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O LA�ARTO
EXCLUSIVO
QUE MUDOU
A ORI�EM
DAS ESPÉCIES
200 anos depois de Darwin,
e desvendam a formação da
biodiversidade dos Trópicos
UMA REVISTA
Marcelo Brandt/UnB Agência
A INVENÇÃO de
D
ana beatriz magno e luiz gonzaga motta
Editores - Revista Darcy
arcy quer ser Darcy. A primeira re- Darcy quer interferir nesse apartheid.
vista de jornalismo científico e cultu- Nossa intenção não é fazer uma revista que
ral da Universidade de Brasília che- funcione como material didático, mas que aju-
ga aos leitores com a pretensão das de o professor a encantar seus pupilos com os
causas justas que mobilizavam o antropólogo caminhos da ciência criada na maior universi-
criador da UnB. dade do Centro-Oeste.
Sou um homem de causas. Darcy Ribeiro inventou uma universidade A revista será bimestral. Teremos resenhas
Vivi sempre pregando, lutando, conectada com a poeira do universo e com como as de Allan Poe e reportagens como a
a lama do vizinho. Queria uma casa do saber assinada pelas repórteres Érica Montenegro,
como um cruzado, pelas
comprometida com a produção de conheci- Camila Rabelo e Carolina Vicentin sobre co-
causas que comovem. Elas são mento de alto nível. O educador mineiro que- légios que funcionam sem luz, sem água, sem
muitas, demais: a salvação ria mais. banheiro, sem biblioteca, sem futuro.
dos índios, a escolarização das Sonhava uma universidade engajada nas A cada número, publicaremos um dossiê
mudanças sociais necessárias para fazer do com abordagens diferentes sobre um mes-
crianças, a reforma agrária,
Brasil um país do presente, planejava um cam- mo tema. O primeiro é sobre Darwin e suas
o socialismo em liberdade, a pus insone, alegre, rebelde, inquieto e dedica- digitais na ciência contemporânea. O repórter
universidade necessária. Na do a educar os meninos de dentro e, principal- Leonardo Echeverria encontrou heranças da-
verdade, somei mais fracassos mente, os de fora. rwinistas em estudos realizados na UnB.
A Revista Darcy recorreu aos planos e pro- Um dos rastros do naturalista inglês ilustra
que vitórias em minhas lutas,
jetos do primeiro reitor da UnB para definir o a capa dessa edição e atende pelo nome de
mas isso não importa. Horrível perfil da publicação. Tratará das pesquisas e Kentropyx, gênero de lagartos que ajuda a ex-
seria ter ficado ao lado dos que ideias desenvolvidas na universidade mas, se- plicar a biodiversidade da Amazônia. A história
venceram nessas batalhas guindo os passos do mestre, não será uma re- evolutiva dele acaba de ser desvendada por
Darcy Ribeiro
vista encimesmada. cientistas do Departamento de Zoologia.
Queremos falar de dentro. Para fora. Somos um time pequeno, porém bravo. Há
Nossas fontes são os pesquisadores – o sê- seis meses, onze jornalistas, sete designers e
nior e o iniciante, os doutores que trocam a três fotógrafos dormem e acordam com o pro-
calmaria de casa pela febre do laboratório, os jeto Darcy. Para finalizar o trabalho, tivemos
calouros que participam de programas de ini- a artesania do jornalista Luiz Cláudio Cunha,
ciação científica. responsável pela cuidadosa edição de textos.
Nosso leitor preferencial é o professor do Outra luz generosa veio dos integrantes do
ensino médio, brasileiro que se desdobra para Conselho Editorial, formado por respeitados
talhar a esperança em adolescentes desen- nomes da academia. Com sabedoria e experi-
cantados com os livros. Dados do censo do ência, eles ajudaram a lapidar a natureza fre-
IBGE mostram que 6 milhões de jovens entre nética e, às vezes, superficial, de nossas al-
15 e 17 anos estão fora da sala de aula. mas de jornalistas.
Os professores argumentam que carecem Inventar a primeira revista é uma aventura
de formação e recursos pedagógicos para ca- imperfeita e ansiosa como são todas as pri-
tivar a audiência. Paradoxalmente, esses mes- meiras vezes. A Darcy no papel é muito dife-
mos docentes comandam o processo de sele- rente da Darcy sonhada. E, para fazer o sonho
ção nada natural que separa quem entrará no chegar às páginas, contamos nos próximos
Comentários para os editores: ensino superior de quem será privado da vida números com as sugestões de cada leitor. Boa
biamagno@unb.br, luizmottaunb@yahoo.com.br universitária. leitura!
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reportagem
índice
Escolas sem
Ano 1 • Nº 1 • julho e agosto de 2009 banheiro, sem luz,
sem água
revista darcy
1.
10
educação
Professores têm
medo de falar
16 2.
de sexo
saúde
Como os pais
lidam com o
22 3.
câncer dos filhos
dossiê
darcy e os 200 anos de
nascimento de charles darwin
32
7. 8.
1. Isabela Lyrio 2. Luana Wernik 3. Isabela Lyrio 4. Roberto Fleury 5. Ana Rita Grilo 6. Olivier Böels 7 e 8. Eva Schuster
59
inteligentes diálogos tratam de ciência
criados na UnB 4.
26 6
Érica Montenegro apresenta
arqueologia máquinas que antecederam
o computador
de uma ideia
8
literatura
A prosa e a
vida sombria de
Edgar Allan Poe 5.
ensaio
fotográfico
Antropólogos Cristovam Buarque
mostram a Índia de discípulo relembra as lutas e
dos sadhus o sonho de Darcy Ribeiro
6.
62 66
para mestre
PORQUe
DARCY
N
josé geraldo de sousa junior *
6
para que divulgar
ciência?
E
Isaac Roitman*
m 21 de maio de 1964 nasceu na UnB que por sua vez podem transmitir conteúdo
o Centro Integrado de Ensino Médio mais atualizado.
(CIEM). A escola, aberta às experi- A divulgação científica, embora tenha sua
ências pedagógicas e com o ensino importância amplamente reconhecida, ainda
voltado para o desenvolvimento da criativida- é atividade pouco exercida entre os cientis-
de e do pensamento, funcionava no campus tas, e conta com um número ainda pouco ex-
Darcy Ribeiro e era um centro de experimen- pressivo de jornalistas preparados. No Brasil,
tação de educação de nível médio. José Reis é considerado o patrono da divul-
Os princípios pedagógicos do CIEM ema gação científica.
navam de um novo conceito de relação alu- Ele é um dos fundadores da Sociedade
no-professor e se materializavam em novos Brasileira para o Progresso da Ciência
padrões de desempenho e de avaliação. Esse (SBPC). Em 1949, um ano após a fundação
projeto, interrompido em 1971, ilustra a pre- da sociedade, foi criada a revista Ciência e
ocupação dos idealizadores da UnB não só Cultura, da qual foi diretor por muitos anos.
com o estudante universitário, mas também Em sua homenagem, o Conselho Nacional
com o do ensino médio. de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
Darcy, a nova revista de divulgação cien- (CNPq) concede anualmente um prêmio des-
tífica da UnB, tem como foco principal a di- tinado àqueles que contribuem significativa-
fusão da ciência aos professores do ensino mente para tornar a ciência, a tecnologia, a
básico – especialmente os do ensino médio pesquisa e a inovação conhecidas pelo gran-
– e resgata, de certa forma, os objetivos ori- de público.
ginais da iniciativa do CIEM, que tinha como Assim se expressava José Reis sobre a di-
principal finalidade a melhoria da qualidade vulgação científica: “A ciência é bonita e pro-
do ensino médio. fundamente estética, portanto devemos exi-
Revistas especializadas são os veículos de bi-la à sociedade. A divulgação envolve para
comunicação da produção de novos conhe- mim, dois dos maiores prazeres dessa vida:
cimentos entre os cientistas. No entanto, a aprender e repartir.”
divulgação da ciência para o público leigo é A UnB, que tem estimulado a produção
tarefa não trivial. Exige o uso de linguagem cientifica desde a sua fundação e é conside-
mais acessível ao nível de compreensão dos rada uma universidade pública onde a pes-
não especialistas. A divulgação dos resulta- quisa está consolidada, dá agora um impor-
dos dos trabalhos científicos é uma forma de tante passo na construção de mais um elo
prestação de contas dos investimentos feitos com a sociedade. Darcy, sua nova revista,
pela sociedade. vem abrir um novo espaço para a divulgação
Isso gera maior reconhecimento sobre a dos resultados de pesquisas, publicação de
importância da ciência, o que pode reverter debates e exposição de novas ideias.
em maiores investimentos. Dada a velocida- A revista Darcy deverá ampliar as oportu-
de com que novos conhecimentos são produ- nidades para que professores e estudantes
zidos atualmente, a divulgação também é um possam contribuir para o melhor cumprimen-
Darcy Ribeiro, em modo de fazer chegar os resultados desses to da missão de responsabilidade social da
1996: o diálogo entre avanços aos professores do ensino básico, universidade.
saberes está no projeto
da “universalidade
necessária”
7
ar q ueo l ogia de uma ideia
o computador
Entre o PC e a milenar necessidade de armazenar e processar
informações é possível traçar uma longa linha evolutiva. A cada
edição de Darcy, a coluna Arqueologia de uma ideia contará
a história de uma invenção. Veja neste número quem são os
antepassados do computador
érica montenegro
Repórter - Revista Darcy
Perto de 2.400 a.C., os dez dedos das mãos já não bastavam para fazer as Nas enfumaçadas fábricas
contas. Surgiu, então, na Mesopotâmia uma máquina para ajudar o homem da Revolução Industrial, surgiu uma
a cumprir estas tarefas. Era o ábaco, palavra árabe que significa ideia fundamental para a criação de
areia. Nele, bolinhas presas em hastes horizontais computadores. Em 1801,
representavam números. As contas de adição o tecelão Joseph Marie Jacquard (1752-1834)
1 3
e subtração eram feitas com inventou uma maneira de ‘programar’
as peças deslizando de os teares industriais para que eles execu-
um lado para o outro. tassem diferentes padronagens de tecidos
Disseminado entre gregos, – entre elas, o xadrez. O método consistia em
romanos, chineses e inserir cartões perfurados nos equipamentos
japoneses, o ábaco era tão que, então, seguiam as instruções registra-
eficiente que sobreviveu até das nos furos. A invenção quase custou a
o século XVII como a melhor cabeça de Jacquard. Milhares de operários
invenção do homem para que perderam o emprego foram atrás dele
fazer contas. para matá-lo. Mas sua contribuição à história
estava garantida. A partir daí, ficou claro que
as máquinas poderiam ser programadas.
Do coletor ao rei
O filósofo e matemático
francês Blaise Pascal
(1623-1662) entrou para
a história como o inventor
da máquina de calcular. Quando
2
apresentou seu protótipo, Pascal,
com apenas 18 anos, queria facilitar
o trabalho do pai, coletor
de impostos na cidade de Rouen.
A pascaline, como ficou conhecida,
fazia operações de soma e subtração.
Mereceu patente concedida pelo rei
da França, mas era pouco confiável.
Ilustrações: Ana Rita Grilo/UnB Agência
8
A lógica do moinho
Encolheram a geringonça
SAIBA MAIS Introdução ilustrada à computação Fontes: Marcelo Ladeira, diretor do Centro de Informática Comentários para a colunista:
com muito humor, de Larry Gonick da UnB; e Pedro Rezende, professor do Departamento de ericam@unb.br
(Harper & Row do Brasil, 1984) Ciência da Computação
9
Ítalo Caldeira, 9 anos: escola
reportagem improvisada com paredes de
amianto e teto de zinco
Isabela Lyrio/UnB Agência
Desleixo
Centro Educacional do
10
128 mil escolas brasileiras
A
estão reprovadas no quesito
infraestrutura
lição do descaso é ensinada de segunda a sexta- tal para manter as crianças na escola”, aponta o professor
feira nos quatro cantos do país. A aula acontece João Ferreira de Oliveira. “Se o colégio é muito ruim, os
em escolas sem água e sem energia elétrica. pais podem achar o estudo perda de tempo”, completa.
Colégios com paredes remendadas, tetos com
goteiras e pisos esburacados. Os alunos da disciplina não falta dinheiro, falta gestão
‘Desleixo’ são obrigados a aprender em escolas sujas, onde No Brasil, a educação é financiada com o dinheiro de
não existem banheiros, quadras de esportes, laboratórios impostos. A Constituição Federal determina que, no mí-
de informática e bibliotecas. nimo, 25% da arrecadação da União, dos estados e dos
Dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas municípios seja aplicada na rede pública. Em cidades mais
Educacionais Anísio Teixeira (Inep) mostram que mais de ricas, esse percentual alcança até 35%. Ou seja, o dinheiro
80% das escolas brasileiras de ensino fundamental estão existe, o problema é que ele não chega ao destino final.
reprovadas quando se avalia o conjunto: energia elétrica, O Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da
abastecimento de água, banheiro em condições adequa- Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da
das, laboratório de informática, biblioteca e quadra para a Educação (Fundeb), composto por alíquotas de diferentes
prática de esportes. impostos, é uma das principais fontes de recursos para as
São 128.238 estabelecimentos públicos e particula- escolas públicas. A regra para gastá-lo é usar 60% para
res onde a falta de infraestrutura física e de equipamen- o pagamento de profissionais da educação e o restante
tos compromete a qualidade do ensino. A Escola Classe (40%) em despesas diversas – dinheiro que pode ser usado
108/110 de Samambaia, no Distrito Federal, é exemplo des- tanto para a construção e reforma de escolas como para a
sa triste realidade. As goteiras interrompem as aulas na complementação da folha de pagamento.
