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PENSAMOS, LOGO, SOMOS


DA SUBJETIVIDADE À CONSCIÊNCIA OBJETIVA

Hugo Rezende Henriques1; João Batista Miguel2; Raphael Machado de Castro3

“O habitat da liberdade é a cultura,


não a natureza” 4

INTRODUÇÃO OU A DETERMINIDADE DO SUJEITO


“O belo, o sagrado, a religião, o amor são a isca requerida
para despertar o prazer de mordiscar. Não é o conceito, mas
o êxtase, não é a necessidade fria e metódica da Coisa que
deve constituir a força que sustem e transmite a riqueza da
substância, mas sim o entusiasmo abrasador.” 5
Da bela totalidade grega à modernidade, o sujeito (Homem) ocidental percorreu a
espiral pendular da História da lenta tomada de consciência de sua liberdade – da civilização
helênica às contribuições do helenismo, dos momentos da cultura política romana aos
contributos do cristianismo (especialmente a patrística e a escolástica).6 Nesse percurso,
formou-se a consciência do sujeito capaz de vontades e, mais tardiamente, do sujeito capaz
de vontades em algum sentido compreensíveis como livres.7
O longo caminho percorrido nos mais de 2000 anos que compreendem o período
acima mencionado se deve, talvez, ao domínio filosófico e cultural do que Joaquim Carlos
Salgado chamou de “Metafísica do Objeto”, ou seja, uma preocupação direta do homem em

1 Doutorando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, bolsista do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) sob orientação do Prof. Dr. José Luiz Borges Horta; é
Mestre em Direito pela Universidade de São Paulo, Mestre em Biologia pela USP, Bacharel em Direito pela
USP, Bacharel em Biologia pela UFMG. E-mail: hugorezende20@yahoo.com.br
2 Mestrando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, sob orientação do Prof. Dr. José Luiz

Borges Horta; é especialista em Formação Política para Cristãos pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
de Janeiro; Bacharel em Filosofia pelo Instituto São Tomás de Aquino de Belo Horizonte; atualmente é
Secretário de Estado adjunto de Cultura do Estado de Minas Gerais. E-mail: vercampestre@gmail.com
3 Graduando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, bolsista de Iniciação Científica do

Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientifico e Tecnológico (CNPq) sob orientação da Profa. Dra.
Daniela Muradas Antunes. E-mail: raphamachado97@gmail.com
4 SALGADO, Joaquim Carlos. A ideia de justiça no período clássico ou da metafísica do objeto: a igualdade. Belo

Horizonte: Del Rey, 2018, p. 3.


5 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do Espírito. Trad. Paulo Meneses. 9ª ed. Petrópolis: Vozes,

2014, §7.
6 Nos referimos aqui a uma percepção da história que pode ser descrita como simultaneamente pendular,

ascendente e, portanto, espiralada e contraditória, em absoluta consonância com a interpretação exarada por
MORAES, Alfredo de Oliveira. A metafísica do conceito: sobre o problema do conhecimento de Deus na
Enciclopédia das Ciências Filosóficas de Hegel. Porto Alegre: EDPUCRS, 2003, p. 274: “na compreensão
hegeliana da História universal, segundo entendemos, não se pode imaginar uma linha evolutiva contínua, mas
uma espiral ascendente marcada pela força do negativo e puxada pelas erupções das paixões”.
7 Sobre o tema, Cf. FREDE, Michael. A free will: Origins of the notion in ancient thought. Los Angeles:

University of California Press, 2011.


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conhecer a realidade que o cerca, em compreender aquilo que lhe é exterior,8 vez que, como
já mencionamos, o próprio sujeito – e a noção de sujeição que lhe é afeta –, embora fosse
em alguma medida percebido em sua igualdade (especialmente após a contribuição estoica
que se perfaz na filosofia cristã do sujeito de direitos universal e portador de uma dignidade
humana)9, não era percebido como efetivamente livre, ou seja, não era sabedor de sua
liberdade.
Trata-se, na Metafísica do Objeto, de um momento de universalidade abstrata da
própria metafísica ou, se assim preferirmos, da razão mesma, que aqui não possui sujeito
necessário ou preferencial, isto é, embora se reconheça o sujeito, esse não é necessário, pois
a realidade se impõe como verdade a despeito dele; a externalidade existe independente da
mediação do sujeito que pode, quando muito (quando capaz de pensar ou filosofar) receber
os afluxos dessa realidade e reconhece-la de forma exclusivamente imediata.
Assim, embora se reconheça o Homem como medida de todas as coisas, a
universalidade do conhecimento do mundo, exigência lógica da ciência na perspectiva do
grande sistemático dessa forma de compreensão, Aristóteles, requer que se encontre as
identidades nos objetos, na exterioridade, isto é, somente a coincidência da razão humana
com a exterioridade (em que esta se impõe àquela como única verdade) pode ser considerada
um saber:
A verdade da ciência há de ser geral (universal), no pensar de Aristóteles. Essa
característica da verdade científica está do lado da realidade, do objeto conhecido. O que se
afirma de um fenômeno tem de ocorrer em todos da mesma espécie. O racional
tem de estar em todos os indivíduos da espécie humana. Só assim a proposição
‘o homem é racional’ é uma proposição verdadeira, isto é, expressa o que está no
intelecto como coincidente com o objeto10
Ou, na formulação mais conhecida que nos foi legada por Tomás de Aquino: adequatio
intellectus et rei (adequação da coisa com o intelecto).11 É, aliás, o próprio Aristóteles quem, em
seu “Da interpretação”, admite que a verdade é, em síntese, uma espécie de correspondência
com a realidade que se impõe ao filósofo.12 Ainda acompanhando a interpretação de Salgado,
é justamente na esplendorosa metafísica tomásica que teria se encerrado o período de maior
vigor da Metafísica do Objeto, na inflexão que realizou o sujeito cognoscente para dentro de

8 “Na Metafísica do Objeto, o homem ocidental está preocupado com conhecer a realidade externa, em criar
definitivamente a ciência com a descoberta da razão demonstradora (episteme).” (SALGADO, Joaquim Carlos.
Op. Cit., 2018, p. 12, grifos do original).
9 Cf. o capítulo de SALGADO, Karine. Ilustração e Dignidade Humana. In: HORTA, José Luiz Borges &

SALGADO, Karine. História, Estado e idealismo alemão. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2017.
10 SALGADO, Joaquim Carlos. Op. cit., 2018, p. 19, grifos nossos.

11 ibidem, p. 20.

12 SAMARANCH, Francisco de P. Preámbulo à De la Expresión o Interpretación. In: ARISTÓTELES. Obras.

Madrid: Aguillar, s/d, p. 255 apud SALGADO, Joaquim Carlos. Op. cit., 2018, p. 21.
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si mesmo – no ceticismo crescente em relação à possibilidade de uma verdade exterior à


Razão (cuja cisão absoluta com a exterioridade perduraria, ainda, por mais alguns séculos).
Nesse sentido, é no giro cartesiano do cogito que se estabelece a busca por uma
evidência radical e inquestionável daquilo que necessariamente é, e que, portanto, não
poderia ser encontrado na exterioridade incerta e é descoberto no eu penso, que prescinde de
toda sensibilidade – é a racionalidade humana quem se impõe a despeito de toda
exterioridade como momento essencial; aquilo sobre o que não pode haver dúvidas: “O
princípio ontológico é agora o eu, mas como o que pensa livremente, portanto se põe como
causa sui, ou seja, sujeito. [...] O eu (ego) é posto como primeira substância a dar fundamento
a tudo que existe, pois nele se assenta a essência, o cogito (ou a razão), e a existência, o sum”.13
Se, na perspectiva cepticista, a única certeza possível é a da dúvida, e a instância capaz
da dúvida é a razão humana, então é a instância questionadora – o pensamento – aquela que
inegavelmente existe e não pode ser afastada. A primeira substância que se afirma como
essência, portanto, é a res cogitans.14
O preparo da coisa natural (do fenômeno) para tornar-se fato científico observa
um comando, um projeto, que não vem somente da coisa na sua materialidade,
mas da mente de Galileu, ‘concebo mentalmente’, diz nos ‘Discorsi’ [...]. Esse
planejar ou traçar a estrutura do fato a partir da mente, ou da razão pura, mostra
que a experiência na Física parte de um a priori sem o que não é possível a
simplificação do fato [...] para efeito de nele estabelecer uma lei válida. A estrutura
da validade é toda dada pela mente, a razão, no caso, a razão matemática, que
procede por axiomata, por princípios por ela tomados como tais, valores de
verdade postos na coisa externa.15
Ao conceber mentalmente um fato no puro pensar16, e proceder daí para verificar a
correspondência do experimento na realidade, é a Razão quem se impõe à realidade como
instância capaz de, por si só, substituir toda a realidade ou abrigá-la integralmente no
exercício de sua potência pensante. “O cogito ergo sum põe como substituto de todo o real, o
real evidente, axiomático, o ego”.17 É ele quem passa, então, a ser o ser por excelência e, nesse
movimento, se torna infinitamente mais livre que os sujeitos determinados da Metafísica do
Objeto.18

13 SALGADO, Joaquim Carlos. Op. Cit., 2018, p. 243, grifos nossos e do original.
14 ibidem, p. 244.
15 ibidem, p. 245, grifos do original.

