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AURORA ano IV número 6 - JUNHO DE 2010 ISSN: 1982-8004 www.marilia.unesp.

br/aurora

O COLAPSO DA MODERNIZAÇÃO
PERIFÉRICA: A FRATURA BRASILEIRA DO
CAPITALISMO MUNDIAL

Fabio Mascaro Queridoi

Resumo
Desde a gênese da formação social brasileira, a teoria social e a experiência estética nacional
assumiram formas variadas na tentativa de adequar os conceitos e as categorias teóricas clássico-
européias às características singulares do Brasil. Pretende-se neste ensaio reconstruir alguns
elementos da dialética entre as nossas singularidades e o ritmo universal e desigual da acumulação
capitalista, assim como sublinhar algumas das formas através das quais nossa experiência
intelectual e estética respondeu a ela. Busca-se igualmente versar algumas notas preliminares
sobre a importância e o significado dessas questões no mundo atual, quando o próprio processo
de modernização, naquele seu sentido clássico (que determinou boa parte da nossa melhor
tradição teórica), parece estar se esgotando, a ponto de o ritmo desigual e dualista da nossa
modernidade, recheada de grandes bolsões de pobreza, tornar-se enfim uma das expressões mais
sintomáticas da fratura social do capitalismo contemporâneo.
Palavras-chave: Modernidade periférica. Experiência intelectual. Dualidade. Colapso da
modernização.

Résumé
Depuis la gênese de la formation sociale brésilienne, la théorie sociale et l'expérience esthétique
nationale ont supposé des formes variées dans la tentative d'ajuster les concepts et les catégories
théoriques clássico-européias aux caractéristiques singulières du Brésil. Se prétend dans cet essai
reconstruire quelques éléments de la dialectique entre nôtre singularidades et le rythme universel
et inégale de l'accumulation capitaliste, ainsi que souligner certaines des formes à travers
lesquelles notre expérience intellectuelle et esthétique a répondu à elle. Il se cherche également
considérer l'importance et la signification de ces questions dans le monde actuel, quand le
processus de modernisation, dans son sens classique (qui a déterminé bonne partie de nôtre
mieux tradition théorique), semble être si en épuiser, à tel point que le rythme différent et dualiste
de notre modernité, remplie par grands poches de pauvreté, se rendre enfin une des expressions
le plus symptomatique de la fracture sociale du capitalisme contemporain.
Mots-clés: Modernité périphérique. Expérience intellectuelle. Dualité. Épuisement de la
modernisation.

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O passado traz consigo um índice misterioso, que o


impele à redenção. Pois não somos tocados por um sopro
do ar que foi respirado antes? Não existem, nas vozes
que escutamos, ecos de vozes que emudeceram? Não têm
as mulheres que cotejamos irmãs que elas não chegaram
a conhecer? Se assim é, existe um encontro marcado
entre as gerações precedentes e a nossa.
Walter Benjamin

Introdução alguns aspectos notáveis da dialética entre a


realidade singular e desigualmente

A compreensão das singularidades de


um país como o Brasil, situado na
periferia do capitalismo, revela, antes
de tudo, as insuficiências dos modelos e
lugares-comuns sociológicos elaborados para
combinada do desenvolvimento moderno
brasileiro - como parte dos desdobramentos
da modernidade capitalista
internacionalmente constituída – e as formas
através das quais nossa tradição intelectual e
se pensar a transição à modernidade nas estética respondeu a ela, de sorte a
sociedades européias clássicas. A dialética da configurar uma concepção do país que
modernização, em países como o Brasil, estivesse mais intimamente vinculada às
apresenta um nível de complexidade múltiplas determinações realmente
desconcertante, imputando à teoria social existentes, ora a nível explicitamente
crítica a necessidade de - a partir do caminho político, ora a partir de um prisma mais
percorrido pelo desenvolvimento nacional – propriamente estético ou cultural. Afinal,
realizar uma verdadeira análise concreta da “num país de passado colonial como o
situação concreta, tal como advertia Lênin aos nosso, a vida ideológica sempre girou em
russos na transição ao século XX. Aqui, torno da elaboração mental (e jurídico-
como na Rússia, as formas ocidentais- administrativa) da imagem que melhor
européias clássicas tiveram que ser revelasse – ou mascarasse – a fisionomia do
reinterpretadas, à luz dos desdobramentos país” (ARANTES, 1995, p.127).
singulares do nosso caminho ao mundo A reconstituição dos termos deste
moderno. Da esquerda à direita do espectro debate é central, não só pela importância
político e teórico, a temática da disparidade teórica que nele reside, mas senão – e
entre a sociedade brasileira e as idéias do sobretudo – pois que sinaliza ainda hoje para
liberalismo europeu percorreu a ampla a necessária compreensão dos dilemas da
maioria das tentativas de interpretação do modernidade periférica brasileira, em um
país, influenciando, igualmente, as análises e
manifestações literárias e estéticas que por conceitos se tornam mais precisos tão-somente à
aqui emergiram. medida que se relacionam e se engendram entre si,
Pois bem: ao longo da história do não comportando nenhuma definição absoluta em si
país, a teoria social e a experiência estética mesmos. Assim, ao estabelecer uma relação entre a
assumiram múltiplas formas em suas racionalidade científica a as potencialidades da
imaginação, o ensaio talvez possibilite uma
tentativas de apreender os principais traços
experiência intelectual mais aberta, ainda que – por
que, concretamente, demarcaram a outro lado – mais suscetível ao erro. No limite, a
constituição do Brasil. Partindo desse instabilidade e o caráter descontínuo do ensaio
pressuposto, o objetivo mais geral deste corresponde e dá forma à instabilidade própria do
ensaio1 refere-se à tentativa de compreender real e do espírito humano. Nele, uma totalidade é
conscientemente construída, pois que não é dada
imediatamente. Afinal de contas, “os paraísos do
1
Para Adorno (2003), o ensaio se caracteriza pela pensamento ainda são apenas paraísos artificiais,
renúncia à busca da certeza inevitável, própria do por onde passeia o pensamento” (ADORNO, 2003,
jargão positivista; no ensaio, como “forma”, os p.40).

