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Tradução
Nuno Daun e Lorena
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Desde sempre e bem antes de Brassens, que não tinha nada de realista,
que o amor de uma rainha faz sonhar os homens, como acontece com tudo
o que é raro e precioso, mas sobretudo inacessível. Aparecendo apenas aos
seus súbditos cheia de jóias e sumptuosamente vestida – o que convinha
quando o físico não era grande coisa –, a rainha estava a meio caminho
entre a divindade e a mulher.
Sob a auréola incomparável da cintilante coroa de ouro e pedrarias, a
rainha parecia feita de uma outra essência à multidão que se amontoava
logo atrás da dupla fila de guardas. Bela? Sem dúvida, porque até a mais feia
entre as feias tinha um certo brilho. Aliás, criada a maior parte das vezes
numa redoma, preparada desde cedo para o papel de ídolo vivo, isenta dos
rudes trabalhos domésticos ou campestres aos quais estava sujeita a maioria
das mulheres, a rainha possuía vantagens, nem que fosse apenas uma pele
mais branca e fina, uma mão mais doce, um pé mais bem‑feito, um colo
mais bem explorado, tudo coisas que a pompa real exaltava.
O encanto permanece no nosso século xx. As multidões, de preferência
republicanas, amontoam‑se à passagem de Sua Majestade Isabel II, da rai‑
nha Margarida da Dinamarca, de lady Windsor‑Mountbatten ou de madame
de Montpezat, ao mesmo tempo que os media exageram – uma soberana
deve ser graciosa, por vezes encantadora, amável ou imponente quando
atinge uma certa idade – ou abusam de adjectivos aduladores quando se
trata de soberanas de grande beleza como a rainha da Suécia, a Shabanou
Farah, Sirikit da Tailândia ou a ex‑imperatriz Soraya. O seu brilho chega a
eclipsar o das rainhas do cinema, coroadas pelas sunlights do nosso século.
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E é o diadema que lhes concede essa supremacia, porque, à excepção, tal‑
vez, de Jacqueline Kennedy, nenhuma mulher de chefe de Estado republi‑
cano desencadeou jamais tamanho interesse.
Perante isto, podemos imaginar a curiosidade e a admiração dos nossos
antepassados por essas mulheres colocadas em verdadeiros pedestais, úni‑
cas a aparecer nas luzes da ribalta. Nunca nenhuma deixou os seus súb
ditos indiferentes. Amadas, odiadas, invejadas ou choradas quando possuíam
beleza ou encanto, situação típica das criaturas privilegiadas, desencadeavam
paixões cujas ondas de choque ainda perturbam ou fazem sonhar os espí‑
ritos do nosso tempo. Quantos apaixonados têm ainda hoje Maria Stuart,
Maria Antonieta, Josefina de Beauharnais e, sobretudo, Isabel de Áustria,
a famosa Sissi? Talvez porque a beleza de cada uma delas está associada a
um destino trágico. Uma coroa na qual o sangue substitui os rubis faz dis‑
parar a imaginação.
Entre tantos homens cujos sentimentos diversos acompanhavam o caminho
de uma rainha, um único era susceptível de escapar à sua magia: o marido,
o seu semelhante, o seu igual, mas, com mais frequência, o seu senhor. Para
este, que na noite de núpcias podia confrontar a sua realidade física com a
de uma jovem desconhecida que a política acabava de lhe meter na cama,
a rainha era uma criatura como as outras, muitas vezes pouco atraente
segundo os seus critérios pessoais, mas a quem era preciso fazer filhos.
De facto, o dever conjugal, no que tem de mais desagradável, foi inven‑
tado pelos reis.
