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RELIGIÃO E POLÍTICA
Análise histórico-crítica das relações de poder entre
o campesinato judaíta e a classe sacerdotal
jerusolimitana no período pós-exílico
Setembro de 2012
VICENTE LUIZ SIMÕES FERREIRA
RELIGIÃO E POLÍTICA
Análise histórico-crítica das relações de poder entre
o campesinato judaíta e a classe sacerdotal
jerusolimitana no período pós-exílico
Setembro de 2012
A tese de doutorado sob o título “RELIGIÃO E POLÍTICA – análise
(Titular/UMESP), Prof. Dr. Paulo Barrera Rivera (Titular/ UMESP), Prof. Dr.
___________________________________________
Prof. Dr. Tércio Machado Siqueira
______________________________________________________
Dedico esta tese a todos os povos que ainda, em pleno século XXI continuam
sendo explorados, manipulados e escravizados pelas classes dominantes.
Que esta tese, juntamente com outras tantas teses, sirvam de motivação para
um profícuo trabalho de libertação e emancipação dessas gentes que também tem o
direito de viverem no aqui e agora da história uma vida nova, com acesso aos bens
fundamentais para que possam gozar desde já de uma plena alegria e felicidade.
SUMÁRIO
Introdução 12
I Parte
1.1 – A Religião 34
1.1.1 – Fase da Religião Pura 41
1.1.2 – Fase da ascensão do Estado 47
1.2 – A Política (O Estado) 72
Capítulo 2 – Sociedades primitivas/selvagens/tribais 76
II Parte
Conclusão 282
Bibliografia 292
FERREIRA, Vicente Luiz Simões, Religião e Política – Análise histórico-crítica das
relações de poder entre o campesinato judaíta e classe sacerdotal jerusolimitana no
período pós-exílico, São Bernardo do Campo, Universidade Metodista de São Paulo,
Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião, Tese de Doutorado, 2012.
Resumo
Summary
Resumen
Suponiendo que el laicismo aboga por una separación radical entre la Iglesia y el
Estado, trato de demostrar esta tesis, un recorte de la historia del judaísmo que estas dos
dimensiones eran profundamente presente en su período de formación inicial. Esta tesis
se constituye como una especie de deconstrucción de la historia tradicional aceptado por
diferentes religiones que usan el Antiguo Testamento como fundamento doctrinal de su
cuerpo.
Há setores que procuram interferir no projeto existencial e social das pessoas. Tentam
substituir o projeto pessoal pelo projeto do sistema vigorante. Temem que o ser humano adote posição
autônoma, e contrarie os interesses do sistema dominante. Sabem que o ser humano por frágil que seja
é “perigoso” *…+ Para sufocar o projeto original autônomo adotam pedagogias massificantes. Procura-se
adaptar as pessoas às normas existentes e levá-las a reproduzir-se como cópias da situação
predominante. Enquadra-se o rebanho humano no código uniformista. Impõe-se à população o
paradigma oficial. E quem diverge do consenso é condenado como herege. Assim o mundo continua a
ser mesmo, dominado pelos mesmos, usado pelos mesmos, usurpado pelos mesmos.
1
Juvenal Arduini
1
Juvenal Arduini, Antropologia: ousar para reinventar a humanidade, 2ª Edição, São Paulo, Paulus,
2002, p.22-23.
O tema desta tese nasceu em resposta a alguns questionamentos que estava
fazendo quando do término do mestrado, pois em verdade, o que move o mundo e a
história, não são tanto as respostas, mas sim as perguntas. Perguntar ou questionar,
como se afirma, é próprio de cada um de nós seres humanos. Faz parte de nossa
essência, de nossa racionalidade ser questionadores, mas não pelo simples fato de
questionar, mas como alguém que está em busca de respostas aos nossos problemas
mais candentes, sejam eles de que ordem for.
2
“Teoria das cordas”: O interesse na teoria das cordas é dirigido pela grande esperança de que ela possa
vir a ser uma teoria de tudo. Ela é uma possível solução do problema da gravitação quântica e,
adicionalmente à gravitação, talvez possa naturalmente descrever as interações similares ao
eletromagnetismo e outras forças da natureza. Trabalhos na teoria das cordas têm levado a avanços na
matemática, principalmente em geometria algébrica. A teoria das cordas tem também levado a novas
descobertas na teoria da supersimetria que poderão ser testadas experimentalmente pelo Grande
Colisor de Hádrons. Os novos princípios matemáticos utilizados nesta teoria permitem aos físicos
afirmar que o nosso universo possui 11 dimensões: 3 espaciais (altura, largura e comprimento), 1
temporal (tempo) e 7 dimensões recurvadas (sendo a estas atribuídas outras propriedades como massa
e carga elétrica, por exemplo), o que explicaria as características das forças fundamentais da natureza.
Texto acessado em 11/08/2012: http://pt.wikipedia.org/wiki/Teoria_das_cordas
3
“Bóson de Higgs” ou “Partícula de Deus” como é conhecida também, é uma partícula elementar
bosônica prevista pelo Modelo Padrão de partículas, teoricamente surgida logo após ao Big Bang de
[2]
escala maciça hipotética predita para validar o modelo padrão atual de partícula . Representa a chave
para explicar a origem da massa das outras partículas elementares. Todas as partículas conhecidas e
previstas são divididas em duas classes: férmions (partículas com spin da metade de um número ímpar)
e bósons (partículas com spin inteiro). O bóson de Higgs foi predito primeiramente em 1964 pelo físico
britânico Peter Higgs, trabalhando as ideias de Philip Anderson. Entretanto, desde então não houve
condições tecnológicas de buscar a possível existência do bóson até o funcionamento do Grande Colisor
de Hádrons (LHC) meados de 2008. A faixa energética de procura do bóson vem se estreitando desde
então e, em dezembro de 2011, limites energéticos se encontram entre as faixas de 116-130 GeV,
segundo a equipe ATLAS, e entre 115 e 127 GeV de acordo com o CMS. Fora da comunidade científica, é
mais conhecida como a partícula de Deus (tradução livre do original God particle, alcunha dada pelo
físico Leon Lederman devido ao fato desta partícula permitir que as demais possuam diferentes massas.
A 4 de Julho de 2012, cientistas do CERN anunciaram que, ao fim de 50 anos de investigação,
descobriram uma partícula nova que pode ser o bóson de Higgs.
Ao mesmo tempo também vemos um grande movimento de emancipação de
povos do oriente e do norte da África, antes dominados por ditaduras opressivas e
sangrentas caindo depois de dezenas de anos no poder. É a “primavera árabe” que
testemunha que regimes ditatoriais não resistem ao tempo.
Mas, por outro lado, estamos assistindo a mais uma derrocada do capitalismo,
que alguns anos atrás, com a queda do socialismo em 1989, foi saudado até pela Igreja
Católica como um modelo perfeito de sociedade, parafraseando a canção, “abençoado
por Deus e bonito por natureza”, mas que hoje, visto seu inexorável fracasso e na ânsia
por se salvar, obriga estados e nações a pagarem um alto preço com suas próprias
vidas. Insensível, inescrupuloso e desumano o capitalismo vai fazendo vítimas por toda
parte. Mas, como sempre os que mais sofrem e são chamados a pagar este alto preço
são os pobres.
Ao que tudo parece indicar existem algumas forças contrárias que antevendo
seu inevitável fim, numa tentativa de conseguir sair ilesa desse período, luta
desesperadamente para se manter incólume. É o caso como pudemos assistir do
chamado acordo entre a Santa Sé (Vaticano) e o Estado Brasileiro em 2009. Segundo
Mozart Valadares, ex-presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), a
aprovação do estatuto da Igreja Católica no Brasil foi inconstitucional e feriu a
liberdade de religião no país. Disse ele: “Quando você faz um acordo dando benefício a
um segmento religioso em detrimento dos outros, você começa a desobedecer, a
descumprir o texto constitucional”4. Isso, na verdade, nada mais é do o estrépito de
um corpo que parecendo ainda viver no período denominado de a “época das trevas”,
continua ruindo dia após dia. Haja vista todo o alvoroço que ela provocou,
4
Texto acessado em 11/08/2012: http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI3943857-EI6578,00-
AMB+acordo+Brasil+x+Vaticano+e+inconstitucional.html.
principalmente nas redes sociais, com a votação pela liberdade das mulheres em
recorrer ao aborto diante de casos comprovados em que o feto seja portador de
anencefalia.
Em pleno século XXI, nesse início de milênio muitos dos problemas que
acossaram nossa vida e, principalmente, nossa consciência, ainda parecem não ter
desaparecido. Volta e meia, religião e política parecem irmãs siamesas que resistem a
uma separação, pois muitos membros de ambos os lados ainda creem que possam
auferir bons resultados mantendo essa iníqua ligação.
Lendo o livro “Religião e luta de classes” de Otto Maduro penso que minha tese
responde em parte aos seus questionamentos. No prólogo ele se pergunta: “A quem é
que serve a religião na luta de classes?”5 Como poderá ser constatado no
desenvolvimento de minha tese, as religiões institucionalizadas, particularmente a
Igreja Católica Apostólica Romana, continua a servir aos interesses da classe
dominante. Em suas “palavras iniciais”, Otto Maduro diz que é preciso saber o porquê
e o como as relações entre Igreja e na sociedade chegaram a este ponto. De fato, ele
reconhece que os conflitos de classe influem na religião 6. Mas, ao concluir sua tese,
Otto Maduro parece não ter satisfatoriamente encontrado a resposta para as
perguntas que fizera no início, pois diz:
Nisto consiste o mal estar que me atormenta a mais de 13 anos. As perguntas nascidas
desse mal-estar e inquietação eu já as formulei nas palavras iniciais deste ensaio [...].
De alguma forma, tentamos sistematizar, neste ensaio, uma resposta a estas
perguntas. Mas foi apenas uma tentativa – até aqui – puramente teórica, de um ponto
de vista estritamente sociológico e em torno de um só aspecto do problema. Por isto,
esta é uma investigação inconclusa, incompleta: porque da teoria seria mister passar,
agora, à investigação empírica e à intervenção sócio-política, a fim de verificar o
alcance, os limites e a validade de minhas proposições; porque, além disso, seria
mister amplia e completar esta perspectiva sociológica com perspectivas psicológicas,
teológicas etc., até cobrir algumas das outras dimensões que constituem um
fenômeno tão infinitamente rico como o religioso.7
5
Otto Maduro, Religião e luta de classes: quadro teórico para a análise de suas inter-relações na
América Latina, Petrópolis, Editora Vozes, 1981, p.9.
6
Idem, p.22-24.
7
Idem, p.188.
Utilizando-se da teoria marxista como instrumento de análise, ele parece não
ter ficado satisfeito com as conclusões e afirma que a “teoria marxista da religião não
passa de um distante e obscuro ponto de partida”.8
8
Otto Maduro, Religião e luta de classes …, p.189.
9
R K Gnuse, No other Gods: Emergent monotheism in Israel, Sheffield, Sheffield Academic Press, 1997,
392p.; Joseph Callaway, Village Subsistence at Ai and Raddana in iron Age I em H Thompson, The
answers lie bellow: essays in honor of Lawrence Edmund Toombs, Lanham, University Press of America,
1984; David Hopkins, The highlands of Canaan, Georgia, Almond Press. 1985; Frank Frick, The formation
of the state in Ancient Israel: a survey of models and theories, Georgia, Almond Press, 1988; James
Flanagan, David’s social drama: a hologram of Israel’s early iron age, Georgia, Almond Press, 1988;
Gosta Ahlstron, A history of Ancient Palestine, Minneapolis, Fortress Press, 1993; Carol Meyers,
Discovering eve: Ancient Israelite women in context, New York, Oxford University Press, 1988.; Cf. CHJ de
Geus, The tribes of Israel: an investigation into some of the presuppositions of Martin Noth’s
amphictyony hypothesis, Amsterdam, Van Gorcum, 1976; V Fritz, Die Entstehung Israels im 12 und 11
Jahrundert v. Chr., Sttutgart, Kohlhammer, 1996; Israel Finkelstein, The archaeology of the Israelite
settlement, Jerusalem, Israel Exploration Society, 1988; Israel Finkelstein, N A Silberman, The bible
unearthed: archaeology’s new vision of ancient Israel and origin of its sacred texts, New York, The Free
Press, 2001.; Airton José da Silva, “A história de Israel na pesquisa atual”..., p. 43-87.; NP Lemche, Early
Israel: anthropological and historical studies on the Israelite society before the monarchy, Leiden, Brill,
1985; Ancient Israel: a new history of Israelite society, Sheffield, Sheffield Academic Press, 1995; The
Canaanites and their land: the tradition of the Canaanites, Sheffield, Sheffield Academic Press, 1991; Die
vorgeschichte Israels: von anfangen bis zum ausgang des 13, Sttutgart, Kohlhammer, 1996; The Israelites
in history and tradition, Kentucky, Westminster John Knox, 1998; William Stiebing, Out of the desert?
Archaeology and the conquest narratives, Buffalo, Prometheus, 1989; Robert Drews, The end of the
Bronze Age: changes in warfare and the catastrophe ca. 1200 B.C., Princeton, Princeton University Press,
1993; Robert Coote e Keith Whitelam, The emergence of early Israel in historical perspective, Georgia,
Almond Press, 1987; Rainer Albertz, A history of Israelite religion in the old testament period, 2 vols,
Philadelphia, Westminster Press, 1994.; Baruch Halpern, The emergency of Israel in Canaan, Chico, CA,
Scholar Press, 1983; William Dever, Recent archaeological discoveries and biblical research, Seattle,
University of Washington Press, 1990; Thomas L Thompson, Early history of the Israelite people from the
written and archaeological sources, Leiden, Brill, 1992; The mythic past: biblical archaeology and the
myth of Israel, New York, Basic Books, 1999; Donald Redford, Egypt, Canaan and Israel in ancient times,
Princeton, Princeton University Press, 1992.
esteve por trás da redação dos diferentes livros? Por que a maioria dos livros tidos
tradicionalmente como “históricos” perdeu totalmente essa conotação? Se a bíblia é
de inspiração divina, por que tantas contradições entre os textos? Se hoje, conforme
os dados provenientes da arqueologia que desmentem a maioria das histórias
narradas na Bíblia, que sentido essas histórias tinham para aqueles a quem elas foram
escritas? Poderiam os livros bíblicos do AT, quase que na totalidade, serem
classificados como de caráter “etiológico”?
De repente fui me dando conta também de que meu objeto de pesquisa tinha
uma relação intrínseca com minha própria história de vida. Posso afirmar com certeza,
que não foi por acaso que isto aconteceu. Fruto também de uma profunda vivência
religiosa ao estilo das experiências místicas de João da Cruz, da pobreza e desapego de
um Francisco de Assis e da candura de uma Teresa de Lisieux. Dos retiros inacianos
dentre outras tantas riquezas, são quase trinta anos de muitas histórias, de encontros
e desencontros, de buscas e perdas, de renúncias e entregas, de muitos momentos
onde a alegria, a paz e a segurança da comunidade, faziam com que eu esquecesse ou
mesmo até, que se despreocupasse, totalmente, com o que se passava no mundo.
Na verdade, como poderá ser constatado, eles quase nunca são mencionados,
mas quando o são, aparecem como uma espécie de “bode expiatório” em toda esta
fantasiosa história criada por escribas ligados às classes dominantes de Jerusalém. É
dentro do espírito da “nova história” que privilegia não os grandes acontecimentos,
mas os pequenos, aqueles que á primeira vista parecem “socialmente insignificantes”,
que de fato, tem um profundo valor histórico que precisa apenas ser desenterrado
mediante a utilização de um “método eficaz” de reconstrução histórica. Existem alguns
que faremos menção logo abaixo e outros que, na medida da necessidade, daremos as
devidas explicações.
10
Pierre Bourdieu, A economia das trocas simbólicas, São Paulo, Editora Perspectiva S.A.,1982, p.
Para responder a essa pergunta, é fundamental considerar as condições em que vive a
imensa maioria de nossa população mundial, suas profundas reivindicações que
fundamentam as lutas e esperanças de um futuro melhor. A concentração dos poderes
em poucas mãos condena os pobres a serem mais pobres e torna mais evidente a
urgência de retomar os sagrados valores que deram origem à nossa humanidade; isto
é em essência, o que reivindicamos os povos indígenas e os povos originários do
mundo [...] O respeito aos valores e direitos individuais e coletivos, ou seja, a vitalidade
e a validade do equilíbrio como requisitos indispensáveis de um mundo justo e
pacífico.11
É a esses grupos, citados por Rigoberta Menchú, que ela classifica como sendo
os “povos indígenas e os povos originários do mundo” que eu associo o campesinato
judaíta, pois falar do campesinato judaíta é o mesmo que falar das sociedades tribais,
primitivas ou indígenas. É com este grupo ou classe social que me identifico em
oposição a todos aqueles que ao longo de toda a história do gênero humano, por
causa de sua ganância, dominaram, espezinharam, maltrataram, exploraram,
manipularam, ridicularizaram e tantos outros adjetivos que nessa mesma linha possam
ser elencados.
Pois é salutar saber, como nos disse Paulo Freire no seu livro A Pedagogia da
Autonomia que é preciso que se tenha bem claro, antes de dar início a qualquer
projeto, o seguinte:
11
Giulio Girard, Os excluídos construirão a história? – O movimento indígena, negro e popular: “Durante
cinco séculos outros falaram por nós, hoje queremos começar a falar com voz própria”, São Paulo,
Editora Ática, 1996, p.13.
12
Idem, p.14-17
Sei que a isenção e a objetividade são elementos indispensáveis ao trabalho
científico. Mas como vivemos numa sociedade de classes, desconfio da
neutralidade científica. Por isso, farei um grande esforço para não ideologizar os
fatos, porém, isso não deve impedir que o trabalho revele a posição e o
compromisso do autor em relação à necessidade de transformação tanto da
sociedade, bem como também, ao tipo de comportamento a que Paulo Freire nos
conclama:
Em favor de que estudo? Em favor de quem? Contra que estudo? Contra quem
estudo?13
Com isso, acredito que Paulo Freire quer nos conscientizar do valor que tem
uma tomada de posição em relação ao mundo, particularmente em relação ao mundo
que envolve nosso assunto. É necessário que seja pertinente, atual e não, uma letra
morta sem incidência e nem repercussão na vida.
13
Paulo Freire, A pedagogia da autonomia, São Paulo, Paz e terra S/A, 24ª edição, 2006, 148p.
Como afirmou determinada vez Rigoberta Menchú Tum: “Fue muy importante
para mí aprender a distinguir a los enemigos”.14
Portanto, foi a partir dessas palavras de Paulo Freire que comecei a pensar no
título desta tese. Partindo do aprofundamento do objeto de pesquisa escolhido –
relações de poder –, bem como também pelos muitos questionamentos acima
mencionados, busquei qual teria sido a razão para que as sociedades primitivas ou
tribais renunciassem a seus valores e princípios morais, que por tantos séculos haviam
orientados suas vidas, em troca de um novo modo de vida totalmente diferente.
14
Frase citada por Rigoberta Menchú Tum. Acessada no dia 03/07/2012 em:
www.fasecelebre.net/frases _frases_de_Rigoberta_Menchu_1.html.
Outra forte motivação, que funciona como uma espécie de pano de fundo, vem
de uma questão neo-testamentária, isto é, de um ponto de vista presente no Novo
Testamento. Como sabemos, existem várias correntes teológicas do Antigo
Testamento que desaguam no Novo Testamento e influencia de certo modo a cada um
dos livros que o compõe. Uma dessas linhas teológicas, que é uma compreensão do
evento Jesus Cristo a partir da ótica dos pobres, dos pobres crucificados da América
Latina, segundo Jon Sobrino, e está no cerne da questão que levou Jesus à cruz, – que
é ponto central da fé cristã e afirma que Jesus de Nazaré, o Filho de Deus, morreu
crucificado – é o fato de que:
Jesus não elaborou nem uma filosofia da religião nem especulou sobre o possível papel
alienante estrutural da religião. Como judeu ortodoxo praticava sua religião, mas em
suas palavras, seus atos e atitudes, condena a situação factual da religião.
Consequentemente com sua concepção de Deus, Jesus foi um liberal em matéria
religiosa e isto o levou à cruz. Sua atitude histórica diante da religião e seus
representantes deve ser compreendida à luz de sua concepção de Deus que, de fato,
tanto serve para oprimir o homem como para justificar sua opressão.15 (o grifo é
pessoal)
Parece muito pouco afirmar que Jesus morreu por um desígnio de Deus. Como
salienta Jon Sobrino:
A cruz de Jesus não é algo casual, mas a consequência da última tentativa de auto
justificação do homem religioso, do homem manipulador de Deus, que deixa que Deus
continue sendo um mistério, mas manipulável. “A cruz não é compreensível sem a
cooperação dos judeus piedosos”. *...+ Por mais paradoxal que possa parecer o que
matou o Filho foi a “religião”.
15
Jon Sobrino, Cristologia a partir da América Latina: esboço a partir do seguimento do Jesus histórico,
Rio de Janeiro, Editora Vozes, 1983, p.216.
A partir dessa compreensão o que está em questão é um processo sobre o
verdadeiro poder que medeia a Deus. Como poderá ser verificado na primeira parte
desta tese, as sociedades primitivas, assim como o próprio AT, incluindo também, os
romanos e os zelotes, desenvolvem uma concepção de poder totalmente contrária à
apresentada por Jesus. O poder apresentado por Jesus é o testemunho de um “poder
de amor situado e neste sentido é um amor ‘político’, não idealista. A partir da cruz se
aguça a pergunta pela verdadeira essência do poder”.16
Aqui eu toco, com o auxílio das reflexões de Jon Sobrino, ao essencial daquilo
que será desenvolvido nesta tese: as bases das relações de poder que se
estabeleceram entre o campesinato judaíta e a classe sacerdotal jerusolimitana. Como
nos diz Jon Sobrino:
Ter sido morto numa cruz não tem nada a ver com “vontade de Deus” ou algo
independente da história, mas foi consequência de sua encarnação histórica, que é
verdadeiramente conflitiva, porque a cruz, vista como um fim na história do pecado
16
Jon Sobrino, Cristologia a partir..., p.219.
17
Idem, p.220.
18
Idem, p.223-224.
possui poder e triunfa na forma de opressão.19 Nesse sentido, concordo plenamente
com Jon Sobrino, quando diz que:
Jesus constata que o mais profundo deste pecado é algo que deve ser considerado em
duas vertentes: tanto o poder religioso como o político se fazem passar por Deus, em
flagrante contradição com “seu” Deus. Ao mesmo tempo este poder, enquanto
divinizado, enquanto idolatrado, leva necessariamente à opressão do homem. Daí o
poder que se considera como a autêntica mediação de Deus se converte em última
instância de verdade e não se detém ante a opressão. Ao desidolatrar o poder religioso
e político, Jesus está condenando, ao mesmo tempo, todo tipo de opressão em nome
do poder: para a submissão do homem não existe nenhuma justificação, porque o
poder que submete não é Deus, mas seu contrário.20
Desse modo, o que fica claro para mim, a partir desse ponto de vista neo-
testamentário é que as bases dessa teologia a que chegou o poder religioso do
judaísmo, constituído na época de Jesus, tem sua gênese, justamente, no período de
conclusão redacional do Pentateuco, ou seja, quando se conclui a redação de diversos
textos tendo em vista as difíceis e contraditórias relações de poder entre o
campesinato judaíta e a classe sacerdotal jerusolimitana.
Sabe-se que toda comunidade não subsiste sem um mínimo de instituição que
lhe confira unidade, coerência e identidade, mas como disse Lord Acton, “todo poder
tende a se corromper e o absoluto poder a se corromper absolutamente”. Como
19
Jon Sobrino, Cristologia a partir..., p.224-225.
20
Idem, p.225.
assevera Leonardo Boff, como veremos ao longo deste projeto, o poder não significou
somente uma terrível tentação de domínio e substituição de Deus, mas foi em diversas
épocas causa de uma quantidade enorme de escândalos em todos os seus níveis, seja
institucional quanto corpo-eclesial – sucumbiu desastrosamente.21
Como tudo na vida tem um início, seu ponto de mutação se deu quando da
virada constantiniana. De religio illicita o cristianismo – Igreja Católica Apostólica
Romana – passa a constituir a religião oficial e assim a ideologia sacral do Império.
Como diz Leonardo Boff:
A Igreja parece que não estava apesar das perseguições, preparada para enfrentar
evangelicamente os desafios próprios do poder. Ela não aboliu a ordem pré-existente.
Assumi-a e adaptou-se a ela. Ofereceu ao Império uma ideologia que sustentava a
ordem vigente e sacralizava o cosmo pagão. “A religião que marcou o Ocidente não foi
propriamente a mensagem cristã, mas a síntese entre e religião antiga e a cristã” *...+
Com a entrada na Igreja dos funcionários do Império que deviam assumir a nova
ideologia estatal, processou-se antes uma paganização do cristianismo do que uma
cristianização do paganismo. [...] A Igreja-instituição se acomodou de bom grado às
realidades políticas e às uniformidades inexoráveis. Encetou uma trajetória de poder
que chegou até o presente e cujo ocaso, parece, nos é dado entrever.22
Portanto, é aos pobres e explorados de ontem como aos de hoje, que dedico
este projeto de tese na esperança, de como diz Rigoberta Menchú, sobrevir um novo
amanhecer, que sejam dias de reconhecimento, não só da manipulação, dominação e
exploração a que foram submetidos por dezenas de séculos de história, mas,
principalmente, dos “sagrados valores que deram origem à nossa humanidade” e que
ainda hoje podem ser encontrados em muitas sociedades indígenas: um Estado sem
poder!
21
Leonardo Boff, Igreja, carisma e poder: ensaios de eclesiologia militante, 3ª Edição, Rio de Janeiro,
Editora Vozes, 1982, p.85
22
Idem, p.87-88.
É a isso que, humildemente, se propõem esta tese.
23
Peter Burke, A escrita da história: novas perspectivas, São Paulo, Editora UNESP, 1992, p.11.
novos rótulos em velhos frascos teóricos –“ que me lanço nesse desafio de dar cor e
brilho a corpos desfigurados pela dor e sofrimento. Dar voz e vez a quem tanto fez e
nada, absolutamente nada recebeu em troca, pois quem faz a roda do mundo girar
não é quem fica na direção, mas quem, como suor de seu rosto emprega o melhor de
suas forças nesse serviço.
[...] Entre ética e poder a relação será sempre difícil, porém necessária: como o poder
se refere sempre ao outro, corre o risco de ser perversão e puro domínio quando não
se exerce e não se cultiva alto sentido da dignidade humana, da liberdade e dos
direitos humanos.
24
Luís Lorenzetti, “Poder” em Dicionário de Teologia Moral, São Paulo, Editora Paulus, 1997, p.971.
dominadores – classe sacerdotal jerusolimitana – que tendo na escritura hebraica seu
principal instrumento de empoderamento e legitimação de seu status quo, conforme
acentuou Max Weber, “domesticaram os dominados”25.
[...] recusar a ficção de uma metalinguagem que unifica o todo é deixar aparecer os
procedimentos científicos limitados e aquilo que lhes falta do real ao qual se referem.
É evitar a ilusão necessariamente dogmatizante, própria do discurso que pretende
fazer crer que é “adequado” ao real, ilusão filosófica oculta nos preâmbulos do
trabalho historiográfico e da qual Schelling reconheceu maravilhosamente a ambição
tenaz: “O relato dos fatos reais é doutrinal para nós”. Este relato engana porque
acredita fazer a lei em nome do real.26
Desse modo, partindo daquilo que a “nova história” caracterizou como sendo
uma história a ser contada a partir do ponto de vista dos dominados, isto é, daqueles
que sempre estiveram em baixo, aquele “real” de história que foi omitido, conforme
interesses escusos dos dominadores, daqueles que sempre estiveram por cima.
Com o fim dos discursos universais e seguindo uma das tendências filosóficas
que marca profundamente a contemporaneidade da reflexão, como novo norteador
ético, o corpo é assumido atualmente como critério para julgamento. Mas conforme
preconiza a “nova história” nem sempre foi assim. Estudar a história do corpo humano,
que é constantemente afetado de maneiras variadas, tanto pela cultura quanto pela
sociedade, jamais deveria ser encarado sem levar em conta as considerações
(culturais) da experiência e da expressão na linguagem e na ideologia.27
25
Pierre Bourdieu, A economia das trocas simbólicas, São Paulo, Editora Perspectiva S.A.,1982, p.32.
26
Michel de Certeau, A escrita da história, Rio de janeiro, Forense-Universitária, 1982, p.10-11.
27
Roy Porter, “História do Corpo”, em Peter Burke, A escrita da história, 2ª Reimpressão, São Paulo,
Editora UNESP, 1992, p.291-326.
súditos”28, o judaísmo se apresenta como um valioso objeto de estudo, pois, como
religião do corpo, de corpos marcados com o sinal da morte, de corpos marginalizados
e excluídos da vida, de corpos prostituídos e manipulados segundo os interesses de
outros corpos, corpos vergados pela fome e pela dureza do trabalho escravo diante de
corpos, aparentemente, emoldurados pelas ideológicas bênçãos dos céus.
Não foi por menos que Michel de Certeau inaugurou seu livro analisando
aquela pintura de Jan Van der Straet, onde o artista pintou o descobridor que vindo do
mar, e tendo atrás de si as naus que levaram muitos de nossos tesouros, se encontra a
“América Índia, mulher estendida, nua, presença não nomeada da diferença, corpo
que desperta num espaço de vegetações e animais exóticos”. Mas, conforme aponta o
próprio Michel de Certeau:
[...] o que assim se disfarça é uma colonização do corpo pelo discurso do poder. É a
escrita conquistadora. Utilizará o novo mundo como uma página em branco (selvagem)
para nele escrever o querer ocidental. Transforma o espaço do outro num campo de
expansão para um sistema de produção. A partir de um corte entre um sujeito e um
objeto de operação, entre um querer escrever e um corpo escrito (ou a escrever)
fabrica a história ocidental.29 (o grifo é meu)
Daí que o autor se pergunta: “Que aliança é esta entre a escrita e a história?” E
responde, dizendo: “Ela já era fundamental na concepção judaico-cristã das
Escrituras”.30
Este “discurso do poder” do qual nos fala Certeau, logicamente tem a ver com
os diferentes discursos, mas aqui, particularmente, com os discursos presentes na
escritura judaico-cristã. Segundo o próprio Certeau estes discursos tem mais “aspecto
de fabricação” e não mais de leitura ou interpretação. O que está por trás é
claramente um “problema político” e em jogo, a “questão do sujeito (do corpo e da
palavra enunciadora), questão reprimida ao nível da ficção ou do silêncio pela lei de
uma escrita científica”.31
28
Roy Porter, “História do Corpo”..., p.325.
29
Michel de Certeau, A escrita da história..., p.9-10.
30
Idem, p.11.
31
Idem, ibdem.
Desse modo, o que esta tese propõe é uma profunda reflexão sobre o poder,
sobre as relações de poder que se estabelecem na sociedade. Por isso, são oportunas
as palavras de Lorenzetti, citadas abaixo. Elas nos levam a um profícuo
questionamento no que diz respeito ao nível de nossos relacionamentos.
O poder, por si mesmo, não tem nem terá fins bem precisos; terá os que lhe venham da
consciência. „O poder espera ser dirigido‟ (R. Guardini). A questão ética do poder
consiste, pois, essencialmente na questão da finalidade do poder. Os fins, os objetivos,
as metas (que podem ser tão variados quanto os projetos humanos são o objeto e o
término do problema da avaliação do poder.
Estreitamente ligada ao objetivo ou fim está a questão dos meios que precisam ser
assumidos: a perversão dos meios implica degeneração do fim. As perspectivas ou os
horizontes do poder – não só o político – dificilmente parecem conciliáveis com as
razões da ética; o poder tende à eficácia e, por isso, adota a astúcia, a coação e a própria
força.32
32
Luís Lorenzetti, “Poder” em Dicionário de Teologia Moral, São Paulo, Editora Paulus, 1997, p.971.
A história humana não é outra coisa do que uma luta
....................................................................longamente vitoriosa contra a alienação
política.33
I PARTE
Tomando como ponto de partida desta tese o fato histórico de que religião e
política36 são duas dimensões que estão profundamente arraigadas e consolidadas na
33
Marcel Gauchet, “A dívida do sentido e as raízes do estado: política da religião primitiva” em Guerra,
religião, poder, São Paulo, Livraria Martins Fontes, 1977, p.87.
34
Neste capítulo primeiro busco fundamentar os termos religião e política, bem como também, na
medida da necessidade, explicitar as teorias e métodos que serão oportunamente utilizados como meio
para se alcançar os distintos objetivos.
35
Marcel Gauchet, A democracia contra ela mesma, São Paulo, Radical Livros, 2009, p.61.
36
Utilizo, já desde o início, o conceito de “política” ao invés de “estado” porque a meu ver, o termo
política é o que melhor exprime a realidade do estado. O estado é o exercício político no seu grau mais
elevado. Portanto, usarei livremente ambos os conceitos, mas dando as devidas ênfases quando
necessárias.
condição existencial do ser humano, e por isso mesmo, conferindo-lhe uma dignidade
incomparável em relação a todos os outros seres. Quero à luz do testemunho da
ciência e da história, bem como também, a partir de um recorte na própria história,
revisitá-la e demonstrar até que ponto, a união entre estas duas instâncias, religião e
estado, foi sempre e terrivelmente danosa, pelo menos, para um grupo em particular:
o campesinato.
No intuito de poder abarcar os conceitos em toda a sua amplitude farei uso dos
instrumentais oriundos das chamadas ciências humanas. As ciências humanas se
apresentam como um conjunto de ferramentas imprescindíveis para a consecução dos
objetivos que serão propostos abaixo. Pode parecer estranho para quem é da área de
exegese bíblica a ênfase que será dada a diferentes áreas do conhecimento como meio
e suporte para o entendimento e interpretação do meu objeto de pesquisa, bem como
do contexto histórico a ser estudado.
Não foi por acaso que as ciências do homem ganharam o status que tem hoje.
Conforme Hilton Japiassu afirma, as ciências humanas tiveram na Revolução Francesa
seu grande mote, pois ao introduzirem uma descontinuidade na história, revelaram
que a história existe e tanto pode ser alterada quanto reconstruída. Francis Fukuyama
estava completamente enganado quando afirmou que a história havia terminado.
Nesse sentido Japiassu faz uma interessante reflexão:
Homens e mulheres são con-vocados, isto é, são instados, pelo próprio potencial, –
ora latente, ora reprimido – a desenvolver essas dimensões, de modo a que a sua vida
em sociedade seja melhor e mais fácil de ser desfrutada.
37
Hilton Japiassu, Introdução às Ciências Humanas: análise de epistemologia histórica, 11ª Edição, São
Paulo, Letras & Letras, 2002, p.30-31.
Mas, como poderá ser verificada, a aliança destas duas dimensões numa
mesma instituição de governo, conforme o testemunho histórico de inúmeras
sociedades ao longo de quase 5.000 anos de história, nos possibilita afirmar que esta
união foi sempre extremamente desastrosa para todas as sociedades aonde ela, de
fato, chegou a se consumar.
Mas com isso quereria dizer que devemos voltar a viver como as sociedades
primitivas?
Como poderá ser verificado, farei um estudo de um caso particular, um caso bem
concreto onde, tanto o poder religioso como o poder político, – na sua forma mais
elaborada – foi assumida por um mesmo grupo social, determinando assim, toda a
vida de toda uma sociedade dentro de um determinado contexto. O problema que
será levantado está não somente no fato em si, mas no modo como ele foi sendo
articulado e desenvolvido, até ser plenamente aceito por toda a sociedade. Aqui está o
nó da questão. Determinar os meandros desse projeto, – de caráter não só político e
religioso, mas também, com forte incidência no âmbito socioeconômico – constitui-se
na aquisição da chave que permite compreender as reais motivações que tiveram os
redatores de muitos dos textos bíblicos escritos no período pós-exílico.
O que me motiva a trabalhar este tema que ora se constitui no título desta tese
é perceber que os altos e baixos da trajetória humana sobre a face da terra sempre foi
marcada pela conjunção e/ou disjunção, em maior ou menor grau, destes dois
aspectos da vida social de todos os grupos humanos.
1.1 – A religião38
[...] Fenómeno original que encontramos tan lejos como podamos remontarnos en el
tiempo de los hombres; fenómeno universal, del que no conocemos ninguna sociedad
que haya escapado; fenómeno recurrente, del que podemos discernir su influencia,
cerca de nosotros, hasta en los movimientos de inspiración fundamentalmente
antirreligiosa, como las empresas totalitarias: ¿no parece atestiguar todo que estamos
en presencia de una de esas últimas constricciones inherentes al ser-conjunto, siempre
igual a sí misma, en última instancia, y cuya sola necesidad trataríamos de desprender
de la proliferante y metamórfica diversidad de sus manifestaciones?43
38
Esta fundamentação histórica da religião servirá de base para que se possa caracterizar,
posteriormente, a religiosidade a qual estava imerso a população que habitava nas aldeias e vilas da
Judéia, antes de serem integradas ao Judaísmo.
39
Rubem Azevedo Alves, O que é religião..., p.26.
40
Pierre Clastres, A sociedade contra o estado: pesquisas de antropologia política, Rio de Janeiro,
Livraria Francisco Alves Editora S.A., 1978, 152p.
41
Marcel Gauchet, El desencantamiento del mundo: una historia política de la religión, Madri, Editorial
Trotta, 2005, 302p.
42
Conforme indicado na bibliografia.
43
Marcel Gauchet, El desencantamento..., p.31.
44
O termo “fenomenologia” segundo Merleau-Ponty, Fenomenologia da percepção, São Paulo, Martins
Fontes, 2006, p.1: “O que é fenomenologia? Pode parecer estranho que ainda se precise colocar essa
questão meio século depois dos primeiros trabalhos de Husserl. Todavia, ela está longe de estar
resolvida. A fenomenologia é o estudo das essências, e todos os problemas, segundo ela, resumem-se
critérios do materialismo histórico desempenhou uma função que conforme a imagem
da metáfora do “edifício” ocuparia um espaço na estrutura ideológica dentro desta
superestrutura.45 Até bem pouco tempo – comparado com o desenvolvimento de todo
o gênero humano – e de um modo geral, organizava a vida da sociedade, mas levando
a grande massa de seus adeptos – normalmente, a classe dominada – a uma total
atitude de alienação com relação à realidade histórica e política.
Partimos também aqui de algumas concepções clássicas do termo religião. Para Mircea
Eliade, religião é definida como a “experiência” do sagrado. Para Rudolf Otto é “um
sentimento numinoso do ‘totalmente outro’ do “mysterium tremendum e fascinans”46.
Já, pelo filtro sociológico de Émile Durkheim, na sua obra Formas elementares da vida
religiosa, religião é entendida como sendo:
Para Max Weber, apesar de não ter tido nenhuma afinidade pessoal com a religião,
pois numa carta a um amigo, teria dito o seguinte: “não tenho absolutamente nenhum
ouvido musical para a religião”48. Mas, apesar desse posicionamento, foi um teórico,
que pelo viés sociológico, procurou incansavelmente analisá-la chegando à seguinte
definição:
[...] sistema estruturado de símbolos pelos quais grupos humanos formulam a última
razão de ser da vida e do mundo em que vivem e em redor de que se organizam certa
unidade com progressiva especialização de papéis.49 (grifo pessoal)
Com muita acuidade, Rubem Alves desenvolve com sentido e precisão uma
reflexão muito realista da religião quando diz que a ela tenta “iluminar os cantos
escuros do conhecimento. Mas, pobre dela... Ela mesma não vê. Como pretende
iluminar? Ilumina com ilusões que consolam os fracos e legitimações que consolidam
os fortes”.51 De fato, como afirma Althusser52, ela tem sido um verdadeiro instrumento
na mão do estado, ou melhor, no seu jogo político de encontrar meios para tentar
sobreviver às crises internas e externas, serve como “aparelho ideológico do estado”
visando sempre a legitimação da classe dominante. No fundo da questão, vamos
perceber que sempre existiu “luta de classes”, principalmente, por parte da elite
dominante, em legitimar-se no poder.
A religião é a teoria geral deste mundo, o seu compendio enciclopédico, sua lógica em
forma popular, sua solene completude, sua justificação moral, seu fundamento
universal de consolo e legitimação. [...] A crítica da religião desilude o homem, a fim de
fazê-lo pensar e agir e moldar a sua realidade como alguém que, sem ilusões, voltou à
razão, agora ele gira em torno de si mesmo, o seu sol verdadeiro. A religião é nada
mais que o sol ilusório que gira em torno do homem, na medida em que ele não gira
em torno de si mesmo.53
Para Marcel Gauchet a “essência da religião é ser contra a história e contra aquilo que
nos é imposto como destino”, isto é, ser contra a assumir com ardor, luta, sabedoria e
responsabilidade o desafio de criarmos uma civilização onde reine em absoluta justiça,
a liberdade, a igualdade e a fraternidade. A religião, principalmente aquelas
reconhecidas como históricas, de fato, foram numa espécie de contramão no sentido
50
Rubem Azevedo Alves, O enigma da religião, 3ª Edição, Campinas, Papirus Livraria Editora, 2009, p.9.
