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INICIAÇAO
A
AO SILENCIO
Uma análise do Tractatus de Wittgenstein como
forma de argumentação
FILOSOFIA
Coleção dirigida pela Faculdade do Centro de Estudos
Superiores da Companhia de Jesus
Diretor: Marcelo F. Aquino, SJ
Co-Diretores: Henrique C. Lima Vaz, SJ e Danilo Mondoni, SJ
Instituto Santo Inácio
Av. Cristiano Guimarães, 2127 (Planalto)
31720-030 - Belo Horizonte, MG
Revisão:
Maurício Pagotto Marsola
Cristina Peres
Diagramação:
Paula R. R. Cassan
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Rua 1822 nº 347 - Ipiranga
04216-000 São Paulo, SP
Caixa Postal 42.335 - 04299-970 São Paulo, SP
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e-mail: loyola@ibm.net
ISBN: 85-15-01652-4
W
ittgenstein me disse uma vez: "meus próprios
problemas aparecem naquilo que escrevo em filo
sofia'� [Rush Rhees, Resenha do livro de Bartley, in:
Human World, fevereiro de 1974, p. 75.)
SUMARIO
,
PREFÁCIO ......................................................................................... 11
INTRODUÇÃ O . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 5
lªPARTE
O CONTEXTO E O PONTO DE PARTIDA
DA ARGUMENTAÇÃ O NO TRACTATUS
I - Observações preliminares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5 3
II - A filosofia d e Schopenhauer . . ... ... . 55
............................ ......
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Iniciação ao silêncio
Wittgenstein . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 22
............... .... .......
2ªPARTE
A FILOSOFIA DO TRACTATUS
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Sumário
3ªPARTE
TÉCNICAS ARGUMENTATIVAS UTILIZADAS NO TRACTATUS
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PREFACIO
,
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Iniciação ao silêncio
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Prefácio
0 AUTOR
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INTRODUÇÃO
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Iniciação ao silêncio
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Introdução
argumentação que não é nem coercitiva nem arbitrária pode dar sen
tido à liberdade humana, entendida como possibilidade de escolha
racional (ibidem: 299).
Apesar dos elogios de Conley, os italianos Plebe e Emanuele
criticam a noção de argumentação de Perelman e Olbrechts-Tyteca,
considerando que eles enfatizam o aspecto da persuasão, deixando de
lado a imaginação inventiva (héuresis). Para Plebe e Emanuele, a
função da Retórica é, sobretudo, inventar os temas e seus respectivos
tratamentos ( 1 992: 1 2- 1 3; 1 06) . Assim, a ênfase na persuasão produz
duas seqüelas interligadas e indesejáveis. Em primeiro lugar, Perelman
e Olbrechts-Tyteca são levados à atitude congenitamente contraditória
de ver na Retórica uma atividade inovadora e simultaneamente estudá
-la como um procedimento conservador (ibidem) . Com efeito, eles
sustentam que a eficácia de uma argumentação depende da regra de
justiça, segundo a qual o argumento que já valeu em casos precedentes
valerá também para casos futuros. Todavia, a regra de justiça funciona
não em virtude de algum princípio criativo, mas do princípio de inér
cia, que fundamenta a importância dada ao que já valeu no caso pre
cedente (ibidem: 1 07). Em segundo, Perelman e Olbrechts-Tyteca ten
dem a deslocar o mundo da Retórica do plano lógico-filosófico para
o sociopsicológico (ibidem: 1 06). De fato, o princípio de inércia, que
fundamenta a força persuasiva de um argumento, é de caráter psico
lógico (ibidem: 1 08). Isso os induz a pensar que o argumento mais
forte é o psicologicamente mais eficaz, não o logicamente válido.
Perelman e Olbrechts-Tyteca foram capazes de desvencilhar-se dessas
seqüelas na Terceira Parte do Tratado da Argumentação, que é dedicada
à Retórica como disciplina "quase lógica" e estuda as técnicas
argumentativas em geral (ibidem: 1 09).
Contra Plebe e Emanuele, temos as seguintes considerações a
fazer. Primeiro, é importante observar que, por um lado, como os
próprios autores italianos reconhecem, Perelman e Olbrechts-Tyteca
realizam, na Terceira Parte do Tratado, um estudo em que a invenção
ocupa um lugar importante. Por sua vez, convém lembrar que a Re
tórica não é pura invenção. No capítulo II de seu Manual de retórica,
em que estudam a arte de inventar, Plebe e Emanuele são forçados a
reconhecer que não se inventa a partir do nada. Com efeito, as técnicas
heurísticas por eles consideradas são a do antimodelo, a da iteração de
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Introdução
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Introdução
mostra claramente que o autor não cria do nada, mas inventa a partir
daquilo que já existe.
Para efetuar adequadamente a análise argumentativa de dado texto,
o método percorre, em geral, os seguintes momentos: a) exposição da
solução do autor (conjetura hermenêutica); b) contextualização (pro
blema e ponto de partida do autor); c) identificação das principais
técnicas heurísticas utilizadas (parte inventiva); d) análise dos princi
pais esquemas argumentativos utilizados para justificar pontos especí
ficos da solução (táticas argumentativas); e) análise da linha geral de
argumentação utilizada para expor e justificar a solução encontrada
(estratégia argumentativa). A ordem em que estes momentos estão
sendo apresentados não é a única possível, já que eles são relativa
mente independentes entre si e interagem uns com os outros. Pode-se
começar a análise, por exemplo, pela contextualização e depois passar
para a exposição da solução do autor. Em todos esses momentos,
deve-se levar em conta que é a especificidade do texto que determina
a aplicação do método, e não o contrário.
Embora o objetivo principal da análise argumentativa não seja
propriamente hermenêutico, acreditamos que a aplicação deste méto
do introduz uma série de elementos que auxiliam grandemente na
construção de uma hipótese inteipretativa adequada, facilitando a com
preensão da obra. Há uma interação entre a hipótese hermenêutica e
os aspectos argumentativos do texto, de tal maneira que estes últimos
contribuem para refinar e reforçar a primeira. Assim, o resultado da
análise que estamos aqui propondo é não somente a explicitação dos
procedimentos argumentativos utilizados, mas também o reforço e a
maior clarificação da conjetura inteipretativa proposta para o texto.
Para mostrar como isso é possível, consideraremos em detalhe os
diversos momentos do método, de acordo com a ordem em que foram
apresentados acima.
O primeiro deles consiste na exposição da solução encontrada
pelo autor. Este momento envolve a elaboração de uma conjetura
inteipretativa que está sujeita aos mesmos problemas de qualquer
2. Em nosso caso, como veremos, esta é a ordem que será adotada, para facilitar
a exposição.
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Introdução
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Introdução
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1 ª PARTE
WITTGENSTEIN A EPOCA
DA REDAÇÃO DO TRACTATUS
1 - Observações preliminares
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W/ttgenstein à época da redação do Tracta t u s
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Wittgenstein à época da redação do Tractatus
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4. Isso fica bem ilustrado pelos fatos que seguem, relativos aos períodos mais
perigosos da atuação de Wittgenstein na guerra. De agosto a dezembro de 1 9 1 4, ele
ficou encarregado de manobrar o farol do barco "Goplana", no rio Vístula (nesta
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Wlttgenstein à época da redação do Tracta t u s
posição, certamente, era u m alvo ideal). D e março a setembro d e 1 9 16, ele trabalhou
no posto arriscado de observador de artilharia na frente da Galícia, tendo sido dupla
mente condecorado por sua coragem. De janeiro de 1 9 1 7 a março de 1 9 1 8, dirigiu
grupos de observação de artilharia na frente da Bucovina, tendo sido novamente
condecorado. De março a novembro de 1 9 1 8, lutou na frente italiana, recebendo sua
quarta medalha por bravura.
5 . Dentre esses escritos, inclui-se uma versão primitiva do Tractatus, conhecida
como Proto-Tractatus.
6. Este código não era dificil de decifrar e consistia em inverter a ordem das
letras do alfabeto da seguinte maneira: ' a' corresponde a ' z ' , 'b' , a ' y ' , ' c ' , a ' x ' etc.
Wittgenstein utilizou esse código apenas para evitar que seus companheiros de caser
na tivessem acesso às observações sobre sua vida íntima.
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Wittgenstein à época da redação do Tractatus
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8. Outros autores dignos de menção seriam, por exemplo, Karl Kraus, Adolf
Loos e Kierkegaard. Para um estudo acerca de sua importância na Viena de Wittgenstein,
remetemos o leitor à excelente obra de Janik e Toulmin ( 1 973).
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Wittgenstein à época da redação do Tractatus
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, ,
O CONTEXTO ETICO-METAFISICO
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meçado neste último como uma tentativa de mapear os limites da razão, teria termi
nado, com Kierkegaard, numa negação completa da validade da razão no reino dos
valores ( 1 973: 1 64). Kierkegaard seria, portanto, um dos inspiradores da radical se
paração tractatiana entre fatos e valores (ibidem: 1 60- 1 6 1 ). Porém, para evitar que
esta Parte se tome muito extensa, não nos deteremos na consideração de Kierkegaard.
Acreditamos que os demais autores considerados são suficientes para caracterizar a
atmosfera intelectual que levou Wittgenstein à redação do Tractatus.
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O contexto ético-metafísico
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O contexto ético-metafísico
t
logicamente, somos todos bissexuais (ibidem: 8-9) . A lei que regula a
dadeira união sexual estabelece a necessidade de que a soma dos
acteres masculinos e femininos produza um homem completo e
·
a mulher completa, mesmo que tais caracteres estejam distribuídos
diferentemente nos dois indivíduos envolvidos (ibidem: 29). Assim,
um indivíduo 75% masculino e 25 % feminino só encontrará completa
afinidade sexual ao lado de um indivíduo 25 % masculino e 75% fe
minino (ibidem: 30). Esta lei explica inclusive o homossexualismo
(ibidem: 45 ss.). Como se pode notar, a concepção weiningeriana da
sexualidade admite formas intermediárias entre o homem completo e
a mulher completa. Aplicada aos fatos mentais, essa concepção produz
uma série de resultados. Assim, por exemplo, os homens afeminados,
além de fisicamente mais preguiçosos que outros homens, são extrema
mente ansiosos para se casar (ibidem: 56). Quanto mais feminilidade
uma mulher possui, tanto menos ela compreenderá um homem e maior
será a influência dos caracteres sexuais do homem sobre ela (ibidem:
57). Do mesmo modo, as exigências que uma mulher faz para a eman
cipação e sua qualificação são diretamente proporcionais à quantidade
de masculinidade que ela possui (ibidem: 64 ss.). Todavia, o maior e
único inimigo da emancipação feminina é a própria mulher. Weininger
deixa a prova disso para a segunda parte do livro (ibidem: 75).
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Iniciação ao silêncio
�
go hén, que significa um, porque nela é impossível distinguir percepção
e sensação como dois fatores analiticamente separâveis (ib m: 99).
Aplicando este resultado à psicologia dos sexos, Weininger conclui:
"O homem tem os mesmos dados psíquicos que a mulher,
mas em uma forma mais articulada; onde ela pensa mais ou
menos em hênidas, ele pensa em representações (presen
tations) mais ou menos claras e detalhadas, nas quais os
elementos são distintos dos tons emocionais " (ibidem: 1 00) .
Para a mulher, o pensar e o sentir são idênticos; para o homem,
eles estão em clara oposição. A mulher tem muitas de suas experiên
cias mentais como hênidas, ao passo que no homem tais experiências
passam por um processo de clarificação (ibidem). Prova disso é o fato
de que, sempre que um novo juízo deve ser feito, a mulher espera do
homem a clarificação de seus dados, a interpretação de suas hênidas
(ibidem: 1 0 1 ) . É por isso que tantas garotas dizem que só poderiam
casar-se com ou apaixonar-se por um homem mais inteligente que elas
(ibidem: 1 0 1 - 1 02) .
Nesse ponto, Weininger introduz seu conceito de ' gênio ' , cuja
característica fundamental é a clareza de consciência, a qual o coloca
o mais distante possível do estágio de hênida (ibidem: 1 03- 1 1 1 ). Em
virtude disso, constata-se que a mulher não tem consciência de gênio.
O termo estâ definitivamente ligado com hombridade, representando
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O contexto éttco-mctaffslr! '
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No que diz respeito à ética, ela nos diz que o dever do homem,
corno ser lógico, é encontrar a verdade. O dever da cognição envolve
a possibilidade do conhecimento, a liberdade de pensamento e a espe-
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VI - Observações fi nais
presente real] , 9. perdoai as nossas ofensas assim como perdoamos àqueles que nos
têm ofendido [e que nossas faltas e erros passados não nos escondam esta vida
autêntica], 1 0. não nos deixeis cair em tentação [e que não nos conduzam à mentira],
1 1 . mas livrai-nos do mal [então não haverá mais mal ] . 1 2. Porque o poder, a força
e a glória são para vós [mas o poder, a força e a razão serão parct vós]" (Tolstoi 1 890:
6). Embora o final desta versão não seja aquele que nós latinos conhecemos, pode
-se ver claramente que o "Pai-Nosso" pode ser lido na perspectiva tolstoiana.
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Iniciação ao sllênclo
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O CONTEXTO LIGADO
' ,
A ANALISE DA LINGUAGEM
A
consideração dos fatos da vida de Wittgenstein nos mostrou que,
além dos autores até agora estudados, ele também teve contato
com outros, que constituem um grupo cujas preocupações predomi
nantes com a análise da linguagem muito o influenciaram. Sugerimos
que esses autores possam ser divididos em dois subgrupos. Em um
deles predomina a preocupação com a análise da linguagem lógica e
científica (Frege, Russell, Hertz e Boltzmann); no ·outro, com a crítica
cética da linguagem (Mauthner) .
Desse modo, o objetivo deste capítulo é recriar a parte restante
da atmosfera intelectual que Wittgenstein respirava quando foi levado
a escrever o Tractatus. Nessa perspectiva, faremos a exposição dos
aspectos relevantes da filosofia de cada um dos autores pertencentes
aos subgrupos que acabamos de mencionar. Essa tarefa se justifica por
razões análogas àquelas apresentadas na caracterização do contexto
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O contexto ligado à análise da linguagem
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'
gico dos símbolos e não dos problemas legítimos gerados pelos fatos.
