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Ensaio Teórico
Domenico UhngHur 1
Resumo
Buscamos problematizar a atuação política do psicólogo comunitário, considerando que no quadro das políticas públicas ele
ocupa papel de intermediário entre Estado e população. Para nossa reflexão foram utilizados conceitos de pensadores
considerados pós-estruturalistas como o de Estado como Aparelho de Captura de Deleuze e Guattari, governamentalidade
de Foucault e noo-política de Lazzarato. Consideramos que a intervenção psicossocial do psicólogo comunitário deve estar
entrelaçada com o fomento da autonomia, em contraposição com a heteronomia instituída pela razão de Estado.
Distinguimos assim a figura do psicólogo comunitário, que está implicado com os processos de autoanálise e autogestão, do
psicólogo na comunidade, que está implicado com seu fazer técnico, deixando em segundo plano sua atuação política e
podendo operar como atualização da razão de Estado, o que denominamos de neocolonização.
Palavras-chave: Psicologia Comunitária, Estado, política, intervenção psicossocial, políticas públicas.
Abstract
We intend to discuss the political activity of the community psychologist, considering that in the framework of public
policies he has the role of mediator between the State and the population. For our reflection, concepts from thinkers who
are considered post-structuralists, such as Deleuze and Guattari’s State as a Capture Device, Foucalt’sgovernmentality, and
Lazzarato’snoo-politics have been used. We consider that the psychosocial of the community psychologist must b e
intertwined with the encouragement of autonomy, as opposed to the heteronomy instituted by reason of State. We then
distinguish the figure of the community psychologist, which implies processes of self-analysis and self-management, from
the community psychologist, which implies its technical capacity, leaving behind his political stand, and who may operate
by reason of State, which we call neo-colonization.
Key-words: Community Psychology, State, politics, psychosocial intervention, public policies.
1
Professor Adjunto II do Curso de Psicologia da UFG, psicólogo, mestre e doutor em Psicologia Social do Instituto de
Psicologia da USP, com estágio doutoral na Universitat Autònoma de Barcelona/Catalunya, e membro do CRISE – Núcleo de
Estudos e Pesquisas Crítica, Insurgência, Subjetividade e Emancipação. E-mail: domenicohur@hotmail.com Faculdade de
educação: Rua 235, s/n, Setor Universitário, Goiânia/Goiás, CEP:74.605-050, Tel.:(62) 3209-6212.
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psicólogo. Mas aqui se afirma que o fazer do tal discussão, articulamos a Psicologia
psicólogo comunitário é um fazer político; sua Comunitária às reflexões de pensadores que
ação e intervenção são indissociáveis da problematizam tal instituição, tais como
política. A intervenção e a reflexão do expoentes do pós-estruturalismo francês,
psicólogo comunitário estão diretamente como M. Foucault, G. Deleuze e F. Guattari.
relacionadas às formas de viver num coletivo, Por mais que essa expansão seja um fato
de suas relações sociais e da gestão da própria positivo, por institucionalizar e multiplicar as
comunidade, envolvendo eminentemente áreas de intervenção psicossocial e fornecer
relações políticas e de poder. Ao tocar no tema um trabalho remunerado ao psicólogo,
da política chega-se ao principal problema que considera-se que, quando o técnico social
será desenvolvido neste texto, do psicólogo perde de vista a dimensão institucional e
comunitário enquanto intermediário do Estado política das diferentes instâncias em que está
e da população. Com o desenvolvimento e o inserido, um montante de suas práticas pode
reconhecimento social da Psicologia reproduzir a codificação da razão de Estado.
Comunitária, o psicólogo comunitário não é Ressalta-se esse aspecto, pois se entende o
mais aquele personagem autônomo que chega Estado como um Aparelho de Captura (Deleuze
por si mesmo à comunidade e trabalha com &Guattari, 1997) que pode ser definido como
ela, querendo transformar as relações uma aparelhagem de normatização, de
opressivas instituídas e potencializar as sobrecodificação dos fluxos sociais e de
práticas coletivas dos agrupamentos (Andery, transmissão de determinadas formas de ser e
1981). Atualmente, com o incremento dos pensar. Muitas vezes o técnico social
projetos de intervenção das mais variadas empregado por determinada política pública se
políticas públicas do Estado, abriu-se uma torna a correia de transmissão dessa lógica,
grande área de atuação remunerada ao tornando-se parte do aparato de captura.
