de nomeação.
A terceira explicação é a sociocognitivista (KOCH; CUNHA-LIMA, 2004), e deve ser
vista como “alternativa” entre aspas. Esse termo tem aparecido constantemente na
literatura mais recente sobre cognição, mas é ainda pouco claro em todos os sentidos,
uma vez que não delimita bem seu campo e não apresenta um programa de pesquisas
definido. Parece representar uma aceitação das teses enatistas e dinamistas (mente
encorporada, cognição situada, criatividade), mas sem abandonar a explicação
cognitivista de mente (a computação simbólica). A cognição é explicada como sendo o
resultado da relação do indivíduo com o seu meio social, mas é representada por meio
das tradicionais teorias cognitivistas (esquemas, modelos mentais, frames, etc.). O olhar
sobre a cognição é, ao mesmo tempo, externo e interno, enquanto no enatismo e no
dinamismo é sempre interno.
O gênero, como componente de linguagem eminentemente ligado à ação humana
situada socialmente, não alcança uma explicação adequada nos paradigmas tradicionais
(cognitivismo e conexionismo), nos quais o conhecimento resulta da programação
realizada por um agente externo. Ele necessita de uma explicação que considere a
existência de estados intencionais situados, o que se viabiliza por qualquer uma das três
explicações alternativas de cognição, mas, como veremos mais adiante, com maior
facilidade pelo sociocognitivismo, uma vez que ele não abandona a noção de
representação.
Para uma melhor contextualização do modo como o gênero pode ser visto como
um componente da cognição, passo a considerar a sua entrada nesse debate, ocorrida
ainda durante o período de hegemonia do cognitivismo.
2.1 Cognitivismo
No cognitivismo, a organização mental é investigada através de modelos teóricos
que descrevem, de antemão, os componentes representacionais e os processos que
atuam sobre tais componentes. Esses modelos são estruturados, em geral, como
fluxogramas de processos relacionados a uma determinada atividade mental. A pesquisa
2
Em seu histórico do estudo dos gêneros textuais, Bhatia (2004) visualiza três períodos, sendo eles: 1) o da
textualização (centrado no estudo da tessitura linguística do texto), 2) o da organização (que privilegia o estudo dos
padrões de organização social do discurso) e 3) o da contextualização (que enfatiza elementos como a ideologia).
Bhatia, em termos desse quadro, localiza o trabalho de Van Dijk na fronteira entre a fase da textualização e a da
organização, e o descreve como indo “da textualização ao texto e ao discurso”.
212 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
diferenciar este esquema formal (relativo a uma forma da linguagem) do esquema de
conteúdo (referente a um tópico qualquer), van Dijk o denomina superestrutura textual
(em oposição às micro e macroestruturas, que são os níveis do processamento). O
gênero como componente cognitivo equivaleria, desse modo, à superestrutura.
Precisamos ter em conta, contudo, que seria uma visão de gênero centrada apenas na
organização textual, quando, na atualidade, os autores (entre eles, BAKHTIN, 1953;
MAINGUENEAU, 1998; SWALES, 1990) enumeram uma série de outros elementos que
contam como componentes do gênero: o suporte, o estilo, o assunto, o propósito, os
enunciadores típicos, etc.
Na explicação de Van Dijk (1978, 1990, 1992), o conhecimento sobre a
organização do texto seria uma estrutura cognitiva composta e estruturada pelas partes
características de um gênero em questão. No caso do gênero notícia, o esquema teria as
seguintes categorias [cf: Fig. 1]: 1) manchete; 2) lead; 3) evento principal; 4) contexto
do evento; 5) eventos anteriores relacionados; 6) consequências/reações ao evento; 7)
expectativa do repórter quanto aos próximos eventos e 8) avaliação do repórter em
relação ao evento.
DISCURSO DA NOTÍCIA
Circunstâncias História
3
É interessante notar que a descrição da organização de um texto não implica, automaticamente, a descrição do
conhecimento posto em marcha para se produzir aquele texto.
214 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
corpo e o pé do texto. As demais categorias textuais apontadas por Van Dijk (1990,
1992) ou não são citadas ou são citadas de modo acidental (em poucas ocorrências).
Ainda, assim, podemos ver nos dados do experimento que a organização do texto
tem alguma função em sua caracterização como gênero, como se pode verificar no
exemplo 2, em que se teve como estímulo um texto misto de notícia e editorial:
(2) É um comentário, uma opinião a respeito de uma notícia. O início
dele (né?), o primeiro parágrafo e o segundo, poderia ser só uma
notícia. A partir daí, então, se percebe que é um comentário a
respeito de um acontecimento (né?), que pode ser um comentário
falado (né?), ou escrito em forma de opinião e tal. É um comentário.