O espírito dessa proposta está condensado na seguinte passagem da
Introdução aos Princípios da mecânica:
f
"(. . . ) acumulamos ao redor dos termos 'força' e 'eletricida-
de' mais relações do que as que podem ser completamente
reconciliadas entre si. Temos disso um sentimento obscuro
1 e desejamos as coisas esclarecidas. Nosso desejo confuso
encontra expressão na questão confusa quanto à natureza
da força e da eletricidade. Mas a resposta que queremos
não é realmente uma resposta a essa questão. Não é encon
trando novas e estimulantes relações e conexões que ela
: pode ser respondida, mas pela remoção das contradições
!;... existentes entre aquelas já conhecidas, reduzindo, assim,
O contexto ligado à análise da linguagem
1 . Como não tivemos acesso aos textos de Mach, nossa exposição das idéias
desse autor está inteiramente baseada em Janik e Toulmin.
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5 . Nesta perspectiva, o que Frege denom ina ' conteúdo não-judicãvel '
(unbeurteilbarer lnhalt) é o conteúdo dado por expressões isoladas da linguagem,
como ' casa ' . Não hã como dar assentimento intelectual a 'casa' para produzir um juízo.
Se dissermos por exemplo 'a casa existe ' , tal juízo é possível porque 'a existência da
casa' é um conteúdo judicãvel, do qual 'casa' é apenas uma parte (Frege 1 879: 2).
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presentam, respectivamente, 'para todo x ' , 'x é homem ' , 'x é mortal '
e ' se-então ' ) . A análise fregiana revela que a proposição universal
afirmativa não é declarativa, mas ocultamente hipotética. Além disso,
ao articular apenas as funções 'x é homem ' e 'x é mortal ' por meio do
quantificador universal 'para todo x ' , essa proposição deixa aberto o
lugar representado pela variável ' x ' . Isso significa que ela apenas
articula funções e não tem argumento, ou, o que é o mesmo, não tem
sujeito lógico. Em contraste, a proposição ' Sócrates é homem ' possui
sujeito lógico (o argumento ' Sócrates ' ) e predicado lógico (a função
'x é homem ' ) . Por causa disso, Frege a analisa em ' (Sócrates) é mortal '
(em símbolos: ' Ms ' , onde ' s ' designa Sócrates e 'Mx ' representa ' x é
mortal' ) . Essas duas proposições não mais podem ser consideradas
instâncias da proposição universal afirmativa, como preconiza a lógica
aristotélica. Coisa semelhante acontece com as demais proposições do
quadrado lógico tradicional: 'nenhum homem é mortal ' é analisada em
'para todo x, se x é homem, então x não é mortal ' (em símbolos:
' (x)(Hx � -Mx) ' , em que '-' corresponde a 'não ' ); ' algum homem é
mortal ' , em 'existe pelo menos um x tal que x é homem e x é mortal '
(em símbolos: ' (Ex)(Hx e Mx) ' , em que ' (Ex) ' e 'e' representam,
respectivamente, o quantificador existencial ' existe pelo menos um x '
e a conjunção lógica 'e')6•
Terceiro, esta conseqüência cobre aquilo que talvez tenha sido a
maior contribuição da Conceitografia, a análise fregiana une pela pri
meira vez de maneira consistente a lógica geral com a primária.
Aristóteles, ao estudar o silogismo categórico, representa o primeiro
grande passo no sentido de uma lógica geral ou intraproposicional. Os
estóicos e megáricos, ao estudar o que os medievais incorretamente
denominaram ' silogismo hipotético ' , desenvolveram a lógica primária
ou interproposicional . Graças à hostilidade entre peripatéticos e
megáricos, esses dois ramos da lógica surgiram inicialmente não como
domínios complementares, mas como alternativas em disputa. Desse
modo, desde o final da Antiguidade, passando pela Idade Média e
chegando até os trabalhos de Leibniz, ninguém conseguiu mostrar
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9. Por exemplo, 'o Rei da França é sábio' não é nem verdadeira e nem falsa,
pois não existe Rei da França.
10. Para evitar a presença, numa linguagem logicamente perfeita, de descrições
definidas dotadas de sentido, mas desprovidas de significado, Frege propõe um me
canismo de filtro que funciona da seguinte maneira: não introduzir uma expressão na
linguagem científica sem antes assegurar-lhe um significado; se a expressão não tiver
significado, é preciso atribuir-lhe um artificialmente. Por exemplo, o significado de ' o
atual Rei d a França' e expressões análogas pode ser o conjunto vazio.
O contexto ligado à análise da linguagem
IV - Os trabalhos de Ru ssell
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Iniciação ao sllêncio
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O contexto ligado à análise da linguagem
e x é único
e x é sábio ' .
Agora, estamos dizendo que não existe um Rei da França que
seja sábio. Trata-se de uma 'ocorrência secundária' da descrição 'o Rei
da França' . Nesse caso, a sentença é VERDADEIRA, pois de fato não
existe um ' x ' que reine n a França.
O principal mérito da teoria de Russell é propor, seguindo o
espírito de Frege, uma forma lógica profunda a partir da qual a forma
superficial das sentenças é explicada. De acordo com a teoria
russelliana, as descrições definidas não constituem expressões refe
renciais autênticas, pois podem ser substituídas por um conjunto de
funções. Em virtude disso, Russell as denomina ' símbolos incomple
tos ' , ou seja, símbolos que desaparecem depois de analisados.
Para ilustrar o tipo de conseqüência filosófica propiciada pela
teoria de Russell, tomemos sua análise da seguinte variante do argu
mento ontológico: 'o Ser Mais Perfeito tem todas as perfeições; a
existência é uma perfeição; portanto, o Ser Mais Perfeito existe' . A
primeira premissa contém a descrição definida 'o Ser Mais Perfeito ' ,
fato que desdobra o argumento em: 'existe uma e somente uma enti
dade x que é a mais perfeita; esta ent.idade x possui todas as perfei
ções; a existência é uma perfeição; portanto, esta entidade x existe'
(Russell 1 905 : 49 1 ). Como se pode constatar facilmente, o argumento
é, no mínimo, circular, pois procura provar que a entidade ' x ' existe
a partir da afirmação de que existe uma e somente uma entidade ' x '
que é a mais perfeita. A inferência que parecia tran s p aren te m e nte vál ida
a partir da consideração da forma lógica superfic ial toma-se u m sofis
ma mediante a clarificação produzida pelo dcsvclamcn to da forma
lógica profunda.
Além de s u a teoria das descrições , Russel l tem contribuições
importantes na tarefa de ax iomatização da mate mática. Nesse domí
nio, ele é partidário do programa logic ista de Frege, considerando que
não há diferença essencial entre a lógica e a matemática, principal
mente a aritmética. Isso significa que, para ambos os autores, a arit
mética pode ser deduzida a partir da lógica. Para atingir esse objetivo,
o iniciador Frege define o número com base na noção de conjunto.
Para ele, o número é um conjunto de conjuntos equipotentes. Dois
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I 02
O contexto ligado à análise da linguagem
o. . . { }
1 . .. { { } } ou { o }
2 .. { { }, { { } } } ou { o, 1 }
.
3 .. { { }, { { } }, { { }, { { } } } } ou { o, 1 , 2 }
.
etc.
Como se pode notar, a aplicação reiterada do processo mencio
nado nos dá toda a série dos números naturais. Ora, é um fato da
matemática que, dada a seqüência dos naturais, as demais séries numéri
cas (inteiros, racionais, reais etc.) podem ser construídas a partir dela.
Isso mostra a grande engenhosidade de Frege: todo o edificio da arit
mética é estruturado a partir de uma única peça, o conjunto vazio, e da
operação de construir novos conjuntos a partir dos anteriormente dados.
Como o conjunto vazio pode ser obtido de maneira puramente lógica,
sem qualquer referência aos objetos do mundo, toda a aritmética se re
vela, em última instância, uma construção lógica. Baseado neste prin
cípio, Frege organiza inicialmente a lógica de forma axiomática e, em
seguida, parte para a dedução da seqüência dos números naturais.
Russell entusiasma-se bastante com este método, mas, ao tentar
executá-lo, depara com um paradoxo. Uma consideração mais cuida
dosa do processo proposto por Frege mostra que ele se fundamenta na
possibilidade de construir conjuntos de conjuntos. O número 1 , por
exemplo, corresponde ao conjunto unitário que tem o conjunto vazio
como seu único elemento (' { {} }'); o número 2, ao conjunto que tem
o conjunto vazio e o conjunto unitário como seus únicos elementos
(' { { }, { { } } }'). Na notação utilizada, pode-se observar o uso de
pares de chaves envolvendo pares de chaves (em ' { { } }', por exem
plo, ' { ' e ' }' envolvem ' { }'). Ora, cada par de chaves indica um
conjunto; e um par de chaves envolvendo outro par de chaves indica
um conjunto de conjuntos. Isso confirma a afirmação de que o proce
dimento fregiano envolve a formação de conjuntos de conjuntos. Essa
noção, por sua vez, envolve a possibilidade de determinado conjunto
ser ou não elemento de outro conjunto. Isso abre uma nova possibi
lidade, a saber, a da reflexividade: dado conjunto também pode ou não
ser elemento de si próprio. Ora, no interior da teoria fregiana, certos
conjuntos são elementos de si próprios, e outros, não. Tomemos, por
exemplo, o conjunto das coisas vermelhas; este conjunto certamente
não é uma coisa vermelha e, por conseguinte, não é membro de si
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Iniciação ao silêncio
1 2. Há uma variante informal deste paradoxo, que pode ser assim formulada.
Em determinada cidade, o barbeiro só faz a barba das pessoas que não se barbeiam.
Pergunta-se: o barbeiro faz a barba de si próprio? Se ele faz a barba de si próprio,
então ele não se barbeia, pois só faz a barba das pessoas que não se barbeiam. Se ele
não faz a barba de si próprio, então ele se barbeia, pois só faz a barba das pessoas
que não se barbeiam.
1 3 . Russell comunicou a descoberta do paradoxo por meio de uma caita envia
da a Frege quando este fazia a revisão final de sua obra Leis Fundamentais da
Aritmética. Isso perturbou imensamente Frege, que tentou resolver a dificuldade por
meio de um apêndice acrescentado à última hora. Contudo, ele não parece ter tido
sucesso nesta empreitada.
1 04
O contexto ligado à análise da linguagem
rarquia de tipos lógicos, segundo a qual aquilo que pode ser dito do
el emento do conjunto não pode ser dito do conjunto; aquilo que pode
ser dito do conjunto não pode ser dito do conjunto de conjuntos;
aquilo que pode ser dito do conjunto de conjuntos não pode ser dito
do conjunto de conjuntos de conjuntos; e assim por diante, ao infinito.
Se esta hierarquia e sua8 regras forem respeitadas, o paradoxo de Russell
não poderá ser formulado no interior do sistema. Com efeito, a pergunta
sobre se o conjunto 'R' pertence a si próprio constitui um contra
-senso: o conjunto 'R' possui um tipo lógico diferente daquele que pos
suem seus elementos. Ao perguntar se R pertence a R, estamos transitan
do ilicitamente entre níveis diferentes da hierarquia de tipos lógicos.
O recurso à teoria dos tipos resolve o problema criado pelo pa
radoxal conjunto ' R ' . Isso gera, entretanto, outra dificuldade. Com
efeito, a teoria dos tipos proíbe a formação da série numérica pela
construção de conjuntos de conjuntos no estilo fregiano: é fácil perce
ber que os conjuntos ' { }', ' { { } }', ' { { }, { { } } }' etc., que definem
os números ' O ' , ' 1 , ' 2 ' etc., possuem tipos lógicos diferentes, impos
'
I OS
Iniciação ao silêncio
l .. . {a}15
2 . . {a,b }
.
3 . {a,b,c }
..
etc.
O processo acima permite construir toda a série dos números
naturais, mas desde que haja um estoque infinito de objetos no mundo.
Somente desse modo será possível formar o conjunto que define o
número 'n + 1 ' a partir do conjunto que define o número ' n ' . Assim,
por exemplo, se houver apenas 1 000 objetos, será possível construir a
série numérica apenas de O até 1 000. Não será possível definir o
número ' 1 00 1 ' em virtude da falta de mais um objeto a ser acrescen
tado aos mil já utilizados. Isso também tomaria impossível a definição
de qualquer um dos sucessores de 1 00 1 . Russell considerava bastante
plausível a hipótese de que o número de objetos no universo é infmito.
Em virtude disso, ele a acrescenta ao conjunto das proposições primi
tivas de seu sistema, com o nome de ' axioma da infinidade ' . Embora
tipos, a série numérica fregiana é formada por conjuntos de tipos lógicos diferentes:
'O' possui tipo lógico inferior a ' l ', que possui tipo inferior a ' 2 ' , que possui tipo
inferior a ' 3 ' , e assim sucessivamente. Nessa perspectiva, não é possível dizer, por
exemplo, que ' 2 ' e ' 3 ' são números primos, pois as propriedades de ' 2 ' são radical
mente diferentes das de ' 3 ' .
1 5 . S e o número ' l ' é o conjunto dos conjuntos equipotentes ao conjunto cujos
elementos são os elementos do conjunto ' { }' mais qualquer objeto 'a' que não seja
elemento do conjunto ' { }' , então ele corresponde a ' {a}', pois ' { }' não tem elementos.
1 06
O contexto ligado à análise da linguagem
1 07
Iniciação ao silêncio
Podemos dizer, contudo, que certamente ele não teve tal tipo de contato com a ter
ceira, que foi publicada depois da redação do Tractatus. Infelizmente, só tivemos
acesso à terceira edição da primeira parte dos Beitriige. As datas das edições das
partes restantes dos Beitriige que utilizamos estão indicadas na bibliografia. Gershon
Weiler dã a seguinte lista das demais obras filosóficas de Mauthner: Die Sprache
( 1 906), Worterbuch der Philosophie (2 vols., 1 9 1 0), Muttersprache und Vaterland
( 1 920), Der Atheismus und seine Geschichte im Abendlande ( 1 920- 1 923), Spinoza
( 1 906) e Aristoteles (trad. para o inglês em 1 907) ( 1 958: 80).
1 8 . Os números ' I ' , ' II ' e ' III ' , colocados antes do número da pãgina, indicam
o volume das Contribuições cuja pãgina foi citada.