51
Rubem Azevedo Alves, O que é religião, 13ª Edição, Brasília, Editora Brasiliense, 1981, p.23.
52
Louis Althusser, Ideologia e aparelhos ideológicos de estado: nota sobre os aparelhos ideológicos de
estado, 9ª Edição, São Paulo, Edições Graal LTDA., 2003, p. 41-52.
53
Rubem Azevedo Alves, O que é religião..., p.23.
de não incentivarem seus fiéis a aceitarem esse desafio de transformação do mundo,
de fazerem de seus membros verdadeiros agentes históricos.
Alienar um bem: transferir para uma outra pessoa a posse de alguma coisa que me
pertence. Tenho uma casa: posso doá-la ou vende-la a um outro. Por este processo ela
é alienada. A alienação, assim, não é algo que acontece na cabeça das pessoas. Trata-
se de um processo objetivo, externo, de transferência, de uma pessoa a outra, de algo
que pertence à primeira.54
Diferentemente pensa Debray, que citado por Gauchet, crê que a religião não é
somente uma dimensão constituinte da sociedade, mas é a própria condição de
existência da sociedade, pois o núcleo de toda sociedade humana seria religioso.55
[...] admitimos en efecto comúnmente que existe una permanencia, una constancia, si
no una invariabilidad de lo religioso en la historia, que obligan a referirlo a las
condiciones mismas de existencia de una sociedad humana, como a continuación
admitimos que se conciba su papel en la estructuración primordial del campo
colectivo.56
54
Rubem Azevedo Alves, O que é religião..., p..21
55
Marcel Gauchet, A democracia contra ela mesma, São Paulo, Radical Livros, 2009, p.56.
56
Marcel Gauchet, El desencantamiento del mundo…, p.31.
A. Fase da religião pura (percorre todo o período Neolítico até
aproximadamente 3500 a.C. quando surgem as primeiras sociedades
estatais).
57
Citando um parecer de Marcel Gauchet (A democracia..., p.58-59) quanto a esse processo de total
laicização do estado que está em curso desde que se iniciou o período da modernidade: “Paradoxo: há
dois séculos, a religião não parou de perder peso relativo na vida de nossas sociedades”. De fato, esta é
uma verdade inegável. O peso político e social que as grandes instituições religiosas detinham já não
existe mais. De uma total dependência moral da religião, o mundo foi adquirindo autonomia,
desenvolvendo, o que Thomas Hobbes definiu como um “Contrato Social” em que todos os membros de
uma determinada sociedade se comprometiam a respeitar os seus direitos e deveres como princípio do
bem comum. “Quanto melhor se compreende a história resolutamente disposta na mente, em que
sentido a religião constituiu, em quase toda a duração das sociedades humanas, o elemento essencial
de seu dispositivo político e como que a matéria da ligação entre seus membros, mais nos desligamos
do mito de sua pretensa necessidade trans-histórica. Ela foi a forma que revestiu, das origens até a
pouco, a relação dos homens no estar-em-sociedade, o modo quase único sobre o qual eles assumiram
seu estar-em-conjunto”. Nota: este tópico não será desenvolvido nesta tese por falta de tempo hábil.
1.1.1 – Fase da religião pura
A fase da religião pura consistiu num modo todo especial de se vivenciar aquilo que
hoje conhecemos e chamamos de religião, mas de um modo todo rudimentar pelas
sociedades “primitivas”, “tribais” ou “selvagens”, isto é, pelas sociedades classificadas
como sendo “arcaicas”, que apesar de não terem deixado nenhum registro por escrito,
nos legaram alguns valores de sua religiosidade através das subsequentes sociedades,
daquelas sociedades que mantiveram muitas de suas tradições, e que ainda hoje,
podem ser encontradas em muitas comunidades indígenas, diga-se de passagem,
algumas delas ainda intocadas pela civilização e dispersas pelo mundo inteiro. Com
relação a isto, Marcel Gauchet salienta que:
[...] Es necesario que haya incluso algo más que una poderosa razón, que una
imperiosa obligación – estamos tentados a pensar –, para que una actitud tan
sistemática haya prevalecido unánimemente durante milenios por en cima de la
infinita fragmentación planetaria de las culturas y de los grupos. Sin duda, es éste uno
de los puntos en que mejor se confirma la unidad de la especie humana y, por tanto,
es lógico pensarlo, en que debe mostrarse con más claridad la identidad de los factores
susceptibles de modelar su curso.58
Mas, quanto a esse tipo de religião a que Gauchet classifica como sendo “pura”
ela pode ser definida como um modo todo especial que as sociedades tribais
desenvolveram antes do advento do estado e que, algumas, que permaneceram
intocadas pela civilização e espalhadas por muitas áreas geográficas, continuaram sua
trajetória histórica até os dias de hoje. O que mais diferencia estas sociedades
primitivas das sociedades com presença do estado é que um determinado epicentro
de poder não existia na realidade, mas era relegado a uma origem mitológica que, de
modo muito prático, ainda hoje previne a luta por poder entre os homens, pois
contêm em si, a sobrenaturalização absoluta da origem e das normas sociais59.
58
Marcel Gauchet, El desencantamento..., p.36.
59
Marcel Gauchet, A democracia…, p.62.
preservação ou a neutralização de tudo o que poderia ser manifestação de uma
atitude de confrontação-transformação em relação ao ambiente material.60
De maneira gráfica, esta parte da história, relativa às sociedades tribais, pode ser
representada da seguinte forma:
SOCIEDADES TRIBAIS
I
60
61
T Gauchet, A democracia…, p.62-63.
Marcel
Idem, p.63.
O
Nessa tentativa de configurar graficamente a realidade destas sociedades percebe-se
que a dimensão religiosa engloba todas as outras dim ensões da vida, ou seja, a
dimensão política e todas as demais dimensões estão a ela subordinadas. É ela, a
dimensão religiosa, quem dava o elã decisivo para que se vivesse uma verdadeira
fraternidade com genuíno espírito de igualdade. É esta a característica mais marcante
das sociedades primitivas que se sobressai em relação à nova configuração que se
estabelecerá com o advento do estado. Segundo Marcel Gauchet:
[...] Pues la religión fue primero una economía general del hecho humano que
estructuraba indisolublemente la vida material, la vida social y la vida mental. De eso
no quedan hoy más que experiencias singulares y sistemas de convicciones, mientras
que la acción sobre las cosas, el vínculo entre los seres y las categorías organizadoras
del intelecto funcionan del hecho, y en todos los casos, en las antípodas de la lógica de
la dependencia que fue su regla constitutiva desde el comienzo. Y es propiamente en
eso en lo que, sin embargo, hemos basculado fuera de la edad de las religiones.62
62
Marcel Gauchet, El desencantamiento del mundo…, p.145.
Como se percebe pelos gráficos acima, nas sociedades primitivas esta dívida de sentido
para com o exterior mitologizado é mobilizada ao serviço da retenção do poder no seio
da sociedade. A religião neste estágio não chega a ser uma instituição. Como afirma
Gauchet, certo é que, a religião:
[...] La esencia primitiva del hecho religioso está toda ella dispuesta contra la historia.
La religión en estado puro se recoge en esa división de los tiempos, que sitúa al
presente en absoluta dependencia respecto al pasado mítico y que garantiza la
inmutable fidelidad del conjunto de las actividades humanas a su verdad inaugural, al
mismo tiempo que forma la desposesión sin apelación de los actores humanos frente a
lo que confiere materialidad y sentido a los hechos y gestos de su existencia. Co-
presencia en el origen y disyunción del momento originario; conformidad exacta,
constante, con lo que fue de una vez por todas fundado, y separación del fundamento:
en la articulación de este conservadurismo radical tenemos a la vez la clave de la
relación con la sociedad y el secreto de la naturaleza de lo religioso.63(o grifo é
pessoal)
Em poucas linhas Marcel Gauchet resume o que foi e ainda é realidade em muitas
sociedades ditas “indígenas”, isto é, a realidade da dimensão religiosa totalmente
desvencilhada da presença e da ação do estado sobre ela. Para as sociedades
primitivas ou tribais é na referência ao mito originário e fundante que está o
verdadeiro sentido da vida em sociedade. Ele se torna desse modo a chave que
mantêm unidas num mesmo espírito e sentimento de igualdade política uma grande
quantidade de sociedades tribais.
Claude Lévi-Strauss em seu livro O pensamento selvagem mostra com certo relevo que
a religião em seu estado primeiro e puro implica na decisão de fundir-se com ela,
porém, por outra parte, não sem o desenvolvimento dessa extraordinária atividade
ordenadora do pensamento selvagem e na que podemos reconhecer como o papel do
chefe selvagem se encontra a necessidade primordial do poder que, pesando a todos
subsiste desse cara-a-cara com o mundo domesticado ou desarmado.64
63
Marcel Gauchet, El desencantamento..., p.38.
64
Marcel Gauchet, El desencantamento..., p.40.
Marcel Gauchet concorda com Louis Dumont, que reconhecendo num determinado
modelo de sociedade, que ele chama de “holista”, em função da teoria de que o todo
tem primado sobre as partes, por oposição a um modelo individualista, quando afirma
que o modelo “holista”, reconhecido por Dumont, corresponde exatamente, na
história, ao tempo das sociedades primitivas ou tribais, que podemos chamar de
religiosas, em função, não tanto da crença de seus membros, quanto de sua
articulação efetiva em torno do primado do religioso.65
O que se pode intuir desse fato é a noção do religioso formatando a vida das
sociedades primitivas nas suas diferentes dimensões.
Mas, a religião, que Marcel Gauchet classifica como pura tem seu lado negativo, pois
representa o máximo da alienação política, pois numa perspectiva ad intra, tudo é
definido de antemão pelo mito, não existe a mínima chance de uma evolução
histórica. Tudo de certa forma já está preventivamente definido e ordenado pelo mito.
Assim, a história de uma sociedade primitiva segue seu curso natural sem nenhuma
perspectiva de transformação.
Desse modo, como teria surgido o estado em sua forma embrionária, se todas as
sociedades estavam como que dominadas pelo mito? Quais os fatores que teriam
levado uma primeira sociedade a mudar de direção, a não se comportar como as
demais? Será que a iniciativa de mudança teria partido de alguém ligado mais
diretamente ao trabalho religioso dentro da tribo? Poderia ter sido um chefe, a
princípio sem poder, que apesar das restrições impostas pelo mito, assim mesmo,
devido ao prestígio alcançado junto aos demais membros da sociedade tribal,
conseguiu legitimar-se como um chefe com poder? Talvez tenha sido um chefe
guerreiro, que após uma grande vitória impôs-se como chefe com poderes absolutos?
Iniciando com um questionamento feito por Gauchet desenvolvo este tópico tentando
responder a esta questão: “representará o aparecimento do Estado um corte
absoluto no tempo humano? O advento dum poder separado representará uma
criação radical, uma invenção ex nihilo na história das sociedades?”66
Como pode ser visto no item anterior, a religião, através de seus mitos e ritos,
desautorizava quem quer que fosse a tomar posse em definitivo do poder e exercê-lo
65
Idem, p.41.
66
Marcel Gauchet, Guerra, religião, poder..., p.52.
de forma coercitiva. A força do religioso no imaginário da sociedade era tão grande
forte e tão presente que “a interpretação que o fenômeno religioso parece autorizar”
nos leva a dizer que não. O Estado, conforme postula Gauchet, é uma nova fase de
uma separação que despontava no horizonte das sociedades e “à qual não se vê que
outro estatuto se possa dar que o da condição da possibilidade desse mesmo fato
social”.67
Esta dissimetria entre senhores e súditos, esta distância instaurada entre governantes
e governados, esta privação da comunidade em proveito dum poder que se separa
dela, terão saído do nada? Não terão elas qualquer espécie de equivalência, de
correspondência, de embrião mesmo oculto nas sociedades precedentes?68
67
Idem, ibdem.
68
Marcel Gauchet, Guerra, religião..., p.53.
naquilo que pode constituir a sua necessidade de heteronomia, necessidade que
persegue a associação dos homens desde o princípio.69
Nesse sentido, a religião que por milênios vinha cumprindo uma função
orquestradora da ordem e, principalmente, da igualdade entre os membros dentro da
sociedade, passa a cumprir nesta nova fase – estatal – uma função legitimadora de
uma nova ordem que já não necessita mais se reportar ao mito exteriorizado como
fonte de poder, mas o poder é interiorizado, ficando a cargo de uma pessoa ou mais
fazer uso e fruto desse poder.
Entre estas diferentes rupturas la más importante, por lo demás, es sin duda la
primera. El nacimiento del Estado es el acontecimiento que parte la historia en dos y
hace entrar a las sociedades humanas en una época enteramente nueva: las hace
entrar precisamente en la historia.71
Mas, por mais rigoroso que tenha sido o conservadorismo das sociedades
primitivas, nada nem ninguém impediu, que algumas sociedades, respondessem ao
impulso de se transformarem continuamente; tampouco refreou o espírito de
invenção de seus membros; como prova os imensos êxitos do período Neolítico. Mas a
grande novidade é que ali, onde intervêm mecanismos de neutralização tendentes a
69
Idem, p.54.
70
Marcel Gauchet, A dívida do sentido..., p.54
71
Marcel Gauchet, El desencantamiento del mundo..., p.51.
72
Idem, p.51.
colocar o marco social ao abrigo das relações sociais entre indivíduos e grupos, o
advento da dominação política, estabelece ao contrário, objetivamente, no coração do
processo coletivo a confrontação sobre o sentido e a legitimidade do conjunto social. 73
[...] lo Otro religioso vuelve a entrar en la esfera humana. Conservando por completo,
naturalmente, su exterioridad respecto a ella, allí penetra y se materializa. En
resumen, la ruptura religiosa entre los hombres y sus orígenes se daba antaño de
manera que previniera el surgimiento de una división entre ellos. Con la emergencia de
un aparato de dominación pasa entre ellos, por medio, y separa a unos de otros.
Dominadores e dominados, los que están del lado de los dioses y los que no lo están.
*…+ En todos los casos – el capital –, hay refracción de la alteridad divina en el interior
del espacio social, concreción de lo extra-humano en la economía del vínculo
interhumano.74
Como pode ser comprovado existe uma infinidade de trabalhos que mostram
que o desenrolar desse fenômeno assumiu diferentes e variadas formas no seu
processo de desenvolvimento.75 Desde a figura do déspota que encarna a figura do
deus-vivente até as sociedades cujos templos encarnam a presença da própria
divindade, mas sempre com muitos servidores e porta-vozes devidamente
credenciados.
Como afirma Gauchet, e a história está aí para confirmar o fato, a partir dessa
transformação, instaura-se uma profunda divisão dentro da sociedade, passa a ver
uma:
73
Idem, p.51-52.
74
Idem, p.52.
75
Ver Marshall Sahlins em pelo menos dois de seus livros: “Ilhas de História” e “Sociedades tribais”.
que se alimenta la existencia colectiva. Los hay que hablan e ordenan en nombre de
los dioses; que tienen el control de los ritos en que renace el sentido original de las
cosas, y en cuya carne se toca literalmente el principio superior que ordena el
mundo.76
Esta presença que poderia ser profundamente benéfica para todo o gênero
humano – pois que se trataria de uma iniciativa do próprio Deus em pessoa – se
mostra terrivelmente opressora e coercitiva. O suposto “poder” delegado aos seus
representantes – avatares del dispositivo que teóricamente ellos inspiran o determinan
–77 são de alguma maneira postos ao alcance e convertidos na prática.
Iluminado pela teoria marxista, Gauchet, – pois para ele, esta teoria preenche
uma lacuna inconveniente na explicação das construções mítico-religiosas, – citando
Maurice Godelier, compartilha que:
Sejamos justos, a “ciência marxista”, na falta de progressos, ganha cada vez mais em
refinamento de expressão. Assim, explicam-nos na exposição que citamos, que esta
representação do “domínio das causas naturais obscuras, das forças invisíveis que o
homem não controla... como um domínio de poderes superiores ao homem” não se
confunde em si mesma, com a explicação ilusória “da realidade e causalidade na
ordem do mundo” que constitui o coração da concepção mágico-religiosa
propriamente dita.79
76
Marcel Gauchet, El desencantamiento del mundo…, p.52-53.
77
Marcel Gauchet, El desencantamiento del mundo…, p.53.
78
Marcel Gauchet, A dívida do sentido..., p.59.
79
Idem, p.60.
obstáculos que levam a contrariar as serenas certezas dos naturalismos de todos os
gêneros. Não se dirá de um selvagem que ele escolheu a sua maneira de pensar, assim
como não é lícito sustentar que as primeiras sociedades se puderam situar fora do
círculo estreito definido pela necessidade material, física ou intelectual.80
O resultado geral a que cheguei e que, uma vez obtido, serviu de fio condutor aos
meus estudos, pode resumir-se assim: na produção social da sua vida, os homens
contraem determinadas relações necessárias e independentes de sua vontade,
relações de produção que correspondem a uma determinada fase de desenvolvimento
das suas forças produtivas materiais.81
80
Idem, p.61.
81
Karl Marx, Uma contribuição para a crítica da economia política. Texto acessado em 03/07/2012 em
http://cursohumanidades.files.wordpress.com/2010/02/curso-marxismo-aula-o-conceito-de-modo-de-
producao-texto-indicado-marx-prefacio-critica-da-economia-politica.pdf, p.2.
Nesse sentido, Marx afirma que diante da necessidade de produção e reprodução da
vida material, ou seja, da conquista dos gêneros necessários à manutenção da própria
vida, tais como: roupas e alimentos, faz com que os seres humanos estabeleçam
relações entre si. Em verdade, são relações “independentes de sua vontade”, porque
elas nascem num determinado momento e numa determinada formação social, na
qual essas relações já estão constituídas, não sendo, portanto, objeto de sua escolha.
O que Marx quis enfatizar através do conceito de Modo de Produção é que muito mais
importante daquilo que é produzido é o modo como é produzido, é o como a
sociedade se organiza para produzir os bens de que necessita para viver. Desse modo,
compreendemos que o conceito de Modo de Produção não faz uma simples referência
aos bens materiais, mas, como conceito absolutamente teórico que “abrange a
totalidade da sociedade, ou seja, tanto a estrutura econômica como todos os outros
níveis sociais, o jurídico-político e o ideológico”.
82
Karl Marx, Uma contribuição para a crítica da economia política. Texto acessado em 03/07/2012 em
http://cursohumanidades.files.wordpress.com/2010/02/curso-marxismo-aula-o-conceito-de-modo-de-
producao-texto-indicado-marx-prefacio-critica-da-economia-politica.pdf, p.3.
Como salienta Marx, é necessário que se compreenda que as relações que se
estabelecem em função da produção dos bens necessários à vida se constituem no
aspecto central do conceito de modo de produção. Produção e reprodução, dois lados
de uma mesma moeda, ou seja, de um dado modo de produção.
Essas relações sociais que se estabelecem entre todos os membros da sociedade, são
relações sociais de produção que sempre corresponderão a um “determinado estágio
de desenvolvimento das forças produtivas” isto é, do tipo do modo de produção em
vigor, que, ao mesmo tempo determinam seu próprio desenvolvimento.
Isto nos leva à conclusão de que todo modo de produção é determinado por diferentes
estruturas dentre as quais se destacam: a estrutura jurídico-política, a estrutura
ideológica e a estrutura econômica, que é sempre a estrutura que tudo determina em
última instância. Mas isto não quer dizer que a estrutura econômica seja sempre a
estrutura dominante. Pode acontecer de outra estrutura ser a estrutura dominante.
Por exemplo, como será demonstrado na segunda parte desta tese, o Judaísmo
marcado profundamente pela realidade do segundo templo teve como estrutura
dominante a estrutura religiosa.
Desse modo pode-se afirmar que um modo de produção irá sempre depender da
análise do modo como as estruturas se articulam, mas sem se esquecer de que é a
estrutura econômica que em última instância será sempre a estrutura determinante.
Quanto ao modo de produção e quanto às relações sociais por ele estabelecidas por
estratégia e influência da classe sacerdotal jerusolimitana em toda a província de Judá,
posteriormente designado pelo conceito de judaísmo, pode ser caracterizado como
sendo um modo de produção tributarista.
Sua grande força e poder de aceitação estava no fato de que o referencial absoluto e
supremo de tudo estava numa divindade na qual eles acreditavam e cultuavam na
esperança de sempre poder reverter determinadas situações adversas.
83
Assim como esta suposta lei de origem divina, sobre a menstruação da mulher, existem outras tantas
leis, que se desdobraram numa minúcia de regras que tornaram a vida daquela gente impossível de ser
vivida. É a tal da casuística judaica que está presente na Mishna.
Portanto, ao destacar o judaísmo como um caso concreto estou saindo de um campo
abstrato, pois como afirma Nicos Poulanntzas:
Sendo assim, Etienne Balibar elenca quais são os elementos essenciais a todos os
modos de produção:
1 – trabalhador
2 – Meios de Produção
1. Objeto de trabalho
2. Meio de trabalho
3 – Não Trabalhador
A. Relação de propriedade
Deste modo, Poulanntzas tira uma conclusão muito apropriada, quando diz que, se os
modos de produção se constituem em objetos abstrato-formais, as formações sociais
são objetos reais-concretos e, além disso, originais porque sempre são singulares.86
Portanto, dentro do próprio judaísmo, que tinha uma formação social bem concreta e
específica, podia-se encontrar mais de um modo de produção num determinado
momento, embora se saiba, com certeza, que um determinado modo de produção,
sempre exercerá o papel dominante.
Mas cabe aqui um destaque especial sobre o conceito de ideologia, pois como Marx
salienta, a ideologia possui uma importante função dentro da superestrutura, que no
84
Nicos Poulanntzas, Poder político e classes sociais, Porto, Portucalense, 1971, p.8.
85
Etienne Balibar, “Sobre os conceitos fundamentais do materialismo histórico” em Étienne Balibar,
Louis Althusser, Roger Establet, Ler o capital, Volume II, Rio de janeiro, Zahar Editores, 1980, p.153-274.
86
Nicos Poulanntzas, Poder político..., p.9.
caso do judaísmo teve um aspecto muito relevante, pois como será demonstrado, era
a dimensão religiosa que, enquanto estrutura dominante, organizava e legitimava o
modo de produção vigente.
Nascida como conceito, o termo aparece pela primeira vez em 1801 no livro de Destutt
de Tracy – Elementos de Ideologia –, pretendendo ser uma ciência do mundo das
ideias. Mas foi com Napoleão que o termo ideologia ganhou um sentido pejorativo.
Num discurso ao Conselho de Estado em 1812, ele declarou:
Todas as desgraças que afligem nossa bela França devem ser atribuídas à ideologia,
essa tenebrosa metafísica que, buscando com sutileza as causas primeiras, quer fundar
sobre suas bases a legislação dos povos, em vez de adaptar as leis ao conhecimento do
coração humano e às lições da história87.
Tipos de definição da
87
Marilena de Souza Chaui, O que é ideologia, 19ª Edição, São Paulo, Editora Brasiliense S.A., 1980, p.22-
24.
88
Marilena de Souza Chaui, O que é ideologia..., p.25-31
89
Raymond Boudon, A ideologia ou a origem das ideias recebidas, São Paulo, Editora Ática S.A., 1989,
p.27
ideologia
Marx Lênin
Althusser
Aron Geertz
Tradição não-marxista
Parsons
Shils
A ideologia, desvio em
relação à objetividade A ideologia, tipo particular
científica. de sistema de crenças.
Tabela90
90
Raymond Boudon, A ideologia…, p.32-33
caso concreto – do judaísmo – os pressupostos teóricos da tradição marxista são
preenchidos adequadamente.91
Esta “história da humanidade” implica que também ela deva ser vista sob o prisma ou
pelo viés da “história das trocas” que tem no judaísmo um exemplo bem concreto do
que vem a ser uma ideologia.
91
Raymond Boudon, A ideologia…, p.33-34.
92
Karl Marx, Friedrich Engels, A ideologia Alemã: I - Feuerbach, São Paulo, Editora Hucitec, 1999, p.42.
cima, ou seja, do campesinato – classe social inferiorizada – para a classe sacerdotal –
classe superior dominante. Enquanto o pauperizado campesinato era moralmente
obrigado, por dever de consciência, ou por sua pobreza ou por ter cometido alguma
transgressão da lei deveria oferecer a Deus bens materiais reais e concretos de
diferentes tipos e gêneros, para em troca, receber por intermédio dos sacerdotes, o
perdão de Deus, invisível e abstrato.
Tendo plena “consciência” de que para “produzir a vida” o ser humano precisa,
necessariamente, estar em relação com os demais, Marx vê desde o início que a
“consciência” que o ser humano tem desta necessidade é um produto social, pois
nasce da percepção socializante da consciência.93
Outro fator que ajuda a compreender todo o alcance de uma ideologia está no fato da
atenção que Marx dá à “divisão do trabalho”. Para ele:
Conforme nota marginal feita pelo próprio Marx em referência à citação acima, que diz
que a primeira forma dos ideólogos nasceu com o advento dos sacerdotes, que como
poderá ser constatado na segunda parte, no caso do judaísmo, como exemplo de um
caso muito particular de divisão do trabalho onde se fez necessário, justamente, o
recurso à utilização de uma ideologia como forma de justificação e legitimação de uma
nova ordem social, ou seja, possibilitou a ascensão de uma nova classe como grupo
social dominante.
Pierre Bourdieu tem uma posição muito similar à de Marx quando afirma que:
93
Karl Marx, Friedrich Engels, A ideologia Alemã..., p.43-44.
94
Idem, p.44-45.
irreconhecível, por intermédio da homologia entre o campo de produção ideológica e
o campo das classes sociais, a estrutura do campo das classes sociais.95
Para Bourdieu os “sistemas simbólicos” que são sempre produzidos por um “corpo de
especialistas” que tem como objetivo a aquisição do poder, ou melhor, do “poder
simbólico” que reside, não em forma de “illocutionary force”, mas que se define numa
relação determinada – e por meio desta – entre os que exercem o poder e os que lhe
estão sujeitos. E na sequência do desenvolvimento de sua teoria, como forma de
justificação, Bourdieu faz uma afirmação onde relaciona o conceito de ideologia ao
campo religioso: ideologia consistiria na transformação do mito em religião 96, pois esta
está intrinsecamente ligada à constituição desse corpo de especialistas produtores de
discursos e ritos religiosos. Desse modo ele é capaz de criar discursos e ritos, que
garantam a reprodução das relações sociais, justificando e legitimando-as do ponto de
vista divino. Diante disso, vai se processando a divisão da sociedade em diferentes e
bem distinta classes sociais.
Desse modo, como poderá se ver na terceira parte desta tese, o campo religioso
dentro do judaísmo se constituiu, a partir da teoria dos campos de Bourdieu, num
“campo autônomo” onde se produziram “formas eufemizadas das lutas econômicas e
políticas entre as classes”, pois como ele mesmo afirma:
95
Pierre Bourdieu, O Poder simbólico, 5ª Edição, Rio de Janeiro, Editora Bertrand Brasil LTDA, 2002,
p.12.
96
Idem, Ibdem.
97
Idem, p.13.
que neles se exprimem só se manifestarem neles em forma irreconhecível de relações
de sentido (deslocação).98
De fato, a religião dentro do judaísmo foi essa estrutura, que ao lado de outras
estruturas – econômica, política e jurídica – se tornou, porque plenamente estruturada
e estruturante, a estrutura dominante, com força para estruturar todas as demais
estruturas da sociedade. É nesse sentido que poderá se perceber o efeito
propriamente ideológico do discurso religioso, impondo uma classificação e divisão da
sociedade sob a aparência de “legítimas taxonomias”.
Para Marx, este tipo de elucidação está ligado à concepção que ele desenvolve da
história, pois esta consistiria em:
O que Marx sugere é que se permaneça no solo da história real para estar em
condições de explicar as formações ideológicas a partir da práxis. Nesse sentido Marx
afirma:
Toda concepção histórica, até o momento, ou tem omitido completamente essa base
real da história, ou a tem considerado como algo secundário, sem qualquer conexão
com o curso da história. Isto faz com que a história deva ser sempre escrita de acordo
com um critério situado fora dela. A produção da vida real aparece como algo
separado da vida comum, como algo extra e supraterrestre. Com isto, a relação dos
homens com a natureza é excluída da história. Consequentemente, tal concepção vê
na história as ações políticas dos príncipes e do Estado, as lutas religiosas e as lutas
98
Pierre Bourdieu, O poder simbólico..., p.14.
99
Karl Marx, Friedrich Engels, A ideologia alemã..., p.55.
teóricas em geral, e vê-se obrigada, especialmente, a compartilhar, em cada época
histórica, a ilusão dessa época.100
*...+ se movem na esfera do ‘espírito puro’ e fazem da ilusão religiosa a força motriz da
história [...] Tal concepção é verdadeiramente religiosa; ela postula o homem religioso
como sendo o proto-homem do qual parte toda a história; e, em sua imaginação,
coloca a produção religiosa de fantasias no lugar da produção real dos meios de vida e
da própria vida.101
[...] não é possível libertar os homens enquanto não estiverem em condições de obter
alimentação e bebida, habitação e vestimenta, em qualidade e quantidade adequada.
A “libertação é um ato histórico e não um ato de pensamento, e é efetivamente por
condições históricas [...].102
[...] a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua
força espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios de produção
material dispõe, ao mesmo tempo, dos meios de produção espiritual, o que faz com
que a ela sejam submetidas, ao mesmo tempo e em média, as ideias daqueles aos
quais faltam os meios de produção espiritual. As ideias dominantes nada mais são do
que a expressão do ideal das relações materiais dominantes, as relações materiais
100
Karl Marx, Friedrich Engels, A ideologia alemã..., p.57.
101
Idem, p.58.
102
Idem, p.65.
dominantes concebidas como ideais; portanto, a expressão ideal das relações
materiais dominantes, as relações materiais concebidas como ideias; portanto, a
expressão das relações que tornam uma classe a classe dominante possuem, entre
outras coisas, também consciência e, por isso, pensam; na medida em que dominam
como classe e determinam todo o âmbito de uma época histórica, é evidente que o
façam em toda a sua extensão e, consequentemente, entre outras coisas, dominem
também como pensadores, como produtores de ideias; que regulem a produção e a
distribuição das ideias de seu tempo e que suas ideias sejam, por isso mesmo, as ideias
dominantes da época.103
Como será analisado na segunda parte, aos sacerdotes era proibido possuir terras, mas
conforme um número expressivo de estudiosos, muitos sacerdotes possuíam terras
onde logicamente cultivavam, visando não somente a sua própria subsistência, mas,
principalmente, o comércio.
E Marx, a fim de colocar a base real da ideologia – e aqui está uma das principais
características que qualificam a mudança do modo de produção primitivo para o modo
de produção tributário: a propriedade privada, – faz uma interessante assertiva
quanto a esta questão, afirmando que:
103
Karl Marx, Friedrich Engels, A ideologia alemã..., p.72.
mais crassa da subsunção do indivíduo à divisão do trabalho, à uma determinada
atividade que lhe é imposta – subsunção que converte uns em limitados animais
urbanos e outros em limitados animais rurais, reproduzindo diariamente a oposição
entre os interesses de ambos. O trabalho volta a ser aqui o fundamental, o poder
sobre os indivíduos, e enquanto existir esse poder deve existir a propriedade
privada.104 (grifo em negrito é pessoal)
Mais uma vez, percebe-se que, com que com muita presença de espírito, mas,
principalmente, alicerçado numa base nitidamente empírica, Marx penetra na
verdadeira questão que se torna a base real da ideologia.
Portanto, desconhecendo a realidade que está por trás de todo simbolismo o grupo a
ser dominado passa por um processo de ruptura, isto é, por uma “conversão do olhar”
acompanhado, logicamente, de uma revolução mental, uma mudança de toda a visão
do seu mundo cultural: social, político, econômico e religioso.107
104
Karl Marx, Friedrich Engels, A ideologia alemã..., p.77-78.
105
Pierre Bourdieu, O poder simbólico, 5ª Edição, Rio de janeiro, Editora Bertrand Brasil LTDA., 2002,
p.48.
106
Idem, ibdem.
107
Pierre Bourdieu, O poder simbólico..., p.49.
deveres, se constitui num elemento decisivo de controle desta mesma vida, aí incluído
o exercício do poder”.108 De fato, a classe religiosa, que se tornou dominante, teve o
poder de atuar no imaginário do campesinato, isto é, poder de manipular o seu
imaginário. Como afirma Norbert Elias, esse poder de interferir no imaginário de um
determinado grupo social se torna um elemento decisivo de seu controle, pois atuar
no imaginário social de um grupo é como atuar sobre a própria vida desse grupo,
assumindo o seu controle e interferindo nas condições de produção e reprodução de
sua vida. Em última instância, implica numa atuação na base real da vida, na estrutura
econômica da sociedade, ou seja, nas suas relações sociais de produção.
Definir a submissão imposta [a um grupo social] como uma violência simbólica ajuda a
compreender como as relações de dominação – que é uma relação histórica, cultural e
linguisticamente construída – é sempre afirmada como uma diferença de ordem
natural, radical, irredutível, universal.109 (texto entre colchetes é acréscimo pessoal)
108
Citado por Francisco J. Calazans Falcon, “História e representações” em Representações. Contribuição
a um debate transdisciplinar, Campinas, Papirus, 2000, p.53.
109
Citado por Soihet, 2009, p.371 em Cadernos Pagu, Campinas, Núcleo de Estudos de Gêneros /
UNICAMP, 1995, nº 4, p.40-44.
110
Mario Stoppino, “Ideologia” em Norberto Bobbio, Nicola Matteucci, Gianfranco Pasquino, Dicionário
de política, 11ª Edição, Brasília, Editora UnB, 1998, p.587-597.
Esta representação gráfica corresponde ao processo de reprodução da ideologia
dentro de um determinado sistema de crença, seja ele de caráter político, religioso,
econômico e/ou social.
Por falsa apresentação se entende o primeiro estágio que a ideologia percorre em seu
processo ideológico real. O primeiro de quatro etapas que garantem a reprodução do
sistema. Partindo do pressuposto de que existem diferentes meios pelos quais uma
ideologia pode ser veiculada num determinado contexto social, seja por meio de
discursos ou narrativas, nos mais diversos âmbitos sociais. A falsa apresentação
consiste numa representação exata do sistema dentro do qual diferentes grupos
sociais coexistem pacificamente, onde cada grupo social cumpre seu papel já
previamente determinado, em prol da ordem e eficiência de todo o sistema. Se a
ideologia tem como uma de suas funções ser uma interprete fiel da realidade, nada
mais lógico do que ir sistematicamente moldando imaginário social com valores e
princípios sempre em acordo com os interesses da classe dominante, ou seja, da classe
que está em condições de zelar pela correta manutenção do sistema.
O segundo aspecto que a ideologia percorre dentro desse processo ideológico real, é o
de ser geradora de uma falsa consciência nos agentes sociais. Se como afirma Marx,
“não é a consciência que determina o ser, mas o ser que determina a consciência”, de
fato a realidade das práticas sociais vão como que moldando as consciências dos
indivíduos. Pelo fato de a ideologia ser apresentada de um modo falso, isto é,
corresponder aos interesses de uma determinada classe que domina todas as outras
classes de uma sociedade, consequentemente, será geradora de uma falsa
consciência. Nesse sentido, Marx está coberto de razão, quando afirma que os
interesses da classe dominante sempre permanecem escondidos às classes
subalternizadas sob um véu de valores políticos, morais e religiosos. Aqui está o fulcro
da noção marxista de falsa consciência: uma consciência invertida da verdadeira
realidade.
Na sequência desse ciclo que a ideologia percorre dentro do processo ideológico real,
o terceiro estágio é marcado pela falsa motivação. Segundo Mario Stoppino, este
conceito de falsidade é, de longe, o mais promissor no estudo empírico da política,
pois “muito frequentemente os homens não tem consciência das forças que os
impelem a agir e dão às suas ações causas imaginárias, muito diversas das causas
reais”.111 O que acontece é que a ideologia, atuando no inconsciente dos agentes, os
leva a elaborar motivos conscientemente fictícios para as próprias ações e
comportamentos, permanecendo assim, encobertos, os verdadeiros moventes.
Desse modo, pelo fato de a ideologia ter natureza social, porque diz respeito aos
comportamentos coletivos que se instauram numa relação de poder, como diz
Stoppino:
111
Mario Stoppino, “Ideologia”..., p.595.
ideologia como falsa motivação se insere explicitamente nas relações de dominação do
homem sobre o homem.112
O que é falso não é o possível juízo de valor aos quais os agentes são submetidos pela
ideologia enquanto tal, mas a sua função de motivação, que no seu processo
ideológico real já possa ter cumprida sua função estruturante que aos poucos vai como
que plasmando e condicionando culturalmente todos os agentes.
Serge Moscovici deu uma grande contribuição ao desenvolver uma teoria da psicologia
social do conhecimento quando desenvolveu o conceito de representação social. Sem
entrar no mérito da verdade ou da falsidade de uma representação social, Moscovici,
em suas incansáveis pesquisas de campo, fundamentou todo seu trabalho no como e
no porque as ideias são transformadas em práticas. Nisto está o problema específico
da psicologia social. Em Social Psychology and Developmental Psychology, Moscovici
afirma:
Nesse sentido M. Bauer e G. Gaskel, citados por Gerard Duveen, afirmam que:
112
Idem, ibdem.
113
Citado por Gerad Duveen, “Introdução: o poder das ideias” em Serge Moscovici, Representações
Sociais: investigações em psicologia social, Petrópolis, Editora Vozes, 2003, p.8.
[...] o conhecimento é sempre produzido através da interação e comunicação e sua
expressão está sempre ligada aos interesses humanos que estão nele implicados. O
conhecimento emerge do mundo onde as pessoas se encontram e interagem, do
mundo onde os interesses humanos, necessidades e desejos encontram expressão,
satisfação ou frustração. Em síntese, o conhecimento surge das paixões humanas e,
como tal, nunca é desinteressado; ao contrário, ele é sempre produto dum grupo
específico de pessoas que se encontram em circunstâncias específicas, nas quais elas
estão engajadas em projetos definidos.114
114
Idem, p.8-9.
115
Citado por Gerad Duveen, “Introdução: o poder das ideias” em Serge Moscovici..., p.10.
Se como afirma Moscovici, com relação ao campo em que atuam as
representações sociais, conforme item grifado acima – elas impregnam a maioria de
nossas relações estabelecidas, os objetos que nós produzimos ou consumimos e as
comunicações que estabelecemos – pode-se afirmar com certeza, numa perspectiva
marxista, isto é, no contexto do materialismo histórico, que as representações sociais
são exatamente aquilo que Marx conceituou como: reprodução do modo de produção.
Portanto, pode-se dizer que a partir desse diagrama, que se apresenta como
ilustrativo de um processo ideológico real é possível mensurar o alcance e a
complexidade de um sistema de crença seja ele, político ou religioso, econômico ou
social, ou até mesmo, como poderá ser visto com relação ao judaísmo, onde estas
quatro dimensões estão não só presentes, mas intrinsecamente relacionadas umas às
outras.
116
Luís Lorenzetti , “Poder” em Dicionário de Teologia Moral, São Paulo, Editora Paulus, 1997, p.974.
De fato, o termo “política” como estrutura e atividade, conforme descrição feita acima
reflete o que o próprio Aristóteles já pensava sobre o termo. Norberto Bóbbio traz
interessante resumo a respeito do tema:
Derivado do adjetivo originado de polis (politikós) que significa tudo o que se refere á
cidade e, consequentemente, o que é urbano, civil e público, e até mesmo sociável e
social, o termo Política se expandiu graças à influência da grande obra de Aristóteles,
intitulada Política, que deve ser considerada como o primeiro tratado sobre a
natureza, funções e divisão do Estado, e sobre as várias formas de Governo, com a
significação mais comum de arte ou ciência do governo [...].117
É justamente isso que será analisado, quando desenvolver o estudo deste caso
particular chamado “judaísmo”. De fato, o que poderemos constatar, foi que esse
projeto tinha uma especificidade singular: era um projeto político-social de caráter
eminentemente religioso. Como veremos o poder dominante, não estava nas mãos de
um rei ou de um chefe político, mas sim, nas mãos do poder religioso jerusolimitano,
que em nome de seu deus, ditou regras e organizou toda a sociedade judaíta segundo
seus critérios, objetivos e interesses pessoais.
