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O COLAPSO DA MODERNIZAÇÃO
PERIFÉRICA: A FRATURA BRASILEIRA DO
CAPITALISMO MUNDIAL
Resumo
Desde a gênese da formação social brasileira, a teoria social e a experiência estética nacional
assumiram formas variadas na tentativa de adequar os conceitos e as categorias teóricas clássico-
européias às características singulares do Brasil. Pretende-se neste ensaio reconstruir alguns
elementos da dialética entre as nossas singularidades e o ritmo universal e desigual da acumulação
capitalista, assim como sublinhar algumas das formas através das quais nossa experiência
intelectual e estética respondeu a ela. Busca-se igualmente versar algumas notas preliminares
sobre a importância e o significado dessas questões no mundo atual, quando o próprio processo
de modernização, naquele seu sentido clássico (que determinou boa parte da nossa melhor
tradição teórica), parece estar se esgotando, a ponto de o ritmo desigual e dualista da nossa
modernidade, recheada de grandes bolsões de pobreza, tornar-se enfim uma das expressões mais
sintomáticas da fratura social do capitalismo contemporâneo.
Palavras-chave: Modernidade periférica. Experiência intelectual. Dualidade. Colapso da
modernização.
Résumé
Depuis la gênese de la formation sociale brésilienne, la théorie sociale et l'expérience esthétique
nationale ont supposé des formes variées dans la tentative d'ajuster les concepts et les catégories
théoriques clássico-européias aux caractéristiques singulières du Brésil. Se prétend dans cet essai
reconstruire quelques éléments de la dialectique entre nôtre singularidades et le rythme universel
et inégale de l'accumulation capitaliste, ainsi que souligner certaines des formes à travers
lesquelles notre expérience intellectuelle et esthétique a répondu à elle. Il se cherche également
considérer l'importance et la signification de ces questions dans le monde actuel, quand le
processus de modernisation, dans son sens classique (qui a déterminé bonne partie de nôtre
mieux tradition théorique), semble être si en épuiser, à tel point que le rythme différent et dualiste
de notre modernité, remplie par grands poches de pauvreté, se rendre enfin une des expressions
le plus symptomatique de la fracture sociale du capitalisme contemporain.
Mots-clés: Modernité périphérique. Expérience intellectuelle. Dualité. Épuisement de la
modernisation.
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verdade oculta necessária e funcionalmente periférico como o Brasil. Não é o que se vê,
integrada no circuito global de valorização por exemplo, nos romances de José de
do capital. “Pensado como ‘atraso’ em Alencar, nos quais a transplantação do
relação a uma norma temporal imaginária, o modelo do romance europeu transforma as
anacronismo acaba por impor-se não como especificidades da formação social brasileira
anomalia residual, mas como atributo em “defeitos”, desvios de percurso.
essencial do presente”, como afirmou certa Importando a mesma composição formal do
vez Daniel Bensaïd (1999, p.45), em outro realismo europeu de influência romântica,
contexto. José de Alencar não pôde captar a natureza
Nota-se, portanto, que a “dialética singular da modernidade periférica no país,
negativa” e “sem síntese” que percorreu a cuja mediação do favor colocava o primeiro
vida cultural e ideológica do país revelou-se “em desacordo com o que a vida brasileira
sensivelmente diferente daquela que, por lhes confere” (SCHWARZ, 2000, p.53).
assim dizer mais “clássica”, associa o termo Por aqui, era preciso ter em conta
à prosa realista do grande romance que o nosso realismo literário, não afeito ao
oitocentista (ARANTES, 1992, p.93). A classicismo de um Balzac, por exemplo,
dualidade que aqui se fez passar por uma delimitar-se-ia sob padrões um tanto quanto
espécie de “dialética negativa” constituiu-se, diversos daqueles referentes ao padrão
a bem da verdade, como o reverso periférico europeu-clássico. No espectro da articulação
da dialética clássica, ao mesmo tempo em e combinação desigual entre várias formas
que acentuava a redefinição das contradições de relações sociais e de produção, o grande
e das sínteses próprias a esta última, “romance realista” floresceu, no Brasil,
expressiva daquele momento europeu em através da utilização deliberada de recursos
que a negação convivia com a possibilidade literários nitidamente anti-realistas
de uma ordem burguesa em construção. Não (ARANTES, 1992, p.93). Estamos falando,
por acaso, na formação social brasileira, a evidentemente, da figura de Machado de
“homologia estrutural” entre forma estética Assis, cuja sofisticação da forma literária foi
e forma social (ou entre romance e capaz de desvendar a forma social
sociedade), que se desenrolara sob a constitutiva do país, forma esta que veio a
mediação da percepção de nosso caráter dual servir de alicerce fundamental para que o
e instintivamente dialético, seguiu caminhos próprio crítico (no caso, Roberto Schwarz)
um tanto quanto diferentes daqueles pelos pudesse sistematizar o método dialético de
quais emergiu o grande romance realista dos uma crítica literária que era ao mesmo tempo
séculos XVIII e XIX, ancorado na ânsia pela uma interpretação do Brasil.
