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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO

FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO


Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião

Vicente Luiz Simões Ferreira

RELIGIÃO E POLÍTICA
Análise histórico-crítica das relações de poder entre
o campesinato judaíta e a classe sacerdotal
jerusolimitana no período pós-exílico

SÃO BERNARDO DO CAMPO/SP

Setembro de 2012
VICENTE LUIZ SIMÕES FERREIRA

RELIGIÃO E POLÍTICA
Análise histórico-crítica das relações de poder entre
o campesinato judaíta e a classe sacerdotal
jerusolimitana no período pós-exílico

Tese apresentada em cumprimento às


exigências do curso de Pós-Graduação em
Ciências da Religião para obtenção do
grau de doutor.
Área de concentração: Literatura e religião
no mundo bíblico
Orientação: Prof. Dr. Tércio M. Siqueira

São Bernardo do Campo – SP

Setembro de 2012
A tese de doutorado sob o título “RELIGIÃO E POLÍTICA – análise

histórico-crítica das relações de poder entre o campesinato judaíta e a

classe sacerdotal jerusolimitana no período pós-exílico”, elaborada por

Vicente Luíz Simões Ferreira foi defendida e aprovada em 28 de Setembro

de 2012, perante banca examinadora composta por Prof. Dr. Tércio

Machado Siqueira (Presidente/UMESP), Prof. Dr. José Ademar Kaefer

(Titular/UMESP), Prof. Dr. Paulo Barrera Rivera (Titular/ UMESP), Prof. Dr.

Antônio Carlos Frizzo (Titular/ITEFIST), Renatus Porath (Titular).

___________________________________________
Prof. Dr. Tércio Machado Siqueira

Orientador e Presidente da Banca Examinadora

______________________________________________________

Prof. Dr. Leonildo Silveira Campos

Coordenador do Programa de Pós-Graduação

Programa: Pós-Graduação em Ciências da Religião

Área de Concentração: Literatura e Religião no Mundo Bíblico

Linha de Pesquisa: Estudo Histórico-Literário do Mundo Bíblico


Agradecimento

Em primeiro lugar, quero agradecer, de saudosa memória, ao amigo e


professor, Dr. Milton Schwantes, pois se hoje sou o que sou, academicamente falando,
devo praticamente, tudo a ele. As aulas no curso de graduação em teologia. O convite
para ingressar na pós-gradução e a orientação no mestrado. Enfim, chegado ao termo
no doutorado, fomos colhidos pelo infortúnio de sua partida, mas as lembranças, que
não foram poucos, deixaram marcas indeléveis, que nada nem ninguém poderão
apagar.

Agradeço também aos professores do corpo docente do Programa de Pós-


Graduação em Ciências da Religião pelo carinho e atenção ao longo da caminhada. Ao
professor Dr. Tércio Machado Siqueira que pacientemente soube me orientar e
quando preciso, foi sempre firme. Agradeço também ao IEPG e CAPES pelo apoio
financeiro.

Enfim, agradeço aos colegas, meus amigos e companheiros na academia, pois


me proporcionaram sempre momentos muito felizes em suas companhias.
Dedicatória

Dedico esta tese a todos os povos que ainda, em pleno século XXI continuam
sendo explorados, manipulados e escravizados pelas classes dominantes.

Que esta tese, juntamente com outras tantas teses, sirvam de motivação para
um profícuo trabalho de libertação e emancipação dessas gentes que também tem o
direito de viverem no aqui e agora da história uma vida nova, com acesso aos bens
fundamentais para que possam gozar desde já de uma plena alegria e felicidade.
SUMÁRIO
Introdução 12

I Parte

Capítulo 1 – Religião e Política 32

1.1 – A Religião 34
1.1.1 – Fase da Religião Pura 41
1.1.2 – Fase da ascensão do Estado 47
1.2 – A Política (O Estado) 72
Capítulo 2 – Sociedades primitivas/selvagens/tribais 76

2.1 – As diferentes funções dentro das sociedades primitivas 84


2.2 – A questão do Poder nas sociedades primitivas 87
2.3 – Religião e poder nas sociedades primitivas 92
Capítulo 3 – Relações de Poder 101

3.1 – Conclusão 106

II Parte

Capítulo 4 – Contextualizando o judaísmo 108

4.1 – Contexto histórico do objeto de pesquisa 113


4.2 – Os persas e sua política imperial de controle social 114
4.2.1 – Ruralização 116
4.2.2 – Militarização e incremento comercial 117
4.3 – Reconstruindo partes da história 117
4.4 – O tribalismo israelita 124
4.4.1 – Revisitando o período pré-monárquico 126
4.4.1.1 – Retirada pacífica 127
4.4.1.2 – Nomadismo interno 127
4.4.1.3 – Transição ou transformação pacífica 128
4.4.1.4 – Amálgama pacífico 129
4.4.2 – Os anciãos (chefes) tribais pediram um rei 130
4.4.3 – A situação do tribalismo no período assírio 131
4.4.4 – Exilio: para o campesinato possibilitou a
“retribalização” da província de Judá 143
4.4.4.1 – O exílio e a reforma agrária 144
4.5 – O campesinato judaíta 147
4.5.1 – O campesinato 147
4.5.2 – O campesinato judaíta 150
4.5.3 – Resgatando alguns importantes fatos históricos 150
4.5.4 – Retorno dos exilados: a “terra” no centro da crise 161
4.6 – O sacerdócio jerusolimitano 166

4.7 – O regime teocrático 176


III Parte

Capítulo 5 – Judaísmo: consumação do projeto teocrático 181

5.1 – Judaísmo: um projeto imperial persa? 183


5.2 – A ideologia como estratégia do grupo sacerdotal sadocita 190
5.2.1 – Ezequiel 40-48 “Nunca descuidaremos da casa de nosso
Deus” – aspectos da economia do segundo templo 196
5.2.1.1 – Ez 40-48: um projeto para a província de Judá 197
a) Sumo sacerdote e príncipe: direitos iguais 199
b) A lei do templo (torat habauyt) 199
5.2.2 – O Pentateuco e a Narrativa Sacerdotal (P) 210
5.2.2.1 – O Pentateuco no campo das forças políticas e
Sociais da província de Judá 212
5.2.2.2 – A Narrativa Sacerdotal (P) 215
a) Material sacerdotal 217
b) O ideológico culto sacrificial como elemento
central do Documento Sacerdotal 221
c) Sadocitas versus levitas 224
5.2.3 – Esdras e Neemias 225
5.2.3.1 – Estrutura e teologia 227
5.2.3.2 – A problemática da terra 230
5.2.3.3 – Implicações da ideologia de Ez 40 – 48 233
5.2.3.4 – Esdras a partir de Esd 7 – 10 234
5.2.3.5 – Neemias 236
a) Neemias 5 236
b) Neemias 10 241
5.2.4 – 1º e 2º Crônicas 243
5.3 – O sistema sacrifical sacerdotal como eficiente
Sistema tributário 244
5.4 – Uma releitura da ideologia sacerdotal à luz de Michel de Certeau 250
5.5 – O judaísmo à luz da teoria da etnicidade 253
5.6 – Tribalismo e profetismo 258
5.6.1 – Amós 258
5.6.2 – Oséias 262
5.6.3 – Conclusão 266
5.7 – As relações de poder no judaísmo à luz de Michel Foucault 268
5.7.1 – Vigilância em rede 268
5.7.2 – Punindo não tanto o corpo, mas principalmente a alma 272
5.7.3 – Da “verdade do poder” ao “poder da verdade” 274
5.8 – Judaísmo: religião da “saída da religião” 275

Conclusão 282

Bibliografia 292
FERREIRA, Vicente Luiz Simões, Religião e Política – Análise histórico-crítica das
relações de poder entre o campesinato judaíta e classe sacerdotal jerusolimitana no
período pós-exílico, São Bernardo do Campo, Universidade Metodista de São Paulo,
Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião, Tese de Doutorado, 2012.

Resumo

Partindo do pressuposto de que o laicismo preconiza uma separação radical


entre Estado e Igreja, procuro demonstrar nesta tese, a partir de um recorte na
história do Judaísmo que estas duas dimensões estiveram profundamente presentes
em seu período inicial de formação. Esta tese se constitui como uma espécie de
desconstrução da história tradicionalmente aceita pelos diferentes credos que utilizam
o Antigo Testamento como fundamento de seu corpo doutrinal.

Estabeleci as relações de poder, que se efetivaram entre os dois grupos sociais


mais importantes dentro do contexto destacado, como meu objeto de pesquisa
privilegiado. Por um lado tem-se o poder religioso, que sustentado por um projeto de
caráter eminentemente político, subverteu a seu favor toda uma ordem natural na
qual estavam alicerçadas, por outro lado, diferentes sociedades tribais.

Nesse sentido o judaísmo se configurou como um sistema de crença que


justificou e legitimou a classe sacerdotal jerusolimitana como classe dominante em
toda a província de Judá. Manipulando os dados da tradição tribal a seu favor, a classe
sacerdotal, não somente passou a dominar religiosamente as pessoas que habitavam a
região da província de Judá, mas transformou os membros destas sociedades tribais
em camponeses escravizados a um sistema de crença extremamente opressor.

Segundo a tese de Marcel Gauchet, o judaísmo como ponto de partida da


revelação judaico-cristã, se mostra, conforme o conceito weberiano de
“desencantamento do mundo”, como início de um processo, onde a religião
institucionalizada se tornou “saída da religião”. Processo esse, que teve seu clímax no
período da modernidade e que nesse início de século XXI se vê num momento de
transição quando passa a um novo período, isto é, à pós-modernidade: nesse sentido
já se pode entrever seu ocaso.

Palavras chave: relações de poder – tribalismo – campesinato – sacerdócio – ideologia


FERREIRA, Vicente Luiz Simões, Religião e Política – Análise histórico-crítica das
relações de poder entre o campesinato judaíta e classe sacerdotal jerusolimitana no
período pós-exílico, São Bernardo do Campo, Universidade Metodista de São Paulo,
Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião, PhD Thesis, 2012.

Summary

Assuming that secularism advocates a radical separation between Church and


State, I try to demonstrate this thesis, a clipping from the history of Judaism that these
two dimensions were deeply present in their initial training period. This thesis is
constituted as a kind of deconstruction of the traditional story accepted by different
faiths who use the Old Testament as doctrinal foundation of your body.

Focusing on the study of Judaism as a particular example, established power


relations, which we accomplished between the two most important social groups in
this context as my privileged object of research. On the one hand there is the religious
power, sustained by an eminently political character design, overturned in their favor
across a natural order in which they were grounded on the other hand, different tribal
societies.

In this sense Judaism is configured as a belief system that justifies and


legitimizes the priestly class jerusolimitana as the ruling class throughout the province
of Judah Manipulating data tribal tradition in its favor, the priestly class, came to
dominate not only religiously people who inhabited the region of the province of
Judah, but become members of these tribal societies enslaved peasants in a belief
system extremely oppressive.

According to the thesis of Marcel Gauchet, Judaism as a starting point of the


Judeo-Christian revelation, it turns out, according to Weber's concept of
“disenchantment of the world”, as the beginning of a process, where organized
religion has become "out of religion”. This process, which had its climax in the
modernity and the beginning of this century we see a moment of transition when he
begins a new period of post-modernity, one can already discern its setting.

Keywords: power relations - tribalism - peasantry - the priesthood - ideology


FERREIRA, Vicente Luiz Simões, Religião e Política – Análise histórico-crítica das
relações de poder entre o campesinato judaíta e classe sacerdotal jerusolimitana no
período pós-exílico, São Bernardo do Campo, Universidade Metodista de São Paulo,
Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião, Tesis de Doctorado, 2012.

Resumen

Suponiendo que el laicismo aboga por una separación radical entre la Iglesia y el
Estado, trato de demostrar esta tesis, un recorte de la historia del judaísmo que estas dos
dimensiones eran profundamente presente en su período de formación inicial. Esta tesis
se constituye como una especie de deconstrucción de la historia tradicional aceptado por
diferentes religiones que usan el Antiguo Testamento como fundamento doctrinal de su
cuerpo.

Centrándose en el estudio del judaísmo como un ejemplo particular, las relaciones


de poder establecidas, lo que hemos logrado entre los dos grupos sociales más
importantes en este contexto como mi objeto privilegiado de investigación. Por un lado
está el poder religioso, sostenido por un diseño de carácter eminentemente político, se
volcó a su favor a través de un orden natural en el que se fundamenta por otro lado,
diferentes sociedades tribales.

En este sentido, el judaísmo se configura como un sistema de creencias que


justifica y legitima la jerusolimitana clase sacerdotal como clase dominante en toda la
provincia de Judá, Manipulación de los datos de la tradición tribal en su favor, la clase
sacerdotal, llegó a dominar no sólo la religión las personas que habitaban la región de la
provincia de Judá, pero convirtieron en miembros de estas sociedades tribales
esclavizados campesinos en un sistema de creencias muy opresivo.

De acuerdo con la tesis de Marcel Gauchet, el judaísmo como punto de partida de


la revelación judeo-cristiana, resulta que, de acuerdo con el concepto de Weber de
"desencantamiento del mundo", como el inicio de un proceso, donde la religión
organizada se ha convertido en “fuera de la religión”. Este proceso, que tuvo su clímax en
la modernidad y el inicio de este siglo vemos un momento de transición, cuando comienza
un nuevo período de la post-modernidad, ya se puede discernir su final.

Palabras clave: relaciones de poder – el tribalismo – campesinos – el sacerdocio – la


ideología
INTRODUÇÃO

Há setores que procuram interferir no projeto existencial e social das pessoas. Tentam
substituir o projeto pessoal pelo projeto do sistema vigorante. Temem que o ser humano adote posição
autônoma, e contrarie os interesses do sistema dominante. Sabem que o ser humano por frágil que seja
é “perigoso” *…+ Para sufocar o projeto original autônomo adotam pedagogias massificantes. Procura-se
adaptar as pessoas às normas existentes e levá-las a reproduzir-se como cópias da situação
predominante. Enquadra-se o rebanho humano no código uniformista. Impõe-se à população o
paradigma oficial. E quem diverge do consenso é condenado como herege. Assim o mundo continua a
ser mesmo, dominado pelos mesmos, usado pelos mesmos, usurpado pelos mesmos.

É hora de provocar a emersão do ser humano autônomo. É hora de suscitar a consciência


crítica que não se deixa enganar. É hora de fermentar a reflexão emancipatória que se mantém
insubmissa. É hora de amadurecer um projeto original que levante gerações de seres humanos
independentes e responsáveis. É hora de encorajar o ser humano a concretizar seu projeto de vida
comprometido com a justiça, com a solidariedade, com a igualdade social e com a dignidade humana.

Há soluções políticas, econômicas, científicas e tecnológicas. Mas a solução fontal é o ser


humano. Para isso, é preciso que o ser humano queira ser solução. Queira ser gente.

1
Juvenal Arduini

1
Juvenal Arduini, Antropologia: ousar para reinventar a humanidade, 2ª Edição, São Paulo, Paulus,
2002, p.22-23.
O tema desta tese nasceu em resposta a alguns questionamentos que estava
fazendo quando do término do mestrado, pois em verdade, o que move o mundo e a
história, não são tanto as respostas, mas sim as perguntas. Perguntar ou questionar,
como se afirma, é próprio de cada um de nós seres humanos. Faz parte de nossa
essência, de nossa racionalidade ser questionadores, mas não pelo simples fato de
questionar, mas como alguém que está em busca de respostas aos nossos problemas
mais candentes, sejam eles de que ordem for.

Por um lado, alcançamos um status científico e tecnológico maravilhoso


quando comparado com outros períodos. As previsões são as mais otimistas possíveis
em relação à cura de algumas doenças como a aids, o mal de Parkinson e o mal de
Alzheimer.

Hoje os físicos, matemáticos e astrônomos falam em “teoria das cordas”2,


“Bóson de Higgs”3, “mundos paralelos” que segundo a trilogia baseada em três livros e
que agora chega a tela dos cinemas, tem atraído a atenção de muita gente, além de
outras tantas fantásticas curiosidades.

2
“Teoria das cordas”: O interesse na teoria das cordas é dirigido pela grande esperança de que ela possa
vir a ser uma teoria de tudo. Ela é uma possível solução do problema da gravitação quântica e,
adicionalmente à gravitação, talvez possa naturalmente descrever as interações similares ao
eletromagnetismo e outras forças da natureza. Trabalhos na teoria das cordas têm levado a avanços na
matemática, principalmente em geometria algébrica. A teoria das cordas tem também levado a novas
descobertas na teoria da supersimetria que poderão ser testadas experimentalmente pelo Grande
Colisor de Hádrons. Os novos princípios matemáticos utilizados nesta teoria permitem aos físicos
afirmar que o nosso universo possui 11 dimensões: 3 espaciais (altura, largura e comprimento), 1
temporal (tempo) e 7 dimensões recurvadas (sendo a estas atribuídas outras propriedades como massa
e carga elétrica, por exemplo), o que explicaria as características das forças fundamentais da natureza.
Texto acessado em 11/08/2012: http://pt.wikipedia.org/wiki/Teoria_das_cordas
3
“Bóson de Higgs” ou “Partícula de Deus” como é conhecida também, é uma partícula elementar
bosônica prevista pelo Modelo Padrão de partículas, teoricamente surgida logo após ao Big Bang de
[2]
escala maciça hipotética predita para validar o modelo padrão atual de partícula . Representa a chave
para explicar a origem da massa das outras partículas elementares. Todas as partículas conhecidas e
previstas são divididas em duas classes: férmions (partículas com spin da metade de um número ímpar)
e bósons (partículas com spin inteiro). O bóson de Higgs foi predito primeiramente em 1964 pelo físico
britânico Peter Higgs, trabalhando as ideias de Philip Anderson. Entretanto, desde então não houve
condições tecnológicas de buscar a possível existência do bóson até o funcionamento do Grande Colisor
de Hádrons (LHC) meados de 2008. A faixa energética de procura do bóson vem se estreitando desde
então e, em dezembro de 2011, limites energéticos se encontram entre as faixas de 116-130 GeV,
segundo a equipe ATLAS, e entre 115 e 127 GeV de acordo com o CMS. Fora da comunidade científica, é
mais conhecida como a partícula de Deus (tradução livre do original God particle, alcunha dada pelo
físico Leon Lederman devido ao fato desta partícula permitir que as demais possuam diferentes massas.
A 4 de Julho de 2012, cientistas do CERN anunciaram que, ao fim de 50 anos de investigação,
descobriram uma partícula nova que pode ser o bóson de Higgs.
Ao mesmo tempo também vemos um grande movimento de emancipação de
povos do oriente e do norte da África, antes dominados por ditaduras opressivas e
sangrentas caindo depois de dezenas de anos no poder. É a “primavera árabe” que
testemunha que regimes ditatoriais não resistem ao tempo.

Mas, por outro lado, estamos assistindo a mais uma derrocada do capitalismo,
que alguns anos atrás, com a queda do socialismo em 1989, foi saudado até pela Igreja
Católica como um modelo perfeito de sociedade, parafraseando a canção, “abençoado
por Deus e bonito por natureza”, mas que hoje, visto seu inexorável fracasso e na ânsia
por se salvar, obriga estados e nações a pagarem um alto preço com suas próprias
vidas. Insensível, inescrupuloso e desumano o capitalismo vai fazendo vítimas por toda
parte. Mas, como sempre os que mais sofrem e são chamados a pagar este alto preço
são os pobres.

Vivendo um momento de transição, de mudança de paradigma, de rupturas, de


incertezas diante dos tremendos desafios que se nos afiguram de guerras aqui e acolá,
de atentados terroristas, muitos se perguntam: estamos, de fato, entrando num
período novo? Seria a tão propalada pós-modernidade? Que valores devemos carregar
conosco? Que futuro podemos esperar? Será que a modernidade com toda a sua
riqueza de valores e sentido já cumpriu com seu dever?

Ao que tudo parece indicar existem algumas forças contrárias que antevendo
seu inevitável fim, numa tentativa de conseguir sair ilesa desse período, luta
desesperadamente para se manter incólume. É o caso como pudemos assistir do
chamado acordo entre a Santa Sé (Vaticano) e o Estado Brasileiro em 2009. Segundo
Mozart Valadares, ex-presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), a
aprovação do estatuto da Igreja Católica no Brasil foi inconstitucional e feriu a
liberdade de religião no país. Disse ele: “Quando você faz um acordo dando benefício a
um segmento religioso em detrimento dos outros, você começa a desobedecer, a
descumprir o texto constitucional”4. Isso, na verdade, nada mais é do o estrépito de
um corpo que parecendo ainda viver no período denominado de a “época das trevas”,
continua ruindo dia após dia. Haja vista todo o alvoroço que ela provocou,
4
Texto acessado em 11/08/2012: http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI3943857-EI6578,00-
AMB+acordo+Brasil+x+Vaticano+e+inconstitucional.html.
principalmente nas redes sociais, com a votação pela liberdade das mulheres em
recorrer ao aborto diante de casos comprovados em que o feto seja portador de
anencefalia.

Em pleno século XXI, nesse início de milênio muitos dos problemas que
acossaram nossa vida e, principalmente, nossa consciência, ainda parecem não ter
desaparecido. Volta e meia, religião e política parecem irmãs siamesas que resistem a
uma separação, pois muitos membros de ambos os lados ainda creem que possam
auferir bons resultados mantendo essa iníqua ligação.

Lendo o livro “Religião e luta de classes” de Otto Maduro penso que minha tese
responde em parte aos seus questionamentos. No prólogo ele se pergunta: “A quem é
que serve a religião na luta de classes?”5 Como poderá ser constatado no
desenvolvimento de minha tese, as religiões institucionalizadas, particularmente a
Igreja Católica Apostólica Romana, continua a servir aos interesses da classe
dominante. Em suas “palavras iniciais”, Otto Maduro diz que é preciso saber o porquê
e o como as relações entre Igreja e na sociedade chegaram a este ponto. De fato, ele
reconhece que os conflitos de classe influem na religião 6. Mas, ao concluir sua tese,
Otto Maduro parece não ter satisfatoriamente encontrado a resposta para as
perguntas que fizera no início, pois diz:

Nisto consiste o mal estar que me atormenta a mais de 13 anos. As perguntas nascidas
desse mal-estar e inquietação eu já as formulei nas palavras iniciais deste ensaio [...].
De alguma forma, tentamos sistematizar, neste ensaio, uma resposta a estas
perguntas. Mas foi apenas uma tentativa – até aqui – puramente teórica, de um ponto
de vista estritamente sociológico e em torno de um só aspecto do problema. Por isto,
esta é uma investigação inconclusa, incompleta: porque da teoria seria mister passar,
agora, à investigação empírica e à intervenção sócio-política, a fim de verificar o
alcance, os limites e a validade de minhas proposições; porque, além disso, seria
mister amplia e completar esta perspectiva sociológica com perspectivas psicológicas,
teológicas etc., até cobrir algumas das outras dimensões que constituem um
fenômeno tão infinitamente rico como o religioso.7

5
Otto Maduro, Religião e luta de classes: quadro teórico para a análise de suas inter-relações na
América Latina, Petrópolis, Editora Vozes, 1981, p.9.
6
Idem, p.22-24.
7
Idem, p.188.
Utilizando-se da teoria marxista como instrumento de análise, ele parece não
ter ficado satisfeito com as conclusões e afirma que a “teoria marxista da religião não
passa de um distante e obscuro ponto de partida”.8

Mas, ao contrário do conclui Otto Maduro, utilizarei da teoria marxista, mas


com um diferencial: aplicando-a diretamente aos textos bíblicos, isto é, indo
diretamente à raiz de toda a problemática que ele levanta sem conseguir encontrara
uma resposta satisfatória.

Nesse sentido, se como dizem os estudiosos do mundo bíblico, classificados de


minimalistas9, pelo fato de afirmarem que não existe a menor possibilidade de se
escrever uma história de Israel a partir dos textos bíblicos, eu me perguntava: sendo
assim, Abraão, Moisés, os 12 Patriarcas, Josué, Saul, Davi, Salomão são todos
personagens fictícios? Se estes personagens não são históricos, mas são criações dos
redatores, com que intenção foram escritos os textos bíblicos? Qual foi o grupo que

8
Otto Maduro, Religião e luta de classes …, p.189.
9
R K Gnuse, No other Gods: Emergent monotheism in Israel, Sheffield, Sheffield Academic Press, 1997,
392p.; Joseph Callaway, Village Subsistence at Ai and Raddana in iron Age I em H Thompson, The
answers lie bellow: essays in honor of Lawrence Edmund Toombs, Lanham, University Press of America,
1984; David Hopkins, The highlands of Canaan, Georgia, Almond Press. 1985; Frank Frick, The formation
of the state in Ancient Israel: a survey of models and theories, Georgia, Almond Press, 1988; James
Flanagan, David’s social drama: a hologram of Israel’s early iron age, Georgia, Almond Press, 1988;
Gosta Ahlstron, A history of Ancient Palestine, Minneapolis, Fortress Press, 1993; Carol Meyers,
Discovering eve: Ancient Israelite women in context, New York, Oxford University Press, 1988.; Cf. CHJ de
Geus, The tribes of Israel: an investigation into some of the presuppositions of Martin Noth’s
amphictyony hypothesis, Amsterdam, Van Gorcum, 1976; V Fritz, Die Entstehung Israels im 12 und 11
Jahrundert v. Chr., Sttutgart, Kohlhammer, 1996; Israel Finkelstein, The archaeology of the Israelite
settlement, Jerusalem, Israel Exploration Society, 1988; Israel Finkelstein, N A Silberman, The bible
unearthed: archaeology’s new vision of ancient Israel and origin of its sacred texts, New York, The Free
Press, 2001.; Airton José da Silva, “A história de Israel na pesquisa atual”..., p. 43-87.; NP Lemche, Early
Israel: anthropological and historical studies on the Israelite society before the monarchy, Leiden, Brill,
1985; Ancient Israel: a new history of Israelite society, Sheffield, Sheffield Academic Press, 1995; The
Canaanites and their land: the tradition of the Canaanites, Sheffield, Sheffield Academic Press, 1991; Die
vorgeschichte Israels: von anfangen bis zum ausgang des 13, Sttutgart, Kohlhammer, 1996; The Israelites
in history and tradition, Kentucky, Westminster John Knox, 1998; William Stiebing, Out of the desert?
Archaeology and the conquest narratives, Buffalo, Prometheus, 1989; Robert Drews, The end of the
Bronze Age: changes in warfare and the catastrophe ca. 1200 B.C., Princeton, Princeton University Press,
1993; Robert Coote e Keith Whitelam, The emergence of early Israel in historical perspective, Georgia,
Almond Press, 1987; Rainer Albertz, A history of Israelite religion in the old testament period, 2 vols,
Philadelphia, Westminster Press, 1994.; Baruch Halpern, The emergency of Israel in Canaan, Chico, CA,
Scholar Press, 1983; William Dever, Recent archaeological discoveries and biblical research, Seattle,
University of Washington Press, 1990; Thomas L Thompson, Early history of the Israelite people from the
written and archaeological sources, Leiden, Brill, 1992; The mythic past: biblical archaeology and the
myth of Israel, New York, Basic Books, 1999; Donald Redford, Egypt, Canaan and Israel in ancient times,
Princeton, Princeton University Press, 1992.
esteve por trás da redação dos diferentes livros? Por que a maioria dos livros tidos
tradicionalmente como “históricos” perdeu totalmente essa conotação? Se a bíblia é
de inspiração divina, por que tantas contradições entre os textos? Se hoje, conforme
os dados provenientes da arqueologia que desmentem a maioria das histórias
narradas na Bíblia, que sentido essas histórias tinham para aqueles a quem elas foram
escritas? Poderiam os livros bíblicos do AT, quase que na totalidade, serem
classificados como de caráter “etiológico”?

Se pudéssemos perguntar aos redatores, qual teria sido a verdadeira intenção


ao escrever o que escreveram talvez não nos dissessem, mas, quem sabe, perguntando
aos destinatários, eles nos forneceriam algumas respostas. Porque, na verdade, os
camponeses, homens e mulheres que viveram no tempo em que foram escritos esses
livros, eles são os verdadeiros destinatários. É a eles que devemos perguntar. São eles
que, de certa forma, guardam a chave que nos possibilita a compreensão e o
verdadeiro sentido dos textos. Mas quem são estes destinatários?

Foi a partir desses questionamentos que me pus a começar a construir meu


objeto de pesquisa. Não tinha clareza do que seria, mas aos poucos, à luz
principalmente de estudos interdisciplinares foi possível identifica-lo com muita
precisão.

De repente fui me dando conta também de que meu objeto de pesquisa tinha
uma relação intrínseca com minha própria história de vida. Posso afirmar com certeza,
que não foi por acaso que isto aconteceu. Fruto também de uma profunda vivência
religiosa ao estilo das experiências místicas de João da Cruz, da pobreza e desapego de
um Francisco de Assis e da candura de uma Teresa de Lisieux. Dos retiros inacianos
dentre outras tantas riquezas, são quase trinta anos de muitas histórias, de encontros
e desencontros, de buscas e perdas, de renúncias e entregas, de muitos momentos
onde a alegria, a paz e a segurança da comunidade, faziam com que eu esquecesse ou
mesmo até, que se despreocupasse, totalmente, com o que se passava no mundo.

Assim nasceu meu objeto de pesquisa: as “relações de poder”. Foi


perguntando, não só, pelos interlocutores presentes nos textos, mas perguntando a
eles sobre o sentido dos textos que cheguei a essa conclusão. É a partir das “relações
de poder” que se estabeleceram entre os grupos sociais durante o período pós-exílico
que encontrei a chave de leitura que me abriu portas outrora bem fechadas sob o
manto da historicidade.

Se como diz Pierre Bourdieu:

[...] O que conta, na realidade, é a construção do objeto, e a eficácia de um método de


pensar nunca se manifesta tão bem como na sua capacidade de constituir objetos
socialmente insignificantes em objetos científicos ou, o que é o mesmo, na sua
capacidade de reconstruir cientificamente os grandes objetos socialmente
importantes, apreendendo-os de um ângulo imprevisto [...] O sociólogo poderia tornar
sua a fórmula de Flaubert: “pintar bem o medíocre”.10 (O grifo é pessoal)

E seguindo as orientações de Bourdieu, descobri que além do objeto de


pesquisa escolhido, me deparei com um grupo social, que de certa forma, como objeto
de pesquisa foi sempre marginalizado. Elegi este grupo social como objeto do meu
objeto de pesquisa, que para muitos pode não fazer o menor sentido, ser até
considerado como um objeto “medíocre”, pois como tradicionalmente sabemos boa
parte das desgraças, calamidades e infortúnios “enviados por Deus a Israel”, tinha
como culpados o próprio povo – sociedades primitivas ou tribais.

Na verdade, como poderá ser constatado, eles quase nunca são mencionados,
mas quando o são, aparecem como uma espécie de “bode expiatório” em toda esta
fantasiosa história criada por escribas ligados às classes dominantes de Jerusalém. É
dentro do espírito da “nova história” que privilegia não os grandes acontecimentos,
mas os pequenos, aqueles que á primeira vista parecem “socialmente insignificantes”,
que de fato, tem um profundo valor histórico que precisa apenas ser desenterrado
mediante a utilização de um “método eficaz” de reconstrução histórica. Existem alguns
que faremos menção logo abaixo e outros que, na medida da necessidade, daremos as
devidas explicações.

Pensando alto e longe, como se perguntou Rigoberta Menchú Tum no seu


discurso antes receber o prêmio Nobel da Paz em 1992: “À pergunta: ainda existe
esperança ou o futuro ainda está aberto aos povos indígenas?” Ela mesmo responde:

10
Pierre Bourdieu, A economia das trocas simbólicas, São Paulo, Editora Perspectiva S.A.,1982, p.
Para responder a essa pergunta, é fundamental considerar as condições em que vive a
imensa maioria de nossa população mundial, suas profundas reivindicações que
fundamentam as lutas e esperanças de um futuro melhor. A concentração dos poderes
em poucas mãos condena os pobres a serem mais pobres e torna mais evidente a
urgência de retomar os sagrados valores que deram origem à nossa humanidade; isto
é em essência, o que reivindicamos os povos indígenas e os povos originários do
mundo [...] O respeito aos valores e direitos individuais e coletivos, ou seja, a vitalidade
e a validade do equilíbrio como requisitos indispensáveis de um mundo justo e
pacífico.11

E ela continua seu discurso dizendo que é preciso:

[...] Contribuir positivamente para a criação de novas relações entre os povos


indígenas e os estados [...] Esta face desconhecida da história tenta fortalecer
sociedades multiétnicas e pluriculturais [...] Os 500 anos tem representado muita
noite, muita escuridão. Não há escuridão que aguente muito tempo; ela tem de
terminar pois é preciso amanhecer.12

É a esses grupos, citados por Rigoberta Menchú, que ela classifica como sendo
os “povos indígenas e os povos originários do mundo” que eu associo o campesinato
judaíta, pois falar do campesinato judaíta é o mesmo que falar das sociedades tribais,
primitivas ou indígenas. É com este grupo ou classe social que me identifico em
oposição a todos aqueles que ao longo de toda a história do gênero humano, por
causa de sua ganância, dominaram, espezinharam, maltrataram, exploraram,
manipularam, ridicularizaram e tantos outros adjetivos que nessa mesma linha possam
ser elencados.

Pois é salutar saber, como nos disse Paulo Freire no seu livro A Pedagogia da
Autonomia que é preciso que se tenha bem claro, antes de dar início a qualquer
projeto, o seguinte:

 A favor do que estou lutando?


 A favor de quem estou lutando?
 Contra o que estou lutando?
 Contra quem estou lutando?

11
Giulio Girard, Os excluídos construirão a história? – O movimento indígena, negro e popular: “Durante
cinco séculos outros falaram por nós, hoje queremos começar a falar com voz própria”, São Paulo,
Editora Ática, 1996, p.13.
12
Idem, p.14-17
Sei que a isenção e a objetividade são elementos indispensáveis ao trabalho
científico. Mas como vivemos numa sociedade de classes, desconfio da
neutralidade científica. Por isso, farei um grande esforço para não ideologizar os
fatos, porém, isso não deve impedir que o trabalho revele a posição e o
compromisso do autor em relação à necessidade de transformação tanto da
sociedade, bem como também, ao tipo de comportamento a que Paulo Freire nos
conclama:

Um dos saberes primeiros, indispensáveis a quem, chegando a favelas ou a


realidades marcadas pela traição a nosso direito de ser, pretende que sua presença se
vá tornando convivência, que seu estar no contexto vá virando estar com ele, é o saber
do futuro como problema e não como inexorabilidade. É o saber da História como
possibilidade e não como determinação. O mundo não é. O mundo está sendo. Como
subjetividade curiosa, inteligente, interferidora na objetividade com que
dialeticamente me relaciono, meu papel no mundo não é só o de quem constata o que
ocorre mas também, o de quem intervém como sujeito de ocorrências. Não sou
apenas objeto da História, mas seu sujeito igualmente. No mundo da História, da
cultura, da política, constato não para me adaptar, mas para mudar. No próprio
mundo físico minha constatação não me leva à impotência. O conhecimento sobre os
terremotos desenvolveu toda uma engenharia que nos ajuda a sobreviver a eles. Não
podemos eliminá-los, mas podemos diminuir os danos que nos causam. Constatando,
nos tornamos capazes de intervir na realidade, tarefa incomparavelmente mais
complexa e geradora de novos saberes do que simplesmente a de nos adaptar a ela. É
por isso também que não me parece possível nem aceitável a posição ingênua ou,
pior, astutamente neutra de quem estuda, seja o físico, o biólogo, o sociólogo, o
matemático, ou o pensador da educação. Ninguém pode estar no mundo, com o
mundo, e com os outros de forma neutra. Não posso estar no mundo de luvas nas
mãos constatando apenas. A acomodação em mim não é apenas caminho para a
inserção, que implica decisão, escolha, intervenção na realidade. Há perguntas a serem
feitas insistentemente por todos nós e que nos fazem ver a impossibilidade de estudar
por estudar. De estudar descomprometidamente como se misteriosamente, de
repente, nada tivéssemos que ver com o mundo, um lá fora e distante mundo, alheado
de nós e nós dele.

Em favor de que estudo? Em favor de quem? Contra que estudo? Contra quem
estudo?13

Com isso, acredito que Paulo Freire quer nos conscientizar do valor que tem
uma tomada de posição em relação ao mundo, particularmente em relação ao mundo
que envolve nosso assunto. É necessário que seja pertinente, atual e não, uma letra
morta sem incidência e nem repercussão na vida.

13
Paulo Freire, A pedagogia da autonomia, São Paulo, Paz e terra S/A, 24ª edição, 2006, 148p.
Como afirmou determinada vez Rigoberta Menchú Tum: “Fue muy importante
para mí aprender a distinguir a los enemigos”.14

Portanto, foi a partir dessas palavras de Paulo Freire que comecei a pensar no
título desta tese. Partindo do aprofundamento do objeto de pesquisa escolhido –
relações de poder –, bem como também pelos muitos questionamentos acima
mencionados, busquei qual teria sido a razão para que as sociedades primitivas ou
tribais renunciassem a seus valores e princípios morais, que por tantos séculos haviam
orientados suas vidas, em troca de um novo modo de vida totalmente diferente.

Partindo da constatação de que a dimensão religiosa teve um papel


importante, isto é, uma função extremamente fundamental, no sentido de fazer com
que estas sociedades tribais não se opusessem e nem criassem resistência quanto à
implantação da nova ordem. Foi a partir daí que comecei a intuir o título desta tese.

Assim, à luz das ciências humanas, mais particularmente, da antropologia e da


sociologia, de autores como Marcel Gauchet, Georges Balandier, Marshall Sahlins,
Pierre Clastres, Maurice Godelier, além de um especial encontro com a teoria
desenvolvida por Karl Marx e Friedrich Engels: o “materialismo histórico”, dentre
tantos outros autores, como pode ser constatado pela bibliografia, foi que me deparei
com a realidade de duas dimensões tipicamente humanas: a política e a religião.
Historicamente é possível mostrar que desde os primeiros escritos, religião e política
sempre foram temas que despertaram paixões, que foram motivos de alianças e, em
nosso caso específico, motivo de dominação, de exploração e de manipulação por
parte de seus agentes ou representantes.

Nesse sentido, os conceitos de Religião e Estado, que se constitui no título


desta tese, me dão os instrumentais necessários para que possa, mediante um recorte
histórico – que implica na eleição de um caso particular, no caso, o judaísmo –
desenvolver de forma ulterior meu objeto de pesquisa – relações de poder –, que sem
sombra de dúvida, possibilitará uma perfeita elucidação da discrepância que existe em
ter vigente num mesmo centro de poder estas duas instituições: religião e estado.

14
Frase citada por Rigoberta Menchú Tum. Acessada no dia 03/07/2012 em:
www.fasecelebre.net/frases _frases_de_Rigoberta_Menchu_1.html.
Outra forte motivação, que funciona como uma espécie de pano de fundo, vem
de uma questão neo-testamentária, isto é, de um ponto de vista presente no Novo
Testamento. Como sabemos, existem várias correntes teológicas do Antigo
Testamento que desaguam no Novo Testamento e influencia de certo modo a cada um
dos livros que o compõe. Uma dessas linhas teológicas, que é uma compreensão do
evento Jesus Cristo a partir da ótica dos pobres, dos pobres crucificados da América
Latina, segundo Jon Sobrino, e está no cerne da questão que levou Jesus à cruz, – que
é ponto central da fé cristã e afirma que Jesus de Nazaré, o Filho de Deus, morreu
crucificado – é o fato de que:

Jesus não elaborou nem uma filosofia da religião nem especulou sobre o possível papel
alienante estrutural da religião. Como judeu ortodoxo praticava sua religião, mas em
suas palavras, seus atos e atitudes, condena a situação factual da religião.
Consequentemente com sua concepção de Deus, Jesus foi um liberal em matéria
religiosa e isto o levou à cruz. Sua atitude histórica diante da religião e seus
representantes deve ser compreendida à luz de sua concepção de Deus que, de fato,
tanto serve para oprimir o homem como para justificar sua opressão.15 (o grifo é
pessoal)

O que realmente está em debate entre Jesus e seus interlocutores – os


religiosos de seu tempo – é a sua concepção de Deus “e mais operativamente o modo
de acesso ao verdadeiro Deus”. Este foi o motivo pelo qual ele foi condenado à morte.
O Deus que Jesus apresenta é muito maior que o deus dos escribas e fariseus e está
numa clara contradição com a situação religiosa reinante. Jesus provoca uma ruptura,
uma descontinuidade.

Parece muito pouco afirmar que Jesus morreu por um desígnio de Deus. Como
salienta Jon Sobrino:

A cruz de Jesus não é algo casual, mas a consequência da última tentativa de auto
justificação do homem religioso, do homem manipulador de Deus, que deixa que Deus
continue sendo um mistério, mas manipulável. “A cruz não é compreensível sem a
cooperação dos judeus piedosos”. *...+ Por mais paradoxal que possa parecer o que
matou o Filho foi a “religião”.

15
Jon Sobrino, Cristologia a partir da América Latina: esboço a partir do seguimento do Jesus histórico,
Rio de Janeiro, Editora Vozes, 1983, p.216.
A partir dessa compreensão o que está em questão é um processo sobre o
verdadeiro poder que medeia a Deus. Como poderá ser verificado na primeira parte
desta tese, as sociedades primitivas, assim como o próprio AT, incluindo também, os
romanos e os zelotes, desenvolvem uma concepção de poder totalmente contrária à
apresentada por Jesus. O poder apresentado por Jesus é o testemunho de um “poder
de amor situado e neste sentido é um amor ‘político’, não idealista. A partir da cruz se
aguça a pergunta pela verdadeira essência do poder”.16

Segundo as tradições judaicas “Reino de Deus” relacionava-se, ou explicitamente com


a instauração de uma ordem política teocrática ou, onde essa visão era rejeitada, com
uma organização da sociedade que necessariamente devia levar em conta o social e o
político, pelo menos enquanto ambos tivessem a ver com uma configuração da
convivência entre homens. O ponto conflitante só pode consistir – como de fato
aconteceu na vida de Jesus – no uso do poder, ou expresso melhor, que tipo de poder
se deve usar para organizar a sociedade segundo Deus.17

Aqui eu toco, com o auxílio das reflexões de Jon Sobrino, ao essencial daquilo
que será desenvolvido nesta tese: as bases das relações de poder que se
estabeleceram entre o campesinato judaíta e a classe sacerdotal jerusolimitana. Como
nos diz Jon Sobrino:

Aqui está a verdadeira confrontação: que poder é que verdadeiramente torna


presente a divindade? O homem pensa espontaneamente na divindade com naquilo
que possui poder. O que Jesus questiona é se esta convicção, tão profundamente
arraigada, é verdadeira ou não. Imediatamente constata, historicamente, que o poder
entregue à própria inércia, considerado como a máxima manifestação do homem – por
ser supostamente a mediação de Deus – é, de fato, opressão. E por esta razão o poder
não pode ser a última mediação de Deus.

Jesus opõe à concepção da divindade como poder, outra concepção da divindade


como amor. [...] Esta concepção do amor político o levou necessariamente à cruz. 18 (o
grifo é pessoal)

Ter sido morto numa cruz não tem nada a ver com “vontade de Deus” ou algo
independente da história, mas foi consequência de sua encarnação histórica, que é
verdadeiramente conflitiva, porque a cruz, vista como um fim na história do pecado

16
Jon Sobrino, Cristologia a partir..., p.219.
17
Idem, p.220.
18
Idem, p.223-224.
possui poder e triunfa na forma de opressão.19 Nesse sentido, concordo plenamente
com Jon Sobrino, quando diz que:

Jesus constata que o mais profundo deste pecado é algo que deve ser considerado em
duas vertentes: tanto o poder religioso como o político se fazem passar por Deus, em
flagrante contradição com “seu” Deus. Ao mesmo tempo este poder, enquanto
divinizado, enquanto idolatrado, leva necessariamente à opressão do homem. Daí o
poder que se considera como a autêntica mediação de Deus se converte em última
instância de verdade e não se detém ante a opressão. Ao desidolatrar o poder religioso
e político, Jesus está condenando, ao mesmo tempo, todo tipo de opressão em nome
do poder: para a submissão do homem não existe nenhuma justificação, porque o
poder que submete não é Deus, mas seu contrário.20

Desse modo, o que fica claro para mim, a partir desse ponto de vista neo-
testamentário é que as bases dessa teologia a que chegou o poder religioso do
judaísmo, constituído na época de Jesus, tem sua gênese, justamente, no período de
conclusão redacional do Pentateuco, ou seja, quando se conclui a redação de diversos
textos tendo em vista as difíceis e contraditórias relações de poder entre o
campesinato judaíta e a classe sacerdotal jerusolimitana.

A história da Igreja Católica Apostólica Romana é um exemplo emblemático,


pois enquanto instituição (hierarquia) e corpo eclesial (fieis), não só na sua dimensão
ad-extra, de presença no mundo, mas também e particularmente, nas suas relações
intra-sistêmicas, isto é, nas suas relações ad-intra, da hierarquia com os fiéis, deixa
muito a desejar no tocante às relações de poder.

Fundada, nos mesmíssimos moldes da comunidade judaica do Antigo


Testamento – qahal: assembleia dos fiéis – ela reproduz quase que nos mesmos
moldes toda a estrutura organizacional: tradições, prescrições litúrgico-canônicas,
códigos de moral, estruturas eclesiásticas e formas de poder centralizadoras e
controladas por um corpo de sacerdotes, a Hierarquia.

Sabe-se que toda comunidade não subsiste sem um mínimo de instituição que
lhe confira unidade, coerência e identidade, mas como disse Lord Acton, “todo poder
tende a se corromper e o absoluto poder a se corromper absolutamente”. Como

19
Jon Sobrino, Cristologia a partir..., p.224-225.
20
Idem, p.225.
assevera Leonardo Boff, como veremos ao longo deste projeto, o poder não significou
somente uma terrível tentação de domínio e substituição de Deus, mas foi em diversas
épocas causa de uma quantidade enorme de escândalos em todos os seus níveis, seja
institucional quanto corpo-eclesial – sucumbiu desastrosamente.21

Como tudo na vida tem um início, seu ponto de mutação se deu quando da
virada constantiniana. De religio illicita o cristianismo – Igreja Católica Apostólica
Romana – passa a constituir a religião oficial e assim a ideologia sacral do Império.
Como diz Leonardo Boff:

A Igreja parece que não estava apesar das perseguições, preparada para enfrentar
evangelicamente os desafios próprios do poder. Ela não aboliu a ordem pré-existente.
Assumi-a e adaptou-se a ela. Ofereceu ao Império uma ideologia que sustentava a
ordem vigente e sacralizava o cosmo pagão. “A religião que marcou o Ocidente não foi
propriamente a mensagem cristã, mas a síntese entre e religião antiga e a cristã” *...+
Com a entrada na Igreja dos funcionários do Império que deviam assumir a nova
ideologia estatal, processou-se antes uma paganização do cristianismo do que uma
cristianização do paganismo. [...] A Igreja-instituição se acomodou de bom grado às
realidades políticas e às uniformidades inexoráveis. Encetou uma trajetória de poder
que chegou até o presente e cujo ocaso, parece, nos é dado entrever.22

Como poderão ser confirmadas na segunda e terceira parte desse estudo, as


mesmas estruturas encontradas no judaísmo, em termos de uma estreita união entre
religião e estado, são reproduzidas da mesma forma na Igreja Católica, guardadas,
obviamente, as devidas proporções. Isto acontece porque a matriz estrutural e
organizacional das duas religiões é idêntica: os livros do Antigo Testamento.

Portanto, é aos pobres e explorados de ontem como aos de hoje, que dedico
este projeto de tese na esperança, de como diz Rigoberta Menchú, sobrevir um novo
amanhecer, que sejam dias de reconhecimento, não só da manipulação, dominação e
exploração a que foram submetidos por dezenas de séculos de história, mas,
principalmente, dos “sagrados valores que deram origem à nossa humanidade” e que
ainda hoje podem ser encontrados em muitas sociedades indígenas: um Estado sem
poder!

21
Leonardo Boff, Igreja, carisma e poder: ensaios de eclesiologia militante, 3ª Edição, Rio de Janeiro,
Editora Vozes, 1982, p.85
22
Idem, p.87-88.
É a isso que, humildemente, se propõem esta tese.

No sentido de tentar reconstruir parte dessa história esquecida, devido à


ênfase dada aos grandes acontecimentos, personagens e heróis bíblicos, na sua grande
maioria fictícios, lançarei mão de alguns dos instrumentais ligados à nouvelle histoire.

Em frontal contraposição ao senso comum e ao paradigma tradicional que


enfatiza somente o aspecto político, procurarei demonstrar que “sagrados valores” são
esses aos quais se refere Rigoberta Menchú e que, segundo ela, podem dar um novo
elã às sociedades hodiernas.

Tentar escrever parte da história do campesinato judaíta, é escrever parte da


história das sociedades primitivas ou tribais. É atender ao apelo de se lançar ao
trabalho de escrever uma “história vista a partir de baixo”, isto é, do ponto de vista das
sociedades exploradas e marginalizadas, que com certeza, tem muitas coisas a nos
dizer. A exploração e a marginalização a que foram submetidos por séculos a fora, não
foram frutos de uma evolução natural das sociedades de classe, que necessitavam de
mão de obra para satisfazer suas às necessidades. Foram sim, frutos da arrogância de
seres humanos, que ao ensimesmarem-se, exploraram e maltrataram sem limites seus
próprios semelhantes.

Um dos fundamentos da nova história é quanto axioma antropológico do


relativismo cultural. Peter Burke em A Escrita da História, afirma categoricamente que
“a base filosófica da nova história é a ideia de que a realidade é social ou
culturalmente constituída”.23 Isso implica em dizer que o sentido cultural de qualquer
sociedade deriva do seu contexto. Assim também, o relativismo moral, implica em que
as proposições de moral e ética não são verdades universais, mas nascem de um
determinado contexto cultural. Essas verdades nos fazem pensar e questionar muito
sobre aquelas inúmeras leis e normas presentes no Pentateuco e tidas como de origem
divina. Sobre isso voltaremos na segunda parte desta tese.

Conforme Pierre Bourdieu salienta, é para romper com este modo de


pensamento ultrapassado e sem base científica nenhuma “– e não pelo prazer de colar

23
Peter Burke, A escrita da história: novas perspectivas, São Paulo, Editora UNESP, 1992, p.11.
novos rótulos em velhos frascos teóricos –“ que me lanço nesse desafio de dar cor e
brilho a corpos desfigurados pela dor e sofrimento. Dar voz e vez a quem tanto fez e
nada, absolutamente nada recebeu em troca, pois quem faz a roda do mundo girar
não é quem fica na direção, mas quem, como suor de seu rosto emprega o melhor de
suas forças nesse serviço.

[...] Entre ética e poder a relação será sempre difícil, porém necessária: como o poder
se refere sempre ao outro, corre o risco de ser perversão e puro domínio quando não
se exerce e não se cultiva alto sentido da dignidade humana, da liberdade e dos
direitos humanos.

Na base de todo poder está a relação fundamental do mandato e da obediência. A


decisão antes de tudo, como ato de poder, é o que constitui o problema moral. [...] A
partir do momento em que o bem comum está constituído pelo reconhecimento e
pela promoção dos direitos do homem e da convivência, pode-se dizer que a justiça é
o elemento moral determinante do poder.24

De fato, se não somos capazes de ver o outro na dimensão da alteridade, isto é,


se “não se cultiva alto sentido da dignidade humana” como diz Lorenzetti no parágrafo
acima, nossas relações de poder são pura “perversão e domínio” do outro.

De um determinado ponto de vista, não se trata de construir nada, senão que,


desconstruir. Proceder a uma análise histórico-crítica das relações de poder entre o
campesinato israelita e a classe sacerdotal jerusolimitana implica em descortinar, em
desvelar a trama que está por trás das narrativas construídas de muitos textos bíblicos.
Mas, por outro lado, se trata sim de construir aquela parte esquecida – omitida – da
história de que nos fala Rigoberta Menchú, daquele real de que nos falará em seguida
Michel de Certeau. Sim, a proposta é também de construção, de escrever o não dito da
realidade campesina, de encontrar no verso – da narrativa bíblica – o reverso de sua
triste e dolorosa realidade: suas lutas para sobreviverem diante dos avanços imperiais,
o drama de terem que renunciar aos seus mais nobres valores, costumes, enfim, à sua
identidade cultural.

A tese que eu defendo e procurarei demonstrar é a de que as relações de


poder entre o campesinato israelita e a classe sacerdotal jerusolimitana foram tecidas
de tal modo, que as relações de poder claramente se transformaram em relações de
dominação e exclusão para os dominados – campesinato israelita –, pois, os

24
Luís Lorenzetti, “Poder” em Dicionário de Teologia Moral, São Paulo, Editora Paulus, 1997, p.971.
dominadores – classe sacerdotal jerusolimitana – que tendo na escritura hebraica seu
principal instrumento de empoderamento e legitimação de seu status quo, conforme
acentuou Max Weber, “domesticaram os dominados”25.

Segundo Michel de Certeau enfatiza em seu livro A Escrita da História:

[...] recusar a ficção de uma metalinguagem que unifica o todo é deixar aparecer os
procedimentos científicos limitados e aquilo que lhes falta do real ao qual se referem.
É evitar a ilusão necessariamente dogmatizante, própria do discurso que pretende
fazer crer que é “adequado” ao real, ilusão filosófica oculta nos preâmbulos do
trabalho historiográfico e da qual Schelling reconheceu maravilhosamente a ambição
tenaz: “O relato dos fatos reais é doutrinal para nós”. Este relato engana porque
acredita fazer a lei em nome do real.26

Desse modo, partindo daquilo que a “nova história” caracterizou como sendo
uma história a ser contada a partir do ponto de vista dos dominados, isto é, daqueles
que sempre estiveram em baixo, aquele “real” de história que foi omitido, conforme
interesses escusos dos dominadores, daqueles que sempre estiveram por cima.

Com o fim dos discursos universais e seguindo uma das tendências filosóficas
que marca profundamente a contemporaneidade da reflexão, como novo norteador
ético, o corpo é assumido atualmente como critério para julgamento. Mas conforme
preconiza a “nova história” nem sempre foi assim. Estudar a história do corpo humano,
que é constantemente afetado de maneiras variadas, tanto pela cultura quanto pela
sociedade, jamais deveria ser encarado sem levar em conta as considerações
(culturais) da experiência e da expressão na linguagem e na ideologia.27

Para a Nova História é de importância básica uma compreensão do local


subordinado, destinado ao corpo nos sistemas de valor religioso, moral e social da
cultura, tanto do presente como do passado. Se há como afirma Roy Porter, “um
enorme campo de ação para os historiadores políticos para serem mais sensíveis à
realidade do corpo, produzidas pela autoridade do estado sobre os corpos de seus

25
Pierre Bourdieu, A economia das trocas simbólicas, São Paulo, Editora Perspectiva S.A.,1982, p.32.
26
Michel de Certeau, A escrita da história, Rio de janeiro, Forense-Universitária, 1982, p.10-11.
27
Roy Porter, “História do Corpo”, em Peter Burke, A escrita da história, 2ª Reimpressão, São Paulo,
Editora UNESP, 1992, p.291-326.
súditos”28, o judaísmo se apresenta como um valioso objeto de estudo, pois, como
religião do corpo, de corpos marcados com o sinal da morte, de corpos marginalizados
e excluídos da vida, de corpos prostituídos e manipulados segundo os interesses de
outros corpos, corpos vergados pela fome e pela dureza do trabalho escravo diante de
corpos, aparentemente, emoldurados pelas ideológicas bênçãos dos céus.

Não foi por menos que Michel de Certeau inaugurou seu livro analisando
aquela pintura de Jan Van der Straet, onde o artista pintou o descobridor que vindo do
mar, e tendo atrás de si as naus que levaram muitos de nossos tesouros, se encontra a
“América Índia, mulher estendida, nua, presença não nomeada da diferença, corpo
que desperta num espaço de vegetações e animais exóticos”. Mas, conforme aponta o
próprio Michel de Certeau:

[...] o que assim se disfarça é uma colonização do corpo pelo discurso do poder. É a
escrita conquistadora. Utilizará o novo mundo como uma página em branco (selvagem)
para nele escrever o querer ocidental. Transforma o espaço do outro num campo de
expansão para um sistema de produção. A partir de um corte entre um sujeito e um
objeto de operação, entre um querer escrever e um corpo escrito (ou a escrever)
fabrica a história ocidental.29 (o grifo é meu)

Daí que o autor se pergunta: “Que aliança é esta entre a escrita e a história?” E
responde, dizendo: “Ela já era fundamental na concepção judaico-cristã das
Escrituras”.30

Este “discurso do poder” do qual nos fala Certeau, logicamente tem a ver com
os diferentes discursos, mas aqui, particularmente, com os discursos presentes na
escritura judaico-cristã. Segundo o próprio Certeau estes discursos tem mais “aspecto
de fabricação” e não mais de leitura ou interpretação. O que está por trás é
claramente um “problema político” e em jogo, a “questão do sujeito (do corpo e da
palavra enunciadora), questão reprimida ao nível da ficção ou do silêncio pela lei de
uma escrita científica”.31

28
Roy Porter, “História do Corpo”..., p.325.
29
Michel de Certeau, A escrita da história..., p.9-10.
30
Idem, p.11.
31
Idem, ibdem.
Desse modo, o que esta tese propõe é uma profunda reflexão sobre o poder,
sobre as relações de poder que se estabelecem na sociedade. Por isso, são oportunas
as palavras de Lorenzetti, citadas abaixo. Elas nos levam a um profícuo
questionamento no que diz respeito ao nível de nossos relacionamentos.

O poder, por si mesmo, não tem nem terá fins bem precisos; terá os que lhe venham da
consciência. „O poder espera ser dirigido‟ (R. Guardini). A questão ética do poder
consiste, pois, essencialmente na questão da finalidade do poder. Os fins, os objetivos,
as metas (que podem ser tão variados quanto os projetos humanos são o objeto e o
término do problema da avaliação do poder.

Estreitamente ligada ao objetivo ou fim está a questão dos meios que precisam ser
assumidos: a perversão dos meios implica degeneração do fim. As perspectivas ou os
horizontes do poder – não só o político – dificilmente parecem conciliáveis com as
razões da ética; o poder tende à eficácia e, por isso, adota a astúcia, a coação e a própria
força.32

32
Luís Lorenzetti, “Poder” em Dicionário de Teologia Moral, São Paulo, Editora Paulus, 1997, p.971.
A história humana não é outra coisa do que uma luta
....................................................................longamente vitoriosa contra a alienação
política.33

I PARTE

Capítulo I –Religião e Estado34

“A essência da religião é ser contra a história”35

Tomando como ponto de partida desta tese o fato histórico de que religião e
política36 são duas dimensões que estão profundamente arraigadas e consolidadas na

33
Marcel Gauchet, “A dívida do sentido e as raízes do estado: política da religião primitiva” em Guerra,
religião, poder, São Paulo, Livraria Martins Fontes, 1977, p.87.
34
Neste capítulo primeiro busco fundamentar os termos religião e política, bem como também, na
medida da necessidade, explicitar as teorias e métodos que serão oportunamente utilizados como meio
para se alcançar os distintos objetivos.
35
Marcel Gauchet, A democracia contra ela mesma, São Paulo, Radical Livros, 2009, p.61.
36
Utilizo, já desde o início, o conceito de “política” ao invés de “estado” porque a meu ver, o termo
política é o que melhor exprime a realidade do estado. O estado é o exercício político no seu grau mais
elevado. Portanto, usarei livremente ambos os conceitos, mas dando as devidas ênfases quando
necessárias.
condição existencial do ser humano, e por isso mesmo, conferindo-lhe uma dignidade
incomparável em relação a todos os outros seres. Quero à luz do testemunho da
ciência e da história, bem como também, a partir de um recorte na própria história,
revisitá-la e demonstrar até que ponto, a união entre estas duas instâncias, religião e
estado, foi sempre e terrivelmente danosa, pelo menos, para um grupo em particular:
o campesinato.

No intuito de poder abarcar os conceitos em toda a sua amplitude farei uso dos
instrumentais oriundos das chamadas ciências humanas. As ciências humanas se
apresentam como um conjunto de ferramentas imprescindíveis para a consecução dos
objetivos que serão propostos abaixo. Pode parecer estranho para quem é da área de
exegese bíblica a ênfase que será dada a diferentes áreas do conhecimento como meio
e suporte para o entendimento e interpretação do meu objeto de pesquisa, bem como
do contexto histórico a ser estudado.

Não foi por acaso que as ciências do homem ganharam o status que tem hoje.
Conforme Hilton Japiassu afirma, as ciências humanas tiveram na Revolução Francesa
seu grande mote, pois ao introduzirem uma descontinuidade na história, revelaram
que a história existe e tanto pode ser alterada quanto reconstruída. Francis Fukuyama
estava completamente enganado quando afirmou que a história havia terminado.
Nesse sentido Japiassu faz uma interessante reflexão:

[...] Este acontecimento político, social e econômico – Revolução Francesa – introduziu


uma ruptura fundamental no universo ideológico da Europa do século XIX. E essa
ruptura traz, em si, as condições de aparecimento das Ciências Humanas, não como
consequência do acaso, mas como uma exigência interna ao acontecimento mesmo.
Porque, doravante, não resta dúvida de que a história existe e que os homens podem
nela intervir.37

Desse modo, a Revolução Francesa representou, não só um marco histórico


para o surgimento das Ciências Humanas, mas também representou o fim de um longo
período em que política e religião caminharam profundamente entrelaçadas. Rompeu-
se o estreito liame que ainda restava da união destas duas grandes dimensões da
natureza humana, que praticamente, só prejuízo trouxe, quando estiverem unidas
numa mesma instituição, tanto o poder religioso quanto o poder político.

Homens e mulheres são con-vocados, isto é, são instados, pelo próprio potencial, –
ora latente, ora reprimido – a desenvolver essas dimensões, de modo a que a sua vida
em sociedade seja melhor e mais fácil de ser desfrutada.

37
Hilton Japiassu, Introdução às Ciências Humanas: análise de epistemologia histórica, 11ª Edição, São
Paulo, Letras & Letras, 2002, p.30-31.
Mas, como poderá ser verificada, a aliança destas duas dimensões numa
mesma instituição de governo, conforme o testemunho histórico de inúmeras
sociedades ao longo de quase 5.000 anos de história, nos possibilita afirmar que esta
união foi sempre extremamente desastrosa para todas as sociedades aonde ela, de
fato, chegou a se consumar.

Encontrar a medida certa, o justo equilíbrio existencial entre essas duas


potencialidades da natureza humana é o escopo a ser alcançado. Mas falar em justo
equilíbrio não implica numa divisão equânime de forças e ações. Poderia uma das
dimensões, pelo seu suposto valor, exercer um predomínio sobre todas as outras
demais dimensões da existência humana? Existiria uma dimensão que devido ao seu
conteúdo ou caráter poderia ter certa prevalência em relação às demais? O que a
história testemunha, particularmente com respeito às primeiras sociedades, chamadas
de selvagens, tribais, primitivas ou originárias, era de que a religião era a dimensão
que plasmava a vida de todas as sociedades, relativizando ou englobando todas as
outras demais dimensões da vida. Mais recentemente, com o advento da
modernidade, é o estado, via dimensão política, que na sua forma peculiar e mais
abrangente, é quem detêm todo o controle da sociedade.

Mas com isso quereria dizer que devemos voltar a viver como as sociedades
primitivas?

Ou quem sabe, elas teriam algo a nos ensinar?

Como poderá ser verificado, farei um estudo de um caso particular, um caso bem
concreto onde, tanto o poder religioso como o poder político, – na sua forma mais
elaborada – foi assumida por um mesmo grupo social, determinando assim, toda a
vida de toda uma sociedade dentro de um determinado contexto. O problema que
será levantado está não somente no fato em si, mas no modo como ele foi sendo
articulado e desenvolvido, até ser plenamente aceito por toda a sociedade. Aqui está o
nó da questão. Determinar os meandros desse projeto, – de caráter não só político e
religioso, mas também, com forte incidência no âmbito socioeconômico – constitui-se
na aquisição da chave que permite compreender as reais motivações que tiveram os
redatores de muitos dos textos bíblicos escritos no período pós-exílico.

A análise dos conceitos de religião e política, implica, partindo de uma visão


holisticamente epistemológica, isto é, de uma visão interdisciplinar do conhecimento,
de uma visão que busque integrar os termos acima citados a partir de diferentes
enfoques, pois que estão, na práxis e historicamente, profundamente conexos entre si.

O que me motiva a trabalhar este tema que ora se constitui no título desta tese
é perceber que os altos e baixos da trajetória humana sobre a face da terra sempre foi
marcada pela conjunção e/ou disjunção, em maior ou menor grau, destes dois
aspectos da vida social de todos os grupos humanos.
1.1 – A religião38

Fenômeno tipicamente humano e universal, a religião é a respiração, o suspiro


do ser na busca por sentido e respostas à sua condição humana e existencial. Como
disse acertadamente Rubem Alves, a religião é um desses mecanismos que possibilita
criarmos “ilusões, realizações dos mais velhos, mais fortes e mais urgentes desejos da
humanidade”39. Precede o estado em termos de aparecimento no cenário mundial.
Aliás, como será demonstrado, conforme a tese de Pierre Clastres foi a religião quem
engendrou o estado40. É também o meio pelo qual homens e mulheres tentam acessar
um meio e poder sobrenatural – desconhecidos – como forma e tentativa de
solucionarem seus problemas de ordem puramente natural. Desde os mais remotos
tempos bem como também através dos mais antigos registros, tais como as pinturas
rupestres, pode-se afirmar com certeza que o ser humano possui como salienta Marcel
Gauchet41, um núcleo antropológico que o disponibiliza para o desenvolvimento e
exploração dessa dimensão, simultânea e dialeticamente expressa, pela clareza e pela
obscuridade.

Neste primeiro capítulo utilizarei a obra de Marcel Gauchet42 como uma


espécie de fio condutor na exploração e desenvolvimento do tema da religião, que é
pela lente do filósofo francês:

[...] Fenómeno original que encontramos tan lejos como podamos remontarnos en el
tiempo de los hombres; fenómeno universal, del que no conocemos ninguna sociedad
que haya escapado; fenómeno recurrente, del que podemos discernir su influencia,
cerca de nosotros, hasta en los movimientos de inspiración fundamentalmente
antirreligiosa, como las empresas totalitarias: ¿no parece atestiguar todo que estamos
en presencia de una de esas últimas constricciones inherentes al ser-conjunto, siempre
igual a sí misma, en última instancia, y cuya sola necesidad trataríamos de desprender
de la proliferante y metamórfica diversidad de sus manifestaciones?43

Vista a partir de alguns prismas, tais como: o histórico, o político e o fenomenológico44,


a religião institucionalizada durante uma grande parte da história, conforme os

38
Esta fundamentação histórica da religião servirá de base para que se possa caracterizar,
posteriormente, a religiosidade a qual estava imerso a população que habitava nas aldeias e vilas da
Judéia, antes de serem integradas ao Judaísmo.
39
Rubem Azevedo Alves, O que é religião..., p.26.
40
Pierre Clastres, A sociedade contra o estado: pesquisas de antropologia política, Rio de Janeiro,
Livraria Francisco Alves Editora S.A., 1978, 152p.
41
Marcel Gauchet, El desencantamiento del mundo: una historia política de la religión, Madri, Editorial
Trotta, 2005, 302p.
42
Conforme indicado na bibliografia.
43
Marcel Gauchet, El desencantamento..., p.31.
44
O termo “fenomenologia” segundo Merleau-Ponty, Fenomenologia da percepção, São Paulo, Martins
Fontes, 2006, p.1: “O que é fenomenologia? Pode parecer estranho que ainda se precise colocar essa
questão meio século depois dos primeiros trabalhos de Husserl. Todavia, ela está longe de estar
resolvida. A fenomenologia é o estudo das essências, e todos os problemas, segundo ela, resumem-se
critérios do materialismo histórico desempenhou uma função que conforme a imagem
da metáfora do “edifício” ocuparia um espaço na estrutura ideológica dentro desta
superestrutura.45 Até bem pouco tempo – comparado com o desenvolvimento de todo
o gênero humano – e de um modo geral, organizava a vida da sociedade, mas levando
a grande massa de seus adeptos – normalmente, a classe dominada – a uma total
atitude de alienação com relação à realidade histórica e política.

Partimos também aqui de algumas concepções clássicas do termo religião. Para Mircea
Eliade, religião é definida como a “experiência” do sagrado. Para Rudolf Otto é “um
sentimento numinoso do ‘totalmente outro’ do “mysterium tremendum e fascinans”46.
Já, pelo filtro sociológico de Émile Durkheim, na sua obra Formas elementares da vida
religiosa, religião é entendida como sendo:

[...] coisa eminentemente social. As representações religiosas são representações


coletivas que exprimem realidades coletivas; os ritos são maneiras de agir que surgem
unicamente no seio dos grupos reunidos e que se destinam a suscitar, a manter, ou a
refazer certos estados mentais desses grupos.47(grifo pessoal)

Para Max Weber, apesar de não ter tido nenhuma afinidade pessoal com a religião,
pois numa carta a um amigo, teria dito o seguinte: “não tenho absolutamente nenhum
ouvido musical para a religião”48. Mas, apesar desse posicionamento, foi um teórico,
que pelo viés sociológico, procurou incansavelmente analisá-la chegando à seguinte
definição:

[...] sistema estruturado de símbolos pelos quais grupos humanos formulam a última
razão de ser da vida e do mundo em que vivem e em redor de que se organizam certa
unidade com progressiva especialização de papéis.49 (grifo pessoal)

em definir essências: a essência da percepção, a essência da consciência, por exemplo. Mas a


fenomenologia é também uma filosofia que repõe as essências na existência, e não pensa que se possa
compreender o homem e o mundo de outra maneira a não ser senão a partir de sua ‘facticidade’. É uma
filosofia transcendental que coloca em suspenso, para compreendê-las, as afirmações da atitude
natural, mas é também uma filosofia para a qual o mundo já está sempre ‘ali’, antes da reflexão, como
uma presença inalienável, e cujo esforço todo consiste em reencontrar este contato ingênuo com o
mundo, para dar-lhe enfim um estatuto filosófico”.
45
O termo “infraestrutura” que será devidamente conceituado, a posteriori, é utilizado nesta tese
conforme as categorias do método marxista do materialismo histórico.
46
Bernardo Razzotti, “Rudolf Otto (1869-1973) – A universalidade do religioso” em Giorgio Penza,
Rosino Gibellini (org), Deus na filosofia do século XX, 2ª Edição, São Paulo, Edições Loyola, 2000, p.147.
47
Emile Durkheim, Formas elementares da vida religiosa, 2ª Edição, São Paulo, Paulus, p.38.
48
Antônio Flávio Pierucci, O desencantamento do mundo: todos os passos do conceito em Max Weber,
2ª Edição, São Paulo, Editora 34 Ltda, 2005, p.25.
49
Francisco Hass, Concepção de religião segundo Max Weber, em
http://www.domtotal.com/direito/pagina/detalhe/23896/concepcao-de-religiao-segundo-max-weber.
Parece que para Weber a frase “última razão de ser da vida e do mundo” tendo
uma conotação eminentemente escatológica, consequentemente leva os religiosos a
desprestigiarem a vida em si, o seu compromisso de transformação e construção do
novo num aqui e agora da realidade, levando-os a pensar somente na vida no além.

Ainda para Ruben Alves a religião nada mais é do que:

[...] a memória de uma unidade perdida e a nostalgia por um futuro de reconciliação.


Por isto a religião pressupõe sempre, sob as camadas superficiais de felicidade e paz
que ela proclama, um eu irreconciliado com o seu destino”.50

Com muita acuidade, Rubem Alves desenvolve com sentido e precisão uma
reflexão muito realista da religião quando diz que a ela tenta “iluminar os cantos
escuros do conhecimento. Mas, pobre dela... Ela mesma não vê. Como pretende
iluminar? Ilumina com ilusões que consolam os fracos e legitimações que consolidam
os fortes”.51 De fato, como afirma Althusser52, ela tem sido um verdadeiro instrumento
na mão do estado, ou melhor, no seu jogo político de encontrar meios para tentar
sobreviver às crises internas e externas, serve como “aparelho ideológico do estado”
visando sempre a legitimação da classe dominante. No fundo da questão, vamos
perceber que sempre existiu “luta de classes”, principalmente, por parte da elite
dominante, em legitimar-se no poder.

A religião é a teoria geral deste mundo, o seu compendio enciclopédico, sua lógica em
forma popular, sua solene completude, sua justificação moral, seu fundamento
universal de consolo e legitimação. [...] A crítica da religião desilude o homem, a fim de
fazê-lo pensar e agir e moldar a sua realidade como alguém que, sem ilusões, voltou à
razão, agora ele gira em torno de si mesmo, o seu sol verdadeiro. A religião é nada
mais que o sol ilusório que gira em torno do homem, na medida em que ele não gira
em torno de si mesmo.53

Para Marcel Gauchet a “essência da religião é ser contra a história e contra aquilo que
nos é imposto como destino”, isto é, ser contra a assumir com ardor, luta, sabedoria e
responsabilidade o desafio de criarmos uma civilização onde reine em absoluta justiça,
a liberdade, a igualdade e a fraternidade. A religião, principalmente aquelas
reconhecidas como históricas, de fato, foram numa espécie de contramão no sentido

50
Rubem Azevedo Alves, O enigma da religião, 3ª Edição, Campinas, Papirus Livraria Editora, 2009, p.9.
51
Rubem Azevedo Alves, O que é religião, 13ª Edição, Brasília, Editora Brasiliense, 1981, p.23.
52
Louis Althusser, Ideologia e aparelhos ideológicos de estado: nota sobre os aparelhos ideológicos de
estado, 9ª Edição, São Paulo, Edições Graal LTDA., 2003, p. 41-52.
53
Rubem Azevedo Alves, O que é religião..., p.23.
de não incentivarem seus fiéis a aceitarem esse desafio de transformação do mundo,
de fazerem de seus membros verdadeiros agentes históricos.

Nesse sentido, Rubem Alves, que reconhecendo o sentido verdadeiro e real


daquela famosa frase citada por Karl Marx, que em face à contemplação do trabalho,
concluía que a religião nada mais era do que “ópio do povo”, também afirma:

Alienar um bem: transferir para uma outra pessoa a posse de alguma coisa que me
pertence. Tenho uma casa: posso doá-la ou vende-la a um outro. Por este processo ela
é alienada. A alienação, assim, não é algo que acontece na cabeça das pessoas. Trata-
se de um processo objetivo, externo, de transferência, de uma pessoa a outra, de algo
que pertence à primeira.54

Nesse sentido, a religião, como um alucinógeno, faz com que as pessoas se


tornem apáticas, incapazes de ver o que está por trás da realidade, se preocupando
única e exclusivamente com a vida eterna e outras coisas afins.

Diferentemente pensa Debray, que citado por Gauchet, crê que a religião não é
somente uma dimensão constituinte da sociedade, mas é a própria condição de
existência da sociedade, pois o núcleo de toda sociedade humana seria religioso.55

Marcel Gauchet traça um interessante panorama do desenvolvimento do


fenômeno religioso em suas linhas mais gerais, pois segundo ele, se:

[...] admitimos en efecto comúnmente que existe una permanencia, una constancia, si
no una invariabilidad de lo religioso en la historia, que obligan a referirlo a las
condiciones mismas de existencia de una sociedad humana, como a continuación
admitimos que se conciba su papel en la estructuración primordial del campo
colectivo.56

Para Gauchet, uma análise a partir do desenvolvimento histórico da religião,


diferentemente daquelas ilustrações que tradicionalmente encontramos em alguns
manuais de história das religiões, pode ser feito do ponto de vista fenomenológico em
três grandes fases:

54
Rubem Azevedo Alves, O que é religião..., p..21
55
Marcel Gauchet, A democracia contra ela mesma, São Paulo, Radical Livros, 2009, p.56.
56
Marcel Gauchet, El desencantamiento del mundo…, p.31.
A. Fase da religião pura (percorre todo o período Neolítico até
aproximadamente 3500 a.C. quando surgem as primeiras sociedades
estatais).

B. Fase da ascensão do Estado (fase de unificação e/ou identificação do


estado com a religião ou ainda de períodos de total domínio político
da religião). Segundo Marcel Gauchet, esta fase corresponde à fase
da “religião da saída da religião” (destaque para revelação judaico-
cristã).

C. Fase de total laicização do estado que se inicia com o advento da


modernidade (processo que ainda está em pleno andamento nos
dias de hoje).57

Graficamente, este quadro pode ser representado conforme a ilustração a seguir.