16 “’concebo mentalmente um corpo projetado num plano horizontal e livre de qualquer obstáculo’. Não se

trata de observar um corpo em movimento sem qualquer obstáculo, mas de conceber o fato no puro pensar, e
de pô-lo como regente de todo movimento mecânico.” (SALGADO, Joaquim Carlos. Op. cit., 2018, p. 247).
17 SALGADO, Joaquim Carlos. Op. cit., 2018, p. 246, grifos do original.

18 Se, no plano filosófico, a Metafísica do Sujeito deve ser reconhecida como esse ponto de inflexão em sentido

ao reconhecimento da liberdade do Homem, não devemos nos olvidar de perceber, com Weber, a importância
central do desenvolvimento da “Ética protestante” como condicionante, possibilitadora da consciência da
liberdade do sujeito no plano religioso e social (portanto, cultural) – esse sujeito que agora não mais depende
da tradição da Igreja de Roma para se conectar com o Deus, realizando tal feito diretamente por meio da
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O INDIVÍDUO TRANSCENDENTAL OU A INDETERMINIDADE DO SUJEITO


“Corresponde a tal exigência o esforço tenso e impaciente, de
um zelo quase em chamas, para retirar os homens do
afundamento no sensível, no vulgar e no singular, e dirigir
seu olhar para as estrelas; como se os homens, de todo
esquecidos do divino, estivessem a ponto de contentar-se com
pó e água, como os vermes.” 19
O giro cartesiano, entretanto, é somente o primeiro passo no caminhar da filosofia
do momento da universalidade abstrata da metafísica (Metafísica do Objeto) ao seu momento
de afirmação como pura particularidade na Metafísica do Sujeito que viria a conceber um
indivíduo que independesse radicalmente da realidade, isto é, a existência de um sujeito
transcendente. Veja-se, desde logo, que o eu cartesiano está ainda no plano metafísico como
substância (a res cogitans); o indivíduo transcendental de Kant, inegável ponto de cumeada da
Metafísica do Sujeito, é pura forma a priori.20
A noção de causalidade não procede do conhecimento dos objetos, mas é
condição do sujeito para esse conhecimento, a qual não é sensível, porque
possibilita pensar objetos transcendentes. Essa premissa fundamental, que
considera as coisas como fenômenos, é a revolução copernicana [...] de Kant, a
partir do despertar do sono dogmático. Aproveitando o que há de positivo no
racionalismo, bem como no empirismo, Kant observa que os nossos
conhecimentos ora são empíricos, ora são a priori ou puros, isto é, ou provêm da
experiência sensível, ou se constituem independentemente da experiência.21
Notemos, entretanto, que a experiência sensível, em Kant, não é o momento de
intersecção entre o sujeito e qualquer exterioridade (o inalcançável noumenon – a coisa em si
que a forte influência do ceticismo impede que seja alcançada pela filosofia kantiana). Não
havendo coincidência possível ou crível, a coisa em si, a essência, não poderia ser cognoscível
e estaria irreconciliavelmente apartada daquilo que a razão humana pode perceber, o
fenômeno, a manifestação intelectiva que seria o único “objeto” realmente possível de
conhecimento pelas ciências.22
É dizer que, “pelo método da análise do sujeito transcendental [...] devemos deixar a
coisa em si no seu lugar e considerar o objeto dos sentidos segundo a estrutura da nossa
faculdade de intuição. Somente assim é possível um conhecimento a priori”.23

Escritura (agora traduzida para os idiomas locais). Cf. WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo.
São Paulo: Martin Claret, 2016.
19 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Op. cit., 2014, §8.

20 SALGADO, Joaquim Carlos. Op. cit., 2018, p. 248.

21 SALGADO, Joaquim Carlos. A ideia de justiça em Kant: seu fundamento na liberdade e na igualdade. Belo

Horizonte, Editora UFMG, 1995, p. 85.


22 SALGADO, Joaquim Carlos. Op. cit., 2018, p. 22.

23 SALGADO, Joaquim Carlos. A ideia de justiça em Kant: seu fundamento na liberdade e na igualdade. 3ª ed.

Belo Horizonte, Del Rey, 2012, p. 66.


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Ou seja, ao estabelecer, desde a Crítica da Razão Pura, a irreconciliabilidade entre


noumenon e fenômeno, a filosofia transcendental libertou o sujeito clássico de toda sua
determinidade, vez que o mundo noumênico não lhe diz mais respeito.24 No entanto, ao
proclamar a máxima liberdade do indivíduo transcendental, a Metafísica do Sujeito o
enclausurou na solidão de sua particularidade, no deserto de sua própria individualidade,
sentenciando-o à incapacidade de reconhecer o Outro, erigido como noumenon, exceto por
aquilo em que lhe é idêntico, isto é, somente por suas racionalidade individuais podem os
indivíduos transcendentais estabelecer algo de comum (que não é propriamente comum,
senão universal).25
A filosofia da reflexão, como em Kant e em Fichte, segundo Hegel, permanece
na cisão dos termos opostos, pela afirmação da identidade recolhida num dos
termos, a excluir qualquer relação com o outro, fixando-os nas suas posições, de
modo a ser negada a diferença abstratamente, portanto eliminando-a, excluindo-
a. A filosofia da reflexão é uma filosofia do entendimento, segundo Hegel. Na
esfera da razão, a reflexão dialética é movimento que faz um termo ‘diante de’
negar o outro, mas como mediação para si, tal como mostra Hegel na Ciência da
Lógica.26
Uma vez que o noumenon (a essência, ou coisa em si) é inacessível, a filosofia
transcendental desloca o objeto para o fenômeno, isto é, a coisa-para o sujeito no qual ele se
manifesta, de forma que não haja nada que a razão possa conhecer para além de si mesma
(é, portanto, rigorosamente individual, a pura particularidade). É no intelecto do sujeito que
o objeto se forma mediante o acoplamento das intuições da sensibilidade, submetidas às
determinações de suas formas a priori, nas categorias do entendimento.27
Ou, no dizer de Salgado, “a filosofia transcendental não deixa espaço para a adequatio
da coisa considerada em si com o conceito. Tanto o objeto do sentido interno (no tempo),
como o objeto do sentido externo (no espaço), a alma e o corpo, são conhecidos como
fenômenos”.28 Espaço e tempo são, aliás, as intuições a priori por excelência da razão, e
ensejaram um dos mais interessantes e diretos debates entre o pensamento de Kant e o de
Hegel (por parte, claro, deste último) que, nesse ponto, são antipodais, como veremos.

24 “A lógica transcendental, enquanto investiga a estrutura a priori do pensar no sujeito, abandona ao


incognoscível o objeto em si. O objeto é o fenômeno, já subjetivo. A objetividade é a priori também do sujeito
[...]. No sujeito transcendental encontram-se determinações a priori, mas do objeto não se pode indicar qualquer
determinação.” (SALGADO, Joaquim Carlos. A ideia de justiça em Hegel. São Paulo: Edições Loyola, 1996, p.
41).
25 “Desde logo, vê-se que os elementos principais da ética kantiana, razão e dever, não se encontram no ser,

mas [...] no pensar; não no objeto, mas no sujeito” (SALGADO, Joaquim Carlos. Op. cit., 1995, p. 145).
26 SALGADO, Joaquim Carlos. Op. cit., 2018, p. 9, grifos do original.