psicólogo comunitário, em que chega à Compreende-se aqui que o Estado é uma
comunidade como agente social, como instituição com uma lógica heterogênea às
prolongamento, do Estado. relações sociais e que procede por uma
Entretanto, ao se realizar a busca de artigos modulação das condutas e subjetividades via
com o marcador “Psicologia Comunitária” na governamentalidade (Foucault, 1979), tema
base de dados Scielo (em 03 de maio de 2013) que desenvolveremos no segundo tópico.
não se encontram reflexões e críticas mais Dessa forma, a problemática que surge é o
aprofundadas sobre sua relação com o Estado. complexo, senão paradoxal, lugar que a
Depara-se com artigos que, por exemplo, citam Psicologia Comunitária ocupa nesse
a relação da Psicologia Comunitária com as agenciamento com o Estado, em que, por um
políticas públicas de assistência social lado, tem o objetivo de fomentar processos de
(Ximenes, Paula, & Barros, 2009), de saúde reflexão sobre as práticas e relações instituídas
pública (Amaral, Gonçalves & Serpa, 2012), as no coletivo, o que denominamos, a partir de
políticas sociais chilenas (Inzunza&Constanzo, agora, fomentar processos de autoanálise e
2009), o terceiro setor (Paiva & Yamamoto, autogestão6, mas, por outro, está atrelada à
2010) etc., mas não uma problematização de lógica do Estado, sendo parte de seu Aparelho
sua relação com as políticas públicas como de Captura. Então colocamos a seguinte
práticas de Estado; constata-se uma questão: a Psicologia Comunitária em
lacuna teórica. Mesmo obras como agenciamento com as políticas públicas do
“Hacer para transformar: el método
enlaPsicologíaComunitaria”, de Montero 6
(2005), que discute prioritariamente a Pensamos que esses objetivos também podem ser da
Psicologia Comunitária a partir da sistematização que
metodologia de intervenção da disciplina, não Gregório Baremblitt (2002) faz das distintas correntes da
há um questionamento acerca da relação com Análise Institucional. Consideramos que são objetivos
a Instituição-Estado. Dessa forma, para efetuar sintéticos para a atuação do psicólogo comunitário e
comprometidos com o projeto da autonomia.
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ações e reflexões dos coletivos. Ele deve que têm seus financiamentos de alguma forma
potencializar e fomentar os processos de ligados à esfera pública. Nessa modalidade de
autoanálise e autogestão e não pensar e relação, o Psicólogo Comunitário é um
ordenar o que os coletivos devem fazer. profissional que está regido pelas regras da
Ressalta-se isso porque é muito fácil, e instituição que o contrata, seja aos objetivos
sedutor, ao técnico social assumir o lugar do de determinada Secretaria do Estado seja da
saber frente ao coletivo, colocando-se em lugar ONG que o emprega. Portanto, ele é regido por
assimétrico de poder e muitas vezes um contrato empregatício pelo qual recebe
reproduzindo a mesma heteronomia social uma remuneração para executar o seu
existente. Por isso sustenta-se que ele deve trabalho. Tal contexto gera efeitos práticos
desenvolver dispositivos que efetuem diretos, pois no atrelamento entre Psicólogo
processos que potencializam os coletivos Comunitário como empregado de determinada
(Montero, 2004, 2005) e não mantenham a instituição ele está a serviço desse
mesma dominação social, para que os coletivos estabelecimento. Assim, o profissional tem que
por si mesmos se potencializem e se executar um trabalho que esteja em
autodeterminem. Enfatiza-se tal aspecto, pois conformidade aos interesses políticos da
é necessário evitar que se forme uma organização que o emprega, tornando-se um
dependência dos membros da comunidade em prolongamento da sua lógica institucional
relação ao técnico social, pois o psicólogo (Guirado, 1987).
comunitário assume um lugar de saber que Em nossa experiência profissional
gera efeitos de poder. Tais ressalvas estão constatamos que o psicólogo fica atrelado às
relacionadas ao perigo da não percepção desse demandas das instituições que o empregam,
lugar e no recrudescimento dos lugares de que estão pressionadas por resultados que
poder (Hur, 2010) em que, muitas vezes, o indiquem a eficácia de determinada
psicólogo comunitário pode criar laços de intervenção social para a comunidade. A
dependência da comunidade a ele, o que seria demanda por resultados das intervenções tem
a reprodução da heteronomia, do discurso em vista justificar o investimento do dinheiro
heterônomo da sociedade capitalista, no público do Estado ou de doações de empresas
discurso heterônomo do psicólogo. Portanto, ou de particulares. Esses indicadores de
entende-se que toda prática interventiva do eficácia social também têm certa
psicólogo comunitário está entremeada de complexidade, pois algumas medidas como,
práticas políticas, e seu objetivo deve estar por exemplo, o aumento da sociabilidade em
ligado ao projeto da autonomia para fomentar determinada região, são muito difíceis de
transformações sociais no cotidiano e na vida serem quantificadas, o que não as torna menos
do coletivo. importantes. Então, as organizações
necessitam criar um regime de visibilidade dos
“bons” resultados da intervenção, para que
2 - O ESTADO E A GOVERNAMENTALIDADE consigam captar mais recursos financeiros que
mantenham a sua existência, o salário de seus
Neste tópico, será discutida a possibilidade funcionários e a realização dos seus projetos.
