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Mãe é a
coisa que
mais toca.
Não vou
desrespeita
r nunca a
menina que
existe
dentro de
mim.
Marilene
Felinto.
Podemos considerar este o sentido central da genealogia, tal como a vemos nas
narrativas de autoria feminina contemporânea, o de que há uma tradição feminina,
herdada entre as mulheres através de experiências comuns e rituais próprios e
específicos. Esses rituais quase sempre têm a ver com as modificações e crescimento
do corpo e com a construção de uma identidade sexual. Os rituais que envolvem a
ocorrência da primeira menstruação, da perda da virgindade, da gravidez, da história
dos partos, da menopausa, etc., se tornam pontuais na construção da história de uma
herança feminina. Se, por um lado, às mulheres restou muito pouco para herdar uma
das outras, já que não herdam nem um patrimônio material e nem uma tradição literária,
como já assinalou Virginia Woolf [4], não podemos deixar de afirmar que o resgate
destes rituais, de um ponto de vista que critica padrões impostos de feminilidade, se
faz necessário na reconstrução de uma linhagem, de uma experiência de semelhança.
Estas experiências entre as mulheres, serão, sem dúvidas, entre elas, muito diferentes
das que acontecem entre os meninos e seus pais e avós, de quem eles têm, cheios de
orgulho e vaidade, o que herdar e o que fazer com a herança, através de um patrimônio,
um nome ou de uma tradição literária. O que quer dizer que a expressão de um desejo,
como o da construção de uma genealogia feminina no imaginário literário
contemporâneo refere-se á necessidade imperiosa que as mulheres têm de tentar saber
quem são e o que querem.
Bárbara Ozieblo [5] chamou de um un vínculo poderoso a relação mãe e filha, que
é o tema central deste tipo de literatura de autoria feminina. Ozieblo repete a mesma
pergunta feita por Virginia Woolf ao indagar sobre a ausência de uma herança feminina
que não nos deixou nenhum tipo de patrimônio, seja intelectual ou material. Para
Ozieblo o surgimento, na literatura contemporânea de muitos países e,
especificamente, na norte-americana, do par mãe e filha, é uma novidade já que, ao
longo da história este par esteve excluído:
[…] la pareja madre-hija no existe en nuestra cultura; aseveración lógica
puesto que no existe la madre. No debemos olvidar que la madre y la
maternidad son conceptos del patriarcado, construidos para impedirle a la
mujer la conciencia de su poder (p.10)
Para Dominguez os romances que resgatam a linhagem materna são uma novidade
já que figuras como a mãe ou a avó apareciam de forma inexpressiva n começo da
literatura escrita por mulheres (p.34) e, ainda que tenham começado a aparecer
paulatinamente, muitos romances representavam os conflitos relativos a mães e filhas
referentes ao que Rich [7] denominou de matrofobia, em que as relações entre mãe e
filha são essencialmente conflitantes.
No Brasil, alguns contos de Tânia Faillace, nos anos 70 e alguns romances de Lya
Luft, mesmo que sejam dos anos 80, são ainda representativos desta tendência que
relata uma total incomunicabilidade entre mães e filhas, em que esta relação é
desastrosa para as duas e é libertadora quando o vínculo se desfaz ou arrefece. Esgotado
este primeiro momento, em que a revolta ou a raiva, as frustrações, os sentimentos de
impotência e desvalorização são expressados pelas personagens das filhas em relação
a suas mães, a literatura de autoria feminina toma outros rumos no que se refere ao
tema das genealogias e à representação do par mãe e filha.
Giraudo [8] em seu trabalho sobre Tony Morrison, que trata especificamente sobre
as genealogias femininas entre as escritoras afro-americanas, refere-se aos lares
matricêntricos e ao que os críticos americanos chamam de herstory, sobre ritual de
contar sua própria história,
(...) contar sua história, ou herstory, significa para uma mulher afro-
americana descrever, ou traçar, “arcos de resgate”, encarnando “um projeto
de reivindicação da individualidade e portanto de afirmação da
continuidade afro-americana de um modo geral (Willis, 1987, p.82).
Sugere portanto “um sentido visionário de um renascimento por meio do
resgate da cultura”; ao contar herstory como história de sua mãe e de sua
avó, pois, a escritora não transpõe as gerações “de modo a fechar o círculo”,
mas antes relampeja em seus arcos de resgate “sempre em direção ao
futuro” (Willis, 1987,p.54-55).