1 08
O contexto ligado à análise da linguagem
1 09
Iniciação ao silêncio
pobres palavras. É neste espírito que deve ser entendida a sua decisão
de publicar:
"Nesta hora risonha da decisão e do fim, que repousa sobre
o degrau recém-destruído, sobre o qual me libertei da fome
de palavras, do amor pelas palavras e da vaidade das pa
lavras, dirijo a ponta tranqüilamente contra mim mesmo e
digo, preparado: o que mata os percevejos, mata também o
papa " (ibidem: 1, 2-3).
Tudo indica que o mote acima poderia ser refraseado assim: 'o
que mata as palavras, mata também a linguagem ' , ou, mais exatamen
te, 'o que mata cada etapa da crítica da linguagem, mata também a
linguagem' .
Para fazer a crítica da linguagem humana, Mauthner se sente na
obrigação de examinar os conceitos mais rigorosamente do que em
·qualquer outro lugar, já que a palavra ' linguagem ' designa igualmente
o objeto e o meio da investigação (ibidem: 1, 3). Para Mauthner, 'crí
tica' se refere à atividade do entendimento humano que separa ou
distingue. A ' crítica' de um fenômeno nada mais é que a observação
escrupulosa ou investigação dele (ibidem). Quanto à 'linguagem ' , o
fenômeno a ser estudado por esta ' crítica' , Mauthner a entende como
aquilo que é comum às linguagens dos homens e, portanto, aquilo que,
de maneira belamente abstrata, se pode denominar a ' essência da lin
guagem ' (ibidem: 1, 3). Nesse sentido, ' a linguagem ' designa algo
totalmente diferente de ' uma linguagem ' ou ' as linguagens ' (ibidem:
1, 4).
Avançando em sua investigação, Mauthner tenta explicar o en
cantamento daqueles que vêem a linguagem como um objeto de uso
que se valoriza pela ampliação do próprio uso. Para ele, a explicação
é fácil: todos os objetos de uso ou são consumidos, como os alimen
tos, ou se estragam, como as ferramentas e máquinas. Se a linguagem
fosse uma ferramenta, ela também se deterioraria. Ora, isso acontece
apenas com as palavras, que se estragam e desvalorizam. Daí a con
clusão de Mauthner, que envolve sua definição da linguagem:
"A linguagem não é nenhum objeto de uso e também nenhu
ma ferramenta. Ela não é em geral um objeto, mas de fato
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O contexto ligado à análise da linguagem
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Iniciação ao silêncio
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O contexto ligado à análise da linguagem
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Iniciação ao silêncio
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O contexto ligado à análise da linguagem
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Iniciação ao silêncio
essa função é desvairado, pois a fórmula acima não tem apenas uma
incógnita. Na verdade, ela envolve: a) uma grandeza fanta8iosa ou
imaginária, ' x ' , que aponta para a natureza de nosso espírito (ora, nada
corresponde a este ' x ' , quer o consideremos como nossa "alma", como
a "essência de nossos sentidos", ou, mais prudentemente, como a
"atividade de nosso cérebro"); b) uma grandeza, ' A' , cuja realidade é
duvidosa (sua ação sobre nós, sua relação com nossas percepções
sensíveis é justamente o que estâ em questão); c) uma grandeza, ' a' ,
que corresponde aos fenômenos conhecidos do mundo real e que
aparentemente constitui a única em que podemos nos apoiar (mas só
aparentemente, pois, embora o pensamento humano nada possua além
de suas percepções sensíveis, ele nem sequer sabe em que medida
pode confiar nelas) (ibidem: 1, 674-676). Em síntese, toda linguagem
é ignorância, toda linguagem deve ser essencialmente imagética, me
tafórica (Mauthner 1 9 1 2: II, 29).
Nessa perspectiva, a filosofia como ' autoconhecimento do espí
rito humano ' é simplesmente impossível. O ' espírito humano ' é o
conjunto da linguagem humana, seja do ponto de vista do indivíduo,
seja do ponto de vista da humanidade. O ' espírito humano' é a memó
ria do indivíduo ou de um povo, ou da humanidade, a partir da ma
neira que a memória se desenvolve como uso das palavras. O ' autoco
nhecimento da linguagem ' , porém, é ou uma expressão sem sentido ou
significa a ânsia desesperada de, com o auxílio da linguagem, penetrar
nas profundezas da própria linguagem (Mauthner 1 92 1 : 1, 704). As
sim, cada sistema fechado é uma auto-ilusão, e a filosofia, como
autoconhecimento do espírito humano, é perpetuamente infecunda. Se
desejarmos manter a antiga palavra 'filosofia' , deveremos entendê-la
como ' atenção crítica à linguagem ' . A filosofia não pode fazer com o
organismo da linguagem nada mais do que o médico faz com o orga
nismo fisiológico, a saber, observar com atenção e dar nomes aos fatos
(ibidem: 1, 705). Hã três motivações na vida do homem: a fome, o
amor e a vaidade. As filosofias podem resultar desses três impulsos
comuns, mas não a ânsia filosófica. Levados ao extremo, todos esses
impulsos, inclusive a ânsia filosófica, podem levar à morte (ibidem: 1,
7 1 1 ) . Mas hâ uma diferença entre os suicídios por fome, amor, ou vaida
de, e a ânsia de morte, a volúpia da morte do filósofo cansado. Os três
primeiros possuem um carâter patológico e se desvanecem diante da
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O contexto ligado à análise da linguagem
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Iniciação ao silêncio
VI - Observações finais
1 18
O contexto ligado à análise da linguagem
rival de Hertz. Nesse sentido, ele parece estar preocupado com o fun
damento psicológico da linguagem, tentando delimitá-la "por fora", de
maneira análoga à que Mach faz com a física. Com efeito, a crítica
mauthneriana da linguagem, ao ser concebida como "atenção crítica à
linguagem", só pode observar e nomear o que ocorre quando falamos.
E a solução que esta crítica oferece é ao mesmo tempo cética e pes
simista: as verdades que podemos expressar lingüisticamente são
tautológicas e a experiência do mundo nos foge continuamente; a
linguagem é incapaz de apreender qualquer coisa. Portanto, devemos
parar de fazer perguntas ou tentar respondê-las. A redenção encontra
-se no único refúgio possível: o santo silêncio total.
Tudo indica que, a partir do contato que teve com todos os
autores mencionados, o jovem Wittgenstein percebeu claramente o
conflito entre eles e tentou resolvê-lo por meio da filosofia expressa
pelo Tractatus. Em suas grandes linhas, este conflito pode ser formu
lado da seguinte maneira. É verdade que, por um lado, as doutrinas
dos autores ligados às preocupações ético-metafisicas apresentam um
ponto de contato com Mauthner ao apontar para a enorme dificuldade
da linguagem em descrever a experiência beatífica da contemplação
da verdadeira realidade. Por outro, é também verdade que as doutri
nas dos autores do primeiro subgrupo ligado à análise da linguagem
divergem das de Mauthner ao apontar para a possibilidade de descri
ção do mundo por intermédio de modelos logicamente articulados .
Se Mauthner está certo, não h á metafisica nem ciência, e estamos
condenados a calar sobre absolutamente tudo. Resta-nos apenas o
recurso de viver o mais silenciosa e intensamente possível o mo
mento presente. Se, porém, os autores ligados à análise da lingua
gem lógica e científica têm alguma ponta de razão, então algo ainda
pode ser dito, embora seja necessário delimitar, cuidadosamente e
"do interior" da própria linguagem, o domínio a que este "algo"
pertence. E a delimitação deverá ser feita por meio de uma crítica
da linguagem que se coloque numa perspectiva mais radical que a
mauthneriana e seja capaz de estabelecer, com mais rigor que todos
os autores considerados, o que realmente pode ser dito sobre a na
tureza e sobre a experiência mística. Este assunto será objeto de
discussão mais detalhada no próximo capítulo, que trata do ponto de
partida do Tractatus.
1 19
O PONTO DE PARTIDA DA
ARGUMENTAÇÃO NO TRACTATUS
121
Iniciação ao silêncio
1 . Neste ponto, o leitor mais atento poderia lembrar que a filosofia tractatiana
não envolve a formulação de um problema e, muito menos, de uma solução. A esta
objeção responderíamos que, neste momento, a vivência filosófica proporcionada pelo
Tractatus ainda não tinha acontecido. Ao iniciar sua pesquisa, Wittgenstein ainda não
conhecia com certeza os limites da linguagem e muito menos os resultados radicais
que a crítica da linguagem em sentido não-mauthneriano seria capaz de proporcionar.
1 22
O ponto de partida da argumentação no Tractatus
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Iniciação ao silêncio
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O ponto de partida da argumentação no Tractatus
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Iniciação ao silêncio
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O ponto de partida da argumentação no Tracta t u s
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Iniciação ao silêncio
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O ponto de partida da argumentação no Tractatus
3. Esta analogia está relacionada com uma tese schopenhaueriana que é muito
cara ao primeiro Wittgenstein: a coincidência entre realismo empírico e idealismo
transcendental, que ele entendia como uma forma de solipsismo.
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Iniciação ao stlênclo
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O ponto de partida da argumentação no Tractatus
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Iniciação ao silêncio
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O ponto de partida da argumentação no Tractatus
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Iniciação ao silêncio
1 34
O ponto de partida da argumentação no Tracta tus
a função 'F(Fx) ' , que possui uma forma lógica diferente da original.
Já nas Notas sobre a lógica, Wittgenstein afirma:
"Nenhuma proposição pode dizer alguma coisa dela mesma,
porque o símbolo da proposição não pode conter a si próprio;
tal deve ser a base da teoria dos tipos lógicos" ( 1 9 1 3 : 1 92) .
A solução wittgensteiniana a esta dificuldade, como veremos ao
expor a filosofia do Tractatus, basear-se-á na distinção entre 'dizer ' e
'mostrar ' . Ela caminhará no sentido de estabelecer a impossibilidade
de dizer algo sobre os tipos lógicos, embora seja possível mostrar, por
meio de uma notação adequada, quais os tipos envolvidos e suas res
pectivas diferenças.
O segundo ponto de discordância entre Wittgenstein e Russell
está no fato de este último ter sido obrigado a recorrer ao axioma da
infinidade para levar a cabo o programa logicista de construção da
série dos números. Wittgenstein considerava que a lógica é p uramente
sintática, devendo incluir apenas regras relativas à manipulação mecâ
nica de símbolos. Qualquer regra que ultrapasse esta simples exigên
cia deixa de pertencer à lógica. Assim, uma regra baseada no signifi
cado dos símbolos envolvidos deixará de ser puramente sintática,
devendo ser descartada; uma regra baseada na existência de objetos no
mundo, como acontece com o axioma da infinidade, também estará
fadada ao mesmo destino. Era preciso, pois, encontrar não apenas uma
forma alternativa de construir de maneira puramente sintática a série
dos números, mas também uma nova concepção das relações entre a
lógica e a matemática, já que o programa logicista se apresentava
bastante problemático.
As questões acima fervilhavam na mente de Wittgenstein quando
ele se alistou como voluntário. Só elas já bastariam para motivar uma
investigação vigorosa sobre a natureza da linguagem. Todavia, essas
questões foram agravadas pelo confronto com o autor cujas idéias
estão em franco conflito com a maior parte das que foram apresenta
das até agora nesta seção: Fritz Mauthner. Já observamos que, para
doxalmente, não há referências a ele nos escritos pré-tractatianos.
Comentamos também que o nome de Mauthner só é mencionado no
próprio Tractatus e, mesmo assim, uma única vez, e de forma .nega
tiva: a filosofia é crítica da linguagem, mas não no sentido de Mauthner
1 35
Iniciação ao silêncio
5. Esta tese parece ter sido adotada, com as devidas adaptações, pelo Wittgenstein
do Tractatus. A ela liga-se a critica de Mauthner à metafisica: para ele, os conceitos
desta possuem extensão máxima e compreensão mínima e são, portanto, completa
mente vazios, desprovidos de sentido. Esta outra tese também parece ter calado fundo
em Wittgenstein, que possivelmente adota uma variante dela em sua definição dos
' conceitos formais ' .
1 36
O ponto de partida da argumentação no Tra cta tus
1 37
Iniciação ao silêncio
6. Daí a referência que o Tractatus faz a Russell no mesmo aforisma que trata
de Mauthner e da crítica da linguagem. Ali, afinna-se que o mérito do lógico inglês
é justamente ter mostrado que a fonna lógica real da proposição pode não ser a sua
fonna aparente (Wittgenstein 1 922: 4.003 1 ; ver também Weiler 1 958: 83).
1 38
O ponto de partida da argumentação no Tractatus
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Iniciação ao silêncio
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2 ª PARTE
filosofia do TRACTATUS
;
A CRITICA TRACTATIANA
DA LINGUAGEM
1 - Observações preliminares
143
Iniciação ao silêncio
1 45
Iniciação ao silêncio
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Iniciação ao silêncio
148
A crítica tractatiana da linguagem
. ... . . . .. ...
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.
.. ... .. .. ... ... ... ... ... .. ... .. .. ... ... ... .. .. .. ... ... ... .. ... ... .. .. . ...... . .. .. .. .. .. . .. .. .. .. .. .. . .. .. . .. .. . .. . .... . . . ....... . . . . .. ...... .. .......
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. . .......... . . . . . . . . . .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. . . ..... . ..... . . . . .... . .... .. ..... . . ....
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·····················································································
5. A partir desse momento, sempre que nos referirmos a dada proposição esta
remos usando a sentença declarativa que a expressa. Mais adiante, no detalhamento
da lógica do Tractatus, explicaremos em que consiste exatamente a proposição e qual
a sua relação.com a sentença declarativa que a expressa. Este problema fica mais ou
menos diluído na versão alemã porque a palavra ' Satz ' é ambígua, significando, ao
mesmo tempo, ' sentença' e 'proposição' .
1 49
Iniciação ao silêncio
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A crítica tractatlana da linguagem
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Iniciação ao silêncio
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9. Nas Investigações (1953: 1, 60), Wittgenstein faz uma crítica a essa posição
tractatiana. Para tanto, ele usa éomo exemplo a proposição 'minha vassoura está no
canto', cuja "análise completa" equivaleria a 'o cabo da vassoura está no canto e a
escova da vassoura está no canto e a escova está fixada ao cabo ' . Embora esse
exemplo seja bem mais grosseiro que aquele que acabamos de dar, o espírito dos dois
é exatamente o mesmo.·
152
A crítica tractatiana da linguagem
10. Por exemplo, para descrever um ponto da foto cuja cor envolvesse apenas
a quantidade '2' para o vermelho, sua descrição completa deveria ser '200' e não
apenas '2'.