da efetivação de transformações sociais Nesses casos, entretanto, muitas vezes nota-se
quando o Psicólogo Comunitário é um agente uma despolitização da prática de intervenção
direto do Estado. Na introdução, afirmamos comunitária, em que a instituição não se
que as políticas públicas do Estado abriram um interessa primariamente em fomentar a
grande campo de atuação do psicólogo na autonomia nos coletivos em que intervém e
comunidade, seja sendo agente direto do sim dar visibilidade ao grande público de seus
Estado seja de alguma Organização Não resultados, fazendo vídeos e publicações da
Governamental – ONG, ou Organização da intervenção para tentar aparecer na mídia.
Sociedade Civil de Interesse Público – OSCIP,
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Além da lógica de mercado para o que domina a sociedade. Para que tal lógica
financiamento dos projetos, quando as ONGs fosse revertida, deveria ser dominado e
se preocupam em poder “vender” um projeto, controlado, para que assim a Revolução
soma-se também a problemática da pudesse ter êxito.
transmissão da razão de Estado que está O filósofo Michel Foucault aborda a
embutida em uma série de projetos sociais. Tal discussão sobre o Estado em outros termos. Ao
lógica governamental (Foucault, 1979) dá invés de discutir sua suposta totalidade, como
maior caráter de reprodução da heteronomia nos Estados imperiais, centrada na figura do
instituída do que fomento da autonomia aos soberano, Foucault (2008) opera uma inversão,
coletivos sociais; compreende-se que o afirmando que “(...) o que há de importante
psicólogo na comunidade pode ser o para a nossa modernidade, isto é, para nossa
transmissor dessa razão de Estado, muito mais atualidade, não é portanto a estatização da
heterônoma que autônoma. sociedade, mas o que eu chamaria de
Considera-se que a tensão entre Estado e ‘governamentalização’ do Estado” (pp. 144-
sociedade é um dos temas mais discutidos na 145). Para o filósofo, essa governamentalização
história das Ciências Políticas. No pensamento do Estado foi o que permitiu sua reprodução
clássico, o Estado era apreendido como a até os dias de hoje. Refere-se a uma
instituição, com suas leis e aparelhos, gestora “capilarização” da razão de Estado nos espaços
do contrato social firmado por um coletivo. mais regionalizados, mais localizados, através
Pode-se citar a oposição histórica entre T. dos mecanismos disciplinares (Foucault, 1984)
Hobbes (1974) e J. J. Rousseau (1980). O e dos mecanismos de segurança (Foucault,
primeiro desenvolveu o ponto de vista da 2008) aos quais Deleuze (1992) prefere chamar
negatividade, em que o Estado defende os de mecanismos de controle. O surgimento dos
coletivos da guerra de todos contra todos à mecanismos disciplinares se deu com a
custa da submissão às suas leis coercitivas, constituição de dispositivos de normalização
enquanto o segundo desenvolveu o ponto de que saíram do âmbito direto da jurisdição do
vista da positividade, mais otimista, em que o Estado, provindo de outras instituições, como a
contrato social potencializa as ações dos Psiquiatria, a Psicologia etc. e que agiam
sujeitos, num modelo de soberania popular diretamente no corpo da população.
conjugado à manutenção das liberdades Constituiu-se de uma série de mecanismos
individuais. Considera-se que ambas as visões disciplinares que tratavam da gestão da vida do
têm sua parcela de razão, em que esse coletivo, estabelecendo os saberes de um
aparelho providencia uma potencialização da poder sobre vida, das políticas da vida, ou
ação do coletivo, ao mesmo tempo em que o melhor, de uma biopolítica. Já os mecanismos
sujeito tem que abrir mão de parte de suas de segurança são mecanismos mais
vontades individuais ao subjugar-se às leis do “sofisticados” de controle, que não tratam
coletivo. apenas de vigiar os corpos, de agir sobre eles,
Contudo, o pensamento político foi mas sim de agir diretamente sobre o
marcado por uma visão mais crítica ao Estado, comportamento, ou, conforme o pensador
como o pensamento marxista-leninista, que o italiano MaurizzioLazzarato (2006), agir
compreende como um aparelho de dominação diretamente sobre o cérebro e a memória.
