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verve

verve
Revista Semestral do Nu-Sol — Núcleo de Sociabilidade Libertária
Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, PUC-SP

11
2007
VERVE: Revista Semestral do NU-SOL - Núcleo de Sociabilidade Libertária/
Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, PUC-SP.
Nº11 ( abril 2007 - ). - São Paulo: o Programa, 2007 -
Semestral
1. Ciências Humanas - Periódicos. 2. Anarquismo. 3. Abolicionismo Penal.
I. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Programa de Estudos
Pós-Graduados em Ciências Sociais.

ISSN 1676-9090

VERVE é uma publicação do Nu-Sol – Núcleo de Sociabilidade Libertária do


Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Co-
ordenadores: Teresinha Bernardo e Paulo-Edgar Almeida Resende.

Editoria
Nu-Sol – Núcleo de Sociabilidade Libertária.

Nu-Sol
Acácio Augusto S. Jr., Anamaria Salles, Andre Degenszajn, Beatriz Scigliano
Carneiro, Bruno Andreotti, Edson Lopes Jr., Edson Passetti (coordenador),
Eliane Knorr de Carvalho, Fábio Lacerda, Gabriel Prestes Espiga, Guilher-
me C. Corrêa, Gustavo Ferreira Simões, Gustavo Ramus, Lúcia Soares da
Silva, Márcio Ferreira Araújo. Jr., Martha C. Lossurdo, Natalia M. Montebello,
Nildo Avelino, Rogério H. Z. Nascimento, Salete Oliveira, Thiago M. S.
Rodrigues, Thiago Souza Santos.

Conselho Editorial
Christina Lopreato (UFU), Clovis N. Kassick (UFSC), Guilherme C. Corrêa
(UFSM), Doris Accioly (USP), Guilherme Castelo Branco (UFRJ), Margareth
Rago (Unicamp), Roberto Freire (Soma), Rogério H. Z. Nascimento (UFPB),
Silvana Tótora (PUC-SP).

Conselho Consultivo
Alexandre Samis (Centro de Estudos Libertários Ideal Peres – CELIP/RJ),
Christian Ferrer (Universidade de Buenos Aires), Dorothea V. Passetti
(PUC-SP), Heleusa F. Câmara (UESB), José Carlos Morel (Centro de Cultura
Social – CSS/SP), José Eduardo Azevedo (Unip), José Maria Carvalho Ferreira
(Universidade Técnica de Lisboa), Maria Lúcia Karam (ICCrim), Paulo-Ed-
gar Almeida Resende (PUC-SP), Robson Achiamé (Editor), Silvio Gallo
(Unicamp), Vera Malaguti Batista (Instituto Carioca de Criminologia).

ISSN 1676-9090
verve
revista de atitudes. transita por limiares e ins-
tantes arruinadores de hierarquias. nela, não
há dono, chefe, senhor, contador ou progra-
mador. verve é parte de uma associação livre
formada por pessoas diferentes na igualdade.
amigos. vive por si, para uns. instala-se numa
universidade que alimenta o fogo da liberda-
de. verve é uma labareda que lambe corpos,
gestos, movimentos e fluxos, como ardentia.
ela agita liberações. atiça-me!

verve é uma revista semestral do nu-sol que


estuda, pesquisa, publica, edita, grava e faz
anarquias e abolicionismo penal.
poesias de julian beck, Theantric: Julian Beck’s last
notebooks. New York: The Living Theatre, 1992.
Tradução de Nildo Avelino da edição italiana.
no encerramento, poesia de thiago r.
SU M Á R I O

Subsídios para a história do movimento social no Brasil


Pedro Catallo 11

O princípio do Estado
Mikhail Bakunin 50

O anarquista profissional
(o catecismo revolucionário)
Sergei Nietcháiev 78

A repressão ao anarquismo na Rússia soviética


Grupo de anarquistas russos exilados na Alemanha 95

Minha outra desilusão na Rússia


Emma Goldman 109

Pequeno manual anarquista individualista


Émile Armand 123

Neno Vasco, Emma Goldman,


A revolução mexicana de 1910 e a tese de Pietro Ferrua
Edgar Rodrigues 132

Sofisma é imprescindível à Democracia,


ou como mentir apenas dizendo verdades,
ou ainda “Sorria! você está sendo filmado!”
Rogério Nascimento 156

Por uma militância divertida


O inimigo do rei, um jornal anarquista
Gustavo Simões 168
Nas bordas do mar:
esboço de uma aprendizagem experimental
[como desfazer uma educação ambiental]
Ana Godoy 183

Transgressão e esgotamento:
aguda indiferença, suficientemente desinteressada
e escrupulosa
Alexandre de Oliveira Henz 202

Arte: máquina de guerra


Beatriz Scigliano Carneiro 218

O único e sua propriedade (parte 2)


John Henry Mackay 236

RESENHAS

Foucault, fulgurações da diferença


Salete Oliveira 273

Experiências e liberações
Bruno Andreotti 277

Um sacrifício para o condutor político


Edson Passetti 281

Um livro para usar, brincar e jogar


Acácio Augusto 288

Roberto Freire: anarquia aqui e agora


José Maria Carvalho Ferreira 293
verve 11 : um e um. uns...

um depoimento do teatrólogo pedro catallo contando


um pouco da história social pouco conhecida. um con-
tundente e atual escrito interrompido de bakunin atra-
vessando o islamismo. um oportunista anarquista profis-
sional chamado nietcháiev é trazido para discussões.
uma revolução russa que não soube lidar com diferen-
ças é mapeada e colocada a nu por um documento vi-
goroso e uma análise de emma goldman. um pouco do
anarco-individualismo, pelo manifesto de émile armand.
uma face séria da revolução, um abalo no sofisma e
uma remexida no inimigo do rei, por edgar rodrigues,
rogério nascimento e gustavo simões, vão compondo
uma cartografia que nos remete a umas experimenta-
ções com ana godoy, uns efeitos de cinema por alexandre
henz e máquinas de guerra-arte com beatriz carneiro.
até chegar o único e a sua propriedade, segunda parte
do longo capítulo do histórico livro do poeta john henry
mackay, pouco conhecido dos anarquistas no Brasil e
contando uma história a ser conhecida.

umas resenhas entre tantas possíveis comentam li-


bertarismos em foucault, deleuze, kadaré, colson e um
tesão de roberto freire.

verve 11 anda com umas poesias do encenador; ex-


perimentador artístico; anarquista; apaixonado; preso
torturado pela ditadura militar no Brasil nos anos 1970,
julian beck. e traz mais um thiago r... anda com você e
com quem é uns.
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transformar o ânimo

como pode a revolução significar a sujeição de alguém,


como pode a liberdade significar o domínio sobre o ex-rei da parte
dos súditos?

tais relações são demasiado tristes para o novo mundo.

após a revolução nada mais de punição.


mas estamos falando de uma transformação no espírito, no ânimo.
a economia é o córtex, a política é a epiderme.

(junho 1983)

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Subsídios para a história do movimento social...

subsídios para a história do movimento


social no brasil

pedro catallo*

O meu primeiro contato com as idéias libertárias foi


por intermédio da União dos Artífices em Calçados e Clas-
ses Anexas de São Paulo, em outubro de 1921, precisa-
mente com a idade de 21 anos. Por essa ocasião os sa-
pateiros estavam radiantes porque haviam vencido um
boicote aplicado contra um industrial que se mostrou
recalcitrante em atender um pedido de aumento da mão-
de-obra, e eu fui levado de roldão por esse aconteci-
mento para dentro do sindicato. Confesso que fiquei
deslumbrado com a primeira assembléia que assisti,
pois apesar de ter vindo da Argentina no ano de 1917,
como emigrante, onde a luta social era bastante acen-

* Pedro Catallo (1901-1969), sapateiro, anarquista, dirigiu os jornais O


Libertário e Dealbar, foi um dos articuladores da reabertura do Centro de Cul-
tura Social em 1945, escreveu as peças teatrais Como rola uma vida e O coração
é um labirinto. Sobre Pedro Catalo, consultar Edgar Rodrigues. Os companheiros.
Florianópolis: Editora Insular, 1998, pp. 37-50. “Subsídios para a história do
movimento social no Brasil” é um depoimento de circulação entre os anarquis-
tas.
verve, 11: 11-48, 2007
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tuada, eu desconhecia completamente o que fosse um


sindicato e a questão social. Talvez isso se deva ao fato
de que criado em Santa Fé, longe de Buenos Aires e de
Rosário, onde o proletariado, forçosamente, devia ser muito
mais esclarecido, e também porque a maioria dos meus
anos escolares os passei num colégio de padres francisca-
nos e, consequentemente, também sob sua influência con-
servadora.
Naquele mesmo ano de 1921, verificou-se na classe
dos trabalhadores em calçados um acontecimento mar-
cante, que não deixa lugar a dúvidas quanto à força dos
sindicatos operários quando bem orientados. O Centro dos
Industriais em Calçados, organização patronal criada para
combater as atividades da União dos Artífices em Calçados,
por motivo de um pedido de aumento de 600 reis na mão-
de-obra de cada par de sapatos Luiz XV, resolveu declarar
o lock-out. Foi assim que no dia 9 de dezembro daquele
ano, todos os estabelecimentos filiados ao Centro dos In-
dustriais, em número mais ou menos de 20 a 25, fecha-
ram suas portas. Essa greve patronal, ou seja, lock-out,
durou de 18 a 25 dias, e quando os patrões decidiram rea-
brir suas oficinas os operários negaram-se a trabalhar sem
que lhes fossem pagos os dias que estiveram parados e
mais os 600 reis de aumento por par. Foi mais uma estre-
pitosa vitória que serviu de estímulo para que os trabalha-
dores acorressem ao sindicato. Os patrões não tiveram
outra alternativa senão aceitar as condições impostas pelos
operários, caso contrário suas oficinas continuariam pa-
ralisadas.
Aquela primeira noite que pisei numa assembléia da
União dos Artífices em Calçados e Classes Anexas foi me-
morável para mim, porque fiquei profundamente impres-
sionado com a palavra eloqüente, ardorosa e convincente
de dois oradores, que ficaram solidamente impressos em
meus sentimentos, ainda virgem em matéria de política.

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Subsídios para a história do movimento social...

Um deles, Ricardo Cipolla, dono de uma voz troante e de


um verbo envolvente, poético e persuasivo, prendia pela
força de seus argumentos e pela beleza da retórica ver-
bal. Praticamente a ele devo o fato de ter abraçado a luta
social e de me ter decidido pelas idéias anarquistas. O
outro, Antonino Domingues, de nacionalidade espanhola,
era um homem inteligente, de físico fino e delicado que
jamais faria supor tratar-se de um sapateiro. Sua palavra,
com forte acento galego, porém clara, pausada e compre-
ensível, era enrobustecida por um profundo conhecimen-
to da questão social, era o que se pode chamar de um
militante anarquista completo. Esses dois homens des-
cortinaram para mim um mundo completamente desco-
nhecido; o mundo da luta social com o seu alto significado
de justiça e fraternidade.
Infelizmente não pude gozar da amizade de Ricardo
Cipolla, porque pouco tempo depois de eu entrar para o
sindicato ele fora traiçoeiramente assassinado, num fes-
tival nosso, na noite de 1º de janeiro de 1922, por um indi-
víduo chamado Indalécio Iglésia, que se havia insinuado
por entre os grupos anarquistas, e de quem, alguns anos
mais tarde, soube-se que era confidente policial.
O enterro de Ricardo Cipolla foi algo de impressionante
pelo grande comparecimento do operariado de São Paulo,
que por aquela ocasião estava mais ou menos bem orga-
nizado. Cipolla não perdia oportunidade para intervir em
qualquer acontecimento em que pudesse falar e fazer co-
nhecer as idéias anarquistas. Foi assim que, em certa
ocasião, um menino de menor idade, uns doze anos tal-
vez, que trabalhava na Fábrica da Aniagem Paulista, situa-
da na rua da Mooca, na turma que ia até às dez horas da
noite, vencido pelo sono e pelo cansaço, adormeceu por
entre os fardos de aniagem. Era hábito naquela fábrica,
depois que os operários da turma que trabalhava até as
dez da noite houvessem saído, soltar a matilha de cães

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policiais que acompanhavam o guarda na ronda durante a


noite. Aqueles cachorros, uma vez soltos, partiam como
feras famintas percorrendo e farejando todos os recan-
tos da fábrica. Nenhum dos integrantes daquela turma
noturna apercebeu-se da falta do menino e ele lá ficara no
mais profundo sono. O que aconteceu ao pobre menino,
que teve a infelicidade de adormecer por entre aqueles
fardos de aniagem, é fácil imaginá-lo: foi completamente
estraçalhado, rasgado, por aquela alcatéia de lobos ferozes
encarregados de vigiar a fábrica. Quando o guarda notur-
no chegou onde se consumava a orgia dos cachorros, o
desventurado menino era um horrível amontoado de reta-
lhos de tenra carne humana. Foi uma tragédia que cons-
ternou dramaticamente toda a população de São Paulo,
que então se compunha de mais ou menos 600 mil habi-
tantes. O enterro desse infeliz menino foi a pé, e o acom-
panhamento se compunha de milhares de trabalhadores
de todas as profissões, que em sinal de luto externavam o
seu impressionante protesto.
Quando o pequeno caixão estava prestes a descer o tú-
mulo, ouviu-se a voz potente, segura e incisiva, de Ricar-
do Cipolla que, numa oração fúnebre e brilhante ao mes-
mo tempo, demonstrava aos presentes os males duma
sociedade imperfeita e injusta, que permitia o trabalho
noturno a crianças de apenas doze anos. Assim era Ricar-
do Cipolla, um militante anarquista, corajoso, convicto,
inteligente e um grande orador. Não havia transcorrido
talvez um mês daquele trágico acontecimento, quando
outro menino teve a desventurada sorte do anterior, na
mesma fábrica e na mesma turma noturna. Só depois disso
é que os donos daquela tétrica fábrica resolveram retirar
os cachorros, preferindo continuar a exploração de meno-
res.
Em 1923, a União dos Artífices em Calçados decretou
uma greve geral com o fim de melhorar as condições dos

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Subsídios para a história do movimento social...

sapateiros e, como sempre, encontrou forte resistência


por parte de um patronato composto em sua maioria por
elementos italianos, francamente reacionários, que
para cá vieram com o único fito de enriquecer e, para tan-
to, todos os meios lhes pareciam bons. Aglutinados no Centro
dos Industriais (naquele tempo não existia a Federação das
Indústrias), inconformados e obstinadamente contrários
ao predomínio que então exercia a União dos Artífices em
Calçados, cuja obra de orientação e esclarecimento e de
conscientização nos meios operários dificultava a explo-
ração e os manejos patronais, arquitetavam toda sorte de
artimanhas para desbaratar o nosso florescente sindica-
to.
Em grande parte das fábricas e oficinas de calçados de
São Paulo, os trabalhadores estavam firmemente organi-
zados e tinham, em cada local de trabalho, um delegado,
cuja função era zelar pelo bom andamento da organiza-
ção e atender as reclamações dos patrões, assim como
transmitir a estes os reclamos dos operários. Uma das prin-
cipais incumbências que tinha o delegado, era impedir
que trabalhassem na casa operários que não fossem as-
sociados da União dos Artífices em Calçados. Essa medida
visava manter a casa bem organizada e impedir que o pa-
tronato tomasse força. O sindicato mantinha organizado
um Centro de Colocação, que se incumbia de receber por
meio dos delegados, os pedidos de mão-de-obra por parte
dos patrões e registrar os trabalhadores em disponi-
bilidade. Alguns patrões achavam cômoda essa situa-
ção, porque o sindicato era responsável pelos maus
profissionais. Mas outros, aqueles de índole reacionária,
não suportavam em suas fábricas e oficinas esse controle
sindical. “Em minha casa mando eu”, diziam, e os confli-
tos feriam-se continuamente, o que, até certo ponto, ser-
via para adestrar os trabalhadores na luta sindical.

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A polícia tinha sempre papel saliente nos conflitos. Um


trio policial que se celebrizou pela perseguição sistemáti-
ca, insidiosa e discricionária, e que recebia para esse
fim boa remuneração dos industriais, era composto por
Oreste Lascala; Gentile e Antonio, o barbeirinho, como
era chamado porque havia sido barbeiro. Esses três indi-
víduos possuíam em grau máximo todo o sadismo indis-
pensável a um truculento policial. Era o tempo em que
imperava o domínio feudal do P.R.P. (Partido Republicano
Paulista), encabeçado por Washington Luiz, cuja passa-
gem como chefe de polícia de São Paulo ficou marcada por
sua atuação reacionária e pela frase que o celebrizou como
feroz inimigo dos trabalhadores: “a questão social resolve-
se a patas de cavalos”.
A União dos Artífices em Calçados realizava semanal-
mente, todas as segundas-feiras à noite, assembléias ge-
rais, freqüentadas assiduamente por grande número de
operários já habituados a essas assembléias. O número
de militantes ativos e atuantes desse sindicato era gran-
de, destacando-se um jovem de bela aparência, de regular
inteligência e de atuação marcante: Afonso Festa. Outro
militante dedicado, honesto e atuante era João Peres, pai
do nosso atual companheiro Ideal Peres. Para se ter uma
idéia do número de militantes jovens que atuavam dentro
da União dos Artífices em Calçados, basta citar que tínha-
mos formado um grupo chamado Legião dos Amigos da
Plebe, para angariar recursos para esse jornal, que se
compunha de mais de 50 pessoas, todos sapateiros e todos
jovens.
Cada assembléia semanal era quase sempre prece-
dida de conferências feitas por militantes convidados.
Essa obra de ilustração e de renovação mental que o
sindicato realizava começou a produzir seus frutos e,
consequentemente, a acentuar a luta entre patrões e
operários. Na profissão dos sapateiros preponderava o
elemento italiano, que trouxe de sua terra um hábito

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Subsídios para a história do movimento social...

que consistia em festejar todas as segundas-feiras o seu


Patrono: São Crispim.
Em decorrência desse costume fortemente arraiga-
do nos sapateiros italianos, as oficinas de calçado Luiz
XV, onde sempre se gozou de uma relativa liberdade
em virtude do trabalho ser pago por peça, transforma-
va-se naquele dia em casa de jogos de carteados e be-
bidas. Não raras vezes aconteciam brigas causadas
pelo estado de embriaguez daqueles que se excediam
na bebida. Quando a União dos Artífices em Calçados
começou a estender sua influência nos meios operá-
rios e a organizar fábricas e oficinas de trabalho, foi
sistematicamente suprimido e substituído pelo folhe-
to, livros e discussões em torno da questão social. Essa
obra de ilustração dos nossos sindicatos, que visava
disseminar a cultura entre os trabalhadores, foi con-
firmada pelo relatório de um delegado de polícia da ci-
dade de Santos, quando disse: à medida que crescia o
número de sindicatos operários diminuía a intensi-
dade dos crimes naquela cidade.
Pouco tempo depois da greve dos sapateiros, no mes-
mo ano de 1923, os trabalhadores em fábricas de teci-
dos puseram-se também em greve geral. Naquela épo-
ca, em São Paulo, a indústria de tecidos era a que
maior número de operários comportava. Com a greve
dos têxteis encontra-se séria resistência por parte dos
patrões, colocando, destarte, os operários tecelões em
sérias dificuldades de subsistência. Os sapateiros,
reunidos em assembléia geral, resolveram solidari-
zar-se com os tecelões em greve, prontificando-se,
cada família de sapateiro, a receber em seu lar o nú-
mero de filhos dos tecelões que pudesse atender, para
que os seus pais pudessem melhor enfrentar o patro-
nato e vencer a greve. Essa maravilhosa manifesta-
ção de solidariedade não chegou a se materializar,

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porque poucos dias depois, inesperadamente, a greve


teve fim.
Pelo que pude averiguar naquela época, essa singu-
lar manifestação de solidariedade somente havia sido
praticada em duas oportunidades: na Itália, em Milão, e
na Espanha, por ocasião da greve de “las minas del Río
Tinto”. Desconheço as épocas de tais acontecimentos.
Para a noite de sábado, 5 de julho de 1924, a União
dos Artífices em Calçados tinha preparado um grande fes-
tival artístico-dançante que se efetuaria no tradicional
salão das “Classes Laboriosas” ainda existente na rua
Roberto Simons, antiga rua do Carmo. Como naquele
tempo era permitida a kermesse, a comissão do festival
havia recolhido, numa carroça, um grande número de
doações e presentes, que depois foram devidamente nu-
merados para serem sorteados na kermesse, no decor-
rer do festival. Naquele mesmo dia, de madrugada, São
Paulo despertou debaixo de um cerrado fogo de canhões.
Eram as forças do general Isidoro Dias Lopes, que bom-
bardeavam os pontos estratégicos da capital, inclusive
o palácio do governo, do qual agora não me lembro o
nome. O governador, a força pública, os soldados legalis-
tas (assim eram chamados os soldados fiéis aos situaci-
onistas) e a polícia, fugiram espavoridos, abandonaram
misteriosamente a capital de São Paulo, que foi total-
mente ocupada pelas forças revolucionárias de Isidoro.
Isidoro Dias Lopes foi traído covardemente por alguns
generais que se comprometeram a acompanhá-lo e que,
uma vez iniciada a revolução, mantiveram-se fiéis ao
reacionário Presidente Artur Bernardes. Poucos dias se
passaram e o exército, que se mantivera ao lado do go-
vernador de São Paulo e do presidente da república, fez
o cerco à rebelde capital, onde flamejava a bandeira da
revolução, e começou um criminoso bombardeio, do qual
as vítimas principais eram gente do povo, que manifes-

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Subsídios para a história do movimento social...

tou abertamente a simpatia pelas forças revolucionári-


as.
Os tiros dos canhões legalistas não precisavam de
mira; bastava despejá-los sobre a população, que tivera
a ousadia de manifestar sua simpatia para um movi-
mento militar que lhe despertara uma certa esperan-
ça. O governador e o presidente da república sabiam-no,
e por isso a ordem era arrasar a capital. A população
vivia aterrorizada pelo bombardeio que não poupava nin-
guém, e em todos os bairros havia vítimas inocentes a
lamentar. Um amigo meu, de profissão forneiro, perdeu
sua mulher, atingida quando lavava roupa.
A revolução de 24, como ficou conhecida, trazia franca-
mente um traço de revolta contra as injustiças sociais, e
por essa razão todos os potentados, donos de fábricas, do-
nos de grandes armazéns, donos de moinhos e grandes
atacadistas, fugiram precipitadamente e amedrontada-
mente, temendo por uma vingança popular. Bastou que
um soldado de Isidoro arrebentasse as portas de um ar-
mazém, para que o saqueio começasse, se generalizasse
e se prolongasse até que as forças revolucionárias domi-
naram a capital. Por semanas inteiras viam-se multidões
de gente carregando de tudo, desde farinha e outros co-
mestíveis, até casimira, remédios, panelas, pratos e lou-
ças de todo tipo, ferramentas e até taças de privadas. O
saqueio era favorecido pelos soldados da revolução, que
desde os primeiros momentos ganharam a simpatia do
povo paulista e se tornaram seus amigos. Em qual-
quer casa que esses soldados pedissem comida, café
ou outros favores de emergência eram atendidos com
simpatia e entusiasmo. Por essa razão o bombardeio
sobre a capital de São Paulo, fazia-se indiscriminada-
mente e criminosamente.
A ocupação de São Paulo pelas forças de Isidoro, du-
rou mais ou menos uns três meses, e se não foi vitorio-

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sa deveu-se, como já dissemos, à traição de generais


que não cumpriram a palavra empenhada. Entre esses
generais traidores estava o general Potiguara, o qual
lhe valeu um atentado que o deixara bastante deforma-
do. Poucos dias depois de sufocada a revolução de 1924,
o general Potiguara recebeu em sua casa um pacote
que parecia um rico presente. Talvez ele tomasse isso
como retribuição pela traição que havia cometido. Abriu
com sofreguidão o insinuante pacote, e a explosão que
se deu provocou-lhe ferimentos tão graves que ficou de-
formado. O rosto, um braço e não me lembro que outras
partes do corpo lhe foram atingidas; o que bem me lem-
bro é que foi um trabalho muito bem feito, que o marcou
com o estigma de sua própria traição, e o melhor de tudo
é que nunca se soube quem fez tão justiceira vingança.
Aquela revolução que devia gerar outras que se deram
posteriormente, trouxe como figuras de destaque, em
primeiro lugar, o general Isidoro Dias Lopes, cuja lem-
brança ficou indelével nas pessoas daquela geração.
Miguel Costa, que então era capitão, e cuja simpatia
alcançou profundamente o povo paulistano. Luiz Carlos
Prestes que se tornou lendário, e que foi acabar no
emaranhado comunista. O tenente Cabanas, o coro-
nel Cordeiro de Faria e outros que a minha cansada
memória não lembra.
Os anarquistas de São Paulo, durante esse período
revolucionário, reuniam-se diariamente, procurando um
meio de participar desse ato sem comprometer o ideal.
Resolveu-se, então, fazer ao general Isidoro Dias Lopes
a seguinte proposta: o general forneceria armas aos
anarquistas que formariam um batalhão de civis para
lutar contra o governo central, porém, autônomos, sem
a disciplina e a ingerência militar. Está claro que o ge-
neral não aceitou a proposta anarquista.
Depois disso os anarquistas decidiram publicar um
manifesto no jornal A Plebe, definindo sua posição ante

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Subsídios para a história do movimento social...

a luta política que estava se desenrolando. Esse mani-


festo foi assinado por um grande número de militantes
libertários.
Depois que a revolução foi sufocada e as tropas de
Isidoro fizeram a retirada estratégica pelo interior aden-
tro, a capital paulistana, que apresentava aspectos de
uma cidade totalmente bombardeada, foi retomando sua
vida normal, limpando as ruas, removendo escombros,
reconstruindo casas, desenterrando móveis e restos de
mortos desaparecidos. Os fujões voltaram com sede de
vingança indisfarçada, o que fez com que a figura do ge-
neral Isidoro Dias Lopes se configurasse como um sím-
bolo e uma esperança popular, personificada na pessoa
de um pobre demente de índole pacífica, de mediana
estatura e de uns 40 anos, que, com o peito recoberto de
tampinhas de cervejas e algumas medalhar sem signi-
ficação, cruzou as ruas do bairro do Brás, por anos a fio,
gritando a plenos pulmões: viva Isidoro! Viva Isidoro!
Sempre acolhido com grande simpatia pelos moradores
daquele bairro.
Nem bem a famigerada polícia de São Paulo, conse-
guiu se reorganizar, começou desesperadamente a caça
aos militantes anarquistas que haviam assinado o ma-
nifesto publicado em A Plebe. A maioria deles conse-
guiu se safar, escondendo-se alguns, fugindo outros,
outros ainda mudando de estados, e a polícia desnortea-
da e louca à procura dos signatários do manifesto. Al-
guns não tiveram tempo de se esconder, e caíram nas
malhas dos raivosos “tiras” que procuravam a desforra
dos militantes libertários. Longe, porém, estavam de
saber o tétrico destino que a polícia de São Paulo lhes
havia preparado. Nicolau Paradas, Nino Martins e Pedro
Mota, que então era o Diretor de A Plebe, e mais alguns
cujos nomes escapam-me infelizmente da memória,
foram os militantes libertários de São Paulo que tive-

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ram a desventura de cair nas mãos da polícia, que sem


perda de tempo encaminhou-se para o Rio de Janeiro,
onde o navio Campos, que havia sido transformado em
navio-prisão, os esperava junto a outros milhares de
presos que seriam atirados nas regiões inóspitas do
Oiapoque, lá nas Guianas francesas. Foi a bordo desse
navio-prisão que todos os presos condenados a morrer
nas matas selvagens da Clevelândia começaram a re-
ceber as primeiras torturas que os preparavam para a
morte certa. Os faziam correr ao redor do tombadilho a
golpes de chibatas, e os que caíssem apanhavam dobra-
damente.
Segundo soubemos mais tarde, Pedro Mota, em con-
seqüência dos martírios infligidos no maldito navio,
morreu tão logo foram desembarcados nas selvas do
Oiapoque, onde os próprios companheiros cavaram fos-
sa para enterrá-lo. Conheci-o pessoalmente; era um
nortista de meia estatura, inteligente e um orador bas-
tante regular. Quando foi preso era o diretor do nosso
jornal A Plebe.
Esse massacre, esse extermínio de homens inteli-
gentes, entre os quais havia um bom número de mili-
tantes anarquistas e outros que nada tinham a ver com
a revolução de 1924, deveu-se ao então reacionário pre-
sidente da república, Artur Bernardes, que por esse cri-
me ficou conhecido como o presidente Clevelândia; e,
em certa ocasião, recebeu uma tremenda vaia com gri-
tos de “Clevelândia, Clevelândia!”, acompanhada de uma
descarga de batatinhas atiradas pelos estudantes.
São Paulo paulatinamente retomou o seu ritmo
dinâmico de cidade industrial e a vida foi voltando à
normalidade. Os sindicatos operários foram todos vare-
jados pela enfurecida polícia paulista, que destroçava
tudo: móveis, livros, utensílios, quadros, portas, jane-
las, tudo, enfim, que fosse passível de ser destruído. A

22
verve

Subsídios para a história do movimento social...

União dos Artífices em Calçado foi a mais atingida, por-


que era onde havia maior número de militantes anar-
quistas e, portanto, era sempre a mais visada. Nas três
salas que ocupava na rua Barão de Paranapiacaba, tudo
foi destruído, e até um busto grande de Karl Marx, que
era uma bela obra de gesso doada por um simpatizante
daquele pensador, levou algumas marteladas. A maio-
ria dos prêmios destinados à kermesse, que enchiam uma
das salas, foi destruída, os melhores foram roubados pelos
policiais, inclusive uns queijos muito bons, aos quais
se referiam os policiais L´ascala, Gentile e Barbeirinho,
quando depois nos prendiam em greves e comícios —
“como estava bom aquele queijo”, diziam com o maior
cinismo que se possa imaginar.
Fazia vários anos que o movimento anarquista in-
ternacional havia empreendido uma forte campanha
com a finalidade de salvar da cadeira elétrica a Nicola
Sacco e Bartolomeu Vanzetti, de cuja inocência os anar-
quistas de todo o mundo estavam plenamente conven-
cidos. Essa campanha vinha repercutindo também nos
meios libertários do Brasil, através de jornais, boletins
e revistas que recebíamos do exterior. Foi assim que, lá
pelos começos de 1926, numa memorável assembléia
geral dos sapateiros — que então se realizavam todas
as segundas-feiras no salão Itália Fausta, nome esse
em homenagem a uma artista que assim se chamava e
que era filha da senhora que se encarregava de alugá-
lo, e que ainda existe na rua Florêncio de Abreu, com ou-
tro nome —, decidiu-se empreender, também no Brasil,
essa campanha que já polarizava atenção em todas as
partes do mundo. Depois de algumas discussões preli-
minares nomeou-se o “Comitê de Agitação pró Liberda-
de de Sacco e Vanzetti”, que havia de dirigir e organizar
toda a propaganda que fosse necessária para o bom êxi-
to da campanha. Por aclamação da assembléia, esse co-
mitê ficou constituído por quatro companheiros, que são

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2007

os seguintes: João Peres, José Ramón, Pascual Martinez


e Pedro Catallo. Desses quatro companheiros o único
que ainda vive sou eu. João Peres morreu no Rio de
Janeiro, José Ramón no Rio Grande do Sul e Pascual Mar-
tinez faleceu dias passados, em Buenos Aires.
É fácil compreender que quatro companheiros não po-
deriam realizar sozinhos a intensa campanha que se fez
em São Paulo e no resto do Brasil. Mas é que ao redor
desse comitê gravitavam dezenas de grupos anarquis-
tas que secundavam com aguerrido entusiasmo todas
as iniciativas e todos os empreendimentos que dele di-
manassem. Além disso, os grupos anarquistas toma-
vam iniciativas próprias que se fundiam com a obra
que realizava o Comitê. A campanha não demorou a
tomar notáveis proporções de penetração no seio da
população de São Paulo, na qual, como dissemos no come-
ço desta narrativa, predominava o elemento italiano. To-
das as semanas realizávamos pelo menos dois comícios,
um em recinto fechado e outro, aos domingos, em praça
pública. Durante a semana fazíamos comícios nos salões
de bairros e aos domingos no Largo da Concórdia, onde
havia um coreto que se prestava muito bem para isso.
Oradores havia-os bastante, e não me será possível,
depois de 42 anos, lembrar-me de todos eles. Todavia
lembro-me bem de alguns, porque eram persistentes e
pela afinidade ideológica. Afonso Festa, João Penteado,
Edgar Leurenroth, Domingos Passos, um dentista que
não lembro o nome e Plínio Gomes de Melo, que depois
dos anos 1930 se identificou como comunista. Domingos
Passos era um militante anarquista do Rio de Janeiro,
que também sofreu a deportação para o Oiapoque por
ocasião da revolução de Isidoro de 1924. Passos foi um
dos raros deportados que conseguiu fugir daquele in-
ferno, graças ao seu espírito de luta, à sua decisão e à
sua resistência física. Pôde realizar essa façanha porque
a vigilância não era rigorosa, uma vez que se sabia que

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verve

Subsídios para a história do movimento social...

todo fugitivo que se aventurasse pelas matas morreria de


fome, de sede e geralmente comido pelas feras. Teve
de atravessar rios a nado, alimentar-se de ervas sil-
vestres e comer a casca de uma árvore conhecida na
região para combater a terrível febre palustre ali ad-
quirida, e que graçava na região da Clevelândia.
Na campanha de Sacco e Vanzetti, de todos nós,
Domingos Passos foi o militante mais perseguido e
mais sacrificado pela polícia. Quando foi deportado para
o Oiapoque já havia percorrido a maioria dos estados
do Brasil, e em todos eles conhecia as prisões. Numa
de suas prisões no Rio Grande do Sul, foi-lhe aplicado
o sistema da “lei de fuga”, muito conhecido nos países
de fala castelhana, e que consiste em dar ao preso
uma aparente oportunidade para fugir e matá-lo quan-
do este o tentar. Passos e outros presos perceberam a
cilada e a fizeram gorar. Quando Domingos Passos
chegou a São Paulo, fugido das terríveis regiões inós-
pitas da Clevelândia, a campanha de Sacco e Vanzetti
estava em franco andamento. Trazia ainda metida no
corpo a terrível febre palustre, adquirida, como já dis-
semos, no Oiapoque maldito, e que, senão diariamen-
te, ainda se manifestava com certa violência. Apesar
disso integrou-se totalmente na campanha, participando
ativamente de todas as reuniões clandestinas e dos
comícios públicos. Muitas vezes teve de abandonar
apressadamente as nossas reuniões, tremendo e ar-
dendo em febre, para ir acamar-se em sua casa até a
crise da palustre passar. Passos era um mestiço oriun-
do de índios, um autodidata de respeitável cultura
geral e, sobretudo, um fogoso e eloqüente orador. No
último comício público em que participou, no Largo da
Concórdia, falou por mais de uma hora e foi festivamente
abraçado por médicos, advogados e intelectuais que es-
tavam ouvindo-o ao pé do coreto.
A contribuição de Domingos Passos para nossa cam-
panha de Sacco e Vanzetti foi de extraordinário valor.

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2007

Em cada reunião pública em que ele participava o nú-


mero de assistentes, simpatizantes e novos amigos que
granjeava aumentava consideravelmente. Isso provo-
cou as iras da polícia, que começou a persegui-lo siste-
maticamente. Um saliente promotor público, Hibrain
Nobre, que já havia sido delegado de polícia em Santos,
e que se havia notabilizado por seu espírito de trucu-
lência e de perseguidor de operários, deixou aquela Ma-
gistratura para dedicar-se decididamente a reprimir a
vitoriosa campanha que nós estávamos realizando. Au-
xiliado nessa inglória tarefa por um auxiliar seu, um
tal Geraldo, e pelos policiais especializados em perse-
guir operários, cujos nomes não podemos esquecer,
Lascala, Gentile, Barbeirinho e Gomes, tramavam toda
sorte de infâmia, inclusive assalto a domicílio.
Em cada comício havia rodadas de militantes pre-
sos que dias depois eram postos em liberdade, visto
que nada existia contra eles. Quem, porém, nunca se
salvava era Domingos Passos, cujas prisões iam-se
amiudando e prolongando os dias de encarceramento.
A campanha já tinha atingido seus objetivos com a pu-
blicação semanal de boletins, distribuídos e colados nas
paredes de todos os bairros de São Paulo, fotografias de
Sacco e Vanzetti por todos os lados, comícios e confe-
rências, telegramas de protesto para os consulados
americanos e para o próprio governo ianque. Faltavam
poucos dias para a consumação da maior infâmia jurí-
dica praticada pela jurisprudência norte-americana,
com a eletrocussão de Sacco e Vanzetti, quando eu e
Amor Salguero fomos presos pela primeira vez. Amor
Salguero era um excelente companheiro, filho de um
anarquista espanhol que morreu aqui ainda em con-
seqüência duma tremenda surra que lhe deu a guar-
da civil espanhola, quando era empacotador de Tierra
y Libertad, na Espanha.

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verve

Subsídios para a história do movimento social...

Quando entramos no Gabinete de Investigação — que


então situava-se na rua dos Gusmões, e que era tam-
bém cadeia, pois tinha no andar térreo, escuro como
um sepulcro, duas fileiras de xadrezes, uma por cima
da outra, com aproximadamente 30 pequenos cubículos
—, lá estavam presos Domingos Passos e José Ramón,
este último um militante espanhol que compunha tam-
bém o Comitê Sacco e Vanzetti. Depois de alguns dias
puseram-nos os quatro juntos e assim pudemos apren-
der com Domingos Passos como lavar-nos um pouco e
como lavar lenços, meias e cuecas, na taça da privada.
Os cubículos da rua dos Gusmões eram pequenos de-
mais para o número de gente presa. Em outras ocasiões
estive preso em cubículos onde, para dormir, tínhamos que
fazer rodízio. Dormia-se no chão feito de cimento perma-
nentemente úmido. Enquanto 5 dormiam determinadas
horas, 4 permaneciam de pé, esperando sua vez. Quase
sempre, por castigo, separavam-nos dos outros companhei-
ros e mesclavam-nos com ladrões, vigaristas, assassinos
e mendigos, sendo estes últimos sempre indesejáveis,
porque nos enchiam de piolhos.
Já disse que os cubículos eram pequenos, e ademais
tinham a taça da privada dentro, onde nós fazíamos as
nossas necessidades. Para dar a descarga da caixa era
preciso chamar o faxineiro que vinha quando bem enten-
dia para puxar a alavanca que ficada do lado de fora do
xadrez. Domingos Passos havia adquirido tamanho conhe-
cimento em suas andanças pelas prisões, que sabia pro-
vocar a descarga da taça da privada sem auxílio do faxinei-
ro. Para tanto afundava todo o volume das suas nádegas
para dentro da taça e com um movimento brusco e rápido
comprimia o ar que ia descolar a alavanca que estava fora
do cubículo e funcionava a caixa admiravelmente. Havia
roubado do faxineiro um pedaço de sabão e um pano que
servia para tampar o fundo da taça e, dessa maneira, podí-
amos colher água para lavar-nos um pouco, e lavar as rou-

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pas leves que depois grudávamos nas paredes do xadrez de


onde se desprendiam somente quando estavam secas.
Aprendemos com Passos como descarregar a caixa, e
assim lavávamos todos os dias o rosto, lenços, meias e
até os pés. Domingos Passos suportava a prisão com ver-
dadeiro estoicismo e com espírito inquebrantável. Dizia
que se lá estava, era porque havia escolhido essa forma
de lutar e não tinha porque se queixar. Alguém o chamou
de “o Bakunin brasileiro”; eu creio que lhe caía muito
bem essa comparação.
Na noite de 22 de agosto de 1927, se daria a execução
dos dois inocentes militantes anarquistas; na noite ante-
rior declaramos a greve geral para todo o Brasil. Não sabe-
mos com segurança como se processou essa greve em
outros lugares do país, mas para honra dos trabalhadores
paulistas daquela época devemos dizer que o atendimento
ao nosso apelo foi muito além das nossas expectativas. O
proletariado de São Paulo paralisou a maior parte das
indústrias, esperando o que seria a infausta notícia que
se constituiu numa das maiores vergonhas para a juris-
prudência norte-americana. Gente que nunca pensou em
ser presa o foi, naquele dia fatídico que antecedeu a noite
em que foram sacrificados esses dois mártires anar-
quistas. O comportamento do proletariado e do povo de
São Paulo naquela memorável campanha é uma página
histórica que deve ser divulgada e conhecida pelas novas
gerações desse sindicalismo barato do Ministério do
Trabalho, que acredita piamente que o sindicalismo no
Brasil nasceu com ele.
Depois da execução de Sacco e Vanzetti retomamos o
ritmo normal de nossas atividades sindicais e libertárias:
assembléias, conferências, greves e, como sempre, pri-
sões.
Em 1928, trabalhava eu em uma oficina de calçados
Luiz XV, sindicalmente bem organizada. Éramos quase

28
verve

Subsídios para a história do movimento social...

todos companheiros anarquistas, e aqueles que não o eram


simpatizavam conosco. Foi nessa oficina, situada na rua
Xavantes, que por iniciativa e sugestão de Afonso Festa
fundamos um grupo de teatro amador. Trabalhava conos-
co um veterano amador de teatro, Chrisrelli, e a ele foi
confiada a direção do grupo. A peça escolhida para a es-
tréia desse grupo foi uma peça em idioma italiano, de
autoria do grande poeta e pensador anarquista Pietro Gori.
A peça tem por título I Senza Petris (Os Sem Pátria), e é uma
eloqüente defesa dos soldados garibaldinos que lutaram
por uma nova Itália na qual depois não puderam viver por-
que os novos dirigentes resolveram os problemas deles,
particulares, e o povo continuou passando fome e sem ter
onde morar, e os soldados garibaldinos, de camisa verme-
lha que ainda conservavam do tempo de Garibaldi, e de
calças brancas, reuniram-se no largo da Concórdia, co-
memorando aquela data que foi uma esperança de todos
os italianos. Possivelmente uns 20 ou poucos mais, todos
velhinhos, alguns que mal podiam andar, cruzavam as
ruas do Braz sob os aplausos do bairro onde eram quase
todos italianos.
O nosso grupo chamava-se Grupo Teatral da União dos
Artífices em Calçados, e foi constituído para trabalhar em
benefício de nosso sindicato. O primeiro espetáculo, com
I Senza Petris, foi realizado no amplo salão da Federação
Espanhola, que era uma sociedade recreativa espanhola
e ficava na rua do Gasômetro. O salão ficou totalmente
tomado, dado que, como já disse, a colônia italiana pre-
dominava em São Paulo. A segunda peça que levamos
era um original de Gigi Damiani, que não conheci pes-
soalmente porque foi deportado no ano de 1919, junta-
mente com outros militantes e, parece-me também, com
Marques da Costa. A peça era anti-clerical, e chamava-
se O Milagre. Nesse espetáculo Afonso Festa não partici-
pou porque já havia sido deportado para Itália. Quem parti-
cipou foi a companheira dele, Victória Guerrero, que em

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seu tempo de solteira também militava no campo libertá-


rio. Gigi Damiani tinha outras peças também de gran-
de valor social: Militarismo e Miséria, foi uma peça de
grande sucesso nos meios operários e foi representa-
da várias vezes por um grupo que existia anterior ao
nosso com o nome de Grupo Teatro Social. Dos integran-
tes desse grupo conheci pessoalmente dois: Marino
Spagnolo e Garibaldi Biocalti. Este último era irmão de
um nosso companheiro, Hugo Biocalti, vidreiro já fale-
cido. Do mesmo Gigi Damiani, eu traduzi para o portu-
guês uma peça muito forte, que levava por nome Viva
Rambolot, também de assuntos sociais, e que foi
inúmeras vezes representada por nosso grupo, já então
composto de novos companheiros e que eu dirigia. Desde
muito jovem gostei sempre de teatro e raramente perdia
uma ópera, opereta ou drama, que era o grande teatro da
época da minha juventude. Por essa razão nunca mais
deixei o teatro, desde a fundação daquele grupo de 1928.
No ano de 1928 fundamos, também em São Paulo,
um grupo teatral de língua espanhola, que se chamava
Grupo Teatral Aurora. Era composto quase totalmente
por anarquistas e levávamos somente peças sociais.
De minha parte sentia-me muito bem entre o elemento
espanhol, por ter sido criado na Argentina e dominar bas-
tante bem o idioma castelhano. De uma feita levamos
uma peça, quilométrica, social, onde aparecia também a
figura de Tolstoi, e da qual não lembro quem era o autor. A
peça chamava-se La Libertad Caída. Lembro-me que na
noite do espetáculo ficaram na rua mais de duzentas fa-
mílias. O salão regurgitava de gente, e os donos do prédio
ficaram com medo de que viesse abaixo. Quando preten-
demos dar um novo espetáculo e os donos se inteiraram
que era para o Grupo Aurora, negaram-me a alugá-lo, lem-
brando da noite de La Libertad Caída. Esse grupo de teatro
teve pouca duração, mas ainda assim demos outros espe-
táculos, com peças como Los Malos Pastores, de Otávio
Mirbeau, também com grande sucesso.