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momento tal que o próprio processo de expressão periférica da dialética da Ilustração


modernização, naquele seu sentido clássico, em seu conjunto, esteve apartada de seu
parece ter se esgotado, anunciando o seu ímpeto reformador, servindo-nos antes de
próprio colapso. Se até outrora o epicentro tudo como um leque de aparência moderna,
da questão referia-se às formas de adaptação indispensável à convivência em um mundo
dos autores clássicos ao entendimento das que seguia crente nas possibilidades da
peculiaridades da nossa realidade, muitas “modernização”. Como bem salientara
vezes tendo em vista a formulação de uma Roberto Schwarz, em Nacional por subtração,
“sociologia da modernização” afinada (ou “brasileiros latino-americanos fazemos
não) com nossa formação societal, já há constantemente a experiência do caráter
algum tempo percebe-se uma perplexidade postiço, inautêntico, imitado da vida cultural que
teórica sem precedentes no momento levamos” (2005, p.109). Por aqui, “todos
mesmo de apontar os caminhos a se seguir comportam o sentimento da contradição
em um mundo caracterizado pelo entre a realidade nacional e o prestígio
congestionamento histórico das ideologias ideológico dos países que nos servem de
do progresso e da modernização. modelo” (SCHWARZ, 2005, p.110)2.
No limite, essa espécie de
“dualidade” desigualmente combinada
Experiência intelectual e sentimento de implicava no desconcerto das concepções
dualidade na modernidade periférica lineares do progresso, construídas sob a
perspectiva de avanço das sociedades
Em países de extração colonial como modernas centrais. O “sentimento da
o Brasil, o desenvolvimento desigual e dialética” que aqui se anunciou, circunscrito
combinado da transição modernizadora aos limites de uma “dialética negativa”,
expôs, conforme sugeriu Roberto Schwarz, enviesada por pares duais e antitéticos,
uma situação em que “o conjunto de colocava em xeque “as ilusões de uma
categorias históricas plasmadas pela concepção linear do progresso” e a
experiência intra-européia passaria a “ingenuidade dos progressismos correntes”,
funcionar num espaço com travejamento conforme afirmara o mesmo Roberto
sociológico diferente, diverso mas não alheio, Schwarz (1999, p.94). A recorrência às
em que aquelas categorias nem se aplicam características concretas de um país
com propriedade, nem podem deixar de se periférico como o Brasil havia muito era
aplicar” (SCHWARZ, 1995, p.95). Como capaz de evidenciar a insuficiência dos
parte da dinâmica abrangente do capital, modelos atinados na intensidade da
“cujos desdobramentos lhe dão a regra e vanguarda da modernidade européia.
definem a pauta”, tais categorias têm aqui Atentando-se aos contratempos e às
seu lugar. No entanto, na medida em que “a descontinuidades históricas mundiais do
colonização não criava sociedades capitalismo (o desenvolvimento desigual e
semelhantes à metrópole, nem a ulterior combinado), o “atraso” aparece, por aqui,
divisão internacional do trabalho igualava as como a contraface da modernidade
nações” (SCHWARZ, 1995, p.95), tratava-se especificamente periférica, como a sua
de um “espaço diverso”, e sua compreensão
demandou a necessidade de um ajuste 2
“Privados de seu contexto oitocentista europeu e
teórico das tensões singularmente acoplados ao mundo da sociabilidade colonial, os
constitutivas de uma formação social da melhoramentos da civilização que importávamos
“periferia do capitalismo”. passavam a operar segundo outra regra, diversa da
consagrada nos países hegemônicos. Daí o
Historicamente, a formulação e a
sentimento tão difundido de pastiche indigno, a que
reapropriação das categorias “plasmadas pela escapava Machado de Assis, cuja grande
experiência intra-européia” tiveram de imparcialidade permitia ver um modo particular de
acertar contas com a premissa básica de que funcionamento ideológico onde os demais críticos
nossa “dialética do esclarecimento”, como só enxergavam esvaziamento” (SCHWARZ, 2005,
p.130).