época da chuva. Na seca, o calor desconcentra. Não são A verba do Fundeb é distribuída de acordo com o nú-
feitas reformas há 20 anos. mero de matrículas e varia conforme a região e a escolari-
No campo, o abandono é maior. Pesquisa da coorde- dade. Este ano, o Distrito Federal deve investir, no mínimo,
nadora do curso de Educação do Campo da UnB, Mônica R$ 2.102,79 para cada aluno das séries iniciais do ensino
Molina, revela que 75% das escolas rurais brasileiras não fundamental da zona urbana. Em Goiás, o valor cai para R$
têm biblioteca e 90% não têm laboratórios de informática. 1.653,95. Além dos recursos de impostos, o DF conta com
“Ainda existe a ideia de que qualquer coisa serve para o mais dinheiro por causa do Fundo Constitucional.
campo”, lamenta a pesquisadora. Apesar das verbas de educação serem carimbadas, o
Os professores não dão conta de suprir deficiências que destino delas é determinado pelas administrações munici-
são do Estado. “Por mais dedicado que ele seja, não con- pais e estaduais. Aqui começam os problemas de gestão.
segue desenvolver um trabalho eficiente em um ambiente Mesmo com a transferência sendo feita com base na quan-
sem condições”, aponta Regina Gracindo, professora da tidade de matrículas, não há garantia de que os recursos
Faculdade de Educação da Universidade de Brasília. serão distribuídos às escolas de acordo com esse mesmo
A escola mal cuidada provoca cicatrizes na autoesti- padrão. Quem decide como o dinheiro será aplicado são os
ma dos alunos. Também prejudica o rendimento de pro- governadores e os prefeitos.
fessores e funcionários. “É impossível se sentir estimulado “Por causa da autonomia municipal, a União não pode
em um ambiente desagradável. O espaço ideal é lúdico, dizer o que é prioridade”, diz Remi Castioni, professor da
incentiva a concentração e a criatividade”, destaca João Faculdade de Educação da Universidade de Brasília. O di-
Ferreira de Oliveira, professor da Faculdade de Educação nheiro existe, mas a educação não é prioridade para mui-
da Universidade Federal de Goiás (UFG). tos gestores. “Se o prefeito decidir que a construção de um
Os problemas de infraestrutura estão entre as causas portal na entrada da cidade é mais importante que a ma-
de abandono dos estudos. O descuido do Estado com a es- nutenção de uma escola, nada pode ser feito.”
cola pode levar os pais a desistirem de mandar os filhos ao Nas próximas páginas, conheça o cotidiano de crianças
colégio. “O valor que a família dá à educação é fundamen- e adolescentes que estudam em escolas maltratadas.
11
na zona rural, escolas ficam no escuro de quatro anos e meio na escola, enquanto na cidade a média chega a
A Escola Municipal Macaúba, na zona rural de Planaltina de Goiás, a sete anos e oito meses de estudo.
85 km do centro de Brasília, tem quadro, carteira e a gritaria de crianças “A ideia de que qualquer coisa serve para o campo, pois lá é tudo
na hora do recreio. Mas os 11 meninos e meninas que estudam no lo- atrasado mesmo, esteve presente nas políticas públicas por muito tem-
cal aprendem sem energia elétrica, biblioteca ou computador. Quando po”, observa Mônica Molina. “O resultado é que esses meninos e me-
querem ir ao banheiro, as crianças – com idades entre 6 e 10 anos – ninas começam a vida com menos condições de igualdade”, comple-
caminham cerca de oito metros para fora da escola e fazem suas ne- ta. Outra dificuldade das escolas rurais é educar crianças em classes
cessidades em uma casinha que esconde um buraco no chão e restos multisseriadas, que reúnem alunos das séries iniciais do ensino funda-
de materiais de construção. mental na mesma turma.
Macaúba é uma das 132 escolas de Goiás que não possuem ener- A diretora de Macaúba, Aparecida Gomes Beserra, não sabe por que
gia elétrica. No Brasil do século XXI, 13,5% das unidades educacionais o colégio permanece às escuras. “Os postes de luz chegam a uma fa-
permanecem no escuro. Pesquisa da UnB mostra que, entre as escolas zenda bem próxima, mas não contemplam a escola”, diz. A secretária
rurais, o índice chega a 23%. Situação que força Erivânia Montalvan, de Educação de Planaltina de Goiás, Stella Lombardi, que assumiu o
34 anos, professora da única classe da escola, a usar somente qua- cargo em janeiro, foi informada pela reportagem da Darcy que a esco-
dro e papel na hora de repassar o conteúdo às crianças. “Os meninos la não tinha energia. A secretaria informou ter solicitado o ligamento
aprendem bem, mas se eu tivesse aparelho de som e DVD, a aula seria da luz em 27 de maio.
mais dinâmica”, reconhece a professora. Em Brasília, a coordenadora de Educação do Campo do Ministério da
O estudo da professora Mônica Molina, coordenadora do curso de Educação, Vanessa Schim, afirmou que as escolas sem energia elétrica
Educação do Campo na UnB, revela que 75% das escolas rurais não são atendidas com prioridade pelo programa Luz para Todos, também
têm biblioteca e 90% não têm laboratório de informática. A precarieda- do governo federal. “A partir do momento em que o prefeito solicita a
de dos colégios, afirma Mônica, ajuda a explicar a diferença de escola- ligação de energia para uma escola, o pedido passa adiante de outras
ridade entre o campo e a zona urbana. A população rural passa cerca demandas para residências”, afirmou.
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Isabela Lyrio/UnB Agência
Colégio de Samambaia: 20 anos de precariedade
escola remendada mesma dificuldade. Para funcionar, a Escola Classe São Bartolomeu
Quando chove em Samambaia, as aulas da Escola Classe 108/110 depende de abastecimento feito por caminhão-pipa. Duas vezes por se-
precisam ser interrompidas. As goteiras tornam as classes impraticá- mana – às terças e quintas – um motorista contratado pela Secretaria
veis. “As crianças ficam zanzando de um lado para o outro para fugir de Educação abastece a caixa d’água da escola com 10 mil litros.
da chuva”, conta a professora Ana Flávia Barros, 31 anos, responsável Para evitar imprevistos, a diretora Célia Regina da Silva Dias man-
pelo 5° ano matutino. Além do teto que não protege, a água entra pelas tém o celular do motorista do caminhão na agenda. “Se ele atrasa, a
frestas das portas e pelos remendos feitos nas paredes. gente liga. Sem água, a escola vira um caos”.
Com 914 alunos, a Escola Classe 108/110 está prestes a completar No ano passado, faltou água em algumas segundas-feiras.
20 anos nas mesmas instalações provisórias em que foi inaugurada. “Chegamos aqui e a caixa d’água estava vazia. Não sabemos se foi
Isso significa paredes de placa de amianto e telhas de folha de zinco. roubo ou vazamento”, conta a diretora. A partir daí, as professoras co-
“Aqui já veio político de tudo quanto é partido e nenhum deu jeito”, con- meçaram a fechar o registro geral antes de sair do colégio. Os dias sem
ta a vice-diretora Maria Lúcia Pereira da Rocha. Cansada de promes- água ficaram na memória das crianças. “O banheiro estava nojento. A
sas, ela questiona se cabe falar em igualdade de direitos naquele cená- gente não tinha nem água para beber”, conta Davi Lacerda, 6 anos,
rio. “Você acha que os alunos daqui têm estímulo para vir às aulas?” da 1° série.
Hector Fernandes, 10 anos, do 5° ano, imposta a voz, aponta a pare- O problema de abastecimento começou há cinco anos, quando as
de remendada com um pedaço de madeira e ensina a lição do desam- paredes do poço artesiano da escola desabaram. Próximo à cidade
paro: “Traduzindo o que todo mundo aqui sabe, a nossa escola está de São Sebastião, o colégio de 170 alunos fica apenas a 1.200 me-
um lixo”. Lucas Gabriel Cordeiro, 11 anos, 4° ano, enumera as faltas: tros de um dos pontos de encanamento da Companhia de Saneamento
“Computador só tem na direção. E biblioteca, quando o professor abre Ambiental do DF (Caesb).
a sala de leitura.”
Na Escola Classe 108/110 não há laboratório de informática, nem bi- Melhor que a média, mas longe do ideal
blioteca nem auditório. A quadra esportiva foi construída com dinheiro Os números do Inep mostram que o Distrito Federal têm indicadores
da comunidade, mas não é usada porque o piso precisa de reparos. “A melhores do que a média brasileira em todos os quesitos analisados,
recreação é no pátio. Não dá para jogar futebol”, reclama Matheus de exceto quantidade de escolas com biblioteca. Isso não quer dizer que
Sousa Passos, 11 anos, do 4° ano. as escolas brasilienses estejam livres de problemas, como revelam os
Os problemas de infraestrutura limitam o que a escola poderia ofere- colégios visitados pela revista Darcy.
cer à comunidade. A Escola Classe 108/110 de Samambaia tem profes- Em 2007, o Tribunal de Contas da União (TCU) apresentou um re-
sores capacitados para incluir alunos especiais, mas a arquitetura não latório que apontava como urgente a reforma de 510 entre as 620 es-
permite que crianças em cadeiras de rodas sejam matriculadas. Não há colas que existem na rede pública. Segundo o secretário de Educação,
banheiros adaptados e os corredores são cheios de desníveis. “A comu- José Luiz Valente, desde então, já foram investidos R$ 27 milhões em
nidade perde com isso. O profissional fica imensamente frustrado, de obras. “Acredito que já reformamos 90% das escolas com problemas,
mãos atadas”, reclama a vice-diretora Maria Lúcia Pereira. mas ainda há trabalho para ser feito”, afirma.
Quanto às escolas sem abastecimento de água, Valente explica que
Caminhão-pipa na porta do colégio a responsabilidade é da Caesb. “O Ministério Público determinou que
Localizada na zona rural de São Sebastião, a Escola Classe São eles resolvam ainda em 2009. Enquanto isso não acontece, a Secretaria
Bartolomeu é uma das oito escolas brasilienses de ensino fundamental de Educação contrata uma empresa de caminhão-pipa por licitação”,
que não tem água encanada. No Brasil, 4,3 mil colégios passam pela afirma o secretário.
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Daiane Souza/UnB Agência
Censo revela
os números
da Educação...
...sem água
1. Pernambuco: 820 (8%)
2. Bahia: 1578 (7,7%)
3. Alagoas: 176 (5,5%)
4. Rio Grande do Norte: 173 (5%)
5. Sergipe: 87 (4%)
Distrito Federal: 8 (1%)
Brasil: 4.303 (2,7%)
...sem banheiro
1. Maranhão: 3.857 (31,3%)
2. Amazonas: 1.280 (25,4%)
3. Roraima: 114 (17,4%)
4. Piauí: 1.138 (17,3%)
5. Tocantins: 301(16,4%)
Luana Jesus, 7 anos: na falta de uma biblioteca, leva os livros para ler em casa Brasil: 11.100 (6,9%)
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Daiane Souza/UnB Agência
Tales Fernando, 5 anos: esporte sem quadra.
Escola de Planaltina não tem estrutura para educação física
a uma parceria com uma empresa de siderurgia para construir a sala As crianças são mantidas dentro das salas de aula até na hora do
de leitura em maio de 2009, depois de 30 anos sem um espaço para lanche. A escola não tem refeitório, o que obriga as professoras a servir
abrigar os livros. a merenda no mesmo espaço em que dão aulas. “É sujo, é anti-higiê-
“A leitura é o alicerce de todo aprendizado e faz diferença no de- nico. As crianças comem na mesma mesa em que estudam”, reclama
senvolvimento intelectual da criança”, ressalta a diretora Consuelo a professora Ana Flávia de Sousa, 30 anos. O processo também torna
Martins, 43 anos. O colégio atende 230 alunos, de 4 a 10 anos. A maior as classes menos produtivas porque os professores têm de parar a aula
parte deles mora na Estrutural, região pobre do DF. “Os estudantes vi- por pelo menos 50 minutos – tempo gasto entre organizar o lanche e
vem em uma região carente, não têm acesso à biblioteca, nem livros em reorganizar a sala.
casa. A escola é a única oportunidade nesse sentido”, pondera. Dos seis blocos da Escola Classe 11, quatro são de madeira. Neles,
O esforço dos professores em inserir a leitura no cotidiano dessas o teto é coberto por folhas de zinco, o que torna a temperatura dentro
crianças é notado quando bate o sinal do recreio. Depois do intervalo, das salas muito mais alta. “Nos dias quentes, fica insuportável. O calor
o barulho das brincadeiras dá lugar a muitas histórias. Foi assim que deixa as crianças inquietas”, desabafa o diretor Ivan José Silva. “Para
Isabela Faria, 8 anos, aluna da 2º série, aprendeu a gostar de ler. “Leio as professoras, é mais difícil controlar a turma”, reconhece.
todos os dias antes de dormir. Quando meus pais estão com problema, Convicto de que as dificuldades físicas influenciam na qualidade
eu leio uma história para eles e eles ficam calmos”, conta a menina. de ensino, o diretor da Escola Classe 11 faz uma proposta para as au-
toridades do país. Na opinião dele, todos os funcionários públicos com
aperto para aprender, lanchar e brincar cargo de chefia deveriam ser obrigados a manter pelo menos um dos
Os 550 alunos da Escola Classe 11 de Planaltina, com idades entre filhos na rede pública. “É a única maneira de as pessoas que mandam
4 e 5 anos, precisam se revezar para brincar. Cada turma tem direito a se importarem com a escola pública.”
três sessões de 50 minutos por semana no único parquinho da escola.
O rígido cronograma foi estabelecido para contornar as dificuldades
físicas do colégio.
A falta de cobertura não permite que a quadra de esportes seja usa-
da pelos estudantes. “A quadra fica o dia inteiro no sol, não dá para bo- SAIBA MAIS
tar as crianças ali”, lamenta o diretor Ivan José Silva. Como o parquinho ONG Todos Pela Educação
é pequeno, as professoras improvisam atividades nas escadas, um dos www.todospelaeducacao.org.br
poucos espaços que ficam à sombra das árvores. Desigualdade e desempenho – Uma introdução à sociologia da escola brasileira,
As restrições físicas também impedem que as crianças sejam apre- de Maria Lígia de Oliveira Barbosa (Editora Argvmentvm, 2009)
sentadas à informática. O colégio tem oito computadores doados pelo Comentários para as repórteres: camilarabelo@unb.br,
Tribunal de Justiça do DF. Mas, dentro de um pequeno quarto, as má- carolina@unb.br e ericam@unb.br
15
educa ç ã o
16
SEXO
O assunto está em todos
NA SALA
os lugares. Revistas, livros,
novelas, hoje já não há mais
DE AULA
censura para falar da libido.
