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A temática negra não é muito bem aceita', diz escritora, cujo primeiro livro levou 20 anos para
ser publicado | Foto: Joyce Fonseca
Foi com essas mulheres, que completaram a alfabetização junto com a nova geração de
filhos e sobrinhos que chegava, que ela teve sua formação - e aprendeu a lição de
fortaleza.
Não a fortaleza folclórica que por vezes se atribui a "um povo negro que não sente dor,
que está sempre a cantar, que tem uma alegria já por herança", critica, e sim a fortaleza
da resiliência "que nos agrega" e "que nos salva".
A escritora mineira, que hoje vive em Macaé (RJ), está prestes e embarcar para Paris,
onde vai lançar a edição francesa do livro Insubmissas Lágrimas de Mulherese
participar de mesas literárias no Salão do Livro de Paris.
Em conversa com a BBC Brasil, Conceição questiona as dinâmicas que tornam a
ascensão social e profissional tão difícil para mulheres e para negros no Brasil.
Conceição Evaristo - Acho que são 130 anos de uma abolição inconclusa. Inconclusa
porque nós - a população pobre em geral, e mais ainda as mulheres negras - ainda não
conquistamos uma cidadania plena no que diz respeito a habitação, emprego, condições
de vida. A sociedade brasileira ainda tem essa dívida histórica para com a população
negra, e mais ainda para com as mulheres negras.
A gente reconhece a fortaleza que criamos na resiliência, que nos agrega, que nos salva. Sem
essa fortaleza, sem a criação de táticas de sobrevivência, a nossa ancestralidade morreria nos
próprios porões dos navios (negreiros)' | Foto: Joyce Fonseca
BBC Brasil - A senhora levou 20 anos para publicar sua primeira obra. Por que
demorou tanto, quais foram os obstáculos?
Até então, os brancos podiam dizer a nosso respeito. Mas quando a gente se apropria do
nosso discurso, da nossa história, isso é motivo de interdição.
BBC Brasil - A senhora usa a expressão "escrevivências" para falar na sua escrita,
feita a partir de suas vivências como mulher, negra, de origem pobre. Acha que
está aí a força de sua obra?
Conceição Evaristo - Não é que o homem não possa escrever sobre a mulher. Pode.
Não é que o branco não possa escrever sobre o negro. Pode.
Mas quando esse discurso falado ou escrito carrega a nossa subjetividade, justamente
porque ele nasce num lugar social, num lugar de gênero, num lugar racial diferente, ele
traz determinadas peculiaridades que aquele que escreve de fora, por mais que seja
competente do ponto de vista intelectual ou emocional, não vai trazer. Ele não traz uma
carga de quem escreve de dentro.
Aqui não tem nenhum juízo de valor, de querer dizer qual texto é mais bonito. Não é
isso não. Mas trata-se de apontar esse local diferente onde esse discurso nasce e é
desenvolvido.
BBC Brasil - Mas a senhora fala na importância de escrever com uma voz
feminina, afro-brasileira, nascida de dentro. Ainda há pouco espaço para essa voz
no Brasil, diante das perspectivas de uma elite que descende da colonização
europeia?
Evaristo - Há uma voz hegemônica que quer ser paradigma de tudo. Mas isso não
significa que o povo não criou, ou não cria, as suas vozes, as suas utopias. Essas vozes,
essas utopias, essas formas de reação, essas táticas, elas sempre existiram. Se não
existissem, a herança africana que marca a nacionalidade brasileira não existiria, já teria
sucumbido.
Mas por mais que uma voz hegemônica queira comandar, a água escapole entre os
dedos. Você não segura. Não retém a força da água. Então o povo também encontra
maneiras de se afirmar, de falar, de dizer.
Em todas as áreas, os poucos negros que conseguem uma ascensão social são vistos como
histórias de exceção" | Foto: Joyce Fonseca
BBC Brasil - A senhora fala muitos sobre como cresceu cercada de mulheres em
uma casa muito humilde. Como isso a marcou como mulher e escritora?
Aprendi a lição de fortaleza com essas mulheres, que não tinham formação escolar
completa e aprofundaram o processo de alfabetização na medida em que se tornaram
responsáveis por criar uma geração de filhos e sobrinhos.
Não falo da "fortaleza" incutida no imaginário que se tem de um povo negro que não
sente dor, que está sempre a cantar, que tem uma alegria já por herança... Esse
imaginário não nos reconhece como seres humanos, com alegrias, tristezas, solidão.