57
Citando um parecer de Marcel Gauchet (A democracia..., p.58-59) quanto a esse processo de total
laicização do estado que está em curso desde que se iniciou o período da modernidade: “Paradoxo: há
dois séculos, a religião não parou de perder peso relativo na vida de nossas sociedades”. De fato, esta é
uma verdade inegável. O peso político e social que as grandes instituições religiosas detinham já não
existe mais. De uma total dependência moral da religião, o mundo foi adquirindo autonomia,
desenvolvendo, o que Thomas Hobbes definiu como um “Contrato Social” em que todos os membros de
uma determinada sociedade se comprometiam a respeitar os seus direitos e deveres como princípio do
bem comum. “Quanto melhor se compreende a história resolutamente disposta na mente, em que
sentido a religião constituiu, em quase toda a duração das sociedades humanas, o elemento essencial
de seu dispositivo político e como que a matéria da ligação entre seus membros, mais nos desligamos
do mito de sua pretensa necessidade trans-histórica. Ela foi a forma que revestiu, das origens até a
pouco, a relação dos homens no estar-em-sociedade, o modo quase único sobre o qual eles assumiram
seu estar-em-conjunto”. Nota: este tópico não será desenvolvido nesta tese por falta de tempo hábil.
1.1.1 – Fase da religião pura

A fase da religião pura consistiu num modo todo especial de se vivenciar aquilo que
hoje conhecemos e chamamos de religião, mas de um modo todo rudimentar pelas
sociedades “primitivas”, “tribais” ou “selvagens”, isto é, pelas sociedades classificadas
como sendo “arcaicas”, que apesar de não terem deixado nenhum registro por escrito,
nos legaram alguns valores de sua religiosidade através das subsequentes sociedades,
daquelas sociedades que mantiveram muitas de suas tradições, e que ainda hoje,
podem ser encontradas em muitas comunidades indígenas, diga-se de passagem,
algumas delas ainda intocadas pela civilização e dispersas pelo mundo inteiro. Com
relação a isto, Marcel Gauchet salienta que:

[...] Es necesario que haya incluso algo más que una poderosa razón, que una
imperiosa obligación – estamos tentados a pensar –, para que una actitud tan
sistemática haya prevalecido unánimemente durante milenios por en cima de la
infinita fragmentación planetaria de las culturas y de los grupos. Sin duda, es éste uno
de los puntos en que mejor se confirma la unidad de la especie humana y, por tanto,
es lógico pensarlo, en que debe mostrarse con más claridad la identidad de los factores
susceptibles de modelar su curso.58

De fato, mesmo diante da grande fragmentação, fruto de evoluções e


desenvolvimentos pelos quais passaram quase todas as civilizações atuais, um dado é
claro: o fenômeno religioso, mais do que nunca continua vivo, palpitante, mas não do
modo como outrora se conhece. Caminha para uma nova fase, para uma nova
configuração tanto a nível pessoal quanto também a nível social.

Mas, quanto a esse tipo de religião a que Gauchet classifica como sendo “pura”
ela pode ser definida como um modo todo especial que as sociedades tribais
desenvolveram antes do advento do estado e que, algumas, que permaneceram
intocadas pela civilização e espalhadas por muitas áreas geográficas, continuaram sua
trajetória histórica até os dias de hoje. O que mais diferencia estas sociedades
primitivas das sociedades com presença do estado é que um determinado epicentro
de poder não existia na realidade, mas era relegado a uma origem mitológica que, de
modo muito prático, ainda hoje previne a luta por poder entre os homens, pois
contêm em si, a sobrenaturalização absoluta da origem e das normas sociais59.

Segundo Gauchet, a legitimidade da ordem coletiva, isto é, os riscos de conflitos e


guerras não eram de modo algum impedidos, mas, seus riscos eram simplesmente de
antemão desarmados pela garantida que o mito lhes transmitia.

Nada de divisão quanto ao sentido, o inquestionável socialmente instituído: tal é o


religioso puro. [...] Pois, na tensão racional que daí resulta, produz-se necessariamente
o que o dispositivo primeiro tem por função excluir, a saber, a oscilação ou o
questionamento em ato da regra comum e de seu caráter legítimo. [...] A instalação
numa dependência radical em direção à origem sobrenatural vale a inclusão estreita
no mundo natural, e esta, seria necessário mostra-lo, entabula, por sua vez, a

58
Marcel Gauchet, El desencantamento..., p.36.
59
Marcel Gauchet, A democracia…, p.62.
preservação ou a neutralização de tudo o que poderia ser manifestação de uma
atitude de confrontação-transformação em relação ao ambiente material.60

Recusa, recalque ou conjuração de tudo aquilo que, inscrito na máquina, a relação de


homem a homem ou a articulação coletiva, poderia alterar a repetição idêntica dos
trabalhos, dos gestos e dos dias, de tudo o que poderia ameaçar a essencial fidelidade
do que foi desde sempre assim e que se trata de conservar tal qual: é aí, nessa maciça
afirmação de permanência e de intangibilidade, nesse invencível preconceito da
imobilidade, da qual, de resto, uma magra parcela de sentido se preservou até nós,
sob forma de apego ao costume, que reside o núcleo primordial do fenômeno
religião.61

De maneira gráfica, esta parte da história, relativa às sociedades tribais, pode ser
representada da seguinte forma:

SOCIEDADES TRIBAIS

I
60
61
T Gauchet, A democracia…, p.62-63.
Marcel
Idem, p.63.
O
Nessa tentativa de configurar graficamente a realidade destas sociedades percebe-se
que a dimensão religiosa engloba todas as outras dim ensões da vida, ou seja, a
dimensão política e todas as demais dimensões estão a ela subordinadas. É ela, a
dimensão religiosa, quem dava o elã decisivo para que se vivesse uma verdadeira
fraternidade com genuíno espírito de igualdade. É esta a característica mais marcante
das sociedades primitivas que se sobressai em relação à nova configuração que se
estabelecerá com o advento do estado. Segundo Marcel Gauchet:

[...] Pues la religión fue primero una economía general del hecho humano que
estructuraba indisolublemente la vida material, la vida social y la vida mental. De eso
no quedan hoy más que experiencias singulares y sistemas de convicciones, mientras
que la acción sobre las cosas, el vínculo entre los seres y las categorías organizadoras
del intelecto funcionan del hecho, y en todos los casos, en las antípodas de la lógica de
la dependencia que fue su regla constitutiva desde el comienzo. Y es propiamente en
eso en lo que, sin embargo, hemos basculado fuera de la edad de las religiones.62

GRÁFICO: Gauchet_MITO E SOCIEDADES PRIMITIVAS

62
Marcel Gauchet, El desencantamiento del mundo…, p.145.
Como se percebe pelos gráficos acima, nas sociedades primitivas esta dívida de sentido
para com o exterior mitologizado é mobilizada ao serviço da retenção do poder no seio
da sociedade. A religião neste estágio não chega a ser uma instituição. Como afirma
Gauchet, certo é que, a religião:

[...]é sempre instituída [...] como corpo de crenças coletivamente ordenadas e


aparelho de ritos estritamente fixados e codificados. [...] No mínimo, subentende-se
sempre que, a essência natural da religião é o constrangimento. [...] É o seu
encerramento “autístico” original no interior das suas quimeras e das suas fabulações
que as suas construções mitológicas exprimem.

Segundo Marcel Gauchet, deve-se acrescentar, – ao menos, a título de observação –


que as diferentes sociedades humanas ao longo de toda a sua trajetória histórica se
dedicaram a reprimir metodicamente este dado irrefutável, a encobri-lo ou a contê-lo
por demais eficazmente. Para ele:

[...] La esencia primitiva del hecho religioso está toda ella dispuesta contra la historia.
La religión en estado puro se recoge en esa división de los tiempos, que sitúa al
presente en absoluta dependencia respecto al pasado mítico y que garantiza la
inmutable fidelidad del conjunto de las actividades humanas a su verdad inaugural, al
mismo tiempo que forma la desposesión sin apelación de los actores humanos frente a
lo que confiere materialidad y sentido a los hechos y gestos de su existencia. Co-
presencia en el origen y disyunción del momento originario; conformidad exacta,
constante, con lo que fue de una vez por todas fundado, y separación del fundamento:
en la articulación de este conservadurismo radical tenemos a la vez la clave de la
relación con la sociedad y el secreto de la naturaleza de lo religioso.63(o grifo é
pessoal)

Em poucas linhas Marcel Gauchet resume o que foi e ainda é realidade em muitas
sociedades ditas “indígenas”, isto é, a realidade da dimensão religiosa totalmente
desvencilhada da presença e da ação do estado sobre ela. Para as sociedades
primitivas ou tribais é na referência ao mito originário e fundante que está o
verdadeiro sentido da vida em sociedade. Ele se torna desse modo a chave que
mantêm unidas num mesmo espírito e sentimento de igualdade política uma grande
quantidade de sociedades tribais.

Seguindo o pensamento de Marcel Gauchet, é no marco de uma antropologia


fundamental que remontamos às primeiras estruturas que produzem a sociedade para
compreender a razão de ser e o ponto de aplicação de um ato sociológico como o que
consiste em conjurar a dominação política colocando contra ela a despossessão
religiosa. Com razão ele diz:

En la medida en que el espacio social está previamente organizado, provisto de


identidad, por una oposición interna que funda la universal potencialidad de la
separación del poder, es posible una elección y un sentido a su realización; elección
que no anula la polaridad poder-sociedad, como pone de manifestó un análisis fino de
las funciones atribuidas a esa jefatura confinada en la palabra y el prestigio, pero
neutralizada gracias a la división respecto al pasado, absoluto e próximo a la vez, de
los héroes instauradores. Lo relevante e enigmático sigue siendo todavía el partido de
la auto negación, del inconsciente y sistemático rechazo a asumir las dimensiones
constituyentes del hecho humano-social, al que parece que el hombre fue
primitivamente destinado.

Claude Lévi-Strauss em seu livro O pensamento selvagem mostra com certo relevo que
a religião em seu estado primeiro e puro implica na decisão de fundir-se com ela,
porém, por outra parte, não sem o desenvolvimento dessa extraordinária atividade
ordenadora do pensamento selvagem e na que podemos reconhecer como o papel do
chefe selvagem se encontra a necessidade primordial do poder que, pesando a todos
subsiste desse cara-a-cara com o mundo domesticado ou desarmado.64

63
Marcel Gauchet, El desencantamento..., p.38.
64
Marcel Gauchet, El desencantamento..., p.40.
Marcel Gauchet concorda com Louis Dumont, que reconhecendo num determinado
modelo de sociedade, que ele chama de “holista”, em função da teoria de que o todo
tem primado sobre as partes, por oposição a um modelo individualista, quando afirma
que o modelo “holista”, reconhecido por Dumont, corresponde exatamente, na
história, ao tempo das sociedades primitivas ou tribais, que podemos chamar de
religiosas, em função, não tanto da crença de seus membros, quanto de sua
articulação efetiva em torno do primado do religioso.65

O que se pode intuir desse fato é a noção do religioso formatando a vida das
sociedades primitivas nas suas diferentes dimensões.

Mas, a religião, que Marcel Gauchet classifica como pura tem seu lado negativo, pois
representa o máximo da alienação política, pois numa perspectiva ad intra, tudo é
definido de antemão pelo mito, não existe a mínima chance de uma evolução
histórica. Tudo de certa forma já está preventivamente definido e ordenado pelo mito.
Assim, a história de uma sociedade primitiva segue seu curso natural sem nenhuma
perspectiva de transformação.

Desse modo, como teria surgido o estado em sua forma embrionária, se todas as
sociedades estavam como que dominadas pelo mito? Quais os fatores que teriam
levado uma primeira sociedade a mudar de direção, a não se comportar como as
demais? Será que a iniciativa de mudança teria partido de alguém ligado mais
diretamente ao trabalho religioso dentro da tribo? Poderia ter sido um chefe, a
princípio sem poder, que apesar das restrições impostas pelo mito, assim mesmo,
devido ao prestígio alcançado junto aos demais membros da sociedade tribal,
conseguiu legitimar-se como um chefe com poder? Talvez tenha sido um chefe
guerreiro, que após uma grande vitória impôs-se como chefe com poderes absolutos?

1.1.2 – A religião na fase da ascensão do estado.

Antes de fazer uma explanação de como a religião se integrou dentro da nova


configuração social, isto é, na presença do Estado, se faz necessário mostrar por que
caminhos e de que forma a sociedade primitiva foi se adaptando ao Estado e, nesse
sentido, que lugar ocupou a religião.

Iniciando com um questionamento feito por Gauchet desenvolvo este tópico tentando
responder a esta questão: “representará o aparecimento do Estado um corte
absoluto no tempo humano? O advento dum poder separado representará uma
criação radical, uma invenção ex nihilo na história das sociedades?”66

Como pode ser visto no item anterior, a religião, através de seus mitos e ritos,
desautorizava quem quer que fosse a tomar posse em definitivo do poder e exercê-lo

65
Idem, p.41.
66
Marcel Gauchet, Guerra, religião, poder..., p.52.
de forma coercitiva. A força do religioso no imaginário da sociedade era tão grande
forte e tão presente que “a interpretação que o fenômeno religioso parece autorizar”
nos leva a dizer que não. O Estado, conforme postula Gauchet, é uma nova fase de
uma separação que despontava no horizonte das sociedades e “à qual não se vê que
outro estatuto se possa dar que o da condição da possibilidade desse mesmo fato
social”.67

À luz desta afirmação, Gauchet não pretende de forma alguma, minimizar a


ruptura que representou o surgimento de classes sociais distintas dentro de um
mesmo corpo social. O surgimento de determinadas “relações de poder” está
necessariamente atrelado à questão do surgimento do Estado. Nesse sentido, Ganchet
se questiona:

Esta dissimetria entre senhores e súditos, esta distância instaurada entre governantes
e governados, esta privação da comunidade em proveito dum poder que se separa
dela, terão saído do nada? Não terão elas qualquer espécie de equivalência, de
correspondência, de embrião mesmo oculto nas sociedades precedentes?68

De fato, houve uma primeira sujeição e destituição – ao poder do mito pelo


viés religioso, que impedia qualquer tipo de divisão no seio da sociedade – que agora é
como que transfigurada e tornada presente através da figura do Estado. A ordem
interna que havia era toda referenciada a esse poder externo. Isso significa que a
“exterioridade do fundamento social preexiste ao Estado”.

O Estado é inovador na forma claramente aberta que confere à divisão da sociedade,


na alteridade que transporta para o interior da comunidade dos homens até leva-los a
pensarem-se duma natureza diferente consoante dirigem ou se submetem, introduz
um tal corte na maneira como os indivíduos se reconhecem uns aos outros dentro do
mesmo espaço que dá a impressão duma invenção sem precedente. O Estado é, com
efeito, um outro sentido do homem: a diferenciação dos homens uns para com os
outros em função da divisão autoridade/obediência. Todavia esta alteridade que ele
injeta no tecido social não a extrai de sua própria substância. Ela já existia. Somente a
faz refluir para dentro da sociedade quando, até então, ela comandava a relação da
sociedade do seu exterior. E se o Estado foi possível, deveu-se isso a que já preexistia
esse misterioso imperativo para a sociedade de se ler sob o signo da dívida. É
necessário, pois procurar a origem do Estado muito para além do momento estrito da
ruptura da unidade social sob o golpe da separação de uma sede única de poder:

67
Idem, ibdem.
68
Marcel Gauchet, Guerra, religião..., p.53.
naquilo que pode constituir a sua necessidade de heteronomia, necessidade que
persegue a associação dos homens desde o princípio.69

Como elucida o próprio Gauchet, o que se depreende dessas afirmações é o


fato de que temos diante de nós dois sistemas, “que representam dois modos
heterogêneos de assumirem e de gerarem as mesmas articulações primordiais que
fazem muito simplesmente com que exista uma sociedade”.70

Nesse sentido, a religião que por milênios vinha cumprindo uma função
orquestradora da ordem e, principalmente, da igualdade entre os membros dentro da
sociedade, passa a cumprir nesta nova fase – estatal – uma função legitimadora de
uma nova ordem que já não necessita mais se reportar ao mito exteriorizado como
fonte de poder, mas o poder é interiorizado, ficando a cargo de uma pessoa ou mais
fazer uso e fruto desse poder.

Apesar de estar consciente de que o Estado trouxe mais dor, tristeza e


sofrimento do que justiça, paz e igualdade às sociedades onde ele se implantou,
concordo com Gauchet quando afirma que:

Entre estas diferentes rupturas la más importante, por lo demás, es sin duda la
primera. El nacimiento del Estado es el acontecimiento que parte la historia en dos y
hace entrar a las sociedades humanas en una época enteramente nueva: las hace
entrar precisamente en la historia.71

Sim, fantástica visão e percepção de Gauchet quando vê no fenômeno religioso


presente nas sociedades primitivas um verdadeiro paradoxo: por um lado a religião se
torna fonte de uma legítima igualdade entre todos os membros da comunidade, não
permitindo que ninguém se sentisse no direito de assumir um poder político frente à
comunidade, mas por outro, coloca todos os membros numa situação de grande
imobilidade histórica, de intangibilidade frente às coisas de antemão estabelecidas,
portanto, numa “disposição teórica contra a história”72.

Mas, por mais rigoroso que tenha sido o conservadorismo das sociedades
primitivas, nada nem ninguém impediu, que algumas sociedades, respondessem ao
impulso de se transformarem continuamente; tampouco refreou o espírito de
invenção de seus membros; como prova os imensos êxitos do período Neolítico. Mas a
grande novidade é que ali, onde intervêm mecanismos de neutralização tendentes a

69
Idem, p.54.
70
Marcel Gauchet, A dívida do sentido..., p.54
71
Marcel Gauchet, El desencantamiento del mundo..., p.51.
72
Idem, p.51.
colocar o marco social ao abrigo das relações sociais entre indivíduos e grupos, o
advento da dominação política, estabelece ao contrário, objetivamente, no coração do
processo coletivo a confrontação sobre o sentido e a legitimidade do conjunto social. 73

Assim, mediante a aparição do Estado, como observa Gauchet:

[...] lo Otro religioso vuelve a entrar en la esfera humana. Conservando por completo,
naturalmente, su exterioridad respecto a ella, allí penetra y se materializa. En
resumen, la ruptura religiosa entre los hombres y sus orígenes se daba antaño de
manera que previniera el surgimiento de una división entre ellos. Con la emergencia de
un aparato de dominación pasa entre ellos, por medio, y separa a unos de otros.
Dominadores e dominados, los que están del lado de los dioses y los que no lo están.
*…+ En todos los casos – el capital –, hay refracción de la alteridad divina en el interior
del espacio social, concreción de lo extra-humano en la economía del vínculo
interhumano.74

Como pode ser comprovado existe uma infinidade de trabalhos que mostram
que o desenrolar desse fenômeno assumiu diferentes e variadas formas no seu
processo de desenvolvimento.75 Desde a figura do déspota que encarna a figura do
deus-vivente até as sociedades cujos templos encarnam a presença da própria
divindade, mas sempre com muitos servidores e porta-vozes devidamente
credenciados.

A grande novidade em relação às sociedades primitivas é o fato capital de que


há uma profunda refração da alteridade divina. Nas sociedades primitivas há o máximo
de alteridade divina, enquanto nas sociedades que fizeram a passagem para o modelo
estatal há um mínimo de alteridade divina. Há como que um empowerment de um ou
mais seres humanos no sentido de um endeusamento ou de uma sacralização. Os
templos são transformados em espaços extremamente sagrados que tendo em
determinados recintos seu acesso proibido ao comum dos mortais.

Como afirma Gauchet, e a história está aí para confirmar o fato, a partir dessa
transformação, instaura-se uma profunda divisão dentro da sociedade, passa a ver
uma:

Investidura de un lugar, de una institución, o de una individualidad, lo esencial es que


desde ahora habrá en el corazón de lo visible y de lo accesible un garante de la otra
parte instituyente; y habrá hombres absolutamente diferentes de sus semejantes, en
la medida en que participan, directa o indirectamente, del invisible fuego sagrado del

73
Idem, p.51-52.
74
Idem, p.52.
75
Ver Marshall Sahlins em pelo menos dois de seus livros: “Ilhas de História” e “Sociedades tribais”.
que se alimenta la existencia colectiva. Los hay que hablan e ordenan en nombre de
los dioses; que tienen el control de los ritos en que renace el sentido original de las
cosas, y en cuya carne se toca literalmente el principio superior que ordena el
mundo.76

Esta presença que poderia ser profundamente benéfica para todo o gênero
humano – pois que se trataria de uma iniciativa do próprio Deus em pessoa – se
mostra terrivelmente opressora e coercitiva. O suposto “poder” delegado aos seus
representantes – avatares del dispositivo que teóricamente ellos inspiran o determinan
–77 são de alguma maneira postos ao alcance e convertidos na prática.

Iluminado pela teoria marxista, Gauchet, – pois para ele, esta teoria preenche
uma lacuna inconveniente na explicação das construções mítico-religiosas, – citando
Maurice Godelier, compartilha que:

Considerado o fraco desenvolvimento de suas técnicas de produção, e apesar das


diferenças importantes do nível de desenvolvimento que existem entre os diversos
modos de produção dos povos primitivos (caçadores, coletores, pescadores,
agricultores), a ação que estes exercem sobre a natureza mantêm-se muito limitada.
Nestas condições daquilo que o homem não controla não pode deixar de aparecer, de
se apresentar espontaneamente à consciência como um domínio de poderes
superiores ao homem – que, ele simultaneamente, tem necessidade de representar,
portanto, de explicar, e de com ele se conciliar, quer dizer de controlar
indiretamente.78

Sejamos justos, a “ciência marxista”, na falta de progressos, ganha cada vez mais em
refinamento de expressão. Assim, explicam-nos na exposição que citamos, que esta
representação do “domínio das causas naturais obscuras, das forças invisíveis que o
homem não controla... como um domínio de poderes superiores ao homem” não se
confunde em si mesma, com a explicação ilusória “da realidade e causalidade na
ordem do mundo” que constitui o coração da concepção mágico-religiosa
propriamente dita.79

É inconcebível que as sociedades cheguem ao ponto de criar os instrumentos lógicos


que os seus agentes empregam. É impensável que as sociedades instaurem, a partir da
estrita necessidade, um modo de pensamento como aquele de que nos dá conta a
explicação religiosa. É impossível que elas tomem o partido da ilusão sem serem
obrigadas rigorosamente a isso de uma maneira ou de outra. Tais são de fato os

76
Marcel Gauchet, El desencantamiento del mundo…, p.52-53.
77
Marcel Gauchet, El desencantamiento del mundo…, p.53.
78
Marcel Gauchet, A dívida do sentido..., p.59.
79
Idem, p.60.
obstáculos que levam a contrariar as serenas certezas dos naturalismos de todos os
gêneros. Não se dirá de um selvagem que ele escolheu a sua maneira de pensar, assim
como não é lícito sustentar que as primeiras sociedades se puderam situar fora do
círculo estreito definido pela necessidade material, física ou intelectual.80

À luz da citação acima e convencido da importância da utilização do método


marxista de análise da história desenvolvido por Karl Marx, ou seja, do “materialismo
histórico”, argumentarei e sustentarei que a passagem de um modelo de organização
social e política como o identificado nas sociedades primitivas para um novo modelo
de organização social, cujo advento do Estado, significou o aparecimento da divisão de
classes e uma profunda desagregação de sua cultura e organização. As causas devem
ser procuradas, não tanto no mundo espiritual ou intelectual, mas, principalmente, no
mundo material, isto é, nas contradições que o novo “modo de produção” adotado faz
repercutir nas relações sociais que se estabelecem. Portanto, a questão econômica
não é somente essencial na compreensão das transformações sociais e políticas, é
questão chave, pois como infraestrutura que da sustentação as demais estruturas
presentes na sociedade – compondo assim a superestrutura –, ela é e sempre será
determinante em última instância como forma de organização social.

E como ficará evidenciado, a religião continuará ocupando uma dimensão de


destaque dentro da nova configuração social, ou seja, dentro do novo modo de
produção. Ela desempenhará uma nítida função ideológica, que é outro importante
conceito desenvolvido por Marx, no sentido de justificar e legitimar a nova ordem
estabelecida. O que poderia ser encarado apenas como um dado natural, isto é, como
um quadro social em evolução ou como desenvolvimento sócio-político de uma
sociedade, é sobrenaturalizado, isto é, avalizado como sendo de origem e vontade
divina.

Começando por uma citação do próprio Marx que se encontra na sua


Contribuição à Crítica da Economia Política:

O resultado geral a que cheguei e que, uma vez obtido, serviu de fio condutor aos
meus estudos, pode resumir-se assim: na produção social da sua vida, os homens
contraem determinadas relações necessárias e independentes de sua vontade,
relações de produção que correspondem a uma determinada fase de desenvolvimento
das suas forças produtivas materiais.81

80
Idem, p.61.
81
Karl Marx, Uma contribuição para a crítica da economia política. Texto acessado em 03/07/2012 em
http://cursohumanidades.files.wordpress.com/2010/02/curso-marxismo-aula-o-conceito-de-modo-de-
producao-texto-indicado-marx-prefacio-critica-da-economia-politica.pdf, p.2.
Nesse sentido, Marx afirma que diante da necessidade de produção e reprodução da
vida material, ou seja, da conquista dos gêneros necessários à manutenção da própria
vida, tais como: roupas e alimentos, faz com que os seres humanos estabeleçam
relações entre si. Em verdade, são relações “independentes de sua vontade”, porque
elas nascem num determinado momento e numa determinada formação social, na
qual essas relações já estão constituídas, não sendo, portanto, objeto de sua escolha.

Portanto, as relações sociais de produção estabelecidas numa determinada


sociedade, tornam-se relações de toda a sociedade, que são agrupados em
determinados lugares sociais específicos (os grupos sociais). Desse modo, são os
grupos sociais dominantes que determinam as diferentes classes sociais e, por
conseguinte, a devida inserção desses indivíduos nessas relações de acordo com seu
pertencimento de classe, ou seja, ocupando um lugar e desempenhando um papel
específico no processo produtivo.

Evidentemente, como se pode concluir, essas relações de produção tem uma


estreita ligação com o desenvolvimento das forças produtivas. Ao mesmo tempo em
que as forças produtivas delimitam as possibilidades das relações de produção, elas
tem certo ritmo de desenvolvimento relacionado às necessidades e características
próprias dessas relações de produção.

O conjunto dessas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a


base real sobre a qual se levanta a superestrutura jurídica e política e à qual
correspondem determinadas formas de consciência social.

O modo de produção da vida material condiciona o processo da vida social, política e


espiritual em geral. Não é a consciência do homem que determina o seu ser, mas, pelo
contrário, o seu ser social é que determina a sua consciência. [...] é necessário explicar
esta consciência pelas contradições da vida material, pelo conflito existente entre as
forças produtivas sociais e as relações de produção.82

O que Marx quis enfatizar através do conceito de Modo de Produção é que muito mais
importante daquilo que é produzido é o modo como é produzido, é o como a
sociedade se organiza para produzir os bens de que necessita para viver. Desse modo,
compreendemos que o conceito de Modo de Produção não faz uma simples referência
aos bens materiais, mas, como conceito absolutamente teórico que “abrange a
totalidade da sociedade, ou seja, tanto a estrutura econômica como todos os outros
níveis sociais, o jurídico-político e o ideológico”.

82
Karl Marx, Uma contribuição para a crítica da economia política. Texto acessado em 03/07/2012 em
http://cursohumanidades.files.wordpress.com/2010/02/curso-marxismo-aula-o-conceito-de-modo-de-
producao-texto-indicado-marx-prefacio-critica-da-economia-politica.pdf, p.3.
Como salienta Marx, é necessário que se compreenda que as relações que se
estabelecem em função da produção dos bens necessários à vida se constituem no
aspecto central do conceito de modo de produção. Produção e reprodução, dois lados
de uma mesma moeda, ou seja, de um dado modo de produção.

Essas relações sociais que se estabelecem entre todos os membros da sociedade, são
relações sociais de produção que sempre corresponderão a um “determinado estágio
de desenvolvimento das forças produtivas” isto é, do tipo do modo de produção em
vigor, que, ao mesmo tempo determinam seu próprio desenvolvimento.

No tocante à questão da complexidade do modo de produção, as relações sociais de


produção ocorrem debaixo de uma estrutura jurídico-política (forma de Estado,
sistema jurídico, conjunto de leis, aparelho repressivo) que tem por papel legitimar e
garantir a reprodução do modo de produção, ou seja, dar possibilidade constante das
condições necessárias para sua continuidade, inclusive frustrando a organização
política das classes antagônicas. Também a estrutura ideológica tem o papel de gerar
representações das próprias práticas e da inserção dos grupos e dos indivíduos nessas
práticas, no sentido de tornar essas relações viáveis aos olhos das classes, permitindo
assim a coesão social, a resignação e a possibilidade de a classe dominante exercer
plenamente sua dominância.

Isto nos leva à conclusão de que todo modo de produção é determinado por diferentes
estruturas dentre as quais se destacam: a estrutura jurídico-política, a estrutura
ideológica e a estrutura econômica, que é sempre a estrutura que tudo determina em
última instância. Mas isto não quer dizer que a estrutura econômica seja sempre a
estrutura dominante. Pode acontecer de outra estrutura ser a estrutura dominante.
Por exemplo, como será demonstrado na segunda parte desta tese, o Judaísmo
marcado profundamente pela realidade do segundo templo teve como estrutura
dominante a estrutura religiosa.

Desse modo pode-se afirmar que um modo de produção irá sempre depender da
análise do modo como as estruturas se articulam, mas sem se esquecer de que é a
estrutura econômica que em última instância será sempre a estrutura determinante.

Nesse sentido, pode-se concluir que a caracterização de um modo de produção


depende do reconhecimento de como as relações sociais de produção são
reproduzidas, ou seja, quais as determinações da permanência contínua da
reprodução do modo de produção, o que nos leva, necessariamente, a ter que
desvendar: quais são as características essenciais dessas relações sociais de produção;
como estão distribuídos os meios de produção propriedade dos meios de produção);
como se dá a apropriação do que é produzido; como estão dispostos as pessoas nessas
relações sociais de produção (as classes sociais); a forma de Estado e de todo o
aparelho jurídico-político derivado dessas relações e essenciais para a reprodução,
bem como as representações ideológicas que permitem até certo ponto a coesão
social.

Se a caracterização do modo de produção está estreitamente ligada ao


reconhecimento de como as relações sociais de produção são reproduzidas, isto
implica sempre em perguntar: quais são os mecanismos que determinam a
permanência de um determinado modo de produção?

No caso do Judaísmo, como poderá ser verificado, a permanência continua da


reprodução foi garantida, não só pela articulação e interação das diferentes estruturas
que compunham o seu sistema sócio-político, mas porque as relações sociais de
produção estavam ancoradas num sólido sistema jurídico, de caráter nitidamente
religioso. Isto se deve a uma perversa estratégiautilizada pelos escribas que se
aproveitando do valor e da influência que a divindade ocupava no imaginário da
sociedade, construíram uma longa história, cujo aparato jurídico garantia a reprodução
do sistema, ou seja, do modo de produção estabelecido.

Quanto ao modo de produção e quanto às relações sociais por ele estabelecidas por
estratégia e influência da classe sacerdotal jerusolimitana em toda a província de Judá,
posteriormente designado pelo conceito de judaísmo, pode ser caracterizado como
sendo um modo de produção tributarista.

Sua grande força e poder de aceitação estava no fato de que o referencial absoluto e
supremo de tudo estava numa divindade na qual eles acreditavam e cultuavam na
esperança de sempre poder reverter determinadas situações adversas.

Este modo de produção que se convencionou chamar de judaísmo repeoduzia-se


socialmente na forma de sansões e penalizações, tanto morais quanto materiais.
Devido à grande força que exercia no imaginário da sociedade judaíta obrigava
moralmente ao infrator a remissão de sua falta ou culpa, mediante o pagamento em
espécie através de ofertas e sacrifícios de diferentes gêneros alimentícios, pois do
contrário, estariam sob o peso de uma grande e terrível maldição divina. Por exemplo,
a lei sobre a impureza contraída pelas mulheres na época de sua menstruação no livro
do Levítico (Lv .....), revela uma tremenda ignorância e falta de bom senso biológico e
antropológico da divindade, pois a lei é promulgada como sendo ditada da parte do
próprio “deus”. Esse absurdo nos leva a uma quase que total descaracterização dos
textos como sendo de origem divina, pois, como poderá ser constatado, assim como
esta lei, existem tantas outras que feriram e ferem frontalmente, ainda hoje, a
dignidade humana no tocante às relações de gênero.83

83
Assim como esta suposta lei de origem divina, sobre a menstruação da mulher, existem outras tantas
leis, que se desdobraram numa minúcia de regras que tornaram a vida daquela gente impossível de ser
vivida. É a tal da casuística judaica que está presente na Mishna.
Portanto, ao destacar o judaísmo como um caso concreto estou saindo de um campo
abstrato, pois como afirma Nicos Poulanntzas:

O modo de produção constitui um objeto abstrato-formal que, no sentido rigoroso do


termo, não existe na realidade. Os modos de produção capitalista, feudal, escravagista,
constituem objetos abstratos-formais, visto também não possuírem essa existência. De
fato, existe apenas uma formação social historicamente determinada, isto é, um todo
social – no sentido mais vasto – num dado momento de sua existência histórica.84

Sendo assim, Etienne Balibar elenca quais são os elementos essenciais a todos os
modos de produção:

Podemos, pois, finalmente traçar os quadros dos elementos de qualquer modo de


produção, invariante da análise das formas:

1 – trabalhador

2 – Meios de Produção

1. Objeto de trabalho

2. Meio de trabalho

3 – Não Trabalhador

A. Relação de propriedade

B. Relação de apropriação real ou material85

Deste modo, Poulanntzas tira uma conclusão muito apropriada, quando diz que, se os
modos de produção se constituem em objetos abstrato-formais, as formações sociais
são objetos reais-concretos e, além disso, originais porque sempre são singulares.86

Portanto, dentro do próprio judaísmo, que tinha uma formação social bem concreta e
específica, podia-se encontrar mais de um modo de produção num determinado
momento, embora se saiba, com certeza, que um determinado modo de produção,
sempre exercerá o papel dominante.

Mas cabe aqui um destaque especial sobre o conceito de ideologia, pois como Marx
salienta, a ideologia possui uma importante função dentro da superestrutura, que no
84
Nicos Poulanntzas, Poder político e classes sociais, Porto, Portucalense, 1971, p.8.
85
Etienne Balibar, “Sobre os conceitos fundamentais do materialismo histórico” em Étienne Balibar,
Louis Althusser, Roger Establet, Ler o capital, Volume II, Rio de janeiro, Zahar Editores, 1980, p.153-274.
86
Nicos Poulanntzas, Poder político..., p.9.
caso do judaísmo teve um aspecto muito relevante, pois como será demonstrado, era
a dimensão religiosa que, enquanto estrutura dominante, organizava e legitimava o
modo de produção vigente.

Nascida como conceito, o termo aparece pela primeira vez em 1801 no livro de Destutt
de Tracy – Elementos de Ideologia –, pretendendo ser uma ciência do mundo das
ideias. Mas foi com Napoleão que o termo ideologia ganhou um sentido pejorativo.
Num discurso ao Conselho de Estado em 1812, ele declarou:

Todas as desgraças que afligem nossa bela França devem ser atribuídas à ideologia,
essa tenebrosa metafísica que, buscando com sutileza as causas primeiras, quer fundar
sobre suas bases a legislação dos povos, em vez de adaptar as leis ao conhecimento do
coração humano e às lições da história87.

Diferentemente da compreensão que Napoleão Bonaparte deu ao termo ideologia, o


Augusto Comte e Émile Durkheim deram uma conotação próxima do seu significado
original. Para Comte, seguindo os princípios do positivismo por ele fundado, ideologia
consistiria numa explicação das três supostas fases pelas quais o espírito humano está
atravessando ao longo da história. Consistindo numa teoria, passa a ter voz de
comando sobre a prática da sociedade, que deve obedecer a todas as normas e
preceitos teóricos antes de agirem. Para Durkheim, ideologia é uma postura em
relação ao fato social que deve ser encarado como coisa observável, e que desprovida
de interioridade, isto é, de subjetividade, permite que o observador – sociólogo –
encare estes mesmos fatos, da qual participa, como se não fizesse parte dela. Esta é a
regra fundamental, segundo Durkheim, da objetividade científica: total separação
entre o sujeito do conhecimento e o objeto do conhecimento. Isso implica na
neutralidade do observador. Portanto, ideologia é todo conhecimento que não
respeita esses critérios.88

Segundo Raymond Boudon, o conceito de ideologia “designa um capítulo das ciências


sociais cuja existência e importância ninguém coloca em dúvida”89. Este autor faz uma
interessante divisão quanto ao posicionamento alguns pensadores atuais no que diz
respeito ao significado do conceito de ideologia. Conforme tabela abaixo é possível
perceber algumas destas discrepâncias:

Tipos de definição da

87
Marilena de Souza Chaui, O que é ideologia, 19ª Edição, São Paulo, Editora Brasiliense S.A., 1980, p.22-
24.
88
Marilena de Souza Chaui, O que é ideologia..., p.25-31
89
Raymond Boudon, A ideologia ou a origem das ideias recebidas, São Paulo, Editora Ática S.A., 1989,
p.27
ideologia

Tipos de tradição Referidos ao critério de Não referidos ao critério


verdadeiro e falso de verdadeiro e falso

Marx Lênin

Tradição Marxista A ideologia como ciência A ideologia como arma na


falsa. luta de classes.

Althusser

Os teóricos da consciência- A ideologia, atmosfera


reflexo. indispensável à respiração
social.

Aron Geertz

A ideologia não advindo A ideologia como ação


diretamente, mas simbólica.
indiretamente do
verdadeiro e do falso.

Tradição não-marxista
Parsons
Shils
A ideologia, desvio em
relação à objetividade A ideologia, tipo particular
científica. de sistema de crenças.

Tabela90

Mas, confuso mesmo, é quanto à definição da noção de ideologia, pois a questão


central está em se afirmar se é ou não necessário definir ideologia em relação ao
critério da verdade e do erro? Apesar de Raymond Boudon pensar que uma definição
não possa ser demonstrada, penso, particularmente, que no tocante ao judaísmo, a
definição de ideologia segundo a tradição marxista se adapta muito bem, pois neste

90
Raymond Boudon, A ideologia…, p.32-33
caso concreto – do judaísmo – os pressupostos teóricos da tradição marxista são
preenchidos adequadamente.91

Apesar de não poder generalizar-se nenhuma das teorias a respeito do significado de


ideologia, se temos alguns princípios e valores que servem como elementos
norteadores na busca do bem e da justiça, da paz e da segurança de todos sem
nenhum tipo de distinção, seja de classe ou de cor, intelectual ou de gênero, a tradição
marxista nos oferece um excelente instrumental teórico para fazermos esta
aproximação ás diferente situações sociais. Vejamos.

Foi Karl Marx e, posteriormente, a própria tradição marxista, que aprofundando o


sentido pejorativo dado por Napoleão, quem desenvolveu ainda mais este conceito.
Em A ideologia Alemã, Marx desenvolve a construção do termo dentro do conceito
mais amplo do modo de produção, como já visto anteriormente.

Marx depois de fundamentar sua visão de desenvolvimento histórico com base em


três condições ou aspectos da atividade social, inicia uma reflexão, que serve como
fundamento para o estabelecimento do conceito de ideologia como estrutura
legitimadora de uma determinada ordem vigente no interior da sociedade, que
privilegia e justifica o domínio da classe social dominante. A reflexão de Marx tem
como ponto de partida o esforço que fazemos para “produzirmos vida”. Para que isto
aconteça, somos instados a desenvolvermos relações em dois níveis: no nível natural e
no nível social. Segundo Marx, o nível de relação social implica o sentido de
cooperação que se estabelece entre os indivíduos, quaisquer que sejam as condições,
o modo e a finalidade.

Donde se segue que um determinado modo de produção ou uma determinada fase


industrial estão constantemente ligados a um determinado modo de cooperação e a
uma fase social determinada, e que tal modo de cooperação é, ele próprio, uma “força
produtiva”; segue-se igualmente que a soma de forças produtivas acessíveis aos
homens condiciona o estado social e que, por conseguinte, a “história da humanidade”
deve sempre ser estudada e elaborada em conexão com a história da indústria e das
trocas.92

Esta “história da humanidade” implica que também ela deva ser vista sob o prisma ou
pelo viés da “história das trocas” que tem no judaísmo um exemplo bem concreto do
que vem a ser uma ideologia.

No caso do judaísmo a “história das trocas” é muito ilustrativa em relação ao conceito


de ideologia desenvolvido por Marx. No judaísmo ela operou no sentido de baixo para

91
Raymond Boudon, A ideologia…, p.33-34.
92
Karl Marx, Friedrich Engels, A ideologia Alemã: I - Feuerbach, São Paulo, Editora Hucitec, 1999, p.42.
cima, ou seja, do campesinato – classe social inferiorizada – para a classe sacerdotal –
classe superior dominante. Enquanto o pauperizado campesinato era moralmente
obrigado, por dever de consciência, ou por sua pobreza ou por ter cometido alguma
transgressão da lei deveria oferecer a Deus bens materiais reais e concretos de
diferentes tipos e gêneros, para em troca, receber por intermédio dos sacerdotes, o
perdão de Deus, invisível e abstrato.

Tendo plena “consciência” de que para “produzir a vida” o ser humano precisa,
necessariamente, estar em relação com os demais, Marx vê desde o início que a
“consciência” que o ser humano tem desta necessidade é um produto social, pois
nasce da percepção socializante da consciência.93

Outro fator que ajuda a compreender todo o alcance de uma ideologia está no fato da
atenção que Marx dá à “divisão do trabalho”. Para ele:

A divisão do trabalho torna-se realmente divisão apenas a partir do momento em que


surge uma divisão entre o trabalho material e o espiritual. A partir deste momento, a
consciência pode realmente imaginar ser algo diferente da consciência da práxis
existente, representar realmente algo sem representar algo real; desde este instante, a
consciência está em condições de emancipar-se do mundo e entregar-se à criação da
teoria, da teologia, da filosofia, da moral etc., “puras”. Mas ainda que esta teoria, esta
teologia, esta filosofia e esta moral etc. entrem em contradição com as relações
existentes, isso só pode acontecer porque as relações sociais existentes se encontram
em contradição com as forças de produção existentes.94

Conforme nota marginal feita pelo próprio Marx em referência à citação acima, que diz
que a primeira forma dos ideólogos nasceu com o advento dos sacerdotes, que como
poderá ser constatado na segunda parte, no caso do judaísmo, como exemplo de um
caso muito particular de divisão do trabalho onde se fez necessário, justamente, o
recurso à utilização de uma ideologia como forma de justificação e legitimação de uma
nova ordem social, ou seja, possibilitou a ascensão de uma nova classe como grupo
social dominante.

Pierre Bourdieu tem uma posição muito similar à de Marx quando afirma que:

Os sistemas ideológicos que os especialistas produzem para a luta pelo monopólio da


produção ideológica legítima – e por meio dessa luta –, sendo instrumentos de
dominação estruturantes pois que estão estruturados, reproduzem sob forma

93
Karl Marx, Friedrich Engels, A ideologia Alemã..., p.43-44.
94
Idem, p.44-45.
irreconhecível, por intermédio da homologia entre o campo de produção ideológica e
o campo das classes sociais, a estrutura do campo das classes sociais.95

Para Bourdieu os “sistemas simbólicos” que são sempre produzidos por um “corpo de
especialistas” que tem como objetivo a aquisição do poder, ou melhor, do “poder
simbólico” que reside, não em forma de “illocutionary force”, mas que se define numa
relação determinada – e por meio desta – entre os que exercem o poder e os que lhe
estão sujeitos. E na sequência do desenvolvimento de sua teoria, como forma de
justificação, Bourdieu faz uma afirmação onde relaciona o conceito de ideologia ao
campo religioso: ideologia consistiria na transformação do mito em religião 96, pois esta
está intrinsecamente ligada à constituição desse corpo de especialistas produtores de
discursos e ritos religiosos. Desse modo ele é capaz de criar discursos e ritos, que
garantam a reprodução das relações sociais, justificando e legitimando-as do ponto de
vista divino. Diante disso, vai se processando a divisão da sociedade em diferentes e
bem distinta classes sociais.

O progresso da divisão do trabalho religioso, que é, ele próprio, uma dimensão do


progresso da dimensão do trabalho social, portanto, da divisão em classes e que
conduz, entre outras consequências, a que se desapossem os laicos dos instrumentos
de produção simbólica.97

Desse modo, como poderá se ver na terceira parte desta tese, o campo religioso
dentro do judaísmo se constituiu, a partir da teoria dos campos de Bourdieu, num
“campo autônomo” onde se produziram “formas eufemizadas das lutas econômicas e
políticas entre as classes”, pois como ele mesmo afirma:

[...] é na correspondência de estrutura a estrutura que se realiza a função


propriamente ideológica do discurso dominante, intermediário estruturado e
estruturante que tende a impor a apreensão da ordem estabelecida como natural
(ortodoxia) por meio da imposição mascarada (logo, ignorada como tal) de sistemas de
classificação e de estruturas mentais objetivamente ajustadas às estruturas sociais [...]
O efeito propriamente ideológico consiste precisamente na imposição de sistemas de
classificação políticos sob a aparência legítima de taxonomias filosóficas, religiosas,
jurídicas, etc. Os sistemas simbólicos devem a sua força ao fato de as relações de força

95
Pierre Bourdieu, O Poder simbólico, 5ª Edição, Rio de Janeiro, Editora Bertrand Brasil LTDA, 2002,
p.12.
96
Idem, Ibdem.
97
Idem, p.13.
que neles se exprimem só se manifestarem neles em forma irreconhecível de relações
de sentido (deslocação).98

De fato, a religião dentro do judaísmo foi essa estrutura, que ao lado de outras
estruturas – econômica, política e jurídica – se tornou, porque plenamente estruturada
e estruturante, a estrutura dominante, com força para estruturar todas as demais
estruturas da sociedade. É nesse sentido que poderá se perceber o efeito
propriamente ideológico do discurso religioso, impondo uma classificação e divisão da
sociedade sob a aparência de “legítimas taxonomias”.

No que toca à consciência histórica de cada indivíduo, é ponto pacífico de que o


trabalho dos homens torna-se cada vez mais submetido a um poder que lhe é
estranho, um poder que se torna cada vez maior e que se revela, em última instância,
um poder totalmente estranho.

Para Marx, este tipo de elucidação está ligado à concepção que ele desenvolve da
história, pois esta consistiria em:

[...] Expor o processo real de produção, partindo da produção material da vida


imediata; e em conceber a forma de intercâmbio conectada a este modo de produção
e por ele engendrada (ou seja, a sociedade civil em suas diferentes fases) como o
fundamento de toda a história, apresentando-a em sua ação enquanto Estado e
explicando a partir dela o conjunto dos diversos produtos teóricos e formas de
consciência – religião, filosofia, moral etc.99

O que Marx sugere é que se permaneça no solo da história real para estar em
condições de explicar as formações ideológicas a partir da práxis. Nesse sentido Marx
afirma:

Toda concepção histórica, até o momento, ou tem omitido completamente essa base
real da história, ou a tem considerado como algo secundário, sem qualquer conexão
com o curso da história. Isto faz com que a história deva ser sempre escrita de acordo
com um critério situado fora dela. A produção da vida real aparece como algo
separado da vida comum, como algo extra e supraterrestre. Com isto, a relação dos
homens com a natureza é excluída da história. Consequentemente, tal concepção vê
na história as ações políticas dos príncipes e do Estado, as lutas religiosas e as lutas

98
Pierre Bourdieu, O poder simbólico..., p.14.
99
Karl Marx, Friedrich Engels, A ideologia alemã..., p.55.
teóricas em geral, e vê-se obrigada, especialmente, a compartilhar, em cada época
histórica, a ilusão dessa época.100

É importante notar a afinidade de pensamento entre Marx e Marcel Gauchet quanto


ao fato de não se ter a consciência real da história, isto é, de não se ter a devida visão
das forças que estão sendo colocadas em ação e que, motivados por ideologias, levam
a sociedade a compartilhar de uma mesma ilusão. Para Gauchet o período das
sociedades primitivas é o período caracterizado pelo máximo de alienação política que
ele qualifica como sendo da “crença na ilusão que liberta”. E Marx, fazendo referência
aos alemães, diz que eles:

*...+ se movem na esfera do ‘espírito puro’ e fazem da ilusão religiosa a força motriz da
história [...] Tal concepção é verdadeiramente religiosa; ela postula o homem religioso
como sendo o proto-homem do qual parte toda a história; e, em sua imaginação,
coloca a produção religiosa de fantasias no lugar da produção real dos meios de vida e
da própria vida.101

Desse modo, a libertação que é autoproclamada pelos ideólogos da religião como


sendo de origem divina e, porque não, de origem puramente ideológica, não trará
libertação aos homens como na verdade nunca trouxe. Para Marx, somente é possível
efetuar a libertação real no mundo real através de meios reais, pois:

[...] não é possível libertar os homens enquanto não estiverem em condições de obter
alimentação e bebida, habitação e vestimenta, em qualidade e quantidade adequada.
A “libertação é um ato histórico e não um ato de pensamento, e é efetivamente por
condições históricas [...].102

E avançando mais ainda, no sentido de colocar os devidos fundamentos do conceito de


ideologia, Marx deixa claro que “as ideias da classe dominante”, são em cada época, as
“ideias dominantes”. Nesse sentido:

[...] a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua
força espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios de produção
material dispõe, ao mesmo tempo, dos meios de produção espiritual, o que faz com
que a ela sejam submetidas, ao mesmo tempo e em média, as ideias daqueles aos
quais faltam os meios de produção espiritual. As ideias dominantes nada mais são do
que a expressão do ideal das relações materiais dominantes, as relações materiais

100
Karl Marx, Friedrich Engels, A ideologia alemã..., p.57.
101
Idem, p.58.
102
Idem, p.65.
dominantes concebidas como ideais; portanto, a expressão ideal das relações
materiais dominantes, as relações materiais concebidas como ideias; portanto, a
expressão das relações que tornam uma classe a classe dominante possuem, entre
outras coisas, também consciência e, por isso, pensam; na medida em que dominam
como classe e determinam todo o âmbito de uma época histórica, é evidente que o
façam em toda a sua extensão e, consequentemente, entre outras coisas, dominem
também como pensadores, como produtores de ideias; que regulem a produção e a
distribuição das ideias de seu tempo e que suas ideias sejam, por isso mesmo, as ideias
dominantes da época.103

No caso específico do judaísmo, ver-se-á que a classe religiosa se tornou a classe


dominante, não porque ela detinha a “força material dominante da sociedade”, mas
porque ela deteve a sua “produção espiritual”. Isto foi o que possibilitou desenvolver
sua ideologia de um modo tão bem articulado com as tradições do povo
(campesinato), que estes, não tendo a mínima chance de se opor, foram como que
envolvidos, seduzidos e abduzidos de um tal modo, que a ideologia passou a se
constituir em sua própria identidade.

Como será analisado na segunda parte, aos sacerdotes era proibido possuir terras, mas
conforme um número expressivo de estudiosos, muitos sacerdotes possuíam terras
onde logicamente cultivavam, visando não somente a sua própria subsistência, mas,
principalmente, o comércio.

E Marx, a fim de colocar a base real da ideologia – e aqui está uma das principais
características que qualificam a mudança do modo de produção primitivo para o modo
de produção tributário: a propriedade privada, – faz uma interessante assertiva
quanto a esta questão, afirmando que:

A maior divisão entre o trabalho material e o intelectual é a separação entre a cidade e


o campo. A oposição entre a cidade e o campo começa com a transição da barbárie à
civilização, da organização tribal ao Estado, da localidade à nação, e persiste através de
toda a história da civilização até nossos dias [...]. Com a cidade aparece,
simultaneamente, a necessidade de administração, de polícia, de impostos etc., em
uma palavra, a necessidade da organização comunal e, portanto, da política em geral.
Aqui, manifesta-se pela primeira vez, a divisão da população em duas grandes classes,
divisão que repousa diretamente na divisão do trabalho e nos instrumentos de
produção. A cidade já é o fato da concentração da população, dos instrumentos de
produção, do capital, dos prazeres e das necessidades, ao passo que o campo
evidencia exatamente o fato oposto: o isolamento e a separação. A oposição entre a
cidade e o campo só pode existir nos quadros da propriedade privada. É a expressão

103
Karl Marx, Friedrich Engels, A ideologia alemã..., p.72.
mais crassa da subsunção do indivíduo à divisão do trabalho, à uma determinada
atividade que lhe é imposta – subsunção que converte uns em limitados animais
urbanos e outros em limitados animais rurais, reproduzindo diariamente a oposição
entre os interesses de ambos. O trabalho volta a ser aqui o fundamental, o poder
sobre os indivíduos, e enquanto existir esse poder deve existir a propriedade
privada.104 (grifo em negrito é pessoal)

Mais uma vez, percebe-se que, com que com muita presença de espírito, mas,
principalmente, alicerçado numa base nitidamente empírica, Marx penetra na
verdadeira questão que se torna a base real da ideologia.

Este longo parágrafo, particularmente, é de grande relevância teórica para o


desenvolvimento e justificação do tema, que se constitui no meu objeto de pesquisa:
as relações de poder entre o campesinato judaíta e a classe sacerdotal jerusolimitana.
Campo e cidade, organização tribal e Estado, dominados e dominadores. Tremendo
choque de interesses que estavam em clara contradição, pois como será demonstrado,
a classe sacerdotal só conseguiu legitimar-se no poder, mediante um projeto made in
Persian que eles habilmente souberam implantar.

Ainda, aprofundando um pouco mais esta temática a respeito do significado do


conceito de ideologia, Pierre Bourdieu, que seguindo os passos dados pelo marxismo,
pois segundo ele, “o marxismo nos seus usos sociais mais comuns, constitui,
frequentemente, a forma por excelência, por ser a mais insuspeita, do pré-construído
douto”, desenvolve o conceito afirmando que “o termo ideologia pretende marcar a
ruptura com as representações que os próprios agentes querem dar da sua própria
prática”.105 E ainda, que a “ideologia” (a que seria preferível de futuro dar outro nome)
não aparece e não assume como tal, e é deste desconhecimento que lhe vem a sua
eficácia simbólica.106

Portanto, desconhecendo a realidade que está por trás de todo simbolismo o grupo a
ser dominado passa por um processo de ruptura, isto é, por uma “conversão do olhar”
acompanhado, logicamente, de uma revolução mental, uma mudança de toda a visão
do seu mundo cultural: social, político, econômico e religioso.107

E com relação ao conceito de imaginário social, que está estreitamente ligado à


questão do estatuto da ideologia, Norbert Elias afirma que “o imaginário social é uma
força reguladora da vida coletiva que ao definir lugares e hierarquias, direitos e

104
Karl Marx, Friedrich Engels, A ideologia alemã..., p.77-78.
105
Pierre Bourdieu, O poder simbólico, 5ª Edição, Rio de janeiro, Editora Bertrand Brasil LTDA., 2002,
p.48.
106
Idem, ibdem.
107
Pierre Bourdieu, O poder simbólico..., p.49.
deveres, se constitui num elemento decisivo de controle desta mesma vida, aí incluído
o exercício do poder”.108 De fato, a classe religiosa, que se tornou dominante, teve o
poder de atuar no imaginário do campesinato, isto é, poder de manipular o seu
imaginário. Como afirma Norbert Elias, esse poder de interferir no imaginário de um
determinado grupo social se torna um elemento decisivo de seu controle, pois atuar
no imaginário social de um grupo é como atuar sobre a própria vida desse grupo,
assumindo o seu controle e interferindo nas condições de produção e reprodução de
sua vida. Em última instância, implica numa atuação na base real da vida, na estrutura
econômica da sociedade, ou seja, nas suas relações sociais de produção.

As relações de dominação que se estabelecem pela via da manipulação do imaginário,


pautando-se sobre mecanismos naturais, tornam as forças sociais, logicamente
naturais. Segundo Roger Chartier:

Definir a submissão imposta [a um grupo social] como uma violência simbólica ajuda a
compreender como as relações de dominação – que é uma relação histórica, cultural e
linguisticamente construída – é sempre afirmada como uma diferença de ordem
natural, radical, irredutível, universal.109 (texto entre colchetes é acréscimo pessoal)

Sobre esta questão, na segunda parte, farei as devidas considerações na perspectiva


do judaísmo, que é um excelente caso para que se possa fazer uma análise da
influência que a ideologia exerceu no imaginário coletivo da sociedade israelita.

Segue em modo de resumo um esquema planificado do conceito de ideologia,


desenvolvido a partir do artigo de Mario Stoppino no Dicionário de Política organizado
por Norberto Bobbio.110

108
Citado por Francisco J. Calazans Falcon, “História e representações” em Representações. Contribuição
a um debate transdisciplinar, Campinas, Papirus, 2000, p.53.
109
Citado por Soihet, 2009, p.371 em Cadernos Pagu, Campinas, Núcleo de Estudos de Gêneros /
UNICAMP, 1995, nº 4, p.40-44.
110
Mario Stoppino, “Ideologia” em Norberto Bobbio, Nicola Matteucci, Gianfranco Pasquino, Dicionário
de política, 11ª Edição, Brasília, Editora UnB, 1998, p.587-597.
Esta representação gráfica corresponde ao processo de reprodução da ideologia
dentro de um determinado sistema de crença, seja ele de caráter político, religioso,
econômico e/ou social.

Trabalhando com o conceito de ideologia a partir da noção de falsidade a ideologia


percorre quatro instâncias básicas. Este ciclo se inicia a partir de uma falsa
apresentação, seguindo para um segundo estágio que classifico como sendo o de falsa
consciência, para chegar a um terceiro, denominado pelo termo falsa motivação até
atingir seu último estágio, que consiste na falsa representação.

Por falsa apresentação se entende o primeiro estágio que a ideologia percorre em seu
processo ideológico real. O primeiro de quatro etapas que garantem a reprodução do
sistema. Partindo do pressuposto de que existem diferentes meios pelos quais uma
ideologia pode ser veiculada num determinado contexto social, seja por meio de
discursos ou narrativas, nos mais diversos âmbitos sociais. A falsa apresentação
consiste numa representação exata do sistema dentro do qual diferentes grupos
sociais coexistem pacificamente, onde cada grupo social cumpre seu papel já
previamente determinado, em prol da ordem e eficiência de todo o sistema. Se a
ideologia tem como uma de suas funções ser uma interprete fiel da realidade, nada
mais lógico do que ir sistematicamente moldando imaginário social com valores e
princípios sempre em acordo com os interesses da classe dominante, ou seja, da classe
que está em condições de zelar pela correta manutenção do sistema.

O segundo aspecto que a ideologia percorre dentro desse processo ideológico real, é o
de ser geradora de uma falsa consciência nos agentes sociais. Se como afirma Marx,
“não é a consciência que determina o ser, mas o ser que determina a consciência”, de
fato a realidade das práticas sociais vão como que moldando as consciências dos
indivíduos. Pelo fato de a ideologia ser apresentada de um modo falso, isto é,
corresponder aos interesses de uma determinada classe que domina todas as outras
classes de uma sociedade, consequentemente, será geradora de uma falsa
consciência. Nesse sentido, Marx está coberto de razão, quando afirma que os
interesses da classe dominante sempre permanecem escondidos às classes
subalternizadas sob um véu de valores políticos, morais e religiosos. Aqui está o fulcro
da noção marxista de falsa consciência: uma consciência invertida da verdadeira
realidade.

Na sequência desse ciclo que a ideologia percorre dentro do processo ideológico real,
o terceiro estágio é marcado pela falsa motivação. Segundo Mario Stoppino, este
conceito de falsidade é, de longe, o mais promissor no estudo empírico da política,
pois “muito frequentemente os homens não tem consciência das forças que os
impelem a agir e dão às suas ações causas imaginárias, muito diversas das causas
reais”.111 O que acontece é que a ideologia, atuando no inconsciente dos agentes, os
leva a elaborar motivos conscientemente fictícios para as próprias ações e
comportamentos, permanecendo assim, encobertos, os verdadeiros moventes.

Desse modo, pelo fato de a ideologia ter natureza social, porque diz respeito aos
comportamentos coletivos que se instauram numa relação de poder, como diz
Stoppino:

[...] Esta formulação da específica natureza social da ideologia é claramente uma


generalização do ponto de vista de Marx; porque é exatamente em Marx, mais do que
em Pareto, e, de um modo mais concreto e determinado do que em Nietzsche, que a

111
Mario Stoppino, “Ideologia”..., p.595.
ideologia como falsa motivação se insere explicitamente nas relações de dominação do
homem sobre o homem.112

O que é falso não é o possível juízo de valor aos quais os agentes são submetidos pela
ideologia enquanto tal, mas a sua função de motivação, que no seu processo
ideológico real já possa ter cumprida sua função estruturante que aos poucos vai como
que plasmando e condicionando culturalmente todos os agentes.

E como último estágio, concluindo o processo de reprodução do sistema de crença a


ideologia se configura como uma falsa representação. Nesse sentido, todos os agentes
passam de passivos a ativos reprodutores do sistema de dominação/ subordinação na
qual toda a sociedade está submetida. Por falta de conhecimento de causa, os agentes,
por assim dizer, se tornam os legítimos representantes/reprodutores de tal sistema de
crença. Como atores numa peça teatral são apenas figurantes que garantem e
proporcionam o domínio de uma classe social sobre outra(s) classe(s) social(ais).

Serge Moscovici deu uma grande contribuição ao desenvolver uma teoria da psicologia
social do conhecimento quando desenvolveu o conceito de representação social. Sem
entrar no mérito da verdade ou da falsidade de uma representação social, Moscovici,
em suas incansáveis pesquisas de campo, fundamentou todo seu trabalho no como e
no porque as ideias são transformadas em práticas. Nisto está o problema específico
da psicologia social. Em Social Psychology and Developmental Psychology, Moscovici
afirma:

Há numerosas ciências que estudam a maneira como as pessoas tratam, distribuem e


representam o conhecimento. Mas o estudo de como, e por que, as pessoas partilham
o conhecimento e desse modo constituem sua realidade comum, de como elas
transformam ideias em prática – numa palavra, o poder das ideias – é o problema
específico da psicologia social.113

Questionando-se a respeito do processo que todo conhecimento, desde o instante de


sua geração, passando pela transformação – penso eu, ideológico ou não – até ser
projetado no mundo social, afirma Moscovici, é nisso que a psicologia social está
interessada.

Nesse sentido M. Bauer e G. Gaskel, citados por Gerard Duveen, afirmam que:

112
Idem, ibdem.
113
Citado por Gerad Duveen, “Introdução: o poder das ideias” em Serge Moscovici, Representações
Sociais: investigações em psicologia social, Petrópolis, Editora Vozes, 2003, p.8.
[...] o conhecimento é sempre produzido através da interação e comunicação e sua
expressão está sempre ligada aos interesses humanos que estão nele implicados. O
conhecimento emerge do mundo onde as pessoas se encontram e interagem, do
mundo onde os interesses humanos, necessidades e desejos encontram expressão,
satisfação ou frustração. Em síntese, o conhecimento surge das paixões humanas e,
como tal, nunca é desinteressado; ao contrário, ele é sempre produto dum grupo
específico de pessoas que se encontram em circunstâncias específicas, nas quais elas
estão engajadas em projetos definidos.114

Se todo conhecimento é produzido, conforme afirmam os autores citados


acima, segundo interesses humanos que nele estão implicados, é possível afirmar a
partir desse pressuposto, que esses “interesses humanos” são, na verdade, interesses
de classe. Penso que o que está em jogo no contexto desta tese, é, conforme o próprio
Moscovici pensa, no modo como esse conhecimento é transformado e aplicado ao
âmbito das relações sociais.

Desse modo, como afirma o próprio Moscovici no primeiro capítulo de La


Psychanalyse “Representação social: um conceito perdido”:

As representações sociais são entidades quase tangíveis. Elas circulam, se entrecruzam


e se cristalizam continuamente, através duma palavra, dum gesto, ou duma reunião,
em nosso mundo cotidiano. Elas impregnam a maioria de nossas relações
estabelecidas, os objetos que nós produzimos ou consumimos e as comunicações que
estabelecemos. Nós sabemos que elas correspondem, dum lado, à substância
simbólica que entra na sua elaboração e, por outro lado, à prática específica que
produz essa substância, do mesmo modo como a ciência ou o mito correspondem a
uma prática científica ou mítica.

Mas se a realidade das representações é fácil de ser compreendida, o conceito não o é.


Há muitas boas razões pelas quais isso é assim. Na sua maioria, elas são históricas e é
por isso que nós devemos encarregar os historiadores da tarefa de descobri-las. As
razões não históricas podem todas ser reduzidas a uma única: sua posição “mista”, no
cruzamento entre uma série de conceitos sociológicos e uma série de conceitos
psicológicos. É nessa encruzilhada que temos de nos situar. O caminho, certamente,
pode representar algo pedante quanto a isso, mas nós não podemos ver outra maneira
de libertar tal conceito de seu glorioso passado, de revitaliza-lo e de compreender sua
especificidade.115 (grifo pessoal)

114
Idem, p.8-9.
115
Citado por Gerad Duveen, “Introdução: o poder das ideias” em Serge Moscovici..., p.10.
Se como afirma Moscovici, com relação ao campo em que atuam as
representações sociais, conforme item grifado acima – elas impregnam a maioria de
nossas relações estabelecidas, os objetos que nós produzimos ou consumimos e as
comunicações que estabelecemos – pode-se afirmar com certeza, numa perspectiva
marxista, isto é, no contexto do materialismo histórico, que as representações sociais
são exatamente aquilo que Marx conceituou como: reprodução do modo de produção.

Desse modo, proceder não só a uma verificação da razoabilidade e


racionalidade do conhecimento, além da sua atualidade e pertinência, mas acima de
tudo à sua veracidade, isto é: à época e contexto sócio político em que o
conhecimento foi produzido, o grau de evolução desse conhecimento adquirido, o
estágio ou o grau de desenvolvimento desse conhecimento, são fundamentais para
que se possa verificar a instrumentalização e a aplicabilidade desse conhecimento no
âmbito da sociedade em questão.

Portanto, pode-se dizer que a partir desse diagrama, que se apresenta como
ilustrativo de um processo ideológico real é possível mensurar o alcance e a
complexidade de um sistema de crença seja ele, político ou religioso, econômico ou
social, ou até mesmo, como poderá ser visto com relação ao judaísmo, onde estas
quatro dimensões estão não só presentes, mas intrinsecamente relacionadas umas às
outras.

1.2 – A política (o estado)

Esta fundamentação visa, desde já, colocar as bases e o sentido em que o


conceito será utilizado desde agora. Por ser um termo muito ambíguo, parto aqui de
algumas afirmações do conceito de política que são de todo modo, suficientemente
precisas:

 Uma estrutura presente em um grupo com a função de regular e


coordenar as diversas finalidades e funções de seus membros
(indivíduos ou associados) do grupo, e o modo de funcionar desta
estrutura.

 Atividade encaminhada para determinar os critérios ou valores básicos


de regulamentação da vida global do grupo, as finalidades primárias e
intermediárias que precisam ser procuradas, os instrumentos para a sua
consecução.116 (grifo é pessoal)

116
Luís Lorenzetti , “Poder” em Dicionário de Teologia Moral, São Paulo, Editora Paulus, 1997, p.974.
De fato, o termo “política” como estrutura e atividade, conforme descrição feita acima
reflete o que o próprio Aristóteles já pensava sobre o termo. Norberto Bóbbio traz
interessante resumo a respeito do tema:

Derivado do adjetivo originado de polis (politikós) que significa tudo o que se refere á
cidade e, consequentemente, o que é urbano, civil e público, e até mesmo sociável e
social, o termo Política se expandiu graças à influência da grande obra de Aristóteles,
intitulada Política, que deve ser considerada como o primeiro tratado sobre a
natureza, funções e divisão do Estado, e sobre as várias formas de Governo, com a
significação mais comum de arte ou ciência do governo [...].117

Diferentemente do entendimento que hoje temos do conceito de política


dentro do regime de uma democracia representativa, apenas como forma e meio de
eleger aqueles que aparentemente irão nos representar, ou melhor, irão governar
sobre nós, quero resgatar aqui, este conceito mais amplo e original do termo, que
implica numa participação eficaz com plena consciência crítica, pois se, de fato,
política é uma estrutura que tem a função de regular e coordenar a atividade da pólis
bem como a vida de cada um de seus membros, percebe-se que ao longo de toda a
história diferentes modelos políticos de governo surgiram. Alguns modelos com a
possibilidade de uma maior participação em todos os níveis de decisão, tais como
algumas sociedades primitivas, outros modelos de governo sem a mínima chance de
participação de seus membros.

É justamente isso que será analisado, quando desenvolver o estudo deste caso
particular chamado “judaísmo”. De fato, o que poderemos constatar, foi que esse
projeto tinha uma especificidade singular: era um projeto político-social de caráter
eminentemente religioso. Como veremos o poder dominante, não estava nas mãos de
um rei ou de um chefe político, mas sim, nas mãos do poder religioso jerusolimitano,
que em nome de seu deus, ditou regras e organizou toda a sociedade judaíta segundo
seus critérios, objetivos e interesses pessoais.

Se partirmos aqui do conceito de política, não somente como estrutura, mas


enfatizando a dimensão da atividade, isto é, como práxis humana, notamos que este
conceito tem uma ligação muito estreita com o conceito de poder. Tendo já sido
teorizado desde os tempos de Hobbes e Russell no início do período moderno, o
poder, numa perspectiva antropológica, é definido como domínio de uma ou mais
pessoas sobre outras pessoas. É nesse sentido que iremos explorar as relações de
poder entre dois grupos sociais bem específicos: o campesinato judaíta e a classe
sacerdotal jerusolimitana no contexto pós-exílico. É dentro desse contexto social que

117
Norberto Bóbbio, “Política” em Dicionário de Política, 11ª Edição, Brasília, Editora UnB, 1983, p.954.
iremos tratar da política, ou melhor, do poder político, pois entendemos que toda ação
que se desenvolve dentro de uma determinada sociedade implica na utilização de um
tipo de poder, seja ele no campo econômico, ideológico, familiar ou puramente social,
de amizade e solidariedade.

Segundo Bobbio, o que caracteriza o poder político é:

[...] a exclusividade do uso da força em relação à totalidade dos grupos que atuam num
determinado contexto social, exclusividade que é o resultado de um processo que se
desenvolve em toda a sociedade organizada, no sentido da monopolização da posse e
uso dos meios com que se pode exercer a coação física. Este processo de
monopolização acompanha pari passu o processo de incriminação e punição dos atos
de violência que não sejam executados por pessoas autorizadas pelos detentores e
beneficiários de tal monopólio.

Como veremos, será fazendo uso dessa prerrogativa que a classe dominante
em Israel, isto é, a classe sacerdotal, muito mais do que agir por meio da coação física,
agiu por meio da coação psicológica, “incriminando e punindo” os culpados de
transgredirem algumas das leis da torah. Com grande habilidade literária conseguiram
transformar séculos de tradição, outrora, por eles desconhecida, numa terrível força
de controle social. Colocaram debaixo de uma lei cheia de contradições, como
mostraremos, não somente a vida religiosa de um povo, mas a vida em todos os seus
âmbitos foi afetada.

No tocante aos fins, aquilo que a política deveria perseguir, conforme o


pensamento de Aristóteles é o de que o fim da política não é viver, mas viver bem.
Portanto, se um determinado grupo social oprime outro grupo, como é o caso em
questão, condenando-o a uma vida sofrida e infeliz, será que, apesar disso, não estaria
ele também fazendo política, ou melhor, uma péssima política? Será que o poder que
está exercendo não seria um hediondo poder político?
Capítulo II – As sociedades selvagens/tribais/primitivas/arcaicas.

Aqui se inicia a trajetória de um resgate histórico de um povo, não só oprimido


e explorado, mas acusado, diga-se de passagem, injustamente, por aqueles que
detinham a ciência do saber e do conhecimento, mas que de forma pragmática,
desvirtuaram o sentido da história, alteraram de forma nitidamente ideológica, sua
rota e seu desenlace natural.

Marginalizados e dominados, tanto socialmente quanto política, econômica e


religiosamente também, muitas dessas sociedades, hoje já extintas, não deixaram mais
do que sinais de seu esforço em conservar sua honra, suas tradições, seus costumes,
seu modo ecologicamente todo peculiar de ser e de relacionar com o meio ambiente.

Neste último século passado, temos visto uma grande quantidade de trabalhos
científicos enfatizando a realidade de vida dessas sociedades que, recebendo
diferentes nomeações tais como: selvagens, tribais, primitivas ou arcaicas, todas se
referem a um mesmo grupo social, que possuindo características bem peculiares,
povoaram todas as áreas habitáveis de nosso planeta por dezenas de milênios de anos.

Marshall Sahlins fala em “sociedades segmentárias primitivas”118. Segmentadas


porque cada nível ou setor não existe independentemente do outro, mas estão
sempre interligados e interdependentes. O que muda são somente as funções que
cada membro desenvolve em prol de toda a sociedade. Conforme aumenta o nível de
segmento, aumenta também a complexidade da função e da responsabilidade. E
primitivo devido, não somente ao seu aspecto cronológico, que quase se perde no
tempo, mas principalmente, porque estas sociedades não estavam organizadas em
termos de produção, política e religiosidade. Não formavam, como diz Sahlins, uma
“santa aliança entre mercado, Estado e Igreja. Falta-lhe um setor econômico
independente ou uma organização religiosa separada”119. Isto é o que constitui a sua
primitividade. Desse modo, tais atividades estancadas, que podem caracterizar a
presença do estado, nas sociedades tribais são apenas funções diferentes de uma
mesma instituição.

Já não podemos mais ter acesso a uma sociedade primitiva que guardasse toda a
originalidade de seus costumes, crenças e tradições. O que temos hoje à nossa
118
Marshall D. Sahlins, Sociedades tribais, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1974, p.7.
119
Idem, p.28.
disposição são relatos de cronistas, aventureiros, missionários a partir do século XVI,
além de um mapeamento de uma grande quantidade dessas sociedades,
descendentes diretos dessas tribos primitivas. Segundo Sahlins, “essas várias áreas
formam o mundo tribal da moderna Antropologia Cultural”. Aqui temos, segundo o
autor, não pré-história, mas “Etnografia – explicações de testemunhas oculares de
tribos como preocupações existentes”.120

Como bem salienta Marcel Gauchet:

“Ora, o que o funcionamento desses grupos selvagens, onde sobreviveu uma pequena
parte disso que foi o mundo de antes do Estado, revela é a presença subjacente, ao
mesmo tempo, das dimensões que o dispositivo social recalca”.

Todo este primeiro capítulo tem por objetivo servir de fundamento epistemológico
para a caracterização de um dos grupos sociais envolvidos no objeto de pesquisa desta
tese – as relações de poder –, a saber, do campesinato judaíta, herdeiro direto das
mais antigas tradições tribais dos grupos que habitaram aquelas regiões e que tiveram
que se submeter à lei do poder do mais forte – isto é, da classe sacerdotal
jerusolimitana – num determinado momento de sua caminhada histórica.

Resistiram o quanto puderam, em prol de sua gente e de seus ancestrais


costumes, mas a batida do cajado do opressor foi mais forte, dizimando sem piedade
sua gente e, aqueles que sobreviviam, eram tornados escravos, submetidos a
trabalhos duros e desumanos.

Rigoberta Menchu Tum, prêmio Nobel da Paz em 1992, está coberta de razão
quando pergunta se existe esperança ou se o futuro ainda está aberto aos povos
indígenas121:

Para responder a essa pergunta, é fundamental considerar as condições em que vive a


imensa maioria de nossa população mundial, suas profundas reivindicações que
fundamentam as lutas e esperanças de um futuro melhor. A concentração dos poderes
em poucas mãos condena os pobres a serem mais pobres e torna mais evidente a
urgência de retomar os sagrados valores que deram origem à nossa humanidade; isto
é em essência, o que reivindicamos os povos indígenas e os povos originários do
mundo [...] O respeito aos valores e direitos individuais e coletivos, ou seja, a vitalidade

120
Marshall D. Sahlins, Sociedades tribais..., p.12.
121
Nós, particularmente aqui no Brasil, estamos assistindo a uma grande batalha que se trava entre
aqueles que lutam pelas causas indígenas contra grupos, que são verdadeiras potencias econômicas,
que não veem outra coisa diante de si, a não ser, seus próprios interesses pessoais.
e a validade do equilíbrio como requisitos indispensáveis de um mundo justo e
pacífico.122 (o grifo é pessoal)

Como veremos, esses povos “indígenas” ou “originários do mundo” são parte


dessas sociedades primitivas, selvagens ou tribais que motivam meu interesse de
pesquisa nesta tese. Resgatar os “sagrados valores que deram origem a humanidade”,
como afirma Rigoberta Menchú Tum, será uma oportunidade de mostrar que existe
uma saída para o caos instalado pelo modelo econômico vigente em nosso mundo
atualmente. O capitalismo liberal não teve a última palavra e nem Francis Fukuyama
acertou quando afirmou que havíamos chegado ao “fim da história”, cujos símbolos
são: a derrubada do socialismo e o trinfo do capitalismo. Giulio Girard comenta essa
afirmação do ex-secretário de estado do governo norte americano da seguinte forma:

[...] Afirmar que o triunfo do capitalismo é definitivo é dizer que a atual organização
econômica, política e cultural do mundo, não tem alternativas: que as leis do mercado
estão sendo impostas com uma lógica tão implacável que qualquer hipótese de
autonomia com relação às mesmas parece sonho de um visionário. Mas se for certo
que a lógica do mercado exclui do poder, da cultura e da vida as grandes maiorias da
humanidade, então o trinfo do mercado coincide com a derrota da vida.

A conquista da América que para os conquistadores representava o “Novo Mundo” e


abria na história da Europa uma nova época, realmente significou em grande medida,
para os povos submetidos e exterminados o fim da história. A atual etapa da conquista
pretende ser, na perspectiva dos seus protagonistas, a solução final do problema da
história cujo sentido consistiria no triunfo dos poderosos e no enterro das suas vítimas.

