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O seu primeiro discurso, como presidente, exalava o sentimento de uma guerra santa
degradada feita por uma seita fundamentalista entrelaçada com uma vulgaridade
omnipresente e a exortação a uma ditadura de inspiração divina, como a via para uma
nova Era de Ouro brasileira.
A sua ascensão foi facilitada por uma conjunção sem precedentes de fatores tóxicos,
como o enorme impacto social do crime no Brasil, que levou a uma crença generalizada
na repressão violenta como única solução; a rejeição concertada do Partido dos
Trabalhadores, catalisada pelo capital financeiro, pelos latifundiários, pela agro-indústria e
pelos interesses oligárquicos; um tsunami evangélico; um sistema de "justiça" que
historicamente favorece as classes superiores e encarnado por juízes e procuradores com
"formação" financiada pelo Departamento de Estado, incluindo o conhecido Sérgio Moro,
cujo firme objetivo, durante a alegada investigação Lava Jato, contra a corrupção, foi
enviar Lula para a prisão; e a total aversão à democracia de amplos setores das classes
dirigentes brasileiras.
Isto tudo se vai amalgamando num choque radicalmente antipopular, "caído do céu",
neoliberal. Parafraseando Lenine, um caso de fascismo como a última fase do
neoliberalismo. Afinal, quando um fascista vende um programa de "mercado livre", todos
os seus pecados lhe são perdoados.
Isso levou à situação vigente de generais a ameaçar juízes, se libertassem Lula. O vice-
presidente de Bolsonaro, o generalito Hamilton Mourão, chegou a ameaçar com um golpe
militar se não ganhassem. O próprio Bolsonaro disse que nunca "aceitaria" a derrota.
Não admira que The Wall Street Journal tenha classificado Bolsonaro como um normal
"populista conservador" e "drenador do pântano-Brasil"; esta designação esquece os
factos e ignora que Bolsonaro é um político menor que só conseguiu aprovar dois
projetos-lei em 27 apagados anos no Congresso.
O WhatsApp é extremamente popular no Brasil, muito mais do que o Facebook; por isso
tinha que ser devidamente instrumentalizado nesta mistura brasileira de Guerra Híbrida ao
estilo da Cambridge Analytica.
A tática foi totalmente ilegal porque foi financiada por doações à campanha, não
declaradas, assim como doações de empresas (proibidas pelo Supremo Tribunal do Brasil
desde 2015). A Polícia Federal do Brasil iniciou uma investigação que terá o mesmo
destino da investigação que os árabes sauditas fizeram a si mesmos no fiasco da Pulp
Fiction em Istambul.
O tsunami de notícias falsas foi gerido pelos chamados bolsominions . São um exército
voluntário de super leais, que castigam quem quer que se atreva a pôr em causa o "Mito"
(é assim que se referem ao líder), enquanto manipulam conteúdos, sem interrupção, em
memes, vídeos falsos virais e variadas expressões de ira do "enxame Bolso".
Esmagar o BRICS
As duas outras frentes são geopolíticas: rebentar com o BRICS por dentro e levar o Brasil
a fazer o trabalho sujo numa operação de mudança de regime na Venezuela, cumprindo
assim a obsessão de Washington em esmagar o eixo Venezuela-Cuba.
A China e o Brasil são estreitos parceiros no BRICS. A propósito, o BRICS agora fica
reduzido a RC (a Rússia e a China), com grande desgosto de Moscovo e de Beijing, que
contavam que Haddad seguisse as pisadas de Lula, que foi fundamental no reforço do
peso geopolítico do BRICS.
Apesar disso, a China mantém-se o principal parceiro comercial do Brasil – à frente dos
EUA, com um comércio bilateral que atingiu 75 mil milhões de dólares no ano passado.
Além de ser um consumidor ávido de bens brasileiros, Beijing já investiu 124 mil milhões
de dólares em empresas brasileiras e em projetos de infraestruturas desde 2003.
Os líderes militares consideram que o seu país não tem conhecimentos suficientes para
lutar contra o crime organizado, para defender a segurança cibernética e a segurança
biológica, e, no que se refere à economia, para dominar totalmente um estado mínimo,
aliado a uma reforma fiscal e à austeridade. Para o geral da elite militar, o capital privado
estrangeiro é sempre uma benesse.
Apesar disso, há dissidência militar interna – que pode abrir uma via para a remoção de
Bolsonaro, um mero fantoche, em benefício duma coisa real: um general.