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Iniciação ao silêncio
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A crítica tractatiana da linguagem
155
Iniciação ao silêncio
13. Embora por razões diferentes, Wittgenstein também afirma que não pode
mos sequer perguntar se existem proposições atômicas com a forma sujeito-predicado
(1922: 4.1274). Ver, a este respeito, o capítulo que trata do estatuto argumentativo das
proposições do Tractatus.
14. Outra divergência está no fato de que os signos simples tractatianos não são
ambíguos e devem ser todos diferentes entre si, ao passo que os trinta signos simples
da linguagem da foto envolvem repetições de algarismos, como, por exemplo, '222'.
Aqui, embora o algarismo seja o mesmo, é sua posição que determina a diferença de
um signo para outro. O primeiro '2' é o nome de uma tonalidade de vermelho; o
segundo, de uma tonalidade de amarelo; o terceiro, de uma tonalidade de azul.
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A crítica tractatiana da linguagem
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Iniciação ao silêncio
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A crítica tractatiana da linguagem
159
-
I
OI
Proposição Atômica +----+ (nível fático) 111 • Ponto Colorido
Q
§•
l:l
o
!!!.
Relação
Projetiva (RP) �
o
y Y'
RP
RP
X X'
Nesta figura, ' V2 ' , ' M5 ' e ' A7 ' representam, respectivamente, os
objetos simples ' vermelho tonalidade 2 ' , ' amarelo tonalidade 5 ' e ' azul
tonalidade 7 ' . Temos aqui dois sistemas de coordenadas colocados em
relação projetiva um com o outro. Em cada um deles, distinguem-se
o nível fático, que corresponde ao nível dos "pontos" descritos pelos
respectivos sistemas (proposições atômicas, no sistema 'S 1 ' e fatos
atômicos, no sistema ' S2 ' ) , e o nível transcendental, que corresponde
ao nível das coordenadas destes "pontos". Assim, entendendo 'figura
ção ' ( ' Bild ' ) no sentido de 'modelo ' , podemos dizer com Wittgenstein
que a cada objeto deve corresponder um nome na figuração ( 1 922:
2. 1 3) . Cada nome na figuração substitui dado objeto (1 922: 2. 1 3 1 ) . Os
elementos da figuração estão relacionados entre si de um modo deter
minado ( 1 922: 2. 1 4) . O fato de deles estarem assim relacionados re
presenta o modo determinado pelo qual os objetos estão relaciona
dos entre si ( 1 922: 2. 1 5). O modo pelo qual os nomes estão relacio
nados constitui a estrutura da figuração. Já a possibilidade dessa estru
tura constitui a forma da afiguração (idem). Esta última consiste na
possibilidade de que os objetos estejam uns para os outros no fato
atômico assim como os nomes estão entre si na figuração ( 1 922: 2. 1 5 1 ) .
Isso significa que a figuração possui também uma relação afiguradora
(ou projetiva) que consiste nas coordenações entre os nomes e os
objetos correspondentes. Essas coordenações funcionam como se fos
sem as "antenas" dos nomes, por meio das quais a figuração "toca" a
realidade ( 1 922: 2. 1 5 1 3- 1 5 1 5). A proposição '237 ' de nosso exemplo,
como fato, descreve outro fato (o ponto colorido) porque possui algo
em comum com ele: eles são descritos por sistemas isomórficos . É por
isso que Wittgenstein afirma que deve haver algo em comum entre a
figuração e o afigurado para que uma possa representar o outro ( 1 922:
2. 1 6 1 ) .
Em quarto lugar, o sentido da figuração é dado pela combinação
dos dois aspectos fundamentais anteriormente mencionados: a confi
guração dos nomes mais a relação projetiva. Assim, a figuração ' 237 '
exprime um sentido porque consiste numa configuração determinada
dos nomes ' 2 ' , ' 3 ' e ' 7 ', que se encontram numa relação projetiva com
os respectivos objetos 'vermelho grau 2 ' , 'amarelo grau 3' e ' azul grau
7 ' . Somos capazes de reconhecer, no interior da própria figuração, o
fato que ela afigura. Isso autoriza Wittgenstein a dizer que a figuração
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Iniciação ao silêncio
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A crítica tractatiana da linguagem
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Iniciação ao silêncio
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A crítica tractatiana da linguagem
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Iniciação ao silêncio
r
ponto (nome)
r
(proposição sem sentido)
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A crítica tractatiana da linguagem
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Iniciação ao silêncio
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Iniciação ao sllênclo
sição para que, a partir dela, se construa outra ( 1 922: 5 .23). E acres
centa:
"A operação só pode intervir onde uma proposição resulta
de outra de maneira logicamente significativa. Portanto, ali
onde começa a construção lógica. da proposição.
As funções de verdade das proposições elementares são re
sultados de operações que têm as proposições elementares
como bases. (Chamo tais operações de operações de verda
de.)
O sentido de uma função de verdade de 'p' é uma função do
sentido de 'p' .
Negação, adição lógica, multiplicação lógica etc. são ope
rações.
(A negação inverte o sentido da proposição.)" ( 1 922: 5 .233-
-5 .2341 ).
Para explicar isso, suponhamos duas proposições atômicas .
Embora não conheçamos suas respectivas formas lógicas, pode
mos pressupô-las como dadas e representá-las como átomos de
sentido pelas letras ' p ' e ' q ' . Nesta medida, elas são proposições
autênticas que descrevem fatos possíveis; são, pois, bipolares .
Tomemos então a negação de uma delas , por exemplo, '-p ' . Qual
a função da operação lógica representada por ' - ' ? Sabemos que,
como propos ição atômica, ' p ' já tem seu sentido completamente
determ inado. A operação de negação é apl icada a ' p ' de tal modo
que, se ' p ' for verdadeira, então ' -p ' será falsa, e vice-versa. Ora,
isso toma o sentido de '-p ' totalmente subsidiário do sentido de
' p ' . Com efeito: a) a operação ' - ' só pode intervir porque ' -p ' é
obtida de maneira logicamente significativa a partir de 'p ' ; b) ' -p '
expressa o resultado d e uma operação que tem a proposição atô
mica ' p ' como base. Tomemos agora a multiplicação lógica das
duas proposições consideradas, ou seja, 'p e q ' . Aqui, o operador
' e ' funciona da seguinte maneira. Uma vez que são proposições
atômicas, ' p ' e ' q ' já têm seus sentidos completamente determina
dos e são, portanto, bipolares . Em v irtude disso, quando reunidas ,
elas admitem a priori as quatro seguintes combinações possíveis
de seus respectivos valores de verdade:
1 70
A crítica tractatiana da linguagem
p q
V V
V F
F V
F F
p q p&q
V V V
V F F
F V F
F F F
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Iniciação ao sllênclo
li
p -p p v -p p & -p
V F V F
F V V F
Como a base é formada apenas pela proposição ' p ' , que é bipolar,
as combinações possíveis de valores de verdade, expressas pela coluna
à esquerda do traço duplo, são apenas duas. À direita do traço duplo,
' -p ' , 'p v -p' e 'p e -p ' expressam operações lógicas efetuadas sobre
1 72
A crítica tractatiana da linguagem
VI - Observações fi nais
23. Nas palavras de Wittgenstein: "Nada sei, por exemplo, a respeito do tempo,
quando sei que chove ou não chove" (1922: 4.461).
24. Para o caso das proposições da ficção envolvendo metáforas, ver nota l
deste capítulo.
1 73
Iniciação ao silêncio
1 74
�
A CRITICA DA LINGUAGEM
E SEUS R EFL EXOS SOBRE
A ESTRUT URA DO MUNDO
1 - Observações preliminares
1 75
Iniciação ao silêncio
1 . O ' estado de coisas ' é uma ' ligação de objetos ' ( 1 922: 2.0 1 ) , os quais sabe
mos que são simples. Nesse sentido, o ' estado de coisas ' designa qualquer fato atô
mico, existente ou não.
1 76
A crítica da linguagem e seus reflexos sobre a estrutura do mundo
2. Este fato pode ser inferido com base na comparação de todas as ocorrências da
palavra ' situação' no Tractatus (cf. 1 922: 2.0 1 2 1 ; 2.0 1 4; 2. 1 1 ; 2.202-203; 3 .02; 3 . 1 1 ;
3 . 1 44; 3 .2 1 ; 4.02 1 ; 4.03; 4.03 1 -032; 4.04; 4. 1 24- 1 25; 4.462; 4.466; 5 . 1 35- 1 36; 5 .525).
3. Daqui se depreende que, a rigor, não se deve opor a 'linguagem ' ao ' mun
do ' , como o fazem muitos comentaristas do Tractatus. Essa oposição só é possível
quando se entende ' mundo' no sentido não-tractatiano de 'realidade' . Embora seja
conveniente estar sempre atento à terminologia, esta é apenas uma pequena impre
cisão, um delito menor que, por vezes, nem mesmo nós conseguiremos evitar, jã que
o uso filosófico tradicional da palavra ' mundo' permite entendê-la, por vezes, como
sinônimo de 'realidade' .
4 . A justificação desta afirmativa serã dada n a seção III deste capítulo.
5. Assim, Wittgenstein utiliza a palavra 'fato' de tal modo que ela pode aplicar
-se a fatos atômicos ou a fatos complexos (cf., por exemplo, 1 922: 1 . 1 - 1 .2; 2; 2.034;
2.06; 2. 1 ; 2. 1 4 1 ; 2. 1 6; 3; 3 . 1 4; 3. 1 42- 1 43; 4.0 16; etc.).
177
Iniciação ao silêncio
6. As razões pelas quais ele assim agiu, contudo, serão explicadas mais adiante,
no capítulo 1 0, que trata da estratégia argumentativa do Tractatus.
1 78
A crítica da linguagem e seus reflexos sobre a estrutura do mundo
1 79
Iniciação ao silêncio
180
A crítica da llnguagem e seus reflexos sobre a estrutura do mundo
18 1
Iniciação ao silêncio
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A crítica da linguagem e seus reflexos sobre a estrutura do mundo
183
Iniciação ao silêncio
saber, ' 2 ' , ' 3 ' ou '7 ' , não tem significado e ' 237 ' não tem sentido (não
descreve um ponto da foto). Em outras palavras, a proposição ' 237 '
tem sentido somente se a proposição ( 1 2) for verdadeira. Isso nos
permite concluir que, se a linguagem não tivesse "substância", o fato
de uma proposição ter sentido dependeria da verdade de outra propo
sição.
Do ponto de vista da crítica da linguagem, essa conclusão é
impalatável, pois está em contradição com todas as propriedades do
signo proposicional até agora apresentadas. Com efeito, se o sentido
da proposição ' 237' depende da verdade de ( 1 2), temos de perguntar
agora o que faz com que a própria ( 1 2) tenha um sentido determinado.
A análise tractatiana exige que ela também seja redutível a configura
ções de signos simples. Por exemplo, as expressões 'a tonalidade 2 da
cor vermelha' , em (9), 'a tonalidade 3 da cor amarela' , em ( 1 0), e ' a
tonalidade 7 d a cor azul ' , em ( 1 1 ), devem ser redutíveis a seus corres
pondentes signos simples. Contudo, se a linguagem não tem "substân
cia", será também necessário fixar os respectivos significados destes
últimos por meio de novas proposições, digamos, ( 1 3), ( 1 4) e ( 1 5),
cuja conjunção, ( 1 3) e ( 1 4) e ( 1 5), seria representada por ( 1 6) . Nesse
caso, o sentido de ( 1 2), que é a conjunção de (9) , ( 1 0) e ( 1 1 ), depen
derá do sentido de ( 1 6) . Essa nova proposição também deverá ter um
sentido determinado e ser redutível aos correspondentes signos sim
ples, os quais deverão ter seus significados fixados a partir de novas
proposições . E assim indefinidamente. Portanto, se o significado dos
signos simples não for fixado definitivamente em algum ponto, caire
mos num regresso ad infinitum e não poderemos descrever o mundo
mediante proposição alguma.
Desse modo, a condição transcendental para que dada proposição
tenha sentido determinado está não apenas em que a análise deva
terminar nos signos simples, mas também em que tais signos simples
possuam, por si próprios, independentemente de qualquer outra expressão
lingüística, significados inequivocamente fixados. O postulado trans
cendental do Tractatus exige que cada signo simples designe imediata
mente um objeto simples . Cada signo simples deve estar necessaria
mente em relação projetiva com seu significado (o correspondente
objeto simples). Segundo a Teoria Pictórica, a proposição possui sen-
1 84
A crítica da linguagem e seus reflexos sobre a estrutura do mundo
185
Iniciação ao silêncio
Do que foi dito acima, podemos extrair uma das mais paradoxais
conclusões do Tractatus: o mundo é a totalidade dos fatos, não das
coisas. Realmente, é razoável supor que a filosofia tractatiana seja
compatível com a seguinte paráfrase do aforisma 3.25 , já citado: "um
fato do mundo tem uma e somente uma análise completa". Além
disso, esta análise deve acabar em algum lugar. Para determinar onde
estaria seu final, podemos agora parafrasear, como segue, o aforisma
4.22 1 : "é óbvio que devemos, na análise dos fatos do mundo, chegar
a fatos elementares, que consistem em objetos simples em ligação
imediata". Conforme já foi explicado, a unidade mínima do mundo é
o fato atômico, fora do qual os objetos simples não existem . Para
deixar o subnível transcendental da mera "subsistência" e alcançar o
nível da existência dos fatos do mundo, o objeto simples deve entrar
em combinação com outros, produzindo um fato atômico. Ora, isso
significa que, a rigor e contrariamente a toda a tradição filosófica
anterior ao Tractatus, não há objetos no mundo. A análise dos fatos
complexos só leva a outros fatos, ou seja, os elementares. Cada uma
das coisas do mundo, tais como este livro, aquela porta, essa pessoa,
186
A crítica da linguagem e seus reflexos sobre a estrutura do mundo
187
Iniciação ao silêncio
da, aquela esconde de algum modo o que essa mostra com clareza.
Aceitando este fato, Wittgenstein afirma que
" (. . . ) a linguagem disfarça os pensamentos. E, na verdade,
de modo tal que não se pode inferir, da forma exterior da
roupa, a forma do pensamento vestido, porque a forma
exterior da roupa foi projetada com um propósito comple
tamente diferente daquele de deixar conhecer a forma do
corpo" ( 1 922: 4.002).