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verdade oculta necessária e funcionalmente periférico como o Brasil. Não é o que se vê,
integrada no circuito global de valorização por exemplo, nos romances de José de
do capital. “Pensado como ‘atraso’ em Alencar, nos quais a transplantação do
relação a uma norma temporal imaginária, o modelo do romance europeu transforma as
anacronismo acaba por impor-se não como especificidades da formação social brasileira
anomalia residual, mas como atributo em “defeitos”, desvios de percurso.
essencial do presente”, como afirmou certa Importando a mesma composição formal do
vez Daniel Bensaïd (1999, p.45), em outro realismo europeu de influência romântica,
contexto. José de Alencar não pôde captar a natureza
Nota-se, portanto, que a “dialética singular da modernidade periférica no país,
negativa” e “sem síntese” que percorreu a cuja mediação do favor colocava o primeiro
vida cultural e ideológica do país revelou-se “em desacordo com o que a vida brasileira
sensivelmente diferente daquela que, por lhes confere” (SCHWARZ, 2000, p.53).
assim dizer mais “clássica”, associa o termo Por aqui, era preciso ter em conta
à prosa realista do grande romance que o nosso realismo literário, não afeito ao
oitocentista (ARANTES, 1992, p.93). A classicismo de um Balzac, por exemplo,
dualidade que aqui se fez passar por uma delimitar-se-ia sob padrões um tanto quanto
espécie de “dialética negativa” constituiu-se, diversos daqueles referentes ao padrão
a bem da verdade, como o reverso periférico europeu-clássico. No espectro da articulação
da dialética clássica, ao mesmo tempo em e combinação desigual entre várias formas
que acentuava a redefinição das contradições de relações sociais e de produção, o grande
e das sínteses próprias a esta última, “romance realista” floresceu, no Brasil,
expressiva daquele momento europeu em através da utilização deliberada de recursos
que a negação convivia com a possibilidade literários nitidamente anti-realistas
de uma ordem burguesa em construção. Não (ARANTES, 1992, p.93). Estamos falando,
por acaso, na formação social brasileira, a evidentemente, da figura de Machado de
“homologia estrutural” entre forma estética Assis, cuja sofisticação da forma literária foi
e forma social (ou entre romance e capaz de desvendar a forma social
sociedade), que se desenrolara sob a constitutiva do país, forma esta que veio a
mediação da percepção de nosso caráter dual servir de alicerce fundamental para que o
e instintivamente dialético, seguiu caminhos próprio crítico (no caso, Roberto Schwarz)
um tanto quanto diferentes daqueles pelos pudesse sistematizar o método dialético de
quais emergiu o grande romance realista dos uma crítica literária que era ao mesmo tempo
séculos XVIII e XIX, ancorado na ânsia pela uma interpretação do Brasil.
compreensão das relações sociais realmente Machado de Assis reiterou em nível
existentes em sua totalidade. formal o deslocamento próprio da vida
Eis, portanto, as raízes da limitação ideológica e cultural brasileiro em relação à
do mero transplante do modelo da dialética Europa, sabendo tirar proveito desse
clássica, como aquela cuja formulação se desajuste e dessa dualidade, inevitáveis em
deve a Lukács, para a compreensão da um país dependente como o Brasil. “Esta
dinâmica política e cultural do Brasil. A bem será a façanha de Machado de Assis”, diria
da verdade, em se tratando do modelo Roberto Schwarz (2000, p.36). No Machado
lukacsiano, seu esquema do romance da segunda fase, bem percebeu Schwarz, a
europeu pode muito bem ser utilizado para figura do narrador transformava em forma a
melhor articular a compreensão das dualidade própria de nossas classes
especificidades do nosso romance realista, dominantes, através de um constante vai-e-
em um país que não seguiu os mesmos vem entre a norma e a infração, entre o
parâmetros normativos clássicos. Assim, a arbítrio e o discurso esclarecido. Na “raiz
teoria se permite a autotransformação à social” dessa volubilidade narrativa estava
medida mesma em que é posta a prova das nada mais nada menos que a marcha singular
singularidades de um país de capitalismo do “liberal-escravismo” que aqui se fez

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ideologia dominante. Assim, o narrador fosse dois, não teríamos voz no capítulo da
machadiano, captando com maestria o literatura mundial” (ARANTES, 1992,
espírito dual de nossas elites, operava uma p.100). Uma vez mais, o caso brasileiro
estilização formal da combinação dialética apresenta uma feição semelhante àquela que
entre o antigo regime colonial e o mundo se deu na Rússia; ali também se percebia a
moderno. Em melhores palavras: “a existência de uma modernidade (no século
permanente reversibilidade de norma e XIX) igualmente ambígua e dualista,
infração que define a gangorra caprichosa destoada por um complexo de complexos,
em que balança o narrador machadiano sobre os quais se ergueu uma figura como
estiliza a convivência descompassada de Dostoievski, cujo “homem do subsolo”, ao
Antigo Regime colonial e país burguês” se deixar percorrer por uma certa dualidade,
(ARANTES, 1992, p.92). Enfim, prosa e apresentaria, segundo Roberto Schwarz
ritmo social seriam igualmente regidos pela (1989c), algumas afinidades com o nosso
mesma lógica dual, que acabava por se Brás Cubas. De dentro do “atraso histórico”
transformar em uma “dialética sem síntese”, operante, o romance burguês encontraria,
mediação da coexistência e articulação de aqui e lá, um quadro mais complexo, onde o
“dois Brasis”, como sugeria a fórmula típica progresso moderno já é percebido como
do dual-funcionalismo. uma desgraça e o atraso como uma
Nos textos literários de Machado de vergonha e traço de inferioridade
Assis pode-se verificar a formalização da (SCHWARZ, 1989c). Como se não bastasse,
experiência brasileira, cuja coexistência do o crítico norte-americano Marshall Berman,
atraso junto ao desenvolvimento do ao operar a análise de uma “modernidade
moderno nos conferiu uma percepção bizarra e desvirtuante”, como aquela de São
própria, singular. Por conseguinte, é Petersburgo ao longo do século XIX,
precisamente a subjacência desse atraso constatou também a existência de um
ainda não completamente morto que dualismo russo, cujo contraponto ao
possibilitou a gênese de um romancista tão incipiente cosmopolitismo petersburguense
perspicaz na caracterização das era resfriado pelo tradicionalismo
especificidades dessa experiência social “anacrônico” de Moscou. Para o intelectual
brasileira, centrada na permanência do atraso norte-americano, não seria arbitrário
e na sua combinação com um moderno que “interpretar a Rússia do século XIX como
já havia adentrado na fase de sua um arquétipo do emergente Terceiro Mundo
“decadência ideológica”3, após as revoluções do século XX”. (BERMAN, 1999, p.170).
de 18484. Daí que, talvez, “se o Brasil não A figura machadiana bem mostrou
que, no limite, o problema não é a imitação
3
Para Lukács (1968), as emblemáticas revoluções
em si mesma, segundo sugerem aquelas
de 1848, ao evidenciarem o fim das potencialidades sempre revitalizadas e conservadoras defesas
revolucionárias da burguesia, acabaram por se da identidade ou integridade nacional. A
constituir no grande divisor de águas da cultura perspicácia maior de Machado de Assis foi
moderna. A ampla maioria da arte posterior a esse justamente a capacidade de estabelecer uma
período – salvo poucas exceções – seria duramente relação/imitação crítica das formas
caracterizada como expressão da “decadência
ideológica” do horizonte espiritual burguês, de européias modernas, o que lhe permitiu
agora em diante incapaz de dar origem a uma prosa atinar com a idéia de que os desajustes da
autenticamente realista, que, através de seus sociedade brasileira não significam apenas
personagens, revele as determinações últimas da sinais de atraso nacional, mas sim traços
realidade social. essenciais da própria modernidade, do seu
4
Exatamente por isso, diz Roberto Schwarz:
formalismo superficial, que facilmente se
“Privados de seu contexto oitocentista europeu e
acoplados ao mundo da sociabilidade colonial, os transforma em acobertamento da
melhoramentos da civilização que importávamos persistência dos males que o espírito
passavam a operar segundo outra regra, diversa da moderno prometia erradicar. Tratava-se, e
consagrada nos países hegemônicos” (SCHWARZ, assim Machado bem soube proceder, de se
1989a, p.44).