Esse imaginário retira nossa vulnerabilidade humana. Essa ideia de fortaleza a gente não
reconhece.
A gente reconhece a fortaleza que criamos na resiliência, que nos agrega, que nos salva.
Sem essa fortaleza, sem a criação de táticas de sobrevivência, a nossa ancestralidade
morreria nos próprios porões dos navios (negreiros).
BBC Brasil - O ano passado foi consagrador, com sua participação da Flip (a Festa
Literária Internacional de Paraty) e as exposições que o Itaú Cultural promoveu
sobre a sua obra, em São Paulo e no Complexo da Maré, no Rio. Como foi ver a
sua obra levada para dentro da favela?
Evaristo - Teve uma importância tremenda. Eu saí de um polo ao outro. Da avenida
Paulista (onde fica a sede do Itaú Cultural em São Paulo), com matéria no jornal
dizendo que eu estava no coração financeiro do Brasil, para a Maré.
Foi muito simbólico, porque é como se me devolvessem ao lugar que é meu. Ter a
oportunidade de estar com crianças e mulheres da periferia, mulheres pobres, que é uma
experiência minha... E poder despertar sua curiosidade, seu desejo, mostrar que
determinadas competências não são só das classes privilegiadas, que nós temos
determinadas competências como qualquer ser humano pode ter.
Ano passado realmente foi muito fértil para mim. Mas faço questão de afirmar, sem
pestanejar: o que me fez não é a mídia. Meu primeiro lugar de recepção foi o
movimento social negro. Foi a militância de homens e mulheres que me levou para as
escolas, para os saraus, para a pesquisa acadêmica.
Cartaz faz referência à campanha #MeToo; para escritora brasileira, é preciso que luta vá além
dos discursos em redes sociais
BBC Brasil - A senhora acha que o momento atual traz uma abertura maior para a produção
cultural de mulheres e artistas negros?
Evaristo - É o que eu desejo. Em todas as áreas, os poucos negros que conseguem uma
ascensão social são vistos como histórias de exceção. Mas as histórias de exceção
devem ser lidas para se pensar a regra.
Que regras são essas da sociedade brasileira para vermos uma mulher virar um expoente
no campo da literatura só aos 71 anos?
Enquanto você vê outras expoentes na literatura que às vezes são meninas com idade
para serem minha neta, mas como vêm de um grupo social diferenciado do meu, são
mais jovens, são brancas, têm sua competência logo revelada?
Por que a minha competência está sendo tão tardiamente reconhecida? (...) É preciso
questionar essas regras e dinâmicas sociais, culturais e econômicas que tornam tudo
muito mais difícil para as pessoas negras.
Quero que essa visibilidade que estou tendo tenha o efeito positivo de (fazer as pessoas)
procurar essa autoria negra, de mulheres e de homens.
E, sem sombra de dúvida, eu queria ter conseguido as coisas com muito mais facilidade.
Volto a falar: Eu tenho 71 anos. 71 anos não são 71 dias. É claro que estou feliz com o
reconhecimento, mas essas conquistas se dão depois de muito tempo de luta. Podia ter
sido um pouquinho mais fácil.
Evaristo - Teoricamente, sim. Mas eu não sei até que ponto as verdades que estão
sendo colocadas são incorporadas no dia a dia das pessoas. É um pouco cômodo fazer
militância pelas redes sociais.
Não há dúvida de que as denúncias feitas nas redes têm o mérito de atingir um número
enorme de pessoas, têm valor de militância e até de formação de consciência. Mas a luta
requer uma participação efetiva nos espaços, ou nos próprios momentos em que sua
presença é cobrada.
Se é hora de sair para as ruas, vamos sair para as ruas. Se é hora de dar uma aula bem
dada, vamos dar essa aula bem dada. Se é hora de compactuar com o outro ao assistir a
uma cena de racismo, uma cena de agressão contra o outro, vamos nos pronunciar. É
fácil radicalizar nas redes sociais. O mais difícil é se comprometer na hora da prática.
BBC Brasil - O que gostaria de dizer para outras mulheres?
Evaristo - Eu diria para não perderem a perspectiva de luta. Para olhar para o passado e
pensar nas mulheres quilombolas, nas mulheres que mesmo com a liberdade cerceada
conseguiram deixar a semente de luta, de liberdade, para nós.
É preciso construir o presente sem perder essa linha histórica. Sem perder o exemplo
das mulheres que palmilharam o caminho para que hoje estejamos aqui.