30
verve

Subsídios para a história do movimento social...

Naquele tempo não era preciso tirar alvará para dar


espetáculo e nem a peça passava pela censura. Por isso,
o teatro social linha livre trânsito.
A polícia de São Paulo não descansava na persegui-
ção, e procurava por todos os meios cercar nossa pro-
paganda e a vida dos nossos sindicatos. Numa dessas
investidas policiais fui preso novamente, junto com o
Pascual Martinez, que foi outro membro do Comitê Sacco
e Vanzetti, falecido recentemente em Buenos Aires, de
onde veio e para onde voltou em 1929. Quando entramos
na prisão, já estavam presos havia dias Domingos Passos
e Afonso Festa. Esses dois companheiros eram elementos
de projeção no movimento, e por essa razão a mente dia-
bólica do delegado da ordem política, Hibrain Nobre, já lhes
tinha o destino reservado. Não pudemos avistar-nos com
Festa e com Passos, porque eles estavam presos na “basti-
lha do Cambuci”, da qual me ocuparei mais adiante. Mi-
nha prisão e a de Martinez durou uns quinze dias, nos
fétidos cubículos dos Gusmões, comendo arroz cozido com
sebo, em pratos de lata enferrujada e dormindo, como sem-
pre, no cimento úmido. Festa e Passos continuaram
presos e de nada valeram os nossos esforços jurídicos,
hábeas corpus, requerimentos etc., para libertá-los.
Nem roupa e nem comida permitiam que lhe levásse-
mos. Aliás, esse era um castigo costumeiro que a polícia
usava contra nós e, algumas vezes, quando o gabinete de
investigações era na rua 7 de Abril, a comida que as
companheiras levavam era devorada pelos policiais, que
depois devolviam os pratos como se a comida houvesse
sido aproveitada pelos nossos companheiros presos. Era
delegado nessa época o reacionário Bandeira de Mello; que
não se perca pelo nome.
Festa e João Peres burlaram a polícia inúmeras vezes.
Quando a agitação era forte em São Paulo, e a polícia obsti-
nava-se em procurá-los, eles fugiam para o Rio de Janeiro,

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2007

onde ficavam algum tempo até as coisas serenarem. Numa


das vezes que fui preso, o policial Gentile, que estava fori-
bundo pelas peças que seguidamente lhe pregavam o Festa
e João Peres, me disse: “pode avisar o Festa que na próxi-
ma vez que o agarrarmos ele vai para Itália”.
É interessante esclarecer que naquele tempo havia
uma série de regalias republicanas que mais tarde as pró-
prias repúblicas aboliram. Por exemplo: o princípio federa-
lista era respeitado no Brasil. Um preso que conseguisse
passar de um Estado para outro não poderia ser preso, a
não ser pela polícia daquele Estado e por faltas cometidas
no mesmo Estado.
Por esse motivo, simpaticamente federalista, é que
o Festa e o Peres puderam zombar da polícia paulista
inúmeras vezes. Mas Afonso Festa havia voltado e a
promessa feita pelo “tira” Gentile estava de pé. Não
houve recursos jurídicos que nós não empregássemos,
não houve influência de pessoa importante que nós não
movimentássemos para libertar Afonso Festa, mas tudo
foi em vão. Festa foi deportado para a Itália. Recordo-me
que houve um acordo entre ele e sua companheira,
Victória Guerrero: “na hora da última despedida na es-
tação, nem uma lágrima, nem uma demonstração de
fraqueza”. Essa decisão foi tomada por ambos para não
aumentar a alegria e o “triunfo” dos policiais ali pre-
sentes.
E foram fortes os dois, cumpriram admiravelmente
o que se prometeram.
A prisão que vitimou quase mortalmente a Domingos
Passos, deu-se da seguinte maneira: numa noite, está-
vamos reunidos em minha casa à rua Ricardo Gonçalves
(por acaso o nome da rua era em homenagem ao grande
poeta Ricardo Gonçalves, que foi anarquista e companheiro
de Edgard Leurenroth) sete ou oito militantes, com o fim
de mandar um ofício, como era praxe, à polícia, anuncian-

32
verve

Subsídios para a história do movimento social...

do-lhe 48 horas antes o lugar e a hora onde realizaríamos


um comício em praça pública; não recordo muito bem o
motivo, mas parece-me que era a contestação da eletro-
cussão dos dois anarquistas Sacco e Vanzetti. Esse ofício
devia ser assinado por um responsável. Essa era uma lei
também legitimamente republicana, que naquele tempo
ainda se respeitava. Por isso os comícios públicos não po-
diam ser proibidos, embora, depois de terminados, levas-
sem os promotores presos. Na reunião daquela noite em
minha casa encontrava-se entre nós também Domingos
Passos, que havia saído da cadeia apenas três dias antes.
O ofício trouxe-o datilografado Festa, e passava de mão em
mão para que cada companheiro lesse e visse se estava
de acordo. O ofício chegou às mãos de Domingos Passos,
que o leu também e quando o devolveu já o havia assina-
do. Houve protestos de nossa parte, pois aquela assinatu-
ra significava um desafio à polícia por ter ele saído havia
apenas três dias da prisão. De nada valeram nossos pro-
testos; alegou que um devia assinar e esse podia ser ele.
Longe estávamos nós de supor o que o espírito diabólico do
delegado Hibrain Nobre estava tramando contra nosso bom
companheiro Domingos Passos. Passos foi preso na noite
anterior à realização do comício, ao entrar em sua casa.
A “bastilha do Cambuci” era um posto policial que fica-
va no bairro do Cambuci, que era temido até pelos ladrões
mais contumazes, afeitos aos rigores do cárcere. Tinha
cubículos de toda espécie e tamanhos, que só podiam ter
sido concebidos pela mente morbosa de algum neurótico
desmedidamente sádico. Quando a revolução vitoriosa de
1930 propiciou ao povo de São Paulo a oportunidade de po-
der invadir aquele tétrico presídio, só então é que se pôde
avaliar quanto de verdade havia nos depoimentos dos pre-
sos e nas versões dissimuladas e murmuradas da vizi-
nhança. Havia cubículos que lhe chamavam “cofres”, que
tinham realmente o aspecto de cofre. Tinham talvez uns
dois metros de comprimento por um metro de largura,

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sem respiração alguma, pintados por dentro inteiramen-


te de piche, com canos d´água todos furados com chu-
veiro ao redor das paredes, para molhar os presos de vez
em quando como castigo. Havia outros maiores que não
eram pintados com piche, mas também com canos d´água
furados para molhar os presos, em cima e ao redor das
paredes. Havia ainda, uma escada caracol de ferro, eletri-
ficada, onde faziam subir os presos para aplicar-lhes cho-
ques elétricos, apanhando-os desprevenidos, pois ninguém
podia imaginar que aquela escada fosse eletrificada. Dos
gritos dos presos queixavam-se a vizinhança, e foi assim
que se pôde começar a descobrir o que era a terrível “bas-
tilha do Cambuci”. Havia também xadrezes mais ou me-
nos de dois metros quadrados, sem janelas, completamente
escuros e hermeticamente fechados, sem possibilidades
de ouvir ruídos, onde se dizia que alguns presos haviam
enlouquecido. Foi precisamente em um desses cubículos
que Domingos Passos foi recluso por mais de três meses,
por ordem do morboso e sádico delegado de polícia Hibrain
Nobre. Merecia figurar aqui o homem que era o que deter-
minava os castigos naquela bastilha, para que não se per-
desse pelo nome, mas, infelizmente não lembro. Só posso
dizer que com o advento da revolução de 1930 teve de fu-
gir, porque era procurado pelo povo que queria fazer justi-
ça com as próprias mãos.
Quando dali foi retirado Passos, para ser atirado nas
matas virgens de algum lugar que sempre ignoramos,
estava com o corpo completamente chagado e as roupas
em fiapos. Depois de algum tempo recebemos uma carta
dele que nos dizia que a muito custo havia conseguido
chegar a Sengés. A carta dava o endereço de um hotel.
Mandamos para lá um emissário insuspeito da polícia,
levando dinheiro e roupa. Cabe aqui dizer que a polícia,
tendo o famigerado policial Lascala à frente, vigiava sem-
pre nossos passos e nossos movimentos. Quando nosso
emissário voltou, soubemos que quando Passos conseguiu

34
verve

Subsídios para a história do movimento social...

aproximar-se daquela povoação causou espanto. O pró-


prio Domingos Passos disse a nosso enviado que seu
aspecto era assustador. Procurou convencer o dono do ho-
tel de que ele era um homem de bem, que não era nada
daquilo que aparentava. Mas o dono do hotel de nada que-
ria saber, e a muito custo cedeu-lhe um barraco de ma-
deira todo furado que estava abandonado ali por perto. Quan-
do chegou nosso emissário, com roupas e dinheiro, o dono
do hotel mudou completamente de idéia a respeito do nos-
so companheiro Passos.
Depois disso fizemos algumas outras remessas de di-
nheiro e pela ausência de notícias e temendo complicar a
vida de Domingos, fomos perdendo totalmente o contato
com ele. Compreendemos que o nosso companheiro pre-
tendia ficar algum tempo no anonimato. Nunca mais sou-
bemos nada dele. Assim terminou a vida de um grande
militante que alguém, com bastante justiça, chamou de
“o Bakunin brasileiro”.
Depois de Artur Bernardes, o presidente Clevelândia,
de tétrica memória, quem assumiu a presidência da re-
pública foi o outro homem reconhecidamente reacioná-
rio, Washington Luiz. Esse cidadão só sabia governar com
estado de sítio permanente, pois o ambiente em todo o
Brasil era de efervescência revolucionária. A revolução
dos 10 de Copacabana, em 1922, e a revolução de Isidoro,
em 1924, deixaram profundas raízes. Naquela época mui-
tos meninos foram batizados com o nome de Isidoro em
homenagem ao grande general revolucionário Isidoro Dias
Lopes. Foi assim que, em 1930, aconteceu no Brasil a re-
volução mais simpática de toda sua história. A nação in-
teira sentiu-se fervorosamente sacudida pela brilhante
vitória das forças revolucionárias, que traziam em sua
vanguarda homens que representavam uma promissora
esperança para o Brasil. Não merecem que se lhes cite os
nomes, porque não souberam conduzir essa grandiosa re-

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volução para seus verdadeiros destinos. Eu fui testemu-


nha ocular do grande regozijo do povo paulistano, que se
soltou em festa em todas as ruas e bairros dessa metrópo-
le. Vi pessoas que se abraçavam em plenas ruas com
lágrimas de alegria nos olhos. Aqui vale a pena repetir
as palavras da grande Luiza Michel, quando se referiu à
Comuna de Paris: “mas o Estado é amaldiçoado, e por isso
sou anarquista”. A alegria espocava livre e espontânea
na população brasileira, a queda do Perrepismo (Partido
Republicano Paulista) era desejada pelo Brasil inteiro.
Nós os anarquistas de São Paulo, nos encontráva-
mos algo desarticulados, devido à perseguição policial
largamente favorecida pelo estado de sítio mantido per-
manentemente pelo homem que disse que “a questão
social resolve-se a patas de cavalo”, Washington Luiz,
quando era chefe de polícia em São Paulo. Vitoriosa, como
já disse, a revolução, não foi difícil reorganizar-nos, por-
que estávamos quase todos organizados em grupos por
afinidades e por bairros. Imediatamente procuramos
reorganizar os sindicatos, e logo a seguir decidimos re-
organizar também a Federação Operária de São Paulo,
da qual foi fundador Edgard Leuenroth, parece-me em
1906 ou 1913, não tenho muita certeza.
A essa altura, os comunistas que vinham fazendo toda
espécie de sabotagem contra os sindicatos orientados por
nós já desde o ano de 1924, caluniando-nos, promovendo
algazarra e toda a sorte de desordens nas reuniões e as-
sembléias, matando gente como foi o caso do Antonino, e
tentativa de morte na mesma noite contra o professor
José Oiticica, cuja bala a ele destinada matou um gráfi-
co que era comunista como eles, procuravam, por todos
os meios, predominar para apossar-se dos sindicatos e
da Federação. O número de militantes anarquistas na-
quele tempo ainda era notável, e conseguíamos, sem
muito esforço, sobrepujar as investidas comunistas.

36
verve

Subsídios para a história do movimento social...

Gostaria de relembrar os nomes de todos aqueles com-


panheiros, para que pelo menos ficassem registrados
seus nomes quando se fala da história social no Brasil:
Francisco Cisnei, Hermínio Marques, Arsênio Palácio,
Felipe Gil de Souza Passos, João Navarro, João Bacchetto,
Garcia, Nicola Festa, Nicola D´Albenzio, Amor Salguero,
Justino Salguero, Liberto Salguero, João Peres, Lourenço
Pirozzelli, Luis Páparo, Adelino de Pinho, João Penteado,
Francisco Rodrigues, e como poderei lembrar o nome de
centenas de bravos militantes que se batiam ardorosa-
mente em favor do anarco-sindicalismo? Rodolfo Felipe,
Osvaldo Salgueiro, que militavam na “A Plebe”.
Diego Sanchez, os irmãos Panzarini, os irmão Neves
que foram deportados para Portugal, João Aguilar, Emílio
Martins, Cristovam Alba, Antonio Oruzo, Agustinho Soto,
e quantos e quantos outros bravos rapazes que eu gostaria
lembrar o nome e que lutavam lado a lado conosco, e que
levavam, como nós levávamos, uma esperança grande
como o mundo posta dentro do coração.
Adelino de Pinho, que não sei se já veio feito anarquista
de Portugal ou se fez aqui é, porque ainda vive, um autodi-
data que se dedicou, aqui no Brasil, nos anos anteriores a
1930, a alfabetizar meninos e adultos. Teve várias esco-
las, e podem-se contar aos milhares as crianças que ele
ensinara a ler. Era esse seu único meio de vida, combater
o analfabetismo, que com certeza, naquela época, devia
ser de 90 por cento no Brasil. Quando saía nosso jornal, A
Plebe, era ele quem fazia a revisão. Escrevia bem e fazia
conferências quando solicitado. Depois da revolução de
1930, quando o Estado brasileiro começou a controlar rigi-
damente todas as iniciativas particulares, e quando o Es-
tado, contrariando o verdadeiro espírito democrático pelo
qual se havia feito a revolução, começou a controlar a vida
particular de cada cidadão, Adelino de Pinho foi proibi-
do de lecionar ou manter escola. Ao invés do Brasil re-

37
11
2007

conhecer a extraordinária obra de alfabetização reali-


zada por esse homem, por iniciativa própria, e quando
havia escolas apenas para bem pouca gente, e quando
era difícil encontrar entre o povo proletário alguém que
soubesse ler, Adelino de Pinho não mais pôde lecionar e
teve a sua vida enormemente complicada. Ainda nestes
dias, em que estou escrevendo estas lembranças, foi tra-
zido de carro por um seu genro, para fazer-me uma visita.
Ao me ver ficou de tal forma emocionado que temi que lhe
acontecesse alguma coisa, chorava com as mãos postas
no coração. Almoçou comigo, bastante lúcido e com 84
anos.
Um companheiro que não quero deixar esquecido nes-
tas minhas lembranças chamava-se Martin García, de
nacionalidade espanhola. Era um homem de uma capaci-
dade intelectual verdadeiramente impressionante, tinha
uma vasta cultura geral e conhecia o anarquismo profun-
damente. O grande mal que sofria esse companheiro era
o alcoolismo, pelo qual estava completamente dominado.
Não costumava falar em público, a não ser em pequenas
reuniões, e sua palavra era ouvida com o máximo respeito.
Escrevia com verdadeiro conhecimento de causa; alguns
dos seus trabalhos podem ser encontrados em A Plebe,
na fase de 1932. Saiba-se que estava lá por Taipús, em
Santos, e com certeza já morreu.
Outro companheiro que quero mencionar com inteiro
agrado, e que faleceu lá pelo ano de 1936 ou 1937, com a
idade de 61 anos, é Florentino de Carvalho, ou Primitivo
Soares, que era seu verdadeiro nome. Segundo me foi re-
ferido por João Peres, que o conheceu muito melhor e antes
do que eu, certo dia, vendo uma vitrina de livraria, sen-
tiu-se atraído pelo título de um livro: A conquista do pão, de
Kropotkin. Comprou-o, leu-o, abandonou a força pública e
se fez um dos grandes conferencistas do movimento anar-
quista brasileiro. Era um expositor de rara capacidade, sua

38
verve

Subsídios para a história do movimento social...

linguagem era polida e acadêmica. Escreveu dois li-


vros: Da escravidão à liberdade e A guerra civil em São
Paulo, ademais de farta colaboração em nossos jornais.
Era um homem de meia estatura, adoentado e fran-
zino; foi muito maltratado pela polícia. Fundou várias
escolas, era esse seu meio de vida, algumas com nome
de “Escola Moderna”; de uma dessas escolas alguns
alunos resultaram excelentes companheiros, como:
Liberto Lemos, Jaime e Francisco Cuberos e outros que
nunca mais vi. Eu ouvia suas conferências com verdadei-
ro encanto, seja pela linguagem bonita que empregava,
seja pela profundidade com que tratava os assuntos.
Sustentou várias controvérsias públicas; eu assisti a
uma delas, no salão Itália Fausta, onde Florentino fa-
lou duas horas seguidas. Quando terminou, o professor
que havia aceitado a controvérsia disse que estava ma-
ravilhado com o conhecimento de Florentino e que não
tinha nada absolutamente a dizer. Não tenho muita cer-
teza, mas parece-me que foi no Rio Grande do Sul onde
sustentou uma controvérsia com Maurício Lacerda, pai
desse nacionalista que não sabe o que quer, Carlos
Lacerda. Maurício Lacerda, ao terminar a controvér-
sia, disse: “Florentino de Carvalho é um sociólogo”.
Percorreu alguns países. De uma feita foi deportado
juntamente com Francisco Aroca e outros companheiros
espanhóis e italianos. Nenhum país quis recebê-lo e de-
pois de 6 meses de odisséia pelos portos da Europa e
América, foram novamente desembarcados no Brasil
e depois libertados. A revolução de 1930 trouxe algum
desafogo de liberdade, e os militares revolucionários eram
de fácil acesso. Por essa época Florentino de Carvalho se
encontrava preso na Ilha de “Martin Garcia”, a mando
do governo argentino. Por intermédio de alguns daque-
les militares, foi possível libertar Florentino da ilha e
trazê-lo novamente para cá, onde ficou até seu faleci-
mento.

39
11
2007

Chegou aqui em São Paulo por volta de 1926 ou 1927,


vindo de Buenos Aires, um companheiro que se vestia
sempre com a maior simplicidade. Chamava-se Diego
Gimenez; não tinha grande cultura, mas conhecia muito
bem o anarquismo e era, ao mesmo tempo, portador de
um romantismo sublime, e decidido na ação. Não tinha
profissão, mas gostava imensamente de trabalho do cam-
po. Morava com um irmão em Santana, nesta Capital; em
certa ocasião resolveu apossar-se de um terreno que era
da Prefeitura, mas que estava abandonado. Armou-se de
uma enxada e outras ferramentas e começou a cavoucar
aquele terreno que estava coberto de mato. O terreno fica-
va na “Ponte Pequena”, no bairro de Santana e, como
ele era ali conhecido, quando o viram trabalhar um
terreno que era da Prefeitura, chamaram-no de louco.
Ele não se importava; continuou sua tarefa; a medida
que amanhava um pedaço de terra já arranjava semente
para plantá-la. Depois de algum tempo de sacrifício e dedi-
cação, que só sonhador como Diego Gimenez podia fazer,
aquela plantação começou a mostrar os primeiros reben-
tos verdes. Nas horas mortas da noite, Diego procurava as
grandes construções, e delas tirava onde morar. Numa
das últimas incursões, quando já o barraco estava quase
completo, um dos empreiteiros da construção onde Diego
havia surrupiado tábuas, descobriu seu paradeiro e teve
que despregar as tábuas e entregá-las a seu dono. Mas ele
não desanimou, e acabou construindo o barraco com dois
compartimentos. Alguns companheiros dormiram e come-
ram naquele barraco de Diego.
De dia trabalhava a terra e fazia alguns “biscatinhos”
para arranjar algum dinheirinho para comprar a se-
mente e para outras prementes necessidades, e de noite
dormia no barraco. Freqüentava nossas reuniões e re-
citava poesias nos nossos festivais. Era um convicto
militante anarquista.

40
verve

Subsídios para a história do movimento social...

Logo no primeiro ano de sacrifício naquele terreno, co-


meçaram a aparecer os tomates, milho, verduras, batati-
nhas e outras hortaliças. A meninada do bairro começou
a dar as costumeiras incursões, prejudicando a planta-
ção. Diego Gimenez ficou de atalaia, e quando os meninos
fizeram a investida ele os chamou, levou-os para dentro
do terreno, mostrou-lhes toda a plantação e lhes disse:
“quando tudo isto estiver maduro, podem vir buscar, que
eu dou de graça”.
Foi isso suficiente para que os meninos se interessas-
sem pela plantação, e quando um menino tentava maltra-
tar alguma planta, eles mesmos se incubiam de corrigir o
destruidor.
Chegou por fim a época de estar tudo em ponto de co-
lher, então os meninos ou suas mães iam ao terreno do
Diego para comprar verduras, tomates, milho verde em
suma, do que houvesse, Diego a todas servia sem nada
cobrar.
Que resultado teve esse comportamento?
O resultado foi aquele que Diego sonhava para toda a
humanidade. As donas de casa iam buscar a verdura e
mandavam em troca a comida já feita para Diego. Um do-
mingo de manhã fui visitá-lo, e na hora do almoço fui tes-
temunha ocular; vi uma das vizinhas chegar com uma
suculenta macarronada. Lavavam-lhe a roupa e davam-
lhe comida, em troca das verduras e hortaliças que Diego
lhes fornecia. Em dias alternados, enchia as cestas e saía
para vender um pouco de verdura, para arranjar algum
dinheirinho para comprar alguma coisa que lhe fizesse
falta. Quando havia conseguido o dinheirinho que pre-
cisava para a barba, o cabelo e outras necessidades,
distribuía grátis a verdura que lhe restava na cesta. No
bairro de Santana, crianças e adultos queriam e respeita-
vam Diego Gimenez.

41
11
2007

Passados que foram uns oito anos, Diego achou que


tinha direitos adquiridos sobre o terreno da prefeitura, e
lá se foi ele como um Quixote a reclamar a legitimidade do
terreno. A prefeitura ignorava a existência daquele imó-
vel, mas tão logo souberam das intenções de nosso com-
panheiro, cercaram o terreno e impuseram a Diego uma
pequena taxa de aluguel, para que constasse que ele era
apenas um inquilino da prefeitura. Sobre Diego Gimenez,
anarquista romântico e de ação ao mesmo tempo, ainda
falaremos adiante. Quero encerrar esta referência dizen-
do que todos os cachorros perdidos e famintos daquela zona
encontravam abrigo e comida no barraco dele.
Já disse que reorganizamos a velha Federação Operá-
ria de São Paulo, com a participação da União os Artífices
em Calçado, União dos Trabalhadores Metalúrgicos, vidrei-
ros, padeiros, ladrilheiros, canteiros, garçons, construção
civil, vendedores ambulantes e União dos Trabalhadores
Gráficos, que estava completamente dominada pelos co-
munistas, que compareciam aos plenários da Federação
Operária unicamente para tumultuar e sabotar tudo o que
ali se fizesse. Havia um poderoso sindicato, a União dos
Trabalhadores em Fábrica de Tecidos, cujos militantes pre-
ponderantes, José Righeti, Tozi, e os Irmãos Castelani, o
mantiveram afastado da Federação Operária, alegando que
os sindicatos só deviam tratar de assuntos econômicos.
Esses elementos foram os responsáveis diretos para que
a União dos Trabalhadores em Fábricas de Tecido não ade-
risse à Federação Operária. Preferiram que os comunistas
se apossassem dela, como de fato aconteceu.
Em 1931, a Federação Operária fez realizar um con-
gresso, parece-me com o nome de 3ª Conferência Ope-
rária de São Paulo, não me recordo bem por quê razão.
Essa conferência ou congresso teve uma extraordiná-
ria repercussão, e evidenciou também a grande força
anarco-sindicalista que existia em todo o estado de São

42
verve

Subsídios para a história do movimento social...

Paulo. Lamento não ter nenhum documento com que


possa provar insofismavelmente o número de delegações
que estiveram presentes, inclusive do interior do esta-
do. Os comunistas tinham apenas a representação dos
gráficos e um grupo nominal minoritário; arranjado de
última hora, com a finalidade de que participasse do
congresso também, o conhecido e eloqüente militante
Aristides Lobo, naquela época trotskista, porque ha-
via sido expulso do partido comunista por rebeldia, que
depois tornou-se nosso grande amigo, e que acaba de fa-
lecer, precisamente nestes dias do mês de novembro
1968. Todas as teses do comunismo anárquico e de
ação direta contidas no temário do congresso, foram
aprovadas pela grande maioria, pois, como disse, os co-
munistas eram uma reduzida minoria. A fabricação em
série de comunistas russófilos veio alguns anos depois.
Lá pelo mês de março de 1932, a União dos Artífices em
Calçados, em assembléia geral, resolveu fazer um pedido
de aumento de salário e de certa melhoria de higiene
nos locais de trabalho, a todo o patronato da indústria do
calçado. Para isso mandou imprimir umas tabelas, discri-
minando as reivindicações, e marcando o dia 1º de maio
para a greve geral, caso o patronato se negasse a aceitar
as condições pretendidas. Essas tabelas foram entregues
em mãos a todos os estabelecimentos da indústria de
couro. O patronato, por sua vez, também tomou suas pre-
cauções para resistir à greve anunciada pelos sapateiros.
Chegou por fim o dia 1º de maio, e a grande maioria dos
patrões resolveu resistir, porque estavam informados de
que se estava preparando um movimento armado contra-
revolucionário perrepista, para combater a revolução de
1930 que os havia apeado do poder. Como se sabe, a figura
draconiana de Washington Luiz teve de abandonar o país,
acompanhado até o porto pelo cardeal, que não lembro
quem era nesse tempo.

43
11
2007

Alugamos o teatro Olímpia, na avenida Rangel Pestana,


que era o maior teatro de São Paulo, e ali, com uma
massa de gente comprimida, que se calculou em 7 mil
pessoas no dia 2 de maio, declaramos a greve geral com
um entusiasmo nunca visto. Foi um espetáculo que nunca
mais saiu da memória. Há muitos moços de hoje que
falam com uma certa displicência dos velhos militantes;
queria tê-los tido ao meu lado naquela ocasião. Houve
sapateiros que faziam uso da palavra e não chegavam a
terminar embargados pela emoção. Não parecia uma as-
sembléia, parecia uma mastodôntico congresso, tal o
número de oradores e tal a firmeza de conhecimentos
que possuíam aqueles militantes. Do palco onde eu esta-
va parecia-me estar diante de ondas de mar; era essa a
impressão que dava aquela multidão em seus movimen-
tos e gestos. Declarada que foi a greve geral, partimos a
pé para parar algumas fábricas que ainda não haviam
aderido ao movimento.

O caso Sacco e Vanzetti, um episódio imorredouro da


luta sindical em São Paulo

A campanha em favor dos anarquistas italianos Nicola


Sacco e Bartolomeu Vanzetti, injustamente condena-
dos à cadeira elétrica pela truculenta justiça norte-
americana que os incriminara num assassinato que
não cometeram, já havia tomado grandes proporções em
todo o mundo, devido o movimento sindical em quase
todos os países era dirigido e liderado por elementos anar-
quistas mais conhecidos por anarco-sindicalistas.
Em São Paulo, antes dos anos de 1924, a agitação em
prol daqueles militantes libertários que jaziam nas pri-
sões de Massachussets havia vários anos, fazia-se muito
inconstante e sem planificação. A partir daquela data
esse movimento de agitação que tomaria significativa

44
verve

Subsídios para a história do movimento social...

projeção nos meios populares de São Paulo, passou a


ser feito com regularidade e persistência.
[...]1
Edgard Leuenroth foi outro dos homens que arreba-
tavam os concorrentes dos comícios naquela histórica
campanha. Possuidor de uma voz açambargante, própria
do militante agitador, esgrimindo um fraseado castiço,
polido, elevado, dono de um raciocínio sempre oportuno e
fulminante — ainda agora, mesmo em idade avançada
conserva traços dessas qualidades —, emprestou toda sua
coragem e sua dedicação a esse empreendimento huma-
no. Conhecendo o fim que lhe esperava depois de cada
comício, comparecia a eles sempre prevenido de roupa
suficiente para suportar a umidade das celas, dado que
sua saúde fora sempre sensível à umidade e ao frio.
Como ficou dito, o número de militantes libertários era
grande, e a campanha de agitação não sofria solução de
continuidade, mesmo apesar da ferrenha perseguição
policial que comparecia aos comícios com atitudes valen-
tonas e com a incumbência de impedi-los e prender os
ativos participantes.
No que se refere à polícia, cabe uma nota aparte,
porque sua ação obstinada e repressiva valorizou so-
bremaneira o desgarre e a valentia dos anarquistas
nessa manifestação de solidariedade a Sacco e Vanzetti.
Com a finalidade única de pôr um paradeiro àquela
campanha que crescia diariamente em intensidade e
extensão, um promotor público, Hibrain Nobre, (que não
se perca pelo nome de “Nobre”), que como delegado de
polícia já se havia destacado em Santos, como ferrenho
e reacionário perseguidor de operários, ofereceu seus
“operosos” serviços à polícia de São Paulo, assumindo, es-
pontaneamente, a incumbência de acabar com aquele
movimento. Velhos militantes conhecidos pelos polici-

45
11
2007

ais, que não tinham nenhuma intenção de imiscuir-se


naquele poderoso movimento de opinião pública, foram
chamados a comparecer a seu gabinete, para ameaçá-
los de prisão ou deportá-los, se estrangeiros.
Diante dessas velhacas atitudes policiais, cada ora-
dor que participasse dos comícios conhecia de antemão
a sorte que lhe esperava depois de cada ato público.
Entretanto, o entusiasmo e o arrojo daquela geração,
que emergia cheia de esperanças, superava a repres-
são sistemática e insidiosa da polícia, e os panfletos de
manifestos penetravam em todos os recantos de São
Paulo.
Semanalmente, depois das 10 horas da noite, saiam
turmas de jovens libertários a empapelar paredes com
os manifestos de propaganda e convocações de atos
públicos. Esse trabalho, algo perigoso porque sofria a per-
seguição sempre sistemática dos policiais, prolongava-se
até altas horas das madrugadas. Sempre havia prisões,
e quando os guardas não conseguiam prender, atiravam,
pois tinham ordens para isso. Felizmente a mocidade
libertária tinha boas pernas e nunca tivemos feridos a
lamentar.
Chegou finalmente a noite da fatídica data de 26 de
agosto de 1927, quando aqueles dois íntegros e resolutos
militantes anarquistas foram levados para a cadeira
elétrica. Os protestos se ergueram universalmente, e
de todas as partes partiam moções de repúdio à justiça
norte-americana.
Aí é que pudemos constatar a profundidade que a
nossa campanha havia atingido no seio da popula-
ção. A greve geral em São Paulo, a favor de Sacco e
Vanzetti, foi um fato autêntico, positivo, irretorquível.
Em todos os setores da atividade industrial, a paralisação
atingiu notáveis proporções de insofismável solidari-

46
verve

Subsídios para a história do movimento social...

edade humana. Pessoas as mais pacatas externavam


seu protesto cruzando os braços e negando-se a traba-
lhar naquele dia.
A polícia não tinha mãos a medir para a repressão e
as cadeias regurgitavam de pessoas presas. Pessoas que
não pediam pão, não pleiteavam aumento de salários,
prestavam apenas sua solidariedade a dois homens
inocentes que estavam prestes a serem imolados pela
terrível máquina jurídica de um grande país, que, pela
segunda vez, manchava sua história com vergonho-
sos erros judiciais. Repetia-se com Sacco e Vanzetti,
diante do mundo consternado, a mesma tragédia dos
mártires de Chicago, de 1887.
As mesmas impudicas maquinações!
Não compreendemos por que os modernos escribas
que se abalançam a escrever as “histórias sociais do
Brasil” possam omitir, de caso pensado, páginas imor-
redouras e brilhantes como essas que pertencem ao
proletariado paulista, de muito antes de aparecer no
Brasil o sindicalismo amarelo do Ministério do Trabalho.
Um dia, a verdadeira história do movimento social do
Brasil aparecerá na plenitude límpida, clara e verdadei-
ra.
São Paulo, outubro de 1965

Notas
1
N.E. O Depoimento, por vezes, traz repetições que foram suprimidas nesta
edição.

47
11
2007

RESUMO

Breve história das lutas e resistências do anarquismo paulista entre


os anos de 1920 ao final dos anos 1960, na qual são dados relevos
às agitações das associações anarquistas União dos Artífices em
Calçados e Classes Anexas de São Paulo e Comitê pró-Sacco e
Vanzetti, à forte repressão policial contra essas agitações e a uma
antologia de vidas anarquistas.

Palavras-chaves: anarquistas, anarco-sindicalismo, repressão po-


licial.

ABSTRACT

The article presents a brief history of struggles and resistances of


anarchism in Sao Paulo from the 1920’s to late 1960’s, with special
attention to the agitations of the anarchist associations Union of
Shoemakers and Related Classes of São Paulo and the Pro-
Sacco and Vanzetti Committee, to the vicious police repression
against those agitations and to an anthology of anarchists’ lives.

Keywords: anarchists, anarcho-syndicalism, police repression.

Indicado para publicação em 06 de março de 2006.

48
verve

mudanças 1, 1982

as idéias mudaram; o modo de pensar não.

49
11
2007

o princípio do estado1

mikhail bakunin*

No fundo, a conquista não é só a origem, mas tam-


bém é o fim supremo de todos os Estados, grandes ou
pequenos, poderosos ou fracos, despóticos ou liberais,
monárquicos ou aristocráticos, democráticos e socialis-
tas também, supondo que o ideal dos socialistas alemães,
o de um grande Estado comunista, seja realizado algum
dia.
Que a conquista foi o ponto de partida de todos os
Estados, antigos e modernos, isso não poderá ser ques-
tionado por ninguém, já que cada página da história
universal assim o prova suficientemente. Ninguém ne-
gará também que os grandes Estados atuais têm por
objeto, mais ou menos confesso, a conquista. Mas os
Estados médios, e sobretudo os pequenos, será dito, não

* Anarquista russo. Participou da revolução de 1848. Em 1868, funda a Alian-


ça da Democracia Socialista, e em 1860 ingressa na Primeira Internacional, de
onde os anarquistas foram expulsos em 1872, como resultado do confronto
entre Bakunin e Marx. No mesmo ano funda a Federação do Jura. Morre na
Suiça, aos 62 anos, em 1876.

verve, 11: 50-77, 2007


50
verve

O princípio do Estado

pensam mais do que em se defender, e seria ridículo


de sua parte sonhar com a conquista.
O quanto ridículo que se quiser, mas, entretanto, é o
sonho desses Estados, como o sonho do menor camponês
proprietário é arredondar suas terras em detrimento do
vizinho. Arredondar, crescer, conquistar a qualquer preço
e sempre, é uma tendência fatalmente inerente a todo
Estado, qualquer que seja sua extensão, sua debilidade ou
sua força, porque é uma necessidade de sua natureza. O
que é o Estado senão a organização do poder? Está na
natureza de todo poder a impossibilidade de suportar um
superior ou um igual, pois o poder não tem outro objeto
além da dominação, e a dominação só é real quando está
submetido a ela tudo o que a obstaculiza. Nenhum poder
tolera outro a não ser quando está obrigado a fazê-lo, isto
é, quando se sente impotente para destruí-lo ou derrubá-
lo. O simples fato de um poder igual é uma negação de seu
princípio e uma ameaça perpétua contra sua existência,
porque é uma manifestação e uma prova de sua impotên-
cia. Por conseguinte, entre todos os Estados que existem
um ao lado do outro, a guerra é permanente e a paz tão só
uma trégua.
Está na natureza do Estado se apresentar, tanto em
relação a si mesmo como frente a seus súditos, como o
objeto absoluto. Servir a sua prosperidade, a sua grandeza
e a seu poder, essa é a virtude suprema do patriotismo. O
Estado não reconhece outra virtude. Tudo o que lhe serve
é bom e tudo o que é contrário a seus interesses é decla-
rado criminoso. Tal é a moral dos Estados.
Por isso, a moral política foi sempre em todo momento,
não só estranha, mas absolutamente contrária à moral
humana. Essa contradição é uma conseqüência forçada
de seu princípio: sendo o Estado uma parte, coloca-se e se
impõe como o todo, ignora o direito de quanto, não sendo

51
11
2007

ele, encontra-se fora dele, e quando pode, sem perigo, o


violenta. O Estado é a negação da humanidade.
Existem um direito humano e uma moral humana
absolutos? Na atualidade, e vendo o que acontece e se
faz na Europa hoje, somos forçados a nos colocar essa
pergunta.
Primeiramente: existe o absoluto, e não é tudo rela-
tivo neste mundo? A respeito da moral e do direito, o
que se chamava ontem direito não o é mais hoje, e o
que parece moral na China pode não ser considerado
tal na Europa. Desse ponto de vista, cada país, cada
época, só deveriam ser julgados do ponto de vista das
opiniões contemporâneas e locais, e então não haveria
nem direito humano universal nem moral humana ab-
soluta.
Desse modo, depois de ter sonhado uma coisa e outra,
depois de termos sido metafísicos ou cristãos, hoje posi-
tivistas, deveríamos renunciar a esse sonho magnífico
para voltar a cair nas estreitezas morais da Antigüidade,
que ignoram inclusive o nome da humanidade, até o ponto
de que todos os deuses foram deuses exclusivamente
nacionais e acessíveis só aos cultos privilegiados.
Mas hoje, que o céu tornou-se um deserto e que to-
dos os deuses, inclusive, naturalmente, o Jeová dos ju-
deus, encontram-se destronados, hoje isso seria ainda
pouco: voltaríamos a cair no materialismo crasso e
brutal de Bismarck, de Thiers e de Frederico II, se-
gundo os quais Deus está sempre do lado dos grandes
batalhões, como disse excelentemente o último. O úni-
co objeto digno de culto, o princípio de toda moral, de
todo direito, seria a força; essa é a verdadeira religião
do Estado.
Nada disso! Por mais ateus que sejamos, e preci-
samente porque somos ateus, reconhecemos uma mo-

52
verve

O princípio do Estado

ral humana e um direito humano absolutos. Só que


se trata de entender a significação dessa palavra, abso-
luto. O absoluto universal, que contempla a totalidade
infinita dos mundos e dos seres, não o concebemos, por-
que não só somos incapazes de percebê-lo com nossos
sentidos, como também não podemos sequer imaginá-lo.
Toda tentativa desse gênero nos levaria de novo ao vazio,
tão amado dos metafísicos, da abstração absoluta.
O absoluto de que falamos é um absoluto muito re-
lativo, e em particular relativo exclusivamente para a
espécie humana. Ela está longe de ser eterna: nasci-
da sobre a terra, morrerá com ela, talvez antes dela,
deixando o lugar, segundo o sistema de Darwin, para uma
espécie mais poderosa, mais completa e mais perfeita.
Mas enquanto existe, tem um princípio que lhe é ine-
rente, e que faz que seja precisamente o que é: é esse
princípio o que constitui, em relação a ela, o absoluto.
Vejamos qual é esse princípio.
De todos os seres vivos sobre esta terra, o homem é ao
mesmo tempo o mais social e o mais individualista. É,
sem contradição, também o mais inteligente. Há, talvez,
animais que são mais sociais do que ele, por exemplo as
abelhas ou as formigas; mas, ao contrário, são tão pouco
individualistas que os indivíduos que pertencem a essas
espécies estão absolutamente absorvidos por elas, e como
que aniquilados em sua sociedade; são tudo para a cole-
tividade e nada, ou quase nada, para si próprios. Parece
que existe uma lei natural, segundo a qual quanto mais
elevada é uma espécie de animais na escala dos seres,
por sua organização mais completa, tanto mais latitude,
liberdade e individualidade deixa a cada um. Os animais
ferozes, que ocupam incontestavelmente a hierarquia
mais elevada, são individualistas em grau supremo.
O homem, animal feroz por excelência, é o mais
individualista de todos. Mas, ao mesmo tempo, e este

53
11
2007

é um de seus traços distintivos, é eminente, instinti-


va e fatalmente socialista. Isto é de tal modo certo
que inclusive sua inteligência, que o torna tão supe-
rior a todos os seres vivos e que o constitui, de certa
maneira, no amo de todos, só pode se desenvolver e
chegar à consciência de si mesma em sociedade, e
pelo concurso de toda a coletividade.
E, de fato, sabemos bem que é impossível pensar sem
palavras: à margem ou antes da palavra pôde muito bem
haver representações ou imagens das coisas, mas não
houve pensamentos. O pensamento vive e se desenvolve
somente com a palavra. Pensar é, então, falar mental-
mente consigo mesmo. Mas toda conversação supõe ao
menos duas pessoas, uma são vocês, quem é a outra? É
todo o mundo humano que vocês conhecem.
O homem, enquanto indivíduo animal, como os ani-
mais das outras espécies, desde o início e desde que
começa a respirar, tem o sentimento imediato de sua
existência individual; mas só adquire a consciência
reflexiva de si, consciência que constitui propriamen-
te sua personalidade, por meio da inteligência e, por
conseguinte, somente na sociedade. A personalidade
mais íntima de vocês, a consciência que têm de vo-
cês mesmos em seu foro íntimo, é de certa maneira o
reflexo de sua própria imagem, refletida e enviada de
novo como por outros tantos espelhos pela consciên-
cia tanto coletiva como individual dos seres humanos
que compõem seu mundo social. Cada homem que
vocês conhecem e com o qual se encontram em rela-
ções, sejam diretas ou indiretas, determina mais ou
menos seu ser mais íntimo, contribui a torná-los o
que são, a constituir sua personalidade. Por conse-
guinte, se vocês estão rodeados de escravos, ainda que
sejam o amo, não deixam de ser um escravo, pois a
consciência dos escravos só pode enviar a vocês sua

54
verve

O princípio do Estado

própria imagem aviltada. A imbecilidade de todos os


imbeciliza, enquanto que a inteligência de todos os
ilumina, eleva-os; os vícios de seu meio social são seus
vícios, e não poderiam ser homens realmente livres
sem estar rodeados de homens igualmente livres, pois
a existência de um único escravo basta para dimi-
nuir sua liberdade. Na imortal declaração dos direitos
do homem, feita pela Convenção Nacional, encontra-
mos claramente expressada essa verdade sublime, que
a escravidão de um único ser humano é a escravidão de
todos.
Esses direitos contêm toda a moral humana, preci-
samente o que chamamos moral absoluta, absoluta sem
dúvida em relação unicamente à humanidade, não em
relação ao resto dos seres, e menos ainda em relação
à totalidade infinita dos mundos, que nos é eternamen-
te desconhecida. A encontramos em germe mais ou
menos em todos os sistemas de moral que foram pro-
duzidos na História, e dos quais foi de certa maneira
como a luz latente, luz que por demais só se manifes-
tou, com muita freqüência, por reflexos tão incertos
quanto imperfeitos. Tudo o que vemos de absolutamente
verdadeiro, isto é, de humano, é devido somente a ela.
E como haveria de ser de outra maneira, se todos os sis-
temas de moral que se desenvolveram sucessivamente
no passado, assim como os outros desenvolvimentos
do homem, inclusive os desenvolvimentos teológicos
e metafísicos, não tiveram jamais outra fonte que a
natureza humana, não foram mais do que suas mani-
festações mais ou menos imperfeitas? Mas essa lei
moral que chamamos absoluta, o que é, senão a ex-
pressão mais pura, mais completa, mais adequada,
como diriam os metafísicos, dessa mesma natureza hu-
mana, essencialmente socialista e individualista ao
mesmo tempo?