27 Ibidem, p. 27.

28 SALGADO, Joaquim Carlos. Op. cit., 2018, p. 27, grifos originais.


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O espaço para Kant, leciona Salgado, não é uma determinação das coisas, posto que
não subsistiria sem as condições subjetivas da intuição. Não poderia, assim, ser algo que
pertencesse às coisas, pois, se o fosse, não seria intuído independentemente da sua
existência.29 A crítica hegeliana à noção do espaço como intuição a priori é feroz e
rigorosamente levada em termos lógicos, merecendo ser vista por inteiro:
A finitude espacial do mundo [em Kant] é posta de modo apagógico; ‘este se
encontraria, com isso, em um vazio espaço ilimitado e teria uma relação com ele;
mas uma tal relação do mundo com nenhum objeto é nada’. [...] o que deveria ser
provado está aqui diretamente pressuposto na prova. Diretamente, assume-se que
o mundo espacial limitado deveria se encontrar em um espaço vazio e deveria ter
uma relação com ele, quer dizer, que seria preciso ir além dele, – por um lado,
para o vazio, para o além e para o não ser dele, mas, por outro lado, que ele estaria,
com isso, na relação, isto é, continuar-se-ia nela; o além, com isso, precisaria ser
representado como preenchido com uma existência do mundo. A infinitude do
mundo no espaço, que é afirmado na antítese, não é outra coisa do que, por um
lado, o espaço vazio, por outro, a relação do mundo com ele, quer dizer,
continuidade do mesmo nele, ou seja, o preenchimento do mesmo; contradição a
qual – o espaço, ao mesmo tempo, como vazio e, ao mesmo tempo, como
preenchido – é o progresso infinito da existência no espaço. Essa própria
contradição, a relação do mundo com o espaço vazio, tornou-se diretamente base
na prova.30
Similarmente, o tempo não poderia, leciona Salgado a respeito da perspectiva
kantiana, ser uma coisa em si, exterior, ou uma qualidade ou relação das coisas mesmas (no
noumenon). Se assim fosse, não seria dado antes da experiência das próprias coisas, nem
tampouco poderia ser intuído a priori por proposições sintéticas. Se, no entanto, o
tomássemos como condição subjetiva em que se dão todas as intuições, poderíamos intuí-lo
a priori antes da experiência das coisas. O tempo, assim, seria condição a priori de todos os
fenômenos, distinguindo-se do espaço, que é condição apenas dos fenômenos externos.
Como todas as representações seriam submetidas ao estado interior do espírito, submetendo-
se, assim, às condições formais dos fenômenos internos, o tempo seria condição geral para
todas elas.31 Novamente a crítica hegeliana é contundente e merece ser visitada:
Na verdade, o tempo [para Kant] é quantidade pura; o ponto de tempo utilizado na
prova, na qual ele deveria ser interrompido, é, antes, apenas o ser para si que se
suprassume a si mesmo do agora. A prova fornece nada mais do que ela torna
representável o limite absoluto afirmado na tese como um ponto de tempo dado e
justamente o assume como ponto consumado, isto é, abstrato, – uma
determinação popular, a qual o representar sensível deixa passar facilmente como
um limite, com isso, deixa valer na prova como assunção o que antes foi
estabelecido como o que precisa ser provado. [...] Essa prova apagógica contém,
como as outras, a afirmação direta e não provada daquilo o que ela deveria provar.
Ela assume primeiro, de fato, um além da existência [Dasein] do mundo, um
tempo vazio, mas, depois, a existência do mundo igualmente continua também
para além de si para dentro deste tempo vazio, por isso, suprime-o [aufhebt] e

29 SALGADO, Joaquim Carlos. Op. cit., 1995, p. 92.


30 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Ciência da lógica: 1. A doutrina do ser. Trad. Christian Iber, Marloren
Miranda e Frederico Orsini. Petrópolis: Vozes, 2016, p. 253.
31 SALGADO, Joaquim Carlos. Op. cit., 1995, p. 92-93.
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prossegue, com isso, a existência para o infinito. O mundo é uma existência; a


prova pressupõe que esta existência surge e que o surgir tenha uma condição
antecedente no tempo.32
Ao tomar os conceitos de espaço (que se desdobra em Cultura) e tempo (que se
realiza na História) para a subjetividade como a priori, e não como determinação, Kant eleva
o conceito de indivíduo33 (transcendental) à sua potência máxima de indeterminação, de “má
infinitude”, nos dizeres de Hegel34, vez que trata-se de uma infinitude infinitamente
indeterminada, ou seja, não mediada. Enclausurado na condição de uma particularidade cujo
único movimento possível é em direção à uma universalidade abstrata – ou seja, incapaz de
prosseguir em direção à “boa infinitude” da universalidade concreta35 –, o “indivíduo”
kantiano tem por máxima de ação: a) ou bem a não-ação, única garantia inequivocamente
racional de volta à universalidade abstrata; ou b) uma ação individualista, ou seja, a tomada
da particularidade como baluarte de uma racionalidade autocentrada e plenamente confiante
no seu status de máxima potência racional (numa relação direta, não mediatizada e quase co-
localizada, entre indivíduo e Deus):
Com efeito, o quantum deve, em si, ser realizado plenamente, mas de modo
transcendental, a saber, no sujeito que lhe dá uma relação com uma unidade,
surgiria apenas uma tal determinação do quantum que estaria plenamente
realizada e pura e simplesmente afetada por um além. Aqui, portanto, detém-se,
em geral, na contradição que a grandeza contém, mas distribuída no objeto e no
sujeito, de modo que àquele compete a limitação, mas, a esse, o ir além, para o

32 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Op. cit., 2016, p. 252.


33 Pode-se tomar a ideia de indivíduo sobre muitas perspectivas, mas todas necessariamente precisam partir do
pressuposto da existência de algo indiviso no sujeito, isto é, algo de absolutamente indeterminado externamente.
O indivíduo transcendental kantiano, poderíamos dizer, é inteiramente indiviso, pois qualquer Outro lhe é
somente fenômeno, ou seja, é o desdobrar de sua própria racionalidade, sendo-lhe, portanto, interno.
Inegavelmente, entretanto, é bastante curioso que justamente os conceitos de tempo e espaço sejam tomados
por Kant como as intuições a priori por excelência, visto que é precisamente a perda de uma referencialidade
externa de sua determinidade histórico-cultural que, quase invariavelmente, desde a modernidade, caracteriza o
que hoje chamamos de individualismo (e que Weber identifica como processo de racionalização com
consequente desenraizamento – desvinculação com a determinação da História – e desencantamento –
desmitificação que determina a desvinculação do sujeito com a determinação de uma Cultura. Cf. WEBER,
Max. Op. cit., 2016).
34 Contra essa posição se insurge Hegel que retoma, já sob a influência dos aportes do romantismo, toda a

importância e, porque não dizer, necessidade da Cultura e da História não como a priori, mas como
determinantes (não no sentido de Destino inevitável, mas de Destino como tarefa): “Cada um é filho de seu
povo e, igualmente, filho de seu tempo [...] Ninguém fica atrás de seu tempo e, muito menos, o ultrapassa”
(HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Filosofia da História. Trad. Maria Rodrigues e Hans Harden. 2ª ed. Brasília:
Editora UnB, 1999, p. 50). Ou, no dizer de HORTA, José Luiz Borges. Entre o Hegel Racional e o Hegel Real.
In: HORTA, José Luiz Borges & SALGADO, Karine. Op. cit., 2017, p. 61, grifos do original: “Filosofar implica
uma nostalgia do que Hegel chama, na esteira romântica, de bela totalidade ética grega: um tempo mágico e mítico
da filosofia, no qual ética e política pertenciam a um mesmo universo, assim como o cidadão e a pólis, a moral
e a religião, o material e o espiritual, o humano e o divino. Essa tarefa tornou-se particularmente ingrata desde
a fragmentação analítica dos saberes filosóficos levada a cabo pelo projeto kantiano de cientifização da filosofia
e a centralidade ocupada no pensamento kantiano pela separação entre o homem que conhece e o homem que
age, entre razão pura teórica e razão pura prática, entre ser e dever ser”.
35 Da dialética da determinação recíproca do finito e do infinito resulta o infinito verdadeiro ou afirmativo como

unidade do infinito e do finito, no qual o finito não é mais real, mas ideal. O infinito afirmativo é a realidade
em sentido elevado. (IBER, Christian. Introdução. In: HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Op. cit., 2016, p. 11).
8