Mas quem de nós, cidadãos do mundo rico e cativos da sua cultura, está disposto a
escutá-los? Quem de nós pensa sinceramente que os excluídos são depositários de
uma antiga sabedoria e portadora de uma palavra nova para a humanidade?123

É nesta linha de pensamento que quero argumentar e levar á frente este projeto de
pesquisa. Demonstrar que as sociedades indígenas e os povos originários do mundo,
como destaca Giulio Girard, possuem uma antiga sabedoria, que como também
demonstra Marshall Sahlins se constitui na “chave das limitações comparativas da
sociedade tribal e do significado evolucionário do Estado”124. De fato, como será

122
Giulio Girard, Os excluídos construirão a história? – O movimento indígena, negro e popular: “Durante
cinco séculos outros falaram por nós, hoje queremos começar a falar com voz própria”, São Paulo,
Editora Ática, 1996, p.13.
123
Giulio Girard, Os excluídos construirão a história..., p.18-19
124
Marshall D. Sahilns, Sociedades tribais..., p.18.
demonstrado, aqui está o grande divisor de águas entre as sociedades primitivas e as
sociedades de estado:

[...] civilizações diferem das tribos em virtude de suas instituições políticas


especializadas, seus Governos, que soberanamente assumem o poder e o direito de
proteger a cidadania e manter a paz dentro do Estado. Nas sociedades tribais o
controle da força não é negado ao povo; eles estão na condição que Hobbes chamou
de Guerra, que é uma condição fatal se não for controlada. Na ausência de
instituições.......125

Tradicionalmente ouvimos e lemos que estas sociedades primitivas fazem parte


de uma pré-história, que não teriam nada, absolutamente nada a nos ensinar, pois
classificadas com o termo “selvagem” que tem no seu sentido um forte apelo negativo
e pejorativo, foram sempre vistas, como descreve Thomas Hobbes – no Leviatã –,
como aqueles que nada mais faziam do que guerrear uns com os outros. É a guerra de
todos contra todos. Nada mais injusto. Nada mais errôneo. Segundo Sahlins, “fazer a
paz é a sabedoria das instituições tribais”126.

Aprofundando um pouco mais o conceito de tribalismo, Maurice Godelier em


“Economía, fetichismo y religión en las sociedades primitivas”, trás um importante
estudo de como o conceito tribo evoluiu desde quando a antropologia passou a ser
encarada como uma disciplina científica no século XIX.

Mas, como mostra Maurice Godelier, “actualmente el término ‘tribu’ está en crisis
manifiesta”. Por isso, não é tão simples de defini-lo, pois prova disto é a divisão em
que se encontra, atualmente, boa parte dos antropólogos.127

Neste livro, Godelier mostra como o conceito foi sendo apreendido, desde
antropólogos como L.H.Morgan (1877), que demonstrou que as relações sociais que
dominavam a organização da maior parte das sociedades primitivas consistiam nas
relações de parentesco. Para Morgan:

*…+ una tribu es una ‘sociedad completamente organizada’, y, por tanto, una forma de
organización social capaz de reproducirse. Ilustra la condición de la humanidad en el
estado de barbarie, es decir, de la humanidad que ha salido del salvajismo primitivo,

125
Marshall D. Sahlins, Sociedades tribais..., p.
126
Idem, p.19.
127 a
Maurice Godelier, Economia, fetichismo y religion em las sociedades primitivas, 3 edição, Espanha,
Siglo Veintiuno de España Editores, S.A., 1980, p.199. Segundo o autor: “Neiva, después de leach, clama
ante la ‘escandalosa imprecisión del concepto’, Julian Steward, evolucionista, pide la mayor prudencia
ante lo que denomina um concepto ‘cajón de satre’, y otros, como Swartz, Turner, Toden, optan por
ignorarlo sistemáticamente, silenciando su existencia, aunque exploren um campo, la antropología
política, em cuyo seno el concepto de tribudesenpeñaba tradicionalmente el papel de término clave.
Pero esto no es más que la mitad del mal, ya que esas críticas contra la utilización ideológica que se hace
del concepto em la forma, derivada y emparentada, del concepto de ‘tribalismo’”.
pero que aún no ha alcanzado el estadio de la civilización, de la sociedad ‘política’, del
Estado”.128

Um século depois, tendo em mãos o Dicionário de Ciências Sociais patrocinado pela


UNESCO, pode-se constatar que a definição de Morgan, referida acima, ainda mantém
seu aspecto descritivo de um tipo de sociedade, porém, como o texto afirma, houve
uma completa amputação de toda referência a um estágio de evolução, ao que
corresponderia esse tipo de sociedade.129

Segundo Maurice Godelier, esta exclusão da parte relativa ao evolucionismo, se deve à


corrente antropológica funcionalista, que aos poucos foi impondo seu ponto de vista
às teorias antropológicas. Para os funcionalistas, com exceção sem embargo, de
E.E.Evans-Pritchard, que em seu livro de 1948, Africal Political Systems, refutou a tese
anterior de que “o Estado seria a forma primária da comunidade humana”130 e de
alguns outros brilhantes investigadores:

[...] un sistema social es un todo cuyas partes están necesariamente ligadas, pero
sobre esta necesidad la propia historia del sistema, en opinión de ellos, nada puede
enseñarnos, ya que la historia pertenece al orden de lo accidental y lo incidental y no
de lo necesario. Existen leyes de funcionamiento de las sociedades, pero no existen
leyes de su evolución o de su transformación necesaria.131

Assim, quando olhamos para as sociedades primitivas que ainda existem


contemporaneamente, na tentativa de compreender o que, de fato, sustenta a sua
“visão de mundo”, isto é, todo o seu modo sócio-político de ver e de ser no mundo,
descobrimos que existe, para além de toda a história uma força de coesão, muito mais
forte do que o próprio tempo, que não conseguiu modificá-las. Como afirma Godelier,
talvez aqui, ao redor do problema da natureza das relações políticas, que caracterizam
o modo de organização das sociedades tribais, é onde se encontram as principais
dificuldades do conceito tribo132.

Conforme afirma Marshall Sahlins, que segundo Maurice Godelier é:

128
Maurice Godelier, Economia, fetichismo y religion..., p.202.
129
Idem, p.204-205
130
Hans G.Kippenberg, Religião e formação de classes na antiga Judéia: estudo sócio-religioso sobre a
relação entre tradição e evolução social, São Paulo, Edições Paulinas, 1988, p.14.
131
Maurice Godelier, Economia, fetichismo y religion..., p.205.
132
Maurice Godelier, Economia, fetichismo y religion..., p.206.
*…+ el autor que recientemente ha realizado el esfuerzo más persistente y brillante
para redefinir rigurosamente ese concepto – e reinterpretar los nuevos materiales
etnográficos acumulados desde hace más de un siglo.133

Lancemos mão, portanto, de uma definição feita por Marshall Sahlins, que afirma que
estudar as sociedades primitivas, que ele as chama de “sociedades segmentárias”
primitivas, é o mesmo que estudar as sociedades tribais.134

Partindo para uma definição mais apropriada do conceito tribo, Sahlins entende
o termo da seguinte forma:

[...] um corpo de pessoas de origem e costumes comuns, que possui e controla toda a
extensão de seu território. Mas, em certo grau, socialmente articulada, uma tribo é
especificamente diferente de uma nação moderna na medida em que suas várias
comunidades não estão unidas sob o governo de uma autoridade soberana, nem os
limites do todo estão clara e politicamente determinados [...] A tribo é também pouco
complexa em outro sentido. Sua economia, sua religião não são conduzidas por
diferentes instituições especialmente destinadas para esses fins, mas,
coincidentemente, pelos mesmos grupos de parentesco e grupos locais: os segmentos
de linhagem e clã da tribo, as famílias extensas e aldeias que assim surgem como
versáteis organizações responsáveis por toda a vida social. Tal formação cultural, ao
mesmo tempo estruturalmente descentralizada e funcionalmente generalizada, é uma
sociedade primitiva segmentária.135

A partir desta definição já podemos começar a intuir que entre campesinato e


tribalismo existe uma diferença essencial quanto às relações de poder: enquanto a
realidade campesina é marcada pelo poder e autoridade do rei e do estado, a quem
estão necessariamente ligados, no regime tribal, não existe a figura de um chefe ou
estado que tenha esse mesmo poder e autoridade para agir despoticamente. A
liderança é exercida, conforme a citação acima, pelos “grupos de parentesco e grupos
locais”, enfim, por todo o clã e aldeia.136

Esta mesma posição é corroborada por outro antropólogo, Pierre Clastres, que em seu
livro “A sociedade contra o estado: pesquisas de antropologia política” desenvolve de
forma muito convincente a questão do tribalismo em relação ao estado. Em suas
pesquisas, não só de campo, mas também recorrendo ao imenso arquivo de trabalhos
anteriores, Clastres toma como base de suas teorias o trabalho desenvolvido junto aos

133
Idem , p.200.
134
Marshall Sahlins, Sociedades Tribais, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1974, p.7.
135
Idem, p.7-8.
136
Voltaremos a este assunto de “chefe, autoridade e poder tribais” no segundo capítulo desta primeira
parte.
índios tupi-guaranis. Diz ele que existe uma grande preocupação de todos os povos
primitivos, na sua grande maioria, de se prevenir contra a possibilidade de se ter o
poder centralizado numa única pessoa, mesmo até aquela escolhida para ser o chefe
de uma tribo.137

Mostrando que muitas das ideias que hoje temos sobre as sociedades primitivas –
ideias totalmente negativa como: são sociedades arcaicas, por não terem estado,
escrita, história, por viverem estritamente baseados numa economia de subsistência,
etc. –, fazem parte de uma construção etnocentrista desenvolvida no ocidente
europeu. Desse modo, recupera e regata, assim, o verdadeiro perfil sócio-político
dessas sociedades primitivas, que segundo o autor, e penso igualmente, teriam muito
a nos ensinar.

Afirmando que é “sempre pela força que os homens trabalham além de suas
necessidades”, Pierre Clastres nos mostra que essa mesma força que era utilizada para
transformar ‘lavradores felizes’ em ‘campesinos opressivamente explorados’, estava
ausente nas sociedades primitivas. Inclusive, a:

[...] ausência dessa força externa define inclusive a natureza das sociedades primitivas
[...] os homens, isto é, a metade da população trabalhava cerca de dois meses em cada
quatro anos! O resto do tempo era passado em ocupações encaradas não como
trabalho, mas como prazer: caça, pesca; festas e bebedeiras; a satisfazer, enfim, o seu
gosto apaixonado pela guerra [...] E, ao descobrirem a superioridade produtiva dos
machados dos homens brancos, os índios os desejaram, não para produzirem mais no
mesmo tempo, mas para produzirem a mesma coisa num tempo dez vezes mais curto
[...] uma vez assegurada a satisfação global das necessidades energéticas, nada poderia
estimular a sociedade primitiva a desejar produzir mais, isto é, a alienar o seu tempo
num trabalho sem finalidade.138

Entre os fatores que melhor definem a identidade e representam esta qualidade de


vida, está o fraco desenvolvimento dos recursos técnicos e em geral, os meios de
controle da natureza, que implicam, necessariamente, numa dependência religiosa,
isto é, num sentimento de inferioridade frente a essas grandes forças e poderes, tão
infinitamente diferentes e superiores aos homens.

E este fato é atestado, mesmo diante das grandes revoluções da história, tal como a
passagem do paleolítico para a neolítico. A “revolução do neolítico” possibilitou a
transformação da base material das sociedades primitivas, mas sem alterar suas
culturas e nem suas religiões. Marshall Sahlins diz que “o neolítico foi o dia histórico

137
Pierre Clastres, A sociedade contra o estado..., p.
138
Pierre Clastres, A sociedade contra o estado: pesquisas de antropologia política, Rio de Janeiro,
Livraria Francisco Alves Editora S.A., 1978, p.136-138.
das sociedades tribais”.139 “Dia histórico” porque foram capazes de resistir às
mudanças que estavam operacionalizando-se, não de modo natural ou espontâneo,
mas segundo forças sociais subterrâneas que, pouco a pouco, neutralizaram o poder
de reação destas mesmas sociedades primitivas.

Ao mesmo tempo em que estas sociedades descobriam as riquezas que o neolítico


possibilitava, as grandes civilizações históricas que temos conhecimento nasciam e
com ela também, o estado e todo o seu aparato. Conforme Marshall Sahlins afirma:

[...] já em 3.500 a.C., no Oriente Próximo, tribos neolíticas estavam sendo


ultrapassadas da mesma forma com que antes tinham ultrapassados os caçadores do
paleolítico. [...] Este era um novo tipo dominante, sempre criando novas variedades
enquanto avançava, e sempre opondo e enfraquecendo o tribalismo indígena.140

O que Marshall Sahlins deixa entrever é o mesmo fato já anteriormente salientado por
Marcel Gauchet nos parágrafos acima, a saber, que, esse novo “tipo dominante” que
começa a oprimir de modo coercitivo o tribalismo indígena se identifica com a figura
do “estado” que começa a ganhar forma e espaço no cenário mundial.

De fato, nisso se constitui o objeto de minha pesquisa: estabelecer à luz de diferentes


textos bíblicos do período pós-exílico – mais particularmente, daqueles textos que
nasceram no período de transição do domínio persa para o domínio grego – que tipo
de relações de poder se estabeleceram entre o campesinato judaíta e o clero
sacerdotal jerusolimitano.141 Quais foram as verdadeiras motivações para o
surgimento de toda uma série de textos sempre tendo como ponto de referência o
clero sacerdotal jerusolimitano. Por que as sociedades tribais judaítas não foram
capazes de resistir ás mudanças impostas pelo clero sacerdotal jerusolimitano?

2.1 – As diferentes funções dentro das sociedades primitivas

Como vimos no tópico acima, uma sociedade primitiva não deve ser analisada
de modo compartimentado, pois inviabilizaria o resultado final, posto que o que se

139
Marshall Sahlins, Sociedades tribais, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1974, p.12.
140
Idem, ibdem.
141
Para efeito de esclarecimento, diferentes termos serão utilizados ao longo desta tese para exprimir a
mesma realidade do campesinato judaíta. Termos como: sociedades tribais, tribalismo indígena,
sociedades primitivas ou selvagens, todas têm a mesma conotação e, como será demonstrado
posteriormente, são estes aqueles grupos sociais que estão sendo dominados e obrigados a realizar uma
mudança radical em seu modo de viver, isto é, estão sendo forçados a renunciar aos “sagrados” valores
que por milênios ainda estavam forjando seu peculiar modo de vida: uma sociedade profundamente
igualitária, sem divisões, sem chefes com poder. Agora estão sendo transformados em campesinos. Com
respeito a essa mudança na designação: da condição de primitivos, tribais ou selvagens para
campesinos, posteriormente também daremos as devidas explicações.
busca é a formulação de um contorno geral da cultura tribal, dada a grande
quantidade de variações possíveis nos detalhes, pois se “duas tribos nunca são iguais
em detalhe”142, faz sentido a afirmação de Sahlins quando diz que: “A sabedoria
antropológica sugere que abandonemos a análise convencional da cultura em esferas
econômica, político-social e ideológica distintas”143.

Conforme pode-se constatar no esquema gráfico abaixo, as unidades


constituintes de uma sociedade tribal formam uma progressiva série inclusiva de
grupos, que desde o grupo doméstico até o setor intertribal estão estreitamente
ligadas.

142
Marshall Sahlins, Sociedades tribais..., p.27.
143
Idem, p.28.
Sahlins vê nesse arranjo de famílias que se reúnem em linhagens locais, de linhagens
que estão unidas em comunidades de aldeias, de aldeias que estão configuradas em
confederações regionais, e estas últimas, integrando o campo ou setor mais
abrangente, que é o da tribo. Normalmente, cada tribo como um todo pode ser
distinguida de outras tribos por suas identidades de costume e de língua.144

Desse ponto de vista, percebe-se as tribos organizadas como uma espécie de


“pirâmide de grupos sociais”, ou mais propriamente, de uma “hierarquia segmentada”
– mas que, diferentemente de uma organização estatal, que define sua coerência de
cima para baixo através de suas instituições públicas, isto é, através de uma autoridade
soberana constituída – onde cada esfera representa um nível de organização, que faz
com que as relações sociais se tornem mais amplas e diluídas na medida em que nos
distanciamos do centro, ou seja, do grupo central familiar.145

A partir desta esquematização das sociedades tribais, Marshall Sahlins afirma:

O modelo que temos diante de nós é definido em termos sociais. Porém, mais do que
um esquema de relações sociais, é uma organização da cultura. Os vários níveis de
organização são, no jargão da profissão, níveis de integração sócio-cultural; os setores,
setores de relações sócio-culturais. Isso significa, primeiro, que cada nível (cada tipo de
grupo tem uma série de funções: econômica, de cerimonial, defensiva, e assim por
diante – cada uma organiza certas tarefas necessárias. Além disso, cada setor
enquanto campo mais ou menos solidário de co-participação tem seus valores e
moralidade, que governam a conduta dos negócios humanos dentro do campo.146

A partir desse pressuposto fica evidente, em termos de organização social, o


quanto as sociedades tribais estão distantes, em termos de organização, das
sociedades de estado. Não existe um órgão que fiscaliza e determine os direitos e
deveres de cada membro ou a obrigação de cada setor nos diferentes campos de
atividades.

No tocante ao aspecto da religiosidade, o que hoje pode ser visto em termos de


religião, particularmente a partir das grandes tradições religiosas, no seu aspecto mais
elaborado, de refinamento, de teologias, de ritos, de cerimônias, enfim, de uma
instituição religiosa, pode-se afirmar, com certeza, que sua gênese está no modo como
as sociedades primitivas se relacionavam com o sobrenatural, com aquilo que estava
além da possibilidade de sua percepção e de seus conhecimentos, mesmo a nível
natural.

144
Marshall D. Sahlins, Sociedade tribais..., p.28.
145
Idem, p.28-29.
146
Marshall D. Sahlins, Sociedades tribais..., p.30.
O que hoje definimos por religião, e o que também, mediante um olhar
retrospectivo, caracterizamos pelo mesmo conceito, era nos tempos mais remotos da
humanidade apenas um modo de se relacionar com as forças incontroláveis da
natureza, de tentar sujeita-las a um controle pessoal e puramente humano. Desse
modo nasceu uma espécie de religião cuja divindade ou os deuses, eram seres criados
segundo à nossa imagem e semelhança. Com relação a isso Rubem Alves tem um
pensamento muito interessante:

Como forem os pensamentos e as disposições do homem, assim será o seu Deus;


quanto valor tiver um homem, exatamente isto e não mais será o valor do seu Deus.
Consciência de Deus é autoconsciência, conhecimento de Deus é autoconhecimento.

Assim se a psicanálise dizia “conta-me teus sonhos e decifrarei o teu segredo”,


Feuerbach acrescenta “conta-me acerca do teu Deus e eu te direi quem és”.

“Deus é a mais alta subjetividade do homem... Este é o mistério da religião: o homem


projeta o seu ser na objetividade e então transforma a si mesmo num objeto face a
esta imagem, assim convertida em sujeito. [...] O mundo do sagrado não é uma
realidade do lado de lá, mas a transfiguração daquilo que está do lado de cá. [...] É isto:
a linguagem religiosa é um espelho em que se reflete aquilo que mais amamos, nossa
própria essência. O que a religião afirma é a divindade do homem, o caráter sagrado
dos seus valores, o absoluto do seu corpo, a bondade de viver, comer, ouvir, cheirar,
ver... E assim chegamos a mais espantosa das conclusões deste homem que amava a
religião e nela encontrava a revelação dos segredos de sua própria alma: “O segredo
da religião é o ateísmo”.147

Bem, não vem ao caso, aqui nesse momento, nem em nenhum outro desta
tese, discutir a questão do ateísmo. Esta não é a minha opção intelectual. Mas, com
certeza na terceira parte e na conclusão desenvolverei melhor a direção que a religião,
enquanto um fenômeno está tomando no cenário mundial.

2.2 – A questão do poder nas sociedades primitivas

Nas últimas décadas do século passado a etnologia experimentou um


rejuvenescimento e desenvolvimento muito salutar, pois graças aos trabalhos de
sociólogos e antropólogos sobre sociedades primitivas, podemos hoje recolher seus
frutos e, assim, com essa lanterna na mão, reescrever muitas histórias, como a do
tribalismo israelita (campesinato judaíta), que nos propomos aqui.

Pierre Clastres num de seus artigos, pertinentes ao tema, desenvolve este


assunto a partir de um questionamento: “O que se entende precisamente por

147
Rubem Alves, O que é religião..., p.28-29.
sociedade primitiva?” Segundo o próprio autor, é a antropologia clássica que nos
auxilia nessa busca, quando afirma que as “sociedades primitivas são sociedades sem
Estado, são sociedades cujo corpo não possui órgão separado do poder político”.
Portanto, seria conforme a presença ou não do Estado que se configuraria uma
primeira classificação das sociedades. Com isto, não quero afirmar que só existiria dois
tipos de sociedades. Sabe-se que existe uma grande diversidade e modelos de
sociedades onde o regime político é o estatal, bem como também, uma grande
variedade de sociedades classificadas como primitivas.148

Nesse sentido, a afirmação de Pierre Clastres á muito esclarecedora:

[...] notaremos que uma propriedade comum faz com que as sociedades com Estado
oponham-se em bloco às sociedades primitivas. As primeiras apresentam esta
dimensão de divisão desconhecida das outras. Todas as sociedades de Estado são
divididas, em seu ser, em dominantes e dominados, enquanto as sociedades sem
Estado ignoram esta divisão. Determinar as sociedades primitivas como sociedades
sem Estado é enunciar que elas são, em seu ser, homogêneas, por serem indivisas.
Voltamos a encontrar aqui a definição etnológica destas sociedades: elas não tem
órgão separado do poder, o poder não é separado da sociedade.149

Este é o grande diferencial entre uma sociedade com Estado das sociedades
primitivas. Nelas o poder não está centralizado em nenhuma pessoa em particular,
mas em toda a sociedade. O corpo social como um todo é quem detém o poder.

Na Grécia antiga uma sociedade só era considerada, de fato, sociedade


politicamente organizada, se possuísse uma divisão interna, isto é, membros que
obedecessem e membros que comandassem. Como é do nosso conhecimento, muitos
historiadores, como Jean de Leri, ao relatarem em suas crônicas sobre as expedições
de exploração por essas terras ameríndias descreviam os chefes indígenas como
despossuídos de poder, não tinham nenhum poder sobre as tribos, eram como
“selvagens, sem fé, sem lei, sem rei”.150

Mas alguém poderia objetar: o que faz, portanto um chefe sem poder? Não
estaria automaticamente relacionada a função de chefia com o exercício do poder?
Pode alguém assumir uma função de chefia sem estar fundamentado pela autoridade
do comando?

148
Pierre Clastres, Arqueologia da violência: ensaio de antropologia política, São Paulo, Editora
Brasiliense, 1982, p.105.
149
Pierre Clastres, Arqueologia da violência..., p.106.
150
Idem, ibdem..
Essa é a grande diferença entre um chefe ou líder numa sociedade de Estado e
numa sociedade primitiva. Os chefes tribais têm por função se encarregar de realizar a
vontade da comunidade como um todo, afirmar “sua especificidade, sua autonomia e
a sua independência”. Para isso, exige-se que a pessoa escolhida tenha certas
habilidades, tais como: experiência de vida em primeiro lugar, aliada a uma sabedoria
fundada nas tradições dos antepassados. Lowie, citado por Clastres, num de seus
trabalhos na década de 40 do século passado, analisando os traços distintivos de um
chefe tribal na região das américas, tanto do sul quanto do norte, concluía o seguinte:

1º) O chefe é um “fazedor da paz”; ele é a instância moderadora do grupo, tal como é
atestado pela divisão frequente do poder civil em militar.

2º) Ele deve ser generoso com seus bens, e não pode permitir, sem ser desacreditado,
repelir os incessantes pedidos de seus “administrados”.

3º) Somente um bom orador pode ascender à chefia.151

Tudo isso lhe confere certo status que pode ser traduzido pelo conceito de “prestígio”.

Mas, se da boca do chefe saem palavras de ordem, contrárias àquele princípio


que as organiza como sociedade indivisa, a sociedade como um todo não lhe dá
ouvidos. Muito pelo contrário, por causa de seu comportamento totalmente fora do
esperado pela comunidade pode acarretar contra ele a destituição da função e até ser
condenado à morte.

É nesse sentido que o chefe tribal se esmera por fazer a vontade da comunidade:

[...] Na realidade, dispõe apenas de um direito, ou melhor, de um dever de porta-voz:


dizer aos Outros o desejo e a vontade da sociedade [...] A atenção particular que se
presta – aliás nem sempre – à palavra do chefe não chega jamais ao ponto de deixar
que ela se transforme em palavra de comando, em discurso de poder. [...] Da boca do
chefe escapam não as palavras que sancionariam a relação de mando-obediência, mas
o discurso da própria sociedade sobre ela mesma, através do qual ela se proclama
comunidade indivisa e desejosa de perseverar neste ser indiviso.152

Segundo ainda Pierre Clastres, em seu outro livro: A sociedade contra o estado
– pesquisas de antropologia política, adverte que, ainda hoje, dependendo da tribo
que se visite, jamais se deve perguntar aos membros dessas sociedades: quem é o seu
líder? Mas antes: quem é, entre vocês, aquele que tem por missão ser portador da

151
Pierre Clastres, A sociedade contra o estado..., p.23.
152
Pierre Clastres, Arqueologia da violência..., p.108-109.
palavra? O mestre da fala ou senhor das palavras: é esse o nome que muitos grupos
dão ao seu líder ou chefe.153

[...] Com efeito, o corte radical que divide as sociedades, reais ou possíveis, segundo
sejam de Estado ou sem Estado esse corte não poderia deixar indiferente o modo de
ligação entre o poder e a palavra. Como é que ele opera nas sociedades sem Estado? O
exemplo das tribos indígenas no-lo ensina.

Uma diferença aí se revela, ao mesmo tempo a mais aparente e a mais profunda, na


conjugação da palavra e do poder. O fato é que, se nas sociedades de Estado a palavra
é o direito do poder, nas sociedades sem Estado ela é, ao contrário, o dever do poder.
Ou, para dizê-lo de outra maneira, as sociedades indígenas não reconhecem ao chefe o
direito à palavra porque ele é o chefe: elas exigem do homem destinado a ser chefe
que ele prove seu domínio sobre as palavras. (O grifo é pessoal)

Aqui um ponto fundamental quanto àquilo que veremos no próximo capítulo, em


função das relações de poder entre o campesinato judaíta e a classe sacerdotal
jerusolimitana, que ficará plenamente evidenciado, pois aquilo que na citação acima
está em destaque – O fato é que, se nas sociedades de Estado a palavra é o direito do
poder, nas sociedades sem Estado ela é, ao contrário, o dever do poder – ilustra bem a
realidade das sociedades estatais e, mais particularmente, as relações de poder no
judaísmo incipiente.

Mas, eis aqui o paradoxo: apesar de o chefe ser o homem de palavra, não se
trata aqui de estética, mas de política. Seu discurso não é dito para ser escutado, pois,
aparentemente, ninguém presta atenção, finge-se desatenção. Sendo um ato
ritualizado, o seu discurso faz parte de uma celebração. Por isso:

Na obrigação exigida de ser homem de palavra transparece com efeito toda a filosofia
da sociedade primitiva. [...] O discurso do chefe é vazio justamente por não ser
discurso de poder: o chefe está separado da palavra porque está separado do poder.
Na sociedade primitiva, na sociedade sem Estado, não é do lado do chefe que se
encontra o poder: daí resulta que sua palavra não pode ser palavra de poder, de
autoridade, de comando. Uma ordem: eis o que o chefe não poderia dar, eis o gênero
de plenitude recusado à sua palavra. [...] a sociedade primitiva é o lugar da recusa de
um poder separado, porque ela própria, e não o chefe, é o lugar real do poder.

A sociedade primitiva sabe, por natureza, que a violência é a essência do poder. Nesse
saber se enraíza a preocupação de manter constantemente afastado um do outro do
poder e a instituição, o comando e o chefe. [...] Forçando o chefe a mover-se somente

153
Pierre Clastres, A sociedade contra o estado: pesquisas de antropologia política, Rio de Janeiro,
Livraria Francisco Alves Editora S.A., 1978, p.107.
no elemento da palavra, isto é, no extremo oposto da violência, a tribo se assegura de
que todas as coisas permanecem em seu lugar, de que o eixo do poder recai sobre o
corpo exclusivo da sociedade e que nenhum deslocamento das forças virá conturbar a
ordem social. O dever de palavra do chefe, esse fluxo constante de palavra vazia que
ele deve à tribo, é a sua dívida infinita, a garantia que proíbe que o homem de palavra
se torne homem de poder.

Vale aqui fazer referência a uma prática, que de certa forma a nossos olhos pode
parecer cruel e sem sentido, mas que para os membros destas sociedades faz todo
sentido. As tribos tupis-guaranis ainda hoje, assim como outras tantas tribos, também
possuem dentro de seu “receituário” ético algumas tradições interessantíssimas, que
Pierre Clastres soube identificar com precisão e maestria. Como forma de aplacar
qualquer desejo de grandeza pessoal, sonhos de realeza, autoridade e poder, as tribos
tupis-guaranis tem como tradição um rito de iniciação onde os jovens, para serem
plenamente admitidos no seio da grande comunidade, passam por um ritual de dor e
sofrimento. São supliciados em seus corpos, mediante atrozes sofrimentos, para que
jamais se esqueçam daquilo que constitui o essencial da vida de uma sociedade
primitiva: “Tu não és menos importante e nem mais importante do que ninguém [...]
Tu não terás o desejo do poder, nem desejarás ser submisso”154.

Mediante um ritual de iniciação, os jovens são instados a renunciarem a todo tipo de


poder pessoal que o faria sobressair-se sobre os demais. Desse modo as relações de
poder que se estabelecem são de extrema igualdade entre todos os membros. Trazem
agora em seus corpos, não uma lei imposta por um estado ou por um soberano, mas
uma lei inscrita na própria carne, que lhes proíbe a desigualdade.155

Assim, Pierre Clastres adverte que:

[...] As sociedades arcaicas, sociedades da marca, são sociedades sem Estado,


sociedades contra o Estado. A marca sobre o corpo, igual sobre todos os corpos,
enuncia: tu não terás o desejo do poder, nem desejarás ser submisso. E essa lei não-
separada só pode ser inscrita num espaço não-separado: o próprio corpo. Admirável
profundidade dos selvagens, que de antemão sabiam tudo isso, e procuravam, ao

154
Pierre Clastres, A sociedade contra o estado..., p.129-131.
155
As relações de poder no seio das sociedades tribais – sociedades primitivas – são sempre mediadas
pela ética, isto é, por um código de normas pré-estabelecido, que de certa forma está culturalmente
incorporado no seio da comunidade. Conhecido e querido por todos os membros, este código
comportamental que é vivenciado espontaneamente por todos os membros da sociedade, pois tem
neles próprios, seus principais agentes, sem que aja a necessidade de uma instância superior que, de
prontidão, fique vigiando suas atitudes e comportamento em todos os seus detalhes, para poder, assim,
infligir as devidas penalidades.
preço de uma terrível crueldade, impedir o surgimento de uma crueldade ainda mais
terrível: a lei escrita sobre o próprio corpo é uma lembrança inesquecível.156

Esta é sem dúvida uma grande lição que as sociedades primitivas de ontem nos
deram, e que as muitas sociedades indígenas ainda presentes nos dão: Chefe sim, mas
sem poder. O poder real deve pertencer unicamente à sociedade. Poder de julgar e
excluir. Poder de fazer com que nada nem ninguém roube a seu bel prazer o poder de
voz e de comando. Penso que nossos políticos deveriam rever seriamente o exercício
de sua função e todos os ordenamentos jurídicos relativos a ela. Por acaso, não seria
isto a vivência plena do regime democrático? Bem, voltaremos a este tema na terceira
parte desta tese.

Este é o testemunho comum que pode ser identificado ainda hoje em muitas
sociedades indígenas, que ainda sobrevivem espalhadas por todo o mundo. Esta é,
como diz Clastres, sua principal e mais profundamente humana “propriedade
sociológica”. Mas, se para alguns antropólogos e sociólogos, adeptos de um
darwinismo social que veria apenas nestas sociedades embriões de um processo social
inicial, em quase nada evoluído, em comparação com as demais sociedades avançadas,
é de se indagar: por que ainda hoje existem sociedades com este perfil? O que teria
acontecido para que algumas sociedades não conseguissem reter o processo sua de
estatização?

Nesse sentido, Pierre Clastres, conclui seu pensamento sobre as sociedades primitivas,
afirmando que:

O exemplo das sociedades primitivas nos ensina que a divisão não é inerente ao ser do
social; que, em outros termos, o Estado não é eterno, que existe, aqui e ali, uma data
de nascimento. Por que foi que ele emergiu? A questão da origem do Estado deve ser
precisada desta maneira: mediante que condições uma sociedade deixa de ser
primitiva? Por que as codificações que conjuram o Estado falham em determinado
momento da história? Está fora de dúvida que unicamente a interrogação atenta do
funcionamento das sociedades primitivas permitirá esclarecer o problema das origens.
Talvez a luz lançada sobre o momento do nascimento do Estado iluminará igualmente
as condições de possibilidade (realizáveis ou não) de sua morte. 157

É a partir das interrogações acima elencadas – por que foi que o Estado
emergiu? A questão da origem do Estado deve ser precisada desta maneira: mediante
que condições uma sociedade deixa de ser primitiva? Por que as codificações que

156
Pierre Clastres, A sociedade contra o estado..., p.131.
157
Pierre Clastres, A sociedade contra o estado..., p.110-111.
conjuram o Estado falham em determinado momento da história? – que daremos
sequência em nossa pesquisa a partir do próximo tópico.

2.3 – Religião e poder nas sociedades primitivas

A exploração deste tema é pertinente e de grande relevância para o


desenvolvimento desta tese. Segundo Mario Stoppino:

[...] como fenômeno social, o Poder é uma relação entre os homens, devendo
acrescentar-se que se trata de uma relação triádica. Para definir um certo Poder, não
basta especificar a pessoa ou o grupo que o detém e a pessoa ou o grupo que a ele
está sujeito: ocorre determinar também a esfera de atividade à qual o Poder se refere
ou a esfera do Poder.158

Desse modo, o principal campo de atividade em que irei me debruçar para efetuar
essa análise do poder político é na esfera da religião, pois como já observamos
anteriormente, nas sociedades primitivas não existem instâncias organizadoras que,
separadas umas das outras, organizem a política, a economia, a religião ou qualquer
outra dimensão. Como veremos religião e poder sempre estiveram unidas, mas não do
mesmo modo e nem com a mesma intensidade. As religiões dentro das sociedades
primitivas, dentre uma série de funções, estabeleciam determinados limites nas
relações de poder entre a(s) divindade(s) e os membros das sociedades.
Diferentemente das sociedades onde o Estado seria uma realidade palpável, nas
sociedades primitivas a religião inspirava, (conforme foi visto no item 1.1.1) uma
segurança muito real e concreta, tendo em vista essa dimensão tão fundamental de
todas as sociedades: as relações sociais.

Instigadas e acossadas pelos fenômenos e contingências da natureza,


praticamente, todas as sociedades caracterizadas como primitivas, selvagens, tribais
ou arcaicas tinham um modo todo peculiar de encarar o poder.

É na observação e na incompreensão dos fenômenos naturais que estas


sociedades começam a imaginar que por trás das terríveis manifestações de força e
poder da natureza deveria haver uma ou mais divindades ou deidades controlando e
organizando o cosmo.

É nesse sentido que religião e poder vão sendo estreitamente relacionados. O


termo religião talvez tenha sido o nome dado a todo esse conjunto de fenômenos

158
Mario Stoppino, Poder..., p.934.
ligados a um corpo de divindades, que através de diferentes ritos poderiam ser
controlados.

Georges Balandier trás em seu livro Antropologia Política o resultado de um


trabalho de pesquisa junto a diferentes tribos africanas no tocante à questão de como
essas sociedades selvagens se relacionam com o poder na sua dimensão religiosa, pois:

[...] O poder é sacralizado porque toda a sociedade afirma o seu desejo de eternidade
e receia o retorno ao caos como realização da sua própria morte. [...] Uma análise
rigorosa impõem que se considerem em conjunto estes dados fundamentais; de um
lado, a sacralização de uma ordem que é mostrada como necessária à segurança, à
prosperidade e à duração; do outro, o recurso, à força que permite ordenar, no pleno
sentido do termo, e dá testemunho do vigor do poder.159

Desse modo, será possível perceber que as noções que moldam e qualificam a
substância do poder, não tem apenas uma conotação política, mas também se
referem, explicitamente, ao domínio de um espaço que evoluindo aos poucos foi
sendo identificado como espaço sagrado, somente ocupado pelos oficiantes de direito.
No início eram os xamãs, os curandeiros, os feiticeiros e os mágicos que ocupavam
este importante espaço dentro das sociedades tribais, mas que, posteriormente, foi
sendo ocupado oficialmente pelos sacerdotes, enquanto que os anteriores oficiantes
foram sendo marginalizados e relegados a uma espaço religioso, digamos, de uma
classe e categoria bem menos inferior.

Para os Alur de Uganda, que se utilizam da noção de Ker como um dos principais
elementos de sua teoria política do poder, para se exercer uma boa liderança, se faz
necessário estar sob sua moção. Pois ker “designa a qualidade de ser chefe, o poderio
que permite exercer um domínio benéfico e que é a tal ponto necessário que os povos
que não o detêm devem desejar recebe-lo dos Alur”. Esse poder atuaria de forma a
organizar e fecundar a vida da sociedade. Três são os fatores que determinam o vigor
de sua necessária intervenção: “a continuidade da sociedade, a personalidade daquele
que utiliza desse poder (chefe) e a conformidade das relações mantidas com o
sagrado”. Nesse sentido, os chefes alur atuam como uma espécie de mediadores ente
a sociedade e a dimensão sobrenatural. São reconhecidos como “fazedores de
chuva”.160

Outro exemplo significativo é o dos Tiv, “povo numeroso da Nigéria,


organizador de uma sociedade em que o governo permanece ‘difuso’”. Swem é o
nome dado ao poder que tem sentido totalmente positivo, pois nele está a capacidade

159
Georges Balandier, Antropologia política, 2ª Edição, Lisboa, Editorial Presença, 1987, p.107-108.
160
Idem, p.109-110.
de estando em harmonia com a essência da criação manter a sua ordem. Segundo os
Tiv “a teoria política, na sua versão mais elaborada, é formulada na linguagem da
religião e da feitiçaria”. A tribo Tiv “sublinha a ambiguidade do poder e a ambivalência
da atitudes a seu respeito que levam a aceita-lo como garante de uma ordem propícia
às obras humanas (ele exprime a vontade dos deuses), sem deixar de o temer como
instrumento do domínio e do privilégio”.161

Marcel Gauchet faz uma interessante observação que também serve de


motivação à nossa reflexão:

Dívida de sentido: aquilo que durante milênios os homens reconheceram dever aos
deuses, o que as sociedades, mais ou menos desde sempre, acreditaram dever às
determinações dos outros, aos decretos do Além ou às vontades do invisível. Com a
expressão, visamos a forma mais determinante e ao mesmo tempo a razão mais geral
da crença religiosa. A ideia que gostaríamos de desenvolver aqui, é, com efeito, a de
que a chave do problema do Estado se deve procurar do lado das raízes profundas do
facto religioso. Compreender porque razão os homens se afirmaram universalmente
devedores, porque é que as sociedades pensaram obstinadamente que as suas razões
de ser dependiam de outra coisa que não delas próprias, é compreender porque foi
possível o Estado num dado momento do devir humano-social.162 (grifo em negrito é
pessoal)

Segundo Marcel Gauchet, o estado, enquanto principal instituição da sociedade


tem um problema grave, do qual a chave para a resolução desse problema está nas
raízes profundas do fato religioso. Primeiramente, é de se perguntar, que problema
seria esse ao qual a religião teria a chave? Uma tentativa parece ser a posição tomada
por Max Weber em seu livro: “Ensaios de sociologia” quando deixa bem claro que uma
das principais finalidades da religião, senão a principal, seria a de justificar e legitimar o
“monopólio do poder”163

Herbert Spencer citado por Marshall Sahlins declara que se o Estado e a religião
institucionalizada – Igreja – “são um só” na origem, quando a sociedade civil é
instaurada, o Estado conserva sempre parcialmente um caráter de Igreja, mesmo
quando se situa num longo processo de laicização. Desse modo Sahlins afirma que “a
imbricação do sagrado e do político é, nesses casos, já incontestável”.164 E isto ocorre,

161
Georges Balandier, Antropologia política..., p.110-111.
162
Marcel Gauchet, A dívida do sentido e as raízes do estado: política da religião primitiva em Pierre
Clastres, Marcel Gauchet, Alfred Adler, Jacques Lizot, “Guerra, religião, poder”, São Paulo, Livraria
Martins Fontes, 1977, p.51.
163
Max Weber, Ensaios de sociologia,
164
Marshall Sahlins, Antropologia política..., p.106.
todavia, porque conforme afirma o próprio Sahlins, desde sempre aquele exercia uma
função de liderança tinha seu poder político revestido de certa sacralidade.

É o tempo do princípio, o momento em que a realeza emerge da magia e da religião,


que melhor exprime esta relação, por intermédio de uma mitologia que constitui a
única “narrativa” desses acontecimentos e afirma a dupla dependência dos homens –
a que os deuses e os reis instauraram.165

Em segundo lugar, que chave é essa que a religião, guardando em seus recônditos,
proporcionaria à sociedade uma nova maneira de encarar essa instituição, tão antiga e
tão nova, chamada estado?

Como o próprio autor parece fazer alusão, o fenômeno religioso – fato positivo
atestado em toda parte desde os mais longínquos começos – teria em si a resposta
para a solução de algo que tem atormentado a vida de milhões e milhões de pessoas
ao longo de toda a trajetória humana. Segundo Gauchet:

[...] Existe uma necessidade inerente ao princípio deste pensamento da dívida


decorrente diretamente da lógica primordial que comanda a existência duma
sociedade. Remontemos, a partir do laço religioso existente entre os fundadores-
doadores sobrenaturais e os herdeiros-devedores, considerados enquanto vivos, até o
sistema das articulações originárias capazes de produzirem um espaço social. Face a
este universal social não é só a afirmação da alteridade religiosa que aparece como
instituição segunda e derivada, é também o modo de diferença da gestão do poder. O
que atingimos através da dívida constitutiva do sagrado, é, simultaneamente, a
natureza do dispositivo destinado a impedir a separação do poder e a razão do seu
desdobramento possível sob a forma do Estado. Noutros termos, ascendemos ao
ponto a partir do qual é possível surpreender o que há de comum nas sociedades sem
Estado e nas sociedades dominadas pelo Estado.166

Aqui está elencado o problema central, segundo a perspectiva de Gauchet: “o


modo de diferença da gestão do poder”. Em se tratando de sociedades primitivas,
chega a ser até estranho pensar que eles já tinham tal preocupação e isto nos leva à
constatação de que, de fato, tinham até certo ponto consciência política e histórica.
Mas, o fato é que, a mais ou menos 5.000 mil anos atrás sociedades arcaicas já se
detinham sobre a problemática do poder. E felizes daqueles que tiveram essa brilhante
intuição de perceber o grande risco que era para toda a sociedade, ter alguém sob o
qual fosse depositada autoridade suficiente para com esse poder, ter voz de comando

165
Marshall Sahlins, Antropologia política..., p.105.
166
Marcel Gauchet, A dívida do sentido..., p.51-52.
sobre todos os demais membros da sociedade. Essa é uma realidade que ainda se
pode identificar ainda hoje em diversas comunidades indígenas espalhadas por todo
este nosso mundo, nas suas mais diferentes latitudes e longitudes. Daí o nosso
espanto, a nossa admiração diante de um dado tão original e historicamente tão
permanente: sociedades com chefe, sim, mas, chefe sem autoridade, isto é: sem
poder!

Nesse sentido Pierre Clastres trás uma inestimável contribuição, viabilizando a


compreensão de como a ligação entre religião e poder estariam na base da evolução e
advento da figura do Estado.

Existe, conforme hipótese lançada pelo autor, um único campo possível de escapar ao
controle da sociedade: é o campo relacionado ao domínio demográfico. Este campo
que “é regido por regras culturais, mas também por leis naturais, espaço de
desdobramento de uma vida enraizada tanto no social quanto no biológico” 167.
Naturalmente, a vida só poderia fluir com naturalidade para as sociedades primitivas
se as tribos fossem pouco numerosas. E o que se constata, de fato, é que:

[...] no mundo dos selvagens, é um extraordinário esfacelamento das nações, tribos,


sociedades em grupos locais que tratam cuidadosamente de conservar sua autonomia
no seio do conjunto do qual fazem parte [...] Essa atomização do universo tribal é
certamente um meio eficaz de impedir a constituição de conjuntos sócio-políticos que
integram os grupos locais, e, mais além um meio de proibir a emergência do Estado
que, em sua essência é unificador.168

Conforme relato dos cronistas franceses e portugueses que nos séculos XV e


XVI desembarcaram nessas terras ameríndias, constataram, com relação às tribos
tupis-guaranis, que sua taxa de densidade demográfica ultrapassava em muito a taxa
demográfica das tribos vizinhas, acarretando uma transformação na função dos
chefes, que de modo algum, já não eram mais chefes sem poder, mas “reis de
província” ou “régulos”.

Sendo, como vimos anteriormente, que a palavra, ainda que vazia de


autoridade, era o único “poder” concedido aos chefes tribais, foi perdendo em
importância para outra instância de palavra. Paralela à palavra dos chefes, havia
também a palavra do profeta, feiticeiro ou não, mas que também tinha a missão de
preservar a comunidade de afastar-se dos princípios de unidade e igualdade tão
fortemente valorizados por essas sociedades.

167
Pierre Clastres, A sociedade contra o estado: pesquisas de antropologia política, Rio de Janeiro,
Livraria Francisco Alves Editora S.A., 1978, p.148
168
Idem, p.148
Os karai, isto é, os profetas nas tribos tupis-guaranis, é que detinham essa
função. Segundo o testemunho de alguns textos de tribos tupis-guaranis que ainda
subsistem miseravelmente nas florestas do Paraguai, nos diz que “o lugar de
nascimento do mal, da fonte da infelicidade, é o Um”. Conforme Clastres afirma, este
era também o mesmo pensamento que atormentava as tribos de quatro séculos atrás.
A recusa do poder político dado a um único homem ou a própria recusa do estado, se
configuravam, conforme o texto, na personificação do mal.

Estes sabiam, pois, que o Um é o mal; eles o diziam de aldeia em aldeia, e as pessoas
os seguiam na procura do Bem, na busca do não-Um. Temos, portanto, entre os tupis-
guaranis do tempo do Descobrimento, de um lado uma prática – a migração religiosa –
inexplicável se não vemos nela a recusa da vida em que a chefia engajava a sociedade,
a recusa do poder político isolado, a recusa do estado; do outro, um discurso profético
que identifica o Um como a raiz do Mal e afirma a possibilidade de escapar-lhe.169

Mas por azar ou por infortúnio do destino, a grande massa de índios tupis-
guaranis, na ânsia de fugir ao Um que ia se configurando à pessoa do chefe tribal,
seguiram o karai, isto é, o líder religioso. Desse modo, os profetas, armados apenas de
seu logos, determinaram uma grande mobilização dos índios: unificou na migração
religiosa a diversidade múltipla das tribos.170

Eles conseguiram realizar, de um só golpe, o “programa” dos chefes! Armadilha da


história? Fatalidade que apesar de tudo consagra a própria sociedade primitiva à
dependência? Não se sabe. Mas, em todo caso, o ato insurrecional dos profetas contra
o chefe conferia aos primeiros, por uma estranha reviravolta das coisas, infinitamente
mais poder do que os segundos detinham.

Nesse ponto de nossa reflexão, se faz necessária algumas observações:

 O que está em destaque do ponto de vista de Pierre Clastres não é


somente o fato das tribos lutarem decididamente contra a unificação do
poder político no chefe tribal, mas do religioso, através dos karai, estar
na origem do advento do estado.

Descoberta estupenda que, de certa forma, ilumina a questão sobre como teria
surgido a figura do estado. Não é o caso aqui de desenvolver este estudo, mas ele
serve como parâmetro em termos do objeto de pesquisa escolhido: as relações de
poder. Como já salientei anteriormente, o que será demonstrado é que as relações de

169
Pierre Clastres, A sociedade..., p.150-151.
170
Idem, p.151.
poder entre o campesinato judaíta e a classe sacerdotal jerusolimitana, são a chave
para a compreensão do sentido da produção de muitos textos dentro do mesmo
período de crise e confronto social, bem como também, e não deixa de ser ilustrativo,
da realidade do regime político que estava sendo implantado naquele período, a
saber: o regime teocrático.

Assim como os karai, que servem de modelo para a afirmação da tese de que o
religioso está na origem de um regime estatal de governo junto às tribos tupis-
guaranis, os sacerdotes de Jerusalém, igualmente, estão no início do processo que
culminou naquilo que conhecemos pelo nome de judaísmo.

Concordo com Marcel Gauchet, quando afirma que a religião se constituiu para as
sociedades selvagens em dois pontos contraditórios:

 Ponto positivo – fonte inesgotável de igualdade social.

 Ponto negativo – recusa radical pelo próprio homem de seu poder


criador, de ser senhor e artífice de sua própria história.

Penso que neste aspecto, ao nível de conclusão de tese a que chegou Clastres, ele se
engana quanto à necessidade de sermos resolutamente contra o estado. É claro que
existem diversas configurações de estado e diante de algumas, principalmente as de
caráter despótico, autoritário e absolutista, como o regime fascista ou o regime
nazista, devemos ser frontalmente contra. Mas, existem outras situações, como
veremos mais adiante, em que o estado, dentro de determinados contextos,
atualmente, não somente é necessário, mas imprescindível.

Como afirma Marcel Gauchet:

E se nascesse entre os homens, após milênios de recusa em contemplar as origens da


submissão por aquilo que elas são, uma vontade sem precedente de afrontar as razões
do poder? Uma vontade não de conjurar a dominação mas de lhe dominar o princípio.
Uma vontade não de impedir o senhor, mas de se tornar senhor. De uma história de
recusa do poder, talvez estejamos em vias de passar a uma história da conquista da
verdade do poder – da tomada autêntica do poder pela conquista da sua verdade, a
única que, no fim de contas, pode impedi-lo de se exercer.171

Assim, como ficará demonstrado ao final desta tese, religião e poder, ou seja,
religião e política ou ainda, religião e estado, são incompatíveis de coexistirem numa
mesma instituição, é extremamente desastroso para qualquer sociedade ter essas
duas instâncias presentes numa mesma voz de comando ou autoridade.

171
Marcel Gauchet, A dívida do sentido e as raízes..., p.88.
A história demonstra como essa união tem produzido mais malefícios do que
benefícios para a sociedade como um todo.

Capítulo III: as relações de poder

O fenômeno do poder pode ser analisado dentro de âmbitos e perspectivas


específicos, tanto pela psicologia quanto pela sociologia. A psicologia se esmera em
estudar o poder a partir do desejo ou ambição de poder que é uma característica bem
peculiar de todo ser humano, salvo algumas nuances bem característico. Já a
sociologia analisa as relações de poder que se estabelecem no âmbito da sociedade.
Minha opção é pela análise sociológica dos diferentes aspectos ou dimensões do poder
como fenômeno social.
Conforme Luís Lorenzetti, “o poder é coextensivo ao fenômeno social. Em
outras palavras, o poder é qualidade própria das relações humanas”. Desse modo, se
afirma que toda relação social tem a dimensão do poder e que o poder é uma
realidade relacional, pois todo ato social é um exercício de poder. Neste sentido,
devido aos seus diferentes aspectos e dimensões, Lorenzetti diz “como é impróprio
identificar o poder, sem mais nem menos e exclusivamente, com o poder político”.172

Apesar de concordar plenamente com Lorenzetti quanto às ênfases que podem


ser adotadas na análise do conceito de poder, faço uma opção bem particular, pois
como meu objeto de pesquisa tem uma conotação nitidamente política, pois que
envolve nessa relação de poder dois grupos bem específicos da sociedade judaica, opto
por analisar o poder segundo as categorias sócio-políticas, pois esta é a que “torna
visível de modo mais marcante os traços que pertencem a todo poder”173.

Assumo também o ponto de vista de Mario Stoppino, que no famoso Dicionário


de Política organizado por Norberto Bobbio, diz que a palavra poder:

[...] designa a capacidade ou a possibilidade de agir, de produzir efeitos. Tanto pode


ser referida a indivíduos e a grupos humanos como a objetos ou a fenômenos naturais
[...].

Se o entendermos em sentido especificamente social, ou seja, na sua relação com a


vida do homem em sociedade, o Poder torna-se mais preciso, e seu espaço conceitual
pode ir desde a capacidade geral de agir, até à capacidade do homem em determinar o
comportamento do homem: Poder do homem sobre o homem. O homem é não só o
sujeito mas também o objeto do poder social.174

Desse modo, ambos os pontos de vista, tanto de Lorenzetti quanto de Stoppino


se reforçam, no sentido de que o viés adotado para o desenvolvimento desta tese,
requer necessariamente, a análise sócio-política do poder que um determinado grupo
social exerce sobre outro grupo social, no sentido de determinar o seu
comportamento pois, como afirma Stoppino “o campo em que o Poder ganha seu
papel mais crucial é o da política”175

Conforme alusão já feita anteriormente na introdução quanto à motivação desta tese,


ou seja, quanto às reais intenções que estão por trás de alguns dos mais importantes

172
Luís Lorenzetti, “Poder” em Francesco Compagnoni, Giannino Piana, Salvatore Privitera, Dicionário de
Teologia Moral, São Paulo, Editora Paulus, 1997, p.967
173
Idem, ibdem.
174
Mario Stoppino, “Poder”, em Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino, “Dicionário
de Política”, 11ª Edição, Brasília, Editora UnB, 1998, p.933.
175
Idem, p.941.
textos bíblicos escritos na transição do período persa para o período grego. As duas
citações de Lorenzetti, logo abaixo, são muito norteadoras.

O poder, por si mesmo, não tem nem terá fins bem precisos; terá os que lhe venham
da consciência. ‘O poder espera ser dirigido’ (R. Guardini). A questão ética do poder
consiste, pois, essencialmente na questão da finalidade do poder. Os fins, os objetivos,
as metas (que podem ser tão variados quanto os projetos humanos são o objeto e o
término do problema da avaliação do poder.176

Estreitamente ligada ao objetivo ou fim está a questão dos meios que precisam ser
assumidos: a perversão dos meios implica degeneração do fim. As perspectivas ou os
horizontes do poder – não só o político – dificilmente parecem conciliáveis com as
razões da ética; o poder tende à eficácia e, por isso, adota a astúcia, a coação e a
própria força.177

E é também à luz de mais um texto, ou melhor, de um texto que resume a ideia bem
precisa que utilizarei nesta tese e que servirá de norte em todo o seu
desenvolvimento:

A partir destas observações, vamos tentar propor um conceito de poder:


designaremos por poder a capacidade de uma classe social de realizar os seus
interesses objetivos específicos.178

Conforme Nicos Poulantzas afirma, este conceito de poder está relacionado


diretamente ao campo das práticas de classe e das relações entre as práticas de classe,
ou seja, ao campo da luta de classe. Sendo assim, pode-se asseverar que o quadro de
referência se torna a luta de classe de uma sociedade dividida em classes sociais.

Nesse sentido, Poulantzas ainda é mais explícito quando afirma que se por poder
entendemos a capacidade que uma determinada classe social possui de conquistar
seus interesses específicos, pode-se claramente concluir que:

[...] O poder de uma classe significa de início seu lugar objetivo nas relações
econômicas, políticas e ideológicas, lugar que recobre as práticas das classes em luta,
ou seja as relações desiguais de dominação/subordinação das classes estabelecidas na
divisão social do trabalho, e que consiste desde então em relações de poder.179

176
Luís Lorenzetti, “Poder”..., p.971.
177
Idem, p.971.
178
Nicos Poulantzas, Poder político e classes sociais, São Paulo, Livraria Martins Fontes Editora LTDA.,
1977, p.100.
179
Nicos Poulantzas, O estado, o poder, o socialismo, Rio de Janeiro, Edições Graal Ltda., 1978, p.168.
Portanto, é possível de se fazer uma análise do judaísmo ainda incipiente pelo viés das
relações de poder. A configuração do novo regime político que se foi estabelecendo
lentamente na província de Judá demonstra que estamos diante de um processo de
transição: do regime tribal, isto é, de grupos humanos – clãs – que que não estavam
divididos em classes sociais para um regime do tipo estatal, ou seja, nitidamente
dividido em classes.

Como ficará evidenciado, a classe sacerdotal jerusolimitana desenvolveu um projeto


bem arquitetado e se foi com a ajuda dos persas existem muitas controvérsias. Eles,
num primeiro momento e segundo um desígnio bem preciso, para enfrentar as
dificuldades de assentamento nas terras já ocupadas pelos campesinos, criaram
sucessivas listas genealógicas com a finalidade de justificar a tomada de posse destas
mesmas terras nas quais estavam estabelecidos os campesinos que ainda cultivavam
um modo de vida todo peculiar ligado às tradições tribais, isto é, às sociedades
primitivas, pois eram seus autênticos descendentes, para num segundo momento se
estabelecerem no controle da sociedade mediante uma legitimação de caráter
nitidamente religioso, por isso, conforme interpretação de Bourdieu, um projeto
nitidamente ideológico.

Assim se justifica todo um trabalho de fundamentação e equacionamento do tipo das


relações de poder que se estabeleceram entre o campesinato judaíta e a classe
sacerdotal jerusolimitana.

Pensar a questão das relações de poder é perguntar por sua origem, pela sua natureza,
por sua estrutura, por sua destinação ou intencionalidade, por seu fundamento e por
sua legitimidade.180

Partindo desta visão mais específica de poder, que é aquele que atua num âmbito
sócio-político, pode-se afirmar que o que estará como uma motivação de fundo é a
questão do interesse, tomado em sentido subjetivo, isto é, como estado de consciência
de quem exerce o poder. Para que exista poder, como veremos, é necessário que o
comportamento de um determinado grupo – classe sacerdotal – funde o
comportamento do outro grupo em questão, isto é, das sociedades tribais. Portanto,
pode-se dizer que o comportamento embasado teoricamente pela classe sacerdotal,
condicionou o comportamento do campesinato, isto é, tornou-se a sua causa.

Nesse sentido, Mario Stoppino assinala que “antes de tudo, quando referida às
relações de poder social, a noção de causa não implica numa perspectiva de
determinismo mecanicista. As relações entre comportamentos são relações prováveis,
não relações ‘necessárias’”.181

180
Norberto Bobbio, Teoria geral da política: a filosofia política e as lições dos clássicos, 11ª Edição, Rio
de Janeiro, Editora Campus, 2000, p.................
181
Mario Stoppino, Poder..., p.936.
Nesse sentido, veremos que o comportamento da classe sacerdotal se apoia num
poder social, embasado – justificado e legitimado – juridicamente nas escrituras que
com o passar do tempo alcançaram o status de livros canônicos, cujo fim, se mostra na
capacidade de determinação intencional do comportamento do campesinato. Para que
isso se efetue, a classe sacerdotal teve que contar com uma série de recursos como
instrumentos viabilizadores de seu poder: o principal foi a elaboração de uma corpus
de “escritura” apresentada como sendo de caráter divino, visando nitidamente a sua
apresentação, legitimação, prestígio, popularidade, riqueza e relações com outros
grupos de prestígio, tal como a aristocracia, que detinha o poder econômico. Como
veremos, não faltou habilidade à classe sacerdotal para levar á frente seu projeto de
dominação, mas para isso, pode contar também com o apoio e respaldo do império
persa.

Nesse sentido, o poder da classe sacerdotal foi se estabilizando e principalmente, se


institucionalizando. Segundo Mario Stoppino:

Os modos específicos pelos quais os recursos podem ser usados para exercer o Poder,
ou seja, os modos de exercício do Poder, são múltiplos: da persuasão à manipulação,
da ameaça de uma punição à promessa de uma recompensa. Alguns autores preferem
falar de Poder só quando a determinação do comportamento alheio se funda sobre a
coação. [...] Para além dos termos empregados, o que importa é formular uma noção
clara de determinação intencional ou interessada sobre a conduta alheia e identificar
dentro, dentro deste genus, a species particularmente importante de determinação do
comportamento alheio fundado sobre a coerção (coação). A coerção pode ser definida
como um alto grau de constrangimento (ou ameaça de privações) [...] No conceito de
coerção pode incluir-se também um alto grau de aliciamento (promessa de
vantagens).182

De fato, todos esses modos de exercício do poder poderão ser constatados nas
relações que se estabeleceram entre o campesinato judaíta e a classe sacerdotal
jerusolimitana: “da persuasão à manipulação, da ameaça de uma punição à promessa
de uma recompensa”. No documento sacerdotal (P) ou mais especificamente no livro
do Levítico, que tem como redatores, escribas membros do grupo sacerdotal
jerusolimitano, todas essas características poderão ser constatadas. Como poderá ser
verificada a coerção pode ser definida como o conceito que melhor define o tipo de
relação que se estabeleceu entre esses dois grupos.

No fundo da questão, com relação às motivações, estratégias e ações da classe


sacerdotal de um lado, bem como também, da aceitação e submissão passiva do
campesinato do outro, está a outra questão da função que a religião desempenhou

182
Mario Stoppino, “Poder”..., p.938.
dentro desse contexto relacional quanto à função desempenhada pela religião como
instrumento de dominação. No próximo tópico será abordada a relação da religião
com o poder, como isso se processou no imaginário das sociedades primitivas ou
tribais. É esse também o objetivo desta tese: traçar uma trajetória do religioso à luz,
principalmente, dos escritos de Marcel Gauchet, tomando por base como objeto de
pesquisa, o estudo de um caso particular no contexto do judaísmo ainda incipiente que
se transfigurou na conflitualidade das relações de poder entre o campesinato judaíta e
a classe sacerdotal jerusolimitana.

3.1 – Conclusão

O objetivo desses capítulos iniciais foi desenvolver o conceito de religião,


política e relações de poder que servirão de fundamentação ao desenvolvimento do
tema desta tese: análise histórico-crítica das relações de poder entre o campesinato
judaíta e os sacerdotes do templo de Jerusalém.

Ontem como hoje, religião e política ainda fazem parte da pauta de muitas
agendas, não somente eclesiais, mas também de políticos, que procuram por todos os
modos e meios alcançarem seus objetivos mesmo que à custa de muito fisiologismo.

O poder ainda é algo que encanta líderes de ambas realidades, tanto religiosa
quanto política e é nesse sentido que procurarei dar sequência a este estudo,
demonstrando que no Judaísmo tem-se a possibilidade de identificar essa união de
poderes numa mesma instituição.
II – Parte
Capítulo IV – Contextualizando o Judaísmo

Nesta segunda parte, adentro, de fato, aos textos bíblicos, com a explícita
intenção de auscultá-lo como se dele pudesse recolher elementos verídicos da história
das relações de poder entre a classe sacerdotal e o campesinato. Mas, pelo fato mesmo,
de como já observado no capítulo anterior, minha opção intelectual segue na linha dos
estudiosos minimalistas, isto é, daqueles que levando em grande conta os dados
advindos dos mais diversos campos das ciências concluem que se torna cada vez mais
complicado, para não dizer, impossível, querer escrever uma história do antigo Israel a
partir dos textos bíblicos.

Mas, alguém pode objetar: por que então, como afirmado acima, se utilizar dos
textos bíblicos como uma fonte de referência? A resposta é simples: apesar de sua quase
que total não-historicidade, e pelo fato dos textos terem se tornado normativos para o
judaísmo, isto é, foram criados e utilizados com uma finalidade bem precisa: serviram
de um modo todo especial, – mas não única e exclusivamente – aos interesses da classe
dominante, ou seja, da classe sacerdotal jerusolimitana.

Portanto, penso ser possível lançando um olhar crítico, ou como salienta


Fernando Cândido da Silva, tendo um olhar de exegeta orgânico, isto é, daquele que
desenvolveu a capacidade de ler nas entrelinhas dos textos o sofrimento e a exploração a
que são e foram submetidos as classes subalternizadas ao longo da história.183

Em verdade, os textos de que farei uso, são como a moldura de um quadro que
ainda está por ser pintado. Na moldura se tem o projeto ideológico imposto pela classe
dominante a toda a província de Judá. Consiste numa moldura que se destaca pelo peso
e rigidez do material utilizado. Pintado com as cores fortes da sedução encanta aos
espectadores menos atentos, pois como num jogo de espelhos só se vê numa quase
infinidade de imagens aquilo que os olhos são capazes de reter. É como Marta
Harnecker, falando de Marx, argumentava sobre sua originalidade quanto ao modo
tradicional de ver e interpretar a realidade: “A originalidade de Marx ficaria reduzida à

183
Fernando Cândido da Silva, Uma aliança abominável e per/vertida? Anotações subalternas sobre o
arquivo deuteronômico, UMESP, São Bernardo do Campo, 2011, p.53. (Tese de Doutorado)
inversão da concepção de Hegel. Segundo a formulação do próprio Marx, ele teria
„posto sobre os pés o que em Hegel andava de cabeça para baixo‟”184.

Alguém pode argumentar que se este conjunto de textos não tivesse sido criado
Israel jamais teria se tornado uma nação, sua identidade jamais teria sido forjada e que,
na verdade, os textos deram, acima de tudo, coesão social. Mas, é de se perguntar: qual
foi o preço pago por esse golpe literário? Quem lucrou e quem perdeu com a invenção
destas histórias?

De fato, como diz o ditado, o fim não justifica os meios, pois a perversão dos
meios implica na degeneração do fim. De fato, é bem isto que tentarei demonstrar.
Minha intenção ao fazer uso dos textos bíblicos é a de caracterizar o tipo de relação de
poder que se estabeleceu entre a classe sacerdotal jerusolimitana e o campesinato
judaíta. É tentar ler pelas entrelinhas do próprio texto aquilo que o texto não diz. Pelo
reverso do verso ter acesso ao anverso. É como num trabalho de garimpo, mergulhado
nas águas turvas do texto, peneirar essas pérolas a que o tribalismo por séculos foi
submetido. Ver o grande prejuízo que tiveram, principalmente, no tocante aos seus mais
nobres princípios e valores morais. É como diz Rigoberta Menchú Tum:

Para responder a essa pergunta, é fundamental considerar as condições em que vive a


imensa maioria de nossa população mundial, suas profundas reivindicações que
fundamentam as lutas e esperanças de um futuro melhor. A concentração dos poderes
em poucas mãos condena os pobres a serem mais pobres e torna mais evidente a
urgência de retomar os sagrados valores que deram origem à nossa humanidade; isto
é em essência, o que reivindicamos os povos indígenas e os povos originários do
mundo [...] O respeito aos valores e direitos individuais e coletivos, ou seja, a vitalidade
e a validade do equilíbrio como requisitos indispensáveis de um mundo justo e
pacífico.185

Assim, são essas as questões que agora me motivam a essa empreitada científica.
Não menosprezo em nada os trabalhos e pesquisas já realizados a nível literário, e
havendo necessidade, com toda certeza, lançarei mão do material disponível que
conseguir ter acesso. Mas, como já é possível perceber, essa tese tem um caráter
nitidamente de revisão histórica, devido aos inúmeros problemas que surgiram face aos

184
Marta Harnecker, Conceitos elementais do materialismo histórico, 1973, p.208.
185
Giulio Girard, Os excluídos construirão a história? – O movimento indígena, negro e popular: “Durante
cinco séculos outros falaram por nós, hoje queremos começar a falar com voz própria”, São Paulo,
Editora Ática, 1996, p.13.
dados provenientes, principalmente, das pesquisas arqueológicas186. Procedo a uma
espécie de desconstrução daquela compreensão tradicionalmente aceita com relação à
historicidade da maioria dos textos que compõe o conjunto dos livros do Antigo
Testamento.

Conforme o próprio tema salienta, esta tese quer submeter diferentes textos
produzidos no período persa que tornam claras as relações de poder entre o campesinato
judaíta e a classe sacerdotal jerusolimitana, a uma análise histórico-crítica. Para isso,
lanço mão do método histórico-crítico. Conforme trabalho coordenado por Horácio
Simian-Yofre pode-se fazer as seguintes distinções quanto a este método:

 Método: designa um conjunto de procedimentos que permitam acesso mais objetivo a


um objeto de pesquisa. Por isso, deve ser compreensível, imitável e controlável com
elementos ao alcance das mãos de quantos tem certa familiaridade com a disciplina a
que se dedicam.
 Histórico: o termo implica em reconhecer que os textos bíblicos foram concebidos em
tempos idos, que se desenvolveram num processo histórico e que, por conseguinte, a
relação com aquele tempo tem provavelmente algo a dizer sobre o sentido de tais textos,
embora possam ter ainda vida e sentido atuais.
 Crítico: esta palavra, tal como se costuma interpretar, significa estabelecer distinções e
com base nelas poder julgar os diversos aspectos do texto ligados à história: o processo
de constituição do texto, a identidade do autor, o tempo da composição, a relação com
outros textos contemporâneos, e a referência do conteúdo do texto à realidade
extratextual (por exemplo, a história política, social e religiosa que o texto subentende).
Esse aspecto “crítico” está ligado, talvez necessariamente, a aspectos ideológicos.
Certos pressupostos políticos ou religiosos, gerais ou próprios de determinado período
da história, favorecem determinada interpretação dessas realidades.187

No tocante ao aspecto crítico, vale lembrar as linhas traçadas por Martin


Dibelius, Karl L. Schimidt e Rudolf Bultmann188 no que tange à inspiração divina do
texto bíblico. Para Bultmann a bíblia não é palavra de Deus inspirada em nenhum
sentido objetivo, sendo somente produto de antigas influências históricas e religiosas e

186
Ver Amihai Mazar, Arqueologia na terra da bíblia: 10.000-586 a.C.,São Paulo, Paulinas,2003, 554p.;
Israel Filkenstein, A bíblia não tinha razão, ...... Lester L Grabbe, The Priests in the Prophets: The
Portrayal of Priests, Prophets and Other Religious Specialists in the Latter Prophets, London, T & T Clark
International, 2004, 224p; A history of the Jews and Judaism in the Second Temple Period: volume 1 –
Yehud: A history of the Persian Province of Judah, New York, T&T Clark International, 2004, 471p.;
History of the Jews and Judaism in the Second Temple Period: volume 2 – The Coming of the Greeks: The
Early Hellenistic Period (335-175 BCE), New York, T&T Clark International, 2008.
187187
Horácio Simiam-Yofre (coord.), Metodologia do Antigo testamento, São Paulo, Edições Loyola,
2000, p.74.
188
Bultmann é considerado pelos acadêmicos como um dos maiores exegetas do século XX. Chamado
por muitos como “teólogo da demitização” ou “desmitologização”, Bultmann inovou em muito os
estudos da bíblia.
que deve ser avaliada como qualquer outra literatura religiosa antiga. De fato, são tantas
contradições, erros, fantasias históricas e, principalmente, ideologias, que chega a ser
impossível qualquer tentativa de sustentar a inerrância e inspiração dos livros bíblicos.
Conforme afirmou o Prof. Loyse, do Instituto Católico de Paris, os conceitos de
inerrância e inspiração são conceitos definitivamente superados189.

Neste sentido, me aterei mais a alguns aspectos do método histórico-crítico que


são extremamente relevantes para a consecução dos objetivos propostos. A
determinação do Sitz im Leben ou Sitz in der Literatur dos textos que serão analisados,
são muito importantes no que tange á crítica do gênero literário e à crítica das tradições.

Segundo Simian-Yofre:

A determinação da situação sociocultural ou somente literária do gênero literário em


pauta é o mais interessante e delicado da crítica do gênero literário. O pressuposto dessa
determinação é a hipótese de que todo texto está ligado de alguma forma a
circunstâncias culturais, sociais, econômicas, políticas e religiosas. Não há textos de tal
modo neutros que não acusem suas “intenções” de modo muito concreto.

[...] A determinação da situação sociocultural de um gênero literário apoia-se em


acurada crítica da forma de diversos textos, com particular atenção a seu horizonte
literário, e em conhecimento suficiente do universo do texto.

O universo do texto é o conjunto das circunstâncias do mundo extrabíblico (momento


histórico-político, situação econômica e social, tendências religiosas e culturais) que
ajudam a entender seu significado e intenção.190

Como poderá ser constatado, textos como o Pentateuco e a Obra Historiográfica


do Cronista (OHC) não são textos isolados uns dos outros, mas, muito pelo contrário,
estão profundamente interligados a ponto de possibilitar a determinação em última
instância de suas reais intenções redacionais, isto é, a ideologia que está por trás como
pano de fundo. Eles se enquadram dentro da categoria de um texto literário com forte
caráter etológico, pois querem determinar o desenlace do contexto social e político do
presente através de situações históricas inventadas sobre o passado.

Também como afirma Simian-Yofre, no texto acima citado, ter clareza quanto
ao universo do texto e ao conjunto das circunstâncias do mundo extra bíblico (momento
histórico-político, situação econômica e social, tendências religiosas e culturais), nos
permite verificar a hipótese de que o Judaísmo ainda nascente dos séculos IV e III a.C.,
189
Citado por Horácio Simian-Yofre, Metodologia..., p.74
190
Horácio Simian-Yofre, Metodologia..., p.102-103.
que tem seu fundamento, principalmente nos livros da OHD, em Ez 40-48, na OHC e
nos livros do Pentateuco, teve como patrocinador, nada mais nada menos, do que o
próprio império persa, com sua política imperial de controle dos povos subjugados.

Outro aspecto que é interessante observar, é o fato de que, segundo Frank


Crusemann, a possível causa da crise a que chegou a exegese atualmente, está em que
não se deu muita atenção à forma final do texto bíblico. Levar em conta a compreensão
global do conjunto é fator decisivo na compreensão das partes. Conforme Crusemann
salienta, apesar do constante retorno desse questionamento global do conjunto, é
impressionante constatar como os mesmos métodos ainda continuam a dominar a
pesquisa. Nesse sentido ele se pergunta: será que estes aspectos da exegese são
suficientes para nos levar à compreensão dos textos? E responde: Não, pois as forças
que suscitaram a formação dos textos atuais devem ser levadas em conta com a mesma
prioridade, tanto no plano político como no social.

Só sobre este pano de fundo se poderá esperar compreender realmente o processo


literário como mostra a espinhosa questão: a quem atribuir a última palavra, nesta
questão, às vozes sacerdotais ou deuteronomistas?191

É interessante perceber que a grande intuição de Crusemann quanto a ter


presente a totalidade do texto, isto é, não somente alguns aspectos de seu corpus total,
sem a qual, fica impossível descobrir sua intenção de fundo que se reflete através de
uma análise do jogo de forças em que se encontra a sociedade dentro da qual foi escrito
determinado texto.

Em meu horizonte de pesquisa, estabeleci as relações de poder entre o


campesinato judaíta e a classe sacerdotal jerusolimitana, no período pós-exílico, como
meu objeto privilegiado de pesquisa, pois acredito ser ela a chave que pode nos dar a
compreensão da motivação de fundo que estava na base do processo de redação de boa
parte do conjunto dos livros do Antigo Testamento: o Pentateuco, a Obra
Historiográfica do Cronista (OHC – 1 e 2 Crônicas, Esdras e Neemias) e Ezequiel 40 –
48, dentre outros livros de menor expressão, tais como o livro de Joel, Malaquias, etc.,
sem deixar de lado a Obra Historiográfico Deuteronomista (OHD – Josué, Juízes, 1 e 2

191
Frank Crusemann, “O Pentateuco, uma torá. Prolegômenos à interpretação de sua forma final” em
Alberty de Pury (org.), O Pentateuco em questão: as origens e a composição dos cinco primeiros livros da
Bíblia à luz das pesquisas recentes, 2ª Edição, Rio de Janeiro, Editora Vozes, 2002, p.273-274.
Samuel e 1 e 2 Reis, que serviram de base para a redação da OHC), que nos auxilia na
reconstrução da trajetória do tribalismo “israelita”.

Nesse sentido, todo trabalho de pesquisa desta tese, que tem no método
histórico-crítico, seu principal instrumento de aproximação e análise de realidades
sociais, será feito segundo os critérios e categorias do materialismo histórico, ou seja, da
teoria marxista da história, pois tenho a firme convicção de que a teoria inicialmente
desenvolvida por Karl Marx e Friedrich Engels e posteriormente aprofundada por
grande número de estudiosos é extremamente profícua no tocante ao estudo e análise
das relações de poder numa sociedade dividida em classes sociais, pois como afirmou
François Houtart com relação a Marx, e Engels:

[...] Retomando uma hipótese já formulada antes deles, segundo a qual a história é a
história da transição de formas de organização social sem classes às sociedades de
classe [...] condições e formas de transição das sociedades não diversificadas que
evoluem de múltiplas formas no sentido de formas distintas de Estado e de sociedades
de classe.192

De fato, é bem isto que pode ser evidenciado com a ascensão do judaísmo. Um
processo bem claro de transição de uma sociedade marcada pela igualdade, isto é, não
dividida em classes sociais – tribalismo – para uma sociedade marcada pelo surgimento
do Estado, ou seja, por uma sociedade dividida em classes sociais, onde o poder
religioso foi o grande protagonista de toda uma grande e radical metanoia, não somente
em seu aspecto religioso, que foi dominante, mas principalmente, nas demais dimensões
da vida, pois como afirma Lester L. Grabbe: considerações econômicas não podem ser
claramente separados do debate da sociedade e da administração da província de Judá, e
até mesmo da religião.193

4.1 – Contexto histórico do objeto de pesquisa

Não é meu objetivo proceder a uma completa reconstrução histórica do período


persa, apesar de ser neste período que as relações de poder entre o campesinato judaíta e
a classe sacerdotal jerusolimitana se intensificaram mais e mais, mas pontuar alguns
192
François Houtart, Religião e modos de produção pré-capitalistas, São Paulo, Edições Paulinas, 1982,
p.13-14.
193
Lester L. Grabbe, A history of the Jews and Judaism in the Second Temple Period: volume 1 – Yehud: A
history of the Persian Province of Judah, New York, T&T Clark International, 2004, p.189.
acontecimentos que são relevantes para a compreensão do tipo, natureza e fundamento
em que essas relações foram estabelecidas.