E é justamente a distância que existe entre a proposição comple
xa da nossa linguagem e sua forma completamente analisada que o
leva a completar:
"As convenções tácitas para a compreensão da linguagem
corrente são enormemente complicadas" (idem).
Somente quando lidas em conformidade com o espírito do pos
tulado transcendental é que essas palavras adquirem seu pleno signi
ficado.
IV - Observações fi nais
1 88
A crítica da linguagem e seus reflexos sobre a estrutura do mundo
Por causa disso, jamais teremos acesso direto aos signos simples e, a
fortiori, a quaisquer combinações deles (proposições atômicas). Mes
mo assim, sabemos que eles têm de existir. Como coordenadas
transcendentais dos fatos elementares, os signos simples são indivisíveis
e seu conjunto constitui a "substância" da linguagem, a base perma
nente e imutável a partir da qual se constroem todas as proposições
possíveis, com as quais são descritas as situações mundanas .
A partir do terceiro princípio, Wittgenstein conclui que cada sig
no simples deve designar um objeto simples . Este é indivisível e,
considerado em conjunto com os demais objetos simples, constitui a
substância do mundo, a base permanente e imutável a partir da qual
se constroem os fatos atômicos ou estados de coisas. Os objetos sim
ples não "existem" no nível dos fatos, mas "subsistem" como condi
ções de possibilidade deles . Nesse sentido, cada objeto simples cons
titui uma coordenada transcendental, devendo possuir uma forma ló
gica tal que todas as suas possíveis combinações com outros objetos
já estejam definidas a priori. Assim, se conhecêssemos todos os ob
jetos simples, seríamos capazes de conhecer também todos os estados
de coisas que seria possível formar com eles. Tais estados de coisas
são atômicos e independentes entre si, visto que correspondem às
unidades mínimas obtidas pela análise do mundo. O conjunto formado
por todos os estados de coisas constitui a realidade. Subconjuntos da
realidade constituem situações. O mundo constitui um subconjunto
especial da realidade: aquele formado pelos estados de coisas existen
tes . As situações do mundo são fatos complexos que se reduzem, pela
análise, a articulações de fatos atômicos. Isso permite concluir que,
assim como a linguagem é a totalidade das proposições, o mundo é a
totalidade dos fatos. Nessa perspectiva, a explicação do mundo se
reduz à explicação dos fatos que o compõem.
O paralelismo entre linguagem e mundo pode, portanto, ser ex
presso pelas seguintes descrições simétricas. A linguagem é a totalida
de das proposições, aí incluídas as verdadeiras e as falsas; a realidade
é a totalidade dos estados de coisas , aí incluídos os existentes e os
não-existentes ou meramente possíveis . A ciência natural é a totalida
de das proposições verdadeiras; o mundo é a totalidade dos estados de
coisas existentes ou fatos. Uma proposição complexa tem sentido
porque pode ser reduzida a uma combinação lógica de proposições
189
Iniciação ao silêncio
190
, A
1 - Observações preliminares
19 1
Iniciação ao silêncio
192
A lógica como essência do mundo
193
Iniciação ao silêncio
195
Iniciação ao silêncio
196
A lógica como essência do mundo
dos (trinta). Na verdade, o número dos objetos autênticos não pode ser
estabelecido, pois Wittgenstein afirma claramente que não podemos
especificar a priori as proposições elementares que são constituídas
por meio deles ( 1 922: 5 .557 1 ).
Passemos agora à análise da estrutura das proposições de nossa
linguagem. Sabemos que elas se reduzem, em última instância, a ar
ticulações de proposições atômicas. Cada proposição atômica, por sua
vez, se reduz a uma combinação de signos simples ou nomes. Nesse
caso, dado o paralelismo entre a linguagem e a realidade, vemos que
todas as propriedades válidas para os objetos simples devem ser tam
bém válidas para os nomes. Assim, podemos dizer que faz parte da
essência do nome o ser parte constituinte de uma proposição atômica.
Imaginemos que ele pudesse existir por si só, de maneira independen
te, só posteriormente acoplando-se a outros para gerar uma proposição
atômica. Poderíamos dizer que isso seria praticamente obra do acaso.
Se o nome pode ser parte constituinte da proposição atômica, isso já
deve estar contido de antemão no próprio nome, deve fazer parte de
sua essência. Desse modo, tudo o que caracteriza o nome, ou seja,
todas as suas possibilidades de ligação com outros, já está contido nele
a priori. A possibilidade de ligação com outros nomes constitui o que
197
Iniciação ao silêncio
198
A lógica como essência do mundo
p q
V V
V F
F V
F F
p q r
V V V
V V F
V F V
V F F
F V V
F V F
F F V
F F F
199
Iniciação ao silêncio
Como se pode ver nos dois casos considerados, o número ' 2 '
define a s duas possibilidades que a bipolaridade d a proposição estabe
lece para a realidade: verdadeira ou falsa, sim ou não. Jâ o total de
combinações de valores de verdade para duas proposições foi obtido
elevando -se este número ' 2 ' à potência ' 2 ' ; o total para três proposi
ções foi obtido elevando-se ' 2 ' à potência '3 '. Isso permite a seguinte
generalização: se tivéssemos quatro proposições, o total de combina
ções possíveis seria 24; se tivéssemos cinco proposições, o total seria
25; e assim sucessivamente. Generalizando ainda mais, podemos dizer
que para n proposições atômicas o número total de combinações de
seus valores de verdade serâ 2". O importante a ser observado aqui é
que o número dessas combinações possíveis jâ estâ determinado a
priori em virtude da bipolaridade das proposições envolvidas.
As coisas, porém, não terminam aí. Uma vez estabelecidas todas
as combinações de valores de verdade das proposições atômicas, é
também possível construir operações lógicas ou funções cujos valores
de verdade dependem dessas combinações. Suponhamos que a reali
dade se reduza a uma única proposição atômica, a saber, ' p ' . O núme
ro de combinações possíveis de valores de verdade de 'p' é 21 2: =
p
V
F
As funções de valores de verdade que podem ser construídas a
partir de 'p' são as seguintes:
li
p 1 2 3 4
V V V F F
F V F V F
A função ' 1 ' corresponde a uma tautologia associada a ' p ' , como,
por exemplo, 'p => p ' ; a função '2' corresponde à própria proposição
' p ' ; a função ' 3 ' , à negação de ' p ' ; a função ' 4 ' , a uma contradição
associada a ' p ' , como, por exemplo, 'p e -p ' . Para saber quantas são
estas funções, eleva-se o número de combinações de valores de ver
dade de ' p ' , ou seja, ' 2 ' , à potência ' 2 ' (que representa o número de
200
A lógica como essência do mundo
p q 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16
V V V F V V V F F F V V V F F F V F
V F V V F V V F V V F F V F F V F F
F V V V V F V V F V F V F F V F F F
F F V V V V F V V F V F F V F F F F
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Iniciação ao silêncio
202
A lógica como essência do mundo
203
Iniciação ao silêncio
na como sua base. Além disso, o resultado de uma operação pode ser
a base para uma nova aplicação da operação ( 1 922: 5 .25 1 ). Desse
modo, a partir da base ' p ' , obtemos '-p ' ; a partir de '-p ' , construímos
· --p ' ; de ·--p ' , temos ·---p ' ; e assim sucessivamente. Por causa
disso, uma operação pode cancelar o efeito de outra, como acontece
em ' --p ' , que equivale a 'p' ( 1 922: 5 .25 3-254). Isso nos permite
considerar a tabela da p. 20 1 como resultante da efetuação de uma
série de operações sobre as bases representadas pelas proposições
atômicas ' p ' e ' q ' . Do ponto de vista que nos interessa, isso significa
que qualquer proposição, seja ela simples ou complexa, pode ser con
siderada o resultado de operações de verdade com proposições atômi
cas ( 1 922: 5 .3). Nessa perspectiva, cada uma das dezesseis colunas da
tabela da p. 20 1 dá os valores de verdade de dada proposição comple
xa que foi construída mediante certa operação lógica aplicada às pro
posições ' p ' e 'q' . Ora, se isso é verdade, o sentido de 'p' e o de 'q'
constituem as bases fundamentais para a construção do sentido de
todas as proposições complexas que podem ser obtidas a partir de
ambas. O resto nada mais é que efetuação de operações lógicas sobre
' p ' e ' q ' . Assim, por exemplo, os sentidos de 'p e p ' , 'p v p ' , 'p �
p ' , ou até mesmo '-p ' 2 são funções do sentido de 'p' . Os sentidos de
todas estas funções de verdade somente podem ser fixados quando o
sentido de ' p ' já está determinado3•
As operações lógicas não estabelecem novas relações projetivas,
elas apenas combinam as relações projetivas primitivas estabeleci
das pelas proposições atômicas . Em virtude disso, essas operações
nada designam. Como elas correspondem às conectivas 'não ', ' e ' ,
' ou ' , ' se-então ' etc . , o u seja, às ' constantes lógicas ' d e Frege e
Russell, Wittgenstein formula esta conclusão paradoxal da seguinte
maneira:
"( . . . ) a possibilidade da proposição repousa sobre o princí
pio da substituição de objetos por sinais.
2 04
A lógica como essência do mundo
205
Iniciação ao silêncio
206
A lógica como essência do mundo
p q p l q
V V F
V F V
F V V
F F V
Como se pode ver, 'p 1 q' equivale a '-(p e q) ' 5 • O aspecto mais
importante da conectiva ' I ' , porém, é que, quando aplicada apenas a
'p' , equivale a '-p ' 6 • Graças a isso, podemos expressar todas as de
mais conectivas da tabela mencionada apenas por intermédio de ' I ' . As
correspondências são as seguintes: '-p ' equivale a 'p 1 p ' ; ' p ' , a
' (p 1 p) 1 (p 1 p) ' (ou '--p'); 'p e q ' , a ' (p 1 q) 1 (p 1 q) ' (ou '-(p 1 q) ');
' p v q ' , a ' [(p 1 p) 1 (q 1 q)] 1 [(p 1 p) 1 (q 1 q)) ' (ou '-(-p e -q) ');
' p => q ' , a ' [p 1 (q 1 q)] 1 [p 1 (q 1 q)) ' (ou '-(p e -q) '); e assim
sucessivamente. Ora, suponhamos que o conjunto de todas as propo
sições atômicas possíveis seja formado apenas pelas quatro seguintes:
' '
p , ' q ' , 'r' e ' s ' . Designemos esse conjunto como ' K ' . Nesse caso,
qualquer proposição complexa pode ser formada selecionando-se al
gumas das proposições de K (isto é, um subconjunto de K) e combi
nando-as por meio de ' I ' . Selecionemos, por exemplo, 'p' e ' q ' . Para
este subconjunto, é possível formar, entre outras, as seguintes propo
sições complexas:
'p 1 q ' ;
' (p 1 q ) 1 ( p 1 q) ' ;
' [(p 1 q) 1 (p 1 q)] 1 [(p 1 q) 1 (p 1 q)) ' ;
5 . Na tabela das dezesseis funções, ' p & q ' é a de número 1 5 , e sua negação,
' -(p & q) ' , a de número 2.
6. 'p 1 p' só é verdadeira quando as duas proposições envolvidas são falsas .
Neste caso, quando 'p' é falsa, ' p 1 p' é verdadeira, e, quando 'p' é verdadeira, p 1 p'
é falsa. Desse modo, 'p 1 p' equivale a p '- ' .
207
'p 1 (q 1 q) ' ;
' [p 1 (q 1 q)] 1 [p 1 (q 1 q)] ' ;
' (p 1 p) 1 q ' ;
' [ (p 1 p) 1 q] 1 [ (p 1 p) 1 q] ' ;
etc.
Basta, portanto, aplicar, reiteradamente e de todas as formas
possíveis, a operação ' I ' às proposições atômicas do subconjunto.
Variando o subconjunto selecionado, variam também as proposições
complexas formadas. O mais importante, porém, é o fato de que a
aplicação reiterada da operação a todos os subconjuntos de K é capaz
de gerar TODAS as proposições complexas possíveis. Estas últimas se
revelam claramente como funções de valores de verdade das proposições
atômicas que constituem K. Esse processo gerativo constitui o que
Wittgenstein chama de "forma geral da proposição".
Em 1 9 1 3 , o lógico Sheffer descobriu que todas as dezesseis fun
ções lógicas binárias poderiam ser representadas pela incompatibilida
de ( ' p 1 q') ou pela rejeição ('nem p, nem q' ou '-p e -q ') ( 1 9 1 3 : 48 1 -
-488). É esta idéia que Wittgenstein aproveita para construir no
Tractatus o conceito de forma geral da proposição. O parágrafo ante
rior ilustra como isso pode ser feito pela incompatibilidade, que é mais
tratável por não envolver a negação. Em vez de trabalhar com esta
conectiva, Wittgenstein opta pela rejeição. Assim, se voltarmos ao
subconjunto de K formado por 'p' e 'q' e aplicarmos reiteradamente
a operação de rejeição, veremos que algumas das expressões obtidas
assumem a seguinte forma:
'-p e -p";
'-q e -q";
'-p e -q ' ;
'-(-p e -p) e -(-q e -q) ' ;
'-(-p e -q) e -(-p e -q) ' ;
etc.
Aqui também, como no caso anterior, é possível construir TO
DAS as proposições possíveis pela aplicação reiterada da rejeição. É
por isso que Wittgenstein define a forma geral da proposição (ou da
função de verdade) como [p , �. N(� ] ( 1 922: 6). Nesta fórmula, 'p'
representa o conjunto formado por TODAS as proposições atômicas;
208
A lógica como essência do mundo
'l;' ,
um subconjunto qualquer de proposições atômicas selecionadas
em 'p'; 'N(�', a aplicação da operação de rejeição às proposições do
subconjunto selecionado. A fórmula simplesmente resume o processo
geral pelo qual pode ser produzida qualquer proposição complexa a
partir da efetuação reiterada da mesma operação lógica sobre propo
sições atômicas, processo este que ilustra com perfeição a maneira
pela qual a lógica constitui a lei estruturante ou essência do mundo.
Além disso, o processo deixa claro também que cada proposição com
plexa é uma função dos valores de verdade das proposições atômicas
que a constituem.
Até agora, explicamos como é possível obter proposições com
plexas a partir da efetuação reiterada de operações lógicas sobre as
elementares. As proposições complexas assim obtidas não esgotam,
porém, o domínio a ser explicado. O que ocorre com as proposições
quantificadas, como, por exemplo, ' (x) Fx ' e ' (Ex) Gx ' , que também
são complexas e não parecem ter sido obtidas pelas operações lógicas
consideradas? Para entender isso, é preciso levar em conta dois aspec
tos fundamentais destas proposições.