Para eles a escapatória estava ao alcance da mão: aventura discreta ou
favorita declarada, só tinham o embaraço da escolha, já que o elemento femi‑
nino, na corte ou no seio do povo, era sempre o mais numeroso. A mulher
que se abandonava encontrava sempre, se não a satisfação física, pelo menos
a fortuna e muitas vezes a honra, ao passo que, para o monarca, tais prazeres
não tinham consequências. O homem não é naturalmente polígamo? Um
rei, portanto, podia muito bem aviltar‑se se a coisa lhe agradasse, fazendo
apenas franzir alguns sobrolhos mais severos.
O mesmo não podia fazer a rainha, garante, símbolo e fonte da dinastia,
alfa e ómega do reino. Quem se atrevesse, por amor ou ambição, a levan‑
tar os olhos para ela ou, por quaisquer outras razões mais fortes, a tocar
‑lhe, arriscava a vida e sabia que a antecâmara de uma alcova real podia
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nossos e porque nas subtilezas de uma outra dessas histórias qualquer con‑
temporânea nossa pode encontrar o espelho em que elas se reconheciam…
E porque são uma legião as raparigas que, como eu, se olharam a um espe‑
lho com uma velha cortina à guisa de manto da corte, um espanador a fazer
de ceptro e na cabeça a coroa de cartão dourado do último dia de Reis…
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Numa noite de Verão do ano 43, os pretorianos de guarda às portas
do Palatino vêem passar duas mulheres sem lhes prestar muita atenção.
Trata‑se, sem dúvida, de criadas que regressam a casa terminado o dia de
trabalho, e, habituados a vê‑las, os soldados limitam‑se a lançar‑lhes algu‑
mas piadas grosseiras à guisa de cumprimento, após o que regressam às
suas rondas contentes consigo próprios, nada preocupados por não terem
recebido resposta.
Se lhes dissessem que aquelas mulheres modestamente vestidas não eram
senão a toda‑poderosa imperatriz Messalina, quarta mulher do imperador
Cláudio, e a sua dama de companhia preferida, Mirtala, os guardas teriam
ficado espantados e o seu estupor não teria limites se soubessem onde elas
iam. A imperatriz em Suburra? Nenhum soldado, mesmo cheio de vinho,
imaginaria tal coisa, apesar da pouca imaginação que aflige de um modo
geral os militares…
No entanto, é para aquele bairro, o mais baixo e o mais duvidoso de Roma,
que se dirigem as duas mulheres com uma pressa que o encanto do local
não justifica…
Vizinho do Tibre e do porto, o bairro, que confina com a via Suburrana,
é tão perigoso quanto malcheiroso por ser o local de eleição da ralé. A pode‑
rosa confraria dos mendigos, os ladrões, as prostitutas, os assassinos, os gla‑
diadores e os barqueiros sentem‑se nele em casa, procuram nele o vinho
e as raparigas, suas únicas distracções. As tabernas abundam e constituem
outros tantos prostíbulos. Algumas também servem de quartel‑general de
bandos organizados que não parecem preocupar‑se com uma vizinhança
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jovem que se revela uma amante deslumbrante, cuja paixão inesperada, mas
visível, começa a acordar nele uma ambição singular. Que se pode espe‑
rar de um homem que é amante da imperatriz? No fim de contas Cláudio
não é novo, e caso venha a desaparecer…
Entretanto, para receber Messalina ao abrigo de olhares indiscretos, Silius
começa por comprar uma casa encantadora, a dos cavaleiros Petra, dois
irmãos que acabam de ser executados: umas poucas de divisões numa con‑
fusão de plantas e flores, discretas, bem escondidas. Lá, Messalina e Silius
vão amar‑se todos os dias com paixão.
Porém, Messalina começa a detestar a discrição que a situação lhe impõe.
O germe da loucura que lhe vive no sangue leva‑a a cometer excessos.
A jovem quer mostrar os seus amores a toda a gente. Roma tem de saber
que ela ama Caius Silius…
E a imperatriz começa por encher o amante de presentes faustosos, não
hesitando em esvaziar mais ou menos o Palatino para lhe dar os objectos e
os móveis mais preciosos. A casa do cônsul, no Quirinal, torna‑se um ver‑
dadeiro museu.