Como afirmou de saudosa memória, o nosso grande amigo e mestre Milton


Schwantes:

Eu acho que o maior desafio é o pós-exílio. É a parte mais interessante em relação ao


Novo Testamento [...] esse é o ponto mais importante que nós temos pela frente para
estudar e que, hoje em dia, está criando “reboliço” na ciência e vai ter seus reflexos no
Novo Testamento. Este estudo é que está gerando grandes descobertas na área da
Bíblia. [...] É o ponto mais difamado pela teologia tradicional, porque para um bom
cristão o Antigo Testamento vai até o exílio, e depois pega aquela turbina a jato e
aterrissa em Belém, passando por cima de cinco ou seis séculos. O que fica entre o
exílio e Belém é mais ou menos inexistente [...] Portanto o redescobrimento deste
mundo intermediário é a grande conquista destes últimos tempos.194

Assim também pensa Lester L. Grabbe, quando afirma que o período persa foi o
período mais importante para o desenvolvimento do pensamento e da prática judaica
desde a antiguidade até o presente, pois entender os acontecimentos deste período é
chave para a compreensão de todos os desenvolvimentos do judaísmo. Uma
compreensão das forças e dinâmicas, presentes no segundo templo são essenciais para a
compreensão das condições de sobrevivência do campesinato judaíta.195

4.2 – Os persas e sua política imperial de controle social.

Para respondermos a muitas perguntas relacionadas ao objeto de pesquisa, se


faz necessária uma análise mais detalhada, não somente do contexto social, mas,
principalmente, do contexto histórico, isto é, das relações que Judá desenvolveu com o
império persa.

Os persas, diferentemente de outros povos, como por exemplo, assírios ou


babilônios, desenvolveram um estilo dominação política totalmente diferente. Herbert
Donner escreve que fora o rei Dario quem se ocupara dessa estruturação interna do
império. Dividido em sátrapias (do persa xshatrapavan, que quer dizer: “protetor do

194
Milton Schwantes, “Aprendendo a ler a escritura” em Simpósio, nº 41, São Paulo, ASTE, 1998, p.xxxx
195
Lester L. Grabbe, A history of the Jews and judaism in the second temple period: volume 1 – Yehud: a
history of the Persian Province of Judah, London, T&T Clark International, 2004, p.2.
domínio”) com seus devidos representantes, o império persa mantinha o controle
político, militar e econômico ao longo de todo o seu império. As satrapias, com seu
governador local, desfrutavam de certa autonomia em relação com a sede do império.
Judá pertencia à 5ª satrapia, isto é, à satrapia localizada na província de Samaria.196

Variando de intensidade ao longo dos 200 anos de domínio na região, pode-se


dizer que, o domínio político, social e econômico sobre Judá, manteve-se sempre
presente, apesar de que, com a nomeação de um governador próprio para a região,
Judá gozou de certa autonomia, particularmente no campo religioso.

Para manter esse controle social, político e econômico, o império persa


desenvolveu um sólido esquema, que tinha alguns instrumentos ou mecanismos, que,
estrategicamente, permitiam ao império, controlar e arrecadar tudo aquilo de que
necessitavam para sua manutenção.197

Segundo Lester L. Grabbe, que tem constantemente asseverado contra a ideia


de que o império persa não promovia nenhuma espécie de domínio pela religião nas
províncias. Sua estrutura administrativa estaria preocupada com a arrecadação de
impostos e com as receitas provenientes das províncias, e não ocupando-se
profusamente em financiar templos e cultos ou isentando povos ou grupos específicos
de impostos. A maioria das fontes existentes que parecem apoiar a isenção de
impostos especiais são aquelas escritas por judeus para reivindicar privilégios especiais
para si.198

Mas, por outro lado, o mesmo Grabbe afirma que os impérios antigos tinham
pouca compreensão da teoria econômica e por isso, podem não ter tido uma

196
Donner afirma que o território total de domínio do império persa foi dividido em 23 satrapias, sendo
que para o Oriente Próximo, foram importantes quatro satrapias: “1. Babairu (= Babilônia, i.é.,
Mesopotâmia); 2. Atura (= Assíria, no sentido de Síria, em acádica: Eber Nari, em aramaico imperial:
A a
‘ bar Nah ra, “transeufrates” (ao pé da letra: “além do rio”, visto a partir da Pérsia e da Mesopotâmia, i.
é., o corredor siro-palestinense; 3. Arabaya ( = Arábia do Norte); 4. Mudraya (= Egito). As satrapias
tinham que pagar tributos regulares e cuidar do sistema de correios”. Herbert Donner, História de Israel
e dos povos vizinhos: volume 2 – da época da divisão do reino até Alexandre Magno, 2ª Edição,
Petrópolis, Vozes, 2000, p.450.
197
Passo a citar 6 mecanismos de controle social e político, habilmente desenvolvidos pelo império
persa e assinalados por Marcos Paulo Monteiro da Cruz Bailão, Doença impura como limite da
identidade comunitária, São Bernardo do Campo, UMESP, 2001, p.212-224, em sua Tese de Doutorado.
198
Lester L. Grabbe, A history of the Jews and Judaism in the Second Temple Period: volume 1 – Yehud: A
history of the Persian Province of Judah, New York, T&T Clark International, 2004, p.145.
consciente política econômica, se não, algo de muito rudimentar. Se a economia
romana foi subdesenvolvida, quanto mais os reinos persas e gregos. O poder imperial
antigo parece ter tido dois principais interesses: impostos e serviço militar. Sua
“política econômica” era simplesmente uma maximização de receita a partir de um
ponto de curto prazo de vista, não fazer o que hoje poderíamos considerar como
investimento de longo prazo.199

4.2.1 – Ruralização

Segundo levantamento arqueológico feito em Judá em 1990, por Kenneth


Hoglund, esta região teria passado por um grande povoamento durante o período de
domínio persa.200 Surgiram muitas vilas, pequenas comunidades agrícolas, que
produziam víveres em quantidade suficiente, visando o abastecimento alimentício do
império.201

Já C.E. Carter em 1999 apontou que os dados de Hoglund necessitam de uma


maior correção à luz dos novos inquéritos e publicações. Segundo Carter houve sim,
uma queda significativa no número de assentamentos em Judá no período persa, e
não um aumento como pensou Hoglund. No geral, o retorno de alguns exilados não
proporcionou impacto significativo sobre a arqueologia ou a demografia.202

Por isso, podemos supor que com o retorno dos exilados, toda a problemática
relacionada a quem pertencia por direito as terras em Judá, não foi logo de início
enfatizada com o maior problema, como pensava, por exemplo, John Bright.203

Segundo Marcos Bailão, “o problema maior não era a posse da terra, mas o
destino do que era produzido nela. Isto realmente provocou profundas mudanças no

199
Lester L. Grabbe, A history of the Jews and Judaism in the Second Temple Period: volume 1 – Yehud: A
history of the Persian Province of Judah, New York, T&T Clark International, 2004, p.190-191.
200
Kenneth Hoglund, “The achademic context” em Philip R. Davies, Second temple studies: 1 Persian
Period, Sheffield, JSOT Press, 1991, p.57-60.
201
Conforme Hougland à p.59, citado acima, o império persa se considerava dono absoluto de todas as
terras conquistadas, sentindo-se no direito de fazer o que bem entendesse.
202
Lester L. Grabbe, A history of the Jews and Judaism in the Second Temple Period: volume 1 – Yehud: A
history of the Persian Province of Judah, New York, T&T Clark International, 2004, p.203.
203
John Bright, História de Israel, 3ª Edição, São Paulo, Paulinas, 1985, p.495.
meio da sociedade, principalmente na primeira fase do período de dominação
persa”.204

Portanto, pode-se afirmar que não houve uma política persa de ruralização na
província de Judá. Mas, Hoglund está correto quando afirmou que a população de Judá
viveu principalmente em pequenas aldeias sem muros e teve um nível de economia de
subsistência.

4.2.2 – Militarização e incremento comercial

Outro dado importante advindo das pesquisas arqueológicas é quanto ao


grande número de fortalezas construídas, no início do séc. V a.C., ao longo de toda a
região da Palestina. Segundo Paula McNutt, estas fortalezas foram construídas ao lado
das principais rotas comerciais que cortavam a região.205

Com o objetivo, não só de se impor militarmente e controlar qualquer possível


rebelião, mas de ter absoluto controle de tudo o que era produzido, bem como do
tráfego de caravanas de mercadores que transitavam pela região, é que foram
construídos dezenas de fortalezas.

Segundo Kenneth Hoglund, citado por Marcos Bailão, o deslocamento de


tropas, de uma região para outra, visando ocupar as recém-construídas fortalezas,
fazia com que pessoas de diferentes etnias e culturas, fossem transferidas, provocando
um grande processo de enculturação, tanto de um lado, quanto do outro.206

4.3 – Reconstruindo partes da história

Como salientado por Milton Schwantes na citação acima, o período persa se


torna, não só muito interessante, mas acima de tudo, por demais relevante, pois é no fim
desse período que, por exemplo, o livro do Pentateuco ganhou sua redação final, a Obra

204
Marcos Paulo Monteiro da Cruz Bailão, Doença impura..., p.217. De fato, como afirma Bailão, “o
destino do que era produzido” na terra é que se tornou o grande entrave. Por isso, em momento
oportuno trabalharei o conceito marxista do “materialismo histórico”.
205
Paula McNutt, Reconstructing the society of Ancient Israel, Londres, Westminster John Knox Press,
1999, p.185-186.
206
Marcos Paulo Monteiro da Cruz Bailão, Doença impura..., p.218.
Historiográfica do Cronista (Esdras, Neemias, 1 e 2 Crônicas) é escrita assim como
outros livros do Antigo Testamento.207 E são livros que retratam a história desse mesmo
período em questão, suas lutas e desafios. Mas, como afirma Sandro Gallazzi:

O primeiro esforço de busca narrar uma história unívoca, para todos e para sempre, é o
de eliminar contradições, grupos, povos. Trata-se de um “genocídio” ideológico, para
evitar dúvidas e discussões.

Trata-se de demonstrar que o grupo que “hoje” está ao poder, esteve no poder desde
“sempre” ou, de alguma forma, desde sempre, esteve caminhando nesta direção.

Os outros? Ou estão “tranquilamente” relacionados com o grupo no poder ou não são


dos “nossos” ou, simplesmente, não existem.208

De fato, como constata Sandro Gallazzi, um exemplo claro desse jeito de narrar
a história, eliminando contradições, grupos e povos, é o que foi feito pelo redator da
OHC. Precisamente no livro de Crônicas pode-se detectar esta estratégia literária, mas
que, para nós hoje, não passa de uma forma de esconder o verdadeiro sentido que está
por trás do texto. Vejamos o que o redator de Crônicas nos apresenta quanto ao tempo
após a destruição de Jerusalém por Nabucodonosor em 587 a.C..

 Igualmente todos os chefes dos sacerdotes e do povo multiplicaram suas


prevaricações, imitando todas as abominações das nações, e manchariam a
Casa que o Senhor consagra a si em Jerusalém [...] até o furor do Senhor
contra seu povo chegar a tal ponto que já não havia mais remédio (2 Cr 36,14-
16).
 Deus entregou todos em suas mãos. Nabucodonosor levou para Babilônia todos
os objetos do templo [...] incendiaram todos os palácios, destruíram todos os
objetos precisos [...] deportou para a Babilônia todo o resto da população que
escapara da espada (2 Cr 36,17-20a).
 Todos tiveram que ser escravos e servir a ele e a seus filhos até o
estabelecimento do reino dos persas (2 Cr 36,20b).
 Conforme a profecia de Jeremias, a terra repousou durante todos os dias da
desolação, até que se passassem setenta anos (2 Cr 36,21; Jr 29,10).
 No Edito de Ciro, também, se generaliza: Todo aquele que pertence a todo seu
povo, que seu Deus esteja com ele e que se dirija para lá (2 Cr 36,23b).

Conforme observa Sandro Gallazzi, na história escrita pelo redator da OHC


diferentes grupos sociais são deixados no esquecimento:

207
Por exemplo: Dêutero e Trito Isaías, Ezequiel, Joel.
208
Sandro Gallazzi, A teocracia sadocita: sua história e ideologia, Biblioteca de Estudos Bíblicos, Macapá,
2002, p.15.
 O grupo “pobres da terra” que naquele dia receberam vinhas e campos
(Jr 39,10).
 Jeremias com todos os levitas que ficaram com Godolias em Masfa (Jr
40,6).
 Os “chefes” do campo que se convenceram a servir ao rei dos Caldeus (Jr
40,7-10).
 Os “judaítas” que tinham emigrado para Amom, Moab e Edom e que
voltaram para ficar com Godolias (Jr 40,11).
 Os 80 homens de Siquém, Silo e Samaria que vieram apresentar oblações
e incensos na casa de Iahweh (Jr 41,4-5).
 Os soldados caldeus que ficaram em Masfa (Jr 41,3b), as “filhas do rei”
(Jr 41,10) e, também, os “eunucos” da corte (Jr 41,16).

Desse modo, para o redator do livro de Crônicas, nunca existiu um “resto em


Judá” (Jr 40,11) e muito menos um “resto de Judá” (Jr 40,15). Para a história narrada
em Crônicas, o único resto que sobrou da destruição imposta pelo exército babilônico
foi o que Nabucodonosor levou para o exílio (2 Cr 36,20).

Outro aspecto que deve ser enfatizado é o fato de que houve o que podemos
chamar de um “processo de retribalização”. Após a destruição de Jerusalém pelas
tropas babilônicas, Nabuzardã, comandante da guarda e general das tropas de
Nabucodonosor, deixou que o campesinato empobrecido tomasse novamente, posse
da terra (cf. 2 Rs 25,12). Esta mesma situação é descrita pelo profeta Jeremias no
capítulo 40,10b-12. Diz ele:
[...] Quanto a vós, fazei a colheita do vinho, das frutas e do azeite, fazei provisões e
ficais nas cidades que ocupais. Da mesma forma, todos os judaítas que se achavam em
Moab, entre os amonitas, em Edom e em todas as outras terras, souberam que o rei
de Babilônia tinha feito concessões a Judá e nomeado comissário a Godolias, filho de
Ahiqâm, filho de Shafan. Eles voltaram então de todos os lugares onde tinham sido
dispersados. De volta à terra de Judá, para junto de Godolias, em Mispá, fizeram uma
colheita de vinho e de frutas, uma colheita super abundante.

Esta passagem do livro do profeta Jeremias nos deixa entrever o tipo de


situação política e social que se desenvolveu após a destruição de Jerusalém, bem
como também e, principalmente, da deportação do restante da elite que sobrevivera
ao massacre babilônico: os camponeses recuperaram a posse da terra e voltaram a
produzir livremente, sem a interferência ou ingerência da figura do estado.
É o que poderíamos falar de uma verdadeira e autêntica reforma agrária em
pleno século VI a.C. Tem início nesse exato momento histórico, conforme concordam
Martin Noth, Milton Schwantes e Norman K. Gottwald 209, um processo de
retribalização, isto é, o campesinato volta a reviver seus nobres valores e seu
tradicional modo de vida fundado no tribalismo.
É interessante perceber que enquanto o “povo da terra” e os “habitantes da
terra” são levados para a Babilônia, são os “pobres da terra” que passam a ocupar a
terra deixada pelos antigos dominadores (elite: rei, raínha, príncipes, chefes, dignitários,
servos, notáveis [povo da terra], ferreiros e serralheiros). Com Godolias os “pobres da
terra” voltaram a ser o “povo da terra” sob todos os ângulos.210 O grande efeito sentido
por esses que agora voltaram a possuir a terra, isto é, dos camponeses retribalizados, é o
fato de que eles não mais precisaram pagar tributos, seja na forma de ofertas ou dízimos
ao templo de Jerusalém, bem como também ao rei, monarca descendente de Davi,
porque estes já não existiam mais. Esta situação possibilitou aos camponeses reviverem
uma situação economicamente estável, bem como também, voltarem a cultuar seus
deuses em seus diferentes templos ou santuários, que por um tempo, haviam sido
proibidos, devido ao processo de centralização do culto no templo de Jerusalém
promovido pela reforma de Josias antes da invasão e destruição do exército babilônico
em 597 e 587 a.C..

Passado o tempo do exílio, com a ascensão do império persa, muitos daqueles


que outrora haviam sido exilados foram “convidados” a retornarem a Judá. O fim do
exílio se deu por volta de 539 a.C., quando Ciro, sem resistência alguma por parte dos
babilônios, penetrou em suas cidades e se autoproclamou como o novo rei.

Diferentemente dos assírios, que segundo resumo de Herbert Donner, tinham


uma estratégia de guerra, cujo objetivo era:

[...] eliminar, tanto quanto possível, a vida própria dos povos subjugados através de
saques e destruição, através de deportações implacáveis, através de altos tributos e de
um regime duro. Eles haviam almejado uma massa de povos cosmopolita o mais

209
Martin Noth, Storia d’Israele, Brescia, Paideia, 1975, p.354-359; Milton Schwantes, Sofrimento e
esperança no exílio, São Paulo, Paulinas, 1987, p.30-32; Norman Gottwald, Introdução socioliterária à
Bíblia Hebraica, São Paulo, Paulinas, 1988, p.397-399.
210
Sandro Gallazzi, A teocracia sadocita..., p.19.
homogênea possível, sob liderança assíria. Peculiaridade, história, vida cultural,
religiosa e cúltica dos povos sujeitados lhes haviam sido profundamente suspeitas. Sua
tentativa de pacificar o império estava fundada na violência. Essa política fracassara211

Os aquemênidas estavam decididos a não repetir essa política de domínio pela


violência. Basearam sua política de domínio e controle dos povos subjugados num
eficiente esquema de manutenção da ordem através da divisão do império em diferentes
regiões chamadas de satrapias tendo á frente de cada uma destas regiões, um chefe
(sátrapa). Este sátrapa tinha a missão de manter os interesses do império na região em
que comandava que se resumiam em dar certa autonomia aos povos subjugados e
efetuar as devidas cobranças de tributos. Esta tolerância abrangia tanto os aspectos
culturais e como os religiosos, que só eram reprimidos diante de manifesta rebelião
política visando sua total libertação. Em função dessa estratégia política, os persas
estabeleceram o aramaico como a língua oficial em todo o império. Como veremos,
trechos de Esdras (4,8 – 6,18) e Daniel (2,4 – 7.28) foram escritos numa variante do
aramaico oficial.

Ainda em relação às estratégias ideológico-literárias do redator da OHC, mais


precisamente o livro de Crônicas, é visível o fato de que redator tenha deixado de lado
mais um grupo. Nenhuma menção foi feita com relação à corte de Joaquim, depositário
que era das últimas esperanças daviditas (ver 2 Rs 25,27-30; Jr 52,31-34).

Afinal, como afirma Sandro Gallazzi:

[...] no tempo da redação destes livros, estas esperanças já tinham histórica e


definitivamente morrido: o templo reinava como único e absoluto centro de poder; o
Sumo Sacerdote era o único príncipe no poder. Só uma parte do povo ainda ansiava
messianicamente pelo “filho de Davi”!212

Como poderá ser constatado, tanto o grupo social designado como “campesinato
judaíta” quanto o grupo social designado pelos sacerdotes do templo de Jerusalém,
constituíram-se nos dois principais grupos dentre outros, foram os grandes protagonistas

211
Herbert Donner, História de Israel e dos povos vizinhos: Volume 2 – da época da divisão do reino até
Alexandre Magno, 2ª Edição, Rio de Janeiro, Editora Vozes, 2000, p.445.
212
Sandro Gallazzi, A teocracia sadocita..., p.16.
do Judaísmo ainda incipiente, respectivamente, o grupo dominado e subjugado frente ao
grupo dominador.

É bom salientar também que para Ezequiel, os camponeses que ficaram e


tomaram posse da terra, não eram seus verdadeiros proprietários, mas acusados de
fazerem “violência”. Além disso, pelo fato de terem retornado à antiga religiosidade
foram condenados por terem praticado um culto idolátrico, isto é, um culto não
conforme ao proposto pela reforme josiânica (Ez 33,24 – 29).

Na verdade, o grupo de Ezequiel, se assim podemos chama-los, propugnou


como sendo o verdadeiro Israel, somente aqueles que foram exilados. A eles Ezequiel se
dirigiu chamando-os de “casa de Israel”, não somente como forma de condenação por
tudo o que havia acontecido (2,3-7; 3,4-9; 5,4; 12,6.8; 14,4-11) mas também, durante o
próprio período do exílio como o grupo sobre o qual repousava toda a esperança de
restauração e reconstrução de Jerusalém (28,24-25; 34,30; 33,7.10; 36,10.22.37;
39,22.25.29).

Assim, pode-se concluir que tanto Jeremias quanto Ezequiel tinham pontos de
vista teológicos diferentes. Para Jeremias “resto” eram os pobres camponeses que
ficaram e tomaram posse “novamente” da terra (Jr 40,11.15). Para Ezequiel, “resto”
eram os exilados (Ez 5.4-17; 11,17-21). Enquanto Jeremias incluía em seu projeto de
reconstrução tanto os exilados como os remanescentes que ficaram, Ezequiel, os
excluiu, afirmando que só os exilados eram a verdadeira “casa de Israel”. Aqui estão
postos os termos que geraram os grandes conflitos. Segundo Sandro Gallazzi, resto de
Israel não é somente uma questão teológica, é, também, uma questão econômica e
política, pois foi ao redor destas questões que os diferentes grupos se enfrentaram na
luta pelo poder.213

Nitidamente influenciado pela Obra Historiográfica Deuteronomista (OHD),


Ezequiel tinha o templo e o palácio, assim como no passado, como instituições para
sempre estabelecidas, elementos privilegiados da estrutura sócio-política futura. O
palácio continuará sendo lugar do julgamento e o templo lugar da “oferenda
obrigatória” e da “melhor parte dos dons”, em todas “as coisas santas” (Ez 20,40).214

213
Sandro Gallazzi, A teocracia sadocita..., p.32.
214
Idem, p.34.
Outro grupo que sobrevive no exílio é aquele cujas palavras ecoaram por meio,
talvez, de um seu representante: o Dêutero-Isaías. Nada tem do grupo da elite a quem se
dirigia Ezequiel. Não é a “casa de Israel”. Uma leitura bem atenta nos dá capacidade de
perceber a presença ativa de mulheres no meio desse grupo. Sandro Gallazzi caracteriza
esse aspecto feminino da seguinte forma:

Não só a profunda ternura da linguagem, a enorme capacidade de compreender e


perdoar, a simplicidade e a delicadeza de um relacionamento sempre reatado, mas a
experiência da mulher, sobretudo da mulher que passou pelos horrores indescritíveis da
guerra, são transformadas em “lugar teológico”, gerador de vida e de teologia.

É a experiência da mulher que ajuda a compreender e descrever a situação do povo no


exílio: “desfilhada... estéril... rejeitada” (Is 49,21). “mãe que se pensava repudiada, sem
o ser” (Is 50,1); “mãe abandonada por seus filhos que não querem estender-lhe a mão”
(Is 51,18); “estéril ... abandonada com filhos... com uma mocidade vergonhosa...
experimentando o opróbrio da viuvez” (Is 54,1.4).

O assim chamado Dêutero-Isaías, ao que tudo indica, é radicalmente contra


templo e o palácio. Uma nova posição teológica. De agora em diante o profeta prevê um
tempo novo, tempo sem mediadores entre Iahweh e seu povo. Existe uma única citação
que faz referência ao santuário em Is 44,28215, mas, foi com certeza uma adição
posterior, uma profecia do tipo ex eventu, pois em Is 43,22-28 tem-se um texto
mostrando claramente a posição deste grupo quanto a impotência e inutilidade dos
sacrifícios e ofertas.

E sonhando com um retorno triunfal, Dêutero-Isaías prevê tudo como se fosse


um novo êxodo, pois a volta seria marcada por uma “distribuição das propriedades
devastadas, para restaurar a terra” (Is 49,8). Mas, igualmente aos outros grupos que
estão percebendo a oportunidade de retornar a Judá, este grupo também enfrentará o
problema daqueles remanescentes que tomaram posse das terras desocupadas. Segundo
Sandro Gallazzi, o fato de terem a seu favor uma abertura bem maior, pra não dizer,
universalista, este grupo conseguirá na base do diálogo se entrosar com o os “pobres da
terra”, o que é testemunhado pelo Trito-Isaías.216

Passemos agora a definir de modo bem criterioso e em forma de tópicos, alguns


conceitos que serão utilizados nos capítulos seguintes.
215
Ver Biblia de Jerusalém, nota a, p.1434. Ver também Carroll Stuhlmueller, “Deutero-Isaia” em Grande
Comentário Bíblico, Brescia, Queriniana, 1973, p.479.
216
Sandro Gallazzi, A teocracia Sadocita..., p.36.
4.4 – O tribalismo israelita

Tradicionalmente se tem a ideia de que quando se fala em tribalismo em Israel,


logicamente, logo se pensa no período pré-estatal, pois de acordo com a Bíblia
Hebraica, este seria o período em que as tribos, depois da libertação da escravidão no
Egito e da caminhada por 40 anos pelo deserto, teriam finalmente entrado na posse da
terra prometida. Posteriormente a estes eventos, viria o período dos Juízes e após
este, o período monárquico. Tudo aconteceria entre o início do século XIII e final do
século XI a.C..

No que toca ao aspecto de ter elegido o tribalismo como um dos destaques


estando diretamente implicado no meu objeto de pesquisa – relações de poder –
levanto alguns questionamentos, que procurarei responder, no início deste tópico:

 Dentre os diferentes tipos de tribalismo espalhados por todo o mundo


de que tipo ou modo poderia ser classificado o tribalismo israelita?
 Qual a característica que melhor define o tribalismo israelita?
 Será que o regime tribal teria desaparecido após a ascensão do período
monárquico?
 O que representou para o tribalismo israelita o regime estatal?
 Que relação existe entre o tribalismo israelita e o campesinato judaíta?
São conceitos intercambiáveis?
Abaixo seguem algumas definições clássicas de diferentes estudiosos ligados
aos estudos da exegese bíblica, que levando em conta o caráter plenamente histórico
do texto bíblico, conceituam o termo tribo da seguinte forma:

 Segundo Henri Cazelles, a tribo é a mais antiga realidade sociológica, o que não
exclui, logicamente, um núcleo familiar. Na ótica bíblica, beney Israel são os
“filhos de Israel”. Para Cazelles, os beney Israel se constituem nas doze tribos
que se ligam de uma maneira ou outra a um epônimo que tem o nome de
Israel217. Segundo alguns historiadores as tribos gozavam de uma grande
autonomia, como no caso das tribos de seminômades do Oriente Próximo
Antigo. Estudos mais recentes demonstram que as tribos eram na origem uma

217
Estela de Mernepta
unidade étnica.218 “Se uma tribo pode compreender várias ‘casas’ ou ‘famílias’
que descendem de um antepassado comum pelo sangue ou por ficção jurídica,
isso tanto mais acontece quando se trata de agrupamentos de tribos”.219
 Para G. E. Mendenhall, citado por Roland de Vaux, tribo não seria:
[...] producto de una descendencia genealógica; es una unidad social que transciende
el grupo del poblado: sus miembros le prometen lealdad e ella les asegura en cambio
su protección colectiva. No había oposición entre cultivadores y pastores, sino entre
poblado e ciudad.220

 Para Norman K. Gottwald que vê na teoria antropológica atual ou mais


especificamente, na etnologia um instrumental indispensável para se efetuar
uma análise da estrutura social das sociedades tribais, citando Marshall Sahlins,
que fala dos desafios e dificuldades de se tentar caracterizar o modo tribal de
vida, afirma:
Portanto, o que pretendo fazer – que é formular um plano generalizado da cultura
tribal – é francamente, arriscado e acaso fútil. Porém, é tamanha a magia do “tipo
ideal” do sociólogo que, fundamentada como ela está sobre a ignorância real ou
pretensa da diversidade empírica, inadequada como ela é e enquanto representação
de realidades complexas, rudimentar como ela pode ser enquanto processo
intelectual, é capaz de fornecer notáveis penetrações no caso particular. Penso que o
modelo geral de cultura tribal aqui proposto, auxilia alguém a entender as tribos
particulares – ao menos, um número regular delas.221

Sendo assim, Gottwald postula que as tribos não sendo uma entidade fixa que
poderia ser localizada em qualquer lugar é sim, um tipo ideal caracterizado por um
agrupamento de características, que heuristicamente, é vantajoso para analisar
sociedades específicas, mas com diferentes graus, pode-se dizer, de tribalismo. Ou

218
Henri Cazelles, História política de Israel: desde as origens até Alexandre Magno, São Paulo, Edições
Paulinas, 1986, p.71.
219
Idem, p.79.
220
Roland de Vaux, Historia antiga de Israel: II – asentamiento en Canaan y período de los jueces,
Madrid, Ediciones Cristiandad, 1975, p.26.
221
Norman K. Gottwald, As tribos de Yahweh: uma sociologia da religião de Israel liberto 1250 – 1050
a.C., São Paulo, Edições Paulinas, 1986, p.303.
ainda, que “sociedade tribal é um sistema no qual o todo é inerente e é o que
determina as partes”.222

Morton Fried citado por Gottwald vê também no tribalismo israelita uma


espécie de perfil tipológico de sociedade cujas formas sociais se desenvolvem no
decorrer do tempo, bem como nas etapas de complexidade:

[...] um sistema limitado de relacionamentos, cujas estruturas, os mecanismos que


ligam os membros dos grupos polares componentes, são sodalícios, associações de
corte transversal dedicadas a afiliações de parentesco, graus de idade, sociedades
secretas, congregações rituais e festas cerimoniais.223

A partir desses questionamentos iniciais, das noções acima elencadas, de


conceitos que a própria tradição bíblica teve o cuidado de preservar e principalmente,
à luz de alguns dos mais recentes dados da pesquisa passo a refletir sobre o tribalismo
israelita, que será enfocado em quatro partes.

4.4.1 – Revisitando o período pré-monárquico.

Num excelente trabalho de síntese, Airton José da Silva224 esquematiza o


recente debate atual a respeito do surgimento do antigo Israel – tribalismo israelita –
onde R. K. Gnuse225, com efeito, vê todo esse contexto como um processo de evolução
pacífica que ele classifica, por razões didáticas, as similares, porém não idênticas
teorias, em quatro categorias:

222
Norman K. Gottwald, As tribos de Yahweh..., p.304.
223
Idem, p.305.
224
Airton José da Silva, A História de Israel na pesquisa atual em Jacir de Freitas Faria (org), História de
Israel e as pesquisas mais recentes, Petrópolis, Vozes, 2003, p.43-87.
225
R K Gnuse, No other Gods: Emergent monotheism in Israel, Sheffield, Sheffield Academic Press, 1997,
392p.
4.4.1.1 – Retirada pacífica226
Os pesquisadores que concordam que no processo de formação do antigo Israel
houve uma retirada pacífica estão: Joseph Callaway, David Hopkins, Frank Frick, James
Flanagan, Gosta Ahlstron e Carol Meyers. Analisando os resultados das escavações,
principalmente em Ai e Khirbet Raddana, território de Efraim, observou-se uma incrível
continuidade cultural entre os habitantes das cidades-estado cananéias das planícies
com os povoados israelitas das colinas, quanto às cerâmicas, técnicas agrícolas,
construções e ferramentas. Outro detalhe relevante, para estes especialistas, consiste
no fato de que os assentamentos israelitas teriam surgido após um colapso das
cidades cananéias. Tendo desenvolvido mais amplamente esta categoria, Gosta
Ahlstron, onde contesta a tese de Gottwald de uma “retribalização” que teria se
originado de uma revolta de camponeses, baseada na evidência cultural dos materiais
recolhidos, constata seu apreço por esta teoria. Já Carol Meyers defende a
possibilidade de Israel ter surgido após um violento ataque de pragas que teria
devastado as plantações nas planícies, fazendo com que muitos dos agricultores se
deslocando para as montanhas, a fim de fugir desta situação, intensificaram a
agricultura mediante o desenvolvimento das técnicas de construção de cisternas e
terraços.

4.4.1.2 – Nomadismo interno227


Os que apoiam esta teoria são C.H.J. de Geus, Volkmar Fritz e Israel Finkelstein.
Geus concorda com a ideia de que os israelitas, antigos hapirus das cartas de Tell el-
Amarna, sendo etnicamente unidos e morando nas montanhas, vivenciaram uma
espécie de “simbiose cultural” com os habitantes das planícies. Posteriormente, com o

226
Cf. Joseph Callaway, Village Subsistence at Ai and Raddana in iron Age I em H Thompson, The
answers lie bellow: essays in honor of Lawrence Edmund Toombs, Lanham, University Press of America,
1984; David Hopkins, The highlands of Canaan, Georgia, Almond Press. 1985; Frank Frick, The formation
of the state in Ancient Israel: a survey of models and theories, Georgia, Almond Press, 1988; James
Flanagan, David’s social drama: a hologram of Israel’s early iron age, Georgia, Almond Press, 1988;
Gosta Ahlstron, A history of Ancient Palestine, Minneapolis, Fortress Press, 1993; Carol Meyers,
Discovering eve: Ancient Israelite women in context, New York, Oxford University Press, 1988.
227
Cf. CHJ de Geus, The tribes of Israel: an investigation into some of the presuppositions of Martin
Noth’s amphictyony hypothesis, Amsterdam, Van Gorcum, 1976; V Fritz, Die Entstehung Israels im 12
und 11 Jahrundert v. Chr., Sttutgart, Kohlhammer, 1996; Israel Finkelstein, The archaeology of the
Israelite settlement, Jerusalem, Israel Exploration Society, 1988; Israel Finkelstein, N A Silberman, The
bible unearthed: archaeology’s new vision of ancient Israel and origin of its sacred texts, New York, The
Free Press, 2001.
colapso das cidades-estado, estes expandiram seus domínios. Já Volkmar Fritz, que
anteriormente defendia a teoria de Albretch Alt, de uma infiltração pacífica, quando de
seus trabalhos no norte do Neguev percebeu uma grande semelhança, isto é, uma
simbiose entre as culturas israelita e cananéia. Chamou a atenção de Fritz a casa de
quatro cômodos, que segundo ele, representou uma evolução arquitetônica em
relação às casas construídas na planície cananéia. Outro elemento de destaque, foram
os objetos de cerâmica e metal encontrados. Eles deixaram entrever que estes
israelitas não eram verdadeiros nômades, mas que estiveram em contato com os
habitantes das planícies. Para Fritz estes israelitas eram os hapiru ou os shasu dos
textos egípcios, que teriam dado origem também a Moab e Edom.

Israel Finkelstein, como principal defensor desta teoria, conclui que os proto-
israelitas eram uma espécie de “nômades internos” que vivendo ao redor das cidades-
estado, ao longo de toda a Idade do Bronze, com o declínio destas, começam a
sedentarizar-se, ou seja, buscam na agricultura o necessário para sua sobrevivência.
“Eles teriam se assentado em grande número na região montanhosa de Efraim e, a
partir dali, se espalhado como defendia Alt, para o norte e para o sul da região”228.

4.4.1.3 – Transição ou Transformação pacífica229


De acordo também com a posição de que a região passou por uma
transformação, pesquisadores, como Lemche, acreditam que a migração da planície
para as colinas “pode ter sido causado não pela ausência, mas pelo aumento da
pressão egípcia *...+ em sua exigência de mais tributos e mais trabalho forçado”230.

228
Airton José da Silva, “A história de Israel na pesquisa atual”..., p. 43-87.
229
Cf. NP Lemche, Early Israel: anthropological and historical studies on the Israelite society before the
monarchy, Leiden, Brill, 1985; Ancient Israel: a new history of Israelite society, Sheffield, Sheffield
Academic Press, 1995; The Canaanites and their land: the tradition of the Canaanites, Sheffield, Sheffield
Academic Press, 1991; Die vorgeschichte Israels: von anfangen bis zum ausgang des 13, Sttutgart,
Kohlhammer, 1996; The Israelites in history and tradition, Kentucky, Westminster John Knox, 1998;
William Stiebing, Out of the desert? Archaeology and the conquest narratives, Buffalo, Prometheus,
1989; Robert Drews, The end of the Bronze Age: changes in warfare and the catastrophe ca. 1200 B.C.,
Princeton, Princeton University Press, 1993; Robert Coote e Keith Whitelam, The emergence of early
Israel in historical perspective, Georgia, Almond Press, 1987; Rainer Albertz, A history of Israelite religion
in the old testament period, 2 vols, Philadelphia, Westminster Press, 1994.
230
Airton José da Silva, “A história de Israel na pesquisa atual”..., p.61.
Já William Stiebing vê nas mudanças climáticas ocorridas na região o fator
principal para o declínio da cultura urbana nas planícies da palestina e,
consequentemente, com o estabelecimento nas montanhas, o seu pleno
desenvolvimento posterior.

Robert Drews defende que “os povos do mar que invadiram a região não eram
simples migrantes, mas mercenários treinados e com armamento superior”231, além de
terem massacrado as populações que habitavam a região plana, forçaram os demais a
se refugiarem nas montanhas, influenciando assim, numa mudança ética e cultural.

Tanto Roberto Coote quanto Keith Withelam, vê o surgimento de Israel como


parte de um processo de integração entre os habitantes das cidades-estados com os
habitantes das colinas. Com o colapso do comércio na região plana, sendo este o fator
mais significativo, os dois grupos populacionais se viram na necessidade de uma ajuda
mútua, que teve como consequência o aumento populacional nas montanhas.

Rainer Albertz “faz uma espécie de síntese de várias escolas, indo de Albright a
Lemche [...] fala de digressão, processo pelo qual o colapso do comércio internacional
forçou os habitantes das cidades a se deslocarem para os povoados das montanhas e
aí se desenvolverem”.232

4.4.1.4 – Amálgama pacífico233


A aposta de R. K. Gnuse “que aqui se alinha, é que este grupo de
pesquisadores prevalecerá sobre os outros, por considerar melhor os pressupostos
teóricos do debate atual”.234

Para Baruk Halpern, que foi um dos primeiros pesquisadores a sugerir que o
processo de assentamento nas montanhas, teria sido fruto de uma complexa interação
de diferentes grupos, acredita ter sido o grupo, oriundo do Egito, que trouxe a crença

231
Airton José da Silva, “A história de Israel na pesquisa atual”..., p.62.
232
Idem, ibdem.
233
Cf. Baruch Halpern, The emergency of Israel in Canaan, Chico, CA, Scholar Press, 1983; William Dever,
Recent archaeological discoveries and biblical research, Seattle, University of Washington Press, 1990;
Thomas L Thompson, Early history of the Israelite people from the written and archaeological sources,
Leiden, Brill, 1992; The mythic past: biblical archaeology and the myth of Israel, New York, Basic Books,
1999; Donald Redford, Egypt, Canaan and Israel in ancient times, Princeton, Princeton University Press,
1992.
234
Airton José da Silva, “A história de Israel na pesquisa atual”..., p.63.
em Yahweh. Para ele, todos estes grupos tinham em comum a necessidade de
participarem ativamente do comércio que, tanto pela planície quanto pelo caminho
dos reis, era viabilizado. Halpern afirma que “o Israel histórico não é o Israel da Bíblia
Hebraica, mas foi o Israel histórico que produziu o Israel bíblico”235.

William Dever defende a hipótese de que Israel tenha se formado pelo afluxo
de diferentes contingentes sociais, que se reunindo nas montanhas, aos poucos
adquiriram uma identidade diferente em relação aos habitantes das planícies. Para
Thomas L. Thompson toda a população palestinense não passou por nenhuma
profunda alteração ao longo de alguns milênios. Defensor de uma história da Palestina
ao invés de se tentar escrever uma história de Israel, pois esta, só teria surgido
enquanto estado, muito tempo depois, por volta do século VIII, quando das incursões
do império assírio. Para ele, “toda a história bíblica do império davídico-salomônico e
dos reinos divididos de Israel e Judá é pura ficção pós-exílica”236.

E concluindo, Donald Redford, acredita que no centro da sociedade que se


desenvolveu nas montanhas da Palestina estava um grupo de pastores que
sedentarizando-se deram origem ao futuro Israel. Também apoia a tese de que
pastores shasu vindos de Edom teriam trazido consigo o culto a Yahweh, tornando-se
assim, um grupo distinto das populações cananéias da planície.

4.4.2 – As anciãos (chefes) tribais pediram um rei (1 Sm 8,1–7)

O redator da OHD e a cena em que os anciãos (chefes tribais?) procuram Samuel


para pedir-lhe um rei.

A lógica da monarquia, isto é, das relações de poder que se estabelecem entre o


monarca, príncipe ou rei, é totalmente contrária à realidade tribal. Se um dos aspectos
que melhor caracteriza as sociedades primitivas ou tribais é o fato dos chefes não terem
poder, o que teria acontecido para que, conforme a narrativa em 1 Sm 8,1-7 dizer que
todas as tribos clamassem a Samuel para que um rei governasse sobre elas?

235
Airton José da Silva, “A história de Israel na pesquisa atual”..., p. 63.
236
Idem, p.65.
No fundo, ao que tudo está a indicar, é mais uma invenção do redator para tentar
amenizar o peso da culpa que teria recaído quase que totalmente sobre os ombros da
monarquia.

Na ótica do Deuteronomista alguns reis (monarquias), principalmente os do


norte que sempre foram avaliados negativamente (“Fizeram sempre aquilo que é mal
aos olhos do Senhor!”), bem como também uns poucos reis de Judá, assim como o
próprio povo (tribos), todos foram culpados pelas desgraças que sobrevieram a Israel.

4.4.3 – A situação do tribalismo israelita durante o período de domínio


assírio

Penso que quando se fala em “tribalismo israelita” deva-se ter em mente, de


acordo com a opção de um “amálgama pacífico”237 da região montanhosa da Palestina,
nos séculos que precederam ao nascimento do Reino Norte-israelita. Para Baruk
Halpern, que foi um dos primeiros pesquisadores a sugerir que o processo de
assentamento nas montanhas, teria sido fruto de uma complexa interação de
diferentes grupos.

De posse desses dados referente à pesquisa arqueológica nas principais cidades


situadas no reino norte-israelita (item 4.4.1), é possível traçar um perfil aproximado
das relações de poder a que foram submetidos todos os habitantes do reino norte-
israelita durante o período da dinastia amrida.

A existência de impressionantes complexos fortificados, templos, palácios,


sedes administrativas em diferentes cidades – Megido, Hasor, Dan, Siquêm, Samaria –
deixam entrever que os dinastas amridas desfrutaram de uma profícua autonomia e
poder político, econômico e militar. Pois, para construir e sustentar este, digamos
“mini-império”, eles necessariamente gozavam de muita autoridade.

Mas, com relação ao nosso objeto de pesquisa, que são as relações de poder,
estabelecidas dentro da sociedade norte-israelita, que perfil podemos traçar desta

237
Airton José da Silva, “A história de Israel na pesquisa atual”..., p.63: A aposta de R. K. Gnuse “que aqui
se alinha, é que este grupo de pesquisadores prevalecerá sobre os outros, por considerar melhor os
pressupostos teóricos do debate atual”.
sociedade, a partir destes inúmeros dados levantados pela pesquisa arqueológica
citados acima?

O que de fato está em jogo, é a política social do estado norte-israelita. Será


que a grande massa de homens e mulheres – oriundas do tribalismo – utilizados para
dar suporte à construção desse mini-império, eram ainda pessoas livres e felizes, ou
foram, devido à “campesinagem”, isto é, à passagem do tribalismo para o
campesinato, transformados em homens e mulheres oprimidos e explorados?

Diante destes fatos, levantamos algumas questões: será que a sociedade que
viveu sob a dinastia dos amridas, particularmente, o campesinato, era um grupo social,
plenamente satisfeito com seu modo de vida? Desfrutavam eles também de toda a
riqueza por eles mesmos produzida? As suas casas eram como as casas daqueles que
moravam nas cidades? Será que estes campesinos, tiveram autonomia suficiente para
viver sua religiosidade? Aliás, que tipo de religiosidade será que eles tinham nesse
período? Ou será que foram obrigados pelo novo estado a adotar uma nova religião?

Como pode ser intuído, sabemos que a monarquia norte-israelita precisou, não
somente de mão de obra especializada, mas, principalmente, de mão de obra barata.
Quantos não devem ter sido transformados em escravos? Pensemos um pouco:
quantas pessoas (homens somente?) não seriam necessárias para fazer aqueles
enormes muros de arrimo (casamatas)? E, isso, sem falar dos aterros, pois na sua
maioria, como medida de segurança, as cidades foram construídas no topo das colinas,
obrigando os construtores, necessariamente, a aumentar o espaço do platô. Pelo que
sabemos, naquele tempo ainda não existiam carregadeiras, mas todo o trabalho de
aterro foi realizado somente mediante o esforço humano. Foram toneladas e mais
toneladas de terra para preencher os espaços vazios. E o que dizer das pedras
utilizadas na construção dos muros de casamata. Quem as talhava, quem as
transportava até o lugar em que seriam utilizadas?

Bem, essa situação nos leva a tirar algumas conclusões. Ao que tudo indica, o
regime de serviço utilizado durante o período da dinastia amrida não foi muito
diferente do regime que era imposto pelas cidades-estados no período do Bronze.
Portanto, todos, com exceção daqueles que moravam nas cidades – setor
administrativo – viviam num regime de certa escravidão, pois deveriam se submeter a
isso ou teriam que fugir, como outrora fizeram, para outras regiões. Mas, qual região?
Sabemos que naquele momento existiam grandes forças regionais que ansiavam pela
hegemonia política e militar de toda aquela região. Aram-Damasco, no sul da Síria, a
leste Amom e Moab, ao sul (sudeste) o império egípcio e na costa mediterrânea,
algumas cidades-estados filistéias. Todos, sem exceção eram fortes rivais da dinastia
amrida.

Disso concluímos que as relações de poder a que são submetidos homens e


mulheres oriundos do tribalismo são transformados em camponeses, que viviam nas
periferias das cidades, bem como nas vilas e aldeias, desfrutavam somente da
possibilidade de dizer sim ao regime imposto e, assim, continuar sobrevivendo, à custa
de muita dor, sofrimento e morte, pois não havia mais nenhum lugar para onde ir, a
não ser fugir.

Diferentemente da história narrada pelo redator da OHD, na verdade, “os 120


anos da história israelita depois da queda da dinastia amrida foram, de fato, uma era
de dramática mudança social no reino, de instabilidade econômica e de constante
alteração das estratégias para enfrentar a ameaça do império assírio e sobreviver”.238

Os pesquisadores arqueológicos até bem pouco tempo atrás afirmavam que


estas cidades, em verdade foram as grandes cidades construídas por Salomão e que,
posteriormente foram destruídas na invasão do faraó Sesac em 926 a.C. Mas, a
evidência da cerâmica, dos paralelos arquitetônicos e das datas estabelecidas pelo
carbono C14, comprovam que tudo isso aconteceu por volta do ano 835 a.C.

E com base nessa nova evidência histórica, o historiador Nadav Naaman


concluiu que a destruição feita por Hazael nas regiões do norte de Israel foram de
grande proporção e, que essas cidades, durante aquele período, nunca mais voltaram
a serem as mesmas. É bem provável, segundo o historiador que Hazael tenha
culminado seu avanço até as imediações da capital, Samaria.

238
Israel Finkelstein, A Bíblia não ..., p.274.
Com a entronização de Jeroboão II como rei de Israel, mais a estabilidade
política na região, pois, Aram-Damasco já não tinha a mesma liberdade e
impetuosidade de antes, isso fez com que Israel alçasse voo na direção do progresso e
do crescimento, sempre, é claro, às custas de muita escravidão, miséria e sofrimento
por parte dos camponeses.

Se formos nos ater somente ao que diz o redator da OHD, poucos são os
detalhes a respeito do governo de Jeroboão. Agora é preciso lançar mão novamente
do que diz a pesquisa arqueológica, o livro do profeta Amós que exerceu seu
ministério profético durante o governo de Jeroboão II.

Conforme Finkelstein, a nova fase de prosperidade, que começou por volta de


800 a.C., aparentemente foi lembrada por longo tempo como a “era de ouro do Reino
do Norte”, mesmo na memória do povo de Judá. Portanto, pode-se afirmar que a
razão mais provável para esse novo impulso de crescimento foi devido à agressão
assíria a Damasco e à impetuosa participação de Israel na crescente economia mundial
assíria.

É muito ilustrativo o texto seguinte, onde Finkelstein resume as pesquisas feitas


nas cidades de Dan e Hazor, que depois de terem sido tomadas por Hazael e
reedificadas, foram novamente retomadas por Israel, e assim, destruídas e
reconstruídas.

Em Dan, a estela da vitória de Hazael parece haver sido esmagada, e seus fragmentos
reutilizados numa construção posterior (onde seriam encontrados por arqueólogos
cerca de 2800 anos mais tarde), quando israelitas construíram ali uma cidade. Em
Bethsaida, a estela com a deidade no estilo arameu foi, da mesma maneira,
intencionalmente aprumada e reinstalada de cabeça para baixo. E aproximadamente
no mesmo período Hazor foi conquistada, destruída e reconstruída; pode não ser uma
completa coincidência que as inscrições hebraicas apareçam em Hazor nessa fase de
construções, pela primeira vez.239

A partir da análise dos dados levantados pela pesquisa arqueológica, nas


regiões ao sul de Samaria foram encontradas evidências de extraordinária expansão da
produção de azeite de oliva, bem como também, diversos assentamentos construídos
com a finalidade do cultivo de oliveiras.

239
Israel Finkelstein, A Bíblia não ..., p.283.
Conforme as figuras abaixo são possíveis ter uma ideia da estrutura montada
para a produção de azeite, em larga escala:

Figura 15 - Plano de sítio produtor de azeite

nas áreas montanhosas a noroeste de Jerusalém240

Figura 16 – Prensa de azeite em Tel Batash (Tamna)241

240
Israel Finkelstein, A Bíblia não ..., p.
241
Amihai Mazar, Arqueologia ..., p.464.
Conforme Amihai Mazar muitas dessas “prensas de azeite são encontradas
dentro de casas comuns, indicando que a manufatura do azeite era uma indústria
doméstica praticada pelas famílias em suas casas”.242 Outras prensas de azeite,
conforme Finkelstein eram:

[...] cortadas na rocha... algumas das quais podem ter sido propriedades reais ou, pelo
menos, construídas para esse propósito. Não havia falta de mercados potenciais: o
óleo de oliva das regiões montanhosas de Israel podia ser exportado com lucro para a
Assíria e embarcado para o Egito, pois tanto o Egito, quanto a Assíria, não dispunham
de boas regiões para o cultivo da oliveira.243

Outro achado interessante, que comprova esse intenso comércio de Israel com
as outras nações, são os famosos “óstracos” de Samaria. Esses óstracos são uma
coleção de 63 cacos de cerâmica com inscrição em hebraico, bem com também,
datados do período de Jeroboão II. Eles registram o carregamento e o embarque de
azeite e de vinho pelas aldeias da região de Samaria.

Outro dado relevante é a pesquisa quanto ao levantamento populacional.


Estima-se que Israel tinha uma população de aproximadamente 350 mil habitantes. O
território de Judá não tinha mais do que 100 mil habitantes. Esses números
comprovam que o Reino do Norte tinha um poderio militar e econômico bem maior
em relação a Judá e às demais nações vizinhas.

Outro achado arqueológico, muito importante, que comprova a organização e a


grandeza do Reino de Israel, conforme o comentário de Finkelstein:

É nítida a grandeza do renascimento do Reino de Israel a partir da evidência


arqueológica disponível. É significativo que Jeroboão II seja o mais antigo dos reis
israelitas de quem se encontrou um selo oficial. Esse belo e excepcionalmente artefato
foi encontrado no começo do século XX em Megiddo; traz a representação de um
potente leão rosnando e uma inscrição em hebraico, onde se lê: “Pertence a Shema, o
servo (i.e. o alto funcionário) de Jeroboão”.244

De fato, o crescimento e o status alcançado pelo Reino do Norte durante o


governo de Jeroboão II permitiram que a classe citadina dispusesse de formidável
riqueza. Esta conclusão é confirmada por outro achado arqueológico, que confirma
242
Idem, p.465.
243
Israel Finkelstein, A Bíblia não ..., p.284.
244
Israel Finkelstein, A Bíblia não ..., p.286.
essa asserção. Foram encontradas em Samaria “mais de 200 delicadas placas de
marfim, cinzeladas no estilo fenício com motivos egípcios e estilisticamente datadas do
século VIII a.C.”245

O fato de, posteriormente, Judá ter assumido o nome de Israel, não se deve
talvez a esse esplendor econômico e a essa monarquia gloriosa?

Assim sendo, pode-se constatar que, de fato, Israel atingiu um patamar de


prosperidade como nunca antes houvera atingido. Mas, existem algumas perguntas
que não querem calar dentro de nós:

- E o povo, de um modo geral, também desfrutou desse crescimento


econômico?

- Aqueles famosos critérios e valores morais – Dt 12-26 – foram, de fato,


respeitados pelos governantes, ou melhor, serviam como o norte de uma bússola a
apontar para onde deveria caminhar toda a ação governamental no campo social?

- Se este é o mesmo povo que, outrora, deu origem ao período que


conhecemos por tribalismo, onde reinava a igualdade e a solidariedade entre todos, o
que deu errado? Quem, de certa forma, desvirtuou o projeto tribal inicial?

- E a religião, que papel teria cumprido em tudo isso?

- Será que a religião, teria sido utilizada pelas lideranças políticas como
instrumento de legitimação da ideologia sócio-política?

- Quem as implantou e que objetivos tinha em mente?

Sabemos, que no começo dessa maravilhosa experiência nas montanhas da


Palestina, entre os séculos XIII e XII a.C., esses critérios e valores morais nortearam a
vida de centenas ou até milhares de pessoas. Mas, se torna imperativo nesse
momento, nos perguntar pelas causas do “insucesso” do projeto tribal, ou seja,
daquela autonomia política inicial.

245
Idem, p.291.
Como vimos no tópico anterior, o Reino do Norte atingiu no reinado de
Jeroboão II seu apogeu, tanto em termos econômicos, quanto em termos de expansão,
pois sua população havia crescido além da medida.

Olhando para todo esse cenário interno e fazendo uma análise da conjuntura
externa naquele momento, Israel deveria ter ficado bem atento, pois a situação
geopolítica na região do crescente fértil estava mudando aceleradamente. Estava
surgindo uma nova potência: o Império Assírio.

Mas, como veremos abaixo, não foi somente o fato de ter surgido no cenário
internacional da época uma nova potência, que levou Israel à decadência, mas, sim, o
modo como a monarquia foi instituída e conduzida ao longo dos seus quase três
séculos de existência (X – VIII a.C.).

A principal fonte de onde retiraremos as informações para compor esse tópico


que finaliza esta segunda parte, vem do profetismo israelita, ou seja, dos primeiros
profetas escritores. Estamos falando, particularmente, dos profetas Amós e Oséias,
que profetizando no Reino do Norte, vivenciaram na carne todo esse período de
decadência, bem como também Miquéias e Isaías, que apesar de terem exercido seu
ministério profético no Sul, em Judá, muitos dados por eles levantados, nos auxiliam
na construção desse terrível quadro de crise social, política e religiosa.

Amós e Oséias retrataram a realidade de um modo muito concreto. São duas


óticas diferentes, que nos ajudam a ter uma visão holística da realidade por eles vivida.

Amós vê a realidade e, como um pintor, podemos retratá-la como que através


de um quadro. A tela pintada por ele é composta de diferentes cores e nuances que
retratam a realidade nua e fria da sociedade israelita. Nela percebe-se os traços fortes
da opressão a que eram submetida a população camponesa. Explorada e maltratada,
ela se resignava sob o peso da ideologia político-religiosa imposta pela elite citadina.
Com tons sombrios, isto é, ele pinta em profundidade e sem meias palavras, os crimes
que eram cometidos pelos governantes contra a população pobre e, aparentemente
sem defesa.
Na verdade, o quadro pintado por Amós é muito dramático. Como é possível
tanta insensibilidade por daqueles que se colocavam como os legítimos defensores dos
direitos do povo, e assim mesmo os explorava sem o menor escrúpulo?

Como já foi anteriormente e superficialmente aventada, essa crise de


proporções inimagináveis, se não tivessem sido descritas pela profecia, jamais
poderiam ter sido intuídas ou descobertas. Teriam morrido juntamente com o estado
do Reino do Norte.

Mas graças a Amós e a seu grupo de discípulos, temos a possibilidade de nos


encontrarmos com seu povo e intuir seu grau de sofrimento.

Inicio este tópico com uma expressão tirada do próprio livro de Amós, e que,
de certa forma, sintetiza e retrata bem o que vamos encontrar pela frente: “total
terror” (cf. Am 3,9)246. Era isso o que o profeta via diante de si. São duas pequenas
palavras que juntas carregam consigo uma profunda carga semântica de
expressividade. Essa síntese feita pelo profeta Amós, resume bem a situação a que foi
submetida toda a população camponesa.

Desde o momento em que a monarquia se instalou sobre as montanhas do


norte da região palestinense, a vida dos diversos clãs e famílias, que ali residiam,
mudou drasticamente.

Partimos da constatação de que, para se erguer um grande estado dentro


daquele contexto histórico, como o Estado de Israel, foi preciso que muitas vidas
fossem ceifadas pelos difíceis e desgastantes trabalhos.

Imaginemos aquelas grandes construções feitas pelas dinastias de Amri e Jeú.


Aquelas fortalezas construídas no topo das colinas, onde quase sempre, necessitava de
um grande trabalho de contenção e aterro. Depois, cortar e transportar aquelas
enormes pedras utilizadas na construção dos muros de casamata.

246
Milton Schwantes, A terra não pode suportar suas palavras (Am 7,10): reflexão e estudo sobre Amós,
São Paulo, Paulinas, 2004, p.87.
Bem, se todo esse trabalho fosse para receber um justo salário, até que
concordaríamos, mas, como bem sabemos, a história foi bem outra. Na verdade, os
trabalhos eram forçados e sob condições quase sempre bem desumanas.

Outro agravante foi o fato de Israel, não podendo contar com a extração de
diversas matérias primas, ser obrigado a entrar de cheio no comércio internacional.
Mas, o que Israel poderia oferecer em troca de objetos, cujo valor excedia em muito
seus produtos agrários? A solução era oferecê-los em grande quantidade, isto é, os
camponeses eram obrigados a produzir muito além da medida para financiar estes
enormes custos.

Adentrando ao texto do profeta Amós (cf. Am 7,1.4.7; 8,1;9,1) poderemos


constatar que a situação era, realmente, de “total terror”.

“porque vendem o justo por dinheiro e o pobre por um par de sandálias” (Am
2,6b)

“porque são ávidos para ver o pó da terra sobre a cabeça dos indigentes e
desviam os recursos dos humildes” (Am 2,7a).

“o filho e o pai vão à mesma moça” (cf. Am 2,7b).

“olhai que desordem em seu seio, que opressões no meio dela”(Am 3,9b).

“violências e rapinas” (Am 3,10b)

“explorando os indigentes, triturando os pobres”(cf. Am 4,1).

“Mudam o direito em veneno e arrastam por terra a justiça”(Am 5,7).

“pressionais o indigente tomando-lhe sua parte de cereal”(Am 5,11)

“opressores do justo, que extorques resgates; no tribunal enxotam os pobres”


(Am 5,12b).

“Escutai, vós que vos encarniçais contra o pobre, para aniquilar os humildes da
terra”(cf. Am 8,4).
Enquanto os camponeses são “triturados” pela classe citadina, estes, ao
contrário, conforme nos apresenta o profeta, desfrutam do bom e do melhor, pois, “a
prosperidade, a exploração e o lucro eram os aspectos mais marcantes da sociedade
que Amós contemplava. Os pobres eram realmente pobres e desavergonhadamente
explorados”247, como pode ser constatado abaixo.

“eles não conhecem o reto agir esses amontoadores de violências e rapinas nos
seus palácios” (Am 3,10)

“essa gente instalada em Samaria, na fofura de um divã, no conforto do


leito”(Am 3,12b)

“ferirei a casa de verão e depois a casa de inverno”, as casas de marfim


desaparecerão e grandes mansões tombarão” (Am 3,15)

“vacas de Basã, que pastais na montanha de Samaria” (Am 4,1)

“Detesto, desprezo vossas peregrinações, não posso suportar vossas


assembleias, quando me fazeis subir holocaustos … vossos sacrifícios de
animais cevados … o alarido de teus cânticos, o toque de tuas harpas” (Am
5,21-23)

“Ai dos que fundaram sua tranquilidade em Sião e dos que puseram sua
segurança na montanha de Samaria, elite da primeira das nações” (Am 6,1)

“Recostados em leito de marfim, estirados em divãs, regalam-se com carneiros


novos e com vitelos escolhidos nos currais; improvisam ao som da harpa …
bebem vinhos em taças perfumam-se com o óleo das primícias”(Am 6,4-6)

Realmente, a situação no Reino do Norte era de “total terror”, visto que os


camponeses não tinham alternativa, senão se submeter a tudo isso.

Mas, diante de tudo isso, surge uma pergunta: por que os camponeses não se
rebelaram e colocaram um fim em toda essa situação?

247
J.A.Motyer, O dia do leão: a mensagem de Amós, São Paulo, 1984, p.1.
Que estruturas e mecanismos estavam sendo colocados em prática para
legitimar toda essa situação de submissão por parte dos camponeses e de dominação
por parte da classe citadina?

Como era possível ainda continuar a ter esperanças diante de um quadro


desses?

Bem, esse era o quadro que Amós contemplava diante de si. Estamos quase no
fim da primeira metade do século VIII a.C. Muita coisa ainda aconteceria até a
derrocada final em 722 a.C.

Por isso, é importante ter bem claro diante de nossos olhos também toda essa
situação contemplada por Amós. Sabemos que essa situação de “total terror” não
melhorou, muito pelo contrário, só piorou com o passar dos anos.

É isso o que iremos evidenciar nas próximas páginas. Governantes que não
souberam ser fiéis aos critérios e valores mais nobres de seu povo, mas que, ao
contrário, criaram suas próprias leis, com a única finalidade de satisfazer seus próprios
ventres.

Conforme profunda análise, que de modo resumido, nos é apresentada pelo


exegeta Milton Schwantes “a deterioração das condições de vida do povo era palpável
em toda parte. Violência e maus tratos, religiosidade formalista e templos
interesseiros, enriquecimento fácil e suborno, enfim a justiça transformada em veneno
(cf. Am 6,12) e o caos social dominavam a cena”.248

Não dá para imaginar uma população que já sofrendo tão grandes e graves
consequências, fosse ainda submetida a uma condição de vida, pior do que aquela que
já estava vivendo – de “total terror” – fosse agora submetida a um massacre, mortes,
desterro, enfim, a um novo senhorio, ainda mais forte e impiedoso.

Conforme conclui Finkelstein a respeito do estado do Reino de Israel:

Na atualidade, naturalmente com a ajuda do trabalho arqueológico e dos estudos


ecológicos, podemos constatar que o fim de Israel era inevitável. O reino de Israel foi
destruído e o de Judá sobreviveu, porque no grande esquema dos desígnios imperiais

248
Milton Schwantes, A terra não pode …, p.28.
assírios Israel – com seus ricos recursos e sua população produtiva – era alvo
incomparavelmente mais atraente do que o reino de Judá, pobre e inacessível. Ainda
assim, para o povo em Judá, nos anos sombrios depois da conquista assíria de Israel,
enfrentando a ameaça de um grande império e obstáculos estrangeiros, a história
bíblica de Israel servia como sinal, uma advertência do que lhes poderia acontecer. O
mais antigo e outrora poderoso reino de Israel, embora abençoado por terras férteis e
por um povo produtivo, havia perdido sua herança.249

À guisa de conclusão deste tópico é pertinente neste momento, avaliar o que


representou o processo de decadência pós-jeroboânico, tendo em vista a classe
campesina, que segundo as palavras do profeta Amós, viviam uma situação de “total
terror”. Como se já não bastasse para o campesinato ter perdido a condição tribal,
terem sido sujeitados ao trabalho forçado por mais de um século, agora, muitos foram,
juntamente com artesãos e boa parte da elite, exilados em outras partes do império
assírio. Os que ficaram, se viram submetidos a um jugo mais pesado ainda, pois a
Assíria, não querendo ter nenhuma surpresa com os que sobreviveram à derrota,
monta um posto avançado, uma satrapia em Samaria, pois dali, conseguiria exercer
um controle mais efetivo, particularmente sobre a produção agrícola de vinho, azeite e
cereais, tendo em vista o abastecimento dos grandes contingentes administrativos e
militares espalhados por todo o império.

Desse modo, a história do tribalismo israelita que vai se descortinando ante


nossos olhos, se constitui numa história, sempre marcada pelo poder de um grupo
mais forte, que com as forças ideológicas das armas se impõe, domina e escraviza
outra classe, que sem a mínima chance de reagir, resiste bravamente, como é de sua
índole, mas, sem perder de vista a possibilidade de voltar a viver, com prazer e
liberdade os sonhos de uma vida fundada na igualdade e solidariedade.

4.4.4 – Exílio: para o campesinato possibilitou a “retribalização” da


província de Judá

Uma coisa é certa quanto ao processo de retribalização que aconteceu após a


destruição de Jerusalém pelos babilônios conforme é narrado em Jr 39,9-10; 40,6.10-12:

249
Israel Finkelstein, idem, p.307.
 Este processo de retribalização não representou um retorno puro e
simples a todos valores morais e éticos que caracterizaram o tribalismo
pré-monárquico.
 Então, que princípios ou características tribais podem-se destacar como
passíveis de terem sido assumidos novamente?
Tenho que ter em mente o fato de que estando Jerusalém destruída, caiu por terra
também a grande reforma que o rei Josias estava implementando em todo o território
judaíta. Por isso não houve mais a necessidade de pagamento de tributos ao rei ou de
ver-se religiosamente obrigado a prestar culto e sacrifícios no único templo reconhecido
pelo Estado (Reino de Judá).

Com certeza a retirada dessa sobrecarga financeira e da obrigação religiosa


imposta gerou um grande alívio sobre toda a população judaíta que vivia nas aldeias.
Podendo contar com toda a produção de alimentos e outros gêneros, muitos camponeses
retornaram ao modo de vida no estilo tribal. Produziam conforme a sua necessidade e se
houvesse excedente, este era trocado entre a própria população de acordo com a
necessidade de cada família.

Este período teve início por volta do ano 587 a.C., logo depois da segunda
deportação e, com certeza, perdurou até o momento em que um grupo de sacerdotes,
com o decisivo apoio do império persa, conseguiram alcançar o poder político e se
legitimar como senhores absolutos entre o céu e a terra.

No capítulo seguinte entrarei mais decididamente nos textos que viabilizaram e


deram sustentação política e ideológica para que esse grupo sacerdotal alcançasse a
suprema hegemonia do poder, não só religioso, mas também político.

Conforme o tópico abaixo poderá ser constatado que relação há entre as


diferentes realidades tanto do tribalismo quanto do campesinato. Pode-se afirmar que
ambos os conceitos tem o mesmo significado? Possuem a mesma conotação social?

4.4.4.1 – O exílio e a reforma agrária

Após a destruição de Jerusalém pelas tropas babilônicas, Nabuzardã,


comandante da guarda e general das tropas de Nabucodonosor, deixou que o
campesinato empobrecido tomasse novamente, posse da terra (cf. 2 Rs 25,12). Esta
mesma situação é descrita pelo profeta Jeremias no capítulo 40. Diz ele:
[...] Quanto a vós, fazei a colheita do vinho, das frutas e do azeite, fazei provisões e
ficais nas cidades que ocupais. Da mesma forma, todos os judaítas que se achavam em
Moab, entre os amonitas, em Edom e em todas as outras terras, souberam que o rei
de Babilônia tinha feito concessões a Judá e nomeado comissário a Godolias, filho de
Ahiqâm, filho de Shafan. Eles voltaram então de todos os lugares onde tinham sido
dispersados. De volta à terra de Judá, para junto de Godolias, em Mispá, fizeram uma
colheita de vinho e de frutas, uma colheita super abundante.250

Esta passagem do livro do profeta Jeremias nos deixa entrever o tipo de


situação política e social que se desenvolveu após a destruição de Jerusalém, bem
como também e, principalmente, da “suposta”251 deportação do restante da elite que
sobrevivera ao massacre babilônico: os camponeses recuperaram a posse da terra e
voltaram a produzir livremente, sem a interferência ou ingerência da figura do estado.
É o que poderíamos falar de uma verdadeira e autêntica reforma agrária em
pleno século VI a.C. Tem início nesse exato momento histórico um processo de
retribalização, isto é, o campesinato volta a reviver seus nobres valores e seu
tradicional modo de vida fundado no tribalismo.
Como podemos notar, a monarquia foi desde sua implantação a partir do reino
de norte e depois no sul, um grave fator de desintegração das sociedades tribais, bem
como também de despersonalização da identidade tribal.
Tanto o profeta Isaías quanto o profeta Miquéias já haviam detectado esta
histórica usurpação promovida pelas abastadas elites, tanto a norte-israelita, quanto a
sul-judaíta. Vejamos:
“Ai dos que juntam casa a casa, campo a campo, até ocuparem todo lugar e
serem os únicos a morar no meio da terra” (Is 5,8).
“Ai dos que projetam a maldade e em seus leitos tramam o mal! Ao romper da
aurora, eles o executam, pois o poder está em suas mãos. Se cobiçam campos,
roubam-nos; se casas delas se apoderam. Agarram o dono e sua casa, o homem
e seu patrimônio” (Mq 2,1-2).

250
Bíblia TEB (Tradução Ecumênica da Bíblia), Jr 40,10b-12
251
Aqui falamos numa suposta deportação, porque conforme alguns estudiosos o tema do chamado
“exílio babilônico” não passa de uma invenção tardia da classe sacerdotal para tentar justificar a posse
da terra. Este assunto será analisado na segunda parte deste projeto.
Deste modo, é fácil perceber que este processo de retribalização posto em
marcha pelo comandante das tropas babilônicas, aconteceria espontaneamente caso
ele não tivesse tomado essa decisão política. Do ponto de vista babilônico os
camponeses ou ainda as sociedades tribais, que se constituíam em verdade na base do
campesinato, nunca ofereceriam o menor perigo ao império, pois conhecendo seus
valores e estilo de vida, eles sabiam que jamais poderia passar por sua cabeça a ideia
de vir a se tornar novamente um estado verdadeiramente constituído como nos
moldes anteriores, isto é, uma monarquia que viesse a ameaçar o seu domínio militar
na região.
Sendo assim, pode-se constatar que Jeremias recolhe em seu livro o que de
mais significativo acontecera naquele momento: a volta do tribalismo, o triunfo das
sociedades primitivas sobre o regime monárquico.
Esse processo de retribalização duraria um longo período, aproximadamente
uns 50 anos, se é que, de fato, houve um retorno posterior de um grupo de exilados.
Na verdade, este processo de retribalização que teve início por volta do ano 587 a.C.,
evoluiu e se estabilizou ao longo de quase três séculos.
Somente no início do século IV, quando são escritos os livros de Neemias e
Esdras, bem como também os livros de 1 e 2 Crônicas, é que temos novamente um
embate em torno do problema da terra. Retroprojetando algumas situações e
acontecimentos do seu presente para um longínquo passado, os redatores, ligados que
estavam ao novo grupo em ascensão – a classe sacerdotal –, fazendo uso de
importantes e variados elementos da tradição ligada às sociedades tribais,
conseguiram impor, de modo claramente ideológico, seu novo projeto.
Assim, podemos conjecturar que Judá e toda a região ao seu redor passaram
por esse processo de retribalização e assim permaneceu até a metade do século IV
a.C., quando veremos implantado em Jerusalém, bem como em todo o Israel, um novo
projeto de caráter nitidamente religioso, mas, profundamente relacionado ao campo
sócio-político, bem como também, ao campo econômico, privilegiando enormemente
a classe sacerdotal jerusolimitana nas suas relações de poder com o campesinato
israelita.
4.5 – O campesinato judaíta

Neste tópico pretendo definir de maneira bem clara em que sentido utilizo o
conceito de “campesinato”, bem como também, lançar algumas luzes sobre a realidade
do campesinato no território de Judá no período de domínio do império Aquemênida.

4.5.1 O campesinato
Conforme definição comentada por John Dominic Crossan, camponês “é termo
interativo para lavradores explorados e oprimidos – definição que presume existir em
algum lugar, exploradores e opressores”.252 Nesta mesma linha, diferentes autores,
mesmo antes de Crossam, já haviam se posicionado igualmente a ele. É de Eric Wolf
(1966) a seguinte afirmação:

Nas sociedades primitivas, os excedentes eram trocados diretamente entre os diferentes


grupos ou entre membros destes grupos; os camponeses, no entanto, são agricultores
rurais cujos excedentes são transferidos para um grupo de governantes, que utilizam
estes recursos para sustentar o seu próprio padrão de vida e distribuem o restante entre
outros grupos da sociedade que não cultivam a terra, mas que devem ser alimentados
pelos bens e serviços específicos que fornecem [...] Apenas quando o agricultor é
integrado a uma sociedade onde há Estado – isto é, quando ele é obrigado a se submeter
às exigências e às sanções dos detentores do poder, fora de seu extrato social – é que
podemos falar da existência de um campesinato.253

Aqui, Eric Wolf salienta o aspecto de que tribalismo – sociedades primitivas – é


uma coisa, enquanto campesinato é outra bem diferente. Para ele, campesino é todo
aquele que é submetido a um regime de trabalho forçado por aqueles que detém o poder,
isto é, pelo Estado ou por outra instância de poder, além de que, não tem autonomia
sobre o que produz, pois o excedente é manipulado tão e exclusivamente por aqueles
que o subjugam e escravizam.

De George Foster (1967) é esta outra afirmação:

Se a sociedade campesina deve ser definida, antes de tudo, através de um critério


estrutural- ou seja, a relação entre a aldeia e a cidade (ou o Estado) – é obvio que
o nosso grande foco de interesse estará nesses laços. Eles apresentam diversos
aspectos, incluindo o social, o econômico, o religioso, o jurídico, o histórico e o
emocional. Mas o denominador comum entre eles, na nossa opinião, é que os
camponeses não possuem muito controle sobre as condições que orientam as

252
John Dominic Crossan, O nascimento do cristianismo: o que aconteceu nos anos que se seguiram à
execução de Jesus, São Paulo, Paulinas, 2004, p.257.
253
Jonh Dominic Crossan, O Jesus histórico: a vida de um camponês judeu do Mediterrâneo, Rio de
janeiro, Imago, 1994, p.162.
suas vidas [...] Além de serem pobres como já se observou muitas vezes, os
camponeses são relativamente impotentes.254

Deste modo, podemos intuir que o campesinato só pode ser definido a partir das
suas relações de poder, isto é, de um poder exterior a ele, que controla, assim, todas as
dimensões de sua vida, tanto o social e o econômico, quanto também, o religioso, o
jurídico, o histórico e o emocional, como assevera Foster na citação acima.

Assim, John Dominic Crossan afirma que as relações que se estabelecem entre
campesinato e elites, podem ser traduzidas também pela relação entre camponeses e
cidades. Kautsky citado por Crossan tira algumas conclusões interessantes de seus
estudos e afirma: “os aristocratas vivem às custas dos camponeses” e que “um
camponês sem uma cidade é, simplesmente, um lavrador feliz”.255

O fato é verdade, pois antes das primeiras cidades existirem não havia
camponeses, pois como ainda afirma Robert Redfield citado por Crossan, os povos
primitivos que não moravam em cidades, mas sim em aldeias, jamais poderiam ser
classificados como camponeses. Desse modo, intuímos que as relações de poder que se
estabelecem entre aldeia e cidade são fundamentais para se definir o campesinato.256

Diante dessas contundentes afirmações, podemos concluir, que dentro desse


contexto, onde mais de noventa por cento da história da humanidade consistia num
intercâmbio urbano-rural uma primeira afirmação: “as cidades vivem à custa dos
camponeses”. Sem o campesinato, o urbano não teria sobrevivido. “Há rural sem
urbano, mas não urbano sem rural”. O fato dos campesinos estarem localizados fora da
cidade implica que são totalmente desprovidos de poder e autonomia.257

Tom Longstaff citado por Crossan, diz que muitas vezes “a urbanização traz
consigo certo grau de opressão. O hiato entre os ricos e os pobres aumenta
frequentemente. É comum os que prosperam na cidade fazerem-no à custa dos que
vivem nas aldeias dependentes e não prosperam”.258 Desse modo, Crossam vê que há

254
Idem, ibdem.
255
John Dominic Crossan, O nascimento do cristianismo: o que aconteceu nos anos que se seguiram à
execução de Jesus, São Paulo, Paulinas, 2004, p.257-258.
256
John Dominic Crossan, O nascimento do cristianismo..., p.259.
257
Idem, ibdem.
258
Idem, ibdem.
uma injustiça sistêmica e estrutural entre os camponeses e a cidade, que só pode ser
compreendida mediante o critério das relações de poder estabelecidas entre os dois
grupos.