mau infinito, de cada determinidade apreendida por ele. [...] No que inicialmente
concerne ao verdadeiro quantum infinito, ele se determinou como infinito nele
mesmo; ele é isso, na medida em que, como resultou, o quantum finito ou o
quantum em geral e seu além, o mau infinito, estão de igual maneira
suprassumidos.36
O indivíduo transcendental, assim, é uma infinita particularidade que queda incapaz
de movimentar-se em sentido à suprassunção no momento posterior, o do nós, da Cultura
intersubjetivamente e tradicionalmente determinada.37 Assim, da origem a algo que se poderia
chamar, não sem uma forte contradição de termos, por uma espécie de “cultura
individualista” já denunciado por Karine Salgado, segundo a qual “o fortalecimento do
individualismo, por meio do depósito das questões morais e religiosas na convicção de cada
um, enfraquece a ideia de fins comuns, compartilhados com toda a sociedade. Dois extremos
se configuram: o absolutismo estatal e o absolutismo individual”.38 Prova desse movimento
é a expressão de Diderot sobre o ideal de homem ilustrado: “um filósofo que deixa de lado
o preconceito, a tradição, o antigo, o consenso universal e a autoridade, em poucas palavras,
tudo o que subjuga o entendimento e se atreve a pensar por si mesmo”.39
Isto é ternura demais para com o mundo: afastar dele a contradição, pelo
contrário, transferi-la ao espírito, à razão e, nisso, deixá-la subsistir não dissolvida.
De fato, é o espírito que é tão forte para poder suportar a contradição, mas ele é
também aquele que a sabe dissolver. Mas o assim chamado mundo (queira ele
dizer mundo objetivo, real, ou, conforme o idealismo transcendental, intuir
subjetivo e sensibilidade determinada pela categoria do entendimento) em
nenhuma parte está dispensado, por causa disto, da contradição, mas não é capaz
de suportá-la e por causa disto está exposto ao surgir e ao perecer.40
Mas voltemo-nos à Metafísica do Sujeito enquanto sua contribuição essencial ao
movimento dialético da própria metafísica (no momento da particularidade) e, com ela, da
consciência da liberdade do homem. O giro antropocêntrico empreendido por esse
momento constitui uma significativa mudança de perspectiva, à medida em que coloca o
homem em primeiro plano, permitindo a maior consciência da ideia de liberdade que,
segundo Karine Salgado, se encontrava apenas de forma latente nos momentos anteriores à
Ilustração, para percebermos, com ela, que:
O processo de secularização é fundamental nesse tema. Ele desmistifica a
natureza e desvincula de modo radical ciência e ética. [...] As questões éticas

36 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Op. cit., 2016, p. 260.


37 Que não se tribute, contudo, a Kant exclusivamente, o fenômeno contemporâneo e de longo
desenvolvimento histórico do individualismo: “[Na ilustração] há uma inevitável prevalência da vontade
individual como estabelecedora da ação, como definidora das decisões em detrimento de uma determinação
imposta por terceiros. A autonomia ocupa o espaço da heteronomia. Não há mais a necessidade de se tutelar o
homem, razão pela qual a religião não encontra lugar nas questões políticas” (SALGADO, Karine. Op. cit., 2017,
p. 35).
38 SALGADO, Karine. Op. cit., 2017, p. 33.

39 DIDEROT, Denis. Oeuvres completes. Paris: Assézat-Tourneux, v. XIV apud TZVETAN, Todorov. El espíritu

de la Ilustración. Trad. Noemí Sobregués. Barcelona: Galaxia Gutenberg, 2008, p. 41.


40 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Op. cit., 2016, p. 254.
9

buscam apoio na vontade livre, o que abre as portas para a construção de uma
nova realidade, apartada da natural, segundo suas próprias determinações. 41
A liberdade em Kant é profundamente legatária do individualismo ilustrado, ou seja,
não é liberdade no ou para, mas liberdade do sujeito. Quando ela é apresentada, na Crítica da
Razão Pura, o é como espontaneidade, ou seja, como “causa incausada” – só possível,
portanto, no indivíduo transcendental infenso a qualquer determinação externa. Erige-a,
então, como autodeterminação em face da universalidade da Razão, isto é: “livre é aquele
que não se determina por nada exterior, é aquele que se autodetermina. [...] A noção de
autonomia leva, assim, a considerar como ser livre somente aquele que se determina por sua
própria razão, ou, no dizer de Kant, aquele cuja máxima de ação pode ser erigida a lei
universal”.42
Assim emerge o problema da moral no indivíduo transcendental, posto que esse
indivíduo é capaz, nessa perspectiva, de por sua razão e a partir da revelação da estrutura do
seu eu transcendental, conhecer não apenas a ciência dos fenômenos, como vimos até aqui,
mas também a moralidade das ações. Ou seja, é capaz de autodeterminar sua liberdade
racionalmente no sentido do agir universalmente correto do ponto de vista moral.43
Que a razão ou o sujeito transcendental é a única alternativa que resta para a
fundamentação a priori da moral [...] é questão que para Kant ficou resolvida na
Crítica da Razão Pura, que mostrou não haver possibilidade de outro objeto que
não seja o dado nos sentidos, eliminando a possibilidade do conhecimento de um
objeto ideal. De qualquer modo, a confusão entre matéria e forma nunca ocorre
no idealismo transcendental, visto que a forma se refere sempre ao sujeito
transcendental (não psicológico) e não à coisa, seja enquanto considerada como
um dado das sensações, seja enquanto considerada em si mesma, mas externa ao
sujeito.44
Se, na perspectiva kantiana, a experiência sensível na natureza é a fonte de toda
verdade – posto que nenhum conhecimento se dá no homem senão a partir dos estímulos
que a sensibilidade oferece como objeto a ser pensado –; quando se trata de conceber a lei
moral, essa mesma experiência é fonte apenas de aparências, cabendo apenas à racionalidade
pura a faculdade de realizar tal operação.45
Se podemos falar em um otimismo na Ilustração, ele está no próprio homem, na
sua capacidade de conhecer, agir, construir a sua realidade. No mundo da cultura,
da obra humana, essa autoconfiança faz com que ele não se contente apenas em
dizer como as coisas devem ser, mas também como ele próprio deve ser
[destaque-se: universalmente]. O homem, então, torna-se objeto e projeto de si
mesmo.46

41 SALGADO, Karine. Op. cit., 2017, p. 32.


42 Ibidem, p. 37.
43 SALGADO, Joaquim Carlos. Op. cit., 1995, p. 148.

44 Ibidem, p. 165.

45 Ibidem, p. 142.

46 SALGADO, Karine. Op. cit., 2017, p. 39.


10

O desenrolar do tempo histórico, entretanto, nos demonstra que a individualidade


radical e inconsequente da particularidade que não é capaz de se reflexionar para além de si
mesma torna-se, por outro lado e a contrário senso, escrava de si mesma, na sanha de ser
sempre a única defensora de sua autodeteminidade:
Precisamente frente à vida desnuda, que acabou se tornando radicalmente
transitória, reagimos com hiperatividade, com a histeria do trabalho e da
produção. Também o aceleramento de hoje tem muito a ver com a carência de
ser. A sociedade do trabalho e a sociedade do desempenho não são uma sociedade
livre. Elas geram novas coerções. A dialética de senhor e escravo está, não em
última instância, para aquela sociedade na qual cada um é livre e que seria capaz
também de ter tempo livre para o lazer. Leva ao contrário a uma sociedade do
trabalho, na qual o próprio senhor se transformou num escravo do trabalho.
Nessa sociedade coercitiva, cada um carrega consigo seu campo de trabalho. A
especificidade desse campo de trabalho é que somos ao mesmo tempo prisioneiro
e vigia, vítima e agressor. Assim, acabamos explorando a nós mesmos. Com isso,
a exploração é possível mesmo sem senhorio. 47
Se, no entanto, a Ilustração – e, em especial, a filosofia kantiana – se afirmam, no
sentido aqui trabalhado, contra a História e a Cultura, também nesse movimento impõem à
Razão a consciência destas mesmas; é, assim, em sua cruzada contra o dogmatismo
escolástico que a Ilustração atenta a consciência humana para a existência de uma História
(que é uma História do pensamento, uma História da Filosofia e que abre caminho a uma
Filosofia da História48), e é ao impor o universal que traz à Razão toda a força da Cultura,
em suas infinitas possibilidades de desdobramento histórico.