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travar um processo de “devoração” (isto marxismo, que de catecismo voltaria a ser


está, absorção criteriosa dos ventos culturais forma inspiradora de conhecimento vivo,
externos) da cultura européia, com vistas à graças também ao esforço de legitimá-lo no
construção de uma literatura e de uma teoria terreno adverso da respeitabilidade
social brasileira moderna. Mesmo porque, científica”; enfim, “como ponto de partida e
gostemos ou não, não deixamos de ser um horizonte conclusivo”, buscava-se nada mais
“ponto nevrálgico” por onde passa e se nada menos do que “refazer radicalmente o
revela algo da História Mundial diagnóstico da síndrome brasileira de
(SCHWARZ, 1989c; CANDIDO, 1970). origem, do complexo colonial à nossa
A vida cultural e ideológica nacional inserção oblíqua e subordinada no sistema
sempre refletiu as ambivalências imanentes à mundial do capitalismo contemporâneo”
condição periférica do país, de onde se (ARANTES, 1995, p.127). Alargando os
destaca um notável “sentimento da dialética termos da dialética localismo-
na experiência intelectual brasileira” cosmopolistismo, momento chave da
(ARANTES, 1992), uma dialética quase que “sensação de dualidade” que delimitou os
instintiva, “negativa”, envolta por um principais traços da “experiência brasileira”,
composto de pares duais, antitéticos, de que a cultura filosófica e sociológica da “Maria
a obra de Sérgio Buarque de Holanda é Antônia” almejou, principalmente após o
expressão certeira. Dualidade, aliás, que se golpe de 1964, redefinir não apenas a
bem compreendida, mostra-se como algo compreensão e as possibilidades de
substancialmente diferente de uma dualidade superação daquilo que Florestan Fernandes
de tipo funcionalista, normativa, chamava de “obstáculos estruturais à
sociologicamente estática; dualidade emergência da ordem social competitiva” no
dialética, por assim dizer, expressão Brasil. Antes de tudo, era preciso também
periférica do desenvolvimento desigual e “desvendar as formas através das quais o
combinado do capitalismo. É nessa ‘atraso’ se combinava com o ‘moderno’ e era
perspectiva que se tornou possível a funcional a ele” (LAHUERTA, 2005, p.182).
compreensão satisfatória, por aqui, de uma Uma vez mais, retorna-se à dualidade
vida cultural e ideológica em que, própria da formação social brasileira.
amalgamando o “arcaico” e o “moderno”, as
idéias pareciam, de fato, estar “fora do
lugar” (SCHWARZ, 1989c). Dualidade à brasileira: o modernismo
No processo de compreensão estético
propriamente teórica da articulação dialética
entre o “atraso” e o “moderno”, traduzindo O primeiro modernismo brasileiro,
as ambivalências próprias da formação social ele mesmo expressão daquela “imundície de
brasileira, merece destaque a tradição teórica contrastes” em face da qual Mario de
que, inicialmente constituída ao redor da Andrade já nos alertara, também é tributário
figura de Florestan Fernandes na dessa cisão de origem que atravessou toda a
Universidade de São Paulo (USP), história do país. Se o seu impulso inicial
desdobrou-se na formação do assim rendia tributos ao cosmopolitismo moderno
chamado “Seminário d’O Capital”. Segundo de São Paulo e às transformações que o
Paulo Arantes, o Seminário de Marx, como primeiro pós-guerra provocou nos sistemas
também ficou conhecido, definia-se “pelo culturais mundialmente5, sua relação própria
propósito de rever integralmente as
interpretações do país e do marxismo” 5
“A virada do primeiro pós-guerra foi internacional
(ARANTES, 1995, p.126). Em sua
e fez brechas em todos os sistemas culturais que
plataforma teórica, a “nova geração uspiana” mostravam indícios de saturação. No Brasil, a área
combinava: em primeiro lugar, um “repúdio em que o conflito provinciano/citadino se fazia
ostensivo do marxismo dito soviético”; em sentir com mais agudez era São Paulo. Aqui a
segundo, uma tentativa de “rejuvenescer o ruptura foi possível, porque só aqui o processo
social e econômico gerava uma sede de