117
Norberto Bóbbio, “Política” em Dicionário de Política, 11ª Edição, Brasília, Editora UnB, 1983, p.954.
iremos tratar da política, ou melhor, do poder político, pois entendemos que toda ação
que se desenvolve dentro de uma determinada sociedade implica na utilização de um
tipo de poder, seja ele no campo econômico, ideológico, familiar ou puramente social,
de amizade e solidariedade.
[...] a exclusividade do uso da força em relação à totalidade dos grupos que atuam num
determinado contexto social, exclusividade que é o resultado de um processo que se
desenvolve em toda a sociedade organizada, no sentido da monopolização da posse e
uso dos meios com que se pode exercer a coação física. Este processo de
monopolização acompanha pari passu o processo de incriminação e punição dos atos
de violência que não sejam executados por pessoas autorizadas pelos detentores e
beneficiários de tal monopólio.
Como veremos, será fazendo uso dessa prerrogativa que a classe dominante
em Israel, isto é, a classe sacerdotal, muito mais do que agir por meio da coação física,
agiu por meio da coação psicológica, “incriminando e punindo” os culpados de
transgredirem algumas das leis da torah. Com grande habilidade literária conseguiram
transformar séculos de tradição, outrora, por eles desconhecida, numa terrível força
de controle social. Colocaram debaixo de uma lei cheia de contradições, como
mostraremos, não somente a vida religiosa de um povo, mas a vida em todos os seus
âmbitos foi afetada.
Neste último século passado, temos visto uma grande quantidade de trabalhos
científicos enfatizando a realidade de vida dessas sociedades que, recebendo
diferentes nomeações tais como: selvagens, tribais, primitivas ou arcaicas, todas se
referem a um mesmo grupo social, que possuindo características bem peculiares,
povoaram todas as áreas habitáveis de nosso planeta por dezenas de milênios de anos.
Já não podemos mais ter acesso a uma sociedade primitiva que guardasse toda a
originalidade de seus costumes, crenças e tradições. O que temos hoje à nossa
118
Marshall D. Sahlins, Sociedades tribais, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1974, p.7.
119
Idem, p.28.
disposição são relatos de cronistas, aventureiros, missionários a partir do século XVI,
além de um mapeamento de uma grande quantidade dessas sociedades,
descendentes diretos dessas tribos primitivas. Segundo Sahlins, “essas várias áreas
formam o mundo tribal da moderna Antropologia Cultural”. Aqui temos, segundo o
autor, não pré-história, mas “Etnografia – explicações de testemunhas oculares de
tribos como preocupações existentes”.120
“Ora, o que o funcionamento desses grupos selvagens, onde sobreviveu uma pequena
parte disso que foi o mundo de antes do Estado, revela é a presença subjacente, ao
mesmo tempo, das dimensões que o dispositivo social recalca”.
Todo este primeiro capítulo tem por objetivo servir de fundamento epistemológico
para a caracterização de um dos grupos sociais envolvidos no objeto de pesquisa desta
tese – as relações de poder –, a saber, do campesinato judaíta, herdeiro direto das
mais antigas tradições tribais dos grupos que habitaram aquelas regiões e que tiveram
que se submeter à lei do poder do mais forte – isto é, da classe sacerdotal
jerusolimitana – num determinado momento de sua caminhada histórica.
Rigoberta Menchu Tum, prêmio Nobel da Paz em 1992, está coberta de razão
quando pergunta se existe esperança ou se o futuro ainda está aberto aos povos
indígenas121:
120
Marshall D. Sahlins, Sociedades tribais..., p.12.
121
Nós, particularmente aqui no Brasil, estamos assistindo a uma grande batalha que se trava entre
aqueles que lutam pelas causas indígenas contra grupos, que são verdadeiras potencias econômicas,
que não veem outra coisa diante de si, a não ser, seus próprios interesses pessoais.
e a validade do equilíbrio como requisitos indispensáveis de um mundo justo e
pacífico.122 (o grifo é pessoal)
[...] Afirmar que o triunfo do capitalismo é definitivo é dizer que a atual organização
econômica, política e cultural do mundo, não tem alternativas: que as leis do mercado
estão sendo impostas com uma lógica tão implacável que qualquer hipótese de
autonomia com relação às mesmas parece sonho de um visionário. Mas se for certo
que a lógica do mercado exclui do poder, da cultura e da vida as grandes maiorias da
humanidade, então o trinfo do mercado coincide com a derrota da vida.
Mas quem de nós, cidadãos do mundo rico e cativos da sua cultura, está disposto a
escutá-los? Quem de nós pensa sinceramente que os excluídos são depositários de
uma antiga sabedoria e portadora de uma palavra nova para a humanidade?123
É nesta linha de pensamento que quero argumentar e levar á frente este projeto de
pesquisa. Demonstrar que as sociedades indígenas e os povos originários do mundo,
como destaca Giulio Girard, possuem uma antiga sabedoria, que como também
demonstra Marshall Sahlins se constitui na “chave das limitações comparativas da
sociedade tribal e do significado evolucionário do Estado”124. De fato, como será
122
Giulio Girard, Os excluídos construirão a história? – O movimento indígena, negro e popular: “Durante
cinco séculos outros falaram por nós, hoje queremos começar a falar com voz própria”, São Paulo,
Editora Ática, 1996, p.13.
123
Giulio Girard, Os excluídos construirão a história..., p.18-19
124
Marshall D. Sahilns, Sociedades tribais..., p.18.
demonstrado, aqui está o grande divisor de águas entre as sociedades primitivas e as
sociedades de estado:
Mas, como mostra Maurice Godelier, “actualmente el término ‘tribu’ está en crisis
manifiesta”. Por isso, não é tão simples de defini-lo, pois prova disto é a divisão em
que se encontra, atualmente, boa parte dos antropólogos.127
Neste livro, Godelier mostra como o conceito foi sendo apreendido, desde
antropólogos como L.H.Morgan (1877), que demonstrou que as relações sociais que
dominavam a organização da maior parte das sociedades primitivas consistiam nas
relações de parentesco. Para Morgan:
*…+ una tribu es una ‘sociedad completamente organizada’, y, por tanto, una forma de
organización social capaz de reproducirse. Ilustra la condición de la humanidad en el
estado de barbarie, es decir, de la humanidad que ha salido del salvajismo primitivo,
125
Marshall D. Sahlins, Sociedades tribais..., p.
126
Idem, p.19.
127 a
Maurice Godelier, Economia, fetichismo y religion em las sociedades primitivas, 3 edição, Espanha,
Siglo Veintiuno de España Editores, S.A., 1980, p.199. Segundo o autor: “Neiva, después de leach, clama
ante la ‘escandalosa imprecisión del concepto’, Julian Steward, evolucionista, pide la mayor prudencia
ante lo que denomina um concepto ‘cajón de satre’, y otros, como Swartz, Turner, Toden, optan por
ignorarlo sistemáticamente, silenciando su existencia, aunque exploren um campo, la antropología
política, em cuyo seno el concepto de tribudesenpeñaba tradicionalmente el papel de término clave.
Pero esto no es más que la mitad del mal, ya que esas críticas contra la utilización ideológica que se hace
del concepto em la forma, derivada y emparentada, del concepto de ‘tribalismo’”.
pero que aún no ha alcanzado el estadio de la civilización, de la sociedad ‘política’, del
Estado”.128
[...] un sistema social es un todo cuyas partes están necesariamente ligadas, pero
sobre esta necesidad la propia historia del sistema, en opinión de ellos, nada puede
enseñarnos, ya que la historia pertenece al orden de lo accidental y lo incidental y no
de lo necesario. Existen leyes de funcionamiento de las sociedades, pero no existen
leyes de su evolución o de su transformación necesaria.131
128
Maurice Godelier, Economia, fetichismo y religion..., p.202.
129
Idem, p.204-205
130
Hans G.Kippenberg, Religião e formação de classes na antiga Judéia: estudo sócio-religioso sobre a
relação entre tradição e evolução social, São Paulo, Edições Paulinas, 1988, p.14.
131
Maurice Godelier, Economia, fetichismo y religion..., p.205.
132
Maurice Godelier, Economia, fetichismo y religion..., p.206.
*…+ el autor que recientemente ha realizado el esfuerzo más persistente y brillante
para redefinir rigurosamente ese concepto – e reinterpretar los nuevos materiales
etnográficos acumulados desde hace más de un siglo.133
Lancemos mão, portanto, de uma definição feita por Marshall Sahlins, que afirma que
estudar as sociedades primitivas, que ele as chama de “sociedades segmentárias”
primitivas, é o mesmo que estudar as sociedades tribais.134
Partindo para uma definição mais apropriada do conceito tribo, Sahlins entende
o termo da seguinte forma:
[...] um corpo de pessoas de origem e costumes comuns, que possui e controla toda a
extensão de seu território. Mas, em certo grau, socialmente articulada, uma tribo é
especificamente diferente de uma nação moderna na medida em que suas várias
comunidades não estão unidas sob o governo de uma autoridade soberana, nem os
limites do todo estão clara e politicamente determinados [...] A tribo é também pouco
complexa em outro sentido. Sua economia, sua religião não são conduzidas por
diferentes instituições especialmente destinadas para esses fins, mas,
coincidentemente, pelos mesmos grupos de parentesco e grupos locais: os segmentos
de linhagem e clã da tribo, as famílias extensas e aldeias que assim surgem como
versáteis organizações responsáveis por toda a vida social. Tal formação cultural, ao
mesmo tempo estruturalmente descentralizada e funcionalmente generalizada, é uma
sociedade primitiva segmentária.135
Esta mesma posição é corroborada por outro antropólogo, Pierre Clastres, que em seu
livro “A sociedade contra o estado: pesquisas de antropologia política” desenvolve de
forma muito convincente a questão do tribalismo em relação ao estado. Em suas
pesquisas, não só de campo, mas também recorrendo ao imenso arquivo de trabalhos
anteriores, Clastres toma como base de suas teorias o trabalho desenvolvido junto aos
133
Idem , p.200.
134
Marshall Sahlins, Sociedades Tribais, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1974, p.7.
135
Idem, p.7-8.
136
Voltaremos a este assunto de “chefe, autoridade e poder tribais” no segundo capítulo desta primeira
parte.
índios tupi-guaranis. Diz ele que existe uma grande preocupação de todos os povos
primitivos, na sua grande maioria, de se prevenir contra a possibilidade de se ter o
poder centralizado numa única pessoa, mesmo até aquela escolhida para ser o chefe
de uma tribo.137
Mostrando que muitas das ideias que hoje temos sobre as sociedades primitivas –
ideias totalmente negativa como: são sociedades arcaicas, por não terem estado,
escrita, história, por viverem estritamente baseados numa economia de subsistência,
etc. –, fazem parte de uma construção etnocentrista desenvolvida no ocidente
europeu. Desse modo, recupera e regata, assim, o verdadeiro perfil sócio-político
dessas sociedades primitivas, que segundo o autor, e penso igualmente, teriam muito
a nos ensinar.
Afirmando que é “sempre pela força que os homens trabalham além de suas
necessidades”, Pierre Clastres nos mostra que essa mesma força que era utilizada para
transformar ‘lavradores felizes’ em ‘campesinos opressivamente explorados’, estava
ausente nas sociedades primitivas. Inclusive, a:
[...] ausência dessa força externa define inclusive a natureza das sociedades primitivas
[...] os homens, isto é, a metade da população trabalhava cerca de dois meses em cada
quatro anos! O resto do tempo era passado em ocupações encaradas não como
trabalho, mas como prazer: caça, pesca; festas e bebedeiras; a satisfazer, enfim, o seu
gosto apaixonado pela guerra [...] E, ao descobrirem a superioridade produtiva dos
machados dos homens brancos, os índios os desejaram, não para produzirem mais no
mesmo tempo, mas para produzirem a mesma coisa num tempo dez vezes mais curto
[...] uma vez assegurada a satisfação global das necessidades energéticas, nada poderia
estimular a sociedade primitiva a desejar produzir mais, isto é, a alienar o seu tempo
num trabalho sem finalidade.138
E este fato é atestado, mesmo diante das grandes revoluções da história, tal como a
passagem do paleolítico para a neolítico. A “revolução do neolítico” possibilitou a
transformação da base material das sociedades primitivas, mas sem alterar suas
culturas e nem suas religiões. Marshall Sahlins diz que “o neolítico foi o dia histórico
137
Pierre Clastres, A sociedade contra o estado..., p.
138
Pierre Clastres, A sociedade contra o estado: pesquisas de antropologia política, Rio de Janeiro,
Livraria Francisco Alves Editora S.A., 1978, p.136-138.
das sociedades tribais”.139 “Dia histórico” porque foram capazes de resistir às
mudanças que estavam operacionalizando-se, não de modo natural ou espontâneo,
mas segundo forças sociais subterrâneas que, pouco a pouco, neutralizaram o poder
de reação destas mesmas sociedades primitivas.
O que Marshall Sahlins deixa entrever é o mesmo fato já anteriormente salientado por
Marcel Gauchet nos parágrafos acima, a saber, que, esse novo “tipo dominante” que
começa a oprimir de modo coercitivo o tribalismo indígena se identifica com a figura
do “estado” que começa a ganhar forma e espaço no cenário mundial.
Como vimos no tópico acima, uma sociedade primitiva não deve ser analisada
de modo compartimentado, pois inviabilizaria o resultado final, posto que o que se
139
Marshall Sahlins, Sociedades tribais, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1974, p.12.
140
Idem, ibdem.
141
Para efeito de esclarecimento, diferentes termos serão utilizados ao longo desta tese para exprimir a
mesma realidade do campesinato judaíta. Termos como: sociedades tribais, tribalismo indígena,
sociedades primitivas ou selvagens, todas têm a mesma conotação e, como será demonstrado
posteriormente, são estes aqueles grupos sociais que estão sendo dominados e obrigados a realizar uma
mudança radical em seu modo de viver, isto é, estão sendo forçados a renunciar aos “sagrados” valores
que por milênios ainda estavam forjando seu peculiar modo de vida: uma sociedade profundamente
igualitária, sem divisões, sem chefes com poder. Agora estão sendo transformados em campesinos. Com
respeito a essa mudança na designação: da condição de primitivos, tribais ou selvagens para
campesinos, posteriormente também daremos as devidas explicações.
busca é a formulação de um contorno geral da cultura tribal, dada a grande
quantidade de variações possíveis nos detalhes, pois se “duas tribos nunca são iguais
em detalhe”142, faz sentido a afirmação de Sahlins quando diz que: “A sabedoria
antropológica sugere que abandonemos a análise convencional da cultura em esferas
econômica, político-social e ideológica distintas”143.
142
Marshall Sahlins, Sociedades tribais..., p.27.
143
Idem, p.28.
Sahlins vê nesse arranjo de famílias que se reúnem em linhagens locais, de linhagens
que estão unidas em comunidades de aldeias, de aldeias que estão configuradas em
confederações regionais, e estas últimas, integrando o campo ou setor mais
abrangente, que é o da tribo. Normalmente, cada tribo como um todo pode ser
distinguida de outras tribos por suas identidades de costume e de língua.144
O modelo que temos diante de nós é definido em termos sociais. Porém, mais do que
um esquema de relações sociais, é uma organização da cultura. Os vários níveis de
organização são, no jargão da profissão, níveis de integração sócio-cultural; os setores,
setores de relações sócio-culturais. Isso significa, primeiro, que cada nível (cada tipo de
grupo tem uma série de funções: econômica, de cerimonial, defensiva, e assim por
diante – cada uma organiza certas tarefas necessárias. Além disso, cada setor
enquanto campo mais ou menos solidário de co-participação tem seus valores e
moralidade, que governam a conduta dos negócios humanos dentro do campo.146
144
Marshall D. Sahlins, Sociedade tribais..., p.28.
145
Idem, p.28-29.
146
Marshall D. Sahlins, Sociedades tribais..., p.30.
O que hoje definimos por religião, e o que também, mediante um olhar
retrospectivo, caracterizamos pelo mesmo conceito, era nos tempos mais remotos da
humanidade apenas um modo de se relacionar com as forças incontroláveis da
natureza, de tentar sujeita-las a um controle pessoal e puramente humano. Desse
modo nasceu uma espécie de religião cuja divindade ou os deuses, eram seres criados
segundo à nossa imagem e semelhança. Com relação a isso Rubem Alves tem um
pensamento muito interessante:
Bem, não vem ao caso, aqui nesse momento, nem em nenhum outro desta
tese, discutir a questão do ateísmo. Esta não é a minha opção intelectual. Mas, com
certeza na terceira parte e na conclusão desenvolverei melhor a direção que a religião,
enquanto um fenômeno está tomando no cenário mundial.
147
Rubem Alves, O que é religião..., p.28-29.
sociedade primitiva?” Segundo o próprio autor, é a antropologia clássica que nos
auxilia nessa busca, quando afirma que as “sociedades primitivas são sociedades sem
Estado, são sociedades cujo corpo não possui órgão separado do poder político”.
Portanto, seria conforme a presença ou não do Estado que se configuraria uma
primeira classificação das sociedades. Com isto, não quero afirmar que só existiria dois
tipos de sociedades. Sabe-se que existe uma grande diversidade e modelos de
sociedades onde o regime político é o estatal, bem como também, uma grande
variedade de sociedades classificadas como primitivas.148
[...] notaremos que uma propriedade comum faz com que as sociedades com Estado
oponham-se em bloco às sociedades primitivas. As primeiras apresentam esta
dimensão de divisão desconhecida das outras. Todas as sociedades de Estado são
divididas, em seu ser, em dominantes e dominados, enquanto as sociedades sem
Estado ignoram esta divisão. Determinar as sociedades primitivas como sociedades
sem Estado é enunciar que elas são, em seu ser, homogêneas, por serem indivisas.
Voltamos a encontrar aqui a definição etnológica destas sociedades: elas não tem
órgão separado do poder, o poder não é separado da sociedade.149
Este é o grande diferencial entre uma sociedade com Estado das sociedades
primitivas. Nelas o poder não está centralizado em nenhuma pessoa em particular,
mas em toda a sociedade. O corpo social como um todo é quem detém o poder.
Mas alguém poderia objetar: o que faz, portanto um chefe sem poder? Não
estaria automaticamente relacionada a função de chefia com o exercício do poder?
Pode alguém assumir uma função de chefia sem estar fundamentado pela autoridade
do comando?
148
Pierre Clastres, Arqueologia da violência: ensaio de antropologia política, São Paulo, Editora
Brasiliense, 1982, p.105.
149
Pierre Clastres, Arqueologia da violência..., p.106.
150
Idem, ibdem..
Essa é a grande diferença entre um chefe ou líder numa sociedade de Estado e
numa sociedade primitiva. Os chefes tribais têm por função se encarregar de realizar a
vontade da comunidade como um todo, afirmar “sua especificidade, sua autonomia e
a sua independência”. Para isso, exige-se que a pessoa escolhida tenha certas
habilidades, tais como: experiência de vida em primeiro lugar, aliada a uma sabedoria
fundada nas tradições dos antepassados. Lowie, citado por Clastres, num de seus
trabalhos na década de 40 do século passado, analisando os traços distintivos de um
chefe tribal na região das américas, tanto do sul quanto do norte, concluía o seguinte:
1º) O chefe é um “fazedor da paz”; ele é a instância moderadora do grupo, tal como é
atestado pela divisão frequente do poder civil em militar.
2º) Ele deve ser generoso com seus bens, e não pode permitir, sem ser desacreditado,
repelir os incessantes pedidos de seus “administrados”.
Tudo isso lhe confere certo status que pode ser traduzido pelo conceito de “prestígio”.
É nesse sentido que o chefe tribal se esmera por fazer a vontade da comunidade:
Segundo ainda Pierre Clastres, em seu outro livro: A sociedade contra o estado
– pesquisas de antropologia política, adverte que, ainda hoje, dependendo da tribo
que se visite, jamais se deve perguntar aos membros dessas sociedades: quem é o seu
líder? Mas antes: quem é, entre vocês, aquele que tem por missão ser portador da
151
Pierre Clastres, A sociedade contra o estado..., p.23.
152
Pierre Clastres, Arqueologia da violência..., p.108-109.
palavra? O mestre da fala ou senhor das palavras: é esse o nome que muitos grupos
dão ao seu líder ou chefe.153
[...] Com efeito, o corte radical que divide as sociedades, reais ou possíveis, segundo
sejam de Estado ou sem Estado esse corte não poderia deixar indiferente o modo de
ligação entre o poder e a palavra. Como é que ele opera nas sociedades sem Estado? O
exemplo das tribos indígenas no-lo ensina.
Mas, eis aqui o paradoxo: apesar de o chefe ser o homem de palavra, não se
trata aqui de estética, mas de política. Seu discurso não é dito para ser escutado, pois,
aparentemente, ninguém presta atenção, finge-se desatenção. Sendo um ato
ritualizado, o seu discurso faz parte de uma celebração. Por isso:
Na obrigação exigida de ser homem de palavra transparece com efeito toda a filosofia
da sociedade primitiva. [...] O discurso do chefe é vazio justamente por não ser
discurso de poder: o chefe está separado da palavra porque está separado do poder.
Na sociedade primitiva, na sociedade sem Estado, não é do lado do chefe que se
encontra o poder: daí resulta que sua palavra não pode ser palavra de poder, de
autoridade, de comando. Uma ordem: eis o que o chefe não poderia dar, eis o gênero
de plenitude recusado à sua palavra. [...] a sociedade primitiva é o lugar da recusa de
um poder separado, porque ela própria, e não o chefe, é o lugar real do poder.
A sociedade primitiva sabe, por natureza, que a violência é a essência do poder. Nesse
saber se enraíza a preocupação de manter constantemente afastado um do outro do
poder e a instituição, o comando e o chefe. [...] Forçando o chefe a mover-se somente
153
Pierre Clastres, A sociedade contra o estado: pesquisas de antropologia política, Rio de Janeiro,
Livraria Francisco Alves Editora S.A., 1978, p.107.
no elemento da palavra, isto é, no extremo oposto da violência, a tribo se assegura de
que todas as coisas permanecem em seu lugar, de que o eixo do poder recai sobre o
corpo exclusivo da sociedade e que nenhum deslocamento das forças virá conturbar a
ordem social. O dever de palavra do chefe, esse fluxo constante de palavra vazia que
ele deve à tribo, é a sua dívida infinita, a garantia que proíbe que o homem de palavra
se torne homem de poder.
Vale aqui fazer referência a uma prática, que de certa forma a nossos olhos pode
parecer cruel e sem sentido, mas que para os membros destas sociedades faz todo
sentido. As tribos tupis-guaranis ainda hoje, assim como outras tantas tribos, também
possuem dentro de seu “receituário” ético algumas tradições interessantíssimas, que
Pierre Clastres soube identificar com precisão e maestria. Como forma de aplacar
qualquer desejo de grandeza pessoal, sonhos de realeza, autoridade e poder, as tribos
tupis-guaranis tem como tradição um rito de iniciação onde os jovens, para serem
plenamente admitidos no seio da grande comunidade, passam por um ritual de dor e
sofrimento. São supliciados em seus corpos, mediante atrozes sofrimentos, para que
jamais se esqueçam daquilo que constitui o essencial da vida de uma sociedade
primitiva: “Tu não és menos importante e nem mais importante do que ninguém [...]
Tu não terás o desejo do poder, nem desejarás ser submisso”154.
154
Pierre Clastres, A sociedade contra o estado..., p.129-131.
155
As relações de poder no seio das sociedades tribais – sociedades primitivas – são sempre mediadas
pela ética, isto é, por um código de normas pré-estabelecido, que de certa forma está culturalmente
incorporado no seio da comunidade. Conhecido e querido por todos os membros, este código
comportamental que é vivenciado espontaneamente por todos os membros da sociedade, pois tem
neles próprios, seus principais agentes, sem que aja a necessidade de uma instância superior que, de
prontidão, fique vigiando suas atitudes e comportamento em todos os seus detalhes, para poder, assim,
infligir as devidas penalidades.
preço de uma terrível crueldade, impedir o surgimento de uma crueldade ainda mais
terrível: a lei escrita sobre o próprio corpo é uma lembrança inesquecível.156
Esta é sem dúvida uma grande lição que as sociedades primitivas de ontem nos
deram, e que as muitas sociedades indígenas ainda presentes nos dão: Chefe sim, mas
sem poder. O poder real deve pertencer unicamente à sociedade. Poder de julgar e
excluir. Poder de fazer com que nada nem ninguém roube a seu bel prazer o poder de
voz e de comando. Penso que nossos políticos deveriam rever seriamente o exercício
de sua função e todos os ordenamentos jurídicos relativos a ela. Por acaso, não seria
isto a vivência plena do regime democrático? Bem, voltaremos a este tema na terceira
parte desta tese.
Este é o testemunho comum que pode ser identificado ainda hoje em muitas
sociedades indígenas, que ainda sobrevivem espalhadas por todo o mundo. Esta é,
como diz Clastres, sua principal e mais profundamente humana “propriedade
sociológica”. Mas, se para alguns antropólogos e sociólogos, adeptos de um
darwinismo social que veria apenas nestas sociedades embriões de um processo social
inicial, em quase nada evoluído, em comparação com as demais sociedades avançadas,
é de se indagar: por que ainda hoje existem sociedades com este perfil? O que teria
acontecido para que algumas sociedades não conseguissem reter o processo sua de
estatização?
Nesse sentido, Pierre Clastres, conclui seu pensamento sobre as sociedades primitivas,
afirmando que:
O exemplo das sociedades primitivas nos ensina que a divisão não é inerente ao ser do
social; que, em outros termos, o Estado não é eterno, que existe, aqui e ali, uma data
de nascimento. Por que foi que ele emergiu? A questão da origem do Estado deve ser
precisada desta maneira: mediante que condições uma sociedade deixa de ser
primitiva? Por que as codificações que conjuram o Estado falham em determinado
momento da história? Está fora de dúvida que unicamente a interrogação atenta do
funcionamento das sociedades primitivas permitirá esclarecer o problema das origens.
Talvez a luz lançada sobre o momento do nascimento do Estado iluminará igualmente
as condições de possibilidade (realizáveis ou não) de sua morte. 157
É a partir das interrogações acima elencadas – por que foi que o Estado
emergiu? A questão da origem do Estado deve ser precisada desta maneira: mediante
que condições uma sociedade deixa de ser primitiva? Por que as codificações que
156
Pierre Clastres, A sociedade contra o estado..., p.131.
157
Pierre Clastres, A sociedade contra o estado..., p.110-111.
conjuram o Estado falham em determinado momento da história? – que daremos
sequência em nossa pesquisa a partir do próximo tópico.
[...] como fenômeno social, o Poder é uma relação entre os homens, devendo
acrescentar-se que se trata de uma relação triádica. Para definir um certo Poder, não
basta especificar a pessoa ou o grupo que o detém e a pessoa ou o grupo que a ele
está sujeito: ocorre determinar também a esfera de atividade à qual o Poder se refere
ou a esfera do Poder.158
Desse modo, o principal campo de atividade em que irei me debruçar para efetuar
essa análise do poder político é na esfera da religião, pois como já observamos
anteriormente, nas sociedades primitivas não existem instâncias organizadoras que,
separadas umas das outras, organizem a política, a economia, a religião ou qualquer
outra dimensão. Como veremos religião e poder sempre estiveram unidas, mas não do
mesmo modo e nem com a mesma intensidade. As religiões dentro das sociedades
primitivas, dentre uma série de funções, estabeleciam determinados limites nas
relações de poder entre a(s) divindade(s) e os membros das sociedades.
Diferentemente das sociedades onde o Estado seria uma realidade palpável, nas
sociedades primitivas a religião inspirava, (conforme foi visto no item 1.1.1) uma
segurança muito real e concreta, tendo em vista essa dimensão tão fundamental de
todas as sociedades: as relações sociais.
158
Mario Stoppino, Poder..., p.934.
ligados a um corpo de divindades, que através de diferentes ritos poderiam ser
controlados.
[...] O poder é sacralizado porque toda a sociedade afirma o seu desejo de eternidade
e receia o retorno ao caos como realização da sua própria morte. [...] Uma análise
rigorosa impõem que se considerem em conjunto estes dados fundamentais; de um
lado, a sacralização de uma ordem que é mostrada como necessária à segurança, à
prosperidade e à duração; do outro, o recurso, à força que permite ordenar, no pleno
sentido do termo, e dá testemunho do vigor do poder.159
Desse modo, será possível perceber que as noções que moldam e qualificam a
substância do poder, não tem apenas uma conotação política, mas também se
referem, explicitamente, ao domínio de um espaço que evoluindo aos poucos foi
sendo identificado como espaço sagrado, somente ocupado pelos oficiantes de direito.
No início eram os xamãs, os curandeiros, os feiticeiros e os mágicos que ocupavam
este importante espaço dentro das sociedades tribais, mas que, posteriormente, foi
sendo ocupado oficialmente pelos sacerdotes, enquanto que os anteriores oficiantes
foram sendo marginalizados e relegados a uma espaço religioso, digamos, de uma
classe e categoria bem menos inferior.
Para os Alur de Uganda, que se utilizam da noção de Ker como um dos principais
elementos de sua teoria política do poder, para se exercer uma boa liderança, se faz
necessário estar sob sua moção. Pois ker “designa a qualidade de ser chefe, o poderio
que permite exercer um domínio benéfico e que é a tal ponto necessário que os povos
que não o detêm devem desejar recebe-lo dos Alur”. Esse poder atuaria de forma a
organizar e fecundar a vida da sociedade. Três são os fatores que determinam o vigor
de sua necessária intervenção: “a continuidade da sociedade, a personalidade daquele
que utiliza desse poder (chefe) e a conformidade das relações mantidas com o
sagrado”. Nesse sentido, os chefes alur atuam como uma espécie de mediadores ente
a sociedade e a dimensão sobrenatural. São reconhecidos como “fazedores de
chuva”.160
159
Georges Balandier, Antropologia política, 2ª Edição, Lisboa, Editorial Presença, 1987, p.107-108.
160
Idem, p.109-110.
de estando em harmonia com a essência da criação manter a sua ordem. Segundo os
Tiv “a teoria política, na sua versão mais elaborada, é formulada na linguagem da
religião e da feitiçaria”. A tribo Tiv “sublinha a ambiguidade do poder e a ambivalência
da atitudes a seu respeito que levam a aceita-lo como garante de uma ordem propícia
às obras humanas (ele exprime a vontade dos deuses), sem deixar de o temer como
instrumento do domínio e do privilégio”.161
Dívida de sentido: aquilo que durante milênios os homens reconheceram dever aos
deuses, o que as sociedades, mais ou menos desde sempre, acreditaram dever às
determinações dos outros, aos decretos do Além ou às vontades do invisível. Com a
expressão, visamos a forma mais determinante e ao mesmo tempo a razão mais geral
da crença religiosa. A ideia que gostaríamos de desenvolver aqui, é, com efeito, a de
que a chave do problema do Estado se deve procurar do lado das raízes profundas do
facto religioso. Compreender porque razão os homens se afirmaram universalmente
devedores, porque é que as sociedades pensaram obstinadamente que as suas razões
de ser dependiam de outra coisa que não delas próprias, é compreender porque foi
possível o Estado num dado momento do devir humano-social.162 (grifo em negrito é
pessoal)
Herbert Spencer citado por Marshall Sahlins declara que se o Estado e a religião
institucionalizada – Igreja – “são um só” na origem, quando a sociedade civil é
instaurada, o Estado conserva sempre parcialmente um caráter de Igreja, mesmo
quando se situa num longo processo de laicização. Desse modo Sahlins afirma que “a
imbricação do sagrado e do político é, nesses casos, já incontestável”.164 E isto ocorre,
161
Georges Balandier, Antropologia política..., p.110-111.
162
Marcel Gauchet, A dívida do sentido e as raízes do estado: política da religião primitiva em Pierre
Clastres, Marcel Gauchet, Alfred Adler, Jacques Lizot, “Guerra, religião, poder”, São Paulo, Livraria
Martins Fontes, 1977, p.51.
163
Max Weber, Ensaios de sociologia,
164
Marshall Sahlins, Antropologia política..., p.106.
todavia, porque conforme afirma o próprio Sahlins, desde sempre aquele exercia uma
função de liderança tinha seu poder político revestido de certa sacralidade.
Em segundo lugar, que chave é essa que a religião, guardando em seus recônditos,
proporcionaria à sociedade uma nova maneira de encarar essa instituição, tão antiga e
tão nova, chamada estado?
Como o próprio autor parece fazer alusão, o fenômeno religioso – fato positivo
atestado em toda parte desde os mais longínquos começos – teria em si a resposta
para a solução de algo que tem atormentado a vida de milhões e milhões de pessoas
ao longo de toda a trajetória humana. Segundo Gauchet:
165
Marshall Sahlins, Antropologia política..., p.105.
166
Marcel Gauchet, A dívida do sentido..., p.51-52.
sobre todos os demais membros da sociedade. Essa é uma realidade que ainda se
pode identificar ainda hoje em diversas comunidades indígenas espalhadas por todo
este nosso mundo, nas suas mais diferentes latitudes e longitudes. Daí o nosso
espanto, a nossa admiração diante de um dado tão original e historicamente tão
permanente: sociedades com chefe, sim, mas, chefe sem autoridade, isto é: sem
poder!
Existe, conforme hipótese lançada pelo autor, um único campo possível de escapar ao
controle da sociedade: é o campo relacionado ao domínio demográfico. Este campo
que “é regido por regras culturais, mas também por leis naturais, espaço de
desdobramento de uma vida enraizada tanto no social quanto no biológico” 167.
Naturalmente, a vida só poderia fluir com naturalidade para as sociedades primitivas
se as tribos fossem pouco numerosas. E o que se constata, de fato, é que:
167
Pierre Clastres, A sociedade contra o estado: pesquisas de antropologia política, Rio de Janeiro,
Livraria Francisco Alves Editora S.A., 1978, p.148
168
Idem, p.148
Os karai, isto é, os profetas nas tribos tupis-guaranis, é que detinham essa
função. Segundo o testemunho de alguns textos de tribos tupis-guaranis que ainda
subsistem miseravelmente nas florestas do Paraguai, nos diz que “o lugar de
nascimento do mal, da fonte da infelicidade, é o Um”. Conforme Clastres afirma, este
era também o mesmo pensamento que atormentava as tribos de quatro séculos atrás.
A recusa do poder político dado a um único homem ou a própria recusa do estado, se
configuravam, conforme o texto, na personificação do mal.
Estes sabiam, pois, que o Um é o mal; eles o diziam de aldeia em aldeia, e as pessoas
os seguiam na procura do Bem, na busca do não-Um. Temos, portanto, entre os tupis-
guaranis do tempo do Descobrimento, de um lado uma prática – a migração religiosa –
inexplicável se não vemos nela a recusa da vida em que a chefia engajava a sociedade,
a recusa do poder político isolado, a recusa do estado; do outro, um discurso profético
que identifica o Um como a raiz do Mal e afirma a possibilidade de escapar-lhe.169
Mas por azar ou por infortúnio do destino, a grande massa de índios tupis-
guaranis, na ânsia de fugir ao Um que ia se configurando à pessoa do chefe tribal,
seguiram o karai, isto é, o líder religioso. Desse modo, os profetas, armados apenas de
seu logos, determinaram uma grande mobilização dos índios: unificou na migração
religiosa a diversidade múltipla das tribos.170
Descoberta estupenda que, de certa forma, ilumina a questão sobre como teria
surgido a figura do estado. Não é o caso aqui de desenvolver este estudo, mas ele
serve como parâmetro em termos do objeto de pesquisa escolhido: as relações de
poder. Como já salientei anteriormente, o que será demonstrado é que as relações de
169
Pierre Clastres, A sociedade..., p.150-151.
170
Idem, p.151.
poder entre o campesinato judaíta e a classe sacerdotal jerusolimitana, são a chave
para a compreensão do sentido da produção de muitos textos dentro do mesmo
período de crise e confronto social, bem como também, e não deixa de ser ilustrativo,
da realidade do regime político que estava sendo implantado naquele período, a
saber: o regime teocrático.
Assim como os karai, que servem de modelo para a afirmação da tese de que o
religioso está na origem de um regime estatal de governo junto às tribos tupis-
guaranis, os sacerdotes de Jerusalém, igualmente, estão no início do processo que
culminou naquilo que conhecemos pelo nome de judaísmo.
Concordo com Marcel Gauchet, quando afirma que a religião se constituiu para as
sociedades selvagens em dois pontos contraditórios:
Penso que neste aspecto, ao nível de conclusão de tese a que chegou Clastres, ele se
engana quanto à necessidade de sermos resolutamente contra o estado. É claro que
existem diversas configurações de estado e diante de algumas, principalmente as de
caráter despótico, autoritário e absolutista, como o regime fascista ou o regime
nazista, devemos ser frontalmente contra. Mas, existem outras situações, como
veremos mais adiante, em que o estado, dentro de determinados contextos,
atualmente, não somente é necessário, mas imprescindível.
Assim, como ficará demonstrado ao final desta tese, religião e poder, ou seja,
religião e política ou ainda, religião e estado, são incompatíveis de coexistirem numa
mesma instituição, é extremamente desastroso para qualquer sociedade ter essas
duas instâncias presentes numa mesma voz de comando ou autoridade.
171
Marcel Gauchet, A dívida do sentido e as raízes..., p.88.
A história demonstra como essa união tem produzido mais malefícios do que
benefícios para a sociedade como um todo.
172
Luís Lorenzetti, “Poder” em Francesco Compagnoni, Giannino Piana, Salvatore Privitera, Dicionário de
Teologia Moral, São Paulo, Editora Paulus, 1997, p.967
173
Idem, ibdem.
174
Mario Stoppino, “Poder”, em Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino, “Dicionário
de Política”, 11ª Edição, Brasília, Editora UnB, 1998, p.933.
175
Idem, p.941.
textos bíblicos escritos na transição do período persa para o período grego. As duas
citações de Lorenzetti, logo abaixo, são muito norteadoras.
O poder, por si mesmo, não tem nem terá fins bem precisos; terá os que lhe venham
da consciência. ‘O poder espera ser dirigido’ (R. Guardini). A questão ética do poder
consiste, pois, essencialmente na questão da finalidade do poder. Os fins, os objetivos,
as metas (que podem ser tão variados quanto os projetos humanos são o objeto e o
término do problema da avaliação do poder.176
Estreitamente ligada ao objetivo ou fim está a questão dos meios que precisam ser
assumidos: a perversão dos meios implica degeneração do fim. As perspectivas ou os
horizontes do poder – não só o político – dificilmente parecem conciliáveis com as
razões da ética; o poder tende à eficácia e, por isso, adota a astúcia, a coação e a
própria força.177
E é também à luz de mais um texto, ou melhor, de um texto que resume a ideia bem
precisa que utilizarei nesta tese e que servirá de norte em todo o seu
desenvolvimento:
Nesse sentido, Poulantzas ainda é mais explícito quando afirma que se por poder
entendemos a capacidade que uma determinada classe social possui de conquistar
seus interesses específicos, pode-se claramente concluir que:
[...] O poder de uma classe significa de início seu lugar objetivo nas relações
econômicas, políticas e ideológicas, lugar que recobre as práticas das classes em luta,
ou seja as relações desiguais de dominação/subordinação das classes estabelecidas na
divisão social do trabalho, e que consiste desde então em relações de poder.179
176
Luís Lorenzetti, “Poder”..., p.971.
177
Idem, p.971.
178
Nicos Poulantzas, Poder político e classes sociais, São Paulo, Livraria Martins Fontes Editora LTDA.,
1977, p.100.
179
Nicos Poulantzas, O estado, o poder, o socialismo, Rio de Janeiro, Edições Graal Ltda., 1978, p.168.
Portanto, é possível de se fazer uma análise do judaísmo ainda incipiente pelo viés das
relações de poder. A configuração do novo regime político que se foi estabelecendo
lentamente na província de Judá demonstra que estamos diante de um processo de
transição: do regime tribal, isto é, de grupos humanos – clãs – que que não estavam
divididos em classes sociais para um regime do tipo estatal, ou seja, nitidamente
dividido em classes.
Pensar a questão das relações de poder é perguntar por sua origem, pela sua natureza,
por sua estrutura, por sua destinação ou intencionalidade, por seu fundamento e por
sua legitimidade.180
Partindo desta visão mais específica de poder, que é aquele que atua num âmbito
sócio-político, pode-se afirmar que o que estará como uma motivação de fundo é a
questão do interesse, tomado em sentido subjetivo, isto é, como estado de consciência
de quem exerce o poder. Para que exista poder, como veremos, é necessário que o
comportamento de um determinado grupo – classe sacerdotal – funde o
comportamento do outro grupo em questão, isto é, das sociedades tribais. Portanto,
pode-se dizer que o comportamento embasado teoricamente pela classe sacerdotal,
condicionou o comportamento do campesinato, isto é, tornou-se a sua causa.
