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Fedeli
Olavo de Carvalho
Para legitimar esse uso do termo, ele usa da definição geral de gnose aceita
por alguns estudiosos, mas dando-lhe uma aplicação que vai muito além do que
qualquer deles jamais admitiu e que implica dar foros de verdade científica à
hipótese de uma universal conspiração gnóstica contra a Igreja Católica,
reunindo budistas, comunistas, muçulmanos, judeus, hinduístas, nazistas,
gnósticos no sentido antigo e, evidentemente, eu.
Nem Hans Jonas, nem H.-C. Puech, nem Hans Urs von Balthasar, nem
Voegelin, nem qualquer outro estudioso, por mais ampla que fosse sua definição
de gnose, jamais a usou para sustentar essa hipótese, a qual aliás nem sequer
mencionam porque, mais que à história, ela pertence ao domínio da
psicopatologia.
É o sr. Fedeli que faz dela esse uso, fingindo escorar-se na autoridade
desses eruditos. Mais ainda: fingindo que semelhante uso é universal,
consensual e indisputado.
A hipótese aí contida é tão ampla, que ela não pode ser provada nem
impugnada no prazo de uma vida humana ou de infinitas vidas humanas.
Cientificamente, ela é por isso mesmo inaceitável. Fatos inumeráveis não lhe
darão consistência, refutações sem fim não a farão recuar. Ela é uma escolha,
um ato de fé, que o sr. Fedeli, abusivamente, procura confundir e identificar
com a própria fé católica, de modo a poder condenar como herético quem quer
que, na sua divisão dualista do mundo, não cerre fileiras com ele -- ou com o
fantasma do dr. Plínio -- no seu combate contra tudo o mais. Isto implica,
naturalmente, estender sobre todos os “gnósticos”, no sentido amplíssimo do
termo, a acusação de heresia que a Igreja fez pesar sobre os gnósticos dos
primeiros séculos. Mas isto já não é teoria: é loucura.
O sr. Fedeli tem todo o direito de defender sua idéia, mas nem mesmo a
alegação de insanidade lhe dará o direito de sugerir ou insinuar que ela
corresponda a alguma cláusula do dogma católico tal como definido pelos Papas
e Concílios. Nenhum Papa ou Concílio subscreveu jamais essa doutrina.
Nenhum jamais afirmou a identidade substancial de todas as espiritualidades
não-cristãs com a heresia dos primeiros séculos, identidade que, para o sr.
Fedeli, é a verdade das verdades.
Daí o atrativo que exerce sobre jovens que buscam, não o conhecimento,
nem a purgação de seus pecados, mas uma causa – uma causa em nome da qual
possam, sem o mínimo abalo de sua boa consciência, mentir e pecar.
Todos os esforços que Fedelis e fedelhos façam para provar a acusação que
me imputam são aliás desnecessários e redundantes, visto que ela já está
provada ex hypothesi nos termos mesmos que a enunciam, sendo “gnósticos”
por definição todos os que, rejeitando o dualismo absoluto de Revolução e
Contra-Revolução, não se alinhem resolutamente com esta última no sentido
em que a entende o sr. Orlando Fedeli – coisa que, de fato, não posso fazer.
Post scriptum
Eric Voegelin, em Science, Politics and Gnosticism, assim resume “as seis
características que, tomadas em conjunto, revelam a natureza da atitude
gnóstica”.
Quarta. Para isso, “a ordem do ser terá de ser mudada por meio de um
processo histórico. Do mundo miserável, um mundo bom deve evoluir
historicamente”.
Peço pois novamente ao sr. Fedeli que aponte, na minha obra, os indícios
de revolta contra a ordem do ser, de confiança na possibilidade de mudar essa
ordem pela ação humana, de apologia do processo histórico como meio de criar
um mundo bom e, sobretudo, do conhecimento entendido como “método de
alterar o ser”. Tenho a nítida impressão de que há tempos venho escrevendo
contra essas coisas, mas talvez o sr. Fedeli conheça o meu pensamento melhor
que eu.
Se, fugindo de novo aos conceitos claros, ele repetir sua alegação de que “a
Gnose é um fenômeno religioso bem mais complexo”, e de que “quando se
estuda a gnose entra-se num labirinto cheio de brumas, tentando descobrir
segredos que permitirão chegar a um mistério. Não é de estranhar que o tema
se preste a confusões” (2), terei o direito de lhe perguntar como, em boa lógica,
uma noção tão nebulosa pode ser aplicada a um caso particular de maneira tão
categórica e indiscutível. Se não temos um conceito claro do que seja o
gnosticismo, como afirmar com certeza que tal ou qual autor é gnóstico, que tal
ou qual filosofia é gnóstica? Mais particularmente: se quatro características da
gnose antiga, mais seis da moderna, ainda não bastam para definir o fenômeno
em linhas gerais, então de fato a “gnose” a que refere o sr. Fedeli é um saco de
gatos no qual, com fins de polêmica ou de difamação, cada um pode enfiar quem
bem entenda – e é isto, precisamente, o que ele faz comigo.
Que, na ânsia de alcançar seus fins, ele recorra até a um meio ilícito -- que
outra coisa não é o uso que ele faz de transcrições de aulas, truncadas,
semilegíveis e não referendadas pelo autor, obtidas sem minha autorização por
seus agentes infiltrados nos meus cursos --, mostra apenas que esse homem, tão
jactancioso de suas altas incumbências morais, não aprendeu ainda a abster-se
da prática de crime.