Por exemplo, podemos, como faz Weber, isolar na condição do camponês o que ela
deve à situação e á prática do trabalhador da terra, ou seja, um certo tipo de relação
com a natureza, feito de dependência e submissão e correlativo de determinados
traços recorrentes da religiosidade camponesa ou o que deve à posição do camponês
numa dada estrutura social. Apesar de esta posição ser bastante variável segundo as
sociedades e as épocas, é sempre dominada pela relação com o citadino e com a vida
urbana. Daí Redfield sustentar que o camponês, enquanto tipo humano, só pode ser
definido se referido à cidade, sendo a relação com o citadino e com a vida urbana sob
todos os aspectos uma das características constitutivas da existência camponesa: “o
caçador ou o aldeão ‘pré-civilizado’ é ‘pré-letrado’; o camponês é iletrado”.259

E conforme o mesmo R. Redfield na nota de rodapé nº 3:

(A palavra ‘camponês’), tal como vem sendo usada, para designar qualquer
comunidade de pequenos produtores para o mercado, devemos reservá-la para
designar um novo tipo. Este tipo precisa da cidade para existir. Não havia camponeses
antes das primeiras cidades. E aqueles povos primitivos sobreviventes, que não vivem
nos moldes urbanos, não podem ser considerados camponeses [...]. O camponês é um
nativo do meio rural cuja organização de vida, embora a muito tempo já fixada, leva
bastante em conta a cidade.260

Segundo Marx:

A maior divisão entre o trabalho material e o intelectual é a separação entre a cidade e o


campo. A oposição entre a cidade e o campo começa com a transição da barbárie à
civilização, da organização tribal ao Estado, da localidade à nação, e persiste através de
toda a história da civilização até nossos dias [...]. Com a cidade aparece,
simultaneamente, a necessidade de administração, de polícia, de impostos etc., em uma
palavra, a necessidade da organização comunal e, portanto, da política em geral. Aqui,
manifesta-se pela primeira vez a divisão da população em duas grandes classes, divisão
que repousa diretamente na divisão do trabalho e nos instrumentos de produção. A
cidade já é o fato da concentração da população, dos instrumentos de produção, do
capital dos prazeres e das necessidades, ao passo que o campo evidencia exatamente o
oposto: o isolamento e a separação. A oposição entre a cidade e o campo só pode existir
nos quadros da propriedade privada. É a expressão mais crassa da subsunção do
indivíduo à divisão do trabalho, à uma determinada atividade que lhe é imposta –
subsunção que converte uns em limitados animais urbanos e outros em limitados
animais rurais, reproduzindo diariamente a oposição entre os interesses de ambos. O

259
Pierre Bourdieu, A economia das trocas simbólicas, 2ª Edição, São Paulo, Editora Perspectiva, 1982,
p.4.
260
Pierre Bourdieu, A economia das trocas simbólicas..., p.4.
trabalho volta a ser aqui o fundamental, o poder sobre os indivíduos, e enquanto existir
esse poder deve existir a propriedade privada.261

A partir dessa definição conceitual é possível ter presente todo o alcance sócio-

político que o termo “campesinato judaíta” denota.

4.5.2 – O campesinato judaíta

Penso que qualquer comentário que se queira tecer sobre o campesinato judaíta
no período Aquemênida deve ser feito à luz do contexto político, econômico e religioso
da província de Judá.

À luz dos materiais escritos desse período bem como também dos dados
disponibilizados pela arqueologia é possível fazer um levantamento de modo muito
aproximado da realidade na qual o campesinato se encontrava nesse período.

A partir da ascensão dos persas no cenário político mundial, não demorou muito
para que os habitantes do Oriente Próximo Antigo sentissem seus efeitos. Conforme
alusão já feita anteriormente, o processo de retribalização, que teve início com a
destruição da cidade de Jerusalém, bem como a consequente morte de algumas de suas
lideranças e deportação de outras, pelos babilônios em 587 a.C., esse processo de
retribalização deve ter continuado e se estabilizado durante todo o período do século VI
a.C..

4.5.3 – Resgatando alguns importantes fatos históricos

Está claro que falar em “retribalização” não implica em afirmar que os


campesinos de Judá voltaram a viver nos mesmos moldes que seus ancestrais viviam,
isto é, segundo os mesmos modelos de organização social, política e econômica das
sociedades primitivas. É preciso ter presente todos os grandes acontecimentos que
tiveram profundo impacto na vida dos judaítas. O principal foi ao longo do século VIII
a.C. quando o exército assírio, depois de ter destruído Samaria em 722 a.C., a então
capital da Reino do Norte, avançou sobre o território de Judá, destruindo muitas de suas
261
Karl Marx, Friedrich Engels, A ideologia alemã...,p.77-78.
aldeias até parar diante de Jerusalém. Isto aconteceu porque Ezequias havia decidido
não mais pagar tributos aos assírios. Depois de permanecer algumas semanas num forte
cerco à cidade, os assírios se retiraram e voltaram para sua sede na Mesopotâmia.
Segundo o texto bíblico a cidade de Jerusalém foi salva miraculosamente. Mas o seu
povo, os campesinos... Vejamos!

Interessante são os relatos, contemporâneos desses fatos, encontrados em


escavações arqueológicas, tanto em inscrições assírias, quanto na própria província de
Judá, que diferentemente dos relatos bíblicos, mostram que 46 cidades fortificadas e
muradas e um número incontável de aldeias foram destruídas, além de ter expulsado de
suas terras cerca de 200.150 pessoas.

Conforme Israel Finkelstein relata, apesar desses números poderem revelar um


tremendo exagero:

[...] a informação dos registros assírios, ligadas às escavações arqueológicas em Judá,


confirma, de forma adequada, a intensidade da campanha sistemática de cerco e
pilhagem: primeiro através das ricas áreas agrícolas nos contrafortes de Shephelah e
depois para o norte, na direção da capital, na montanha. A devastação das cidades
judaicas pode ser vista em quase todo cômoro escavado no interior de Judá. Os
sombrios remanescentes arqueológicos se harmonizam com os textos assírios.262

A devastação provocada pelos assírios na província de Judá foi tão forte que a
região jamais se recuperou totalmente. As aldeias continuaram pouco povoadas.
Segundo Finkelstein, o número de sítios e a área construída – na qual a população
estimada habitaria – encolheram para 1/3 do que tinham no final do século VIII a.C..

Algumas das principais cidades foram reconstruídas, mas muitas outras pequenas
cidades, aldeias e casas de fazenda ficaram em ruínas. Esse fato é significativo, em
especial quando lembramos que, no século VIII, antes do ataque assírio, a população do
Shephelah chegava a cerca de 50 mil habitantes, quase a metade do reino inteiro.263

Manassés, sucessor de Ezequias, abandonando as reformas, principalmente as


de caráter político e religioso propostas por seu antecessor, submeteu-se novamente à
Assíria, pagando pesados tributos. Para isso, Manassés teve que recuperar
262
Israel Finkelstein, Neil Asher Silberman, A Bíblia não tinha razão, São Paulo, A Girafa Editora LTDA.,
2003, p.351.
263
Idem, p.356.
economicamente a Província de Judá. Apesar de ter sofrido as piores críticas por parte
dos redatores da OHD, Manassés só viu uma saída:

Para isso, era necessário restaurar certa medida de independência econômica nas áreas
rurais, ainda a fonte potencial de riqueza do reino. O renascimento das áreas rurais
devastadas não poderia ser alcançado sem a cooperação das redes de anciãos e dos clãs,
e isso significava permitir a retomada de práticas religiosas nos venerados altares ao ar
livre. Numa palavra, o culto a Baal, aos postes sagrados (Asherat) e aos astros dos céus
– o sol, a lua e as estrelas – retornou.264

O incrível em todos estes relatos é a insensibilidade, tanto dos textos bíblicos e


de outras fontes, quanto, por exemplo, dos autores acima citados, no que tange ao
aspecto das populações mais pobres, isto é, dos campesinos. Não possuem rosto e muito
menos história. Nesse sentido a nova história propõe resgatar o que antes estava
enterrado. Trazer à luz o que estava escondido, não por questão de método, mas sim, de
ideologia. Não deixa de ser também um trabalho de arqueologia... Diria Michel
Foucault, da história.

Sem enfatizar, Finkelstein assinala que para Manassés conseguir a adesão das
comunidades tribais, teve que deixar de lado o projeto de estatização da religião e
permitir que os habitantes da província de Judá retornassem àquilo que Marcel Gauchet
chama de “religião pura”.

Por um lado, foi uma reconquista das sociedades tribais poder retomar alguns de
seus valores, mas por outro lado, e aqui, Finkelstein não foi capaz de salientar
devidamente, os povoados tiveram que se dispor a trabalhar duro para produzir o
necessário para abastecer a cidade de Jerusalém, bem como também, o necessário para o
pagamento dos tributos aos assírios e, se ainda sobrasse forças, o necessário para si e
suas famílias. É bem provável que a solidariedade tribal prevalecesse nesses momentos.

Manassés, reinando por 55 anos sobre o Reino de Judá, pacificou a região e


recebeu dos reis assírios algumas menções honrosas pelos serviços prestados, isto é,
pela sua submissão, quer dizer: pagamentos em dia dos tributos.

Mas há um detalhe interessante que Finkelstein nos trás quando relata a respeito
das pesquisas arqueológicas na região da Shephelah. Depois da destruição de muitas das

264
Idem, p.357.
vilas da região de Shephelah pelos assírios, boa parte dessa região passou para o
domínio dos filisteus que habitavam a região litorânea, forçando seus antigos habitantes
a se refugiarem nas regiões montanhosas da Judéia. Mediante estudos de estratigrafia,
esta região montanhosa, entre os séculos VIII e VI a.C., cresceu em torno de 10 vezes
mais. Foi encontrado um denso sistema de quintas construído em torno e ao sul de
Jerusalém, perto de Belém. É provável que essas quintas serviram para garantir a
produção de alimentos visando o abastecimento da população da metrópole.265

Mas o desenvolvimento mais fascinante é conforme a figura abaixo, a expansão


demográfica de seus assentamentos, a leste e ao sul de Jerusalém.

Figura266

Mas, conforme os muitos dados da arqueologia parecem dizer que Manassés não
esteve satisfeito somente com a expansão acima citada. Seu programa político e
econômico ambicionou muito mais do que uma mera questão de subsistência. De
acordo com uma grande quantidade de assentamentos encontrados na região sul do Vale
de Bersabéia, implica que Judá deve ter se expandido visando a grande rota comercial

265
Israel Finkelstein, A Bíblia não tinha razão..., p.358-359.
266
Israel Finkelstein, A Bíblia não tinha razão..., p.347. Principais sítios na monarquia de Judá; a linha
destaca o centro vital do reino no final do século VII, a época de Josias.
que havia nessa região. Os ricos e variados achados arqueológicos da vasta área entre
Edom e Filistéia indicam que os assírios, os árabes, os fenícios e os edomitas
mantiveram nessa região uma florescente atividade comercial. Foram encontrados
também, dois grandes fortes do século VII, que foram escavados no deserto. O primeiro
forte é o de Kadesh-barnea na margem oeste das áreas montanhosas do Neguev, a cerca
de 80 quilômetros ao sudoeste de Bersabéia. O segundo forte foi escavado na região de
Haseva, sítio localizado a 33 quilômetros ao sul do mar Morto. Segundo Finkelstein, o
arqueólogo Nadav Naaman sugeriu “que, ambos foram construídos no começo do
século VII a.C., sob os auspícios dos assírios, com a assistência dos Estados vassalos
locais, e foram administrados por tropas de judá e Edom”, 267 visando única e
exclusivamente, dar proteção às caravanas de comerciantes árabes que por essa região
transitavam, trazendo seus valiosos artigos exóticos de luxo , além dos incensos, é claro.

Outro achado arqueológico impressionante, se verificou em Tel Miqne, sítio


localizado à oeste da Shephelah, antiga Eglon, uma das principais cidades da Filistéia.
Durante o século VIII foi um sítio modesto, mas que passou por um grande crescimento
no início do século VII tornando-se o maior centro produtor de azeite ao longo de todo
o antigo Oriente Próximo. Com mais de cem prensas de azeite, estima-se que a
capacidade de produção beirava a cerca de mil toneladas.268

Toda produção era destinada a abastecer o Egito e a Assíria, pois estas terras não
possuíam as condições necessárias para o cultivo de oliveiras. Mas, como se pode notar
ainda hoje, Eglon não está situada numa região favorável ao plantio de oliveiras. A
cidade parece que deve ter sido escolhida por causa de sua localização geográfica, isto
é, numa região cortada pela rede de estradas da planície costeira.

Possivelmente, a região que fornecia as olivas para a produção de azeite em


Eglon, era a região montanhosa de Judá, além da província assíria de Samaria. Graças
ao trabalho Trude Dothan e Seymour Gitin, foram localizados no interior dos prédios
onde estavam as prensas de azeite uma grande quantidade de altares cuneiformes
tipicamente israelitas, o que sugeriu que ali trabalhassem um grande número de judeus.
Assim, como afirma Finkelstein:

267
Israel Finkelstein, A Bíblia não tinha razão..., p.360-361.
268
Idem, p.362.
Todas essas iniciativas econômicas básicas, efetivas e planejadas exigiam maior do
centralização do Estado judaico. O cultivo em larga escala de azeitonas e uvas e seus
produtos industrializados exigiam lugares para estocagem, transporte e distribuição
eficiente. [...] A evidência arqueológica sustenta a hipótese do maior envolvimento do
governo em todas as fases da vida de Judá – ao ponto de o número de selos, de
impressões desses selos, de óstracos administrativos e de pesos oficiais nos níveis de
estratos de Judá no século VII exceder muitíssimo as quantidades antes encontradas.269

Diante de todo esse avanço econômico do Reino de Judá durante o período de


governo de Manassés, denota que, praticamente, toda a população estava envolvida em
atividades pró-estado, e que longe do convívio de suas famílias, tiveram que ir se
adaptando ao novo modo de vida, baseado em relações de dominação e opressão. Dizer
que os habitantes das aldeias iam de bom grado trabalhar e se acabar em favor do
estado, é subverter a lógica do bom senso que caracterizava a vida das sociedades
primitivas ou tribais.

Vale ainda citar uma observação feita por Baruch Halpern, citada por
Finkelstein:

[...] com o afluxo de refugiados vindos do norte depois da queda de Samaria, a


reorganização da zona rural sob o governo de Ezequias e a segunda torrente de
refugiados da devastação do Shephelah por Senaquerib, muitas das ligações tradicionais
dos clãs com determinados territórios foram, para sempre, destruídas. Na zona rural,
economias de escala – necessárias para produzir enormes quantidades de azeitonas e
grãos para distribuição – beneficiaram muito mais aqueles que puderam organizar a
máquina de comércio e produção agrícola do que aqueles que trabalhavam no campo.
Mesmo que os clãs sobreviventes pudessem confirmar até certo ponto a linha
ininterrupta de herança de suas terras, aldeias e colinas, os efeitos da guerra, a alteração
da população e o planejamento econômico real intensificado podem ter encorajado
muitos a sonhar com uma era dourada do passado – real ou imaginária – em que seus
antepassados estavam estabelecidos, com segurança, em territórios bem definidos e
desfrutavam a promessa divina de paz eterna e prosperidade em sua terra.270

A observação de Baruch Halpern é muito sugestiva quando afirma que “muitas


das ligações tradicionais dos clãs com determinados territórios foram, para sempre
perdidas” por causa das invasões e destruições dos exércitos inimigos. De fato, com a
morte de muitos chefes tribais ou de família, além das deportações para outras partes do
império causou uma profunda mudança, principalmente, em termos de organização

269
Idem, p.363-364.
270
Israel Finkelstein, A Bíblia não tinha razão..., p.368.
social. Muitos, se não todos, foram obrigados a se refugiarem em regiões onde a cidade
e o exército não fossem capazes de chegar, isto é, nas regiões, montanhosas de matas e
bosques, que ainda não haviam sido tocados pelos homens. Certo é que as dificuldades
eram enormes, principalmente no acesso á agua. Estas estavam nas regiões de planície,
totalmente dominadas pelas cidades-estados. Esse foi, com certeza, o único modo de
poder continuar vivendo segundo os princípios milenares de seus ancestrais tribais.

Mas, uma coisa é certa também: aqueles que não conseguiram fugir e foram
obrigados a se submeter a um novo estilo de vida, diga-se, quase que num regime de
escravidão, perderam com certeza o referencial da terra e da família ou do clã, mas não
perderam referenciais ainda mais nobres, tais como a solidariedade e igualdade que
tanto caracterizam as sociedades tribais.

Após a morte de Manassés, subiu ao trono seu filho Amon, que depois de dois
anos, por ter causado muito descontentamento junto aos “filhos da terra”, isto é, a elite
social e econômica de Judá, foi por eles assassinado. Em seu lugar assumiu seu filho
Josias, que só ao atingir a maioridade assumiu definitivamente o governo.

É bom salientar que foi nesse período que escribas ligados à facção religiosa do
“somente Yahweh”, que chegando ao poder, ao lado dos “filhos da terra”, começaram a
redigir o texto que ficou conhecido como a Obra Historiográfica Deuteronomista
(OHD)271 e que foi concluída, provavelmente, depois da destruição de Jerusalém em
587 a.C., portanto, durante o período do exílio.

É fácil ver por que os autores bíblicos estavam tão transtornados pela idolatria. Ela era
símbolo de uma caótica diversidade social; os líderes dos clãs das áreas rurais
conduziam seus próprios sistemas de economia, de política e de relações sociais, sem
administração ou controle pela corte em Jerusalém. Aquela independência rural,

271
“Não é fácil reconstituir qual a elaboração historiográfica efetivamente realizada no tempo de Josias.
A Obra histórica do ‘Deuteronomista’, com efeito, chegou até nós numa formulação que (mesmo
prescindindo de acréscimos tardios) não pode ser situada antes da época exílica, pois o desastre final do
reino de Judá ocupa ali um lugar importante. Mais que a um único autor, portanto, a obra histórica em
questão deve ser atribuída a uma corrente (ou escola) de pensamento que teve início com a reforma de
Josias para se prolongar depois no tempo por algumas gerações”. Mario Liverani, Para além da Bíblia:
história antiga de Israel, São Paulo, Paulus, 2008, p.226. Nakanose desenvolveu uma importante teoria a
respeito do desenvolvimento do livro do Deuteronômio e da Obra Historiográfica Deuteronomista. Ver
Shigueyuki Nakanose, “Para entender o livro do Deuteronômio: uma lei a favor da vida?” em
Pentateuco, Revista de Interpretação Bíblica Latino-americana, nº23, Petrópolis, Vozes, 1996/1, p.176-
193. Penso que uma boa chave de leitura para os fatos políticos narrados está em usar o critério da
historicidade. Quanto mais próximos do período em que foi escrito mais fidedignos devem ser os relatos
e os personagens, com muitas ressalvas, é claro. Quanto mais distantes historicamente falando, mais
fantasiosos serão.
embora respeitada e honrada ao longo do tempo pelo povo de Judá, passou a ser
condenada como uma reversão ao barbarismo do período pré-israelita. Assim, com
ironia, o que era mais genuinamente judaico foi condenado como heresia cananéia. Na
arena da polêmica e do debate religioso, o que era antigo passou a ser considerado
estranho, e o que era novo passou, repentinamente, a ser considerado verdadeiro.272

Diante desta afirmação, podemos inferir que Finkelstein teoriza que, mesmo
depois do assentamento de milhares de camponeses oriundos do norte para Judá, a
periferia judaíta, continuou sendo nitidamente marcada pelo tribalismo, ou seja, no
tocante ao seu aspecto religioso, notadamente plural, o tribalismo israelita sempre foi
caracterizado pela diversidade religiosa, que longe de ser a de um monoteísmo
exclusivista, vivia intensamente o mundo dos deuses e deusas do panteão cananeu.
Neste ponto se faz necessária algumas observações que são de fundamental
importância para o que se sucedeu no período pós-exílico, que no caso, é o período
privilegiado do meu objeto de pesquisa. São duas faces que devem ser atentamente
observadas: a dos dominadores, daqueles que estavam sentados em berço esplendido em
Jerusalém e a dos dominados, dos camponeses que continuavam a ser explorados em
sua força de trabalho para poderem sustentar as benesses da classe dominante. Privados
de sua liberdade e dos mais altos valores de seu modo de vida tribal, apenas sonhavam
com a possibilidade de um dia poderem retornar a eles.

 Penso que se pode afirmar, com certeza, que Josias foi como que teleguiado em
suas opções políticas, econômicas e, principalmente, religiosas. Sendo incapaz
de assumir o reinado, devido à tenra idade, “obrigou” o grupo que lhe tutoreava
a assumir interinamente o governo. Na verdade, se utilizaram de Josias para
alcançarem seus objetivos. Se a OHD, como já visto anteriormente, não passa de
puro invençionismo273, – costurado e salpicado com diferentes elementos da
mais pura tradição israelita – tanto da classe religiosa quanto da aristocracia
ligada ao rei. Pode-se afirmar que a reforma proposta por Josias foi, no fundo,
uma reforma que visa aos escusos interesses da classe dirigente. Assim, Josias,
quando atingiu a maturidade, “soube tirar proveito da conjuntura favorável para

272
Israel Finkelstein, A Bíblia não tinha razão..., p.336-337.
273
Utilizo esse adjetivo em referência aos subtítulos que Mario Liverani faz uso na segunda parte de seu
livro: Para além da Bíblia – História antiga de Israel, São Paulo, Loyola, 2008, p.309-443, bem como
também devido aos inúmeros dados mais recentes fornecidos pela arqueologia que contrariam em
todos os sentidos as narrativas bíblicas, principalmente aquelas referentes ao passado mais antigo de
Israel.
dar ao reino de Judá um impulso novo, cujos aspectos salientes são de caráter
religioso e ideológico, mas cujas bases materiais são também dignas de nota”274.
 Diferentemente de seus antecessores, Josias não sofreu a pressão da assíria, que
no início de sua subida ao trono, já dava sinais de enfraquecimento e não
conseguia mais controlar todo seu imenso império, fazendo com que muitas
províncias outrora subjugadas, vissem nesse fato a oportunidade de adquirirem
novamente a necessária e tão sonhada autonomia política e poderem conduzir
seus projetos de expansão política, luxo e grandeza.275
 A história de Josias, narrada na OHD, mais especificamente em 2 Reis 22 - 23,
no que tange ao aspecto político é muito evasiva, enquanto que no que toca aos
aspectos cultuais, deixa entrever, que de fato, houve um grupo religioso que
tinha grande poder de influência sobre o rei. Tanto é verdade que a narrativa em
2 Reis 22,8-10, não tem o menor puder em apresentar o sumo-sacerdote
Hilqiáhu que entrega a Shafan, secretário do rei, um manuscrito que continha o
“livro da Lei” encontrado na reforma do templo de Jerusalém. O livro dos Reis
diz que Josias tomado de grande pavor, exclamou: “grande é a ira do Senhor que
se inflamou contra nós, porque nossos pais não obedeceram às palavras desse
livro e não agiram de acordo com o que ali se acha escrito” (2 Reis 22,13b).
A pergunta que não cala é a seguinte: que “livro da Lei” é este? Não há nenhuma
referência no texto bíblico quanto ao tamanho do livro encontrado e nem quanto
ao seu conteúdo. Desde o início do século XIX muitos estudiosos tem se
debruçado a pesquisar sobre este “livro da Lei”. A maioria está de acordo em
afirmar que deve haver alguma conexão com o livro do Deuteronômio, com seu
núcleo original, daquilo que se convencionou chamar de “estrato redacional
deuteronomista”, que segundo Liverani, “pode ser atribuído a essa época por
uma série de indícios de conteúdo”276. Mas, o que importa em relação ao meu
projeto, não é fazer algumas incursões na tentativa de desvendar esse mistério,
mas identificar as motivações que estavam por trás dessa construção narrativa,
seus efeitos políticos e religiosos, principalmente, com relação à classe social
sempre explorada, aos camponeses.

274
Idem, p.217.
275
idem, p.211-215.
276
Mario Liverani, Para além da Bíblia..., p.222.
 Parto da suposição de que tudo não passou de uma armação do grupo religioso
com o intuito de se legitimar no poder ao lado do rei. Para isso contaram com o
auxílio de escribas treinados que recolhendo elementos da tradição norte-
israelita teceram todo um conjunto narrativo. Se foi a partir de um núcleo já
existente (Dt 4 – 28) ou não, o fato é que, como diz Liverani:
Salta aos olhos o expediente do achado de um manuscrito “antigo” para conferir a
aprovação da autoridade tradicional à que devia ser, porém, uma reforma inovadora.
Mas é sobretudo importante constatar que essa reforma tenha tido lugar justamente em
coincidência com a diminuição da autoridade imperial assíria.277

Mera coincidência ou armação? A julgar pelas avaliações negativas que já foram


feitas a respeito da história israelita narrada na Bíblia Hebraica, principalmente relativa
à OHD, é de se supor que tudo não passou de uma estratégia político-religiosa, diga-se
de passagem, muito bem articulada pela classe sacerdotal, que tinha como objetivos
principais: centralizar e unificar o culto ao redor de deus único e num mesmo local, bem
como também, dar força de legitimação política aos projetos de expansão da monarquia.
Esses eram os dois pontos fundamentais da ideologia deuteornomista. Conforme
salienta Mario Liverani:

A afirmação ideologicamente expressiva da reforma não estava certamente na


substância dos vários artigos da lei, que em grande parte podiam fazer parte de qualquer
contexto religioso, mas na exclusividade da dependência do único deus Yahweh por
parte do povo.278

Em vista deste objetivo, transformaram uma antiga festa de caráter pastoril,


“com refeição sacrifical de cordeiro e pães ázimos, relacionada à volta da transumância
(plenilúnio da primavera)” numa grande celebração: a “festa da Páscoa”. Segundo ainda
Liverani:

[...] É provável inovação de Josias fazer dela uma festa de peregrinação (hag) para
aumentar a convergência de fiéis de todo o país para o santuário central. Faz parte
também da ideologia deuteronomista a ideia de uni-la ao episódio fundante da “saída do
Egito”.

277
Idem, ibdem.
278
Mario Liverani, Para além da Bíblia..., p.223.
Mas a maior insistência (2 Rs 23,4-14) é dedicada ao desmantelamento dos lugares de
culto não-javistas – as famigeradas bamôt (incluindo massebôt e ‘aserôt) – na própria
Jerusalém e em todo território de Judá, “de Gega‟ a Be‟er-sheba‟”.279

O que Josias não esperava, foi ter acabado morto sem ver seu projeto concluído.
Num acesso tresloucado, Josias saiu para enfrentar o faraó Neco. Sabendo de sua
inferioridade militar montou uma emboscada em Meguido. Mas, seus planos não
tiveram êxito, pois conforme 2 Rs 23,29 não houve nem batalha e o faraó conseguiu
apoderar-se de Josias que acabou morto. Enquanto o livro dos reis não menciona
nenhum detalhe do conflito, se é houve, o livro das Crônicas (2 Cr 35,20-24) narra um
confronto militar digno de menção.

Para o campesinato, a vida continuou na mesma, pois o projeto de reforma


política e religiosa colocado em prática por Josias, não teve o impacto esperado naquele
momento, mas em longo prazo, particularmente no final do período de domínio do
império persa, os descendentes do mesmo grupo religioso – o grupo sacerdotal sadocita
– que foram os principais responsáveis quanto a elaboração e articulação deste projeto,
deram continuidade e, aí sim, o campesinato judaíta, sofreu por ao menos três séculos as
terríveis consequências da conjunção numa mesma instituição do poder político e
religioso.

Assim como Finkelstein não foi capaz de enfatizar as consequências da


monarquia e suas reformas políticas e religiosas na vida dos camponeses, também
Mario Liverani, parece ter a mesma insensibilidade quanto a este aspecto, pois a
conclusão a que chega é a de alguém que só teve olhos para aqueles que estavam no
poder. Na segunda parte de seu livro – Para além da Bíblia: história antiga de Israel –
desmascara toda a trama criada pelos sacerdotes do templo de Jerusalém, mas não foi
capaz de ver o impacto deletério e perverso de tudo isso no dia-a-dia da vida de
milhares e milhares de campesinos ao logo de sua dramática história. Vejamos:

A ação do rei reformador não ficou, todavia, sem seus efeitos; antes, teve-os mais
decisivos por um longo prazo. E foram justamente os trágicos acontecimentos seguintes
que deram à tentada reforma os valores fundamentais para a sobrevivência do povo de

279
Idem, p.224.
Israel. Foi o projeto político de Josias que forneceu o modelo de uma unidade (étnica e
estatal) que jamais fora realizada antes – nem sequer concebida.280

Penso que a mesma situação pode ser aplicada ao Brasil. Se não fosse a chegada
dos portugueses em 1500 a essas terras, jamais seríamos a nação que somos hoje.
Talvez outros teriam desembarcado por aqui... Ingleses, Holandeses, Espanhóis... Bem,
talvez a história não tivesse sido muito diferente. Mas, o que devemos ter presente é a
quantidade de vidas que foram e ainda hoje são ceifadas porque não temos o devido
respeito e nem a devida responsabilidade para com esses povos... Usamos, abusamos e
fazemos de conta que o problema não é com a gente. Mas, “gente”, eles não eram
considerados.... E parece que ainda não o são. Onde estão os assassinos do índio
Galdino, da tribo Pataxó, queimado vivo enquanto dormia num ponto de ônibus? Triste
contínua história.

4.5.4 – Retorno dos exilados: a “terra” no centro da crise

Se pegarmos os jornais, com certeza acharemos alguma notícia a respeito do


tema do tópico acima: reforma agrária, demarcação de áreas indígenas e etc. Qualquer
semelhança é mera coincidência? Não, porque ontem como hoje a “terra”, enquanto
meio de produção fundamental e básico de sobrevivência humana, continua sendo
explorada e maltratada a níveis insustentáveis em função dos dividendos que produz,
provocando assim, disputas judiciais, violência e morte, além de tudo isso, continua
sendo artigo de objeto de lei que ainda tramita no Legislativo de nosso Congresso
Nacional: novo código florestal e etc.

Bem, mas a realidade aqui nesta tese é de 2500 anos atrás. Mais precisamente
em fins do século VI e início do século V a.C.. Sem entrar no mérito da questão
cronológica, isto é, quanto ao fato de quando teria(m) ocorrido(s) esse(s) retorno(s),
apesar de Esdras 1,24 fazer alusão a um possível edito281 emanado por Ciro, é bem

280
Mario Liverani, Para além da Bíblia..., p.230.
281
Com relação a um possível edito, Mario Liverani tem a seguinte posição: “O fato é que depois de dois
séculos imaginou-se que Ciro tivesse promulgado logo, já no seu primeiro ano de reinado na babilônia,
um edito que permitia o retorno dos exilados e a reconstrução do templo de Yahweh. O edito é
certamente falso, como demonstram quer a análise formal, quer os anacronismos. O mesmo vale para
um segundo edito do mesmo Ciro (mencionado em Esd 6,3-5), que teria sido encontrado nos arquivos
persas no tempo de Dario e que dava até as medidas e os detalhes novo templo. Esses editos foram
falsificados e adotados em época um tanto posterior, quando serviam para dar garantia e privilégio
provável que tenham retornado num primeiro momento somente um pequeno grupo de
judeus que talvez estivessem passando grandes necessidades. Mas é bem possível que
um primeiro e últimos retorno “oficial” tenha acontecido com a vinda de Esdras, o
escriba da família do principal sacerdote Aaron, (provavelmente em 458 a.C.). Esdras,
enviado por Artaxerxes, teria vindo para investigar o que estaria acontecendo em
Jerusalém e Judá, diante das notícias recebidas de antemão.

Mas o que me interessa é abordar a crise que se instalou em Judá devido ao


retorno desses grupos de judeus que haviam estado exilados em Babilônia. Não deve ter
passado de 10 mil, sendo bem otimista, o número de exilados. Esta crise teve como
epicentro a questão da terra. Quem eram os verdadeiros proprietários das terras em
Judá? Dos exilados que retornaram da Babilônia ou dos remanescentes (camponeses)
que permaneceram em Judá? Os judeus que retornaram, diziam ser eles, por natureza e
descendência, os legítimos proprietários. Já os camponeses que haviam permanecido em
Judá, bem, talvez não tiveram muitas oportunidades de defenderem seus interesses ou
quem pudesse lhes representar, mas com certeza devem ter protestado e, de fato, o
fizeram (cf. Ne 5,1-5), mas, conforme pode ser constatado, foram extremamente
hostilizados e marginalizados, tanto por Esdras, quanto por aqueles que retornaram.

Na verdade, os camponeses que permaneceram e passaram a cultivar as terras,


que talvez fossem deles próprios anteriormente, viviam numa situação, às vezes, de
extrema pobreza, habitavam vilas e aldeias, e com certeza, não ficaram livres de terem
que pagar impostos aos babilônios. Na sua grande maioria eram incultos e analfabetos,
estavam desagregados e sem chefes. Mas, podemos imaginar que o espírito tribal,
naquilo que mais caracterizava seu peculiar modo de vida, que era a solidariedade e
igualdade, jamais deixou de estar presente.

Mas, no tocante aos exilados, com certeza, aquela geração de judeus que foram
deportados já deviam ter morrido se pensamos numa expectativa de vida em torno de 40
a 50 anos para as pessoas que compunham aquele grupo – gente não muito acostumada
a trabalhar, por isso, a viver do trabalho e esforço de outros: a elite jerusolimitana.
Pode-se pensar que uma segunda e terceira geração de judeus possam ter nascido
daquela primeira. Quanto ao regresso desses judeus é possível imaginar que nem todos

imperial ao templo já construído e para rebater as pretensões do templo rival da Samaria”. Para além
da Bíblia..., p.312.
retornaram, talvez porque já estivessem estabilizados na Babilônia, com seus próprios
negócios em funcionamento, enquanto outros trabalhavam no aparelho burocrático do
estado. Enfim, pode-se afirmar, que uma “minoria” – tomando por base os números
apresentados pelos livros de Esdras e Neemias, que soam exagerados demais – tenham
voltado.

Em Esdras 2 e Neemias 7 encontram-se duas listas daqueles que retornaram com


uma grande coincidência entre os nomes. Conforme Mario Liverani assinala:

É verdade que os livros em questão são, como já referido, tardios e cheios de equívocos
involuntários (ou seja, devidos à ignorância) e voluntários (ou seja, devido à sua
intenção). [...] É um tipo de documento que por sua extrema importância legal pode ser
ou totalmente autêntico ou uma completa falsificação. As cifras e os topônimos dão um
quadro muito realista para fazer preferir a opção da autenticidade.282

É interessante perceber que nas duas listas se encontram algumas variantes.


Determinado grupo é mencionado somente em uma das listas, enquanto o total final não
bate nas duas listas. São registrados 25 mil leigos e cerca de 5 mil entre sacerdotes e
encarregados do templo, além de 7500 servos, perfazendo um total de quase 40 mil
pessoas. Se comparado com o número de prováveis deportados há uma grande
discrepância, pois em 2 Reis 24,14 estima-se o número de deportados na primeira leva
de 597 a.C. em 10 mil pessoas. Já o livro de Jeremias 52,28-30 relata que o total de
deportados chegou a 4.600 dos habitantes de Judá. Finkelstein diz que provavelmente o
número de deportados deve ter ficado entre mil e talvez 15 ou 20 mil283, enquanto o
Prof. Milton Scwhantes postulava que os dados apresentados por Jeremias talvez
estivessem mais próximo da realidade284. Temos que ter presente que o grupo dos
exilados foram aqueles que pertenciam ao círculo palatino (portanto, à classe
“política”), os encarregados do templo de Jerusalém (sacerdotes e escribas) e os
proprietários de terras. Segundo Finkelstein afirma:

Quando comparamos esse número com a população total de Judá no final do século VII,
antes da destruição de Jerusalém, podemos ter uma ideia da escala de deportação. A
população de Judá pode ser estimada, de modo acurado, a partir dos dados coletados
durante as escavações e levantamentos intensivos, em cerca de 75 mil habitantes (com
Jerusalém compreendendo pelo menos 20% desse número – 15 mil – e com outros 15

282
Mario Liverani, Para além da Bíblia..., p.314.
283
Israel Finkelstein, A Bíblia não tinha razão..., p.410.
284
Apontamentos em sala de aula. Universidade Metodista: 2008 – 2012.
mil habitantes provavelmente nas terras agrícolas mais próximas). Assim, mesmo se
aceitarmos os números mais elevados possíveis para os exilados – 20 mil – eles parecem
compreender, no máximo, ¼ da população do Estado de Judá; isso significa que pelo
menos 75 por cento da população permaneceu na terra judaica.

Desse modo, tem-se a impressão que a maioria habitava Jerusalém e as pequenas


cidades e vilas da Judéia (territórios tribais de Judá e Benjamim).

Conforme a figura do mapa acima se pode denotar que as fronteiras, apesar de


haver certa imprecisão porque não podem ser deduzidas a partir dos dados atuais, pode
nos dar uma razoável ideia de onde estavam. Judá incluía os antigos territórios de Judá e
Benjamim, com a fronteira norte em algum lugar ao redor de Betel. A fronte oriental
para o Jordão e o Mar Morto, aparentemente incluindo Jericó e Em-Gedi. A oeste, a
maioria do Shephelah foi excluída, juntamente com Gezer, Azeca e Laquis, todas fora
da província. A fronteira sul se estendia até Bete-zur e poderia ter incluído Hebron
(apesar de que o local estava abandonado durante o período persa). Como se pode ver
pelo mapa, temos ainda a configuração de outras províncias, todas pertencentes à
Satrapia Transeufratênia (Ebir-nari), isto é, o território que fica a oeste do Eufrates. Um
dado recente e interessante da arqueologia que tem ajudado a definir os limites
geográficos da província de Judá são os chamados “selos”. Não somente os carimbados
em frascos e na alça de vasos, que de acordo com o local onde foram encontrados são de
grande importância em função da determinação dos limites da província.

Segundo Lester Grabbe comenta, o período persa de Judá pode ser caracterizado
segundo dois princípios demográficos:

 Redução drástica da população e


 Aumento igualmente dramático dos assentamentos
O primeiro dado que chama a atenção em estudos recentes é o pequeno número
de pessoas que parece ter vivido na província de Judá do longo do período. Embora
tenha havida um aumento gradual da população através dos 200 anos, mesmo em sua
forma mais densamente povoada, a população não parece ter ultrapassado cerca de 30
mil pessoas. Esta teria sido uma redução global da ordem de 70% desde o final do
período do Ferro II. Todas as áreas tiveram uma queda drástica no número de
estabelecimentos dumans, com exceção da região entre Jerusalém e Bet-zur.

Com exceção de Jerusalém, Mizpá e talvez, Ramat Rahel, a maioria dos


habitantes da província de Judá, viviam em aldeias sem muros e cidades. A região de
Benjamim tinha um percentual ligeiramente maior de locais muito pequeno e médios. Já
a região de Judá, tinha um percentual maior de locais grandes dimensões: 75% destes
locais com mais de 300 pessoas estavam no antigo território de Judá.

A população da franja oriental ou do deserto quase desapareceu. Parece que essa


região veio a ser evacuada no fim da idade do Ferro, quer através da direta destruição ou
rápido declínio.

O principal assentamento em Jerusalém estava na velha Cidade de Davi em


torno da colina e do Monte do Templo. Estas áreas foram consideradas sendo habitadas
por não mais de 1500 habitantes. Além disso, precisam ser computados os demais
habitantes que viviam nas fazendas e assentamentos fora dos muros, totalizando
aproximadamente cerca de 3000 habitantes. Isso poderia parecer enorme, mas a
realidade era de que nos assentamentos da Judéia a população não ultrapassava a 300
habitantes. Mas apesar de ser o maior local, Jerusalém não foi o grande centro urbano
como alguns tem retratado. Segundo Lipschits, citado por Lester Grabbe, Jerusalém foi
uma cidade com um templo, ao redor do qual havia residências para aqueles que
serviam no templo e para um pequeno número de residentes locais. A cidade
permaneceu pobre durante todo o período persa, embora muito dos repatriados,
provavelmente, lá se estabeleceram.

Resumindo, Lester Grabbe conclui que Judá foi uma pequena província de não
mais de 30 mil habitantes, com 10% vivendo dentro de Jerusalém e ao seu redor, o
único local realmente urbano. Este número representou uma queda de 70% da
população a partir do final do Ferro II. A maior parte da população vivam em pequenas
aldeias não muradas. A grande surpresa é que a migração dos exilados da babilônia não
parece terem deixado muito de uma marca na arqueologia ou demografia.285

4.6 – O sacerdócio jerusolimitano

Da mesma forma como é impossível escrever uma história de Israel a partir dos
dados fornecidos pela Bíblia Hebraica, assim também, se torna igualmente impossível,
traçar um perfil histórico do sacerdócio em Israel. Os textos relativos à ascensão dos
sacerdotes em Israel são igualmente construções profundamente ideologizadas, servindo
única e exclusivamente como forma de justificação e legitimação de seu projeto de
estabelecimento no poder.

O sacerdócio desenvolvido em Jerusalém durante o período de domínio dos


aquemênidas não se diferencia muito dos demais tipos de especialistas religiosos que se
encontra por todo o Oriente Próximo Antigo. Tendo por função essencial garantir a
mediação entre Deus e as criaturas humanas, o sacerdócio sempre ocupou uma posição
de destaque dentro dos vários tipos de sociedades ao longo de toda a história do gênero
humano. De certo ponto de vista, pode-se dizer que os sacerdotes sempre contribuíram
para que houvesse uma determinada estabilidade do corpo social. Por isso, pode-se falar
numa função sócio-estabilizadora do sacerdócio.

Sendo uma dentre tantas outras especialidades no trato com o sagrado, o


sacerdócio jerusolimitano ganhou um destaque todo especial devido a sua habilidade de
conjugar tanto o poder religioso e sagrado com o poder político. O judaísmo nos serve

285
Lester L. Grabbe, A history of the Jews…, p.28-30.
de excelente exemplo de como a conjunção do religioso com o político se transformou
numa instituição profundamente danosa e prejudicial, senão para toda a sociedade, ao
menos para os grupos tribais, que tiveram suas vidas inteiramente modificadas. No caso
do judaísmo, o sacerdote substituiu tanto os reis quanto os demais especialistas no trato
com o divino ou religioso.

Se como afirma Luís Lorenzetti “a análise social do poder evidencia, por


exemplo, que em uma sociedade dominada por valores religiosos o poder se concentra
nas mãos dos sacerdotes”286, vou tentar reconstruir a caminhada histórica da ascensão
do grupo sacerdotal jerusolimitano ao centro do poder sócio-político em Jerusalém e
Judá.

Como foi demonstrado no tópico anterior, a sociedade judaíta, incluindo


principalmente Jerusalém, como seu polo aglutinador no período pós-exílico, esteve no
centro de uma disputa que se prolongou durante todo o período de domínio do império
Aquemênida, somente se definindo e estabilizando dentro do período de domínio do
império grego. Portanto, foram pelo menos três séculos de lutas, principalmente no
campo ideológico, para que o grupo sacerdotal se justificasse e legitimasse no poder.

Se na modernidade “a problemática da legitimação do poder encontrou a direção


significativa quando abandonou a fundamentação do poder vindo do alto”287, o que
pode-se notar, principalmente neste período e contexto do judaísmo, é o oportunismo da
classe sacerdotal em articular-se literariamente para alcançar o poder e nele se perpetuar
por muitos e muitos séculos.

Nesse sentido, Jerusalém e Judá não estavam isentas da influência deste tipo de
prática que era comum a todo o Oriente Próximo Antigo. Luís Lorenzetti nos diz que
“na área cultural mediterrânea, o poder político estava estreitamente relacionado com o
fato religioso mediante alguma conexão ou descendência entre o imperador (ou o rei, ou
o chefe do povo) e a divindade. Isto dava motivação absoluta e ética à obediência
devida ao poder”288. Isso é o que se poderá constatar ao ver como a classe sacerdotal
conseguiu a hegemonia do poder frente a todos os demais grupos. Mas, principalmente,

286
Luís Lorenzetti, “Poder” em Dicionário de Teologia Moral, São Paulo, Editora Paulus, 1997, p.968.
287
Idem, p.971
288
Idem, p.975. Foi contra esta postura, de identificação pura e simples, da obediência política com a
obediência religiosa e moral que se levantaram os sofistas na Grécia antiga.
como já destacado, o que fez com que o campesinato judaíta abdicasse dos seus valores
éticos e morais para seguir este novo projeto. Ao que tudo indica, não tiveram escolha.

Para isso, temos que necessariamente lançar mão de alguns instrumentais


específicos, particularmente os oriundos das ciências humanas, pois, como afirma Luíz
Lorenzetti:

Um dado importante da sociologia consiste em evidenciar, além da importância do


fenômeno do poder na sociedade, a impossibilidade de compreendê-lo fora de
determinado contexto social. O contexto social permite captar, antes de tudo, a
unidade e a articulação dos diversos poderes: político, econômico, ideológico... De
pouco serve seguir a multiplicidade dos poderes considerados como independentes,
sem segurar a base e o núcleo do poder que leva depois à sua ramificação diversa.

A unidade do poder (e a sucessiva articulação dos diversos poderes) se estabelece,


sobretudo, por referência aos valores sociais presentes em determinada sociedade. A
análise social do poder evidencia, por exemplo, que numa sociedade dominada por
valores religiosos o poder se concentra nas mãos dos sacerdotes.289

É nesse sentido que sou obrigado, epistemologicamente falando, a me


embrenhar por um campo da ciência, que não sendo tão específico da área de exegese
bíblica, me proporcionará excelentes referenciais teóricos, tendo em vista os objetivos a
serem alcançados tanto em relação ao título quanto ao objeto de pesquisa desta tese.

O termo sacerdócio tem sua raiz na palavra kohen que no texto hebraico tem
750 ocorrências. Etimologicamente está ligado à raiz Kun, que implica na ideia de
firmeza, solidez, e é utilizado para o estabelecimento do santuário. Encontrado
abundantemente nos achados arqueológicos em Ugarit, que foi na antiguidade um
grande centro religioso, demonstra sua popular utilização.

Encontramos já nos textos bíblicos mais antigos inúmeras referências aos


sacerdotes. Particularmente, são os livros proféticos, os textos mais antigos, que fazem
mais referências aos sacerdotes, mas, diga-se de passagem, referências muito negativas.
Amós por exemplo, – texto do período pré-exílico – profetiza ao povo dizendo que
aqueles que buscam o Senhor que o procurem de coração sincero, seguindo suas leis e
seus preceitos:

289
Luís Lorenzetti, “Poder”, em Marciano Vidal, Dicionário de teologia Moral, São Paulo, Paulus, 1997,
p.968.
 “Procurai-me e vivereis. Mas não me procureis em Betel, no Guilgal não entreis, não
passeis por Beer-Sheba” (Am 5,4b-5a);
 “Detesto, desprezo vossas peregrinações, não posso suportar vossas assembleias,
quando me fazeis subir holocaustos; e em vossas oferendas nada há que me agrade;
vosso sacrifício de animais cevados, dele viro o rosto; afasta de mim o alarido de teus
cânticos, o toque de tuas arpas, não posso nem ouvi-lo” (Am 5,21-23).

Amós na primeira citação orienta a todos que não se dirijam aos santuários, tanto
de Betel, quanto aos santuários de Guigal ou de Beer-Sheba. Apesar do texto não fazer
uma referência explicita aos sacerdotes, supõe-se que à frente de cada santuário
existisse um ou mais sacerdotes. Amós, ao que parece, tem uma visão teológica
completamente diferente da teologia que irá se desenvolver e se solidificar nos escritos
da OHD, no livro do Pentateuco e na OHC, que é justamente esta teologia que ele e os
outros profetas condenam. Uma teologia centrada no sacrifício que no período de estudo
do meu objeto de pesquisa irá se traduzir numa Teologia da Retribuição (TdR). Ao
contrário, a visão teológica de Amós é plena de justiça social. Honrar e ser fiel a Deus
implica em fazer justiça, mas particularmente, justiça aos mais pobres.

O terceiro Isaías, também conhecido por Trito-Isaías, tem uma visão teológica
similar à visão de Amós, plenamente centrada na justiça social, isto é, anti-templar, por
isso, anti-sacerdotal. Vejamos:

 É para isto que tu proclamas um jejum, um dia favorável junto ao Senhor?


O jejum que eu prefiro, acaso não é este: desatar os laços provenientes da maldade,
desamarrar as correias do jugo, dar liberdade aos que estavam curvados, em suma,
que despedaçais todos os jugos? Não é partilhar o teu pão com o faminto?
E ainda: os pobres sem abrigo, tu os albergarás; se vires alguém nu, cobri-los-ás:
diante daquele que é a tua própria carne, não te recusarás.
Então a tua luz despontará como a aurora, e o teu restabelecimento se realizará bem
depressa. Tua justiça caminhará diante de ti e a Glória do Senhor será a tua
retaguarda. (Is 58,5c-8)

A exemplo do profeta Amós, também o Trito-Isaías relaciona a pratica religiosa


com a justiça. Cultuar a Deus ou jejuar significa na ótica teológica do Trito-Isaías,
mesmo estando numa situação de exílio, libertar os cativos, dar pão aos famintos, roupa
aos desnudos e abrigo aos pobres desamparados. E haviam muitos nesta situação de
pós-guerra.
Diante do exposto acima, pode-se constatar que no período pós-exílico existiram
diferentes afluentes teológicos, isto é, diferentes grupos com ideias completamente
opostas umas às outras que, de certa forma, estiveram presentes num intenso combate
ideológico tendo em vista a sua legitimação no poder.

Como já assinalado anteriormente, os dois grupos que mais se destacam são o


campesinato judaíta e o grupo sacerdotal jerusolimitano, ao menos do ponto de vista
bíblico. O campesinato judaíta não porque tenha querido adquirir o poder, mas porque
acabou se tornando objeto de extremo valor econômico nas mãos dos demais grupos,
pois era quem produzia e mantinha economicamente a cidade de Jerusalém com vida. Já
o grupo sacerdotal de Jerusalém foi o grupo que se aproveitando especialmente das
articulações com o império Aquemênida se sobrepôs aos demais grupos, alcançando
assim a hegemonia do poder sobre todo o território de Judá. Foram escribas ligados a
este grupo, quem provavelmente, como será demonstrado, que fizeram a redação final
do Pentateuco e elaboraram a OHC.

Assim, passemos agora a traçar, mesmo que de modo muito conciso, a partir do
próprio texto bíblico290, os percalços que o sacerdócio jerusolimitano fez.

Levando em conta os dados oriundos da arqueologia que descaracterizam


totalmente a história narrada pela Obra Historiográfica Deuteronomista (Josué, Juízes, 1
e 2 Samuel e 1 e 2 Reis) é possível afirmar, com certeza absoluta, que o chamado Reino
de Judá em oposição ao Reino de Norte – ou Reino de Israel – jamais alcançou tamanha
glória como descrito nos livros citados acima. Muito pelo contrário, o Reino do Sul ou
de Judá, foi um reino quase que desprezível do ponto de vista econômico, religioso e
militar. As inúmeras citações de ostentações de grandeza e poder relativas a Salomão
são, poderíamos dizer hoje, uma invenção dos redatores que tinha como único objetivo
servir como fator ideológico, cuja função foi de legitimar a supremacia do Reino de
Judá (Sul) em relação ao Reino de Israel (Norte).

290
Essa referência ao texto bíblico como fundamento para se traçar a caminhada histórica do sacerdócio
é possível apenas a partir de extrapolações do próprio texto. É a partir de contradições deixadas pelos
redatores que podemos fazer algumas tentativas de reconstrução da caminhada histórica do sacerdócio
jerusolimitano.
Tradicionalmente, o gráfico que é traçado, mediante os dados fornecidos pelos
relatos bíblicos (criação do redator da OHD) é este:

P
A E D
T E REINO DO NORTE
G
R S
- ISRAEL -
I I E MONARQUIA
TRIBALISMO UNIDA
A R REINO DO SUL
R T T - JUDÁ -
C O
O
A
S

Mas, de acordo com os recentes dados alcançados pelas descobertas


arqueológicas, alguns eventos sofrem um profundo deslocamento no tempo e no
espaço, conforme a figura abaixo:

722 a.C.

REINO DO NORTE (ISRAEL)


SOCIEDADE IGUALITÁRIA SEM
TRIBALISMO IDEALISMOS E UFANISMOS
E
X
REINO DO SUL (JUDÁ)
I
L
I
O

Os dados mais recentes provindos das escavações arqueológicas comprovam a


ilustração gráfica acima. Nunca houve uma “monarquia unida”, nunca houve um Reino
de Judá superior em honra, tamanho e poder superior a Israel, a não ser depois da
destruição de Samaria pelos Assírios em 722 a.C.. Foi somente a partir destes eventos
que Judá começou a ter certo destaque no cenário de todo o Oriente Próximo Antigo.291

É nesse contexto, após a destruição de Samaria, capital do Reino de Israel pelos


Assírios que, sob os auspícios do rei de Judá, escribas trataram de escrever outra
história – Obra Historiográfica Deuteronomista –, totalmente diferente daquela que
havia acontecido. Muitos que pertenciam ao Reino de Israel foram mortos, outros
levados para outras partes do império e ainda outros, conseguiram fugir para o sul,
justamente para Judá, pois ali era uma região segura que não despertava o menor
interesse de quase ninguém.

É certo que neste período (séculos VII e VI a.C.) já havia um núcleo do


Pentateuco que seria mais tarde, no contexto do domínio persa, totalmente reescrito pelo
grupo sacerdotal. Este núcleo que trazia costumes e leis (tradições do Reino de Israel)
muito provavelmente foi trazido para Jerusalém quando da fuga da população israelita
diante do massacre imposto pelo exército assírio. O que fizeram os escribas da corte
jerusolimitana: provavelmente mediante ordens expressas do rei e influenciados pelos
sacerdotes dos antigos santuários jebuseus que havia em Judá, – que nesse período já
demonstravam gozar de muitos privilégios junto ao rei judaíta – ignoram totalmente,

291
Israel Filkenstein,
não somente a história passada, mas cooptam a história israelita para si e tratam de se
inserir como um grupo sacerdotal cuja origem remontaria a Davi.

É nesse contexto que aparece pela primeira vez nome de Sadoc, sacerdote
jebuseu, que mediante uma aliança com Davi, dividiram o poder sobre Jerusalém. Com
Davi teria ficado o poder político e com Sadoc o poder religioso. Ao que parece,
conforme relato de 2 Sm 8,17-18; 15,24ss, Davi teria assumido modelo monárquico dos
jebuseus, incorporando seu quadro administrativo, pois precisava de gente preparada
para dirigir o novo estado. Ainda conforme o relato da OHD na luta pela sucessão ao
trono de Davi, o grupo de Hebron, mais ligado às tradições israelitas, foi vencido pelo
grupo de Jerusalém, mais ligado às tradições cananeias. Abiatar, sacerdote de YHWH,
foi expulso por Salomão e substituído por Sadoc. Joab, o comandante militar de Davi
desde a época tribal, foi assassinado por Salomão e substituído por Banaías.

É obvio que temos aqui a mão dos escribas judaítas alterando a história, o que no
tocante aos sacerdotes jebuseus, desprezaram as tradições religiosas do norte – Israel –,
isto é, seus santuários e seus sacerdotes, enfim, toda a sua tradição religiosa. Os fatos
narrados nesse contexto pelos redatores da OHD são fatos que teriam acontecido em
torno do início do século X a.C., portanto, escritos de 350 a 400 anos posteriormente.

Nesse sentido, pode-se constatar que os escribas judaítas, provavelmente, tendo


conhecimento dessas tradições mais antigas pertencentes ao Reino de Israel ora
consignadas na fonte mais antiga do Pentateuco, não mediram esforços e nem
criatividade para adulterá-las.

John van Seters, argumentando sobre o surgimento da historiografia em Israel


faz a seguinte afirmação com relação à Obra Historiográfica Deuteronomista:

[...] Não temos razões para acreditar que o autor dispusesse de outras fontes,
tradicionais ou arquivísticas, ao compor as várias cenas e episódios da sua obra. Todos
eles devem ter sido inventados. A noção de um relato testemunhal tem de ser
abandonada, o que implica a revisão de toda a reconstrução do surgimento da escrita da
história em Israel. Antes do historiador Dtr, não há qualquer indício de uma
historiografia desse tipo em Samuel-Reis.292

292
John van Seters, Em busca da história: historiografia no mundo antigo e s origens da história bíblica,
São Paulo, EDUSP, 2008, p.302.
Diante desses fatos é possível afirmar que a verdadeira tradição israelita, naquilo
que poderia ter existido, historiograficamente falando, foi enterrada. Somente a
arqueologia, muitos séculos posteriormente poderia como tem feito atualmente, tornar a
reescrevê-la. O fato é que os dados referentes à tradição sacerdotal, segundo a linhagem
sadocita terá grande influência, não somente no controle das atividades cultuais no
templo de Jerusalém, permanecendo no poder até a revolta dos Macabeus em 174 a.C.
(2 Mac 4,7), mas também influenciará por demais, tanto a OHC (particularmente, 1ª e 2ª
Crônicas) quanto o próprio livro do Pentateuco que passará por uma total revisão de seu
conteúdo.

O livro de Levítico é o ápice do escrito sacerdotal no Antigo Testamento.


Seu principal foco é a responsabilidade do culto dos sacerdotes, mais notavelmente o
sistema sacrificial. Eles realizaram todas as atividades relativas ao altar, seja a aspersão
do sangue ou a queima das peças sacrificiais (ver especialmente caps. 1-7; 21-22).
Havia outras funções do culto, embora, como as cerimônias do Dia da Expiação (Yom
Kippur), em que o sumo sacerdote tinha uma função central (16). A outra função
mencionada por Levítico é a tarefa de se pronunciar sobre as questões de puros e
impuros (11-15), especialmente no caso de “lepra” (13-14).

Apesar de indicado apenas de passagem em Levítico (25,32-34), textos


sacerdotais geralmente assumem uma diferença entre os descendentes de Aarão
(referido como “sacerdotes”) e os outros descendentes de Levi (“levitas”). Esta é feita
especialmente, de modo muito claro, em Números. Os levitas são a categoria mais baixa
do clero, com responsabilidade sobre o tecido do templo (ou tabernáculo, nos textos do
deserto), pois a eles também são atribuídas outras tarefas domésticas no culto (Nm 1,47-
53; 4). Os levitas foram consagrados para servir a Aarão e os sacerdotes (3,8) no lugar
do primogênito, cujo papel tem sido tradicionalmente. Somente os sacerdotes tinham
permissão para presidir o próprio altar e foram para receber apoio de parcelas de
sacrifício, os primeiros frutos e os dízimos dos levitas (17,5.18). Os levitas receberam o
seu apoio principalmente do dízimo do povo, se fossem dar o dízimo por sua vez, aos
sacerdotes (18,21-32). A prerrogativa dos sacerdotes sobre os levitas é graficamente
ilustrada pela história de Coré, que tentou democratizar o sacerdócio (16). Embora os
chefes de outras tribos (como Ruben: 16,1-3) também estavam envolvidos, um ponto
especial é feita de que os levitas não estavam satisfeitos com seu papel e, bem como,
queriam assumir deveres sacerdotais (16,8-11). Quando eles foram mortos de forma
sobrenatural, isto foi visto como juízo ponderado de Deus sobre tal idéia.

Em contraste com os escritos sacerdotais de Levítico e Números, o


Deuteronômio não faz distinção entre os sacerdotes e levitas, ao invez, refere-se aos
"sacerdotes levitas" (7,9) ou "sacerdotes, filhos de Levi" (21,5; 31,9). Embora a situação
é assumida e não discutida, uma passagem sugere que alguns viam a questão de maneira
diferente a partir da posição nos escritos sacerdotais: 18: 1-8 diz que toda a tribo de Levi
é sem herança e, portanto, qualquer levita tem o direito de tomar o seu lugar no altar e
receber suas dívidas. A tribo de Levi tem a responsabilidade de levar a Arca e
freqüentando a Yhwh, não tendo nenhuma herança (10,8-9). Devido a isso, as pessoas
dizem para não esquecer o levita dentro de suas portas, quando todos se alegrarão
perante Yhwh (12,12; 18-19; 26,11). Em seu uso do festival do dízimo ou do dízimo do
terceiro ano, as pessoas foram para lembrar o levita (14,27. 29; 26,12). Assim, apesar de
algumas objeções, Deuteronômio parece considerar todos os levitas como tendo o
direito de presidir o altar.

Assim, o grupo sacerdotal sadocita em Jerusalém, por meio de experientes


escribas, construíram toda uma história segundo seus objetivos, que a princípio eram
participar e desfrutar do poder da realeza, para num segundo momento – pós-exílico –
assumir, definitivamente, o poder político sobre todo o território de Judá. Em vista
disso, de geração em geração, membros desse grupo se encarregaram de controlar esta
história:

 São notórias as inserções feitas nos escritos proféticos gestados no Reino de


Israel. Basta ver as referências a respeito de Judá nos livros de Amós e Oséias,
que foram livros escritos e destinados exclusivamente à sociedade norte-
israelita.

4.7 – O regime teocrático

Ontem como hoje, podemos ver como é verdadeiramente nefasto para qualquer
sociedade a junção numa só instituição destas duas dimensões plenamente humanas:
política e religião. Parto do pressuposto de que em todas as sociedades em que se deu tal
junção, quem levou a pior foram os pobres, a classe dominada política e religiosamente.
Aliás, se constitui no objetivo principal desta tese confirmar a extrema
incompatibilidade e ilegitimidade da união destas duas dimensões, digam-se,
fundamentais da existência humana, numa só instituição. Para isto, tomarei como
exemplo um caso particular: o Judaísmo pós-exílico no seu período formativo.293 Ali
temos a possibilidade de ver com clareza e nitidez a junção destas duas dimensões
encarnadas no clero sacerdotal jerusolimitano. Como veremos mais à frente, foi por...

Segundo Silvio Ferrari:

Com o termo teocracia, designa-se um ordenamento político pelo qual o poder é


exercido em nome de uma autoridade divina por homens que se declaram seus
representantes na Terra, quando não uma sua encarnação. Bem característica do sistema
teocrático é a posição preeminente reconhecida à hierarquia sacerdotal, que direta ou
indiretamente controla toda vida social em seus aspectos sacros e profanos. A
subordinação das atividades e dos interesses temporais aos espirituais, justificada pela
necessidade de assegurar antes de qualquer outra coisa a salusanimarum dos fiéis,
determina a subordinação do laicato ao clero: a Teocracia que etimologicamente
significa “Governo de Deus”, traduz-se assim em hierocracia, ou seja, em Governo da
casta sacerdotal, à qual, por mandato divino, foi confiada a tarefa de prover, tanto a
salvação eterna, como o bem estar material do povo.294

Spencer no seu Principes de Sociologie, procura mostrar “a estreita relação que


havia entre as instituições políticas e as eclesiásticas, nos povos antigos ou
selvagens”295.

293
Sabe-se pela história que o regime teocrático de Israel (judaísmo) serviu de modelo e inspiração para
igreja Católica desenvolver seu projeto político de amplo domínio após a queda do Império romano, ao
longo de todo o período da idade média. Agostinho já havia teorizado sobre a devida subordinação do
estado à igreja em De Civita Dei. “Os dois maiores dons de Deus concedidos aos homens pela divina
clemência – conforme está escrito no Corpus juris civilis – são o Sacerdócio e o Império: aquele cuida das
coisas divinas e este, por sua vez, rege e vigia as coisas humanas; um e outro, derivando de um só e
mesmo princípio, são o ornamento da vida humana”. Destas afirmações, conforme escreve Silvio
Ferrari, “derivam consequências teóricas de grande alcance e em particular a tese que atribui ao
pontífice a totalidade do poder, seja espiritual seja temporal: ‘Nós sabemos pelas palavras do Evangelho
– escreve Bonifácio VIII na Bula Unam saneiam (1302) – que nesta Igreja e no seu poder existem duas
espadas uma espiritual e outra temporal... as duas estão em poder da Igreja, a espada espiritual e a
espada material; uma na verdade deve ser empunhada pela Igreja e a outra pela Igreja também; a
primeira pelo clero; a segunda, pela mão do rei ou dos cavaleiros, mas segundo o comando e a
condescendência do clero, porque é necessário que uma espada dependa da outra e que a autoridade
temporal esteja sujeita à autoridade espiritual’”. Será com a reforma protestante, que ao romper a
unidade religiosa europeia, que será marcado o ocaso definitivo do sistema teocrático católico. Idem,
p.1237-1238.
294
Silvio Ferrari, “Teocracia” em Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino, Dicionário
de Política, 11ª Edição, Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1983, p.1237.
295
Citado por Roger Bastide, Elementos deSociologia ..., p.100.
Na Grécia antiga, o chefe do culto era o rei que além de presidir as oferendas de
sacrifícios, recitava as orações e presidia as refeições religiosas. Igualmente aos reis
gregos, os primeiros imperadores romanos assumiram também a função de sacerdotes.
Também sabemos que, tanto no Egito, como na América pré-colombiana, os reis e
faraós, se ocupavam também das orações, tendo em vista a fecundidade da terra e o
poder de governar seus súditos.296

Conforme a interessante teoria das origens mágicas da realeza de Frazer, a


religião é posterior à magia, assim como o sacerdote ao feiticeiro. Nesse contexto, o rei
se converte num deus encarnado.297

A religião, conforme Davy é a categoria sob a qual começa a pensar-se a


constituição de um poder individual. Desse modo, a soberania política requer, para
produzir-se, certas transformações das antigas concepções religiosas.298

Desse modo, Roger Bastide chega à conclusão de que os sentimentos religiosos


são a força constrangedora e necessária para a implantação do poder político299, pois
conforme Luís Lorenzetti a dimensão religiosa sempre dava motivação absoluta e ética
à obediência devida ao poder político300.

São diversos os testemunhos históricos desse recurso utilizado pelos reis e


chefes no período antigo. Tanto Amenófis no Egito, quanto Ezequias e Josias no Reino
de Israel (Judá) dissimularam sua ação política por trás de uma reforma religiosa. Assim
Marcel Mauss vê nessa atitude de integração do poder religioso ao poder político uma
espécie de organização correspondente a um começo do monoteísmo301.

Chamam-se teocracias os regimes em que essas duas espécies de sociedades encontram-


se misturadas. Spencer elaborou os principais fatores explicativos: as estreitas relações
do clero com o divino dá-lhe uma autoridade misteriosa, o fato de que muitas vezes o
sacerdote representa, num país, a classe mais culta e mais inteligente; o poder que
resulta do acúmulo de propriedades (dons, salários, oblações, etc.). Este tipo de
organização pode ter diversas formas. Há um governo teocrático, propriamente dito
quando dois poderes estão nas mesmas mãos [...] Este governo aparece em todas as
monarquias de origem sagrada no extremo Oriente, na Pérsia e no fim do Império

296
Roger Bastide, Elementos de sociologia religiosa, São Paulo, UMESP, 1990, p.100.
297
Idem, p.101.
298
Idem, p.103.
299
Roger Bastide, Elementos de sociologia..., p.102.
300
Luís Lorenzetti, “Poder” em Dicionário de Teologia Moral, São Paulo, Editora Paulus, 1997, p.968.
301
Roger Bastide, Elementos de sociologia..., p.103.
romano, pois “em tal estado social a obediência torna-se, de alguma maneira, um dever
religioso”(Joussain).302

4.8 - Conclusão

Desse modo, pode-se notar que, de fato, existem na base do judaísmo, pelo

menos dois grupos bem distintos: de um lado, os sacerdotes ligados ao templo de

Jerusalém e, do outro, o campesinato judaíta, isto é, herdeiros da mais pura tradição

tribal. Desse modo, a partir dos assuntos desenvolvidos neste capítulo 4, constatou-se

que o Judaísmo, nunca foi um projeto que teve sua origem nos longínquos tempos do

início do período monárquico, mas sim, que sua gênese pode ser localizada com muita

certeza na transição do período persa para o período grego. É aqui, neste período que

entram em choque diferentes forças sociais (diferentes grupos sacerdotais?) na luta pela

posse do poder tanto religioso quanto político.

Nesse sentido, diferentes são as visões do sacerdócio israelita a partir dos textos
do Antigo Testamento. Alguns textos falam em “sacerdotes levitas”, outros em
“sacerdotes e levitas”, “aaronitas e levitas” ou ainda, “sadocitas e levitas”. Como se
verá, o conceito que prevaleceu no período do segundo templo foi o de sacerdotes que
oficiavam no altar do templo e de levitas (como uma espécie de baixo clero) com outros
deveres. Essa diversidade nos textos reflete uma intensa luta dentro do templo no
sentido de que grupo ficaria responsável, propriamente, pelo exercício do ofício do
culto. É certo que o grupo que prevaleceu fez uso da literatura bíblica como forma de
legitimação de seu status e poder.

Diante desses fatos, pode-se concluir que os textos do Antigo Testamento,


relativos ao sacerdócio, particularmente, os livros do Levítico e Números, foram
ideologicamente escritos em função das lutas dentro do sacerdócio antes de terem sido
canonicamente assumidos por toda a sociedade judaíta.

302
Idem, p.104
III PARTE

Capítulo V - JUDAÍSMO

“No que diz respeito à religião, a crítica da religião,


no essencial, terminou, e a crítica da religião
é condição preliminar de toda crítica” karl Marx
O Judaísmo a princípio dá a entender que foi um projeto querido, organizado e
conduzido em todas as suas diferentes fases por uma divindade. Um projeto que
vingou que deu certo, apesar de ter passado por inúmeras crises ao longo dos séculos,
finalmente teve êxito. Um projeto que desde Adão e Eva, passando pelos patriarcas,
pelas 12 tribos, pela monarquia, pelo exílio e pela restauração no período do 2º
templo, tudo parece que já estava pré-determinado no desígnio divino. Mas, é de se
perguntar:

 O que deu certo?


 Para quem deu certo?
 Quem arcou com as consequências?
Toda a nação israelita, que no contexto do período do segundo templo se
resumia à província de Judá, lucrou com o êxito desse projeto? Algum grupo social
teve algum tipo de prejuízo com a implantação desse projeto? Enfim, que conclusão
pode-se tirar baseado nas desastrosas consequências socioeconômicas,
particularmente, em relação à população campesina?

O judaísmo tradicionalmente é tido como a religião do livro, pelo fato de ter


seus fundamentos alicerçados em alguns escritos, principalmente daqueles que se
originaram no período do segundo templo. Foi no contexto desse período que livros
como Ezequiel 40 – 48, Esdras e Neemias, 1 e 2 Crônicas e Pentateuco foram editados.
Mas, muito mais do que pura teologia, especulações sobre Deus e seus desígnios,
neles temos a oportunidade de identificar nitidamente seu caráter ideológico, o que
nos levará a concluir de maneira significativa de que tipo foram as relações de poder
que se estabeleceram entre o campesinato judaíta e a classe sacerdotal jerusolimitana.

Para Richard A. Horsley, citado por Blenkinsopp, o “judaísmo” não se


caracterizou por ser uma forma essencialmente religiosa da vida, mas constituiu-se
numa faceta de uma entidade político-étnica, uma forma que se caracterizou num
estado agressivo e expansivo alegando legitimidade religiosa, mantendo e ampliando
seu poder por meios militares, incluindo a utilização de mercenários estrangeiros.303
Nesse sentido, no fundo da questão, não estão problemas teológicos, mas questões
identitárias, uma terrível disputa pelo controle do templo, pois as facções religiosas em
disputa sabiam da importância que era ter esse poder nas mãos. Portanto, o judaísmo
no fundo, é muito mais uma crença política do que uma crença religiosa.

Por exemplo, os livros de Esdras e Neemias, atualmente, são considerados


muito mais como emblemáticos de posições ideológicas do que como objeto de
interesse biográfico. São inúmeros os debates inconclusivos sobre a formação do livro,
a confiabilidade histórica das memórias e dos documentos citados, os tipos de
narrativas que eles contêm.304

Passo a desenvolver nos próximos tópicos alguns temas que julgo pertinentes
ao se tratar da questão das relações de poder dentro do contexto do segundo templo,
– mais especificamente do judaísmo – temas que, aliás, ainda hoje são assuntos que
tem provocado intenso debate entre os estudiosos.

Segundo Roger Chartier, as obras de Michel Foucault, Michel de Certeau e Louis


Marin propõe uma questão fundamental:

[...] como pensar as relações que mantêm as produções discursivas e as práticas


sociais? *...+ Para eles “a ordem do discurso, segundo a expressão de Foucault, é
dotada de eficácia: ela instaura divisões e dominações, é o instrumento da violência
simbólica e, por sua força elocutória, pode fazer advir o que designa”.305

De fato, as produções discursivas que fundamentam o judaísmo, como poderão


ser verificadas, resultaram em práticas sociais onde a característica principal foi a
instalação de uma profunda divisão social. Os escritos que fundamentam essas
relações de poder foram tão eficaz que instauraram divisões e dominações, tornando-
se um verdadeiro instrumento da violência simbólica.

303
Richard A. Horsley, Scribes, Visionaries, and the politics of Second Temple Judea, London,
Westminster John Knox Press, 2007, p.188.
304
Joseph Blenkinsopp, Judaism – The first phase: the place of Ezra and Nehemiah in the origins of
Judaism, United Kingdom, Wm. B. Eerdemans Publishing Co., 2009, p.9.
305
Roger Chartier, À beira da falésia: a história entre certezas e inquietudes, Porto Alegre, Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, 2002, p.119.
5.1 – Judaísmo: projeto imperial persa.

É muito sugestiva a ideia de que o judaísmo pós-aquemênida, possa ser fruto


da todo um trabalho organizado e desenvolvido pelo poder imperial persa, como meio
de neutralizar qualquer revolta de caráter político que pudesse inviabilizar seus
objetivos na região da província. Para os persas interessava, acima de tudo, a
regularidade no pagamento de tributos e que Jerusalém, apesar de não ser
estrategicamente a melhor opção, deve ter servido para eventuais paradas de
destacamentos militares. Mas, com certeza, as cidades fenícias da costa mediterrânea
despertavam um interesse muito maior, pois seu domínio representava uma estável
“cabeça de ponte” para suas incursões na região do delta do Nilo.

Partir da hipótese de que as bases do judaísmo tenham sido arquitetadas por


experientes estrategistas persas junto aos exilados, particularmente em conjunto com
grupo sacerdotal denominado “sadocita” faria do sistema religioso judaico, nada mais
nada menos do que, como afirma Althusser, um aparelho ideológico de poder do
sistema de dominação do império persa.

Como logo será visto no tópico abaixo, segundo Joseph Blenkinsopp, Ez 40 – 48


teria sido o projeto ideológico resultante da estratégica política persa para a província
de Judá. Um projeto com iniciativa dos experientes estrategistas persas em conjunto
com a classe sacerdotal sadocita. O projeto não teve o êxito esperado, pelo menos da
parte da classe sacerdotal em particular, tanto que os livros de Esdras e Neemias
deixam entrever, que são na verdade dois projetos ideológicos distintos que quando
foram escritos – possivelmente no início do período de domínio grego – refletem
muito mais, uma disputa interna entre grupos rivais pelo domínio do poder político e
pelo controle do templo de Jerusalém do que um escrito meramente
(auto)biográfico.306

306
Joseph Blenkinsopp, Judaism: the first phase – the place of Ezra and Nehemiah in the origins of
Judaism, U.K., Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 2009, p.117-159.
No tocante à questão das relações de poder entre o campesinato judaíta e a
classe sacerdotal jerusolimitana, o problema de se aceitar ou não que o judaísmo foi
no seu princípio um projeto cuja origem esteve relacionada com o grupo dos exilados é
muito relevante, pois para o grupo sacerdotal que deteve o poder político e o controle
do templo, ter o império a seu favor foi de extrema importância para justificação e
legitimação de suas pretensões. Já o campesinato nada podia fazer contra a força
ideológica do projeto e muito menos contra a força das armas do exército persa.