ATRAVÉS DO INDIVÍDUO OU DA NECESSIDADE DO REAL


“O olhar do espírito somente à força poderia ser dirigido ao
terreno e ali mantido. Muito tempo se passou antes de se
introduzir na obtusidade e perdição em que jazia o sentido
deste mundo, a claridade de que só o outro mundo possuía;
para tornar o presente, como tal, digno do interesse e da
atenção que levam o nome de experiência” 49
São justamente as cisões irreconciliáveis levadas a cabo pela Ilustração, e a
particularização máxima do sujeito que se enclausura na sua própria individualidade, e que
até lá não era capaz de ser suprassumida em uma universalidade concreta, que abre espaço
para o momento hegeliano da Filosofia Especulativa. É ela quem assume a cisão como

47 HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015, p. 25.


48 “Não por acaso, é Hegel o proponente de uma dimensão histórica para a filosofia – uma filosofia que só se
conhece e só se reconhece no evolver das ideias que se contrapõem no tempo, como na alegoria [...] de Nietzsche,
de gigantes que se interpelam no tempo; mas, em Hegel, também a voz dos anões maliciosos que guincham
abaixo dos gigantes é importante na construção da sinfonia da totalidade.” (HORTA, José Luiz Borges. Op. cit.,
2017, p. 64).
49 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Op. cit., 2014, §8.
11

inevitabilidade, mas a ultrapassa na reconciliação (suprassunção) rumo à universalidade


concreta do saber na Razão especulativa. Ou, nos dizeres de José Luiz Borges Horta:
Não há dúvidas que Hegel pretendeu em sua filosofia superar as cisões que se
haviam apresentado ao homem no decurso da tradição ocidental. Sua filosofia,
que para muitos pode soar, não sem razão, como uma filosofia ambiciosa e
pretenciosa, visava atingir uma esfera tal de reflexão especulativa que permitisse a
contemplação racional do real em sua totalidade, tanto histórica quanto racional.50
Assim, não deve surpreender que justamente Hegel não tenha buscado se distanciar
dos pensadores dos períodos da Metafísica do Objeto e da Metafísica do Sujeito. Ao
contrário, busca com eles dialogar para, por meio da Filosofia Especulativa, avançar a partir
deles e carreando todos eles para o momento de sua própria filosofia que é infinitamente
generosa, ou simplesmente irremediavelmente realista – cônscia de que não poderia, nem
mesmo se quisera, abandonar a História.
De fato, o processo de produção do conhecimento, em Kant, recolhido que está no
pensar, é mais propriamente identificado com a subjetivação – já que a coisa em si, a essência,
fica fora do pensar – do que com a interiorização do próprio objeto no pensar (movimento
que muito interessaria a Hegel como ideia, mas não como transcendentalidade). Na lógica
dialética especulativa, sujeito e objeto são o que há de mais indeterminado, e podem, por
isso, ser suprassumidos co-reciprocamente, isto é, as determinações de um são determinações
do outro.
É, assim, em franco diálogo com Kant que, na Fenomenologia do Espírito, Hegel
busca demonstrar o esvaziamento do conteúdo51 que o formalismo impusera, enquanto
igualmente identifica o ponto a partir do qual é possível avançar para além da Filosofia
Transcendental:
Parece possível remediar esse inconveniente pelo conhecimento do modo-de-
atuação do instrumento, o que permitiria descontar no resultado a contribuição
do instrumento para a representação do absoluto que por meio dele fazemos;
obtendo assim o verdadeiro em sua pureza. Só que essa correção nos levaria, de
fato, aonde antes estávamos. Ao retirar novamente, de uma coisa elaborada, o que
o instrumento elaborou nela, então essa coisa – no caso o absoluto – fica para nós
exatamente como era antes desse esforço; que, portanto, foi inútil. [...] Se o exame
do conhecer – aqui representado como um meio – faz-nos conhecer a lei da
refração de seus raios, de nada ainda nos serviria descontar a refração no
resultado. Com efeito, o conhecer não é o desvio do raio: é o próprio raio, através
do qual a verdade nos toca. Ao subtraí-lo, só nos restaria a pura direção ou o lugar
vazio.52

50 HORTA, José Luiz Borges. Op. cit., p. 61, grifos do original.


51 “O medo da verdade poderá ocultar-se de si e dos outros por trás da aparência de que é um zelo ardente pela
verdade [...]. Vaidade essa capaz de tornar vã toda a verdade, para retornar a si mesma e deliciar-se em seu
próprio entendimento; dissolve sempre todo o pensamento, e só sabe achar seu Eu árido em lugar de todo o
conteúdo. Esta é uma satisfação que deve ser abandonada a si mesma, pois foge o universal e somente procura
o Ser-para-si.” (HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Op. cit., 2014, §80).
52 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Op. cit., 2014, §73.
12

É também, por exemplo, ao identificar o suposto medo do erro de toda a tradição


do cepticismo com um real e efetivo “medo da verdade”53 que Hegel pode criticá-la
afirmando que ela “pressupõe, por exemplo, representações sobre o conhecer como instrumento
e meio e também uma diferença entre nós mesmos e esse conhecer, mas, sobretudo, que o absoluto
esteja de um lado e o conhecer de outro – para si e separado do absoluto – e mesmo assim seja
real”,54 para, em seguida buscar suprassumí-la, no percurso da Filosofia Especulativa. Veja-
se que, desde Descartes, não era suficiente a informação dos sentidos segundo a qual as
coisas estão fora de nós para serem conhecidas, e só por isso são, desde logo, objetos de
conhecimento verdadeiro. Exigia-se, desde o cogito, questionar-se na tradição Ocidental das
possibilidades de conhecimento do sujeito cognoscente.55 O cepticismo foi uma resposta
amedrontada, donde o racionalismo se mostrou mais intrépido – levando ao entronamento
do indivíduo em seu castelo-cela.
Como se pode ver do conceito prévio da Lógica, a metafísica clássica e Kant (na
corrente filosófica a partir de Descartes) põem o problema fundamental da
filosofia de Hegel, a identidade do pensar e do ser, pensada num momento
dialético em que as determinações do pensar são também as determinações do
ser.56
De fato, o cogito ergo sum não é uma fórmula que contraria radicalmente as noções da
Filosofia Especulativa, senão pelo fato de, estanque na particularidade do sujeito-indivíduo,
não conseguir suprassumir-se no momento da intersubjetividade do cogitamos. Assim,
brilhantemente demonstra a filosofia de Joaquim Carlos Salgado:
Como Hegel lembrou, o cogito ergo sum não expressa um silogismo, portanto um
discurso mediatizado, mas, pode-se concluir, uma intuição radical, um captar
imediato que o sujeito faz de si mesmo nesta experiência interior do cogito e do
sum, de modo a concebê-los sem qualquer separação, razão por que poderia
inverter a proposição e expressá-la: sum ergo cogito. Isto porque o sum, na medida
que é posto pelo ego (e ego só o ser pensante como tal possui, enquanto substrato
de todo o real) é sum cogitatum-cogitantis, isto é, pensado-pensante, de modo que o
sum é cogito e o cogito é sum, o pensar é o ser e o ser é o pensar, ou seja, o ser do
ente ego é sum-cogito, ou cogito-sum. O ergo é porto para mostrar que o sum está dentro
do cogito, não que procede dele para o exterior, e que o cogito é sum, não que o gera
ou dele procede. O ego é assim a substância, o subjectum do pensar e do ser, do cogito
e do sum. Eis, então, o passo da Filosofia do Sujeito. 57

53 “A consciência natural vai mostrar-se como sendo apenas conceito do saber, ou saber não real. Mas enquanto
se toma imediatamente por saber real, esse caminho tem, para ela, significação negativa: o que é a realização do
conceito vale para ela antes como perda de si mesma, já que nesse caminho perde sua verdade. Por isso esse
caminho pode ser considerado o caminho da dúvida [Zweifel] ou, com mais propriedade, caminho de desespero
[Verzweilflung]; pois nele não ocorre o que se costuma entender por dúvida: um vacilar nessa ou naquela pretensa
verdade, seguido de um conveniente desvanecer-de-novo da dúvida e um regresso àquela verdade, de forma
que, no fim, a Coisa seja tomada como era antes” (HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Op. cit., 2014, §78).
54 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Op. cit., 2014, §74.