O primeiro está expresso no aforisma abaixo:
"Separo o conceito 'todo ' da função de verdade.
Frege e Russell introduziram a generalidade em conexão
com o produto lógico ou a soma lógica. Assim, tornou-se
difícil entender as proposições '(Ex) Fx' e '(x) Fx' , em que
estão encerradas ambas as idéias" ( 1 922: 5 .52 1 ) .
Wittgenstein associa o conceito 'todo ' a 'protótipos lógicos ' . Desse
ponto de vista, as proposições quantificadas funcionam como 'protó
tipos lógicos ' ( 1 922: 5 .522). Suponhamos uma proposição como 'João
dorme' . Transformemos agora o argumento 'João ' na variável ' x ' .
Como resultado, obteremos 'x dorme' , que pode ser interpretada como
uma 'variável proposicional ' ( 1 922: 3 .3 1 4). Nesse caso, 'x dorme'
especifica uma classe de proposições, das quais 'Maria dorme' , 'José
dorme' , 'João dorme' etc. são elementos. Aqui, contudo, a classe
especificada ainda depende do significado convencional da expressão
' dorme ' . Se a transformarmos também em uma variável, a saber 'Yx ' ,
ainda obteremos urp.a variável proposicional que determina outra elas-
209
Iniciação ao silêncio
2 10
A lógica como essência do mundo
7. Até este ponto minha interpretação coincide com a de Russell em sua "In
trodução" ao Tractatus. Ver também Fogelin ( 1 976: 57).
21 1
Iniciação ao silêncio
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A lógica como essência do mundo
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Iniciação ao silêncio
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A lógica como essência do mundo
10. Coisa radicalmente diferente ocorre com ' (x) (Tx � Tx) ' , por exemplo. A
verdade dessa proposição pode ser reconhecida pela mera inspeção dos simbolos
envolvidos.
215
Iniciação ao silêncio
(Tx � Gx) ' é apenas casual, tendo sido obtida pela aplicação do
princípio de indução, que não é uma lei lógica ( 1 922: 6.3 1 ). Quando
dizemos que o sol se levantará amanhã, estamos formulando apenas
uma hipótese ( 1 922: 6.363-6.363 1 1 ) ; quando dizemos que toda tilápia
possui guelras, estamos formulando uma hipótese semelhante. Sua
verdade ou falsidade pode ser determinada pela consideração de todos os
valores de 'Tx � Gx' , como, por exemplo, 'Ta � Ga', cada um dos
quais se resolve em uma articulação de proposições atômicas, cujo núme
ro, embora muito grande, é finito e pode ser calculado. Nesse caso espe
cífico, é possível, pelo menos em princípio, identificar todas as tilápias
existentes (vivas ou mortas) em determinado momento e verificar se cada
uma delas possui guelras. Isso, evidentemente, não garante que as tilápias
nascidas num momento futuro também tenham guelras, mas a verificação
desse fato também é, em princípio, possível e finita. Como se pode notar,
o apelo aos valores de verdade de todas as proposições elementares
especificadas pelos protótipos lógicos desse tipo é perfeitamente pos
sível, pois os conjuntos envolvidos são finitos e as proposições gene
ralizadas neste nível são apenas casualmente verdadeiras.
Por sua vez, a especificação de uma função 'Fx' pode envolver
uma lei formal. É o que acontece com proposições do tipo ' Fx � Fx ' .
Algumas das correspondentes expressões generalizadas seriam, por
exemplo, ' (x) (Fx � Fx) ' e ' (Ex) (Fx � Fx) ' . Aqui, qualquer argu
mento, como ' a ' , em 'Fa � Fa' , satisfaz essas funções. É verdade que
os conjuntos de proposições envolvidos são infinitos. Mesmo assim,
essas funções são logicamente necessárias e não exigem o apelo a
funções de valores de verdade para determinação de sua verdade ou
falsidade.
Portanto, a descrição por especificação de uma função não traz
qualquer novidade ao problema considerado. Ela envolve ou a enume
ração direta ou a especificação de uma lei formal, cujas explicações já
A verdade de ' (x) (Tx => Px) ' não depende apenas da inspeção dos símbolos envol
vidos, mas também de seu conte6do. Se, mesmo assim, a considerássemos como
necessariamente verdadeira em virtude dos conte6dos envolvidos, estaríamos errados:
"teorias que permitem a uma proposição da lógica aparentar que tem conte6do são
sempre falsas" ( 1 922: 6 1 1 ).
2 16
A lógica cama essência da mundo
foram exibidas na análise das espécies ' l ' e ' 3 ' de descrição. Em todos
os casos considerados, a dificuldade apontada é apenas aparente: quando
a descrição se refere a fatos do mundo, os conjuntos de proposições
elementares envolvidos são finitos e as funções de valores de verdade
podem ser aplicadas; quando os conjuntos dessas proposições são
infinitos, a verdade ou falsidade das expressões formadas é necessária
e depende apenas da consideração dos símbolos implicados.
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Iniciação ao silêncio
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A lógica como essência do mundo
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Iniciação ao silêncio
V - Observações finais
220
A lógica como essência do mundo
rentes para a mesma coisa, é possível um mundo em que todos os estados de coisas
sejam inexistentes e, conseqüentemente, todas as proposições atômicas sejam falsas;
ora, esse mundo significaria a inexistência de tudo; logo, a interpretação é falsa. A
essa objeção responderíamos, em primeiro lugar, que os conceitos de espaço lógico
e realidade são tais que um mundo no qual todos os estados de coisas sejam inexistentes
constitui uma possibilidade que deve ser necessariamente considerada por qualquer
interpretação da filosofia tractatiana. Nesse sentido, um mundo desse tipo deixaria
transparecer a essência lógica em todo o seu esplendor. Em segundo, que tal mundo,
embora constitua uma possibilidade, infelizmente não pode realizar-se, sob pena de
eliminação concomitante do sujeito transcendental e do sentido ético da vida. Com
respeito à eliminação do sujeito transcendental, basta lembrar que, jâ nos Cadernos
de notas, Wittgenstein afirma que precisamos de um apoio para a vontade no mundo,
que a vontade precisa ter um objeto no mundo ( 1 9 1 4- 1 9 1 6: 87). Tudo indica que essa
visão permanece no Tractatus pela metáfora do olho e do campo visual. Assim, se não
houvesse campo visual, também não haveria olho para percebê-lo; se a realidade
fosse constituída apenas de estados de coisas inexistentes, não haveria sujeito
transcendental para perceber o mundo. Com respeito à eliminação do sentido ético da
vida, é suficiente lembrar o aforisma 6.43 2 1 , segundo o qual os fatos pertencem todos
apenas à "tarefa que nos foi atribuída" (' Aufgabe '), não à solução (cf. Wittgenstein
1 922). Um mundo sem fatos não constituiria simultaneamente um apoio e um desafio
para o sujeito transcendental encontrar o sentido da vida pela contemplação beatífica.
Devemos estas reflexões a uma discussão que tivemos em 1 995 com o Prof. Balthazar
Barbosa Filho.
22 1
Iniciação ao silêncio
fatos, mas também todas as combinações possíveis entre eles. Ela trata
de toda a possibilidade ( 1 922: 2.0 1 2 1 ) e, assim, introduz a única for
ma de necessidade que existe no mundo. Nesse sentido ela é anterior
à pergunta 'como? ' , mas não à pergunta ' o quê? ' ( 1 922: 5 .552). En
quanto constitui a essência de tudo o que existe, a lógica é condição
de possibilidade dos fatos e de suas respectivas descrições: ela é
transcendental.
As propriedades acima permitem concluir que qualquer proposi
ção dotada de sentido é ou uma proposição atômica ou uma combi
nação lógica de proposições atômicas com o auxílio de conectivas
lógicas. Em virtude disso, é possível estabelecer a lei geral de forma
ção de qualquer proposição por meio de combinações de proposições
atômicas. Wittgenstein denomina esta lei de 'forma lógica da propo
sição ' e, com base nos resultados de Sheffer, utiliza o operador de
rejeição para mostrar seu funcionamento.
As proposições generalizadas também são reguladas por essa lei.
Embora sejam construídas com base em protótipos lógicos que não
são, em si mesmos, funções de valores de verdade, estas proposições
envolvem dois tipos de generalidade: a lógica e a acidental. No pri
meiro caso, as proposições generalizadas são necessariamente verda
deiras em virtude dos próprios símbolos e não precisam ser traduzidas
em funções de valores de verdade. Quanto às proposições que apre
sentam generalidade acidental, os protótipos segundo os quais elas são
construídas determinam a classe das proposições atômicas das quais
as primeiras são funções de valores de verdade.
As considerações acima mostram que os limites da linguagem, da
realidade e do espaço lógico são os mesmos e sugerem que as três
expressões envolvidas apontem de algum modo para a mesma coisa,
a saber, a lógica como essência de tudo aquilo que é possível .
222
APLICAÇÃO DOS RESULTADOS
�
DA CRITICA DA LINGUAGEM
223
Iniciação ao silêncio
li - A Lógica
224
Aplicação dos resultados da crítica da linguagem
li
p T p&T
V V V
F V F
226
Aplicação dos resultados da crítica da linguagem
Ili - A Matemática 1
227
Iniciação ao silêncio
2. Sem citar a fonte, Monk afirma que Wittgenstein, para desgosto de Russell,
considerava equivocado o projeto de fundamentar a matemática na lógica ( 1 995:
228).
228
Aplicação dos resultados da crítica da linguagem
designado pelo símbolo ' a ' é expressa pelo uso desse símbolo ' a '
todas a s vezes que o objeto fo r mencionado; a diferença entre o s
objetos designados pelos símbolos diferentes ' a ' e ' b ' é expressa
pelo uso respectivo dos mesmos símbolos diferentes todas as vezes
que cada um deles for mencionado. Em vez de escrever ' Fab e a =
b ' , a notação tractatiana escreve ' Faa' ou ' Fbb ' ; em vez de ' Fab e
-(a = b) ' , ' Fab ' ( 1 922: 5 .5 3 1 -532). Não é, pois, em vão que, numa
carta de 1 927 a Ramsey, Wittgenstein defende a tese de que uma
igualdade como 'x = y ' não pode ser substituída por uma função
proposicional (citado por Monk 1 995: 227-228). Se houvesse uma
função ' Fxy ' capaz de substituir 'x = y ' , a notação lógica do Tractatus
estaria diante do seguinte impasse: apesar do simples uso dos sím
bolos diferentes ' x ' e ' y ' mostrar claramente que há dois objetos
diferentes envolvidos, a função ' Fxy ' tentaria o contra-senso de dizer
que tais objetos são idênticos. Já na matemática, o sinal de igualda
de é um constituinte essencial da notação. A ligação de duas expres
sões pelo sinal ' = ' significa que elas são mutuamente substituíveis.
Isso deve ser mostrado na forma lógica dessas expressões ( 1 922:
6.23): é a própria linguagem que fornece à matemática a intuição
necessária para a solução dos problemas matemáticos ( 1 922: 6.233).
Portanto, a notação lógica, tal como concebida no Tractatus, não é
adequada para representar a identidade. Poderíamos até mesmo di
zer que é a impossibilidade de representar a igualdade na notação
lógica que constitui a principal razão pela qual a linguagem mate
mática existe de maneira autônoma.
Segundo, o método lógico por excelência é o modus ponens. Na
verdade, toda proposição da lógica é a forma de uma demonstração,
uma representação simbólica do modus ponens ( 1 922: 6. 1 264) . As
sim, uma proposição da lógica pode sempre ser sua própria demons
tração ( 1 922: 6. 1 265) . Já o método matemático por excelência é a
substituição ( 1 922: 6.24) . As equações matemáticas exprimem o fato
de que duas expressões são mutuamente substituíveis. Desse modo,
evoluímos de uma equação para outra pela substituição das expres
sões equivalentes (ibidem). Embora uma proposição matemática tam
bém possa ser sua própria demonstração ( 1 922: 6.234-6.234 1 ) , o
método de substituição permite que se obtenha uma proposição a
partir de outras.
229
Iniciação ao silêncio
que, quando não é efetuada nenhuma operação sobre ' x ' ('Qºx'), o que
obtemos ainda é ' x ' . A segunda indica que efetuar mais uma vez a
operação sobre ' ü"x ' , isto é, sobre o resultado de aplicar a opera
ção n vezes a ' x ' ( 'Q ' ü"x' ) , equivale a efetuar n + 1 vezes a operação
sobre ' x ' ('Qn + ' x ' ) . Partindo de um signo qualquer ' x ' , obtemos então
a seguinte série pela aplicação reiterada da operação 'Q ' : x, nx, nüx,
QQ.Qx, •.• , ou, o que dá no mesmo, nox, QOQ' x, non1n1x, non1n1n1x, . ..
Isso permite as seguintes definições: O + 1 =1 Def. (aplicar a opera
ção "nenhuma vez" mais uma vez equivale a aplicá-la uma vez), O +
1 + 1 = 2 Def. (aplicar a operação "nenhuma vez" mais uma vez e
mais uma vez equivale a �plicá-la duas vezes), O + 1 + 1 + 1 3 Def. =
(aplicar a operação "nenhuma vez" mais uma vez, mais uma vez e
mais uma vez equivale a aplicá-la três vezes) etc. ( 1 922: 6.02) . Cada
número é obtido de forma puramente lógica a partir do número de
vezes que a operação é aplicada. Em virtude disso, o número é defi
nido como o expoente da operação 'Q' ( 1 922: 6.02 1 ). A forma geral
do número inteiro é dada pela expressão ' [O, x, x + 1 ] ' ( 1 922:
6.03)3• Além disso, em concordância com as observações anterio
res sobre a igualdade, fica claro que, na operação ' x ' da lógica, a
identidade não desempenha qualquer papel; em contrapartida, na
operação 'Q' da matemática, a identidade desempenha um papel fun
damental. Ela faz isso por meio do conceito de igualdade numérica,
definido como a 'forma geral de todas as igualdades numéricas espe
ciais ' ( 1 922: 6.022).