a serviço das classes dominantes e que Com a sofisticação das técnicas de
mantém a estratificação e a hierarquia de governamentalização, atualmente já não são
poderes na sociedade. Tal visão referenciou o mais as técnicas biopolíticas que têm primazia
principal projeto dos grupos revolucionários de e sim as técnicas noo-políticas, de um poder
esquerda, que foi tomar o poder do Estado sobre o pensamento, o poder sobre a
para transformá-lo e posteriormente destruí-lo memória; não mais as políticas da vida e sim as
(Lenin, 1983). Nesse modelo, a importância políticas do pensamento (Lazzarato, 2006). Se,
que o Estado assume é clara, sendo o aparelho por um lado, colocava-se que os mecanismos
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surgiu com variados projetos relacionados às objetivos pela própria natureza conservadora-
políticas públicas. As políticas públicas podem burocrática do Estado e dos seus mecanismos
ser entendidas como a “soma das atividades de gestão, tal como mostram os resultados das
dos governos que agem diretamente ou publicações sobre a intervenção (Wanderley &
através de delegação e que influenciam a vida Oliveira, 2004; Hur, 2010). Se efetivamente a
dos cidadãos” (Souza, 2006, p. 24). Portanto, autonomia e a cidadania defendidas fossem
tais políticas, por serem práticas de governo, efetivadas, haveria uma intensa movimentação
carregam em si a razão governamental de social na região que poderia alterar o
Estado e consequentemente contribuem para agenciamento de relações de forças instituídas,
a manutenção da heteronomia social, tendo o que geraria demandas sociais que o Estado
em vista a sua natureza eminentemente não poderia contemplar e que possivelmente
conservadora. Desse modo, compreende-se causariam fissuras em seu funcionamento. No
que a política pública em si, como prática de entanto, antes que se chegasse a tal ponto,
Estado, já traz uma lógica vertical que incita haveria uma série de bloqueios institucionais,
mais a conservação do que a transformação. ou boicotes, aos objetivos, para que não se
Entretanto, é polêmica tal afirmação, pois há efetivasse tal transformação social que se
uma série de programas sociais, como, por aproximaria do projeto da autonomia social. E
exemplo, o Programa Fortalecendo a Família7- os bloqueios sempre seriam discursivamente
PFF, que tinham como objetivo justamente justificados com as “velhas desculpas” de falta
levar autonomia e cidadania para as de articulação entre as distintas secretarias do
comunidades em que se trabalhou, ou seja, Estado, ou falta de verbas, ou à “despolitização
promover transformação social (Wanderley & e não participação da população” etc. É o que
Oliveira, 2004). Então, necessariamente um o filósofo Gilles Deleuze (1994) sustenta: não
projeto social de Estado reafirma a lógica da existe um Estado de esquerda, há apenas um
governamentalidade? Estado permeável a algumas demandas da
Compreendemos que qualquer esquerda; ou o que o cientista político John
transformação social que alguma política Holloway8 (2003) pronuncia: “O Estado é
pública defenda ou está apenas no âmbito exatamente o que a palavra sugere: um bastião
discursivo do projeto em questão ou ocasiona contra a mudança, contra o fluxo do fazer, a
uma mudança que não põe em risco a atual encarnação da identidade” (p. 115), ou seja,
conformação das relações de forças na um espaço heterônomo que bloqueia as
sociedade, porque o Estado, como qualquer aspirações autônomas. E prosseguimos com a
outra instituição burocratizada, como defende crítica: se um programa social do Estado gera
o psicólogo institucional Jose Bleger (1980), transformação social em caminho à
primeiramente tem como tarefa manter a sua autonomia, isso não se deve à política pública
sobrevivência, antes de efetuar as tarefas que em si, mas sim às características antiestatais
estão teoricamente previstas a efetivar. O PFF que seus técnicos e os coletivos sociais
podia ter como objetivo levar autonomia e assumem, ou justamente quando agentes do
cidadania às regiões periféricas do município Estado deixam de ter prática de Estado ao
de São Paulo, mas não logrou êxito nos seus assumirem o projeto da autonomia.