55 SALGADO, Joaquim Carlos. Op. cit., 2018, p. 248.

56 SALGADO, Joaquim Carlos. Op. cit., 1996, p. 56.

57 SALGADO, Joaquim Carlos. Op. cit., 2018, p. 246.


13

É, aliás, o próprio Hegel quem alerta, já na Ciência da Lógica, que o tratamento


transcendental das determinações do pensar foi o que acabou por esvaziar a própria Filosofia
Transcendental, no formalismo da relação abstrata de igualdade entre as coisas entre si e com
o ego. Não se ocupando, justamente, de perquirir acerca das determinidade recíprocas entre
todas elas. Isolando infinitamente os momentos do pensar, a filosofia kantiana não se
mostrou plenamente capaz de reconduzí-las ao saber filosófico, quedando na qualidade de
mero entendimento.58
Ora, esse cuidado chega até a transformar-se na convicção de que constitui um
contrassenso, em seu conceito, todo empreendimento visando conquistar para a
consciência o que é em si, mediante o conhecer; e que entre o conhecer e o
absoluto passa uma nítida linha divisória. Pois, se o conhecer é o instrumento para
apoderar-se da essência absoluta, logo se suspeita que a aplicação de um
instrumento não deixa a Coisa como tal como é para si, mas com ele traga
conformação e alteração. Ou então o conhecimento não é instrumento de nossa
atividade, mas de certa maneira um meio passivo, através do qual a luz da verdade
chega até nós; nesse caso, também não recebemos a verdade como é em si, mas
como é nesse meio e através dele.59
É a partir da desconfiança no aspecto puro do próprio pensar que Hegel identifica o
momento de particularidade radical na Filosofia Transcendental e sua dificuldade-
impossibilidade de avançar, nesses marcos, para uma universalidade concreta. A partir dela,
como já mencionamos, estaríamos presos na particularidade ou obrigados ao retorno a uma
universalidade abstrata que não representa projeto-fim algum. Nesse sentido, anuncia seu
projeto que, com o Prof. Dr. José Luiz Borges Horta podemos afirmar ser, de fato, muito
ambicioso mas, também, infinitamente generoso60:
O ser, o uno, a substância, o infinito, a essência são o primeiro; contra esse
abstrato, o segundo, cada determinidade, pode, em geral, ser reunido de modo
igualmente abstrato, enquanto o apenas finito, apenas acidental, perecível, extra e
inessencial etc., como ocorre habitualmente e inicialmente no pensar inteiramente
formal. Mas a conexão desse segundo com o primeiro se impõe demais, a fim de
não o apreender, ao mesmo tempo, em uma unidade com o mesmo, como o
atributo em Spinoza é a substância inteira, mas apreendida pelo entendimento,
que é, ele mesmo, uma limitação ou modo; mas o modo, o não substancial em
geral, que apenas pode ser apreendido a partir de um outro, constitui, assim, o
outro extremo com relação à substância, o terceiro em geral. [...] Na trindade
verdadeira está trazida não apenas unidade, mas união, o silogismo para a unidade
cheia de conteúdo e efetiva, que, na sua determinação inteiramente concreta, é o
espírito.61

58 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Op. cit., 2016, p. 66.


59 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Op. cit., 2014, §73.
60 “Ora, a verdadeira natureza da dialética se expressa de várias formas, mas em todas elas o momento de

chegada é o novo, ou renovado, pelo momento que lhe antecede. Assim, o momento do universal abstrato,
confrontado pela particularidade, eleva-se ao plano do universal concreto – e universal concreto e universal abstrato
definitivamente não constituem o mesmo fenômeno. A unidade, confrontada pela diferença, ressurge como
unidade da unidade e da diferença, e não apenas como unidade da unidade não diferente. A identidade, confrontada pela
diversidade, cede lugar à identidade da identidade e da diversidade.” (HORTA, José Luiz Borges. Op. cit., 2017, p. 63-
64).
61 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Op. cit., 2016, p. 350.
14

A CONSCIÊNCIA OBJETIVA OU DA SUJEIÇÃO À LIBERDADE NA


INTERSUBJETIVIDADE
“Outrora tinham um céu dotado de vastos tesouros de
pensamentos e imagens. A significação de tudo que existe estava
no fio de luz que o unia ao céu; então, em vez de permanecer
neste [mundo] presente, o olhar deslizava além, rumo à essência
divina: a uma presença no além – se assim se pode dizer.” 62
De fato, como já nos alertara Hegel, o terceiro momento se impõe63. Assim, emerge
o que poderíamos chamar de Metafísica do Absoluto64 que visa superar a cisão entre sujeito
e objeto a partir da ideia de consciência65 (subjetiva e, principalmente, objetiva). Nesse
sentido, pergunta-se desde logo, na Fenomenologia do Espírito66, do que se trataria esse novo
movimento da dialética da própria metafísica, e Hegel deixa claro que não mais aceitaria
cindir ser e essência, conhecimento e verdade,67 sujeito e objeto68: “a filosofia, antes de
abordar a Coisa mesma – ou seja, o conhecimento efetivo do que é, em verdade –, necessita
primeiro pôr-se de acordo sobre o conhecer, o qual se considera ou um instrumento com
que se domina o absoluto, ou um meio através do qual o absoluto é contemplado”.69
Da Metafísica do Objeto, a Metafísica do Absoluto resgata, por exemplo, a noção de
finalidade, das coisas que não são por mero acaso ou por autodeterminação meramente
subjetiva, mas porque são portadoras de uma teleologia própria, não como Destino

62 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Op. cit., 2014, §8.


63 “Portanto, essa violência, que a consciência sofre – de se lhe estragar toda satisfação limitada – vem dela
mesma. No sentimento dessa violência, a angústia ante a verdade pode recuar e tentar salvar o que está
ameaçada de perder. Mas não poderá achar nenhum descanso: se quer ficar numa inércia carente-de-
pensamento, o pensamento perturba a carência-de-pensamento, e seu desassossego estorva a inércia.”
(HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Op. cit., 2014, §80).
64 “Ora, se a Lógica descreve a estrutura do pensar que é a mesma estrutura do ser, e se é o desdobramento do

próprio conteúdo de pensar e não de sua abstrata forma, é ela a própria metafísica, isto é, a Filosofia
especulativa, que se caracteriza como a filosofia da totalidade (...).” (SALGADO, Joaquim Carlos. Op. cit., 1996,
p. 87).
65 “A denominação ‘consciência’ lança ainda mais a aparência de subjetividade sobre o mesmo do que a

expressão pensar, o qual aqui, todavia, tem de ser tomado no sentido absoluto como pensar infinito, como não
preso à finitude da consciência, dito brevemente, como pensar como tal.” (HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich.
Op. cit., 2016, p. 66).
66 “A Fenomenologia como ciência que estuda a relação do sujeito com o objeto no processo de conhecimento é

a ciência da experiência da consciência nos seus momentos de determinação, pelos quais a diferença entre
sujeito e objeto é superada. Assim, o saber se processa na relação sujeito-objeto, estudada na Fenomenologia, que
se refere ao sujeito, à consciência.” (SALGADO, Joaquim Carlos. Op. cit., 1996, p. 86).
67 “É interessante notar que na concepção de Aristóteles está o conceito dialético (portanto filosófico) de

verdade formulado por Hegel: o momento imediato, em si, do saber, que é a certeza do sujeito, e o momento
objetivo desse conhecimento, a verdade do objeto, cuja unidade é a efetividade (Wirklichkeit).” (SALGADO,
Joaquim Carlos. Op. cit., 2018, p. 20, grifos do original).
68 “O caminho filosófico que leva à Ciência da Lógica, portanto ao sistema, é traçado por dois vetores

fundamentais: a história, na qual o Espírito se revela e se mostra nas filosofias precedentes a Hegel, e a
experiência da consciência, através da qual se supera o dualismo entre o sujeito e o objeto, chegada da filosofia
ocidental.” (SALGADO, Joaquim Carlos. Op. cit., 1996, p. 33).
69 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Op. cit., 2014, §73.
15

inafastável, mas como determinidade cultural de seus fins próprios – especialmente o fim
lógico da essência, que é o de dar-se à consciência:70
Entretanto o saber tem sua meta fixada tão necessariamente quanto a série do
processo. A meta está ali onde o saber não necessita ir além de si mesmo, onde a
si mesmo se encontra, onde o conceito corresponde ao objeto e o objeto ao
conceito. Assim, o processo em direção a essa meta não pode ser detido, e não se
satisfaz com nenhuma estação precedente.71
Outrossim, a Metafísica do Absoluto retoma, do “medo da verdade” legado pelo
cepticismo, o negativo como negação determinada, como conhecimento e, portanto, meio
para o aprofundamento (ou, melhor, suprassunção) da consciência em uma nova consciência,
mais certa de si:
A consciência natural tem geralmente uma visão unilateral assim, sobre esse
movimento. Um saber, que faz dessa unilateralidade a sua essência, é uma das
figuras da consciência imperfeita [...]. Trata-se precisamente do cepticismo, que
vê sempre no resultado somente o puro nada, e abstrai de que esse nada é
determinadamente o nada daquilo que resulta. Porém o nada, tomado só como o
nada daquilo donde procede, só é de fato o resultado verdadeiro: é assim um nada
determinado e tem um conteúdo. O cepticismo que termina com a abstração do nada
ou do esvaziamento não pode ir além disso, mas tem de esperar que algo de novo
se lhe apresente [...] para jogá-lo no abismo vazio. Porém, quando o resultado é
apreendido como em verdade é – como negação determinada –, é que então já
surgiu uma nova forma imediatamente, e se abriu na negação a passagem pela
qual, através da série completa das figuras, o processo se produz por si mesmo. 72
E segue, no percurso de seu Destino, que é o de reconciliação e suprassunção de
todas as cisões no momento da Filosofia Especulativa, por meio de uma consciência que não
é mais mero sujeito determinado, ou muito menos indivíduo transcendental particularizado,
mas consciência que se move em sua própria dialética, que distingue algo de se mesma para,
ao mesmo tempo, relacionar-se com ele. Que é o Eu e é o Outro e, sobretudo, é o Nós, nas
identidades e nas diferenças.73 E que, em seu movimento, estabelece os momentos para-si e
para-o-Outro, fazendo-se em-si-para-si, e em-si-para-Outro, e, portanto, verdade de si