55
11
2007

O principal defeito dos sistemas de moral ensinados


no passado é terem sido exclusivamente socialistas ou
exclusivamente individualistas. Assim, a moral cívi-
ca, tal como nos foi transmitida pelos gregos e pelos
romanos, foi uma moral exclusivamente socialista, no
sentido de que sacrifica sempre a individualidade para
a coletividade: sem falar das miríades de escravos que
constituem a base da civilização antiga, que apenas
eram levados em consideração como coisas, a própria
individualidade do cidadão grego ou romano foi sempre
patrioticamente imolada em benefício da coletividade
constituída em Estado. Quando os cidadãos, cansados
dessa imolação permanente, quiseram poupar-se do
sacrifício, as repúblicas gregas primeiro, depois as
romanas, desmoronaram. O despertar do individua-
lismo ocasionou a morte da Antiguidade.
Esse individualismo encontrou sua mais pura e
completa expressão nas religiões monoteístas, no ju-
daísmo, no maometismo e no cristianismo acima de
tudo. O Jeová dos judeus se dirige ainda à coletivida-
de, ao menos sob certas relações, já que tem um povo
eleito, mas contém já todos os germes da moral ex-
clusivamente individualista.
Devia ser assim: os deuses da antiguidade grega e
romana não foram, em última análise, mais do que
símbolos, os representantes supremos da coletividade
dividida, do Estado. Ao adorá-los, adorava-se o Estado, e
toda a moral que foi ensinada em seu nome não pôde,
por conseguinte, ter outro objeto que a salvação, a
grandeza e a glória do Estado.
O Deus dos judeus, déspota invejoso, egoísta e vaidoso
como só ele, cuidou-se bem, não de identificar, mas
só de misturar sua terrível pessoa com a coletivida-
de de seu povo eleito, eleito para lhe servir de tapete
predileto no melhor dos casos, mas não para que se

56
verve

O princípio do Estado

atrevesse a se levantar até ele. Entre ele e seu povo


houve sempre um abismo. Assim, só admitindo ele
mesmo como objeto de adoração, não podia suportar o
culto ao Estado. Por conseguinte, dos judeus, tanto co-
letiva como individualmente, não exigiu nunca mais
do que sacrifícios para si, jamais para a coletividade
ou para a grandeza e a glória do Estado.
De resto, os mandamentos de Jeová, tal como nos fo-
ram transmitidos pelo Decálogo, dirigem-se quase exclu-
sivamente ao indivíduo: só constituem exceção aqueles
cuja execução supera as forças do indivíduo e exige o con-
curso de todos; por exemplo: a ordem tão singularmente
humana que incita os judeus a extirpar até o último, in-
clusive as mulheres e as crianças, todos os pagãos que
encontrarem na terra prometida, ordem verdadeira-
mente digna do Pai de nossa Santíssima Trindade cris-
tã, que se distingue, como se sabe, por seu amor exu-
berante por esta pobre espécie humana.
Todos os outros mandamentos dirigem-se ao indi-
víduo: não matarás (excetuados os casos muitos fre-
qüentes em que eu mesmo o ordene a você, deveria
ter agregado); não roubarás nem a propriedade nem a
mulher alheia (sendo considerada esta última como
uma propriedade também); respeitarás teus pais. Mas,
sobretudo, a mim adorarás, o Deus invejoso, egoísta,
vaidoso e terrível, e se não quiseres incorrer em minha
cólera, cantarás louvores e te prosternarás eternamente
diante de mim.
No maometismo não existe nem sombra do coleti-
vismo nacional e restrito que domina nas religiões
antigas e do qual se encontra sempre alguns frágeis
restos até no culto judaico. O Alcorão não conhece povo
eleito; todos os crentes, de qualquer nação ou comu-
nidade à qual pertençam, são individualmente, não
coletivamente, eleitos de Deus. Assim, os califas, suces-

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11
2007

sores de Maomé, somente se chamarão chefes dos


crentes.
Mas nenhuma religião impulsionou tão longe o cul-
to do individualismo como a religião cristã. Diante das
ameaças do inferno e as promessas absolutamente
individuais do paraíso, acompanhadas dessa terrível
declaração de que dentre muitos chamados só haverá
pouquíssimos eleitos, a religião cristã provocou uma
desordem, um salve-se quem puder geral; uma espécie
de corrida de apostas em que cada um só era estimula-
do por uma preocupação única: a de salvar sua própria
alminha. Concebe-se que uma tal religião tenha po-
dido e devido dar o golpe de graça à civilização antiga,
fundada exclusivamente no culto à coletividade, à pátria,
ao Estado, e dissolver todos seus organismos, principal-
mente em uma época em que já morria de velhice. O
individualismo é um dissolvente tão poderoso! Vemos
a prova disso no mundo burguês atual.
No nosso modo de ver, isto é, segundo o ponto de
vista da moral humana, todas as religiões monoteís-
tas, mas sobretudo a religião cristã, como a mais com-
pleta e a mais conseqüente de todas, são profunda,
essencial e principalmente imorais: ao criar seu Deus,
proclamaram a decadência de todos os homens, cuja soli-
dariedade só admitiram no pecado; e ao estabelecer o prin-
cípio da salvação exclusivamente individual, renegaram
e destruíram, tanto como puderam fazê-lo, a coletivida-
de humana, ou seja, o princípio da humanidade.
Não é estranho que se tenha atribuído ao cristianismo
a honra de ter criado a idéia da humanidade, da qual, ao
contrário, foi o negador mais completo e mais absoluto.
Sob um aspecto pôde reivindicar essa honra, mas somente
sob um: contribui de uma maneira negativa, cooperando
potentemente, com a destruição das coletividades restri-
tas e parciais da Antigüidade, apressando a decadência

58
verve

O princípio do Estado

natural das pátrias e das cidades que, tendo-se divinizado


em seus deuses, formavam um obstáculo para a consti-
tuição da humanidade; mas é absolutamente falso dizer
que o cristianismo tenha tido jamais o pensamento de
constituir a humanidade, ou que só tenha compreendido,
sequer pressentido, o que chamamos hoje de solidarieda-
de dos homens, nem a humanidade, que é uma idéia com-
pletamente moderna, entrevista pelo Renascimento, mas
não concebida e enunciada de uma maneira clara e pre-
cisa até o século XVIII.
O cristianismo não tem absolutamente nada que fazer
com a humanidade, pelo simples motivo que seu objeto
único é a divindade, e uma exclui a outra. A idéia da
humanidade repousa na solidariedade fatal, natural, de
todos os homens. Mas o cristianismo, já o dissemos, só
reconhece essa solidariedade no pecado, e a rejeita abso-
lutamente na salvação, no reino desse Deus que sobre
muitos chamados só faz graça a pouquíssimos eleitos, e
que em sua justiça adorável, impulsionado sem dúvida por
esse amor infinito que o distingue, antes inclusive de que
os homens tivessem nascido sobre esta terra, tinha con-
denado a imensa maioria aos sofrimentos eternos do
inferno, e isso para castigá-los por um pecado cometido,
não por eles mesmos, mas por seus antepassados, que
estiveram obrigados a cometê-lo: o pecado de infringir uma
negação à presença divina.
Tal é a lógica saudável e a base de toda moral cristã.
O que o cristianismo tem a fazer com a lógica e a moral
humana?
Em vão se esforçarão por nos provar que o cristianis-
mo reconhece a solidariedade dos homens, citando fór-
mulas do Evangelho que parecem predizer o advento
de um dia em que só haverá um único pastor e um
único rebanho; em que será mostrada a nós a Igreja
católica romana, que tende incessantemente para a

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2007

realização desse fim pela submissão do mundo intei-


ro ao governo do papa. A transformação de toda a hu-
manidade em um rebanho, assim como a realização,
felizmente impossível, dessa monarquia universal e
divina, não têm absolutamente nenhuma relação com
o princípio da solidariedade humana, que é o único
que constitui o que chamamos de humanidade. Não
existe nem sombra dessa solidariedade na sociedade
tal como a sonham os cristãos, e na qual não se é
nada pela graça dos homens, mas tudo pela graça de
Deus, verdadeiro rebanho de carneiros desagregados
e que não têm e nem devem ter nenhuma relação
imediata e natural entre si, até o ponto que lhes é
proibido se unirem para a reprodução da espécie sem
a permissão ou a benção de seu pastor, pois só o sa-
cerdote tem direito a casá-los em nome desse Deus
que forma o único traço de uma união legítima entre
eles: separados fora dele, os cristãos não se unem, e
só podem se unir nele. Fora dessa sanção divina, todas
as relações humanas, mesmo os laços da família, são
alcançadas pela maldição geral que afeta a criação;
são reprovados a ternura dos pais, dos esposos, dos
filhos, a amizade fundada na simpatia e na estima
recíprocas, o amor e o respeito dos homens, a paixão
do verdadeiro, do justo e do bom, a da liberdade, e a
maior de todas, a que implica todas as outras, a pai-
xão da humanidade; tudo isso está maldito e só pode-
ria ser reabilitado pela graça de Deus. As relações de
homem a homem devem ser santificadas pela interven-
ção divina; mas essa intervenção as desnaturaliza, as
desmoraliza, as destrói. O divino mata o humano e
todo o culto cristão só consiste propriamente nessa
imolação perpétua do humano em nome da divindade.
Que não se objete que o cristianismo ordena aos filhos
amarem seus pais, aos pais amarem seus filhos, aos es-
posos se afeiçoarem mutuamente. Sim, ordena isso, mas

60
verve

O princípio do Estado

apenas lhes permite amar imediata, naturalmente e por


si próprios em Deus e por Deus; só admite todas essas
relações atuais sob a condição de que Deus se encontre
como terceiro, e esse terrível terceiro mata as uniões. O
amor divino aniquila o amor humano. O cristianismo or-
dena, é verdade, amar nosso próximo tanto como a nós
mesmos, mas nos ordena, ao mesmo tempo, amar Deus
mais do que a nós mesmos e, por conseguinte, também
mais do que ao próximo, isto é, sacrificar a ele o próximo
por nossa salvação, porque, no final das contas, o cristão
só adora Deus pela salvação de sua alma.
Aceitando Deus, tudo isso é rigorosamente conseqüen-
te: Deus é o infinito, o absoluto, o eterno, o onipotente; o
homem é o finito, o impotente. Em comparação com Deus,
sob todos os aspectos, não é nada. Só o divino é justo,
verdadeiro, venturoso e bom, e tudo o que é humano no
homem deve ser por isso mesmo declarado falso, iníquo,
detestável e miserável. O contato da divindade com essa
pobre humanidade deve devorar, pois, necessariamente,
consumir, aniquilar tudo o que resta de humano nos ho-
mens.
A intervenção divina nos assuntos humanos não
deixou nunca de produzir efeitos excessivamente de-
sastrosos. Perverte todas as relações dos homens entre
si e substitui sua solidariedade natural pela prática
hipócrita e doentia das comunidades religiosas, nas quais,
sob as aparências da caridade, cada um pensa só na
salvação de sua alma, fazendo assim, com o pretexto do
amor divino, egoísmo humano excessivamente refinado,
cheio de ternura para si e de indiferença, de malevo-
lência e até de crueldade para o próximo. Isso explica a
aliança íntima que existiu sempre entre o carrasco e o
sacerdote, aliança francamente confessa pelo célebre
campeão do ultramontanismo, senhor De Maistre, cuja
escrita eloqüente, depois de ter divinizado o papa, não dei-

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2007

xou de reabilitar o carrasco; um era, de fato, o comple-


mento do outro.
Mas não é só na Igreja católica onde existe e se produz
essa ternura excessiva para com o carrasco. Os ministros
sinceramente religiosos e crentes dos diferentes cultos
protestantes, não protestaram unanimemente em nos-
sos dias contra a abolição da pena de morte? Não cabe
dúvida que o amor divino mata o amor aos homens nos
corações que estão penetrados dele; também não cabe
dúvida que todos os cultos religiosos em geral, mas entre
eles o cristianismo sobretudo, não tiveram jamais outro
objeto que o sacrifício dos homens aos deuses. E entre to-
das as divindades de que nos fala a História, existe uma
só que tenha feito verter tantas lágrimas e sangue como
esse bom Deus dos cristãos, ou que tenha pervertido a tal
ponto as inteligências, os corações e todas as relações dos
homens entre si?
Sob essa influência doentia, o espírito eclipsou-se e a
busca ardente da verdade transformou-se em um culto
complacente à mentira; a dignidade humana desonrou-
se, o homem [uma palavra ilegível no original] tornava-se
traidor, a bondade cruel, a justiça iníqua e o respeito hu-
mano transformaram-se em um desprezo crescente para
os homens; o instinto da liberdade acabou no estabeleci-
mento da servidão, e o da igualdade na sanção dos privilé-
gios mais monstruosos. A caridade, ao se fazer delatora e
perseguidora, ordenou a matança dos heréticos e as
orgias sangrentas da Inquisição; o homem religioso
chamou-se jesuíta, devoto ou pietista — renunciando à
humanidade encaminhou-se para a santidade —, e o
santo, sob as aparências de uma humanidade mais [uma
palavra ilegível no original], tornou-se hipócrita, e com a
caridade ocultou o orgulho e o egoísmo imensos de um eu
humano absolutamente isolado que chama a si mesmo
seu Deus. Porque não devemos nos enganar: aquilo

62
verve

O princípio do Estado

que o homem religioso busca acima de tudo, e acredi-


ta encontrar na divindade que ama, é a si mesmo,
mas glorificado, investido pela onipotência e imorta-
lizado. Ele também retirou dela, muito freqüentemen-
te, pretextos e instrumentos para subjugar e para ex-
plorar o mundo humano.
É esta, pois, a primeira palavra do culto cristão: é a
exaltação do egoísmo que, ao romper toda solidarieda-
de social, ama a si mesmo em seu Deus e se impõe à
massa ignorante dos homens em nome desse Deus,
isto é, em nome de seu eu humano, consciente e in-
conscientemente exaltado e divinizado por si mesmo.
Por isso, os homens religiosos são ordinariamente tão
ferozes: ao defender seu Deus, tomam partido por seu
egoísmo, por seu orgulho e por sua vaidade.
De tudo isso resulta que o cristianismo é a negação
mais decisiva e mais completa de toda solidariedade
entre os homens, isto é, da sociedade e, por conse-
guinte, também da moral, já que, fora da sociedade —
penso tê-lo demonstrado — não restam mais do que
relações religiosas do homem isolado com seu Deus,
isto é, consigo mesmo.
Os metafísicos modernos, a partir do século XVII,
trataram de restabelecer a moral, fundando-a, não em
Deus, mas no homem. Por desgraça, obedecendo às
tendências de seu século, tomaram por ponto de par-
tida, não o homem social, vivo e real, que é o duplo
produto da natureza e da sociedade, mas o eu abstrato
do indivíduo, à margem de todos seus laços naturais e
sociais, aquele mesmo a quem o egoísmo cristão divi-
nizou e a quem todas as Igrejas, tanto católicas como
protestantes, adoram como seu Deus.
Como nasceu o Deus único dos monoteístas? Pela
eliminação necessária de todos os seres reais e vivos.

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2007

Para explicar o que entendemos por isso, é necessário


dizer algumas coisas sobre a religião. Não gostaríamos de
falar sobre ela, mas na atualidade é impossível tratar
questões políticas e sociais sem tocar na questão religi-
osa.
Pretendeu-se equivocadamente que o sentimento re-
ligioso apenas fosse próprio aos homens: encontram-se
perfeitamente todos os elementos fundadores no reino
animal, e entre esses elementos o principal é o medo.
“O temor a Deus — dizem os teólogos — é o começo da
sabedoria.” Pois bem, não se encontra esse temor ex-
cessivamente desenvolvido em todos os animais, e não
estão todos os animais constantemente amedrontados?
Todos experimentam um terror instintivo diante da
onipotência que os produz, os cria, os nutre, é verdade,
mas que ao mesmo tempo os esmaga, os encobre por to-
das partes, que ameaça sua existência a cada instante e
que termina sempre por matá-los.
Como os animais das outras espécies não têm esse
poder de abstração e de generalização de que só o homem
está dotado, não representam para si mesmos a totalida-
de dos seres que nós chamamos natureza, mas a sentem
e a temem. Esse é o verdadeiro começo do sentimento
religioso.
Não falta neles sequer a adoração. Sem falar do estre-
mecimento de alegria que experimentam todos os seres
vivos ao se levantar o sol, nem de seus gemidos diante da
aproximação de uma dessas catástrofes naturais terríveis
que os destroem por milhares, não é necessário mais do
que considerar, por exemplo, a atitude do cachorro na pre-
sença de seu amo. Não está por completo nela a do ho-
mem diante de Deus?
Também não começou o homem pela generalização
dos fenômenos naturais, e apenas chegou à concepção

64
verve

O princípio do Estado

da natureza como ser único depois de muitos séculos de


desenvolvimento moral. O homem primitivo, o selvagem,
pouco diferente do gorila, compartilhou, sem dúvida, por
longo tempo todas as sensações e as representações ins-
tintivas do gorila; e só foi depois de muito que começou a
fazê-las objeto de suas reflexões, primeiro necessariamente
infantis, a lhes dar um nome e por isso mesmo a fixá-las
em seu espírito nascente.
Foi assim que tomou corpo o sentimento religioso que
tinha em comum com os animais das outras espécies;
como se transformou em uma representação permanen-
te e no começo de uma idéia, a da existência oculta de
um ser superior e muito mais poderoso do que ele, e
geralmente muito cruel e muito malfeitor, do ser que lhe
causou medo, em uma palavra, de seu Deus.
Tal foi o primeiro Deus, de tal modo rudimentar, é ver-
dade, que o selvagem que o procura por todo lugar para
conjurá-lo acredita encontrá-lo às vezes em um pedaço de
madeira, em um pano, em um osso ou em uma pedra:
essa foi a época do fetichismo, de que encontramos ainda
vestígios no catolicismo.
Foram necessários ainda séculos, sem dúvida, para que
o homem selvagem passasse do culto dos fetiches inani-
mados ao dos fetiches vivos, ao dos feiticeiros. Chega a ele
por uma longa série de experiências e pelo procedimento
da eliminação: não encontrando a potência temível que
queria conjurar nos fetiches, procura-a no homem-deus,
o feiticeiro.
Mais tarde e sempre por esse mesmo procedimento de
eliminação e fazendo abstração do feiticeiro, de quem por
fim a experiência lhe demonstrou a impotência, o selva-
gem adorou sucessivamente todos os fenômenos mais
grandiosos e terríveis da natureza: a tempestade, o
trovão, o vento e, continuando assim, de eliminação

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em eliminação, ascendeu finalmente ao culto do Sol


e dos planetas. Parece que a honra de ter criado esse
culto pertence aos povos pagãos.
Isso era já um grande progresso. Quanto mais o ho-
mem distanciava-se da divindade, isto é, da potência que
causa medo, mais respeitável e grandiosa ela parecia.
Apenas era necessário dar um único grande passo para
o estabelecimento definitivo do mundo religioso, e esse
foi o da adoração de uma divindade invisível.
Até esse salto mortal da adoração do visível para a
adoração do invisível, os animais das outras espécies
teriam podido, com rigor, acompanhar seu irmão mais
novo, o homem, em todas suas experiências teológicas.
Porque eles também adoram de seu jeito os fenômenos
da natureza. Não sabemos o que podem experimentar
em relação a outros planetas; mas estamos seguros
de que a Lua e, sobretudo, o Sol exercem sobre eles
uma influência muito sensível. Mas a divindade invi-
sível só pôde ser inventada pelo homem.
Mas o próprio homem, por qual procedimento pôde
descobrir esse ser invisível, cuja existência real ne-
nhum de seus sentidos, nem sua visão, puderam lhe
ajudar a comprovar, e por meio de qual artifício pôde
reconhecer sua natureza e suas qualidades? Qual é,
enfim, esse ser suposto absoluto que o homem acre-
ditou encontrar por cima e além de todas as coisas?
O procedimento foi essa operação bem conhecida
do espírito que chamamos abstração ou eliminação, e
o resultado final dessa operação não pode ser mais do
que o abstrato absoluto, o nada. E é precisamente esse
nada o que o homem adora como seu Deus.
Elevando-se por seu espírito sobre todas as coisas
reais, até de seu próprio corpo, fazendo abstração de tudo
o que é sensível ou sequer visível, inclusive o firma-

66
verve

O princípio do Estado

mento com todas as estrelas, o homem encontra-se fren-


te ao vazio absoluto, ao nada indeterminado, infinito,
sem nenhum conteúdo, sem nenhum limite.
Nesse vazio, o espírito do homem que o produziu por
meio da eliminação de todas as coisas, apenas pôde
encontrar, necessariamente, a si mesmo em estado de
potência de abstração; vendo tudo destruído e não tendo já
nada para eliminar, volta a cair sobre si em uma inação
absoluta; e, considerando-se, nessa completa inação, um
ser diferente de si, apresenta-se como seu próprio Deus e
se adora.
Deus não é, pois, outra coisa que o eu humano absolu-
tamente vazio por força da abstração ou da eliminação de
tudo o que é real e vivo. Precisamente dessa maneira o
concebeu Buda, que, de todos os reveladores religiosos, foi
certamente o mais profundo, o mais sincero e o mais ver-
dadeiro.
Só que Buda não sabia e não podia saber que era o
próprio espírito humano que tinha criado esse Deus-nada.
Apenas no final do século XVIII a humanidade começou a
reparar nisso, e só no século XIX, graças aos estudos mui-
to mais profundos sobre a natureza e sobre as operações
do espírito humano, chegou a percebê-lo completamente.
Quando o espírito humano criou Deus, procedeu
com a mais completa ingenuidade e, sem o saber, pôde
adorar-se em seu Deus-nada.
Não podia, porém, deter-se diante desse nada que ti-
nha feito ele mesmo, devia preenchê-lo a qualquer preço
e fazê-lo voltar à terra, à realidade vivente. Chegou a esse
fim sempre com a mesma ingenuidade e pelo procedimen-
to mais natural, mais simples. Depois de ter divinizado
seu próprio eu nesse estado de abstração ou de vazio
absoluto, ajoelhou-se diante dele, o adorou e o proclamou
causa e autor de todas as coisas; esse foi o começo da
teologia.

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Deus, o nada absoluto, foi proclamado o único ser vivo,


poderoso e real, e o mundo vivente, e, por conseqüência
necessária, a natureza, todas as coisas efetivamente
reais e viventes, ao serem comparadas com esse Deus,
foram declaradas nulas. É próprio da teologia fazer do
nada o real e do real o nada.
Procedendo sempre com a mesma ingenuidade e sem
ter a menor consciência do que fazia, o homem se utili-
zou de um meio muito engenhoso e ao mesmo tempo
muito natural para preencher o espantoso vazio de sua
divindade: atribuiu-lhe simplesmente, exagerando-as
sempre até proporções monstruosas, todas as ações, to-
das as forças, todas as qualidades e propriedades, boas
ou más, benéficas ou maléficas, que encontrou tanto
na natureza como na sociedade. Foi assim como a ter-
ra, entregue ao saque, empobreceu em proveito do céu,
que enriqueceu com seus despojos.
Resultou disso que quanto mais o céu enriqueceu
— a morada da divindade —, mais miserável se fez a
terra; e bastava com que uma coisa fosse adorada no
céu para que tudo que fosse contrário a essa coisa se
encontrasse realizado neste baixo mundo. Isso é o que
se chama de ficções religiosas; a cada uma dessas
ficções corresponde, sabe-se perfeitamente, alguma
realidade monstruosa; assim, o amor celeste não teve
nunca outro efeito que o ódio terrestre, a bondade divina
só produziu o mal, e a liberdade de Deus significa a
escravidão aqui embaixo. Veremos de imediato que o mes-
mo acontece com todas as ficções políticas e jurídicas,
pois tanto umas quanto as outras são, por outra parte,
conseqüências ou transformações da ficção religiosa.
A divindade assumiu de repente esse caráter absolu-
tamente maléfico. Nas religiões panteístas do Oriente,
no culto dos brâmanes e no dos sacerdotes do Egito, tanto
como nas crenças fenícias e sírias, apresenta-se já sob

68
verve

O princípio do Estado

um aspecto bastante terrível. O Oriente foi em todo tem-


po e o é ainda hoje, em certa medida pelo menos, a pátria
da divindade despótica, esmagadora e feroz, negação do
espírito da humanidade. Essa é também a pátria dos es-
cravos, dos monarcas absolutos e das castas.
Na Grécia, a divindade se humaniza — sua unidade
misteriosa, reconhecida no Oriente apenas pelos sacer-
dotes, seu caráter atroz e sombrio, são relegados ao fundo
da mitologia helênica —, ao panteísmo sucede o politeís-
mo. O Olimpo, imagem da federação das cidades gregas, é
uma espécie de república governada muito fragilmente
pelo pai dos deuses, Júpiter, que obedece, ele também, os
decretos do destino.
O destino é impessoal; é a própria fatalidade, a força
irresistível das coisas, diante da qual tudo deve se curvar,
homens e deuses. De resto, entre os deuses, criados
pelos poetas, nenhum é absoluto; cada um representa
só um aspecto, uma parte, seja do homem, seja da
natureza em geral, sem deixar, porém, de serem por isso
seres concretos e vivos. Completam-se mutuamente e
formam um conjunto muito vivo, muito gracioso e acima
de tudo muito humano.
Nada de sombrio nessa religião, cuja teologia foi
inventada pelos poetas, somando cada um livremente
algum deus ou alguma deusa nova, segundo as ne-
cessidades das cidades gregas, cada uma das quais se
orgulhava de sua divindade tutelar, representante de
seu espírito coletivo. Essa foi a religião, não dos indiví-
duos, mas da coletividade dos cidadãos de tantas pátrias
restringidas e [a primeira parte de uma palavra ilegível]
...mente livres, associadas por outra parte entre si, mais
ou menos por uma espécie de federação imperfeitamente
organizada e muito [uma palavra ilegível].
De todos os cultos religiosos que nos mostra a História,
esse foi, seguramente, o menos teológico, o menos sério,

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o menos divino, e por isso o menos malfeitor, o que menos


obstaculizou o desenvolvimento da sociedade humana.
Somente a pluralidade dos deuses mais ou menos iguais
em potência era uma garantia contra o absolutismo; per-
seguido por uns, podia-se buscar a proteção dos outros, e o
mal causado por um deus encontrava sua compensação
no bem produzido por outro. Não existia, pois, na mitologia
grega, essa contradição lógica e moralmente monstruosa,
do bem e o mal, da beleza e a fealdade, da bondade e a
maldade, do amor e o ódio concentrados em uma única e
mesma pessoa, como acontece fatalmente no Deus do
monoteísmo.
Encontramos essa monstruosidade ativa por completo
no Deus dos judeus e dos cristãos. Era uma conseqüência
necessária da unidade divina; e, de fato, uma vez admiti-
da essa unidade, como explicar a coexistência do bem e do
mal? Os antigos persas tinham imaginado pelo menos dois
deuses: um, o da luz e do bem, Ormuzd, o outro, do mal e
das trevas, Ahrimam; era natural, então, que comba-
tessem, como combatem o bem e o mal, e triunfam
sucessivamente na natureza e na sociedade. Mas, como
explicar que um único e mesmo Deus, onipotente, todo
verdade, amor e beleza, pudesse dar nascimento ao mal,
ao ódio, à fealdade e à mentira?
Para resolver essa contradição, os teólogos judeus e
cristãos recorreram às invenções mais repulsivas e
mais insensatas. Primeiramente, atribuíram todo o
mal a Satanás. Mas Satanás, de onde procede? É, como
Ahrimam, o igual de Deus? De maneira nenhuma; como
o resto da criação, é obra de Deus. Por conseguinte,
esse Deus foi o que engendrou o mal. Não, respondem
os teólogos; Satanás foi primeiro um anjo de luz e desde
sua revolta contra Deus tornou-se anjo das trevas. Mas se
a revolta é um mal — o que está muito sujeito a cautela, e
nós acreditamos, ao contrário, que é um bem, pois sem

70
verve

O princípio do Estado

ela não haveria existido nunca emancipação social —, se


constitui um crime, quem criou a possibilidade desse mal?
Deus, sem dúvida, responderão ainda os mesmos teólo-
gos; mas apenas fez o mal para deixar aos anjos e aos ho-
mens o livre arbítrio. E o que é esse livre arbítrio? É a
faculdade de escolher entre o bem e o mal, e de decidir
espontaneamente, seja por um seja por outro. Mas para
que os anjos e os homens pudessem escolher o mal, para
que pudessem se decidir pelo mal, é necessário que o mal
tenha existido independentemente deles, e quem pôde lhe
dar essa existência, senão Deus?
Também pretendem os teólogos que, depois da queda
de Satanás, que precedeu à do homem, Deus, sem dúvida
esclarecido pela experiência, não querendo que outros
anjos seguissem o exemplo de Satanás, os privou do livre
arbítrio, deixando-lhes apenas a faculdade do bem, de sor-
te que por decorrência são forçosamente virtuosos e não
imaginam outra felicidade que a de servir eternamente
como criados a esse terrível senhor.
Mas parece que Deus não foi suficientemente esclare-
cido por sua primeira experiência, já que, depois da queda
de Satanás, criou o homem e, por cegueira ou maldade,
não deixou de lhe conceder esse dom fatal do livre arbítrio,
que perverteu Satanás e devia perverter o homem tam-
bém.
A queda do homem, tanto como a de Satanás, era fa-
tal, já que havia sido determinada desde a eternidade na
presciência divina. De resto, sem remontar tão longe, nos
permitiremos observar que a simples experiência de um
honesto pai de família deveria ter impedido o bom Deus de
submeter esses desgraçados primeiros homens à famosa
tentação. O mais simples pai de família sabe muito bem
que basta que se impeça uma criança de mexer em algu-
ma coisa para que um instinto de curiosidade invencível
a force absolutamente a fazê-lo. Portanto, se ama seus

71
11
2007

filhos e se é realmente justo e bom, os poupará dessa pro-


va tão inútil quanto cruel.
Deus não teve nem essa razão nem essa bondade, nem
essa [uma palavra ilegível], e mesmo sabendo de antemão
que Adão e Eva deviam sucumbir à tentação, assim que
se cometeu o pecado, eis que se deixa levar por um furor
verdadeiramente divino. Não se contentou em maldizer
os desgraçados desobedientes, maldisse toda sua des-
cendência até o final dos séculos, condenando aos tor-
mentos do inferno a milhares de homens que eram
evidentemente inocentes, já que sequer tinham nas-
cido quando se cometeu o pecado. Não se contentou
em maldizer os homens, maldisse com eles toda a natu-
reza, sua própria criação, que tinha encontrado tão bem
feita.
Se um pai de família tivesse atuado dessa manei-
ra, não teria sido declarado louco de pedra? Como se
atreveram os teólogos a atribuir a seu Deus o que teriam
considerado absurdo, cruel [uma palavra ilegível], anormal
de parte de um homem? Ah, é que tiveram necessidade
desse absurdo! Do contrário, como poderiam explicar a exis-
tência do mal neste mundo que deveria ter saído perfeito
de mãos de um operário tão perfeito, deste mundo criado
pelo próprio Deus?
Mas, uma vez admitida a queda, todas as dificuldades
se igualam e se explicam. Assim o pretendem ao menos.
A natureza, primeiro perfeita, torna-se de repente
imperfeita, toda a máquina se deteriora; à harmonia pri-
mitiva sucede o choque desordenado das forças; a paz que
reinava no início entre todas as espécies de animais, cede
lugar a essa carnificina espantosa, à devoração mútua; e
o homem, o rei da natureza, a supera em ferocidade. A
terra se torna um vale de sangue e de lágrimas, e a lei de
Darwin — a luta impiedosa pela existência — triunfa na
natureza e na sociedade. O mal transborda sobre o bem,
Satanás afoga Deus.

72
verve

O princípio do Estado

E semelhante inabilidade, uma fábula tão ridícula,


repulsiva, monstruosa, pôde ser seriamente repetida por
grandes doutores em teologia durante mais de quinze
séculos, o que estou dizendo? Ainda o é; mais do que isso,
o é oficialmente, obrigatoriamente ensinada em todas as
escolas da Europa. O que se deve pensar, então, depois de
tudo isso, da espécie humana? E não têm mil vezes razão
os que pretendem que traímos, ainda hoje, nosso próximo
parentesco com o gorila?
Mas o espírito [uma palavra ilegível] dos teólogos cris-
tãos não se detém nisso. Na queda do homem e em suas
conseqüências desastrosas, tanto por sua natureza como
por si mesmo, adoraram a manifestação da justiça divina.
Depois lembraram que Deus, não só era a justiça, mas
também o amor absoluto e, para conciliar um com o outro,
eis o que inventaram.
Depois de ter deixado essa pobre humanidade durante
milhares de anos sob o golpe de sua terrível maldição,
que teve por conseqüência a condenação de uns quan-
tos milhões de seres humanos à tortura eterna, sentiu
despertar o amor em seu seio, e o que fez? Tirou do in-
ferno os infelizes torturados? Não, de maneira nenhuma;
isso teria sido contrário a sua eterna justiça. Mas tinha
um filho único; como e por que o tinha, é um dos mis-
térios profundos que os teólogos, que lhe deram esse filho,
declaram impenetrável, o que é um jeito naturalmente
cômodo para sair do assunto e resolver todas as difi-
culdades. Portanto, esse pai cheio de amor, em sua
suprema sabedoria, decide enviar seu filho único à
terra, a fim de que se faça matar pelos homens, para
salvar, não as gerações passadas, sequer as do porvir, mas,
entre as últimas, como o declara o próprio Evangelho e
como o repetem a cada dia tanto a Igreja católica como os
protestantes, só um número muito pequeno de eleitos.

73
11
2007

E agora a corrida está aberta; é, como dissemos acima,


uma espécie de corrida de apostas, um salve-se quem
puder, pela salvação da alma. Aqui, os católicos e os
protestantes se dividem: os primeiros pretendem que
não se entre no paraíso a não ser com a permissão
especial do Santo Padre, o papa; os protestantes afirmam,
por sua vez, que a graça direta e imediata do bom Deus
é a única que abre as portas. Essa grave disputa continua
ainda hoje; nós não entraremos nela.
Resumamos em poucas palavras a doutrina cristã.
Há um Deus, ser absoluto, eterno, infinito, onipotente;
é a onisciência, a verdade, a justiça, a beleza e a felicida-
de, o amor e o bem absolutos. Nele tudo é infinitamente
grande, fora dele está o nada. É, no final das contas, o Ser
supremo, o Ser único.
Mas acontece aqui que do nada — que por isso mesmo
parece ter tido uma existência à parte, fora dele, o que
implica uma contradição e um absurdo, já que se Deus
existe em todas partes e preenche com seu ser o espaço
infinito, nada, nem o próprio nada, pode existir fora dele,
o que faz acreditar que o nada de que nos fala a Bíblia
estivesse em Deus, isto é, que o próprio ser divino fosse
o nada —, Deus criou o mundo.
Aqui se coloca por si mesma uma questão. A criação foi
realizada desde a eternidade, ou bem em um momento
dado da eternidade? No primeiro caso, é eterna como o
próprio Deus e não pode ter sido criada nem por Deus nem
por ninguém; porque a idéia da criação implica a prece-
dência do criador à criatura. Como todas as idéias teológi-
cas, a idéia da criação é uma idéia por completo humana,
tomada na prática da humana sociedade. Assim, o re-
lojoeiro cria um relógio, o arquiteto uma casa, etc. Em
todos esses casos, o produtor existe ao criar o produto, fora
do produto, e é isso que constitui essencialmente a

74
verve

O princípio do Estado

imperfeição, o caráter relativo e, por assim dizer, depen-


dente tanto do produtor como do produto.
Mas a teologia, como faz, diga-se de passagem, sempre,
tomou essa idéia e esse fato completamente humanos da
produção e, aplicando-os a seu Deus, estendendo-os até o
infinito e retirando-os por isso mesmo de suas proporções
naturais, formou uma fantasia tão monstruosa quanto
absurda.
Por conseguinte, se a criação é eterna não é criação. O
mundo não foi criado por Deus, portanto tem uma exis-
tência e um desenvolvimento independentes dele. A
eternidade do mundo é a negação de Deus, pois Deus era
essencialmente o Deus criador.
O mundo, porém, não é eterno; houve uma época na
eternidade em que não existia. Em conseqüência,
transcorreu toda uma eternidade durante a qual Deus ab-
soluto, onipotente, infinito, não foi um Deus criador, ou o
foi em potência, não de fato.
Por que não o foi? Por capricho de sua parte, ou porque
tinha a necessidade de se desenvolver para chegar com
isso à potência efetiva criadora?
Esses são mistérios insondáveis, dizem os teólogos. São
absurdos imaginados por vocês mesmos, nós responde-
mos. Vocês começam por inventar o absurdo, e depois o
impõem a nós como um mistério divino, insondável e
tanto mais profundo quanto mais absurdo é.
É sempre o mesmo procedimento: Credo quia absurdum.
Outra questão: a criação, tal como saiu das mãos de
Deus, foi perfeita? Se não o foi, não podia ser criação de
Deus, porque o operário — é o próprio Evangelho que o diz
— é julgado segundo o grau de perfeição de sua obra. Uma
criação imperfeita suporia necessariamente um criador
imperfeito. Portanto, a criação foi perfeita.

75
11
2007

Mas se o foi, não pôde ter sido criada por alguém,


porque a idéia da criação absoluta exclui toda idéia de de-
pendência ou de relação. Fora dela não poderia existir nada.
Se o mundo é perfeito, Deus não pode existir.
A criação — responderão os teólogos — foi segura-
mente perfeita, mas só em relação a tudo que a natureza
ou os homens podem produzir, não em relação a Deus. Foi
perfeita, sem dúvida, mas não perfeita como Deus.
Responderemos de novo que a idéia de perfeição não
admite graus, como não os admitem nem a idéia do infi-
nito nem a do absoluto. Não pode se tratar de mais ou
menos. A perfeição é uma. Portanto, se a criação foi
menos perfeita que o criador, foi imperfeita. E então volta-
remos a dizer que Deus, criador de um mundo imperfeito,
não é mais do que um criador imperfeito, o que equivale-
ria à negação de Deus.
Observa-se que, de todas as maneiras, a existência de
Deus é incompatível com a do mundo. Se existe o mundo,
Deus não pode existir. Passemos a outra coisa.
Esse Deus perfeito cria um mundo mais ou menos
imperfeito. Cria-o em um momento dado da eternidade,
por capricho e, sem dúvida, para combater o tédio de sua
majestosa solidão. De outro modo, para que o teria criado?
Mistérios insondáveis, gritarão os teólogos. Besteiras in-
suportáveis, nós responderemos.
Mas a própria Bíblia nos explica os motivos da criação.
Deus é um ser essencialmente vaidoso, criou o céu e a
terra para ser adorado e louvado por eles. Outros preten-
dem que a criação foi o efeito de seu amor infinito. Por
quem? Por um mundo, por seres que não existiam, o que
existia no começo unicamente em sua idéia, isto é, sem-
pre para ele?
[O final deste manuscrito, se foi escrito, não foi encontrado]

76
verve

O princípio do Estado

Tradução do espanhol por Natalia Montebello.

Notas
1
Texto extraído de: Mikhail Bakunin. Obras completas, tomo 4. Tradução de
Diego Abad de Santillán. Madrid, Las Ediciones de la Piqueta, 1979. Escrito
em 1871.

RESUMO

Entre o socialismo e o individualismo extremos, governos e religi-


ões prolongam a oposição que aniquila sistematicamente a liberda-
de de cada um. Mas é com as religiões monoteístas que o culto ao
individualismo terá por efeito a negação da humanidade. Confron-
ta-se cristianismo e islamismo.

Palavras-chave: cristianismo, Estado, humanidade.

ABSTRACT

Between extreme socialism and extreme individualism, govern-


ments and religions extend the opposition that systematically te-
ars down one’s liberty. But with the monotheist religions, the
cult of individualism would generate the denial of humanity. Chris-
tianity and Islamism are confronted.

Keywords: Christianity, state, humanity.

Indicado para publicação em 15 de agosto de 2005.