Mesmo assim, o tema continua
tabu no lugar que deveria ser
um dos primeiros a informar
sobre a sexualidade
Daiane Souza/UnB Agência
carolina vicentin
Repórter - Revista Darcy
17
M
aria Lúcia Pretto, aos 24 anos, ti- cundário dado às relações de gênero e à di- zer o assunto para a sala de aula. “Há um si-
nha acabado de passar no con- versidade sexual, por exemplo. Esses tópicos lêncio na escola sobre a dimensão prazerosa
curso para auxiliar de disciplinas fazem parte de uma lista de temas transver- da sexualidade”, destaca a pesquisadora. “Os
quando entrou em uma sala de sais definidos pelo Ministério da Educação em professores afirmam que falar sobre isso é
aula e se deparou com uma camisinha pendu- 1998. Os temas transversais dizem respeito a como entrar em um campo minado.” É como
rada no quadro. todas as disciplinas e devem ser trabalhados se os mestres e gestores da educação estives-
Cheia. com o envolvimento de toda a escola, que se- sem ignorando que adolescentes ‘ficam’, gíria
“Eles empurraram todas as cadeiras para o ria o lugar ideal para falar de sexo, uma vez utilizada para definir relacionamentos sem
fundo da sala e ficaram esperando a minha re- que o assunto é tabu em muitas famílias. compromisso que podem incluir, ou não, rela-
ação”, lembra. Sem saber o que dizer, Maria foi Assim, a educação sexual deveria começar ções sexuais.
ao coordenador do antigo ginásio para cobrar logo depois que a criança aprendeu a ler e a
uma solução. Saiu frustrada. “Ele ficou dizen- se socializar. Antigamente, essa fase surgia Assunto proibido
do que era para eu não dar bola. Imagine!” lá pelos 12 ou 13 anos. Hoje, a etapa começa Professores fogem do assunto, o que obriga
A história se passou no interior do Rio mais cedo, por volta dos 8 anos, época em que os estudantes a procurar informações sobre
Grande do Sul, em 1960, mesmo ano da inau- as crianças já descobriram muita coisa sobre o sexualidade em outras fontes. “Eu não faço
guração de Brasília. Depois de quase 50 anos, mundo com a ajuda da televisão e da internet. perguntas sobre sexo para os professores.
professores e orientadores educacionais “O ato sexual é tão necessário quanto comer Eles iriam me mandar para a direção”, imagi-
continuam sem saber como agir diante de ou dormir. A prática da sexualidade do pon- na Alessandra dos Santos, 15 anos, aluna da
situações como essa. Pesquisa da Universidade to de vista cultural possibilita a autonomia de 8ª série de um colégio público do Guará, cida-
de Brasília mostra que os professores da rede meninos e meninas”, afirma Lourdes Bandeira, de do Distrito Federal. No ano passado, uma
pública do DF, que tem hoje 28 mil profissio- professora do Departamento de Sociologia da colega de Alessandra perguntou a uma profes-
nais, não estão preparados para lidar com o UnB e subsecretária da Secretaria Especial sora como se fazia sexo oral. A menina acabou
assunto: 97% dos entrevistados acreditam que de Políticas para as Mulheres, vinculada à sendo levada para a coordenação. “Acho que
a escola deve realizar trabalho de educação Presidência da República. eles têm vergonha de falar disso na sala de
sexual. No entanto, 66% deles não receberam O estudo de Ana Flávia revelou que a maio- aula”, emenda Gesielly Nascimento, 14 anos,
formação adequada para tratar com questões ria dos professores considera “perigoso” tra- amiga das duas jovens.
diversidade cultural
uza/UnB Ag
18
UnB Agência
Isabela Lyrio/
Alessandra, Gesielly e
Rosilane: livros da biblioteca
da escola abordam o sexo,
mas elas não se sentem
seguras para falar disso com
os professores
‘mamãe, você e o
atendimento. “A gente tenta criar oportunida- termos, você ganha a confiança deles.”
des, mas é um trabalho de formiguinha.” O sexo entra oficialmente nas escolas de
a cegonha o trouxe
cursos também é delicada por conta da au- zem parte da iniciativa, sendo um deles no
tonomia universitária”, explica Daiane Lopes, Núcleo Rural Pipiripau II. Além das matérias
para mim?”
assessora técnica da Secretaria de Educação normais, as crianças têm aulas à tarde – das
Continuada, Alfabetização e Diversidade do 13h às 17h – de terça a sexta-feira. O currícu-
MEC. Desde 2006, o ministério faz parcerias lo prevê o ensino de disciplinas de formação
Gisele Oliveira Vidal, professora de português com outros órgãos de governo e com universi- humanística, entre elas a educação sexual.
19
O preconceito nasce em casa
Um dos obstáculos que surgem no traba-
lho da escola é a postura da família quanto
ao ensino sobre sexualidade e diversidade.
“Meu objetivo
Professores contaram à pesquisadora da UnB
à sexualidade.
ais. “Alguns pais defendem que a orientação
A intenção era
sexual seja curada com brigas e pancadaria,
e as crianças trazem essa ideia para a sala de
fazer o meu
aula”, observa Ana Flávia Madureira.
trabalho”
A solução, sugere a pesquisadora, seria tra-
zer a família para o debate sobre o assunto. “O
preconceito é uma invenção cultural. Nos tor-
namos o que somos em um contexto repleto Márcio Barrios, professor de inglês
de preconceitos como o machismo, o elitismo, Isabela Lyrio/UnB Agê
ncia
20
“Uma coisa é ver Orientadora educacional de uma escola do da Secretaria Especial de Políticas para as
na televisão que Paranoá, Paloma Tosatti, 28 anos, conhece a Mulheres, afirma que ainda existe nas escolas
abusada sexualmente, 14 anos que cursava a 3ª série do ensino fun- seja o espaço ideal para discutir sexualidade.
de ajudar
consigo admitir que crianças de 11, 12 anos pos está relacionada também às crenças reli-
convivam com drogas ou tenham uma vida giosas de cada um. Ana Flávia Madureira res-
96,72% 79,51%
SAIBA MAIS
acham que a escola deve fazer já encararam questões relativas a sexo Gênero, Sexualidade e Diversidade na Escola:
trabalho de educação sexual ou à orientação sexual em sala de aula a construção de uma cultura democrática,
de Ana Flávia Madureira. Tese de doutorado
defendida no Instituto de Psicologia da UnB em
2007. O estudo está disponível na Biblioteca
Central da UnB.
65,57% 21,31%
Gênero, Sexualidade e Educação: uma
perspectiva pós-estruturalista, de Guacira
não foram orientados sobre trabalham em escolas Lopes Louro. (Editora Vozes, 1998).
como lidar com o tema onde há educação sexual
Comentários para a repórter:
carolina@unb.br
21
filhos,
SAúDE
O câncer dos
Na sala de espera da
pais
quimioterapia, Karoll e
a mãe estão tranquilas.
a dor dos
Nem sempre foi assim. O
diagnóstico de leucemia
mexeu com a estrutura
da família e mostrou que,
muitas vezes, os doentes
são mais fortes que os pais
U
camila dumiense
Especial para Revista Darcy
23
COMO OS PAIS
ENCARAM
A DOENÇA
Na semana do diagnóstico:
A constatação da leucemia abala a família. Os pais enfrentam o quadro com forte emoção.
Nessa fase, são comuns as crises de choro, as explosões de raiva, o medo e a insegurança.
Eles também costumam culpar a si mesmos – como se não tivessem cuidado do filho da for-
ma ideal – ou aos médicos – pela demora no diagnóstico.
força de gigante desde o início do tratamento. Pais precisam de ajuda culpado e me perguntava se a culpa era mi-
Reagiu bem às sessões de quimioterapia. Não O momento é de aprendizado também para nha. Achava que não tinha alimentado minha
vomitou, nem teve sangramentos. “Pela reação os pais. Fragilizados, eles também precisam de filha direito”, lembra a mãe.
dela, a gente foi se conformando e acreditan- ajuda. A estudante de enfermagem Cristiane Com dificuldade para aceitar o que esta-
do mais e mais na cura”, conta o pai Evandro. Silva de Sousa, 27 anos, entrou em depressão va vivendo, Cristiane decidiu procurar ajuda
Atualmente, a família mora em uma pou- depois que sua filha Ana Carolina, 3 anos, re- no serviço psicológico do Hospital de Apoio de
sada de Brasília, com hospedagem paga pela cebeu o diagnóstico de câncer no sangue, em Brasília. Para ela, a terapia foi fundamental.
prefeitura de Barreiras. Evandro e Kátia têm outubro de 2007. “Eu não aceitava, ficava re- Quase um ano e meio depois da descoberta da
mais consciência sobre a doença e suas possi- voltada, zangada com Deus. Eu procurava um doença da filha, os psicólogos estão entre os
bilidades de cura. O pai tornou-se um especia- melhores aliados para enfrentar a situação. As
lista informal em leucemia. Pesquisou a doen- conversas proporcionam alívio à mãe. “Já vivi
ça e sabe de cor o nome de todos os remédios dias horríveis. Se não fosse a ajuda da psicó-
que a menina já tomou. loga, não sei o que seria de mim”, desabafa a
“Tia, vamos brincar?”, pergunta uma das mãe de Ana Carolina.
meninas que aguarda atendimento, enquan- Dois psicólogos integram o serviço da ins-
Logo depois do
to a psicóloga Sílvia Maria Coutinho, 39 anos, tituição, além de sete estagiários do curso de
corre de um lado para o outro pelas instala- Psicologia da UnB. O programa faz parte de
ções do hospital. “Agora não, daqui a pouqui-
diagnóstico, o quadro uma parceria entre o Instituto de Psicologia
repetitivos, sentimentos
des lúdicas. Conta historinhas, brinca com as na área de psico-oncologia pediátrica. A ini-
crianças e conversa com os familiares. ciativa expandiu o atendimento do hospital e
Com a experiência, as crianças aprendem
de vazio interior e, até aumentou a capacidade de atendimento para
de barriga e dificuldade
Guernelli Nucci, faz sucesso. das crianças. Além do atendimento individual,
O livro conta a trajetória de um leão que eles recebem visitas em casa e participam de
não tem juba. “É uma analogia com a perda
para dormir. Para grupos, nos quais tiram dúvidas, compartilham
atendimento psicológico
apresentando novas opções para seus peque- fiantes para buscar ajuda”, conclui Áderson
nos leitores. Júnior Costa.
24
Isabela Lyrio/UnB Agência
Manifestações de ansiedade
À medida que o tempo passa,
os níveis de ansiedade, medidos
numa escala que vai de 1 a 3,
diminuem
2 a 3 meses depois
5 a 6 meses depois
ansiedade geral do diagnóstico
ansiedade somática
ansiedade cognitiva
Escores
Metodologia
Durante seis meses, a pesquisa
acompanhou pais, mães e responsáveis
por crianças que receberam diagnóstico
de leucemia e iniciaram tratamento de
quimioterapia. Para avaliar o nível de
ansiedade dos familiares, a psicóloga
conversou com eles em três fases
distintas do tratamento: 1) na semana do
diagnóstico; 2) de 2 a 3 meses depois e,
por fim, 3) de 5 a 6 meses. O período de
tempo foi definido de acordo com as fases
do protocolo de quimioterapia. Entre os
objetivos do estudo, estava avaliar que
tipo de estratégias de enfrentamento os
pais adotam para lidar com situações do
dia a dia. A pesquisadora Marina Kohlsdorf
percebeu que, com o decorrer do tempo,
o enfrentamento focalizado na emoção
vai sendo substituído pelo enfrentamento
focalizado na resolução do problema.
SAIBA MAIS
25
rOBôs
tecnologia
O DESPERTAR DOS
O
cálculos e esforço dos pesquisadores para funcionar
leonardo echeverria
Repórter - Revista Darcy
26
Robôs são multidisciplinares. A mecânica Laboratório de Automação e Robótica (Lara), voar linhas de transmissão de energia elétri-
estuda o ‘esqueleto’ da máquina – braços mó- da Engenharia Elétrica, pôs um robô para lo- ca, reconhecendo defeitos e tirando fotos para
veis e motores. A eletrônica monta o ‘sistema calizar uma porta em um corredor. O robô om- análise dos técnicos. A pesquisa é financiada
nervoso’ pelo qual os sinais serão distribuídos. nidirecional (que gira em todas as direções), pela empresa Plena Transmissoras, que atua
À computação cabe construir a programação, cedido à UnB pela Universidade de Montpellier, em Minas Gerais e São Paulo.
o ‘cérebro’ que toma decisões. O professor na França, possui três rodas com tração e uma Na medicina existe uma linha de pesquisa
Geovany Borges, do Departamento de Enge- câmera de vídeo acoplada à cabeça. dedicada a criar robôs que simulam emoção
nharia Elétrica da UnB, faz questão de diferen- Para os alunos conseguirem fazer a máqui- para interagir com crianças autistas. O robô
ciar a carcaça do robô da inteligência aplicada na entender visualmente o que é uma porta, Kaspar, criado na Universidade de Hertford-
a ele. “Uma coisa é a plataforma. Outra é o que mapear sua posição no espaço e ir até lá, tra- shire, na Inglaterra, é um boneco em forma
vai se fazer com ela”, diz Geovany. “Robótica çando uma trajetória e desviando de obstácu- humana, do tamanho de um menino de cinco
não trata da parte mecânica ou elétrica, mas los, foi necessário um trabalho de nove meses anos, forrado de microssensores inteligentes.
de modelos para aplicação”, afirma, fugindo só montando fórmulas matemáticas. Para co- Capazes de sentir dor e expressá-la, os robôs
de uma definição mais específica de robótica. locar essas informações no ‘cérebro’ do robô, ensinam às crianças quais comportamentos
É difícil porque você sempre vai encontrar um os alunos precisaram de apenas quatro dias. são bons ou maus. A universidade inglesa faz
exemplo contrário. Um caixa eletrônico é um Na hora de realizar o teste, o robô levou menos parte de um consórcio internacional chamado
autômato que realiza várias tarefas, mas não de dois minutos para encontrar a porta. LIREC – sigla em inglês para Convivendo com
pode ser considerado um robô porque não age As pesquisas mais avançadas em robó- Robôs e Companhias Interativas. A meta do
de maneira independente. tica são aplicadas principalmente em duas grupo é criar máquinas com memória, emo-
As habilidades que caracterizam um robô áreas: medicina e indústria bélica. Na guerra ção, cognição, comunicação e aprendizagem.
estão ligadas a sua programação: autonomia, do Iraque, as milícias que resistem ao contro- A realidade já não parece tão distante do
tomada de decisões, representação de am- le dos Estados Unidos têm em sua posse uma futuro imaginado na ficção. Em uma cena do
bientes e manipulação de dados. “Matemática pesada artilharia antiaérea. Alguns bombar- filme Metropolis, rodado em 1926 pelo cine-
é a essência”, afirma Geovany. O programa- deios são feitos por helicópteros-robôs. É a asta austríaco Fritz Lang, o inventor Rotwang
dor de robôs trabalha com a construção de guerra por videogame. apresenta uma fêmea-robô ao milionário Jon
algoritmos complexos, usados para calcular A UnB desenvolve um helicóptero-robô, Frederson. Trava-se o seguinte diálogo:
probabilidades e estatísticas. Ao prever dife- chamado Veículo Aéreo Não Tripulado (VANT), – O robô é quase perfeito. Tudo o que falta
rentes caminhos em direção a um mesmo ob- capaz de estabilizar o voo sozinho, reagindo é uma alma – diz Rotwang.
jetivo, o robô imita o processo humano de de- automaticamente à força dos ventos. Mas o Frederson rebate:
cisão. Uma das experiências conduzidas pelo projeto tem fins pacíficos. O robô vai sobre- – Você está errado. É melhor que fique sem.
robô-QUADRÚPEDE
Pernas articuladas permitem
vencer obstáculos naturais. Projeto
semelhante foi usado para explorar
o planeta Marte
27
Fazendo o trabalho pesado paro, vai poupar os humanos do trabalho pe-
Um dos projetos mais ambiciosos da rigoso. Ele deve operar instalado nas paredes
área na UnB é um robô de uso exclusivo da da turbina. Seu ‘braço’ tem cinco graus de li-
Eletronorte, empresa estatal que fornece ener- berdade, sendo 3 graus no braço e 2 graus no
gia elétrica aos nove estados da Amazônia punho, o que permite uma grande amplitude
Legal. O robô tem um metro de altura, 1,5 me- de movimentos – a mão humana tem incríveis
tro de alcance do braço mecânico, com uma 78 graus de liberdade. Sensores óticos de var-
tocha de soldagem na ponta. Sua tarefa é fa- redura a laser serão capazes de detectar os
zer reparos nas pás das gigantescas turbinas buracos nas pás e produzir um mapa digital
da Usina Hidrelétrica de Tucuruí, no Pará. de todos os defeitos. A tocha acoplada ao bra-
As turbinas são imensas rodas de metal ço flexível fará a soldagem nesses pontos.
de 8,5m de diâmetro, com pás que giram à A UnB conseguiu financiamento do proje-
passagem da água, gerando energia. As pás to em um edital publicado pela Eletronorte,
das turbinas são constantemente danificadas no final de 2006. O professor José Maurício
pelo fenômeno da cavitação. Acontece assim: Motta, que coordena o projeto no Grupo de
a sucção das turbinas diminui a pressão da Automação e Controle (Graco), estima mais
água a níveis mínimos. Bolhas de ar são for- três anos de pesquisa até que o robô esteja
madas e, quando se quebram, geram explo- pronto. “Para a UnB, esses trabalhos são mui-
sões poderosíssimas, capazes de abrir bura- to importantes, pelo conhecimento gerado,
cos na pá de aço. pelo treinamento dos estudantes com esse
Hoje o reparo é feito por operários huma- tipo de tecnologia. E também pelas publica-
nos. A turbina precisa ficar desligada durante ções que vão sair desta pesquisa”, explica. O
dois dias. Os trabalhadores ficam em um am- valor total financiado pela Eletronorte é de R$
biente completamente insalubre, escuro, com 818 mil. Desse montantepenas R$ 300 mil são
altíssima umidade e temperaturas acima dos de custos com peças. O resto se refere à pes-
40º C. O robô, além de diminuir o tempo de re- quisa e inteligência aplicada.