Marcela Lagarde [9] em seu trabalho Los cautiverios de las mujeres: madresposas,
monjas, putas, presas y locas, afirma que a maternidade como é concebida pela
sociedade patriarcal é, para as mulheres, uma forma de cativeiro:
[…] Esta doble significación la caracteriza, tanto para los hijos hombres
como mujeres. La madre es buena y mala a la vez, porque en su
omnipotencia adulta y nutricia frente a la carencia infantil, da y niega,
estimula y reprime: internaliza la cultura y con ella el poder. […] a la
aceptación positiva de la madre de la cual se nutre, se suma el hecho de que
el hijo se identifica con el padre, cuya figura social es poderosa y plena. La
madre se realiza como ser objeto en esta relación con el hijo convertido en
cónyuge filial, que no puede establecer con su cónyuge. En cambio, la
madre debe transmitir a su hija aquello que la anula y somete, el contenido
opresivo de su ser adherido a tal punto a su identidad genérica, que se
confunde con ella. Así, en esta relación con la hija, la madre dadora y
nutricia también es carencia erótica, sumisión (p.429)
[…] se ha hablado de las mujeres como niñas sin madre, y esto da lugar
a otras consideraciones que podrían explicar la capacidad de soledad de la
mujer con respecto al hombre. Este estado de orfandad significa que para
muchas mujeres no hay posibilidad de regresión al seno materno por no
haber nunca una madre a la cual recurrir en busca de apoyo…(p.431)
Não haveria assim uma mãe possível já que se a mulher, historicamente aprisionada
em relações de dependência e submissão, incapaz de cuidar minimamente de si mesma,
não é, genuinamente cuidadora ou doadora de amor a outrem.
Não é outra a história de Rísia, que volta a Tijucopapo em busca da história de sua
mãe, Adelaide, como via possível para buscar o começo da sua própria história, vingar
a sua dignidade perdida e reencontrar com a menina de sua infância.
Uma travessia nos é narrada. Uma viagem de ida e uma viagem de volta. Uma
viagem de ida para São Paulo, uma viagem de volta para o Recife e para este lugar
chamado Tijucopapo que é um bairro pobre do Recife, que é um lugar geográfico, que
é um lugar histórico -, mas que é sobretudo um lugar simbólico.
Como nos esclarece Elódia Xavier [11], (...) Tijucopapo (...) figura na mitologia
pernambucana como símbolo de resistência. Em 1646, durante a invasão holandesa a
Pernambuco, sem ter o que comer, os flamengos da Nova Holanda invadiram a
pequena vila de Tijucopapo, hoje município de Goiana, a 63 quilômetros de Recife.
Conta a lenda que, sem armas de fogo, as mulheres do lugarejo enfrentaram a tropa
com panelas e pimenta e venceram a batalha.
Mas é como um espaço simbólico que Tijucopapo vai-se desenhando ao longo do
texto. Primeiro com um espaço original, misterioso, primordial, de onde nasceu a
linhagem feminina da protagonista,
(...) Foi em Tijucopapo que minha mãe nasceu. Embora tudo se esconda
de mim. Mas sendo que sei sobre o que ela me contou em acessos de um
desespero triste, e sobre o que sei que sou e que é dela e que escutei no
bucho dela e que está traçado na testa dela e no nosso destino, meu e dela.
(...) Só sei que minha mãe nasceu em Tijucopapo. Lugar de lama escura. O
resto, mistério, nem ela sabe. Só eu que sei. (p. 12-13).
Depois como um lugar onde Rísia terá de renascer ao reencontrar com suas origens
(Desse meu corpo que vai. Que vai ver se renasce em Tijucopapo onde nasceu mamãe.