Nesse sentido, Mario Stoppino assinala que “antes de tudo, quando referida às
relações de poder social, a noção de causa não implica numa perspectiva de
determinismo mecanicista. As relações entre comportamentos são relações prováveis,
não relações ‘necessárias’”.181
180
Norberto Bobbio, Teoria geral da política: a filosofia política e as lições dos clássicos, 11ª Edição, Rio
de Janeiro, Editora Campus, 2000, p.................
181
Mario Stoppino, Poder..., p.936.
Nesse sentido, veremos que o comportamento da classe sacerdotal se apoia num
poder social, embasado – justificado e legitimado – juridicamente nas escrituras que
com o passar do tempo alcançaram o status de livros canônicos, cujo fim, se mostra na
capacidade de determinação intencional do comportamento do campesinato. Para que
isso se efetue, a classe sacerdotal teve que contar com uma série de recursos como
instrumentos viabilizadores de seu poder: o principal foi a elaboração de uma corpus
de “escritura” apresentada como sendo de caráter divino, visando nitidamente a sua
apresentação, legitimação, prestígio, popularidade, riqueza e relações com outros
grupos de prestígio, tal como a aristocracia, que detinha o poder econômico. Como
veremos, não faltou habilidade à classe sacerdotal para levar á frente seu projeto de
dominação, mas para isso, pode contar também com o apoio e respaldo do império
persa.
Os modos específicos pelos quais os recursos podem ser usados para exercer o Poder,
ou seja, os modos de exercício do Poder, são múltiplos: da persuasão à manipulação,
da ameaça de uma punição à promessa de uma recompensa. Alguns autores preferem
falar de Poder só quando a determinação do comportamento alheio se funda sobre a
coação. [...] Para além dos termos empregados, o que importa é formular uma noção
clara de determinação intencional ou interessada sobre a conduta alheia e identificar
dentro, dentro deste genus, a species particularmente importante de determinação do
comportamento alheio fundado sobre a coerção (coação). A coerção pode ser definida
como um alto grau de constrangimento (ou ameaça de privações) [...] No conceito de
coerção pode incluir-se também um alto grau de aliciamento (promessa de
vantagens).182
De fato, todos esses modos de exercício do poder poderão ser constatados nas
relações que se estabeleceram entre o campesinato judaíta e a classe sacerdotal
jerusolimitana: “da persuasão à manipulação, da ameaça de uma punição à promessa
de uma recompensa”. No documento sacerdotal (P) ou mais especificamente no livro
do Levítico, que tem como redatores, escribas membros do grupo sacerdotal
jerusolimitano, todas essas características poderão ser constatadas. Como poderá ser
verificada a coerção pode ser definida como o conceito que melhor define o tipo de
relação que se estabeleceu entre esses dois grupos.
182
Mario Stoppino, “Poder”..., p.938.
dentro desse contexto relacional quanto à função desempenhada pela religião como
instrumento de dominação. No próximo tópico será abordada a relação da religião
com o poder, como isso se processou no imaginário das sociedades primitivas ou
tribais. É esse também o objetivo desta tese: traçar uma trajetória do religioso à luz,
principalmente, dos escritos de Marcel Gauchet, tomando por base como objeto de
pesquisa, o estudo de um caso particular no contexto do judaísmo ainda incipiente que
se transfigurou na conflitualidade das relações de poder entre o campesinato judaíta e
a classe sacerdotal jerusolimitana.
3.1 – Conclusão
Ontem como hoje, religião e política ainda fazem parte da pauta de muitas
agendas, não somente eclesiais, mas também de políticos, que procuram por todos os
modos e meios alcançarem seus objetivos mesmo que à custa de muito fisiologismo.
O poder ainda é algo que encanta líderes de ambas realidades, tanto religiosa
quanto política e é nesse sentido que procurarei dar sequência a este estudo,
demonstrando que no Judaísmo tem-se a possibilidade de identificar essa união de
poderes numa mesma instituição.
II – Parte
Capítulo IV – Contextualizando o Judaísmo
Nesta segunda parte, adentro, de fato, aos textos bíblicos, com a explícita
intenção de auscultá-lo como se dele pudesse recolher elementos verídicos da história
das relações de poder entre a classe sacerdotal e o campesinato. Mas, pelo fato mesmo,
de como já observado no capítulo anterior, minha opção intelectual segue na linha dos
estudiosos minimalistas, isto é, daqueles que levando em grande conta os dados
advindos dos mais diversos campos das ciências concluem que se torna cada vez mais
complicado, para não dizer, impossível, querer escrever uma história do antigo Israel a
partir dos textos bíblicos.
Mas, alguém pode objetar: por que então, como afirmado acima, se utilizar dos
textos bíblicos como uma fonte de referência? A resposta é simples: apesar de sua quase
que total não-historicidade, e pelo fato dos textos terem se tornado normativos para o
judaísmo, isto é, foram criados e utilizados com uma finalidade bem precisa: serviram
de um modo todo especial, – mas não única e exclusivamente – aos interesses da classe
dominante, ou seja, da classe sacerdotal jerusolimitana.
Em verdade, os textos de que farei uso, são como a moldura de um quadro que
ainda está por ser pintado. Na moldura se tem o projeto ideológico imposto pela classe
dominante a toda a província de Judá. Consiste numa moldura que se destaca pelo peso
e rigidez do material utilizado. Pintado com as cores fortes da sedução encanta aos
espectadores menos atentos, pois como num jogo de espelhos só se vê numa quase
infinidade de imagens aquilo que os olhos são capazes de reter. É como Marta
Harnecker, falando de Marx, argumentava sobre sua originalidade quanto ao modo
tradicional de ver e interpretar a realidade: “A originalidade de Marx ficaria reduzida à
183
Fernando Cândido da Silva, Uma aliança abominável e per/vertida? Anotações subalternas sobre o
arquivo deuteronômico, UMESP, São Bernardo do Campo, 2011, p.53. (Tese de Doutorado)
inversão da concepção de Hegel. Segundo a formulação do próprio Marx, ele teria
„posto sobre os pés o que em Hegel andava de cabeça para baixo‟”184.
Alguém pode argumentar que se este conjunto de textos não tivesse sido criado
Israel jamais teria se tornado uma nação, sua identidade jamais teria sido forjada e que,
na verdade, os textos deram, acima de tudo, coesão social. Mas, é de se perguntar: qual
foi o preço pago por esse golpe literário? Quem lucrou e quem perdeu com a invenção
destas histórias?
De fato, como diz o ditado, o fim não justifica os meios, pois a perversão dos
meios implica na degeneração do fim. De fato, é bem isto que tentarei demonstrar.
Minha intenção ao fazer uso dos textos bíblicos é a de caracterizar o tipo de relação de
poder que se estabeleceu entre a classe sacerdotal jerusolimitana e o campesinato
judaíta. É tentar ler pelas entrelinhas do próprio texto aquilo que o texto não diz. Pelo
reverso do verso ter acesso ao anverso. É como num trabalho de garimpo, mergulhado
nas águas turvas do texto, peneirar essas pérolas a que o tribalismo por séculos foi
submetido. Ver o grande prejuízo que tiveram, principalmente, no tocante aos seus mais
nobres princípios e valores morais. É como diz Rigoberta Menchú Tum:
Assim, são essas as questões que agora me motivam a essa empreitada científica.
Não menosprezo em nada os trabalhos e pesquisas já realizados a nível literário, e
havendo necessidade, com toda certeza, lançarei mão do material disponível que
conseguir ter acesso. Mas, como já é possível perceber, essa tese tem um caráter
nitidamente de revisão histórica, devido aos inúmeros problemas que surgiram face aos
184
Marta Harnecker, Conceitos elementais do materialismo histórico, 1973, p.208.
185
Giulio Girard, Os excluídos construirão a história? – O movimento indígena, negro e popular: “Durante
cinco séculos outros falaram por nós, hoje queremos começar a falar com voz própria”, São Paulo,
Editora Ática, 1996, p.13.
dados provenientes, principalmente, das pesquisas arqueológicas186. Procedo a uma
espécie de desconstrução daquela compreensão tradicionalmente aceita com relação à
historicidade da maioria dos textos que compõe o conjunto dos livros do Antigo
Testamento.
Conforme o próprio tema salienta, esta tese quer submeter diferentes textos
produzidos no período persa que tornam claras as relações de poder entre o campesinato
judaíta e a classe sacerdotal jerusolimitana, a uma análise histórico-crítica. Para isso,
lanço mão do método histórico-crítico. Conforme trabalho coordenado por Horácio
Simian-Yofre pode-se fazer as seguintes distinções quanto a este método:
186
Ver Amihai Mazar, Arqueologia na terra da bíblia: 10.000-586 a.C.,São Paulo, Paulinas,2003, 554p.;
Israel Filkenstein, A bíblia não tinha razão, ...... Lester L Grabbe, The Priests in the Prophets: The
Portrayal of Priests, Prophets and Other Religious Specialists in the Latter Prophets, London, T & T Clark
International, 2004, 224p; A history of the Jews and Judaism in the Second Temple Period: volume 1 –
Yehud: A history of the Persian Province of Judah, New York, T&T Clark International, 2004, 471p.;
History of the Jews and Judaism in the Second Temple Period: volume 2 – The Coming of the Greeks: The
Early Hellenistic Period (335-175 BCE), New York, T&T Clark International, 2008.
187187
Horácio Simiam-Yofre (coord.), Metodologia do Antigo testamento, São Paulo, Edições Loyola,
2000, p.74.
188
Bultmann é considerado pelos acadêmicos como um dos maiores exegetas do século XX. Chamado
por muitos como “teólogo da demitização” ou “desmitologização”, Bultmann inovou em muito os
estudos da bíblia.
que deve ser avaliada como qualquer outra literatura religiosa antiga. De fato, são tantas
contradições, erros, fantasias históricas e, principalmente, ideologias, que chega a ser
impossível qualquer tentativa de sustentar a inerrância e inspiração dos livros bíblicos.
Conforme afirmou o Prof. Loyse, do Instituto Católico de Paris, os conceitos de
inerrância e inspiração são conceitos definitivamente superados189.
Segundo Simian-Yofre:
Também como afirma Simian-Yofre, no texto acima citado, ter clareza quanto
ao universo do texto e ao conjunto das circunstâncias do mundo extra bíblico (momento
histórico-político, situação econômica e social, tendências religiosas e culturais), nos
permite verificar a hipótese de que o Judaísmo ainda nascente dos séculos IV e III a.C.,
189
Citado por Horácio Simian-Yofre, Metodologia..., p.74
190
Horácio Simian-Yofre, Metodologia..., p.102-103.
que tem seu fundamento, principalmente nos livros da OHD, em Ez 40-48, na OHC e
nos livros do Pentateuco, teve como patrocinador, nada mais nada menos, do que o
próprio império persa, com sua política imperial de controle dos povos subjugados.
191
Frank Crusemann, “O Pentateuco, uma torá. Prolegômenos à interpretação de sua forma final” em
Alberty de Pury (org.), O Pentateuco em questão: as origens e a composição dos cinco primeiros livros da
Bíblia à luz das pesquisas recentes, 2ª Edição, Rio de Janeiro, Editora Vozes, 2002, p.273-274.
Samuel e 1 e 2 Reis, que serviram de base para a redação da OHC), que nos auxilia na
reconstrução da trajetória do tribalismo “israelita”.
Nesse sentido, todo trabalho de pesquisa desta tese, que tem no método
histórico-crítico, seu principal instrumento de aproximação e análise de realidades
sociais, será feito segundo os critérios e categorias do materialismo histórico, ou seja, da
teoria marxista da história, pois tenho a firme convicção de que a teoria inicialmente
desenvolvida por Karl Marx e Friedrich Engels e posteriormente aprofundada por
grande número de estudiosos é extremamente profícua no tocante ao estudo e análise
das relações de poder numa sociedade dividida em classes sociais, pois como afirmou
François Houtart com relação a Marx, e Engels:
[...] Retomando uma hipótese já formulada antes deles, segundo a qual a história é a
história da transição de formas de organização social sem classes às sociedades de
classe [...] condições e formas de transição das sociedades não diversificadas que
evoluem de múltiplas formas no sentido de formas distintas de Estado e de sociedades
de classe.192
De fato, é bem isto que pode ser evidenciado com a ascensão do judaísmo. Um
processo bem claro de transição de uma sociedade marcada pela igualdade, isto é, não
dividida em classes sociais – tribalismo – para uma sociedade marcada pelo surgimento
do Estado, ou seja, por uma sociedade dividida em classes sociais, onde o poder
religioso foi o grande protagonista de toda uma grande e radical metanoia, não somente
em seu aspecto religioso, que foi dominante, mas principalmente, nas demais dimensões
da vida, pois como afirma Lester L. Grabbe: considerações econômicas não podem ser
claramente separados do debate da sociedade e da administração da província de Judá, e
até mesmo da religião.193
Assim também pensa Lester L. Grabbe, quando afirma que o período persa foi o
período mais importante para o desenvolvimento do pensamento e da prática judaica
desde a antiguidade até o presente, pois entender os acontecimentos deste período é
chave para a compreensão de todos os desenvolvimentos do judaísmo. Uma
compreensão das forças e dinâmicas, presentes no segundo templo são essenciais para a
compreensão das condições de sobrevivência do campesinato judaíta.195
194
Milton Schwantes, “Aprendendo a ler a escritura” em Simpósio, nº 41, São Paulo, ASTE, 1998, p.xxxx
195
Lester L. Grabbe, A history of the Jews and judaism in the second temple period: volume 1 – Yehud: a
history of the Persian Province of Judah, London, T&T Clark International, 2004, p.2.
domínio”) com seus devidos representantes, o império persa mantinha o controle
político, militar e econômico ao longo de todo o seu império. As satrapias, com seu
governador local, desfrutavam de certa autonomia em relação com a sede do império.
Judá pertencia à 5ª satrapia, isto é, à satrapia localizada na província de Samaria.196
Mas, por outro lado, o mesmo Grabbe afirma que os impérios antigos tinham
pouca compreensão da teoria econômica e por isso, podem não ter tido uma
196
Donner afirma que o território total de domínio do império persa foi dividido em 23 satrapias, sendo
que para o Oriente Próximo, foram importantes quatro satrapias: “1. Babairu (= Babilônia, i.é.,
Mesopotâmia); 2. Atura (= Assíria, no sentido de Síria, em acádica: Eber Nari, em aramaico imperial:
A a
‘ bar Nah ra, “transeufrates” (ao pé da letra: “além do rio”, visto a partir da Pérsia e da Mesopotâmia, i.
é., o corredor siro-palestinense; 3. Arabaya ( = Arábia do Norte); 4. Mudraya (= Egito). As satrapias
tinham que pagar tributos regulares e cuidar do sistema de correios”. Herbert Donner, História de Israel
e dos povos vizinhos: volume 2 – da época da divisão do reino até Alexandre Magno, 2ª Edição,
Petrópolis, Vozes, 2000, p.450.
197
Passo a citar 6 mecanismos de controle social e político, habilmente desenvolvidos pelo império
persa e assinalados por Marcos Paulo Monteiro da Cruz Bailão, Doença impura como limite da
identidade comunitária, São Bernardo do Campo, UMESP, 2001, p.212-224, em sua Tese de Doutorado.
198
Lester L. Grabbe, A history of the Jews and Judaism in the Second Temple Period: volume 1 – Yehud: A
history of the Persian Province of Judah, New York, T&T Clark International, 2004, p.145.
consciente política econômica, se não, algo de muito rudimentar. Se a economia
romana foi subdesenvolvida, quanto mais os reinos persas e gregos. O poder imperial
antigo parece ter tido dois principais interesses: impostos e serviço militar. Sua
“política econômica” era simplesmente uma maximização de receita a partir de um
ponto de curto prazo de vista, não fazer o que hoje poderíamos considerar como
investimento de longo prazo.199
4.2.1 – Ruralização
Por isso, podemos supor que com o retorno dos exilados, toda a problemática
relacionada a quem pertencia por direito as terras em Judá, não foi logo de início
enfatizada com o maior problema, como pensava, por exemplo, John Bright.203
Segundo Marcos Bailão, “o problema maior não era a posse da terra, mas o
destino do que era produzido nela. Isto realmente provocou profundas mudanças no
199
Lester L. Grabbe, A history of the Jews and Judaism in the Second Temple Period: volume 1 – Yehud: A
history of the Persian Province of Judah, New York, T&T Clark International, 2004, p.190-191.
200
Kenneth Hoglund, “The achademic context” em Philip R. Davies, Second temple studies: 1 Persian
Period, Sheffield, JSOT Press, 1991, p.57-60.
201
Conforme Hougland à p.59, citado acima, o império persa se considerava dono absoluto de todas as
terras conquistadas, sentindo-se no direito de fazer o que bem entendesse.
202
Lester L. Grabbe, A history of the Jews and Judaism in the Second Temple Period: volume 1 – Yehud: A
history of the Persian Province of Judah, New York, T&T Clark International, 2004, p.203.
203
John Bright, História de Israel, 3ª Edição, São Paulo, Paulinas, 1985, p.495.
meio da sociedade, principalmente na primeira fase do período de dominação
persa”.204
Portanto, pode-se afirmar que não houve uma política persa de ruralização na
província de Judá. Mas, Hoglund está correto quando afirmou que a população de Judá
viveu principalmente em pequenas aldeias sem muros e teve um nível de economia de
subsistência.
204
Marcos Paulo Monteiro da Cruz Bailão, Doença impura..., p.217. De fato, como afirma Bailão, “o
destino do que era produzido” na terra é que se tornou o grande entrave. Por isso, em momento
oportuno trabalharei o conceito marxista do “materialismo histórico”.
205
Paula McNutt, Reconstructing the society of Ancient Israel, Londres, Westminster John Knox Press,
1999, p.185-186.
206
Marcos Paulo Monteiro da Cruz Bailão, Doença impura..., p.218.
Historiográfica do Cronista (Esdras, Neemias, 1 e 2 Crônicas) é escrita assim como
outros livros do Antigo Testamento.207 E são livros que retratam a história desse mesmo
período em questão, suas lutas e desafios. Mas, como afirma Sandro Gallazzi:
O primeiro esforço de busca narrar uma história unívoca, para todos e para sempre, é o
de eliminar contradições, grupos, povos. Trata-se de um “genocídio” ideológico, para
evitar dúvidas e discussões.
Trata-se de demonstrar que o grupo que “hoje” está ao poder, esteve no poder desde
“sempre” ou, de alguma forma, desde sempre, esteve caminhando nesta direção.
De fato, como constata Sandro Gallazzi, um exemplo claro desse jeito de narrar
a história, eliminando contradições, grupos e povos, é o que foi feito pelo redator da
OHC. Precisamente no livro de Crônicas pode-se detectar esta estratégia literária, mas
que, para nós hoje, não passa de uma forma de esconder o verdadeiro sentido que está
por trás do texto. Vejamos o que o redator de Crônicas nos apresenta quanto ao tempo
após a destruição de Jerusalém por Nabucodonosor em 587 a.C..
207
Por exemplo: Dêutero e Trito Isaías, Ezequiel, Joel.
208
Sandro Gallazzi, A teocracia sadocita: sua história e ideologia, Biblioteca de Estudos Bíblicos, Macapá,
2002, p.15.
O grupo “pobres da terra” que naquele dia receberam vinhas e campos
(Jr 39,10).
Jeremias com todos os levitas que ficaram com Godolias em Masfa (Jr
40,6).
Os “chefes” do campo que se convenceram a servir ao rei dos Caldeus (Jr
40,7-10).
Os “judaítas” que tinham emigrado para Amom, Moab e Edom e que
voltaram para ficar com Godolias (Jr 40,11).
Os 80 homens de Siquém, Silo e Samaria que vieram apresentar oblações
e incensos na casa de Iahweh (Jr 41,4-5).
Os soldados caldeus que ficaram em Masfa (Jr 41,3b), as “filhas do rei”
(Jr 41,10) e, também, os “eunucos” da corte (Jr 41,16).
Outro aspecto que deve ser enfatizado é o fato de que houve o que podemos
chamar de um “processo de retribalização”. Após a destruição de Jerusalém pelas
tropas babilônicas, Nabuzardã, comandante da guarda e general das tropas de
Nabucodonosor, deixou que o campesinato empobrecido tomasse novamente, posse
da terra (cf. 2 Rs 25,12). Esta mesma situação é descrita pelo profeta Jeremias no
capítulo 40,10b-12. Diz ele:
[...] Quanto a vós, fazei a colheita do vinho, das frutas e do azeite, fazei provisões e
ficais nas cidades que ocupais. Da mesma forma, todos os judaítas que se achavam em
Moab, entre os amonitas, em Edom e em todas as outras terras, souberam que o rei
de Babilônia tinha feito concessões a Judá e nomeado comissário a Godolias, filho de
Ahiqâm, filho de Shafan. Eles voltaram então de todos os lugares onde tinham sido
dispersados. De volta à terra de Judá, para junto de Godolias, em Mispá, fizeram uma
colheita de vinho e de frutas, uma colheita super abundante.
[...] eliminar, tanto quanto possível, a vida própria dos povos subjugados através de
saques e destruição, através de deportações implacáveis, através de altos tributos e de
um regime duro. Eles haviam almejado uma massa de povos cosmopolita o mais
209
Martin Noth, Storia d’Israele, Brescia, Paideia, 1975, p.354-359; Milton Schwantes, Sofrimento e
esperança no exílio, São Paulo, Paulinas, 1987, p.30-32; Norman Gottwald, Introdução socioliterária à
Bíblia Hebraica, São Paulo, Paulinas, 1988, p.397-399.
210
Sandro Gallazzi, A teocracia sadocita..., p.19.
homogênea possível, sob liderança assíria. Peculiaridade, história, vida cultural,
religiosa e cúltica dos povos sujeitados lhes haviam sido profundamente suspeitas. Sua
tentativa de pacificar o império estava fundada na violência. Essa política fracassara211
Como poderá ser constatado, tanto o grupo social designado como “campesinato
judaíta” quanto o grupo social designado pelos sacerdotes do templo de Jerusalém,
constituíram-se nos dois principais grupos dentre outros, foram os grandes protagonistas
211
Herbert Donner, História de Israel e dos povos vizinhos: Volume 2 – da época da divisão do reino até
Alexandre Magno, 2ª Edição, Rio de Janeiro, Editora Vozes, 2000, p.445.
212
Sandro Gallazzi, A teocracia sadocita..., p.16.
do Judaísmo ainda incipiente, respectivamente, o grupo dominado e subjugado frente ao
grupo dominador.
Assim, pode-se concluir que tanto Jeremias quanto Ezequiel tinham pontos de
vista teológicos diferentes. Para Jeremias “resto” eram os pobres camponeses que
ficaram e tomaram posse “novamente” da terra (Jr 40,11.15). Para Ezequiel, “resto”
eram os exilados (Ez 5.4-17; 11,17-21). Enquanto Jeremias incluía em seu projeto de
reconstrução tanto os exilados como os remanescentes que ficaram, Ezequiel, os
excluiu, afirmando que só os exilados eram a verdadeira “casa de Israel”. Aqui estão
postos os termos que geraram os grandes conflitos. Segundo Sandro Gallazzi, resto de
Israel não é somente uma questão teológica, é, também, uma questão econômica e
política, pois foi ao redor destas questões que os diferentes grupos se enfrentaram na
luta pelo poder.213
213
Sandro Gallazzi, A teocracia sadocita..., p.32.
214
Idem, p.34.
Outro grupo que sobrevive no exílio é aquele cujas palavras ecoaram por meio,
talvez, de um seu representante: o Dêutero-Isaías. Nada tem do grupo da elite a quem se
dirigia Ezequiel. Não é a “casa de Israel”. Uma leitura bem atenta nos dá capacidade de
perceber a presença ativa de mulheres no meio desse grupo. Sandro Gallazzi caracteriza
esse aspecto feminino da seguinte forma:
Segundo Henri Cazelles, a tribo é a mais antiga realidade sociológica, o que não
exclui, logicamente, um núcleo familiar. Na ótica bíblica, beney Israel são os
“filhos de Israel”. Para Cazelles, os beney Israel se constituem nas doze tribos
que se ligam de uma maneira ou outra a um epônimo que tem o nome de
Israel217. Segundo alguns historiadores as tribos gozavam de uma grande
autonomia, como no caso das tribos de seminômades do Oriente Próximo
Antigo. Estudos mais recentes demonstram que as tribos eram na origem uma
217
Estela de Mernepta
unidade étnica.218 “Se uma tribo pode compreender várias ‘casas’ ou ‘famílias’
que descendem de um antepassado comum pelo sangue ou por ficção jurídica,
isso tanto mais acontece quando se trata de agrupamentos de tribos”.219
Para G. E. Mendenhall, citado por Roland de Vaux, tribo não seria:
[...] producto de una descendencia genealógica; es una unidad social que transciende
el grupo del poblado: sus miembros le prometen lealdad e ella les asegura en cambio
su protección colectiva. No había oposición entre cultivadores y pastores, sino entre
poblado e ciudad.220
Sendo assim, Gottwald postula que as tribos não sendo uma entidade fixa que
poderia ser localizada em qualquer lugar é sim, um tipo ideal caracterizado por um
agrupamento de características, que heuristicamente, é vantajoso para analisar
sociedades específicas, mas com diferentes graus, pode-se dizer, de tribalismo. Ou
218
Henri Cazelles, História política de Israel: desde as origens até Alexandre Magno, São Paulo, Edições
Paulinas, 1986, p.71.
219
Idem, p.79.
220
Roland de Vaux, Historia antiga de Israel: II – asentamiento en Canaan y período de los jueces,
Madrid, Ediciones Cristiandad, 1975, p.26.
221
Norman K. Gottwald, As tribos de Yahweh: uma sociologia da religião de Israel liberto 1250 – 1050
a.C., São Paulo, Edições Paulinas, 1986, p.303.
ainda, que “sociedade tribal é um sistema no qual o todo é inerente e é o que
determina as partes”.222
222
Norman K. Gottwald, As tribos de Yahweh..., p.304.
223
Idem, p.305.
224
Airton José da Silva, A História de Israel na pesquisa atual em Jacir de Freitas Faria (org), História de
Israel e as pesquisas mais recentes, Petrópolis, Vozes, 2003, p.43-87.
225
R K Gnuse, No other Gods: Emergent monotheism in Israel, Sheffield, Sheffield Academic Press, 1997,
392p.
4.4.1.1 – Retirada pacífica226
Os pesquisadores que concordam que no processo de formação do antigo Israel
houve uma retirada pacífica estão: Joseph Callaway, David Hopkins, Frank Frick, James
Flanagan, Gosta Ahlstron e Carol Meyers. Analisando os resultados das escavações,
principalmente em Ai e Khirbet Raddana, território de Efraim, observou-se uma incrível
continuidade cultural entre os habitantes das cidades-estado cananéias das planícies
com os povoados israelitas das colinas, quanto às cerâmicas, técnicas agrícolas,
construções e ferramentas. Outro detalhe relevante, para estes especialistas, consiste
no fato de que os assentamentos israelitas teriam surgido após um colapso das
cidades cananéias. Tendo desenvolvido mais amplamente esta categoria, Gosta
Ahlstron, onde contesta a tese de Gottwald de uma “retribalização” que teria se
originado de uma revolta de camponeses, baseada na evidência cultural dos materiais
recolhidos, constata seu apreço por esta teoria. Já Carol Meyers defende a
possibilidade de Israel ter surgido após um violento ataque de pragas que teria
devastado as plantações nas planícies, fazendo com que muitos dos agricultores se
deslocando para as montanhas, a fim de fugir desta situação, intensificaram a
agricultura mediante o desenvolvimento das técnicas de construção de cisternas e
terraços.
226
Cf. Joseph Callaway, Village Subsistence at Ai and Raddana in iron Age I em H Thompson, The
answers lie bellow: essays in honor of Lawrence Edmund Toombs, Lanham, University Press of America,
1984; David Hopkins, The highlands of Canaan, Georgia, Almond Press. 1985; Frank Frick, The formation
of the state in Ancient Israel: a survey of models and theories, Georgia, Almond Press, 1988; James
Flanagan, David’s social drama: a hologram of Israel’s early iron age, Georgia, Almond Press, 1988;
Gosta Ahlstron, A history of Ancient Palestine, Minneapolis, Fortress Press, 1993; Carol Meyers,
Discovering eve: Ancient Israelite women in context, New York, Oxford University Press, 1988.
227
Cf. CHJ de Geus, The tribes of Israel: an investigation into some of the presuppositions of Martin
Noth’s amphictyony hypothesis, Amsterdam, Van Gorcum, 1976; V Fritz, Die Entstehung Israels im 12
und 11 Jahrundert v. Chr., Sttutgart, Kohlhammer, 1996; Israel Finkelstein, The archaeology of the
Israelite settlement, Jerusalem, Israel Exploration Society, 1988; Israel Finkelstein, N A Silberman, The
bible unearthed: archaeology’s new vision of ancient Israel and origin of its sacred texts, New York, The
Free Press, 2001.
colapso das cidades-estado, estes expandiram seus domínios. Já Volkmar Fritz, que
anteriormente defendia a teoria de Albretch Alt, de uma infiltração pacífica, quando de
seus trabalhos no norte do Neguev percebeu uma grande semelhança, isto é, uma
simbiose entre as culturas israelita e cananéia. Chamou a atenção de Fritz a casa de
quatro cômodos, que segundo ele, representou uma evolução arquitetônica em
relação às casas construídas na planície cananéia. Outro elemento de destaque, foram
os objetos de cerâmica e metal encontrados. Eles deixaram entrever que estes
israelitas não eram verdadeiros nômades, mas que estiveram em contato com os
habitantes das planícies. Para Fritz estes israelitas eram os hapiru ou os shasu dos
textos egípcios, que teriam dado origem também a Moab e Edom.
Israel Finkelstein, como principal defensor desta teoria, conclui que os proto-
israelitas eram uma espécie de “nômades internos” que vivendo ao redor das cidades-
estado, ao longo de toda a Idade do Bronze, com o declínio destas, começam a
sedentarizar-se, ou seja, buscam na agricultura o necessário para sua sobrevivência.
“Eles teriam se assentado em grande número na região montanhosa de Efraim e, a
partir dali, se espalhado como defendia Alt, para o norte e para o sul da região”228.
228
Airton José da Silva, “A história de Israel na pesquisa atual”..., p. 43-87.
229
Cf. NP Lemche, Early Israel: anthropological and historical studies on the Israelite society before the
monarchy, Leiden, Brill, 1985; Ancient Israel: a new history of Israelite society, Sheffield, Sheffield
Academic Press, 1995; The Canaanites and their land: the tradition of the Canaanites, Sheffield, Sheffield
Academic Press, 1991; Die vorgeschichte Israels: von anfangen bis zum ausgang des 13, Sttutgart,
Kohlhammer, 1996; The Israelites in history and tradition, Kentucky, Westminster John Knox, 1998;
William Stiebing, Out of the desert? Archaeology and the conquest narratives, Buffalo, Prometheus,
1989; Robert Drews, The end of the Bronze Age: changes in warfare and the catastrophe ca. 1200 B.C.,
Princeton, Princeton University Press, 1993; Robert Coote e Keith Whitelam, The emergence of early
Israel in historical perspective, Georgia, Almond Press, 1987; Rainer Albertz, A history of Israelite religion
in the old testament period, 2 vols, Philadelphia, Westminster Press, 1994.
230
Airton José da Silva, “A história de Israel na pesquisa atual”..., p.61.
Já William Stiebing vê nas mudanças climáticas ocorridas na região o fator
principal para o declínio da cultura urbana nas planícies da palestina e,
consequentemente, com o estabelecimento nas montanhas, o seu pleno
desenvolvimento posterior.
Robert Drews defende que “os povos do mar que invadiram a região não eram
simples migrantes, mas mercenários treinados e com armamento superior”231, além de
terem massacrado as populações que habitavam a região plana, forçaram os demais a
se refugiarem nas montanhas, influenciando assim, numa mudança ética e cultural.
Rainer Albertz “faz uma espécie de síntese de várias escolas, indo de Albright a
Lemche [...] fala de digressão, processo pelo qual o colapso do comércio internacional
forçou os habitantes das cidades a se deslocarem para os povoados das montanhas e
aí se desenvolverem”.232
Para Baruk Halpern, que foi um dos primeiros pesquisadores a sugerir que o
processo de assentamento nas montanhas, teria sido fruto de uma complexa interação
de diferentes grupos, acredita ter sido o grupo, oriundo do Egito, que trouxe a crença
231
Airton José da Silva, “A história de Israel na pesquisa atual”..., p.62.
232
Idem, ibdem.
233
Cf. Baruch Halpern, The emergency of Israel in Canaan, Chico, CA, Scholar Press, 1983; William Dever,
Recent archaeological discoveries and biblical research, Seattle, University of Washington Press, 1990;
Thomas L Thompson, Early history of the Israelite people from the written and archaeological sources,
Leiden, Brill, 1992; The mythic past: biblical archaeology and the myth of Israel, New York, Basic Books,
1999; Donald Redford, Egypt, Canaan and Israel in ancient times, Princeton, Princeton University Press,
1992.
234
Airton José da Silva, “A história de Israel na pesquisa atual”..., p.63.
em Yahweh. Para ele, todos estes grupos tinham em comum a necessidade de
participarem ativamente do comércio que, tanto pela planície quanto pelo caminho
dos reis, era viabilizado. Halpern afirma que “o Israel histórico não é o Israel da Bíblia
Hebraica, mas foi o Israel histórico que produziu o Israel bíblico”235.
William Dever defende a hipótese de que Israel tenha se formado pelo afluxo
de diferentes contingentes sociais, que se reunindo nas montanhas, aos poucos
adquiriram uma identidade diferente em relação aos habitantes das planícies. Para
Thomas L. Thompson toda a população palestinense não passou por nenhuma
profunda alteração ao longo de alguns milênios. Defensor de uma história da Palestina
ao invés de se tentar escrever uma história de Israel, pois esta, só teria surgido
enquanto estado, muito tempo depois, por volta do século VIII, quando das incursões
do império assírio. Para ele, “toda a história bíblica do império davídico-salomônico e
dos reinos divididos de Israel e Judá é pura ficção pós-exílica”236.
235
Airton José da Silva, “A história de Israel na pesquisa atual”..., p. 63.
236
Idem, p.65.
No fundo, ao que tudo está a indicar, é mais uma invenção do redator para tentar
amenizar o peso da culpa que teria recaído quase que totalmente sobre os ombros da
monarquia.
Mas, com relação ao nosso objeto de pesquisa, que são as relações de poder,
estabelecidas dentro da sociedade norte-israelita, que perfil podemos traçar desta
237
Airton José da Silva, “A história de Israel na pesquisa atual”..., p.63: A aposta de R. K. Gnuse “que aqui
se alinha, é que este grupo de pesquisadores prevalecerá sobre os outros, por considerar melhor os
pressupostos teóricos do debate atual”.
sociedade, a partir destes inúmeros dados levantados pela pesquisa arqueológica
citados acima?
Diante destes fatos, levantamos algumas questões: será que a sociedade que
viveu sob a dinastia dos amridas, particularmente, o campesinato, era um grupo social,
plenamente satisfeito com seu modo de vida? Desfrutavam eles também de toda a
riqueza por eles mesmos produzida? As suas casas eram como as casas daqueles que
moravam nas cidades? Será que estes campesinos, tiveram autonomia suficiente para
viver sua religiosidade? Aliás, que tipo de religiosidade será que eles tinham nesse
período? Ou será que foram obrigados pelo novo estado a adotar uma nova religião?
Como pode ser intuído, sabemos que a monarquia norte-israelita precisou, não
somente de mão de obra especializada, mas, principalmente, de mão de obra barata.
Quantos não devem ter sido transformados em escravos? Pensemos um pouco:
quantas pessoas (homens somente?) não seriam necessárias para fazer aqueles
enormes muros de arrimo (casamatas)? E, isso, sem falar dos aterros, pois na sua
maioria, como medida de segurança, as cidades foram construídas no topo das colinas,
obrigando os construtores, necessariamente, a aumentar o espaço do platô. Pelo que
sabemos, naquele tempo ainda não existiam carregadeiras, mas todo o trabalho de
aterro foi realizado somente mediante o esforço humano. Foram toneladas e mais
toneladas de terra para preencher os espaços vazios. E o que dizer das pedras
utilizadas na construção dos muros de casamata. Quem as talhava, quem as
transportava até o lugar em que seriam utilizadas?
Bem, essa situação nos leva a tirar algumas conclusões. Ao que tudo indica, o
regime de serviço utilizado durante o período da dinastia amrida não foi muito
diferente do regime que era imposto pelas cidades-estados no período do Bronze.
Portanto, todos, com exceção daqueles que moravam nas cidades – setor
administrativo – viviam num regime de certa escravidão, pois deveriam se submeter a
isso ou teriam que fugir, como outrora fizeram, para outras regiões. Mas, qual região?
Sabemos que naquele momento existiam grandes forças regionais que ansiavam pela
hegemonia política e militar de toda aquela região. Aram-Damasco, no sul da Síria, a
leste Amom e Moab, ao sul (sudeste) o império egípcio e na costa mediterrânea,
algumas cidades-estados filistéias. Todos, sem exceção eram fortes rivais da dinastia
amrida.
238
Israel Finkelstein, A Bíblia não ..., p.274.
Com a entronização de Jeroboão II como rei de Israel, mais a estabilidade
política na região, pois, Aram-Damasco já não tinha a mesma liberdade e
impetuosidade de antes, isso fez com que Israel alçasse voo na direção do progresso e
do crescimento, sempre, é claro, às custas de muita escravidão, miséria e sofrimento
por parte dos camponeses.
Se formos nos ater somente ao que diz o redator da OHD, poucos são os
detalhes a respeito do governo de Jeroboão. Agora é preciso lançar mão novamente
do que diz a pesquisa arqueológica, o livro do profeta Amós que exerceu seu
ministério profético durante o governo de Jeroboão II.
Em Dan, a estela da vitória de Hazael parece haver sido esmagada, e seus fragmentos
reutilizados numa construção posterior (onde seriam encontrados por arqueólogos
cerca de 2800 anos mais tarde), quando israelitas construíram ali uma cidade. Em
Bethsaida, a estela com a deidade no estilo arameu foi, da mesma maneira,
intencionalmente aprumada e reinstalada de cabeça para baixo. E aproximadamente
no mesmo período Hazor foi conquistada, destruída e reconstruída; pode não ser uma
completa coincidência que as inscrições hebraicas apareçam em Hazor nessa fase de
construções, pela primeira vez.239
239
Israel Finkelstein, A Bíblia não ..., p.283.
Conforme as figuras abaixo são possíveis ter uma ideia da estrutura montada
para a produção de azeite, em larga escala:
240
Israel Finkelstein, A Bíblia não ..., p.
241
Amihai Mazar, Arqueologia ..., p.464.
Conforme Amihai Mazar muitas dessas “prensas de azeite são encontradas
dentro de casas comuns, indicando que a manufatura do azeite era uma indústria
doméstica praticada pelas famílias em suas casas”.242 Outras prensas de azeite,
conforme Finkelstein eram:
[...] cortadas na rocha... algumas das quais podem ter sido propriedades reais ou, pelo
menos, construídas para esse propósito. Não havia falta de mercados potenciais: o
óleo de oliva das regiões montanhosas de Israel podia ser exportado com lucro para a
Assíria e embarcado para o Egito, pois tanto o Egito, quanto a Assíria, não dispunham
de boas regiões para o cultivo da oliveira.243
Outro achado interessante, que comprova esse intenso comércio de Israel com
as outras nações, são os famosos “óstracos” de Samaria. Esses óstracos são uma
coleção de 63 cacos de cerâmica com inscrição em hebraico, bem com também,
datados do período de Jeroboão II. Eles registram o carregamento e o embarque de
azeite e de vinho pelas aldeias da região de Samaria.
O fato de, posteriormente, Judá ter assumido o nome de Israel, não se deve
talvez a esse esplendor econômico e a essa monarquia gloriosa?
- Será que a religião, teria sido utilizada pelas lideranças políticas como
instrumento de legitimação da ideologia sócio-política?
245
Idem, p.291.
Como vimos no tópico anterior, o Reino do Norte atingiu no reinado de
Jeroboão II seu apogeu, tanto em termos econômicos, quanto em termos de expansão,
pois sua população havia crescido além da medida.