28
Joelho artificial
Processador
Tornozelo artificial
Roberto Fleury/UnB Agência
PERNA ROBÓTICA
Sensores colados na
perna da pessoa mandam
sinais para a prótese, que
os interpreta e movimenta
as articulações. Sensores
no pé artificial garantem
que a pessoa receba
sensações de tato
Sensores do pé
SAIBA MAIS
Robótica Industrial Aplicada na Grupo de Automação e Controle - Graco - www.graco.unb.br Comentários para o repórter:
Indústria de Manufatura e Processos, Laboratório de Robótica e Automação - Lara - www.grav.unb.br leonardole@unb.br
de Vitor Ferreira Romano
(Editora Edgard Blucher,2002) Mecatrônica Atual - www.mecatronicaatual.com.br
29
O Q U E E U C R I E I P A R A V O CÊ
A enchente
engarrafada
A coluna O que eu criei para você traz a cada edição da
DARCY uma tecnologia recém-criada pelos pesquisadores
da UnB. Conheça a ideia de uma engenheira para reduzir
O
o estrago das chuvas e o impacto das enchentes
kennia rodrigues
Repórter - Revista Darcy
Entenda o processo:
o sistema armazena
a água da chuva
e facilita seu
escoamento até o
solo. Em seguida
a água segue para
o lençol freático
30
O material: garrafas PET, brita e mate- Onde pode ser implantado: os sis-
rial geossintético, um tipo de impermeabili- temas já funcionam no Distrito Federal e na
zante que filtra a passagem de terra e permi- cidade natal da pesquisadora — Boa Vista,
te somente a da água. O tensiômetro mediu o Roraima. Conta Joseleide: “Vamos comparar
potencial de infiltração do solo e o piezôme- os dois solos para identificar quais os condi-
tro verificou o nível de rebaixamento da água cionantes que limitam a implementação do
dentro da trincheira. Os aparelhos calculam a sistema. O DF, por exemplo, tem um solo ím-
eficiência das trincheiras. par no Brasil. É um solo colapsível poroso, uma
O que fez a pesquisadora: primeiro, argila que se comporta como a areia. Já no
um teste de compressão nas embalagens PET Norte, é diferente: chove muito e, em vez de
para escolher a garrafa mais adequada. “Optei um chão poroso, o solo é muito compactado.”
pela mais resistente e mais abundante no lixo. O custo: a trincheira de maior quantida-
Cortei ao meio e as acoplei, uma a uma, como de de garrafas – 2.880 unidades – saiu por R$
se fossem um montinho de copos”, explica 350. “Verifiquei que o item mais caro da trin-
Josileide, que furou as garrafas para permitir cheira era a mão-de-obra, não o material. A
o escoamento da água dentro delas. “Assim, coleta seletiva de garrafas PET pode ajudar a
formei colunas de dois metros de comprimen- baratear o sistema e tornar-se ao mesmo tem-
to. Coloquei-as lado a lado e enterrei com uma po uma alternativa de trabalho”, lembra.
camada de brita por cima”, completa. O siste- Quem pode comprar a ideia: esse
ma montado foi envolvido com material geos- sistema pode interessar a empresas que tra-
sintético e coberto com terra e grama. No cen- balham com reciclagem e a órgãos do go-ver-
tro da trincheira, ela colocou o piezômetro e, no. O usuário vai usar um novo produto, de
ao lado, já na superfície, o tensiômetro. apelo comercial, com utilidade econômica e As garrafas PET
A eficiência: o sistema é eficaz, resis- ecológica. O que hoje é um problema nas ruas, são cortadas e suas
tente e viável. Ele poderá ser utilizado em nos igarapés e nos lixões de nossas cidades se partes encaixadas
estacionamentos e sarjetas de estradas. A transformará em solução barata e inteligente formando a estrutura
pesquisa deverá comprovar, com precisão, a para as comunidades. E poderá chegar o dia que será enterrada
eficiência do sistema na filtragem da água no em que as enchentes do noticiário da TV vão na trincheira
solo. Os estudos vão medir a configuração e a desaparecer, milagrosamente, engarrafadas
eficiência máxima de cada tipo de trincheira. numa fileira de vasilhames PET.
As trincheiras
têm dois metros de
profundidade e são
preenchidas com brita
32
Eva Schuster/www.sxc.hu Eva Schuster/www.sxc.hu
33
DOSSIÊ
a viagem da
fé à razão
Q
ana luiza gomes
Especial para Revista Darcy
34
A viagem do Beagle foi de longe o
acontecimento mais importante em minha
vida e determinou toda a minha carreira
C. Darwin
Criado em uma família próspera e religiosa, Darwin ti- bolo da teoria da evolução.
nha muito interesse por plantas e animais. Aos 15 anos, Do Brasil, Charles Darwin conservou imagens fascinan-
ao encontrar três besouros raros na casca de uma árvore, tes de paisagens, mas sentiu-se agredido com as cenas de
colocou um deles na boca. O bicho soltou um líquido que escravidão que presenciou. Sobre esse assunto, teve uma
queimou a língua de Darwin. acalorada discussão com FitzRoy, o capitão do Beagle.
Depois de conversar com negros diante de seus senhores,
As primeiras perguntas o capitão começou a dizer que eles gostavam de ser escra-
O Beagle saiu da Inglaterra com o objetivo de mapear o vizados. Darwin questionou: “Você acha que eles respon-
litoral da América do Sul. Planejada para durar dois anos, deriam outra coisa em frente ao dono?”
a viagem se estendeu por quase cinco. A expedição pas- Na expedição, o ímpeto colecionador de Darwin veio à
sou também por outros dois continentes, Austrália e África. tona. Ele retornou com uma bagagem de 1.500 carcaças
Muitos terrenos nunca haviam sido visitados. de animais, insetos e amostras de plantas preservadas em
Em setembro de 1832, o navio ancorou na Baía Blanca, vinho. Outras 3.500 estavam descritas em suas caderne-
na Argentina, a 650 quilômetros de Buenos Aires. O Beagle tas. “Sua maneira analítica de pensar, combinada com a
ficaria ali cerca de 30 dias, tempo suficiente para que organização de suas anotações e uma memória excepcio-
Charles Darwin começasse a juntar as primeiras informa- nal para detalhes foram elementos importantes para seu
ções que, anos depois, o ajudariam a formular a teoria da sucesso”, afirma Richard Keynes, bisneto de Darwin e au-
evolução. Ele passava o dia observando o comportamento tor de um dos livros sobre a viagem do Beagle.
dos animais ou escavando a procura de fósseis. À noite, Darwin desceu do Beagle em 2 de outubro de 1836, no
registrava detalhes no seu diário. porto da cidade de Falmouth. De volta à terra firme, colo-
Nos pampas argentinos, encontrou ossadas de mamí- cou espécimes e anotações à disposição dos mais impor-
feros gigantes, extintos há mais de 11 mil anos. Entre eles, tantes cientistas de seu tempo. Ele tinha agora duas certe-
o de uma preguiça do tamanho de um elefante. Também zas: não seria mais pastor e dedicaria sua vida à ciência. E
achou ossos de um bicho muito parecido com um tatu, mas uma forte intuição: tudo que está sobre a Terra de alguma
bem maior. As semelhanças entre aqueles esqueletos e os maneira está relacionado.
animais que conheceria pelo caminho chamaram a aten-
ção de Darwin. Tragédias na vida familiar
As evidências de parentesco entre os animais se torna- Somente aos 30 anos, depois que o pai lhe garantiu uma
ram mais fortes a cada parada da viagem. Quando chegou pensão para manter seus estudos, ele resolveu se casar.
às ilhas Galápagos, em 1835, perto da costa do Equador, A escolhida foi Emma Wedgwood, uma prima que, aos 31
espantou-se com a diversidade de pássaros e levou vá- anos, estava prestes a alcançar o título de solteirona. Logo
rios exemplares para casa. Já na Inglaterra, com a ajuda depois do casamento, em carta enviada ao marido, ela afir-
do amigo e ornitólogo John Gould, Darwin perceberia que, mou que o interesse dele pela ciência estava afastando-o
apesar de diferentes, eles pertenciam à mesma espécie. de Deus. O hábito dos cientistas de não acreditar em nada
Eram os tentilhões, aves que, anos depois, virariam o sím- até que seja provado não era bem visto por ela.
35
Ao pisar em terra
firme, Darwin tinha
duas certezas: não
seria mais pastor e
dedicaria sua vida
à ciência. Também
tinha uma forte
intuição: tudo que
está sobre Terra
de alguma maneira
está relacionado
Viagem exploratória: a expedição passou pelo
Brasil, Argentina, Chile, Austrália e África.
Também esteve nas Ilhas Galápagos
O casal teve dez filhos. Ele gostava de sua rança e a cautela e, desta maneira, atrasava Ao contrário do que se podia imaginar, o ar-
vida familiar na cidade de Downe, povoado ru- a divulgação da obra que mudaria completa- tigo causou pouco alvoroço. Somente um ano
ral próximo a Londres. “Quando todos estão mente os rumos da Biologia. depois, quando o livro A Origem das Espécies
em casa, nenhum grupo pode ser mais agradá- foi publicado, a evolução dos animais come-
vel”, afirmou em sua autobiografia. Contudo, O envelope de Wallace çou a ser aceita na sociedade. Àquela altura,
tragédias familiares contribuíram para que ele Talvez Darwin jamais publicasse suas con- o próprio Wallace passou a se referir à teoria
se afastasse ainda mais da Igreja Anglicana. clusões não fosse um inesperado pacote que como “darwinismo”.
Mary, sua terceira filha, morreu ainda bebê, e chegou a sua casa pelo correio no verão de Como o livro de Darwin era extremamente
Charles, o mais novo, com dois anos. 1858. Era uma carta de um jovem naturalista detalhado e rico em exemplos, Wallace ficou
Mas foi a morte de Annie, a segunda filha, chamado Alfred Russel Wallace, que morava em segundo plano. A obra foi bem recebida
que mais o abalou. Ela faleceu em 1851, aos do outro lado do mundo, na Malásia, sudeste nos círculos científicos. Mas nem por isso o
dez anos, após sofrer durante meses de uma asiático. Ele pedia a opinião de Darwin sobre autor foi poupado por seus contemporâneos.
doença no estômago. Em desabafo a amigos um artigo que escrevera falando da variação Na época, Darwin foi alvo de charges e piadas
filósofos, disse que abandonou a religião na- das espécies e de uma teoria muito parecida que o comparavam a um macaco. Depois de A
quele momento. com a seleção natural. Origem das Espécies, ele publicou outras nove
Ao deixar a Igreja, Darwin começou a criar “Se Wallace tivesse em mãos meu manus- obras em que explicava suas ideias.
coragem para divulgar sua teoria. O naturalis- crito de 1842, não poderia ter feito um resumo Darwin morreu de insuficiência cardíaca na
ta havia mantido suas descobertas em segre- melhor”, afirmou Darwin, que mantinha seus tarde de 19 de abril de 1882, rodeado pela mu-
do por mais de 20 anos. “Ele sabia que teria estudos guardados na gaveta. A espantosa lher e por três filhos, em Downehouse. O na-
uma oposição muito grande do mundo em que coincidência deixou Darwin em uma saia justa. turalista sucumbiu à doença misteriosa que o
vivia, suas ideias chocariam seus contempo- Se publicasse às pressas seu estudo não esta- acompanhava desde jovem. Uma das hipóte-
râneos”, afirma Paulo Abrantes, professor do ria sendo honesto com o colega. Contudo, se o ses é que, durante a viagem à América do Sul,
Departamento de Filosofia da UnB. deixasse publicar o artigo, perderia o prestígio ele tenha sido picado pelo mosquito transmis-
Darwin sabia que, sem uma base empírica de ser o primeiro a apresentar os mecanismos sor da doença de Chagas. A aventura do Bea-
sólida, não conseguiria a aceitação do meio da evolução animal. A solução foi eles assina- gle, que determinou sua vida, estaria presente
científico. O cientista oscilava entre a insegu- rem o artigo juntos. no momento final do grande naturalista.