(sujeito 1, etapa 2)
Os resultados demonstram, em segundo lugar, que as estruturas reconhecidas,
ligadas à notícia, estão sempre em uma relação direta com a tarefa (a prática social) em
que este gênero está inserido. É o que se pode visualizar nestes exemplos 3 e 4, nos
quais pedi para que os sujeitos verbalizassem o processo de produção da notícia:
(3) 1. determinar o assunto que se vai cobrir; 2. averiguar os dados que
determinaram aquele acontecimento (respondendo às questões básicas
da notícia); 3. checar a veracidade dos dados (junto a fontes oficiais);
4. hierarquizar os dados (o que é mais importante, o que tem de
diferente na história); 5. escrever o texto. (sujeito 5)
4
O sujeito faz essa ressalva, pois geralmente a determinação da pauta não é uma tarefa do jornalista.
2.2 Sociocognitivismo
O sociocognitivismo, como já disse antes, não é explicado de modo consistente
entre os vários teóricos que tratam do tema. (HUTCHINS, 1993; CONDOR; ANTAKI, 1997;
KOCH; CUNHA-LIMA, 2004). Em geral, esses autores mantêm as teorias clássicas da
cognição (dos esquemas, dos modelos mentais, das memórias de curto e longo prazo,
etc.), de modo que se pode ver aí uma manutenção da explicação representacionista da
mente, mas de uma forma situada. Embora mantenham as mesmas teorias, esses autores
abrem mão do rigor experimental em situação controlada, optando pela observação do
comportamento em ambientes sociais específicos. Isso pode ser percebido no trabalho
de Hutchins (1993, p. 62), quando ele afirma: “Os sistemas de cognição social
distribuída, a exemplo da equipe de navegação [de um navio], me parecem excelentes
unidades de análise cognitiva em seu justo sentido, e o entendimento da operação de tais
sistemas é em grande medida uma questão mais de observação do que de inferência.”
Esse exemplo de Hutchins (1993), sobre a condução de um navio pela sua
tripulação, pode ser visto como clássico dentro dos debates sobre o sociocognitivismo.5
Nesse caso, embora todos realizem uma mesma atividade geral, as tarefas e os
conhecimentos são distribuídos. Nenhum dos participantes sabe realizar todas as tarefas,
embora todos tenham a noção do geral. O conhecimento é visto, desse modo, como
parte de um processo social que, no caso da metáfora da navegação, pode ser
especificado da seguinte forma, conforme apontam Dias, Freedman, Medway e Paré
(1999, p. 138-140):
5
Esse exemplo é retomado e aprofundado em Hutchins (1995).
216 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
1) a atividade de navegação segue um objetivo geral que é o de alcançar uma
determinada localização geográfica;
2) existe uma pessoa no comando (o capitão) que assume a responsabilidade pelo
todo da tarefa;
3) há uma sobreposição de conhecimentos entre os participantes, de modo que a
mesma informação é interpretada de modo diverso por diferentes grupos e com
finalidades diversas;
4) a condução da atividade (a navegação do navio) envolve diretrizes e cálculos
realizados mediante cartas, mapas, etc.; e
5) existem variáveis externas que influem no processo, como, por exemplo, a
presença de um outro navio na mesma rota.
Esses autores utilizam tais características, de modo comparativo, para pensar a
forma como a cognição se distribui em uma outra organização: o Bank of Canada (o
banco central daquele país). Para eles, assim como a navegação de um navio, a
atividade no Bank of Canada apresenta: 1) uma meta a atingir (controlar a inflação); 2)
uma pessoa no comando (o diretor); 3) sobreposição de conhecimento entre os vários
grupos (setores do banco); 4) cálculos de direção (mediante mapas estatísticos,
previsões, etc.); e 5) variáveis externas (o comportamento dos outros bancos centrais e
de outros mercados). Cada grupo, caracterizado hierarquicamente, realiza tarefas
mediante um ou vários gêneros. Os documentos de um nível hierárquico servem de base
para a produção de documentos em outro nível mais elevado.
Os autores também utilizam essa ideia de uma cognição distribuída para
caracterizar o modo como o aluno se enquadra na atividade universitária. Segundo eles,
o estudante não toma parte no fluxo das atividades de condução da universidade, de
modo que ele apresenta conhecimento compartilhado em relação ao professor, mas não
distribuído. Eles comparam, então, ambas as instituições, ao que afirmam: “O
‘conhecer/conhecimento’ dos estudantes, e seu ‘aprender/aprendizado’, é medido na
universidade, assim como as vendas de automóveis são calculadas no Bank of Canada.”
(p. 150). Ou seja, o estudante e seu aprendizado, nesta interpretação, são a meta da
universidade vista como sistema de cognição distribuída.
O sociocognitivismo é uma alternativa bastante plausível para o estudo da
cognição, uma vez que observa o conhecimento de modo situado e em evolução. Não se
pode dizer, contudo, que a cognição esteja sendo considerada em sentido estrito, pois o
conhecimento é visto de modo tanto externo quanto interno ao indivíduo, mas tendendo
a uma explicação externa. É como se fosse uma sociologia da cognição.