Olhando para todo esse cenário interno e fazendo uma análise da conjuntura
externa naquele momento, Israel deveria ter ficado bem atento, pois a situação
geopolítica na região do crescente fértil estava mudando aceleradamente. Estava
surgindo uma nova potência: o Império Assírio.
Mas, como veremos abaixo, não foi somente o fato de ter surgido no cenário
internacional da época uma nova potência, que levou Israel à decadência, mas, sim, o
modo como a monarquia foi instituída e conduzida ao longo dos seus quase três
séculos de existência (X – VIII a.C.).
Inicio este tópico com uma expressão tirada do próprio livro de Amós, e que,
de certa forma, sintetiza e retrata bem o que vamos encontrar pela frente: “total
terror” (cf. Am 3,9)246. Era isso o que o profeta via diante de si. São duas pequenas
palavras que juntas carregam consigo uma profunda carga semântica de
expressividade. Essa síntese feita pelo profeta Amós, resume bem a situação a que foi
submetida toda a população camponesa.
246
Milton Schwantes, A terra não pode suportar suas palavras (Am 7,10): reflexão e estudo sobre Amós,
São Paulo, Paulinas, 2004, p.87.
Bem, se todo esse trabalho fosse para receber um justo salário, até que
concordaríamos, mas, como bem sabemos, a história foi bem outra. Na verdade, os
trabalhos eram forçados e sob condições quase sempre bem desumanas.
Outro agravante foi o fato de Israel, não podendo contar com a extração de
diversas matérias primas, ser obrigado a entrar de cheio no comércio internacional.
Mas, o que Israel poderia oferecer em troca de objetos, cujo valor excedia em muito
seus produtos agrários? A solução era oferecê-los em grande quantidade, isto é, os
camponeses eram obrigados a produzir muito além da medida para financiar estes
enormes custos.
“porque vendem o justo por dinheiro e o pobre por um par de sandálias” (Am
2,6b)
“porque são ávidos para ver o pó da terra sobre a cabeça dos indigentes e
desviam os recursos dos humildes” (Am 2,7a).
“olhai que desordem em seu seio, que opressões no meio dela”(Am 3,9b).
“Escutai, vós que vos encarniçais contra o pobre, para aniquilar os humildes da
terra”(cf. Am 8,4).
Enquanto os camponeses são “triturados” pela classe citadina, estes, ao
contrário, conforme nos apresenta o profeta, desfrutam do bom e do melhor, pois, “a
prosperidade, a exploração e o lucro eram os aspectos mais marcantes da sociedade
que Amós contemplava. Os pobres eram realmente pobres e desavergonhadamente
explorados”247, como pode ser constatado abaixo.
“eles não conhecem o reto agir esses amontoadores de violências e rapinas nos
seus palácios” (Am 3,10)
“Ai dos que fundaram sua tranquilidade em Sião e dos que puseram sua
segurança na montanha de Samaria, elite da primeira das nações” (Am 6,1)
Mas, diante de tudo isso, surge uma pergunta: por que os camponeses não se
rebelaram e colocaram um fim em toda essa situação?
247
J.A.Motyer, O dia do leão: a mensagem de Amós, São Paulo, 1984, p.1.
Que estruturas e mecanismos estavam sendo colocados em prática para
legitimar toda essa situação de submissão por parte dos camponeses e de dominação
por parte da classe citadina?
Bem, esse era o quadro que Amós contemplava diante de si. Estamos quase no
fim da primeira metade do século VIII a.C. Muita coisa ainda aconteceria até a
derrocada final em 722 a.C.
Por isso, é importante ter bem claro diante de nossos olhos também toda essa
situação contemplada por Amós. Sabemos que essa situação de “total terror” não
melhorou, muito pelo contrário, só piorou com o passar dos anos.
É isso o que iremos evidenciar nas próximas páginas. Governantes que não
souberam ser fiéis aos critérios e valores mais nobres de seu povo, mas que, ao
contrário, criaram suas próprias leis, com a única finalidade de satisfazer seus próprios
ventres.
Não dá para imaginar uma população que já sofrendo tão grandes e graves
consequências, fosse ainda submetida a uma condição de vida, pior do que aquela que
já estava vivendo – de “total terror” – fosse agora submetida a um massacre, mortes,
desterro, enfim, a um novo senhorio, ainda mais forte e impiedoso.
248
Milton Schwantes, A terra não pode …, p.28.
assírios Israel – com seus ricos recursos e sua população produtiva – era alvo
incomparavelmente mais atraente do que o reino de Judá, pobre e inacessível. Ainda
assim, para o povo em Judá, nos anos sombrios depois da conquista assíria de Israel,
enfrentando a ameaça de um grande império e obstáculos estrangeiros, a história
bíblica de Israel servia como sinal, uma advertência do que lhes poderia acontecer. O
mais antigo e outrora poderoso reino de Israel, embora abençoado por terras férteis e
por um povo produtivo, havia perdido sua herança.249
249
Israel Finkelstein, idem, p.307.
Este processo de retribalização não representou um retorno puro e
simples a todos valores morais e éticos que caracterizaram o tribalismo
pré-monárquico.
Então, que princípios ou características tribais podem-se destacar como
passíveis de terem sido assumidos novamente?
Tenho que ter em mente o fato de que estando Jerusalém destruída, caiu por terra
também a grande reforma que o rei Josias estava implementando em todo o território
judaíta. Por isso não houve mais a necessidade de pagamento de tributos ao rei ou de
ver-se religiosamente obrigado a prestar culto e sacrifícios no único templo reconhecido
pelo Estado (Reino de Judá).
Este período teve início por volta do ano 587 a.C., logo depois da segunda
deportação e, com certeza, perdurou até o momento em que um grupo de sacerdotes,
com o decisivo apoio do império persa, conseguiram alcançar o poder político e se
legitimar como senhores absolutos entre o céu e a terra.
250
Bíblia TEB (Tradução Ecumênica da Bíblia), Jr 40,10b-12
251
Aqui falamos numa suposta deportação, porque conforme alguns estudiosos o tema do chamado
“exílio babilônico” não passa de uma invenção tardia da classe sacerdotal para tentar justificar a posse
da terra. Este assunto será analisado na segunda parte deste projeto.
Deste modo, é fácil perceber que este processo de retribalização posto em
marcha pelo comandante das tropas babilônicas, aconteceria espontaneamente caso
ele não tivesse tomado essa decisão política. Do ponto de vista babilônico os
camponeses ou ainda as sociedades tribais, que se constituíam em verdade na base do
campesinato, nunca ofereceriam o menor perigo ao império, pois conhecendo seus
valores e estilo de vida, eles sabiam que jamais poderia passar por sua cabeça a ideia
de vir a se tornar novamente um estado verdadeiramente constituído como nos
moldes anteriores, isto é, uma monarquia que viesse a ameaçar o seu domínio militar
na região.
Sendo assim, pode-se constatar que Jeremias recolhe em seu livro o que de
mais significativo acontecera naquele momento: a volta do tribalismo, o triunfo das
sociedades primitivas sobre o regime monárquico.
Esse processo de retribalização duraria um longo período, aproximadamente
uns 50 anos, se é que, de fato, houve um retorno posterior de um grupo de exilados.
Na verdade, este processo de retribalização que teve início por volta do ano 587 a.C.,
evoluiu e se estabilizou ao longo de quase três séculos.
Somente no início do século IV, quando são escritos os livros de Neemias e
Esdras, bem como também os livros de 1 e 2 Crônicas, é que temos novamente um
embate em torno do problema da terra. Retroprojetando algumas situações e
acontecimentos do seu presente para um longínquo passado, os redatores, ligados que
estavam ao novo grupo em ascensão – a classe sacerdotal –, fazendo uso de
importantes e variados elementos da tradição ligada às sociedades tribais,
conseguiram impor, de modo claramente ideológico, seu novo projeto.
Assim, podemos conjecturar que Judá e toda a região ao seu redor passaram
por esse processo de retribalização e assim permaneceu até a metade do século IV
a.C., quando veremos implantado em Jerusalém, bem como em todo o Israel, um novo
projeto de caráter nitidamente religioso, mas, profundamente relacionado ao campo
sócio-político, bem como também, ao campo econômico, privilegiando enormemente
a classe sacerdotal jerusolimitana nas suas relações de poder com o campesinato
israelita.
4.5 – O campesinato judaíta
Neste tópico pretendo definir de maneira bem clara em que sentido utilizo o
conceito de “campesinato”, bem como também, lançar algumas luzes sobre a realidade
do campesinato no território de Judá no período de domínio do império Aquemênida.
4.5.1 O campesinato
Conforme definição comentada por John Dominic Crossan, camponês “é termo
interativo para lavradores explorados e oprimidos – definição que presume existir em
algum lugar, exploradores e opressores”.252 Nesta mesma linha, diferentes autores,
mesmo antes de Crossam, já haviam se posicionado igualmente a ele. É de Eric Wolf
(1966) a seguinte afirmação:
252
John Dominic Crossan, O nascimento do cristianismo: o que aconteceu nos anos que se seguiram à
execução de Jesus, São Paulo, Paulinas, 2004, p.257.
253
Jonh Dominic Crossan, O Jesus histórico: a vida de um camponês judeu do Mediterrâneo, Rio de
janeiro, Imago, 1994, p.162.
suas vidas [...] Além de serem pobres como já se observou muitas vezes, os
camponeses são relativamente impotentes.254
Deste modo, podemos intuir que o campesinato só pode ser definido a partir das
suas relações de poder, isto é, de um poder exterior a ele, que controla, assim, todas as
dimensões de sua vida, tanto o social e o econômico, quanto também, o religioso, o
jurídico, o histórico e o emocional, como assevera Foster na citação acima.
Assim, John Dominic Crossan afirma que as relações que se estabelecem entre
campesinato e elites, podem ser traduzidas também pela relação entre camponeses e
cidades. Kautsky citado por Crossan tira algumas conclusões interessantes de seus
estudos e afirma: “os aristocratas vivem às custas dos camponeses” e que “um
camponês sem uma cidade é, simplesmente, um lavrador feliz”.255
O fato é verdade, pois antes das primeiras cidades existirem não havia
camponeses, pois como ainda afirma Robert Redfield citado por Crossan, os povos
primitivos que não moravam em cidades, mas sim em aldeias, jamais poderiam ser
classificados como camponeses. Desse modo, intuímos que as relações de poder que se
estabelecem entre aldeia e cidade são fundamentais para se definir o campesinato.256
Tom Longstaff citado por Crossan, diz que muitas vezes “a urbanização traz
consigo certo grau de opressão. O hiato entre os ricos e os pobres aumenta
frequentemente. É comum os que prosperam na cidade fazerem-no à custa dos que
vivem nas aldeias dependentes e não prosperam”.258 Desse modo, Crossam vê que há
254
Idem, ibdem.
255
John Dominic Crossan, O nascimento do cristianismo: o que aconteceu nos anos que se seguiram à
execução de Jesus, São Paulo, Paulinas, 2004, p.257-258.
256
John Dominic Crossan, O nascimento do cristianismo..., p.259.
257
Idem, ibdem.
258
Idem, ibdem.
uma injustiça sistêmica e estrutural entre os camponeses e a cidade, que só pode ser
compreendida mediante o critério das relações de poder estabelecidas entre os dois
grupos.
Por exemplo, podemos, como faz Weber, isolar na condição do camponês o que ela
deve à situação e á prática do trabalhador da terra, ou seja, um certo tipo de relação
com a natureza, feito de dependência e submissão e correlativo de determinados
traços recorrentes da religiosidade camponesa ou o que deve à posição do camponês
numa dada estrutura social. Apesar de esta posição ser bastante variável segundo as
sociedades e as épocas, é sempre dominada pela relação com o citadino e com a vida
urbana. Daí Redfield sustentar que o camponês, enquanto tipo humano, só pode ser
definido se referido à cidade, sendo a relação com o citadino e com a vida urbana sob
todos os aspectos uma das características constitutivas da existência camponesa: “o
caçador ou o aldeão ‘pré-civilizado’ é ‘pré-letrado’; o camponês é iletrado”.259
(A palavra ‘camponês’), tal como vem sendo usada, para designar qualquer
comunidade de pequenos produtores para o mercado, devemos reservá-la para
designar um novo tipo. Este tipo precisa da cidade para existir. Não havia camponeses
antes das primeiras cidades. E aqueles povos primitivos sobreviventes, que não vivem
nos moldes urbanos, não podem ser considerados camponeses [...]. O camponês é um
nativo do meio rural cuja organização de vida, embora a muito tempo já fixada, leva
bastante em conta a cidade.260
Segundo Marx:
259
Pierre Bourdieu, A economia das trocas simbólicas, 2ª Edição, São Paulo, Editora Perspectiva, 1982,
p.4.
260
Pierre Bourdieu, A economia das trocas simbólicas..., p.4.
trabalho volta a ser aqui o fundamental, o poder sobre os indivíduos, e enquanto existir
esse poder deve existir a propriedade privada.261
A partir dessa definição conceitual é possível ter presente todo o alcance sócio-
Penso que qualquer comentário que se queira tecer sobre o campesinato judaíta
no período Aquemênida deve ser feito à luz do contexto político, econômico e religioso
da província de Judá.
À luz dos materiais escritos desse período bem como também dos dados
disponibilizados pela arqueologia é possível fazer um levantamento de modo muito
aproximado da realidade na qual o campesinato se encontrava nesse período.
A partir da ascensão dos persas no cenário político mundial, não demorou muito
para que os habitantes do Oriente Próximo Antigo sentissem seus efeitos. Conforme
alusão já feita anteriormente, o processo de retribalização, que teve início com a
destruição da cidade de Jerusalém, bem como a consequente morte de algumas de suas
lideranças e deportação de outras, pelos babilônios em 587 a.C., esse processo de
retribalização deve ter continuado e se estabilizado durante todo o período do século VI
a.C..
A devastação provocada pelos assírios na província de Judá foi tão forte que a
região jamais se recuperou totalmente. As aldeias continuaram pouco povoadas.
Segundo Finkelstein, o número de sítios e a área construída – na qual a população
estimada habitaria – encolheram para 1/3 do que tinham no final do século VIII a.C..
Algumas das principais cidades foram reconstruídas, mas muitas outras pequenas
cidades, aldeias e casas de fazenda ficaram em ruínas. Esse fato é significativo, em
especial quando lembramos que, no século VIII, antes do ataque assírio, a população do
Shephelah chegava a cerca de 50 mil habitantes, quase a metade do reino inteiro.263
Para isso, era necessário restaurar certa medida de independência econômica nas áreas
rurais, ainda a fonte potencial de riqueza do reino. O renascimento das áreas rurais
devastadas não poderia ser alcançado sem a cooperação das redes de anciãos e dos clãs,
e isso significava permitir a retomada de práticas religiosas nos venerados altares ao ar
livre. Numa palavra, o culto a Baal, aos postes sagrados (Asherat) e aos astros dos céus
– o sol, a lua e as estrelas – retornou.264
Sem enfatizar, Finkelstein assinala que para Manassés conseguir a adesão das
comunidades tribais, teve que deixar de lado o projeto de estatização da religião e
permitir que os habitantes da província de Judá retornassem àquilo que Marcel Gauchet
chama de “religião pura”.
Por um lado, foi uma reconquista das sociedades tribais poder retomar alguns de
seus valores, mas por outro lado, e aqui, Finkelstein não foi capaz de salientar
devidamente, os povoados tiveram que se dispor a trabalhar duro para produzir o
necessário para abastecer a cidade de Jerusalém, bem como também, o necessário para o
pagamento dos tributos aos assírios e, se ainda sobrasse forças, o necessário para si e
suas famílias. É bem provável que a solidariedade tribal prevalecesse nesses momentos.
Mas há um detalhe interessante que Finkelstein nos trás quando relata a respeito
das pesquisas arqueológicas na região da Shephelah. Depois da destruição de muitas das
264
Idem, p.357.
vilas da região de Shephelah pelos assírios, boa parte dessa região passou para o
domínio dos filisteus que habitavam a região litorânea, forçando seus antigos habitantes
a se refugiarem nas regiões montanhosas da Judéia. Mediante estudos de estratigrafia,
esta região montanhosa, entre os séculos VIII e VI a.C., cresceu em torno de 10 vezes
mais. Foi encontrado um denso sistema de quintas construído em torno e ao sul de
Jerusalém, perto de Belém. É provável que essas quintas serviram para garantir a
produção de alimentos visando o abastecimento da população da metrópole.265
Figura266
Mas, conforme os muitos dados da arqueologia parecem dizer que Manassés não
esteve satisfeito somente com a expansão acima citada. Seu programa político e
econômico ambicionou muito mais do que uma mera questão de subsistência. De
acordo com uma grande quantidade de assentamentos encontrados na região sul do Vale
de Bersabéia, implica que Judá deve ter se expandido visando a grande rota comercial
265
Israel Finkelstein, A Bíblia não tinha razão..., p.358-359.
266
Israel Finkelstein, A Bíblia não tinha razão..., p.347. Principais sítios na monarquia de Judá; a linha
destaca o centro vital do reino no final do século VII, a época de Josias.
que havia nessa região. Os ricos e variados achados arqueológicos da vasta área entre
Edom e Filistéia indicam que os assírios, os árabes, os fenícios e os edomitas
mantiveram nessa região uma florescente atividade comercial. Foram encontrados
também, dois grandes fortes do século VII, que foram escavados no deserto. O primeiro
forte é o de Kadesh-barnea na margem oeste das áreas montanhosas do Neguev, a cerca
de 80 quilômetros ao sudoeste de Bersabéia. O segundo forte foi escavado na região de
Haseva, sítio localizado a 33 quilômetros ao sul do mar Morto. Segundo Finkelstein, o
arqueólogo Nadav Naaman sugeriu “que, ambos foram construídos no começo do
século VII a.C., sob os auspícios dos assírios, com a assistência dos Estados vassalos
locais, e foram administrados por tropas de judá e Edom”, 267 visando única e
exclusivamente, dar proteção às caravanas de comerciantes árabes que por essa região
transitavam, trazendo seus valiosos artigos exóticos de luxo , além dos incensos, é claro.
Toda produção era destinada a abastecer o Egito e a Assíria, pois estas terras não
possuíam as condições necessárias para o cultivo de oliveiras. Mas, como se pode notar
ainda hoje, Eglon não está situada numa região favorável ao plantio de oliveiras. A
cidade parece que deve ter sido escolhida por causa de sua localização geográfica, isto
é, numa região cortada pela rede de estradas da planície costeira.
267
Israel Finkelstein, A Bíblia não tinha razão..., p.360-361.
268
Idem, p.362.
Todas essas iniciativas econômicas básicas, efetivas e planejadas exigiam maior do
centralização do Estado judaico. O cultivo em larga escala de azeitonas e uvas e seus
produtos industrializados exigiam lugares para estocagem, transporte e distribuição
eficiente. [...] A evidência arqueológica sustenta a hipótese do maior envolvimento do
governo em todas as fases da vida de Judá – ao ponto de o número de selos, de
impressões desses selos, de óstracos administrativos e de pesos oficiais nos níveis de
estratos de Judá no século VII exceder muitíssimo as quantidades antes encontradas.269
Vale ainda citar uma observação feita por Baruch Halpern, citada por
Finkelstein:
269
Idem, p.363-364.
270
Israel Finkelstein, A Bíblia não tinha razão..., p.368.
social. Muitos, se não todos, foram obrigados a se refugiarem em regiões onde a cidade
e o exército não fossem capazes de chegar, isto é, nas regiões, montanhosas de matas e
bosques, que ainda não haviam sido tocados pelos homens. Certo é que as dificuldades
eram enormes, principalmente no acesso á agua. Estas estavam nas regiões de planície,
totalmente dominadas pelas cidades-estados. Esse foi, com certeza, o único modo de
poder continuar vivendo segundo os princípios milenares de seus ancestrais tribais.
Mas, uma coisa é certa também: aqueles que não conseguiram fugir e foram
obrigados a se submeter a um novo estilo de vida, diga-se, quase que num regime de
escravidão, perderam com certeza o referencial da terra e da família ou do clã, mas não
perderam referenciais ainda mais nobres, tais como a solidariedade e igualdade que
tanto caracterizam as sociedades tribais.
Após a morte de Manassés, subiu ao trono seu filho Amon, que depois de dois
anos, por ter causado muito descontentamento junto aos “filhos da terra”, isto é, a elite
social e econômica de Judá, foi por eles assassinado. Em seu lugar assumiu seu filho
Josias, que só ao atingir a maioridade assumiu definitivamente o governo.
É bom salientar que foi nesse período que escribas ligados à facção religiosa do
“somente Yahweh”, que chegando ao poder, ao lado dos “filhos da terra”, começaram a
redigir o texto que ficou conhecido como a Obra Historiográfica Deuteronomista
(OHD)271 e que foi concluída, provavelmente, depois da destruição de Jerusalém em
587 a.C., portanto, durante o período do exílio.
É fácil ver por que os autores bíblicos estavam tão transtornados pela idolatria. Ela era
símbolo de uma caótica diversidade social; os líderes dos clãs das áreas rurais
conduziam seus próprios sistemas de economia, de política e de relações sociais, sem
administração ou controle pela corte em Jerusalém. Aquela independência rural,
271
“Não é fácil reconstituir qual a elaboração historiográfica efetivamente realizada no tempo de Josias.
A Obra histórica do ‘Deuteronomista’, com efeito, chegou até nós numa formulação que (mesmo
prescindindo de acréscimos tardios) não pode ser situada antes da época exílica, pois o desastre final do
reino de Judá ocupa ali um lugar importante. Mais que a um único autor, portanto, a obra histórica em
questão deve ser atribuída a uma corrente (ou escola) de pensamento que teve início com a reforma de
Josias para se prolongar depois no tempo por algumas gerações”. Mario Liverani, Para além da Bíblia:
história antiga de Israel, São Paulo, Paulus, 2008, p.226. Nakanose desenvolveu uma importante teoria a
respeito do desenvolvimento do livro do Deuteronômio e da Obra Historiográfica Deuteronomista. Ver
Shigueyuki Nakanose, “Para entender o livro do Deuteronômio: uma lei a favor da vida?” em
Pentateuco, Revista de Interpretação Bíblica Latino-americana, nº23, Petrópolis, Vozes, 1996/1, p.176-
193. Penso que uma boa chave de leitura para os fatos políticos narrados está em usar o critério da
historicidade. Quanto mais próximos do período em que foi escrito mais fidedignos devem ser os relatos
e os personagens, com muitas ressalvas, é claro. Quanto mais distantes historicamente falando, mais
fantasiosos serão.
embora respeitada e honrada ao longo do tempo pelo povo de Judá, passou a ser
condenada como uma reversão ao barbarismo do período pré-israelita. Assim, com
ironia, o que era mais genuinamente judaico foi condenado como heresia cananéia. Na
arena da polêmica e do debate religioso, o que era antigo passou a ser considerado
estranho, e o que era novo passou, repentinamente, a ser considerado verdadeiro.272
Diante desta afirmação, podemos inferir que Finkelstein teoriza que, mesmo
depois do assentamento de milhares de camponeses oriundos do norte para Judá, a
periferia judaíta, continuou sendo nitidamente marcada pelo tribalismo, ou seja, no
tocante ao seu aspecto religioso, notadamente plural, o tribalismo israelita sempre foi
caracterizado pela diversidade religiosa, que longe de ser a de um monoteísmo
exclusivista, vivia intensamente o mundo dos deuses e deusas do panteão cananeu.
Neste ponto se faz necessária algumas observações que são de fundamental
importância para o que se sucedeu no período pós-exílico, que no caso, é o período
privilegiado do meu objeto de pesquisa. São duas faces que devem ser atentamente
observadas: a dos dominadores, daqueles que estavam sentados em berço esplendido em
Jerusalém e a dos dominados, dos camponeses que continuavam a ser explorados em
sua força de trabalho para poderem sustentar as benesses da classe dominante. Privados
de sua liberdade e dos mais altos valores de seu modo de vida tribal, apenas sonhavam
com a possibilidade de um dia poderem retornar a eles.
Penso que se pode afirmar, com certeza, que Josias foi como que teleguiado em
suas opções políticas, econômicas e, principalmente, religiosas. Sendo incapaz
de assumir o reinado, devido à tenra idade, “obrigou” o grupo que lhe tutoreava
a assumir interinamente o governo. Na verdade, se utilizaram de Josias para
alcançarem seus objetivos. Se a OHD, como já visto anteriormente, não passa de
puro invençionismo273, – costurado e salpicado com diferentes elementos da
mais pura tradição israelita – tanto da classe religiosa quanto da aristocracia
ligada ao rei. Pode-se afirmar que a reforma proposta por Josias foi, no fundo,
uma reforma que visa aos escusos interesses da classe dirigente. Assim, Josias,
quando atingiu a maturidade, “soube tirar proveito da conjuntura favorável para
272
Israel Finkelstein, A Bíblia não tinha razão..., p.336-337.
273
Utilizo esse adjetivo em referência aos subtítulos que Mario Liverani faz uso na segunda parte de seu
livro: Para além da Bíblia – História antiga de Israel, São Paulo, Loyola, 2008, p.309-443, bem como
também devido aos inúmeros dados mais recentes fornecidos pela arqueologia que contrariam em
todos os sentidos as narrativas bíblicas, principalmente aquelas referentes ao passado mais antigo de
Israel.
dar ao reino de Judá um impulso novo, cujos aspectos salientes são de caráter
religioso e ideológico, mas cujas bases materiais são também dignas de nota”274.
Diferentemente de seus antecessores, Josias não sofreu a pressão da assíria, que
no início de sua subida ao trono, já dava sinais de enfraquecimento e não
conseguia mais controlar todo seu imenso império, fazendo com que muitas
províncias outrora subjugadas, vissem nesse fato a oportunidade de adquirirem
novamente a necessária e tão sonhada autonomia política e poderem conduzir
seus projetos de expansão política, luxo e grandeza.275
A história de Josias, narrada na OHD, mais especificamente em 2 Reis 22 - 23,
no que tange ao aspecto político é muito evasiva, enquanto que no que toca aos
aspectos cultuais, deixa entrever, que de fato, houve um grupo religioso que
tinha grande poder de influência sobre o rei. Tanto é verdade que a narrativa em
2 Reis 22,8-10, não tem o menor puder em apresentar o sumo-sacerdote
Hilqiáhu que entrega a Shafan, secretário do rei, um manuscrito que continha o
“livro da Lei” encontrado na reforma do templo de Jerusalém. O livro dos Reis
diz que Josias tomado de grande pavor, exclamou: “grande é a ira do Senhor que
se inflamou contra nós, porque nossos pais não obedeceram às palavras desse
livro e não agiram de acordo com o que ali se acha escrito” (2 Reis 22,13b).
A pergunta que não cala é a seguinte: que “livro da Lei” é este? Não há nenhuma
referência no texto bíblico quanto ao tamanho do livro encontrado e nem quanto
ao seu conteúdo. Desde o início do século XIX muitos estudiosos tem se
debruçado a pesquisar sobre este “livro da Lei”. A maioria está de acordo em
afirmar que deve haver alguma conexão com o livro do Deuteronômio, com seu
núcleo original, daquilo que se convencionou chamar de “estrato redacional
deuteronomista”, que segundo Liverani, “pode ser atribuído a essa época por
uma série de indícios de conteúdo”276. Mas, o que importa em relação ao meu
projeto, não é fazer algumas incursões na tentativa de desvendar esse mistério,
mas identificar as motivações que estavam por trás dessa construção narrativa,
seus efeitos políticos e religiosos, principalmente, com relação à classe social
sempre explorada, aos camponeses.
274
Idem, p.217.
275
idem, p.211-215.
276
Mario Liverani, Para além da Bíblia..., p.222.
Parto da suposição de que tudo não passou de uma armação do grupo religioso
com o intuito de se legitimar no poder ao lado do rei. Para isso contaram com o
auxílio de escribas treinados que recolhendo elementos da tradição norte-
israelita teceram todo um conjunto narrativo. Se foi a partir de um núcleo já
existente (Dt 4 – 28) ou não, o fato é que, como diz Liverani:
Salta aos olhos o expediente do achado de um manuscrito “antigo” para conferir a
aprovação da autoridade tradicional à que devia ser, porém, uma reforma inovadora.
Mas é sobretudo importante constatar que essa reforma tenha tido lugar justamente em
coincidência com a diminuição da autoridade imperial assíria.277
[...] É provável inovação de Josias fazer dela uma festa de peregrinação (hag) para
aumentar a convergência de fiéis de todo o país para o santuário central. Faz parte
também da ideologia deuteronomista a ideia de uni-la ao episódio fundante da “saída do
Egito”.
277
Idem, ibdem.
278
Mario Liverani, Para além da Bíblia..., p.223.
Mas a maior insistência (2 Rs 23,4-14) é dedicada ao desmantelamento dos lugares de
culto não-javistas – as famigeradas bamôt (incluindo massebôt e ‘aserôt) – na própria
Jerusalém e em todo território de Judá, “de Gega‟ a Be‟er-sheba‟”.279
O que Josias não esperava, foi ter acabado morto sem ver seu projeto concluído.
Num acesso tresloucado, Josias saiu para enfrentar o faraó Neco. Sabendo de sua
inferioridade militar montou uma emboscada em Meguido. Mas, seus planos não
tiveram êxito, pois conforme 2 Rs 23,29 não houve nem batalha e o faraó conseguiu
apoderar-se de Josias que acabou morto. Enquanto o livro dos reis não menciona
nenhum detalhe do conflito, se é houve, o livro das Crônicas (2 Cr 35,20-24) narra um
confronto militar digno de menção.
A ação do rei reformador não ficou, todavia, sem seus efeitos; antes, teve-os mais
decisivos por um longo prazo. E foram justamente os trágicos acontecimentos seguintes
que deram à tentada reforma os valores fundamentais para a sobrevivência do povo de
279
Idem, p.224.
Israel. Foi o projeto político de Josias que forneceu o modelo de uma unidade (étnica e
estatal) que jamais fora realizada antes – nem sequer concebida.280
Penso que a mesma situação pode ser aplicada ao Brasil. Se não fosse a chegada
dos portugueses em 1500 a essas terras, jamais seríamos a nação que somos hoje.
Talvez outros teriam desembarcado por aqui... Ingleses, Holandeses, Espanhóis... Bem,
talvez a história não tivesse sido muito diferente. Mas, o que devemos ter presente é a
quantidade de vidas que foram e ainda hoje são ceifadas porque não temos o devido
respeito e nem a devida responsabilidade para com esses povos... Usamos, abusamos e
fazemos de conta que o problema não é com a gente. Mas, “gente”, eles não eram
considerados.... E parece que ainda não o são. Onde estão os assassinos do índio
Galdino, da tribo Pataxó, queimado vivo enquanto dormia num ponto de ônibus? Triste
contínua história.
Bem, mas a realidade aqui nesta tese é de 2500 anos atrás. Mais precisamente
em fins do século VI e início do século V a.C.. Sem entrar no mérito da questão
cronológica, isto é, quanto ao fato de quando teria(m) ocorrido(s) esse(s) retorno(s),
apesar de Esdras 1,24 fazer alusão a um possível edito281 emanado por Ciro, é bem
280
Mario Liverani, Para além da Bíblia..., p.230.
281
Com relação a um possível edito, Mario Liverani tem a seguinte posição: “O fato é que depois de dois
séculos imaginou-se que Ciro tivesse promulgado logo, já no seu primeiro ano de reinado na babilônia,
um edito que permitia o retorno dos exilados e a reconstrução do templo de Yahweh. O edito é
certamente falso, como demonstram quer a análise formal, quer os anacronismos. O mesmo vale para
um segundo edito do mesmo Ciro (mencionado em Esd 6,3-5), que teria sido encontrado nos arquivos
persas no tempo de Dario e que dava até as medidas e os detalhes novo templo. Esses editos foram
falsificados e adotados em época um tanto posterior, quando serviam para dar garantia e privilégio
provável que tenham retornado num primeiro momento somente um pequeno grupo de
judeus que talvez estivessem passando grandes necessidades. Mas é bem possível que
um primeiro e últimos retorno “oficial” tenha acontecido com a vinda de Esdras, o
escriba da família do principal sacerdote Aaron, (provavelmente em 458 a.C.). Esdras,
enviado por Artaxerxes, teria vindo para investigar o que estaria acontecendo em
Jerusalém e Judá, diante das notícias recebidas de antemão.
Mas, no tocante aos exilados, com certeza, aquela geração de judeus que foram
deportados já deviam ter morrido se pensamos numa expectativa de vida em torno de 40
a 50 anos para as pessoas que compunham aquele grupo – gente não muito acostumada
a trabalhar, por isso, a viver do trabalho e esforço de outros: a elite jerusolimitana.
Pode-se pensar que uma segunda e terceira geração de judeus possam ter nascido
daquela primeira. Quanto ao regresso desses judeus é possível imaginar que nem todos
imperial ao templo já construído e para rebater as pretensões do templo rival da Samaria”. Para além
da Bíblia..., p.312.
retornaram, talvez porque já estivessem estabilizados na Babilônia, com seus próprios
negócios em funcionamento, enquanto outros trabalhavam no aparelho burocrático do
estado. Enfim, pode-se afirmar, que uma “minoria” – tomando por base os números
apresentados pelos livros de Esdras e Neemias, que soam exagerados demais – tenham
voltado.
É verdade que os livros em questão são, como já referido, tardios e cheios de equívocos
involuntários (ou seja, devidos à ignorância) e voluntários (ou seja, devido à sua
intenção). [...] É um tipo de documento que por sua extrema importância legal pode ser
ou totalmente autêntico ou uma completa falsificação. As cifras e os topônimos dão um
quadro muito realista para fazer preferir a opção da autenticidade.282
Quando comparamos esse número com a população total de Judá no final do século VII,
antes da destruição de Jerusalém, podemos ter uma ideia da escala de deportação. A
população de Judá pode ser estimada, de modo acurado, a partir dos dados coletados
durante as escavações e levantamentos intensivos, em cerca de 75 mil habitantes (com
Jerusalém compreendendo pelo menos 20% desse número – 15 mil – e com outros 15
282
Mario Liverani, Para além da Bíblia..., p.314.
283
Israel Finkelstein, A Bíblia não tinha razão..., p.410.
284
Apontamentos em sala de aula. Universidade Metodista: 2008 – 2012.
mil habitantes provavelmente nas terras agrícolas mais próximas). Assim, mesmo se
aceitarmos os números mais elevados possíveis para os exilados – 20 mil – eles parecem
compreender, no máximo, ¼ da população do Estado de Judá; isso significa que pelo
menos 75 por cento da população permaneceu na terra judaica.
Segundo Lester Grabbe comenta, o período persa de Judá pode ser caracterizado
segundo dois princípios demográficos:
Resumindo, Lester Grabbe conclui que Judá foi uma pequena província de não
mais de 30 mil habitantes, com 10% vivendo dentro de Jerusalém e ao seu redor, o
único local realmente urbano. Este número representou uma queda de 70% da
população a partir do final do Ferro II. A maior parte da população vivam em pequenas
aldeias não muradas. A grande surpresa é que a migração dos exilados da babilônia não
parece terem deixado muito de uma marca na arqueologia ou demografia.285
Da mesma forma como é impossível escrever uma história de Israel a partir dos
dados fornecidos pela Bíblia Hebraica, assim também, se torna igualmente impossível,
traçar um perfil histórico do sacerdócio em Israel. Os textos relativos à ascensão dos
sacerdotes em Israel são igualmente construções profundamente ideologizadas, servindo
única e exclusivamente como forma de justificação e legitimação de seu projeto de
estabelecimento no poder.
285
Lester L. Grabbe, A history of the Jews…, p.28-30.
de excelente exemplo de como a conjunção do religioso com o político se transformou
numa instituição profundamente danosa e prejudicial, senão para toda a sociedade, ao
menos para os grupos tribais, que tiveram suas vidas inteiramente modificadas. No caso
do judaísmo, o sacerdote substituiu tanto os reis quanto os demais especialistas no trato
com o divino ou religioso.
Nesse sentido, Jerusalém e Judá não estavam isentas da influência deste tipo de
prática que era comum a todo o Oriente Próximo Antigo. Luís Lorenzetti nos diz que
“na área cultural mediterrânea, o poder político estava estreitamente relacionado com o
fato religioso mediante alguma conexão ou descendência entre o imperador (ou o rei, ou
o chefe do povo) e a divindade. Isto dava motivação absoluta e ética à obediência
devida ao poder”288. Isso é o que se poderá constatar ao ver como a classe sacerdotal
conseguiu a hegemonia do poder frente a todos os demais grupos. Mas, principalmente,
286
Luís Lorenzetti, “Poder” em Dicionário de Teologia Moral, São Paulo, Editora Paulus, 1997, p.968.
287
Idem, p.971
288
Idem, p.975. Foi contra esta postura, de identificação pura e simples, da obediência política com a
obediência religiosa e moral que se levantaram os sofistas na Grécia antiga.
como já destacado, o que fez com que o campesinato judaíta abdicasse dos seus valores
éticos e morais para seguir este novo projeto. Ao que tudo indica, não tiveram escolha.
O termo sacerdócio tem sua raiz na palavra kohen que no texto hebraico tem
750 ocorrências. Etimologicamente está ligado à raiz Kun, que implica na ideia de
firmeza, solidez, e é utilizado para o estabelecimento do santuário. Encontrado
abundantemente nos achados arqueológicos em Ugarit, que foi na antiguidade um
grande centro religioso, demonstra sua popular utilização.
289
Luís Lorenzetti, “Poder”, em Marciano Vidal, Dicionário de teologia Moral, São Paulo, Paulus, 1997,
p.968.
“Procurai-me e vivereis. Mas não me procureis em Betel, no Guilgal não entreis, não
passeis por Beer-Sheba” (Am 5,4b-5a);
“Detesto, desprezo vossas peregrinações, não posso suportar vossas assembleias,
quando me fazeis subir holocaustos; e em vossas oferendas nada há que me agrade;
vosso sacrifício de animais cevados, dele viro o rosto; afasta de mim o alarido de teus
cânticos, o toque de tuas arpas, não posso nem ouvi-lo” (Am 5,21-23).
Amós na primeira citação orienta a todos que não se dirijam aos santuários, tanto
de Betel, quanto aos santuários de Guigal ou de Beer-Sheba. Apesar do texto não fazer
uma referência explicita aos sacerdotes, supõe-se que à frente de cada santuário
existisse um ou mais sacerdotes. Amós, ao que parece, tem uma visão teológica
completamente diferente da teologia que irá se desenvolver e se solidificar nos escritos
da OHD, no livro do Pentateuco e na OHC, que é justamente esta teologia que ele e os
outros profetas condenam. Uma teologia centrada no sacrifício que no período de estudo
do meu objeto de pesquisa irá se traduzir numa Teologia da Retribuição (TdR). Ao
contrário, a visão teológica de Amós é plena de justiça social. Honrar e ser fiel a Deus
implica em fazer justiça, mas particularmente, justiça aos mais pobres.
O terceiro Isaías, também conhecido por Trito-Isaías, tem uma visão teológica
similar à visão de Amós, plenamente centrada na justiça social, isto é, anti-templar, por
isso, anti-sacerdotal. Vejamos:
Assim, passemos agora a traçar, mesmo que de modo muito conciso, a partir do
próprio texto bíblico290, os percalços que o sacerdócio jerusolimitano fez.
290
Essa referência ao texto bíblico como fundamento para se traçar a caminhada histórica do sacerdócio
é possível apenas a partir de extrapolações do próprio texto. É a partir de contradições deixadas pelos
redatores que podemos fazer algumas tentativas de reconstrução da caminhada histórica do sacerdócio
jerusolimitano.
Tradicionalmente, o gráfico que é traçado, mediante os dados fornecidos pelos
relatos bíblicos (criação do redator da OHD) é este:
P
A E D
T E REINO DO NORTE
G
R S
- ISRAEL -
I I E MONARQUIA
TRIBALISMO UNIDA
A R REINO DO SUL
R T T - JUDÁ -
C O
O
A
S
722 a.C.
291
Israel Filkenstein,
não somente a história passada, mas cooptam a história israelita para si e tratam de se
inserir como um grupo sacerdotal cuja origem remontaria a Davi.
É nesse contexto que aparece pela primeira vez nome de Sadoc, sacerdote
jebuseu, que mediante uma aliança com Davi, dividiram o poder sobre Jerusalém. Com
Davi teria ficado o poder político e com Sadoc o poder religioso. Ao que parece,
conforme relato de 2 Sm 8,17-18; 15,24ss, Davi teria assumido modelo monárquico dos
jebuseus, incorporando seu quadro administrativo, pois precisava de gente preparada
para dirigir o novo estado. Ainda conforme o relato da OHD na luta pela sucessão ao
trono de Davi, o grupo de Hebron, mais ligado às tradições israelitas, foi vencido pelo
grupo de Jerusalém, mais ligado às tradições cananeias. Abiatar, sacerdote de YHWH,
foi expulso por Salomão e substituído por Sadoc. Joab, o comandante militar de Davi
desde a época tribal, foi assassinado por Salomão e substituído por Banaías.