Decerto ele não é o primeiro chefe de seita que, nas alturas da sua superbia
auto-santificante, despreza suas obrigações elementares de cidadão e, por
descumpri-las, demole a golpes de imprudência os seus próprios pés de barro.
Não me sentindo nem um pouco ameaçado, posso examinar o caso aos poucos,
de maneira mais ou menos casual e assistemática, por mera curiosidade e sem
nenhum intuito de “me defender”, já que a fantasia tribunalícia é do sr. Fedeli e
não minha.
Para conceituar a gnose, poderíamos dizer que ela pretende ser "o conhecimento do
incognoscível".
Evidentemente, essa conceituação revela uma contradição que é típica da gnose. Conhecer o
incognoscível é uma contradição conceitual e lógica. Mas ocorre que a gnose repele a
inteligência e a lógica como enganadoras. O verdadeiro conhecimento seria intuitivo, imediato
e não discursivo e lógico.
Conhecer o incognoscível, de fato, significa dar ao homem o conhecimento de Deus e do mal,
coisas impossíveis de compreender. De fato não podemos compreender ou conhecer a própria
essência de Deus que é ser infinito e transcendente, impossível de ser captado por nosso
intelecto. Também não podemos entender o mal e o pecado: o mal enquanto ser não existe, e o
mal moral não tem razão que o justifique.
Ora, sabe-se que a árvore do fruto proibido do Éden era exatamente a árvore do conhecimento
ou ciência do bem e do mal (Gen. II,10). Assim, teria sido a gnose a tentação de Adão. Com
efeito, a serpente prometeu a nossos primeiros pais que, se comessem o fruto proibido, "seriam
como deuses, conhecendo o bem e o mal" (Gen., III,5). A tentação de Adão e Eva foi a de se
tornarem deuses. Essa é a grande tentação do homem, que, levado pelo orgulho, como Lúcifer,
não admite sua finitude, não aceita sua contingência.
Essa tentação é, de fato, uma revolta anti-metafísica. Ora, é esse um outro modo de conceituar
a gnose: uma revolta anti-metafísica.
Se admitirmos essa interpretação da tentação adâmica, teremos que concluir existência uma
continuidade da gnose na História. E é o que constatam os estudiosos: a gnose apresenta-se
realmente como uma religião ora oculta, ora pública, mantendo porém unidade e
continuidade no transcorrer da História.
...
Essa unidade histórica da gnose através dos tempos e civilizações é constatada por muitos
autores. Dennis de Rougemont, por exemplo, escreve:
"Mais perto de nós que Platão e os drúidas, uma espécie de unidade mística do mundo indo-
europeu se desenha como em filigrama no plano de fundo das heresias da Idade Média. Se nós
abraçamos o domínio geográfico e histórico que vai da Índia à Bretanha, constatamos que
uma religião aí se espalhou, para falar a verdade, de um modo subterrâneo, desde o século III
de nossa era, sincretizando o conjunto dos mitos do Dia e da Noite tal como eles tinham sido
elaborados inicialmente na Pérsia, depois nos segredos gnósticos e órficos e é a fé maniquéia".
Um conceito que não somente não pode ser generalizado para abranger outros
fatos, mas que não abarca nem mesmo os próprios fatos dos quais
partiu a sua formulação não é, obviamente, um conceito, mas apenas a
expressão vaga e autocontraditória de uma impressão subjetiva.
O sr. Fedeli não tem, portanto, nenhum conceito de gnose. Não digo que tenha
um conceito ruim, ou tosco, ou primário. Não tem nenhum. Tem apenas uma
imagem, um símbolo unificador – o da serpente no Paraíso – em torno do qual
pode agrupar, pelo método mágico da analogia, uma multidão de fatos
objetivamente inconexos, cuja acumulação dê ao conjunto uma aparência de
verossimilhança fortemente persuasiva -- na verdade, tanto mais fortemente
persuasiva quanto menos logicamente fundamentada.
Um símbolo não pode, como um conceito geral, ser aplicado a casos particulares
pelo método racional que confronta as propriedades observadas neste últimos
com as propriedades deduzidas do conceito geral. Um símbolo pode ser apenas
“associado”, por analogia, a outros símbolos, e organizado numa cadeia de
símbolos. Mas uma analogia não é uma identidade; bem ao contrário, é um
misto indissolúvel de semelhanças e diferenças, de modo que, de uma cadeia
simbólica, por mais extensa e rica que seja, nada se pode concluir quanto à
realidade ou irrealidade dos nexos assinalados.
Espero que, diante dessa constatação, o sr. Fedeli não se apegue ao subterfúgio
de que essa sua definição de gnose foi apenas uma tentativa informal e
provisória – pois isto implicaria reivindicar, para um texto publicado e
referendado pelo autor, o privilégio da interpretação figurada e liberal, que ele
jamais concede às minhas palavras nem mesmo quando proferidas oralmente,
de improviso, e transcritas sem minha correção. Essa duplicidade de critérios
trairia de imediato a mais completa desonestidade, agravada ainda pelo fato de
que o referido texto, sendo o único que na sua homepage é consagrado ex
professo à explicitação de um conceito capital na sua obra escrita, assume nela
portanto uma importância igualmente capital.