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entre forma e conteúdo era delimitada, em da ordem burguesa. Entretanto, “a


ultima instância, pela dualidade característica modernidade no caso não consiste em
da nossa formação social. Era na São Paulo romper com o passado ou dissolvê-lo, mas
do moderno triunfante, mas também em depurar os seus elementos e arranjá-los
contraditório, que as “imagens novas da dentro de uma visão atualizada e,
indústria, da máquina, da metrópole, do naturalmente, inventiva, como que dizendo,
burguês, do proletário e do imigrante, e, do alto onde se encontra: tudo isso é meu
sinal de relevo, do intelectual sofrido e país” (SCHWARZ, 1989b, p.22)8.
irônico, puderam surgir na poesia de Mário e Tratava-se de uma fusão entre
no mosaico futurista de Oswald de técnica e instinto (BOSI, 1979), que acabaria
Andrade” (BOSI, 1979, p.143). E no âmbito fazer resplandecer uma visão dualmente
desse espaço-tempo moderno, optava-se pelo encantada do Brasil, envolvendo as partes
efeito de síntese à minúcia descritiva (BOSI, contrárias numa mesma simpatia; algo que,
1979), de onde se destacou a figura de para Schwarz, contribuíra para suspender os
Oswald de Andrade. antagonismos em favor de uma
Oswald de Andrade, em um harmonização alegórica: o que era conflito
momento em que o modernismo ainda não real transforma-se contraste pitoresco
havia sido cooptado pelos intentos da (SCHWARZ, 1989b, p.21, 22). O mesmo
modernização conservadora (e, portanto, equívoco estaria na raiz da versão estética do
quando ainda não havia sido revelada aquela dualismo posterior ao golpe de 1964: o
certa dose de ingenuidade e ufanismo em Tropicalismo, com sua requintada “mistura”
suas proposições6), realizou uma das mais das guitarras com o melhor de nossa
interessantes expressões artísticas da tradição dos sertões. Condicionado pelo
dualidade à brasileira. A obra de Oswald, “novo e excitante surto de industrialização”
toda percorrida por conclusões otimistas, e de 1955/60, o tropicalismo brasileiro teria
por vezes eufórica, quanto aos rumos dessa como eixo angular o resgate neo-
cisão dual, sustentou-se na justaposição antropofágico daquela visão técno-mítica do
alegórica de elementos próprios ao Brasil- nosso primeiro modernismo, que, também
colônia e ao Brasil-burguês, por meio das pautado por nossa ânsia de modernidade,
quais conviveram e se conciliaram o ainda guardava esperanças nas promessas da
“moderno-de-província”, o “moderníssimo” modernização, ao contrário de boa parte das
e claro, o “arcaico”. Situado no ponto alto vanguardas européias, como o surrealismo.
do modernismo nacional e internacional, o No limite, por aqui, recolocava-se o país nas
poeta brasileiro se viu marcado pelas trilhas de um encontro apontado para o
perspectivas radicalmente democráticas e futuro.
antitradicionais abertas pelo progresso A busca pela fusão das raízes mais
industrial7, ditadas na época pela crise geral profundas do povo brasileiro com a luta por

contemporaneidade junto à qual o resto da nação ao socialismo sem a plena consecução capitalista,
parecia ainda uma vasta província de Parnaso” “a Antropofagia visava queimar uma etapa”
(BOSI, 1979, p.141). (SCHWARZ, 1989b, p.37).
6 8
Em relação à crença mantida por Oswald de Mais intensamente que as vanguardas européias, a
Andrade de que o primitivismo local poderia questão nacional influenciou decisivamente o
expressar um mapa alternativo – não-burguês - no modernismo brasileiro. Para o modernismo
progresso moderno, inclusive com muito a ensinar nacional, tratava-se antes de tudo de se inventar um
ao Ocidente, Roberto Schwarz (1989b, p.38) é país moderno. Assim, enquanto as vanguardas
categórico: “A distância no tempo torna visível a européias “não têm pátria, nem padrão, estilo ou
parte de ingenuidade e também ufanismo nestas valores nacionais propriamente a serem
propostas extraordinárias”. identificados e reconhecidos, o modernismo
7
Vide a fórmula oswaldiana a um só tempo artístico brasileiro imprimiu ênfase na chave
interessante e curiosa: inocência brasileira + técnica nacional e nacionalista, não podendo ser
= utopia. Como Marx nas cartas a Vera Sassulitch interpretado sem essa mediação que lhe distingue a
(1881), em que o filósofo alemão especulava sobre gênese e os traços de forma e conteúdo” (FACIOLI,
a possibilidade de a comuna camponesa russa saltar 1994, p.166).