Hans Kippenberg confirma essa hipótese quando diz que:

O Estado judaico, depois do exílio, foi também obra dos dominadores persas, os quais
participaram do retorno dos exilados, da reconstrução do templo e da cidade de
Jerusalém, da ereção de uma satrapia independente de Samaria e da introdução das
leis judaicas sob Esdras. Estes acontecimentos sozinhos não são ainda suficientes para
avaliar a tolerância dos dominadores persas. Todos eles tem por base uma meta, que
pode ser considerada como a de favorecer um Estado sacerdotal. A “oposição ao
carisma político dos heróis recomendou aos povos dominadores, em todo lugar, a
hierocracia como meio de acalmar os povos subjugados”, escreve Max Weber, e
continua: “Helenismo e judaísmo são, a meu ver, em seus traços mais importantes,
produtos de defesa da soberania persa de um lado, e da submissão, do outro”.307

Seguindo a mesma linha de raciocínio, também Joseph Blenkinsopp, acredita


que o templo de Jerusalém, depois de sua reconstrução, sete décadas mais tarde, não
serviu como um santuário nacional, mas foi utilizado enquanto instrumento de
controle social e político do império persa.308 Judá, segundo Blenkinsopp, se encaixava
no padrão estado-templo-cidade sob o controle de um oficial persa e administrada por
um sacerdócio isento de impostos. Era comum na Ásia Menor, encontrar este tipo de
organização, por exemplo, Xanto, na Licia, Comana na Capadócia e Zela em Pontus e,
em uma escala muito maior, na Mesopotâmia.309

Outro estudioso que também postula ter sido o judaísmo no seu início, nada
além de um mero projeto do poder imperial persa é Peter Frei. Desde 1982 quando

307
Hans G. Kippenberg, Religião e formação de classes na antiga Judéia: estudo socioreligioso sobre a
relação entre tradição e evolução social, São Paulo, Paulinas, 1988,
308
Joseph Blenkinsopp, Judaism – The first phase…, p.6.
309
Idem, p.7.
apresentou um primeiro trabalho sobre o tema até 1994, quando apresenta o mesmo
tema sob novas luzes, Peter Frei pode aprofundar mais ainda esta temática.

Segundo Peter Frei, esse fenômeno só ocorreu como estratégia do império


Aquemênida. Por definição, foi um processo pelo qual as normas estabelecidas pela
autoridade central foram inteiramente assumidas pelas autoridades locais. Desse
modo, as normas centrais assumidas localmente eram sempre hierarquicamente
superiores e obrigatórias para todos. Frei designa essa normatização do poder imperial
central como sendo uma “autorização imperial”.310

Para Peter Frei, foi Esdras que recebeu do governo persa a “autorização
imperial” para introduzir um livro de leis de caráter religioso conforme Esd 7,26-27.
Frei se questiona no sentido de tentar esclarecer se a “lei de Deus” seria idêntica à “lei
do rei”? Para ele o artigo “e” expressa a identidade das duas leis ou estaríamos lidando
com duas leis formalmente distintas? Apesar, do fundo histórico da missão de Esdras
ser um tanto controverso, o que toca à questão do regime imposto pelo império
Aquemênida, para Frei é o que verdadeiramente importa. Em verdade, foi uma
verdadeira intervenção na estrutura da comunidade que estava subordinada à
“autorização imperial”.311

Quanto à missão de Neemias, que Frei considera de caráter nitidamente


político e organizacional, portanto, bem diferente com relação à “suposta” missão de
Esdras. Um detalhe que Frei chama a atenção é quanto às insistentes referências que o
texto faz como sendo “norma do rei”.312 Nesse sentido, Esdras para Frei teve uma
participação muito mais decisiva com relação a Neemias, pois foi aquele que
introduziu na província de Judá a “lei de Deus e a lei do rei”.

E antes de tecer sua conclusão com relação à suposta “autorização imperial”,


ele leva em conta diferentes referências antigas, tais como: a chamada “carta de

310
Peter Frei, “Persian imperial authorization” em James Watts (editor), Persia and Torah: the theory of
imperial authorization of the Pentateuch, Society of Biblical Literature, Atlanta, 2001, p.7
311
Peter Frei, “Persian imperial authorization…, p.11-12.
312
Idem, p.13-14. Para mim pessoalmente é de se questionar se um rei do porte do imperador persa iria
se preocupar com tantas minúcias da vida social de pequena província quase que perdida na imensidão
do império. Ao que tudo leva a crer, deve ter sido um recurso literário utilizado pelo redator para
conferir autoridade ao livro, isto é, legitimar as normas ali prescritas.
páscoa de Elefantina”, a aprovação do “regulamento do purim” no livro de Ester, A
disputa de fronteira entre Mileto e Myus, a inscrição trilíngue de Letoon, o oficial
egípcio Udjahorresne, os regulamentos de Dario para a seleção de sacerdotes, a
obrigação legal dos jônios por Aetaphernes, a inscrição de Sardis, o documento do
oeste da Ásia Menor, especialmente Cária. Na verdade, Frei faz todo um esforço de
mapeamento de possíveis elementos que ajudam a corroborar a ideia de uma
“autorização imperial” como algo passível de ter existido de fato.

Concluindo Frei argumenta que o império Aquemênida pode ser considerado o


primeiro império supra nacional de esfera cultural do Mediterrâneo, que merece esse
nome, não somente em função das suas dimensões, mas porque ele manifesta um
modo todo peculiar e imperial de pensar. Frei está consciente de que não é possível
verificar o grau de lealdade em todas as partes não iranianas do império onde foram
implantados tal projeto.313

Na avaliação de James Watts, Peter Frei afirma que os persas autorizaram uma
legislação local em várias partes do império. Tal “autorização imperial” teria criado um
arranjo federativo pelo qual as comunidades locais ganharam um grau legal de
autonomia permanecendo ao mesmo tempo sob o domínio do poder imperial. Assim,
para Peter Frei, a lei de Esdras (Esd 7) seria presumivelmente o livro do Pentateuco.
Uma ação típica dos persas, só do império persa.314

Mas, não são todos os estudiosos que estão de acordo com Peter Frei.
Participando de um simpósio no ano de 2000, em Nashville diversos estudiosos da área
foram convidados a fazerem uma avaliação da teoria da “autorização imperial” persa e
sua aplicação ao livro do Pentateuco.315

Joseph Blenkinsopp concluiu de forma bem equilibrada, afirmando que


“autorização imperial” tendo o livro do Pentateuco como objeto central da polêmica,
permanece como uma possibilidade, embora não tão forte como Peter Frei teria
afirmado. Blenkinsopp argumenta que a iniciativa para se consolidar o aparato jurídico

313
Peter Frei, “Persian imperial authorization…, p.39-40.
314
James Watts (editor), Persia and Torah: the authorization of imperial authorization of the Pentateuch,
Atlanta, Society of Biblical Literature, 2001, p.1.
315
Idem, p.2.
do judaísmo pode muito bem ter sido dada pelas autoridades persas, mas afirmar que
o livro do Pentateuco foi de fato editado, mediante uma ideologia totalmente criada
pelo poder persa não tem nenhuma evidência.316

Lisbeth Fried argumentou que a comissão chefiada por Esdras que fora enviada
por Artaxerxes foi limitada à nomeação de juízes persas na província de Judá. Eles
teriam agido de acordo com a lei persa, e não segundo as leis presentes no Pentateuco
ou outras tradições jurídicas judaicas. Embora, Lisbeth Fried acredite que os
governantes locais, citando o exemplo de Neemias, podem muito bem ter emitido
alguns decretos, baseados em sua autoridade, com base nas tradições jurídicas da
província de Judá.317

Lester L. Grabbe partilhando da opinião de que o Pentateuco teria surgido em


sua forma atual no final do período persa, questiona, no entanto, a historicidade das
tradições de Esdras, portanto, de qualquer “autorização imperial”.318

Gary Knoppers observa que na literatura dos períodos persa e helenístico a


distinção entre lei real e sagrada é aplicada a uma grande variedade de configurações
e não apenas para as leis imperiais ou do templo. Ele sugere que os líderes locais, sob
os persas desfrutavam de muito mais autonomia do que a teoria de Peter Frei
admite.319

Donald Redford examina as referências à lei e os usos do direito nos textos


egípcios citados por Frei e, mais nitidamente, a preocupação dos egípcios nos dois
séculos antes da conquista persa. Redford concluiu que o interesse de Dario na coleta

316
Joseph Blenkinsopp, “Was the Pentateuch the civic and religious constitution of the Jewish ethnos in
the Persian period” em James Watts (editor), Persia and Torah: the authorization of imperial
authorization of the Pentateuch, Atlanta, Society of Biblical Literature, 2001, p.41-62.
317
Lizbeth S. Fried, “’You shall appoint judges’: Ezra’s mission and the rescript of Artaxerxes” em James
Watts (editor), Persia and Torah: the authorization of imperial authorization of the Pentateuch, Atlanta,
Society of Biblical Literature, 2001, p.63-89.
318
Lester L. Grabbe, “The Law of Moses in the Ezra tradition: more virtual than real?” em James Watts
(editor), Persia and Torah: the authorization of imperial authorization of the Pentateuch, Atlanta, Society
of Biblical Literature, 2001, p. 91-113.
319
Gary Knoppers, “An achaemenid imperial authorization of Torah in Yehud?” em James Watts (editor),
Persia and Torah: the authorization of imperial authorization of the Pentateuch, Atlanta, Society of
Biblical Literature, 2001, p. 115-134.
de leis egípcias estava em continuidade com as práticas anteriores e serviu apenas
para informar os persas das tradições existentes.320

A partir das avaliações citadas acima de cada um dos estudiosos que


participaram de simpósio em Nashville no ano de 2000, James Watts conclui, com
relação ao tema da “autorização imperial” que tomados em conjunto, estes artigos
sugerem que a evidência disponível não suporta a comparação da política persa feita
por Peter Frei das legislações modernas que regem as relações entre um governo local
e um governo nacional. Os exemplos da influência persa sobre as leis locais parecem
muito diversificada e esporádica para ser produto de uma sistemática política do
império persa. No entanto, a evidência existente mostra que existiu algum
envolvimento persa em assuntos jurídicos. Desse modo, pode ter havido um
envolvimento dos persas na designação do Pentateuco quanto a ter sido considerado
como a lei oficial da comunidade do templo de Jerusalém. Isto não quer dizer que os
persas possam ter interferido em seu conteúdo, mas que apenas deram um caráter
oficial a um documento elaborado pela comunidade do templo.321

 Blenkinsopp faz uma investigação quanto ao aspecto ideológico presente nos


livros de Esdras e Neemias. Ele argumenta que a ideologia ali presente foi
incubada no período da diáspora babilônica, durante um século e meio, que foi
o tempo que separou as primeiras deportações até a época de Esdras e
Neemias. Esta ideologia estaria ligada com “lei do templo” de Ez 40 – 48. As
principais prescrições deste programa visionário tem a ver com a exclusão de
estrangeiros no culto e, portanto, da comunidade. Faz uma distinção entre
sacerdotes do altar (Sadocitas) e sacerdotes do templo (levitas); estando os
levitas num nível inferior aos sadocitas, com uma função muito diminuída e
“teocratizada”, do governante secular; e repartição de terra. Blenkinsopp
sugere que este grupo foi influenciado ou talvez fosse até membro da escola de
Ezequiel na diáspora babilônica, grupo que poderia ser identificado em Esd 9 -

320
Donald Redford, “The so-called ‘codification’ of Egyptian law under Darius I” em James Watts
(editor), Persia and Torah: the authorization of imperial authorization of the Pentateuch, Atlanta, Society
of Biblical Literature, 2001, p. 135-159.
321
James Watts (editor), Persia and Torah: the authorization of imperial authorization of the Pentateuch,
Atlanta, Society of Biblical Literature, 2001, p.3
10 como “aqueles que tremem diante da palavra do Deus de Israel”, cuja
missão era lançar a base para uma nova política teocrática na província de
Judá.322
Mas, não se pode deixar de fazer menção das famosas tábuas do tesouro de
Persépolis e das tabuas da fortificação de Persépolis. Elas são um contributo
importante ao estudo dessa temática, pois iluminam o conhecimento dos tempos
pérsico, ou mais especialmente, da esfera administrativa e da área econômica. Uma
das características mais interessantes segundo H.G.M. Willianson (1991), citado por
Grabbe, são as inscrições sobre pagamentos de rações e suporte para vários
sacerdotes e atendentes do culto. Nesse sentido, chega-se à conclusão de que era
política geral do império persa apoiar a religião, os templos e como essa peculiaridade
impactava toda a extensão do império.323

Segundo Amélie Kuhrt (1983) o alegado incentivo a cultos e religião sob os


persas é frequentemente exagerado na literatura moderna. Isto acontece em parte
devido à propaganda que os reis persas faziam deles mesmos. Na prática os persas
continuaram o que já era política geral nos impérios do Oriente Próximo: declarar sua
piedade pessoal em suas inscrições, de como eles foram diligentes em obedecer a seu
deus ou deuses, sempre seguindo sua vontade. Tolerar cultos locais desde que não
ameaçassem a ordem política. Caso contrário, puniam e destruíam sem a menor
piedade os cultos que fossem considerados subversivos (conforme M.A. Dandamaev e
Lukonin: 1989).324

Concluindo este tópico, acredito que no tocante às relações de poder entre o


campesinato judaíta e a classe sacerdotal jerusolimitana se houve ou não uma
“autorização imperial” para aplicação de uma suposta “lei do Deus de Esdras e do rei”
(Esdras 7) que Peter Frei sugeriu como sendo o livro do Pentateuco na sua forma final,
não é de todo irrelevante, mas o que importa na análise tendo em vista meu objeto de
pesquisa que será visto no tópico seguinte, quando analisarei mais detidamente o
conteúdo de alguns livros, dentre os quais está o livro do Pentateuco, é quanto ao fato

322
Joseph Blenkinsopp, Judaism – The first phase: the place of Ezra and Nehemiah in the origins of
Judaism, United Kingdom, Wm. B. Eerdemans Publishing Co., 2009, p.10.
323
Lester L. Grabbe, A history of the Jews and Judaism in the Second Temple Period: volume 1…, p.214.
324
Idem, p.215.
ou não do judaísmo, e com ele todo o sistema religioso – templo e classe sacerdotal –
terem utilizado o campesinato como trampolim para a conquista de seus interesses.

5.2 – A ideologia como estratégia do grupo sacerdotal sadocita

Se o Pentateuco foi ou não um projeto “financiado”, isto é, estrategicamente


orquestrado pelo poder imperial persa, como quer dar a entender Peter Frei, ainda se
pode questionar, mas não perceber o caráter ideológico de alguns textos,
principalmente daqueles – de origem inquestionavelmente sacerdotal – que tiveram
influência decisiva na ascensão e estruturação do judaísmo e, particularmente, na
justificação e legitimação do grupo sacerdotal sadocita, implica em continuar refém de
uma leitura infantil como diz S.E.McEvenue citado por Norbert Lohfink325, isto é, sem
nenhum critério ou parâmetros críticos, mas guiado segundo a hermenêutica
tradicional, ou seja, aceitando cegamente que os textos bíblicos são livros divinamente
inspirados e revelados, crendo no caráter de inerrância dos hagiógrafos, na veracidade
dos eventos históricos ali narrados e etc..

A partir do contexto de meu objeto de pesquisa – relações de poder – esta tese


tem por objetivo também demonstrar que o Judaísmo teve como uma de suas
principais características se configurar como um projeto ideológico, isto é, se constituir
num sistema de crença ideológico. Em verdade, este sistema estava configurado como
uma falsa representação da realidade e por isto, pode-se afirmar seu caráter
ideológico.

Se como afirma Marx, que “não é a consciência dos homens que determina
(bestimmt) sua existência, mas, pelo contrário, é sua existência social que lhe
determina a consciência”326, pode-se conjecturar que foi a partir da realidade histórica
das relações que foram sendo estabelecidas entre o campesinato judaíta e a classe
sacerdotal jerusolimitana que posteriormente foram editados os principais livros que
fundamentam esse sistema de crença ideológico denominado judaísmo.

325
Norbet Lohfink, Theology of the Pentateuch: themes of the priestly narrative and Deuteronomy,
Mineapolis, Fortrees Press, a994, p.143.
326
Henri Desroche, O marxismo e as religiões, Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra LTDA., 1968, p.11.
Os textos foram redigidos num segundo momento, isto é, num momento em
que, provavelmente, estava-se vivendo um momento de forte crise, de lutas entre
diferentes grupos tendo em vista a sua legitimação no poder. Os textos, nesse sentido
foram redigidos com a finalidade de não só interpretar a realidade, mas também de
justificar e legitimar o grupo sacerdotal sadocita como autêntico grupo no controle e
poder do templo de Jerusalém.

Conforme esquema apresentado na página 68, o Judaísmo, com todo seu


arcabouço teológico, quando submetido à luz da teoria marxista, isto é, aos conceitos
e categorias filosóficas do materialismo histórico, não resiste, não se sustenta, mas
pelo contrário, se desmancha como um castelo de areia. Como um sistema de crença
ideológico, o Judaísmo se configura, conforme o título que dei ao esquema que a
ideologia percorre – processo ideológico real – até cumprir todas as etapas
relacionadas à noção de “falsidade”: ideologia como falsa apresentação, falsa
consciência, falsa motivação e falsa representação.

Se de fato como já observado anteriormente, as relações de poder entre o


campesinato judaíta e a classe sacerdotal jerusolimitana funcionam como uma chave
de leitura na compreensão de muitos textos do período do segundo templo,
submeterei os seguintes livros – Ezequiel 40 – 48, Esdras, Neemias, 1 e 2 Crônicas e
Pentateuco – a um estudo de conjunto, pois ambos os livros se completam e são o
fundamento ideológico da dominação sacerdotal.

Mas, por outro lado, ter uma postura moderada como Erhard S. Gerstenberger,
quando afirma que os textos não querendo ser um relato histórico, mas refletindo a
vida da comunidade pós-exílica, isto é, de grupos ligados a esta comunidade, teriam
sido os promotores de um “projeto de reconstrução nacional” baseado na lei, não se
dá conta do elemento ideológico presente nesse projeto. É óbvio que avançou muito
em relação a estudiosos como Jacob Milgrom327, Rolf P. Knierim328 que se
fundamentam numa hermenêutica um tanto quanto historicista dos textos. Assim,

327
Jacob Milgrom, Leviticus – A Continental Commentary, Minneapolis, Fortress, 2004, 388p.
328
Rolf P. Kinierim, The task of Old Testament theology, 1995.
Gerstenberger se pergunta se não seria ele, o grupo sacerdotal, que estaria por trás
das formulações legais presentes, por exemplo, no livro do levítico.329

Segundo Nancy Cardoso Pereira, a dinâmica desse projeto sacerdotal obedece


não só a critérios civis, mas também a critérios religiosos, resgatando antigas
tradições, tabus e interditos, que irão legitimar os interesses políticos e econômicos da
classe sacerdotal como grupo dominante.330 É o que confirma também Elaine Gleci
Neuenfeldt ao constatar que esse projeto sacerdotal se insere dentro daquela
“dinâmica onde os símbolos, ritos e crenças são tomados de seu contexto de origem e
cooptados/integrados por um grupo detentor do poder político e econômico, que
busca um poder hegemônico, no âmbito ideológico”331.

No fundo da questão, isto é, no campo das motivações, ao que me parece, o


grupo sacerdotal sadocita esteve interessado muito mais em se garantir
economicamente do que em construir um projeto que fosse autêntica e genuinamente
representativo da identidade do povo de Israel. Muito mais do que fazer teologia e ser
legítimos mediadores da vontade divina, o grupo sacerdotal não economizou na tinta e
nas benesses. Comer e beber, desfrutando do bom e do melhor, que naquele contexto
a sociedade poderia lhes fornecer e, o melhor, sem ter que trabalhar para isso, esse
foi, economicamente falando, seu objetivo de vida.

Se, como disse Marx, mais importante do que o que produz uma determinada
sociedade é o como esta sociedade se organiza para executar essa produção. Deste
modo, o conceito de modo de produção adquire aspecto central para se avaliar o
campo econômico de qualquer sociedade. Por isso, se torna prioridade descobrir quais
são as relações específicas que são postas em movimento pelos agentes sociais numa
dada sociedade, com a intenção de produzir e reproduzir sua vida material.

Essas relações sociais de produção correspondem a um determinado estágio de


desenvolvimento das forças produtivas, isto é, ao tipo do modo de produção

329
Erhard S. Gerstenberger, Leviticus, p.10-16.
330
Nancy Cardoso Pereira, Comida, sexo e saúde: Lendo o Levítico na América latina, p.138-139.
331
Elaine Gleci Neuenfeldt, “Menstruação, parto e impureza no Levítico: controle de corpos e líquidos
das mulheres”, em Estudos Bíblicos, Sexualidade e homossexualidade na Bíblia, nº 66, Petrópolis, Vozes,
2000, p.31-32.
implantado na sociedade. Essas mesmas relações sociais de produção estão ligadas a
outras estruturas, que derivam dela e mantém entre si interações recíprocas nos
períodos de reprodução. A reprodução é possibilitada, por sua vez, exatamente por
essa interação entre as estruturas, ainda que a estrutura econômica exerça sempre a
determinação em última instância.332

Isso quer dizer que as relações sociais de produção sempre ocorrem debaixo de
uma estrutura jurídico-política (forma de Estado, sistema jurídico, conjunto de leis,
aparelho repressivo) que tem por papel legitimar e garantir a reprodução do modo de
produção, ou seja, dar possibilidade constante das condições necessárias para a sua
continuidade, inclusive frustrando a organização política das classes antagônicas.
Também a estrutura ideológica tem o papel de gerar representações das próprias
práticas e da inserção dos grupos e dos indivíduos nessas práticas, no sentido de
tornar essas relações viáveis aos olhos das classes, permitindo assim a coesão social, a
resignação e a possibilidade de a classe dominante exercer plenamente sua
dominância.333

Na província de Judá, ao longo do período de dominação do império persa, ou


mais especificamente, no fim desse período, foi a estrutura religiosa a estrutura que se
estabeleceu como estrutura dominante, isto é, foi a estrutura que serviu de base, ou
como sugere Marx, serviu de infraestrutura ao sistema de crença que se ergueu como
um edifício envolvendo a tudo e a todos. O judaísmo, enquanto um sistema de crença
complexo abarcava todas as dimensões da vida, desde os gestos mais rotineiros até
atos mais graves que uma pessoa poderia cometer. A totalidade da vida estava
completamente perpassada pelo viés religioso. Nada escapava aos olhos da divindade
que tudo via e recompensava a cada um na medida da observância de suas leis.

Nisto pode-se ver que o judaísmo se tornou símbolo de uma sociedade onde o
poder religioso que a classe sacerdotal jerusolimitana se auto conferiu evoluiu a tal
ponto, que absorveu em si mesma, além do poder religioso, também o poder político.
Aqui toco no ponto central desta tese que é o de demonstrar que no judaísmo se tem
332
Cesar Mangolim, “Conceito de modo de produção” acessado http://cesarmangolin.files.wordpress.
com/2010/02/mangolin-o-conceito-de-modo-de-producao-2010.pdf em 19/04/2011.
333
Etienne Balibar, Louis Althusser, Roger Establet, Ler o capital, volume 2, Rio de Janeiro, Zahar
Editores, 1980, 329p.
um modelo exemplar de transição de uma forma de sociedade fundada na igualdade
social e política de seus membros, isto é, em uma sociedade sem classes sociais, para
uma sociedade nitidamente dividida em classes sociais, onde a religião e a política
estavam nas mãos de um mesmo grupo social que se arvorou no direito de
determinar, principalmente, o que lhe convinha, e de imputar aos demais, os seus
devidos deveres.

Com isso não quero afirmar que a província de Judá se comportou como uma
espécie de nação-estado, de que teve autonomia suficiente para não pagar nenhum
tributo, seja aos persas ou, posteriormente, aos gregos. De fato, isso não seria possível
devido à política de repressão adotada pelo império persa que procurava neutralizar
qualquer possibilidade de que tal coisa viesse a se tornar realidade. Por isso pode-se
falar num poder religioso com forte conotação política, pois é justamente isso o que se
conclui do estudo do conjunto final dos textos que formam a Bíblia Hebraica, mas
especialmente os textos redigidos pela classe sacerdotal jerusolimitana.

Na prática, esse projeto de absoluta autonomia política nunca chegou a se


concretizar, pelo menos nos tempos do Antigo e do Novo Testamento. Esse poder
político da classe sacerdotal jerusolimitana sempre foi exercido sob os auspícios e
vigilância de um poder maior, seja no período em questão pelos persas, ou
posteriormente no período de domínio grego ou no período romano. Gozou, talvez de
certa liberdade, nos períodos de grande crise pelas quais passaram esses grandes
centros do poder mundial, mas via de regra, pelo menos, em nível de província, este
grupo sacerdotal jerusolimitano agiu como se tivesse tal poder, influenciando toda a
população da província.

A dimensão religiosa se constituiu assim na infraestrutura que, de certa forma,


organizava todo o edifício, isto é, a superestrutura formada pelas estruturas
econômica, pela estrutura jurídico-política e ideológica, cuja materialização, se tornou
real e concreta nos seus escritos.

Afirmar, portanto, que a estrutura religiosa foi a estrutura dominante em Israel


ao longo desse período, não implica em dizer que a estrutura econômica não tenha
sido a estrutura que tudo determinava em última instância.
Conforme Etienne Balibar salienta:

Isso quer dizer que, ainda que sempre determinante em última instância, a estrutura
econômica, dependendo do modo de produção, atribui a uma das outras estruturas,
ou a estrutura econômica mesma, tem um papel dominante no sentido de cumprir
uma tarefa especial para a reprodução das relações sociais de produção específicas de
um modo de produção específico.

A definição de um modo de produção depende, portanto, da análise da articulação


específica das estruturas, sempre considerando a determinação em última instância
pela estrutura econômica.

Portanto, pode-se dizer que a caracterização de um modo de produção depende do


reconhecimento de como as relações sociais de produção são reproduzidas, ou seja,
quais as determinações da permanência contínua da reprodução do modo de
produção, o que nos leva, necessariamente, a ter que desvendar: quais são as
características essenciais dessas relações sociais de produção; como estão distribuídos
os meios de produção (propriedades dos meios de produção); como se dá a
apropriação do que é produzido, como estão dispostos os humanos nessas relações
sociais de produção (as classes sociais) a forma de estado e de todo o aparelho
jurídico-político derivado dessas relações e essenciais para a reprodução, bem como as
representações ideológicas que permitem até certo ponto a coesão social.334

Se a caracterização do modo de produção de uma determinada formação social


depende do reconhecimento de como as relações sociais de produção são
reproduzidas, isto nos leva à seguinte pergunta: Quais são as determinações da
permanência contínua da reprodução do modo de produção em que se configurou no
judaísmo?

No caso de Israel esta permanência continua da reprodução era, ou melhor, foi


garantida, não somente pela articulação /interação das diferentes estruturas, mas
porque as relações sociais de produção estavam ancoradas num sólido sistema
jurídico, de caráter político-religioso, que profundamente arraigado no imaginário
social, particularmente do campesinato, que se constituía na grande força de mão de
obra, condicionava-os, mesmo que inconscientemente, à manutenção, ou seja, à
permanência contínua da reprodução do modo de produção, que no caso da formação
social israelita, pode ser caracterizado como sendo tributarista.

334
Etienne Balibar, Louis Althusser, Roger Establet, Ler o capital, volume 2, Rio de Janeiro, Zahar
Editores, 1980, 329p.
Este modo de produção tributário em Israel desenvolvido sob a forma, não só
de sansões ou penalizações morais, mas também de ofertas que justificados pela
teologia da retribuição obrigavam moralmente o infrator – pecador – a remir ou expiar
sua culpa mediante a oferta de sacrifícios que eram oferecidos no templo de
Jerusalém. Para cada tipo de infração havia uma prescrição que determinava o que
deveria ser oferecido a Deus como prova de sua remissão. Sem o cumprimento destes
preceitos homens e mulheres estavam condenados à maldição divina.335

Por isso passo agora a analisar mais de perto cada um desses livros naquilo que
eles oferecem de mais concreto como prova de seu caráter nitidamente ideológico.

5.2.1 – Ezequiel 40 - 48: Nunca descuidaremos da casa de nosso Deus –


aspectos da economia do segundo templo

“Os que restaram do cativeiro, lá na província estão em grande infelicidade e


na vergonha; a muralha de Jerusalém apresenta brechas e suas portas foram
incendiadas” (Ne 1,3)

É com estas palavras que Hanani relata a Neemias, 90 anos depois do fim do
exílio babilônico, a situação daqueles que haviam retornado a Jerusalém. Já se havia
passado quase um século sem que os sonhos de reconstrução de Jerusalém e do
templo tivessem chegado a bom termo. Esses sonhos de reconstrução estão nos
projetos elaborados por Ezequiel e pelo Dêutero-Isaías. Foram dois os motivos que
impediram a execução desse projeto:

 A resistência dos campesinato judaíta, provocado pelas posições separatistas


daqueles que haviam voltado por primeiro com Sassabassar e Zorobabel;
 Os interesses econômicos e a força política dos povos vizinhos
Nesse sentido é de se imaginar que a corte persa estivesse realmente preocupada
com a situação na província de Judá. Em 460 a.C. já havia acontecido a revolta dos
Ínaros e, depois, em 448 a.C. a revolta de Megabises, parente do próprio rei. Se, de

335
Este conjunto de leis presentes na Torá serão posteriormente e minuciosamente ampliados, dando
origem ao Talmude, que contém nada mais nada manos do que 613 mandamentos, sendo 248 positivos
e 365 negativos). É o início de uma casuística que tornou a vida de seus adeptos um verdadeiro
tormento psicológico.
fato, existiu um texto em aramaico (cf. Esd 4,7-24) onde o rei exigiu que parassem
todos os trabalhos de restauração dos muros de Jerusalém, devido a instabilidade que
isto estava causando em toda a região, é compreensível que a corte persa tenha
encontrado uma solução com o envio de Neemias.

Mas o interessante é notar que Neemias não veio sem um projeto. Das duas
uma: ou Ez 40 – 48 já estava de posse daqueles que retornaram ou foi Neemias quem
o trouxe na esperança de coloca-lo em prática, garantindo assim a paz e a estabilidade
na região. Trata-se, como se poderá perceber, de um projeto com claras conotações
políticas e econômicas, estabelecendo assim, relações estáveis e duradouras em toda a
província.

5.2.1.1 – Ezequiel 40 – 48: um projeto para a província de Judá.

Se, de fato, Esdras e Neemias refletem não uma autobiografia bem como
também não são um relato histórico, mas reflexos de posições ideológicas de grupos
que estavam se enfrentando pelo controle político e religioso do templo de Jerusalém,
a base desta ideologia deve ser encontrada em Ezequiel 40 – 48.

Nesse sentido Joseph Blenkinsopp afirma que o texto de Ez 40-48 é decisivo e


razoavelmente seguro. As semelhanças entre os temas, a ideologia e a agenda são
suficientes para justificar nossa investigação. Os paralelos entre os perfis de Ezequiel e
Esdras são impressionantes. Ambos presumem serem sacerdotes sadocitas (cf. Esd 7,1-
5) e sacerdotes que manifestam traços proféticos que falando de modo autobiográfico
endereçam o texto à comunidade golah. A preocupação de Esdras com a legislação e a
interpretação jurídica é óbvia. Enquanto que em Ezequiel as fórmulas declarativas de
natureza forense e outros tipos de linguagem jurídica também estão presentes. Desse
modo tanto Ezequiel quanto Esdras, cada um à sua maneira, replica o papel de Moisés
e da promulgação da lei.336

Diferentemente de como foi assinalado acima, onde para Peter frei o


documento que estava nas mãos de Esdras, o “livro da lei de Deus (que era também a
lei do rei)” (cf. Esd 7,14.26), consistia no livro do Pentateuco, para Sandro Gallazzi, que

336
Joseph Blenkinsopp, Judaism: the first phase..., p.127.
apoiado em outros estudiosos, aponta como hipótese provável o texto de Ez 40-48,
como o texto que Esdras tinha em mãos.337

Apesar de Ez 40,1 datar o texto de 573 a.C. tudo indica que ele é bem posterior
a esta data e ao próprio Ezequiel, talvez tenha se originado junto aos seus discípulos,
sendo que o conjunto reflete muito mais de perto a comunidade que já estava
organizada ao redor do templo, com minúcia de detalhes para quem já estava
participando de cultos e ritos sacrificais, inúteis para quem estava na diáspora (Ez
45,13 – 46,15). Segundo também Joseph Blenkinsopp existe um amplo acordo entre os
estudiosos de que estes nove capítulos se estendem para muito além da vida ativa do
próprio Ezequiel.

Sandro Gallazzi elenca quatro bons motivos que reforçam uma datação bem
posterior para Ez 40 – 48.

 A distinção clara entre sadocitas e o resto do corpo clerical (Ez 44,10-31) que
até agora nunca apareceu como importante. Isso será um dos leit-motiv do
cronista;
 O fato de afirmar que um grupo (os sadocitas) nunca pecou (44,15) vai de
encontro a toda a teologia da história de Ezequiel 1 – 39 que tem, como ponto
de partida, o fato que todos pecaram, desde o Egito;
 O uso de palavras que nunca se encontram no resto do texto, como “sacrifício
pelo pecado”, “dízimo das massas”, que quase nunca são usados em textos
historicamente anteriores e que passarão a ter uma importância central a partir
de Esdras e Neemias;
 A missão sadocita de ensinar a diferença entre sagrado e profano, impuro e
puro (Ez 44,23), já dando ao sacerdócio uma conotação legalista e uma
autoridade que nunca teve antes. Aliás, este próprio conceito está mudado em
relação a um momento precedente do pós-exílio. Vejamos, por exemplo, a
contradição definitiva entre Ez 44,19 ou Ez 46,20 e Ag 2,12 acerca da
contaminação produzida pelo sagrado.338

337
Sandro Gallazzi, A teocracia sadocita: sua história e ideologia, Macapá, 2002, p.55-60.
338
Sandro Gallazzi, A teocracia sadocita..., p.56.
a. Direitos iguais ao “sumo-sacerdote” e ao “príncipe”
Figura de grande destaque dentro do texto, pois é aquele que deve “fazer a
expiação pela casa de Israel” (Ez 45,20), o sumo sacerdote tem privilégios significativos
no campo cultual: ocupando um lugar junto à porta oriental, ele entra e sai por essa
mesma porta, que é fechada a todos os demais. O fato curioso, é que esta porta é o
local por onde entrou “a glória do Deus de Israel” (cf. Ez 40,5-16). Ali ele come o pão
diante de Yahweh e assiste aos holocaustos e sacrifícios dos sábados e das luas novas.
“Tudo indica que o ‘príncipe’ de Ez 40 – 48 é o próprio sumo sacerdote, já pensado em
sua função hierocrática de ‘chefe do estado do templo’”339.

Esta é a nova figura, elaborada, desde a diáspora, que substituirá a figura de um rei
davídico, cuja memória, neste momento, era “perigosa” tanto para os persas quanto
para os judaítas da diáspora que podiam, muito mais facilmente, identificar-se como
povo “religioso” ao redor do templo e do sumo sacerdote, do que como povo
“político” ao redor de um rei.340

b. A lei do templo (torat habayit)


Um dos destaques que pode ser feito quanto à lei do templo é com relação às
sacristias separadas: uma para os sacerdotes do templo e a outra para os sacerdotes
do altar. Somente os descendentes de Sadoc poderiam servir no altar dos sacrifícios
(Ez 40,45-46).

O retorno da glória ao interior do santuário do templo é o evento culminante


da visão e funciona como um prelúdio para a entrega da “lei do templo” em Ez 43,12.
O paralelismo com Moisés no Monte Sinai na versão sacerdotal do evento é
impressionante. No relato do evento em Ex 24-31, a glória vem descansar na
montanha e, estando Moisés envolto totalmente pela nuvem recebe instruções para a
construção do santuário no deserto, além dos deveres e privilégios daqueles que irão
oficiar nele. A revelação do Monte Sinai conclui com o preceito do sábado (cf. Ex
31,12-18) antecipando assim a importância da celebração do sábado na visão do

339
Sandro Gallazzi, Ensaios sobre o pós-exílio (vol.1): os mecanismos de opressão, 1ª Edição, Macapá,
2003, p.23.
340
Idem, ibdem.
templo de Ezequiel e em ambas as visões, a liturgia propriamente dita, como o início
de uma nova criação, no oitavo dia.341

Diante do templo é dada ao vidente a instrução quanto às entradas e saídas.


Somente o pessoal qualificado poderá entrar no templo para participar de suas
liturgias, além de determinadas situações que justifiquem a exclusão dele (cf. Ez 44,4-
5). Estas indicações de portas e saídas para um determinado grupo foram de grande
relevância para a ideologia presente nos livros de Esdras e Neemias.

 Exclusão de estrangeiros: desde a entrada no templo e participação nas


liturgias (cf. Ez 44,4-9)
Estas instruções e admoestações se constituíram em elementos essenciais no
conjunto de regras da comunidade dos discípulos de Ezequiel. Foram assumidas
integralmente pelos membros da golah. Mas ao ler esta ordenança categórica e
rigorosamente exclusivista é importante ter em mente que ela representa a posição
adotada por um grupo particular, por um grupo que está tentando se impor, tentando
impor sua ideologia. E isto tanto é verdade que os campesinos que ficaram na terra –
província de Judá – e não foram deportados não são reconhecidos como descendentes
da golah, mas como estrangeiros – povo da terra.

Essa posição importante reflexo nos livros de Esdras e Neemias,


particularmente na questão relativa ao casamento com estrangeiros. A ênfase na
linguagem é interessante, já que a linguagem se constitui num importante índice da
identidade nacional. Segundo Blenkinsopp, este dado aponta para algo em comum
com a agenda de Neemias que pode ser descrita telegraficamente como um ritual
étnico. Neste exemplo, Neemias fez com que os transgressores fizessem um juramento
solene de não se casar com a população local (apesar de já estarem casados). Além
disso, não se está devidamente informado se Neemias seguiu o exemplo de Esdras,
forçando-os a se divorciarem de suas esposas e também que tenham despedidos seus
filhos.342

341
Joseph Blenkinsopp, Judaism: the first phase..., p.134-135.
342
Joseph Blenkinsopp, Judaism: the first phase..., p.142-143.
Não se deve esquecer que o texto não quer ser um relato histórico, mas reflete
uma determinada circunstância que a comunidade Jerusolimitana atravessou. Esta
atitude adotada por Esdras e Neemias, com base na lei do templo de Ezequiel não teria
sido uma forma de se excluir algumas daquelas pessoas que reclamavam cidadania?

Ainda segundo a questão dos estrangeiros – povo da terra / campesinato – a lei


em Ez 44,9 por si só já é uma inovação, pois afirma que aqueles de descendência
estrangeira na província de Judá não podem entrar no templo. As medidas
implantadas por Esdras e Neemias, que implementaram a ideologia elaborada pelos
sacerdotes sadocitas na diáspora babilônica que, retornando à província de Judá
fizeram dela uma ritual de política étnica.

Blenkinsopp vê na atitude dos grupos que estiveram por trás da redação dos
livros de Esdras e Neemias um profundo processo de ritualização e segregação da
Golah. Após o seu apelo à tradição seletiva, a linha de raciocínio com base na
estipulação do direito da lei do templo de Ezequiel poderia ter se desenvolvido mais ou
menos como se segue: uma vez que a comunidade política é também, e
essencialmente, uma comunidade de culto, a participação no culto comum é uma
condição essencial para a adesão. Mas, se os descendentes estão proibidos de
entrarem no templo, não podendo participar do culto, são assim, excluídos da
comunidade.

Embora o ideal encarnado em Ez 44,9 nunca fora perdido de vista e continuou a


ser reconhecido como uma característica da crença judaica há indícios de que o
projeto de criação de uma comunidade auto-segregante ritualmente, que foi o
objetivo também assumido por Esdras e Neemias, não foi um sucesso absoluto. Se
tivesse sido, teríamos esperado uma conclusão diferente para a história de Esdras e,
no pressuposto de que Neemias teria seguido Esdras, não permanecendo como um
projeto a ser realizado alguns anos depois do desaparecimento de cena de Esdras. Ao
longo do período do segundo templo o ideal de segregação ritual, representando a
agenda de um grupo minoritário específico, nunca foi contestada. Por isso, tomando
um quadro mais amplo, a notável expansão demográfica dos judeus entre os
aquemênidas e os romanos permanecem inexplicáveis, se o objetivo perseguido por
Esdras e Neemias tinha permanecido a única opção disponível.343

 Estatuto com os respectivos deveres dos sacerdotes do templo (levitas) e


sacerdotes do altar (sadocitas) (cf. Ez 44,10-31)
A distinção entre sacerdotes do altar e sacerdotes do templo, o que
corresponde à distinção entre Sadocitas e Levitas em Ez 44,10-16, não é
inequivocamente comprovada como uma lei anterior à lei do templo de Ezequiel. No
livro do Deuteronômio, que é anterior a Ez 40 – 48, o termo padrão para os sacerdotes
que trabalham no santuário central é hakkohanim haleviyyim (“sacerdotes levitas”)
que, além de seu serviço no altar, tem funções judiciais, didáticas e de diagnóstico. Em
termos de estatuto e competência, não há distinção entre estes e os sacerdotes levitas
que serviam nos santuários locais desativados por Josias conforme 2 Rs 23,8-9.

Em Esdras e Neemias os sacerdotes nunca são identificados como aaronitas ou


sadocitas, mas apenas por sacerdotes do altar (levitas) e sacerdotes do templo. Desse
modo, segundo Blenkinsopp, os redatores, na sua luta pelo controle do templo, teriam
elevado o status e prestígio dos levitas devido ao recrutamento feito por Neemias,
financiando-os com o dinheiro do dízimo e empregando-os como guardas no templo
(Ne 13,10-13).344

Em síntese, conforme afirma Blenkinsopp, o que se pode apreender pela lei do


templo de Ezequiel a partir do início do período persa e das referências esparsas e
muitas vezes obscuras em Esdras e Neemias consiste numa imagem borrada de uma
luta pelo poder político e pelo controle e recursos do templo, tanto espirituais quanto
materiais, com tudo o que isso implicava. O compromisso que se seguiu, como será
analisado posteriormente, resulta das genealogias e histórias dos redatores do cronista
que definiram, após o desaparecimento de Neemias, uma função dominante no papel
desempenhado pelos sacerdotes jerusolimitanos.345

 Os privilégios e deveres do governante secular (cf. Ez 44,1-3; 45,7-17.21-25;


46,1-18; 48,21-22).
343
Joseph Blenkinsopp, Judaism: the first phase..., p.144-145.
344
Idem, p.151-152.
345
Idem, ibdem.
Na lei do templo de Ezequiel o termo nasi é utilizado exclusivamente para
designar o governante secular, que normalmente é designado pelo termo melek (rei).
No Pentateuco, nasi é um líder tribal. Mas este uso é atualizado nas narrativas
sacerdotais em que os líderes tribais trabalham em conjunto e estão subordinados aos
sacerdotes dentro da comunidade. O mesmo pode ser confirmado no livro de crônicas.

Não pode haver dúvida de que o autor do programa legal em Ez 40 – 48


apresenta um ideal sacerdotal ou hierocrático do governante secular, um ideal ainda
mais alto e partidarista do que o ideal constitucional monárquico do Deuteronômio..
Em Ezequiel praticamente tudo o que é dito sobre os deveres e privilégios do
governante está ligado de uma forma ou de outra ao culto do templo. A lei do templo
é, basicamente, o plano de uma teocracia em que a política está subordinada á religião
e o governante secular às mais altas autoridades religiosas.346

Portanto, se a nível político, a lei do templo previa a subordinação da


autoridade secular ao sacerdote, com efeito, uma política teocrática. Mas, em nível de
realidades políticas, no entanto, a situação era bem mais complexa.

Durante o governo de Neemias, isto é, no período em que foi escrito o livro, a


balança pendeu mais em favor do braço secular. Ao solicitar o apoio popular através
de programas de reforma social (Ne 5,1-13), e pelo recrutamento dos levitas como
aliados contra os sacerdotes (Ne 13,10-13.22), ele conseguiu manter o controle do
templo e conteve o poder da aristocracia sacerdotal. A teocracia teve que esperar por
uma ocasião mais propícia.347

 Distribuição do território ao redor do templo (cf. Ez 45,1-6; 47,13-48.29).


Conforme Sandro Gallazzi coloca a questão territorial, é interessante trazer
aqui a ilustração abaixo, pois mostra o modo como Ezequiel ou o seu grupo, mais
propriamente dito, viu a questão da terra na província de Judá, isto é, todo o alcance
de seu projeto.

A realidade de Judá e o projeto de Ezequiel

346
Idem, p.153-154.
347
Idem, p. 155-156.
---------- limites da porção santa (25.000 codos)

Se a porção fosse de 25.000 varas ocuparia


todo o território de Judá.

Todas as partes vão do Mediterrâneo ao Jordão mas a “altura” delas não é


especificada. Só a da porção santa. Uma fatia alta de 12,5 Km, se a unidade de medida
for o côvado. 75 Km, se a unidade for a cana de 6 côvados, como no resto do texto e
no hebraico. Completando a informação, teremos, o meio desta faixa santa, um
quadrado, de 12,5 km de lado, que será repartido em três fatias: 2 de 5 Km, uma para
os levitas e outra para os sacerdotes, e 1 de 2,5 Km, para a cidade. O resto é terra do
sumo sacerdote, do príncipe.348

A distribuição de terras ficaria conforme a figura abaixo:

LEVITAS

SADOCITAS
348
PRÍNCIPE PRÍNCIPE
Sandro Gallazzi, A teocracia sadocita…, p.57.
TEMPLO

CIDADE

Chama atenção uma impossível cidade de 2,3 Km de largura (Ez 48,30-35) e,


sobretudo, uma área santa reservada ao templo, de mais de 1,5 Km de largura (Ez
42,16-20). O templo como tal terá uma área de 250m x 250m e o lugar santo de 50m x
150m, mais de 8 vezes maior que o templo salomônico.

Se acrescentarmos a faixa ao norte, entregue à tribo de Judá e aquela ao sul para


Benjamim (nota esta inversão), teremos toda a terra de Judá de então. Desta área,
metade é terra de Iahweh. E isso usando a medida menor!

As outras tribos já “não existiam” há bastante tempo ou, pelo menos, ninguém podia
dispor daquelas terras que, há séculos, estavam nas mãos de outros governantes
locais.

Por que este texto propõe uma distribuição tão estranha de terra, que entrega aos
sacerdotes a parte maior e melhor da terra entre Belém e Gabaon, o lugar onde estão
muitos dos povoados relembrados em Esd 2,21-35 e em Ne 11,25-36?

Creio que aqui não se trata de nem de um plano urbanístico, nem de trabalho de
agrimensor, como também não se trata do pensamento de um visionário que desde o
exílio sonha, sem conhecer a situação geográfica real.349

Diante desta visão do projeto sadocita em Ez 40 – 48, percebe-se que surge no


horizonte dos deportados uma nova visão teológica da terra, ou melhor, uma visão
extremamente ideológica, da terra como algo que pertence única e exclusivamente a
Deus (Lv 25,23), e que, por isso, deve ser administrada, por direito, por seus
representantes: o príncipe, os sadocitas e os levitas.

Central se tornou a firmação de que:

Esta terra será a sua [do príncipe] possessão em Israel; os meus príncipes nunca
mais oprimirão o meu povo, antes distribuirão terra à casa de Israel, às suas
tribos (Ez 45,8).

349
Sandro Gallazzi, A teocracia sadocita..., p.57-58.
Mesmo não estando claro que terra é esta a qual o texto faz referência, se do
príncipe ou outra, é tarefa prioritária dele – do príncipe – fazer a distribuição. Em Ez
46,16-17 afirma-se que o príncipe tem o direito de recuperar alguma porção de terra
que tenha sido doada a alguém que seja estrangeiro no ano da liberdade. Mas que
terra é essa?

A partir do momento em que esse projeto ou essa lei for implantado, ninguém
mais poderá se dizer dono de nenhuma porção de terra.

Eis o porquê da estranha inversão que coloca Judá ao norte de Jerusalém e Benjamim
ao sul. Todos sabiam que estava errado, mas o importante era reafirmar que ninguém,
nem os de Judá, nem os de Benjamim, eram “proprietários das terras”. Só Deus!350

Mesmo que a palavra nahalah continue sendo utilizada, ela vai sofrer uma
correção quanto ao seu sentido: já não indicará mais a pequena propriedade
camponesa, mas adquirirá um sentido mais amplo, identificando a terra pertencente à
tribos. Nesse sentido, os textos sacerdotais, a começar deste, preferiram utilizar o
termo ‘ahuzah que expressa o sentido de presente, terra doada por Deus. Eis porque o
príncipe pode distribuir a terra, contudo, sem perdê-la, distribui-la, como se ela não
tivesse mais dono.351

Em síntese, percebe-se claramente que o projeto de Ez 40 – 48 tem como


objetivo: legitimar o direito do templo e da cidade de receber todo o cuidado e
atenção por parte da população do campo, isto é, do campesinato, pois a terra é de
Deus e quem trabalha nela deve religiosamente pagar os devidos tributos aos seus
representantes.

Desse modo, o templo será visto como santuário de Yahweh, palácio do


príncipe e armazém dos sacerdotes.

Nesse contexto se faz necessário trazer à baila meu objeto de pesquisa: as


relações de poder. O que se construiu claramente com esse projeto – Ezequiel 40 a 48
– são relações de poder, cuja natureza se expressa em relações de dominação, mas

350
Sandro Gallazzi, A teocracia sadocita…, p.58.
351
Idem, ibdem.
dominação numa dimensão que, até então, ninguém havia sido submetido. Ez 40 – 48
se constitui num verdadeiro sistema de crença política. A transformação da realidade
num processo ideológico real. Nesse sentido, Ez 40 – 48, como aparelho simbólico:
interpreta, dá sentido, justifica e legitima a domínio da classe sacerdotal jerusolimitana
sobre o campesinato judaíta.

Dentro de uma visão estrutural a ideologia cumpre seu papel de mascarar a


realidade mediante uma falsa apresentação da própria realidade. Nesse sentido são
utilizados como instrumentos de mediação diferentes aparelhos, que podem ser
caracterizados como aparelhos ideológicos. Quanto aos mecanismos de naturalização
– formas que o poder assumiu – se impõe as ideias, as teorias, os novos valores,
normas (prescrições e proscrições) e os novos princípios éticos. Estes mecanismos
foram sendo socialmente determinados pelas relações de dominação. Pensar no
surgimento das sinagogas nesse contexto não é nada fora da realidade. Como será
demonstrado posteriormente, este projeto não conseguiu ser implantado logo de
início, sofreu muita resistência, não somente por parte do campesinato, mas também
de grupos que igualmente lutavam pelo domínio do poder político e pelo controle do
templo e de seus bens, tanto materiais quanto espirituais.

No nível da racionalização, este projeto teocrático ou hierocrático, isto é, um


projeto de caráter religioso e político teve como estrutura dominante a dimensão
religiosa. Partindo da noção de derivação – racionalidade pseudológica –, ele desceu
como um véu sobre a razão, isto é, atuando sobre os instintos e sentimentos, levando
o campesinato a adquirir uma falsa consciência: de si próprio, da vida, de Deus e do
mundo. De modo que, seu próprio ethos foi sendo alterado, isto é, sua identidade, seu
sentido de vida.

Essa falsa consciência , fulcro da noção marxista, fez com que a classe
dominada – campesinato – não reconhecesse que as relações sociais estavam sendo
alteradas, isto é, que estavam sendo submetidos a uma relação de dominação pela
elite religiosa. Numa atitude de passividade e submissão serviram de estrutura para
que a classe sacerdotal se legitimasse no poder.
Desse modo, definir a submissão imposta ao campesinato como violência
simbólica ajuda a compreender como as relações de dominação, que é uma relação
cultural, histórica e linguisticamente construída, não foram somente afirmadas como
uma construção de ordem natural, radical, irredutível e universal, mas foi uma relação
sobrenaturalizada, justificada, sacramentada e autenticada em “cartório divino”.

Nesse sentido, averiguar o caráter ideológico do judaísmo como crença política


permite na verdade, tirar conclusões significativas a respeito das relações de poder a
que a crença se refere. O judaísmo no fundo da questão ideológica é muito mais uma
crença política do que uma crença religiosa.

No tocante à falsa motivação, que consiste na terceira etapa do


desenvolvimento do processo ideológico real e que implica em fazer com que todos os
que estão submetidos a um ideológico sistema de crença, dominadores e dominados,
que segundo Pierre Bourdieu “pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que
não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem” 352, tem por
função, exatamente, dar sentido e coerência entre aquilo que se vive e aquilo que se
crê.

Nessa fase, a consciência que poderia ser a primeira a se rebelar contra o


sistema vigente, já está como que condicionada por asserções de fatos e juízos de
valor formulados e veiculados pelas estruturas que compõe o próprio sistema.

Seguindo o pensamento de Bourdieu, o sistema de crença se apresenta como


estruturante, porque a objetividade do sentido do mundo define-se pela concordância
das subjetividades, onde senso é igual ao consenso.353 Nesse sentido, bom senso é
seguir o modelo que já está devidamente configurado na consciência dos agentes,
impossibilitando outra atitude.

Uma vez erigido como verdade os escritos que fundamentam o judaísmo


prestaram esse desserviço, pois se é verdade que as “palavras tem poder” como
afirma o próprio Bourdieu quando se refere às estruturas simbólicas que estão
presentes em todo discurso. Diz ele que:

352
Pierre Bourdieu, O poder simbólico, 5ª Edição, Rio de Janeiro, Editora Bertrand Brasil Ltda.,2002, p.8
353
Idem, ibdem.
[...] aceitar o modelo saussuriano e seus pressupostos é o mesmo que tratar o mundo
social como um universo de trocas simbólicas e reduzir a ação a um ato de
comunicação [...]. Embora seja legítimo tratar as relações sociais como interações
simbólicas, isto é, como relações de comunicação que implicam o conhecimento e o
reconhecimento, não se deve esquecer que as trocas linguísticas – relações de
comunicação por excelência – são relações de poder simbólico.354

É desse modo que no dia a dia das trocas linguísticas que as diferenças vão se
superpondo no âmbito das relações sociais, diferenças que delimitam não somente as
fronteiras entre os diferentes grupos sociais, mas acima de tudo, o status que cada
grupo adquiri dentro da sociedade como um todo.

A quarta fase que a ideologia percorre até se consolidar no imaginário da


sociedade ou de um grupo em particular é quanto às falsas representações, isto é, do
caráter de “falsidade” da ideologia como falsa representação. Segundo Serge
Moscovici:

Há numerosas ciências que estudam a maneira como as pessoas tratam, distribuem e


representam o conhecimento. Mas o estudo de como, e por que, as pessoas partilham o
conhecimento e desse modo constituem sua realidade comum, de como elas
transformam ideias em prática – numa palavra, o poder das ideias – é o problema
específico da psicologia social.355

Se, conforme alusão já feita acima, determinadas palavras em alguns contextos


são carregadas de um poder simbólico, esse poder aumenta ainda mais –
simbolicamente falando – quando organizado através de um discurso que vem de
certa forma ao encontro da realidade dos ouvintes. Nesse caso, o discurso ganha uma
força de representação incrivelmente sedutora.

Nesse sentido, a ideologia da centralização do templo em Jerusalém, não


somente como lugar escolhido pela própria divindade, mas acima de tudo com a
promessa de só nele habitar para todo sempre, faz com se crie uma falsa motivação
que leva necessariamente a uma falsa representação, isto é, propicia a transição da
teoria à prática.

354
Pierre Bourdieu, A economia das trocas linguísticas, São Paulo, Edusp, 2008, p.23-24.
355
Citado por Gerad Duveen, “Introdução: o poder das ideias” em Serge Moscovici, Representações
Sociais: investigações em psicologia social, Petrópolis, Editora Vozes, 2003, p.8.
Resumindo, Blenkinsopp acredita que tanto a agenda de Esdras bem como a de
Neemias, nas suas diferentes funções e situações se esforçaram para implementar o
que havia sido definido pelos discípulos de Ezequiel na diáspora babilônica. Os pontos
de concordância entre as agendas de Esdras e Neemias (independente da
historicidade) com a lei do templo de Ez 40 – 48 são impressionantes o suficiente para
sugerir uma relação de dependência com especial relevo para os limites da
comunidade, o funcionamento do culto e a criação de um sistema de governo
teocrático. É razoável concluir que os ensinamentos de Ezequiel foram mediados por
um círculo ou uma escola de discípulos, cuja existência e atividade pode ser deduzida a
partir da história redacional do livro, especialmente na lei do templo nos capítulos 40 –
48.356

5.2.2 – O Pentateuco e a Narrativa Sacerdotal (P)

A situação atual dos estudos quanto ao livro do Pentateuco estão mais do que
abertas. Eckart Otto, em 1977, quando surgiram os livros de H.H. Schimid e de R.
Rendtorff exclamou: Será que estamos hoje diante de uma revolução nas pesquisas
sobre o Pentateuco? Nada será como antes, estamos diante de uma verdadeira
revolução científica.357

A velha e ultrapassada teoria das quatro fontes: Javista (J), Eloista (E),
Deuteronomista (D) e Sacerdotal (P), foi profundamente abalada. Segundo Albert de
Pury e Thomas Romer:

Uma coisa deve ficar bem clara: a questão das origens e do desenvolvimento do
Pentateuco não é um problema marginal que só interessaria a um círculo restrito de
profissionais da crítica literária. As implicações do estudo do Pentateuco para o
conjunto da ciência veterotestamentária – inclusive para a nossa própria percepção da
história de Israel – são evidentes. Já em 1890, antes mesmo de se impor um esquema
explicativo coerente, Franz Delitzch achava que a prioridade absoluta devia recair
sobre a solução da “questão do Pentateuco que é a questão principal de todos os
domínios”. Três quartos de século mais tarde, F. V. Winnett – desta vez atacando a

356
Joseph Blenkinsopp, Judaism: the first phase..., p.158-159.
357
Albert de Pury, Thomas Romer, “O Pentateuco em questão: posição do problema e breve história da
pesquisa”, em Albert de Pury (org.), O Pentateuco em questão: as origens e a composição dos cinco
primeiros livros da Bíblia à luz das pesquisas recentes, 2ª Edição, Petrópolis, Vozes, 2002, p.15.
teoria aceita – constatava que [...] os estudos do Antigo Testamento jamais
encontrarão alicerce seguro, enquanto não se resolver o problema do Pentateuco.358

Meu objetivo não será desenvolver um estudo visando determinar as fontes


que foram utilizadas pelos redatores na composição do Pentateuco e nem um trabalho
minucioso de exegese, mas proceder a uma análise do Pentateuco como um todo, pois
como Rolf Rendtorff afirma, ele é a “favor de um novo enfoque em que não se comece
o estudo repartindo imediatamente os textos em ‘fontes’ ou em camadas
determinadas. A exegese deve tomar por objeto o texto em sua configuração atual” 359.
Apenas destacarei a narrativa sacerdotal (P) que tem importância e peso
extremamente decisivo dentro do todo do Pentateuco e mais particularmente em
relação com meu objeto de pesquisa: as relações de poder entre o campesinato
judaíta e a classe sacerdotal jerusolimitana.

Segundo ainda Rendtorff:

O fundamento deste ponto de vista está muito mais na convicção de que o/os últimos
autores compuseram o texto atual, exatamente como o texto se apresenta a nós,
obedecendo a uma intenção bem determinada e que a tarefa principal da exegese
consiste em delimitar esta intenção e interpretar o texto em consequência.360

Acredito que foram escribas ligados ao grupo sacerdotal jerusolimitano quem


foram encarregados de fazer a redação final do texto como o temos hoje. E como
afirma Rendtorff, com “uma intenção bem determinada”.

Numa perspectiva histórico-crítica procurarei mostrar que a compreensão do


Pentateuco não passa pela análise compartimentada do livro como afirmou Rolf
Rendtorff logo acima, mas pelo contrário, será lançando um olhar para o todo da obra
que se conseguirá apreender, nas entrelinhas, é claro, todo o alcance da obra. Nesse
sentido é preciso ter presente de modo bem claro, o contexto em que possivelmente o
texto final foi redigido. Pois nisso, está a meu ver, a chave de compreensão para
muitos dos problemas que envolvem os estudos sobre o Pentateuco.

358
Albert de Pury, Thomas Romer, “O Pentateuco em questão..., p.17.
359
Rolf Rendtorff, “A história bíblica das origens (Gn 1 – 11) no contexto da redação “sacerdotal” do
Pentateuco”, em Albert de Pury (org.), O Pentateuco em questão: as origens e a composição dos cinco
primeiros livros da Bíblia à luz das pesquisas recentes, 2ª Edição, Petrópolis, Vozes, 2002, p.99.
360
Idem, ibdem.
Nesse sentido, vale ressaltar também o que autores como H. H. Schmid e B. J.
Diebner disseram sobre aqueles que se lançam ao desafio de estudar o livro do
Pentateuco. Chamam a atenção dos estudiosos para o fato de que devem interrogar-se
sobre o seu próprio contexto sócio-político, bem como das motivações ideológicas
que, subterraneamente, movem suas pesquisas. Segundo os autores, as gerações de
exegetas que nos precederam foram tomadas por certa nostalgia das origens, ao passo
que os novos pesquisadores são atraídos mais pelo contexto exílico e pós-exílico, –
como é o meu caso. “Mesmo que a nova crítica não tenha dito a última palavra sobre o
enigma do Pentateuco, pelo menos tem o mérito de convidar-nos a tentar
compreender em profundidade esta época pós-exílica tão pouco conhecida e às vezes
tão desprezada”.361

Penso que de todos os períodos da história de Israel, o período pós-exílico se


reveste de uma importância fundamental, pois nele se concentram os eventos que
deram o ritmo e o compasso do judaísmo. Neste período se concentraram os diversos
grupos que com seus diferentes interesses entraram no jogo da luta pelo poder
político, econômico e social. É também o período em que foram escritos os últimos
livros que compõe o cânon da Bíblia Hebraica.

5.2.2.1 – O Pentateuco no campo das forças políticas e sociais na Província de


Judá.

Penetrar o contexto em que foi feita a redação final do Pentateuco é de certa


forma se expor. Como diria Paulo Freire, é ser obrigado a se posicionar, pois em todo
projeto de pesquisa não é possível a neutralidade, pois é aqui que se mostra nosso
caráter e nossa índole: “a favor do que e de quem eu me lanço nesse projeto? Contra o
que e contra quem me disponho para a luta?”362 Não é somente um esforço de, por
um lado, se posicionar, mas é por outro lado, de fazer jus à verdadeira história, de
resgatar a memória de um grupo social, que aparentemente, não teria nada de
extraordinário para nos mostrar, mas que, no fundo da problemática em torno ao livro
do Pentateuco, emerge a face desfigurada de camponeses, homens e mulheres
oprimidos e explorados naquilo que de mais sagrado possa existir: a fé em Deus!
361
Idem, p.84.
362
Paulo Freire, A pedagogia da autonomia, São Paulo, Paz e terra S/A, 24ª edição, 2006, 146p.
Não é por acaso que Frank Crusemann também aponta na mesma direção:

[...] As forças que suscitaram a formação do Pentateuco atual devem ser consideradas
com a mesma prioridade, tanto no plano político como social, tomando-se esses dois
termos num sentido bem amplo. Só sobre este pano de fundo se poderá esperar
compreender realmente o processo literário, como mostra a espinhosa questão: quem
atribuir a última palavra nesta questão, às vozes sacerdotais ou deuteronomistas?363

Para Crusemann, o Pentateuco teve sua redação definitiva redigida ao final do


período persa e início do período grego, pois se admite que a tradução grega do
Pentateuco, que foi feita no Egito, aconteceu em meados do século III a.C., se de fato,
o Pseudo-Aristeu está certo. Esta conclusão pressupõe a conclusão e a autoridade
canônica. O fato de que o Pentateuco não traz qualquer traço de influência, mesmo
vindo do helenismo, nem qualquer confronto com ele, milita no mesmo sentido.364

Se é crucial para a compreensão do Pentateuco detectar o jogo das forças


político-sociais que estavam por traz de sua redação final, as descrições no livro de
Neemias são de valor inestimável, pois permitem considerar como particularmente
marcantes e duráveis dois conflitos fundamentais no seio da população da província
de Judá:

[...] De um lado, a oposição tão importante, comum a toda a antiguidade e já anterior


ao exílio, entre os pequenos camponeses superendividados e seus ricos credores,
como surgiu em plena atualidade da situação descrita em Ne 5. E, de outro lado, os
interesses divergentes dos leigos, representados principalmente pela população
camponesa, e os dos oficiantes do culto, isto é, dos sacerdotes e levitas.365

Conforme Crusemann assinala no texto acima, é em torno deste conflito social,

entre o campesinato judaíta e a classe sacerdotal jerusolimitana (cf. Ne 5) que o livro

do Pentateuco tem seu eixo dinâmico e estrutural.

363
Frank Crusemann, “O Pentateuco, uma torá: prolegômenos à interpretação de sua forma final”, em
Albert de Pury (org.), O Pentateuco em questão: as origens e a composição dos cinco primeiros livros da
Bíblia à luz das pesquisas recentes, 2ª Edição, Petrópolis, Vozes, 2002, p.273.
364
Frank Crusemann, “O Pentateuco, uma torá..., p.278-279.
365
Idem, p.287-288.
1
Surgiu então uma forte queixa do povo e de suas mulheres contra seus irmãos
judeus. 2Alguns diziam: “Nossos filhos, nossas filhas e nós mesmos somos
numerosos. Gostaríamos de ter trigo para comer e viver!” 3Outros ainda diziam:
“Nossos campos, nossas vinhas e nossas casas, damo-los em hipoteca para
termos trigo durante a época da fome”. 4Outros ainda diziam: “Para o tributo
do rei, tomamos dinheiro emprestado, empenhando nossos campos e nossas
vinhas. 5No entanto, nossa carne é semelhante à carne dos nossos irmãos, e
nossos filhos são semelhantes aos deles. E contudo somos obrigados a entregar
nossos filhos e nossas filhas à servidão, e algumas das nossas filhas já são
escravas; nada podemos contra isso; nossos campos e nossas vinhas pertencem
a outros!”
[...] Na perspectiva desses conflitos fundamentais, as leis do Pentateuco manifestam
uma tendência bem marcante. Por um lado a grande quantidade de leis cultuais
sacerdotais que tornam obrigatórios o dízimo (Nm 18) e muitas outras contribuições
cultuais. E, de outro lado, as proibições do empréstimo a juros (Ex 22,24; Dt 23,20) e a
ordem de remissão periódica das dívidas entre israelitas (Dt 15,1s). Essas breves
indicações já bastam para perceber nitidamente onde estava a vantagem de cada um,
cui bono do qual as leis não podem justamente fazer abstração.366

De fato, quando Karl Marx afirma que a “estrutura econômica é aquela que
tudo determina em última instância” não se tem muita dificuldade em perceber esta
realidade na sociedade judaica do período persa. Apesar de a estrutura religiosa ter-se
tornado a estrutura dominante, foi tendo em vista a dimensão econômica, isto é,
aquilo que eles, os sacerdotes, poderiam lucrar e se beneficiar que foram criadas
muitas das leis presentes no Pentateuco, leis características da narrativa sacerdotal (P).

Mas, será que é possível afirmar categoricamente, que a motivação de fundo,


isto é, o leitmotiv sacerdotal, foi o de arrecadar gêneros alimentícios de primeira
necessidade sem ter que fazer o mínimo esforço pra isso? Ao se redigir todas aquelas
leis de caráter cultual, de fato os redatores já tinham em mente essa intenção de se
aproveitando das tradições oriundas do tribalismo elaborar todos estes textos que
serviram mais á uma lógica de dominação do que de libertação?

Outro fato interessante, que aponta Grabbe, está em que se constata com
facilidade é o fato de existem certa quantidade de leis bíblicas que não concordam
entre si. Isto acontece provavelmente devido a uma série de razões, incluindo a
incorporação de leis de diferentes períodos de tempo ou em diferentes estágios de

366
Idem, p.288.
desenvolvimento. Outra razão aparente, porém, é que diferentes autores legais (ou
escritores) teve um ponto de vista diferente sobre como deveria ser a lei e sua
redação. Isto nos leva a outra consideração: poderiam estar coexistindo na mesma
época diferentes grupos que se opunham uns aos outros com seus próprios interesses
(ideologias).367

5.2.2.2 – Narrativa Sacerdotal (P)

Com esta designação fica claro que esta camada textual presente no livro do
Pentateuco dá, como já foi dito anteriormente, o tom, isto é, a capacidade de
compreensão e assimilação das leis, mas também, o ritmo, ou seja, a intensidade com
que se deve executar cada uma das prescrições e proscrições no dia a dia, sem o
menor descuido, pois do contrário, pesa sobre o faltoso, a ira e a maldição divina.

Segundo Rolf Rendtorff se faz necessárias duas observações que são


mutuamente dependentes:

De um lado foram colocadas nesta camada todos os textos que têm a ver com as
realidades cultuais, em particular todo o livro do levítico com suas prescrições sobre o
culto e a pureza, como também os capítulos 25 a 31 e 35 a 40 do Êxodo que dizem
respeito à construção, arrumação e funções culturais do santuário do deserto, o ‘ohèl
mo’êd, ou empregando a terminologia sacerdotal específica, o miskan.368

Desse modo, um dos aspectos que mais distinguem a narrativa sacerdotal do


restante do conteúdo do Pentateuco, é o parentesco linguístico. Desta peculiaridade
linguística, Rendtorff conclui que “a linguagem sacerdotal é antes de tudo uma
linguagem interna” à P. Enquanto “Wellhausen havia feito uma distinção entre o
núcleo narrativo próprio de P e diversos desenvolvimentos tardios”, Martin Noth fez
uma separação ainda mais nítida entre os elementos narrativos e cultuais, pois para
ele, P era uma obra meramente narrativa e por princípio não quis empregar o rótulo P

367
Lester L. Grabbe, A history of the Jews and Judaism in the Second Temple Period: volume 1 – Yehud: A
history of the Persian Province of Judah, New York, T&T Clark International, 2004, p.183.
368
Rolf Rendtroff, “A história bíblica das origens..., p.92.
para designar os elementos cultuais que seriam representados por outra letra
qualquer.369

De acordo com Hans Heinrich Schmid:

[...] o escrito sacerdotal (que eu considero uma entidade literária primitivamente


autônoma e não uma simples camada redacional, e isto precisamente em razão de seu
perfil teológico tão marcante e tão fortemente divergente).370

Já Frank Cross, afirma que P jamais teria existido como documento


independente”. Segundo Cross, “seu autor – ou autores – teriam reunido, enquadrado
e sistematizado materiais tradicionais mais antigos (designados por Cross como
‘JE’)”.371 Os redatores, conforme também afirma Norbert Lohfink, não impuseram
qualquer restrição como a si mesmo. Criaram uma bela forma de praticar a violência
sobre as suas fontes. Omitiram, revisaram, alteraram e exerceram com a mais
completa liberdade em inserir coisas novas372. Assim como Cross e Lohfink
compartilho também dessa posição, de que foi o grupo sacerdotal jerusolimitano, que
na luta pelo poder político e pelo controle do templo, foram se articulando de tal
modo que conseguiram se sobrepujar por sobre os demais grupos que igualmente
lutavam para alcançar esse poder. Para isso, como afirma Cross, reuniram,
enquadraram e sistematizaram materiais mais antigos, com o único objetivo de se
justificar e se legitimar no poder e controle da sociedade judaíta, praticamente em
todos os campos: político, econômico, social e, principalmente, no campo religioso.

a) Material sacerdotal
Como não é meu objetivo entrar em detalhes quanto ao questionamento da
extensão do conteúdo de P, passo a analisar em função de meu objeto de pesquisa,
369
Rolf Rendtorff, “A história bíblica das origens (Gn 1 – 11) no contexto da redação “sacerdotal” do
Pentateuco”, em Albert de Pury (org.), O Pentateuco em questão: as origens e a composição dos cinco
primeiros livros da Bíblia à luz das pesquisas recentes, 2ª Edição, Petrópolis, Vozes, 2002, p.89.
370
Hans Heinrich Schmid, “Rumo a uma teologia do Pentateuco” em Albert de Pury (org.), O Pentateuco
em questão: as origens e a composição dos cinco primeiros livros da Bíblia à luz das pesquisas recentes,
2ª Edição, Petrópolis, Vozes, 2002, p.315.
371
Rolf Rendtorff, “A história bíblica das origens..., p.89.
372
Norbert Lohfink, Theology of the Pentateuch: themes of the Priestly Narrative and Deuteronomy,
Mineapolis, Fortress Press, 1994, p.155.
isto é, das relações de poder que se estabeleceram entre o campesinato e a classe
sacerdotal jerusolimitana diversas passagens, com o intuito de comprovar a tese de
que o motivo que levou a classe sacerdotal jerusolimitana a fazer todo esse arranjo
com o material mais antigo, dando origem ao que ficou conhecido como o livro do
Pentateuco, não foram acima de tudo questões de ordem histórica e/ou teológica, mas
questões de ordem nitidamente política e econômica. Tanto é verdade, que como será
demonstrado, eles alteraram em muitos pontos a própria tradição em proveito, única
e exclusivamente pessoal.

Segundo Frank Crusemann, a título de resumo sobre algumas das questões que
ainda incomodam os estudiosos, conclui que um estudo sério do Pentateuco não pode
ser feito de modo compartimentado e propõe que:

[...] o Documento sacerdotal como um todo corresponde, na sequência dos livros


legais, ao Código da Aliança e ao Deuteronômio. O Código da Santidade é apenas uma
parte dele, exatamente aquela em que toma forma de maneira destacada a discussão
com a tradição legal vigente. É evidente que a inserção literária das leis em uma
moldura narrativa que se inicia com a criação do mundo significa um corte profundo
na história do direito, cujo sentido é preciso captar.373

Esse “corte profundo” no modo de se apresentar um código jurídico ao qual se


refere Crusemann é um elemento de destaque que merece atenção por parte dos
estudiosos. Segundo E. Blum este estilo de composição pode estar ligado com a
questão da autorização imperial persa e assim, às referências contidas no livro de
Esdras.374

Independente do livro do Pentateuco ser ou não ser “a lei de Deus e do rei” (cf.
Esd 7,26), isto é, o livro que Esdras tinha em mãos, talvez enquanto um projeto
arquitetado sob os auspícios do império persa, o que de fato chama a atenção é o
modo como o novo código jurídico foi arquitetado. Dentro de uma moldura narrativa,
esse novo corpo jurídico ganhou não só em dinamicidade, mas acima de tudo,
utilizando-se do artifício de tudo referendar a Deus como autor, ganhou legitimidade,

373
Frank Crusemann, A torá: teologia e história social da lei do Antigo Testamento, Petrópolis, Editora
Vozes, 2002, p.386-387.
374
Frank Crusemann, A torá..., p.392.
o que fez com que os objetivos ideologicamente arquitetados pela classe sacerdotal
jerusolimitana fossem alcançados com muito mais facilidade.

Segundo Crusemann, ter clareza quanto ao aspecto que confere unidade


intencional ao texto é de suma importância, pois na melhor das hipóteses, é
importante esclarecer que os textos relativos ao santuário, objetivavam a um processo
único,375 ou seja, transformar a pequena província de Judá, tendo como centro
religioso e administrativo o templo de Jerusalém. A partir disso, Yahweh, conforme o
projeto teocrático dos sacerdotes sadocitas em Ezequiel 40 – 48 reinariam absolutos,
obviamente, mediado por seus representantes, os sacerdotes de mesma linhagem.

Um aspecto do material sacerdotal que chama a atenção é quanto á sua


estrutura e conteúdo. Comparando o Código da Aliança (CA) com o Código
Deuteronômico e com Código de Santidade, percebe-se que a correspondência não é
fruto do acaso, mas é nitidamente intencional. Conforme segue, faço um quadro
comparativo dos eventos correspondentes:

Determinações fundamentais referentes ao Lv 17 Dt 12 Ex 20,24ss


altar e aos sacrifícios a serem oferecidos
Benção e maldição Lv 26 Dt 27s Ex 23,20ss
Ano sabático Lv 25 Dt 15,1ss Ex 23,10s
Calendário de festas Lv 23 Dt 16 Ex 23,14ss
Leis sobre escravos Lv 25,39ss Dt 15,12ss Ex 21,2ss
Proibição de cobrança de juros Lv 25,35ss Dt 23,20ss Ex 22,26
Leis sobre sexo e família Lv 18; 20 Dt 21ss

Segundo afirma Cholewinski, num parágrafo citado por Crusemann, não é só


uma questão de correspondência que está em jogo, mas, – do seu ponto de vista – o
material sacerdotal, no caso, as leis do CS (Código de Santidade) vão além daquilo que

375
Idem, p. 393.
havia sido prescrito, por exemplo, pelo CD (Código Deuteronômico). Segundo o autor,
isso ocorreu porque “muitas de suas prescrições pareceram incompletas,
ultrapassadas, radicais demais ou com base teológica insuficiente”.376

Mas, teriam sido realmente esses os motivos que levaram os redatores


sacerdotais a efetuarem essa revisão no conjunto de leis, tanto do CA quanto do CD?
Certo é que, assim como o CD buscou dar continuidade, corrigir, complementar e
substituir o CA, também o CS, igualmente, deu continuidade, corrigiu, completou e
substituiu as leis do CD. Mas, é interessante notar que a dimensão política e social tão
palpável no Código Deuteronômico já não se faz tão presente no Código de Santidade.
A ênfase e a quase que exclusividade do aspecto religioso toma o lugar do social e do
político.