36
f ronteiras da c i ê n c ia
Pedro Simão/www.sxc.hu
Entre a narrativa
e a explicação científica
P
luiz gonzaga motta *
arte da aceitação da teoria de Charles O antropólogo Roger Lewin, editor por dez anos
Darwin decorre de sua natureza narrativa. da revista Science, sistematizou as teorias narrati-
Contar histórias seduz e convence. A teoria vas da evolução humana citando biólogos e pale-
A força e a
demonstra cientificamente que os seres vi- ontólogos. Ele menciona quatro grandes momentos
vos produzem uma história e que essa história pode que marcam inflexões da evolução humana: das ár-
elegância ser contada. Afirmação simpática para leigos, mas vores para o homem bípede, daí à encefalização, e
científicas
não para cientistas. Eles desconfiam das subjetivi- por último, a civilização (não necessariamente nessa
dades que a narrativa pode introduzir no raciocínio ordem). Algumas dessas etapas duram milhões de
da teoria objetivo da ciência. anos. Essas teorias têm em comum uma ordenação
darwiniana
Argumento que a força e a elegância científicas de eventos numa sucessão temporal.
da teoria darwiniana decorrem dos encadeamentos A evolução humana não é um “programa” de me-
decorrem do e seqüências temporais que ela sugere. O conceito lhoramento, nem a teoria da evolução tem compro-
encadeamento
de seleção natural tem extraordinário poder para ex- missos com a idéia de progresso. Menos ainda, com
plicar mudanças adaptativas: as adaptações ocor- rumos teleológicos. Mas a palavra evolução denota
que ela sugere. rem numa progressão, rumo a um porvir. Seu relato um ciclo que vai de um estado a outro, diferente do
As adaptações
compõe o enredo de uma história, essência da nar- anterior. Sugere uma idéia antropocêntrica de de-
rativa. Mas, atenção: não é a seleção das espécies, senvolvimento: o ser humano estaria hoje em um es-
ocorrem em mas a narrativa sobre ela que tem uma direção. tado mais avançado que há milhares de anos. Lewin
produção,
A explicação narrativa não é atraente só porque observa que mesmos cientistas rigorosos não con-
organiza uma síntese compreensiva. O filósofo fran- seguem evitar certo entusiasmo ao explicar a evo-
rumo a um cês Paul Ricouer observa que a narrativa se estrutu- lução humana.
destino. Isso é
ra a partir de um pólo magnético (o final da história), Do ponto de vista da explicação científica, a te-
que orienta o enredo. A evolução das espécies não oria da evolução humana tornou-se mais comedi-
a essência da tem fim, mas a narrativa sobre ela parte de um final da e conservadora. Arrefeceu o tom triunfalista do
narrativa
imaginário da história. Prosseguimos rumo a algum inevitável progresso humano. Convenceu-se que
ponto finito abstrato. Independente do caráter real ou as transformações do Homo sapiens não necessa-
fictício da narrativa, esse destino (não da evolução riamente apontam para o avanço civilizatório. Mas,
das espécies, mas da narrativa sobre ela) nos impul- ao mesmo tempo, não consegue evitar certo orgulho
siona a prosseguir. A explicação está na costura da pelas conquistas da humanidade, espécie única, sin-
trama e reforça a atenção do ouvinte ou leitor. gular. A narrativa evolutiva, diz Lewin, continua uma
Ernest Mayr, conceituado biólogo evolucionis- hipótese sedutora para a pesquisa sobre a evolução,
ta falecido em 2005, afirma que Darwin fundou um principalmente a humana.
novo ramo da biologia, a biologia evolutiva. O adje- Seria injusto cobrar neutralidade absoluta aos bi-
tivo qualifica a teoria e remete a uma seqüência de ólogos e paleontólogos evolucionistas. Eles contam
eventos, cerne da teoria narrativa. Há narrativa sem- uma história na qual eles próprios se encontram, e
pre que houver um devir cronológico, passagem de a relatam a partir de um ponto de vista humano. Ri-
um estado a outro, como na evolução. Mayr observa coeur chama isso de “radical condição histórica dos
que a biologia evolutiva é uma ciência histórica, uma seres humanos”. Cientistas pertencem, como todos
Nesta coluna, narrativa convalidada por evidências empíricas. nós, a esta espécie que produz cada vez mais co-
Gonzaga Motta vai É narrativa, mas continua ciência. Afirmar isso não nhecimento e domínio sobre a natureza. Simultane-
discutir a ética e a é pejorativo, não desmerece o caráter científico. Ao amente, contam cada vez mais peripécias e histórias
interdisciplinaridade contrário, historiadores respeitados como Paul Veyne sobre o drama de nossa existência. Que assim pros-
do saber científico argumentam que a narrativa é explicativa por si mes- sigam. É a nossa história. Como seres humanos, nos
a cada edição da ma, por sua capacidade de ordenar a realidade física contamos continuamente histórias reais ou fictícias,
Revista Darcy. em sínteses compreensíveis. Daí sua força cognitiva. porque a vida humana vale a pena ser contada.
37
O MUNDO NO TEMPO DE... nº1 ano I
... e então dona Maria, a Rainha Louca, ras- capital no Brasil. “Salvador e Rio pertencem
pou a cabeça com uma faca e acabou com a à mesma tradição urbanista. São litorâneas,
farra dos piolhos nas cabeleiras da realeza. têm as mesmas praças e os mesmo portos”,
Nobres e vassalos seguiram o exemplo. Es- compara a socióloga. “Até hoje os portugueses
tavam transtornados com a coceira e com a não gostam de Dom João. Era um medroso.
travessia infernal pelas águas tormentosas Fugiu porque tinha medo de Napoleão.”
do Atlântico. Viajavam espremidos num bar- A viagem demorou 54 dias. No alvorecer de
co imundo, dormiam pendurados em redes no 29 de janeiro de 1808, D. Maria e seu séqui-
convés e comiam uma gororoba feita de baca- to desembarcaram em Salvador com pompa e
lhau e bolachas. Não havia banheiro. turbantes usados para cobrir as cabeças cas-
Entulhado de gente e bichos, o navio real tigadas pelos piolhos. A mais ilustre das care-
era a principal embarcação entre as 54 que cas enroladas era a da geniosa princesa Car-
zarparam do Tejo para o Novo Mundo na ma- lota Joaquina.
nhã chuvosa de 27 de novembro de 1807. Na- Casada com Dom João desde os dez anos
quele dia, Portugal mudou para o Brasil. 24 ho- de idade, Carlota transformou o turbante em
ras depois, as tropas de Napoleão Bonaparte moda e, nos dias seguintes, viu a indumentá-
tomaram Lisboa. ria se reproduzir sobre o cabelo de respeitadas
- Não corram tanto! Vão pensar que esta- senhoras soteropolitanas. Dom João, persona-
mos fugindo, suplicava a rainha no lamacento Em gravura publicada na imprensa no Natal de 1868, gem que entrou para a História com a fama
cais de Belém, ao lado do príncipe regente D. o artista francês Honoré Daumier faz referência ao de indeciso, fraco e leniente, rendeu-se aos
clima de guerra na Europa do século XIX
João, no comando do império português desde festejos baianos, estrelou cerimônias de bei-
que a mãe adoecera. ja-mão e assinou medidas importantes. Criou
“Eles estavam fugindo, sim. Carregaram o a primeira faculdade brasileira, a de Medicina
Tesouro e deixaram Lisboa às moscas. Mais FAMÍLIA REAL PORTUGUESA de Salvador, autorizou o funcionamento dos
de 15 mil pessoas vieram com a família real”, correios e abriu os portos brasileiros às nações
FOGE ÀS PRESSAS PARA
conta a socióloga Barbara Freitag, professo- amigas – até então o Brasil só podia manter
ra emérita da Universidade de Brasília e auto- O BRASIL COM MEDO DE relações comerciais com Portugal.
ra de Capitais Migrantes, Poderes Peregrinos, A estadia baiana durou apenas três meses.
NAPOLEÃO. GENERAL FRANCÊS
obra ainda não lançada e que trata das trans- Às 4 da tarde de 7 de março, a família real che-
ferências das capitais brasileiras. TOMA LISBOA NO DIA SEGUINTE. gou ao Rio de Janeiro. No mesmo ano, do ou-
O novo livro de Barbara chega às livrarias tro lado do mundo, em Londres, a família Da-
RIO DE JANEIRO AGORA É A
até o final do ano pela Papirus e mostra o con- rwin se preparava para receber seu novo bebê,
texto histórico de cada uma das mudanças de NOVA CAPITAL DO IMPÉRIO Charles Robert.
38
Darwin chegou ao mundo em 19 de feverei-
ro de 1809. Àquela altura o Rio de Janeiro se
desdobrava para passar de uma mera cidade
colonial com 40 mil habitantes à sede do im-
pério português.
O Rio que acolheu a corte tinha apenas 46
ruas de terra e uma montanha de problemas
fundados na ignorância imposta pelos próprios
colonizadores. A Coroa não permitia a cons-
trução de universidades nem de fábricas. Tam-
bém não aceitava o funcionamento de bancos,
de correios e muito menos da imprensa.
A transferência do centro do poder para o
Brasil impôs mudanças modernizadoras como
a criação do Banco do Brasil e do Jardim Botâ-
nico. Também permitiu o funcionamento do pri-
meiro jornal impresso no país, A Gazeta do Rio
de Janeiro. Funcionamento em termos: sofria
censura de notícias contrárias ao governo. A Revolução Industrial começava a mostrar sua face perversa. O lucro das fábricas estava apoiado em
O ápice das transformações ocorreu em condições desumanas de trabalho. Nas cidades, os proletários começaram a exigir direitos
39
evolução
dossi ê
O quebra-cabeça da
camila rabelo
Repórter - Revista Darcy
O fóssil Ida:
fêmea primata é mais linhagem mais antiga de formigas
um capítulo da história
da vida na Terra foi encontrada na Amazônia bra-
sileira, em setembro de 2008. Elas
sobrevivem a 28km de Manaus e
apresentam características completamente
diferentes das outras formigas registradas.
São insetos cegos, subterrâneos e dotados
de uma grande mandíbula. Cientistas calcu-
lam que pelo menos 120 milhões de anos os
distanciam das demais espécies existentes.
O parentesco que une as formigas primitivas
descobertas na floresta com aquelas que es-
tão em qualquer jardim começou a ser desven-
dado em meados do século XIX num livro que
esgotou em apenas 24 horas.
A primeira edição de A Origem das Espécies*
foi publicada na Inglaterra, no dia 24 de no-
vembro de 1859. O país vivenciava o boom in-
dustrial – período de prosperidade econômica
aliado a um extenso crescimento urbano e às
primeiras conquistas trabalhistas – quando a
Ilustrações: Marcelo Jatobá e Ana Rita Grilo/UnB Agência
Os passos da 1809 – O primeiro a explicar o processo de 1859 – O livro A Origem das Espécies, de
ciência
evolução, o naturalista francês Jean-Baptiste Charles Darwin, apresentou, em 14 capí-
de Lamarck desenvolveu a teoria dos carac- tulos, argumentos consistentes de que os
teres adquiridos ao estudar moluscos da bacia animais descendem de um ancestral comum e
de Paris. Para ele, as mudanças nas espécies as espécies se modificam ao longo de milhares
ocorriam conforme a lei do uso e desuso, em que de anos. Com base em fósseis e espécimes reco-
os organismos desenvolvem determinado órgão lhidos na viagem do Beagle, ele explicou a origem
conforme a necessidade de uso. Assim, as girafas das transformações pela permanência de carac-
com pescoço comprido descendem de ancestrais terísticas que ajudam na sobrevivência e na sele-
com pescoço curto que se esticavam para conse- ção natural. Depois do livro, a teoria da evolução
guir alimentos em árvores altas. Essas mudanças começou a ser aceita pela sociedade e os estu-
passariam de geração a geração. dos em Biologia ganharam um novo contexto.
* O título original do livro conhecido hoje como A Origem das Espécies é bem mais extenso: Sobre a Origem das Espécies
Através da Seleção Natural ou a Preservação de Raças Favorecidas na Luta pela Vida. Somente na sexta edição, em 1872, é
40
que o título da obra foi abreviado.
Enfim uma luz brilhou e estou quase convencido – contrariando por completo
minha opinião inicial – de que as espécies não são imutáveis
C. Darwin
Os 1.250 exemplares do livro descreveram a Doutor na área de Filosofia da Biologia, seu criado por Deus, seres com alma”, destaca
variabilidade e a luta dos animais pela sobre- interesse pelas questões que cercam a origem Maria Luiza Gastal, professora do Núcleo
vivência em um momento em que a sociedade da vida começou ainda na graduação, durante de Educação Científica da Universidade de
inglesa estava mais propícia a aceitar a ideia a iniciação científica. Brasília. Desde que ingressou na UnB, em
de competição na natureza. O liberalismo eco- Darwin ousou com a publicação do livro, 2002, ela pesquisa a história da teoria evo-
nômico, que começou a ser difundido meio sé- mas manteve cautela. Ciente do impacto de lutiva, com particular interesse na influência
culo antes da publicação da obra, apoiava-se sua teoria, reservou o assunto mais polêmico que Darwin exerceu no médico fundador da
na competição de mercado, apresentando as a outras obras. Em A Origem das Espécies, ele psicanálise, Sigmund Freud.
bases do capitalismo. Darwin lançou os fun- não faz referência à evolução do homem ao Grande parte dos argumentos descritos nos
damentos da Biologia moderna amparado por longo de 13 capítulos. No 14º, o último, no en- 14 capítulos surgiu de observações realizadas
uma nova conjuntura. tanto, deixa evidências de que o ser humano durante uma viagem que o naturalista fez ao
Pelo menos 20 estudiosos anteriores e con- é um animal como qualquer outro na árvore redor do mundo. Em 1831, aos 22 anos, Dar-
temporâneos a ele questionaram a ideia cria- da vida: “Luz será lançada sobre a origem do win embarcou no navio HMS Beagle. Retornou
cionista de que as espécies eram imutáveis. homem e sua história”, escreveu. à Inglaterra depois de cinco anos com 1.500
Charles Darwin, porém, foi o primeiro a reunir “Nessas linhas, ele indica que o homem carcaças de diferentes animais – muitos ainda
um grande número de evidências e a apresen- também passou por transformações. Até desconhecidos – e um diário com anotações
tar um mecanismo que explicava a transfor- então, os estudiosos que falavam de evolu- sobre a fauna da América do Sul e Central, da
mação dos animais ao longo de milhares de ção colocavam o ser humano como divino, África, da Austrália e das Ilhas Coco, na Ásia.
anos. A teoria da seleção natural esclarecia
os passos para a evolução. Ao abordar o as-
1865 – O monge austríaco Gregor Mendel 1936 a 1947 – O início do século XX foi 1953 a 2003 – A estrutura do DNA foi de-
apresentou em Brno, na República Theca, as marcado por uma ebulição de pesquisas cifrada, em 1953, por Francis Crick, físico
leis da hereditariedade formuladas a partir para explicar os processos evolutivos e a britânico, e James Watson, biólogo esta-
do cruzamento de plantas. Ele analisou as carac- hereditariedade. Cientistas de diferentes partes dunidense. Eles publicaram um artigo na revista
terísticas dominantes e recessivas na reprodução do mundo reuniram-se para sistematizar os avan- científica Nature, que desvendou o processo da
de ervilhas verdes, amarelas, de cascas rugosas ços e descobertas da época. A Teoria Sintética transmissão das características de uma geração
e lisas. Considerado o pai da genética, seus es- ou Neodarwinista, como foi chamada, destacou para outra e possibilitou a criação de variações
tudos permaneceram ignorados até o começo do a existência de outros elementos na evolução das transgênicas e de seres clonados. Em 2003, um
século XX, quando foram enfim publicados. Após espécies, além da seleção natural proposta por grupo de cientistas de vários países concluiu o se-
a morte de Mendel, em 1884, um grupo de cien- Darwin. As mutações genéticas, migrações e ca- quenciamento do genoma humano e comprovou
tistas traduziu as suas descobertas em teorias, tástrofes naturais também interferem na história a proximidade entre os homens e os chimpanzés,
conhecidas como as Leis de Mendel. evolutiva dos animais. que compartilham 98% dos seus genes.