compreensão das relações sociais realmente Machado de Assis reiterou em nível
existentes em sua totalidade. formal o deslocamento próprio da vida
Eis, portanto, as raízes da limitação ideológica e cultural brasileiro em relação à
do mero transplante do modelo da dialética Europa, sabendo tirar proveito desse
clássica, como aquela cuja formulação se desajuste e dessa dualidade, inevitáveis em
deve a Lukács, para a compreensão da um país dependente como o Brasil. “Esta
dinâmica política e cultural do Brasil. A bem será a façanha de Machado de Assis”, diria
da verdade, em se tratando do modelo Roberto Schwarz (2000, p.36). No Machado
lukacsiano, seu esquema do romance da segunda fase, bem percebeu Schwarz, a
europeu pode muito bem ser utilizado para figura do narrador transformava em forma a
melhor articular a compreensão das dualidade própria de nossas classes
especificidades do nosso romance realista, dominantes, através de um constante vai-e-
em um país que não seguiu os mesmos vem entre a norma e a infração, entre o
parâmetros normativos clássicos. Assim, a arbítrio e o discurso esclarecido. Na “raiz
teoria se permite a autotransformação à social” dessa volubilidade narrativa estava
medida mesma em que é posta a prova das nada mais nada menos que a marcha singular
singularidades de um país de capitalismo do “liberal-escravismo” que aqui se fez
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ideologia dominante. Assim, o narrador fosse dois, não teríamos voz no capítulo da
machadiano, captando com maestria o literatura mundial” (ARANTES, 1992,
espírito dual de nossas elites, operava uma p.100). Uma vez mais, o caso brasileiro
estilização formal da combinação dialética apresenta uma feição semelhante àquela que
entre o antigo regime colonial e o mundo se deu na Rússia; ali também se percebia a
moderno. Em melhores palavras: “a existência de uma modernidade (no século
permanente reversibilidade de norma e XIX) igualmente ambígua e dualista,
infração que define a gangorra caprichosa destoada por um complexo de complexos,
em que balança o narrador machadiano sobre os quais se ergueu uma figura como
estiliza a convivência descompassada de Dostoievski, cujo “homem do subsolo”, ao
Antigo Regime colonial e país burguês” se deixar percorrer por uma certa dualidade,
(ARANTES, 1992, p.92). Enfim, prosa e apresentaria, segundo Roberto Schwarz
ritmo social seriam igualmente regidos pela (1989c), algumas afinidades com o nosso
mesma lógica dual, que acabava por se Brás Cubas. De dentro do “atraso histórico”
transformar em uma “dialética sem síntese”, operante, o romance burguês encontraria,
mediação da coexistência e articulação de aqui e lá, um quadro mais complexo, onde o
“dois Brasis”, como sugeria a fórmula típica progresso moderno já é percebido como
do dual-funcionalismo. uma desgraça e o atraso como uma
Nos textos literários de Machado de vergonha e traço de inferioridade
Assis pode-se verificar a formalização da (SCHWARZ, 1989c). Como se não bastasse,
experiência brasileira, cuja coexistência do o crítico norte-americano Marshall Berman,
atraso junto ao desenvolvimento do ao operar a análise de uma “modernidade
moderno nos conferiu uma percepção bizarra e desvirtuante”, como aquela de São
própria, singular. Por conseguinte, é Petersburgo ao longo do século XIX,
precisamente a subjacência desse atraso constatou também a existência de um
ainda não completamente morto que dualismo russo, cujo contraponto ao
possibilitou a gênese de um romancista tão incipiente cosmopolitismo petersburguense
perspicaz na caracterização das era resfriado pelo tradicionalismo
especificidades dessa experiência social “anacrônico” de Moscou. Para o intelectual
brasileira, centrada na permanência do atraso norte-americano, não seria arbitrário
e na sua combinação com um moderno que “interpretar a Rússia do século XIX como
já havia adentrado na fase de sua um arquétipo do emergente Terceiro Mundo
“decadência ideológica”3, após as revoluções do século XX”. (BERMAN, 1999, p.170).