77
11
2007

o anarquista profissional
(o catecismo revolucionário de sergei
nietcháiev)

O Catecismo revolucionário de Sergei Nietcháiev, re-


digido na década de 1860, é um escrito muitas vezes
associado ao anarquismo e expressa um autoritário pon-
to de interseção com o revolucionarismo comunista.
Sergei Nietcháiev não expressa somente a exis-
tência do anarquista profissional, aquele que combate
restrições à liberdade e não obstante admite os padrões
austeros dos cientistas. Ele é a constatação do risco da
tirania, da permanência do fanatismo e da hipotética
seriedade dos intelectuais que falam em nome de, que
se dizem portadores de uma consciência verdadeira e
que pretendem conduzir pessoas, grupos, classes ou mas-
sas à liberdade. Nu-Sol

verve, 11: 78-94, 2007

78
verve

O anarquista profissional

the professional anarchist


(the sergey nechayev’s revolutionary
catechism)

The Sergei Nietcháiev’s Revolutionary Catechism,


written in 1868, is associated, several times, with the
anarchist movement, and shows an authoritarian po-
int of contact with the communist revolucionarism.
Sergei Nietcháiev does not merely express the exis-
tence of a professional anarchism – the one who fight
the limitations of liberty, but also accepts the austere
scientific standards. He is an expression of the danger
of tyranny, of the remaining of fanaticism and the hypo-
thetical gravity of the intellectuals who speak in the name
of and present themselves as owners of a true consci-
ence; the ones who aim to conduct people, groups, clas-
ses or masses towards liberty. Nu-Sol

79
11
2007

the revolutionary catechism

sergey nechayev

The duties of the revolutionary toward himself

1. The revolutionary is a doomed man. He has no


personal interests, no business affairs, no emotions,
no attachments, no property, and no name. Everything in
him is wholly absorbed in the single thought and the sin-
gle passion for revolution.
2. The revolutionary knows that in the very depths of
his being, not only in words but also in deeds, he has broken
all the bonds which tie him to the social order and the
civilized world with all its laws, moralities, and customs,
and with all its generally accepted conventions. He is their
implacable enemy, and if he continues to live with them
it is only in order to destroy them more speedily.
3. The revolutionary de spises all doctrines and re-
fuses to accept the mundane sciences, leaving them
for future generations. He knows only one science: the
science of destruction. For this reason, but only for this
reason, he will study mechanics, physics, chemistry, and
perhaps medicine. But all day and all night he studies the
vital science of human beings, their characteristics and
circumstances, and all the phenomena of the present so-
cial order. The object is perpetually the same: the surest
and quickest way of destroying the whole filthy order.

80
verve

O anarquista profissional

o catecismo revolucionário1

sergei nietcháiev

Os deveres do revolucionário consigo mesmo

1. O revolucionário é um homem condenado. Ele


não possui interesse pessoal algum, nenhum negó-
cio, nenhuma emoção, nenhum vínculo, nenhuma
propriedade e nenhum nome. Tudo nele é completa-
mente absorvido num único pensamento e numa única
paixão pela revolução.
2. O revolucionário sabe que nas profundezas do
seu ser, não apenas em palavras, mas em ações, ele
rompeu com todas as amarras que o atavam à ordem
social e ao mundo civilizado, com todas as suas leis,
moralidades e costumes, e também com todas as suas
convenções socialmente aceitas. Ele é seu inimigo
implacável, e se ele continua a viver entre eles é ape-
nas para destruí-los mais rapidamente.
3. O revolucionário despreza todas as doutrinas e
se recusa a aceitar as ciências mundanas,2 deixan-
do-as às gerações futuras. Ele conhece uma ciência
apenas: a ciência da destruição. Por isso, e apenas
isso, ele estudará mecânica, física, química e, talvez,
medicina. Mas todos os dias e todas as noites ele es-
tuda as ciências vitais do ser humano, suas caracte-
rísticas e circunstâncias, e todos os fenômenos da
ordem social presente. O objetivo é eternamente o
mesmo: o modo mais certo e rápido de destruir toda a
ordem abjeta.

81
11
2007

4. The revolutionary despises public opinion. He


despises and hates the existing social morality in all
its manifestations. For him, morality is everything
which contributes to the triumph of the revolution.
Immoral and criminal is everything that stands in its
way.
5. The revolutionary is a dedicated man, merciless
toward the State and toward the educated classes; and
he can expect no mercy from them. Between him and
them there exists, declared or concealed, a relentless
and irreconcilable war to the death. He must accus-
tom himself to torture.
6. Tyrannical toward himself, he must be tyranni-
cal toward others. All the gentle and enervating sen-
timents of kinship, love, friendship, gratitude, and
even honor, must be suppressed in him and give place
to the cold and single-minded passion for revolution.
For him, there exists only one pleasure, one consola-
tion, one reward, one satisfaction – the success of the
revolution. Night and day he must have but one thought,
one aim – merciless destruction. Striving cold-bloodedly
and indefatigably toward this end, he must be prepa-
red to destroy himself and to destroy with his own
hands everything that stands in the path of the revo-
lution.
7. The nature of the true revolutionary excludes
all sentimentality, romanticism, infatuation, and exal-
tation. All private hatred and revenge must also be
excluded. Revolutionary passion, practiced at every
moment of the day until it becomes a habit, is to be
employed with cold calculation. At all times, and in all
places, the revolutionary must obey not his personal
impulses, but only those which serve the cause of the
revolution.

82
verve

O anarquista profissional

4. O revolucionário despreza a opinião pública. Ele


despreza e odeia a moralidade social existente em to-
das as suas manifestações. Para ele, moralidade é tudo
aquilo que contribui para o triunfo da revolução. Imoral
e criminoso é tudo aquilo que se coloca em seu cami-
nho.
5. O revolucionário é um homem dedicado, implacá-
vel contra o Estado e contra as classes educadas; não
espera qualquer compaixão por parte deles. Há entre eles
uma guerra mortal irreconciliável, declarada ou silen-
ciosa. O revolucionário deve acostumar-se à tortura.
6. Tirânico consigo mesmo, ele deve também ser
tirânico com os demais. Os sentimentos nobres e pacifi-
cadores de afinidade, amor, amizade, gratidão e até
mesmo honra devem ser suprimidos, cedendo lugar à
fria e obstinada paixão pela revolução. Para ele, existe
apenas um prazer, um consolo, uma recompensa, uma
satisfação — o sucesso da revolução. Dia e noite ele deve
ter apenas um pensamento, um objetivo — a destruição
implacável. Determinado de maneira incansável e a
sangue-frio a alcançar esse objetivo, ele deve estar pre-
parado para destruir a si mesmo e a destruir com suas
próprias mãos tudo aquilo que se coloca no caminho da
revolução.
7. A natureza do verdadeiro revolucionário exclui
qualquer sentimentalidade, romantismo, paixão e exal-
tação. Todo ódio e vingança privados devem ser também
excluídos. Paixão revolucionária, praticada a cada mo-
mento até que se torne um hábito, deve ser aplicada
meticulosamente. Em todos os momentos, em todos os
lugares, o revolucionário deve obedecer, não aos seus
próprios impulsos, mas apenas aos que servem à causa
da revolução.

83
11
2007

The relations of the revolutionary toward his comra-


des

8. The revolutionary can have no friendship or at-


tachment, except for those who have proved by their
actions that they, like him, are dedicated to revolution.
The degree of friendship, devotion and obligation toward
such a comrade is determined solely by the degree of
his usefulness to the cause of total revolutionary des-
truction.
9. It is superfluous to speak of solidarity among re-
volutionaries. The whole strength of revolutionary work
lies in this. Comrades who possess the same revolutio-
nary passion and understanding should, as much as
possible, deliberate all important matters together and
come to unanimous conclusions. When the plan is fi-
nally decided upon, then the revolutionary must rely
solely on himself. In carrying out acts of destruction,
each one should act alone, never running to another for
advice and assistance, except when these are necessa-
ry for the furtherance of the plan.
10. All revolutionaries should have under them se-
cond- or third-degree revolutionaries – i.e., comrades
who are not completely initiated. these should be regar-
ded as part of the common revolutionary capital placed
at his disposal. This capital should, of course, be spent
as economically as possible in order to derive from it
the greatest possible profit. The real revolutionary should
regard himself as capital consecrated to the triumph of
the revolution; however, he may not personally and alo-
ne dispose of that capital without the unanimous con-
sent of the fully initiated comrades.
11. When a comrade is in danger and the question
arises whether he should be saved or not saved, the
decision must not be arrived at on the basis of senti-
ment, but solely in the interests of the revolutionary
cause. Therefore, it is necessary to weigh carefully the
usefulness of the comrade against the expenditure of
revolutionary forces necessary to save him, and the
decision must be made accordingly.

84
verve

O anarquista profissional

As relações do revolucionário com seus companhei-


ros

8. O revolucionário não pode ter amizade ou víncu-


los, a não ser com aqueles que provaram por suas ações
ser dedicados à revolução. O grau de amizade, devoção e
obrigação a um companheiro é determinado apenas pelo
seu grau de utilidade à causa da destruição revolucio-
nária total.
9. É supérfluo falar em solidariedade entre revoluci-
onários. Toda a força do trabalho revolucionário está
assentada nisso. Os companheiros que possuem a mes-
ma paixão e entendimento revolucionários devem, o
máximo possível, deliberar conjuntamente todas as
questões importantes e chegar a conclusões unânimes.
Quando o plano estiver definido, o revolucionário deve
depender apenas de si mesmo. Ao realizar atos de des-
truição, cada um deve agir sozinho, nunca recorrendo a
outros para conselho ou assistência, exceto quando ne-
cessários à consecução do plano.
10. Todos os revolucionários devem ter abaixo de si
companheiros de segundo ou terceiro grau. Ou seja, com-
panheiros que não são completamente iniciados, que
devem ser considerados parte de um capital comum co-
locado à sua disposição. Esse capital deve, sem dúvida
alguma, ser gasto de maneira econômica, para que se
possa extrair dele o maior benefício possível. O real re-
volucionário deve se considerar como capital sacramen-
tado para o triunfo da revolução. No entanto, ele não
deve dispor por si só desse capital, sem o consentimen-
to unânime dos companheiros já iniciados.
11. Quando um companheiro está em perigo e se co-
loca a questão sobre se ele deve ser salvo ou não, a deci-
são não deve ser tomada a partir de sentimentos, mas
unicamente a partir dos interesses da causa revolu-
cionária. Portanto, é necessário considerar cuidado-
samente a sua utilidade diante do dispêndio de forças
revolucionárias necessárias para salvá-lo, para, assim,
tomar uma decisão.

85
11
2007

The relations of the revolutionary toward society

12. The new member, having given proof of his loyal-


ty not by words but by deeds, can be received into the
society only by the unanimous agreement of all the
members.
13. The revolutionary enters the world of the State,
of the privileged classes, of the so-called civilization,
and he lives in this world only for the purpose of brin-
ging about its speedy and total destruction. He is not a
revolutionary if he has any sympathy for this world. He
should not hesitate to destroy any position, any place, or any
man in this world. He must hate everyone and everything
in it with an equal hatred. All the worse for him if he has
any relations with parents, friends, or lovers; he is no
longer a revolutionary if he is swayed by these relati-
onships.
14. Aiming at implacable revolution, the revolutio-
nary may and frequently must live within society will
pretending to be completely different from what he re-
ally is, for he must penetrate everywhere, into all the
higher and middle-classes, into the houses of commer-
ce, the churches, and the palaces of the aristocracy,
and into the worlds of the bureaucracy and literature
and the military, and also into the Third Division and
the Winter Palace of the Czar.
15. This filthy social order can be split up into seve-
ral categories. The first category comprises those who
must be condemned to death without delay. Comrades
should compile a list of those to be condemned accor-
ding to the relative gravity of their crimes; and the
executions should be carried out according to the pre-
pared order.

86
verve

O anarquista profissional

As relações do revolucionário com a sociedade

12. O novo membro, tendo dado provas de sua leal-


dade, não por palavras, mas por ações, pode ser admi-
tido à Confraria somente com a concordância unâni-
me de todos os seus membros.
13. O revolucionário entra no mundo do Estado, das
classes privilegiadas, da denominada civilização, e
vive nesse mundo apenas para provocar sua rápida e
total destruição. Ele não é um revolucionário se car-
rega qualquer simpatia por esse mundo. Ele não deve
hesitar em destruir qualquer posição, qualquer lugar,
ou qualquer homem nesse mundo. Ele deve odiar to-
dos e tudo com o mesmo ódio. Pior para ele se tiver
qualquer relação com pais, amigos ou amantes. Ele
não é mais um revolucionário se for influenciado por
essas relações.
14. Almejando a revolução implacável, o revolucio-
nário pode, e frequentemente deve, viver no interior
da sociedade, fingindo ser alguém diferente de quem
ele realmente é. Ele deve se enfiar em todo canto,
nas classes alta e média, no comércio, igrejas, aris-
tocracia; deve adentrar no mundo da burocracia, lite-
ratura e exército, bem como na Terceira Divisão e no
Palácio de Inverno do Czar.
15. A abjeta sociedade pode ser dividida em diver-
sas categorias. A primeira compreende aqueles que
devem ser condenados à morte imediatamente. Os
companheiros devem compilar uma lista com os que
devem ser condenados de acordo com a gravidade re-
lativa de seus crimes. As execuções devem ser con-
duzidas de acordo com a ordem definida.

87
11
2007

16. When a list of those who are condemned is made,


and the order of execution is prepared, no private sense
of outrage should be considered, nor is it necessary to
pay attention to the hatred provoked by these people
among the comrades or the people. Hatred and the sense
of outrage may even be useful insofar as they incite the
masses to revolt. It is necessary to be guided only by the
relative usefulness of these executions for the sake of
revolution. Above all, those who are especially inimical
to the revolutionary organization must be destroyed; their
violent and sudden deaths will produce the utmost panic
in the government, depriving it of its will to action by
removing the cleverest and most energetic supporters.
17. The second group comprises those who will be
spared for the time being in order that, by a series of
monstrous acts, they may drive the people into inevita-
ble revolt.
18. The third category consists of a great many brutes
in high positions, distinguished neither by their clever-
ness nor their energy, while enjoying riches, influence,
power, and high positions by virtue of their rank. These
must be exploited in every possible way; they must be
implicated and embroiled in our affairs, their dirty secrets
must be ferreted out, and they must be transformed into
slaves. Their power, influence, and connections, their
wealth and their energy, will form an inexhaustible tre-
asure and a precious help in all our undertakings.
19. The fourth category comprises ambitious office-
holders and liberals of various shades of opinion. The
revolutionary must pretend to collaborate with them, blin-
dly following them, while at the same time, prying out
their secrets until they are completely in his power. They
must be so compromised that there is no way out for
them, and then they can be used to create disorder in
the State.

88
verve

O anarquista profissional

16. Quando a lista dos condenados estiver feita, e a


ordem de execução preparada, nenhum sentimento pes-
soal de indignação deve ser considerado, bem como não
se deve dar atenção ao ódio provocado por essas pessoas
entre os companheiros ou entre o povo. Ódio e indignação
podem até ser úteis na medida em que incitam as mas-
sas à revolta. É necessário guiar-se apenas pela utilidade
relativa dessas execuções para o propósito da revolução.
Acima de tudo, aqueles que são especialmente inimigos
da organização revolucionária devem ser destruídos; sua
morte súbita e violenta irá produzir enorme terror3 no
governo, destituindo-o de seu desejo de agir ao remover os
mais inteligentes e energéticos apoiadores.
17. O segundo grupo é composto por aqueles que serão
poupados por enquanto, para que, diante de uma série de
atos monstruosos, possam conduzir o povo à inevitável
revolta.
18. A terceira categoria é composta por um grande nú-
mero de criaturas em altos postos, destacados não por sua
inteligência nem por sua energia, mas que, no entanto,
desfrutam de riqueza, influência, poder, e altos postos como
conseqüência de sua posição hierárquica. Eles devem ser
explorados de todas as maneiras possíveis; devem ser
implicados e envolvidos em nossas ações; seus segredos
imundos devem ser descobertos e eles devem ser trans-
formados em escravos. Seu poder, influência e conexões,
sua riqueza e sua energia, conformarão um tesouro
inesgotável e uma ajuda preciosa a todas as nossas em-
preitadas.
19. A quarta categoria compreende executivos
ambiciosos e liberais de diversa gama de opiniões. O
revolucionário deve fingir colaborar com ele, seguindo-os
cegamente, mas ao mesmo tempo extraindo seus segre-
dos até que eles estejam completamente sob seu poder.
Eles devem estar a tal ponto envolvidos de maneira que
não haja saída para eles, e assim possam ser utilizados
para desestabilizar o Estado.

89
11
2007

20. The fifth category consists of those doctrinai-


res, conspirators, and revolutionists who cut a great
figure on paper or in their cliques. They must be cons-
tantly driven on to make compromising declarations:
as a result, the majority of them will be destroyed,
while a minority will become genuine revolutionari-
es.
21. The sixth category is especially important: wo-
men. They can be divided into three main groups. First,
those frivolous, thoughtless, and vapid women, whom
we shall use as we use the third and fourth category
of men. Second, women who are ardent, capable, and
devoted, but whom do not belong to us because they
have not yet achieved a passionless and austere re-
volutionary understanding; these must be used like
the men of the fifth category. Finally, there are the
women who are completely on our side – i.e., those
who are wholly dedicated and who have accepted our
program in its entirety. We should regard these wo-
men as the most valuable or our treasures; without
their help, we would never succeed.

The attitude of the society toward the people

22. The Society has no aim other than the comple-


te liberation and happiness of the masses – i.e., of
the people who live by manual labor. Convinced that their
emancipation and the achievement of this happiness
can only come about as a result of an all-destroying
popular revolt, the Society will use all its resources
and energy toward increasing and intensifying the
evils and miseries of the people until at last their pa-
tience is exhausted and they are driven to a general
uprising.

90
verve

O anarquista profissional

20. A quinta categoria é composta por doutrinários,


conspiradores e revolucionários que possuem grande
reputação no papel ou em seu grupo. Eles devem ser
constantemente levados a fazer declarações compro-
metedoras e, conseqüentemente, a maioria deles será
destruída, enquanto se formará uma minoria de revo-
lucionários genuínos.
21. A sexta categoria é especialmente importante:
as mulheres. Elas podem ser divididas em três grupos
principais. Primeiro, as mulheres frívolas, ignorantes e
insípidas, que devemos usar como usamos a terceira e
quarta categorias de homens. Segundo, as mulheres
ardentes, capazes e devotas, que não nos pertencem
pois não adquiriram ainda um entendimento revolu-
cionário frio e austero; elas devem ser usadas como
os homens da quinta categoria. Finalmente, há as
mulheres que estão completamente do nosso lado —
ou seja, aquelas inteiramente dedicadas e que acei-
taram o nosso programa em sua totalidade. Devemos
considerar essas mulheres o nosso mais valioso te-
souro; sem sua ajuda nós nunca venceríamos.

A atitude da confraria4 em relação ao povo

22. A Confraria não tem objetivo algum senão a com-


pleta liberação e felicidade das massas — ou seja, das
pessoas que vivem do trabalho manual. Convencidos
de que sua emancipação e a conquista de sua felici-
dade podem apenas ser realizadas como resultado de
uma destruidora revolta popular, a Confraria utiliza-
rá todos os seus recursos e energia para aumentar e
intensificar as crueldades e sofrimentos do povo até
que finalmente sua paciência tenha-se exaurido e eles
sejam conduzidos a um levante geral.

91
11
2007

23. By a revolution, the Society does not mean an or-


derly revolt according to the classic western model – a re-
volt which always stops short of attacking the rights of
property and the traditional social systems of so-called ci-
vilization and morality. Until now, such a revolution has
always limited itself to the overthrow of one political form
in order to replace it by another, thereby attempting to
bring about a so-called revolutionary state. The only form
of revolution beneficial to the people is one which des-
troys the entire State to the roots and exterminated all
the state traditions, institutions, and classes in Russia.
24. With this end in view, the Society therefore re-
fuses to impose any new organization from above. Any
future organization will doubtless work its way through
the movement and life of the people; but this is a matter
for future generations to decide. Our task is terrible, total,
universal, and merciless destruction.
25. Therefore, in drawing closer to the people, we must
above all make common cause with those elements of the
masses which, since the foundation of the state of Musco-
vy, have never ceased to protest, not only in words but in
deeds, against everything directly or indirectly connected
with the state: against the nobility, the bureaucracy, the
clergy, the traders, and the parasitic kulaks. We must unite
with the adventurous tribes of brigands, who are the only
genuine revolutionaries in Russia.
26. To weld the people into one single unconquerable
and all-destructive force – this is our aim, our conspiracy,
and our task.

92
verve

O anarquista profissional

23. A Confraria não entende por revolução uma revol-


ta ordenada de acordo com o clássico modelo ocidental —
uma revolta que sempre cessa antes de abalar os direi-
tos à propriedade e os sistemas sociais tradicionais da
denominada civilização e moralidade. Até agora, tal
revolução sempre se limitou a derrubar uma forma
política para substituir por outra, assim buscando
constituir o denominado estado revolucionário. A úni-
ca forma de revolução benéfica ao povo é aquela que
destrói todo o Estado até suas raízes e extermina a tra-
dição estatal, instituições e classes na Rússia.
24. Com essa finalidade em mente, a Confraria recu-
sa impor qualquer nova organização pelo alto. Qualquer
organização futura será constituída, sem dúvida, a partir
do movimento e vida do povo; mas essa é uma questão
para as gerações futuras decidirem. Nossa tarefa é a ter-
rível, total, universal e implacável destruição.
25. Portanto, ao se aproximar do povo, devemos aci-
ma de tudo nos integrar aos elementos das massas que,
desde a fundação do Estado moscovita, nunca cessaram
em protestar, não apenas com palavras, mas com ações,
contra tudo direta ou indiretamente conectado com o
Estado: contra a nobreza, a burocracia, o clero, os co-
merciantes e os parasitas kulaks. Devemos nos unir às
aventurosas tribos de assaltantes, que são os únicos
legítimos revolucionários na Rússia.
26. Unir o povo em uma única força, inconquistável
e destruidora, — esse é o nosso objetivo, nossa conspi-
ração e nossa tarefa.

Tradução do inglês por Andre Degenszajn e confron-


tada com a versão em francês por Beatriz Scigliano.

93
11
2007

Notas
1
Texto original em inglês extraído de The Revolutionary Catechism, de Sergey
Nechayev. Disponível em http://www.spunk.org/texts/places/russia/
sp000116.txt. Na edição francesa, o texto aparece com o título “Le catéchism
du révolutionnaire” [O catecismo do revolucionário]. Optamos por manter a
tradução a partir do inglês pois, se um revolucionário precisar de um catecismo
é porque todo catecismo é revolucionário.
2
O niilismo russo vincula as ciências humanas às ciências mundanas por valo-
rizar as ciências físicas. A esse respeito, consultar também os romances Pais e
filhos, de Ivan Turguêniev, e Os demônios, de Fiodor Dostoiévsk.
3
Optamos por acompanhar a versão em francês, que em lugar de “pânico”
utiliza o termo “terror”.
4
Em francês, o subtítulo é “Attitude de la confrérie envers le peuple”; optamos
pelo termo “confraria”, nomeação vinculada a catecismo.

Indicado para publicação em 12 de agosto de 2003.

.
94
verve

A repressão ao anarquismo na Rússia...

a repressão ao anarquismo na rússia


soviética1

anarquistas russos exilados na alemanha

Os anarquistas russos surpreenderam-se ao consta-


tar, em 1917, que os bolchevistas, seus adversários de
sempre, voltaram a se reencontrar com eles para pre-
gar palavras de ordem libertárias como “todo o poder aos
sovietes” ou “a terra aos camponeses, a fábrica ao ope-
rário”.
Daí a luta comum.
O primeiro divórcio ocorreu em outubro, na criação
do “governo soviético”. Quando anunciado no II Congresso
dos Sovietes, em outubro de 1917, Efim Yartchouk, dele-
gado anarquista de Kronstadt, exclamou: “Que governo?
Nós não necessitamos de nenhum governo!”, e ainda,
quando do anúncio do “soviete dos comissários do povo”:
“Que soviete dos comissários? Que invenção é esta? Todo
o poder deve ir aos comissários locais!...”.2 A continua-
ção não fez senão aumentar essa divergência, que se
transformou em um fosso quando houve o ataque das
tropas tchekistas3 contra as comunas e os clubes anar-
quistas de Moscou, Petrogrado e outras cidades, em abril
de 1918, depois de um verdadeiro abismo criado em se-
verve, 11: 95-108, 2007

95
11
2007

qüência a numerosas repressões governamentais exer-


cidas contra os libertários de todas as tendências. Enquanto
isso, os dissimulados do novo poder dividiam muito o mo-
vimento anarquista russo. Certos anarquistas, e não os
menores nem os menos experientes, colaboraram com as
autoridades oficiais, chegando a se aliarem à tcheka:
Alexandre Gay, que sempre foi seguro e inabalável em
suas convicções, dirigiu a tcheka em uma cidade do
Cáucaso; um certo Samsonov, anarquista emigrado aos
Estados Unidos, antes de 1917, retornou para se ocupar
mais tarde da “seção dos anarquistas” da tcheka, provavel-
mente em função de sua competência sobre o assunto.
Esse fenômeno é traduzido quantitativamente pela pre-
sença, em 1922, de 633 ex-anarquistas no seio do partido
comunista russo.4
Contudo, um bom número de libertários continuou con-
seqüente com suas convicções e foi objeto de contínuas
perseguições do poder. Mostraremos dois exemplos signi-
ficativos dessa repressão.
I. S. Bleikhman, operário funileiro tornado anarquista
quando emigrou, volta para a Rússia à época do czar. É
preso e deportado para a Sibéria. Libertado pela Revolução
de Fevereiro, torna-se muito popular entre os operários de
Petrogrado e os marinheiros de Kronstadt. É eleito ao sovi-
ete de Petrogrado e sua atividade lhe vale a perseguição
de Kérensky. Ele de fato desempenha, com Efim Yartchouk,
um eminente papel nas jornadas insurrecionais de ju-
lho de 1917. Depois de outubro ele é constantemente
perseguido pelos bolchevistas, que o prendem em 1918 e o
deportam para um campo de concentração, forçando-o a
trabalhos humilhantes e penosos na lama e com a água
até a cintura. Uma vez que já havia adoecido na prisão
czarista, sua saúde agora se arruína e morre em 1921.
“Porque teríamos necessidade de dinheiro — dizia I.
S. Bleikhman — toda Petrogrado está nas mãos dos

96
verve

A repressão ao anarquismo na Rússia...

operários; todos os apartamentos, todas as lojas de roupas,


todas as usinas e fábricas, as tecelagens, as lojas de co-
mida, tudo está nas mãos das organizações sociais. A classe
operária não necessita de dinheiro.”5
Essa era uma língua que o novo poder não podia nem
entender, nem tolerar.
O outro exemplo vem da feroz repressão submetida ao
movimento makhnovista na Ucrânia, movimento insur-
recional de camponeses pobres de tendência libertária,
defendendo os sovietes livres e a livre organização das
comunas autônomas. Em uma obra publicada há alguns
anos na França com o título Memórias de um bolchevista-
leninista,6 o autor relata:
“Os bandos de Makhno se abasteciam impunemente
de armas nas cidades e vilas da região de Ekaterinoslav.
Era impossível descobrir os esconderijos desses bandidos
e de seus chefes. Os camponeses ricos simpatizavam com
eles e os escondiam; o restante da população estava ater-
rorizado e não ousava revelar que eles os escondiam em
suas casas.
Nosso comando e os soldados rasos estavam impaci-
entes. Sob a iniciativa de nossos soldados, os órgãos lo-
cais da tcheka com os destacamentos da seção especial
se lançaram ao trabalho. Um belo dia, eles detiveram e
prenderam uma centena de reféns escolhidos entre a po-
pulação abastada, comerciantes, kulaks,7 padres etc.
Após o interrogatório, foram levados ao pátio da prisão,
e se exigiu que eles revelassem quem eram os chefes do
bando, escondidos em algum lugar: em suas casas, em
suas granjas e em outros esconderijos. Os reféns foram
avisados de que se se recusassem a colaborar, vinte e cinco
deles seriam fuzilados ali mesmo, como responsáveis por
assassinatos e pilhagens.

97
11
2007

Os reféns se calaram. Os vinte e cinco primeiros, por


ordem alfabética, foram conduzidos a vinte passos e fuzi-
lados diante dos outros.
No segundo dia a mesma coisa se repetiu. Os reféns
silenciaram outra vez e, de novo, vinte e cinco foram fuzi-
lados perante os olhos daqueles que sobraram. No terceiro
dia, a mesma cena.
Quando, no quarto dia, os vinte e cinco reféns res-
tantes foram levados ao pátio, disseram para eles que a
coragem de seus amigos fuzilados certamente seria dig-
na de louvor se tivessem permitido que pessoas boas e
honestas pudessem escapar às perseguições, mas que eles
escondiam os assassinos de soldados inocentes do exér-
cito vermelho, que vieram libertar o povo ucraniano dos
proprietários fundiários czaristas e dos generais que
espezinhavam os libertos do povo russo e ucraniano. Os
reféns pediram um dia para pensar.
No dia seguinte a essa discussão, os reféns tiveram
medo e deram os nomes dos chefes do bando de Makhno e
de seus esconderijos na região. Verificou-se que esses
chefes eram agentes de Makhno infiltrados nos órgãos do
poder soviético e na direção local do partido: particular-
mente o presidente do soviete da cidade, o secretário do
comitê da cidade do partido, que tinha reunido em torno
de si os inimigos do poder soviético.”8
Qualquer comentário se torna supérfluo. Assinalamos
simplesmente que esse gênero de operação reproduziu-
se em uma escala muito maior, com o propósito de acos-
sar e exterminar os que estavam aliados por três vezes ao
exército vermelho para combater e vencer os brancos.

Alexandre Skirda

As perseguições aos anarquistas pelo poder soviético


começaram de determinada forma na primavera de 1918.

98
verve

A repressão ao anarquismo na Rússia...

As causas fundamentais e gerais dessas persegui-


ções foram suficientemente esclarecidas acima, e
nos deteremos, portanto, apenas brevemente em seu
histórico.
O crescimento rápido do sucesso do movimento
anarquista irritava e assustava já havia algum tem-
po o partido comunista, que acabava de se instalar no
poder. Não se sentindo suficientemente dono da situa-
ção e não tendo ainda conquistado completamente as
massas, o novo poder não se decidia a passar para a
ofensiva. Foi apenas após o tratado de Brest-Litovsk
que sentiu o terreno firme e viu a possibilidade de agir
com muitas chances de sucesso.
Levando-se em consideração que a revolução corria
um perigo mortal e que necessitava de uma pausa para
poder criar um exército revolucionário, o poder comu-
nista conseguiu aterrorizar as massas, apoderar-se da
vontade delas e submetê-las a sua própria, quando fir-
mou o tratado Brest-Litovsk, em despeito de seus desejos
claramente expressos de não assinar a paz com o imperi-
alismo alemão e continuar a resistência revolucionária,
única capaz de fazer triunfar a revolução.
O tratado Brest-Litovsk foi assim imposto ao povo
trabalhador pelo poder comunista. Este pôde, dessa ma-
neira, pela primeira vez, após uma longa e obstinada
resistência dos operários e camponeses, submeter
grandes massas laboriosas e constrangê-las à passivida-
de.
Isto foi apenas um primeiro passo, o mais difícil.
Tendo tomado a iniciativa da ação e transgredido impu-
nemente a vontade das massas, o poder pôde sufocar a
revolução. Em seguida foi-lhe fácil continuar nesse ca-
minho, aterrorizando e submetendo mais e mais as
massas, aumentando sua pressão sobre elas, para logo
reduzir a revolução aos limites de sua ditadura.

99
11
2007

Os anarquistas protestaram energicamente contra


o tratado de Brest-Litovsk e a limitação das perspecti-
vas revolucionárias, que desvirtuava o próprio sentido
da revolução. O poder então resolveu desfechar um pri-
meiro golpe decisivo aos anarquistas, aproveitando-se
da passividade adquirida pelas massas e dispondo já de
uma certa força militar organizada.
Sob uma ordem vinda de cima, a imprensa comunista
começou a dirigir dia após dia uma campanha recheada
de acusações mentirosas e de calúnias contra os
anarquistas. Um preparo sólido do terreno acontecia
igualmente nas usinas, nas assembléias, nas unida-
des militares etc.
As disposições das massas também eram testadas
na mesma ocasião. Pôde-se prever que o poder poderia
contar com suas tropas e que as massas permaneceri-
am mais ou menos passivas. Finalmente, na noite de
12 de abril de 1918, sob um pretexto absurdo e comple-
tamente inventado, as organizações anarquistas de
Moscou foram atacadas, particularmente a Federação
dos Grupos Anarquistas de Moscou. Esse ataque serviu
de sinal aos posteriores proferidos contra as organiza-
ções anarquistas de toda a Rússia. Depois de ter prepa-
rado seu golpe e conduzido ele mesmo uma agitação
infringida nos regimentos contra os “anarco-bandidos”,
Trotsky pôde proferir com satisfação sua famosa decla-
ração: “Enfim o poder soviético varre o anarquismo da
Rússia com uma vassoura de ferro”.
Entretanto, o poder ainda não tinha declarado ser a
idéia de anarquismo fora da lei: as liberdades de pala-
vra, de imprensa e de pensamento ainda não estavam
definitivamente suprimidas. Ainda era possível existir
por todo lado uma certa atividade libertária.
Os movimentos de protesto dos operários e campone-
ses contra os procedimentos terroristas, esboçados em

100
verve

A repressão ao anarquismo na Rússia...

1918 e empregados contra eles pelo poder comunista,


cresceram em 1919 e 1920. O poder, mais e mais cínico
e despótico, respondeu com uma repressão obstinada e
crescente, não parando frente a nada.
Os anarquistas, naturalmente, estavam de corpo e
alma do lado das massas traídas e oprimidas que luta-
vam contra seus novos mestres.
Eles exigiam, com os operários e suas organizações
profissionais, o direito destes conduzirem diretamente
a produção.
Com os camponeses exigiam o direito de auto-
administração e de manterem relações diretas com os
operários. Com uns e outros exigiram a restituição de tudo
que os trabalhadores haviam conquistado pela revolução
e que o poder comunista lhes roubara: a restauração de
uma ordem soviética livre, o restabelecimento das liber-
dades civis para as correntes revolucionárias...
Em uma palavra: exigiam a restituição das conquistas
de Outubro ao próprio povo, por meio das organizações de
operários e camponeses. Evidentemente, assim desven-
davam a política criminosa do poder. Nisso residia a base
da atividade revolucionária dos anarquistas e foi somente
isso que serviu de fundamento para a declaração de uma
guerra de morte ao anarquismo, e para declará-lo fora da
lei.
Após o primeiro grande ataque aos anarquistas na pri-
mavera de 1918, as perseguições sucederam-se em uma
cadeia ininterrupta, em toda a Rússia, durante os anos
seguintes, caracterizando-se cada vez mais como desen-
freadas e sem pudor.
Assim, ao final do mesmo ano de 1918, numerosas or-
ganizações anarquistas do interior foram outra vez ataca-
das. Das organizações que conseguiram se manter in-
tactas, as autoridades tiraram toda possibilidade de ação.

101
11
2007

Em 1919, ao mesmo tempo em que as perseguições


contra os anarquistas na Rússia continuavam a todo va-
por, começaram as repressões sistemáticas aos anarquis-
tas da Ucrânia. Cidade após cidade, vilarejo após vilarejo,
seus grupos eram liquidados, seus militantes presos, os
jornais proibidos e as conferências suprimidas.
Durante o verão do mesmo ano, após a famosa ordem
nº. 1824 de Trotsky, que declarou fora da lei o movimento
makhnovista, anarquistas foram detidos e fuzilados ao
mesmo tempo que os makhnovistas. E assim por diante...
Convém notar que na maioria dos casos os ataques às
organizações anarquistas eram acompanhados de atos de
extrema selvageria por parte dos tchekistas e de soldados
vermelhos iludidos, loucos de raiva e de ódio: agressões
brutais a camaradas detidos, destruição da literatura apre-
endida, demolição dos locais etc.
Fora essas repressões constantes e cotidianas, o poder
comunista organizava de tempos em tempos ataques em
grande escala aos anarquistas, semelhantes ao da prima-
vera de 1918. Assim, no verão de 1920, aconteceu a des-
truição geral, na Ucrânia, das organizações anarquistas
do Nabat.9
No final de novembro de 1920, o poder comunista, obri-
gado a concluir, um pouco antes, um tratado de aliança
com Makhno e a parar com as perseguições antianarquis-
tas, retomou com toda a força sua repressão, fazendo de-
ter em Kharkov a todos os anarquistas que vinham para
participar de um congresso legal, e simultaneamente pren-
dendo todos os anarquistas da Ucrânia, organizando uma
verdadeira perseguição em meio a emboscadas e buscas,
detendo até mesmo adolescentes de quatorze a dezesseis
anos e tomando como reféns pais, mulheres e filhos. Para
justificar esse comportamento, o poder antecipou seu rom-
pimento com Makhno e inventou um “fantástico complô
anarquista” contra o poder soviético.10

102
verve

A repressão ao anarquismo na Rússia...

Em março de 1921, durante as jornadas insurrecionais


de Kronstadt, o poder procedia outra vez a detenções maci-
ças de anarquistas (e de anarco-sindicalistas), e os acos-
sou de novo por toda a Rússia.
Todo movimento de massas — seja uma greve, uma
manifestação de camponeses ou até um movimento de
descontentamento entre soldados ou marinheiros — pro-
duzia um efeito imediato sobre a sorte dos anarquistas.
Doravante, prendia-se qualquer um que cometesse o erro
de partilhar idéias libertárias ou de ser parente ou conhe-
cido de anarquistas. O simples fato de ter idéias anarquis-
tas e de divulgá-las abertamente era com freqüência o
suficiente para alguém ser preso.
Em 1919 e 1921, as organizações de juventude li-
bertárias foram desmanteladas. A operação de 1921 foi
provocada pelo desejo de destruir na raiz a aspiração da
juventude ao conhecimento dos fundamentos do ensino
libertário.
No inverno de 1921, as organizações de anarquistas
universalistas de Moscou são atacadas.
Na primavera de 1922, ocorrem novas detenções em
massa de anarquistas em toda a Rússia.
Nossa lista de repressões está longe de se completar.
É possível afirmar, sem nenhum exagero, que durante
esses últimos anos toda a Rússia revolucionária foi presa
ou assassinada, e teve os anarquistas em primeiro lugar.
Nessas condições, a partir de 1919, foi-lhes impossível
desenvolver a menor atividade: suas reuniões, conferên-
cias e congressos não puderam ocorrer. Sua imprensa foi
sufocada. Toda tomada de posição pública tornou-se mes-
mo impensável.
De fato, o anarquismo, as idéias libertárias e a pala-
vra livre foram declaradas fora da lei após 1919.11

103
11
2007

Uma tal infâmia não poderia produzir-se sem provocar


vivos protestos pessoais da parte de algumas individuali-
dades fortes. Perto do final de 1919, Casimir Kovalévitch,
operário das oficinas das ferrovias de Moscou, anarquista
muito popular em seu bairro, lançou uma bomba em uma
assembléia de dirigentes comunistas, em Moscou, na
travessa Léontiev, com a ajuda de alguns camaradas.12
Esse ato de protesto contra a ditadura bolchevista não
provocou nenhuma tomada de consciência no partido di-
rigente. Bem ao contrário, ele começou a perseguir os
anarquistas e todos os revolucionários em geral com mais
obstinação ainda, recorrendo aos mais escandalosos mei-
os de fraude e de inquisição.
Se atualmente subsiste, na Rússia, uma atividade
anarquista clandestina, e se essa atividade pode levar a
atos de terror anti-governamental, convém entender
que esses atos sempre aconteceram e inevitavelmente
serão produzidos ali onde reinam o arbítrio e um monstru-
oso terror comandado do alto, ali onde todo pensamento é
sufocado, toda palavra é proscrita e ali onde todo outro
meio de luta é impossível.
Os horrores cometidos na Rússia começam, enfim, a
saltar aos olhos dos que chegam ao país e se tornam
pouco a pouco conhecidos além de suas fronteiras. Isto
porque o poder comunista recorre a toda sorte de meios a
fim de criar uma justificativa aos seus crimes. Ele não
pára diante dos meios mais infames como, por exemplo,
as “ciladas”.
Uma dessas ciladas tem como protagonistas Leon
Tcherny e Fanya Baron.13
No verão de 1921, um grupo de delegados anarquistas
estrangeiros, vindos para o Congresso da Internacional
Sindical Vermelha, interpelou o governo soviético sobre
os anarquistas russos presos na Taganka,14 que faziam
greve de fome para exigir sua liberação assim como a de

104
verve

A repressão ao anarquismo na Rússia...

todos os anarquistas presos. Como os delegados insistiam


sobre a liberação destes anarquistas, Trotsky e outros re-
presentantes do poder lhes responderam: “São bandidos!”
Mesmo se o poder foi obrigado a soltar finalmente
esses anarquistas e de expulsá-los para o estrangeiro,
montou todo um caso para justificar frente aos operários
estrangeiros sua tática terrorista a respeito deles, um pro-
cesso baseado em uma cilada da tcheka, sobre delitos de
direito comum relativos à fabricação de dinheiro falso, e
que terminou por fuzilar dois dos mais honestos camara-
das: Leon Tcherny e Fanya Baron.
Revelou-se que não somente os camaradas fuzilados
eram inocentes desses delitos de direito comum, mas ain-
da que a idéia de imprimir dinheiro falso veio da tcheka de
Moscou. Dois de seus agentes — Steiner (Kamenny) e um
motorista tchekista — entraram em contato com os
falsificadores e depois se infiltraram em um grupo anar-
quista, incitando-os a fazer dinheiro falso e a organizar
expropriações. Tudo isso desenvolveu-se com a concordân-
cia da tcheka que, em seguida, graças a essa cilada, exigiu
a vida dos libertários, manchando suas memórias.15

Tradução do francês por Dorothea Voegeli Passetti.