(25-26)), e depois como espaço de guerra, de motim, de mulheres guerreiras e com as
quais ela vai-se identificando:
A relação de orfandade descrita por Basaglia sobre as mães que abandonam as filhas,
têm aqui uma explicação concreta já que a mãe de Rísia por ser a décima e tanta filha
teria de ser dada, este sentimento de orfandade é para todas elas uma herança, e o que
é transmitido entre elas é o abandono, a desvalia, a solidão
(...) Minha mãe nasceu e eu queria ver nisso a minha salvação. Mas não
é... (p. 14)
(...) Era 1935, todos os raios da lua escapuliam do céu preto alumiando
o caminho num atalho de serra por onde o jegue vinha empinando os
caçuás. Minha avó nem sequer açoitava o bicho; vinha pachorrenta, os
cabelos entronchados em cocó nas costas. Minha avó era tão negra que se
arrastava. Ela levava minha mãe, a que seria dada. Minha mãe veio num
caçuá. Minha mãe foi dada numa noite de luar. Minha vó não podia. Era o
seu décimo e tanto filho. Não podia matar mais um daquela fome que era
toda de farinha e charque e falta d´água. Minha mãe seria dada. Minha mãe
seria dada. Minha mãe era novinha como um filhote. Eu chorava como
nunca. (p.19)
Sabemos então de sua infância precária, dos tormentos que significavam os nove
meses de gravidez de sua mãe, do ódio que sentia pelo pai, da culpa pelo irmão que
nasce morto, de Jonas, o primeiro amor, de suas outras relações genealógicas, as
amigas, Nema, Luciana, Libânia, Ruth, Lita, da traição de tia Ilsa, da amante do pai,
Analice que ela jura de morte mas não consegue matar, da história da mudez e da
gagueira na infância, da magreza, da extrema pobreza, da menina que comia terra, das
giárdias, dos oxiúros, da tia alcoólatra, do desrespeito dos irmãos pelo seu espaço, seu
salário, seu trabalho, da perda do amor de Jonas e da ida para São Paulo. Uma vida
precária, pobre e frágil.
(...) desrespeitar a menina que existe dentro de mim. Que está sentada
num trono, e por isso eu vou a Tijucopapo. Nem que lá eu seja uma perdida
para o que há de beleza na safadeza. Nem que eu perca as mil festas e as
mil luzes de São Paulo, a rica. Nem que eu tenha de passar sem o meu gosto
pelo brilho das luzes, sem esses sabores (...) Não agüento como se faz em
São Paulo. Em São Paulo perde-se o amor de um homem e se está sujeito
a tudo. São Paulo é de um jeito que não é o meu. E é tremendo de choro
que suporto aceitar que São Paulo tem o seu jeito. (p.79)
A viagem de volta de São Paulo para Tijucopapo é uma longa travessia e agora
justificada pela maturidade e pelo desejo de reencontrar o lugar da origem materna
como o lugar de sua própria origem, lugar identitário, matricial,
(...) Estou indo embora da cidade onde me fiz mulher mas para onde
cheguei criança. Parece que um sobreviveu ao outro e portanto precisei vir.
Agora quero compor uma ária que recomponha a minha caminhada pela
estrada. Quero compor uma ária que saia música fina como as cordas do
violão. Uma ária história da minha passagem da estrada para essa mata. Da
minha andada pela mata. Uma ária que seja a carta que escreverei quando
chegar a Tijucopapo, a terra onde minha mãe nasceu. Uma ária que seja da
minha partida à minha chegada. Quero compor uma ária que recomponha
a minha retirada pela estrada e da estrada para o campo, esse, onde quero
encontrar as flores que pintarei na paisagem com lápis de cera, na carta de
minha mãe. Quero compor uma ária que recomponha a minha ira e a faça
calma criança amada. Quero compor uma ária de amor que ecoe nas
cavernas dessa montanha onde estou. (p.85)
Uma queda vai ser narrada. Um devaneio infantil, uma sensação de profundo mal
estar, uma lembrança da infância, Rísia criança lembra de um dia qualquer, uma manhã
e um pressentimento, um sentimento de desassossego, insatisfação, a lembrança do
pesadelo de ter sido raptada por um papafigo num cavalo alazão, misturada com o
surgimento de um pássaro preto na cozinha, um sentimento de infelicidade, uma
ansiedade sem fim, “infância são ânsias” (p.122), é sete de setembro e ela vai desfilar
de tarde, Rísia sobe num tamborete com um pedaço de pau nas mãos para cutucar a
irmã que estava tomando banho, por um buraco de tijolo que havia no alto, na parede
do banheiro. Rísia cai do tamborete, a queda e as sensações são narradas em
pormenores, a vertigem, a humilhação, o gosto amargo na boca. Quando ela acorda
muitas mulheres em volta da cama estão cuidando dela:
(...) Dez rosto de mulheres minhas mães. Tinha dez mães. Nenhuma
servia. Eu estava tão fraca e desprotegida que nem dez mães serviriam.