É obvio que temos aqui a mão dos escribas judaítas alterando a história, o que no
tocante aos sacerdotes jebuseus, desprezaram as tradições religiosas do norte – Israel –,
isto é, seus santuários e seus sacerdotes, enfim, toda a sua tradição religiosa. Os fatos
narrados nesse contexto pelos redatores da OHD são fatos que teriam acontecido em
torno do início do século X a.C., portanto, escritos de 350 a 400 anos posteriormente.
[...] Não temos razões para acreditar que o autor dispusesse de outras fontes,
tradicionais ou arquivísticas, ao compor as várias cenas e episódios da sua obra. Todos
eles devem ter sido inventados. A noção de um relato testemunhal tem de ser
abandonada, o que implica a revisão de toda a reconstrução do surgimento da escrita da
história em Israel. Antes do historiador Dtr, não há qualquer indício de uma
historiografia desse tipo em Samuel-Reis.292
292
John van Seters, Em busca da história: historiografia no mundo antigo e s origens da história bíblica,
São Paulo, EDUSP, 2008, p.302.
Diante desses fatos é possível afirmar que a verdadeira tradição israelita, naquilo
que poderia ter existido, historiograficamente falando, foi enterrada. Somente a
arqueologia, muitos séculos posteriormente poderia como tem feito atualmente, tornar a
reescrevê-la. O fato é que os dados referentes à tradição sacerdotal, segundo a linhagem
sadocita terá grande influência, não somente no controle das atividades cultuais no
templo de Jerusalém, permanecendo no poder até a revolta dos Macabeus em 174 a.C.
(2 Mac 4,7), mas também influenciará por demais, tanto a OHC (particularmente, 1ª e 2ª
Crônicas) quanto o próprio livro do Pentateuco que passará por uma total revisão de seu
conteúdo.
Ontem como hoje, podemos ver como é verdadeiramente nefasto para qualquer
sociedade a junção numa só instituição destas duas dimensões plenamente humanas:
política e religião. Parto do pressuposto de que em todas as sociedades em que se deu tal
junção, quem levou a pior foram os pobres, a classe dominada política e religiosamente.
Aliás, se constitui no objetivo principal desta tese confirmar a extrema
incompatibilidade e ilegitimidade da união destas duas dimensões, digam-se,
fundamentais da existência humana, numa só instituição. Para isto, tomarei como
exemplo um caso particular: o Judaísmo pós-exílico no seu período formativo.293 Ali
temos a possibilidade de ver com clareza e nitidez a junção destas duas dimensões
encarnadas no clero sacerdotal jerusolimitano. Como veremos mais à frente, foi por...
293
Sabe-se pela história que o regime teocrático de Israel (judaísmo) serviu de modelo e inspiração para
igreja Católica desenvolver seu projeto político de amplo domínio após a queda do Império romano, ao
longo de todo o período da idade média. Agostinho já havia teorizado sobre a devida subordinação do
estado à igreja em De Civita Dei. “Os dois maiores dons de Deus concedidos aos homens pela divina
clemência – conforme está escrito no Corpus juris civilis – são o Sacerdócio e o Império: aquele cuida das
coisas divinas e este, por sua vez, rege e vigia as coisas humanas; um e outro, derivando de um só e
mesmo princípio, são o ornamento da vida humana”. Destas afirmações, conforme escreve Silvio
Ferrari, “derivam consequências teóricas de grande alcance e em particular a tese que atribui ao
pontífice a totalidade do poder, seja espiritual seja temporal: ‘Nós sabemos pelas palavras do Evangelho
– escreve Bonifácio VIII na Bula Unam saneiam (1302) – que nesta Igreja e no seu poder existem duas
espadas uma espiritual e outra temporal... as duas estão em poder da Igreja, a espada espiritual e a
espada material; uma na verdade deve ser empunhada pela Igreja e a outra pela Igreja também; a
primeira pelo clero; a segunda, pela mão do rei ou dos cavaleiros, mas segundo o comando e a
condescendência do clero, porque é necessário que uma espada dependa da outra e que a autoridade
temporal esteja sujeita à autoridade espiritual’”. Será com a reforma protestante, que ao romper a
unidade religiosa europeia, que será marcado o ocaso definitivo do sistema teocrático católico. Idem,
p.1237-1238.
294
Silvio Ferrari, “Teocracia” em Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino, Dicionário
de Política, 11ª Edição, Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1983, p.1237.
295
Citado por Roger Bastide, Elementos deSociologia ..., p.100.
Na Grécia antiga, o chefe do culto era o rei que além de presidir as oferendas de
sacrifícios, recitava as orações e presidia as refeições religiosas. Igualmente aos reis
gregos, os primeiros imperadores romanos assumiram também a função de sacerdotes.
Também sabemos que, tanto no Egito, como na América pré-colombiana, os reis e
faraós, se ocupavam também das orações, tendo em vista a fecundidade da terra e o
poder de governar seus súditos.296
296
Roger Bastide, Elementos de sociologia religiosa, São Paulo, UMESP, 1990, p.100.
297
Idem, p.101.
298
Idem, p.103.
299
Roger Bastide, Elementos de sociologia..., p.102.
300
Luís Lorenzetti, “Poder” em Dicionário de Teologia Moral, São Paulo, Editora Paulus, 1997, p.968.
301
Roger Bastide, Elementos de sociologia..., p.103.
romano, pois “em tal estado social a obediência torna-se, de alguma maneira, um dever
religioso”(Joussain).302
4.8 - Conclusão
Desse modo, pode-se notar que, de fato, existem na base do judaísmo, pelo
tribal. Desse modo, a partir dos assuntos desenvolvidos neste capítulo 4, constatou-se
que o Judaísmo, nunca foi um projeto que teve sua origem nos longínquos tempos do
início do período monárquico, mas sim, que sua gênese pode ser localizada com muita
certeza na transição do período persa para o período grego. É aqui, neste período que
entram em choque diferentes forças sociais (diferentes grupos sacerdotais?) na luta pela
Nesse sentido, diferentes são as visões do sacerdócio israelita a partir dos textos
do Antigo Testamento. Alguns textos falam em “sacerdotes levitas”, outros em
“sacerdotes e levitas”, “aaronitas e levitas” ou ainda, “sadocitas e levitas”. Como se
verá, o conceito que prevaleceu no período do segundo templo foi o de sacerdotes que
oficiavam no altar do templo e de levitas (como uma espécie de baixo clero) com outros
deveres. Essa diversidade nos textos reflete uma intensa luta dentro do templo no
sentido de que grupo ficaria responsável, propriamente, pelo exercício do ofício do
culto. É certo que o grupo que prevaleceu fez uso da literatura bíblica como forma de
legitimação de seu status e poder.
302
Idem, p.104
III PARTE
Capítulo V - JUDAÍSMO
Passo a desenvolver nos próximos tópicos alguns temas que julgo pertinentes
ao se tratar da questão das relações de poder dentro do contexto do segundo templo,
– mais especificamente do judaísmo – temas que, aliás, ainda hoje são assuntos que
tem provocado intenso debate entre os estudiosos.
303
Richard A. Horsley, Scribes, Visionaries, and the politics of Second Temple Judea, London,
Westminster John Knox Press, 2007, p.188.
304
Joseph Blenkinsopp, Judaism – The first phase: the place of Ezra and Nehemiah in the origins of
Judaism, United Kingdom, Wm. B. Eerdemans Publishing Co., 2009, p.9.
305
Roger Chartier, À beira da falésia: a história entre certezas e inquietudes, Porto Alegre, Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, 2002, p.119.
5.1 – Judaísmo: projeto imperial persa.
306
Joseph Blenkinsopp, Judaism: the first phase – the place of Ezra and Nehemiah in the origins of
Judaism, U.K., Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 2009, p.117-159.
No tocante à questão das relações de poder entre o campesinato judaíta e a
classe sacerdotal jerusolimitana, o problema de se aceitar ou não que o judaísmo foi
no seu princípio um projeto cuja origem esteve relacionada com o grupo dos exilados é
muito relevante, pois para o grupo sacerdotal que deteve o poder político e o controle
do templo, ter o império a seu favor foi de extrema importância para justificação e
legitimação de suas pretensões. Já o campesinato nada podia fazer contra a força
ideológica do projeto e muito menos contra a força das armas do exército persa.
O Estado judaico, depois do exílio, foi também obra dos dominadores persas, os quais
participaram do retorno dos exilados, da reconstrução do templo e da cidade de
Jerusalém, da ereção de uma satrapia independente de Samaria e da introdução das
leis judaicas sob Esdras. Estes acontecimentos sozinhos não são ainda suficientes para
avaliar a tolerância dos dominadores persas. Todos eles tem por base uma meta, que
pode ser considerada como a de favorecer um Estado sacerdotal. A “oposição ao
carisma político dos heróis recomendou aos povos dominadores, em todo lugar, a
hierocracia como meio de acalmar os povos subjugados”, escreve Max Weber, e
continua: “Helenismo e judaísmo são, a meu ver, em seus traços mais importantes,
produtos de defesa da soberania persa de um lado, e da submissão, do outro”.307
Outro estudioso que também postula ter sido o judaísmo no seu início, nada
além de um mero projeto do poder imperial persa é Peter Frei. Desde 1982 quando
307
Hans G. Kippenberg, Religião e formação de classes na antiga Judéia: estudo socioreligioso sobre a
relação entre tradição e evolução social, São Paulo, Paulinas, 1988,
308
Joseph Blenkinsopp, Judaism – The first phase…, p.6.
309
Idem, p.7.
apresentou um primeiro trabalho sobre o tema até 1994, quando apresenta o mesmo
tema sob novas luzes, Peter Frei pode aprofundar mais ainda esta temática.
Para Peter Frei, foi Esdras que recebeu do governo persa a “autorização
imperial” para introduzir um livro de leis de caráter religioso conforme Esd 7,26-27.
Frei se questiona no sentido de tentar esclarecer se a “lei de Deus” seria idêntica à “lei
do rei”? Para ele o artigo “e” expressa a identidade das duas leis ou estaríamos lidando
com duas leis formalmente distintas? Apesar, do fundo histórico da missão de Esdras
ser um tanto controverso, o que toca à questão do regime imposto pelo império
Aquemênida, para Frei é o que verdadeiramente importa. Em verdade, foi uma
verdadeira intervenção na estrutura da comunidade que estava subordinada à
“autorização imperial”.311
310
Peter Frei, “Persian imperial authorization” em James Watts (editor), Persia and Torah: the theory of
imperial authorization of the Pentateuch, Society of Biblical Literature, Atlanta, 2001, p.7
311
Peter Frei, “Persian imperial authorization…, p.11-12.
312
Idem, p.13-14. Para mim pessoalmente é de se questionar se um rei do porte do imperador persa iria
se preocupar com tantas minúcias da vida social de pequena província quase que perdida na imensidão
do império. Ao que tudo leva a crer, deve ter sido um recurso literário utilizado pelo redator para
conferir autoridade ao livro, isto é, legitimar as normas ali prescritas.
páscoa de Elefantina”, a aprovação do “regulamento do purim” no livro de Ester, A
disputa de fronteira entre Mileto e Myus, a inscrição trilíngue de Letoon, o oficial
egípcio Udjahorresne, os regulamentos de Dario para a seleção de sacerdotes, a
obrigação legal dos jônios por Aetaphernes, a inscrição de Sardis, o documento do
oeste da Ásia Menor, especialmente Cária. Na verdade, Frei faz todo um esforço de
mapeamento de possíveis elementos que ajudam a corroborar a ideia de uma
“autorização imperial” como algo passível de ter existido de fato.
Na avaliação de James Watts, Peter Frei afirma que os persas autorizaram uma
legislação local em várias partes do império. Tal “autorização imperial” teria criado um
arranjo federativo pelo qual as comunidades locais ganharam um grau legal de
autonomia permanecendo ao mesmo tempo sob o domínio do poder imperial. Assim,
para Peter Frei, a lei de Esdras (Esd 7) seria presumivelmente o livro do Pentateuco.
Uma ação típica dos persas, só do império persa.314
Mas, não são todos os estudiosos que estão de acordo com Peter Frei.
Participando de um simpósio no ano de 2000, em Nashville diversos estudiosos da área
foram convidados a fazerem uma avaliação da teoria da “autorização imperial” persa e
sua aplicação ao livro do Pentateuco.315
313
Peter Frei, “Persian imperial authorization…, p.39-40.
314
James Watts (editor), Persia and Torah: the authorization of imperial authorization of the Pentateuch,
Atlanta, Society of Biblical Literature, 2001, p.1.
315
Idem, p.2.
do judaísmo pode muito bem ter sido dada pelas autoridades persas, mas afirmar que
o livro do Pentateuco foi de fato editado, mediante uma ideologia totalmente criada
pelo poder persa não tem nenhuma evidência.316
Lisbeth Fried argumentou que a comissão chefiada por Esdras que fora enviada
por Artaxerxes foi limitada à nomeação de juízes persas na província de Judá. Eles
teriam agido de acordo com a lei persa, e não segundo as leis presentes no Pentateuco
ou outras tradições jurídicas judaicas. Embora, Lisbeth Fried acredite que os
governantes locais, citando o exemplo de Neemias, podem muito bem ter emitido
alguns decretos, baseados em sua autoridade, com base nas tradições jurídicas da
província de Judá.317
316
Joseph Blenkinsopp, “Was the Pentateuch the civic and religious constitution of the Jewish ethnos in
the Persian period” em James Watts (editor), Persia and Torah: the authorization of imperial
authorization of the Pentateuch, Atlanta, Society of Biblical Literature, 2001, p.41-62.
317
Lizbeth S. Fried, “’You shall appoint judges’: Ezra’s mission and the rescript of Artaxerxes” em James
Watts (editor), Persia and Torah: the authorization of imperial authorization of the Pentateuch, Atlanta,
Society of Biblical Literature, 2001, p.63-89.
318
Lester L. Grabbe, “The Law of Moses in the Ezra tradition: more virtual than real?” em James Watts
(editor), Persia and Torah: the authorization of imperial authorization of the Pentateuch, Atlanta, Society
of Biblical Literature, 2001, p. 91-113.
319
Gary Knoppers, “An achaemenid imperial authorization of Torah in Yehud?” em James Watts (editor),
Persia and Torah: the authorization of imperial authorization of the Pentateuch, Atlanta, Society of
Biblical Literature, 2001, p. 115-134.
de leis egípcias estava em continuidade com as práticas anteriores e serviu apenas
para informar os persas das tradições existentes.320
320
Donald Redford, “The so-called ‘codification’ of Egyptian law under Darius I” em James Watts
(editor), Persia and Torah: the authorization of imperial authorization of the Pentateuch, Atlanta, Society
of Biblical Literature, 2001, p. 135-159.
321
James Watts (editor), Persia and Torah: the authorization of imperial authorization of the Pentateuch,
Atlanta, Society of Biblical Literature, 2001, p.3
10 como “aqueles que tremem diante da palavra do Deus de Israel”, cuja
missão era lançar a base para uma nova política teocrática na província de
Judá.322
Mas, não se pode deixar de fazer menção das famosas tábuas do tesouro de
Persépolis e das tabuas da fortificação de Persépolis. Elas são um contributo
importante ao estudo dessa temática, pois iluminam o conhecimento dos tempos
pérsico, ou mais especialmente, da esfera administrativa e da área econômica. Uma
das características mais interessantes segundo H.G.M. Willianson (1991), citado por
Grabbe, são as inscrições sobre pagamentos de rações e suporte para vários
sacerdotes e atendentes do culto. Nesse sentido, chega-se à conclusão de que era
política geral do império persa apoiar a religião, os templos e como essa peculiaridade
impactava toda a extensão do império.323
322
Joseph Blenkinsopp, Judaism – The first phase: the place of Ezra and Nehemiah in the origins of
Judaism, United Kingdom, Wm. B. Eerdemans Publishing Co., 2009, p.10.
323
Lester L. Grabbe, A history of the Jews and Judaism in the Second Temple Period: volume 1…, p.214.
324
Idem, p.215.
ou não do judaísmo, e com ele todo o sistema religioso – templo e classe sacerdotal –
terem utilizado o campesinato como trampolim para a conquista de seus interesses.
Se como afirma Marx, que “não é a consciência dos homens que determina
(bestimmt) sua existência, mas, pelo contrário, é sua existência social que lhe
determina a consciência”326, pode-se conjecturar que foi a partir da realidade histórica
das relações que foram sendo estabelecidas entre o campesinato judaíta e a classe
sacerdotal jerusolimitana que posteriormente foram editados os principais livros que
fundamentam esse sistema de crença ideológico denominado judaísmo.
325
Norbet Lohfink, Theology of the Pentateuch: themes of the priestly narrative and Deuteronomy,
Mineapolis, Fortrees Press, a994, p.143.
326
Henri Desroche, O marxismo e as religiões, Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra LTDA., 1968, p.11.
Os textos foram redigidos num segundo momento, isto é, num momento em
que, provavelmente, estava-se vivendo um momento de forte crise, de lutas entre
diferentes grupos tendo em vista a sua legitimação no poder. Os textos, nesse sentido
foram redigidos com a finalidade de não só interpretar a realidade, mas também de
justificar e legitimar o grupo sacerdotal sadocita como autêntico grupo no controle e
poder do templo de Jerusalém.
Mas, por outro lado, ter uma postura moderada como Erhard S. Gerstenberger,
quando afirma que os textos não querendo ser um relato histórico, mas refletindo a
vida da comunidade pós-exílica, isto é, de grupos ligados a esta comunidade, teriam
sido os promotores de um “projeto de reconstrução nacional” baseado na lei, não se
dá conta do elemento ideológico presente nesse projeto. É óbvio que avançou muito
em relação a estudiosos como Jacob Milgrom327, Rolf P. Knierim328 que se
fundamentam numa hermenêutica um tanto quanto historicista dos textos. Assim,
327
Jacob Milgrom, Leviticus – A Continental Commentary, Minneapolis, Fortress, 2004, 388p.
328
Rolf P. Kinierim, The task of Old Testament theology, 1995.
Gerstenberger se pergunta se não seria ele, o grupo sacerdotal, que estaria por trás
das formulações legais presentes, por exemplo, no livro do levítico.329
Se, como disse Marx, mais importante do que o que produz uma determinada
sociedade é o como esta sociedade se organiza para executar essa produção. Deste
modo, o conceito de modo de produção adquire aspecto central para se avaliar o
campo econômico de qualquer sociedade. Por isso, se torna prioridade descobrir quais
são as relações específicas que são postas em movimento pelos agentes sociais numa
dada sociedade, com a intenção de produzir e reproduzir sua vida material.
329
Erhard S. Gerstenberger, Leviticus, p.10-16.
330
Nancy Cardoso Pereira, Comida, sexo e saúde: Lendo o Levítico na América latina, p.138-139.
331
Elaine Gleci Neuenfeldt, “Menstruação, parto e impureza no Levítico: controle de corpos e líquidos
das mulheres”, em Estudos Bíblicos, Sexualidade e homossexualidade na Bíblia, nº 66, Petrópolis, Vozes,
2000, p.31-32.
implantado na sociedade. Essas mesmas relações sociais de produção estão ligadas a
outras estruturas, que derivam dela e mantém entre si interações recíprocas nos
períodos de reprodução. A reprodução é possibilitada, por sua vez, exatamente por
essa interação entre as estruturas, ainda que a estrutura econômica exerça sempre a
determinação em última instância.332
Isso quer dizer que as relações sociais de produção sempre ocorrem debaixo de
uma estrutura jurídico-política (forma de Estado, sistema jurídico, conjunto de leis,
aparelho repressivo) que tem por papel legitimar e garantir a reprodução do modo de
produção, ou seja, dar possibilidade constante das condições necessárias para a sua
continuidade, inclusive frustrando a organização política das classes antagônicas.
Também a estrutura ideológica tem o papel de gerar representações das próprias
práticas e da inserção dos grupos e dos indivíduos nessas práticas, no sentido de
tornar essas relações viáveis aos olhos das classes, permitindo assim a coesão social, a
resignação e a possibilidade de a classe dominante exercer plenamente sua
dominância.333
Nisto pode-se ver que o judaísmo se tornou símbolo de uma sociedade onde o
poder religioso que a classe sacerdotal jerusolimitana se auto conferiu evoluiu a tal
ponto, que absorveu em si mesma, além do poder religioso, também o poder político.
Aqui toco no ponto central desta tese que é o de demonstrar que no judaísmo se tem
332
Cesar Mangolim, “Conceito de modo de produção” acessado http://cesarmangolin.files.wordpress.
com/2010/02/mangolin-o-conceito-de-modo-de-producao-2010.pdf em 19/04/2011.
333
Etienne Balibar, Louis Althusser, Roger Establet, Ler o capital, volume 2, Rio de Janeiro, Zahar
Editores, 1980, 329p.
um modelo exemplar de transição de uma forma de sociedade fundada na igualdade
social e política de seus membros, isto é, em uma sociedade sem classes sociais, para
uma sociedade nitidamente dividida em classes sociais, onde a religião e a política
estavam nas mãos de um mesmo grupo social que se arvorou no direito de
determinar, principalmente, o que lhe convinha, e de imputar aos demais, os seus
devidos deveres.
Com isso não quero afirmar que a província de Judá se comportou como uma
espécie de nação-estado, de que teve autonomia suficiente para não pagar nenhum
tributo, seja aos persas ou, posteriormente, aos gregos. De fato, isso não seria possível
devido à política de repressão adotada pelo império persa que procurava neutralizar
qualquer possibilidade de que tal coisa viesse a se tornar realidade. Por isso pode-se
falar num poder religioso com forte conotação política, pois é justamente isso o que se
conclui do estudo do conjunto final dos textos que formam a Bíblia Hebraica, mas
especialmente os textos redigidos pela classe sacerdotal jerusolimitana.
Isso quer dizer que, ainda que sempre determinante em última instância, a estrutura
econômica, dependendo do modo de produção, atribui a uma das outras estruturas,
ou a estrutura econômica mesma, tem um papel dominante no sentido de cumprir
uma tarefa especial para a reprodução das relações sociais de produção específicas de
um modo de produção específico.
334
Etienne Balibar, Louis Althusser, Roger Establet, Ler o capital, volume 2, Rio de Janeiro, Zahar
Editores, 1980, 329p.
Este modo de produção tributário em Israel desenvolvido sob a forma, não só
de sansões ou penalizações morais, mas também de ofertas que justificados pela
teologia da retribuição obrigavam moralmente o infrator – pecador – a remir ou expiar
sua culpa mediante a oferta de sacrifícios que eram oferecidos no templo de
Jerusalém. Para cada tipo de infração havia uma prescrição que determinava o que
deveria ser oferecido a Deus como prova de sua remissão. Sem o cumprimento destes
preceitos homens e mulheres estavam condenados à maldição divina.335
Por isso passo agora a analisar mais de perto cada um desses livros naquilo que
eles oferecem de mais concreto como prova de seu caráter nitidamente ideológico.
É com estas palavras que Hanani relata a Neemias, 90 anos depois do fim do
exílio babilônico, a situação daqueles que haviam retornado a Jerusalém. Já se havia
passado quase um século sem que os sonhos de reconstrução de Jerusalém e do
templo tivessem chegado a bom termo. Esses sonhos de reconstrução estão nos
projetos elaborados por Ezequiel e pelo Dêutero-Isaías. Foram dois os motivos que
impediram a execução desse projeto:
335
Este conjunto de leis presentes na Torá serão posteriormente e minuciosamente ampliados, dando
origem ao Talmude, que contém nada mais nada manos do que 613 mandamentos, sendo 248 positivos
e 365 negativos). É o início de uma casuística que tornou a vida de seus adeptos um verdadeiro
tormento psicológico.
fato, existiu um texto em aramaico (cf. Esd 4,7-24) onde o rei exigiu que parassem
todos os trabalhos de restauração dos muros de Jerusalém, devido a instabilidade que
isto estava causando em toda a região, é compreensível que a corte persa tenha
encontrado uma solução com o envio de Neemias.
Mas o interessante é notar que Neemias não veio sem um projeto. Das duas
uma: ou Ez 40 – 48 já estava de posse daqueles que retornaram ou foi Neemias quem
o trouxe na esperança de coloca-lo em prática, garantindo assim a paz e a estabilidade
na região. Trata-se, como se poderá perceber, de um projeto com claras conotações
políticas e econômicas, estabelecendo assim, relações estáveis e duradouras em toda a
província.
Se, de fato, Esdras e Neemias refletem não uma autobiografia bem como
também não são um relato histórico, mas reflexos de posições ideológicas de grupos
que estavam se enfrentando pelo controle político e religioso do templo de Jerusalém,
a base desta ideologia deve ser encontrada em Ezequiel 40 – 48.
336
Joseph Blenkinsopp, Judaism: the first phase..., p.127.
apoiado em outros estudiosos, aponta como hipótese provável o texto de Ez 40-48,
como o texto que Esdras tinha em mãos.337
Apesar de Ez 40,1 datar o texto de 573 a.C. tudo indica que ele é bem posterior
a esta data e ao próprio Ezequiel, talvez tenha se originado junto aos seus discípulos,
sendo que o conjunto reflete muito mais de perto a comunidade que já estava
organizada ao redor do templo, com minúcia de detalhes para quem já estava
participando de cultos e ritos sacrificais, inúteis para quem estava na diáspora (Ez
45,13 – 46,15). Segundo também Joseph Blenkinsopp existe um amplo acordo entre os
estudiosos de que estes nove capítulos se estendem para muito além da vida ativa do
próprio Ezequiel.
Sandro Gallazzi elenca quatro bons motivos que reforçam uma datação bem
posterior para Ez 40 – 48.
A distinção clara entre sadocitas e o resto do corpo clerical (Ez 44,10-31) que
até agora nunca apareceu como importante. Isso será um dos leit-motiv do
cronista;
O fato de afirmar que um grupo (os sadocitas) nunca pecou (44,15) vai de
encontro a toda a teologia da história de Ezequiel 1 – 39 que tem, como ponto
de partida, o fato que todos pecaram, desde o Egito;
O uso de palavras que nunca se encontram no resto do texto, como “sacrifício
pelo pecado”, “dízimo das massas”, que quase nunca são usados em textos
historicamente anteriores e que passarão a ter uma importância central a partir
de Esdras e Neemias;
A missão sadocita de ensinar a diferença entre sagrado e profano, impuro e
puro (Ez 44,23), já dando ao sacerdócio uma conotação legalista e uma
autoridade que nunca teve antes. Aliás, este próprio conceito está mudado em
relação a um momento precedente do pós-exílio. Vejamos, por exemplo, a
contradição definitiva entre Ez 44,19 ou Ez 46,20 e Ag 2,12 acerca da
contaminação produzida pelo sagrado.338
337
Sandro Gallazzi, A teocracia sadocita: sua história e ideologia, Macapá, 2002, p.55-60.
338
Sandro Gallazzi, A teocracia sadocita..., p.56.
a. Direitos iguais ao “sumo-sacerdote” e ao “príncipe”
Figura de grande destaque dentro do texto, pois é aquele que deve “fazer a
expiação pela casa de Israel” (Ez 45,20), o sumo sacerdote tem privilégios significativos
no campo cultual: ocupando um lugar junto à porta oriental, ele entra e sai por essa
mesma porta, que é fechada a todos os demais. O fato curioso, é que esta porta é o
local por onde entrou “a glória do Deus de Israel” (cf. Ez 40,5-16). Ali ele come o pão
diante de Yahweh e assiste aos holocaustos e sacrifícios dos sábados e das luas novas.
“Tudo indica que o ‘príncipe’ de Ez 40 – 48 é o próprio sumo sacerdote, já pensado em
sua função hierocrática de ‘chefe do estado do templo’”339.
Esta é a nova figura, elaborada, desde a diáspora, que substituirá a figura de um rei
davídico, cuja memória, neste momento, era “perigosa” tanto para os persas quanto
para os judaítas da diáspora que podiam, muito mais facilmente, identificar-se como
povo “religioso” ao redor do templo e do sumo sacerdote, do que como povo
“político” ao redor de um rei.340
339
Sandro Gallazzi, Ensaios sobre o pós-exílio (vol.1): os mecanismos de opressão, 1ª Edição, Macapá,
2003, p.23.
340
Idem, ibdem.
templo de Ezequiel e em ambas as visões, a liturgia propriamente dita, como o início
de uma nova criação, no oitavo dia.341
341
Joseph Blenkinsopp, Judaism: the first phase..., p.134-135.
342
Joseph Blenkinsopp, Judaism: the first phase..., p.142-143.
Não se deve esquecer que o texto não quer ser um relato histórico, mas reflete
uma determinada circunstância que a comunidade Jerusolimitana atravessou. Esta
atitude adotada por Esdras e Neemias, com base na lei do templo de Ezequiel não teria
sido uma forma de se excluir algumas daquelas pessoas que reclamavam cidadania?
Blenkinsopp vê na atitude dos grupos que estiveram por trás da redação dos
livros de Esdras e Neemias um profundo processo de ritualização e segregação da
Golah. Após o seu apelo à tradição seletiva, a linha de raciocínio com base na
estipulação do direito da lei do templo de Ezequiel poderia ter se desenvolvido mais ou
menos como se segue: uma vez que a comunidade política é também, e
essencialmente, uma comunidade de culto, a participação no culto comum é uma
condição essencial para a adesão. Mas, se os descendentes estão proibidos de
entrarem no templo, não podendo participar do culto, são assim, excluídos da
comunidade.
346
Idem, p.153-154.
347
Idem, p. 155-156.
---------- limites da porção santa (25.000 codos)
LEVITAS
SADOCITAS
348
PRÍNCIPE PRÍNCIPE
Sandro Gallazzi, A teocracia sadocita…, p.57.
TEMPLO
CIDADE
As outras tribos já “não existiam” há bastante tempo ou, pelo menos, ninguém podia
dispor daquelas terras que, há séculos, estavam nas mãos de outros governantes
locais.
Por que este texto propõe uma distribuição tão estranha de terra, que entrega aos
sacerdotes a parte maior e melhor da terra entre Belém e Gabaon, o lugar onde estão
muitos dos povoados relembrados em Esd 2,21-35 e em Ne 11,25-36?
Creio que aqui não se trata de nem de um plano urbanístico, nem de trabalho de
agrimensor, como também não se trata do pensamento de um visionário que desde o
exílio sonha, sem conhecer a situação geográfica real.349
Esta terra será a sua [do príncipe] possessão em Israel; os meus príncipes nunca
mais oprimirão o meu povo, antes distribuirão terra à casa de Israel, às suas
tribos (Ez 45,8).
349
Sandro Gallazzi, A teocracia sadocita..., p.57-58.
Mesmo não estando claro que terra é esta a qual o texto faz referência, se do
príncipe ou outra, é tarefa prioritária dele – do príncipe – fazer a distribuição. Em Ez
46,16-17 afirma-se que o príncipe tem o direito de recuperar alguma porção de terra
que tenha sido doada a alguém que seja estrangeiro no ano da liberdade. Mas que
terra é essa?
A partir do momento em que esse projeto ou essa lei for implantado, ninguém
mais poderá se dizer dono de nenhuma porção de terra.
Eis o porquê da estranha inversão que coloca Judá ao norte de Jerusalém e Benjamim
ao sul. Todos sabiam que estava errado, mas o importante era reafirmar que ninguém,
nem os de Judá, nem os de Benjamim, eram “proprietários das terras”. Só Deus!350
Mesmo que a palavra nahalah continue sendo utilizada, ela vai sofrer uma
correção quanto ao seu sentido: já não indicará mais a pequena propriedade
camponesa, mas adquirirá um sentido mais amplo, identificando a terra pertencente à
tribos. Nesse sentido, os textos sacerdotais, a começar deste, preferiram utilizar o
termo ‘ahuzah que expressa o sentido de presente, terra doada por Deus. Eis porque o
príncipe pode distribuir a terra, contudo, sem perdê-la, distribui-la, como se ela não
tivesse mais dono.351
350
Sandro Gallazzi, A teocracia sadocita…, p.58.
351
Idem, ibdem.
dominação numa dimensão que, até então, ninguém havia sido submetido. Ez 40 – 48
se constitui num verdadeiro sistema de crença política. A transformação da realidade
num processo ideológico real. Nesse sentido, Ez 40 – 48, como aparelho simbólico:
interpreta, dá sentido, justifica e legitima a domínio da classe sacerdotal jerusolimitana
sobre o campesinato judaíta.
Essa falsa consciência , fulcro da noção marxista, fez com que a classe
dominada – campesinato – não reconhecesse que as relações sociais estavam sendo
alteradas, isto é, que estavam sendo submetidos a uma relação de dominação pela
elite religiosa. Numa atitude de passividade e submissão serviram de estrutura para
que a classe sacerdotal se legitimasse no poder.
Desse modo, definir a submissão imposta ao campesinato como violência
simbólica ajuda a compreender como as relações de dominação, que é uma relação
cultural, histórica e linguisticamente construída, não foram somente afirmadas como
uma construção de ordem natural, radical, irredutível e universal, mas foi uma relação
sobrenaturalizada, justificada, sacramentada e autenticada em “cartório divino”.
352
Pierre Bourdieu, O poder simbólico, 5ª Edição, Rio de Janeiro, Editora Bertrand Brasil Ltda.,2002, p.8
353
Idem, ibdem.
[...] aceitar o modelo saussuriano e seus pressupostos é o mesmo que tratar o mundo
social como um universo de trocas simbólicas e reduzir a ação a um ato de
comunicação [...]. Embora seja legítimo tratar as relações sociais como interações
simbólicas, isto é, como relações de comunicação que implicam o conhecimento e o
reconhecimento, não se deve esquecer que as trocas linguísticas – relações de
comunicação por excelência – são relações de poder simbólico.354
É desse modo que no dia a dia das trocas linguísticas que as diferenças vão se
superpondo no âmbito das relações sociais, diferenças que delimitam não somente as
fronteiras entre os diferentes grupos sociais, mas acima de tudo, o status que cada
grupo adquiri dentro da sociedade como um todo.
354
Pierre Bourdieu, A economia das trocas linguísticas, São Paulo, Edusp, 2008, p.23-24.
355
Citado por Gerad Duveen, “Introdução: o poder das ideias” em Serge Moscovici, Representações
Sociais: investigações em psicologia social, Petrópolis, Editora Vozes, 2003, p.8.
Resumindo, Blenkinsopp acredita que tanto a agenda de Esdras bem como a de
Neemias, nas suas diferentes funções e situações se esforçaram para implementar o
que havia sido definido pelos discípulos de Ezequiel na diáspora babilônica. Os pontos
de concordância entre as agendas de Esdras e Neemias (independente da
historicidade) com a lei do templo de Ez 40 – 48 são impressionantes o suficiente para
sugerir uma relação de dependência com especial relevo para os limites da
comunidade, o funcionamento do culto e a criação de um sistema de governo
teocrático. É razoável concluir que os ensinamentos de Ezequiel foram mediados por
um círculo ou uma escola de discípulos, cuja existência e atividade pode ser deduzida a
partir da história redacional do livro, especialmente na lei do templo nos capítulos 40 –
48.356
A situação atual dos estudos quanto ao livro do Pentateuco estão mais do que
abertas. Eckart Otto, em 1977, quando surgiram os livros de H.H. Schimid e de R.
Rendtorff exclamou: Será que estamos hoje diante de uma revolução nas pesquisas
sobre o Pentateuco? Nada será como antes, estamos diante de uma verdadeira
revolução científica.357
A velha e ultrapassada teoria das quatro fontes: Javista (J), Eloista (E),
Deuteronomista (D) e Sacerdotal (P), foi profundamente abalada. Segundo Albert de
Pury e Thomas Romer:
Uma coisa deve ficar bem clara: a questão das origens e do desenvolvimento do
Pentateuco não é um problema marginal que só interessaria a um círculo restrito de
profissionais da crítica literária. As implicações do estudo do Pentateuco para o
conjunto da ciência veterotestamentária – inclusive para a nossa própria percepção da
história de Israel – são evidentes. Já em 1890, antes mesmo de se impor um esquema
explicativo coerente, Franz Delitzch achava que a prioridade absoluta devia recair
sobre a solução da “questão do Pentateuco que é a questão principal de todos os
domínios”. Três quartos de século mais tarde, F. V. Winnett – desta vez atacando a
356
Joseph Blenkinsopp, Judaism: the first phase..., p.158-159.
357
Albert de Pury, Thomas Romer, “O Pentateuco em questão: posição do problema e breve história da
pesquisa”, em Albert de Pury (org.), O Pentateuco em questão: as origens e a composição dos cinco
primeiros livros da Bíblia à luz das pesquisas recentes, 2ª Edição, Petrópolis, Vozes, 2002, p.15.
teoria aceita – constatava que [...] os estudos do Antigo Testamento jamais
encontrarão alicerce seguro, enquanto não se resolver o problema do Pentateuco.358
O fundamento deste ponto de vista está muito mais na convicção de que o/os últimos
autores compuseram o texto atual, exatamente como o texto se apresenta a nós,
obedecendo a uma intenção bem determinada e que a tarefa principal da exegese
consiste em delimitar esta intenção e interpretar o texto em consequência.360
358
Albert de Pury, Thomas Romer, “O Pentateuco em questão..., p.17.
359
Rolf Rendtorff, “A história bíblica das origens (Gn 1 – 11) no contexto da redação “sacerdotal” do
Pentateuco”, em Albert de Pury (org.), O Pentateuco em questão: as origens e a composição dos cinco
primeiros livros da Bíblia à luz das pesquisas recentes, 2ª Edição, Petrópolis, Vozes, 2002, p.99.
360
Idem, ibdem.
Nesse sentido, vale ressaltar também o que autores como H. H. Schmid e B. J.
Diebner disseram sobre aqueles que se lançam ao desafio de estudar o livro do
Pentateuco. Chamam a atenção dos estudiosos para o fato de que devem interrogar-se
sobre o seu próprio contexto sócio-político, bem como das motivações ideológicas
que, subterraneamente, movem suas pesquisas. Segundo os autores, as gerações de
exegetas que nos precederam foram tomadas por certa nostalgia das origens, ao passo
que os novos pesquisadores são atraídos mais pelo contexto exílico e pós-exílico, –
como é o meu caso. “Mesmo que a nova crítica não tenha dito a última palavra sobre o
enigma do Pentateuco, pelo menos tem o mérito de convidar-nos a tentar
compreender em profundidade esta época pós-exílica tão pouco conhecida e às vezes
tão desprezada”.361
[...] As forças que suscitaram a formação do Pentateuco atual devem ser consideradas
com a mesma prioridade, tanto no plano político como social, tomando-se esses dois
termos num sentido bem amplo. Só sobre este pano de fundo se poderá esperar
compreender realmente o processo literário, como mostra a espinhosa questão: quem
atribuir a última palavra nesta questão, às vozes sacerdotais ou deuteronomistas?363
363
Frank Crusemann, “O Pentateuco, uma torá: prolegômenos à interpretação de sua forma final”, em
Albert de Pury (org.), O Pentateuco em questão: as origens e a composição dos cinco primeiros livros da
Bíblia à luz das pesquisas recentes, 2ª Edição, Petrópolis, Vozes, 2002, p.273.
364
Frank Crusemann, “O Pentateuco, uma torá..., p.278-279.
365
Idem, p.287-288.
1
Surgiu então uma forte queixa do povo e de suas mulheres contra seus irmãos
judeus. 2Alguns diziam: “Nossos filhos, nossas filhas e nós mesmos somos
numerosos. Gostaríamos de ter trigo para comer e viver!” 3Outros ainda diziam:
“Nossos campos, nossas vinhas e nossas casas, damo-los em hipoteca para
termos trigo durante a época da fome”. 4Outros ainda diziam: “Para o tributo
do rei, tomamos dinheiro emprestado, empenhando nossos campos e nossas
vinhas. 5No entanto, nossa carne é semelhante à carne dos nossos irmãos, e
nossos filhos são semelhantes aos deles. E contudo somos obrigados a entregar
nossos filhos e nossas filhas à servidão, e algumas das nossas filhas já são
escravas; nada podemos contra isso; nossos campos e nossas vinhas pertencem
a outros!”