Por mais polêmico que pareça o nosso
7 discurso, não se afirma que toda política
Programa social ligado às políticas públicas de
assistência social da Secretaria da Assistência Social da pública de Estado é inócua, mas sim que suas
Prefeitura do Município de São Paulo – SAS-PMSP, práticas desprovidas da crítica não levarão à
Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social do transformação social no caminho da
Estado de São Paulo – SEADS-SP e Universidades
conveniadas do Estado realizado nos anos de 2002 e 2003
8
na Grande São Paulo, em que foram atendidas, por 70 Holloway (2003) intensifica sua crítica ao afirmar que as
psicólogos e assistentes sociais, 14.000 famílias, em revoluções socialistas fracassaram devido à reprodução
grupos. O autor deste texto trabalhou como psicólogo de da forma e da lógica do Estado em que sempre estava em
grupos em região periférica do município. questão sua tomada de poder e controle do seu aparato.
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autonomia. Concorda-se com que os exemplo, que tipos de atividade realizar e que
resultados de muitos projetos de redistribuição referenciais teóricos e técnicos seguir, como se
de renda, de distribuição de cestas básicas, de fossem essas as questões mais importantes da
prevenção de DST-AIDS, de controle da intervenção psicossocial. Compreendemos que
natalidade, de discussão de relações familiares, um fator que afasta o projeto do seu objetivo
de reinserção no mercado de trabalho, de de transformação social é o deslocamento da
atividades esportivas e ocupacionais, ou até problemática política para a problemática
atividades psicoterapêuticas etc. tenham técnica9, havendo a inversão entre meios e
alguma eficácia, auxiliem muita gente e fins. Nesses casos em que o meio se torna o
possam trazer sentimentos de satisfação à fim, esquece-se de que a teoria e a técnica são
comunidade. Contudo, dificilmente operam na os meios, a “caixa de ferramentas” (Foucault,
problemática da confrontação com as relações 1979) para a efetivação de determinado
instituídas de poder na sociedade, objetivo social e político que seria a
principalmente nos espaços macropolíticos. transformação social, ou seja, focaliza-se mais
Tais projetos sociais podem ter bons a técnica psicossocial-pedagógica que vai ser
resultados, mas sempre são resultados que aplicada do que a eficácia política da ação em
raramente interferem nos agenciamentos de si.
poder instituídos e muitas vezes reforçam a Então, referenciados nas reflexões de
heteronomia social. Voltamos a afirmar: Bleger (1980) sobre o psicólogo da e na
quando a intervenção do psicólogo instituição, denominamos psicólogo na
comunitário empregado por política pública comunidade aquele que tem uma preocupação
leva o coletivo a uma reflexão e a uma ação mais técnica em sua atuação, que não tem
problematizadora das relações de poder compreensão da trama institucional e política
instituídas é justamente quando “deixa de ser em que está inserido. Já o outro, aquele que
Estado”, quando opera segundo uma lógica está compromissado com o projeto de
antigovernamentalidade e defende uma noo- autonomia, com o fomento de processos de
política da autonomia, o pensar sem imagens autoanálise e autogestão e percebe as amarras
(Deleuze, 2006), e não a noo-política de institucionais, que são a base e o bloqueio de
Estado. sua prática, denominamos psicólogo
Dessa forma, há uma tendência da atuação comunitário. Infere-se que, devido à formação
do psicólogo empregado por uma política despolitizada na maior parte dos cursos de
pública, ou por uma ONG, na comunidade, graduação em Psicologia, temos um número
para uma prática que não chega a muito mais elevado de psicólogos na
problematizar efetivamente os problemas comunidade do que de psicólogos
políticos existentes no coletivo (Hur, 2010) e, comunitários, algo desejado para as políticas e
pior, muitas vezes apenas se atém a questões práticas de Estado.
técnicas da profissão do psicólogo que se Consideramos então que o psicólogo na
restringe às práticas clínicas, lúdicas e comunidade, devido ao seu alheamento às
ocupacionais, as quais, em muitos casos, questões políticas, está a serviço da razão de
recebem o nome de oficinas (Wanderley & Estado, transmitindo tal lógica e valores para a
Oliveira, 2004). Nessas oficinas ocorre muitas população. O psicólogo na comunidade
vezes um trabalho para não transformar funciona como propagador dos valores
(Fernandes, 2005) e o investimento de uma
força que não implica deslocamento e
9
mudança. Não nos impressiona então quando, Os múltiplos dispositivos teóricos e técnicos da
mesmo no encerramento de um programa Psicologia auxiliam esse deslocamento da problemática
política para a problemática técnica, dentro do projeto
social do qual participamos, a preocupação social. Já vimos muitas vezes o foco das discussões deixar
dominante permanece sendo questões de ser a problemática política de intervenção para se
técnicas ao invés de questões políticas, por tornar uma discussão teórico-técnica entre as distintas
“seitas teóricas” existentes.
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Recebido: 29/06/2012
Revisado: 10/05/2013
Aprovado: 12/06/2013
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