Nem dez abraços. Eu estava no lugar solitário que é o lugar de uma queda,
o arraso quase que total. Nenhuma mãe serviria mais. E havia dez rostos de
mulheres minhas mães. (p.127)
Quando Rísia acorda, ela já estava em Tijucopapo e haviam se passado nove meses:
(...) Ela está numa cama rodeada por mulheres, mulheres de cabelos
grossos como cordas arrastando pela crina do cavalo (p.130), (...) eram
mulheres que eu vira nascer, só podia ser (...) eram mulheres que não eram
minha mãe. Essas mulheres, que não eram minha mãe, tinham a sina das
que desembestam mundo adentro escanchadas em seus cavalos, amazonas
defendendo-se não se sabe bem de quê, só se sabe do que o amor as fez
traídas. Mulheres na defesa da causa justa. (...) Eu já estava em Tijucopapo.
Uma passagem. Um passe de fantasia, quase um intervalo de pensamentos,
um único passo. Eu cheguei a Tijucopapo por uma queda. Percorri um
abismo inteiro. Num tempo de nove meses. (p.131).
Ela reencontra Lampião, um guerreiro que luta por uma causa justa e percebe que é
amando de novo que se refaz (p.133), e diz que precisa dar um telefonema, escrever
uma carta, uma carta que ela ditaria a Lampião, uma carta para sua mãe:
(...) Nós vamos, e a bandeira há de ficar. Nós vamos fincar bandeira. Nós
vamos em busca da justiça das luzes, e caso haja destruição é porque nós
viemos de regiões assim, agrestes, de asperezas de alma, de docilidade
nenhuma, de nenhum beijo e nenhum abraço, de tiquinhos de comida na
cuia e de lombrigas na barriga, e de seda, mamãe, de insolação e forca no
caminho para a escola, de não saber mais da própria vontade - de não saber
de íamos à escola ou se fazíamos alguma coisa da vida (p.135)
(...) Mas ontem eu tive uma noite de muitos sonhos, entre os quais o de
que estou mesmo indo vingar a menina que existe dentro de mim e que não
posso desrespeitar, e que é uma menina sentada num trono, e que é uma
menina que chora sua incapacidade de onipotência exigida por uma mesa
longa de ministros. É por isso que eu vou. Porque eu posso no máximo
seguir Lampião. Por uma causa justa.
É isso mesmo, mamãe. Eu quero que minha vida tenha um final de filme
de cinema em outra língua, em língua inglesa. Eu quero que tudo termine
bem. (p.137)
Uma travessia de nove meses e uma anunciação, num parto às avessas, para a própria
mãe, nos são narrados, através de uma carta, de um telefonema, sabemos assim da
chegada de uma menina e de suas intenções. Uma menina que se transforma, no vazio
da queda, na solidão irremediável de ser só no mundo, em sua própria mãe.
Quem é Rísia no final da narrativa? Mais uma nordestina destruída por uma travessia
inglória no centro do país, de volta ao nordeste, e em guerra, marchando BR afora,
junto a uma multidão revoltosa? Rísia voltou para Tijucopapo? Morreu? Casou com
Lampião e foi feliz com o filho que pode ter sido gerado na noite na campina, na
chegada na incandescente Recife? Quem é Rísia, que projeta como uma Macabéa
clariceana num céu de cinemascope um final feliz? Que é uma égua tal qual o cavalo
de Joana? Agora eu sou uma estrela, em linguagem cinematográfica, não é, afinal, o
mesmo que dizer, eu quero que minha vida tenha um final de filme de cinema, eu quero
que tudo termine bem?
Rísia, é agora filha de Marilene Felinto, que ao partejar e maternar estas meninas
sertanejas, dar-lhes vozes e um destino - como o faz em As Mulheres de Tijucopapo e
em o Lago Encantado de Grongonzo - diz não à orfandade destas pobres meninas
brasileiras e que, como suas mães, traz, de muitas maneiras, nas malhas da
ancestralidade, um destino maldito de mães-meninas-sem-mãe. E ao qual ela diz não
através da escritura.
BIBLIOGRAFIA
CIPLIJAUSKAITÉ, Biruté. La novela femenina contemporánea (1970-
1985). Hacia una tipología de la narración en primera persona. Barcelona:
Anthropos, 1988.
WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1982.
Notas:
[1] Lélia Almeida é escritora e Doutoranda do Programa de Literatura Comparada
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
[4] WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.