70 “[...] com base na dialética hegeliana, [...] pode-se afirmar que se dá uma superação dessas duas certezas (cada
uma com sua verdade abstrata) pela conversão dessa cisão numa unidade, a partir do conceito de unidade da
própria realidade, que não é algo separado em essência e aparência, como se esta (a aparência) fosse apenas um
engano sobre a realidade, mas uma unidade que se mostra como verdade concreta nos dois momentos, essência
e aparência. Quer-se dizer que o real não é apenas o que dele aparece ou o que nele se oculta; não é a essência
abstrata ou separada com a eliminação da aparência, nem a aparência dada empiricamente nos sentidos sem
consideração da essência, pois a aparência é o próprio modo de por-se o real na existência, o modo de a essência
mostrar-se na existência, como aparência. É da essência da essência aparecer, como diz Hegel. Ao dar-se na
existência, contudo, o real se mostra como racional na forma de ser para, vale dizer, para uma consciência. Eis
como a dialética da essência e da aparência se torna complexa e se desenvolve como dialética do espírito. O
real é assim a unidade da essência e da existência, ou seja, da essência e da aparência. Enfim, para Hegel, o
verdadeiro é a unidade da consciência e da coisa a ela oposta, do sujeito e do objeto, como procurou mostrar
na Fenomenologia do Espírito.” (SALGADO, Joaquim Carlos. Op. cit., 2018, pp. 29-30, grifos do original).
71 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Op. cit., 2014, §80.

72 Ibidem, §79.

73 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Op. cit., 2014, §82.


16

mesma. “Assim, no que a consciência declara dentro de si como o Em-si ou o verdadeiro,


temos o padrão que ela mesma estabelece para medir o seu saber”.74
A consciência, por um lado, é consciência do objeto; por outro, consciência de si
mesma: é consciência do que é verdadeiro para ela, e consciência de seu saber da
verdade. Enquanto ambos são para a consciência, ela mesma é sua comparação:
é para ela mesma que seu saber do objeto corresponde ou não a esse objeto. [...]
Porque a consciência sabe em geral sobre um objeto, já está dada a distinção entre
[um momento de] algo que é, para a consciência, o Em-si, e um outro momento
que é o saber ou o ser do objeto para a consciência.75
Mas a consciência é, para si, também experiência de si e do Outro. Assim, a
experiência tem essa potência de aniquilar o Em-si do objeto para a consciência, quando o
Em-si-para-ela não corresponde ao Em-si do objeto que permanece nela, agora reconstituído
como um novo Em-si, mais consciente, num conceito.76 Mas, ao aniquilar e reconstruir (no
movimento de suprassunção) um objeto, a consciência também se move em direção à maior
consciência de si mesma – se torna, com isso, mais livre, porque mais consciente de sua
potência absoluta. Um novo momento que, como já adiantamos, deve ser compreendido
sempre como um movimento em que “cada resultado que provém de um saber não
verdadeiro não deve desaguar em um nada vazio, mas tem de ser apreendido necessariamente
como nada daquilo de que resulta: um resultado que contém o que o saber anterior possui em
si de verdadeiro”.77
O nós é o momento próprio da razão, que traz em si todo o processo dialético a envolver a
consciência oposta ao seu exterior, ao objeto, pela consciência de si, sempre como abertura
para o objeto até a consumação de um nós, que é também um eu, como Hegel descreve na
Fenomenologia do Espírito.78
Nesse caminhar, a consciência se torna cada vez mais uma consciência consciente de
si como Todo, isto é, como particularidade que, no contato com as infinitas demais
particularidades, vai se reconhecendo cada vez mais como uma particularidade e cada vez
mais como uma universalidade concreta79, co-partícipe e coautora em e de uma Cultura.

74 Ibidem, §84.
75 Ibidem, §85.
76 “como resultado da sequência das figuras da consciência, no qual a oposição da consciência do sujeito e do

objeto se unificou numa unidade do conceito e do ser e, com isso, estabelece o âmbito do pensar puramente
conceitualizante.” (IBER, Christian. Introdução. In: HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Op. cit., 2016, p. 8-9).
77 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Op. cit., 2014, §87.

78 SALGADO, Joaquim Carlos. Op. cit., 2018, pp. 39-40, grifos do original. Ver também, a esse respeito, VAZ,

Henrique Cláudio de Lima. Escritos de Filosofia VI: ontologia e história. São Paulo: Ed. Loyola, 2001, p. 247-
248).
79 “Diferentemente do ser puro, o ser aí está determinado e sua determinidade, tomada como determinidade

que é, é qualidade, que, por sua vez, distingue-se em realidade e negação. Na medida em que esta diferença no
ser aí está negada e suprassumida, o ser ai é o que é aí, ou seja, o algo como primeira negação da negação. Frente
ao algo se afirma um outro, que é ele mesmo algo. Algo e outro são, em primeiro lugar, ambos algo e, em
segundo lugar, ambos outros um para o outro. Em terceiro lugar, sua alteridade tem que, portanto, também ser
17

A experiência que a consciência faz sobre si mesma não pode abranger nela,
segundo o seu conceito, nada menos que o sistema completo da consciência ou o
reino total da verdade do espírito. Seus momentos se apresentam assim nessa
determinidade peculiar, de não serem momentos abstratos ou puros, mas sim, tais
como são para a consciência ou como a mesma aparece em sua relação para com
eles; por isso os momentos do todo são figuras da consciência. A consciência, ao
abrir caminho rumo à verdadeira existência, vai atingir um ponto onde despojará
de sua aparência: a de estar presa a algo estranho, que é só para ela, e que é como
um outro. Aqui a aparência se torna igual à essência, de modo que sua exposição
coincide exatamente com esse ponto da ciência autêntica do espírito. E,
finalmente, ao apreender sua verdadeira essência, a consciência mesma designará
a natureza do próprio saber absoluto. 80
É a partir da consciência de si que se reconhece em outra consciência de si, ambas
distintas e semelhantes, partícipes no Todo da Cultura (consciência objetiva) e capazes, até
mesmo, de designar a natureza do saber absoluto que o movimento do “eu, o sujeito do
cogito e do sum, deve avançar como consciência de si até alcançar o momento da razão, na
expressão de Hegel, já então no momento do Espírito como sujeito de um cogitamos, em
que pensar e ser (cogito e sum) se assumem numa unidade”.81
A reflexão é negação absoluta, isto é, interna; o oposto não nega para ir em frente
e abandonar o negado, mas refletidamente, nega para, como diferente, voltar ao
idêntico e, com isso – no movimento de reflexão, que é divisão, mas ao mesmo
tempo, mediação para a volta – encontrar a verdade do processo, ou seja, a
totalidade ou unidade. Essa reflexão é um momento necessário e não contingente
como na reflexão abstrata da separação dos termos opostos. É necessária porque
é interior ao real.[...] Colher o real como existência, portanto como o situado no
tempo e no espaço, e o logos, o racional como essência, portanto o exigido como
o necessário é o que se pode denominar ideia, único modo de compreender a
história, que só o homem produz ou constrói, portanto [...] como fenômeno
histórico-cultural.82
Não há mais a mera subjetividade, mas uma subjetividade consciente, isto é, sabedora
de seu pertencimento no tempo e no espaço – isto é, na História e na Cultura – e, a partir
disso, é ainda uma consciência que se encontra com outras consciências (igualmente
histórico-culturais) formando novas consciências, tanto do ponto de vista subjetivo (uma
consciência que se encontrou com outra consciência será sempre mais plena e sabedora de
si mesma) quanto do ponto de vista objetivo (o encontro de consciências forma uma nova
consciência, não mais meramente subjetiva, mas objetiva, pois intersubjetiva, compartilhada,
formadora de uma cultura que é pura realidade efetiva), para a qual a linguagem é um dos
elementos centrais.
Se a linguagem veicula a exteriorização do logos ou substância interior, para
constituir o nós hegeliano, com isso instaurando o que Hegel denomina razão,

pensada como o outro em relação a si mesmo ou o outro de si mesmo. A partir do outro autorrelacionante,
que a partir de si mesmo se volta contra si, resulta, diferentemente do algo simples original, o algo idêntico a si
mesmo, que se distingue do seu ser outro.” (IBER, Christian. Op. cit., 2016, p. 10-11).
80 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Op. cit., 2014, §89.