Museu que tem uma guardiã: Junie, a mulher legítima de Silius. E quando
evoca a silhueta esbelta e graciosa da jovem, a imperatriz sente crescer as
garras porque só tem direito, ela, a algumas horas do dia com o amante, ao
passo que Junie tem as noites todas com o marido, coisa que uma Messalina
não tolera. Felizmente todos os problemas têm solução.
E a solução chama‑se Locuste, uma mulher de grande saber mas com
poucos escrúpulos, versada numa farmacopeia que mais tarde viria a fazer
a fortuna dos Bórgia. A amável criatura mora num isolamento soberbo,
nas margens de um pântano à saída da porta de Capena. Na melhor tradi‑
ção do boulevard du Crime, a mulher vive com um escravo negro que, para
além de assustador, é surdo‑mudo. A encantadora família possui também
um ninho de serpentes, fornecedoras privilegiadas de uma matéria‑prima
insubstituível.
Os venenos confeccionados por Locuste podem matar de maneira terrível
ou com uma doçura tão grande que a morte parece natural. E é assim que
num dia em que Silius parte para Óstia na companhia de Cláudio – o impe‑
rador deseja construir um farol naquela cidade – a sua mulher recebe em
casa uma bela cesta de fruta proveniente do Palatino.
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há muito a fazer neste mundo, mesmo que nem toda a gente seja da mesma
opinião. Ora, o pontífice não resolve nada, claro! As manifestações do Além
são coisas demasiado respeitáveis para que um humano, mesmo Pontifex
Maximus, ouse envolver‑se nelas.
Messalina, que vê com satisfação o marido a murchar a olhos vistos,
avança com timidez, com as hesitações de quem cogita lentamente, uma
ideia extravagante: para que possa escapar à profecia, Cláudio tem de deixar
de ser seu marido, pelo menos até à data fixada… E a imperatriz explica
o seu plano: Cláudio sai de Roma durante alguns dias, até passar o período
fatídico… Entretanto Messalina, com uma rara devoção, permanecerá no
seu posto e fará face à adversidade contratando um falso matrimónio com
um velho amigo… Caius Silius, por exemplo, corajoso o suficiente e dedi‑
cado para aceitar esse perigoso papel de marido de Messalina no dia fatal…
Dessa maneira será ele, um homem de bem, o sacrificado…
O pontífice fica surpreendido e prepara‑se para protestar, mas Cláudio,
esse, ressuscita. A ideia de encontrar um substituto momentâneo não lhe
parece má de todo, para além de que não lhe passa pela cabeça que a sua
querida Messalina possa não ser a esposa terna e carinhosa que sempre
pretendeu ser. O imperador afasta‑se batendo palmas, deixando que a sua
mulher explique tudo ao pontífice.