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uma perspectiva de futuro, dualidade Glauber Rocha; e Os Fuzis, de Ruy Guerra),


imanente aos ofícios políticos e culturais da passando pela dramaturgia do Teatro de
experiência brasileira, também seria Arena de São Paulo ou de Dias Gomes, pela
marcante no espectro do florescimento música engajada de Carlos Lyra e Sérgio
político-cultural que sacudiu o país ao final Ricardo até as manifestações oriundas dos
da década de 1950 e nos anos 60. Para CPCs (Centros Populares de Cultura) da
Marcelo Ridenti (2006), aquele foi um UNE (RIDENTI, 2006, p.234).
período em que se construiu uma “estrutura Essas obras e manifestações estéticas
de sentimento da brasilidade (romântico) e culturais, em sua idealização do homem do
revolucionária”, em um movimento que, a campo10, e a despeito da variedade artística e
um só tempo moderno e crítico da cultural que representam, buscavam “no
modernidade (uma “autocrítica da passado uma cultura popular autêntica para
modernidade”, como diria Michael Löwy a construir uma nova nação, ao mesmo tempo
propósito dos modernos movimentos de moderna e desalienada” (RIDENTI, 2006,
coloração romântica9), almejava entrever “no p.235); vislumbravam assim uma
passado (as raízes populares nacionais) as modernização alternativa, cujo acento para o
bases para construir o futuro de uma futuro vinha acompanhado de uma nostalgia
revolução nacional modernizante que, ao melancólica em relação a uma comunidade
final do processo, poderia romper as mítica já não existente. O “país do futuro”
fronteiras do capitalismo” (RIDENTI, 2006, seria entreposto ao resgate e rememoração
p.233). Na miragem da “razão dualista” das nossas raízes, do nosso passado, que
disseminada pelo ISEB (Instituto Superior seriam sintetizados na arte nacional-popular.
de Estudos Brasileiros), pela CEPAL A tradição dos oprimidos do passado como
(Comissão Econômica para a América componente ativo na configuração de uma
Latina) e pelo PCB (Partido Comunista perspectiva de futuro, desdobramentos que
Brasileiro), o “homem novo” entrelaçado acenariam para o que Michael Löwy (1995)
pela brasilidade romântico revolucionária denomina “romantismo revolucionário”11.
baseava-se em uma idealização do autêntico Mesmo o tropicalismo, a sua maneira
homem do povo, situado no passado e não peculiar, e divergindo de boa parte da
contaminado pela modernidade urbana. brasilidade nacional-popular no campo da
Fariam parte dessa constelação multifacetada MPB, também fez parte dessa estrutura de
desde a trilogia clássica do início do Cinema sentimento, muito embora já anunciando seu
Novo (Vidas Secas, de Nelson Pereira dos esgotamento e antevendo – talvez – a
Santos; Deus e o Diabo na Terra do Sol, de

9 10
Para Michael Löwy (1990, 1995), o romantismo É bom lembrar que, a despeito da idealização às
não se reduz, como se acostumou a pensar, a uma vezes excessiva do homem rural supostamente não
escola literária do século XIX; muito além, seu contaminado pela modernidade capitalista/urbana,
espectro ultrapassa o domínio das formas estéticas essas crenças ancoravam-se em uma base real: “a
tradicionais, comportando, através de um eixo insurgência dos movimentos de trabalhadores rurais
interno comum – idéia-força - que lhe é singular, os do período”, como as Ligas Camponesas. A
vários elementos aparentemente contraditórios sociedade brasileira, ainda predominantemente
assumidos por suas manifestações concretas. Em agrária, passava por um dos mais rápidos processos
suas palavras, “a característica essencial do de urbanização da história. Ademais, vivia-se o
anticapitalismo romântico é uma crítica radical à impacto das revoluções camponesas no exterior,
moderna civilização industrial (burguesa) – especialmente em Cuba e no Vietnã.
11
incluindo os processos de produção e de trabalho – Além do mais, os anos 60 foram profundamente
em nome de certos valores sociais e culturais pré- marcados, a nível internacional, por vários traços de
capitalistas”. Todavia, continua ele, “a referência a um certo romantismo revolucionário: “a fusão entre
um passado (real ou imaginário) não significa vida pública e privada, a ânsia de viver o momento,
necessariamente que tenha uma orientação a liberação sexual, a fruição da vida boêmia, o
reacionária ou regressiva: pode ser revolucionária desejo de renovação (...) e a relativa pobreza de
tanto quanto conservadora” (LÖWY, 1990, p.36 – jovens artistas e intelectuais” (RIDENTI, 2006,
grifos do original). p.238).

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emergência de uma nova estrutura de permanente, não mais impulsionados por