Trazendo à luz alguns exemplos é possível perceber a estratégia sacerdotal:

 Ex 21,2s e Dt 15,12ss falam da libertação dos escravos: De acordo com os


mishpatim a libertação deveria ocorrer depois de sete anos. O redator
sacerdotal, segundo os objetivos do grupo, altera este período para o ano do
jubileu (cf. Lv 25,29ss), isto é, para depois de 49 anos, o que corresponde à
duração de da vida de um escravo, ou como sugere Crusemann, ao “dia de São
Nunca”.377
 Dt 15,1ss fala do perdão regular das dívidas no sétimo ano. Este texto, ou
melhor, essa lei é omitida pelo redator sacerdotal. Na sua concepção não é
possível o perdão.
Do ponto de vista das relações de poder entre o campesinato e classe sacerdotal houve
um terrível decréscimo a nível social, isto é, um claro descompromisso da classe
dominante e mais abastada – a classe sacerdotal – para com a classe dominada, mais
pobre e explorada – o campesinato. Conforme pensa Crusemann:

[...] os círculos sacerdotais não levam avante a radicalidade da legislação social


deuteronômica, nem mesmo a do Código da Aliança. Quase é preciso falar de
revogação da legislação social deuteronômica. Isso, porém não se impôs como

376
Frank Crusemann, A Torá..., p.384.
377
Frank Crusemann, A Torá..., p.393.
mostram os testos da época de Neemias (esp. Ne 10,32) bem como a Torá como um
todo.378

Esta ruptura entre a escola ou grupo deutronômico, se assim se pode chamar,


com o grupo sacerdotal – anti-deuteronômico –379 presente no Pentateuco é, pode-se
afirmar, sintoma do que acima foi descrito, pois muitas das leis presentes no Código
Deuteronômico que refletem a realidade social do campesinato, foram abandonadas.
De acordo com Crusemann, que analisa este fato por um viés positivo, deve-se concluir
que somente a classe sacerdotal “esteve em condições de reagir à altura aos desafios
do exílio. Eles submeteram a tradição a uma transformação que, apenas ela,
possibilitou o futuro”380.

Primeiramente, com relação ao termo que Cholewinski utiliza para adjetivar a


classe sacerdotal, não é desprovido de sentido, pois como afirma o próprio
Crusemann, que solicita muito cuidado quanto à sua utilização, de fato, não só traduz a
ênfase que se deve dar às relações de poder como chave de leitura do Pentateuco,
mas deixa transparecer alguma ligação mais profunda, como já citada acima, entre o
campesinato e os redatores do Código Deuteronômico.

Outro ponto que não posso deixar de comentar é quanto ao fato de que
Crusemann não vê como negativo esse posicionamento antissocial e antipolítico da
classe sacerdotal, mas, muito pelo contrário, como algo extremamente positivo, pois
foram eles, os sacerdotes, os únicos que estiveram em condições de reagir à altura dos
acontecimentos e desafios do exílio. Sim, de fato, reagiram, mas como é possível
perceber, o pêndulo pendeu quase que totalmente a favor deles, que ficaram numa
posição suntuosa e extremamente confortável em relação ao campesinato que foi a
grande mola propulsora para que eles se legitimassem no poder.

378
Idem, ibdem.
379
Este termo “anti-deuterônomico” foi cunhado por Cholewinsk, mas que segundo Crusemann deve
ser utilizado com muito cuidado. Idem, p.394.
380
Frank Crusemann, A Torá..., p.395.
b) O ideológico culto sacrifical como elemento central do Documento
Sacerdotal
Como poderá ser constatado o Documento Sacerdotal instaurou um ideológico
sistema sacrificial que legitimado pelas inúmeras referências a deus, obrigava toda a
população a recorrer constantemente á sua intervenção, pois que açambarcando toda
a existência, era impossível para qualquer pessoa escapar à sua malha e influência.

Como o elemento central da vida judaica, a expiação e o perdão pelos pecados


pessoais de cada judeu, fazendo uma espécie de paralelo com o fracasso de Israel, se
tornou o principal carro chefe de toda a estrutura cultual e sacrifical do templo de
Jerusalém.

Nesse sentido Crusemann argumenta e se posiciona de tal modo, que para ele:

[...] o Documento Sacerdotal criou a possibilidade de manter a vinculação das


exigências cultuais e legais, teológicas e éticas que ligavam toda a vida com a unidade
de Deus, com a amplitude indispensável para a tradição da Torá. Ela o fez com uma
transformação profunda de todo o direito existente.381

O esboço geral do Documento Sacerdotal é bem evidente [...] Aquilo que começou no
Deuteronômio com a promulgação da lei [...] é levado adiante aqui com mais
determinação. A lei, e acima de tudo a constituição do culto, tornou-se parte de uma
narrativa que vai até os primórdios.

Apesar do longo e permanente debate quanto ao sentido e ao propósito do


Documento Sacerdotal, sua estrutura e teologia, dificilmente consigo encontrar o
sentido evidente e fundamental deste esboço na clareza que lhe é inerente.382

Chama a atenção na posição adotada por Crusemann de que, como ele mesmo
afirma, não conseguir encontrar o sentido evidente e o propósito do Documento
Sacerdotal.

Partindo do pressuposto, de que o valor e sentido que a religião ocupava, não


somente no contexto dos povos antigos, ou mais especificamente na região do Antigo
Oriente Próximo, era tão decisivo e fundamental para a vida de cada um, que é
possível afirmar que diante do quadro apresentado pelo conjunto do Pentateuco
qualquer pessoa em sã consciência, é claro, dento daquele contexto, não sentiria o
381
Frank Crusemann, A Torá..., p.399.
382
Idem, p.399-400.
menor constrangimento em abraçar a novo modelo religioso que estava sendo
imposto. É certo que do modo como o projeto foi arquitetado, levou quase que uma
centena de anos depois de escrito para se enraizar na vida de todos e fazer de
Jerusalém o centro religioso e político da província de Judá.

Para Crusemann, os textos sacerdotais, particularmente aqueles promulgados


no contexto da perícope do Sinai, postulam que:

[...] a vida na presença do Deus santo só é possível quando os fracassos e pecados são
sempre de novo expiados e perdoados. Por esta razão, o cancelamento da culpa
concedido por Deus ocupa o centro das leis cultuais sacerdotais.383

É nesse sentido que irá se configurando a ideia de que o pecado poderia ser
perdoado somente mediante a oferta de um sacrifício, onde a morte do animal
simbolizava que o pagamento pela dívida contraída pelo pecador estava sendo
saldada. É a tese da identificação da pessoa culpada com o animal do sacrifício.

E para evitar tais acúmulos de pecado e impureza no futuro, o próprio Deus


prepara meios de expiação. O mais importante é o sangue dos animais sacrificados e o
contexto é descrito com precisão em Lv 17,11:

Pois a vida de uma criatura está no sangue: e eu vo-lo dei, sobre o altar para a
absolvição da vossa vida. Com efeito, o sangue proporciona a absolvição por ser
a vida.

É assim que, segundo Crusemann, se formula o alvo de toda a ação de expiação


dos sacerdotes: o perdão.384

Um primeiro passo em direção à consecução desse objetivo foi confirmar uma


lei deuteronômica que já previa a centralização do culto como forma de aglutinar o
religioso sob todas as suas formas de manifestação em um só local.

“Suprimireis completamente todos os lugares onde as nações que ireis


despossar serviram a seus deuses, sobre as montanhas elevadas, sob as colinas
e sob todas as árvores verdejantes. Demolireis os seus altares e quebrareis suas

383
Frank Crusemann, A Torá..., p.425-426.
384
Idem, p.427.
estelas; seus vasos sagrados, os queimareis; os ídolos dos seus deuses,
quebrareis; suprimireis os seus nomes deste lugar. Não procedereis como eles,
em relação ao Senhor, vosso Deus, porque somente o procurareis no lugar que o
Senhor, vosso Deus, houver escolhido entre todas as tribos para ali estabelecer
o seu Nome, para ali morar; para lá é que irás. Para lá levareis vossos
holocaustos, vossos sacrifícios, vossos dízimos e vossos tributos voluntários,
vossas oferendas votivas, vossos dons espontâneos, os primogênitos de vosso
gado e de vosso rebanho. (Dt 12,2-6)

Já o Documento Sacerdotal, não só assumiu essa lei deuteronômica de


centralização do culto, mas afirma que todo aquele que oferecer um sacrifício que não
seja à entrada da tenda de reunião – figura do futuro templo – a essa pessoa será
eliminada:

Se algum homem da casa de Israel degolar um boi, um cordeiro ou uma cabra


no acampamento – ou até degola-lo fora do acampamento – sem trazê-lo à
entrada da tenda do encontro para o levar como presente ao Senhor, diante da
morada do Senhor, responderá pelo sangue que derramou: tal homem será
cortado do meio do seu povo. (Lv 17,3-4)

Desse modo a vida do campesinato vai se tornando cada vez mais difícil, pois
não podendo mais sacrificar aos seus deuses nos diferentes santuários e locais de culto
que havia na província de Judá, eles são agora obrigados, por um dever de consciência,
a se dirigirem até o templo de Jerusalém, pois se fossem pegos sacrificando fora do
lugar definido pelo próprio deus, deveriam ser eliminados do meio do povo, isto é,
condenação à morte.

c) Sadocitas versus levitas


Seguindo a ideologia anteriormente prescrita na “lei do templo” de Ez 40 – 48,
o texto de Nm 16 – 18 foi, igualmente, uma narrativa criada pelos redatores do
documento sacerdotal com fins de justificação e legitimação da classe sacerdotal
sadocita em relação aos levitas, bem como também sobre a questão de quem é e
quem não é santo na comunidade. Como devia estar havendo um forte choque de
interesses e projetos quanto ao controle do templo, o grupo sacerdotal ligado à
linhagem sadocita, inventou esta história como tantas outras, ou quando muito,
recolhendo alguns elementos e nomes da tradição, lhe deu um novo enfoque, a fim de
justificar sua superioridade e situar o grupo dos levitas numa função, poderia se dizer,
de segunda classe, num nível mais baixo em relação aos sacerdotes sadocitas.

O texto em Nm 16 começa com Qôrah, datan e Abiran, além de 250


representantes do povo, levantando sérios questionamentos contra Moisés e Aarão
dizendo:

Basta! Disseram-lhes. Todos os membros da comunidade são santos, e o Senhor


está no meio deles, com que direito vos elevais acima da assembleia do Senhor?
(Nm 16,3)

E depois de muito diálogo entre Deus e Moisés, os três insurgentes são


condenados e castigados, tendo seus corpos, familiares e bens engolidos pela terra (cf.
Nm 16,31-33). Além deles, também os duzentos e cinquenta que os apoiavam foram
exterminados por um fogo que os consumiu (cf. Nm 16,35).

O interessante é perceber que no Código Deuteronômico, que é anterior ao


Documento Sacerdotal, não faz distinção entre sacerdotes e levitas. Em Dt 18,6ss o
deuteronomista confere direitos iguais tanto aos sacerdotes quanto aos levitas no que
diz respeito ao serviço do altar. Segundo Blum citado por Crusemann:

Nm 16, como parte de um Documento Sacerdotal que não abrange o Deuteronômio, é


uma rejeição forte do pensamento deuteronômico e da teologia deuteronomista. Ele
faz parte de uma ampla “discussão da identidade de Israel como povo de Yhwh e dos
‘interesses contraditórios’ concretos conexos a ela”, existente entre grupos sacerdotais
e deuteronomistas, mas também entre grupos sacerdotais e levíticos. [...] Nisso o
problema dos privilégios sacerdotais e do direito de acesso à proximidade direta com
Deus não é o único conflito, mas o mais evidente e manifesto.385

Outro texto deuteronomista que reforça esta tese é a promessa divina em Ex


19,3ss:

385
Frank Crusemann, A Torá…, p.489.
Agora, pois, se ouvirdes a minha voz e guardardes a minha aliança, serei minha
parte pessoal entre todos os povos – pois a terra inteira me pertence – e vós
sereis para mim um reino de sacerdotes e uma nação santa.

Segundo Perlitt citado por Crusemann, “a proximidade com Deus conseguida


no êxodo se manifesta na santidade e na condição de sacerdotes de todo o povo. Este
texto é inegavelmente deuteronomista”.386

Esse contraste quanto à proibição dos levitas de servirem diretamente ao altar,


ou seja, o contraste entre a narrativa deuteronomista e a narrativa sacerdotal, não é o
único conflito, mas o mais evidente e manifesto. Em Ex 19 e 24 tem-se um exemplo
gritante de conflitos e contrastes. Segundo Crusemann, “é difícil encontrar coisas
mutuamente excludentes colocadas tão imediata e diretamente lado a lado” 387.

5.2.3 – Esdras e Neemias

A maioria dos estudiosos concorda que assim como o livro do Pentateuco,


Esdras e Neemias, que são posteriores a ele, foram também escritos em fins do
período persa e início do período helenístico.

A intenção aqui, não é proceder a um estudo de todos os detalhes dos dois


livros, mas naquilo que é essencial no tocante ao aspecto das relações de poder entre
o campesinato judaíta e a classe sacerdotal jerusolimitana, submeterei os textos a uma
análise à luz do pensamento de alguns estudiosos contemporâneos.

A título de introdução uns breves acenos com respeito aos recentes estudos.
Tradicionalmente tem sido aceito que Esdras e Neemias, assim como 1 e 2 Crônicas
fariam parte de um só conjunto: a Obra historiográfica do Cronista (OHC). A título de
recensão Lester Grabbe sintetiza as discussões sobre o assunto da seguinte forma:
Mais recentemente, algumas dezenas de anos atrás, esta visão começou a ser
criticada. Japeht em 1968 e Willianson em 1977, mas suas visões não foram aceitas em
estudos posteriores (por exemplo Cazelles em 1979, Clines em 1984 e Blenkinsopp em
1988). Em 1988 Ackroyd discutiu as dificuldades em determinar a questão, embora

386
Idem, p.490.
387
Frank Crusemann, A Torá…, p.491.
tenha indicado uma autoria comum em outras publicações. Thronveit em 1982
desafiou os argumentos linguísticos de Japhet e Willianson, embora se perguntando se
a linguagem poderia realmente definir a questão. D. Talshir em 1988 argumentou que
um estudo linguístico não pode suportar uma divisão entre Crônicas e Esdras-Neemias,
embora admitindo que isto não prova a sua unidade. R. L. Braun em 1979 acentuou as
diferenças teológicas entre Crônicas e Esdras-Neemias. Willianson em 1995
argumentou que Crônicas e Esdras-Neemias foram dois trabalhos independentes
escritos pelo mesmo autor, mas com perspectivas diferentes. A maioria dos
estudiosos, porém, estão cautelosos em assumir uma composição unificada com uma
perspectiva e teologia única. Segundo Willianson (1985) o trabalho unificado de
Esdras-Neemias não pode ser anterior ao início do período helenístico. Este seria agora
demonstrado pelo suposto documento persa que utiliza algumas convenções
linguísticas pós-aquemênida. Na opinião de Lester G. Grabbe, 1 Esdras em sua forma
original semita seria anterior aos livros de Esdras-Neemias em hebraico, que também
devem ser pós-aquemênida.388

Já Mario Liverani afirma que os livros de Esdras e Neemias, sem entrar no


mérito da incerteza exegética que reina sobre a sua historicidade, é da opinião de que
os dois livros foram escritos dois séculos depois dos acontecimentos a que pretendem
se referir, isto é, por volta de 250 a.C., e estão viciados por forte tendenciosidade.389

Em verdade os livros de Esdras e Neemias, conforme pensa Blenkinsopp foram


editados para promover um entendimento particular de Israel, ou mais propriamente,
reflete a agenda de um grupo em particular, e de uma ideologia importada da diáspora
babilônica inspirando-se igualmente em certos aspectos da teologia deuteronomista e
na “lei do templo” de Ez 40 – 48. O uso da narrativa em primeira pessoa, tanto para
Esdras quanto para Neemias foi uma forma de atingir esse fim e, ao mesmo tempo,
relegando aqueles que não pertenciam ao seu partido ou subscrevendo suas ideias e

388
Lester G. Grabbe, A history of the Jews and Judaism in the second temple period: vol.1 – Yehud: a
history of the Persian Province of Judah, New York, T&T Clark International, 2004, p.71-72.
389
Mario Liverani, Para além da Bíblia..., p.332.
práticas à insignificância e suas diferentes formas de ser judeu à apenas um ruído de
fundo.390

Quanto à tradição de ambos, excetuando o assim chamado Memorial de


Neemias, tanto Esdras quanto Neemias revelam muitas contradições, incongruências,
anacronismos e absurdos. A partir de uma leitura atenta do texto, particularmente de
Esdras, chega-se a uma conclusão de que qualquer tentativa de datar sua missão,
como afirma Lester Grabbe, não faz sentido.391

5.2.3.1 – Estrutura e teologia

É muito interessante perceber a semelhança e os paralelos entre os dois livros.


De acordo com um trabalho feito por T. C. Eskenazi, que segundo Lester Grabbe, é
considerado como um dos trabalhos mais bem detalhados a respeito.392

Esdras Neemias
1: delegação real (por Edito de Cirus) 1,1–2.9: delegação real (por Artaxerxes)
3: tarefa de reconstruir (templo/altar) 2–3: tarefa de reconstruir (reparar o
muro)
4–6: impedimento por ‘inimigos’ 4,6: impedimento por ‘inimigos’
6: trabalho completado com o auxílio de 7: trabalho completado com o auxílio de
Deus Deus
7–8: Esdras e a lei 8: Esdras e a lei
9–10: ameaça de casamento 9–10: ameaça de casamento
10: resolução por testemunho público 10: resolução por testemunho público

Outras sessões de Neemias também são paralelas:

Esdras Neemias
2: lista dos retornados 7: lista dos retornados

390
Joseph Blenkinsopp, Judaism: the first phase..., p.160-161.
391
Lester L. Grabbe, A history of the Jews and Judaism in the second temple period: vol.1…, p.325.
392
Joseph Blenkinsopp, Judaism: the first phase..., p.72.
2: lista dos retornados 11,1–12,26: lista dos retornados
6,16–17: dedicação do templo 12,27–43: dedicação do muro
6,18: organização dos sacerdotes/levitas
12,44–47 : organização dos sacerdotes /
direitos dos levitas
9–10: casamentos mistos /ameaças de 13: casamentos mistos / ameaças de
‘estrangeiros’ / povo da terra ‘estrangeiros’ / povo da terra

A partir deste quadro comparativo pode-se ver claramente que ambos os livros
concorriam entre si, ou seja, que a partir desta observação se pode concluir que os
dois livros representavam distintos grupos ou escolas que lutavam pelo poder político
e religioso do templo.393

Outro elemento estrutural é fornecido pela cronologia. Os dados cronológicos


em Esdras-Neemias muitas vezes tem outra função do que datar eventos, ou seja, eles
têm uma função ideológica, cujo objetivo é transmitir uma mensagem especial sobre
os eventos.394 De fato, isto já havia sido apontado anteriormente quando afirmava que
os livros de Esdras e Neemias não são um relato histórico e nem muito menos, um
relato autobiográfico de ambos, mas são dois projetos que refletem, acima de tudo, o
contexto de crise e disputa pelo poder dentro da comunidade jerusolimitana. 395

Existem estudiosos, especialmente entre aqueles que duvidam ou negam


completamente a realidade histórica de Esdras, que argumentam que a narrativa em
seu livro foi criada para combater o prestígio de Neemias e foi colocada antes de
Neemias para ser um ponto de precedência. Há também a suposição comum de que a
autoridade do sacerdote é intrinsecamente maior e sempre supera a de qualquer
leigo, mesmo a de um chefe de estado ou, neste caso, do governador da província. No
entanto, interpretando a relação entre as duas partes do livro, um fato chama a
atenção: poucas são as ocasiões em que seus nomes aparecem nos textos mais tardios
de segundo templo. Eles nunca ocorrem juntos. Isto é consistente com a hipótese de
uma combinação no livro canônico das duas narrativas originalmente distintas.396

393
Joseph Blenkinsopp, Judaism: the first phase..., p.160.
394
Lester L. Grabbe, A history of the Jews.. Vol.1.., p.72.
395
Joseph Bçenkinsopp, Judaism: the first phase..., p.160-188.
396
Idem, p.161.
A partir de um estudo das fontes disponíveis de ambos os livros Schwiderski
conclui que tais documentos seriam tardios, do período pós-aquemênida e com muita
probabilidade, seriam falsificações.397

Nesse sentido, com relação aos famosos editos presentes no livro de Esdras,
Mario Liverani conclui:

O fato é que dois séculos depois imaginou-se que Ciro tivesse promulgado logo, já no
seu primeiro ano de reinado na Babilônia, um edito que permitia o retorno dos
exilados e a reconstrução do templo de Yahweh. O edito (cujo suposto texto Es 1,24
menciona) é certamente falso, como demonstram quer a análise formal, quer os
anacronismo. O mesmo vale para um segundo edito do mesmo Ciro (mencionado em
Es 6,3-5), que teria sido encontrado nos arquivos persas no tempo de Dario e que dava
até as medidas e os detalhes técnicos e financeiros do novo templo. Esses editos foram
falsificados e adotados em época um tanto posterior, quando serviam para dar
garantia e privilégio imperial ao templo já construído e para rebater as pretensões do
templo rival de Samaria.398

Diante desses destaques é possível afirmar que suas funções contrastantes tem
um papel a desempenhar na luta partidária levando ao surgimento de seitas no
período hasmoneano, mas que não deve desviar a nossa atenção de que há uma
ideologia subscrita a ambos, tanto em Esdras quanto em Neemias.399

Já Lester L. Grabbe enfatiza que é preciso se ater à estrutura, pois seria


importante ressaltar que a unidade atual de Esdras e Neemias é uma unidade editorial.
Teria sido criada por um compilador, que tendo em separado diferentes tradições
juntou-as com cuidado e inteligência para efetuar uma unidade. Por isso, diz Grabbe, é
perfeitamente legítimo ler os dois livros como uma unidade.400

A partir disto, pode-se conjecturar que falar com precisão das figuras históricas
de Esdras e Neemias é quase que impossível a partir das fontes disponíveis. Mas nada
impede de se fazer uma tentativa de traçar os efeitos de ambos os livros ou se preferir,
de ambas as figuras – de Esdras e de Neemias – no período seguinte. Isto evidenciará
que ideologia sobreviveu que grupo levou vantagem sobre o outro.

5.2.3.2 – A problemática da terra

397
Lester L. Grabbe, A history of the Jews.. Vol.1.., p.78.
398
Mario Liverani, Para além da Bíblia: história antiga de Israel, São Paulo, Paulus, 2008, p.312.
399
Lester L. Grabbe, A history of the Jews.. Vol.1.., p.78.
400
Lester L. Grabbe, A history of the Jews.. Vol.1.., p.73.
Assim como ainda hoje, em pleno século XXI e porque não dizer, ao longo de
toda a sua trajetória histórica, o povo judeu, assim como os palestinos, lutam por um
espaço de terra, às vezes de modo legítimo, outras vezes de modo nem tanto, mas no
contexto em que agora nos dispomos a analisar, que é o período pós-exílico, este
período está repleto de muitas controvérsias, de muitas estratégias políticas, de
usurpação de direitos legítimos, de exploração, de manipulação, enfim, de sofisticadas
literaturas recheadas de ideologias.

Como já observado anteriormente, o conjunto dos remanescentes, isto é,


aqueles que permaneceram na província de Judá e não foram deportados juntamente
com a elite para a Babilônia – o campesinato –, são agora chamados por aqueles que
retornam pela alcunha de ’am há’ares – povo da terra –, que não por acaso, no
período pré-exílico, consistiu num grupo social – aristocracia – grupo esse que detinha
o controle dos meios de produção, o comércio e que teve uma longa história de
influência política junto à monarquia. Mas no âmbito do exílio e principalmente do
pós-exílio, o termo mudou de valor e referência. Passa a designar o conjunto dos
camponeses, que fora considerado uma espécie de anexo físico da terra, sem voz e
sem direitos próprios. Não foram considerados como gente, mas sim como um
estorvo. Segundo Mario Liverani:

Com os textos pós-exílicos mais avançados (Esdras e Neemias, Crônicas) firma-se,


enfim, um valor étnico, evidenciado pelo uso do plural “os povos da terra” ou também
“os povos das terras”, para indicar as nações diferentes da israelita: samaritanos,
edomitas, amonitas e todos os que ocupavam parte do território que deveria ter sido
israelita, que não observavam o sábado e os outros traços distintivos da observância
javista, que se opunham à reconstrução do templo, que procuravam de todos os
modos obstaculizar a obra de restauração nacional e religiosa dos sobreviventes.

Pertinente nesse momento é perguntar-se: por que o campesinato se opôs ao


projeto que a elite, outrora deportada, e agora retornada, quis implantar? Essa
oposição não teria sido fruto das amargas experiências sofridas anteriormente? Foi
tendo em vista esse debate sobre a quem pertence a terra, entenda-se, a “província de
Judá”, que se deu início à saga literária de se tentar justificar e legitimar a posse e o
domínio por um lado (dos exilados retornados), e a expulsão e a exclusão do outro
lado (dos remanescentes: do campesinato).

O conflito das estratégias políticas e de interesse materiais entre núcleos de


sobreviventes e comunidades locais gerou “cartas de fundação” míticas sobre os
títulos de propriedades da “terra” entendida em conjunto. Como no plano pessoal era
importante poder aduzir títulos de propriedade ou pelo menos genealogias familiares
detalhadamente para cada clã e vila, assim toda a operação do retorno dos
sobreviventes devia-se basear na capacidade deles de se referir a respeitáveis
tradições que atribuíssem a terra de Canaã às tribos de Israel e que identificassem
como legítimos herdeiros das tribos os núcleos de sobreviventes e não as comunidades
dos remanescentes. É, aliás, significativo o desvio do uso de nahalah, “propriedade
hereditária”, típica dos textos de redação deuteronomista, para ‘ahuzzah, “posse
fundiária”, típica dos textos de redação sacerdotal – desvio que parece marcar a
passagem de uma reivindicação legal para uma tomada de posse.401

Num primeiro momento, foi com base nos “mitos de fundação”, ou seja, em
histórias inventadas – com uma finalidade bem específica – como a do “mito dos
patriarcas”, de Abraão, Isaac e Jacó, bem como também a do “mito da conquista da
terra prometida” por parte dos sobreviventes da escravidão egípcia, sob a guia de
Josué, que os redatores sacerdotais tentaram justificar a situação dos deportados.
Conforme Mario Liverani comenta:

As histórias têm uma insistente relação “etilógica” com as particularidades da


paisagem, particularidades por elas explicadas [...] A proveniência extrapalestina dos
Patriarcas, além de prefigurar o retorno dos sobreviventes, é sobretudo a base para a
questão dos matrimônios entre primos cruzados [...].402

Portanto, nesse panorama de possíveis histórias tradicionais revisitadas por


leituras pós-exílicas se insere a ideologia sacerdotal que tem por função remeter à
consciência daqueles que permaneceram na terra, isto é, do campesinato, a relação
entre os Patriarcas que recebem a promessa divina (cf. Gn 26,3-6) de descendência e
um lugar, isto é, “estas terras” cujos seus pés tocam para que possam habitar em
segurança e aqueles que retornaram do exílio.

401
Mario Liverani, Para além da Bíblia: história antiga de Israel, São Paulo, Paulus, 2008, p.318.
402
Mario Liverani, Para além da Bíblia..., p.324-325.
Além desses episódios, vale destacar Jerusalém que nas histórias patriarcais,
como mostra Liverani, aparecem de um modo muito ambíguo e ocasional, quando por
exemplo, como em Gn 14,19-20, Malki-Sedeq, rei de Shalen abençoa Abraão dizendo:

“Bendito seja Abrão pelo Deus Altíssimo que cria céu e terra!
Bendito seja o Deus Altíssimo que entregou teus adversários às tuas mãos!”

É evidente a intervenção sacerdotal ao apresentar essa notícia como referida


ao Templo de Jerusalém e ao sacerdócio sadocita. Tanto a cidade de Jerusalém, como
o templo, são inseridos no contexto da passagem de um modo um tanto forçado. 403

Outra história que está ligada aos Patriarcas e que serve etiologicamente às
pretensões da classe sacerdotal é a história da venda de José como escravo a uma
caravana de mercadores que o revendem no Egito. A história pertence ao gênero da
novelística de entretenimento. O Egito foi sem dúvida o maior centro de venda e
compra de escravos asiáticos ao longo de todo o curso da história antiga.

Mas essa história, conforme entende Liverani, com suas principais forças
morais encontra paralelos que se adensam todas na época do império persa e tem
uma mensagem muito clara:

O êxito da administração de José consiste numa centralização de todas as terras nas


mãos do faraó – salvo as terras dos sacerdotes, como tem o cuidado de observar o
redator (certamente de ambiente sacerdotal), como salvaguarda da autonomia
econômica do templo em relação à administração imperial. Nesse sentido, a história
de José (ou melhor, um seguimento dela) é uma história etiológica e explicitamente
marcada como tal pela observação “e é assim nos nossos dias” (Gn 47,26) [...].404

5.2.3.3 – Implicação da ideologia de Ez 40 – 48 em Esdras e Neemias

Ainda não foi com a redação definitiva – versão canônica – dos livros de Esdras
e Neemias que a classe sacerdotal jerusolimitana – sadocitas – conseguiram efetivar
seu projeto de domínio, tanto político quanto religioso. A legitimação de seu projeto
levou quase umas duas centenas de anos para que fosse efetivado, pois não se muda a

403
Idem, p.327.
404
Mario Liverani, Para além da Bíblia..., p.330.
cultura de um povo, enfim, seu ethos, da noite para o dia com apenas alguns livros.
Será já no fim do período helênico que os Hasmoneus conseguiram reunir na
instituição do templo tanto a hegemonia do poder religioso quanto do poder político.
Na figura do sumo sacerdote concentrou-se os dois supremos poderes: o poder
espiritual e poder temporal.

Não há dúvida, conforme pensa Grabbe, de que em Jerusalém encontrava-se


algumas das características de um templo-Estado, principalmente em função da
centralidade que o templo veio a ter para toda a sociedade judaíta. Uma das principais
características deste templo-Estado estava na importância dos sacerdotes controlando
a estrutura administrativa.405

As coisas que mais desgraçaram a vida do povo, isto é, do campesinato, foram


os inúmeros sacrifícios que deveriam cotidianamente fazer para que pudessem
alcançar a benevolência divina e desse modo sustentar toda a estrutura religiosa do
templo, que sobrevivia economicamente, graças ao esforço e dedicação diários das
gentes pobres e sofridas da província de Judá.

Passemos agora á análise de alguns textos que são muito ilustrativos com
relação à realidade social e política da província de Judá.

5.2.3.4 – Esdras a partir de Esd 7 – 10.

A história de Esdras parece bastante simples à primeira vista. Ela é introduzida


por sua genealogia, traçando sua ascendência de volta para Aarão, o sacerdote (Esd
7,1-5). Ele também é identificado como um escriba dedicado ao estudo da lei (7,6-10).
Ele recebeu um documento a partir do rei Artaxerxes, permitindo-lhe que voltasse,
trazendo com ele várias pessoas além de ouro e prata para o templo, e ensinar a lei
(7,12-26). Quando ele chega, ele encontra um problema de que certas pessoas
estariam se casando com “estrangeiros”. Ele se apresenta como aquele que veio para
resolver os problemas, que é como termina Esd 7 – 10.

405
Lester L. Grabbe, A history of the Jews and Judaism in the Second Temple Period: volume 1 – Yehud: A
history of the Persian Province of Judah, New York, T&T Clark International, 2004, p.147.
Segundo Lester Grabbe, o edito de Artaxerxes consiste num primeiro problema.
Este edito (cf. Esd 7 juntamente com outros documentos em Esd 4 – 6), não são
simples documentos persas. Em alguns casos eles podem ser uma completa invenção.,
enquanto em outros eles parecem ser documentos autênticos em sua essência, mas
foram fortemente editados em um momento mais tarde. A primeira afirmação é se
alguém do “povo de Israel e os seus sacerdotes e levitas” quiserem ir a Jerusalém tem
permissão para ir com Esdras (7,13), onde o Deus de Israel, cuja habitação está em
Jerusalém, os aguarda (7,15). Em 7,14 Esdras é enviado da parte do rei e de seus
conselheiros. Que o rei tivesse conselheiros nada de anormal, mas ter partilhado sua
autoridade na emissão de ordens ou decretos, é impensável.406

Em seguida, a Esdras é dada permissão de transportar a prata e o ouro que o rei


e seus conselheiros generosamente ofereceram ao Deus de Israel cuja morada está em
Jerusalém. (7,15). Até mesmo o rei e seus conselheiros tacitamente se colocam sob a
soberania de Yhwh. Além disso, toda prata e todo ouro encontrada em todas as
satrapias da Babilônia é para ser entregue à casa de Deus em Jerusalém. Esse valor
deverá ser utilizado na compra de animais, grãos e bebida que deveriam ser oferecidas
no altar do templo de Jerusalém (7,17). Se por acaso, sobrasse alguma parte desse
valor, poderia ser utilizado pelos sacerdotes no que eles quisessem, de acordo com a
vontade de Deus. Além disso, Esdras recebe instruções no sentido de que os
sacerdotes, assim como os levitas, cantores e outros servidores do templo, não
poderiam ser tributados (7,24).

No dizer de Grabbe, toda esta generosidade deve ser examinada com muito
cuidado, pois oferecer um presente é uma coisa, outra bem diferente, é a quantidade
de riqueza pródiga que foi oferecida a Esdras, para que fossem celebrados cultos num
local muito distante. Em verdade, este não parece em nada com um decreto de um rei
persa, mas apenas ilusão de um apologista judeu.407

Depois das riquezas veio o poder político: Esdras foi encarregado de nomear
funcionários e juízes para julgar todas as pessoas na região de Ebir-nari, tanto aqueles
que conheciam a lei como aqueles que não a conheciam, e isto, de acordo com a
406
Lester L. Grabbe, A history of the Jews and Judaism in the second temple period: vol.1…, p.326.
407
Lester L. Grabbe, A history of the Jews and Judaism in the second temple period: vol.1…, p.327.
sabedoria da lei que estava em suas mãos (7,25-26). O curioso é que a sua autoridade
se estende por toda a satrapia. E segundo o próprio texto, não há nenhuma base para
que se limite o poder de Esdras somente ao contexto dos judeus. Qualquer um que
não obedeça deve ser punido conforme o caso. E a extensão desses poderes é
insinuado claramente em Esd 8,36, onde as ordens do rei são para serem entregues à
“sátrapas e a governadores da província do além rio”. É pouco provável que Esdras
tenha tido todo esse poder, embora o poder e o ofício de um sátrapa devessem variar
conforme sua localização.

No capítulo 8, onde se tem a descrição apenas alguns detalhes da viagem a


Jerusalém, chama a atenção o fato de Esdras não ter solicitado uma escolta militar
para conduzir toda a riqueza que conseguiram ajuntar. Por vergonha, escolheu
sacerdotes e proclamou um jejum conforme Esd 8,21-23. Segundo Grabbe, aqui a
história se torna incrível, pois tiveram que transportar 650 talentos de prata, mais 100
talentos de ouro e vários vasos caros para o templo. Procedendo às conversões,
constata-se que Esdras transportou três toneladas métricas de ouro e mais 19
toneladas de prata. O difícil nessa história é entender porque toda essa riqueza foi
destinada a uma localidade sem expressão alguma e o pior, escoltado apenas por 12
sacerdotes. Tanto que Heródoto chega a relatar que só a satrapia de Ebir-nari, num
determinado ano chegou a recolher em tributos a quantia de 350 talentos de prata.. 408

Nos capítulos 9 e 10, têm-se os episódios relativos ao casamento com “esposas


estrangeiras”. Provavelmente Esd 9 – 10 é uma criação a partir de Ne 9 – 10. Esdras ( -
10 teve um maior desenvolvimento do Ne 9 – 10. Esd 10, 18 – 44 contêm uma lista
daqueles se separam de suas esposas estrangeiras. Mas, de onde surgiu esta lista?
Será que esta lista teria sido uma criação do redator para favorecer a alguns
descendentes do grupo que retornou do exílio? Segundo Gunneweg (1985), esta lista
parece ter sido criada com base na lista que está em Esd 2//Ne 7. Isso adiciona suporta
à ideia de que Esd 9 – 10 é uma criação literária, que se utilizou de Ne 9 – 10 como
modelo, mas recorrendo também a outras fontes textuais. Nesse sentido, Esd 9 – 10
está intimamente relacionada com a teologia da terra, pois a posse da terra foi

408
Idem, p.328-329.
utilizada como justificativa para que se tomassem drásticas medidas contra os
“estrangeiros”.409

A partir desses dados, isto é, de que as narrativas em Esdras 7 – 10 tem muito


mais de invenção do que de um relato histórico, é interessante se perguntar pela
intenção do redator: no fundo da questão está a problemática da terra – a quem ela
pertence?

5.2.3.5 – Neemias

a) Neemias 5,1-13

O capítulo 5 do livro de Neemias, que é visto pelos estudiosos como que


fazendo parte de um conjunto maior, ou seja, das assim chamadas “Memórias de
Neemias”. Segundo Lester L. Grabbe existe um consenso geral de que esse memorial
talvez tenha sido feito pelo próprio Neemias e que, se mesmo alguém tão cético como
Gunneweg, acredita que de fato ele tenha existido, é porque esses dados merecem ser
levados em conta. Segundo Kellermann, há várias razões para postular tal fonte devido
à grande quantidade de material na primeira pessoa, uma situação incomum na
literatura bíblica.410

Ao que parece este capítulo 5 está deslocado em relação ao conjunto do bloco


das memórias de Neemias. Enquanto a tônica do conteúdo das memórias recai sobre
os inimigos e a reconstrução dos muros da cidade, a cena descrita no capítulo 5 foge
totalmente ao restante do conjunto. Nesse sentido, pode-se conjecturar que existe a
possibilidade deste capítulo 5 ter sido inserido dentro do “memorial de Neemias” por
algum dos grupos que estavam em luta pela conquista do poder. Trabalho com a
hipótese de que tenha sido o grupo sacerdotal que tenha feito este acréscimo, pois no
período em que foi realizado esse acréscimo a situação dos sacerdotes no templo
devia ser de grandes penúrias.

409
Lester L. Grabbe, A history of the Jews and Judaism in the second temple period: vol.1…, p.314-315.
410
Idem, p.78-79. Segundo T. Reinrnuth (2002), que é quem mais recentemente fez uma análise desse
material, chega à conclusão de que existe grande probabilidade desse memorial ter existido.
Mas, independente disso, o texto é muito ilustrativa no sentido de que retrata
muito da realidade social. O cenário que se tem é o de que o campesinato está
passando por um período de grande exploração por parte da aristocracia. Neemias na
qualidade de governador ouve o clamor dos empobrecidos e humilhados por tal
situação e, ao que o texto parece indicar, chama seus concidadãos à responsabilidade,
pois, estes que sofrem, eram também judeus como eles.

Deixemos que o próprio texto nos coloque dentro da cena:

Surgiu então uma forte queixa do povo e de suas mulheres contra seus irmãos
judeus. Alguns diziam: “Nossos filhos, nossas filhas e nós mesmos somos
numerosos. Gostaríamos de ter trigo para comer e viver!”. Outros diziam:
“Nossos campos, nossas vinhas e nossas casas, damo-las em hipoteca para
termos trigo durante a época da fome”. Outros ainda diziam: “Para o tributo do
rei, tomamos dinheiro emprestado, empenhando nossos campos e nossas
vinhas. No entanto, nossa carne é semelhante à carne dos nossos irmãos, e
nossos filhos são semelhantes aos deles. E contudo somos obrigados a entregar
nossos filhos e nossas filhas à servidão, e algumas de nossas filhas já são
escravas; nada podemos contra isso; nossos campos e nossas vinhas pertencem
a outros!” (Ne 5,1-5)

A partir da leitura deste texto é possível perceber que ele tem uma grande
abrangência, pois os problemas que saltam aos olhos de qualquer observador são
tanto de ordem econômica, quanto de ordem social, política e, principalmente,
ideológica.

Milton Schwantes nos dá uma dica preciosa quando alerta para os equívocos que
podem ser cometidos ao se fazer uma leitura descontextualizada:

[...] interpretar não é só reler o que está escrito. Ao interpretar também necessito
avaliar a trajetória social percorrida pelos textos. Uma leitura que reproduz o texto
final tende a nivelar e a perder a postura dialética. Não se trata de desfazer a validade
de genealogias, itinerários e promessas, mas de validá-los, em sua contribuição
específica, no contexto da especificidade dos demais textos, ou partículas das
narrativas. Exegese não são só relê sentidos, igualmente perscruta a história; dá-se na
dinâmica entre sentidos e história.411

411
Milton Schwantes, A família de Sara e Abraão, São Paulo, Paulinas, p.38.
De fato, Milton tem razão quando reforça a necessidade que se tem de avaliar
a trajetória social percorrida pelo texto, mas no caso do texto acima, ele se propõe a
ser uma releitura de fatos ocorridos quase uma centena de anos antes. Se os fatos
aqui narrados foram verídicos, não tem grande importância. O importante consiste no
presente a quem ele foi dirigido. Ao que parece, o texto quer propor uma nova
relação, particularmente, entre a aristocracia e o campesinato. No fundo, da questão
estavam o sacerdócio e o templo que necessitavam do campesinato, pois sendo
numericamente muito superior ao grupo que detinha o poder econômico na província
de Judá, isto é, a aristocracia, eram eles que de fato sustentavam o templo com seus
sacrifícios, oferendas e dízimos. Eram eles que estavam sendo integrados dentro de
um novo sistema de crença que possibilitaria a justificação, afirmação e legitimação do
grupo sacerdotal como poder dominante em toda a região da província de Judá. Aos
olhos do campesinato o grupo sacerdotal aparecia como extremamente relevante do
ponto de vista da mediação, tanto entre a divindade e a sociedade em geral, como
também, de forma bem particularizada, entre o campesinato e a aristocracia, pois,
aparentemente, tinham a classe sacerdotal ao seu lado, contra a aristocracia.

No versículo 5: No entanto, nossa carne é semelhante à carne dos nossos


irmãos, e nossos filhos são semelhantes aos deles, o texto dá a entender que quem
estava reclamando da situação tinha a mesma descendência daqueles que estavam
explorando. Como já visto anteriormente, aqueles que haviam ficado na província de
Judá e tomado posse das terras desocupadas pelos deportados, foram discriminados
pela golá, isto é, por aqueles que retornaram do exílio. Segundo o novo sistema de
crença que estava sendo implantado, os remanescentes, ou seja, os sobreviventes que
escaparam ao massacre babilônico e haviam dado início a um processo de
retribalização em toda a província foram considerados como impuros, indignos de
fazer parte daquele novo projeto que o próprio deus estava realizando. Por isso, todas
aquelas listas genealógicas412 foram criadas com o fim de justificar, por um lado, a

412
Conforme Robert R. Wilson em Genealogy and History in the Biblical World, citado por Lester L.
Grabbe, A history of the Jews and Judaism in the Second Temple Period: volume 1..., p.80., estudos de
genealogias nas sociedades modernas mostram que elas podem ter outras funções do que ser um
simples registro de descendência de sangue. Elas podem ser fruto de relações socais em crise ou que
contenham mensagens teológicas. Segundo o próprio Grabbe, as listas em Esdras e Neemias tem muitas
vezes, um propósito teológico.
quem pertenciam aquelas terras que haviam sido ocupadas pelo campesinato e por
outro, descredenciá-los, caracterizando-os com o termo pejorativo de “povo/gente da
terra”413.

É bem possível que estes homens e mulheres que estavam lutando por sua
sobrevivência, bem como também pela sobrevivência de seus filhos e filhas, sejam os
mesmos que também tiveram que enfrentar a ideologia do projeto sacerdotal.

A economia de todo esse período como nos informa Grabbe, foi agrária. O
comércio teve um importante nicho em cada período, mas foi sempre muito
secundário à agricultura. Apesar de alguns desenvolvimentos tecnológicos ao longo
dos séculos, o trabalho sobre a terra mudou pouco no Oriente Próximo (e em grande
parte do mundo Mediterrâneo) ao longo de vários milênios. Os métodos agrícolas
eram primitivos e a mão de obra intensiva, gerando em média apenas um pequeno
excedente. A grande maioria da população – campesinato – estava empregada em
atividades agrárias.414

Apesar de Lester Grabbe colocar o contexto de Ne 5 em meados do século V


a.C., o que eu não concordo, pois no início do século V a.C., a província de Judá era
uma terra de ninguém, ou seja, não havia ainda um controle de fato sobre suas terras.
Nesse período ainda se estava no meio do processo de retribalização que deve ter ido
até fins do século IV a.C.. Grabbe afirma que as estimativas da população de Judá
indicam apenas um pequeno número de habitantes. Judá deve ter sido uma pequena
província, e que não havia muitas pessoas habitando por lá, sugerindo assim que devia
haver pouca terra disponível para cultivo.415

Esse dado levantado por Grabbe, nos faz sustentar a hipótese de que Ne 5 é
acréscimo ao conjunto designado por “Memorial de Neemias” e que deve ter sido feito
num período bem posterior, isto é, no período grego. Outro dado do próprio texto que
nos ajuda nesta argumentação é quanto à realidade da escravidão, ou seja, do

413
Em Ageu 2,4 “Podo da terra” tem uma conotação bem diferente da que é encontrada em Esdras e
Neemias onde são, de certa forma, demonizados. Em Ageu parecem fazer parte da comunidade.
414
Lester L. Grabbe, A history of the Jews and Judaism in the Second Temple Period: volume 1 – Yehud: A
history of the Persian Province of Judah, New York, T&T Clark International, 2004, p.191.
415
Lester L. Grabbe, A history of the Jews and Judaism in the Second Temple Period: volume 1, p.207.
trabalho escravo nas grandes fazendas e latifúndios: algumas de nossas filhas já são
escravas.

Segundo Finley (1985) e Whittaker (1980), citados por Grabbe, a espinha dorsal
da economia na província de Judá do período persa ainda era o agricultor ou o
trabalhador livre. No período grego e romano haviam latifúndios, que eram grandes
propriedades com trabalhadores escravos.416

Já para Dandamev (1984) e Lukonin (1989), citados por Grabbe, em ambas as


partes orientais e ocidentais do mundo mediterrâneo, havia um espectro completo de
trabalhadores agrários, todo um caminho de alienação fiduciária de escravos para
libertar camponeses. A escravidão era característica da área da Babilônia e de outros
centros culturais da Pérsia, bem como, talvez, de muitas das áreas gregas da Ásia
Menor. No entanto, mesmo aqui a economia não foi baseada principalmente no
trabalho escravo: o trabalho escravo ainda não desempenha o papel principal na
economia, nem eram os escravos amplamente utilizados em trabalho agrícola em
grandes propriedades, seja de fazendeiros ou do rei. Além disso, argumenta Zaccagnini
(1983), que enquanto alguns artesãos eram escravos (tecelões, por exemplo), a
situação geral era de que os artesãos eram indivíduos livres, mas geralmente
dependentes do palácio, portanto, muito semelhantes aos servos na área agrária. 417

A nível de conclusão, Grabbe, citando Hamel (1990) diz que ninguém, de fato,
saúda a cobrança de impostos, mas que sempre, em algum momento, queixam-se,
mas tentar quantificar até que ponto esta cobrança tornou a vida das pessoas se torna
muito difícil. A maioria das pessoas vivia em nível de subsistência e seria considerado,
segundo os padrões modernos, uma situação de opressiva pobreza, de extrema
miséria. Homens ou mulheres sabem-se pouco sobre eles. Não havia classe média para
falar, mas apenas um grande número de pobres e uma minoria de ricos. A diferença de
riqueza entre as classes altas e as massas era enorme. Ainda assim, o que se chama de
pobreza extrema parece ter sido amplamente aceito na Antiguidade.418

416
Idem, p.193.
417
Idem, ibdem.
418
Lester L. Grabbe, A history of the Jews and Judaism in the Second Temple Period: volume 1…, p.193-
194.
E é dentro desse contexto que a religião foi utilizada como instrumento de
justificação e legitimação da riqueza como portadora da bondade divina e da pobreza
como fruto, no contexto do judaísmo, da falta de observância das leis presentes na
Torá.

b) Neemias 10
Em Ne 10 pode-se detectar uma forte influência num primeiro plano do Livro
do Pentateuco que tem por sua vez a “lei do templo” de Ez 40 – 48 como background.

Em Ne 5 o texto deixa entrever que a província de Judá como um todo estava


passando por grandes dificuldades. Em vista da construção acelerada dos muros, os
contrastes apareceram de modo intenso e aberto, conforme salienta Kippenberg,
citado por Crusemann419.

Ne 10 trás uma série de leis que, segundo o texto, foram assumidas pelo povo
como um compromisso por escrito. São as seguintes:

 Não realizar casamentos mistos (v. 31);


 Guardar o sábado (v. 32a);
 Guardar o ano sabático, com o perdão das dívidas (v. 32b);
 Contribuir com um terço de um siclo anualmente como imposto para o
templo, para manter os pães da proposição bem como os sacrifícios
coletivos públicos, inclusive os sacrifícios pelos pecados do povo (v. 33-34);
 Abastecer o templo regularmente de lenha (v. 36);
 Entregar as primícias (v. 36);
 Entregar os primogênitos (v. 37);
 Ofertar cereal, frutas, vinho e azeite, por parte dos sacerdotes (v. 38a);
 Dar o dízimo (v. 38b-40a);
 Cuidar do templo (v. 40b).

Como se pode notar, o texto reflete nitidamente a influência do livro do


Pentateuco nos redatores de do livro de Neemias, que assim como em Esdras,

419
Frank Crusemann, A Torá…, p.464.
refletem igualmente o contexto histórico do seu tempo, ou seja, a agenda de ambos os
grupos na tentativa de assumir o controle político e religioso da província de Judá.

Diante deste texto se pode concluir que, assim como os redatores da narrativa
sacerdotal presente no Pentateuco tinham como objetivo a sua justificação e
legitimação à frente da comunidade, o texto de Neemias vem reforçar esse ideal de
modo etiológico, isto é, relegando a um passado, que mesmo que não tão distante, um
compromisso já assumido por toda o povo, isto é, pelo campesinato.

Nesse sentido é claro perceber que a província de Judá estava sob grande
pressão social e política. De um lado estava a aristocracia pressionando o campesinato
para que saldassem as suas dívidas (cf. Ne 5,1-5) e do outro a classe sacerdotal que
também pressionava o mesmo campesinato, pois somente eles poderiam fazer com
que o projeto sadocita saísse do papel, isto é, funcionasse adequadamente segundo os
interesses da classe sacerdotal.

O que deve ser percebido é que a ideologia sacerdotal foi sendo sutilmente
instalada no inconsciente, no imaginário do campesinato como algo naturalmente
normal e, acima de tudo, querido por Deus, pois não podendo resistir a um
compromisso assumido anteriormente por seus pais, viu-se obrigado a dar o devido
suporte para que o regime teocrático fosse paulatinamente implantado.

5.2.4 – 1ª e 2ª Crônicas

O livro de Crônicas, 1º e 2º, tem recebido uma considerável atenção nesses


últimos tempos. Alguns dos novos estudos são muito, de fato, muito importantes para
um estudo histórico mais detalhado. A datação de Crônicas tem variado desde o início
do período persa até o tempo dos Macabeus. A dificuldade é que não existem critérios
claros fazendo com que os estudiosos recorram a meios indiretos, que são
frequentemente muito subjetivos. Assim, Martin Noth (1987: 69 – 73) argumenta que
o livro foi escrito no período helenístico. Vários estudos da década de 70 tendem a
favorecer o período posterior Aquemênida (Japhet 1971: 533 – 34); Williamson 1977:
83 – 86). Embora Steins tenha datado o livro para o período dos Macabeus, há certo
consenso para a datação de Crônicas para o início do terceiro século (Japhet 1993: 27 –
28; Albertz 1994: 545; Peltonen 2002: 261 – 71).420

Os livros não parecem estar essencialmente preocupados com os gregos, mas


sim em se concentrar em questões que ficaram do período persa, pois assim, nos
dizem algo dobre a comunidade naquele momento. Um dos problemas de Crônicas é
de se saber se 1 Cr 1 – 9 é parte integrante da composição. O problema com a
utilização de Crônicas para fins históricos é que a maior parte do material é uma
versão da história de Israel sob a monarquia, em paralelo com Samuel – Reis. A maioria
dos estudiosos vê Samuel – Reis como a fonte principal. O acesso à história pós-exílica
tem de ser encontrada de forma indireta. Uma área onde tal coisa parece existir é em
relação ao templo: há um amplo consenso de que Crônicas reflete a estrutura do
sacerdócio e do funcionamento do culto no templo no fim do período persa ou início
do período grego. Há algumas indicações de que os profetas do culto no templo
estavam sendo absorvidos pelas fileiras dos cantores levitas do templo. Assim, o livro
parece indicar de modo fundamental que a música e o canto estavam tendo grande
importância no culto.421

Quanto a 1 Cr 1 – 9, no tocante à questão das genealogias, elas perecem refletir


a estrutura e padrões de assentamento da comunidade pós-exílica. T. Willi argumenta
que essas genealogias são “listas de cidadania” (Burgerrechtslisten) com Judá e
Judaísmo sendo os continuadores de toda a tradição de Israel. As genealogias das
tribos não são apenas um resumo da tradição mais antiga, mas representam uma
mensagem renovada para os atuais habitantes de Judá, isto é, para o campesinato.422

5.3 – O sistema sacrifical sacerdotal como eficiente sistema tributário

A partir do conceito de “modo de produção” quero demonstrar que toda a


estrutura sacrifical criada pelo grupo sacerdotal jerusolimitano foi uma estrutura que
ao invés de solucionar os problemas normais relativos à vida de toda e qualquer

420
Lester L. Grabbe, A history of the Jews.. Vol.1.., p.98.
421
Lester L. Grabbe, A history of the Jews.. Vol.1.., p.98-99.
422
Idem, p.99.
sociedade, trouxe, em verdade, muito mais dificuldades e sofrimento. Portanto, é de
se desconfiar desse deus apresentado pela narrativa sacerdotal como o grande deus
libertador, que livrou o povo das terras do Egito para subjuga-lo ainda mais à
autoridade dos sacerdotes.

O conceito de “modo de produção”, que na elaboração da teoria marxista,


apresenta-se como elemento central, possibilita analisar de que modo diferentes
sociedades migram de um modelo de organização social para outro. Não deixa de ser
uma tentativa de interpretação da história, pois revelam quais são as estruturas
essenciais dentro de uma dada sociedade, explicando os seus fundamentos e
extraindo as leis de sua evolução. Retomando uma hipótese, já formulada antes de
mesmo de Marx e Engels, de que “história é a história da transição de formas de
organização social sem classes às sociedades de classe”, o judaísmo nos proporciona
excelente exemplo de um modelo de sociedade que fez a passagem de um modo de
produção a outro, ou seja, do sistema de produção tribal ao sistema de produção
tributário.423

Se, de fato, se pode falar num processo de aparente retribalização da província


de Judá no período pós-exílico, se pode afirmar também que, com o retorno do grupo
dos deportados, iniciou-se mais uma vez um processo de mudança na configuração
social da província de Judá, que não se processou de modo imediato, mas que durou
pelo menos dois séculos até se solidificar definitivamente, mediante o recurso das
escrituras como forma de legitimação da classe sacerdotal jerusolimitana sobre o
campesinato judaíta.

Conforme outras tantas experiências anteriores, esta também não deixou de


ser igualmente traumática para as pessoas que habitavam as regiões da província. Os
grupos sociais, estabelecidos em aldeias e clãs, tendo fugido do raio de ação dos novos
senhores imperiais, não conseguiram resistir à sua influência externa por muito tempo.
Foram submetidos a um novo regime de vida imposto pela classe sacerdotal
jerusolimitana. Abandonando seu peculiar modo de vida, cujo fundamento estava nas

423
François Houtart, Religião e modos de produção pré-capitalistas, São Paulo, Edições Paulinas, 1982,
p.13-14.
relações de parentesco, passou a ter que sustentar economicamente o templo e toda a
sua estrutura de pessoal a ele ligada, isto é, ao clero sacerdotal jerusolimitano.

Por “modo de produção”, conforme salienta François Houtart, pode-se defini-lo


como sendo:

[...] a representação simplificada, ideal, de diversas formas de organização social, isto


é, de natureza dos elementos que as compõem, de suas relações e das bases
estruturais de sua própria transformação.424

Como poderá ser constatado, o modo de produção imposto a toda a província


de Judá foi o sistema tributarista, isto é, sistema no qual todo habitante foi obrigado
por lei a ter que constantemente, além de pagar os pesados tributos cobrados pelo
império persa, ter que doar também, seja em forma de oferta ou sacrifícios, parte de
sua produção. Nesse sentido, como afirma Nancy Pereira Cardoso, proceder a uma
releitura do corpo de textos produzidos neste contexto, ganha um novo colorido se for
feito em “chave econômica”, pois:

[...] recoloca a discussão sobre as relações entre economia e religião no antigo Israel,
exigindo um redimensionamento do metabolismo produtivo-reprodutivo das análises
de modo de produção tributário que são utilizadas. A oferta/sacrifício como
ritualização do processo de criação de valor não pode ser analisada na superfície dos
mecanismos de manutenção da economia do templo e do clero, mas deve possibilitar
o acesso às formas sociais de organização da produção e reprodução da vida
material.425

De fato, o judaísmo, enquanto sistema de governo político-hierocrático deixa


entrever que o sistema religioso foi o sistema dominante em toda a província.
Utilizando as categorias pertinentes ao materialismo histórico, é possível afirmar que o
judaísmo preenche satisfatoriamente todos os seus pressupostos.

Desse modo, afirmar que a estrutura religiosa se configura como a


infraestrutura que deu sustentação a toda as demais estruturas criadas pela classe
sacerdotal, não está fora de propósito, pois que, apoiadas na estrutura religiosa, todas

424
Idem, p.14.
425
Nancy Cardoso Pereira, “Fabricação do corpo e economia: produção e reprodução de valor no
Levítico”, em Revista de Interpretação Bíblica latino-Americana, nº 51, Economia: solidariedade e
cuidado, Petrópolis, Vozes, 2005/2, p.35.
as demais estruturas, ou seja, a estrutura econômica, jurídica e política, deram
sustentação aos seus objetivos – controle do templo (poder religioso) e irrestrito poder
político-social.

Mas, se a infraestrutura religiosa continuou sendo a estrutura dominante


dentro do judaísmo, nada nem ninguém impediu que a estrutura econômica fosse a
estrutura determinante em última instância. Assim, quem teria sido capaz de colocar-
se contra o sistema imposto pelos sacerdotes, se era Deus quem os legitimava?
Portanto, proceder a uma leitura dos textos deste período em “chave econômica”
como sugere Nancy Cardoso, é crucial para que se possa entender em que nível se
processou as relações de poder entre o campesinato judaíta e a classe sacerdotal
jerusolimitana.

Conforme pode ser constatado nas linhas seguintes são inúmeras as


prescrições nas quais os textos explicitam o valor e a quantidade a ser ofertada no
templo:

 Quando um homem ou uma mulher se tornam infiéis ao Senhor cometendo um


dos pecados em que costuma cair todo ser humano. Confessarão o pecado que
cometeram; o culpado restituirá àquele a quem prejudicou o objeto e mais um
quinto de seu valor. Se a vítima não tiver parente a quem se possa restituir o
objeto do delito, este deverá ser restituído ao Senhor, isto é, ao sacerdote, sem
contar o carneiro expiatório. (Nm 5,6-10)
 Quando um homem ou uma mulher se comprometer por voto de nazirado a
consagrar-se ao Senhor o nazir [...] se alguém morrer de morte súbita perto
dele, tornando impura sua cabeça consagrada, ele raspará a cabeça no dia de
sua purificação [...] levará ao sacerdote duas rolas ou dois pombinhos [...] e
levará um cordeiro de um ano como sacrifício de reparação. Eis a lei referente
ao nazir: no dia em que se completa o tempo de seu nazirado, ele [...] apresenta
uma oferenda ao Senhor: um cordeiro de um ano sem defeito, em holocausto,
uma ovelha de um ano, em sacrifício pelo pecado, e um carneiro sem defeito,
em sacrifício de paz; um cesto de pão sem fermento, feito de flor de farinha,
bolos amassados com azeite, e obreias sem fermento, untadas com azeite (Nm
6,2-15)
 Fala aos filhos de Israel e dize-lhes: uma vez que tiverdes entrado na terra à
qual vou conduzir-vos, quando comerdes do pão da terra, reservareis um
tributo para o Senhor. Como primícias de vossas fornadas, reservareis um pão
a título de tributo; reservá-lo-eis do mesmo modo como o tributo da colheita.
Das primícias das vossas fornadas, dareis um tributo ao Senhor; e assim por
todas as gerações. (Nm 15,17-21)
 Quando, por inadvertência faltardes contra um desses mandamentos que o
Senhor ditou a Moisés [...] a comunidade inteira oferecerá ao Senhor um
novilho em holocausto de odor aplacável, com a oferenda e a libação requerida
segundo o costume, assim como também um bode em sacrifício pelo pecado.
[...] Mas a pessoa que age deliberadamente, seja um nativo ou um migrante,
comete uma injúria contra o Senhor; tal pessoa será cortada de seu povo. Visto
que desprezou a palavra do Senhor e violou os seus mandamentos, é mister que
seja eliminada. (Nm 15,22-31)

Se como afirma Nancy Cardoso Pereira, numa citação logo acima, a


oferta/sacrifício como ritualização do processo de criação de valor não pode ser
analisada na superfície dos mecanismos de manutenção da economia do templo e do
clero, mas deve possibilitar o acesso às formas sociais de organização da produção e
reprodução da vida material. De fato, foi bem isso que se sucedeu dentro da província
de Judá: uma reestruturação da sociedade, uma reorganização do modo de produção
bem como também das relações sociais de produção.

Nesse sentido, se pode afirmar que a caracterização do modo de produção


tributário é dada pelo reconhecimento de como se processa a reprodução das relações
sociais de produção dentro da província. De acordo com a estrutura estabelecida pelo
novo sistema implantado – sistema político-religioso –, cria-se uma relação de extrema
dependência do campesinato para com a classe sacerdotal. Esta se tornou a
característica principal das relações sociais de produção dentro da província de Judá.

Tendo presente o valor e o espaço que a divindade – criada a imagem e


semelhança dos sacerdotes426 – foi ocupando no imaginário social de todos os
habitantes da província, não demorou muito para que o projeto sacerdotal sadocita
fosse implantado.

Mediante esse projeto de caráter político-religioso, instaurou-se não só a


divisão do trabalho, mas o que foi pior, a divisão da sociedade em classes sociais.

426
Conforme argumenta Henri Desroche, O marxismo e as religiões, Rio de janeiro, Paz e terra, 1968,
p.27-30. Citando L. Feuerback, “Não foi a necessidade de consolação religiosa, mas a dificuldade nascida
da ignorância” que tem levado os seres humanos de todos os tempos a procurar uma explicação para a
vida e a para morte. “De uma maneira absolutamente análoga, é pela personificação das potências
naturais que nasceram os primeiros deuses...”. Desse modo o autor conclui que foi “em um
determinado estágio porque passam todos os povos civilizados, ele as assimila, personificando-as. Foi
este instinto de personificação que criou deuses em toda parte”.
Enquanto aos sacerdotes ficou reservado o trabalho de serem os mediadores,
autorizados e consagrados pela divindade, entre Deus e o povo, ao campesinato restou
trabalhar a terra para dela tirar seu sustento bem como também o necessário para
oferecer a deus para assim estar em estado de pureza e poder sonhar com sua
benevolente bondade.

Nesse sentido, conforme argumenta Nancy Cardoso Pereira, as citações feitas


acima – dos livros de Números e Levítico – deveriam ser vistas como justificadoras e
legitimadoras de uma nova ordem, ou seja, como:

[...] um momento de transição das antigas formas rituais de produção de valor para
um tecido social-novo que, a partir da religião, faz da fabricação/controle social dos
corpos – pessoal e social – o mecanismo básico de produção e reprodução de valor,
infraestrutura fundamental para a consolidação de uma forma social de produção: a
escravidão.427

O Documento Sacerdotal/Pentateuco foi, de fato, um projeto idealizado pelo


império persa, conforme pensa Max Weber (Hans G. Kippenberg).

“Se não me escutardes e não puserdes em prática todos os meus


mandamentos, se rejeitardes as minhas leis, se tiverdes aversão aos meus costumes a
ponto de não por em prática todos os meus mandamentos, quebrando assim a minha
aliança, então, eis o que farei:”

 Mobilizarei contra vós, para apavorar-vos, o definhamento e a febre,


que esgotam a vista e acabam com a vida

 Voltar-me-ei contra vós outros, e sereis feridos diante de vossos


inimigos; os que vos aborrecerem assenhorear-se-ão de vós e fugireis,
sem ninguém vos perseguir. Se ainda assim com isto não me ouvirdes,
tornarei a castigar-vos sete vezes mais por causa dos vossos pecados

 Quebrantarei a soberba da vossa força e vos farei que os céus sejam


como ferro e a vossa terra, como bronze. Debalde se gastará a vossa
força; a vossa terra não dará a sua messe, e as árvores da terra não
darão o seu fruto. E, se andardes contrariamente para comigo e não me
quiserdes ouvir, trarei sobre vós pragas sete vezes mais, segundo os
vossos pecados

427
Nancy Cardoso Pereira, “Fabricação do corpo..., p.35-36.
 Porque enviarei para o meio de vós as feras do campo, as quais vos
desfilharão, e acabarão com o vosso gado, e vos reduzirão a poucos; e
os vossos caminhos se tornarão desertos. Se ainda com isto não vos
corrigirdes para volverdes a mim, porém andardes contrariamente
comigo, eu também serei contrário a vós outros e eu mesmo vos ferirei
sete vezes mais por causa dos vossos pecados

 Trarei sobre vós a espada vingadora da minha aliança; e, então, quando


vos ajuntardes nas vossas cidades, enviarei a peste para o meio de vós, e
sereis entregues na mão do inimigo. Quando eu vos tirar o sustento do
pão, dez mulheres cozerão o vosso pão num só forno e vo-lo entregarão
por peso; comereis, porém não vos fartareis

 Se ainda com isto me não ouvirdes e andardes contrariamente comigo,


eu também, com furor, serei contrário a vós outros e vos castigarei sete
vezes mais por causa dos vossos pecados. Comereis a carne de vossos
filhos e de vossas filhas. Destruirei os vossos altos, e desfarei as vossas
imagens do sol, e lançarei o vosso cadáver sobre o cadáver dos vossos
deuses; a minha alma se aborrecerá de vós (Lv 26,14-29)

 Se teu irmão, filho de tua mãe, ou teu filho, ou tua filha, ou a mulher do
teu amor, ou teu amigo que amas como à tua alma te incitar em
segredo, dizendo: Vamos e sirvamos a outros deuses, que não
conheceste, nem tu, nem teus pais, dentre os deuses dos povos que
estão em redor de ti, perto ou longe de ti, desde uma até à outra
extremidade da terra, não concordarás com ele, nem o ouvirás; não
olharás com piedade, não o pouparás, nem o esconderás, mas,
certamente, o matarás. A tua mão será a primeira contra ele, para o
matar, e depois a mão de todo o povo. Apedrejá-lo-ás até que morra,
pois te procurou apartar do SENHOR, teu Deus, que te tirou da terra do
Egito, da casa da servidão (Dt 13,7-11)

 São estes os mandamentos que o SENHOR ordenou a Moisés, para os


filhos de Israel, no monte Sinai (Lv 27,34)

5.4 – Uma releitura da ideologia sacerdotal à luz de Michel de Certeau

De um determinado ponto de vista, não se trata de construir nada, senão que,


desconstruir. Proceder a uma análise histórico-crítica das relações de poder entre o
campesinato judaíta e a classe sacerdotal jerusolimitana implica em descortinar, em
desvelar a trama que está por trás das narrativas construídas de muitos textos bíblicos.
Mas, por outro lado, se trata sim de construir aquela parte esquecida – omitida – da
história de que nos fala Rigoberta Menchú, daquele real de que nos falará em seguida
Michel de Certeau. Sim, a proposta é também de construção, de escrever o não dito da
realidade campesina, de encontrar no verso – da narrativa bíblica – o reverso de sua
triste e dolorosa realidade: suas lutas para sobreviverem diante dos avanços imperiais,
o drama de terem que renunciar aos seus mais nobres valores, costumes, enfim, à sua
identidade cultural.

A tese que eu defendo e procurarei demonstrar é a de que as relações de


poder entre o campesinato judaíta e a classe sacerdotal jerusolimitana foram tecidas
de tal modo, que as relações de poder claramente se transformaram em relações de
dominação e exclusão para os dominados – campesinato judaíta –, pois, os
dominadores – classe sacerdotal jerusolimitana – que tendo na escritura hebraica seu
principal instrumento de empoderamento e legitimação de seu status quo, conforme
acentuou Max Weber, “domesticaram os dominados”428.

Segundo Michel de Certeau enfatiza em seu livro “A Escrita da História”:

[...] recusar a ficção de uma metalinguagem que unifica o todo é deixar aparecer os
procedimentos científicos limitados e aquilo que lhes falta do real ao qual se referem.
É evitar a ilusão necessariamente dogmatizante, própria do discurso que pretende
fazer crer que é “adequado” ao real, ilusão filosófica oculta nos preâmbulos do
trabalho historiográfico e da qual Schelling reconheceu maravilhosamente a ambição
tenaz: “O relato dos fatos reais é doutrinal para nós”. Este relato engana porque
acredita fazer a lei em nome do real.429

Diante dessa observação de Certeau, não é possível fechar-se à realidade de


que – quase na totalidade da obra do AT – existe, de fato, uma “metalinguagem que
unifica o todo”. Citando Schelling, Certeau desconcerta quando diz que aceitamos de
bom grado a ilusão de que “relatos de fatos reais são doutrinais para nós”. E o que não
dizer do impacto desses relatos na consciência de homens e mulheres que viveram a
2500 anos atrás, à mercê de um mundo divinamente encantado.

Desse modo, partindo daquilo que a “nova história” caracterizou como sendo
uma história a ser contada a partir do ponto de vista dos dominados, isto é, daqueles
que sempre estiveram por baixo, daquele “real” de história que sempre foi omitido,

428
Pierre Bourdieu, A economia das trocas simbólicas, São Paulo, Editora Perspectiva S.A.,1982, p.32.
429
Michel de Certeau, A escrita da história, Rio de janeiro, Forense-Universitária, 1982, p.10-11.
conforme os interesses escusos dos dominadores, daqueles que sempre estiveram por
cima.

Com o fim dos discursos universais e seguindo uma das tendências filosóficas
que marca profundamente a contemporaneidade da reflexão, como novo norteador
ético, o corpo é assumido atualmente como critério para julgamento. Mas conforme
preconiza os arautos da “nova história” nem sempre foi assim. Estudar a história do
corpo humano, que é constantemente afetado de maneiras variadas, tanto pela
cultura quanto pela sociedade, jamais deveria ser encarado sem levar em conta as
considerações (culturais) da experiência e da expressão na linguagem e na ideologia.430

Para a Nova História é de importância básica uma compreensão do local


subordinado, destinado ao corpo nos sistemas de valor religioso, moral e social da
cultura, tanto do presente como do passado. Se há como afirma Roy Porter, “um
enorme campo de ação para os historiadores políticos para serem mais sensíveis à
realidade do corpo, produzidas pela autoridade do estado sobre os corpos de seus
súditos”431, o judaísmo se apresenta como um valioso objeto de estudo, pois, como
religião do corpo, de corpos marcados com o sinal da morte, de corpos marginalizados
e excluídos da vida, de corpos prostituídos e manipulados segundo os interesses de
outros corpos, corpos vergados pela fome e pela dureza do trabalho escravo diante de
corpos, aparentemente, emoldurados pelas ideológicas bênçãos dos céus.

Não foi por menos que Michel de Certeau inaugurou seu livro analisando
aquela pintura de Jan Van der Straet, onde o artista pintou o descobridor que vindo do
mar, e tendo atrás de si as naus que levaram muitos de nossos tesouros, se encontra a
“América Índia, mulher estendida, nua, presença não nomeada da diferença, corpo
que desperta num espaço de vegetações e animais exóticos”. Mas, conforme aponta o
próprio Michel de Certeau:

[...] o que assim se disfarça é uma colonização do corpo pelo discurso do poder. É a
escrita conquistadora. Utilizará o novo mundo como uma página em branco (selvagem)
para nele escrever o querer ocidental. Transforma o espaço do outro num campo de
expansão para um sistema de produção. A partir de um corte entre um sujeito e um

430
Roy Porter, “História do Corpo”, em Peter Burke, A escrita da história, 2ª Reimpressão, São Paulo,
Editora UNESP, 1992, p.291-326.
431
Michel de Certeau, A escrita da História..., p.325.
objeto de operação, entre um querer escrever e um corpo escrito (ou a escrever)
fabrica a história ocidental.432 (o grifo é meu)

De fato, o que se disfarça no discurso divino repleto de moralidade, de


prescrições e proscrições, é a colonização da mente, num primeiro momento, para em
seguida proceder à colonização do corpo, colonização essa que transforma o corpo do
outro num excelente “campo de expansão para um sistema de produção”.

Daí que o autor se pergunta: “Que aliança é esta entre a escrita e a história?” E
responde, dizendo: “Ela já era fundamental na concepção judaico-cristã das
Escrituras”.433

Este “discurso do poder” do qual nos fala Certeau, logicamente tem a ver com
os diferentes discursos, mas aqui, particularmente no contexto desta tese, com os
discursos presentes na escritura judaico-cristã. Segundo o próprio Certeau estes
discursos tem mais “aspecto de fabricação” e não mais de leitura ou interpretação. O
que está por trás é claramente um “problema político” e em jogo, a “questão do
sujeito (do corpo e da palavra enunciadora), questão reprimida ao nível da ficção ou
do silêncio pela lei de uma escrita científica”.434

[...] Quanto melhor se vê a que serve e como atua o religioso no seio do social, menos
se é tentado a igualar o social ao religioso. Quanto melhor se compreende a história
resolutamente disposta na mente, em que sentido a religião constituiu, em quase toda
a duração das sociedades humanas, o elemento essencial de seu dispositivo político e
como que a matéria da ligação entre seus membros, mais nos deligamos do mito de
sua pretensa necessidade trans-histórica.435 (o grifo é meu)

[...] Nada de despossessão mais completa e mais estrita do que aquela que garante a
relação com a verdade instituída em outro tempo, tempo de antes, tempo da origem,
uma vez por todas terminado, povoado de seres, heróis ou ancestrais, de outra
estatura que não a nossa, e tempo cuja realidade presente não constitui, e não pode
constituir, senão uma cópia conforme e uma repetição exaustiva. Sempre fizemos
assim, isso nos vem da origem: a fórmula parece benigna em seu tradicionalismo; ela
é, no entanto, aquela da alteridade religiosa máxima.436 (o grifo é meu)

432
Idem, p.9-10.
433
Michel de Certeau, A escrita da História..., p.11.
434
Idem, ibdem.
435
Marcel Gauchet, A democracia contra ela mesma, São Paulo, Radical Livros, 2009, p.58.
436
Idem, p.71.
5.5 – O judaísmo à luz da teoria da etnicidade.

Outro instrumental oriundo das ciências humanas que possibilita uma


compreensão ainda mais aprofundada das relações sociais estabelecidas em Israel pela
classe sacerdotal jerusolimitana, se constitui na teoria da etnicidade, que tem em
Fredrik Barth, seu mais renomado teórico, pois se pode falar numa teoria da
etnicidade antes de Fredrik Barth e numa outra teoria da etnicidade pós Fredrik Barth.

A grande contribuição de Barth à teoria da etnicidade é quanto à detecção e a


elucidação do valor que representam as “fronteiras étnicas” entre os diferentes grupos
sociais que compõe uma determinada formação social.

Para Barth, etnicidade pode ser definida como sendo:

[...] forma de organização social, baseada na atribuição categorial que classifica as


pessoas em função de sua origem suposta, que se acha validada na interação social
pela ativação de signos culturais socialmente diferenciadores.437

Conforme Poutignat resume, o campo designado pelo conceito de etnicidade é


aquele do estudo dos processos variáveis e nunca terminados pelos quais os atores
sociais identificam-se e são identificados pelos outros na base de dicotomizações
Nós/Eles, estabelecidas a partir de tradições culturais que se supõem derivadas de
uma origem comum e realçadas nas interações étnicas.

Quanto à questão da “atribuição categorial” que é chave no campo da


etnicidade, teóricos como L. Drumond e I. Wallerstein estão de acordo em afirmar que
a identidade étnica nunca se define puramente de maneira endógena, mas que é
sempre um produto de atos significativos de outros grupos. Essa categorização étnica
de um grupo social por outro grupo dominante possui um verdadeiro poder formativo:

O fato de nomear tem o poder de fazer existir na realidade uma coletividade de


indivíduos a despeito do que os indivíduos assim nomeados pensam de sua pertença a
uma determinada coletividade [...] De modo geral as exo-definições tendem a ser
globalizantes e a ativar categorias “simultaneamente unificantes e diferenciantes”.438

437
Philippe Poutignat; Jocelyne Streiff-Fenart, Teorias da etnicidade: seguido de grupos étnicos e suas
fronteiras de Fredrik Barth, 2ª Reimpressão, São Paulo, Editora UNESP, 1997, p.141.
438
Idem, p.143-144.
Aplicando a teoria da etnicidade a Israel, encontramos dois relatos (Gn 49,1-27;
Dt 33,1-29), onde se percebe claramente, aquilo que Barth conceitualiza como
“atribuição categorial”, ou seja, além da nomeação dos diferentes grupos sociais –
tribos – o redator ainda faz uma descrição qualitativa de cada um dos grupos sociais.