Este, claro, agita um argumento maciço: Messalina pensa que os deuses
são estúpidos? Messalina vai cometer um sacrilégio que não salvará o impe‑
rador. A espertalhona, porém, tem a resposta na ponta da língua: o sacri‑
légio aconteceu, isso sim, no dia do seu casamento com Cláudio porque
enquanto dava a mão ao futuro imperador, era em Caius Silius que pen‑
sava, e foi com a sua imagem diante dos olhos que pronunciou a famosa
fórmula: Ubi tu Gaius, ego Gaïa…
O pontífice não fica convencido, claro, mas depressa percebe que se se
atreve a opor‑se ao projecto, arrisca‑se a não beneficiar muito mais tempo
das alegrias da vida de Roma…
Transposto o obstáculo, Cláudio anuncia a sua partida para Óstia, onde
tenciona vigiar a construção do seu farol. Mal o imperador parte, Messa‑
lina prepara de imediato a soberba festa que vai ser o seu casamento com
Caius Silius, sem imaginar por um só instante que uma certa pessoa acha
tudo muito bizarro…
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A imperatriz não contou com Narciso, que pensa ser‑lhe fiel. Há muito
tempo que este, informado pela sua soberana, se interessa por outra mulher
ainda mais bela, Agripina, a Nova sobrinha de Cláudio, mãe de um miúdo
impossível chamado Nero e que não veria nenhum inconveniente em tornar
‑se tia de si própria ao casar‑se com o próprio tio. E Narciso começa a
acariciar a ideia de uma imperatriz a dever‑lhe tudo quando, de repente,
vê desenrolar‑se diante dos seus olhos uma cerimónia aberrante: Messa‑
lina, na ausência de Cláudio, vai casar‑se com outro homem, um homem
que toda a Roma sabe ser seu amante. Mais grave ainda, Caius Silius está
em vias de conseguir um punhado de partidários destinados a instalá‑lo no
trono assim que Cláudio desaparecer…
Sem hesitar, Narciso vasculha os arquivos à procura dos relatórios rela‑
cionados com as actividades de Lycisca, monta a cavalo e parte a toda a brida
para Óstia, onde chega poucas horas depois, esbaforido.
A princípio o imperador não o entende, mas depois sorri perante os
medos do seu favorito; é claro que está ao corrente, o casamento não passa
de uma comédia destinada a preservar‑lhe a própria vida… Como? A sua
vida está por um fio se não regressar de imediato a Roma; se esperar nem
que seja umas horas, ver‑se‑á destituído e o seu imperador será o bom
Caius Silius, tão dedicado. Para dar mais crédito às suas declarações, Nar‑
ciso, agitando as provas que tem nas mãos, recita em voz alta ao seu senhor
a vida secreta da sua mulher.
Cláudio, fulo de medo e de cólera, ordena a partida para Roma, juntando
no caminho todas as tropas que encontra. Narciso, porém, parte antes dele
para anunciar o regresso do seu senhor, já que um cavalo é mais rápido do
que um exército a pé.
A notícia de tal regresso atinge Roma no momento em que Cláudio só
está a meio caminho, mas cai sobre o Palatino no meio da festa nupcial, no
momento em que, no mesmo leito, Messalina e Caius começam a dar provas
do seu grande amor. A entrada em cena de Narciso tem o efeito de uma bomba
e enquanto os pratos arrefecem, é o salve‑se quem puder comandado por
Caius Silius, que tenta salvar o que ainda pode ser salvo: a sua própria cabeça.
Mas não conseguirá. Narciso tem pressa. Quando Silius chega a sua casa,
os pretorianos estão nos seus calcanhares, mortos por pilharem a mais bela
casa de Roma. Um bom golpe de gládio e está tudo acabado.
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Quanto a Messalina, foge, também ela, mas não para morrer com o seu
amado, antes para casa da sua mãe, com quem está de candeias às avessas
há muito tempo, onde procura refúgio enquanto espera pela chegada de
Cláudio, decidida a reconquistá‑lo…
Narciso sabe que o imperador não resistirá às lágrimas da sua jovem
mulher e envia soldados para casa de Domitia. Esta tenta convencer a filha,
diz‑lhe que está perdida, que só lhe resta a hipótese de morrer como uma
romana, pelas suas próprias mãos, mas perde o seu tempo. Messalina agarra
‑se à vida que tanto ama com unhas e dentes… E é nos braços da sua mãe
que o gládio de um centurião a golpeia…
Cláudio não ordenara a sua morte e começa por chorá‑la com toda a sin‑
ceridade. Então Narciso envia‑lhe Agripina, que saberá enxugar as lágri‑
mas do velho apaixonado, enquanto espera pela oportunidade de acordar
nele instintos menos nobres, mas também naturais.
E Agripina sucede a Messalina, mas não para bem do pobre Cláudio.
Locuste encontrará nela a sua melhor e mais generosa cliente…
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