Em termos dos estudos da linguagem, as teorias linguísticas deixam de ser vistas
como janelas para o estudo da mente. As pesquisas passam a focalizar o modo como os
atores sociais agem pela linguagem e que tipo de conhecimento é compartilhado na
realização de uma tarefa. Parece, nesse caso, que a explicação da linguagem é
privilegiada em relação à explicação da mente. Ou seja, nessa perspectiva, os conceitos
da área da cognição são selecionados para ajudar na explicação da linguagem, em
218 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
Embora seja possível a investigação dos sistemas dinâmicos através da
utilização de modelos matemáticos, por exemplo na área da física e da
biologia [...], no âmbito da psicologia os conceitos provenientes desta
perspectiva têm sido utilizados, na maioria dos casos, de forma analógica,
ou metafórica [...]. (1999, grifos das autoras).
Do modo como estão aqui sendo propostas, embora atuando sobre o mesmo
objeto, as duas formas de sociocognitivismo variam tanto no foco quanto na
metodologia empregada. Diferentemente do sociocognitivismo externalista, que
centraliza sua atenção no grupo social, o internalista centra-se no indivíduo como forma
de observar a relação complexa entre cognição e sociedade. Em termos metodológicos,
enquanto o sociocognitivismo externalista prevê uma pesquisa de caráter mais
etnográfico e participativo, o internalista pode manter certos métodos do cognitivismo,
notadamente a técnica do protocolo verbal.6
Passo a seguir, a uma exemplificação de pesquisas que podem ser enquadradas
nestas duas perspectivas.
6
O protocolo verbal é uma técnica introspectiva de coleta de dados, mediante a qual o sujeito verbaliza o que está
passando em sua mente durante a realização de determinada tarefa (leitura, produção textual, etc.).
220 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
método qualitativo de orientação etnográfica. Há uma mudança notável no modo como
o conhecimento é concebido, com resultados de grande relevância para o entendimento
tanto da aprendizagem quanto dos processos envolvidos na leitura e na escrita. Essa
perspectiva abre toda uma linha de trabalhos que possibilitam um entendimento bastante
aprofundado do funcionamento social da linguagem, como é o caso da pesquisa de
Spinuzzi (2003) sobre os gêneros e as práticas envolvidos no sistema de monitoramento
de acidentes de trânsito no Estado de Iowa (EUA). Resultados como esses somam-se ao
debate sobre a cognição, contudo, se considerados por um outro prisma e sem que sejam
desmerecidos, são menos efetivos quando se tem em conta a estruturação de uma teoria
da mente humana.
7
Dissertação realizada sob minha orientação.
222 Ana Cristina Pelosi, Heloísa Pedroso de Moraes Feltes e Emilia Maria Peixoto Farias
4 Considerações finais
Em seu artigo sobre metodologia de estudos dos gêneros, Paré e Smart (1994, p.
146) propõem que sejam considerados quatro focos de atenção: 1) um conjunto de
textos; 2) os processos de composição envolvidos na criação destes textos; 3) as práticas
de leitura usadas para interpretá-los; e 4) os papéis sociais desempenhados por escritores
e leitores. O estudo sociocognitivista dos gêneros – tanto na perspectiva interna quanto
na externa – envolve sempre, a meu ver, o conhecimento sobre o gênero (itens 1 e 4) e
os processos de produção (item 2) e recepção (item 1) que lhe são pertinentes.
Estudar o gênero em uma perspectiva sociocognitivista consiste em ter em conta
que processos como a leitura e a produção textual são sempre relativos aos meios
sociais, aos gêneros e às práticas sociais que ali ocorrem. Desse modo, modelos teóricos
e estratégias cognitivas válidos universalmente, a exemplo de Van Dijk e Kintsch
(1983), passam a ser desconsiderados, o que põe em cena um problema metodológico:
Como generalizar os resultados de tais pesquisas?
Em termos intuitivos, parece-me que esse problema pode ser enfrentado de dois
modos. Em primeiro lugar, os resultados podem ser generalizados em relação a um
determinado problema para o qual a sociedade busca solução. Em se tratando dos
debates sobre gêneros textuais, o problema social focalizado tem sido, geralmente, o
ensino e a aprendizagem de linguagem. Nesse sentido, já existem conjuntos de
conhecimento bem-desenvolvidos – por exemplo, para o ensino da escrita acadêmica –
e esses conjuntos tendem a se ampliar em relação a campos sociais de interesse.
A segunda forma de se buscar generalização para os resultados das pesquisas
nessa linha é quanto à contribuição que possa produzir ao entendimento da mente
humana. Nesse caso, ao invés de se pensar em contribuições para um modelo
explicativo geral, por exemplo, do processo de escritura, pode-se buscar, através desses
estudos, levantar dados sobre o que conta para um acoplamento bem ou malsucedido em
determinado meio social. Talvez se possa desenvolver, desse modo, uma teoria de
mente discursiva, a exemplo do que sugere Bonini (2003).
Referências
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