[...] Na perspectiva desses conflitos fundamentais, as leis do Pentateuco manifestam
uma tendência bem marcante. Por um lado a grande quantidade de leis cultuais
sacerdotais que tornam obrigatórios o dízimo (Nm 18) e muitas outras contribuições
cultuais. E, de outro lado, as proibições do empréstimo a juros (Ex 22,24; Dt 23,20) e a
ordem de remissão periódica das dívidas entre israelitas (Dt 15,1s). Essas breves
indicações já bastam para perceber nitidamente onde estava a vantagem de cada um,
cui bono do qual as leis não podem justamente fazer abstração.366
De fato, quando Karl Marx afirma que a “estrutura econômica é aquela que
tudo determina em última instância” não se tem muita dificuldade em perceber esta
realidade na sociedade judaica do período persa. Apesar de a estrutura religiosa ter-se
tornado a estrutura dominante, foi tendo em vista a dimensão econômica, isto é,
aquilo que eles, os sacerdotes, poderiam lucrar e se beneficiar que foram criadas
muitas das leis presentes no Pentateuco, leis características da narrativa sacerdotal (P).
Outro fato interessante, que aponta Grabbe, está em que se constata com
facilidade é o fato de existem certa quantidade de leis bíblicas que não concordam
entre si. Isto acontece provavelmente devido a uma série de razões, incluindo a
incorporação de leis de diferentes períodos de tempo ou em diferentes estágios de
366
Idem, p.288.
desenvolvimento. Outra razão aparente, porém, é que diferentes autores legais (ou
escritores) teve um ponto de vista diferente sobre como deveria ser a lei e sua
redação. Isto nos leva a outra consideração: poderiam estar coexistindo na mesma
época diferentes grupos que se opunham uns aos outros com seus próprios interesses
(ideologias).367
Com esta designação fica claro que esta camada textual presente no livro do
Pentateuco dá, como já foi dito anteriormente, o tom, isto é, a capacidade de
compreensão e assimilação das leis, mas também, o ritmo, ou seja, a intensidade com
que se deve executar cada uma das prescrições e proscrições no dia a dia, sem o
menor descuido, pois do contrário, pesa sobre o faltoso, a ira e a maldição divina.
De um lado foram colocadas nesta camada todos os textos que têm a ver com as
realidades cultuais, em particular todo o livro do levítico com suas prescrições sobre o
culto e a pureza, como também os capítulos 25 a 31 e 35 a 40 do Êxodo que dizem
respeito à construção, arrumação e funções culturais do santuário do deserto, o ‘ohèl
mo’êd, ou empregando a terminologia sacerdotal específica, o miskan.368
367
Lester L. Grabbe, A history of the Jews and Judaism in the Second Temple Period: volume 1 – Yehud: A
history of the Persian Province of Judah, New York, T&T Clark International, 2004, p.183.
368
Rolf Rendtroff, “A história bíblica das origens..., p.92.
para designar os elementos cultuais que seriam representados por outra letra
qualquer.369
a) Material sacerdotal
Como não é meu objetivo entrar em detalhes quanto ao questionamento da
extensão do conteúdo de P, passo a analisar em função de meu objeto de pesquisa,
369
Rolf Rendtorff, “A história bíblica das origens (Gn 1 – 11) no contexto da redação “sacerdotal” do
Pentateuco”, em Albert de Pury (org.), O Pentateuco em questão: as origens e a composição dos cinco
primeiros livros da Bíblia à luz das pesquisas recentes, 2ª Edição, Petrópolis, Vozes, 2002, p.89.
370
Hans Heinrich Schmid, “Rumo a uma teologia do Pentateuco” em Albert de Pury (org.), O Pentateuco
em questão: as origens e a composição dos cinco primeiros livros da Bíblia à luz das pesquisas recentes,
2ª Edição, Petrópolis, Vozes, 2002, p.315.
371
Rolf Rendtorff, “A história bíblica das origens..., p.89.
372
Norbert Lohfink, Theology of the Pentateuch: themes of the Priestly Narrative and Deuteronomy,
Mineapolis, Fortress Press, 1994, p.155.
isto é, das relações de poder que se estabeleceram entre o campesinato e a classe
sacerdotal jerusolimitana diversas passagens, com o intuito de comprovar a tese de
que o motivo que levou a classe sacerdotal jerusolimitana a fazer todo esse arranjo
com o material mais antigo, dando origem ao que ficou conhecido como o livro do
Pentateuco, não foram acima de tudo questões de ordem histórica e/ou teológica, mas
questões de ordem nitidamente política e econômica. Tanto é verdade, que como será
demonstrado, eles alteraram em muitos pontos a própria tradição em proveito, única
e exclusivamente pessoal.
Segundo Frank Crusemann, a título de resumo sobre algumas das questões que
ainda incomodam os estudiosos, conclui que um estudo sério do Pentateuco não pode
ser feito de modo compartimentado e propõe que:
Independente do livro do Pentateuco ser ou não ser “a lei de Deus e do rei” (cf.
Esd 7,26), isto é, o livro que Esdras tinha em mãos, talvez enquanto um projeto
arquitetado sob os auspícios do império persa, o que de fato chama a atenção é o
modo como o novo código jurídico foi arquitetado. Dentro de uma moldura narrativa,
esse novo corpo jurídico ganhou não só em dinamicidade, mas acima de tudo,
utilizando-se do artifício de tudo referendar a Deus como autor, ganhou legitimidade,
373
Frank Crusemann, A torá: teologia e história social da lei do Antigo Testamento, Petrópolis, Editora
Vozes, 2002, p.386-387.
374
Frank Crusemann, A torá..., p.392.
o que fez com que os objetivos ideologicamente arquitetados pela classe sacerdotal
jerusolimitana fossem alcançados com muito mais facilidade.
375
Idem, p. 393.
havia sido prescrito, por exemplo, pelo CD (Código Deuteronômico). Segundo o autor,
isso ocorreu porque “muitas de suas prescrições pareceram incompletas,
ultrapassadas, radicais demais ou com base teológica insuficiente”.376
376
Frank Crusemann, A Torá..., p.384.
377
Frank Crusemann, A Torá..., p.393.
mostram os testos da época de Neemias (esp. Ne 10,32) bem como a Torá como um
todo.378
Outro ponto que não posso deixar de comentar é quanto ao fato de que
Crusemann não vê como negativo esse posicionamento antissocial e antipolítico da
classe sacerdotal, mas, muito pelo contrário, como algo extremamente positivo, pois
foram eles, os sacerdotes, os únicos que estiveram em condições de reagir à altura dos
acontecimentos e desafios do exílio. Sim, de fato, reagiram, mas como é possível
perceber, o pêndulo pendeu quase que totalmente a favor deles, que ficaram numa
posição suntuosa e extremamente confortável em relação ao campesinato que foi a
grande mola propulsora para que eles se legitimassem no poder.
378
Idem, ibdem.
379
Este termo “anti-deuterônomico” foi cunhado por Cholewinsk, mas que segundo Crusemann deve
ser utilizado com muito cuidado. Idem, p.394.
380
Frank Crusemann, A Torá..., p.395.
b) O ideológico culto sacrifical como elemento central do Documento
Sacerdotal
Como poderá ser constatado o Documento Sacerdotal instaurou um ideológico
sistema sacrificial que legitimado pelas inúmeras referências a deus, obrigava toda a
população a recorrer constantemente á sua intervenção, pois que açambarcando toda
a existência, era impossível para qualquer pessoa escapar à sua malha e influência.
Nesse sentido Crusemann argumenta e se posiciona de tal modo, que para ele:
O esboço geral do Documento Sacerdotal é bem evidente [...] Aquilo que começou no
Deuteronômio com a promulgação da lei [...] é levado adiante aqui com mais
determinação. A lei, e acima de tudo a constituição do culto, tornou-se parte de uma
narrativa que vai até os primórdios.
Chama a atenção na posição adotada por Crusemann de que, como ele mesmo
afirma, não conseguir encontrar o sentido evidente e o propósito do Documento
Sacerdotal.
[...] a vida na presença do Deus santo só é possível quando os fracassos e pecados são
sempre de novo expiados e perdoados. Por esta razão, o cancelamento da culpa
concedido por Deus ocupa o centro das leis cultuais sacerdotais.383
É nesse sentido que irá se configurando a ideia de que o pecado poderia ser
perdoado somente mediante a oferta de um sacrifício, onde a morte do animal
simbolizava que o pagamento pela dívida contraída pelo pecador estava sendo
saldada. É a tese da identificação da pessoa culpada com o animal do sacrifício.
Pois a vida de uma criatura está no sangue: e eu vo-lo dei, sobre o altar para a
absolvição da vossa vida. Com efeito, o sangue proporciona a absolvição por ser
a vida.
383
Frank Crusemann, A Torá..., p.425-426.
384
Idem, p.427.
estelas; seus vasos sagrados, os queimareis; os ídolos dos seus deuses,
quebrareis; suprimireis os seus nomes deste lugar. Não procedereis como eles,
em relação ao Senhor, vosso Deus, porque somente o procurareis no lugar que o
Senhor, vosso Deus, houver escolhido entre todas as tribos para ali estabelecer
o seu Nome, para ali morar; para lá é que irás. Para lá levareis vossos
holocaustos, vossos sacrifícios, vossos dízimos e vossos tributos voluntários,
vossas oferendas votivas, vossos dons espontâneos, os primogênitos de vosso
gado e de vosso rebanho. (Dt 12,2-6)
Desse modo a vida do campesinato vai se tornando cada vez mais difícil, pois
não podendo mais sacrificar aos seus deuses nos diferentes santuários e locais de culto
que havia na província de Judá, eles são agora obrigados, por um dever de consciência,
a se dirigirem até o templo de Jerusalém, pois se fossem pegos sacrificando fora do
lugar definido pelo próprio deus, deveriam ser eliminados do meio do povo, isto é,
condenação à morte.
385
Frank Crusemann, A Torá…, p.489.
Agora, pois, se ouvirdes a minha voz e guardardes a minha aliança, serei minha
parte pessoal entre todos os povos – pois a terra inteira me pertence – e vós
sereis para mim um reino de sacerdotes e uma nação santa.
A título de introdução uns breves acenos com respeito aos recentes estudos.
Tradicionalmente tem sido aceito que Esdras e Neemias, assim como 1 e 2 Crônicas
fariam parte de um só conjunto: a Obra historiográfica do Cronista (OHC). A título de
recensão Lester Grabbe sintetiza as discussões sobre o assunto da seguinte forma:
Mais recentemente, algumas dezenas de anos atrás, esta visão começou a ser
criticada. Japeht em 1968 e Willianson em 1977, mas suas visões não foram aceitas em
estudos posteriores (por exemplo Cazelles em 1979, Clines em 1984 e Blenkinsopp em
1988). Em 1988 Ackroyd discutiu as dificuldades em determinar a questão, embora
386
Idem, p.490.
387
Frank Crusemann, A Torá…, p.491.
tenha indicado uma autoria comum em outras publicações. Thronveit em 1982
desafiou os argumentos linguísticos de Japhet e Willianson, embora se perguntando se
a linguagem poderia realmente definir a questão. D. Talshir em 1988 argumentou que
um estudo linguístico não pode suportar uma divisão entre Crônicas e Esdras-Neemias,
embora admitindo que isto não prova a sua unidade. R. L. Braun em 1979 acentuou as
diferenças teológicas entre Crônicas e Esdras-Neemias. Willianson em 1995
argumentou que Crônicas e Esdras-Neemias foram dois trabalhos independentes
escritos pelo mesmo autor, mas com perspectivas diferentes. A maioria dos
estudiosos, porém, estão cautelosos em assumir uma composição unificada com uma
perspectiva e teologia única. Segundo Willianson (1985) o trabalho unificado de
Esdras-Neemias não pode ser anterior ao início do período helenístico. Este seria agora
demonstrado pelo suposto documento persa que utiliza algumas convenções
linguísticas pós-aquemênida. Na opinião de Lester G. Grabbe, 1 Esdras em sua forma
original semita seria anterior aos livros de Esdras-Neemias em hebraico, que também
devem ser pós-aquemênida.388
388
Lester G. Grabbe, A history of the Jews and Judaism in the second temple period: vol.1 – Yehud: a
history of the Persian Province of Judah, New York, T&T Clark International, 2004, p.71-72.
389
Mario Liverani, Para além da Bíblia..., p.332.
práticas à insignificância e suas diferentes formas de ser judeu à apenas um ruído de
fundo.390
Esdras Neemias
1: delegação real (por Edito de Cirus) 1,1–2.9: delegação real (por Artaxerxes)
3: tarefa de reconstruir (templo/altar) 2–3: tarefa de reconstruir (reparar o
muro)
4–6: impedimento por ‘inimigos’ 4,6: impedimento por ‘inimigos’
6: trabalho completado com o auxílio de 7: trabalho completado com o auxílio de
Deus Deus
7–8: Esdras e a lei 8: Esdras e a lei
9–10: ameaça de casamento 9–10: ameaça de casamento
10: resolução por testemunho público 10: resolução por testemunho público
Esdras Neemias
2: lista dos retornados 7: lista dos retornados
390
Joseph Blenkinsopp, Judaism: the first phase..., p.160-161.
391
Lester L. Grabbe, A history of the Jews and Judaism in the second temple period: vol.1…, p.325.
392
Joseph Blenkinsopp, Judaism: the first phase..., p.72.
2: lista dos retornados 11,1–12,26: lista dos retornados
6,16–17: dedicação do templo 12,27–43: dedicação do muro
6,18: organização dos sacerdotes/levitas
12,44–47 : organização dos sacerdotes /
direitos dos levitas
9–10: casamentos mistos /ameaças de 13: casamentos mistos / ameaças de
‘estrangeiros’ / povo da terra ‘estrangeiros’ / povo da terra
A partir deste quadro comparativo pode-se ver claramente que ambos os livros
concorriam entre si, ou seja, que a partir desta observação se pode concluir que os
dois livros representavam distintos grupos ou escolas que lutavam pelo poder político
e religioso do templo.393
393
Joseph Blenkinsopp, Judaism: the first phase..., p.160.
394
Lester L. Grabbe, A history of the Jews.. Vol.1.., p.72.
395
Joseph Bçenkinsopp, Judaism: the first phase..., p.160-188.
396
Idem, p.161.
A partir de um estudo das fontes disponíveis de ambos os livros Schwiderski
conclui que tais documentos seriam tardios, do período pós-aquemênida e com muita
probabilidade, seriam falsificações.397
Nesse sentido, com relação aos famosos editos presentes no livro de Esdras,
Mario Liverani conclui:
O fato é que dois séculos depois imaginou-se que Ciro tivesse promulgado logo, já no
seu primeiro ano de reinado na Babilônia, um edito que permitia o retorno dos
exilados e a reconstrução do templo de Yahweh. O edito (cujo suposto texto Es 1,24
menciona) é certamente falso, como demonstram quer a análise formal, quer os
anacronismo. O mesmo vale para um segundo edito do mesmo Ciro (mencionado em
Es 6,3-5), que teria sido encontrado nos arquivos persas no tempo de Dario e que dava
até as medidas e os detalhes técnicos e financeiros do novo templo. Esses editos foram
falsificados e adotados em época um tanto posterior, quando serviam para dar
garantia e privilégio imperial ao templo já construído e para rebater as pretensões do
templo rival de Samaria.398
Diante desses destaques é possível afirmar que suas funções contrastantes tem
um papel a desempenhar na luta partidária levando ao surgimento de seitas no
período hasmoneano, mas que não deve desviar a nossa atenção de que há uma
ideologia subscrita a ambos, tanto em Esdras quanto em Neemias.399
A partir disto, pode-se conjecturar que falar com precisão das figuras históricas
de Esdras e Neemias é quase que impossível a partir das fontes disponíveis. Mas nada
impede de se fazer uma tentativa de traçar os efeitos de ambos os livros ou se preferir,
de ambas as figuras – de Esdras e de Neemias – no período seguinte. Isto evidenciará
que ideologia sobreviveu que grupo levou vantagem sobre o outro.
397
Lester L. Grabbe, A history of the Jews.. Vol.1.., p.78.
398
Mario Liverani, Para além da Bíblia: história antiga de Israel, São Paulo, Paulus, 2008, p.312.
399
Lester L. Grabbe, A history of the Jews.. Vol.1.., p.78.
400
Lester L. Grabbe, A history of the Jews.. Vol.1.., p.73.
Assim como ainda hoje, em pleno século XXI e porque não dizer, ao longo de
toda a sua trajetória histórica, o povo judeu, assim como os palestinos, lutam por um
espaço de terra, às vezes de modo legítimo, outras vezes de modo nem tanto, mas no
contexto em que agora nos dispomos a analisar, que é o período pós-exílico, este
período está repleto de muitas controvérsias, de muitas estratégias políticas, de
usurpação de direitos legítimos, de exploração, de manipulação, enfim, de sofisticadas
literaturas recheadas de ideologias.
Num primeiro momento, foi com base nos “mitos de fundação”, ou seja, em
histórias inventadas – com uma finalidade bem específica – como a do “mito dos
patriarcas”, de Abraão, Isaac e Jacó, bem como também a do “mito da conquista da
terra prometida” por parte dos sobreviventes da escravidão egípcia, sob a guia de
Josué, que os redatores sacerdotais tentaram justificar a situação dos deportados.
Conforme Mario Liverani comenta:
401
Mario Liverani, Para além da Bíblia: história antiga de Israel, São Paulo, Paulus, 2008, p.318.
402
Mario Liverani, Para além da Bíblia..., p.324-325.
Além desses episódios, vale destacar Jerusalém que nas histórias patriarcais,
como mostra Liverani, aparecem de um modo muito ambíguo e ocasional, quando por
exemplo, como em Gn 14,19-20, Malki-Sedeq, rei de Shalen abençoa Abraão dizendo:
“Bendito seja Abrão pelo Deus Altíssimo que cria céu e terra!
Bendito seja o Deus Altíssimo que entregou teus adversários às tuas mãos!”
Outra história que está ligada aos Patriarcas e que serve etiologicamente às
pretensões da classe sacerdotal é a história da venda de José como escravo a uma
caravana de mercadores que o revendem no Egito. A história pertence ao gênero da
novelística de entretenimento. O Egito foi sem dúvida o maior centro de venda e
compra de escravos asiáticos ao longo de todo o curso da história antiga.
Mas essa história, conforme entende Liverani, com suas principais forças
morais encontra paralelos que se adensam todas na época do império persa e tem
uma mensagem muito clara:
Ainda não foi com a redação definitiva – versão canônica – dos livros de Esdras
e Neemias que a classe sacerdotal jerusolimitana – sadocitas – conseguiram efetivar
seu projeto de domínio, tanto político quanto religioso. A legitimação de seu projeto
levou quase umas duas centenas de anos para que fosse efetivado, pois não se muda a
403
Idem, p.327.
404
Mario Liverani, Para além da Bíblia..., p.330.
cultura de um povo, enfim, seu ethos, da noite para o dia com apenas alguns livros.
Será já no fim do período helênico que os Hasmoneus conseguiram reunir na
instituição do templo tanto a hegemonia do poder religioso quanto do poder político.
Na figura do sumo sacerdote concentrou-se os dois supremos poderes: o poder
espiritual e poder temporal.
Passemos agora á análise de alguns textos que são muito ilustrativos com
relação à realidade social e política da província de Judá.
405
Lester L. Grabbe, A history of the Jews and Judaism in the Second Temple Period: volume 1 – Yehud: A
history of the Persian Province of Judah, New York, T&T Clark International, 2004, p.147.
Segundo Lester Grabbe, o edito de Artaxerxes consiste num primeiro problema.
Este edito (cf. Esd 7 juntamente com outros documentos em Esd 4 – 6), não são
simples documentos persas. Em alguns casos eles podem ser uma completa invenção.,
enquanto em outros eles parecem ser documentos autênticos em sua essência, mas
foram fortemente editados em um momento mais tarde. A primeira afirmação é se
alguém do “povo de Israel e os seus sacerdotes e levitas” quiserem ir a Jerusalém tem
permissão para ir com Esdras (7,13), onde o Deus de Israel, cuja habitação está em
Jerusalém, os aguarda (7,15). Em 7,14 Esdras é enviado da parte do rei e de seus
conselheiros. Que o rei tivesse conselheiros nada de anormal, mas ter partilhado sua
autoridade na emissão de ordens ou decretos, é impensável.406
No dizer de Grabbe, toda esta generosidade deve ser examinada com muito
cuidado, pois oferecer um presente é uma coisa, outra bem diferente, é a quantidade
de riqueza pródiga que foi oferecida a Esdras, para que fossem celebrados cultos num
local muito distante. Em verdade, este não parece em nada com um decreto de um rei
persa, mas apenas ilusão de um apologista judeu.407
Depois das riquezas veio o poder político: Esdras foi encarregado de nomear
funcionários e juízes para julgar todas as pessoas na região de Ebir-nari, tanto aqueles
que conheciam a lei como aqueles que não a conheciam, e isto, de acordo com a
406
Lester L. Grabbe, A history of the Jews and Judaism in the second temple period: vol.1…, p.326.
407
Lester L. Grabbe, A history of the Jews and Judaism in the second temple period: vol.1…, p.327.
sabedoria da lei que estava em suas mãos (7,25-26). O curioso é que a sua autoridade
se estende por toda a satrapia. E segundo o próprio texto, não há nenhuma base para
que se limite o poder de Esdras somente ao contexto dos judeus. Qualquer um que
não obedeça deve ser punido conforme o caso. E a extensão desses poderes é
insinuado claramente em Esd 8,36, onde as ordens do rei são para serem entregues à
“sátrapas e a governadores da província do além rio”. É pouco provável que Esdras
tenha tido todo esse poder, embora o poder e o ofício de um sátrapa devessem variar
conforme sua localização.
408
Idem, p.328-329.
utilizada como justificativa para que se tomassem drásticas medidas contra os
“estrangeiros”.409
5.2.3.5 – Neemias
a) Neemias 5,1-13
409
Lester L. Grabbe, A history of the Jews and Judaism in the second temple period: vol.1…, p.314-315.
410
Idem, p.78-79. Segundo T. Reinrnuth (2002), que é quem mais recentemente fez uma análise desse
material, chega à conclusão de que existe grande probabilidade desse memorial ter existido.
Mas, independente disso, o texto é muito ilustrativa no sentido de que retrata
muito da realidade social. O cenário que se tem é o de que o campesinato está
passando por um período de grande exploração por parte da aristocracia. Neemias na
qualidade de governador ouve o clamor dos empobrecidos e humilhados por tal
situação e, ao que o texto parece indicar, chama seus concidadãos à responsabilidade,
pois, estes que sofrem, eram também judeus como eles.
Surgiu então uma forte queixa do povo e de suas mulheres contra seus irmãos
judeus. Alguns diziam: “Nossos filhos, nossas filhas e nós mesmos somos
numerosos. Gostaríamos de ter trigo para comer e viver!”. Outros diziam:
“Nossos campos, nossas vinhas e nossas casas, damo-las em hipoteca para
termos trigo durante a época da fome”. Outros ainda diziam: “Para o tributo do
rei, tomamos dinheiro emprestado, empenhando nossos campos e nossas
vinhas. No entanto, nossa carne é semelhante à carne dos nossos irmãos, e
nossos filhos são semelhantes aos deles. E contudo somos obrigados a entregar
nossos filhos e nossas filhas à servidão, e algumas de nossas filhas já são
escravas; nada podemos contra isso; nossos campos e nossas vinhas pertencem
a outros!” (Ne 5,1-5)
A partir da leitura deste texto é possível perceber que ele tem uma grande
abrangência, pois os problemas que saltam aos olhos de qualquer observador são
tanto de ordem econômica, quanto de ordem social, política e, principalmente,
ideológica.
Milton Schwantes nos dá uma dica preciosa quando alerta para os equívocos que
podem ser cometidos ao se fazer uma leitura descontextualizada:
[...] interpretar não é só reler o que está escrito. Ao interpretar também necessito
avaliar a trajetória social percorrida pelos textos. Uma leitura que reproduz o texto
final tende a nivelar e a perder a postura dialética. Não se trata de desfazer a validade
de genealogias, itinerários e promessas, mas de validá-los, em sua contribuição
específica, no contexto da especificidade dos demais textos, ou partículas das
narrativas. Exegese não são só relê sentidos, igualmente perscruta a história; dá-se na
dinâmica entre sentidos e história.411
411
Milton Schwantes, A família de Sara e Abraão, São Paulo, Paulinas, p.38.
De fato, Milton tem razão quando reforça a necessidade que se tem de avaliar
a trajetória social percorrida pelo texto, mas no caso do texto acima, ele se propõe a
ser uma releitura de fatos ocorridos quase uma centena de anos antes. Se os fatos
aqui narrados foram verídicos, não tem grande importância. O importante consiste no
presente a quem ele foi dirigido. Ao que parece, o texto quer propor uma nova
relação, particularmente, entre a aristocracia e o campesinato. No fundo, da questão
estavam o sacerdócio e o templo que necessitavam do campesinato, pois sendo
numericamente muito superior ao grupo que detinha o poder econômico na província
de Judá, isto é, a aristocracia, eram eles que de fato sustentavam o templo com seus
sacrifícios, oferendas e dízimos. Eram eles que estavam sendo integrados dentro de
um novo sistema de crença que possibilitaria a justificação, afirmação e legitimação do
grupo sacerdotal como poder dominante em toda a região da província de Judá. Aos
olhos do campesinato o grupo sacerdotal aparecia como extremamente relevante do
ponto de vista da mediação, tanto entre a divindade e a sociedade em geral, como
também, de forma bem particularizada, entre o campesinato e a aristocracia, pois,
aparentemente, tinham a classe sacerdotal ao seu lado, contra a aristocracia.
412
Conforme Robert R. Wilson em Genealogy and History in the Biblical World, citado por Lester L.
Grabbe, A history of the Jews and Judaism in the Second Temple Period: volume 1..., p.80., estudos de
genealogias nas sociedades modernas mostram que elas podem ter outras funções do que ser um
simples registro de descendência de sangue. Elas podem ser fruto de relações socais em crise ou que
contenham mensagens teológicas. Segundo o próprio Grabbe, as listas em Esdras e Neemias tem muitas
vezes, um propósito teológico.
quem pertenciam aquelas terras que haviam sido ocupadas pelo campesinato e por
outro, descredenciá-los, caracterizando-os com o termo pejorativo de “povo/gente da
terra”413.
É bem possível que estes homens e mulheres que estavam lutando por sua
sobrevivência, bem como também pela sobrevivência de seus filhos e filhas, sejam os
mesmos que também tiveram que enfrentar a ideologia do projeto sacerdotal.
A economia de todo esse período como nos informa Grabbe, foi agrária. O
comércio teve um importante nicho em cada período, mas foi sempre muito
secundário à agricultura. Apesar de alguns desenvolvimentos tecnológicos ao longo
dos séculos, o trabalho sobre a terra mudou pouco no Oriente Próximo (e em grande
parte do mundo Mediterrâneo) ao longo de vários milênios. Os métodos agrícolas
eram primitivos e a mão de obra intensiva, gerando em média apenas um pequeno
excedente. A grande maioria da população – campesinato – estava empregada em
atividades agrárias.414
Esse dado levantado por Grabbe, nos faz sustentar a hipótese de que Ne 5 é
acréscimo ao conjunto designado por “Memorial de Neemias” e que deve ter sido feito
num período bem posterior, isto é, no período grego. Outro dado do próprio texto que
nos ajuda nesta argumentação é quanto à realidade da escravidão, ou seja, do
413
Em Ageu 2,4 “Podo da terra” tem uma conotação bem diferente da que é encontrada em Esdras e
Neemias onde são, de certa forma, demonizados. Em Ageu parecem fazer parte da comunidade.
414
Lester L. Grabbe, A history of the Jews and Judaism in the Second Temple Period: volume 1 – Yehud: A
history of the Persian Province of Judah, New York, T&T Clark International, 2004, p.191.
415
Lester L. Grabbe, A history of the Jews and Judaism in the Second Temple Period: volume 1, p.207.
trabalho escravo nas grandes fazendas e latifúndios: algumas de nossas filhas já são
escravas.
Segundo Finley (1985) e Whittaker (1980), citados por Grabbe, a espinha dorsal
da economia na província de Judá do período persa ainda era o agricultor ou o
trabalhador livre. No período grego e romano haviam latifúndios, que eram grandes
propriedades com trabalhadores escravos.416
A nível de conclusão, Grabbe, citando Hamel (1990) diz que ninguém, de fato,
saúda a cobrança de impostos, mas que sempre, em algum momento, queixam-se,
mas tentar quantificar até que ponto esta cobrança tornou a vida das pessoas se torna
muito difícil. A maioria das pessoas vivia em nível de subsistência e seria considerado,
segundo os padrões modernos, uma situação de opressiva pobreza, de extrema
miséria. Homens ou mulheres sabem-se pouco sobre eles. Não havia classe média para
falar, mas apenas um grande número de pobres e uma minoria de ricos. A diferença de
riqueza entre as classes altas e as massas era enorme. Ainda assim, o que se chama de
pobreza extrema parece ter sido amplamente aceito na Antiguidade.418
416
Idem, p.193.
417
Idem, ibdem.
418
Lester L. Grabbe, A history of the Jews and Judaism in the Second Temple Period: volume 1…, p.193-
194.
E é dentro desse contexto que a religião foi utilizada como instrumento de
justificação e legitimação da riqueza como portadora da bondade divina e da pobreza
como fruto, no contexto do judaísmo, da falta de observância das leis presentes na
Torá.
b) Neemias 10
Em Ne 10 pode-se detectar uma forte influência num primeiro plano do Livro
do Pentateuco que tem por sua vez a “lei do templo” de Ez 40 – 48 como background.
Ne 10 trás uma série de leis que, segundo o texto, foram assumidas pelo povo
como um compromisso por escrito. São as seguintes:
419
Frank Crusemann, A Torá…, p.464.
refletem igualmente o contexto histórico do seu tempo, ou seja, a agenda de ambos os
grupos na tentativa de assumir o controle político e religioso da província de Judá.
Diante deste texto se pode concluir que, assim como os redatores da narrativa
sacerdotal presente no Pentateuco tinham como objetivo a sua justificação e
legitimação à frente da comunidade, o texto de Neemias vem reforçar esse ideal de
modo etiológico, isto é, relegando a um passado, que mesmo que não tão distante, um
compromisso já assumido por toda o povo, isto é, pelo campesinato.
Nesse sentido é claro perceber que a província de Judá estava sob grande
pressão social e política. De um lado estava a aristocracia pressionando o campesinato
para que saldassem as suas dívidas (cf. Ne 5,1-5) e do outro a classe sacerdotal que
também pressionava o mesmo campesinato, pois somente eles poderiam fazer com
que o projeto sadocita saísse do papel, isto é, funcionasse adequadamente segundo os
interesses da classe sacerdotal.
O que deve ser percebido é que a ideologia sacerdotal foi sendo sutilmente
instalada no inconsciente, no imaginário do campesinato como algo naturalmente
normal e, acima de tudo, querido por Deus, pois não podendo resistir a um
compromisso assumido anteriormente por seus pais, viu-se obrigado a dar o devido
suporte para que o regime teocrático fosse paulatinamente implantado.
5.2.4 – 1ª e 2ª Crônicas
420
Lester L. Grabbe, A history of the Jews.. Vol.1.., p.98.
421
Lester L. Grabbe, A history of the Jews.. Vol.1.., p.98-99.
422
Idem, p.99.
sociedade, trouxe, em verdade, muito mais dificuldades e sofrimento. Portanto, é de
se desconfiar desse deus apresentado pela narrativa sacerdotal como o grande deus
libertador, que livrou o povo das terras do Egito para subjuga-lo ainda mais à
autoridade dos sacerdotes.
423
François Houtart, Religião e modos de produção pré-capitalistas, São Paulo, Edições Paulinas, 1982,
p.13-14.
relações de parentesco, passou a ter que sustentar economicamente o templo e toda a
sua estrutura de pessoal a ele ligada, isto é, ao clero sacerdotal jerusolimitano.
[...] recoloca a discussão sobre as relações entre economia e religião no antigo Israel,
exigindo um redimensionamento do metabolismo produtivo-reprodutivo das análises
de modo de produção tributário que são utilizadas. A oferta/sacrifício como
ritualização do processo de criação de valor não pode ser analisada na superfície dos
mecanismos de manutenção da economia do templo e do clero, mas deve possibilitar
o acesso às formas sociais de organização da produção e reprodução da vida
material.425
424
Idem, p.14.
425
Nancy Cardoso Pereira, “Fabricação do corpo e economia: produção e reprodução de valor no
Levítico”, em Revista de Interpretação Bíblica latino-Americana, nº 51, Economia: solidariedade e
cuidado, Petrópolis, Vozes, 2005/2, p.35.
as demais estruturas, ou seja, a estrutura econômica, jurídica e política, deram
sustentação aos seus objetivos – controle do templo (poder religioso) e irrestrito poder
político-social.
426
Conforme argumenta Henri Desroche, O marxismo e as religiões, Rio de janeiro, Paz e terra, 1968,
p.27-30. Citando L. Feuerback, “Não foi a necessidade de consolação religiosa, mas a dificuldade nascida
da ignorância” que tem levado os seres humanos de todos os tempos a procurar uma explicação para a
vida e a para morte. “De uma maneira absolutamente análoga, é pela personificação das potências
naturais que nasceram os primeiros deuses...”. Desse modo o autor conclui que foi “em um
determinado estágio porque passam todos os povos civilizados, ele as assimila, personificando-as. Foi
este instinto de personificação que criou deuses em toda parte”.
Enquanto aos sacerdotes ficou reservado o trabalho de serem os mediadores,
autorizados e consagrados pela divindade, entre Deus e o povo, ao campesinato restou
trabalhar a terra para dela tirar seu sustento bem como também o necessário para
oferecer a deus para assim estar em estado de pureza e poder sonhar com sua
benevolente bondade.
[...] um momento de transição das antigas formas rituais de produção de valor para
um tecido social-novo que, a partir da religião, faz da fabricação/controle social dos
corpos – pessoal e social – o mecanismo básico de produção e reprodução de valor,
infraestrutura fundamental para a consolidação de uma forma social de produção: a
escravidão.427
427
Nancy Cardoso Pereira, “Fabricação do corpo..., p.35-36.
Porque enviarei para o meio de vós as feras do campo, as quais vos
desfilharão, e acabarão com o vosso gado, e vos reduzirão a poucos; e
os vossos caminhos se tornarão desertos. Se ainda com isto não vos
corrigirdes para volverdes a mim, porém andardes contrariamente
comigo, eu também serei contrário a vós outros e eu mesmo vos ferirei
sete vezes mais por causa dos vossos pecados
Se teu irmão, filho de tua mãe, ou teu filho, ou tua filha, ou a mulher do
teu amor, ou teu amigo que amas como à tua alma te incitar em
segredo, dizendo: Vamos e sirvamos a outros deuses, que não
conheceste, nem tu, nem teus pais, dentre os deuses dos povos que
estão em redor de ti, perto ou longe de ti, desde uma até à outra
extremidade da terra, não concordarás com ele, nem o ouvirás; não
olharás com piedade, não o pouparás, nem o esconderás, mas,
certamente, o matarás. A tua mão será a primeira contra ele, para o
matar, e depois a mão de todo o povo. Apedrejá-lo-ás até que morra,
pois te procurou apartar do SENHOR, teu Deus, que te tirou da terra do
Egito, da casa da servidão (Dt 13,7-11)
[...] recusar a ficção de uma metalinguagem que unifica o todo é deixar aparecer os
procedimentos científicos limitados e aquilo que lhes falta do real ao qual se referem.
É evitar a ilusão necessariamente dogmatizante, própria do discurso que pretende
fazer crer que é “adequado” ao real, ilusão filosófica oculta nos preâmbulos do
trabalho historiográfico e da qual Schelling reconheceu maravilhosamente a ambição
tenaz: “O relato dos fatos reais é doutrinal para nós”. Este relato engana porque
acredita fazer a lei em nome do real.429
Desse modo, partindo daquilo que a “nova história” caracterizou como sendo
uma história a ser contada a partir do ponto de vista dos dominados, isto é, daqueles
que sempre estiveram por baixo, daquele “real” de história que sempre foi omitido,
428
Pierre Bourdieu, A economia das trocas simbólicas, São Paulo, Editora Perspectiva S.A.,1982, p.32.
429
Michel de Certeau, A escrita da história, Rio de janeiro, Forense-Universitária, 1982, p.10-11.
conforme os interesses escusos dos dominadores, daqueles que sempre estiveram por
cima.
Com o fim dos discursos universais e seguindo uma das tendências filosóficas
que marca profundamente a contemporaneidade da reflexão, como novo norteador
ético, o corpo é assumido atualmente como critério para julgamento. Mas conforme
preconiza os arautos da “nova história” nem sempre foi assim. Estudar a história do
corpo humano, que é constantemente afetado de maneiras variadas, tanto pela
cultura quanto pela sociedade, jamais deveria ser encarado sem levar em conta as
considerações (culturais) da experiência e da expressão na linguagem e na ideologia.430
Não foi por menos que Michel de Certeau inaugurou seu livro analisando
aquela pintura de Jan Van der Straet, onde o artista pintou o descobridor que vindo do
mar, e tendo atrás de si as naus que levaram muitos de nossos tesouros, se encontra a
“América Índia, mulher estendida, nua, presença não nomeada da diferença, corpo
que desperta num espaço de vegetações e animais exóticos”. Mas, conforme aponta o
próprio Michel de Certeau:
[...] o que assim se disfarça é uma colonização do corpo pelo discurso do poder. É a
escrita conquistadora. Utilizará o novo mundo como uma página em branco (selvagem)
para nele escrever o querer ocidental. Transforma o espaço do outro num campo de
expansão para um sistema de produção. A partir de um corte entre um sujeito e um
430
Roy Porter, “História do Corpo”, em Peter Burke, A escrita da história, 2ª Reimpressão, São Paulo,
Editora UNESP, 1992, p.291-326.
431
Michel de Certeau, A escrita da História..., p.325.
objeto de operação, entre um querer escrever e um corpo escrito (ou a escrever)
fabrica a história ocidental.432 (o grifo é meu)
Daí que o autor se pergunta: “Que aliança é esta entre a escrita e a história?” E
responde, dizendo: “Ela já era fundamental na concepção judaico-cristã das
Escrituras”.433
Este “discurso do poder” do qual nos fala Certeau, logicamente tem a ver com
os diferentes discursos, mas aqui, particularmente no contexto desta tese, com os
discursos presentes na escritura judaico-cristã. Segundo o próprio Certeau estes
discursos tem mais “aspecto de fabricação” e não mais de leitura ou interpretação. O
que está por trás é claramente um “problema político” e em jogo, a “questão do
sujeito (do corpo e da palavra enunciadora), questão reprimida ao nível da ficção ou
do silêncio pela lei de uma escrita científica”.434
[...] Quanto melhor se vê a que serve e como atua o religioso no seio do social, menos
se é tentado a igualar o social ao religioso. Quanto melhor se compreende a história
resolutamente disposta na mente, em que sentido a religião constituiu, em quase toda
a duração das sociedades humanas, o elemento essencial de seu dispositivo político e
como que a matéria da ligação entre seus membros, mais nos deligamos do mito de
sua pretensa necessidade trans-histórica.435 (o grifo é meu)
[...] Nada de despossessão mais completa e mais estrita do que aquela que garante a
relação com a verdade instituída em outro tempo, tempo de antes, tempo da origem,
uma vez por todas terminado, povoado de seres, heróis ou ancestrais, de outra
estatura que não a nossa, e tempo cuja realidade presente não constitui, e não pode
constituir, senão uma cópia conforme e uma repetição exaustiva. Sempre fizemos
assim, isso nos vem da origem: a fórmula parece benigna em seu tradicionalismo; ela
é, no entanto, aquela da alteridade religiosa máxima.436 (o grifo é meu)
432
Idem, p.9-10.
433
Michel de Certeau, A escrita da História..., p.11.
434
Idem, ibdem.
435
Marcel Gauchet, A democracia contra ela mesma, São Paulo, Radical Livros, 2009, p.58.
436
Idem, p.71.
5.5 – O judaísmo à luz da teoria da etnicidade.
437
Philippe Poutignat; Jocelyne Streiff-Fenart, Teorias da etnicidade: seguido de grupos étnicos e suas
fronteiras de Fredrik Barth, 2ª Reimpressão, São Paulo, Editora UNESP, 1997, p.141.
438
Idem, p.143-144.
Aplicando a teoria da etnicidade a Israel, encontramos dois relatos (Gn 49,1-27;
Dt 33,1-29), onde se percebe claramente, aquilo que Barth conceitualiza como
“atribuição categorial”, ou seja, além da nomeação dos diferentes grupos sociais –
tribos – o redator ainda faz uma descrição qualitativa de cada um dos grupos sociais.
Mas, a pergunta que nos inquieta é a seguinte: quem tem o poder de nomear?
