Академический Документы
Профессиональный Документы
Культура Документы
Esferas da insurreição
Sugestões para o combate à cafetinagem da vida 1
O mundo está em convulsão, e nós com ele. Somos tomados por um mal-estar,
composto de um mix de sensações. Um pavor diante da paisagem sinistra
instaurada pela ascensão de forças reativas por toda parte, cujo teor de violência e
bestialidade nos lembra os piores momentos da história. Junto com o pavor, somos
também tomados por uma perplexidade diante de um outro fenômeno, simultâneo
ao primeiro: a tomada de poder mundial pelo regime capitalista em sua nova dobra
– financeirizada e neoliberal –, que leva seu projeto colonial às últimas
consequências, sua realização globalitária.
37-38.
2
Uma vez concluído o trabalho sujo destes grosseiros laranjas do capitalismo financeirizado,
com sua sanha globalitária, este os jogará no lixo da história, sem o menor constrangimento.
Isso, aliás, já começou a acontecer em nosso continente. Imediatamente após os golpes de
estado que expulsaram dos governos seus líderes mais à esquerda – primeira parte da
novela do golpe –, começa sua segunda parte: os patéticos laranjas tornam-se, eles também,
alvo de denúncias de corrupção. A operação tem seu início enquanto os laranjas passam a
fazer a última parte de seu sinistro serviço – o desmonte da constituição, sobretudo das leis
que garantem direitos aos mais desfavorecidos. Prepara-se, com isso, o terreno para sua
ejeção assim que sua tarefa estiver concluída. Enquanto isso, o mesmo se faz com o
empresariado nacional, cuja permanência em cena interessa ao capitalismo financeirizado
apenas enquanto precisa de sua cumplicidade para o extermínio de tais leis. No entanto,
ainda em pleno processo de seu desmonte pelo Congresso, também o empresariado torna-se
alvo de denúncias de corrupção, cujo objetivo é tirá-lo do comando das obras públicas, assim
que o desmantelamento da constituição estiver consumado. Com esta dupla ejeção e já tendo
se instaurado no país uma grave crise econômica, acrescida da paralisia das obras públicas,
o terreno
capital estará totalmente
transnacional. pronto para
Nesta segunda parteadachegada
novela, dos
são investimentos sem
particularmente entraves do
importantes as
cenas do ringue de UFC entre políticos e empresários que, premiados por delação, destroem-
se mutuamente, diante da sociedade que, noite após noite, assiste perplexa ao espetáculo da
derrocada de ambos nas telas da TV, a cujo script se tem acesso igualmente pelos jornais,
que se pode ler ao despertar. Com este uso da aliança entre, de um lado, os poderes
Legislativo, Judiciário e Policial e, de outro, os grupos que detém o poder da mídia, prepara-
se a sociedade para a tomada do poder econômico pelo capital globalitário: a sociedade
estará enfim pronta para recebê-lo como o salvador ‘civilizado’ que saneará a economia de
sua falência e devolverá à vida pública, sua dignidade. Fim de novela.
O novo tipo de golpe de Estado, criado pela versão atual do capitalismo, consiste, portanto,
em ocultar-se sob a máscara carnavalesca de legalidade democrática, sem uso da força
militar. Mas a composição da máscara é mais sutil e astuta. A segunda parte da novela –
cujos protagonistas são os elementos mais grosseiros da classe política e seus cúmplices na
classe empresarial –, começa a ser divulgada pela mídia imediatamente após termos
assistido a sua primeira parte, com script idêntico, mas tendo os líderes progressistas como
protagonistas, em cujo capítulo final estes haviam sido expelidos da cena pública, com
procedimentos supostamente legais e democráticos. Com esta operação, tende a
desmanchar-se mais plenamente a ideia de que tenha havido um golpe, que ainda persistia
no imaginário coletivo após o final da primeira parte da novela – quando parcelas
significativas da população ainda viam claramente que se tratava de um golpe, cujo objetivo
era aniquilar a imagem dos políticos progressistas e tirá-los do poder. Mas, após a segunda
parte, vence a ideia de que a expulsão dos governantes progressistas foi, de fato, uma ação
3
Antes de mais nada, somos forçados a reconhecer que esta barreira não se localiza
apenas fora do território das esquerdas, imposta por forças que lhe são externas;
ela se localiza também – e, talvez, sobretudo – no interior de seu próprio território,
cujo horizonte só nos permite alcançar a esfera macropolítica. Esta é a esfera das
formas vigentes de um mundo e seus modos de existência: os lugares e funções
estabelecidos no mapa social, seus códigos, o modo de relação entre eles e suas
respectivas representações. Como é apenas nessa esfera que as esquerdas atuam,
seu território encontra-se confinado na forma de mundo dominante – o regime
colonial-capitalístico, no qual elas têm sua srcem. A perspectiva que orienta a
resistência na tradição das esquerdas mantém-se assim na lógica do próprio
regime que elas (nós) visam(os) ultrapassar. Tendo isso em vista, não é de se
surpreender que suas ações não logrem combatê-lo e resultem sempre em sua
triste reprodução.