230
Aplicação dos resultados da crítica da linguagem
IV - A Física
23 1
Iniciação ao silêncio
4. Convém lembrar aqui que, se o mundo é o conjunto dos fatos, então não há,
a rigor, objetos. Estes últimos não passam de fatos complexos. O que pretendemos
com essa observação é evitar qualquer confusão motivada pela imprecisão tenninológica
de Wittgenstein neste aforisma.
232
Aplicação dos resultados da crítica da linguagem
233
Iniciação ao silêncio
5. É certo que algumas das leis da mecânica, como a da indução, por exemplo,
não são leis a priori ( 1 922: 6.3 1 ). O processo de indução não possui fundamento
lógico, mas apenas psicológico ( 1 922: 6.363 1 ) . Mesmo assim, nada impede que a lei
da indução e outrns afins sejam utilizadas parn integrar a rede sob a forma de axiomas
a partir dos quais as restantes proposições da mecânica serão deduzidas.
6. Em nossa interpretação, sugerimos que Wittgenstein incorre em outra impre
cisão terminológica aqui . Com efeito, ao tratar da rede, ele afirma que ela nada diz
sobre a superficie, mas que o poder descrevê-la assim a caracteriza. Ao tratar da
mecânica, ele afirma que ela nada diz sobre o mundo, mas que o poder descrevê-la
assim diz (?) algo sobre o mundo. Acreditamos que esta última ocorrência de 'diz'
deveria ser substituída por 'carncteriza ' : esta palavrn recompõe adequadamente a
analogia e estâ mais próxima do que se acha realmente em jogo aqui, a saber, o
'mostrar' a essência.
234
Aplicação dos resultados da crítica da linguagem
V - A Ética
235
Iniciação ao silêncio
236
Aplicação dos resultados da crítica da linguagem
8. Como a vida feliz é também racional, talvez seja possível considerar que, em
última instância, a lógica, a ética e a estética são uma só. Isso conferiria à contem
plação beatífica tractatiana uma dimensão racional que não se encontraria necessaria
mente presente nos demais autores em cujo misticismo Wittgenstein se inspirou. A
questão de saber se ele faz ou não esta contribuição original nos desviaria muito de
nossos objetivos. Por esse motivo, não nos aventuraremos neste terreno.
237
Iniciação ao silêncio
9. Este tipo de análise das "proposições éticas" está apenas sugerido no Tractatus.
A versão mais detalhada, que nos inspirou, pode ser encontrada em Uma conferência
sobre ética (Wittgenstein 1 930).
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Iniciação ao silêncio
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Aplicação dos resultados da crítica da linguagem
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Iniciação ao silêncio
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Aplicação dos resultados da crítica da linguagem
ciência mística é a fonte secreta de todo o amor humano e divino, de todos os valores
éticos. Por meio dela, percebemos que todos somos um, que nosso sofrimento e nossa
felicidade são unos (ib.: 327).
243
Iniciação ao silêncio
solução está em que devemos nos libertar dessa prisão e ver, nos fatos,
apesar deles, a essência dos fatos. O que há de melhor em nós perten
ce à reta vertical. Temos o dever de ultrapassar a barreira da horizontal
para enxergar a infinitude da vertical. Originariamente sujeito trans
cendental, a vontade tem a obrigação ética de levantar o véu represen
tado pela prisão espaço-temporal do mundo dos fatos para intuir, no
âmago desse mesmo mundo, a essência imutável e eterna de toda a
realidade. Nesse sentido, parece que aquilo que ' se mostra' equivale
ao objeto da intuição intelectual (em sentido schopenhaueriano) do
sujeito transcendental.
A intuição mística se dá no ponto de interseção das duas retas,
onde a lógica, entendida como a componente objetiva das condições
transcendentais de possibilidade da realidade (linha horizontal), se funde
com a ética (ou estética) , entendida como a contraparte subjetiva des
sas condições transcendentais (linha vertical) 1 2 • Nesse sentido, ética e
lógica são condições do mundo (Wittgenstein 1 9 1 4- 1 9 1 6: 77), numa
perspectiva que se aproxima de Schopenhauer e, principalmente, de
Weininger' 3•
Retomando à caracterização de Stace, podemos distinguir duas
espécies fundamentais de "experiência" mística. A primeira é a "extro
vertida" (' extroversive ' ) e consiste em olhar para fora, na direção do
mundo, nele encontrando o Uno (ibidem: 3 1 9). O místico "extrover-
1 2. A imagem dos dois eixos ortogonais aqui utilizada encontra eco nas seguin
tes metáforas, utilizadas por Schopenhauer para caracterizar a experiência de estar
"fora" do tempo: "o tempo pode comparar-se a um círculo sem fim que roda sobre
ele mesmo: o semicírculo que vai descendo seria o passado; a metade que sobe, o
futuro. No alto está um ponto indivisível, o ponto de contato com a tangente: é o
presente inextenso" ( 1 8 1 7 : § 54); "o tempo se parece ainda com uma corrente
irresistível, e o presente a um escolho, contra o qual a onda se quebra, mas sem o levar
consigo" (ib.). Em outro momento, Schopenhauer recorre a uma sugestiva metáfora
platônica, segundo a qual o tempo é "a imagem movente da eternidade" (ib.: § 32).
1 3 . Convém lembrar aqui que, para Weininger, "lógica e ética são fundamen
talmente o mesmo, nada mais são do que o dever para consigo mesmo. Elas celebram
sua união pelo serviço mais elevado à verdade, que é obscurecida em um caso pelo
erro e, no outro, pela inverdade. Toda ética é possível apenas pelas leis da lógica e
a lógica nada mais é que o lado ético da lei. Não apenas virtude, mas também intuição
(' insight'), não apenas santidade, mas também sabedoria, são os deveres e tarefas da
humanidade" ( 1 906: 1 59).
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VI - A Metafísica
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3 ª PARTE
� . .
TECNICAS HEURISTICAS
UTILIZADAS NA ELABORAÇÃO
DO TRACTATUS
1 - Observações preliminares
U
ma vez exposta a filosofia tractatiana, estamos agora em condi
ções de passar para a terceira etapa de nosso método e avaliar as
principais técnicas argumentativas utilizadas por Wittgenstein para
expressar sua vivência pessoal. Para iniciar nossa análise argumentativa
do Tractatus, consideraremos as técnicas heurísticas utilizadas na ela
boração dessa obra. Confonne discutido na Introdução, embora Plebe
e Emanuele considerem que a Retórica se caracterize fundamental
mente pela inventividade, acreditamos que a arte de inventar concei
tos, temas e soluções não é apanágio exclusivo da Retórica, mas tam
bém da Filosofia. As técnicas heurísticas estudadas por Plebe e
Emanuele também se encontram nos textos filosóficos e, quanto a
isso, o Tractatus não constitui uma exceção. Ele também envolve a
257
Iniciação ao silêncio
1 . Convém lembrar que a palavra 'modelo' está sendo utilizada aqui no sentido
de Plebe e Emanuele, ou seja, de 'padrão conceituai ' . Trata-se de uma noção bastante
ampla e flexível. Ela não deve ser confundida com o ' modelo ' em sentido hertziano/
boltzmanniano, ou seja, uma 'construção mental' que é, ao mesmo tempo, logicamente
consistente e capaz de permitir previsões relativas aos fatos da natureza. O 'modelo'
.
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4. Ver, a este respeito, nosso artigo sobre Nietzsche já citado (Margutti Pinto
1 994).
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Iniciação ao silêncio
diz sua honestidade intelectual, seu apego pela verdade, tão freqüen
temente citado por aqueles que o conheceram pessoalmente. Para
explicar o que aconteceu, sugerimos a seguinte hipótese. Ao combinar
de maneira original e coerente os modelos anteriormente discutidos,
Wittgenstein obtém uma série de resultados paradoxais, que já estão,
de alguma forma, contidos na nova combinação.
Dentre as principais teses surpreendentes do Tractatus, destacam
-se as relativas à filosofia, ao mundo, à linguagem, à lógica e à ética.
Embora correndo o risco de sermos repetitivos, convém lembrar aqui
algumas dessas teses, com o objetivo de caracterizar o uso da tática do
paradoxo no Tractatus. De qualquer modo, o importante não é a re
petição de teses já consideradas em outros lugares, mas a releitura
delas do ponto de vista do efeito paradoxal produzido.
Assim, a Filosofia é definida como 'crítica da linguagem ' ( 1 922:
4.003 1 ) , mas não constitui um 'corpo de doutrina' (ibidem: 4. 1 1 2). Ela
é, no máximo, uma atividade de ' clarificação lógica dos pensamentos'
(ibidem). Seu resultado não é constituído de proposições que possam
ser articuladas em uma teoria. Na verdade, tal clarificação mostra que
a maior parte dos problemas mais profundos da filosofia tradicional
não são de fato problemas de modo algum (ibidem: 4.003). As formu
lações mais compactas e enfáticas dessa tese paradoxal estão em 6.5 ,
na qual Wittgenstein diz que o enigma não existe, e em 6.52 1 , em que
ele conclui que a solução do problema da vida está no desaparecimen
to desse problema. Ao seguir essa linha de raciocínio, ele obtém o
resultado mais chocante do Tractatus, no que diz respeito à noção de
coerência argumentativa. Ele é levado a concluir que as "proposições"
da obra, ao descreverem as condições de possibilidade de nossa lin
guagem, não podem ser consideradas autênticas: elas envolvem uma
estranha forma de circularidade, pois pretendem descrever as condi
ções de possibilidade de todo descrever. Desrespeitam a lógica da
linguagem e constituem contra-sensos. Mesmo assim, têm alguma uti
lidade no processo de clarificação, pois temos de vencer tais "propo
sições" para ver o mundo de maneira correta.
O mundo é definido como a totalidade dos fatos e não das coisas
(ibidem: 1 . 1 ) . Essa tese se choca com mais de dois mil anos de tra
dição filosófica. O mundo tem sido entendido, desde Tales de Mileto,
2 76
Técnicas heurísticas utilizadas na elaboração do Tractatus
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Iniciação ao silêncio
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Técnicas heurísticas utilizadas na elaboração do Tracta t u s
V - Observações fi nais
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A LINHA GERA L DE
ARGUMENTAÇÃO DO TRACTATUS
1 - Observações preliminares
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A linha geral de argumentação do Tracta tus
1 . Plebe e Ernanuele citam duas divisões análogas dos estilos de discurso. Urna
delas é feita por Platão, no Górgias, que distingue o estilo breve de seus diâlogos
("braquiologia") do estilo extenso de seus adversários sofistas ("rnacrologia"). Essa
divisão é aprimorada por Aristóteles, no terceiro livro da Retórica, que distingue a
'elocução quebrada' da 'elocução concatenada' (Plebe e Ernanuele 1 992: 1 9).
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Iniciação ao silêncio
284
A linha geral de argumentação do Tracta t u s
quando poderia ter utilizado o operador de Sheffer, ' I ' , que é bem
mais intuitivo. Em quarto lugar, as colocações sobre a linguagem e a
lógica são muito mais desenvolvidas que aquelas sobre o sujeito
metafísico, a ética, a estética, Deus e o místico, que correspondem ao
que é realmente importante em nossas vidas . Na verdade, para ser
coerente com sua estratégia argumentativa, que condena a linguagem
ao silêncio sobre tais pontos, Wittgenstein apenas poderia deixá-los
sugeridos, forçando o leitor a buscar a iluminação por si próprio. Em
quinto lugar, o final da obra é, à primeira vista, argumentativamente
insatisfatório. Ao dizer, em 6.54, que as proposições do Tractatus são
contra-sensos que devem ser superados para que o mundo seja visto
corretamente, Wittgenstein deixa o leitor numa posição incongruente,
autofágica, que é resumida no aforisma final: "sobre o que não se
pode falar, deve-se calar". De fato, ainda que recomende ao leitor que
se cale sobre o que não se pode falar, Wittgenstein está, de algum
modo, falando sobre o que não se pode falar, desrespeitando assim
sua própria recomendação. O aforisma 7, embora sintetize toda a
mensagem do Tractatus, envolve autofagia por auto-inclusão e deixa
o leitor numa posição desconfortável, que só é atenuada pelo pré
-requisito estabelecido ainda em 6.54, que funciona como uma espé
cie de promessa de solução da dificuldade: "quem me entende. . . ". Só
quem entende, depois de muito penar, a necessidade da crítica da
linguagem e seu percurso suicida é que será capaz de atingir a
elucidação final.
A melhor confirmação, contudo, de que o estilo do Tractatus é
paratático está na apresentação das teses da obra pelos aforismas nu
merados. De modo geral, o emprego de aforismas é mais freqüente em
textos que tratam de filosofia moral, como acontece, por exemplo,
com os moral istas franceses dos séculos XVII e XVIII, com
Schopenhauer e com Nietzsche. A característica básica de um aforisma
é a apresentação de idéias filosóficas de uma forma sucinta, concen
trada, talvez até mesmo "fechada". O aforisma filosófico busca veicu
lar a verdade de modo mais conciso e compacto que outras formas de
expressão. Assim, cada pensamento expresso pelo aforisma, além de
articular-se de algum modo no interior do sistema de pensamentos a
que se refere, possui uma autonomia que lhe é própria. Ora, o objetivo
do Tractatus não é construir sistematicamente uma doutrina pelo en-
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Iniciação ao silêncio
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A linha geral de argumentação do Tractatus
1º nível: 1 2
2º nível: 1 . 1 1 .2
3º nível: 1 . 1 1 1 .12 1.13 1 .2 1
2. É este fato que permite a ' leitura por pistas ' , que sugeriremos ainda neste
capítulo.
287
Iniciação ao silêncio
todas pertencentes ao 1 º nível): 1 ::::) 2 ::::) 3 ::::) 4 ::::) 5 ::::) 6 ::::) 73•
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A linha geral de argumentação do Tracta t u s
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A linha geral de argumentação do Tracta t u s
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VI - A "Introdução" de Ru ssell
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A linha geral de argumentação do Tracta t u s
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A linha geral de argumentação do Tracta t u s
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Iniciação ao silêncio
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PRINCIPAIS ESQUEMAS
ARGUMENTATIVOS UTILIZADOS
NO TRACTATUS
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Iniciação ao silêncio
pretendemos mostrar é que a maneira pela qual ele faz isso se apre
senta perfeitamente compatível com a estratégia geral que estamos
propondo como base da obra.
Para atingir este objetivo, procederemos da seguinte maneira.