Quem foi a pessoa ou qual foi o grupo que se arvorou nesse trabalho de categorização
social? A resposta, a princípio, não é tão simples de ser levantada, mas se levarmos em
conta a temática de nosso projeto – análise histórico-crítica das relações de poder
entre o campesinato judaíta e a classe sacerdotal jerusolimitana – notaremos que
houve, de fato, uma manipulação da narrativa, para que ela servisse, de fato, aos
interesses de um determinado grupo social. Se olharmos atentamente, principalmente
para Gn 49,8-10 (“Judá é a ti que teus irmãos celebrarão, tua mão pesará sobre a nuca
dos teus inimigos, os filhos de teu pai se prostrarão diante de ti [...] O cetro não se
apartará de Judá, nem o bastão de comando de entre os seus pés”), perceberemos o
destaque e supremacia concedida à tribo de Judá, que não por acaso é onde tem
origem e está instalado o clero sacerdotal jerusolimitano.
[...] a pertença étnica não pode ser determinada senão em relação a uma linha de
demarcação entre os membros e os não-membros. Para que a noção de grupo étnico
tenha um sentido, é preciso que os atores possam se dar conta das fronteiras que
marcam o sistema social ao qual acham que pertencem e para além dos quais eles
identificam os outros atores implicados em um outro sistema social. Melhor dizendo,
as identidades étnicas só se mobilizam com referência a uma alteridade, e a etnicidade
implica sempre a organização de agrupamentos dicotômicos Nós/Eles. Ela não pode
ser concebida senão na fronteira do “Nós”, em contato ou confrontação, ou por
contraste com “Eles”.439
439
Idem, p.152-153.
existência. Desse modo, a elucidação dos fenômenos de etnicidade passam pela
análise gerativa das condições de estabelecimento, manutenção, transformação das
fronteiras entre os grupos. Na concepção barthiana, a manutenção das fronteiras
étnicas necessita da organização das trocas entre os grupos e da ativação de uma série
de proscrições e de prescrições regendo suas interações.440
Nas narrativas bíblicas esses detalhes das proscrições e prescrições são por
demais palpáveis. Vejamos alguns exemplos de prescrições que enalteciam, por
demais, a classe sacerdotal :
Lv 5,1-13: Quando alguém, pelo simples fato, de ter visto ou ouvido alguém
cometendo alguma coisa contrária à lei e não denuncia o infrator comete
pecado.
O projeto persa foi tão bem estruturado e articulado com as tradições que não
deixou margem a qualquer possibilidade de alguém, que pertencesse a um
440
Idem, ibdem.
determinado grupo étnico, mudar de grupo. Para que as fronteiras ficassem bem
marcadas, as narrativas se ativeram a pequenos detalhes, quanto:
[...] as fronteiras entre os grupos são tanto menos permeáveis quanto mais a
organização das identidades étnicas esteja ligada à divisão diferencial das atividades
441
Devido à casuística que se foi instalando em função de um controle ainda maior da vida da
população, imagina-se que a quantidade de animais (gados de pequeno e grande porte, ovelhas,
cordeiros e aves) e outros gêneros que eram ofertados em holocaustos e sacrifícios, deveria ser um algo
de terrivelmente espantoso. Em pouco tempo a classe sacerdotal desfrutou de bem estar material,
jamais visto ao longo da história de Israel. Diz Joaquim Jeremias.
no setor econômico. Quando as identidades étnicas estão fortemente correlacionadas
a um sistema de estratificação socioeconômico (ou seja, quando as características
fenotípicas ou culturais são associadas de maneira sistemática a posições de classe), a
fronteira étnica superpõe-se à fronteira social, uma reforçando a outra.442
Ao que tudo parece estar a indicar, existe uma relação intrínseca entre o
tribalismo israelita e o movimento profético. A partir dos textos, particularmente de
Amós e Oséias, oriundos do reino de Israel, portanto do norte, que foram profetas
mais ligados ao campesinato – enquanto classe explorada – do que à classe política,
isto é, ao setor dominante da sociedade norte-israelita, pode-se constatar essa
realidade quanto aos fatos:
5.6.1 – Amós
Dos três profetas citados acima, Amós é o primeiro em termos cronológico. Por
volta da metade do século VIII a.C., Amós se levanta em defesa campesinato, isto é, da
classe explorada e dominada economicamente pela elite samaritana. Originário de
Tecua, um povoado ao sul de Jerusalém, profetizou no norte, incomodando por
demais à classe dominante: ao rei e sua corte, bem como ao poder religioso,
representado pelo sacerdote Amasia, de quem ouviu as seguintes palavras: “A terra
442
Philippe Poutignat, Jocelyne Streiff-Fenart, Teorias da etniidade..., p.155.
não pode suportar suas palavras” (Am 7,10) . Segundo Milton Schwantes que
fundamentado em tese de Hans Walter Wolf, afirma que:
[...] É possível que Tecua tenha sido uma das aldeias em que a sabedoria popular era
especialmente cultivada. Em todo caso, a sabedoria clânica é a matriz intelectual da
profecia de Amós. Tradições cúlticas ou inteligência cortesã não são o lar espiritual de
nosso profeta. Seu ninho efetivamente é a cultura sapiencial popular do jeito como era
cultivada em aldeias interioranas. Amós é a voz do campo.443
Nesse sentido, adentremos ao texto. Vejamos o que também foi visto pelo
profeta Amós (cf. Am 7,1.4.7; 8,1;9,1). Como poderemos constatar, a situação era,
realmente, de “total terror”.444
“porque vendem o justo por dinheiro e o pobre por um par de sandálias” (Am
2,6b)
“porque são ávidos para ver o pó da terra sobre a cabeça dos indigentes e
desviam os recursos dos humildes” (Am 2,7a).
“olhai que desordem em seu seio, que opressões no meio dela”(Am 3,9b).
443
Milton Schwantes, “A terra não pode suportar suas palavras” (Am 7,10): reflexão e estudo sobre
Amós, São Paulo, Paulinas, 2004, p.50. Hans Walter Wolf, Dodekapropheton: 2 Joel and Amos,
Neukirchen, Neukirchiner, 1969, (Bibbblllischer Kommentar Altes Testament, 14/2).
444
Conforme Milton Schwantes, “A terra não pode suportar suas palavras” (Am 7,10): reflexão e estudo
sobre Amós, São Paulo, Paulinas, 2004, p.87, ver estudo de Hans Walter Wolf com relação ao termo
“total terror” que Milton utiliza para descrever a realidade social em Israel. Hans Walter Wolf,
Dodekapropheton: 2 Joel and Amos, Neukirchen, Neukirchiner, 1969, (Bibbblllischer Kommentar Altes
Testament, 14/2).
“pressionais o indigente tomando-lhe sua parte de cereal”(Am 5,11)
“Escutai, vós que vos encarniçais contra o pobre, para aniquilar os humildes da
terra”(cf. Am 8,4).
“eles não conhecem o reto agir esses amontoadores de violências e rapinas nos
seus palácios”(Am 3,10)
“Ai dos que fundaram sua tranqüilidade em Sião e dos que puseram sua
segurança na montanha de Samaria, elite da primeira das nações” (Am 6,1)
Como podem ser constatadas, todas essas citações se inserem num conjunto
de cinco visões, que não deslocam o profeta para fora de seu contexto social, mas o
lançam para dentro do seu âmago.. As duas primeiras se referem ao campo, isto é, ao
trabalho do campesinato, que sofre não só nas mãos do pessoal e das instituições
ligadas à cidade, mas também sofrem a ameaça da seca, de reis estrangeiros e
gafanhotos que devoram as suas plantações. As três últimas visões dizem respeito à
445
J.A.Motyer, O dia do leão: a mensagem de Amós, São Paulo, 1984, p.1.
cidade. São relativas aos muros da cidade e às festas que lá dentro aconteciam. Delas
fazem parte os seus lugares sagrados, às suas dinastias, palácios, templos e sacerdotes.
A base real das cinco visões constitui, pois, o conflito entre campo e cidade. Essa é a
contradição elementar no tributarismo, o modo de produção do mundo bíblico em
geral e dos tempos de Amós (século VIII a.C.) em especial. O campo é o local da
produção. Gerador de riqueza social é o clã agrícola. A cidade sobrevive à base e à
custa do campo. Arrecada parcelas de seus produtos e convoca sua população para o
trabalho forçado junto às construções públicas [...] Exército, templo e burocracia são
os esteios de tais cidades-Estados.446
É bem provável que o campesinato tenha conseguido resistir por certo tempo
às investidas do setor citadino no sentido de arregimenta-los visando aumento das
arrecadações, pois os clãs mantinham uma significativa autonomia, controlando assim,
seu processo produtivo. “Desse modo, cidade e Estado tem certa dificuldade em se
apropriar dos produtos do campo e em requisitar sua força de trabalho. Não raro
recorrem à repressão militar e à força bruta para ‘convencer’ lavradores ao pagamento
de tributos”.447
Assim, tem-se de modo bem sucinto a realidade que está por trás das cinco
visões descritas por Amós. Curioso é que, com relação às duas primeiras visões, Amós
deixa entrever que existe solução e esta está a caminho para o bem do campesinato,
mas, quanto às três últimas visões, o prognóstico é aterrador: não existe solução e a
consequência será a destruição.
Portanto, Amós, bem como também, seu grupo social, – pois é de se supor que
ele não estivesse sozinho, mas que tenha tido um grupo com quem ele dividia sua
446
Milton Schwantes, “A terra não pode suportar…, p.199.
447
Idem, p.200.
aflição e angústia pelo sofrimento de seus coirmãos, bem como, lhe dando o devido
apoio e suporte, para que não sucumbisse nos momentos de perseguição – é de se
supor, devido não somente pela sua opção de estarem ao lado dos economicamente
explorados e oprimidos, além de socialmente injustiçados, mas pela sensibilidade
humana e pelos valores morais que cultivavam em clara oposição frente às atitudes da
classe citadina fossem descendentes diretos do tribalismo.
Por isso se torna claro qual era o fundamento de sua posição frente à classe
citadina, isto é, frente ao rei e sua corte, às suas instituições, de modo especial, a
religião estatal com seus sacerdotes, ritos e festas.
5.6.2 - Oséias
Assim como Amós, também Oséias, poucos anos mais tarde, vivenciou a
mesma situação a que estava sendo submetida a população campesina. O livro de
Oséias, apesar de ter sido posteriormente muito retrabalhado pelos escribas ligados à
corte judaíta (deuteronomistas), guardou alguns resquícios da intuição profética de
Oséias e de seu grupo:
Este versículo é como uma espécie de síntese profética da missão que Oséias
desenvolveu, não somente junto às autoridades políticas e religiosas de seu tempo,
mas também junto das comunidades aldeãs, isto é, junto ao campesinato, do qual foi
também, não somente um porta-voz, mas um líder que assumiu a responsabilidade de
resgatar alguns dos mais nobres valores e ideais do tribalismo: a solidariedade que
fundada num autêntico conhecimento de Deus, possibilitaria uma profunda renovação
do tecido social totalmente corrompido.
Para fazer frente ao império assírio que avançava pelo norte, a classe
dominante encontrou na religião um instrumento por demais estratégico para a
consecução de seus interesses, que eram: aumentar a arrecadação de alimentos, não
448
Joseph Blenkinsopp, Judaism – The first phase: the place of Ezra and Nehemiah in the origins of
Judaism, United Kingdom, Wm. B. Eerdemans Publishing Co., 2009, p.2.
449
Carlos Mario Vasquez Gutierrez, Os 6,6 – “Reconstruyendo el tejido social”: la solidaridad, una
alternativa frente a la violencia institucional, São Paulo, Faculdade de Teologia Nossa Senhora da
Assunção, 1995, p.158 (Dissertação de Mestrado).
somente em função de si próprio, mas também tendo presente o outro fator: a
procriação, que de certa forma, gerava mais pessoas, não somente para servirem no
exército, mas também para trabalharem nos campos.
Esta violencia fue justificada por el Estado con la ayuda y apoyo de los sacerdotes,
quienes vehiculaban en las fiestas religiosas y los cultos (Os 4,4-19; 5,1-7; 8,1-7) el
proyecto estatal de aumentar la recaudación de los tributos y, por medio de los cultos
de fertilidad, alterar el ritmo procreativo dentro de la comunidad, ejerciendo así una
mayor opresión sobre las mujeres, pues buscaba “manipular” sus vientres con el
objetivo de tener más brazos para el trabajo y para la guerra. Entendemos, entonces,
que el ejercicio oficial de la violencia está invariablemente acompañado del aumento
en la producción de bienes y simbolizaciones religiosas *…+.450
Shigeyuki Nakanose acena pra essa realidade quando diz que a “religião assume
função ideológica de legitimar o poder da instância política quando acontece a quebra
da reciprocidade entre o grupo no poder e os grupos de base”.451
450
Carlos Mario Vasquez Gutierrez, Os 6,6 – “Reconstruyendo el tejido social..., p.159.
451
Shigeyuki Nakanose, A leitura sociológica do sacrifício em 1 Sm 1-1 Rs 12, p.227.
em Os 4,2: imprecações, mentiras, assassinatos, roubos e adultérios. Sangue
derramado seguindo a sangue derramado. Por isso a terra ficou desolada e todos os
seus habitantes desfaleceram (tradução livre).
Desse modo, como afirma Peter Berger, fica claro que temos diante de nós dois
projetos claramente opostos. Enquanto Oséias toma partido em favor do campo em
contraposição à cidade os sacerdotes apoiam exclusivamente a elite citadina. Nesse
sentido, conclui-se que os profetas são defensores de um estilo de vida mais tribal,
cimentado nos valores clânicos. Profetas e sacerdotes são, em síntese, promotores de
diferentes projetos políticos, econômicos, sociais e ideológicos.452
As festas com seus rituais, que no âmbito das sociedades tribais eram
oportunidades de encontro festivo e partilha do excedente arrecadado nas colheitas,
no contexto do Estado, as festas são institucionalizadas e, fator marcante, são
promotoras de opressão e violência. Aconteceu como diz René Girard: “a festa perdeu
todas as suas características rituais e acabam mal, no sentido em que retorna a suas
origens violentas; ao invés de dominar a violência, ela incita a um novo ciclo de
vingança”453.
452
Peter Berger, Carisma e inovação social: a localização social da profecia israelita....., p.88.
453
René Girard, A violência e o sagrado, São Paulo, Paz e Terra, 1990, p.156.
se sabe, a capital Samaria foi destruída em 722 a.C. pelo império Assírio, que tinha
como tática de guerra, passar a tudo e a todos a fio de espada. Os que sobrevivessem,
eram deportados para outras partes do império, assim como outros também eram
deportados para essa região. É certo que muitos camponeses conseguiram escapar
para o sul, em direção a Judá. Mas, a sua sorte não deve ter sido melhor, pois mais
cedo que pensavam em Jerusalém teve início um projeto semelhante ao realizado no
Reino do Norte – Israel.
5.6.3 - Conclusão
454
Luis Maldonado, La violencia de lo sagrado: crueldad “versus” oblatividad o el ritual del sacrifício,
Salamanca, Ediciones Sígueme, 1974, p.21
classe social por outra, situação não muito diferente do que acontecia em outras
realidades geográficas do mundo. A peculiaridade do Judaísmo esteve em que na sua
gênese o grupo sacerdotal atuou apenas como coadjuvante nesse processo. Somente
no período pós-exílico, na transição do domínio persa para o domínio grego, e por
motivos externos alheios à sua vontade, foi que o grupo sacerdotal assumiu o papel de
protagonista, isto é, nas relações sociais estabelecidas na província de Judá, quem teve
a última palavra, seja em questões de ordem política ou religiosa, foi o grupo
sacerdotal.
Não teria sido devido ao fato de que as sociedades tribais já não mais uma
realidade. Devido a uma série de circunstâncias históricas – geopolíticas, sócias,
econômicas e religiosas – as sociedades tribais foram se desintegrando diante do
avanço dos impérios e das cidades. Muitas se embrenhando nas matas, refugiaram-se
como última solução. Amós, Oséias e Miquéias foram frutos destas comunidades, que
no contexto do período pré-exílico, souberam ser testemunhas daqueles valores
universais que Rigoberta Menchú Tum nos lembra. Porém, como no período pós-
exílico já não são mais uma realidade como foram outrora antes da instalação da
monarquia nos século X e IX a.C., a profecia, assim como os profetas – literariamente
falando – foram tragados pelo sistema de crença do templo de Jerusalém.
Vigiar e punir455
Neste sentido o poder estaria disseminado por toda a estrutura social, ou seja,
em subestruturas ou microestruturas, onde todos, de certa forma, estariam sujeitos ao
domínio desse poder instituído sob a forma de uma lei e onde todos,
simultaneamente, também seriam agentes desse poder. Assim, escreve Roberto
Machado, “O que aparece como evidente é a existência de formas de exercício de
poder diferentes do Estado, a ele articuladas de maneiras variadas”457.
Pode ser um paradoxo querer fazer uso de alguns conceitos foucaultianos, tais
como: genealogia, disciplina, vigiar, punir, verdade e poder, pois, conforme opções
“intelectuais” feitas anteriormente deixam claro que há uma contradição, devido ao
sentido e ao efeito que procuram. Mas, segundo o modo como os entendo à luz do
pensamento de Foucault e os aplico ao contexto de meu objeto de pesquisa, penso
poder justificar algumas de minhas proposições.
455
Michel Foucault, Vigiar e Punir, 29ª Edição, Petrópolis, Editora Vozes, 2004, 262p.
456
Roberto Machado, “Introdução: por uma genealogia do poder” em Michel de Foucault, Microfísica do
poder, 15ª Edição, Rio de janeiro, Edições Graal LTDA., 2000, p.XX.
457
Roberto Machado, “Introdução..., p.XI.
É bem esta a situação que pode ser constatada no caso específico do judaísmo.
O que Michel Foucault chama de microfísica do poder significa uma espécie de
deslocamento no espaço de análise das relações de poder quanto também do nível em
que esta se efetua. Isto se evidencia num poder estruturado e estruturante como diria
Pierre Bourdieu458, cuja função foi submeter toda sociedade judaíta a um rigoroso
controle religioso, isto é, a um controle dos gestos, dos corpos, das atitudes, dos
comportamentos, dos hábitos e dos discursos. Nada mais ardiloso do ponto de vista do
domínio e da subjugação do que estar preso a uma rede de poder: a escravidão como
fim! Por isso Michel Foucault pôde falar, a partir desta visão, “numa ‘economia’ do
poder, isto é, procedimentos que permitem fazer circular os efeitos de poder de forma
ao mesmo tempo contínua, ininterrupta, adaptada e ‘individualizada’ em todo o corpo
social”459.
458
Nesse sentido Pierre Bourdieu afirma que “é enquanto instrumentos estruturados e estruturantes de
comunicação e de conhecimento que os sistemas simbólicos cumprem a sua função política de
instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação de uma classe sobre outra (violência
simbólica) dando o reforço de sua própria força às relações de força que as fundamentam e
contribuindo assim, segundo a expressão de Weber, para a domesticação dos dominados” em Pierre
Bourdieu, A economia das trocas simbólicas, São Paulo, Editora Perspectiva S.A., 1982, p.32.
459
Michel Foucault, Microfísica do poder, 15ª Edição, Rio de janeiro, Edições Graal LTDA., 2000, p.8.
460
Idem, p.119.
É em vista da dominação e da manutenção econômica que essa microfísica do
poder ganhou forma. Como acentua Foucault, a exploração econômica pelo viés da
disciplina também pode ser igualmente aplicado à realidade do campesinato judaíta.
Usando a força de trabalho do campesinato, a classe sacerdotal jerusolimitana obtinha
suas vantagens através da exploração econômica desta mesma força de trabalho
mediante o que Foucault chama de coerção disciplinar, isto é, coerção da lei que em
nome da divindade disciplinava a vida nos seus mínimos detalhes, quase que a
tornando impossível de ser vivida, trabalho de sol a sol para garantir a benção e a
prosperidade. Por isso, com ênfase e em nome da divindade, afirma o redator
sacerdotal:
Ele disse à Adão: “Por teres escutado a voz da tua mulher e comido da árvore da
qual eu te havia formalmente prescrito não comer, o solo será maldito por tua
causa. É com fadiga que te alimentarás dele todos os dias da tua vida; ele fará
germinar para ti o espinho e cardo, e tu comerás a erva do campo. No suor do
teu rosto comerás o pão, até voltares ao solo, pois dele foste tirado. Sim, és pó
e ao pó voltarás. (Gn 3,17-19)
[...] O poder disciplinar é com efeito um poder que, em vez de se apropriar e de retirar,
tem como função maior “adestrar”; ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar
ainda mais e melhor. Ele não amarra as forças para reduzi-las; procura liga-las para
multiplica-las e utiliza-las num todo. Em vez de dobrar uniformemente e por massa
tudo o que lhe está submetido, separa, analisa, diferencia, leva seus processos de
decomposição até às singularidades necessárias e suficientes. “Adestra” as multidões
confusas, móveis, inúteis de corpos e forças para uma multiplicidade de elementos
individuais – pequenas células separadas, autonomias orgânicas, identidades e
continuidades genéticas, seguimentos combinatórios.461
[...] O poder na vigilância hierarquizada das disciplinas não se detém como uma coisa,
não se transfere como uma propriedade; funciona como uma máquina. E se é verdade
que sua organização piramidal lhe dá um “chefe”, é o aparelho inteiro que produz
“poder” e distribui os indivíduos nesse campo permanente e contínuo. O que permite
ao poder disciplinar ser absolutamente indiscreto, pois está em toda parte e sempre
alerta, pois em princípio não deixa nenhuma parte as escuras e controla
continuamente os mesmos que estão encarregados de controlar; e absolutamente
“discreto”, pois funciona permanentemente e em grande parte em silêncio.463
461
Michel Foucault, Vigiar e Punir..., p.143.
462
Idem, ibdem.
463
Michel Foucault, Vigiar e punir..., p.148.
imiscuir das obrigações legais, sob pena de carregar, uma tremenda culpa moral pelos
desvios e erros cometidos.
*...+ A disciplina faz “funcionar” um poder relacional que se auto-sustenta por seus
próprios mecanismos e substitui o brilho das manifestações pelo jogo ininterrupto dos
olhares calculados. Graças às técnicas de vigilância, à “física” do poder, o domínio
sobre o corpo se efetuam segundo as leis da ótica e de mecânica, segundo um jogo de
espaços, de linhas, de telas, de feixes, de graus e sem recurso, pelo menos em
princípio, ao excesso, à força, à violência. Poder que é em aparência ainda menos
“corporal” por ser mais sabiamente “físico”.464
Para Michel Foucault os métodos punitivos tem sofrido uma variação ao longo
da história. Foucault argumenta em favor do desenvolvimento de uma tecnologia
política do corpo a partir da qual se poderia ler uma história comum das relações de
poder, bem como também das relações de objeto. Estando o corpo diretamente
mergulhado num campo de forças que interagem socialmente e de forma constante,
isto é, num campo político, cujas relações de poder tem alcance imediato sobre ele.
Para Foucault, esses métodos punitivos ou essas tecnologias política do corpo:
464
Idem, ibdem.
[...] o investem, o marcam, o dirigem, o supliciam, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no
a cerimônias, exigem-lhe sinais. Este investimento político do corpo está ligado,
segundo ligações complexas e recíprocas, à sua utilização econômica; é, numa boa
proporção, como força de produção que o corpo é investido por relações de poder e
de dominação; mas em compensação sua constituição como força de trabalho só é
possível se ele está preso num sistema de sujeição [...].465
465
Idem, p.25-26.
466
Idem, p.25.
escravizadas a sistema, cujo fim é manter unicamente a estrutura econômica do
templo, ou seja, da classe sacerdotal que vive à custa dessa escravidão servil
Foucault parte da afirmação de que não existe “verdade” fora do poder ou sem
poder. Ela não pertence a um mundo, que poderia ser classificado como sendo
sobrenatural ou do além, mas:
[...] A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele
produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade,
sua “política geral” de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz
funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os
enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as
técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o
estatuto daqueles que tem o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro.467
(grifo pessoal)
Não se trata de libertar a verdade de todo sistema de poder – o que seria quimérico na
medida em que a própria verdade é poder – mas de desvincular o poder da verdade
das formas de hegemonia (sociais, econômicas, culturais) no interior das quais ela
funciona no momento.469
467
Michel Foucault, Microfísica do poder..., p.12.
468
Idem, p.14.
469
Idem, ibdem.
desse tom de verdade acabada que tantos enganos têm causado ao longo desses mais
de dois milênios.
Esse poder oriundo dessa “verdade religiosa”, hoje, assim como ontem,
continua servindo aos interesses da classe dominante, no sentido de que encobre as
reais motivações da classe dominante, mascara seus interesses espúrios e submete a
classe subalterna, isto é, a classe dominada a uma submissão passiva e ordenada.
Se tiene sentido hablar de algo así como de un “final” o de una “salida” de la religión
no es tanto desde el punto de vista de la conciencia de los actores como desde el
punto de vista de la articulación de su práctica. El criterio no es lo que piensan y creen
a título personal los miembros de una sociedad dada. Lo que cuenta y decide en la
materia es el orden de sus operaciones de pensamiento, el modo de su coexistencia, la
forma de su inserción en el ser y la dinámica de su actividad.470
470
Marcel Geuchet, El desencantamiento del mundo…, p.145.
indissoluvelmente não somente a vida espiritual daquelas gentes, mas também sua
vida material e social.
Nesse sentido Gauchet afirma que o ponto decisivo para que compreendamos
esta mudança, ou seja, esta passagem de uma realidade onde a religião podia ser
qualificada como “pura” para uma nova situação, onde eu qualifico, por uma questão
de lógica, como “impura”, está no caso exemplar da trajetória feita pela revelação
judeo-cristã.473
A tese que Gauchet propõe está no fato de que com o judaísmo teve início um
processo que culminou na implantação completa de uma articulação entre o divino e o
humano, que corresponde à inversão, ponto por ponto, à estrutura primordial da
dívida com o invisível. Para o autor existe algo de muito artificial nesse processo de
mudança que implicou numa separação entre a ordem da estrutura com a ordem do
acontecimento. Conforme ele mesmo explica:
Nos hemos esforzado por mostrar que no hay nada semejante en realidad, sino una
reorganización de la economía de lo otro anteriormente reinante; reorganización de
las virtualidades por doquier latentes en la matriz política de las “altas civilizaciones”,
que explota de manera más sistemática y más profunda *…+ Pero al mismo tiempo,
471
Idem, ibdem.
472
Idem, p.146.
473
Marcel Gauchet, El desencantamiento del mundo…, p.149
cuando se miran las condiciones concretas en las que se efectuó esta cristalización en
un pequeño pueblo al margen, en forma de respuesta a su situación de opresión, nos
encontramos ante el enigma de una improbabilidad radical.474
474
Idem, p.150.
475
Joseph Blenkinsopp, Judaism – The first phase: the place of Ezra and Nehemiah in the origins of
Judaism, United Kingdom, Wm. B. Eerdemans Publishing Co., 2009, p.4.
476
Idem, p.154.
este mundo y, por otra, de la suma de lo visible bajo un único báculo, cuyo último
principio conspiran, una y otra, desplazar al orden de lo separado.477
*…+ Limitémonos a destacar en esta línea que el triunfo de la religión universal del dios
personal adviene al término (y en la zona) de una serie de sacudidas imperiales de
extensión jamás vista: la expansión romana es seguramente el contexto inmediato,
matricial, pero también son un transfundo próximo las conquistas de Alejandro e
incluso, justo antes, la unificación persa del Oriente Próximo y Medio. La
transformación religiosa más profunda, la que representa la ruptura cristiana, está al
término de una prodigiosa ampliación del horizonte de los pueblos; sin duda se cumple
u se impone allí donde el manejo de lo heterogéneo y el descentramiento consecutivo
de las perspectivas humanas fueron más lejos, en el epicentro del más amplio
seísmo.478
477
Idem, p.151.
478
Marcel Gauchet, El desencantamiento del mundo…, p.152.
Emergência do ESTADO
Religião Impura
Religião Pura
- institucionalizada -
(Unidade do Ser)
(Dualidade do ser)
Evento Central
Características gráficas:
Nesse sentido, Paulo Barrera Rivera, explicitando a tese de Gauchet afirma que:
479
Marcel Gauchet, A democracia contra ela mesma..., p.66.
religioso faz parte integrante do funcionamento da sociedade. A saída da religião é a
passagem para um mundo onde as religiões continuam existindo, mas no interior de
uma forma política e de uma ordem coletiva que não é determinada por elas.480
[...] não está para uma forma essencialmente religiosa da vida, mas constitui-se numa
faceta de uma entidade político-étnica, uma forma de caracterizar um estado
agressivo e expansivo alegando legitimidade religiosa através da usurpação do cargo
de sumo sacerdote e controle do templo mantendo e ampliando seu poder por meios
militares, incluindo uso de mercenários estrangeiros.483
480
Paulo Barrera Rivera, Desencantamento do mundo e declínio dos compromissos religiosos. A
transformação religiosa antes da pós-modernidade. Texto acessado em http://seer.ufrgs.br/
CienciasSociaiseReligiao/article/view/2247 em 18/07/2012, p.102.
481
Paulo Barrera Rivera, Desencantamento do mundo…, p.99.
482
Joseph Blenkinsopp, Judaism – The first phase: the place of Ezra and Nehemiah in the origins of
Judaism, United Kingdom, Wm. B. Eerdemans Publishing Co., 2009, p.2.
483
Idem, p.188.
Deste modo, utilizando-se da forte precedência que o elemento religioso tinha no
imaginário, isto é, na consciência do homem primitivo, uma determinada classe de homens –
classe sacerdotal – usa desta prerrogativa para se estruturar e se sobrepor como classe
superior no cenário social da província de Judá.
Por consiguiente, podemos imaginar que cuando las condiciones han permitido a
ciertos hombres, a determinados grupos, personificar en ellos mismos el bien común o
tener acceso exclusivo a las potencias sobrenaturales que, según ellos, tenían el
control de las condiciones de reproducción del universo y de la sociedad, esos
hombres y esos grupos han parecido elevarse por encima de los hombres corrientes,
aproximándose a los dioses, avanzando mucho más que cualquier otro hombre en el
espacio que separa, desde el origen de los tiempos, a los hombres de los dioses *…+
Alejarse de los hombres y dominarlos, aproximarse a los dioses y hacerse obedecer por
ellos son probablemente dos aspectos simultáneos de un mismo proceso, aquél
mediante el cual comienza el camino que conduce a las sociedades de clases y al
Estado *…+ Pero esta vez, lo que había comenzado por una dominación sin violencia se
ha convertido en opresión ideológica y explotación económica, sostenida e prolongada
mediante a violencia armada. Por consiguiente, no hay quizás por qué buscar si es la
política la que adopta una forma religiosa o inversamente, cuando se trata, en este
caso, de dos formas del mismo proceso, dos elementos de un mismo contenido que
existe simultáneamente en diversos niveles.484
É deste modo que se instaura novamente, na província de Judá, uma profunda divisão
de classe. De um lado a classe sacerdotal e do outro o campesinato, que subjugado
ideologicamente, serve aos interesses tanto do clero religioso de Jerusalém, quanto aos
interesses do império persa. Aos poucos, aquilo que conhecemos por Judaísmo, vai se
configurando como um novo modo de ser, a verdadeira identidade do povo israelita que tinha
na lei – na Torá – o fundamento de sua vida, tanto religioso quanto político.
484
Maurice Godelier, Economia, Fetichismo…, p.14-15.
CONCLUSÃO
Vivendo num mundo ainda marcado pela conivência entre o poder político e o
poder religioso, aliança esta que ultimamente se alinha a uma concepção que na
prática descaracteriza o ser humano, transformando-o em mero instrumento no jogo
das forças sociais, políticas e principalmente, econômicas. Na ânsia por sobrevivência,
este mesmo ser humano se permite ser humilhado, em pleno século XXI, com todo
avanço científico e tecnológico alcançado, ainda é aviltado por trabalho escravo.
Muitos desses já perderam até a noção da própria dignidade. Para eles, a vida
não existe e a morte continua sendo solução. Para os outros, “felizes e de bem com a
vida” a insensibilidade petrificou lhes o coração, tornou seus olhares frios, distantes e
desumanos. Tornaram-se incapazes de se compadecer da dor e sofrimento alheios.
Mais ainda. Como citado na epígrafe acima, transformaram o ser humano em algo
humilhado e escravizado, por isso, desprezado e abandonado como algo inerme, sem
possibilidade de ser redimido.
Nesse sentido, de posse dos conceitos optei por fazer um estudo de um caso
particular. Para isso, escolhi o judaísmo, pois acredito ser um caso exemplar que
fornece, não somente elementos suficientes para corroborar esta tese, mas possibilita
também, dando sequência à análise, fornecer subsídios para um questionamento dos
seus subsequentes desenvolvimentos na história.
Como pano de fundo desta tese priorizei, à luz do espírito da nova história,
regatar a memória de um grupo social profundamente marginalizado tanto na
escritura judaica como praticamente, na história de todos os povos: o tribalismo ou as
assim chamadas sociedades primitivas. Foi, portanto, a partir deles, do sofrimento que
lhe foi imposto, das injustiças e da usurpação a que foram submetidos, da ideologia a
que foram condicionados a se submeter, que me propus, particularmente pela sua
ótica, a reconstruir parte da história desse grupo social, que no contexto do judaísmo
485
Texto de abertura da Constituição Federal de 1988 acessado em 8 de Agosto de 2012:
http://www.senado.gov.br/legislacao/const/con1988/CON1988_05.10.1988/CON1988.pdf
ainda incipiente, foi execrado e marginalizado como gente impura, indigna de fazer
parte do assim chamado novo “povo de deus”, cognominado também pela alcunha de
o “pequeno resto de Israel”.
[...] a concentração dos poderes em poucas mãos condena os pobres a serem mais
pobres e torna mais evidente a urgência de retomar os sagrados valores que deram
origem à nossa humanidade; isto é em essência, o que reivindicamos os povos
indígenas e os povos originários do mundo [...] O respeito aos valores e direitos
individuais e coletivos, ou seja, a vitalidade e a validade do equilíbrio como requisitos
indispensáveis de um mundo justo e pacífico.486 (grifo pessoal)
Em verdade, o problema não está na concentração de poder numa única mão ou numa
única instituição, mas sim, na forma de gestão desse poder. O importante que merece
ser destacado nas palavras de Rigoberta, como penso que procurei fazer, está no fato
de identificar qual ou quais foram esses “sagrados valores que deram origem à nossa
humanidade”. Segundo Rigoberta, esses valores estão associados com um grupo social
específico: com os “povos indígenas e os povos originários do mundo”. Conforme
testemunho de alguns trabalhos de caráter etnológico analisados, foi possível
identificar a igualdade e a solidariedade como sendo esses “sagrados valores” aos
quais se refere Rigoberta, que ainda hoje como ontem, moldam e mantém o tecido
social dessas sociedades tribais. De posse desse dado fundamental das sociedades
486
Giulio Girard, Os excluídos construirão a história? – O movimento indígena, negro e popular: “Durante
cinco séculos outros falaram por nós, hoje queremos começar a falar com voz própria”, São Paulo,
Editora Ática, 1996, p.13.
primitivas me perguntei: por que será que o judaísmo que de tal modo se vangloria de
ser fruto dessas sociedades tribais, não assumiu como próprio também esses valores,
mas pelo contrário, se apresentou como uma sociedade profundamente dividida, ou
seja, estruturada piramidalmente.
Outro elemento advindo das sociedades tribais e que pra eles tem um caráter
igualmente fundamental, consiste no fato de seus chefes não possuírem poder. São
chefes, mas chefes se poder. Essa é uma das grandes lições políticas que as sociedades
tribais nos ensinam. Os chefes tinham como missão zelar para que o sentido de
unidade entre os membros da tribo superasse qualquer desejo pessoal de
superioridade. Por isso, o chefe era de certo modo guardião das tradições e por
incumbência o artífice da igualdade entre todos os membros da sociedade.
Aos poucos a classe sacerdotal sadocita depois de ter assumido o controle do templo e
o poder religioso em toda a região da província de Judá, também assumiu o poder
político em toda a província. Foi, na verdade, um projeto tecido com os fios da
ideologia. Com inúmeros retalhos cooptados à tradição oriunda do tribalismo, escribas
ligados à classe sacerdotal criaram uma série de narrativas visando única e
exclusivamente justificar e dar legitimidade ao status adquirido pela classe sacerdotal,
bem como também, definir a posição social de todos os demais grupos na estrutura da
sociedade judaica.
Nesse sentido, se pode concluir que as relações que se estabeleceram entre a classe
sacerdotal jerusolimitana e o campesinato judaíta, foram relações de poder baseadas
em dominação, subjugação e exploração, e isso, não somente no âmbito do campo
religioso, mas também no campo social e, principalmente, no campo econômico.
Nada mais ridículo, antissocial e antidemocrático do que ser porta voz desses
pensamentos. Nada mais desumano do que utilizar esses versículos para não somente
aliviar a consciência desobrigando-se do dever de ajudar o próximo, mas acima de
tudo, profundamente falso e imoral, quando se utiliza tais pensamentos para confortar
aqueles que estão nessas condições. Se de fato, Deus existe, ele deve rir, ou melhor,
ficar profundamente consternado com essa nossa atitude de inversão da realidade.
487
Giulio Girard, Os excluídos construirão a história..., p.25
honesta avaliação entre a ética que anima o poder que possuem, pois como afirma
Luís Lorenzetti:
[...] Entre ética e poder a relação será sempre difícil, porém necessária: como o poder
se refere sempre ao outro, corre o risco de ser perversão e puro domínio quando não
se exerce e não se cultiva alto sentido da dignidade humana, da liberdade e dos
direitos humanos.
Nesse sentido, ser movido por uma ética profundamente antropológica, isto é,
centrada nos direitos inalienáveis da condição humana, leva a considerar todo ser
humano como igualmente digno de viver e ter acesso a uma qualidade de vida
condicente com sua natureza.
Já um poder que manipule que distorça esse sentido mais profundo da vida de todo
ser humano, deve ser enfrentado, pois não existe razão mais sublime do que lutarmos
para que “todos tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 16,.......). Como orienta
Lorenzetti:
Mas as circunstâncias não são nada favoráveis para que esse tipo de discurso seja
aceito facilmente. Segundo Luís Lorenzetti:
“Temos que reconhecer que se tem ensinado mais a respeitar a lei do que a
questionar a nossa consciência, e que o culto da norma, da ordem, do poder
488
Luís Lorenzetti, “Poder”...., p.971.
489
Idem, p.972.
constituído, da ideologia dominante nos levou a ignorar de fato o caráter absoluto da
consciência” (Th. Rei Mermet).
Por isso, como diria Juvenal Arduini, é preciso ousar, pois ousar é pulsação criadora, é
tentar realizar o que ainda não foi feito. Ousar não é arrogância, mas compromisso,
estilo de vida. Ousar é suscitar o acontecer, é fazer acontecer. É mergulhar no tumulto
das possibilidades e edificar nova fase histórica e nova estrutura social.491
Trata-se de uma tomada de partido não só moral e política, mas também, intelectual e
cultural. Neste nível, tomar partido pela resistência significa afirmar que seu ponto de
vista é mais idôneo para aproximar-se da verdade sobre o sentido da vida e da história;
que na atual crise da civilização, os excluídos emergentes como sujeitos são os mais
idôneos para analisar objetivamente a situação do mundo, para identificar os
problemas de vida e de morte, para perceber os caminhos rumo a alternativas de
vida.492
Assumir o ponto de vista dos oprimidos resistentes sobre a história e a civilização atual
significa em primeiro lugar, assumir a sua causa, por ser moral e politicamente justa. A
opção pela resistência é uma expressão particular e particularmente importante da
opção pelos excluídos como sujeitos. Nossa hipótese é de que uma atitude moral e
politicamente justa favorece uma busca intelectual honrada da verdade.493
Por isso, continuar a compactuar com o sistema de crença que condiciona a maioria de
nossa gente a uma atitude de aceitação e passividade diante de tanta opressão é negar
490
Luís Lorenzetti, Poder..., p.973
491
Juvenal Arduini, Antropologia: ousar para reinventar a humanidade, 2ª Edição, São Paulo, Editora
Paulus, 2002, p.38-41.
492
Luís Lorenzetti, Poder..., p.973
493
Giulio Girard, Os excluídos construirão..., p.27.
que somos de uma mesma raça, que temos consciência e não somos zumbis
teleguiados. Por isso:
Ficar do lado da resistência significa assumir suas opções éticas, políticas e culturais,
somando-nos assim à própria resistência. Significa, portanto comprometermo-nos com
ela na revelação do passado, na reinterpretação da história, no resgate das culturas,
religiões, identidades reprimidas.494
Que cada um de nós possa se abrir ao novo que já está surgindo, que não menospreze
os sinais dos tempos, pois é um processo irreversível.
494
Idem, p.28.
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