41
AS BASES teóricas
Seleção natural
As variações nos animais afetam a sobrevivência. As
cores das asas das borboletas as ajudam a se esconder
de predadores. Essas características são passadas para
as próximas gerações e, ao longo de milhares de anos, as
populações se transformam.
Muito antes da publicação do livro, nenhum Darwin nos tempos modernos pulação e ela será passada às gerações se-
outro estudioso documentou tamanho reper- Foram necessários mais de 50 anos para a guintes. A variabilidade deixa de depender
tório de espécies para sustentar a existência ciência compreender o que levava as espécies tanto da adaptação ao meio ambiente, como
da evolução. Muitas lacunas, no entanto, fo- a se modificarem ao longo da história. Apenas acreditava Darwin.
ram deixadas por Darwin. Em meados do sé- no início do século XX é que as leis desven- O gradualismo defendido pelo naturalis-
culo XIX, pouco se sabia sobre os mecanismos dadas por Mendel causaram uma verdadeira ta também foi questionado. Para o autor de
de hereditariedade e origem da variação. “Na revolução entre os cientistas. O grande marco A Origem das Espécies, as transformações
verdade, esse foi um dos grandes méritos dele. foi em 1947, quando pesquisadores de diferen- ocorriam lentamente ao longo das gerações.
Falar em evolução sem conhecer a genética”, tes partes do mundo sistematizaram os avan- Contudo, restava responder onde estavam as
defende Maria Luiza. ços em genética em um argumento chamado inúmeras formas intermediárias que uniam os
Darwin morreu sem conhecer as desco- de Teoria Sintética. Era o início do movimento fósseis encontrados às espécies atuais. Os
bertas que complementaram a sua teoria. O conhecido como Neodarwinismo. elos perdidos estiveram no centro das indaga-
monge austríaco Gregor Mendel, considerado Com o domínio dos processos de herança ções científicas por muito tempo. Muitos deles
o pai da Genética, deduziu a Matemática da genética, a seleção natural permanece como foram desvendados, mas não todos.
hereditariedade ao analisar o cruzamento de um importante mecanismo da evolução. Mas Recentemente, pesquisadores divulgaram
ervilhas por volta de 1860. Contemporâneo de não o principal. Os cientistas descobriram o resultado de estudos sobre o fóssil Ida, uma
Darwin, Mendel conhecia a teoria do naturalis- que as mudanças nos animais resultavam jovem fêmea primata que viveu há 47 milhões
ta e tentou visitá-lo para apresentar seu estu- também de mutações e alterações no desen- de anos. Descoberta em 1983, na cidade de
do. Há relatos de que o trabalho do austríaco volvimento. Um desequilíbrio ou malformação Messel, na Alemanha, ela inaugura uma nova
foi encontrado no escritório de Darwin, em um durante o crescimento embrionário pode in- espécie designada Darwinius massillae, em
envelope fechado. troduzir uma nova característica em uma po- homenagem ao bicentenário do naturalista.
42
Homem morcego foca
Úmero Rádio
Ulna Metacarpos
Mais uma peça do quebra-cabeça da evolu- çaram a apresentar outras evidências sobre a se a pesquisas em Biologia Evolutiva há pelo
ção, que permanece incompleto. mudança climática. menos 16 anos. Para aprimorar seus conheci-
Sem evidências de que as transforma- Apesar dos avanços, pouco se sabe sobre mento na área, morou por um ano em Boston,
ções são sempre graduais, a Biologia entende a trajetória dos dinossauros e de tantos outros Estados Unidos, onde cursou o pós-doutorado
que, por vezes, a evolução animal dá saltos animais extintos. Contudo, os cientistas não no Museu de História Natural da Universidade
e as mudanças acontecem mais velozmente. duvidam da evolução. A descoberta do DNA, de Harvard, em 2003.
Alterações significativas no meio ambiente, material genético praticamente universal, Na reconstituição da história das espécies,
catástrofes naturais ou mesmo mutações nos atesta a favor do grau de parentesco que une muitas perguntas ainda estão sem respostas.
gametas – as células reprodutivas – podem todos os animais, como imaginava Darwin. Um dos grandes desafios atuais é qualificar
determinar o fim de espécies ou mudanças Mas o caminho exato das espécies ainda está o papel da adaptação ao meio ambiente na
radicais em suas características. por ser traçado. transformação dos animais. Ainda não se sabe
Os estudos dos sistemas celulares abrem se o mecanismo colabora mais que as muta-
enigmas da pré-história perspectivas para uma maior compreensão ções. Como relacionar esses dois processos?
Teorias modernas explicam o fim da era dos passos evolutivos. “A biologia molecular Como a seleção natural atua geneticamente?
dos dinossauros 65 milhões de anos atrás por permitiu que vários genomas fossem sequen- Qual o papel do acaso na evolução? A teoria
uma mudança no clima. Um esfriamento de ciados. Eles integram uma base de dados que, proposta por Charles Darwin 150 anos atrás,
25°C para 15°C no planeta fez populações in- no futuro, ajudará a detalhar como foi a ár- que ainda hoje instiga cientistas e estimula
teiras serem extintas. Inicialmente, cientistas vore da vida”, reforça Rosana Tidon, coorde- pesquisas, esclareceu as perguntas funda-
imaginavam que a queda de um asteróide ti- nadora do Laboratório de Biologia Evolutiva mentais da Biologia. Mas talvez sejam neces-
vesse causado o fim desses animais na Terra. da UnB. Curiosa sobre os caminhos da vida sários outros 150 anos para a ciência obter
Estudos de vinte anos atrás, entretanto, come- ainda quando criança, a professora dedica- mais respostas.
43
O macaco
dossi ê
que lê e fala
No futuro distante, vejo pesquisas bem mais importantes. Uma luz será
lançada sobre a origem do homem e sua história
C. Darwin
camila rabelo
Repórter - Revista Darcy
44
cou os leitores do jornal britânico The Times
ao afirmar que sim. Segundo ele, uma das
maiores autoridades mundiais no assunto, os
avanços da medicina, as políticas de saúde e o
conforto proporcionado pelas tecnologias tor-
naram as diferenças entre os mais e os menos
adaptados insignificantes para a sobrevivên-
cia e a reprodução da espécie humana.
ção, enquanto outros grupos permaneceram “No mundo todo, todas as populações estão
no estágio da imitação. “Estudiosos cogitam a cada vez mais ligadas e as possibilidades de mu-
existência de cultura em outros animais, mas danças aleatórias estão diminuindo”, afirmou
a acumulação cultural deles é incipiente”, res- Jones em entrevista a BBC à época em que pu-
salta Abrantes, que busca entender a mente blicou seu estudo. Para ele, a humanidade está
humana aliando conhecimentos da Biologia se transformando em uma “massa global”.
aos das Ciências Sociais. Entre os especialistas são poucos os que de-
cretam o fim da seleção natural e da evolução
MÚSCULOS E ARTEFATOS humana. O discurso mais comum é que a inter-
inteligência de uma macaca surpre- Na história do Homo sapiens, o desenvolvi- ferência da natureza deixou de ser um dos fato-
endeu pesquisadores na década de mento cultural interferiu na transmissão das res preponderantes. “As tecnologias tornaram o
1950. Moradora da ilha de Koshima, características. O tamanho do cérebro e a ca- homem mais independente do meio ambiente”,
no Japão, ela começou a lavar na pacidade de emitir sons foram vantagens se- explica Francisco Salzano, professor emérito
água do mar as batatas-doces que recebia. O lecionadas ao longo do tempo que permitiram do Departamento de Genética da Universidade
processo servia para limpar o alimento e, des- o avanço da cultura. Federal do Rio Grande do Sul. Com cinco déca-
sa maneira, Imo – como a macaca foi batizada Pedras pontiagudas afiadas há 2,6 milhões das dedicadas à ciência, Salzano é referência
– incluiu um hábito saudável na rotina de seu de anos são as primeiras ferramentas criadas internacional em genética.
grupo. Em pouco tempo, todos os macacos da pelo engenho humano. Elas evoluíram para Para ele, a seleção negativa – que impede
ilha estavam lavando as batatas antes de co- artefatos de caça, como machados e lanças, que os menos aptos levem seus genes adian-
mer. A prática adotada por ela, na época com usadas entre 300 mil e 40 mil anos atrás. Ao te – não deixou de existir. A eliminação deles
18 meses, foi passada às novas gerações. mesmo tempo em que fabricavam instrumen- continua a valer à medida que as doenças ge-
A ciência investiga a diferença entre os tos mais sofisticados, nossos ancestrais per- néticas e a esterilidade ainda não são resol-
homens e os outros animais desde o início diam força e musculatura. “Existe uma coe- vidas pelas técnicas da medicina. Já a sele-
do século XX, quando a sociedade começou volução entre os instrumentos para caça e a ção positiva – em que os mais adaptados são
a aceitar a ideia de que os humanos também anatomia. Quando era preciso lutar com um eleitos pela natureza – realmente perdeu im-
passaram pelo processo de evolução. As res- animal para se defender ou buscar alimento, portância diante das tecnologias de moradia e
postas ainda não são definitivas, mas, neces- o homem precisava de uma musculatura muito das políticas de saúde.
sariamente, incluem a palavra cultura. E casos mais potente”, exemplifica Paulo Abrantes.
como o de Imo, em que há transferência de Essa interface entre o desenvolvimento cul- SELEÇÃO NATURAL E TECNOLOGIA
hábitos, trazem novas perguntas. tural e biológico explica também as diferen- O Homo sapiens moderno habita o plane-
Parentes próximos, homem e chimpanzé ças regionais. Nos lugares onde a criação de ta há apenas 30 mil anos. Na visão do pro-
vieram de um ancestral comum. Há sete mi- vacas e cabras faz parte da cultura, os indi- fessor do Instituto de Psicologia da UnB Vítor
lhões de anos, a espécie primitiva se dividiu víduos desenvolveram a enzima responsável Motta, é cedo para falar no fim da evolução. “A
em duas linhagens. Mas, ainda hoje, as duas pelo processo da lactose. O consumo contínuo plasticidade do ser humano é vista a olho nu
espécies partilham 98,4% do código genético. de produtos derivados do leite transformou o pela diversidade de formas de narizes, cores,
Apesar da semelhança, os chimpanzés fica- metabolismo dessas populações. O organismo olhos, tamanhos”, explica. Em outras palavras,
ram muito mais parecidos com aquele ances- dos africanos e dos asiáticos é menos toleran- as diferentes características físicas mostram
tral comum. Como nos distanciamos deles? te a esses alimentos que o dos americanos e que há um estoque de genes considerável a
As batatas-doces hoje chegam aos maca- europeus. Os esquimós, povos indígenas que ser submetido à evolução. O especialista lem-
cos da ilha de Koshima já limpas, mas, mesmo habitam o Polar Ártico, possuem uma visão bra que o gambá não sofre mudanças há 4 mi-
assim, eles continuam lavando-as. Enquanto adaptada para suportar melhor a claridade lhões de anos.
nossas crianças conseguem apreender o sig- das paisagens geladas. Postura ereta e pés plantados no chão fo-
nificado do hábito, os macacos apenas o re- A capacidade de produzir tecnologia permi- ram as primeiras características a diferenciar
petem. O aprendizado social permite à espé- tiu que o homem se tornasse o único animal a os homens dos chimpanzés. Mas foi o desen-
cie humana entender, adaptar e não apenas ocupar todo o planeta. Hoje ele habita áreas volvimento do cérebro, 4 milhões de anos de-
repetir. “Desenvolver cultura não é tão sim- quentes, frias, geladas e até mesmo muito ge- pois de a espécie tornar-se bípede, que con-
ples. O animal pode ser capaz de imitar o ou- ladas. A interferência da cultura na adaptação feriu ao sapiens uma capacidade de cognição
tro, mas não consegue improvisar para atin- ao ambiente leva alguns especialistas a asse- jamais vista em outros animais. Desde que
gir uma nova finalidade ou objetivo”, afirma gurar que o homem não passa mais por sele- o homem ficou em pé, o volume do cérebro
Paulo Abrantes, professor do Departamento ção natural. A teoria de que apenas os mais humano triplicou, passou de 400cm3 para
de Filosofia da Universidade de Brasília. adaptados deixam descendentes já não faria 1.400cm3. E nossos ancestrais começaram a
O homem foi o mais eficiente em desen- sentido para a nossa espécie. A evolução do ganhar as habilidades de interpretar e criar.
volver e acumular conhecimento. Por meio do homem chegou ao seu ponto final? “Nosso cérebro é o mais eficiente para inter-
aprendizado, a espécie melhorava suas con- Em novembro do ano passado, o geneticista pretar os mesmos estímulos de forma varia-
dições de sobrevivência de geração a gera- da Universidade de Londres Steve Jones cho- da”, destaca Vítor Motta.
45
Fósseis mostram como o cérebro aumentou O desenvolvimento mental dá testemunhos
históricos: quanto maior o crânio encontrado
pelos paleontólogos, mais complexos são os
artefatos que acompanham o fóssil. Foi a ca-
De 3 a 2 De 2 a 1 200 mil
Período milhão de anos atrás anos atrás
milhões de anos atrás
pacidade cerebral que permitiu ao homem de-
400 cm3 650 cm3 850 cm3 1350 cm3 senvolver a linguagem, o grande passo evoluti-
vo para a acumulação da cultura. Os cientistas
ainda não foram capazes de precisar quando
a linguagem começou a ser usada pelas po-
pulações pré-históricas. Dão como certo que
os primeiros Homo sapiens conversavam com
seus contemporâneos.
Há 12 mil anos, quando os grupos começa-
ram a se fixar, devido ao desenvolvimento agrí-
cola, as sociedades ficaram mais complexas e a
Fonte:LEWIN, Roger. Evolução Humana. São Paulo: Atheneu Editora, 1999 fala tornou-se cada vez mais sofisticada. “A lin-
guagem é uma poderosa ferramenta de apren-
dizagem social, não há nada mais eficiente para
a transmissão de cultura. Ela significou uma po-
tencialização impressionante na evolução cultu-
ral”, ressalta o professor Paulo Abrantes.