Notas
1
Traduzido do russo para o francês por Alexandre Skirda. Publicado em Ber-
lim, em 1923.
2
S. N. Kanev. Oktiabrskaya revoliutsia I Krakh anarkhisma [A Revolução de
Outubro e a derrocada do anarquismo]. Moscou, 1974, p. 103.
3
Conforme Jacques Baynac, “em dois anos o câncer policial tomou conta da
revolução. Apenas dois meses após o golpe de Estado bolchevista de 1917, foi
promulgado o decreto — mantido secreto durante sete anos — que criou a
Vetcheka (abreviação de Vserossiskaïa Tchesvytchainaia Komissia — Comis-
são Extraordinária Pan-russa). O mal progrediu tão rapidamente que, no se-

105
11
2007

gundo aniversário da tomada do poder, o Pravda diagnosticou que ‘todo o


poder aos soviets’ transformou-se em ‘todo o poder aos tchekas’. Uma década
mais tarde, a doença tomou conta de tudo. Em 16 de dezembro de 1927, mais
uma vez no Pravda, o historiador Pokrovsky escreveu que a polícia secreta
conserva a ‘essência da revolução proletária’, e que o terror é uma ‘conseqüên-
cia inevitável’.” Jacques Baynac (org. en collaboration avec Alexandre Skirda
et Charles Urjewicz). La terreur sous Lénine. Paris, Le Sagittaire, 1975. (NT)
4
Idem, p. 383. O mesmo fenômeno vale para as outras organizações operárias
e revolucionárias; bundistas mencheviques, socialistas-revolucionários de es-
querda e outros. (Os bundistas formaram movimentos revolucionários judeus,
criados no final do século XIX na Europa Oriental. NT)
5
Ibidem, pp. 261-262.
6
Paris, 1970.
7
Kulak é um termo soviético, identificando uma classe social de proprietários
rurais russos e ucranianos, donos de fazendas que usavam trabalho assalariado
em suas terras. Posteriormente, durante a coletivização stalinista de 1928 a
1932, os kulaks foram desapropriados em benefício dos kolkozes (cooperativas
agrícolas), levando a deportações, prisões e à morte de 5 milhões de campone-
ses. (NT)
8
Op. cit., pp. 38-39.
9
Nabat foi um grupo anarquista ucraniano ligado aos makhnovistas, que tam-
bém mantinha uma publicação com o mesmo nome. (NT)
10
Necessitando da cooperação do exército insurrecional revolucionário dos
makhnovitas para lutar contra Wrangel, o poder bolchevista firmou um acordo
com Makhno no início de outubro de 1920, acordo no qual uma cláusula
estipulava que os anarquistas teriam liberdade e o direito de manter uma
atividade militante livre. Após a vitória contra Wrangel, o poder comunista
atacou Makhno traiçoeiramente e ao mesmo tempo voltou-se, mais uma vez,
contra o movimento anarquista da Ucrânia. Assinalamos a seguinte circunstân-
cia característica: alguns dias antes dessa nova repressão, uma vez que a escapa-
tória de Wrangel parecia ser certa, a estação central da rádio de Moscou telegra-
fou a todas as estações de província a ordem governamental de desligar seus
aparelhos, salvo para as estações centrais de Kharkov e da Criméia, que deve-
riam receber um telegrama secreto urgente. Um simpatizante anarquista, em-
pregado em uma estação de província, não executou a ordem de desligamento.
Interceptou o seguinte telegrama: “Estabelecer os efetivos dos anarquistas na
Ucrânia, em particular na região makhnovista. Lênin.” Alguns dias depois,
quase na véspera da repressão, chegou um segundo telegrama nas mesmas
condições: “Exercer uma vigilância reforçada sobre todos os anarquistas e
preparar os documentos, se possível de caráter de direito comum, utilizáveis para
acusar. Manter os documentos e as ordens em segredo. Divulgar por toda parte

106
verve

A repressão ao anarquismo na Rússia...

as instruções necessárias.” Algumas horas mais tarde seguiu o terceiro e último


telegrama, desta vez lacônico. “Deter todos os anarquistas e acusá-los.” Todos
os telegramas eram endereçados ao presidente do soviete dos comissários do
povo da Ucrânia, Rakovsky, assim como ao nome de outros representantes
civis e militares do poder da Ucrânia. Após o terceiro telegrama, um dos
camaradas, tendo conhecimento dos fatos, partiu a Krakhov para avisar os
anarquistas locais sobre a ação que se preparava. Mas chegou tarde demais: a
ação já havia ocorrido. Esse foi o chamado “complô” dos anarquistas ucrania-
nos contra o poder soviético. O Barão Piotr Nikolayevich Wrangel foi o último
general a comandar o Exército Branco contra as forças comunistas. Após o
armistício da Rússia com a Polônia, em outubro de 1920, os soviéticos conse-
guiram juntar mais forças, fazendo com que ele recuasse para a Criméia e, em
novembro, se retirasse com suas tropas para Constantinopla, dando fim à Guer-
ra Civil Russa (NT).
11
Não podemos, nesta obra, ocuparmo-nos do exame de todas as razões que
permitiram ao poder comunista destruir com certa facilidade (com exceção da
Ucrânia) um movimento anarquista russo bastante forte. Isso nos distanciaria
muito de nosso propósito. Limitamo-nos, pois, a dar aqui um breve esclareci-
mento do momento decisivo da paz de Brest-Litovsk e de suas conseqüências.
A questão como um todo representa um tema particular, ao qual pretendemos
consagrar um estudo específico.
12
Pode-se encontrar detalhes deste acontecimento assim como a identidade de
seus participantes no famoso Livro vermelho da Tcheka, rapidamente retirado de
circulação pelo próprio poder, pois, entre outros motivos, segundo as palavras
do próprio Lênin, “Fala-se demasiadas verdades a propósito destes anarquis-
tas”.
13
Sobre Fanya Baron ver adiante o artigo de Emma Goldman (NE).
14
Taganka, é uma prisão localizada em um bairro com o mesmo nome, no
centro de Moscou (NT).
15
Segue uma lista de 182 nomes de anarquistas vítimas da tcheka. (NE da
tradução francesa de 1975).

107
11
2007

RESUMO

A perseguição aos anarquistas russos e ucranianos, pelo governo


comunista, após 1917, enuncia os efeitos da revolução que, lutan-
do contra uma ordem, a redimensionava como governo sobre to-
dos. Os anarquistas silenciados na Rússia, pelas perseguições,
conspirações e ciladas, ou traídos na Ucrânia, afirmam, na época
dos acontecimentos, uma vontade libertária que não se cala diante
do autoritarismo, mesmo que revolucionário.

Palavras-chave: Rússia, anarquismo, makhnovismo.

ABSTRACT

The persecution of Russian and Ukrainian anarchists by the com-


munist government, after 1917, announces the effects of a revolu-
tion that, while fighting one sort of order, established itself as a
government over all. The silenced anarchists in Russia (by perse-
cutions, conspiracies and traps), or the ones betrayed in Ukraine,
supported, in the very moment of the events, a libertarian will that
does not cease when facing authoritarianism, even when revoluti-
onary.

Keywords: Russia, anarchism, makhnovism.

Indicado para publicação em 12 de junho de 2006.

108
verve

Minha outra desilusão na Rússia

minha outra desilusão na rússia

emma goldman*

A perseguição aos anarquistas

Em um país possuído e completamente controlado pelo


Estado, como na Rússia, é quase impossível se viver sem
a “misericórdia” do governo. No entanto, eu estava de-
terminada a tentar. Não aceitaria nada, nem mesmo
rações de pão, das mãos tingidas com o sangue dos bra-
vos marinheiros do Kronstadt. Felizmente, eu tinha al-
gumas roupas que um amigo americano me dera; elas
poderiam ser trocadas por mantimentos. Eu também
havia recebido algum dinheiro de minha própria gente
nos Estados Unidos. Isso me permitiria viver por algum
tempo.
Em Moscou consegui um pequeno quarto, anterior-
mente ocupado pela filha de Piotr Kropotkin. A partir

*Emma Goldman, russa, anarquista e feminista, chegou nos Estados Unidos


com a irmã indo trabalhar como operária têxtil. Em pouco tempo tornou-se uma
militante combativa juntamente com seu companheiro Alexandre Berkman o
que lhe valeu alguns encarceramentos, um deles por ensinar publicamente o uso
de contraceptivos.
verve, 11: 109-122, 2007

109
11
2007

daquele dia eu vivi como milhares de outros russos,


carregando água, cortando madeira, lavando e cozinhan-
do, tudo no meu pequeno quarto. Mas eu me sentia mais
livre e melhor por isso.
A nova política econômica transformou Moscou em um
vasto mercado. O comércio se tornou a nova religião.
Lojas e armazéns brotavam da noite para o dia, misteri-
osamente a Rússia estava amontoada de guloseimas que
não tinha visto há anos. Grandes quantidades de man-
teigas, queijo, e carne foram colocadas à venda; confei-
tos, frutas raras, e doces de toda variedade estavam à
venda. No edifício Politburo uma das maiores confei-
tarias foi aberta. Homens, mulheres, e crianças com
faces contraídas e olhos famintos paravam, olhando fi-
xamente pelas janelas e discutindo o grande milagre: o
que ontem era considerado uma odiosa ofensa, estava
agora ostentado na frente deles de uma maneira aberta
e legal. Eu ouvi por acaso um soldado Vermelho dizer:
“É para isso que fizemos a revolução? Para isso que nos-
sos companheiros tiveram que morrer?” O slogan, “Roube
os ladrões”, havia se transformado agora em “Respeite
os ladrões”, e mais uma vez foi proclamada a santidade
da propriedade privada.
A Rússia estava assim gradualmente ressuscitando
as condições sociais que a grande revolução viera para
destruir. Mas o retorno ao capitalismo de maneira algu-
ma mudou a atitude dos bolchevistas em relação aos
elementos de esquerda. Idéias e práticas burguesas
deveriam ser encorajadas para desenvolver a vida in-
dustrial da Rússia, mas as tendências revolucionárias
estavam sendo suprimidas como antes.
Relacionado ao Kronstadt, um ataque geral aos anar-
quistas ocorreu em Petrogrado e Moscou. As prisões se
abarrotaram dessas vítimas. Quase todo anarquista co-
nhecido tinha sido preso; e as livrarias anarquistas e

110
verve

Minha outra desilusão na Rússia

as gráficas do Golos Truda foram fechadas pela tcheka


em ambas as cidades. Os anarquistas ucranianos, pre-
sos na véspera da conferência de Kharkov (apesar da
imunidade garantida pelo bolchevista sob o acordo de
Makhno), foram trazidos para Moscou e colocados na
Butyrki; a masmorra de Romanov estava novamente
servindo aos velhos propósitos, até mesmo confinando
alguns dos revolucionários que ali haviam sido encar-
cerados anteriormente. Logo se soube que os políticos
na Butyrki foram brutalmente atacados pela tcheka e
secretamente deportados para lugares desconhecidos.
Moscou estava muito agitada por essa ressurreição dos
piores métodos de encarceramento do czarismo. Uma
interpelação sobre o ocorrido foi feita no Soviete Su-
premo, a indignação dos deputados foi tão grande que os
representantes da tcheka foram expulsos das tribunas
aos gritos. Diversos grupos anarquistas de Moscou en-
viaram um vigoroso protesto às autoridades, cujo docu-
mento eu cito em parte:
“As organizações anarco-sindicalistas abaixo assina-
das, após terem cuidadosamente considerado a situação
que se desenvolveu recentemente conectada à persegui-
ção aos anarquistas em Moscou, Petrogrado, Kharkov e
outras cidades da Rússia e Ucrânia, incluindo a supres-
são à força de organizações, clubes, publicações anarquis-
tas etc, por meio desta manifesta seu protesto decisivo e
enérgico contra esse despótico esmagamento, não ape-
nas de todas as atividades de agitação e propagandistas,
mas inclusive de todo o trabalho puramente cultural das
organizações anarquistas.”
A sistemática caçada aos anarquistas em geral, e aos
anarco-sindicalistas em particular, com o resultado de
que cada prisão e cadeia na Rússia soviética está lotada
de companheiros, coincidiu totalmente em tempo e
espírito com o discurso de Lênin no Décimo Congresso

111
11
2007

do Partido Comunista Russo. Naquela ocasião, Lênin


anunciou que a mais impiedosa guerra deveria ser
declarada contra o que ele denominou “elementos anar-
quistas pequeno-burgueses” os quais, de acordo com ele,
estariam crescendo até mesmo dentro do próprio partido
comunista em razão das “tendências anarco-sindicalis-
tas de oposição trabalhista”. No mesmo dia em que Lênin
fez as declarações acima citadas, diversos anarquistas
foram presos por todo o país, sem o menor motivo ou
explicação. Nenhuma acusação foi proferida contra ne-
nhum dos companheiros aprisionados, apesar de terem
alguns deles já sido condenados a longas sentenças sem
ser escutados ou julgados, à revelia. As condições des-
sas prisões são excepcionalmente vis e brutais. Assim,
um dos presos, o companheiro Maximov, após vários pro-
testos em vão contra as condições inacreditavelmente
anti-higiênicas nas quais ele estava forçado a viver, foi
levado ao único meio de protesto que lhe restava — a
greve de fome. Outro companheiro, Yarchuk, libertado
após uma detenção de seis dias, foi logo preso novamente
sem que quaisquer acusações tivessem sido proferidas
contra ele em ambas as ocasiões.
De acordo com uma informação confiável recebida
por nós, alguns dos presos anarquistas estão sendo
enviados às prisões de Samara, longe de casa e dos
amigos, privados portanto de qualquer assistência soli-
dária mínima que poderiam receber se estivessem mais
perto de casa. Diversos outros companheiros foram for-
çados pelas terríveis condições de seus confinamentos
a declarar greve de fome. Um deles, após jejuar por 12
dias, ficou gravemente doente.
Até mesmo violência física é praticada sobre os nos-
sos companheiros presos. A declaração dos anarquistas
da prisão de Butyrki em Moscou, de 16 maio, assinada
por trinta e oito companheiros e enviada ao Comitê

112
verve

Minha outra desilusão na Rússia

Executivo da Comissão Extraordinária de Todas as Rússi-


as, contém, entre outras coisas, a seguinte declaração:
“Em 15 de março, o companheiro T. Kashirin foi brutal-
mente atacado e espancado na prisão do Departamento
Especial da Comissão Extraordinária pelo vosso agente
Mago e assistentes, na presença de Dookiss, carcerei-
ro da prisão.”
Além das prisões indiscriminadas e da violência
física contra nossos companheiros, o governo está pro-
movendo uma guerra sistemática contra o nosso traba-
lho educacional. Fechou muitos de nossos clubes, bem
como o escritório de Moscou da editora da organização
anarco-sindicalista Golos Truda. Uma caçada humana
similar ocorreu em Petrogrado em 15 de março. Numero-
sos anarquistas foram presos sem motivo, a gráfica da
Golos Truda foi fechada e seus trabalhadores presos. Ne-
nhuma acusação foi proferida contra os companheiros
presos que, ainda se encontram todos na prisão.
As insuportáveis táticas despóticas do governo em
relação aos anarquistas são inquestionavelmente resul-
tados da política geral do Estado bolchevista no controle
exclusivo do partido comunista em relação aos anarquis-
mos, ao sindicalismo e a seus defensores.
Esse estado de coisa está nos forçando a elevar nos-
sas vozes em alto protesto contra o terror imposto e a
supressão brutal do movimento anarquista pelo gover-
no bolchevista. Aqui na Rússia nossa voz é fraca. É
sufocada. A política do regime do Partido Comunista
está designada a destruir absolutamente qualquer
possibilidade ou esforço de atividade ou propaganda
anarquista. Os anarquistas russos são assim forçados
a condições de completa greve de fome moral, pois o go-
verno está nos privando da possibilidade de efetivar
mesmo aqueles planos e projetos que ele próprio prome-
teu auxiliar apenas recentemente.

113
11
2007

Compreendendo mais do que nunca a verdade do nos-


so ideal anarquista e a necessidade imperativa de sua
aplicação à vida, nós estamos convencidos que o prole-
tariado revolucionário de todo o mundo está conosco.
Após a Revolução de Fevereiro, os anarquistas rus-
sos retornaram à Rússia vindos de vários recantos, para
se dedicarem à atividade revolucionária. O bolchevista
havia adotado o slogan anarquista, “as fábricas para os
trabalhadores e a terra para os camponeses”, e por isso
ganharam a simpatia dos anarquistas. Estes viram nos
bolchevistas os porta vozes da emancipação social e eco-
nômica, e juntaram suas forças a eles.
Durante o período de outubro, os anarquistas traba-
lharam de mãos dadas com os comunistas e lutaram
com eles lado a lado em defesa da revolução. Então veio
o tratado de Brest Litovsk, que muitos anarquistas con-
sideraram uma traição à revolução. Esse foi o primeiro
sinal de que as coisas não estavam bem com os bolche-
vistas. Mas a Rússia ainda estava exposta à interven-
ção externa e os anarquistas perceberam que deveriam
continuar juntos para lutar contra o inimigo comum.
Em abril de 1918, veio outro golpe. Por ordem de
Trotsky, os quartéis generais anarquistas em Moscou
foram atacados pela artilharia, alguns anarquistas fi-
caram feridos, um grande número foi preso e todas as
atividades anarquistas foram “liquidadas”. Esta afronta
completamente inesperada serviu para afastar ainda
mais os anarquistas do Partido dominante. Ainda as-
sim, a maioria deles continuou com o bolchevista: eles
acharam que, apesar da perseguição interna, virar-se
contra o regime existente seria trabalhar em prol das
forças contra-revolucionárias. Os anarquistas partici-
param em todo esforço social, educacional e econômico;
trabalharam até em departamentos militares para aju-
dar a Rússia. Nas guardas vermelhas, nos regimentos

114
verve

Minha outra desilusão na Rússia

voluntários e, mais tarde, no Exército Vermelho; como


organizadores e administradores de fábricas e estabele-
cimentos; como chefe de repartições de combustível; como
professores — em toda parte os anarquistas tiveram po-
sições difíceis e de responsabilidade. De suas fileiras vi-
eram alguns dos homens mais capazes que trabalharam
nas relações externas com Tchicherin e Kharakan, nos
vários departamentos de imprensa, como representan-
tes diplomáticos bolchevistas no Turkestão, Bokhara e
na República do Extremo Oriente.1 Os anarquistas tra-
balharam com e para o bolchevismo por toda a Rússia
crentes que estavam avançando na causa da revolução.
Mas a devoção e o zelo dos anarquistas de modo algum
deteve os comunistas da inflexível perseguição ao movi-
mento anarquista.
A peculiar situação geral e a confusão de idéias cria-
das dentro dos círculos revolucionários pelo experimento
bolchevista dividiram as forças anarquistas da Rússia em
várias facções, destarte, enfraquecendo o seu efeito so-
bre o curso da revolução. Havia muitos grupos, cada um
se esforçando separadamente e em vão contra a formi-
dável máquina que eles mesmos ajudaram a criar. No
denso nevoeiro político, muitos perderam o senso de di-
reção: não conseguiam distinguir entre o bolchevismo e
a revolução. Em desespero alguns anarquistas foram
empurrados para atividades clandestinas, assim como
haviam feito durante o regime dos czares. Mas tal traba-
lho era mais difícil e perigoso sob os novos mandantes, e
isso também abriu a porta para maquinações sinistras
de provocadores. As organizações anarquistas mais
maduras, como a Nabat, na Ucrânia, Golos Truda em
Petrogrado e Moscou, e o grupo Voylni Trud — as duas
últimas de tendência anarco-sindicalista, continuaram
seus trabalhos abertamente da melhor maneira que pu-
deram.

115
11
2007

Infelizmente, como era inevitável sob tais circunstân-


cias, alguns espíritos malignos se infiltraram nas linhas
anarquistas — restos desterrados pela maré revolucioná-
ria. Eles eram tipos para quem a revolução significava
apenas destruição, ocasionalmente até para vantagens
pessoais. Eles engajaram-se em propósitos sombrios e,
quando presos e com suas vidas ameaçadas, freqüente-
mente se tornavam traidores e se aliavam à tcheka. Par-
ticularmente em Kharkov e Odessa grassavam essas er-
vas daninhas. Os anarquistas em sua maioria eram os
primeiros a se opor a esse elemento. O bolchevista, sem-
pre ansioso em assegurar os serviços de anarquistas trai-
dores, sistematicamente pervertia os fatos. Ele difamava,
perseguia e caçava o movimento anarquista enquanto tal.
Foi essa traição e despotismo comunista que resultou
no lançamento de uma bomba no interior da Secção do
Partido Comunista de Moscou, em setembro de 1919.
Foi um ato de protesto com a colaboração de membros
de várias tendências políticas. As organizações anar-
quistas Golos Truda e Voylni Trud de Moscou publicamen-
te expressaram sua condenação a tais métodos, mas o
governo revidou com represália a todos os anarquistas.
Ainda assim, a despeito de suas experiências amargas e
martirizantes sob o regime bolchevista, a maior parte dos
anarquistas se apegava tenazmente à mão que os agre-
dia. Foi necessário o ultraje contra Kronstadt para acordá-
los do feitiço hipnótico da superstição bolchevista.
O poder corrompe, e os anarquistas não são exceção.
Na verdade deve ser admitido que um certo elemento anar-
quista desmoralizou-se por causa dele; evidentemente a
grande maioria manteve sua integridade. Nem a perse-
guição bolchevista, nem a freqüente tentativa de suborno
de uma boa posição com todos seus privilégios especiais,
conseguiram alienar a grande massa de anarquistas de
seus ideais. Como resultado, eles eram constantemente
atormentados e encarcerados. A sua existência nas pri-

116
verve

Minha outra desilusão na Rússia

sões era uma tortura contínua: na maior parte delas ain-


da vigorava o velho regime e apenas a luta coletiva dos
presos políticos ocasionalmente conseguia forçar reformas
e melhorias. Desse modo, foram necessários repetidos
“distúrbios” e greves de fome na Butyrki antes das au-
toridades serem forçadas a fazer alguma concessão. Os
políticos conseguiram estabelecer uma espécie de
universidade, organizavam palestras e recebiam visitas
e suprimentos. No entanto a tcheka olhou com desagrado
tais “liberdades”. Subitamente, sem aviso prévio, pôs-se
um fim ao tratamento decente; a Butyrki foi invadida e os
prisioneiros, em número superior a 400 e pertencentes a
várias alas revolucionárias, foram retirados à força de suas
celas e transferidos para outras instituições penais. Uma
mensagem recebida naquele tempo de uma das vítimas,
datada de 27 de abril, dizia:
“Campo de concentração, Ryazan.
Na noite de 25 de abril, fomos atacados pelos soldados
vermelhos e tchequistas armados, fomos ordenados a nos
vestir e a ficarmos prontos para deixar Butyrki. Alguns
dos políticos, temendo serem levados para uma execução,
se recusaram a ir e foram terrivelmente espancados.
Especialmente as mulheres foram maltratadas, algumas
delas foram arrastadas pelos cabelos escada abaixo.
Muitas sofreram sérios ferimentos. Eu mesma fui tão
espancada que o meu corpo todo parecia uma grande
ferida. Fomos levados à força em nossas roupas de dormir
e jogados em vagões. Os companheiros do nosso grupo não
sabiam nada sobre o paradeiro do resto dos políticos, in-
cluindo menchevistas, revolucionários sociais, anarquis-
tas, e anarco-sindicalistas.
Dez de nós, entre eles Fanya Baron, foram trazidos para
cá. As condições nessa prisão são insuportáveis. Nenhum
exercício, ar fresco; a comida é escassa e estragada; todos
os lugares terrivelmente sujos, percevejos e piolhos. Nós

117
11
2007

pretendemos declarar greve de fome por melhor tratamen-


to. Disseram-nos para ficarmos prontos com as nossas
coisas. Eles vão nos levar embora de novo. Não sabemos
para aonde.
[Assinado] T.”
Tão logo as circunstâncias do ataque de Butyrki fica-
ram conhecidas, os estudantes da Universidade de Mos-
cou formaram uma reunião de protesto e transmitiram
resoluções denunciando o ultraje. Por causa disso os líde-
res estudantis foram presos e a universidade fechada. Os
estudantes não residentes foram obrigados a deixar
Moscou em três dias sob o pretexto de falta de ração. Os
estudantes voluntariamente abriram mão de seu payok2,
mas o governo insistiu que eles deixassem a capital. Mais
tarde, quando a universidade foi reaberta, Preobrazhensky,
o Reitor, advertiu os estudantes a refrear qualquer expres-
são política sob a pena de serem expulsos da universida-
de. Alguns dos estudantes presos foram exilados, entre
eles muitos jovens, pelo único crime de serem membros
de um círculo cujo objetivo era estudar os trabalhos de
Kropotkin e outros autores anarquistas. Os métodos do
czar foram ressuscitados pelos seus herdeiros ao trono
na Rússia bolchevista.
Após a morte de Piotr Kropotkin, seus amigos e
companheiros decidiram fundar o museu Kropotkin
em comemoração ao grande professor anarquista e em
apoio a suas idéias e ideais. Eu voltei a Moscou para aju-
dar na organização do memorial proposto, mas em pouco
tempo o comitê do museu havia concluído que, por hora, o
projeto não poderia ser realizado. Estando tudo sob o mo-
nopólio do Estado, nada poderia ser feito sem solicitação
às autoridades. Aceitar o auxílio do governo seria uma trai-
ção deliberada ao espírito de Kropotkin, que por toda sua
vida consistentemente recusou a assistência do Estado.
Uma vez, quando Kropotkin estava doente e necessitado,

118
verve

Minha outra desilusão na Rússia

o governo bolchevista ofereceu-lhe uma grande soma pelo


direito de publicar seus trabalhos. Kropotkin recusou. Ele
foi compelido a aceitar rações e assistência médica quan-
do doente, mas jamais aprovaria a publicação de seus
trabalhos pelo Estado, nem aceitaria qualquer outro
auxílio deste. O Comitê do Museu Kropotkin tomou a
mesma atitude. Aceitou do Soviet de Moscou a casa onde
Kropotkin nasceu, que deveria ser transformada no
Museu Kropotkin, mas não pediria nada mais ao governo.
A casa naquela época estava ocupada por uma organiza-
ção militar; levaria meses para esvaziá-la e então nenhum
recurso estaria disponível para reformá-la. Alguns dos
membros do Comitê acharam que não havia lugar para o
museu Kropotkin na Rússia bolchevista, na medida em
que o despotismo estava desenfreado e as prisões cheias
de dissidentes políticos.
Enquanto eu fazia uma breve visita a Petrogrado, o apar-
tamento de Moscou no qual eu tinha um quarto fora inva-
dido pela tcheka. Eu soube que a armadilha costumeira foi
armada e todos que visitaram o local durante a zassada3
foram presos. Eu visitei Ravitch para protestar contra tal
procedimento dizendo que se o objetivo era me colocar sob
custódia eu estaria preparada para isso. Ravitch não
tinha ouvido falar nada sobre o assunto, mas prometeu
entrar em contato com Moscou. Poucos dias depois, fui
informada que os tchekistas foram retirados do aparta-
mento e que meus amigos presos estavam para serem
libertados. Quando retornei ao meu quarto algum tempo
depois, muitos deles haviam sido soltos. Ao mesmo tem-
po, um número considerável de anarquistas foi preso em
várias partes da capital e não se conseguia saber nenhu-
ma notícia sobre o seu destino ou a causa das prisões.
Várias semanas depois, em 30 de agosto, o Moscou
Izvestia publicou o relatório oficial do Veh-Tcheka sobre
o “banditismo anarquista”, anunciando que dez anarquis-
tas foram fuzilados como “bandidos” sem serem ouvidos
ou julgados.

119
11
2007

Tornou-se a política estabelecida pelo governo bolche-


vista mascarar seu bárbaro procedimento contra os anar-
quistas com a invariável acusação de banditismo. Essa
acusação foi feita praticamente contra todos os anarquis-
tas encarcerados e muitas vezes até mesmo contra
simpatizantes do movimento. Um método bastante
conveniente para se livrar de uma pessoa indesejá-
vel: graças a ele, qualquer um poderia ser secretamente
executado e enterrado.
Entre as dez vítimas estavam dois dos anarquistas rus-
sos mais conhecidos, cujo idealismo e a devoção vitalícia
à causa da humanidade haviam resistido ao teste dos en-
carceramentos e exílio czaristas, e da perseguição e sofri-
mento em outros países. Eram Fanya Baron, que havia
escapado da prisão de Ryazan alguns meses antes, e Lev
Tcherny que havia passado muitos anos de sua vida em
katorga4 e exilado sob o antigo regime. O bolchevismo não
teve coragem de dizer que fuzilara Lev Tcherny; na lista
dos executados ele aparecia como “Turchaninoff,” que —
embora fosse seu verdadeiro nome — não era familiar até
mesmos aos amigos mais próximos. Tcherny era conhe-
cido por toda a Rússia como um talentoso poeta e escritor.
Em 1907, publicou um trabalho original sobre “Anarquis-
mo associativo”, e desde que retornou da Sibéria, em 1917,
gozou de ampla popularidade entre os trabalhadores de
Moscou como um conferencista e fundador da “Federação
de Trabalhadores Cerebrais”. Ele foi um homem de gran-
des talentos, sensível e compassível em todos os seus re-
lacionamentos. Ninguém poderia estar mais distante do
banditismo.
A mãe de Tcherny havia aparecido várias vezes no
Ossoby Otdel (Departamento Especial da tcheka) para sa-
ber sobre o destino de seu filho. A cada visita lhe diziam
para retornar no dia seguinte, quando então ela teria per-
missão para vê-lo. Como foi comprovado posteriormente,

120
verve

Minha outra desilusão na Rússia

Tcherny já havia sido fuzilado quando essas promessas


foram feitas. Após sua morte, as autoridades se recusa-
ram a entregar o corpo para que parentes ou amigos o
enterrassem. Havia rumores persistentes que a tcheka
não pretendia executar Tcherny, mas que ele tinha mor-
rido sob tortura.
Fanya Baron era o tipo da mulher russa completamen-
te dedicada à causa da humanidade. Quando esteve na
América, ela ofereceu todo o seu tempo livre e boa parte
de seus magros ganhos em uma fábrica para implemen-
tar a propaganda anarquista. Anos depois, quando eu a
encontrei em Kharkov, seu zelo e dedicação haviam se
intensificado devido à perseguição que ela e seus com-
panheiros enfrentaram desde o retorno à Rússia. Ela
possuía uma coragem irrestrita e um espírito generoso.
Poderia executar a tarefa mais difícil e se privar do último
pedaço de pão com graça e absoluta abnegação. Sob an-
gustiantes condições de viagem, Fanya atravessou a
Ucrânia para difundir o Nabat, organizar trabalhadores e
camponeses, ou levar ajuda e socorro aos seus compa-
nheiros aprisionados. Ela foi uma das vítimas do ataque a
Butyrki, quando foi puxada pelos cabelos e severamente
espancada. Depois de sua fuga da prisão de Ryazan, ela
andou a pé até Moscou, aonde chegou em trapos e sem
um centavo. Foi a sua condição desesperadora que a le-
vou a procurar abrigo junto a seu cunhado, em cuja casa
ela foi descoberta pela tcheka. Essa mulher de grande co-
ração, que serviu à revolução social por toda a vida, foi
morta pelo povo que simulou ser a guarda avançada da re-
volução. Não contente com o crime de matar Fanya Baron,
o governo soviético colocou o estigma de banditismo na
memória de suas vítimas mortas.

Tradução do inglês por Anamaria Salles

121
11
2007

Notas
1
Sibéria Oriental, na época um território independente. (N.E.)
2
Ração alimentar (N.E.)
3
Bloqueio de residência. A polícia se escondia na casa de algum suspeito e
prendia todos que ali aparecessem (N.E.)
4
Campo de trabalho forçado em áreas remotas, especialmente na Sibéria.
(N.E.)

RESUMO

Relato de Emma Goldman acerca da violenta repressão aos anar-


quistas russos pela polícia do governo bolchevista na Revolução
Russa.

Palavras-chave: anarquismo, revolução russa, repressão policial.

ABSTRACT

Emma Goldman’s report on the violent repression of Russian anar-


chists by the police of the bolchevists in Russian Revolution.

Keywords: anarchism, Russian revolution, policial repression.

Indicado para publicação em 22 de maio de 2006.

122
verve

Pequeno manual anarquista individualista

pequeno manual anarquista


individualista1

émile armand*

Ser anarquista é negar a autoridade e rejeitar seu co-


rolário econômico: a exploração. E isso em todos os domí-
nios em que a atividade humana se exerça. O anarquista
quer viver sem deuses nem mestres; sem patrões nem
diretores; ilegal, sem leis nem preconceitos; amoral, sem
obrigações e sem moral coletiva. Ele quer viver livremen-
te, viver sua concepção pessoal da vida. Em seu foro
íntimo, ele é sempre um anti-social, um refratário, alguém
de fora, um a margem, um inadaptado. E ainda que seja
obrigado a viver numa sociedade cuja constituição é re-

*Pseudônimo do individualista anarquista francês Ernest Lucien Juin. Nasceu


em 26 de março de 1872, editou diversos periódicos, entre os quais: L’ère
nouvelle (1901-1911), Hors du troupeau (1911), Par-delà la mêlée (1916), L’en
Dehors (1922), e L’unique (1945). Morreu em 19 de fevereiro de 1963 aos 90
anos de idade.

verve, 11: 123-130, 2007

123
11
2007

pugnante a seu temperamento, é como estrangeiro que


nela acampa. Quando consente ao meio as concessões
indispensáveis — sempre tendo como segunda intenção
retomá-las — para não arriscar ou sacrificar de maneira
idiota ou inútil sua vida, é por considerá-las armas de
defesa pessoal na luta pela existência. O anarquista quer
viver sua vida, moral, intelectual, economicamente,
preocupando-se o menos possível com o resto do mundo,
exploradores ou explorados; sem querer dominar nem ex-
plorar o outro, mas pronto a reagir com todos os seus mei-
os contra quem vier intervir em sua vida ou proibí-lo de
expressar seu pensamento pela pluma ou fala.
O anarquista tem por inimigo o Estado e todas suas
instituições que tendem a manter ou a perpetuar o domí-
nio sobre o ser individual. Nenhuma possibilidade de
conciliação entre o anarquista e uma forma qualquer de
sociedade baseada na autoridade, quer ela emane de um
autocrata, de uma aristocracia ou de uma democracia.
Nenhum campo de entendimento entre o anarquista e
qualquer meio regulamentado pelas decisões de uma
maioria ou os desejos de uma elite. O anarquista combate
da mesma forma o ensino fornecido pelo Estado e aquele
dispensado pela Igreja. Ele é o adversário dos Monopólios e
dos privilégios, sejam eles de ordem intelectual, moral ou
econômica. Em suma, ele é o antagonista irreconciliável
de qualquer regime, de qualquer sistema de vida social,
de qualquer estado de coisas implicado na dominação do
homem ou do meio sobre o indivíduo, e a exploração do
indivíduo pelo homem ou o meio.
A obra do anarquista é acima de tudo uma obra de críti-
ca. O anarquista vai semeando a revolta contra aquilo que
oprime, entrava, opõe-se à livre expansão do ser individu-
al. Ele deve se desvencilhar das mentes das idéias pré-
concebidas, libertar os temperamentos aprisionados pelo
medo, suscitar mentalidades livres da preocupação com

124
verve

Pequeno manual anarquista individualista

“o que vão dizer?” e com as convenções sociais; depois, o


anarquista estimulará quem quiser seguir a seu lado a
se rebelar praticamente contra o determinismo do meio
social, a se afirmar individualmente, a esculpir sua
estátua interior, a se tornar, tanto quanto possível, inde-
pendente do ambiente moral, intelectual, econômico. Ele
impulsionará o ignorante a se instruir, o passivo a rea-
gir, o fraco a se fortalecer, o oprimido a se reerguer. Inci-
tará os mal dotados e os menos capazes a extraírem de si
próprios todos os recursos possíveis e não a repousarem
sobre um outro.
Um abismo separa o anarquismo do socialismo sob seus
diferentes aspectos, inclusive o sindicalismo.
O anarquista coloca na base de todas suas concepções
de vida: o fato individual. E é por isso que ele se denomina
de bom grado anarquista-individualista.
Ele não acredita que os males dos quais os homens
sofrem provêm exclusivamente do capitalismo ou da pro-
priedade privada. Pensa que eles se devem sobretudo à
mentalidade defeituosa dos homens, tomados em bloco.
Os mestres só existem porque existem escravos, e deu-
ses subsistem apenas porque os fiéis se ajoelham. O anar-
quista individualista desinteressa-se de uma revolução
violenta que vise uma transformação do modo de distri-
buição dos produtos no sentido coletivista ou comunista, o
que não traria muita mudança na mentalidade geral e
não provocaria em nada a emancipação do ser individual.
No regime comunista, este seria tão subordinado quanto
atualmente aos caprichos do Meio: estaria tão pobre, tão
miserável quanto agora; em vez de se curvar ao jugo da
pequena minoria capitalista atual seria dominado pelo
conjunto econômico. Nada lhe pertenceria propriamente.
Seria um produtor, um consumidor, um contribuinte ou
usuário do patrimônio comum, nunca um autônomo.

125
11
2007

II

O anarquista-individualista se diferencia do anarquis-


ta comunista por considerar (excluindo-se a propriedade
dos objetos de prazer que formam um prolongamento da
personalidade) a propriedade do meio de produção e a livre
disposição do produto como a garantia essencial da
autonomia da pessoa. É evidente que essa propriedade se
limita à possibilidade de fazer valer (individualmente, por
casais, por agrupamento familiar, etc.) a extensão de solo
ou o instrumental de produção indispensável às ne-
cessidades da unidade social; com a reserva, para o
proprietário, de não fazer arrendamentos a outros e de não
recorrer, para sua valorização, a ninguém a seu serviço.
O anarquista-individualista tampouco concorda em
viver a qualquer preço como o individualista e como explo-
rador, ou viver sob regulamentação, desde que seu prato
de sopa esteja assegurado, a vestimenta acertada, a casa
garantida.
O anarquista individualista, aliás, não clama por
qualquer sistema que controlaria o futuro. Ele afirma
situar-se em estado de legítima defesa em relação a
qualquer ambiente social (Estado, sociedade, meio, agru-
pamento) que admitir, aceitar, perpetuar, sancionar ou
tornar possível:
a) a subordinação ao meio do ser individual, o que o
coloca em estado de inferioridade manifesta, já este que
não consegue tratar o conjunto de igual para igual, de po-
tência para potência.
b) a obrigação (em qualquer âmbito) da ajuda mútua,
da solidariedade, da associação;
c) a privação da possessão individual e inalienável do
meio de produção e da disposição total e irrestrita do pro-
duto;

126
verve

Pequeno manual anarquista individualista

d) a exploração de quem quer que seja por seus seme-


lhantes, que o faça trabalhar por sua conta e lucro;
e) o assenhoramento, ou seja, a possibilidade para um
indivíduo, um casal, um agrupamento familiar, de possuir
mais do que for necessário para sua manutenção normal;
f) o monopólio do Estado ou de qualquer forma execu-
tiva que o substitua, ou seja, sua intervenção no papel
centralizador, administrador, diretor, organizador, nas
relações entre os indivíduos, independentemente do
domínio em que isso ocorra;
g) os juros, a usura, o ágio, a especulação, a herança,
etc., etc.

III

O anarquista-individualista faz “propaganda” para


selecionar os temperamentos anarquistas-individualistas
que se ignoram, para determinar pelo menos um ambien-
te intelectual favorável à sua eclosão. Entre anarquistas-
individualistas as relações são estabelecidas na base da
“reciprocidade”. A “camaradagem” é essencialmente de
ordem individual, nunca imposta. É um “camarada” aque-
le cuja convivência lhe agrada individualmente, quem faz
um esforço apreciável para se sentir viver, quem partici-
pa de sua propaganda de crítica educativa e de seleção das
pessoas; quem respeita o modo de existência de cada um,
não impedindo o desenvolvimento de quem caminha com
ele ou daqueles que o tocam de mais perto.
O anarquista-individualista nunca é escravo de uma
fórmula-tipo ou de um texto consagrado. Ele só aceita opi-
niões. Propõe apenas teses. Ele não se impõe um ponto de
chegada. Caso adote um método de vida quanto a um pon-
to determinado, é para que este lhe garanta mais liber-
dade, mais felicidade, mais bem-estar, e não sacrifíci-

127
11
2007

os. E ele o modifica e transforma quando percebe que


continuar sendo-lhe fiel diminuiria sua autonomia. Ele
não quer deixar-se dominar por princípios estabeleci-
dos a priori: é a posteriori, a partir das experiências, que
funda sua regra de conduta, jamais definitiva, sempre
sujeita às modificações e às transformações eventual-
mente sugeridas pelo registro de novas experiências,
pela necessidade de aquisição de novas armas na sua
luta contra o meio. Sem tampouco tornar o a priori um
absoluto.
O anarquista-individualista só presta contas a si pró-
prio de suas ações e gestos.
O anarquista-individualista não considera a associa-
ção senão como um expediente, um último recurso.
Assim, ele só quer se associar em caso de urgência,
mas sempre voluntariamente. E ele não deseja fazer
contratos, em geral, senão a curto prazo, estando sem-
pre subentendido que qualquer contrato pode ser res-
cindido caso prejudique um dos contratantes.
O anarquista-individualista não prescreve uma mo-
ral sexual determinada. Cabe a cada um determinar sua
vida sexual ou afetiva ou sentimental, o que vale tanto
para um quanto para o outro sexo. O essencial é que
nas relações íntimas entre anarquistas de sexo dife-
rente, não intervenha nem violência, nem coerção. Ele
pensa que a independência econômica e a possibilida-
de de ser mãe por sua própria vontade são as condições
iniciais para a emancipação da mulher.
O anarquista–individualista quer viver, quer poder
apreciar a vida individualmente, a vida considerada em
todas as suas manifestações. Mantendo-se, entretanto,
mestre de sua vontade, considerando como servidores
colocados à disposição de seu “eu” seus conhecimentos,
suas capacidades, seus sentidos, os múltiplos órgãos de
percepção de seu corpo. Ele não é um medroso, e não se

128
verve

Pequeno manual anarquista individualista

rebaixa. Sabe muito bem que quem se deixa conduzir


por suas paixões ou dominar por suas tendências é um
escravo. Ele quer conservar “o controle de si” para se
lançar às aventuras em relação às quais lhe convêm a
busca independente e o livre exame. Ele irá preconizar
de bom grado uma vida simples, a renúncia às neces-
sidades factuais, servis, inúteis; a evasão das grandes
aglomerações humanas; uma alimentação racional e a
higiene corporal.
O anarquista-individualista irá se interessar pelas
associações formadas por certos camaradas visando se
desprender da obsessão de um Meio pelo qual sente re-
pugnância. A recusa do serviço militar e do pagamento
de impostos terá toda sua simpatia; as uniões livres ou
plurais a título de protesto contra a moral corrente; o
ilegalismo enquanto ruptura violenta (e sob certas re-
servas) de um contrato econômico imposto pela força; a
abstenção de qualquer ação, de qualquer labor, de qual-
quer função implicando na manutenção ou consolida-
ção do regime intelectual, ético, ou econômico imposto;
a troca de produtos de primeira necessidade entre
anarquistas-individualistas possuindo instrumentos
de produção necessários fora de qualquer intermedi-
ário capitalista, são atos de revolta que convêm es-
sencialmente ao caráter do anarquismo-individualista.

Tradução do francês por Martha Gambini.

Notas
1
Ensaio escrito em 1911 e publicado em Enciclopédia anarquista (1925-1934),
obra em quatro volumes dirigida por Sébastien Faure.

129
11
2007

RESUMO

O anarquista individualista dimensiona a ética que interrompe a


continuidade da autoridade, resulte ela do Estado, das relações
econômicas ou de quaisquer associações fundadas na obrigação.
O anarquismo individualista está eqüidistante da autocracia e da
democracia, assim como do intervencionismo econômico, monopo-
lista ou comunista. O ensaio descreve uma liberdade que é sem-
pre invenção individual, portanto alheia aos finalismos revolucio-
nários.

Palavras-chave: anarquista individualista, Estado, liberdade.

ABSTRACT

The individualist anarchist presents an ethics that discontinues


the authority that comes from the state, from economic relations or
from any kind of association based on obligation. The individua-
list anarchism is equidistant from autocracy and democracy, as
well as from economic interventionism (monopolistic or communist).
The essay describes liberty always as an individual invention,
therefore not related to revolutionary finalisms.

Keyword: individualist anarchist, state, liberty.

Indicado para publicação em 14 de março de 2005.