81 SALGADO, Joaquim Carlos. Op. cit., 2018, p. 248.

82 Ibidem, p. 10.
18

significa que o ser humano se põe como ser corpóreo no mundo externo e que
essa exterioridade necessita, para que se torne unidade, do elemento também
exterior de ligação, a linguagem. Essa é assumida no conceito de razão, porém
como elemento negador da interioridade do pensar para tornar possível o
reconhecimento do outro e, assim, instaurar o nós.83
É pelo movimento das consciências subjetivas em direção à consciência objetiva, ou
das particularidades à universalidade concreta – esse movimento que a Metafísica do Sujeito
inconscientemente inibiu – que se vislumbra um momento mais consciente do todo em seu
próprio desenvolvimento: “O verdadeiro é o todo. Mas o todo é somente a essência que se
implementa através de seu desenvolvimento. Sobre o absoluto, deve-se dizer que é
essencialmente resultado; que só no fim é o que é na verdade”.84
Ou, nos dizeres de Salgado, “A verdade é, então, todo o processo genético da própria
realidade, na qual há um sentido racional, vez que essa realidade só é verdade na esfera do
Espírito, ou da Cultura, que assume a própria natureza”.85

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Agora parece haver necessidade do contrário: o sentido está tão
enraizado no que é terreno, que se faz mister uma força igual
para erguê-lo dali. O espírito se mostra tão pobre que parece
aspirar, para seu reconforto, ao mísero sentimento do divino em
geral – como um viajante no deserto anseia por uma gota
d’água. Pela insignificância daquilo com que o espírito se
satisfaz pode-se medir a grandeza do que perdeu.
Até aqui procuramos desenvolver, em sede de brevíssimas considerações sobre uma
possível História da Metafísica (em sentido dialético-especulativo), os seus momentos – que
não são nem excludentes, nem tampouco estanques –; isto é, tentou-se perceber na História,
como propôs Hegel, uma racionalidade interna e um fim/telos (ainda que provisório, vez que
a processualidade histórica não pode ser detida ou impedida – nem, jamais, desejaríamos uma
tal barbárie)86.
Assim, partimos da universalidade abstrata de uma Metafísica do Objeto que, ao
longo de mais de 2000 anos cuidou de buscar compreender um objeto (externo) que se

83 SALGADO, Joaquim Carlos. Op. cit., 2018, p. 26.


84 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Op. cit., 2014, §20.
85 SALGADO, Joaquim Carlos. Op. cit., 2018, p. 30.

86 “Aliás, a substância vive é o ser, que na verdade é sujeito, ou – o que significa o mesmo – que é na verdade

efetivo, mas só na medida em que é o movimento do pôr-se-a-si-mesmo, ou a mediação consigo mesmo do


tornar-se outro. Como sujeito, é a negatividade pura e simples, e justamente por isso é o fracionamento do
simples ou a duplicação do oponente, que é de novo a negação dessa diversidade indiferente e de seu oposto.
Só essa igualdade reinstaurando-se, ou só a reflexão em si mesmo no seu ser-Outro, é que são o verdadeiro; e
não uma unidade originária enquanto tal, ou uma unidade imediata enquanto tal. O verdadeiro é o vir-a-ser de
si mesmo, o círculo que pressupõe seu fim como sua meta, que o tem como princípio, e que só é efetivo
mediante sua atualização e seu fim.” (HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Op. cit., 2014, §18).
19

impunha contra qualquer sujeito (exceto, por vezes, Deus; às vezes, é certo, até mesmo
contra Ele), determinando, essencialmente, uma realidade absolutamente independente de
ou mesmo sem sujeitos. O absoluto se mostrava como absoluto determinante, como
suprema imposição desse absoluto às subjetividades carentes de consciência de sua própria
liberdade – mas já participantes nela, vez que eram também, e para outros, essa potência
determinante.
O dar-se à consciência do cogito cartesiano inauguraria o momento seguinte, de uma
Metafísica do Sujeito que teria por seu ponto de cumeada inconteste o rigor da Filosofia
Transcendental kantiana. O cuidado e zelo (ou seria, de fato, medo?) do cepticismo e a
arrogância subjetivista do racionalismo renderiam um encastelamento do sujeito em si
mesmo, da subjetividade no formalismo lógico de seu próprio pensamento, no momento da
particularidade mais extrema que só o constructo do indivíduo poderia perfeitamente
representar. O absoluto se mostra como sujeito particular que se creu desvencilhar de toda
determinidade – que se pretendeu livre de sua própria História (tempo) e de sua própria
Cultura (espaço), que residiriam somente na sua pura razão; as consciências individuais
tiveram a primeira consciência efetiva de sua liberdade, mas somente a liberdade para ser
consigo mesma idêntica a si (na insistência na particularidade) ou regressar à universalidade
abstrata (por meio do universalismo formal e homogeneizante).
Kant dá esse conceito das antinomias, que elas não são artifícios sofísticos, mas
contradições, contra as quais a razão necessariamente precisa se chocar (conforme
expressão kantiana), – o que é uma visão importante. – “Pela aparência natural
das antinomias, a razão, com efeito, não é mais enganada, quando ela compreende
seu fundamento, mas sempre ainda iludida”. [B 449] – a dissolução crítica
precisamente pela assim chamada idealidade transcendental do mundo da
percepção não tem outro resultado além de tornar o assim chamado conflito algo
subjetivo, em que ele ainda permanece sempre a mesma aparência, quer dizer, não
dissolvido como antes. A dissolução verdadeira delas pode apenas consistir no
fato de que duas determinações, enquanto elas estão contrapostas e são
necessárias a um único e mesmo conceito, não podem valer na unilateralidade
delas, cada uma por si, mas elas têm sua verdade apenas no seu ser suprassumido,
na unidade do seu conceito.87
Seria o brilhantismo do idealismo alemão e, em especial, de seu ponto mais alto, na
Filosofia Especulativa de Hegel, quem se imporia a tarefa de atravessar o deserto da
individualidade em busca de outras subjetividades nas quais pudesse se reconhecer.
Inauguraria o que aqui denominamos Metafísica do Absoluto, ou seja, o momento de uma

87 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Op. cit., 2016, p. 202.


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realidade que é real e efetiva porque é racional e é racional e pensável porque é real e efetiva,
e que se constrói intersubjetivamente no momento da Cultura88 e por meio da História.
O conceito [de verdade], que semanticamente tem a força do ver pela luz com os
olhos do corpo, ser testemunha ocular, implica uma confiabilidade incontestável
no sentido da visão. Passa, porém, figurativamente, a significar um ver do
intelecto, do logos, e, quando expresso pelo id (ideia), é o ver do logos no plano do
nous.89
É o momento, portanto, em que o Absoluto se mostra como universalidade concreta,
como sujeito determinante e determinado, livre como autor e como partícipe da empreitada
humana, todo que é parte e parte que é todo. A verdade que se impõe não apenas como o
idêntico a si ou o absolutamente diferente, mas como a identidade do igual e do diverso, no
entusiasmo da singularidade.
“E se Deus tivesse feito a realidade assim, assim, assim... (em
ziguezague) e não tão certinha como você a encontra? Galileu
respondeu sem dificuldade: Se Deus tivesse feito a realidade
assim, assim, assim... (fez o mesmo movimento que o Cardeal)
teria feito a nossa inteligência assim, assim, assim...
(ziguezagueando com o indicador), para conhece-la.” 90

88 “Ainda que a cultura fosse produzida pela natureza, uma vez produzida, a cultura constitui um momento
autônomo da realidade como um todo. Uma vez produzida, a cultura tem seu próprio movimento, dentro de
suas próprias leis.” (SALGADO, Joaquim Carlos. Op. cit., 2018, p. 3).
89 SALGADO, Joaquim Carlos. Op. cit., 2018, p. 20, grifos do original e acréscimos nossos.

90 Descrição de trecho da peça “Galileu Galilei” de Bertold Brecht, em SALGADO, Joaquim Carlos. Op. cit.,

2018, p. 23.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Escritos de Filosofia VI: ontologia e história. São Paulo: Ed. Loyola,
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