46
artigo
Freud viu em
O que
Darwin
Domínio público/Wikimedia Commons
Q
uando tinha 17 anos, Sigmund Freud Freud aproveitou ao distinguir as pulsões de
escreveu a um amigo contando sobre sobrevivência da pulsão sexual, dentre outros.
sua vontade de tornar-se um cientista Para Frank Sulloway, autor de Freud, Biólogo da
natural: “Vou examinar os documen- Alma, ele foi mais darwinista do que a maioria
tos milenares da natureza, talvez me intrometa de seus contemporâneos médicos.
em seu eterno litígio e dividirei minhas vitórias Freud e Darwin se interessavam pelos do-
A biologia darwinista
com todos aqueles que queiram aprender.” cumentos milenares da natureza. O pai da psi-
Freud passou os primeiros dez anos de sua canálise era um menino de três anos de idade
influenciou Sigmund vida profissional trabalhando com neuroana- quando Darwin publicou, em 1859, A Origem
no entendimento de que Freud há, pelo menos, sete volumes de obras os arquivos geológicos a uma história do globo
certos comportamentos
de Darwin. Sua carreira de pesquisador em escrita num dialeto mutante do qual possuiría-
ciências naturais não foi irrelevante. Aluno mos apenas algumas linhas esparsas de algu-
humanos são herdados, de segundo ano de Medicina, foi trabalhar no mas poucas páginas.
adaptativos e produto
Instituto de Zoologia e Anatomia Comparadas Uma das noções darwinistas mais impor-
da Universidade de Viena, onde começou e en- tantes, também explorada por Freud, foi a da
da evolução; na noção cerrou sua carreira de pesquisador estudando origem animal da mente humana, altamente
de conflito; e no
a sexualidade – de enguias e seres humanos. controversa à época. Freud percebeu e aderiu
Foi somente quando se viu sem recursos à realidade da posição defendida por Darwin.
dualismo que distingue financeiros para se casar com sua amada Para Freud, há uma herança na mente. E esta
a seleção sexual da
Martha, que Freud, um jovem médico com pou- é uma herança animal. Diz ele: “O homem não
co dinheiro, decidiu abandonar a pesquisa em é um ser diferente dos animais, ou superior a
seleção natural, que Ciências Naturais para iniciar sua carreira mé- eles; ele próprio tem ascendência animal, re-
Freud aproveitou
dica, na qual poderia manter o seu sustento. lacionando-se mais estreitamente com algu-
A biologia darwinista influenciou Freud de mas espécies, e mais distanciadamente com
ao distinguir as pulsões várias formas: no entendimento de que cer- outras.” Freud deve ao naturalista Charles
de sobrevivência da
tos comportamentos humanos são herdados, Darwin esse destronamento da origem divina
adaptativos e produtos da evolução. Também da mente humana. Para Freud, nossa mente
47
dossi ê
N
leonardo echeverria
Repórter - Revista Darcy
a origem de várias pesquisas da universidade, existe um Para reconstruir a história evolutiva do gênero Kentropyx, os pesqui-
ancestral comum: Charles Darwin. O naturalista britâni- sadores do Departamento de Zoologia da UnB estudaram centenas de
co tem seguidores nas mais diversas áreas da ciência: animais coletados no Cerrado do Centro-Oeste, no cerrado amazônico
Biologia, Paleontologia, Genética, Psicologia e até mesmo e na floresta amazônica. O gênero compreende nove espécies que fo-
nas Ciências da Computação. Tal qual uma espécie que se adapta a ram analisados tanto na sua morfologia – características físicas, como
vários ambientes, a teoria de Darwin é uma das bases sobre a qual o tamanho e número de escamas, quanto na sua genética – todos exem-
pensamento científico continua a evoluir. Nas páginas a seguir, alguns plares tiveram cadeias de DNA sequenciadas.
exemplos encontrados pela UnB: O passo seguinte foi estabelecer relações de parentesco entre as
diferentes espécies e decifrar quando ocorreu a especiação no gêne-
ro. Na natureza, especiação é o fenômeno pelo qual uma nova espé-
ZOOLOGIA: A PRÉ-HISTÓRIA CONTADA PELOS LAGARTOS cie surge depois que uma já existente passa por mudanças biológicas.
Um lagarto do cerrado amazônico ajuda a reescrever o que a ciência O processo de especiação foi teorizado pela primeira vez por Charles
sabe sobre a origem da biodiversidade tropical. O Kentropyx striata – Darwin no livro A Origem das Espécies.
animal de 15 centímetros, com estrias e escamas granulares espalha- No gênero Kentropyx, os pesquisadores descobriram que a espécie
das pelo corpo, mostra que as espécies da Amazônia surgiram muito striata foi a primeira a aparecer há pelo menos 25 milhões de anos.
tempo antes do que era estimado pelos cientistas. Ou seja, a história dos lagartos do gênero havia começado ainda no
A hipótese anterior era que a enorme variedade de animais e plantas Período Terciário. Outros estudos confirmam que plantas e animais da
da Amazônia teria aparecido principalmente no Período Quaternário, Amazônia são mais antigos do que se pensava. “A importância das
há 40 mil anos. Conhecida como Hipótese dos Refúgios do Pleistoceno, mudanças climáticas do Pleistoceno foi superestimada. A maioria das
essa teoria defende que a diversidade de espécies do ecossistema sur- espécies se originou bem antes das glaciações”, afirma Guarino Colli,
giu em consequência das mudanças climáticas pelas quais o planeta líder do grupo que pesquisou os Kentropyx.
passou naquele período geológico. A ciência agora junta informações para construir um cenário alter-
De acordo com a hipótese dos refúgios, durante as glaciações do nativo à teoria dos refúgios. A hipótese em elaboração sugere que o
Pleistoceno, o clima se tornou mais seco e, com isso, o Cerrado se ex- berço de várias espécies da Amazônia tenha sido o Cerrado e a data de
pandiu e a floresta amazônica ficou reduzida a algumas áreas – os re- nascimento delas, o Período Terciário. “Os bem sucedidos, entre eles o
fúgios. Nesses lugares, as espécies teriam se diferenciado por causa do Kentropyx, espalharam-se pela floresta tropical”, completa o professor
isolamento. Nos períodos interglaciais – quando houve mais chuvas, as Guarino Colli. Ele explica que este tipo de estudo pode ajudar a enten-
áreas de floresta se expandiram e o Cerrado sofreu redução. O resulta- der o impacto das mudanças climáticas sobre a biodiversidade, uma
do teria sido a diferenciação das espécies em refúgios de Cerrado. das preocupações mais presentes no nosso tempo.
48
Guarino Colli
Muitos outros fatos, ao que me
parece, podem ser explicados pela
nossa teoria
C. Darwin
1 Expedições do Departamento de Zoologia da UnB recolheram lagartos 1 As redes de dados usadas pelas empresas de
do gênero Kentropyx no cerrado do centro-oeste, no cerrado amazônico e telecomunicação são construídas com meios de transmissão,
na floresta amazônica. dispositivos e softwares. A combinação destes elementos é
estratégica para as multinacionais.
2 Os pesquisadores estudaram cada uma das espécies (características
físicas e código genético) e estabeleceram relações de parentesco 2 Na UnB, estão sendo testadas diferentes combinações
entre elas. O objetivo era criar hipóteses sobre a especiação do gênero desses três elementos. Isso é feito por meio de algoritmos
(momento em que as espécies se separam). matemáticos que ‘cruzam’ as configurações entre si. Mistura-
se uma rede a outra para testar a eficiência do resultado.
3 De acordo com os autores do estudo, o gênero Kentropyx teria surgido
entre 23 milhões e 57 milhões de anos atrás, no Período Terciário. A 3 Repetindo o processo de seleção natural, as amostras
hipótese anterior era a de que os animais do gênero teriam surgido bem mais eficientes são misturadas novamente. As amostras
depois, no Período Quaternário. insatisfatórias são descartadas.
4 O trabalho se alia à nova corrente de estudos que contesta as 4 O processo é repetido várias vezes até que se atinja o grau
glaciações do Pleistoceno como a principal causa da biodiversidade da de eficiência desejado. O método já foi apresentado nos
região amazônica. Estados Unidos, China e Japão.
49
Simon Morris/www.sxc.hu
Plataforma da Petrobras: parceria com a UnB identifica a idade do solo perfurado na Bacia de Santos, na busca pelo petróleo do pré-sal
50
Infográfico de Virgínia Soares sobre foto de Isabela Lyrio (UnB Agência)
51
Daiane Souza/UnB Agência
Rosana Tidon: professora usa moscas drosófilas como termômetro da devastação ambiental
BIOLOGIA: MOSCAS INDICAM DEVASTAÇÃO NO CERRADO sultado foi publicado pela revista científica européia Biodiversity and
Uma das consequências do processo de seleção natural das espé- Conservation. O estudo responde a um dos desafios impostos pela
cies é a adaptação dos seres vivos ao meio ambiente em que vivem. Convenção Internacional de Diversidade Biológica (CBD, na sigla em
Os estudos da professora Rosana Tidon partem desse princípio. No inglês), instaurada durante a Eco-92, no Rio de Janeiro. Os países que
Laboratório de Biologia Evolutiva da UnB são criadas espécies de dro- participam da convenção concordaram que as pesquisas sobre bioin-
sófilas cuja presença ou escassez indica o grau de devastação ecoló- dicadores são “extremamente necessárias” para que as metas de con-
gica daquele meio ambiente. Certas espécies de drosófila são melhor servação para 2010 sejam atingidas.
adaptadas ao meio urbano, onde se proliferam em abundância. Outras
sobrevivem apenas em florestas nativas, onde não houve intervenção
urbana. O objetivo da pesquisa é medir o ‘valor bioindicador’ de cada * Com reportagem de Darlene Santiago
espécie, ou seja, sua suscetibilidade às alterações no meio.
Foram colhidas amostras de 15 espécies de drosófilas em quatro
ambientes: Setor Hospitalar Sul (área urbanizada), Centro Olímpico
da UnB (área semiurbanizada), Reserva Ecológica do IBGE e Parque
Nacional da Água Mineral (áreas de mata nativa). A presença dessas passo a passo
espécies varia muito de uma área para outra. O objetivo foi encontrar
os tipos de moscas cuja proliferação retrata mais fielmente o grau de 1 Espécies de drosófila foram recolhidas na Reserva
devastação do meio ambiente. A abundância de uma determinada es- Ecológica do IBGE, no Parque Nacional, no Setor Hospitalar
pécie indica qual o estágio de perturbação naquela área. “Nós usamos Sul e no Centro Olímpico da UnB.
as drosófilas como termômetros do estado de preservação ecológica do
Cerrado”, conta Rosana. “Elas são o que chamamos de bioindicadores, 2 Os pesquisadores identificaram cada espécie e estimaram
pelo fato de serem organismos muito sensíveis às alterações ambien- qual a população delas em cada um dos pontos onde as
tais”, completa. A pesquisa encontrou seis espécies com valor bioin- amostras foram recolhidas.
dicador acima de 80%. Isso quer dizer que a associação entre essas
espécies e o tipo de ambiente onde foram encontradas corresponde a 3 Relacionando a abundância relativa das espécies
mais de 80, numa escala de 0 a 100. Portanto, elas podem ser conside- dentro das áreas em questão, foi possível criar um ‘valor
radas típicas daquele meio. bioindicador’ para cada espécie.
A pesquisa, orientada por Rosana, está na tese de doutorado
de Renata Alves da Mata, com colaboração da professora Melodie 4 O valor bioindicador poderá ser aplicado a outras áreas
McGeoch, da Universidade de Stellenbosch, na África do Sul. O re- para avaliar o grau de preservação dos ambientes.
52
dossi ê
ILUSTRADa
Tentilhão-do-cacto
Geospiza scandens
evolução
O
rafael dietzsch
Editor de Arte - Revista Darcy
rnitólogo, editor, empresário, co- blicar sua primeira obra e decidiu fazê-lo por
lecionador, taxidermista, o inglês conta própria.
John Gould é um personagem in- A aposta de Gould nesta publicação em
teressante na história da ciência. grande formato, com imagens de alta qualida-
Nascido em 1804, filho de um jardineiro, se- de impressas em litografia e coloridas à mão,
guiu os passos do pai e ainda jovem começou transformou-o em um próspero editor. Pioneiro
a trabalhar como aprendiz nos jardins da famí- no uso da técnica de impressão litográfica, seu
lia real inglesa, onde descobriu seu interesse trabalho é divisor de águas em termos de edi-
por pássaros. Sem educação formal, aos 14 já ções científicas ilustradas.
era proficiente na arte de empalhar animais e Gould é lembrado por suas coleções de
aos 21 montou seu próprio negócio de taxider- gravuras coloridas de pássaros. Ao todo são
mia em Londres. Em 1828 foi convidado para cerca de 3.000 imagens originais produzidas
ser curador do Museu da Sociedade Zoológica para suas próprias publicações, muitas delas
de Londres, posição que o colocou em contato as primeiras de espécies até então desconhe-
com os principais naturalistas da época, além cidas. Em The Birds of Australia (Os Pássaros
do privilégio de frequentemente ser o primei- da Austrália), um de seus mais célebres traba-
ro a ter contato com as coleções de pássaros lhos, Gould descreveu por volta de 300 novas
doadas para a sociedade. espécies de pássaros (quase metade do nú-
Em 1830, o museu recebeu a doação de mero estimado de espécies deste habitat).
uma grande coleção de pássaros do Himalaia, Estima-se que Gould produziu e distribuiu
muitos deles sem descrição anterior. Gould aproximadamente meio milhão de litografias
identificou, descreveu e ilustrou estes pássa- coloridas à mão. Esta extraordinária produ-
John Gould: ros em A Century of Birds Hitherto Unfigured ção é resultado da inteligência comercial de
três mil imagens from the Himalaya Mountains (Um Século de Gould, aliada à sua capacidade de reunir um
eternizadas em litografia
Pássaros das Montanhas do Himalaia). No en- grupo internacional de coletores de espécies,
tanto, não encontrou um editor disposto a pu- artistas, cientistas e administradores.
53
Quatro espécies
diferentes de tentilhões
coletados por Darwin
em Galápagos. A forma
do bico indica que cada
espécie está adaptada à
alimentação encontrada
em cada um dos habitats
O trabalho com Darwin Gould provavelmente optou por editar seus trabalhos
Em janeiro de 1837, os espécimes de mamíferos e aves utilizando o processo litográfico por motivos econômicos.
coletados durante a segunda expedição do HMS Beagle, Com essa técnica, sua equipe de ilustradores tinha condi-
um veleiro de 240 toneladas e 65 tripulantes, foram leva- ções de desenhar direto na pedra eliminando assim o custo
dos por Charles Darwin à Sociedade Zoológica de Londres, da contratação de um profissional intermediário especia-
que repassou o material a Gould para ser analisado. Entre lizado na gravação de chapas de madeira (xilogravura) ou
os espécimes, um grupo de pássaros de pequeno porte de de metal (calcogravura).