de 18484. Daí que, talvez, “se o Brasil não A figura machadiana bem mostrou
que, no limite, o problema não é a imitação
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Para Lukács (1968), as emblemáticas revoluções
em si mesma, segundo sugerem aquelas
de 1848, ao evidenciarem o fim das potencialidades sempre revitalizadas e conservadoras defesas
revolucionárias da burguesia, acabaram por se da identidade ou integridade nacional. A
constituir no grande divisor de águas da cultura perspicácia maior de Machado de Assis foi
moderna. A ampla maioria da arte posterior a esse justamente a capacidade de estabelecer uma
período – salvo poucas exceções – seria duramente relação/imitação crítica das formas
caracterizada como expressão da “decadência
ideológica” do horizonte espiritual burguês, de européias modernas, o que lhe permitiu
agora em diante incapaz de dar origem a uma prosa atinar com a idéia de que os desajustes da
autenticamente realista, que, através de seus sociedade brasileira não significam apenas
personagens, revele as determinações últimas da sinais de atraso nacional, mas sim traços
realidade social. essenciais da própria modernidade, do seu
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Exatamente por isso, diz Roberto Schwarz:
formalismo superficial, que facilmente se
“Privados de seu contexto oitocentista europeu e
acoplados ao mundo da sociabilidade colonial, os transforma em acobertamento da
melhoramentos da civilização que importávamos persistência dos males que o espírito
passavam a operar segundo outra regra, diversa da moderno prometia erradicar. Tratava-se, e
consagrada nos países hegemônicos” (SCHWARZ, assim Machado bem soube proceder, de se
1989a, p.44).
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contemporaneidade junto à qual o resto da nação ao socialismo sem a plena consecução capitalista,
parecia ainda uma vasta província de Parnaso” “a Antropofagia visava queimar uma etapa”
(BOSI, 1979, p.141). (SCHWARZ, 1989b, p.37).
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Em relação à crença mantida por Oswald de Mais intensamente que as vanguardas européias, a
Andrade de que o primitivismo local poderia questão nacional influenciou decisivamente o
expressar um mapa alternativo – não-burguês - no modernismo brasileiro. Para o modernismo
progresso moderno, inclusive com muito a ensinar nacional, tratava-se antes de tudo de se inventar um
ao Ocidente, Roberto Schwarz (1989b, p.38) é país moderno. Assim, enquanto as vanguardas
categórico: “A distância no tempo torna visível a européias “não têm pátria, nem padrão, estilo ou
parte de ingenuidade e também ufanismo nestas valores nacionais propriamente a serem
propostas extraordinárias”. identificados e reconhecidos, o modernismo
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Vide a fórmula oswaldiana a um só tempo artístico brasileiro imprimiu ênfase na chave
interessante e curiosa: inocência brasileira + técnica nacional e nacionalista, não podendo ser
= utopia. Como Marx nas cartas a Vera Sassulitch interpretado sem essa mediação que lhe distingue a
(1881), em que o filósofo alemão especulava sobre gênese e os traços de forma e conteúdo” (FACIOLI,
a possibilidade de a comuna camponesa russa saltar 1994, p.166).
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Para Michael Löwy (1990, 1995), o romantismo É bom lembrar que, a despeito da idealização às
não se reduz, como se acostumou a pensar, a uma vezes excessiva do homem rural supostamente não
escola literária do século XIX; muito além, seu contaminado pela modernidade capitalista/urbana,
espectro ultrapassa o domínio das formas estéticas essas crenças ancoravam-se em uma base real: “a
tradicionais, comportando, através de um eixo insurgência dos movimentos de trabalhadores rurais
interno comum – idéia-força - que lhe é singular, os do período”, como as Ligas Camponesas. A
vários elementos aparentemente contraditórios sociedade brasileira, ainda predominantemente
assumidos por suas manifestações concretas. Em agrária, passava por um dos mais rápidos processos
suas palavras, “a característica essencial do de urbanização da história. Ademais, vivia-se o
anticapitalismo romântico é uma crítica radical à impacto das revoluções camponesas no exterior,
moderna civilização industrial (burguesa) – especialmente em Cuba e no Vietnã.
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incluindo os processos de produção e de trabalho – Além do mais, os anos 60 foram profundamente
em nome de certos valores sociais e culturais pré- marcados, a nível internacional, por vários traços de
capitalistas”. Todavia, continua ele, “a referência a um certo romantismo revolucionário: “a fusão entre
um passado (real ou imaginário) não significa vida pública e privada, a ânsia de viver o momento,
necessariamente que tenha uma orientação a liberação sexual, a fruição da vida boêmia, o
reacionária ou regressiva: pode ser revolucionária desejo de renovação (...) e a relativa pobreza de
tanto quanto conservadora” (LÖWY, 1990, p.36 – jovens artistas e intelectuais” (RIDENTI, 2006,
grifos do original). p.238).
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doente”15. Um tempo amarelo cujo reverso BERMAN, Marshall. Tudo o que é sólido
mais cruel é a brutalidade humana desmancha no ar: a aventura da modernidade. São
transformada em lógica social. Paulo: Companhia das Letras, 1999.
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Mestrando em Sociologia, Faculdade de Ciências e Letras – Araraquara. FCLAr, UNESP. 14800-901. Bolsista
FAPESP. O presente texto constitui parte específica da investigação mais ampla sobre as conseqüências do
esgotamento da modernização e das ideologias do progresso no pensamento social crítico contemporâneo,
especialmente na obra de Michael Löwy.
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