130
verve

marxismo/anarquia, junho de 1985

o marxismo baseia sua análise do trabalho e da for-


ma que assume sobre uma classe, de uma forma de tra-
balho criada pelo capitalismo...

os trabalhadores estão no estado em que estão não


devido ao trabalho que fazem, mas devido ao capital.

tudo está baseado sobre o ter — ou encontrar — um


trabalho, medo de perdê-lo, sobre ser remunerado, e so-
bre a esperança de um aumento.

o capital torna possível a um percentual da popula-


ção (a população que trabalha) manter-se satisfeita com
uma casinha, o necessário para comer e uma cultura
ignorante para sorver pelo resto da vida, um sentido
mítico de bem-estar.

a anarquia pressupõe outros modos de produzir e de


viver.
hoje a anarquia diz respeito à redenção.

131
11
2007

neno vasco, emma goldman, a revolução


mexicana de 1910 e a tese de pietro
ferrua

edgar rodrigues*

A Revolução Mexicana, como mais tarde outras revo-


luções, apaixonara os homens de idéias e os liberais
da época, para muito além das fronteiras do país asteca.
A solidariedade internacional não se fez esperar.
O movimento eclode com a invasão da Baixa Califórnia,
não só para libertá-lo da tirania porfirista, mas tam-
bém para fundar ali uma sociedade livre. Ricardo Flores
Magón fez um chamado ao proletariado norte-americano
e ao movimento ácrata internacional. Para lá corre-
ram os sindicalistas da Industrial Workers of World, mili-
tantes libertários de todas as procedências, incluindo-se
espanhóis, alemães, russos, ingleses, americanos e ita-
lianos, como Giuseppe Garibaldi, neto do famoso lutador.

* Vivendo no Rio de Janeiro, Edgar Rodrigues é um dos mais importantes arquivis-


tas do movimento anarquista no Brasil e em Portugal. Suas análises, entrevistas e
compilações de documentos distribuem-se em mais de quarenta livros e cerca de
mil artigos.
verve, 11: 132-155, 2007

132
verve

Neno Vasco, Emma Goldman, revolução mexicana de 1910...

Neno Vasco,1 anarquista, radicado em São Paulo,


destacada figura de projeção mundial no campo das
idéias, responde ao chamamento aderindo àquele mo-
vimento. Solidário com a emancipação social que se
pretendia levar a cabo, Neno Vasco aceitara a incum-
bência de ser o coletor e depositário dos recursos fi-
nanceiros e o delegado, no Brasil, dos revolucionários
libertários mexicanos.
Então responsável por A Terra Livre, com redação em
São Paulo, Neno Vasco vivia “cercado” de três preocupa-
ções adversas em 1910: a doença de sua companheira,
divergências de fundo nativista, originadas em polê-
micas com acadêmicos e outros, e a vigilância das au-
toridades por ser anarquista, escrever em oposição aos
políticos que o consideravam “um agitador estrangei-
ro”.
No ano de 1910 explodiu a Revolução Mexicana. A
revolução democrática em Lisboa começou e termi-
nou no dia 5 de outubro do mesmo ano.
O restabelecimento da liberdade de reunião, associ-
ação e de imprensa em Portugal, e as dificuldades que
vinha enfrentando em São Paulo, fez Neno Vasco se
decidir pelo retorno a Lisboa em 1911. Antes, porém, pas-
sou sua delegação de representante dos revolucioná-
rios mexicanos ao seu companheiro e amigo Edgard
Leuenroth, então dirigindo o semanário anti-clerical A
Lanterna.
Com data de 16 de julho de 1911, uma carta de sua
autoria, dirigida a Edgard Leuenroth fala de seu “(...) re-
ceio de fazer tolice no envio de dinheiro para o México.
Preso Magón — diz Neno — foi substituído por um repre-
sentante que fala de Deus e Pátria! Que devo fazer? Es-
pero informações de Paris.”
Como decorrência das preocupações de Neno Vasco,
chegou-lhe de New York carta de Emma Goldman, com

133
11
2007

data de 28 de novembro de 1911: “Meu muito bom cama-


rada, tenho em meu poder sua carta e também o dinheiro
enviado (95 dólares), os quais serão remetidos aos nos-
sos camaradas mexicanos.
Você não pode imaginar o que significará para eles.
Não somente por causa do dinheiro, o que eles neces-
sitam muito, mas, também, por causa da solidariedade
que os camaradas do Brasil e Portugal têm demonstra-
do.
Realmente o inimigo está desesperado ao verificar a
união de várias nações com o mesmo propósito.
Por favor, transmita aos camaradas do Brasil e Portu-
gal minhas saudações cordiais.
Diga-lhes que desejo um dia ir ao encontro deles se
puder.”2
Neno Vasco já em Portugal, depositário de “certa im-
portância de dinheiro”, mantinha intensa correspondên-
cia com o seu substituto em São Paulo, Edgard Leuenroth,
e com Los Angeles, na pessoa de Manuel G. Garza. Isto
ocorreria após a prisão de Ricardo Flores Magón, em 1911,
quem mantinha diretamente ligações com Neno, com o
qual trocava idéias. Talentoso, de ampla visão, organiza-
dor apurado, versado nos problemas sociais, históricos e
lingüísticos, Neno Vasco, apesar de sua modéstia, teve
uma vasta e útil participação intelectual nos primeiros
tempos da Revolução Mexicana.
De março de 1912 data uma carta de Manuel G. Garza,
do grupo de solidariedade internacional situado em Los
Angeles, na qual trata com Neno “do fomento da Revolu-
ção Mexicana e das idéias que norteavam aquele movi-
mento”.
Em 1913, o almanaque A Aurora, do Porto, por influ-
ência de Neno solidarizava-se com o lema mexicano

134
verve

Neno Vasco, Emma Goldman, revolução mexicana de 1910...

“tierra y libertad”, brado do proletariado asteca, o pri-


meiro a fazer uma revolução profundamente social, ape-
sar dos inconfessáveis interesses políticos que viriam
a desviar a revolução de seus verdadeiros caminhos.
Queiram ou não os literatos, o povo, esse herói anô-
nimo que ninguém incluiu na história, teve a bravura
e a coragem de socavar a tirania porfirista e levantar-
se em luta armada por um Novo México, que abriria suas
portas ao escritor humanista libertário polonês, que se
escondia por trás do “lendário” pseudônimo de Bruno
Traven,3 e ainda deu abrigo a Leon Trotsky,4 bolchevis-
ta, condenado à morte por Stalin, e recebeu também
espanhóis, que ao final da Guerra Civil, foram aportar
no México, não como imigrantes que iam levar o seu
braço jovem para produzir riquezas materiais, mas como
apátridas que carregavam suas culturas e suas idéias
revolucionárias.5

Antecedentes da revolução mexicana

O México recebeu, em 1540, sementes da Utopia de


Tomas Morus, lançadas ao solo, entre o povo, por don
Vasco Omeroga.
Muitos anos depois, em 6 de dezembro de 1810, so-
fria os efeitos sociais, econômicos e políticos do decre-
to-lei que acabou com a escravatura, de autoria do cura
Hidalgo, que 14 dias depois, publicava o primeiro jornal
independente, intitulado El Despertador Americano.
O mundo sofria então um forte fluxo de idéias liber-
tárias. Os gritos da Revolução Francesa e da Comuna
de Paris repercutiam no México, e toda a América do
Norte era sacudida pelos movimentos operários que
provocariam a tragédia de Chicago, na qual cinco mi-
litantes do proletariado foram enforcados e três con-

135
11
2007

denados a diversas penas, por pleitear a jornada de 8


horas de trabalho diário. Na Europa, sucediam-se os
Congressos da Primeira Internacional dos Trabalha-
dores, lançando as bases de um sindicalismo revolu-
cionário.
O proletariado mexicano, embora oprimido pela ti-
rania do general Porfirio Díaz havia 30 anos, não ig-
norou esses movimentos e essas idéias.
Assim é que no ano de 1900, o então estudante
Ricardo Flores Magón, iniciava seus ataques à tira-
nia porfirista no El Democrata, jornal que por conveni-
ências políticas foi tirado de circulação.
Levado pelas mesmas razões e pela fé em um mun-
do novo, diferente, o jovem Ricardo e seu irmão, Jesús
Flores Magón, lançaram-se à publicação do periódico
libertário Regeneración, ainda no ano de 1900.
Segundo alguns historiadores, Francisco Madeiro6
lá pelos anos de 1905, ajudaria financeiramente o de-
fensor dos oprimidos, do proletariado mexicano, porta-
voz dos humildes, com o “objetivo de regenerar a Pátria
e despertar os mexicanos na nobre indignação contra
os tiranos”. Solidariedade que pouco depois seria cortada
por medo dos rumos e das idéias que Magón defendia,
de igualdade social. À campanha de emancipação soci-
al do Regeneración viria a se juntar El hijo del Ahuizote,
editado por Daniel Cabrere no ano de 1902, com ajuda
de Henrique e Jesús Flores Magón. Dias depois, publi-
ca-se também La Reforma Social, órgão livre-pensador,
sob a direção de Lauro Aguirre.
Esse movimento inquietou o ditador Díaz que apro-
va, em 9 de junho de 1903, uma lei proibindo aos irmãos
Magón de publicar jornais. Apesar disso, em 1o de junho
de 1907, aparece em Los Angeles o periódico Revolución, e
de novo Ricardo Flores Magón se faz ouvir desde o exílio,

136
verve

Neno Vasco, Emma Goldman, revolução mexicana de 1910...

ao lado do poeta ácrata Praxedis G. Guerrero, que viria a


morrer em combate com as tropas porfiristas no dia 30 de
dezembro de 1910, em Chi-Huana.
Nesse tumultuado ano de 1905, em 28 de setem-
bro, sob os efeitos do intenso movimento libertador,
funda-se a Junta Organizadora do Partido Liberal, com
o lema “reforma, libertad y justicia”, tendo como prin-
cipais elementos orientadores Ricardo Flores Magón
e o jovem poeta libertário, Praxedis G. Guerrero.7
Germinava a Revolução Mexicana nos cérebros e
nas consciências dos libertários e do povo. Em 1o de
julho de 1907, aparece o programa da Junta, redigido
por Ricardo Flores Magón e Juan Sarabia: era um de-
safio, um pesadelo para o ditador Porfirio Díaz, que de-
sesperado com o movimento organizado por Ricardo,
oferece 20.000 dólares aos esbirros americanos que
prendessem e entregassem a figura mais insigne do
organismo que estava socavando o seu poder: a Junta
Organizadora do Partido Liberal Mexicano.
Em atenção ao ditador mexicano, o governo norte-
americano manda prender Flores Magón, mas, ao in-
vés de entregá-lo, condena-o a 18 meses de prisão,
“por conspirar contra países vizinhos”, e o encarcera
no Arizona. Todavia, em Río Blanco, Juan Olivares e
José Neyra, fundam o periódico de combate Revolução
Social, que inferniza a vida de Porfirio Díaz, e este
aproveita a greve de 1907 para repetir a tragédia de
1906, de Cananea, e mata, entre outros trabalhado-
res grevistas, os fundadores do jornal.
Francisco Madeiro, no exílio desde 1904, preocupa-
se com o programa do Partido Liberal Mexicano, do grupo
Regeneración, considerando-o “cheio de expressões
libertárias, avançadas demais por já prever a desapro-
priação das terras, a jornada de oito horas de trabalho e

137
11
2007

um salário mínimo”, e envia carta ao seu correspon-


dente nos Estados Unidos, Crecencio Márquez Villareal,
que se encarrega de mostrar a Magón as discordânci-
as de Madeiro quanto ao “programa” que “substitui o
eleitoralismo pela verdadeira revolução social”.
Não podendo fazer valer seus pontos de vista, Madeiro
externa sua discordância para os libertários, por meio
de Prisciliano G. Silva, denunciados no jornal Regene-
ración, após a negativa de emprestar sua solidarieda-
de à “intentona liberal de Las Vacas y Viesca”, em
1908, uma vez que sua ajuda financeira a muito fora
cortada.
Madeiro muda seus rumos, suas opiniões sobre os
liberais, às portas de 1910. Político astuto percebe que
a situação estava madura e pensou que poderia capi-
talizar para si os anos de propaganda e de lutas clan-
destinas feitas, desde o exílio, pelos liberais.
Eclode a Revolução sem que Madeiro se definisse,
e a adesão de alguns “liberais” a sua causa, entre eles
Antonio Villareal, Lázaro Gutierrez de Lara, o General
Leyra e Juan Sarabia, e o próprio irmão de Ricardo,
Jesús Flores Magón, a quem Madeiro torna ministro,
cuja adesão só acontece mais tarde.
Todavia, logo que ganha forças, inicia um verda-
deiro ato de traição, começando por perseguir os mais
esclarecidos homens do Partido Liberal, que o não re-
conheciam como presidente provisório. E quando o
chefe liberal Gabino Cano, ao conduzir 14 feridos li-
berais pela fronteira, para os Estados Unidos, prepa-
ra-lhe uma cilada para desarmar Prisciliano G. Silva
e seus homens, prende-os.8 Por essa ocasião, Ricardo
Flores Magón, desde as páginas de Regeneración, de
25 de fevereiro de 1911, denuncia: “Francisco I. Madeiro
é traidor à causa da liberdade: está distribuindo no inte-

138
verve

Neno Vasco, Emma Goldman, revolução mexicana de 1910...

rior do México um manifesto fazendo crer que o Partido


Liberal e ele lutam pela mesma causa, apresentando-se
como presidente provisório, e a mim, Ricardo Flores
Magón, como vice-presidente mexicano. Vosso ‘presi-
dente provisório’, como quer mesmo que lhe chamem,
começou a dar golpes na liberdade. Que sucederá quan-
do de ‘provisório’ passar a efetivo? Preciso recordar-vos
que neste momento, no acampamento de Francisco I.
Madeiro se encontra prisioneiro um nobre ancião que
não cometeu outro crime que não seja o de lutar pelo
vosso bem-estar?”
Madeiro preferiu confabular com Porfirio Díaz a che-
gar a acordos “honrados” com os homens do Partido
Liberal, conforme asseverava Prisciliano. Para Madei-
ro, “o General Díaz não era um tirano: era algo rígido,
mas um tirano, não!” Isso demonstra que Francisco
Madeiro, burguês de “cartola e casaca”, pretendia o
lugar de Díaz, mas sem a Revolução Popular, Social e
Agrária. Ele mesmo, o demonstraria no pouco tempo
de seu governo, suprimindo La Casa Del Obrero Mundial
— organismo proletário, que em setembro de 1914 se
instalaria no hoje Palácio dos Azulejos, na esquina
das ruas Madeiro e San Juan de Letrán, antigo convento
dos Jesuítas —, expulsando do país os propagandistas
estrangeiros, entre os quais o socialista libertário es-
panhol, Juan Francisco Monceleano, enquanto colo-
cava fora da lei todas as organizações operárias — as
mesmas de que se havia valido para chegar ao gover-
no, ou melhor dizendo, às organizações que cavaram
a queda de Porfirio Díaz — que desencadearam a Revolu-
ção Mexicana. Alegando idéias moderadas, aliou-se aos
militares de Díaz, e assim cavou sua ruína, foi vítima
de suas próprias contradições, matando a verdadeira
Revolução.

139
11
2007

A partir de 1914

Nas revoluções populares, sempre aparecem os cau-


dilhos para empalmá-las. A revolução mexicana não fu-
giria a essa dinâmica de interesses.
O jornal Regeneración, em sua terceira fase — a par-
tir de 3 de setembro de 1910, com Anselmo L. Figuera
como diretor e, como redatores, além dos irmãos Ma-
gón, Gutierrez de Lara e Antonio I. Villareal — reitera
as idéias do seu fundador, reproduzindo o manifesto
de Ricardo, dirigido “aos proletários”, onde se lia: “Der-
ramar sangue para levar ao poder outro bandido, que
oprime o povo, é um crime, e isso será o que sucederá
se tomares as armas sem outro objetivo que não seja o
de derrubar a Díaz, para pôr em seu lugar um novo
governante...” Nesse manifesto é substituído o lema
liberal de “reforma, libertad y justicia” pelo que abra-
çara tempos depois o próprio Emiliano Zapata: “tierra y
libertad”.
O caminho estava traçado para Ricardo Flores Ma-
gón, seu irmão Henrique, Librado Rivera e seus com-
panheiros que jamais se desviaram dele.
Prossegue a propaganda dos grupos de vanguarda, e
logo em 1912, aparece outro órgão marcadamente re-
volucionário, Luz. Outro grupo é a União dos Canteiros,
entidade operária, fundadora da escola racionalista na
Cidade do México junto ao grupo que publica o jornal
Luz, desfalcado com a expulsão de seu redator, Juan
Francisco Moncalcano, por ordem de Madeiro. Apesar
de todas as traições, 1912 fora o ano das grandes inici-
ativas de valor social. Em 17 de setembro, funda-se a
Biblioteca da Casa do Operário, que se tornaria defini-
tivamente a central operária do país, em torno da qual
se agrupam os sindicatos dos carpinteiros, dos alfaiates,
união dos canteiros, dos sapateiros e a Confederação das

140
verve

Neno Vasco, Emma Goldman, revolução mexicana de 1910...

Artes Gráficas; e publicam-se El Sindicalista e Emancipa-


ción Obrera. E, por fim, funda-se a Confederación Ge-
neral Obrera de la Región Mexicana, que torna pública
sua declaração de princípios, marcados pelas idéias de
emancipação social.
Da Casa do Operário, sai a iniciativa da reforma
agrária, proposta de Gerardo Murillo, ao Dr. Atler, da
revolução constitucionalista, que seria executada por
Venustiano Carranza, já iniciada em outras regiões
por Emiliano Zapata. Orizaba recebe material para pos-
sibilitar a continuação do periódico Revolución Social.
Nessa data, nasce também o Corpo Sanitário Ácrata,
cujas enfermeiras usavam avental negro e blusa verme-
lha. Casas do povo ácratas fundar-se-iam em Córdoba,
Jalapa, San Andrés, Tuxtla, Tlacaotalpan, Puerto México,
Oaxaca, Tapachinla, Tehuantepec, Mérida, Puebla,
Querétaro, Pachuca, Chihualma, Sonora, Colima, Ciu-
dad Victoria, Saltillo, Nuevo Laredo, Doña Cecilia,
Tampico, León, Morelia, Banderilla, Tezintlán, Árbol
Grande e, por fim, em 13 de outubro de 1915, a Escola
Racionalista, e publicava-se o jornal Aríete.
Em 1914, quando já havia triunfado a Guerra Civil,
o governo firmava-se sem cumprir o mais importante
para os iniciadores da Revolução: fazer a reforma so-
cial, limpando os vermes, ratos, da política porfirista,
o que leva o proletariado à greve e o conselho de guer-
ra condena à morte Ernesto Velasco, para lhe comu-
tar a pena, ao mesmo tempo em que fechava a Casa
do Operário Mundial. Só em 1919, Luiz N. Morones
formaria outra, sem as velhas tradições de indepen-
dência, de dinamismo, como sua antecessora.
Evidencia-se a queda: a Revolução ia perdendo o seu
verdadeiro sentido. Expulsam-se os homens de idéias, e
sucedem-se os golpes políticos. Assim mesmo, ainda em
1921, sob influência do manifesto de Orizaba, fundar-

141
11
2007

se-ia a Confederación General Del Trabajo, com a par-


ticipação especial de Buenaventura Durruti, mais tar-
de famoso revolucionário anarquista espanhol, morto
durante a Guerra Civil de 1936-39.
Declinam da “democracia” os governantes, tornan-
do-se drásticos. Ricardo Flores Magón é condenado, em
novembro de 1918, nos Estados Unidos — onde já havia
sofrido 83 meses de cárcere —, a 20 anos de prisão,
juntamente com seu fiel companheiro, Librado Rivera,
que conseguira sobreviver e regressar ao México. Em
20 de novembro de 1922, Ricardo Flores Magón aparece
morto em sua cela, na prisão de Leavenworth, Kansas.
“A data de 20 de novembro não é só aniversário de
revolução política e social do México, é também o ani-
versário da morte do mais destacado militante ácra-
ta, que iniciou a revolução contra a tirania porfirista,
Ricardo Flores Magón”. Com essas palavras, Regeneración
— em novembro de 1958, sob a direção de Salvador
Vasquez e Felipe Quintas — iniciava as comemorações
do 48º aniversário da Revolução Mexicana. A Revolu-
ção que não floresceu, por culpa dos políticos e seus
inconfessados interesses.

Para se entender a histórica revolução mexicana

O México foi colônia da Espanha, e em todos os paí-


ses sujeitos à opressão dos colonizadores seus povos
sofreram mutações e mesmo mutilações na sua evo-
lução econômica, política e física.
Desde sua “descoberta” até a independência, decor-
reram muitos anos de vivência, sob os efeitos de um
malabarismo político retrógrado, um jogo de interes-
ses de toda ordem, sempre em prejuízo da população
nativa.

142
verve

Neno Vasco, Emma Goldman, revolução mexicana de 1910...

Livre dos espanhóis, o México, com seu “governo pró-


prio”, viveu ainda por muitos anos traumatizado pelo
estigma da fome e de brutais condicionamentos, sob
os efeitos dos interesses políticos e econômicos trans-
mitidos de gerações para gerações pelos colonizadores.
O povo mexicano livre não sabia usar a liberdade, tal
como tem acontecido, e continua acontecendo, nos
países que “ganham a independência” dos colonizado-
res, pelo menos durante meio século ou mais.
Mil motivos havia, portanto, para que o mexicano nato
fosse submisso e revoltado ao mesmo tempo. Esse fenô-
meno ocorre com todos os países que sofreram o peso das
tiranias do colonialismo imperialista. A opressão gerou a
revolta, e o revoltado não era um idealista; e sem ideais
no cérebro, e com a espingarda na mão, as revoluções ja-
mais restauraram a liberdade. Um povo liberto do cativei-
ro embrutecedor é passivo, revoltado e cai facilmente na
ditadura. Isso já ocorreu na Rússia, quando derrubou a
dinastia dos Czares e caiu no stalinismo; na Alemanha,
que se livrou dos domínios de um “imperialismo prussia-
no” e caiu no nazismo; com Cuba, que liquidou as ditadu-
ras de Machado e de Batista e caiu na de Fidel Castro; e
em quantos mais novos países aconteceu isso?
O México entrou na história dos países independentes
impregnado de doenças políticas, religiosas, culturais e
psíquicas, que só o tempo e uma higienização mental,
apoiada na cultura, no bem-estar social e na liberdade
duradoura, podiam curar...
O General Porfirio Díaz era um dos abortos desse esta-
do psico-social; uma espécie de “paizinho”, da laia do czar
da velha Rússia. Subira ao poder em 1876, para reinar
no México, sobre um povo imaturo politicamente, com
baixíssimo nível econômico e social e sem tradições cul-
turais marcantes, imerso no mais drástico agrarismo
latifundiário e medieval. 98% das terras pertenciam a 2%

143
11
2007

da população, isto é, aos homens que sustentavam todos


os governos, à elite capitalista. Porfirio Díaz não ascendeu
ao poder para melhorar o México, para administrar bem
as riquezas do solo e distribuí-las entre quem trabalha,
entre quem produz; subiu ao poder para ser útil a si e a
uns poucos, aliás, a regra dos governantes. Com poucas
variações.
O candidato democrata Francisco I. Madeiro não tinha
melhores intenções: pretendia, como bom filho da burgue-
sia, perpetuar a submissão do povo.
E o México ainda tinha sobre seu povo uma outra des-
graça, além da deixada pelos colonizadores: ser vizinho da
América do Norte.
O escritor espanhol Victor García, no seu livro México,
Panamá y Océano Pacífico, declara que “a maior calamida-
de do México é ter um vizinho como o que tem na divisa
esquerda do Rio Grande. Deste mesmo Rio Grande, que foi
genuinamente mexicano, no solo, nas divisas, senão em
toda sua bacia. Como mexicanos foram os férteis e
riquíssimos Estados da Califórnia, Arizona, Nuevo Méxi-
co e Texas.
O México foi sempre terra de saques para os nortenhos.
Com a guerra de 1846-48, ficaram com 60% do território
mexicano; com os dólares continuam carregando os te-
souros arqueológicos das culturas pré-cortesianas, como
já tivemos oportunidade de ver quem fora cônsul dos Esta-
dos Unidos no México, Edward Thompson, que saqueara
Cenote de Chichen Itzá e toda a zona Maia de Yucatán.
Não contentes com isso, se imiscuem com os problemas
sociais internos de maneira descarada e provocativa, como
quando desembarcaram em Vera Cruz, em 1914, seme-
ando mortes e humilhando de novo o povo asteca.
Com a greve de Cananea a provocação do Tio Sam al-
cançou graus inconcebíveis. Cerca de quinhentos ameri-

144
verve

Neno Vasco, Emma Goldman, revolução mexicana de 1910...

canos invadiram Sonora, armados até os dentes e caça-


ram os mexicanos como cães onde quer que estives-
sem.
Os mineiros haviam declarado greve para reclamar
cinco pesos a mais e as oito horas de trabalho na ‘Green
Consolidate Mínimo Company’. O resultado foi um mas-
sacre horrível e o encarceramento dos sobreviventes nas
masmorras da fortaleza de San Juan de Ulúa.” 9
Sob os efeitos destas e de outras desgraças, padeceu
o povo mexicano, camponês em sua maioria, analfabeto
ou de pouco saber, anestesiado ao longo de muitas gera-
ções por um feudalismo cruel, impiedoso, bestial, que
tudo faria para impedir que penetrassem modestos rai-
os liberais até o povo asteca, a liberdade individual, a
liberdade e o bem-estar individual e coletivo.
Ao raiar o século XX, o mexicano, com raríssimas
exceções, estava condicionado ao regime de contenção
política, artística, libertária, que impedia pela força o
direito de associação, de liberdade de pensar em voz alta
por muitos anos, e foi aí, nesse estreito labirinto do tra-
dicionalismo escravocrata, de “autoridades-irracionais”,
coartoras, repressoras, autoritárias, com Porfirio Díaz
havia mais de 30 anos comandando e tripudiando do povo
asteca, que eclodiu a Revolução Mexicana.

Políticos da revolução mexicana de 1910

Francisco I. Madeiro, burguês liberal, ambicionava a


presidência da “república” e, pelo atrevimento de se can-
didatar nas “eleições” realizadas para ver se Porfirio Díaz
ficava ou continuava, foi preso até que se concretizasse
a “vitória” eleitoreira, refugiando-se depois nos Estados
Unidos, de onde regressaria à Cidade do México, em ju-
lho de 1911, isto é, nove meses após eclodir a Revolução.

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2007

Liderando os políticos do “centro” e usando os “liberais”,


Madeiro nomeara-se “presidente provisório”. A seu lado
viera lutar o “bandido” Pancho Villa, então refugiado nas
montanhas, que pela audácia e pela bravura chega a
dominar uma parte do território mexicano, desejando
pôr em prática as seguintes idéias:
“Quando se estabelecer a Nova República, não mais
haverá exércitos no México. Os exércitos são os maio-
res apoios da tirania. Não pode haver ditador sem seu
exército. Poremos o exército a trabalhar. Serão esta-
belecidas em toda a República, colônias militares, for-
madas por veteranos da revolução. O Estado lhes dará
posse de terras agrícolas, e criará grandes empresas
industriais para dar-lhes trabalho. Trabalharão duro
três dias na semana, porque o trabalho honrado é mais
importante do que lutar, e só um trabalho assim pro-
duz bons cidadãos. Nos outros dias receberão instru-
ção militar, e por sua vez instruirão todo o povo, ensi-
nando-o a lutar. Então, se a Pátria for invadida, toman-
do-se apenas o telefone do Palácio Nacional na Cidade
do México, em meio dia se levantará todo o povo mexi-
cano em seus campos e fábricas, bem armados, equi-
pados e organizados para defender seus filhos e seus
lares.
Minha ambição é viver minha vida em uma des-
sas colônias militares, cercado de meus queridos com-
panheiros, que sofreram tanto e tão profundamente
ao meu lado. Quero que o governo estabeleça uma fá-
brica de curtume, onde possamos fazer boas selas e
freios, pois sei como fazê-los; o resto do tempo desejo
trabalhar na minha granjazinha, criando gado e seme-
ando milho. Seria magnífico ajudar a fazer do México
um lugar feliz.”10
Esse homem rústico combateu heroicamente ao
lado de Madeiro, para não mais ver “matar nossos pais

146
verve

Neno Vasco, Emma Goldman, revolução mexicana de 1910...

e irmãos como ele mesmo afirma, assim como nos


tiraram nossas pequenas terras, e nos venderam a
todos como escravos. Como nos negavam lugares nas
escolas para instruir-nos (...)”. Revolta-se ao ser deti-
do e conduzido à penitenciária da capital por ordem
de Alfonso Madeiro. Quando consegue a liberdade, vai
lutar com seus homens, para esmagar aquele a quem
se aliaria voluntariamente, em nome de algo que não
sabia como pôr em prática, mas que desejava ver rea-
lizado.
Outro herói de poucas leituras, despido de ambi-
ções políticas partidárias, Emiliano Zapata, não foi um
“opositor que contava com forças regulares, tais como
o presidente provisório, para alistar”; fora, isso sim,
um modesto revolucionário, que “edificara” sua con-
cepção entre os camponeses no sítio de Áquila, próxi-
mo à cidade Cuernavaca, onde eclodira o movimento
revolucionário mexicano Zapatista. É por demais co-
nhecido o célebre grito zapatista magonista, de 25 de
maio de 1911: “tierra y libertad”. Zapata fora um soci-
alista com afinidades libertárias, e ligado aos irmãos
Magón, anarquistas mexicanos de muita influência e
ativa participação na verdadeira Revolução Mexica-
na. Não se pode fazer um paralelo de idéias entre as
ambições políticas de Francisco Madeiro e o idealis-
mo revolucionário de Emiliano Zapata.
Houve quem chegasse, anos depois, a comparar Zapata
com o revolucionário Nestor Makhno, camponês anarquis-
ta russo, que lutara bravamente com o seu exército
de camponeses na Ucrânia, ou Madeiro com Lênin,
que tal como Madeiro perambulava pelo exílio, só che-
gando ao seu país depois de derrubado o ditador pela
revolução popular.
Sobre as idéias de Madeiro e seus correligionários,
Zapata explicava:

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2007

“Isso de liberdade de imprensa para os que não sabem


escrever; liberdade de votar para os que não conhe-
cem os candidatos; correta administração da justiça
para os que jamais ocupam um advogado, todas essas
belezas democráticas, todas essas grandes palavras
com que nossos belos mestres e pais se deleitaram,
perderam o seu mágico atrativo e a sua significação
para o povo. O povo viu que com eleições ou sem elei-
ções, que com sufrágio efetivo ou sem ele, com dita-
dura porfirista ou com democracia, com imprensa
amordaçada ou com liberdade de imprensa, sempre, e
de todas as formas, ele continua ruminando suas
amarguras, devorando suas humilhações infindáveis,
e por isso teme, com razão de sobra, que os libertado-
res de hoje sejam iguais aos caudilhos de ontem.”11
O que Zapata pretendia e fazia, sempre que apare-
cia oportunidade, era restaurar a “liberdade econômica
para os camponeses, e promover a expropriação das
terras, distribuindo-as e cultivando-as.”12
Refletindo sobre os documentos que pude consul-
tar e, mais do que isso, obras, textos e correspondên-
cia de Emma Goldman, Diego A. de Santillán, Victor
García e outros escritores, somado com jornais e revistas
libertárias, como A Terra Livre, de São Paulo, e A Aurora,
do Porto, e as cartas de Neno Vasco, entre outras de
militantes ácratas da época, ficou-me a convicção de
que a revolução libertária no México não avançou mais
por escassez de militantes conscientes, rumos afinados
e falta de solidariedade do proletariado internacional,
em tempo hábil, para derrubar as forças políticas, an-
tes que estas se unissem dentro e fora do México, na
defesa do capitalismo.
A rapidez que se precisava para surpreender o siste-
ma burguês, e a morosidade no funcionamento, no dia
seguinte à revolução, para que o povo não sofresse falta

148
verve

Neno Vasco, Emma Goldman, revolução mexicana de 1910...

do essencial à vida da população, ajudaram o capitalismo


a demonstrar sua força e união até a vitória, cedendo
alguma coisa aos revolucionários, sem mudar o siste-
ma da desigualdade política e social.
Na tese de 163 páginas de Pietro Ferrua, divulgada
por Edizioni La Ficcola, de 1976, com o título Gli anarchici
nella Revolucione Messicana, também se vislumbram de-
sencontros de idealistas: além de insuficientes, em
número, para um empreendimento de tamanha magni-
tude, faltara-lhes direcionamento coeso, recursos signifi-
cativos para mudar rapidamente o sistema e fazer “a
nova sociedade” funcionar no dia seguinte à revolução,
melhor e mais equânime do que o capitalismo autoritá-
rio, explorador, enganador, corruptor, terrorista!

Como conclusão

Qualquer que seja a feição que lhe queiram dar os


historiadores oficiais, e os que andam na contramão da
história — verdade investigada, conferida, provada cien-
tificamente —, não poderão escamotear que a Revolução
Mexicana teve uma origem de revolta contra os podero-
sos escravocratas, e rasgos de coletivismo, de idéias
emancipadoras de igualdade libertária, social, cultural
e humana.
Aos nomes de Praxedis Guerreiro, Ricardo Flores
Magón e dezenas de revolucionários pioneiros das idéi-
as libertárias na revolução de 1910, juntam-se a estadia
no México de Jean Moncaleano, foragido da Espanha por
se manifestar contra a execução de Francisco Ferrer,
via Estados Unidos e Cuba. Empenhado na publicação
de Pluma Roja, com Jacinto Huitron, Luiz Mendez, Ciro
Z. Esquiel, Pioquito Roldón e Eloy Armenta formou a
Sociedade Anarquista Luz, editou o jornal Luz, fundou a
Escola Moderna e ainda integrou os Batallones Rojos.

149
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2007

Na mesma linha de educação anarquista, o jornal


Aríete, em fevereiro de 1915, exaltava e apoiava a obra
da Escola Moderna fundada por Moncaleano e seus com-
panheiros.
Em uma seqüência de informações históricas, a
imprensa registrou a Escola da Razão e do Socialis-
mo, fundada em Chalco pelo ácrata grego refugiado no
México desde 1869 Rhodal Kanaty, lançando sementes
que germinaram e produziram camponeses rebeldes
conscientes.
O livro Las Moscas, de Mariano Aguela, de 1918, e Breve
Historia de México, de Vasconcelos, falam da Rebelião
Cristera, no governo de Plutarco Silva Calles, em 1924:
mesmo com a Liga Nacional de Defensa de la Libertad
Religiosa, os anarquistas continuavam sua propaganda
depois da revolução. O proletariado filiado à C.G.T., em
1929, celebrou seu 7º Congresso.
El Pueblo, cinco anos mais tarde, apareceu para com-
bater as práticas religiosas.
Finda a Revolução Espanhola e a Segunda Guerra
Mundial, os anarquistas do México, em 1945, come-
çaram refazendo suas organizações, e logo em 10 de
janeiro de 1946, realizam seu 1º Congresso.
Solidaridad, periódico anarquista publicado em Cuba,
publica “Debates do 3º Congresso dos anarquistas mexi-
canos”, subscrito por Agustín Souchy.
Novo congresso teve lugar de 20 a 22 de julho de 1950,
com a participação de espanhóis exilados.
Já havia reaparecido o Regeneración, como órgão da
Federação Anarquista Mexicana.
No ano de 1955, o Regeneración publica “A Verdadeira
História da Revolução Mexicana”, de autoria de Jacinto
Huitron.

150
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Neno Vasco, Emma Goldman, revolução mexicana de 1910...

Atas no arquivo do autor, 12 páginas e intróito da


Federação Anarquista Mexicana, registram: existência da
Federação Ibérica de Juventudes Libertárias — Seção de
México, “Decisões do 8º Congresso da FAM”, “Estudo do
Fenômeno Social de Cuba e suas Repercussões no Conti-
nente” e uma relação de militantes mexicanos e espa-
nhóis exilados — Emilia J. Munõz Srio, Alicia Peres
Salazar, Domingos Rojas, Jacinto Huitron, Julia Carrillo,
Enrigueta Caurin, as esposas de Rojas e de Alcón, Arjona
Castillo, Juan Ramón Alvarez Perez, Casto Moscú, delega-
do Cubano, Agustín Confalonieri, Marcos Alcón, Salvador
Vásguez, Rodolfo Aguirre Rofles, Florêncio Torres Muñoz,
Evaristo Contreras, Felipe Quintas, Fidel Arredondo Ramos,
Tomás Aguirre, Jesús Polencia, Rosalio Alcón, Omar
Degnes, Benjamin Cano Ruiz, Vicente Alba, E. Castrejón,
José Beas, Estevan Leal, Muñoz Cota, Áurea Torres
Cuadrado. Esses e outros anarquistas são responsáveis
pelos exemplos das experiências libertárias, e deram
respaldo à edificação da estátua de Ferrer.
O novo México que emergiu da Revolução de 1910 está
longe de atender aos anseios dos pioneiros libertários, mas
também não voltou ao passado retrógrado.
Os artífices dessa obra de transformação foram muitos
e ainda nos deixaram reivindicações em 14 itens:
1) A emancipação dos seres humanos ou liberação
como seres autônomos livres em suas decisões, lúcidas,
críticas e responsáveis;
2) A igualdade social econômica e política de todas as
pessoas, qualquer que seja sua idade, sexo ou cor, cuja
conseqüência é o fim das classes sociais, das divisões
entre os normais e os deficientes ou desajustados men-
tais;
3) A Liberdade de criação, única garantia real con-
tra a uniformização, tal como se vê na China maoísta

151
11
2007

ou em nossa sociedade de consumo de massa infanti-


lizada;
4) A Justiça, a Igualdade e a Liberdade como três
princípios incompatíveis com a existência de institui-
ções repressivas, tanto judiciais como militares;
5) A educação libertária e permanente, que permi-
tirá o desenvolvimento mais completo do indivíduo e
não a sua adaptação submissa ao sistema produtivo de
hoje. A condição é a igualdade, desde o nascimento dos
meios de desenvolvimento, quer dizer, da educação e
instrução em todos os campos da ciência, da indústria
e das artes;
6) A organização social sobre a base da livre federa-
ção dos produtores e consumidores, em autogestão. A
democracia direta, não eleitoral nem parlamentar, e
sim municipal e federalista. Nada de cheques em branco
— votos —, e sim a coordenação dos assuntos sociais
por gente delegada, eleita por mandatos muito precio-
sos e revogáveis a todo o momento;
7) Uma economia dirigida à satisfação das neces-
sidades e não em benefício próprio. É o consumo que
deve orientar a produção, e não o contrário;
8) A posse coletiva e individual de todos os meios de
produção e distribuição, de forma que exclua qualquer
possibilidade de viver explorando o trabalho dos demais;
9) Abolição do trabalho assalariado de todas as insti-
tuições estatais e outras que permitam manutenção
da exploração do ser humano pelos seus semelhantes.
O trabalho assalariado é um processo pelo qual quem
quer deter os meios de produção e consumo pretende
compensar aqueles que só podem alugar a força de
trabalho. Aboli-lo é romper essa relação entre explora-
dores e explorados;

152
verve

Neno Vasco, Emma Goldman, revolução mexicana de 1910...

10) A distribuição igualitária das tarefas de interesse


geral, a ausência de divisões entre trabalhadores ma-
nuais e intelectuais;
11) A ecologia não só para preservar nosso ar puro,
mas também para promover o desenvolvimento da nossa
Humanidade, baseada na igualdade de vida;
12) A livre união das pessoas e das populações deve
ser segundo suas conveniências e afinidades;
13) Liberdade plena de expressão;
14) A livre circulação de indivíduos, a abolição das
fronteiras, com a instauração de uma nova cidadania.
O hábito de instalar-se, de viver em uma comunidade,
permite a participação completa nas formas de decisão
concernentes ao conjunto da vida política, social, econô-
mica e cultural.
Eis como pensavam e como escreviam os idealistas
mexicanos às portas do século XXI.

Notas
1
Pseudônimo do Dr. Gregório Nanianzeno Moreira de Queirroz Vasconcelos,
nascido em Panafiel, Portugal, em 9 de maio de 1878, e falecido em São
Romão de Coronado, em setembro de 1920.
2
Por ser bastante extensa a carta de Emma Goldman, limito-me a inserir a
parte que se refere à Revolução Mexicana e à solidariedade. O original em
inglês encontra-se no meu arquivo.
3
Bruno Traven, romancista internacional, com alguns dos seus livros editados
mais de 40 vezes, era, na verdade, Herman Albert Otto Maksiminan Faige,
natural de Swibodzen, a 100 km da cidade polonesa de Poznam. Faleceu no
México, entre os índios, onde vivia.
4
Leon Trotsky perdeu o poder na União Soviética em disputa com Stalin.
Pensando que escapava da morte, fugiu para França. Ali conheceu o estudante
português de Artes Plásticas e anarquista, Cristiano de Carvalho, natural de
Matosinhos, Portugal. Durante a Segunda Guerra Mundial, Trotsky fugiu da
França e foi bater na porta do anarquista Cristiano de Carvalho, em Matosinhos,

153
11
2007

pedindo ajuda. O anarquista matosinense, embora vivendo sob a ditadura de


Salazar, conseguiu para Leon Trotsky uma passagem, e embarcou-o no porto de
Leixões, rumo ao México. Apesar da ajuda anarquista, o bolchevista Trotsky, foi
assassinado no México, pela KGB, por intermédio de um agente de Stalin, Ramón
Mercador Del Río, que após cumprir a pena de prisão no México, foi ajudar
Fidel Castro a prender e matar anticomunistas. Acabou deixando sua carcaça
em Cuba.
5
Os exilados da Revolução Espanhola, no México, nunca precisaram esconder seu
anarquismo. Publicaram na capital o jornal e a revista Tierra y Libertad, sustentaram
um excelente grupo editor de obras anarquistas, inclusive a Enciclopédia Anarquista,
em castelhano, em dois volumes, e realizaram congressos, debatendo abertamente
idéias ácratas.
6
Cf. Stanley R. Rosa. Francisco Madeiro – Apostle of Mexican Democracy, p. 42, e,
Charles Curtis Cumberland. Mexican Revolution – Genesis under Madeiro, p. 44.
7
Práxedes G. Guerreiro, poeta, filho de família rica mexicana, renunciou à sua
fortuna, doou suas terras aos camponeses e foi juntar-se aos humildes, no
começo da revolução de 1910, foi ferido em combate, e morreu em 30 de
dezembro de 1910.
8
Cf. Pietro Ferrua, in revista Reconstruir. Argentina, julho/agosto de 1971.
9
Victor García. México, Panamá y Océano Pacífico. Ciudad de México, Editores
Mexicanos Unidos, 1969, pp. 47-48.
10
Cf. Johnn Reed. México Rebelde. Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira,
1968.
11
Manifesto de Emiliano Zapata, agosto de 1914.
12
Cf. Pietro Ferrua, op. cit., 1971.

154
verve

Neno Vasco, Emma Goldman, revolução mexicana de 1910...

RESUMO

O artigo busca fazer uma leitura da Revolução Mexicana sob a


perspectiva libertária, dando especial atenção às vivências e expe-
riências de alguns anarquistas, bem como do papel da imprensa
libertária, em seus desdobramentos. Andando na contramão da
história, tenta mostrar o começo de revolta que foi engolido pela
Revolução.