sentimento (RIDENTI, 2006, p.245). um futuro a ser alcançado, como naquele
Ora, o modernismo nas artes período histórico em que ainda estavam
pressupõe uma relação tensa e contraditória garantidas algumas das possibilidades
com o processo de constituição da oriundas da Segunda Revolução Industrial.
modernidade. Segundo a argumentação de E, nesse contexto, ainda que a globalização
Perry Anderson (2002), em texto no qual manifeste mais uma tentativa de liquidar as
polemiza com o crítico norte-americano “patologias” subsistentes nas sociedades
Marshall Berman, o modernismo se periféricas, a ambivalência entre civilização e
caracteriza historicamente: 1) pela resistência barbárie, em medida crescente, revela a
ao academicismo nas artes; 2) pelas impossibilidade de qualquer reunificação
invenções industriais de impacto na vida modernizante.
cotidiana, geradoras de esperanças libertárias No expressivo caso brasileiro, o
no avanço tecnológico; 3) e pela esgotamento do desenvolvimentismo abriu o
“proximidade imaginativa da revolução terreno para a emergência intempestiva
social” (RIDENTI, 2006, p.246). Essas daquilo que Chico de Oliveira bem chamou
coordenadas teriam desaparecido na Europa de “ornitorrinco”, esse “bicho que não é isso
após a Segunda Guerra; porém, nem aquilo”. Se até outrora, o
permaneceriam presentes em muitos dos subdesenvolvimento, no âmbito das
países do chamado Terceiro Mundo, ainda possibilidades legadas pela Segunda
que sob a tendência em superá-las. Para Revolução Industrial, ainda supunha a
Ridenti (2006, p.246, 247), essas possibilidade de saltos e avanços na
coordenadas históricas do modernismo transição capitalista-moderna, a irrupção do
estavam presentes na sociedade brasileira, “ornitorrinco”, tributário das modificações
“do final dos anos 1950 até 1968”. Nesse impostas pela Terceira Revolução Industrial,
período, torna evidente, a bem dizer, a nossa
era significativa a luta contra o poder “evolução truncada”, que por sua vez
remanescente das oligarquias rurais e desautoriza de uma vez por todas a velha
suas manifestações políticas e culturais,
havia um otimismo modernizador com crença de que poderíamos, se nos
o salto na industrialização a partir do voltássemos para o futuro capitalista, superar
governo Kubitschek, sem contar o os aspectos “passageiros” do capitalismo
imaginário da revolução brasileira – dependente. “Enquanto o progresso técnico
fosse ela democrático-burguesa (de da Segunda Revolução Industrial permitia
libertação nacional) ou socialista -,
impulsionado pelos movimentos
saltar à frente, operando por rupturas sem
sociais de então (RIDENTI, 2006, p. prévia acumulação técnico-científica, por se
246, 247). tratar de conhecimento difuso e universal, o
novo conhecimento técnico científico está
trancado nas patentes, e não está disponível
nas prateleiras do supermercado das
O esgotamento da modernização: o inovações” (OLIVEIRA, 2003, p.138).
Brasil como laboratório do A chamada Terceira Revolução
desenvolvimento desigual e combinado Industrial, intensificada no bojo da
mundialização do capital, levou aos
No entanto, o esgotamento da extremos a informalidade como necessidade
modernização almejada, aqui, como no mesma da reprodução do capital. “Este é o
mundo, no âmbito da chamada Terceira lado contemporâneo não-dualista da
Revolução Industrial (desde pelo menos a acumulação de capital na periferia, mas que
década de 1960), anunciara o começa a se projetar também no núcleo
congestionamento daquelas coordenadas desenvolvido” (OLIVEIRA, 2003 p.137).
históricas do modernismo, razão pela qual Mais do que nunca, necessita-se, então, de
hoje encontramo-nos neste “estado de sítio” uma ruptura com a “idéia fixa construção-

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nacional-interrompida, herdada do congestionado até mesmo a possibilidade da


imaginário positivador da assim chamada imagem republicada tradicional da nação
modernização capitalista” (ARANTES, integradora, o que não impediu que as
2008, p.17)12. classes dominantes ainda elegessem a
A própria trajetória de Chico de “exclusão” como o eixo da “fratura social”
Oliveira, desde a “Crítica da razão dualista” do mundo, identificando-a com o atraso a
(1972) até o recente “O ornitorrinco” ser superado. Nesse sentido, a histórica
(2003), é expressiva dos caminhos condição subdesenvolvida dos países
percorridos pelo capitalismo periférico à periféricos - em cuja modernização se
brasileira. A “Crítica...”, apesar de vislumbrava a superação do atraso -,
desautorizar com muita acuidade as ilusões transforma-se na vanguarda e no
desenvolvimentistas e modernizadoras de “laboratório do desenvolvimento desigual e
um certo dualismo cepalino, ainda se deixava combinado de um capitalismo que parece
animar pela perspectiva de superação continuar o mesmo” (ARANTES, 2004,
histórica da nossa condição. Articulando p.77). Afinal, “o nosso trabalho informal em
política, economia e classes sociais, e na metástase anuncia o futuro do setor formal
contramão do dualismo da CEPAL, Chico mundo afora, está aqui um dos grandes
de Oliveira “imaginava um esquema laboratórios em que a Terceira Revolução
moderno de viabilização nacional, que Industrial, regime financeiro da acumulação
convocava o país à consciência inclusiva – etc., precipitou a universalização de trabalho
por oposição a excludente -, como momento abstrato” (ARANTES, 2007, p.223). Em
de autotransformação” (SCHWARZ, 2003, tempos de acumulação flexível, a fluidez
p.19). Já o “ornitorrinco”, por seu turno, ordem-desordem, característica da formação
assinala as razões para a “derrota” das histórica brasileira, torna-se a exceção
poucas esperanças que a “Crítica...” havia permanente de uma “periferização do
anunciado; o ensaio enuncia a derrocada mundo”, algo como uma extensão planetária
final das possibilidades imanentes à condição da fratura social típica das sociedades
de país subdesenvolvido. periféricas14. Na França, por exemplo, em
O recente colapso da face da emergência de grandes bolsões de
13
modernização , que encontra na periferia a precarização social, “não faltou quem
sua expressão mais dramática, parece ter começasse a reparar que não era
inteiramente arbitrária a transposição
12
“O ornitorrinco é isso: não há possibilidade de européia de conceitos forjados há 30 anos
permanecer como subdesenvolvido e aproveitar as por especialistas franceses em América
brechas que a Segunda Revolução Industrial Latina” (ARANTES, 2004).
propiciava; não há possibilidade de avançar, no
sentido da acumulação digital-molecular: as bases
Mas atenção: como já havia alertado
internas da acumulação são insuficientes, estão Roberto Schwarz em Nacional por subtração
aquém das necessidades para uma ruptura desse (2005, p.117-120), tal situação não significa
porte. Restam apenas as ‘acumulações primitivas’, um afrouxamento das relações de
tais como as privatizações propiciaram: mas agora subordinação entre os países. O alívio
com o domínio do capital financeiro, elas são proporcionado pela ruptura conceitual com
apenas transferências de patrimônio, não são,
propriamente falando, ‘acumulação’ [...]. O o primado da origem e das hierarquias
ornitorrinco capitalista é uma acumulação truncada (empreitada cara à filosofia pós-estruturalista
e uma sociedade desigualitária sem remissão”
(OLIVEIRA, 2003, p.150).
13 14
Na perspectiva de Robert Kurz (1993), a Walter Benjamin já havia, décadas atrás (sob a
derrocada do socialismo realmente existente no vigência dramática do fascismo), chamado atenção
Leste europeu, longe de sugerir a vitória definitiva para o caráter “permanente” da exceção no mundo
do capitalismo e do Ocidente, manifestou, na capitalista. Disse ele: “A tradição dos oprimidos
verdade, os sintomas mais evidentes da crise global nos ensina que o ‘estado de exceção’ em que
do moderno sistema produtor de mercadorias, vivemos é na verdade regra geral. Precisamos
anunciada pelo colapso das famigeradas ideologias construir um conceito de história que corresponda a
da “modernização”. essa verdade” (BENJAMIN, 1994, p.226).