Quando o Partido dos Trabalhadores estava no poder, a Marinha e a Força Aérea ficaram
muito satisfeitas com projetos estratégicos como um submarino nuclear, um jato
supersónico e satélites lançados por foguetes made in Brasil. Veremos qual será a sua
reação no caso de Bolsonaro abandonar totalmente estes avanços tecnológicos.
O problema fundamental pode vir a ser se há uma ligação direta entre a nata das
academias militares brasileiras; os "generais dependentistas" e as suas técnicas de
operações psicológicas; as diversas fações evangélicas; e as táticas pós-Cambridge
Analytica de que a campanha Bolsonaro se serviu. Será uma nebulosa que congrega
todas estas células ou será uma rede frouxa?
Mas há brechas. Leirner considera o arco de forças díspares que sustentam Bolsonaro
como uma "bricolage" que, mais tarde ou mais cedo, se desintegrará. E a seguir? Um
general sub-Pinochet?
Assim, temos a oposição entre "alguns locais" e "quaisquer locais". Temos "alguns locais"
que querem que a democracia da nação seja confinada apenas às etnias nacionais, sem
que a cultura nacional seja contaminada por influências "estrangeiras".
Isso leva Goodhart a fazer uma distinção fundamental entre populismo e fascismo –
ideológica e psicologicamente.
É errado rotular Trump de "fascista". Bolsonaro foi rotulado pelo Ocidente de "o Trump
tropical". O facto é que Trump é um populista de direita – até com algumas políticas que
poderão ser caracterizadas como de Velha Esquerda.
Os registos revelam Bolsonaro como um tipo racista, misógino, homofóbico, defensor das
armas, favorecendo um Brasil branco, patriarcal, hierárquico, hétero-normativo e
"homogéneo"; um absurdo numa sociedade profundamente desigual, ainda devastada
pelos efeitos da escravatura e em que a maioria da população é de raça mista. Além
disso, historicamente, o fascismo é uma Solução Final burguesa radical com vista à
aniquilação total da classe trabalhadora. Isso torna Bolsonaro um fascista total.
Trump ainda é mais moderado do que Bolsonaro. Não incita os seus apoiantes a
exterminar literalmente os seus opositores. Afinal, Trump tem que respeitar o
enquadramento duma república com instituições democráticas muito antigas, mesmo que
defeituosas.
Isso nunca aconteceu com a jovem democracia brasileira – em que um presidente pode
comportar-se como se os direitos humanos fossem uma conspiração comunista em
conluio com a ONU. As classes trabalhadoras brasileiras, as elites intelectuais, os
movimentos sociais e todas as minorias têm toda a razão para recear a Nova Ordem. Nas
palavras de Bolsonaro, "serão banidos da nossa pátria". A criminalização/desumanização
de qualquer oposição significa, literalmente, que dezenas de milhões de brasileiros não
valem nada.
A refinada Guerra Híbrida em curso no Brasil, que começou em 2014, teve um ponto de
inflexão em 2016 e culminou em 2018 com a destituição de uma presidente; a prisão de
outro presidente; o esmagamento da Direita e do Centro-direita; e à moda de uma pós-
política enlouquecida por esteroides, abriu o caminho para o fascismo.
Mas Bolsonaro é um vazio medíocre. Não tem a estrutura política, os conhecimentos, para
não falar da inteligência em ter chegado tão longe, a partir do nada, sem um sistema de
apoio de informações super complexo, de alta tecnologia, transfronteiras. Não admira que
seja um queridinho de Steve Bannon.
Em contraste, a Esquerda – tal como na Europa – mais uma vez ficou presa no modo
analógico. De modo algum, qualquer frente progressista, especialmente neste caso, tal
como foi constituído na décima primeira hora, podia combater com êxito o tsunami tóxico
da guerra cultural, da política de identidade e das notícias falsas micro-dirigidas.
A Esquerda perdeu a batalha importante. Pelo menos, agora já sabem que isto é a doer,
uma guerra total. Para destruir Lula – o prisioneiro político mais importante do mundo – as
elites brasileiras tiveram que destruir o Brasil. Nietzsche continua a vencer; o que não nos
mata torna-nos mais fortes. A vanguarda da resistência global contra o neofascismo como
o estádio mais avançado do neoliberalismo mudou-se para sul do Equador. No pasarán.