Palavras-chave: Anarquismo, Revolução Mexicana, Luta

ABSTRACT

The article aims to present an outlook on the Mexican Revolution


under a libertarian perspective, with special attention to the rela-
tionships and the experiences of some anarchists, as well the
role of libertarian press and its developments. Going against
history’s flow, the author shows the beginning of a revolt that
was absorbed by the Revolution.

Keywords: anarchism, Mexican Revolution, struggle

Recebido para publicação em 17 de julho de 2006 e confirmado em


14 de agosto de 2006.

155
11
2007

sofisma é imprescindível à democracia


ou como mentir apenas dizendo
verdades ou ainda “sorria! você está
sendo filmado!”

rogério nascimento*

“Igualdade de todos perante a lei!” “Igualdade de


direitos e deveres!” “Democracia inaugura um estado
de sociedade com base na lei e no direito”. Estas máxi-
mas são profundamente capciosas. Da maneira como
os democratas as apresentam, enquanto enunciadoras
de igualdade entre as pessoas, são verdadeiros indica-
dores de como os exercícios da arte de sofismar lhes são
necessários. Necessários para distrair e entreter os
desavisados. Isto porque, focalizando o entendimento
destes pensamentos estritamente sobre aspectos pró-
prios aos móveis e efeitos da lei, há um outro dinamis-

* Rogério Nascimento é doutor em Ciências Sociais pela PUC-SP e professor


de Antropologia na Universidade Federal de Campina Grande. Publicou Floren-
tino de Carvalho, pensamento social de um anarquista, Rio de Janeiro: Achiamé,
2000. Participou do coletivo editorial do jornal Atentado com estudantes do
curso de Ciências Sociais da UFCG entre 2000 e 2001. É integrante do Nu-Sol.
verve, 11: 156-167, 2007

156
verve

Sofisma é imprescindível à democracia...

mo particular escamoteado e que se refere às questões


relativas ao tipo de sociabilidade estabelecida.
Portanto, a verdade da lei expressa nestes axiomas
anuncia uma igualdade relativa ao código, à norma, ao
mesmo tempo em que desconversa sobre a manuten-
ção das desigualdades, assimetrias e hierarquias na
dimensão das relações intersubjetivas. Refletir sobre
estas questões é importante para um entendimento
sobre certas especificidades dos processos a que mui-
tas vezes nos querem arrastar, procurando fascinar com
o brilho de um material que não passa de ouro de tolo.
As mudanças nas mentalidades provocadas pelo ilu-
minismo, renascimento, materialismo filosófico e re-
voluções burguesas tendiam à recusa do domínio e da
exploração como forma de pautar as relações sociais. A
penetração na sociedade dos ideais de liberdade, igual-
dade e fraternidade foram significativas para o fim da
sociedade medieval. O poderio eclesial legitimando a
realeza e a nobreza e dando maior solidez à dominação
e exploração, sofrera expressivos golpes no curso de al-
guns séculos. A inscrição do homem na ordem zoológica
como resultado dos estudos de naturalistas como Charles
Darwin em meados do século XIX, com sua queda do
pedestal teológico, foi importante no processo de questi-
onamento e abolição da ordem teocêntrica. Não mais
servidão nem prosternação. O ideal de liberdade e
igualdade havia contagiado segmentos das socieda-
des, fazendo a ruína das aristocracias européias.
Desde o século XIX, num contexto de divulgação e
estabelecimento dos ideais de liberdade e de igualdade,
as democracias ardilosamente reinstalam aristocracias
sob novas modalidades. Neste sentido, as máximas de-
mocráticas acima destacadas soam como as que encon-
tramos na contemporaneidade, estampadas em letras
garrafais, em quase todos os estabelecimentos comer-

157
11
2007

ciais, públicos, educacionais, anunciando “Sorria! Você


está sendo filmado!”. Apesar da solicitação explícita cla-
mando pelo nosso sorriso e de uma efetiva filmagem
em andamento, sabemos não se tratar de oração de
sorriso nem de posar como celebridade diante das câme-
ras.
Trata-se antes de um método de intenso controle e
suspeição. Procura-se naturalizar este método, apre-
sentado-o de maneira simpática ao pôr em evidência
detalhes de segundo plano implicados no procedimento.
Todos são suspeitos, portanto perigosos, até prova em
contrário. Procura-se mais sutilmente amenizar este
sentido de maior relevância para um conhecimento
acerca das formas societárias instaladas, e ao mesmo
tempo se busca envolver e empolgar o “cidadão” no contro-
le, domínio, exploração, repressão e vigilância de quase
todos mas, sobretudo, de si mesmo. O “cidadão” sob
vibração da democracia é aquele que ‘participa’ de ma-
neira entusiasmada, implementando e aprimorando, em
seu cotidiano mediato e imediato, dinamismos voltados
para o alargamento, aprofundamento e intensificação
de seu próprio assujeitamento
Convenhamos, as frases acima apresentadas são
algumas das mais significativas máximas da organiza-
ção política democrática. Liberais à esquerda, à direita,
ao centro e de todos os quadrantes anunciam estas
palavras em uníssono, como certezas inabaláveis, pos-
tulados sagrados e verdades inquestionáveis. Vangloriam-
se nestas qualidades o efeito de santificação da demo-
cracia. Nesta, proclamam não mais a soberania de um
ou a de alguns. O privilégio e o despotismo da Idade
Média teriam passado à história. Constituiriam tristes
recordações de tempos pretéritos, cujo fim teria aconte-
cido com o estabelecimento de um aclamado “regime de
soberania popular.”

158
verve

Sofisma é imprescindível à democracia...

Socialistas estatistas se colocam enquanto críticos


severos da democracia. Acreditam simplesmente que
assinalar o caráter classista burguês do Estado na de-
mocracia basta para superá-la. No fim das contas, labo-
ram no aprimoramento da máquina estatal, também
instalando uma nova aristocracia no lugar da antiga.
Basta olhar para a história recente dos denominados
“Estados Populares”, ou “socialistas”, para ver arruinar
toda argumentação favorável aos postulados do socialis-
mo estatista. Entretanto, para o momento não apresento
ponderações tensionando e problematizando o socialismo
marxista. Pretendo aqui assinalar algumas particulari-
dades da democracia representativa, esta que, depois
do fim da chamada “guerra fria”, é considerada, pela
esmagadora maioria dos estudiosos e pensadores con-
temporâneos, como a única forma societária possível.1
Dizem que na democracia a igualdade perante a
lei é a forma de fazer valer os ideais iluministas de
liberdade, igualdade e fraternidade. Estes princípios,
orientadores da revolução francesa e característicos da
sociedade moderna, seriam garantidos pela letra da lei,
pela magistratura e pela força de Estado. Sob estas
condições, os integrantes das sociedades modernas são
designados pela palavra “cidadão” em substituição ao
antigo termo “súdito” ou “vassalo”. No entendimento dos
defensores e adesistas das concepções democratas,
“cidadania” opõe-se ao estado de sociedade baseado na
separação entre deveres e direitos, como acontece nas
sociedades absolutistas.
Nestas, grosso modo, ao soberano apenas diz respei-
to a parte relativa a direitos e benesses, enquanto que
recairia ao súdito toda a parte relativa a deveres e obri-
gações. Por quê razão isto se daria deste modo? Sim-
plesmente porque a sumidade do “ser supremo” assim o
desejou. Pronto. Está tudo explicado. Um pretenso “di-

159
11
2007

reito divino” estaria na base de todo um panorama social,


assegurando a hierarquia e a exploração como dinamis-
mos absorventes na sociabilidade humana.
Contudo, é interessante questionar do que se trata
quando os democratas proclamam esta “igualdade de
todos perante a lei”. Será igualdade de condições? Efeti-
va igualdade entre as pessoas? O sofisma se instala por
entre afirmações aparentemente igualitárias. É assim
que na lei apenas existe uma declaração relativa à pró-
pria lei, anuviando uma desejada igualdade pessoaliza-
da. Não há absolutamente igualdade noutro plano. A vida
social deve ser mantida tendo como base o desempenho
pessoal atrelado às relativas funções. É desta maneira
que permanece existindo as desigualdades intelectu-
al, social, econômica e política. Ser igual perante a lei
significa apenas a continuidade das relações assimé-
tricas e hierarquizadas estendidas a todos e que a lei
tratará cada qual no seu devido lugar. Ao trabalhador
cabe, do mesmo modo que ao patronato e aos demais
segmentos da classe dirigente, ‘igualmente’ direitos e
deveres.
A fim de aclarar o sofisma democrático não será
enfadonho lembrar que a mesma disposição legalitária
se dava na antiga servidão como também no regime de
escravidão. Ao senhor feudal como ao senhor de escra-
vos a lei impunha obrigações, regulamentando o mane-
jo das suas ‘peças’. Desta maneira, o dono de escravo
tinha, por exemplo, o direito de lhe infligir castigos aos
seus escravos, mas não podia abusar deste direito e se
exceder na aplicação de penalidades.
Estes limites ao senhor de escravos, expostos no texto
da lei, regulamentavam a ação do escravocrata, consti-
tuindo nos direitos do escravo. Desta maneira haveria,
relativo ao escravo, a possibilidade deste reivindicar
direitos. Em outras palavras, seria um dever do soberano

160
verve

Sofisma é imprescindível à democracia...

procurar fazer valer seus próprios direitos, assim como


ao súdito caberia o direito de exigir a possibilidade de
executar, com condições minimamente garantidas, todos
os seus deveres. Mas este tipo de colocação esconde
ardis, desviando o foco da questão.
Estas observações servem apenas para tornar mani-
festa intencionalidades sofistas, fazendo emergir, por
entre as curvas escorregadias dos discursos, falas e
estudos enredados no princípio de autoridade, a funcio-
nalidade dos governos, sobretudo a democracia repre-
sentativa, como embustes, falácias. Ainda mais, tais
ponderações são válidas na medida em que apresentam
o soberano e o súdito não enquanto entidades autôno-
mas e auto-referentes, mas antes enredados num
complexo jogo de relações. Nem um é estritamente o
terrível algoz ativo, nem o outro é apenas uma vítima
impotente e passiva. Ambos encontram-se misturados,
contagiados, implicados e pressupostos no outro.
Assim, neste caso não há igualdade de um em rela-
ção ao outro. Desde que seja dentro da lei, pode haver
uma efetiva desigualdade entre as pessoas. E a finali-
dade da lei consiste em garantir a manutenção desta
disposição.2 Mas em compensação, a lei observa friamen-
te os que transgridem as normas instituídas para um
comportamento social adequado às conveniências esta-
belecidas. Este é o consolo oferecido aos descontentes e
insatisfeitos: revanche, desforra, ressentimento.
E o que é dito em democracia relativo às liberdades
do “cidadão” toma idêntico arranjo. Ao regulamentar a
liberdade de todos e de cada um, a lei finda por negar
seu autêntico exercício. Em alguns casos esta interven-
ção toma os contornos de um procedimento ubuesco.3 É
ridículo, é mesmo hilário como no Brasil é apresentado,
em todo ano eleitoral, um dos direitos ditos fundamentais
do ‘cidadão’: votar e ser votado. Aqui cabe um questiona-

161
11
2007

mento: como é possível um ‘direito’ ser ao mesmo tem-


po um ‘dever’? É um completo disparate!
Pensemos um pouco mais sobre esta questão. Todo
cidadão e cidadã a partir da maioridade ‘deve’ exercer o
‘direito’ de eleger seus representantes políticos. Caso
alguém transgrida esta obrigação, deixando de exercitar
este seu ‘direito’ — que é também um ‘dever’ cívico —
será multado ou poderá até mesmo ser preso. Na condi-
ção de presidiário, por não ter cumprido com este seu
‘dever’, poderá ter todos os seus ‘direitos’ políticos sus-
pensos. Perder os direitos políticos por não ter cumprido
com o dever de votar! Não é simplesmente patético? Se
eu tenho ‘direito’, apenas a mim caberia a decisão de
usufruir ou não das prerrogativas deste direito. O fato
de decidir não usar algum ‘direito’ que me cabe não de-
veria ser usado contra mim.
Este dado nos dá o que pensar sobre a democracia e
suas implicações para as nossas vidas. Quero deixar
claro que não sugiro o voto facultativo como forma de
solucionar estes impasses. Não se trata de procurar
reformar, melhorar, aprimorar a democracia. Mesmo
porque voto obrigatório ou facultativo não altera a manu-
tenção da aristocracia sob democracia e os procedimen-
tos ardilosos necessariamente postos em atividade a fim
de escamotear uma abordagem conseqüente deste seu
efeito sobre a sociabilidade humana na contemporanei-
dade.
E quanto à liberdade de pensamento, de ir e vir, de
expressão e de crença de que tanto se orgulham os de-
mocratas? Aqui novamente emerge a habitual arte do
sofisma. Pois em democracia tudo é condicionado e
universalizado. Admite-se a liberdade, mas sempre
desde que. Pode-se pensar o que quiser, mas este pensa-
mento tem que estar domesticado, reinstalando o mesmo.

162
verve

Sofisma é imprescindível à democracia...

Pode-se também expressar individualmente as idéi-


as, mas os meios de comunicação social necessários
são concessões estatais e o Estado os concede apenas
aos de sua confraria ou àqueles que, quando muito, que-
rem mudanças para que tudo permaneça parecido com
o idêntico. Pode-se ir para onde quiser, mas é preciso o
passaporte dos órgãos estatais, é preciso pedir visto de
permanência e possuir recursos financeiros suficien-
tes. Por fim, pode-se crer no que quiser, desde que não
viole a sacralidade da propriedade privada, da família
nuclear e do poder centralizado no Estado.
Além do mais o Estado procura impor ao ‘cidadão’ o
exercício repetido e despojado de genuflexões. Em cada
gabinete governamental o genuflexório, mesmo que não
esteja efetivamente materializado, está presente atra-
vés dos procedimentos. Para cada audiência, pelo menos
uma sessão de ‘beija-mão’, reverências e contrição. E
lá se porta o ‘cidadão’ na descompostura de uma ritua-
lística de submissão, lambendo botas, pedindo a benção
e reverenciando o anel sacerdotal. Se não seguir à
risca o protocolo, os procedimentos estabelecidos, não
conseguirá adentrar o santuário da política. Nenhuma
chance de ser escutado a fim de poder melhor emitir
desejos, este que é o ideal do governado. Afinal de contas,
para que serve o representante do povo, senão provi-
denciar a satisfação da chamada ‘vontade geral’?
Sob a democracia, o pensamento, o ir-e-vir, a expres-
são e as crenças têm que ser previstas em lei. As sen-
tenças sempre encaminham ora um não podes ora um
tu deves. Mesmo porque proibir e obrigar é a única lin-
guagem inteligível à razão de Estado, sob qualquer for-
ma que este tome. Inclusive na democrática. Para os
recalcitrantes, resistentes e irredutíveis destina-se o
braço armado, as prisões, as multas, as sanções. A pro-
pósito, ‘imposto’, ‘compulsório’, ‘cumpra-se’, ‘diretório’,

163
11
2007

‘comando’, ‘normas’, ‘código’, não são algumas das pala-


vras basilares do vocabulário estatal? Todos estes termos
denunciam seu caráter autoritário, violento, totalitário
e despótico, ainda que com gradações diferenciadas
entre suas diversas modalidades.
Apesar disto seus defensores pretendem apresentar
o Estado democrático como uma instituição estabelecida
em contraposição ao domínio medieval. Mas logo ele que
é antropocêntrico, eurocêntrico, falocêntrico, etnocên-
trico, belicoso e cristão! Na verdade o terror e o totalita-
rismo de Estado sucedeu, aprofundou e distendeu o da
Igreja na Idade Média. A inauguração da chamada mo-
dernidade não significou uma ruptura com o poderio
eclesial medieval. A história recente do conturbado
século XX está à mão para comprovar esta afirmação.4
O Estado moderno preservou intacto do medievo as
inclinações catequistas, messiânicas e salvacionistas
como indício de suas proveniências. O panorama interna-
cional contemporâneo nos oferece elementos suficientes
a fim de melhor verificarmos estas suas qualidades. O
governo dos EUA, em constantes e recorrentes rompantes
de puritanismo, justifica suas intervenções violentas em
diversos países do mundo tendo como argumento princi-
pal a busca por uma redenção do conjunto da população
local. As medidas são verossimilhantes aos procedi-
mentos das antigas cruzadas e inquisição. Entretanto,
cada qual com seu fundamentalismo, fanatismo, obscu-
rantismo e obsessão, ainda que atribuindo a um ‘outro’
o lócus de excentricidade e, no limite, da inumanidade.
Se ficarmos enredados nos referenciais estabeleci-
dos pelas sociedades autodenominadas modernas não
conseguiremos discernir os contornos de seus próprios
extremismos.5 Há nestas, na insistente imposição da
democracia representativa em todo o mundo, um funda-
mentalismo estatal pulsando; um fanatismo pelo progres-

164
verve

Sofisma é imprescindível à democracia...

so na mania pela intensificação da complexidade tec-


nológica e difusão do industrialismo por todo o plane-
ta; obscurantismo cientificista ao dar primazia a uma
racionalidade empiricista e cartesiana dentre as diver-
sas formas de mentalidades expressas em diferentes
culturas; e, por fim, obsessões por normalidade abriga-
das em concepções universalistas e centralistas.
Por fim, “Sorria! Você está sendo filmado!” pode mui-
to bem ser compreendido enquanto expressão síntese
da democracia. É verdade o pedido do sorriso dirigido a
todos enquanto buscas em nos tornar disponíveis, con-
quistando nosso consentimento em relação a processos
de vigilância sobre todos e sobre cada um. É verdadeira
também a existência de câmeras escondidas mesmo
inexistentes. Mas sobre o que está acontecendo nestes
contextos estas verdades mentem, sendo necessário
procurar noutras relações o objeto desta mentira.
Assim, da mesma forma como todos entendem o
enunciado “Sorria! Você está sendo filmado!” para além
do expressamente anunciado, há que se procurar am-
pliar as relações, pressupostos e desdobramentos dos
postulados democráticos a fim de não ser capturado nas
armadilhas de seus sofismas. Ou então lembremos do
constante sorriso de “V”6 de Alan Moore, e de como seus
versos, capa e performances abrigavam poderosas ar-
mas.

Notas
1
Diversos autores elaboraram uma análise anarquista do socialismo marxista.
Ver, entre outros, Rudolf Rocker. As idéias absolutistas no Socialismo. São Paulo,
Sargitário, 1946. Tradução de Nicolau Bruno. Mikhail Bakunin. Escrito contra
Marx. São Paulo, Imaginário, Nu-Sol, SOMA, 2001. Tradução de Plínio Au-
gusto Coêlho. Maurice Jopieux (et. alli). Os anarquistas julgam Marx. São Paulo,
Imaginário, 2001. Tradução de Plínio Augusto Coêlho. Varlan Tcherkesoff.
Erros e Contradições do Marxismo. Rio de Janeiro: Mundo Livre, 1964.

165
11
2007

2
Clastres apresenta a lei entre as sociedades indígenas como forma de garantir
a igualdade entre os seus integrantes. Contrariamente, nas sociedades modernas
a lei garante a desigualdade entre as pessoas. Ver Pierre Clastres. “Da tortura
nas Sociedades Primitivas” in A sociedade contra o Estado. Rio de Janeiro,
Francisco Alves, 1978, pp. 123-131. Tradução de Theo Santiago.
3
Michel Foucault. Os anormais. São Paulo, Martins Fontes, 2001. Tradução de
Eduardo Brandão.
4
Muito interessante neste sentido é o livro de Gaston Leval analisando a
presença do Estado ao longo da história. Ver Gaston Leval. El Estado en la
Historia. Madrid, Espanha, CNT-AIT, Cali, Colombia: Asociación Artistica “La
Cuchilla”, 1978.
5
Ver Fredric W. Turner. O Espírito Ocidental contra a Natureza – mitos, história
e as terras selvagens. Rio de Janeiro, Campus, 1990. Tradução de José Augusto
Drummond.
6
Ver Alan Moore e David Lloyd. V de Vingança. São Paulo, Via Lettera, 2002.
2 v.

166
verve

Sofisma é imprescindível à democracia...

RESUMO

O sofisma é um expediente amplamente utilizado pelos defensores


da democracia. A fim de dissimular as relações assimétricas e
hierarquizadas estabelecidas sob o estado de direito, democratas
de todas vertentes recorrem aos recursos da arte de sofismar.
Liberdade e igualdade são negadas não de uma forma direta, mas
através de processos instauradores de sociabilidades verticaliza-
das. Neste sentido, há continuidade, sob democracia, com a soci-
edade aristocrática da Idade Média.

Palavras Chave: Sofisma; sociedade democrática; liberdade.

ABSTRACT

The sophism is a recourse widely used by the defenders of de-


mocracy. In order to dissimulate the asymmetric and hierarchical
relations established under the rule of law, democrats of all kind
utilize the art of sophism. Liberty and equality are not straightly
denied, but through processes that establish vertically kinds of
sociability. In that sense, there is a continuation, under democra-
cy, of the medieval aristocratic society.

Keywords: sophism, democratic society, liberty.

Indicado para a publicação em 02 de outubro de 2006 e confirma-


do em 05 de março de 2007.

167
11
2007

por uma militância divertida: o inimigo


do rei, um jornal anarquista1

gustavo simões*

O jornal O Inimigo do Rei emerge em 1977 realizado por


estudantes da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Não
tardou para que já na primeira edição impressa, em folha
sulfite tamanho A4, chamasse a atenção de coletivos,
grupos e associações libertárias, principalmente de São
Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Tamanha foi
sua presença que, no carnaval do ano seguinte, passou a
ser distribuído para essas regiões, provocando, promoven-
do e discutindo experimentações entre jovens do litoral ao
sertão do país.
O Inimigo do Rei foi resultado da prática política de estu-
dantes que se articularam em torno do grupo Fantasma da
Liberdade, como o filme de Luis Buñuel. Segundo Ricardo
Líper, integrante do núcleo inicial do jornal, o grupo “(...)

* Estudante de Ciências Sociais na PUC/SP e integrante do Nu-Sol.

verve, 11: 168-181, 2007


168
verve

Por uma militância divertida. O inimigo do Rei.

surgiu como uma chapa para concorrer ao Diretório de


Filosofia. Fizemos um pequeno jornal da nossa chapa
com a imagem de uma bunda com uma tocha (...). E o
nome O Fantasma da Liberdade, em plena ditadura, caiu
muito bem, porque a liberdade no Brasil nessa época
era um fantasma.”2 É com a formação desse grupo que
os jovens baianos entram em contato com militantes
anarquistas de outros estados e, em 1977, inventam O
Inimigo do Rei, que mesmo com circulação irregular,
existiu por onze anos.
Duas décadas após seu término, aos poucos, come-
çaram a aparecer estudos e reflexões sistemáticas sobre
o jornal. Autor da dissertação de mestrado Imprensa alter-
nativa e anarquismo: O Inimigo do Rei, Waldir Paganotto3
atribui o surgimento do jornal a uma dissidência do
movimento estudantil, controlado pela esquerda de tra-
dição marxista, após o renascimento ainda ilegal da UNE,
em 1974. Segundo Nildo Avelino,4 O Inimigo do Rei é
reflexo da irrupção de liberdades sufocadas durante toda
a década de 1970, e que reapareceram ruidosas por meio
de grupos antipsiquiátricos, ecologistas, feministas, de
liberação sexual, anarquistas... Para José Carlos Orsi
Morel,5 ex-secretário e integrante do histórico Centro
de Cultura Social de São Paulo, o jornal foi um marco
para os anarquismos no Brasil, pois trouxe a vitalidade
dos jovens para a prática libertária.

Pulando o muro da universidade para entrar no sindi-


cato

A primeira edição do jornal, lançada em outubro de


1977, ainda em papel A4 e com somente dez páginas,
emerge no embate de estudantes da Universidade Fede-
ral da Bahia com o autoritarismo de esquerda dos inte-
lectuais, professores e alunos. A maior parte dos artigos

169
11
2007

reflete a tensão dentro da universidade, entre os própri-


os estudantes, e a edição conclui com a proposta de uma
Federação Libertária Estudantil.
No intervalo de sete meses aparece o segundo número
do Inimigo do Rei. Em formato tablóide, o jornal ultrapassa
os muros da universidade e passa a tratar de temas mais
variados: a luta das mulheres por liberação, o anarquismo
a partir da frase de Louise Michel, ao dizer que “(...) não
podemos matar as idéias a tiros de canhão nem tampouco
algemá-las”,6 a resenha do livro de Roberto Freire Viva eu
viva tu, viva o rabo do tatu, como também de matéria espe-
cial sobre maio de 1968, na qual Ricardo Líper afirma que
esse acontecimento “(...) o primeiro grande sintoma públi-
co de massa de que o pensamento socialista começava a
retomar seu caminho original. As bandeiras negras do
anarquismo tremularam na França e o sentimento an-
tiautoritário do socialismo espalhou-se. Foram criticados
abertamente os PCs [...], o engano já foi percebido... O ca-
minho já está aberto. Bakunin deu o primeiro grito de
perigo. Nem todos ainda perceberam isto”.7
Mas é somente a partir da terceira edição, em setem-
bro de 1978, que O Inimigo do Rei apresentou-se de fato
para os leitores. Diferente das edições anteriores, o nú-
mero três do periódico, contendo vinte páginas, traz no box
do expediente os nomes das pessoas que o produziram em
ordem de sorteio, seguido das autorias dos artigos publica-
dos. São inauguradas sessões que farão parte da trajetó-
ria do jornal como a contra-capa com ilustrações Bobo da
Corte, as sessões Cartas e Biblioteca, além de um espaço
dedicado especialmente à problematização e divulgação
de experiências autogestionárias.
No início de 1979, O Inimigo do Rei assume o sindi-
calismo e o anarquismo como práticas de luta. A capa ru-
bro-negra da quarta edição anuncia a luta dos jornalistas
baianos por organização, divulga entrevista com o dirigente

170
verve

Por uma militância divertida. O inimigo do Rei.

anarco-sindicalista Juan Gómez Casas e matérias sobre


o grupo Mujeres Libres,8 fundado por mulheres anarquis-
tas na Revolução Espanhola. Mas é no artigo não assinado
“Sindicalismo e Terrorismo individual”, no qual o des-
conhecido autor critica os anarquistas franceses Émile
Henry e Ravachol — que fizeram parte dos desdobramen-
tos da Comuna de Paris e cujas ações ficaram conhecidas
como terrorismo anarquista associado à propaganda pela
ação9 —, que fica explícita a tendência do Inimigo do Rei.
“Ravachol, Émile Henry e muitas outras figuras dos fins
do século XIX apenas serviram de reflexo dos profundos
sentimentos de inquietação e revolta com a sociedade in-
dustrial (...). Suas ações não revelaram atos revolucioná-
rios, mas iconoclastia (...). Destruir a cabeça econômica
não é deitar por terra cabeças políticas — já disseram.”10

Eu também quero sair

Com regularidade bimestral a partir da quarta edição,


o periódico divulga uma nota que será uma de suas mar-
cas, explicitando a única exigência para publicação de
artigos: que os jornalistas também fossem os jornaleiros.
Propunha abolir a distinção entre trabalho intelectual e
braçal e estimular a autogestão. A periodicidade resultan-
te do fortalecimento do Inimigo do Rei como jornal auto-
gestionário não foi atingida com tranqüilidade. Entre as
dificuldades enfrentadas em plena ditadura, Antônio
Carlos Pacheco, um dos editores, recorda o preço pago por
algumas matérias. “Depois que colocamos o cardeal D.
Avellar Brandão se masturbando com uma cruz, as grá-
ficas não quiseram mais imprimir o jornal aqui em
Salvador. Pra não dizer que estavam nos censurando,
cobravam muito mais do que a gente podia pagar (...). Aca-
bamos imprimindo o jornal na gráfica da Gazeta Mercantil
no Rio de Janeiro. Mandávamos os originais por ônibus
para o Ideal Peres levá-los até a gráfica.”11

171
11
2007

A periodicidade do Inimigo do Rei também permitiu à


equipe de jornalistas e jornaleiros tratarem de temas que
não diziam respeito somente à militância política nos sin-
dicatos, como, por exemplo, o movimento iniciado na sex-
ta edição sobre a anistia. Criticando a divisão feita por
outros jornais e militantes marxistas entre presos políti-
cos e comuns, O Inimigo do Rei, segundo Waldir Paganotto,
adotou postura heterodoxa, pois pediu a anistia ampla,
incluindo no processo os presos comuns. A sétima edição
do jornal foi lançada com foto na capa de um homem com
os braços para fora das grades, com destaque para a fra-
se “Eu também quero sair” e, na décima edição, Antônio
Carlos Pacheco questiona que a imprensa de esquerda
fizera o maior alarido pelo último preso político no Ceará e
calara diante das cadeias superlotadas do Brasil.
Para Waldir Paganotto fica evidente nas matérias do
Inimigo do Rei sobre a anistia que o jornal adota posição
diferenciada de outros veículos de comunicação inde-
pendentes ou alternativos. Entretanto, os artigos visam
somente a dissolução da divisão arbitrária entre presos
políticos e presos comuns. Após o esfriamento das discus-
sões, o periódico deixará de problematizar a prisão, mos-
trando que seu alvo era insistir no fim da distinção
entre presos comuns e políticos, que alimentava a es-
querda institucional. Como anarquistas, não faziam a
distinção: a prisão é para quem ameaça a propriedade com
ações e idéias.

O jornal beleza pura, o fino que satisfaz

Sem abandonar o anarco-sindicalismo, o periódico, para


além da anistia, avança nas discussões sobre a liberação
do sexo. Completando dois anos de existência em feverei-
ro de 1980, propõe na capa “Prática sexual ampla, geral e
irrestrita”, esculhambando explicitamente a política de
abertura proposta pelo governo Ernesto Geisel. O deboche

172
verve

Por uma militância divertida. O inimigo do Rei.

incomodou os próprios libertários, provocando uma res-


posta de Edgar Rodrigues, colaborador assíduo do jornal,
que, com o pseudônimo de F. Silva, afirma que “Homos-
sexualismo sim, mas frente à propaganda do anarquismo
não!”12
Mesmo contando com boa parte do espaço no jornal, a
busca por experiências de liberdade com textos mais di-
vertidos distanciaram os anarquistas interessados nas
lutas sindicais. Em seu número treze o jornal publica
matéria especial sobre a maconha, com o título “Você pode
fumar um baseado (desde que não seja do PDS ou
Trotskista)”. O despojamento das matérias dessa edição
passa a confrontar o autoritarismo da esquerda, e não
somente aquele relativo às formas e instituições autori-
tárias implementadas nos países socialistas: a rigidez da
conduta do “militante esquerdista” passou também a ser
problematizada. Os temas e a maneira como eram abor-
dados acabavam gerando discussões entre os próprios
coletivos que editavam o Inimigo do Rei. “A gente discutia
pelo correio todos os temas previamente. Quando o pes-
soal viu os temas e a capa com ‘Prática sexual ampla,
geral e irrestrita’ encomendaram pouquíssimos exempla-
res. A do baseado piorou. Ninguém naquela época, nenhum
dos movimentos sociais, falava em liberação da maconha
(...). Alguns anarquistas achavam que essas discussões
não cabiam naquele momento. Diziam que É. Armand já
tinha falado sobre isso há mais de cem anos mas que
tinha uma ditadura que oprimia a classe operária. Nós
respondemos que era uma questão importante e que
continuaríamos a tocar no assunto (...)”, comenta Antônio
Carlos Pacheco.13
No número seguinte, sem a periodicidade habitual e
com apenas doze páginas, o jornal demonstra sinais de
esgotamento, mas sem perder o humor. “De lá pra cá o
papa foi baleado e, para a alegria dos fiéis — boa parte

173
11
2007

morrendo de fome — ele está fora de risco. Novamente


a história comprova a veracidade da sabedoria popular;
Lennon é baleado e morre; Reagan é baleado e vive; por
fim o velho João Paulo é baleado e sobrevive... vaso feio
não quebra (...). Sem a ânsia guerreira da esquerda au-
toritária, temos o mais magro mas cada vez mais bonito.
O jornal beleza pura...O fino que satisfaz!”14
É a partir do décimo quinto número que O Inimigo
do Rei demonstra perda de fôlego. A edição conta com
frases bem humoradas sobre as eleições como “parla-
mentar é prálamentar” e matéria sobre o anarquista
Roberto das Neves. Mas na contracapa, caracterizada
até então por charges e fotos, é publicada uma longa
carta que alude às dificuldades enfrentadas pelo peri-
ódico anarquista, vinculando-as à prática libertária.
O Inimigo do Rei não era o único periódico a enfrentar
esse processo.

As últimas edições

Desde o início da década de 1980 entrou em declínio


a luta pela potencialização de liberdades que eclodiu em
maio de 1968 e marcou os anos 1970. Cada vez mais
estimuladas pelo ideal democrático, as minorias que
antes surpreendiam, deslocaram suas práticas de luta
para a reivindicação de direitos, pretendendo compor a
nova maioria. Como afirma Edson Passetti, “(...) dian-
te da inventividade não tardou o refluxo conservador.
A medida de todas as coisas passou a ser democracia
(...) não mais rebeldias, mas integrações democráti-
cas via ampliação de pletora de direitos.” 15
Nos números seguintes, com matérias mais cur-
tas e informativas, desenhos e estética zine adotada
dos punks que passaram a participar de sua produ-
ção, O Inimigo do Rei passou a ser editado também pelo

174
verve

Por uma militância divertida. O inimigo do Rei.

coletivo de Porto Alegre. Entre as principais matérias


destacam-se a repercussão do encontro “Inimigos do
Rei”, realizado em Florianópolis, e de textos problema-
tizando a obrigatoriedade do voto e a posição anarquis-
ta pela abstenção, lançando mão do voto nulo apenas
como estratégia.16 Em 1984, o periódico interrompe
suas atividades por três anos, alegando dificuldades
econômicas de manter um jornal autogestionário no
Brasil.
Após esse período de ruptura, ocorreram desloca-
mentos importantes para o anarquismo no país, sen-
do o principal deles a reabertura do Centro de Cultura
Social,17 em 17 de abril de 1985, no bairro do Brás, em
São Paulo. O lançamento das últimas edições do jor-
nal, é retomado em 1987, com matéria especial sobre
o lançamento do livro de Roberto Freire, Sem Tesão
Não Há Solução, ocorreu, segundo Paganotto, devido
ao esforço e encontro dos punks com os anarquistas
do Centro de Cultura Social de São Paulo.
A saída apontada para os trabalhadores nessas úl-
timas cinco edições enfatiza a necessidade de uma
revolução: “(...) o anarquismo nada mais é do que a
forma até agora mais acabada de consciência de como
se fazer uma revolução que seja socialista de fato
(...)”,18 e a militância sindical volta a obter preponde-
rância, destacando-se alguns artigos como o assinado
por Baqueiro, que esboçam a tentativa de reativação
da Confederação Operária Brasileira, COB: “O operário
está verificando a necessidade de agir diretamente, bus-
cando as saídas, como procuravam os trabalhadores bra-
sileiros das duas primeiras décadas do século, através
de federações que agiam sem pactos com partidos ou
com governo, numa luta que convergia nacionalmen-
te para a Confederação Operária.”19

175
11
2007

Após o lançamento de quatro edições em 1987, em


março do ano seguinte é publicado o último número
do Inimigo do Rei. O ocaso do jornal fica marcado pelas
matérias punks, sobre o pluralismo sindical e críti-
cas à postura centralizadora e autoritária da Central
Única dos Trabalhadores, CUT.

Por uma militância divertida

Em sua dissertação de mestrado, Waldir Paganotto


atribui importância maior a fatores exteriores ao jor-
nal para explicar sua irregularidade nas últimas edi-
ções e seu encerramento, em 1988. Afirma que desde
sua emergência, a imprensa alternativa encontrava-
se em decadência, reagindo ao incêndio de bancas de
revista por parte de grupos de direita, e perdendo sua
função principal de contestação ao regime militar com
a chegada da “abertura política”. O autor soma a isso
à desmobilização do movimento estudantil, no come-
ço da década de 1980 — marcada pelo aparecimento
dos yuppies e desaparecimento dos hippies.
Para Leonardo Carvalho Pinto,20 em recente artigo
em História do Anarquismo no Brasil, baseado em seu
trabalho de conclusão de curso na Universidade da
Bahia, O Inimigo do Rei instaura uma cisão entre os
anarquistas “históricos” que, segundo ele, eram de-
fensores de um discurso e abordagens tradicionais,
mais ou menos nos moldes do anarquismo que vigo-
rou no movimento operário até o advento do Estado
Novo, e os chamados “modernos”. Para ele, a principal
causa dessa polarização, ocorreu devido à inovação da
linguagem utilizada pelo coletivo editorial e à intro-
dução de novos temas incorporados da contracultura.
Todavia, após realizado o mapeamento do jornal que
levei adiante, tal conclusão pode ter sido apressada,

176
verve

Por uma militância divertida. O inimigo do Rei.

pois o anarquismo e a perspectiva de uma revolução


libertária predominou na maior parte dos artigos pu-
blicados. A crítica ao Estado e à soberania, nos textos que
abordavam tanto a questão sindical quanto a liberação
do sexo, atacavam suas falsidades, imoralidades ou re-
pressões. Os embates travados pelos integrantes do
Inimigo do Rei não diferem tanto dos realizados pelos
libertários no século XIX; eles somente atualizaram
a crítica aos costumes, incorporando novas maneiras
de ver as práticas na atualidade, como o sexo e as
drogas.
Saul Newman problematiza esse “pensamento de
Estado” que também foi utilizado pelos anarquistas no
combate à autoridade centralizada e à soberania. “Deve-
mos aprender a pensar além do paradigma do Estado. A
ação revolucionária falhou no passado, pois se man-
teve aprisionada por esse paradigma. Mesmo as filo-
sofias revolucionárias como o anarquismo, que têm
como objetivo a destruição do poder de Estado, manti-
veram-se aprisionadas a concepções essencialistas e
maniqueístas (...). Talvez a própria idéia de revolução
deva ser abandonada. Talvez a política deva ser a de
escapar de estruturas e identidades essencialistas.”21
Albert Camus, em resposta aos existencialistas que
colocavam a revolução como o inevitável progresso da
revolta, afirmou que “(...) a contradição, na realidade,
é mais restrita. O revolucionário é ao mesmo tempo
revoltado ou então não é mais revolucionário, mas sim
policial e funcionário que se volta contra a revolta.
Mas, se ele é revoltado, acaba por insurgir contra a
revolução.”22
É possível que o afastamento de alguns anarquis-
tas na produção libertária tenha ocorrido mais pelo
fato de O Inimigo do Rei trazer à tona temas que até
hoje são tabus para muitos militantes, como a libera-

177
11
2007

ção das drogas e a liberação do sexo, do que a emer-


gência de um anarquismo “moderno”. A maior inova-
ção do Inimigo do Rei — e talvez isto tenha contribuído
para o distanciamento de alguns libertários — foi a
incorporação de um outro jeito de lutar, ao estilo que
Michel Foucault propõe em “Uma introdução à vida
não fascista”: “Não imaginem que seja preciso ser triste
para ser militante, mesmo se o que se combate é abo-
minável. É a ligação do desejo com a realidade (e não
sua fuga nas formas de representação) que possui uma
forma revolucionária”.23
O jornal resgata velhas práticas libertárias e incorpora
novos temas que emergiram a partir das contestações
às autoridades na década de 1960 e 1970. Provoca os
anarquistas por sua “(...) coragem e destemor e não
pelos meros indicadores etários de seus criadores e
leitores.”24 Como as experimentações de liberdade, O
Inimigo do Rei não aspirou à eternidade. Há quem procure
ainda hoje as causas e indícios de seu encerramento,
em 1988. Para Ricardo Líper, um dos jornalistas e jor-
naleiros do Inimigo do Rei, “(...) o que ocorreu foi falta de
tesão de fazer o jornal. Não foi falta de tesão com anarquis-
mo, mas falta de tesão em fazer o jornal. Eu gostaria de
dizer que a Santa Teresinha apareceu e converteu a
gente. Isso levaria os intelectuais à glória. Mas não
foi nenhum motivo secreto o que aconteceu. Faltou
tesão”.25

Notas
1
Este artigo apresenta os resultados da pesquisa de iniciação científica “Inimigo
do Rei: Problematizações sobre o jornal O Inimigo do Rei e experimentações
libertárias”; apresentada em outubro de 2006, ao Departamento de Política da
Faculdade de Ciências Sociais da PUC-SP e à Comissão de Pesquisa e Extensão
da PUC-SP, financiada pelo CNPq e premiada com menção honrosa de inicia-
ção científica do Departamento de Política em 2006.

178
verve

Por uma militância divertida. O inimigo do Rei.


2
Entrevista concedida por Ricardo Líper, no dia 6 de outubro de 2006, durante o
Seminário Nacional de Pedagogia Libertária, realizado no FACED-UFBA, em Salva-
dor.
3
Waldir Paganotto. Imprensa alternativa e Anarquismo: O Inimigo do Rei. Dissertação
de Mestrado em História. Assis, Unesp, 1997.
4
Nildo Avelino. Anarquistas: ética e antologia de existências. Rio de Janeiro, Achiamé,
2004.
5
José Carlos Orsi Morel. “Centro de Cultura Social, uma prática anarquista”, in
Verve. São Paulo, Nu-Sol, maio/2005, vol.7, pp.209-23.
6
O Inimigo do Rei, 2. maio/1978.
7
Idem.
8
A este respeito ver Margareth Rago.“Mujeres libres: anarco-feminismo e subjetivi-
dade na revolução espanhola”, in Verve. São Paulo, Nu-Sol, maio/2005, vol.7,
pp.132-51.
9
Sobre a propaganda pela ação, ver em especial Andre Degenszajn. Terrorismos e
Terroristas. Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais. São Paulo, PUC/SP,
2006.
10
O Inimigo do Rei, 4. fevereiro-março/1979.
11
Entrevista concedida por Antônio Carlos Pacheco, em 6 de outubro de
2006, durante a realização do Seminário Nacional de Pedagogia Libertária reali-
zado na FACED-UFBA.
12
O Inimigo do Rei, 11. maio-agosto/1980. Edgar Rodrigues assume a autoria
do artigo no seu livro O Ressurgir do Anarquismo (1962-1980), no qual conclui:
“O registro de livros anarquistas e fins, salvo um ou outro trabalho mais
doutrinário, foi um dos pontos positivos do Inimigo do Rei. Não obstante a
feição libertária, os seus redatores ocuparam espaços preciosos com o homos-
sexualismo e alguns dos seus colaboradores elegeram-no como bandeira de luta
‘enfeiando’ os propósitos dos anarquistas.” Edgard Rodrigues. O ressurgir do
Anarquismo (1962-1980). Rio de Janeiro, Achiamé, 1993, p. 183.
13
Entrevista concedida por Antônio Carlos Pacheco, citada na nota 11.
14
O Inimigo do Rei, 14.
15
Edson Passetti. “De conversa em conversa: Parrésia anarquista”, in Revista letra-
livre. Rio de Janeiro, Achiamé, 2006, vol.11, p.15.
16
Um artigo sobre as eleições e a abstenção dos anarquistas escrito por Aurélio
Vellame e Celene, integrantes do coletivo do Inimigo do Rei de Salvador, está na
internet, disponibilizado no site do Nu-Sol, www.nu-sol.org

179
11
2007

17
Ver Nildo Avelino, op. cit., 2004. O livro mostra com minúcia a reabertura do
Centro de Cultura Social em 1985, articulando-a com a emergência do Inimigo do
Rei em outubro de 1977.
18
O Inimigo do Rei, 1. maio/1987.
19
Idem.
20
Leonardo Carvalho Pinto. “Inimigo do Rei: um jornal anarquista”, in Rafael
Borges Deminicis & Daniel Aarão Reis (orgs). História do Anarquismo no Brasil. Rio
de Janeiro, MauadX, 2006, pp.133-145.
21
Saul Newman. “Guerra ao Estado: o anarquismo de Stirner e Deleuze”, in Verve.
São Paulo, Nu-Sol, outubro./2005, vol.8, pp.13-40.
22
Albert Camus. O Homem Revoltado.Rio de Janeiro, Record, 2003, p. 285. Tradução
de Valerie Rumjanek.
23
Michel Foucault. “Uma introdução à vida não fascista”, in Cadernos da Subjetivi-
dade. São Paulo, Núcleo de Estudos e Pesquisas do Programa de Estudos Pós
Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP, vol1, n1, 1993, p. 200. Tradução
de Fernando José Fagundes Ribeiro.
24
O Inimigo do Rei, 3. setembro-outubro/1978.
25
Entrevista concedida por Ricardo Líper, op. cit.