Em primeiro lugar, tentaremos dar uma resposta à pergunta sobre a
perspectiva segundo a qual devem ser entendidos os argumentos do
Tractatus. Em seguida, com base na classificação de Perelman e
Olbrechts-Tyteca, passaremos à análise de alguns dos esquemas
argumentativos utilizados no Tractatus. Em segundo lugar, considera
remos alguns dos ' argumentos quase lógicos ' tractatianos; em tercei
ro, alguns dos argumentos tractatianos ' baseados na estrutura do real ' ;
em quarto, alguns dos argumentos tractatianos que 'fundam a estru
tura do real ' ; em quinto, algumas das ' dissociações de conceitos '
encontradiças no Tractatus. Em sexto lugar, analisaremos como
interagem os argumentos tractatianos para conduzir o leitor à expe
riência que a obra tenta expressar. Em sétimo e último lugar, extrai
remos algumas conclusões que nos permitirão avançar para o capítulo
seguinte.
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Principais esquemas argumentativos utilizados no Tl'acta t u s
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Principais esquemas argumentativos utilizados no Tra cta tus
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Principais esquemas argumentativos utilizados no Tracta t u s
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Principais esquemas argumentativos utilizados no Tracta t u s
8. Esse argumento mostra quão próximas entre si estão as palavras ' mundo'
e ' realidade' . Poderíamos até mesmo dizer que, embora ambas designem a mesma
coisa, ' mundo' é usada predominantemente para destacar o conjunto formado pelos
estados existentes de coisas, enquanto ' realidade ' é usada predominantemente para
destacar o conjunto formado por todos os estados de coisas possíveis (existentes ou
inexistentes).
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Principais esquemas argumentativos utilizados no Tracta t u s
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Principais esquemas argumentativos utilizados no Tracta t u s
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Principais esquemas argumentativos utilizados no Tracta tus
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Iniciação ao silêncio
Olho - (5.633 1 )
1 5 . O restante do aforisma 5 .63 1 foi saltado aqui porque, embora envolva uma
prova de que o sujeito que pensa não existe, fã-lo por meio de um argumento prag
mático, não de uma analogia: se eu escrevesse um livro sobre O Mundo tal como o
Encontro, não poderia falar nele do sujeito.
324
Principais esquemas argumentativos utilizados no Ti'actatus
325
Iniciação ao silêncio
são ' , aplicada ao sujeito, significa, nada mais, nada menos, que ele
não existe no nível dos fatos, apenas subsistindo como condição
transcendental de sua possibilidade. Isso permite compreender a para
doxal afirmação tractatiana de que solipsismo e realismo coincidem:
eles são as duas faces de uma mesma moeda. Por um lado, o sujeito
é a priori, constitui condição transcendental de possibilidade do mun
do (solipsismo); por outro, o sujeito não existe no mundo, o qual nada
mais é que um conjunto de fatos contingentes (realismo). É isso que
permite a conclusão de que o 'eu' filosófico encontra-se numa dimen
são que vai além daquela pertencente ao ' eu ' psicológico 16• A equação
que faz coincidir solipsismo e realismo se justifica porque 'o mundo
é meu mundo ' e recebe sua melhor formulação em 5 .63: "eu sou meu
mundo. (O microcosmos .)".
A analogia olho/campo visual permite outro esclarecimento im
portante na explicação do verdadeiro sentido da ' eternidade ' no
Tractatus:
D) Se por eternidade não se entende a duração temporal infinita,
mas a atemporalidade, então vive eternamente quem vive no presente.
Nossa vida é sem fim, assim como nosso campo visual é sem frontei
ras (6.43 1 1 ). [Inicialmente, pela concepção de eternidade como atem
poralidade, o argumento introduz a idéia de vida eterna como vida no
presente atemporal. O eixo vertical desse presente atemporal é assu
mido como mais importante que o eixo horizontal da duração tempo
ral. O infinito atual do presente absolutamente estático é colocado
acima do infinito potencial da mera duração infinita. Em seguida, com
base na analogia considerada, o argumento acrescenta que, do mesmo
modo que o olho contempla o campo visual sem fronteiras, o sujeito
transcendental contempla a vida sem fim, o mundo sem fim. Associ
ada à ausência de limites temporais na noção de eterno presente,
introduzida no início do argumento, a ausência de limites espaciais
1 6 . Neste ponto, Wittgenstein é muito pouco rigoroso, pois reconhece que "hã
realmente um sentido em que se pode, em filosofia, falar não psicologicamente do eu"
( 1 922: 5.64 1 ) . Ora, toda a filosofia ttactatiana é uma tentativa de mostrar que não hã
um sentido em que se pode falar do "eu" metafisico. Essa afinn ação de Wittgenstein,
portanto, deve ser entendida em sentido froux,o, significando que ' eu ' metafisico
pertence a uma dimensão intuitiva, não discursiva, da realidade.
326
Principais esquemas argumentativos utilizados no Tracta tus
nas relações expressas pelo veículo e pelo tema sugere que a contem
plação envolvida possui uma qualidade infinitamente superior à nossa
mera experiência de mundo. Não é à toa que, mais à frente, Wittgenstein
afirma que a solução do enigma da vida no espaço e no tempo está
fora do espaço e do tempo (ibidem: 6.43 1 2). Além disso, com base em
6.44-45 , segundo os quais o Místico não é como o mundo é, mas que
ele é, tendo a ver com a intuição do mundo sub specie aeterni ou como
totalidade limitada, podemos concluir também que esta contemplação
deve ser entendida como visão da essência eterna do mundo. O tempo
do mundo flui, mas a contemplação da essência, que é racional, bela
e boa, permanece estaticamente imutável.]
O segundo aspecto importante da filosofia tractatiana que
Wittgenstein justifica por uma analogia é a elucidação final que con
duz ao silêncio:
A) Minhas proposições elucidam da seguinte maneira: quem me
entende acaba por reconhecê-las como contra-sensos, após ter escala
do por meio delas - por elas - para além delas. (Deve, por assim
dizer, jogar fora a escada após ter subido por ela.) Deve vencer essas
proposições; e então verá o mundo corretamente (6.54).
A analogia da escada remonta a Sexto Empírico 1 7 • Sua aplicação
está ligada a uma situação argumentativa paradoxal: depois de de
monstrar que não há demonstração, o cético abole o próprio argumen
to que o levou a tal conclusão. Assim como podemos abandonar a
escada depois de nos servirmos dela para subir a um lugar mais ele
vado, podemos abandonar a prova de que não há demonstração depois
que ela tiver cumprido sua função. Em Mauthner, a analogia conserva
o mesmo espírito cético. Para ele, a linguagem deve ser transcendida
para poder ser compreendida. A crítica da linguagem deve destruir seu
objeto passo a passo. Cada degrau da escada deve ser destruído, de
pois que tivermos subido por ele. Mas todo aquele que quiser seguir
32 7
Iniciação ao silêncio
VI - Dissociações de conceitos
328
Principais esquemas argumentativos utilizados no Tracta t u s
329
Iniciação ao silêncio
vista. O ' mostrar' , por sua vez, só pode ser compreendido em relação
ao ' dizer ' , resultando de uma dissociação no- interior deste. Tal
dissociação consiste em separar, pela crítica da linguagem, o conteú
do do 'dizer' das condições de possibilidade do ' dizer' (o 'mostrar ' ) .
Com isso, fica eliminada a aparente incompatibilidade entre a forma
lógica superficial - ou aparente - e a forma lógica profunda - ou
real - do dizer. Mais ainda: o 'mostrar ' permite eliminar a confusão
resultante de tomar a forma lógica superficial como se fosse a profun
da. O ' mostrar' fornece, desse modo, um critério para distinguir, entre
os diversos aspectos do ' dizer ' , aqueles que são válidos e aqueles que
não o são. Nessa perspectiva, o 'mostrar' tractatiano não é simples
mente um dado, mas uma construção a partir da qual se obtém uma
regra que permite hierarquizar os diversos aspectos do 'dizer ' . Assim,
em relação ao ' dizer ' , o 'mostrar' é, ao mesmo tempo, explicativo e
normativo. A dissociação feita pela introdução do 'mostrar' no ' dizer '
permite separar, entre os diversos aspectos do mostrar, aqueles que
são aparentes e aqueles que representam o real .
O par 'dizer/mostrar ' corresponde à variante tractatiana do im
portante par ' aparência/realidade' , que, na opinião de Perelman e
Olbrechts-Tyteca, constitui o protótipo de toda dissociação de concei
tos em filosofia, por causa de seu uso generalizado e de sua impor
tância fundamental ( 1 958: 556) . Essa dissociação exprime toda uma
visão de mundo, estabelecendo os critérios pelos quais hierarquias são
construídas (ibidem: 561 ). Com base nela, Wittgenstein adota uma
série de outros pares, que, combinados, estruturam a filosofia do
Tractatus. Dentre eles, os principais são: aparência/essência, como/
' quid ' , ciência/arte, ciência/filosofia, homem comum/homem de gê
nio, relativo/absoluto, objetivo/subjetivo 1 8 , individual/universal , fato/
valor, particular/geral, ciência/misticismo, discurso/intuição, cál
culo/contemplação, contingênc ia/neces sidade, duração/atempo
ralidade, sofrimento/felicidade, superstição/clarificação, represen
tação/vontade, mudança/imutabilidade, forma lógica aparente/for
ma lógica real, conceito formal/conceito propriamente dito, pseudopro-
1 8 . Por ' objetivo' deve-se entender aqui o pertencente à dimensão fatual; por
' subjetivo ' , o pertencente à dimensão mística.
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Principais esquemas argumentativos utilizados no Tracta t u s
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Iniciação ao silêncio
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Principais esquemas argumentativos utilizados no Tractatus
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Iniciação ao silêncio
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Principais esquemas argumentativos utilizados no Tracta t u s
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Iniciação ao silêncio
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A QUESTÃO CRUCIAL
DA AUTOFAGIA
1 - Observações preliminares
D
epois de todas as considerações feitas, chegamos ao ponto em
que podemos abordar a questão da autofagia tractatiana como
ponto-chave para que seja efetuada a iniciação ao silêncio. Conside
rada globalmente, a técnica de argumentação do Tractatus se caracte
riza pelo uso de um método de análise e de uma l inguagem que se
autodestroem no final. Do ponto de vista argumentativo, sabemos que
o resultado dessa atitude consiste no estabelecimento de uma incom
patibilidade que Perelman e Olbrechts-Tyteca qualificam como ' auto
fagia' . No Tratado da Argumentação, esses autores a definem da se
guinte maneira:
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Iniciação ao silêncio
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A questão crucial da autofagia
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lnidação ao silêncio
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A questão crucial da autofagla
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Iniciação ao silêncio
' x ' em ' Fx ' pela própria ' Fx ' , o que nos daria ' F(Fx) ' . Mas agora
obteríamos uma nova função, um novo protótipo cuja forma lógica
seria 'F(Fx) ' , e não a forma originalmente considerada, a saber, ' Fx ' .
A diferença entre o s dois protótipos, obtida a p artir d a tentativa frus
trada de usar o protótipo ' F(Fx) ' para falar do protótipo 'Fx ' , mostra
claramente que qualquer tentativa de descrever propriedades formais
de proposições levará ao mesmo impasse. Isso ocorre porque o signo
para a função ' Fx ' já contém o protótipo de seu argumento ' x ' , o qual
é diferente do protótipo de ' Fx ' considerada como um todo (3.333).
Até aqui, fica explicado o fracasso das proposições descritas em 4. 1 24.
Quanto à própria proposição contida em 4. 1 24 e arredores, vemos que,
ao tentar falar sobre o falar da forma lógica de uma proposição, ela
também exige um protótipo do tipo ' F(Fx) ' , obtido pela substituição
da variável ' x ' por 'Fx ' em ' Fx ' . O apelo a esse protótipo mostra que,
também aqui, estamos enfrentando o mesmo impasse. Voltando ao
exemplo do parágrafo anterior, vemos que o protótipo de " p ' tem a
propriedade formal 'F" é do tipo ' Fx ' , enquanto o de "'p ' tem a
propriedade formal ' F" é contra-senso ' é do tipo ' F(Fx) ' . Assim, a
análise lógica das proposições em tomo de 4. 1 24 mostra que elas
também desrespeitam a lógica da linguagem, porque postulam o pro
tótipo ' F(Fx) ' para afirmar a diferença dos protótipos ' Fx ' e ' F(Fx) ' .
Portanto, para todas as tentativas de fazer metalinguagem, inclusive a
do Tractatus, vale a inexorável e desalentadora conclusão: não há
como falar sobre protótipos (5 .535 1 )2•
Consideremos agora o segundo resultado negativo da crítica da
linguagem. Em 4. 1 26, Wittgenstein analisa os conceitos formais. Eles
são definidos da seguinte maneira: todos os símbolos cujas significa
ções caem sob um conceito formal possuem uma nota característica,
que constitui o signo das notas constitutivas de um conceito formal,
cuja expressão é uma variável proposicional em que apenas esta nota
característica é conservada constante. A variável proposicional desig
na o conceito formal, e seus valores, os objetos que caem sob o
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A questão crucial da autofagia
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Iniciação ao silêncio
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l11lclação ao silêncio
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A questão crucial da autofagia
do'-- - -
sujeito transceqdental que contempla a essência do mundo e seu
-
- ··· ·· - .
--�·- . . ·- ·-- ...
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l11/d11�·à11 ao silêncio
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lniciaçilo ao silêncio
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REFLEXÕES FINAIS
F
oram dois os objetivos centrais do presente trabalho. Primeira
mente, testar o potencial do método de análise argumentativa que
temos desenvolvido nos últimos anos. Em segundo lugar, apresentar
uma interpretação sistemática da filosofia exposta no difícil texto do
Tractatus.
Quanto ao potencial do método de análise, acreditamos que os
resultados são suficientemente positivos para sugerir que nos encon
tramos na trilha correta. Foi possível mostrar que o Tractatus envolve
uma forma de argumentação sui generis, que, embora repleta de sim
bolismo lógico, tem pouco ou quase nada a ver com os processos
tradicionalmente aceitos. Isso parece confirmar a perspectiva pragmá
tica pela qual concebemos a argumentação. Trata-se de algo contin
gente e sujeito às vicissitudes históricas. Tais resultados não signifi
cam, porém, que devamos considerar essa perspectiva como absoluta
mente correta. É a melhor conjetura que temos no momento, permi
tindo avanços e aperfeiçoamentos, ou até mesmo correções, quando
estas se fizerem necessárias.
359
Iniciação ao silêncio
360
Reflexões finais
36 1
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