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francesa, especialmente Foucault e Derrida) dualidades de um país da periferia do


não anula a subordinação concreta, que se capitalismo como o Brasil, dos limites e das
traduz na revitalização, sob novas bases, do perversões do “progresso” e da
ímpeto imperialista do capitalismo. A “modernidade”. Desde os primórdios da
periferia ainda é periferia, e por isso formação social brasileira, fomos parte –
reproduz de forma ampliada e intensificada sem necessariamente colher os seus frutos
os traços mais deletérios do sistema maduros – do circuito global de valorização
capitalista global, principalmente o do capital, testemunhando com agudeza a
desemprego crônico. O problema é que, sua face mais diretamente perversa, assim
cada vez mais, é essa periferia a regra geral, a como os limites dos paradigmas ideológicos
exceção permanente do capitalismo, de tal dominantes. Assim, a experiência da vida
forma que os países do “centro” do sistema social brasileira – para a qual a sensação
vêem a proliferação de dilemas e dramas ideológica e artística de dualidade era a sua
sociais que, até então, pareciam confinados expressão certeira – pode proporcionar um
ao lado desvirtuado – e subdesenvolvido – bom ponto de partida para a revitalização da
da reprodução capitalista. teoria social crítica hoje, quando a
De certa forma, portanto, a articulação dialética entre o “atraso” e o
dualidade à brasileira, enquanto expressão absolutamente moderno assume novas
periférica das perversidades da dimensões. Voltando os olhos para o
modernização capitalista, manifesta traços passado, podemos recolher algo para a
cada vez mais universais da “fratura social” compreensão do presente. E, em se tratando
do mundo contemporâneo, no qual as de dramaticidade social, nossa história bem
grandes metrópoles constituem o lócus de pode contribuir para a compreensão da
convivência dos grandes aglomerados mais fratura social mais geral do capitalismo
avançados do capital com o contraste internacional.
opulento e socialmente necessário dos Esta, a verdadeira “fratura social” do
grandes bolsões de pobreza. Como não mundo, que o passado colonial dos países
poderia deixar de ser, o esgotamento periféricos continua a testemunhar, como se
histórico da modernização e das doutrinas vê, por exemplo, na junção hoje nada
do progresso impôs novos desafios ao paradoxal entre o moderno agro-negócio e
pensamento social crítico. O “esgotamento as mais bárbaras formas de exploração
histórico real” da modernização, do qual as humana, como se a “obra da escravidão” de
teorias em defesa da “mudança de que falava Nabuco ainda deixasse suas
paradigma” constituem “apenas uma marcas. Assim se configura a barbárie
sintomática desconversa” (ARANTES, moderna à brasileira, cujo microcosmo foi
2000, p.367), revelaram a necessidade de bem percebido por Cláudio Assis, em seus
uma revisão crítica profunda das estratégias dois recentes e interessantíssimos filmes:
teóricas orientadas pelas possibilidades e Amarelo Manga e Baixio das Bestas. O Brasil,
brechas do processo de modernização. Para como a Recife de Assis, segue reproduzindo
Paulo Arantes (2008, p.13), “se a esquerda uma realidade amarelada, como a “cor das
intelectual brasileira pretende mesmo algum mesas, dos bancos, dos tamboretes, dos
dia despertar do coma profundo em que se cabos das peixeiras, da enxada e da
encontra, creio que a primeira providência estrovenga. Do carro-de-boi, das cangas, dos
seria repassar os grandes lugares comuns de chapéus envelhecidos, da charque. Amarelo
nossa tradição crítica por um prisma teórico das doenças, das remelas dos olhos dos
e político à altura da ruptura de época que meninos, das feridas purulentas, dos
estamos atravessando às cegas”. escarros, das verminoses, das hepatites, das
Se tivermos, nesse processo, alguma diarréias, dos dentes apodrecidos... Tempo
“vantagem” (do “atraso”, poderíamos interior amarelo. Velho, desbotado,
acrescentar), trata-se justamente da
percepção, imanente às ambivalências e

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doente”15. Um tempo amarelo cujo reverso BERMAN, Marshall. Tudo o que é sólido
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15
O poema Tempo Amarelo, que serviu de Intelectuais e Estado. Belo Horizonte: Editora
inspiração à composição de Amarelo Manga, é de UFMG, 2006, p. 229-262.
autoria de Renato Carneiro Campos.

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i
Mestrando em Sociologia, Faculdade de Ciências e Letras – Araraquara. FCLAr, UNESP. 14800-901. Bolsista
FAPESP. O presente texto constitui parte específica da investigação mais ampla sobre as conseqüências do
esgotamento da modernização e das ideologias do progresso no pensamento social crítico contemporâneo,
especialmente na obra de Michael Löwy.

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