Galápagos chamou a atenção de Gould. Apesar de ser uma técnica de reprodução mais rápida e
Uma semana depois, ao apresentar o relatório prelimi- geralmente mais barata que a xilogravura e a calcogravura,
nar de suas análises à Sociedade Zoológica, Gould repor- a produção de uma litografia colorida ainda tinha um custo
tou que os pássaros de Galápagos que Darwin identificou muito elevado, já que as cores eram aplicadas em aquarela
como varidades de cambaxirras, bicudos, papa-figos e ten- artesanalmente por um colorista especializado, uma cópia
tilhões eram na verdade “uma série de tentilhões do chão por vez. Desta forma, a aplicação de cores em litografias
muito peculiares.” era usada quase que exclusivamente em edições de livros
Em março, Darwin encontrou-se com Gould novamente, médicos e científicos.
que confirmou que aquelas variedades de aves formavam
um grupo de treze novas espécies de tentilhões, todas des- Gravuras para a Ciência
conhecidas pela ciência. No meio de outro bando, coletado Gould ficou muito interessado no método de impres-
em ilhas diferentes e que Darwin reconheceu como sabiás- são quando viu a publicação Illustrations of the Family of
do-campo, Gould identificou três espécies distintas, com Psittacidae (Ilustrações da Família dos Psittacidae), em
parentes na América do Sul continental. 1830, um trabalho do ilustrador, poeta e escritor Edward
Darwin não se preocupou muito em rotular os espéci- Lear. Com a litografia, Lear encontrou o processo perfeito
mes de acordo com o local de coleta, procedimento no qual para produzir a suavidade necessária e retratar as nuan-
outros membros da expedição foram mais cuidadosos. O ces das penas de seus papagaios, onde linhas longas e
próprio capitão do Beagle, Robert Fitzroy, interessado por curvilíneas eram facilmente desenhadas à mão livre. Ele
pássaros, teve um cuidado um pouco maior na rotulação, acreditava que onde a técnica de entalhe falhava, pela di-
com observações sobre as ilhas em que foram coletados. ficuldade de imprimir um traço preciso, a litografia lhe ofe-
A partir dessas observações, tornou-se claro que cada es- recia grande liberdade.
pécie ocorria isoladamente em cada ilha, um importante Edward Lear começou a ilustrar profissionalmente mui-
ponto de partida para a teoria da evolução pela seleção to cedo. Tinha apenas 19 anos quando lançou sua edição
natural. O trabalho de Gould sobre os pássaros foi publi- sobre papagaios. Colaborou em trabalhos sobre pássaros
cado entre 1838 e 1842 em cinco números, como a parte da Europa e em uma edição especial sobre a família dos tu-
3 de The Zoology of the Voyage of H.M.S. Beagle (Zoologia canos. Os dois trabalhos foram publicados por Gould. Lear
da Viagem do H.M.S. Beagle), editado por Charles Darwin, atuou também como ilustrador para a Sociedade Zoológica
em cinco volumes. de Londres e para o Museu Britânico. Publicou livros ilus-
As imagens nas páginas a seguir foram extraídas do trados de paisagens de suas viagens da Europa e Ásia. Foi
livro The Zoology of the Voyage of H.M.S. Beagle, Part 3. também professor de desenho da Rainha Vitória.
Gould colaborou com Darwin nessa publicação, identifi- Apesar disso, Edward Lear ficou mais conhecido como
cando, descrevendo e ilustrando o volume referente à do- escritor e poeta. Foi eternizado por desenvolver um estilo
cumentação das aves coletadas na expedição. As litogra- próprio de literatura nonsense. Criativo tanto no texto como
fias são de Elizabeth Gould, baseadas em rascunhos de no desenho, o inglês produziu vários livros de poemas ilus-
John Gould. Das 50 imagens da publicação, 44 retratam trados, nos quais misturava doses de humor e absurdo com
as aves em tamanho natural. ilustrações surreais.
54
Tentilhão-insetívoro-da-árvore grande
Camarhynchus psittacula
Tentilhão-do-cacto
Geospiza scandens
Reproduzido com a permissão de John van Wyhe ed., The Complete Work of Charles Darwin Online (http://darwin-online.org.uk/)
Tentilhão-do-solo grande
Geospiza magnirostris
Tentilhão-cantor
Certhidea olivacea
55
Sabiá da Ilha Pinta
Mimus parvulus
Reproduzido com a permissão de John van Wyhe ed., The Complete Work of Charles Darwin Online (http://darwin-online.org.uk/)
pedido de John Gould, e passou então a colaborar em suas edições.
Elizabeth produziu cerca de 600 litografias para boa parte dos traba-
lhos de ornitologia do marido.
Em seus primeiros trabalhos, o traço de Elizabeth era um pouco duro,
deixando clara sua falta de familiaridade com a técnica. Com o grande
volume de imagens que produziu, aliado ao fato de que estava sempre
cercada de grandes ilustradores, coloristas e gráficos (além do próprio
marido), aperfeiçoou sua técnica e tornou-se uma grande referência na
ilustração científica de pássaros.
O trabalho de produção das imagens iniciava-se com os esboços de
Gould, geralmente à lápis, pena, pastel e aquarela, com intenção de
capturar as principais características dos animais. Muitos desses de-
senhos eram observações feitas em campo e, para compensar a falta
de detalhes, em decorrência da rapidez do desenho, Gould fazia vá-
rias anotações sobre cores, fundamentais para um bom resultado final.
Com base nos esboços, Elizabeth produzia um desenho mais detalha-
do em aquarela, a partir do qual Gould fazia observações e correções,
até chegar no resultado desejado. Passava-se então à versão final do
desenho para a pedra, que finalizado, era encaminhado da casa-ateliê Sabiá da Ilha San Cristóbal
dos Gould para a gráfica de Charles Hullmandel, responsável pela re- Mimus melanotis
56
O que é litografia?
É uma técnica de impressão que usa uma pe- No início do século XIX, o processo passou a
dra de base calcárea como matriz. ser amplamente usado por artistas e gráficas, de-
O processo, descoberto na Alemanha no final vido às vantagens em relação aos métodos de im-
do século XVIII, é usado até hoje. As antigas pren- pressão anteriores. O grande atrativo deste pro-
sas manuais foram substituídas por sistemas me- cesso para os artistas da época é que não existia
canizados e as placas de pedra, por chapas de a necessidade de um profissional especializado
alumínio. Atualmente, a impressão offset, utiliza- na transferência do desenho para a matriz. Os
da em escala industrial, faz uso do mesmo prin- materiais são os mesmos para se desenhar em
cípio da litografia. papel, como giz, crayons e aguadas.
GO+M
ÁCID
A
O
YON
CRA
1 2
O primeiro passo do processo é a aplicação do desenho Com o desenho pronto, a matriz recebe uma camada de
na pedra lixada e polida, com a utilização de materiais de uma solução de ácido nítrico com goma arábica, que em
base gordurosa (crayons, bastões à óleo, betume etc) contato com a gordura e com o calcário provoca uma
reação química que fixa o desenho na pedra
ÁGU
A
3 4
A impressão litográfica se baseia no princípio de que água A matriz é entintada com o auxílio de um rolo. A tinta só
e óleo não se misturam. Antes de receber a tinta oleosa, a adere onde foi gravado o desenho, pois o restante da pedra
matriz é molhada com o auxílio de uma esponja molhada repele a tinta gordurosa
5 6
Infográfico: Rafael Dietzsch/UnB Agência
O papel é então colocado sobre a matriz e passado numa Finalizada a série de impressão, as cópias são numeradas
prensa, cuja pressão transfere a imagem para o papel e assinadas a lápis
57
dossi ê
Nos 200 anos de Allan Poe, mergulhar em sua obra ainda é uma experiência
extraordinária. A leitura dos textos do autor estadunidense traz não só a constatação
óbvia de sua genialidade, mas também um melhor entendimento do novelo de
mistérios, medos e obsessões que é a alma humana
O mundo
fantástico
e sombrio de
Edgar
ALLAN POE
E
maiesse gramacho
Repórter - Revista Darcy
59
Seu livro Edgar Allan Poe: Um Homem em
Sua Sombra (Ateliê Editorial 2002) reúne bio-
grafia e crítica literária para traçar um parale-
lo entre vida e obra de um autor imortal. “Um
grande escritor não precisa ter milhões de fãs”,
diz Ricardo. “Ele precisa sim ter muitos leitores
em diversas épocas”. No livro, Edgar Allan Poe
aparece como uma espécie de paradigma do
escritor moderno, pela posição de isolamento
e apreciação do mundo.
As circunstâncias em que Poe foi encontra-
do naquela noite fria de Baltimore e as razões
e do trovão, da tempestade,
livro de poemas, Al Aaraaf, e precisou enfren-
tar mais um perda: a morte da mãe adotiva,
60
Histórias Extraordinárias O Corvo
Um das primeiras pessoas a reconhecer a O poema O Corvo apareceu pela primeira vez
genialidade de Edgar Allan Poe foi o poeta Charles em janeiro de 1845, no jornal Evening Mirror, de
Baudelaire, que em 1848 traduziu para o francês Nova Iorque, para o qual Poe trabalhava como
o livro de contos Tales of the Grotesque and redator. O poeta, na ocasião, deu um tratamento
Arabesque, com o título de Histoires Extraordinaires propagandístico ao criar uma expectativa nos
(Histórias Extraordinárias), em 1848. Em uma leitores, pois o poema não tinha sido assinado.
carta enviada ao crítico de arte Théophile Com isso, a curiosidade foi geral. O Corvo se
Thoré, Baudelaire escreveu: “Sabe por que tão tornou um dos mais importantes textos poéticos da
pacientemente traduzi Poe? Porque ele se parece história da literatura. Entre seus tradutores mais
comigo. A primeira vez que abri um livro seu, famosos, estão figuras como Charles Baudelaire,
vi, com terror e fascinação, não apenas temas Stéphane Mallarmé, Fernando Pessoa, Machado de
sonhados por mim, mas frases pensadas por mim Assis e Haroldo de Campos. Em 1998, Ivo Barroso
e escritas por ele, anos antes”. No Brasil, a editora reuniu algumas dessas traduções em um livro,
Martin Claret publicou a obra em edição de bolso, O Corvo e Suas Traduções, que foi lançado pela
a preços populares. Lacerda Editores, do Rio de Janeiro.
Sem ter para onde ir, acabou se mudando falta de dinheiro, Virginia morreu de tubercu- é impossível distinguir ilusão de realidade.
para a casa de uma tia, Maria Clemm, e sua lose em janeiro de 1847. Sem saber lidar com “Ele conhecia como ninguém a psique huma-
filha, Virginia, em Baltimore. Foi nessa fase da essa perda, o poeta se tornou ainda mais de- na”, ressalta Araújo. Em suas criações, o foco
vida que Poe começou a usar a escrita como pendente do álcool e do ópio – vícios que ad- está na angústia interior dos personagens, ao
ganha-pão, trabalhando em jornais e revistas. quirira na juventude. contrário de outros autores que enfatizam o
Em 1835, já em Boston, tornou-se redator do Desesperado, Poe tentou o suicídio toman- terror externo.
Southern Literary Messenger, função que ocu- do uma dose elevada de veneno. Mas, também O estadunidense também deu as bases da
pou até 1837. Um ano antes, casou-se com a nisso, falhou. Regressou então a Richmond. literatura policial, detetivesca. Seu fascínio por
prima Virginia, à época com 14 anos. Lá, passou os últimos anos de sua vida, com a charadas deu origem a contos de raciocínio,
Os anos seguintes foram de intensa produ- saúde abalada e em extrema miséria, até em- em que a lógica e a dedução são fundamentais
ção. Poe publicou críticas, poemas, novelas e preender a viagem final a Baltimore, que ter- para desvendar crimes aparentemente indeci-
contos, entre eles A Narrativa de Arthur Gordon minou com sua morte. fráveis, como em Os Crimes da Rua Morgue.
Pym, de 1838, e Contos do Grotesco e do Ara- A escrita de Edgar Allan Poe reflete suas te-
besco, de 1839 – este último traduzido para o Criatividade sombria orias a respeito da criação literária. Para ele,
francês pelo poeta simbolista Charles Baude- “Edgar Allan Poe foi um escritor de narrati- o texto deve ser breve e concentrar-se em um
laire, com o título de Histórias Extraordinárias. vas curtas. Mas ao mesmo tempo muito den- efeito único e específico. Segundo o professor
Em 1845, já morando em Nova Iorque, publicou sas”, analisa o professor Ricardo Araújo. As Ricardo Araújo, esse foi o parâmetro utiliza-
sua obra mais conhecida: o poema O Corvo, obras mais conhecidas de Poe são góticas, li- do na composição de O Corvo. “Poe era um
que se tornaria um dos mais importantes tex- dando com o tema da morte e apresentando esteta matemático. Esse poema, especifica-
tos poéticos da literatura mundial. figuras doentias, obsessivas e atormentadas. mente, ele escreveu obedecendo a uma equa-
Mas sua vida pessoal se tornava cada dia O escritor se concentra no ção matemática muito pre-
mais turbulenta. As dificuldades financeiras, terror psicológico. Os perso- cisa, na qual 104 versos era
que começaram desde o rompimento com o nagens oscilam entre a luci- a medida exata para o efeito
padrasto, persistiam. Como se não bastasse a dez e a loucura. Muitas vezes, pretendido por ele.”
SAIBA MAIS
61
ensaio f otogr á f i c o
O festival Maha Kumbha Mela acontece a cada 144 anos, inaugurando um novo ciclo
cosmológico. Em 2001, 70 milhões de pessoas compareceram para o mergulho na con-
fluência dos três rios mais sagrados da Índia
62
sadhus em corpo e alma
O
lena tosta (texto) e olivier böels (fotos)
Especial para Revista Darcy
63
Foto: Lena Tosta
64
Maharaj Amar Bharti mantém o
braço direito erguido
há 30 anos
65
D E D is c í pu l o para mestre
Foto:CEDOC/UnB
REVERência
O
cristovam buarque *
66
Darwin
200 anos de
Instituto de Ciências Biológicas convida:
Ciclo de Palestras
Programação
30 DE JUNHO
O ensino da evolução
Profa. Rosana Tidon - Instituto de Ciências Biológicas - UnB
25 DE AGOSTO
Comportamento animal e sociobiologia
Profa. Regina Macedo - Instituto de Ciências Biológicas - UnB
29 DE SETEMBRO
Evolução, sociedade e cultura
Prof. Nélio Bizzo - Faculdade de Educação - USP
27 DE OUTUBRO
Darwin e a mente
Profa. Maria Luisa Gastal - Instituto de Ciências Biológicas - UnB
24 DE NOVEMBRO
Evo-devo: uma ponte entre macro e micro-evolução
Prof. Klaus Hatfelder - Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto - USP
Instituto de Decanato de
Ciências Biológicas Extensão
67
UnB
50 ANOS
DE BRASÍLIA
A UnB celebra os 50 anos
de Brasília com palestras,
seminários e publicações
sobre o passado, o presente
e o futuro da capital do país.