É incontestável que no interior deste regime, onde atuam as esquerdas, sua posição
é a mais justa, pois, de diferentes maneiras e em diferentes graus e destinos, ela
visa uma distribuição de lugares menos assimétrica – não só no âmbito político,
mas também nos âmbitos social e econômico –, bem como um Estado que sustente
imparcial e digna, que visou a necessária moralização da vida pública. Em suma, o novo tipo
de golpe, próprio do capitalismo globalitário, consiste num complexo conjunto de operações,
no qual mata-se vários coelhos numa cajadada só (todos os coelhos cuja existência estorva o
livre fluxo de capital transnacional): os líderes de esquerda e o imaginário progressista a
eles associado, os políticos de alma escravocrata e pré-republicana, junto com os de alma
republicana, e os líderes do empresariado nacional. E o capitalismo transnacional sai
vitorioso e de mãos aparentemente limpas. Esta será, provavelmente, a apoteótica cena final
da novela.
4
identitário no mapa oficial da democracia, que lhes permitirá aceder aos direitos
civis. O que as move nesta operação é a ânsia de promover a ‘inclusão’ de tais
camadas neste mapa, do que resulta a submissão das mesmas ao modo dominante
de subjetivação (é o caso, por exemplo, do tratamento dado aos indígenas no
Brasil). Com isso perdemos a possibilidade de habitar a trama relacional entre
esses distintos modos de existência e sustentar seus possíveis efeitos
transfiguradores que tornam caduca a cartografia vigente. Mais preocupante ainda,
é que quando tais efeitos ocorrem e novos modos de existência emergem no
processo da vida coletiva, eles são lidos pelas esquerdas com a mesma lente, e
tendem a ser igualmente confinados em entidades identitárias (é o caso, por
exemplo, da leitura que fazem dos movimentos que hoje agitam as relações de
gênero, sexualidade, raça, etc.). Ignora-se os processos de singularização em curso
nestes movimentos insurrecionais, neutralizando assim sua pulsão vital de
transmutação das políticas de subjetivação dominantes e as mudanças das formas
de existência individuais e coletivas que dela resultam – sua potência de
resistência micropolítica. Ainda que algumas das correntes de esquerda
reconheçam estes movimentos, sua interpretação dos mesmos tende a reduzi-los à
questão da desigualdade, remetendo o foco de sua insurreição à luta de classes.
Esta insistente redução da mirada e dos modos de ação das esquerdas à esfera
macropolítica é responsável por sua impotência face aos desafios do presente. A
acumulação de experiências do triste destino da resistência reduzida a essa esfera
e da reiterada frustração que nos provocam, somada à perplexidade e ao pavor,
5
provocado pelo atual estado de coisas, é o que nos leva hoje a tomar consciência do
limite intransponível do horizonte próprio do território das esquerdas. Começam a
irromper, aqui e acolá, insurreições com novas estratégias face à violência contra a
vida, em todos seus matizes, para as quais o par direita/esquerda já não é mais um
operador suficiente para delinear os personagens em jogo e acertar o alvo do
combate. Não será a presença deste tipo de insurreição o que nos surpreende nos
novos movimentos de resistência que vem irrompendo por toda parte –
principalmente nas gerações mais jovens, em especial nas periferias e entre
negros, índios, mulheres e LGBTs? E não será precisamente isso o que nos fascina
nestes movimentos e que, apesar da dificuldade de decifrá-lo e nomeá-lo, faz com
que sua existência tenha o poder de impedir que soçobremos à paralisia
melancólica e fatalista em que nos lança a sombria paisagem que hoje nos rodeia?
Nestes territórios em vias de formação e que vem sendo aos poucos povoados, há
uma mudança efetiva de perspectiva. Seu horizonte expande o alcance de nossa
visão, nos permitindo vislumbrar a esfera micropolítica. Mas como se opera, neste
âmbito, a violência do regime colonial-capitalístico?
5 Ver João Perci Schiavon, “Pragmatismo pulsional”, inCadernos de Subjetividade, Revista do Núcleo de
Estudos e Pesquisas da Subjetividade, PP. 124-131, São Paulo, 2010. ISSN: 0104-1231. O autor propõe a
noção de ‘inconsciente pulsional’, colocando o conceito de pulsão e sua ética no centro da teoria
psicanalítica e de sua prática de cura.