Mas, a pergunta que nos inquieta é a seguinte: quem tem o poder de nomear?
Quem foi a pessoa ou qual foi o grupo que se arvorou nesse trabalho de categorização
social? A resposta, a princípio, não é tão simples de ser levantada, mas se levarmos em
conta a temática de nosso projeto – análise histórico-crítica das relações de poder
entre o campesinato judaíta e a classe sacerdotal jerusolimitana – notaremos que
houve, de fato, uma manipulação da narrativa, para que ela servisse, de fato, aos
interesses de um determinado grupo social. Se olharmos atentamente, principalmente
para Gn 49,8-10 (“Judá é a ti que teus irmãos celebrarão, tua mão pesará sobre a nuca
dos teus inimigos, os filhos de teu pai se prostrarão diante de ti [...] O cetro não se
apartará de Judá, nem o bastão de comando de entre os seus pés”), perceberemos o
destaque e supremacia concedida à tribo de Judá, que não por acaso é onde tem
origem e está instalado o clero sacerdotal jerusolimitano.

Outra característica da teoria da etnicidade que chama a nossa atenção é


quanto ao conceito de “fronteira étnica” elaborado por Fredrik Barth. Conforme
salienta S. Wallman:

[...] a pertença étnica não pode ser determinada senão em relação a uma linha de
demarcação entre os membros e os não-membros. Para que a noção de grupo étnico
tenha um sentido, é preciso que os atores possam se dar conta das fronteiras que
marcam o sistema social ao qual acham que pertencem e para além dos quais eles
identificam os outros atores implicados em um outro sistema social. Melhor dizendo,
as identidades étnicas só se mobilizam com referência a uma alteridade, e a etnicidade
implica sempre a organização de agrupamentos dicotômicos Nós/Eles. Ela não pode
ser concebida senão na fronteira do “Nós”, em contato ou confrontação, ou por
contraste com “Eles”.439

Assim, constatamos que são as fronteiras étnicas e não o conteúdo cultural


interno, que definem um grupo étnico, permitindo assim, que se dê conta de sua

439
Idem, p.152-153.
existência. Desse modo, a elucidação dos fenômenos de etnicidade passam pela
análise gerativa das condições de estabelecimento, manutenção, transformação das
fronteiras entre os grupos. Na concepção barthiana, a manutenção das fronteiras
étnicas necessita da organização das trocas entre os grupos e da ativação de uma série
de proscrições e de prescrições regendo suas interações.440

Nas narrativas bíblicas esses detalhes das proscrições e prescrições são por
demais palpáveis. Vejamos alguns exemplos de prescrições que enalteciam, por
demais, a classe sacerdotal :

 vestes sacerdotais (Ex 28,1-43)

 consagração sacerdotal (Ex 29,1-37)

 Os holocaustos cotidianos (Ex 29,38-46)

 Impostos para o santuário (Ex30,11-21)

 Às ofertas, somente o sacerdote tem acesso (Lv7,22-38)

Quanto às prescrições relativas ao campesinato, que se constituía na grande


maioria de pessoas, as leis e regras eram tantas, que tornavam a vida cotidiana um
verdadeiro fardo para ser carregada. Eis algumas prescrições, que quando infringidas
obrigavam o infrator, para se reconciliar com Deus, a oferecer inúmeros sacrifícios,
pois do contrário, pesaria sobre ele, uma terrível maldição.

 Lv 5,1-13: Quando alguém, pelo simples fato, de ter visto ou ouvido alguém
cometendo alguma coisa contrária à lei e não denuncia o infrator comete
pecado.

 Lv 5,14-26: Quando alguém, por inadvertência, se esquecer de ofertar as


primícias e os dízimos de sua colheita ao Senhor, deverá oferecer os devidos
sacrifícios como forma de reparação. Mas, se pecar conscientemente, o
culpado deverá pagar com a morte (Js 7).

O projeto persa foi tão bem estruturado e articulado com as tradições que não
deixou margem a qualquer possibilidade de alguém, que pertencesse a um

440
Idem, ibdem.
determinado grupo étnico, mudar de grupo. Para que as fronteiras ficassem bem
marcadas, as narrativas se ativeram a pequenos detalhes, quanto:

 As categorizações fenotípicas de cada um dos grupos

 Criação de listagens genealógicas determinando a que grupo étnico


pertencia cada membro da população.

O impacto, o reflexo e o condicionamento que as narrativas obtiveram sobre o


imaginário da população israelita, mesmo que sendo em longo prazo, foi
profundamente construtivo e constitutivo, de uma nova ordem identitária, figurada
pelo judaísmo.

No imaginário da sociedade construiu-se a figura como de uma pirâmide, isto é,


um escalonamento social, onde no topo estava a classe sacerdotal, caracterizada pela
eleição divina e pela qualidade e excelência do serviço prestado, em primeiro lugar à
divindade e em segundo a sociedade como um todo. Eles detinham, de certo modo, a
supremacia, tanto social quanto política. Eram os supremos guardiões do novo sistema
social, além de contar com o apoio e proteção do império persa. O único ofício desta
classe era oferecer continuamente holocaustos em agradecimento e sacrifícios pelos
pecados que eram constantemente cometidos pela comunidade.441

E na base da pirâmide, se encontrava o campesinato, sustentáculo da economia


do novo sistema social que estava, não somente sob o controle da classe sacerdotal,
mas também, de uma aristocracia, que aos poucos foi dominando toda a
infraestrutura econômica da província, obrigando os campesinos a, não só venderem
seus campos e colheitas para sobreviverem, mas a se vender como escravos para os
novos possuidores de terras na região.

De fato, isto é verdade, pois como afirma Poutignat:

[...] as fronteiras entre os grupos são tanto menos permeáveis quanto mais a
organização das identidades étnicas esteja ligada à divisão diferencial das atividades
441
Devido à casuística que se foi instalando em função de um controle ainda maior da vida da
população, imagina-se que a quantidade de animais (gados de pequeno e grande porte, ovelhas,
cordeiros e aves) e outros gêneros que eram ofertados em holocaustos e sacrifícios, deveria ser um algo
de terrivelmente espantoso. Em pouco tempo a classe sacerdotal desfrutou de bem estar material,
jamais visto ao longo da história de Israel. Diz Joaquim Jeremias.
no setor econômico. Quando as identidades étnicas estão fortemente correlacionadas
a um sistema de estratificação socioeconômico (ou seja, quando as características
fenotípicas ou culturais são associadas de maneira sistemática a posições de classe), a
fronteira étnica superpõe-se à fronteira social, uma reforçando a outra.442

5.6 – Tribalismo e profetismo

Ao que tudo parece estar a indicar, existe uma relação intrínseca entre o
tribalismo israelita e o movimento profético. A partir dos textos, particularmente de
Amós e Oséias, oriundos do reino de Israel, portanto do norte, que foram profetas
mais ligados ao campesinato – enquanto classe explorada – do que à classe política,
isto é, ao setor dominante da sociedade norte-israelita, pode-se constatar essa
realidade quanto aos fatos:

 Qual a origem do profeta?


 Qual a base social da profecia?
 A favor de quem ele profetiza?
 Contra quem se dirige a denúncia profética?
Nesse sentido é possível desde já perceber que tanto Amós quanto Oséias,
além também de Miquéias, que desenvolveu seu profetismo no Reino de Judá, isto é,
na região sul de Israel foram pessoas profundamente engajadas em favor da causa do
campesinato, isto é, a favor da preservação dos valores morais ligados às tradições do
tribalismo.

5.6.1 – Amós

Dos três profetas citados acima, Amós é o primeiro em termos cronológico. Por
volta da metade do século VIII a.C., Amós se levanta em defesa campesinato, isto é, da
classe explorada e dominada economicamente pela elite samaritana. Originário de
Tecua, um povoado ao sul de Jerusalém, profetizou no norte, incomodando por
demais à classe dominante: ao rei e sua corte, bem como ao poder religioso,
representado pelo sacerdote Amasia, de quem ouviu as seguintes palavras: “A terra

442
Philippe Poutignat, Jocelyne Streiff-Fenart, Teorias da etniidade..., p.155.
não pode suportar suas palavras” (Am 7,10) . Segundo Milton Schwantes que
fundamentado em tese de Hans Walter Wolf, afirma que:

[...] É possível que Tecua tenha sido uma das aldeias em que a sabedoria popular era
especialmente cultivada. Em todo caso, a sabedoria clânica é a matriz intelectual da
profecia de Amós. Tradições cúlticas ou inteligência cortesã não são o lar espiritual de
nosso profeta. Seu ninho efetivamente é a cultura sapiencial popular do jeito como era
cultivada em aldeias interioranas. Amós é a voz do campo.443

Como membro do campesinato pauperizado pela economia expansionista de


Jeroboão II, Amós se tornou porta voz das dores de todo o conjunto social camponês
extorquido. Sua palavra é direta e cortante, pois aponta de forma clara a exploração a
que estavam sendo submetidos os campesinos que habitavam as vilas e aldeias que
faziam parte desse mini império, chamado: Reino de Israel. Todas as denúncias são de
caráter social e, até mesmo quando se opõe ao culto, Amós o faz movido pela injustiça
social, promovida pelo templo. Portanto, como poderá ser constatada logo abaixo, a
crítica social está no âmago das denúncias proféticas de Amós.

Nesse sentido, adentremos ao texto. Vejamos o que também foi visto pelo
profeta Amós (cf. Am 7,1.4.7; 8,1;9,1). Como poderemos constatar, a situação era,
realmente, de “total terror”.444

“porque vendem o justo por dinheiro e o pobre por um par de sandálias” (Am
2,6b)

“porque são ávidos para ver o pó da terra sobre a cabeça dos indigentes e
desviam os recursos dos humildes” (Am 2,7a).

“o filho e o pai vão à mesma moça” (cf. Am 2,7b).

“olhai que desordem em seu seio, que opressões no meio dela”(Am 3,9b).

“violências e rapinas” (Am 3,10b)

“explorando os indigentes, triturando os pobres”(cf. Am 4,1).

“Mudam o direito em veneno e arrastam por terra a justiça”(Am 5,7).

443
Milton Schwantes, “A terra não pode suportar suas palavras” (Am 7,10): reflexão e estudo sobre
Amós, São Paulo, Paulinas, 2004, p.50. Hans Walter Wolf, Dodekapropheton: 2 Joel and Amos,
Neukirchen, Neukirchiner, 1969, (Bibbblllischer Kommentar Altes Testament, 14/2).
444
Conforme Milton Schwantes, “A terra não pode suportar suas palavras” (Am 7,10): reflexão e estudo
sobre Amós, São Paulo, Paulinas, 2004, p.87, ver estudo de Hans Walter Wolf com relação ao termo
“total terror” que Milton utiliza para descrever a realidade social em Israel. Hans Walter Wolf,
Dodekapropheton: 2 Joel and Amos, Neukirchen, Neukirchiner, 1969, (Bibbblllischer Kommentar Altes
Testament, 14/2).
“pressionais o indigente tomando-lhe sua parte de cereal”(Am 5,11)

“opressores do justo, que extorques resgates; no tribunal enxotam os pobres”


(Am 5,12b).

“Escutai, vós que vos encarniçais contra o pobre, para aniquilar os humildes da
terra”(cf. Am 8,4).

Enquanto os camponeses são “triturados” pela classe citadina, estes, ao


contrário, conforme nos relatou o profeta, desfrutavam do bom e do melhor, pois, “a
prosperidade, a exploração e o lucro eram os aspectos mais marcantes da sociedade
que Amós contemplava. Os pobres eram realmente pobres e desavergonhadamente
explorados”445, como pode ser constatado abaixo.

“eles não conhecem o reto agir esses amontoadores de violências e rapinas nos
seus palácios”(Am 3,10)

“essa gente instalada em Samaria, na fofura de um divã, no conforto do


leito”(Am 3,12b)

“ferirei a casa de verão e depois a casa de inverno”, as casas de marfim


desaparecerão e grandes mansões tombarão” (Am 3,15)

“vacas de Basã, que pastais na montanha de Samaria” (Am 4,1)

“Detesto, desprezo vossas peregrinações, não posso suportar vossas


assembléias, quando me fazeis subir holocaustos … vossos sacrifícios de animais
cevados … o alarido de teus cânticos, o toque de tuas harpas” (Am 5,21-23)

“Ai dos que fundaram sua tranqüilidade em Sião e dos que puseram sua
segurança na montanha de Samaria, elite da primeira das nações” (Am 6,1)

“Recostados em leito de marfim, estirados em divãs, regalam-se com carneiros


novos e com vitelos escolhidos nos currais; improvisam ao som da harpa …
bebem vinhos em taças perfumam-se com o óleo das primícias” (Am 6,4-6)

Como podem ser constatadas, todas essas citações se inserem num conjunto
de cinco visões, que não deslocam o profeta para fora de seu contexto social, mas o
lançam para dentro do seu âmago.. As duas primeiras se referem ao campo, isto é, ao
trabalho do campesinato, que sofre não só nas mãos do pessoal e das instituições
ligadas à cidade, mas também sofrem a ameaça da seca, de reis estrangeiros e
gafanhotos que devoram as suas plantações. As três últimas visões dizem respeito à

445
J.A.Motyer, O dia do leão: a mensagem de Amós, São Paulo, 1984, p.1.
cidade. São relativas aos muros da cidade e às festas que lá dentro aconteciam. Delas
fazem parte os seus lugares sagrados, às suas dinastias, palácios, templos e sacerdotes.

Conforme Milton Schwantes salienta:

A base real das cinco visões constitui, pois, o conflito entre campo e cidade. Essa é a
contradição elementar no tributarismo, o modo de produção do mundo bíblico em
geral e dos tempos de Amós (século VIII a.C.) em especial. O campo é o local da
produção. Gerador de riqueza social é o clã agrícola. A cidade sobrevive à base e à
custa do campo. Arrecada parcelas de seus produtos e convoca sua população para o
trabalho forçado junto às construções públicas [...] Exército, templo e burocracia são
os esteios de tais cidades-Estados.446

É bem provável que o campesinato tenha conseguido resistir por certo tempo
às investidas do setor citadino no sentido de arregimenta-los visando aumento das
arrecadações, pois os clãs mantinham uma significativa autonomia, controlando assim,
seu processo produtivo. “Desse modo, cidade e Estado tem certa dificuldade em se
apropriar dos produtos do campo e em requisitar sua força de trabalho. Não raro
recorrem à repressão militar e à força bruta para ‘convencer’ lavradores ao pagamento
de tributos”.447

Conforme Milton Schwantes também salienta, e religião e toda a estrutura a


ela associada – templo, cultos, ritos, sacrifícios, dízimos, festas e sacerdotes – foram
utilizados como instrumento eficaz como forma alternativa na espoliação do
campesinato. Nesse sentido, o templo se tornou dentro do modo de produção
tributarista uma central de arrecadação de excedentes.

Assim, tem-se de modo bem sucinto a realidade que está por trás das cinco
visões descritas por Amós. Curioso é que, com relação às duas primeiras visões, Amós
deixa entrever que existe solução e esta está a caminho para o bem do campesinato,
mas, quanto às três últimas visões, o prognóstico é aterrador: não existe solução e a
consequência será a destruição.

Portanto, Amós, bem como também, seu grupo social, – pois é de se supor que
ele não estivesse sozinho, mas que tenha tido um grupo com quem ele dividia sua

446
Milton Schwantes, “A terra não pode suportar…, p.199.
447
Idem, p.200.
aflição e angústia pelo sofrimento de seus coirmãos, bem como, lhe dando o devido
apoio e suporte, para que não sucumbisse nos momentos de perseguição – é de se
supor, devido não somente pela sua opção de estarem ao lado dos economicamente
explorados e oprimidos, além de socialmente injustiçados, mas pela sensibilidade
humana e pelos valores morais que cultivavam em clara oposição frente às atitudes da
classe citadina fossem descendentes diretos do tribalismo.

Por isso se torna claro qual era o fundamento de sua posição frente à classe
citadina, isto é, frente ao rei e sua corte, às suas instituições, de modo especial, a
religião estatal com seus sacerdotes, ritos e festas.

5.6.2 - Oséias

Assim como Amós, também Oséias, poucos anos mais tarde, vivenciou a
mesma situação a que estava sendo submetida a população campesina. O livro de
Oséias, apesar de ter sido posteriormente muito retrabalhado pelos escribas ligados à
corte judaíta (deuteronomistas), guardou alguns resquícios da intuição profética de
Oséias e de seu grupo:

Pois é o amor que me agrada, não o sacrifício;


E o conhecimento de Deus, eu o prefiro aos holocaustos. (Os 6,6)

A partir desse pequeno extrato do livro do profeta Oséias é possível intuir o


contexto sócio-político, bem como também, o contexto religioso e econômico de sua
época, além do lugar social a partir de onde ele fala. O cenário que o profeta tem
diante de si, além do quadro já pintado por Amós que havia profetizado ali poucos
anos antes, é de extrema miséria e de um desvario moral sem precedentes.

Este versículo é como uma espécie de síntese profética da missão que Oséias
desenvolveu, não somente junto às autoridades políticas e religiosas de seu tempo,
mas também junto das comunidades aldeãs, isto é, junto ao campesinato, do qual foi
também, não somente um porta-voz, mas um líder que assumiu a responsabilidade de
resgatar alguns dos mais nobres valores e ideais do tribalismo: a solidariedade que
fundada num autêntico conhecimento de Deus, possibilitaria uma profunda renovação
do tecido social totalmente corrompido.

Por outro lado, expressa também a religiosidade que de fato animava as


comunidades campesinas: amor, lealdade, bondade, solidariedade e misericórdia.
Foram estes os valores que sempre forjaram estas comunidades. Religião templar, com
sacrifícios e holocaustos, não! Esta, na verdade, foi o instrumento utilizado pela classe
dominante para manipular e extorquir o campesinato. Oséias como Amós se
mostraram claramente em oposição à estrutura religiosa imposta pela monarquia
norte israelita. São absolutamente contra os sacrifícios e holocaustos, por isso, contra
o sacerdócio e o templo.

Joseph Blenkinsopp, apoiado nos estudos de Wellhausen vê na religião do


legalismo ou da lei e na observância do culto supervisionado e mantido pelo
sacerdócio, com suas expressões típicas na narrativa sacerdotal ( P ) e em Crônicas, um
gritante contraste com a religião natural de Israel no seu início, e mais ainda, com a
profecia.448

Nesse contexto é fácil de perceber que a estrutura do templo servia


principalmente aos interesses da classe dominante: ao rei e sua corte e à classe
sacerdotal. Segundo Carlos Mario Vasquez Gutierrez a sociedade israelita da segunda
metade do século VIII a.C. deve ser abordada segundo uma dupla perspectiva:
internamente, devido à crise moral que se abatia sobre toda a população e por outro
lado, externamente, isto é, tendo consciência do avanço militar do império assírio:
“estas dos perspectivas son inseparables para la comprensión del mensaje
profético”.449

Para fazer frente ao império assírio que avançava pelo norte, a classe
dominante encontrou na religião um instrumento por demais estratégico para a
consecução de seus interesses, que eram: aumentar a arrecadação de alimentos, não

448
Joseph Blenkinsopp, Judaism – The first phase: the place of Ezra and Nehemiah in the origins of
Judaism, United Kingdom, Wm. B. Eerdemans Publishing Co., 2009, p.2.
449
Carlos Mario Vasquez Gutierrez, Os 6,6 – “Reconstruyendo el tejido social”: la solidaridad, una
alternativa frente a la violencia institucional, São Paulo, Faculdade de Teologia Nossa Senhora da
Assunção, 1995, p.158 (Dissertação de Mestrado).
somente em função de si próprio, mas também tendo presente o outro fator: a
procriação, que de certa forma, gerava mais pessoas, não somente para servirem no
exército, mas também para trabalharem nos campos.

Nesse sentido, o campesinato foi sendo violentado, não somente em seus


princípios e valores morais, mas também em seus corpos. Homens e mulheres foram
submetidos a um regime de quase escravidão, em nome de um projeto nitidamente de
caráter ideológico, por isso, profundamente desumanizante. Carlos Mario Vasquez
Gutierrez confirma essa intuição quando diz:

Esta violencia fue justificada por el Estado con la ayuda y apoyo de los sacerdotes,
quienes vehiculaban en las fiestas religiosas y los cultos (Os 4,4-19; 5,1-7; 8,1-7) el
proyecto estatal de aumentar la recaudación de los tributos y, por medio de los cultos
de fertilidad, alterar el ritmo procreativo dentro de la comunidad, ejerciendo así una
mayor opresión sobre las mujeres, pues buscaba “manipular” sus vientres con el
objetivo de tener más brazos para el trabajo y para la guerra. Entendemos, entonces,
que el ejercicio oficial de la violencia está invariablemente acompañado del aumento
en la producción de bienes y simbolizaciones religiosas *…+.450

Aqui se vê de que modo a religião – templo e sacerdócio – estão sendo


utilizados pelo Estado no sentido de sacralizar uma determinada prática, que do ponto
de vista pragmático, poderia ser até justificada, mas na realidade, foi uma finalidade
totalmente execrável no seu fim e, principalmente, corrompida nos seus meios,
mostrando mais uma vez, que os fins jamais justificam ao meios.

Shigeyuki Nakanose acena pra essa realidade quando diz que a “religião assume
função ideológica de legitimar o poder da instância política quando acontece a quebra
da reciprocidade entre o grupo no poder e os grupos de base”.451

De fato, o campesinato estava sendo condicionado pela religião a servir única e


exclusivamente aos interesses da classe dominante. Não houve um compromisso de
reciprocidade. Enquanto o campesinato foi convidado, ou melhor, estimulado
ideologicamente a sacrificarem suas vidas em prol de um projeto real revestido de
religiosidade, O Estado, através da religião só lhe retribuía como disse o profeta Oséias

450
Carlos Mario Vasquez Gutierrez, Os 6,6 – “Reconstruyendo el tejido social..., p.159.
451
Shigeyuki Nakanose, A leitura sociológica do sacrifício em 1 Sm 1-1 Rs 12, p.227.
em Os 4,2: imprecações, mentiras, assassinatos, roubos e adultérios. Sangue
derramado seguindo a sangue derramado. Por isso a terra ficou desolada e todos os
seus habitantes desfaleceram (tradução livre).

Desse modo, como afirma Peter Berger, fica claro que temos diante de nós dois
projetos claramente opostos. Enquanto Oséias toma partido em favor do campo em
contraposição à cidade os sacerdotes apoiam exclusivamente a elite citadina. Nesse
sentido, conclui-se que os profetas são defensores de um estilo de vida mais tribal,
cimentado nos valores clânicos. Profetas e sacerdotes são, em síntese, promotores de
diferentes projetos políticos, econômicos, sociais e ideológicos.452

Nesse sentido, pode-se afirmar que a religiosidade tribal foi promotora de um


projeto que podia ser caracterizado pela igualdade e solidariedade entre os membros,
enquanto que a religião no contexto do Estado, que estava edificada pelos sacerdotes
em oferendas e sacrifícios, rituais e festas, podendo assim, ser caracterizada como um
autêntico instrumento ideológico do Estado.

As festas com seus rituais, que no âmbito das sociedades tribais eram
oportunidades de encontro festivo e partilha do excedente arrecadado nas colheitas,
no contexto do Estado, as festas são institucionalizadas e, fator marcante, são
promotoras de opressão e violência. Aconteceu como diz René Girard: “a festa perdeu
todas as suas características rituais e acabam mal, no sentido em que retorna a suas
origens violentas; ao invés de dominar a violência, ela incita a um novo ciclo de
vingança”453.

E esta violência se generalizou de tal modo que, como já afirmado acima,


afetou até mesmo o comportamento dos campesinos, que se esquecendo dos
sagrados valores que foram capazes de manter a ordem e a unidade, é agora
abandonado em favor de um “vale-tudo” ou “salve-se quem puder”.

Ao ver esta situação de total perversão moral, que segundo o profeta se


constitui num “espírito de prostituição” que envolve a todos, somente uma atitude de
solidariedade – hesed – poderá ser sustento e remédio nesse momento de crise. Como

452
Peter Berger, Carisma e inovação social: a localização social da profecia israelita....., p.88.
453
René Girard, A violência e o sagrado, São Paulo, Paz e Terra, 1990, p.156.
se sabe, a capital Samaria foi destruída em 722 a.C. pelo império Assírio, que tinha
como tática de guerra, passar a tudo e a todos a fio de espada. Os que sobrevivessem,
eram deportados para outras partes do império, assim como outros também eram
deportados para essa região. É certo que muitos camponeses conseguiram escapar
para o sul, em direção a Judá. Mas, a sua sorte não deve ter sido melhor, pois mais
cedo que pensavam em Jerusalém teve início um projeto semelhante ao realizado no
Reino do Norte – Israel.

A partir desses destaques, conforme pensa Luis Maldonado:

Lo típico de las cosas sociales es este carácter de penetración íntima y de separación,


de inmanencia y transcendencia. Están fuera y dentro del individuo. Son como lo
sagrado. Mejor, las cosas sagradas no son sino las cosas sociales. Es decir, lo religioso –
los dioses – es un símbolo, una cifra de lo social.454

É nesse sentido que Oséias tenta resgatar de modo profético, a solidariedade,


pois para ele, nada mais sagrado do que a unidade e a igualdade, virtudes que
forjaram as sociedades primitivas.

5.6.3 - Conclusão

Diante do exposto acima, conclui-se que o tribalismo e o profetismo foram duas


vias que caminharam paralelamente, ou seja, o profetismo bíblico, particularmente os
recolhidos nos livros de Amós, Oséias e Miquéias foram frutos da experiência de vida
tribal, de homens e mulheres que lutaram para preservar, não só na memória, mas
acima de tudo, na prática, atitudes que revelam aqueles valores as quais Rigoberta
Menchú Tum faz referência. Foram manifestações que recolhidas em textos exprimem
o frescor de uma atitude de resistência frente aos poderes estatais que se organizaram
para manipular e extorquir o campesinato.

Teve início assim, em termos bíblicos, um ideológico processo de desarticulação


social, ou seja, de relações de poder baseadas na dominação e na subjugação de uma

454
Luis Maldonado, La violencia de lo sagrado: crueldad “versus” oblatividad o el ritual del sacrifício,
Salamanca, Ediciones Sígueme, 1974, p.21
classe social por outra, situação não muito diferente do que acontecia em outras
realidades geográficas do mundo. A peculiaridade do Judaísmo esteve em que na sua
gênese o grupo sacerdotal atuou apenas como coadjuvante nesse processo. Somente
no período pós-exílico, na transição do domínio persa para o domínio grego, e por
motivos externos alheios à sua vontade, foi que o grupo sacerdotal assumiu o papel de
protagonista, isto é, nas relações sociais estabelecidas na província de Judá, quem teve
a última palavra, seja em questões de ordem política ou religiosa, foi o grupo
sacerdotal.

O tribalismo, assim como a profecia forma sendo neutralizados e inseridos num


novo modelo de organização social, onde o sumo-sacerdote, que estando à frente de
um grande de homens que formavam a classe sacerdotal, assumia integralmente em
sua própria pessoa os poderes religioso e político dentro da província de Judá.

Apesar do peso exercido pela classe sacerdotal no âmbito das relações de


poder dentro da província de Judá, o tribalismo sobreviveu, não quanto à sua forma de
organização social conforme sua configuração clânica originária, mas conforme
testemunho de historiadores como Flávio Josefo e textos do Novo Testamento, é
possível concluir que nas aldeias e vilas, muitas delas escondidas nas florestas das
montanhas da Judéia e da Galileia e em regiões desérticas como beduínos, preservou-
se muitos dos seus mais nobres valores tribais, tais como a igualdade e a solidariedade
como formas supremas e divinas de se manter a unidade do tecido social

No período pós-exílico os profetas desaparecem. A profecia, praticamente está


ausente da literatura produzida nesse período. Qual teria sido o motivo?

Não teria sido devido ao fato de que as sociedades tribais já não mais uma
realidade. Devido a uma série de circunstâncias históricas – geopolíticas, sócias,
econômicas e religiosas – as sociedades tribais foram se desintegrando diante do
avanço dos impérios e das cidades. Muitas se embrenhando nas matas, refugiaram-se
como última solução. Amós, Oséias e Miquéias foram frutos destas comunidades, que
no contexto do período pré-exílico, souberam ser testemunhas daqueles valores
universais que Rigoberta Menchú Tum nos lembra. Porém, como no período pós-
exílico já não são mais uma realidade como foram outrora antes da instalação da
monarquia nos século X e IX a.C., a profecia, assim como os profetas – literariamente
falando – foram tragados pelo sistema de crença do templo de Jerusalém.

5.7 – As relações de poder no judaísmo à luz de Michel Foucault

Vigiar e punir455

A ação sobre o corpo, o adestramento do gesto, a regulação do


comportamento, a normalização do prazer, a interpretação do discurso, como o
objetivo de separar, comparar, distribuir, avaliar, hierarquizar, tudo isso faz com que
apareça pela primeira vez na história esta figura singular, individualizada – o homem –
como produção do poder.456

É passível de verificação que nas obras de Foucault não se encontra uma


definição acabada de poder, pois este não seria seu objetivo, no entanto uma de suas
grandes contribuições foi intuir que em determinadas situações o poder está
descentralizado, não se limitando apenas ao Estado.

Neste sentido o poder estaria disseminado por toda a estrutura social, ou seja,
em subestruturas ou microestruturas, onde todos, de certa forma, estariam sujeitos ao
domínio desse poder instituído sob a forma de uma lei e onde todos,
simultaneamente, também seriam agentes desse poder. Assim, escreve Roberto
Machado, “O que aparece como evidente é a existência de formas de exercício de
poder diferentes do Estado, a ele articuladas de maneiras variadas”457.

Pode ser um paradoxo querer fazer uso de alguns conceitos foucaultianos, tais
como: genealogia, disciplina, vigiar, punir, verdade e poder, pois, conforme opções
“intelectuais” feitas anteriormente deixam claro que há uma contradição, devido ao
sentido e ao efeito que procuram. Mas, segundo o modo como os entendo à luz do
pensamento de Foucault e os aplico ao contexto de meu objeto de pesquisa, penso
poder justificar algumas de minhas proposições.

5.7.1 – Vigilância em rede

455
Michel Foucault, Vigiar e Punir, 29ª Edição, Petrópolis, Editora Vozes, 2004, 262p.
456
Roberto Machado, “Introdução: por uma genealogia do poder” em Michel de Foucault, Microfísica do
poder, 15ª Edição, Rio de janeiro, Edições Graal LTDA., 2000, p.XX.
457
Roberto Machado, “Introdução..., p.XI.
É bem esta a situação que pode ser constatada no caso específico do judaísmo.
O que Michel Foucault chama de microfísica do poder significa uma espécie de
deslocamento no espaço de análise das relações de poder quanto também do nível em
que esta se efetua. Isto se evidencia num poder estruturado e estruturante como diria
Pierre Bourdieu458, cuja função foi submeter toda sociedade judaíta a um rigoroso
controle religioso, isto é, a um controle dos gestos, dos corpos, das atitudes, dos
comportamentos, dos hábitos e dos discursos. Nada mais ardiloso do ponto de vista do
domínio e da subjugação do que estar preso a uma rede de poder: a escravidão como
fim! Por isso Michel Foucault pôde falar, a partir desta visão, “numa ‘economia’ do
poder, isto é, procedimentos que permitem fazer circular os efeitos de poder de forma
ao mesmo tempo contínua, ininterrupta, adaptada e ‘individualizada’ em todo o corpo
social”459.

Assim se instaurou um regime disciplinar no judaísmo que supera qualquer


outro regime ou sistema político de vigilância social, pois em nome da divindade e por
um dever de consciência, todos se tornavam vigias do seu próximo. Essa vigilância
consistiu num regime disciplinar fundado numa legislação todo bom senso, ainda mais
quando se tem por referência uma lei ditada pelo próprio deus. Nesse sentido,
comenta Foucault:

[...] A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos “dóceis”. A


disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) [...]. Em
uma palavra: ela dissocia o poder do corpo; faz dele por um lado uma “aptidão”, uma
“capacidade” que ela procura aumentar; e inverte por outro lado a energia, a potência
que poderia resultar disso, e faz dela uma relação de sujeição estrita. Se a exploração
econômica separa a força e o produto do trabalho, digamos que a coerção disciplinar
estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma dominação
acentuada.460 (grifo pessoal)

458
Nesse sentido Pierre Bourdieu afirma que “é enquanto instrumentos estruturados e estruturantes de
comunicação e de conhecimento que os sistemas simbólicos cumprem a sua função política de
instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação de uma classe sobre outra (violência
simbólica) dando o reforço de sua própria força às relações de força que as fundamentam e
contribuindo assim, segundo a expressão de Weber, para a domesticação dos dominados” em Pierre
Bourdieu, A economia das trocas simbólicas, São Paulo, Editora Perspectiva S.A., 1982, p.32.
459
Michel Foucault, Microfísica do poder, 15ª Edição, Rio de janeiro, Edições Graal LTDA., 2000, p.8.
460
Idem, p.119.
É em vista da dominação e da manutenção econômica que essa microfísica do
poder ganhou forma. Como acentua Foucault, a exploração econômica pelo viés da
disciplina também pode ser igualmente aplicado à realidade do campesinato judaíta.
Usando a força de trabalho do campesinato, a classe sacerdotal jerusolimitana obtinha
suas vantagens através da exploração econômica desta mesma força de trabalho
mediante o que Foucault chama de coerção disciplinar, isto é, coerção da lei que em
nome da divindade disciplinava a vida nos seus mínimos detalhes, quase que a
tornando impossível de ser vivida, trabalho de sol a sol para garantir a benção e a
prosperidade. Por isso, com ênfase e em nome da divindade, afirma o redator
sacerdotal:

Ele disse à Adão: “Por teres escutado a voz da tua mulher e comido da árvore da
qual eu te havia formalmente prescrito não comer, o solo será maldito por tua
causa. É com fadiga que te alimentarás dele todos os dias da tua vida; ele fará
germinar para ti o espinho e cardo, e tu comerás a erva do campo. No suor do
teu rosto comerás o pão, até voltares ao solo, pois dele foste tirado. Sim, és pó
e ao pó voltarás. (Gn 3,17-19)

Deste modo, o trabalho que se constitui num excelente instrumento de


dignificação da condição humana, se tornou um peso, algo profundamente
desagradável, pois a partir deste dito, pesou sobre o campesinato a ira e a
abominação, enfim, o castigo divino. Não deve ter sido nada fácil para eles ter que
assimilar esse novo modo de vida com relação à nova religiosidade.

De um tempo e uma realidade onde não havia ninguém e nenhuma instância


mediadora entre a divindade e os seres humanos, tempo onde ninguém tinha a
incumbência de vigiar e delatar seu próximo a um superior passa-se a uma nova
ordem, desumana porque fundada na divindade, totalmente ineficaz porque
atormenta o viver. Assim Foucault vê na lei que disciplina os corpos um instrumento
muito útil para o bom adestramento do indivíduo.

[...] O poder disciplinar é com efeito um poder que, em vez de se apropriar e de retirar,
tem como função maior “adestrar”; ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar
ainda mais e melhor. Ele não amarra as forças para reduzi-las; procura liga-las para
multiplica-las e utiliza-las num todo. Em vez de dobrar uniformemente e por massa
tudo o que lhe está submetido, separa, analisa, diferencia, leva seus processos de
decomposição até às singularidades necessárias e suficientes. “Adestra” as multidões
confusas, móveis, inúteis de corpos e forças para uma multiplicidade de elementos
individuais – pequenas células separadas, autonomias orgânicas, identidades e
continuidades genéticas, seguimentos combinatórios.461

No contexto das relações de poder dentro do judaísmo, ou mais


especificamente, entre a classe sacerdotal e o campesinato, o poder disciplinar tem,
verdadeiramente, este objetivo: adestrar as consciências, para que os corpos possam
estar inteiramente sujeitos ao sistema.

A disciplina “fabrica” indivíduos; ela é a técnica específica de um poder que toma os


indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício. [...]
O sucesso do poder disciplinar se deve sem dúvida ao uso de instrumentos simples: o
olhar hierárquico, a sanção normalizadora e sua combinação num procedimento que
lhe é específico, o exame.462

Essa atitude de vigilância de cada um dos membros da sociedade sobre todos


os demais membros torna cada um, ao mesmo tempo, um operador econômico
decisivo, na medida em que é uma peça interna no aparelho de produção e uma
engrenagem específica do poder disciplinar. Para estar de bem com a divindade é
necessário vigiar o outro.

E Foucault conclui afirmando que:

[...] O poder na vigilância hierarquizada das disciplinas não se detém como uma coisa,
não se transfere como uma propriedade; funciona como uma máquina. E se é verdade
que sua organização piramidal lhe dá um “chefe”, é o aparelho inteiro que produz
“poder” e distribui os indivíduos nesse campo permanente e contínuo. O que permite
ao poder disciplinar ser absolutamente indiscreto, pois está em toda parte e sempre
alerta, pois em princípio não deixa nenhuma parte as escuras e controla
continuamente os mesmos que estão encarregados de controlar; e absolutamente
“discreto”, pois funciona permanentemente e em grande parte em silêncio.463

Disseminado por todo o corpo social articulado piramidalmente, o poder


disciplinar dentro do judaísmo, apesar de estar sob a tutela de um chefe – sumo
sacerdote – impregnava toda a estrutura de tal forma que era quase impossível se

461
Michel Foucault, Vigiar e Punir..., p.143.
462
Idem, ibdem.
463
Michel Foucault, Vigiar e punir..., p.148.
imiscuir das obrigações legais, sob pena de carregar, uma tremenda culpa moral pelos
desvios e erros cometidos.

Desse modo, as relações de poder que no tribalismo eram marcadas pela


igualdade e pela solidariedade entre os membros, passam a ser, no judaísmo, marcada
pela desconfiança de que sempre tem alguém me vigiando, pois se se cultiva a ideia de
que pelos erros de um a divindade é capaz de condenar todo o povo, é preciso então
cumprir esta tarefa.

*...+ A disciplina faz “funcionar” um poder relacional que se auto-sustenta por seus
próprios mecanismos e substitui o brilho das manifestações pelo jogo ininterrupto dos
olhares calculados. Graças às técnicas de vigilância, à “física” do poder, o domínio
sobre o corpo se efetuam segundo as leis da ótica e de mecânica, segundo um jogo de
espaços, de linhas, de telas, de feixes, de graus e sem recurso, pelo menos em
princípio, ao excesso, à força, à violência. Poder que é em aparência ainda menos
“corporal” por ser mais sabiamente “físico”.464

Nesse sentido, à luz das teorias foucaultianas, as relações de poder entre a


classe sacerdotal jerusolimitana e o campesinato judaíta se tronaram relações
disciplinares, relações de vigilância, relações de domínio e extorsão econômica. Pobres
campesinos, que em nome da divindade tiveram que sujeitar a toda essa nova ordem
de coisas.

5.7.2 – Punindo não tanto o corpo, mas principalmente a alma

Para Michel Foucault os métodos punitivos tem sofrido uma variação ao longo
da história. Foucault argumenta em favor do desenvolvimento de uma tecnologia
política do corpo a partir da qual se poderia ler uma história comum das relações de
poder, bem como também das relações de objeto. Estando o corpo diretamente
mergulhado num campo de forças que interagem socialmente e de forma constante,
isto é, num campo político, cujas relações de poder tem alcance imediato sobre ele.
Para Foucault, esses métodos punitivos ou essas tecnologias política do corpo:

464
Idem, ibdem.
[...] o investem, o marcam, o dirigem, o supliciam, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no
a cerimônias, exigem-lhe sinais. Este investimento político do corpo está ligado,
segundo ligações complexas e recíprocas, à sua utilização econômica; é, numa boa
proporção, como força de produção que o corpo é investido por relações de poder e
de dominação; mas em compensação sua constituição como força de trabalho só é
possível se ele está preso num sistema de sujeição [...].465

De fato, o Judaísmo como sistema político-religioso foi um sistema que sujeitou


a si todos os habitantes da província de Judá. Presos por um sistema, que como círculo
vicioso, não permitia sua emancipação, mas pelo contrário, fazia com que o
campesinato estivesse condenados ad infinitum a um terrível condicionamento e
escravização.

Mas, diferentemente do modo como pensa Michel Foucault quanto a um início


histórico da vigilância e punição do corpo e daquilo que ele caracteriza como uma
punição da alma, ou seja, punição moral, punição da consciência do infrator, o Antigo
Testamento, particularmente no tocante à narrativa sacerdotal (P) já havia
desenvolvido essa forma letal de punição das consciências e por consequência, dos
próprios corpos.

Citando Rusche e Kirchheimer, Foucault concorda com os autores quando


afirma que existe uma intrínseca:

[...] relação entre os vários regimes punitivos e os sistemas de produção em que se


efetuam: assim, numa economia servil, os mecanismos punitivos teriam como papel
trazer mão-de-obra suplementar – e constituir uma escravidão servil ao lado da que é
fornecida pelas guerras ou pelo comércio.466

Partindo do fato de que o modo de produção estabelecido na província de Judá


seria algo bem similar ao modo de produção tributário, pois segundo o corpo de leis
presentes nas narrativas do Pentateuco, prescrevem uma grande quantidade de
tributos a serem pagos ao templo em função de faltas que se cometiam quase que
diariamente.

Conforme pensa Foucault, é esse mecanismo punitivo que garante uma


economia servil, isto é, de pessoas transformadas em servos, porque não dizer,

465
Idem, p.25-26.
466
Idem, p.25.
escravizadas a sistema, cujo fim é manter unicamente a estrutura econômica do
templo, ou seja, da classe sacerdotal que vive à custa dessa escravidão servil

5.7.3 – Da “verdade do poder” ao “poder da verdade”

Foucault parte da afirmação de que não existe “verdade” fora do poder ou sem
poder. Ela não pertence a um mundo, que poderia ser classificado como sendo
sobrenatural ou do além, mas:

[...] A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele
produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade,
sua “política geral” de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz
funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os
enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as
técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o
estatuto daqueles que tem o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro.467
(grifo pessoal)

Portanto, se a “verdade” pertence a este mundo conforme afirma Foucault, é


preciso questionar, não somente o regime de verdade propugnado pelos sistemas de
poder, mas principalmente, os efeitos de poder provocados por essas “verdades”. Por
isso, é necessário que se discirna “o regime político, econômico, institucional de
produção da verdade”.468

Não se trata de libertar a verdade de todo sistema de poder – o que seria quimérico na
medida em que a própria verdade é poder – mas de desvincular o poder da verdade
das formas de hegemonia (sociais, econômicas, culturais) no interior das quais ela
funciona no momento.469

Aplicado ao judaísmo que tendo seu fundamento de poder e verdade


alicerçada em um discurso, cuja legitimação, proclamou-se, ter sido auferida pela
própria divindade, que por ele – pelo seu discurso – se auto revelou, desse modo, se
apresenta como uma narrativa que se impõe como verdade eterna, universal e
imutável. Seguindo a orientação de Foucault, se faz necessário desvincular do texto

467
Michel Foucault, Microfísica do poder..., p.12.
468
Idem, p.14.
469
Idem, ibdem.
desse tom de verdade acabada que tantos enganos têm causado ao longo desses mais
de dois milênios.

O que Foucault propõe discernir objetiva-se na questão de saber quais são os


efeitos desse poder que circula no âmbito, político, econômico, cultural e porque não
dizer também, no âmbito religioso.

Esse poder oriundo dessa “verdade religiosa”, hoje, assim como ontem,
continua servindo aos interesses da classe dominante, no sentido de que encobre as
reais motivações da classe dominante, mascara seus interesses espúrios e submete a
classe subalterna, isto é, a classe dominada a uma submissão passiva e ordenada.

Toda a cultura, por estar mergulhada e fundamentada nessa falsa verdade


ainda influencia, quase que na totalidade, todos os sistemas de crença, possibilitando
assim, que a classe dominante continue a usufruir das vantagens que esse poder lhe
oferece.

5.8 – Judaísmo: religião da “saída da religião”.

Michel Gauchet ao caracterizar o fenômeno religioso ou mais propriamente


dito, a religião das sociedades primitivas como sendo religiões “puras” quer dar a
entender por um lado que:

Se tiene sentido hablar de algo así como de un “final” o de una “salida” de la religión
no es tanto desde el punto de vista de la conciencia de los actores como desde el
punto de vista de la articulación de su práctica. El criterio no es lo que piensan y creen
a título personal los miembros de una sociedad dada. Lo que cuenta y decide en la
materia es el orden de sus operaciones de pensamiento, el modo de su coexistencia, la
forma de su inserción en el ser y la dinámica de su actividad.470

Como já salientado anteriormente, esta religião dos povos primitivos, que


Marcel Gauchet qualifica como sendo “pura” tinha na religião a dimensão que em
termos de economia geral relacionada aos fatos humanos, estruturava

470
Marcel Geuchet, El desencantamiento del mundo…, p.145.
indissoluvelmente não somente a vida espiritual daquelas gentes, mas também sua
vida material e social.

Quando Gauchet fala em “saída da religião” ele postula que a lógica


conservadora da integração que reinava absoluta no ser e na solidariedade como um
dado natural ou cultural se inverteu.471 Segundo Gauchet, citando Benjamin Constant a
quem considera um pensador penetrante e agudo em suas observações, é salutar que
se distinga o “sentimento religioso” – que tem seu fundamento num enraizamento
antropológico, constituindo-se assim, num núcleo subjetivo que habita subjacente
independente de qualquer crença socialmente determinada e organizada – das
“instituições religiosas”. Para ele, segundo Benjamin Constant, estas instituições
enquanto fenômeno religioso se constitui num fator invariante e num inesgotável
princípio seminal, cujas construções dogmáticas ou cultuais não são mais do que
formações derivadas e flutuantes desse núcleo antropológico fundamental presente
em cada ser humano.472

Nesse sentido Gauchet afirma que o ponto decisivo para que compreendamos
esta mudança, ou seja, esta passagem de uma realidade onde a religião podia ser
qualificada como “pura” para uma nova situação, onde eu qualifico, por uma questão
de lógica, como “impura”, está no caso exemplar da trajetória feita pela revelação
judeo-cristã.473

A tese que Gauchet propõe está no fato de que com o judaísmo teve início um
processo que culminou na implantação completa de uma articulação entre o divino e o
humano, que corresponde à inversão, ponto por ponto, à estrutura primordial da
dívida com o invisível. Para o autor existe algo de muito artificial nesse processo de
mudança que implicou numa separação entre a ordem da estrutura com a ordem do
acontecimento. Conforme ele mesmo explica:

Nos hemos esforzado por mostrar que no hay nada semejante en realidad, sino una
reorganización de la economía de lo otro anteriormente reinante; reorganización de
las virtualidades por doquier latentes en la matriz política de las “altas civilizaciones”,
que explota de manera más sistemática y más profunda *…+ Pero al mismo tiempo,

471
Idem, ibdem.
472
Idem, p.146.
473
Marcel Gauchet, El desencantamiento del mundo…, p.149
cuando se miran las condiciones concretas en las que se efectuó esta cristalización en
un pequeño pueblo al margen, en forma de respuesta a su situación de opresión, nos
encontramos ante el enigma de una improbabilidad radical.474

Improbabilidade que se aprofundaria mais ainda com o advento do


cristianismo, pois com a reinvenção do divino começada em Moisés e concluída em
Paulo de Tarso a revelação judeo-cristã se constitui numa inversão espiritual do
sistema de poder universal. Wellhausen observou em sua Prolegomena, citado por
Joseph Blenkinsopp, que a teologia dogmática do judaísmo não passa de um mero
abismo vazio sobre o qual o AT funcionaria como uma espécie de mola para o NT.475
Para Gauchet, em particular, é possível medir este desenvolvimento quando voltamos
nosso olhar para as religiões circundantes, mesopotâmicas ou egípcias, banhadas pelas
quais nasceu o deus de Israel.

Así, inventa un dios como no se lo había conocido nunca: un dios construido en


oposición a cualquier otra especie de dioses. El deus de la salida de Egipto: un dios
inconmensurable con los dioses de los egipcios, completamente aparte y mucho más
poderoso que ellos; potencialmente, pues, el único verdadero dios.476

Portanto, foi num contexto de uma situação de opressão externa e de


desarticulação social a nível interno, que o judaísmo foi se configurando, através de
um processo político-religioso, cheio de altos e baixos, conforme o ímpeto das
poderosas nações que dominaram toda aquela região ao longo do primeiro milênio
a.C..

[…+ la dinámica intrínseca de la acción del Estado – dinámica interna de la opresión,


dinámica externa de la expansión – crea las condiciones de un pensamiento religioso
en completa ruptura con la economía primitiva del Uno, cómo permanece
esencialmente conservada en los politeísmos clásicos. Y ello según tres grandes ejes: la
subjetivación del fundamento sagrado a medida del estrechamiento de la presión del
encarnador entre los hombres; la universalización de la perspectiva terrestre a medida
de la ampliación del imperio-mundo, con sus efectos de relativización de las
pertenencias locales o grupales de cualquier orden; y, finalmente, la disyunción entre
este mundo y el más allá a medida, por una parte de la elevación suprema del señor en

474
Idem, p.150.
475
Joseph Blenkinsopp, Judaism – The first phase: the place of Ezra and Nehemiah in the origins of
Judaism, United Kingdom, Wm. B. Eerdemans Publishing Co., 2009, p.4.
476
Idem, p.154.
este mundo y, por otra, de la suma de lo visible bajo un único báculo, cuyo último
principio conspiran, una y otra, desplazar al orden de lo separado.477

O que conta nesse sentido, conforme pensa o próprio Gauchet, consiste no


mecanismo político que permite sua reformulação. A divindade, ausente por
excelência que estava no passado fundador, se muda numa presença sob a forma de
uma capacidade constitutiva de supremo ordenador podendo intervir a qualquer
momento nos assuntos humanos.

E, de fato, segundo as narrativas de caráter histórico do Antigo Testamento, o


que não falta, são historietas falando de um tempo quando a divindade fez e
aconteceu pessoalmente. Praticamente se incluem no rol dessas narrativas todos
aqueles textos relativos ao período anterior à época do exílio babilônico.

E esta divindade que segundo os textos, se auto revela pessoalmente, também


se dispõe a se relacionar, particularmente com alguns homens previamente
escolhidos, no sentido de torna-los seus interlocutores, aqueles que tiveram a missão
de relatar cada uma das leis presentes na Torá e em outros livros do Antigo
Testamento. Nesse sentido, Gauchet afirma:

*…+ Limitémonos a destacar en esta línea que el triunfo de la religión universal del dios
personal adviene al término (y en la zona) de una serie de sacudidas imperiales de
extensión jamás vista: la expansión romana es seguramente el contexto inmediato,
matricial, pero también son un transfundo próximo las conquistas de Alejandro e
incluso, justo antes, la unificación persa del Oriente Próximo y Medio. La
transformación religiosa más profunda, la que representa la ruptura cristiana, está al
término de una prodigiosa ampliación del horizonte de los pueblos; sin duda se cumple
u se impone allí donde el manejo de lo heterogéneo y el descentramiento consecutivo
de las perspectivas humanas fueron más lejos, en el epicentro del más amplio
seísmo.478

Nesse sentido, pode-se falar numa história da diferença do fundamento social:

477
Idem, p.151.
478
Marcel Gauchet, El desencantamiento del mundo…, p.152.
Emergência do ESTADO

Religião Impura
Religião Pura
- institucionalizada -
(Unidade do Ser)
(Dualidade do ser)

Evento Central

(ruptura: mudança de paradigma)

Características gráficas:

 2 economias da diferença do fundamento social;


 2 regimes: de eficácia muito desigual / diferença de duração e ritmos;
 Com a aparição do estado, em outros termos, passa-se da religião pura, na
história propriamente dita, mesmo que essa continue a ser rigorosamente
denegada. Segundo Gauchet, isto é apenas a secessão de um epicentro de
poder.
Segundo Marcel Gauchet, a transição de um período denominado “religião
pura” para “religião impura” marca o que ele chama de: “saída da religião”. 479

Diante desses pressupostos a revelação judeu-cristã se traduz no suprassumo


da experiência, a excelência do movimento de saída. Implica no conceito weberiano de
processo de “desencantamento do mundo” que tem início justamente com a ascensão
do judaísmo, culminando de forma mais pragmática, no período da modernidade.

Nesse sentido, Paulo Barrera Rivera, explicitando a tese de Gauchet afirma que:

A tese de Gauchet se coloca frontalmente contra as teorias – as que considera falsas –


que pretendem explicar o fenômeno religioso em termos de superestrutura. Para
Gauchet, é precisamente nas sociedades que saem da religião que o religioso pode ser
considerado como superestrutura, em relação a uma infraestrutura que funciona
muito bem sem ela. Nas sociedades anteriores ao fenômeno de saída da religião, o

479
Marcel Gauchet, A democracia contra ela mesma..., p.66.
religioso faz parte integrante do funcionamento da sociedade. A saída da religião é a
passagem para um mundo onde as religiões continuam existindo, mas no interior de
uma forma política e de uma ordem coletiva que não é determinada por elas.480

Desse modo, Paulo Barrera vê no conceito “saída da religião” de Gauchet, no


seu sentido mais profundo, a “transmutação do antigo elemento religioso em algo
diferente da religião”, isto é, ele pensa que a proposta de Gauchet combina muitíssimo
bem com a teoria weberiana sobre o desenvolvimento das religiões. Diz ele:

[...] Nos estudos de Weber sobre a religião podemos seguir um processo de


desenvolvimento que vai desde a antiga magia até as formas mais desenvolvidas de
religião: a formação de deuses universais e logo do deus transcendente. Nesse
processo, a ação religiosa racional desenvolve-se paralela à religião, mas ela chega a
um limite no qual a racionalidade religiosa não tem mais sentido, porque os fins
perseguidos se alcançam por outros caminhos que não o religioso; é aqui que a religião
se torna irracional. Não desaparece, mas se torna íntima e privada.481

Esta mesma ideia é também compartilhada por Blenkinsopp, que citando


Wellhausen, afirma que o judaísmo se revelou como um movimento ou processo de
descontinuidade de um “precoce naturalismo religioso israelita” bem como também
de “individualismo ético dos profetas” para o “sufocante legalismo e ritualismo da
hierocracia sacerdotal”. Para Wellhausen a Lei não marcou o início de Israel, mas do
judaísmo.482

E o mesmo Blenkinsopp, citando Richard Horsley, afirma que o judaísmo:

[...] não está para uma forma essencialmente religiosa da vida, mas constitui-se numa
faceta de uma entidade político-étnica, uma forma de caracterizar um estado
agressivo e expansivo alegando legitimidade religiosa através da usurpação do cargo
de sumo sacerdote e controle do templo mantendo e ampliando seu poder por meios
militares, incluindo uso de mercenários estrangeiros.483

480
Paulo Barrera Rivera, Desencantamento do mundo e declínio dos compromissos religiosos. A
transformação religiosa antes da pós-modernidade. Texto acessado em http://seer.ufrgs.br/
CienciasSociaiseReligiao/article/view/2247 em 18/07/2012, p.102.
481
Paulo Barrera Rivera, Desencantamento do mundo…, p.99.
482
Joseph Blenkinsopp, Judaism – The first phase: the place of Ezra and Nehemiah in the origins of
Judaism, United Kingdom, Wm. B. Eerdemans Publishing Co., 2009, p.2.
483
Idem, p.188.
Deste modo, utilizando-se da forte precedência que o elemento religioso tinha no
imaginário, isto é, na consciência do homem primitivo, uma determinada classe de homens –
classe sacerdotal – usa desta prerrogativa para se estruturar e se sobrepor como classe
superior no cenário social da província de Judá.

Por consiguiente, podemos imaginar que cuando las condiciones han permitido a
ciertos hombres, a determinados grupos, personificar en ellos mismos el bien común o
tener acceso exclusivo a las potencias sobrenaturales que, según ellos, tenían el
control de las condiciones de reproducción del universo y de la sociedad, esos
hombres y esos grupos han parecido elevarse por encima de los hombres corrientes,
aproximándose a los dioses, avanzando mucho más que cualquier otro hombre en el
espacio que separa, desde el origen de los tiempos, a los hombres de los dioses *…+
Alejarse de los hombres y dominarlos, aproximarse a los dioses y hacerse obedecer por
ellos son probablemente dos aspectos simultáneos de un mismo proceso, aquél
mediante el cual comienza el camino que conduce a las sociedades de clases y al
Estado *…+ Pero esta vez, lo que había comenzado por una dominación sin violencia se
ha convertido en opresión ideológica y explotación económica, sostenida e prolongada
mediante a violencia armada. Por consiguiente, no hay quizás por qué buscar si es la
política la que adopta una forma religiosa o inversamente, cuando se trata, en este
caso, de dos formas del mismo proceso, dos elementos de un mismo contenido que
existe simultáneamente en diversos niveles.484

É deste modo que se instaura novamente, na província de Judá, uma profunda divisão
de classe. De um lado a classe sacerdotal e do outro o campesinato, que subjugado
ideologicamente, serve aos interesses tanto do clero religioso de Jerusalém, quanto aos
interesses do império persa. Aos poucos, aquilo que conhecemos por Judaísmo, vai se
configurando como um novo modo de ser, a verdadeira identidade do povo israelita que tinha
na lei – na Torá – o fundamento de sua vida, tanto religioso quanto político.

484
Maurice Godelier, Economia, Fetichismo…, p.14-15.
CONCLUSÃO

“A crítica da religião termina com este ensinamento:


o homem é a realidade suprema para o homem e,
também, com o imperativo categórico de liquidar todas
as condições que tornam o homem uma realidade
humilhada, escravizada, abandonada, desprezível”.
Karl Marx

Vivendo num mundo ainda marcado pela conivência entre o poder político e o
poder religioso, aliança esta que ultimamente se alinha a uma concepção que na
prática descaracteriza o ser humano, transformando-o em mero instrumento no jogo
das forças sociais, políticas e principalmente, econômicas. Na ânsia por sobrevivência,
este mesmo ser humano se permite ser humilhado, em pleno século XXI, com todo
avanço científico e tecnológico alcançado, ainda é aviltado por trabalho escravo.

Muitos desses já perderam até a noção da própria dignidade. Para eles, a vida
não existe e a morte continua sendo solução. Para os outros, “felizes e de bem com a
vida” a insensibilidade petrificou lhes o coração, tornou seus olhares frios, distantes e
desumanos. Tornaram-se incapazes de se compadecer da dor e sofrimento alheios.
Mais ainda. Como citado na epígrafe acima, transformaram o ser humano em algo
humilhado e escravizado, por isso, desprezado e abandonado como algo inerme, sem
possibilidade de ser redimido.

No fundo, é o próprio ser humano que por se tornar opressor de seu


semelhante, se perde em seu caminhar, buscando assim, anuviar sua consciência com
sofismas religiosos requentados por uma tradição caduca que já não faz mais sentido
nos dias atuais.

Mas, não é o fim. Ainda existem pessoas de bem, pessoas dispostas a


reescrever esta história mesmo que à custa do derramamento do próprio sangue.
Pode parecer pouco e de fato é, mas o texto que abre nossa carta magna, a
Constituição Federal de 1988 é, não somente elucidativo, mas acima de tudo, é
pragmático no sentido de que nos dá o norte, a direção para onde tudo e todos devem
caminhar:

O homem é o problema da sociedade brasileira: sem salário, analfabeto, sem saúde,


sem casa, portanto, sem cidadania. A constituição luta contra os bolsões de miséria
que envergonham o país. Diferentemente das sete constituições anteriores, começa
com o homem. Graficamente testemunha a primazia do homem, que foi escrita para o
homem, que o homem é seu fim e sua esperança. É a constituição cidadã.
Cidadão é o que ganha, come, sabe, mora, pode-se curar. A constituição nasce do
parto de profunda crise que abala as instituições e convulsiona a sociedade. Por isso,
mobiliza, entre outras, novas forças para o exercício do governo e a administração dos
impasses. O governo será praticado pelo executivo e o legislativo. Eis a inovação da
constituição de 1988: dividir competências para vencer dificuldades. Contra a
ingovernabilidade concentrada em um, possibilita a governabilidade de muitos.

É a constituição coragem. Andou, imaginou, inovou, ousou, ouviu, viu, destroçou


tabus, tomou partido dos que só se salvam pela lei. A constituição durará com a
democracia e só com a democracia sobrevivem para o povo a dignidade, a liberdade e
a justiça.485

Ao eleger os conceitos de religião e política como título dessa tese, parti do


pressuposto, não só pelo fato de que são as duas dimensões da vida humana que mais
concretamente condicionam o comportamento da sociedade, mas porque a história
está repleta de casos particulares que demonstram a incompatibilidade e o desastre
social que é quando se tem essas duas dimensões ou poderes presentes numa mesma
instituição. A história não deixa dúvida de que hoje, assim como ontem, não pode
haver a mínima chance de uma nação como um todo realizar-se plenamente se for
simultaneamente governada pelos poderes, religioso e político.

Nesse sentido, de posse dos conceitos optei por fazer um estudo de um caso
particular. Para isso, escolhi o judaísmo, pois acredito ser um caso exemplar que
fornece, não somente elementos suficientes para corroborar esta tese, mas possibilita
também, dando sequência à análise, fornecer subsídios para um questionamento dos
seus subsequentes desenvolvimentos na história.

A partir da escolha do título defini como específico objeto de pesquisa as


relações de poder, pois que ambas as instituições, tanto a instituição religiosa quanto a
instituição política, reivindicaram o reconhecimento do status de seus plenos poderes
ao longo desses últimos cinco milênios de história.

Como pano de fundo desta tese priorizei, à luz do espírito da nova história,
regatar a memória de um grupo social profundamente marginalizado tanto na
escritura judaica como praticamente, na história de todos os povos: o tribalismo ou as
assim chamadas sociedades primitivas. Foi, portanto, a partir deles, do sofrimento que
lhe foi imposto, das injustiças e da usurpação a que foram submetidos, da ideologia a
que foram condicionados a se submeter, que me propus, particularmente pela sua
ótica, a reconstruir parte da história desse grupo social, que no contexto do judaísmo

485
Texto de abertura da Constituição Federal de 1988 acessado em 8 de Agosto de 2012:
http://www.senado.gov.br/legislacao/const/con1988/CON1988_05.10.1988/CON1988.pdf
ainda incipiente, foi execrado e marginalizado como gente impura, indigna de fazer
parte do assim chamado novo “povo de deus”, cognominado também pela alcunha de
o “pequeno resto de Israel”.

Tendo estabelecido de modo bem concreto como objetivo desta tese


demonstrar a incompatibilidade que existe em se ter numa mesma instituição os
poderes, religioso e político, – pois como a história demonstra esta situação não só
acirrou ainda mais a divisão social que já havia se inserido no tecido social – defini
também como objetivos específicos:

 Levando em conta que os redatores dos principais textos que servem de


fundamento ao judaísmo não são relatos históricos como ficou demonstrado,
mas sim, histórias inventadas, passei a me perguntar pela motivação que teria
levado esses redatores a escrever o que escreveram, ou mais especificamente,
a procurar identificar que teologia/ideologia é essa que está ali desenvolvida.
Desse modo, procedi a uma espécie de desconstrução do modo como esses
textos são tradicionalmente interpretados, pois que foram escritos visando
objetivamente possibilitar a ascensão da classe sacerdotal jerusolimitana como
classe social dominante em toda a região da província de Judá.

 À luz das palavras de Rigoberta Menchú Tum que afirma que:

[...] a concentração dos poderes em poucas mãos condena os pobres a serem mais
pobres e torna mais evidente a urgência de retomar os sagrados valores que deram
origem à nossa humanidade; isto é em essência, o que reivindicamos os povos
indígenas e os povos originários do mundo [...] O respeito aos valores e direitos
individuais e coletivos, ou seja, a vitalidade e a validade do equilíbrio como requisitos
indispensáveis de um mundo justo e pacífico.486 (grifo pessoal)

Em verdade, o problema não está na concentração de poder numa única mão ou numa
única instituição, mas sim, na forma de gestão desse poder. O importante que merece
ser destacado nas palavras de Rigoberta, como penso que procurei fazer, está no fato
de identificar qual ou quais foram esses “sagrados valores que deram origem à nossa
humanidade”. Segundo Rigoberta, esses valores estão associados com um grupo social
específico: com os “povos indígenas e os povos originários do mundo”. Conforme
testemunho de alguns trabalhos de caráter etnológico analisados, foi possível
identificar a igualdade e a solidariedade como sendo esses “sagrados valores” aos
quais se refere Rigoberta, que ainda hoje como ontem, moldam e mantém o tecido
social dessas sociedades tribais. De posse desse dado fundamental das sociedades
486
Giulio Girard, Os excluídos construirão a história? – O movimento indígena, negro e popular: “Durante
cinco séculos outros falaram por nós, hoje queremos começar a falar com voz própria”, São Paulo,
Editora Ática, 1996, p.13.
primitivas me perguntei: por que será que o judaísmo que de tal modo se vangloria de
ser fruto dessas sociedades tribais, não assumiu como próprio também esses valores,
mas pelo contrário, se apresentou como uma sociedade profundamente dividida, ou
seja, estruturada piramidalmente.

Outro elemento advindo das sociedades tribais e que pra eles tem um caráter
igualmente fundamental, consiste no fato de seus chefes não possuírem poder. São
chefes, mas chefes se poder. Essa é uma das grandes lições políticas que as sociedades
tribais nos ensinam. Os chefes tinham como missão zelar para que o sentido de
unidade entre os membros da tribo superasse qualquer desejo pessoal de
superioridade. Por isso, o chefe era de certo modo guardião das tradições e por
incumbência o artífice da igualdade entre todos os membros da sociedade.

 Outro objetivo de caráter específico que merece destaque e de certa forma


também está relacionado às sociedades tribais é quanto á questão da
politização da pessoa humana.

Nesse aspecto, as sociedades tribais viviam um mínimo de politização, isto é, toda a


sua vida em sociedade já estava pré-determinada pelo mito. Como observado no item
anterior, isto possibilitou a preservação desses magníficos valores de ordem social,
mas por outro lado, mitigou qualquer possibilidade de uma evolução social tendo em
vista o seu crescimento demográfico.

De um mínimo de politização avançamos para quase, um máximo de politização.


Conforme tese apresentada por Marcel Gauchet, partindo da assim chamada
“revelação” judaico-cristã teve início, conforme conceito weberiano, um processo de
“desencantamento do mundo”, isto é, partimos de uma situação onde a religião
dominava e impunha a partir de fora a ordem social, passamos agora a vivenciar um
período onde a religião já não determina quase que mais nada no âmbito sócio-
político. A sociedade passa de uma situação de total heteronomia para uma situação
de plena autonomia.

Já não se faz necessário perguntar ao além sobre questões de ordem puramente


humana. O ser humano evoluiu de tal modo que hoje está plenamente consciente
daquilo que precisa ser feito para que todos os povos possam viver com dignidade, isto
é, viver desfrutando de condições básicas para uma vida significativamente feliz.

No tocante à questão da metodologia empregada, a utilização da teoria marxista, ou


seja, de todo o arcabouço teórico referente ao materialismo histórico, concluo que,
apesar de muitos intelectuais – de direita – atualmente acharem que Marx e sua teoria
estão ultrapassados, os resultados desta tese mostram que os instrumentais teóricos
continuam, mais do nunca, sendo passíveis de aplicação e, não somente aos períodos
anteriores ao capitalismo, mas também ao período em que nos encontramos, pois
viver exclusivamente à mercê das diretivas econômicas é totalmente fora de propósito
bem como também contrário aos verdadeiros parâmetros e valores antropológicos.

De fato, a dimensão econômica sempre foi e continua, ainda hoje, determinante em


última instância e com relação ao judaísmo não foi diferente. O templo de Jerusalém
se tornou um grande armazém possibilitando à classe sacerdotal viver desfrutando de
tudo o que ali era oferecido, e isso, sem ter que fazer levantar um dedo, mas tudo
produzido à custa do trabalho do campesinato.

Aos poucos a classe sacerdotal sadocita depois de ter assumido o controle do templo e
o poder religioso em toda a região da província de Judá, também assumiu o poder
político em toda a província. Foi, na verdade, um projeto tecido com os fios da
ideologia. Com inúmeros retalhos cooptados à tradição oriunda do tribalismo, escribas
ligados à classe sacerdotal criaram uma série de narrativas visando única e
exclusivamente justificar e dar legitimidade ao status adquirido pela classe sacerdotal,
bem como também, definir a posição social de todos os demais grupos na estrutura da
sociedade judaica.

Desse modo o judaísmo se apresentou como um sistema de crença nitidamente


ideológico, pois estruturado sob o conceito de falsidade, os livros que servem de
fundamento a esse sistema de crença cumpriram exatamente todo o itinerário de um
processo ideológico real. Mostraram-se, não somente como uma “falsa apresentação”
e como “falsa consciência”, mas também como “falsa motivação” e “falsa
representação” de um sistema em que a classe sacerdotal dominava em todos os
sentidos o campesinato.

Nesse sentido, se pode concluir que as relações que se estabeleceram entre a classe
sacerdotal jerusolimitana e o campesinato judaíta, foram relações de poder baseadas
em dominação, subjugação e exploração, e isso, não somente no âmbito do campo
religioso, mas também no campo social e, principalmente, no campo econômico.

Se os livros do Antigo Testamento que deram sustentação a esse desumano sistema de


crença são ainda hoje aceitos como depositários de uma ética e uma moral que se
apresentam como universais, porque teriam sido divinamente revelados, já passou da
hora de desdivinizá-los, isto é, mostrar que de teologia esses escritos possuem muito
pouco ou quase nada. Alguns chamarão isso de rebeldia, mas como afirma Girard:

A rebeldia é sobretudo intelectual. Implica a rejeição do ponto de vista do mais forte,


da sua cultura, seu sistema de valores, sua interpretação da história. Esta rejeição está
baseada na defesa da própria identidade dos resistentes, do seu próprio ponto de vista
sobre a conquista e a história, de sua própria cultura.487

Em verdade, a chancela divina sobre as prescrições e proscrições contidas nos textos


do Antigo Testamento, tem servido de justificativa para que algumas religiões
institucionalizadas ainda se sintam no direito de intervir no âmbito político e social,
mas sempre salvaguardando seus interesses.

Enquanto milhões e milhões de pessoas ainda vivem abaixo da linha da pobreza os


representantes dessas instituições que deveriam por uma questão de ética e moral
estarem do lado e a serviço dessa imensa multidão, se calam, não sendo capazes de
vociferar contra esse sistema vigente, sistema que exclui que mata de modo incruento.
Isso, de fato acontece porque estas ditas instituições estão de certa forma
macumunadas com o sistema. Na grande maioria das vezes contribuem para um
estado de profunda alienação política, agindo como asseverou Marx quando disse que
a religião é o ópio do povo. Se transformam num autêntico aparelho de estado
segundo Althusser.

No fundo, as religiões institucionalizadas precisam dos pobres, necessitam da pobreza


alheia para que sua suposta teologia seja plenamente justificada e, assim, continuem
servindo-se destes mesmos pobres como suporte de sua milenar estrutura dominante,
pois como diz alguns versículos de seus textos:

 Pobres sempre os tereis

 Bem aventurados os pobres

Nada mais ridículo, antissocial e antidemocrático do que ser porta voz desses
pensamentos. Nada mais desumano do que utilizar esses versículos para não somente
aliviar a consciência desobrigando-se do dever de ajudar o próximo, mas acima de
tudo, profundamente falso e imoral, quando se utiliza tais pensamentos para confortar
aqueles que estão nessas condições. Se de fato, Deus existe, ele deve rir, ou melhor,
ficar profundamente consternado com essa nossa atitude de inversão da realidade.

A pobreza e a miséria que batem à porta de nossas consciências. Jamais poderemos


dormir tranquilos sabendo que em alguma parte do mundo alguém não comeu, passa
frio, não tem acesso à educação, a uma moradia digna e até ao bem mais fundamental
da vida humana: a família.

A instauração de uma nova ordem que tenha como paradigma o desenvolvimento


integral de todas as pessoas exige daqueles que detêm o poder que façam uma

487
Giulio Girard, Os excluídos construirão a história..., p.25
honesta avaliação entre a ética que anima o poder que possuem, pois como afirma
Luís Lorenzetti:

[...] Entre ética e poder a relação será sempre difícil, porém necessária: como o poder
se refere sempre ao outro, corre o risco de ser perversão e puro domínio quando não
se exerce e não se cultiva alto sentido da dignidade humana, da liberdade e dos
direitos humanos.

Na base de todo poder está a relação fundamental do mandato e da obediência. A


decisão antes de tudo, como ato de poder, é o que constitui o problema moral. [...] A
partir do momento em que o bem comum está constituído pelo reconhecimento e
pela promoção dos direitos do homem e da convivência, pode-se dizer que a justiça é
o elemento moral determinante do poder.488

Nesse sentido, ser movido por uma ética profundamente antropológica, isto é,
centrada nos direitos inalienáveis da condição humana, leva a considerar todo ser
humano como igualmente digno de viver e ter acesso a uma qualidade de vida
condicente com sua natureza.

Já um poder que manipule que distorça esse sentido mais profundo da vida de todo
ser humano, deve ser enfrentado, pois não existe razão mais sublime do que lutarmos
para que “todos tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 16,.......). Como orienta
Lorenzetti:

O que mais importa é encontrar os caminhos e os modos de dobrar o poder para


adaptá-lo à causa do bem do homem e da humanidade e ir verificando sucessivamente
se isto é possível, apesar de difícil. A utopia de uma sociedade “sem chefes” deve
empregar toda a sua força para tornar concebível o uso dos chefes para a realização
deste desígnio.489

Devido à complexidade de nossas cidades, é impensável que não existam pessoas


preparadas para exercer a função de “chefes” – coordenadores, talvez fosse um termo
mais apropriado. O exemplo que as sociedades primitivas e ainda hoje, as sociedades
indígenas nos dão, é a de que aqueles que lideram que o façam com um verdadeiro
espírito altruísta, buscando acima de tudo o bem comum.

Mas as circunstâncias não são nada favoráveis para que esse tipo de discurso seja
aceito facilmente. Segundo Luís Lorenzetti:

“Temos que reconhecer que se tem ensinado mais a respeitar a lei do que a
questionar a nossa consciência, e que o culto da norma, da ordem, do poder
488
Luís Lorenzetti, “Poder”...., p.971.
489
Idem, p.972.
constituído, da ideologia dominante nos levou a ignorar de fato o caráter absoluto da
consciência” (Th. Rei Mermet).

Em nenhuma época, e muito menos na nossa, a meta da formação moral pode


consistir em obter pessoas submissas e obedientes; e também não é o contrário, a
saber: obter desobedientes e rebeldes. O fim da formação moral é conseguir pessoas
livres, que em diálogo e reciprocidade com as pessoas livres saibam quando é certo
obedecer e quando se é obrigado a desobedecer. O fim de toda meta educativa é
formar pessoas capazes de viver criticamente na sociedade, capazes de valorizar o seu
estar no mundo, capazes de ser pessoas que se constroem em liberdade para a
solidariedade e para a justiça, e, portanto, capazes, justamente por obediência a estes
valores, de discordar e de objetar. 490

Por isso, como diria Juvenal Arduini, é preciso ousar, pois ousar é pulsação criadora, é
tentar realizar o que ainda não foi feito. Ousar não é arrogância, mas compromisso,
estilo de vida. Ousar é suscitar o acontecer, é fazer acontecer. É mergulhar no tumulto
das possibilidades e edificar nova fase histórica e nova estrutura social.491

Trata-se de uma tomada de partido não só moral e política, mas também, intelectual e
cultural. Neste nível, tomar partido pela resistência significa afirmar que seu ponto de
vista é mais idôneo para aproximar-se da verdade sobre o sentido da vida e da história;
que na atual crise da civilização, os excluídos emergentes como sujeitos são os mais
idôneos para analisar objetivamente a situação do mundo, para identificar os
problemas de vida e de morte, para perceber os caminhos rumo a alternativas de
vida.492

Desse modo, completa Giulio Girard:

Assumir o ponto de vista dos oprimidos resistentes sobre a história e a civilização atual
significa em primeiro lugar, assumir a sua causa, por ser moral e politicamente justa. A
opção pela resistência é uma expressão particular e particularmente importante da
opção pelos excluídos como sujeitos. Nossa hipótese é de que uma atitude moral e
politicamente justa favorece uma busca intelectual honrada da verdade.493

Por isso, continuar a compactuar com o sistema de crença que condiciona a maioria de
nossa gente a uma atitude de aceitação e passividade diante de tanta opressão é negar

490
Luís Lorenzetti, Poder..., p.973
491
Juvenal Arduini, Antropologia: ousar para reinventar a humanidade, 2ª Edição, São Paulo, Editora
Paulus, 2002, p.38-41.
492
Luís Lorenzetti, Poder..., p.973
493
Giulio Girard, Os excluídos construirão..., p.27.
que somos de uma mesma raça, que temos consciência e não somos zumbis
teleguiados. Por isso:

Ficar do lado da resistência significa assumir suas opções éticas, políticas e culturais,
somando-nos assim à própria resistência. Significa, portanto comprometermo-nos com
ela na revelação do passado, na reinterpretação da história, no resgate das culturas,
religiões, identidades reprimidas.494

Nesse sentido, conforme alusão feita a um texto de Paulo Freire (A pedagogia


da autonomia) na introdução cada um de nós é convidado a se posicionar de forma
bem concreta:

 A favor do que estou lutando?

 A favor de quem estou lutando?

 Contra o que estou lutando?

 Contra quem estou lutando?

Que cada um de nós possa se abrir ao novo que já está surgindo, que não menospreze
os sinais dos tempos, pois é um processo irreversível.

494
Idem, p.28.
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