7
Em nossa condição de viventes somos constituídos pelos efeitos das forças e suas
relações variadas e variáveis que agitam o fluxo vital de um mundo, as quais
atravessam singularmente todos os corpos que o compõem, fazendo deles um só
fazem por oposição às formas vigentes, mas pela afirmação de um devir que coloca
em risco sua perpetuação. Desestabilizada pela experiência paradoxal do estranho-
familiar, a subjetividade se vê tensionada entre, de um lado, o movimento que a
pressiona em direção à conservação da vida em sua potência de germinação de
novas formas para sua materialização e, de outro, um movimento que a pressiona
em direção à conservação das formas vigentes, nas quais se encontra
temporariamente e nas quais se reconhece em sua experiência como sujeito.
O mal-estar provocado pela tensão entre estranho e familiar, bem como entre os
dois movimentos desencadeados por esta experiência paradoxal, funciona como um
alarme que convoca o desejo a agir para recobrar um equilíbrio vital, emocional e
existencial, equilíbrio abalado pela emergência de um mundo e a dissolução dos
mundos vigentes. Impõe-se ao desejo uma negociação constante entre estes dois
movimentos. É precisamente neste ponto que se definem as políticas de desejo –
das mais ativas às mais reativas. O que as distingue é o tipo de negociação entre os
dois referidos movimentos que o desejo privilegiará em suas ações. Esta escolha
não é neutra, pois dela resultam distintos destinos da pulsão que implicam
distintas formações do inconsciente no campo social, portadoras de maior ou
menor grau de afirmação da vida. É este o campo de batalha na esfera
micropolítica.
O inconsciente colonial-capitalístico
Diante disto, não basta subverter a ordem na cena das relações de poder
(insurreição macropolítica), é preciso desertar do lugar que nelas ocupamos
(insurreição micropolítica), inviabilizando assim a continuidade da própria cena.
Com lógicas e temporalidades díspares e paradoxais, da insurreição contra a
10
podem juntar-se em torno de uma causa que diz respeito a todos. Um modo de
cooperação que gera força de pressão para viabilizar uma reversão efetiva nas
relações de poder no plano institucional (o que inclui o Estado e suas leis, mas não
se reduz a ele). Este é um trabalho que se encerra quando efetiva-se tal reversão
no campo específico em que se deu o combate.
O que move seus agentes : o impulso de perseveração da vida que, nos humanos,
manifesta-se como impulso de ‘anunciar’ mundos por vir o que tende a mobilizar os
inconscientes.
6 Este fato aconteceu no Rio Doce, na aldeia Krenak, situada à sua margem esquerda, no
município Resplendor. Algum tempo depois desta parte do rio ter ficado aparentemente
morta, pelo efeito devastador de seu abuso pela Vale do Rio Doce, em sua ganância de
extração de minério, descobriu-se que ele havia voltado a fluir, caudaloso, sob a terra. Ver
Ailton Krenak, “Em busca de uma terra sem tantos males”, in O lugar onde a terra descansa .
Rio de Janeiro: EcoRo, 2000.
13
o seu lugar.
Em suma, a insurreição micropolítica é, nela mesma, uma ressurreição da força
vital. Para lográ-la é preciso manter-se em estado de alerta aos movimentos da
vida, os assumindo como critério privilegiado de avaliação das situações. Esta é a
bússola ética, pulsional, a orientar as escolhas do desejo e suas ações, na direção de
uma transvaloração dos valores vigentes, quando estes perdem seu sentido e
passam a sufocar a vida. Neste sentido, a intenção aqui é produzir
‘potencialização’, o que é distinto de ‘empoderamento’, uma ideia própria à esfera
macropolítica da insurreição. Ambas intenções são importantes; o problema é
e, com isso, não só cai na cilada do abuso machista, mas o alimenta com seu
próprio desejo. Isto vale igualmente para a mulher que tenta sair deste lugar, mas
apenas macropoliticamente. Se, por um lado, a insurreição neste plano da
desigualdade é indispensável, ao não incorporar ao combate a dimensão
14
micropolítica, este se reduz à oposição ao homem, numa disputa de poder que não
só mantém o mesmo como referência, mas também mantém a mulher como
personagem da própria cena, machista, que ela visa combater, contribuindo assim
para perpetuá-la.
assim o exijam para poder germinar. Estes, portanto, resultam dos processos de
insurreição coletiva, diferentemente do modo de cooperação macropolítica, no qual
as ações insurrecionais são previamente programadas.
Para finalizar, é importante lembrar que este trabalho de artesania de si, do qual
depende a descolonização na esfera micropolítica, jamais atinge sua plena e