180
verve

Por uma militância divertida. O inimigo do Rei.

RESUMO

Emerge em 1977, no Brasil, mais precisamente na Universidade


Federal da Bahia, o jornal libertário O Inimigo do Rei. Menos de
um ano após seu lançamento, ele alcança outros estados do país,
tendo como característica marcante a abordagem de temas polêmi-
cos e liberadores como o aborto, a homossexualidade, feminismo,
drogas, liberação do sexo, ecologia e o anarquismo. Esta pesqui-
sa procurou mapear e problematizar a prática libertária no Brasil
trazida para o interior deste jornal durante o tempo de sua circula-
ção, entre 1977 e 1988.

Palavras-chave: Inimigo do Rei, liberação, anarquismos.

ABSTRACT

In 1977, emerged in the Federal University of Bahia, the liber-


tarian newspaper Inimigo do Rei (Enemy of the King). Before
accomplished his first anniversary, the newspaper had been dis-
tributed in all Brazilian states. It had as its distinguished cha-
racteristic the presentation of polemic and liberators issues as
abortion, homosexuality, feminism, drugs, sex liberation, ecology
and anarchism. This research aimed to identify and to question
the libertarian practices in Brazil that had a way to be publicized
by this newspaper during the period of its existence (1977-1988).

Keywords: Inimigo do Rei, liberation, anarchisms.

Recebido para publicação em 26 de fevereiro de 2006 e confirma-


do em 11 de fevereiro de 2007.

181
11
2007

a peste, abril de 1984

a peste das corporações industriais aflige o teatro,


assim como aflige todas as outras atividades humanas.

é a medida do lucro que se crava na espinha dorsal, a


adormece e a esvazia.

tudo o que sobra é o cadáver frívolo de madame, revi-


vido pelo consumo popular, uma imagem que se conver-
te em nada,

e as pessoas gastam o dinheiro ganho arduamente


para conservar uma imagem que apodrece a mente.

182
verve

Nas bordas do mar: esboço de uma aprendizagem...

nas bordas do mar: esboço de uma


aprendizagem experimental
[como desfazer uma educação
ambiental]

ana godoy*

“Não se pode sair da árvore com


meios de árvore.”
Francis Ponge

O propósito deste artigo é menos debater as questões


relativas à educação e ao meio ambiente do que propor
ao leitor uma leitura experimental, leitura que funcio-
naria como meio de experimentação, na qual o leitor se
aventuraria aquém ou além dos disciplinamentos im-
postos pela Razão e pelo conhecimento.
Uma tal leitura avizinha-se do movimento da crian-
ça, que, sempre a fazer de cada coisa meios a serem
explorados e materiais de renovadas explorações, des-
locando-se e deslocando-os em incessantes idas e vin-

* Doutora em Ciências Sociais pelo PEPG da PUC-SP e pós-doutoranda no


Dept. de Filosofia e História da Educação da UNICAMP.

verve, 11: 183-201, 2007

183
11
2007

das, subverte as funções que a circunscrevem e às


quais ela serve, conferindo importância às coisas pelo
uso que delas faz. Assim é que os deslocamentos que
a criança inventa são simultâneos às intensidades
que experimenta.
Propor ao leitor este jogo é colocar sob suspeita a
imbricação entre educação e meio ambiente, na qual
prevalecem discursos e práticas voltados aos objeti-
vos da conservação, explicitados não só por meio da
criação de áreas de conservação e da defesa de ecos-
sistemas e espécies ameaçadas, mas também por
meio de um pensamento da conservação pautado em
práticas consideradas saudáveis e comportamentos
considerados adequados à participação ativa e respon-
sável de cada indivíduo e da coletividade na preserva-
ção do equilíbrio ambiental.
No entanto, colocar sob suspeita não implica nega-
ção, mas destituição do valor de verdade suposto em
tais concepções, pois o problema para o qual aponto não
é conservar ou deixar de conservar, assim como tampou-
co preservar o vivente ou responder às necessidades dos
corpos empíricos. Aponto, colocando sob suspeita, para
a conservação e regulação de vidas, para estratégias
de gerenciamento, que fazem da conservação um modo
de vida cuja finalidade é conservar a grande vida, uma
“gorda saúde dominante”, cujo discurso é, simultane-
amente, o vaticínio de uma catástrofe que obriga a
aceitar e adotar um certo tipo de comportamento e
pensamento, e a revelação do desastre que seria não
fazê-lo. Nesse movimento impõe-se, forçosamente, esco-
lher entre aquelas possibilidades de vida a nós oferecidas
— alternativas circunscritas pelo que se considera o
possível em uma sociedade, em um espaço-tempo his-
tóricos.

184
verve

Nas bordas do mar: esboço de uma aprendizagem...

A ecologia, esta que chamarei maior,1 diz respeito ao


possível que se realiza de uma determinada maneira, isto
é, aquele escolhido entre um conjunto pré-determinado,
segundo a lógica das proposições científicas2 a partir de
uma redução da circunstância, aquilo que pode ser obser-
vado: a destruição como realidade e o conservacionismo
como necessidade. Sua finalidade é a restauração de equi-
líbrios por meio de palavras de ordem, que desencadeiam
e conformam a participação; equilíbrios tanto mais ne-
cessários quanto determinantes de uma boa vida que leva
em direção à Vida como ideal.3
Há mais de trinta anos, Ivan Illich apontava4 o prin-
cipal problema que cabia ao pensamento enfrentar na
contemporaneidade das questões ambientais: o espaço
escolar seria o meio de prolongar ou de perpetuar a docili-
dade com que as pessoas respondem às exigências do con-
fronto entre o mundo industrial com o então emergente
pensamento ecológico. Esta colocação permanece res-
soando: a experiência do espaço escolar ensina às crian-
ças e aos jovens a pensarem e se comportarem de acordo
com codificações em relação às quais o ambiente é colo-
cado como anterior às relações, como construção anterior
à experiência. Essa imbricação entre ambiente e espaço
escolar aparece associada a práticas que pressupõem a
adequação dos comportamentos, de maneira que ao am-
biente está sempre vinculada uma qualidade ou uma
propriedade fundamentada em juízos de valor, tais como:
saudável, puro, limpo, agradável ou, em outra escala,
perigoso, sujo, inadequado, nocivo ou imoral. Nessa arti-
culação, a educação emerge “como a casa do ruim e do
bom, permanentemente preocupada em saber se contri-
bui para um mundo melhor ou pior”,5 segundo um modelo
moralizante com o qual permanece comprometida.
Tais concepções, via de regra, apontam a neces-
sidade de regular e controlar comportamentos ditos

185
11
2007

danosos ao meio ambiente, os quais encontram comple-


mentaridade nos comportamentos considerados social-
mente danosos, favorecendo a proliferação de vidas
não qualificáveis, as quais poriam em risco o equilíbrio
sócio-ambiental. Desse modo, perpetuam-se os binaris-
mos e complementaridades, mas sobretudo restauram-se
hierarquias por meio das quais pretende-se medir e con-
tabilizar, reforçando padrões de pensamento, de escuta
e de olhar.
De fato, segundo Illich, o controle político torna-se
tanto mais aceitável quando recebe o nome de iniciação
aos problemas do meio-ambiente, não só porque o contro-
le político, ao investir na noção de meio-ambiente, su-
põe o espaço como fundo neutro e homogêneo, cujos
limites e possibilidades podem ser determinados, mas
também porque, ao fazê-lo, afirma a possibilidade de
fechamento sobre superfícies eminentemente descon-
tínuas. 6
A perpetuação da docilização, sugerida por Illich,
evidencia-se quando o corpo individual e o corpo da
Terra apresentam-se como aquilo a ser formado ou
re-formado pelos novos saberes e suas aplicabilida-
des, de modo a alcançar o equilíbrio, a saúde perfeita
para corpos e mundo a prova de vazamento. Educar
para o meio ambiente é antes adequar o corpo à Terra
e adequar é restaurar equilíbrios perdidos ou conquistar
equilíbrios futuros. A saúde perfeita do corpo individual
e do corpo planetário constituindo-se, concomitantemen-
te, na promessa de reparação de danos e na prevenção
de riscos. Educar para o meio ambiente apresenta-se
como o cumprimento de prescrições que reduzem os
corpos e as relações à conservação.
A necessidade de mais regulação e controle indica,
portanto, não só que se educa para controlar e de forma
cada vez mais democrática e inclusiva — palavras de

186
verve

Nas bordas do mar: esboço de uma aprendizagem...

ordem que tendem a apenas atualizar fascismos de toda


ordem7 —, mas também indica que não é possível estabe-
lecer um domínio eficaz e absoluto sobre os indivíduos.
Se é contra as derivas que o pensamento da conserva-
ção luta, são as derivas que nos interessam, pois o que
mais seriam elas do que o próprio movimento de expan-
são da vida na invenção de saídas surpreendentes?

Fugas

Assim, Luis e Armando iam, cada qual por seu ca-


minho, para a escola. O aspecto do colégio era indis-
sociável do que se passava dentro dele. As vozes dos
professores recobriam o colégio como uma crosta sem
brilho que as idéias, assim como o olhar, não consegui-
am atravessar. Os dois meninos encontraram-se na
frente do colégio, olharam-se e, na volúpia do olhar, o
colégio se desvaneceu. Armando, o menino mais velho,
disse: “Não vamos entrar, pois no quebra mar as ondas
estão furiosas, quero vê-las.” Luis, o mais jovem, ine-
briado pela palavra do outro, disse: “Vamos.” A possibilida-
de de a chuva recomeçar e o medo de ser descoberto
matando aula pelos pais misturavam-se, em Luis, ao
gozo da presença do outro. Armando encontrava no olhar
de Luis as palavras, e Luis encontrava nas palavras de
Armando o olhar. Caminhando lado a lado, sentiam o
amolecimento das coisas e a inutilização das palavras
propiciados pelas manhãs úmidas, da mesma umidade
persistente que se notava no suor do rosto de Luis, que
agora fugia com Armando. Tudo transbordava: o ar, o
corpo, o mar. E Luis pensava que eles não deveriam fa-
zer nada senão ir ao colégio de manhã, tudo o mais so-
brava.
“Ali diante do quebra mar, Luis compreendia o es-
paço maravilhoso que Armando ocupava, espaço rítmico

187
11
2007

da mão que arrumava os cachos de cabelo, das gotas


que caíam na terra e a faziam gritar, dos papéis que
iam e vinham nas ondas. A paisagem estreava uma
aparência diversa diante do estilo ou da maneira diver-
sa dos olhares. Eles tinham chegado diante das ondas
um tanto desmemoriados, aquilo parecia não ser sua
finalidade. Momentaneamente servira, mas um segre-
do mais escorregadio os golpeava. As fugas do colégio
são o grito de algo que abandonamos, de uma pele que já
não nos justifica. A curvatura das ondas, a grosseira
assimilação da onda por outra onda produzia uma vaga
de vapores livre de lembranças. Como se as nuvens fos-
sem se estendendo entre eles e transformassem os
meninos nuns arquipélagos úmidos. Um barco bateu
neles suavemente e se viu lentamente rechaçado pe-
los ponteiros de um relógio. Mudaram de rumo, a finali-
dade que os unira se perdia invisivelmente. Iam se
manter mais tensas e secretas as palavras que os enla-
çavam. Mais que ver as ondas, tinham-nas adivinhado
entrando na atmosfera aquosa que desalojavam; chega-
va até eles um rumor distante, uma onda empurrava a
outra, impulsionando curvados sons que se afinavam
para penetrar na baia algoada dos ouvidos. Já tinham
decidido passear. Nenhum ponto fixo podia prendê-los.”8
Pouco se diz da escola nesta breve história, mas o
que se sabe, como bem o sabem os meninos, é que nem
as idéias, nem o olhar conseguem atravessar suas
paredes recobertas pela argamassa das vozes dos pro-
fessores. Isto era o que precisava ser enfrentado, isto
contra o qual toda idéia preferia correr e se atirar ao
mar.
Apressavam o passo em direção à escola e, no en-
tanto, paravam para acompanhar as gotas de chuva
escorrendo pelos vidros, cujos caminhos variavam com
o vento: podiam sempre mudar de rumo. Acordar, ir para

188
verve

Nas bordas do mar: esboço de uma aprendizagem...

a escola: entre estes dois pontos — a casa e a escola —


, os meninos esquecem de ser alunos e investem nos
seus passeios. Ao longo do caminho, dobram esquinas
desnecessárias, criam zonas de lentidão nos portões,
inventam mundos. Diante da escola, olham-se, e na volú-
pia do olhar decidem não entrar. Os meninos desbordam,
embriagam-se no gozo de uma presença ausente, lan-
çando-se em direção ao imprevisível. Os meninos de
Lezama Lima afirmam o passeio, não contra a escola,
mas pelo desejo de deambular, pelo desejo de se associar
nesta deambulação que é também sua paixão irresistí-
vel: a inquietação dos corpos escorrendo na distância
entre as palavras. Sabem que deveriam ir para a es-
cola, mas “no tudo mais [que] sobra”,9 que excede, o
querer se afirma frente ao dever evidenciado no peso
das normas, das obrigações, dos bons comportamentos.
Neste pequeno conto, Lezama Lima contrapõe o es-
paço apático, no qual se inserem a escola, os alunos,
suas obrigações e deveres, ao espaço de potencialida-
des irredutíveis ao primeiro, atravessado por uma mul-
tiplicidade de excitações em que os corpos dos meninos
se apresentam em sua dimensão topológica, variando
em função dos afetos que experimentam.
O ritmo dessa linha intensa que os percorre, em que
o olhar dos meninos umedece os corpos, espraiando-se
no azul dos botões emergindo e submergindo como ilhas,
prolonga este espaço singular aquém e além do quebra-
mar. Sobre a ilha, os meninos tornam-se arquipélagos
e os contornos do dia-cinza-dos-alunos-a-caminho-da-
escola desfazem-se no prazer intenso que experimen-
tam. Emerge um entorno de sons e cores, e cada aspecto
torna-se intensamente perceptível, e os meninos experi-
mentam uma nova maneira de ver, sentir e pensar.
O espaço maravilhoso que Armando ocupa é esse
espaço intensivo, o qual, juntos, eles irão povoar, e do

189
11
2007

qual Armando será arrancado pela chegada de Carlos:


“Não tínhamos ficado de ir ao cinema?”.10 Novamente,
surge “a obrigação com nome, a escravidão à linha e ao
ponto”.11 Deste modo, seria equivocado pensar que o mero
ausentar-se da escola resulta em experimentações, pois
estas apontam, sobretudo, para uma espécie de subver-
são silenciosa desencadeada pelas turbulências que os
atravessam — as quais acometem os meninos no en-
contro do olhar —, e que permanecem aquém das obri-
gações encarnadas neste ou naquele, venham elas sob
qualquer forma, afirmando rupturas onde a “escravidão
à linha e ao ponto” é aquela que mantém os meninos
submissos ao “aluno”. Submissão moral, que faz da pró-
pria fuga do colégio uma escravidão: se não estamos lá,
é porque deveríamos estar em outro lugar. A ruptura se
faz ali sob a linha de fuga que os meninos traçam, em
que eles se fazem fugados,12 isto é, puros corpos de sen-
sação que se sucedem, como se cada uma perseguisse
a outra, encontrando-se e separando-se; precipitando-
se umas sobre as outras, avançando e retrocedendo, tra-
çando-se gradualmente e destraçando-se, ora violenta,
ora suavemente, em que o delírio dos corpos é aquele da
própria Terra.
As invenções de Lezama Lima remetem-nos ao in-
domável da escrita e da vida nas suas circunvoluções,
nas quais frases e personagens se contorcem, comprimi-
dos, em meio às distribuições anárquicas da pontuação,
que subvertem a sintaxe, demolindo-a, restando somente
os sulcos de um relevo, linha sinuosa e ondulante na qual
os corpos derivam. Entre duas certezas, exprime-se uma
não-conformidade. Ela diz respeito a uma não-equiva-
lência ou não-igualdade entre os termos, por meio da qual
o furioso escândalo verbal de Lezama Lima põe-nos
diante de uma paisagem que nos vê, “uma vasta topo-
grafia de acontecimentos, objetos, pessoas, utensílios”,13
fragmentos de texturas que esquivam o sentido e o ob-

190
verve

Nas bordas do mar: esboço de uma aprendizagem...

jetivo em uma geografia pontuada por uma multiplici-


dade de traçados singulares, cujos desvios e curvaturas
são a expressão dessa condição na qual cada intervalo é
um espaço aberto ao surgimento de uma nova dobra,
uma redobra.14
A questão já não é considerar a diferença das coisas
de aspecto (aparência) diferente; tampouco a diferença
de aspectos sobre uma mesma coisa, mas cada coisa
como um ponto de vista, uma variação que extrai do
mundo seus aspectos, formando um intrincado labirin-
to de montanhas, florestas, rios, homens, animais, plan-
tas, pedras e objetos, deslocando-se e agitando-se contra a
lei, indomesticáveis, indomáveis.15 Um ecossistema com-
plicado.

Experimentações I

Um ecossistema complicado. Foi com essa curta fra-


se que encerrei minha deriva pelo conto de Lezama
Lima. Dificilmente poderíamos dizer que é complicado
por uma mera questão de quantidade de coisas, mas
sim pelas intensidades implicadas. Um ecossistema
complicado não teria começo nem fim, não seria redutí-
vel aos elementos que compõem uma cadeia, tampouco
ao que é dado à percepção, pois ele implica aquilo que
insiste no dado sem ser imediatamente dado. Trata-se
sobretudo de novos modos de perceber e sentir que forçam
o pensar neste encontro com o conto de Lezama Lima.
Nesse sentido, experimenta-se o conto como aprendizado
singular.
Assim é que no conto de Lezama Lima experimenta-
se a ilha e um certo regime climático, mas também a
ilha como um certo regime de intensidades não de-
termináveis. A chuva, a umidade, mas também um
desmanchamento que insiste e que atravessa objetos,

191
11
2007

pessoas, palavras. A paisagem dada: o pier, a escola, as


ruas, o mar, mas também o desmanchamento desta
paisagem, a invenção de outras paisagens táteis, sono-
ras, auditivas, visuais e seus sucessivos desmancha-
mentos. A umidade embebe as palavras e os corpos, a
paisagem torna-se porosa, respira, transpira, dissolve-
se, aqui e ali pontos notáveis: um olhar, os pedaços de
papel que o vento dispersa, os botões de uma blusa, os
cachos de um cabelo, os peixes, as nuvens. Pontos a
partir dos quais pequenos territórios se fazem para em
seguida, no movimento do olhar, de um vento que bate,
de uma voz que sobrevém, serem desfeitos. Os meninos
tornam-se arquipélagos, lugar de seus passeios-experi-
mentações, a paisagem estreando uma aparência di-
versa diante do estilo ou da maneira diversa dos olha-
res...

Experimentações II

Um estilo seria, então, esse tanto de selvageria que


prolifera, menos em busca de paraísos perdidos, e mais
ocupado com a invenção de quantos paraísos uma certa
desrazão ou desordenamento forem capazes de inventar.
Estranhos paraísos feitos à custa de ajuntamentos de
coisas, explicitados na enumeração disparatada, na acu-
mulação, nos arranjos provisórios e heterogêneos, na
colagem, os quais desenham uma rede de conexões
imprevisíveis e cambiantes. Sua característica é a da
desfiguração ou do desobramento por prodigalidade e
desperdício, pela irrisão de toda funcionalidade, de toda
sobriedade: um excesso excessivo.16
O paraíso é este espaço eufórico de intensidades, de
conjunções de heterogeneidades, formando superfícies nas
quais os fragmentos brilham num emaranhado de cama-
das, de simultaneidades que não alcançam a unifica-

192
verve

Nas bordas do mar: esboço de uma aprendizagem...

ção, em que as coisas diferem, discordam, fugindo à


regra.
Neste movimento, esquiva-se o objetivo, desvia-se,
instante em que o tempo perde suas marcas, seu ca-
denciamento regular: o que deveríamos estar fazendo, o
que deveremos fazer em breve, o que deveremos fazer
em três décadas, o que deveríamos ter feito. Instante
em que o espaço perde suas determinações: aqui sim,
ali não. Movimento que se faz na não-conformidade ao
uso, onde o uso, ao remeter ao costume ou ao hábito, o
faz para venerar a tradição.17 As instituições nada po-
dem neste lugar que não é um lugar, que já não é um
pedaço da Terra, mas uma variação intensiva dos cor-
pos, tanto mais imprevisíveis quanto o próprio fazer-se
e desfazer-se das ondas no quebra-mar. Não importa se
o período de desvio termina, se as determinações retor-
nam; o tempo da experimentação se prolonga sobre uma
linha infinita que se pega sempre pelo meio.
É assim a experimentação, com seus barroquismos,
mas também o é a vida, ou ainda um modo de viver,
um estilo, que dizem respeito, sobretudo, a um modo
de habitar.

Experimentações III

A paisagem estreava uma aparência diversa dian-


te do estilo ou da maneira diversa dos olhares. Assim
Lezama Lima leva-nos a experimentar a sensação de
que em toda e qualquer coisa brota algo que se libera,
que vaza, assim que uma reflexão tenta representá-la
em conformidade a um modelo de pensamento, algo que
foge à argamassa de palavras, à sua pretensão de preen-
cher completamente e de uma vez por todas o vão entre
as coisas.

193
11
2007

Pois é ali, no trajeto definido e definitivo de todos os


dias, acordar-e-ir-para-a-escola — empurrados pelo so-
nho continental da Razão que lhes diz dever aprender (a
verdade) para melhor conhecer (a verdade) —, que as
crianças inventam desvios, transformando-se, sob os
pingos de chuva, em “arquipélagos que ressoam o silên-
cio trazido pelo mar em sons vergados”.18 É à deriva da
Razão que qualquer coisa se passa, pois a exigência da
Razão, mais do que o confinamento do pensamento e da
vida, é o investimento na sua paralisia e esterilização,19
investimento que redunda em uma vida enfraquecida,
cansada e condenada a uma corporeidade fraca, culpa-
da e ressentida, porque reduzida às legibilidades e esta-
bilizações do jogo comunicacional. No entanto, segundo
Nietzsche, “(...) o mais inteligível não é a própria pala-
vra, mas a tonalidade, a energia, a modulação, o ritmo
com os quais uma série de palavras é proferida, (...): tudo
aquilo, portanto, que não pode ser escrito (...)”,20 e que,
no momento mesmo da reflexão, já a ameaça aproxi-
mando o percebido daquilo que nele escapa.

Experimentações IV

Ao dar as costas à escola, as personagens de Lezama


Lima arrastam-nos para outros passeios, convidam-nos
a desconfiar, a pôr sob suspeita os mecanismos de es-
tabilização dos quais habitualmente nos valemos para
silenciar as perturbações ou ruídos que acompanham
os encontros que se fazem, buscando confiná-los ao já
sabido e sentido.
Nesse sentido, a ecologia e o ambientalismo não po-
dem ser desvinculados da criação de um regime de
signos, que permite enunciar o valor de cada parte da
Terra para o todo da Terra, e também o valor de tudo
sobre a Terra para a Terra, fazendo valer “ora partes

194
verve

Nas bordas do mar: esboço de uma aprendizagem...

excessivamente separadas, ora separações excessiva-


mente preenchidas”.21 Não só os contornos devem ser
suficientemente rijos para que não haja transbordamen-
tos, mas, sobretudo, todas as linhas devem se subordinar
a modelos apresentados como dados.
O breve conto de Lezama Lima convida-nos a prestar
atenção nesse jogo entre linhas endurecidas de re-
flexão e linhas de experimentação, que exprimem o
embate entre forças de subordinação e insubordinação.
Ao longo da leitura do conto de Lezama Lima, deixa-
mo-nos levar pela rarefação da atmosfera, as certezas
se esvaindo à medida que a umidade avança, tornando
o próprio pensamento poroso. Não se trata de negar a
escola e todo o aparato educacional, tampouco a ecolo-
gia ou o ambientalismo, mas sim de como inventar as
linhas com as quais nos tornamos fugados, linhas que
afirmam a aprendizagem experimental como aprendi-
zagem da variação dos modos, fazendo ressoar no pen-
samento a complicação implicada na vida,22 levando-o
ou obrigando-o a exercer sua máxima potência: pensar.
Chegamos aqui um pouco, talvez, como as persona-
gens de Lezama Lima, um pouco mais porosos, quem
sabe mais úmidos, talvez até desmemoriados e mais
suscetíveis a perguntarmos a nós mesmos se a educa-
ção ambiental, ao se colocar a missão de “conscienti-
zar”, não se torna uma ferramenta de controle brutal,
reduzindo a aprendizagem a um mero exercício reflexi-
vo, apressando-nos a preencher os vãos entre as coisas
com uma “argamassa” de conceitos, fatos e valores, de
forma a que se sinta, diga ou pense o já sentido, dito e
pensado?
Já aí é todo um território que se desmancha, pois a
porosidade que experimentamos, tal qual os meninos
fugados, em que os encontros e as vizinhanças não es-

195
11
2007

tão determinados, abre-nos a toda sorte de interferên-


cias, intensificando experimentações, potencializando
hibridações inventivas, fazendo fugir a figura da alteri-
dade como suporte de gestões e relativizações por meio
das quais se obtém uma equivalência generalizada.23

Nas bordas do mar...

As fugas do colégio são o grito de algo que abandona-


mos, de uma pele que já não nos justifica, assim como as
gotas que caíam na terra e a faziam gritar. Rompe-se a
camada superficial, a crosta dura, a argamassa de pala-
vras com a qual assentam-se as coisas e suas verdades,
impermeabiliza-se superfícies, regulariza-se e elimina-
se ondulações, nivela-se e apruma-se o mundo. O conto
de Lezama Lima é menos sobre dois meninos que matam
aula, ou sobre a existência quotidiana, e mais o “instru-
mento de uma experimentação afetiva, de uma explora-
ção dos pontos sensíveis da vida”,24 a experimentação de
uma atmosfera de forças que transbordam a palavra. É por
meio dessa atmosfera não-verbal que Lezama Lima torna
sensível o grito, a ruptura da casca: o indizível da lingua-
gem, o inactuável do gesto, o sem nome de toda nomea-
ção, o impensável do pensamento.25
Algo se passa, e esse algo não esta confinado aos mate-
riais dos quais Lezama se vale, mas remete àquilo que
ele investe para deles extrair uma tensão que nos lança
em direção a um futuro não dimensionável. Somos enga-
jados, assim como Luis e Armando, em um processo cuja
efetividade é a ruptura ativa no interior de tecidos estru-
turados quando, diante do quebra-mar esquecem-se para
onde iam, desmemoriados, não reconhecem e tampouco
se reconhecem, e o quebra-mar já não opõe resistência
ao embate das ondas ou das correntes cuja intensidade
não cessam de experimentar. Para onde íamos?

196
verve

Nas bordas do mar: esboço de uma aprendizagem...

Ir à escola, não entrar, ir ao quebra-mar. Gestos quais-


quer que desenham territorialidades e arranjos de refe-
rências: o possível da escola, do cinema, do mar. Porém,
impregnados pela umidade, interrompem seu curso: não
se trata mais de ir ou não à escola, tampouco de ver as
ondas, mas de fazer com que tudo isso seja dominado pelo
sensível da intensidade, e de tal modo que aquela paisa-
gem desenhada não possa ser recomposta. É sobretudo a
afirmação de uma porosidade do corpo e da subjetividade,
abertura por meio da qual extrai-se “a matéria que con-
vém ao corpo que se quer edificar”,26 em ressonância com
os modos de subjetivação singulares que o exprimem.
Luis e Armando valem pelo que os envolve, porque
“exprimem um mundo ou mundos possíveis, paisagens
e lugares, modos de vida que é preciso desdobrar, de-
senrolar”.27 Arrastados por Lezama Lima damo-nos con-
ta que as paisagens e os lugares enrolam-se em Luis e
Armando, e que a exuberância está menos nos mares, na
tempestade, nos alunos, na aula, mas no algo mais que
excede, naquilo que neles nos interpela tão violentamen-
te que o mundo vacila, os sentidos perdem seus pontos de
apoio, restando somente os vapores livres.

... um rumor distante

Ao final deste texto o leitor poderia se perguntar: mas


de que se trata? O que era tudo isso? Trata-se de uma
experimentação. Trata-se de juntar alguns elementos. O
conto de Lezama Lima, bem como o texto aqui apresenta-
do, são o que menos contribui para uma aprendizagem
experimental, pois é somente ao manipulá-los que eles
se tornam materiais expressivos, compondo um arranjo
de forças.28 A aprendizagem independe dos materiais es-
colhidos, mas da potência do encontro que se faz, das co-
nexões que se inventa.

197
11
2007

Na perspectiva de uma experimentação, preparar um


texto, um artigo ou uma aula é desenhar alguma coisa,
é compor uma paisagem, mas, como o próprio termo diz,
compor é antes arranjar, é maquinar, de maneira que,
texto, artigo ou aula, se apresentam como uma paisa-
gem que se faz na medida em que é percorrida. O per-
curso não é outra coisa senão as conexões inventadas.
Não importa o que os elementos juntados significam,
tampouco o que vai acontecer, qual o próximo passo, mas
sim mobilizar o corpo, o pensamento, sensibilizá-los de
modo a experimentar-se no experimentar a paisagem,
traçando linhas e acompanhando-as, linhas por meio
das quais a paisagem se desmancha e se inventa.
Afinal, um artigo ou uma aula, na perspectiva de um
aprendizado experimental, compõem-se sobre uma li-
nha de fuga, assim como o texto sobre uma aula, e o
tema aqui privilegiado: as ecologias que a vida inventa,
menores ecologias. Sem sentido ou finalidade, elas não
reconhecem qualquer ordem, qualquer razão, qualquer
estabilidade. Remetem, sobretudo, àquilo que permanece
indomesticável, escapando insistentemente aos siste-
mas de ordenação, sejam eles quais forem.
Um ruído permanece insistentemente, mesmo em
face dos mais arrojados projetos de pacificação impostos
à vida e ao pensamento; esta é a força do menor, ou a
potência minoritária. A existência se retoma, se reite-
ra, sem ser coagida pelas leis; transgressiva, ela mani-
festa uma singularidade contra a lei, sob a lei, não se
constituindo, portanto, como norma para julgar, decidir
ou proceder.

Notas
1
Bruno Latour argumenta pela insustentabilidade da distinção entre ecologia
científica e ecologismo ou ambientalismo, vendo em ambos os portavozes
privilegiados de uma missão que é conduzida em proveito do “bem-estar, prazer

198
verve

Nas bordas do mar: esboço de uma aprendizagem...

e boa consciência de um pequeno número de humanos, cuidadosamente seleci-


onados, geralmente americanos, brancos, machos, ricos e educados.” Bruno
Latour. Políticas da natureza: como fazer ciência na democracia. Bauru, EDUSC,
2004, p.45. Tradução de Carlos Aurélio Mota de Souza.
2
A este respeito ver Pierre Levy . O que é o virtual. Tradução de Paulo Neves.
São Paulo, Ed. 34, 2001, pp.16-17. Tradução de Paulo Neves.
3
Ver Edson Passetti. “Sociedade de controle e anarquia”, o autor coloca que a
restauração de equilíbrios, buscando qualidade de vida, é o que objetiva as
“estratégias de ecopolítica em que participar é mais do que difundir uma ética
de respeito e conservação do planeta (o que, por vezes, confunde-se com a
atuação circunscrita aos santuários ecológicos, últimas espécies animais e ou-
tras a um apelo ao desenvolvimento capaz de dar conta das populações e seus
locais).” in Anarquismos e sociedade de controle. São Paulo, Ed. Cortez, 2003,
p.271.
4
Ivan Illich. “Contra a produção do bem-estar” in As instituições e os discursos.
Tempo Brasileiro, out./dez. de 1973, pp. 87-92.
5
Walter O. Kohan. “Entre Deleuze e a educação”, in Educação e Realidade, v. 27,
nº2, jul/dez de 2002, p.126.
6
Kaustuv Roy. “Gradientes de intensidade”, in Educação e Realidade, v.27, nº2,
jul/dez de 2002, pp. 90-91.
7
Gilles Deleuze e Félix Guattari apontam que o racismo não se dá por exclusão
racial, mas por meio de uma estratégia de inclusão diferencial em que o Outro
passa a ser expressão de identidade e homogeneidade étnicas, sempre remetido
ao Mesmo.
8
Recortes do conto “Fugados”, de José Lezama Lima. Fugados. São Paulo,
Iluminuras, 1993. Tradução de Josely Vianna Baptista.
9
Idem, p.17.
10
Ibidem, p. 20.
11
Ibidem, idem.
12
Segundo o Moderno Dicionário de Língua Portuguesa Michaelis, fugado é
um termo proveniente da música, e significa composto em estilo de fuga. Josely
Vianna Baptista preserva o termo na tradução para o português sem utilizar
itálico.
13
Josely Vianna Baptista. “Cardume argênteo de peixes verbais”, posfácio, in
José Lezama Lima, 1993, op. cit, p. 108.
14
Gilles Deleuze. A dobra: Leibniz e o barroco. Campinas, Papirus, 1991, p. 34-
38. Tradução de Luiz B. L. Orlandi.

199
11
2007

15
Segundo Lapoujade “a sensação exprime a força que ela reencontra. (...)
Sentir, é assistir a passagem de uma força, não somente as forças que nos
afetam, mas também as forças que dobram as montanhas, que deformam os
corpos, e que propiciam a emergência de novos modos de subjetivação, novos
modos de existência”. David Lapoujade. “Conférence”, p.4.
16
Severo Sarduy. “Por uma ética do desperdício”, in Severo Sarduy. Escrito
sobre um corpo. São Paulo, Perspectiva, 1979, pp. 57-80. Texto também publica-
do sob o título “Barroco e neobarroco”, no volume de textos América Latina em
sua literatura, organizado pela UNESCO.
17
Benito Pelegrín. “Las vías del desvío en Paradiso. Retórica de la oscuridad”,
in José Lezama Lima. Paradiso (edição crítica). ALCA XX, 1996, p. 626.
18
José Lezama Lima. 1993, op.cit., p. 19.
Carlos Henrique de Escobar. “O gato à deriva da Razão” in Carlos Henrique
19

Escobar (org.). Por que Nietzsche? Rio de Janeiro, Achiamé, s/d., pp.78-79.
20
Friedrich Nietzsche. Fragmentos do espólio verão-outono 1882. Brasilia, Ed. UNB,
2004, § 296. Seleção, tradução e prefácio de Flavio R. Kohte.
Luis B. L. Orlandi. Procedimentos expressivos (curso ministrado no PPG da
21

PUC/SP, 1º semestre de 2005).


22
Idem.
23
A articulação entre biodiversidade e diversidade cultural pretende exprimirse
numa totalidade que tudo abarca, funcionando como uma terapéutica do Todo
em relação ao qual o “material bruto” da diversidade é utilizado para expressar a
identidade e a homogeneidade segundo graus de afastamento do elemento do
branco. Bruno Latour, op.cit., 2004, p. 323 e 45; Kaustuv Roy, op. cit., 2002, p.
94, e Gilles Deleuze e Felix Guattari. Mille Plateux. Paris, Minuit, 1980, p. 218.
24
François Zourabichvili. “Deleuze e a questão da literalidade”, in Educação e
Sociedade, v.26, nº93, set./dez. de 2005, p. 1318.
25
Tais concepções estão presentes nas diversas análises desenvolvidas por Blanchot,
José Gil e Gilles Deleuze.
26
José Gil. Movimento Total: o corpo e a dança. São Paulo, Iluminuras, 2005, p. 75.
27
Gilles Deleuze. Proust e os signos. Rio de Janeiro/São Paulo, Forense Univer-
sitária, 2003, p.113. Tradução de Antonio Carlos Piquet e Roberto Machado.
28
Cf. Silvio Ferraz. O Livro das sonoridades [notas dispersas sobre composição). Rio de
Janeiro, 7 Letras/FAPESP, 2005, pp. 89-90.

200
verve

Nas bordas do mar: esboço de uma aprendizagem...

RESUMO

Dois movimentos atravessam este artigo. O primeiro põe sob sus-


peita a articulação entre educação e meio-abiente, na sua imbrica-
ção com um discurso conservacionista e um pensamento da con-
servação, ambos pautados em práticas consideradas saudáveis e
comportamentos considerados adequados. O segundo compõe-se
com o conto Fugados de Lezama Lima, e com ele esboça algumas
linhas, linhas de uma aprendizagem experimental, que remetem,
sobretudo, àquilo que permanece indomesticável: as ecologias que
a vida inventa, menores ecologias.

Palavras-chave: educação, aprendizagem experimental, menores


ecologias.

ABSTRACT

Two movements pass through this article. The first one questions
the relationship between education and environment, in its con-
nection with a conservacionist discourse and a conservation men-
tality, both based on practices seen as healthy and on behaviors
seen as appropriate. The second one is based on Lezama Lima’s
short story Fugados and, from it some lines of a experimental
learning are drafted. Those lines are related with the things that
still are savage: the ecologies invented by life, the minor ecologi-
es.

Keywords: education, experimental learning, minor ecologies.

Recebido para publicação em 27 de agosto de 2006 e confirmado


em 23 de outubro de 2006.

201
11
2007

transgressão e esgotamento:
aguda indiferença, suficientemente
desinteressada e escrupulosa1

alexandre de oliveira henz*

Foi com o convite a esse ciclo que a oportunidade de


rever os filmes propostos, o ver de novo, me lançou numa
pretensa experiência de recognição, que no seu decorrer
não me protegeu em quase nada de seus compostos, esta
pororoca. São filmes impossíveis de se ver e sair ileso,
eles são dinamite, uma fenda aberta, um susto pelo qual
vos agradeço. Pela importância de qualquer susto que não
se mereça como as palavras de Arnaldo Antunes na músi-
ca Qualquer. É a fecundidade deste susto que aqui agrade-
ço. Ver esses filmes foi isso.
Com esse breve depoimento me introduzo um pouco
na espessura das questões propostas pelo ciclo: Cinema,
jovens e transgressão, e farei alguns poucos comentários,
na verdade uma série de notas ziguezagueantes. Inicio
pelo filme Laranja Mecânica de Stanley Kubrick, de 1971.

* Alexandre de Oliveira Henz é doutor em psicologia clínica e professor na


Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) – Campus Baixada Santista.
verve, 11: 202-217, 2007

202
verve

Transgressão e esgotamento: aguda indiferença...

É interessante acompanhar o personagem Alex, quando


prisioneiro, e em grande medida inscrito na sociedade
disciplinar com sua matrícula 655321 e sua assinatura
várias vezes solicitada. Ele se submete ao tratamento
Ludovico de reabilitação. Chamo a atenção para todo esse
momento na prisão e também após sua saída. A prisão é
apresentada com seus investimentos numa aprendiza-
gem para se tornar bajulador e ardiloso. Há, no filme, uma
saída e uma passagem do poder prisional ao poder médi-
co, psiquiátrico e farmacológico que, é claro, se articulam
muito bem.
Kubrick já antevia no início da década de 70, a nova
crença na biossociabilidade,2 nas bioidentidades. Hoje
ainda estamos enredados no romantismo do século XIX,
mas temos menos uma aposta num sujeito interioriza-
do, do segredinho, do desejo íntimo e sentimental e mais
um investimento na visibilidade, numa exterioridade
mais pacificada, numa performance bovinamente ins-
talada que se quis de Alexander, e que nada tem a ver
com a exterioridade grega antiga. No filme se vê o jogo
da retificação e vigilância da performance exterior, que
implica peritagem constante de si e do outro, isto de
Laranja Mecânica ainda aparece no lote behaviorista do
campo da psicologia. O condicionamento aversivo em que
violência e sexo provocam vômito. O jogo sofreu muta-
ções, se sutilizou e atualmente é mais desejado. Há uma
outra fé que é mais hegemônica, outra crença se impôs:
a neurociência tem a cura, a cura para a ferida da exis-
tência, para corrigir, retificar a vida. A medicina, a in-
dústria farmacológica, a psiquiatria biológica vão nos
levar à utopia asséptica, ao grande sonho de limpeza, à
utopia que é a paz dos contentes. O filme tangencia es-
sas questões.
No filme, o escritor, agora na cadeira de rodas, reen-
contra Alex. Lembrado como subversivo pelo ministro, o

203
11
2007

escritor diz ao telefone uma frase precisa, aguda: “o povo


vende a liberdade por uma vida tranqüila.” Dito de outro
modo, na companhia de Espinoza: “Os homens comba-
tem pela sua servidão como se se tratasse da sua salva-
ção.”3
Em Alex vemos esse movimento, descrito por Espinoza,
de transgressão e ironia. Em vários momentos o autori-
tarismo e a hierarquia compõem muito bem com uma
ironia rebelde, eles operam como seus co-produtores.
Poderíamos, então, reivindicar o humor e com ele um
outro jogo com a transgressão? Poderíamos acompanhar
nesse filme uma transgressão perversa, irônica e uma
transgressão criadora, ambas na vizinhança do caos? O
filme recorre a nossa inalienável violência, ao intratá-
vel em nós. Isso tudo que vemos em Laranja Mecânica
em alguma medida nos habita. Violência e crueldade.
Aqui a afirmação de Nietzsche de que a cultura se cons-
titui por uma “espiritualização da crueldade”4 dá o que
pensar. Algumas vezes essa espiritualização da cruelda-
de e da violência está condenada à expressão nua e crua,
é a emergência de algo que não tem e, muitas vezes,
não terá governo. Na psicologia, inventamos uma para-
fernália de exames e diagnósticos toda vez que o que
podemos chamar de determinação volitiva adequada (a
vontade, a responsabilidade, a consciência moral, o eu
adequado) espana, “dá pau”. Toda vez que alguém, bom
moço e/ou da gangue de Alexander, mata a família (e
nem vai ao cinema).
Com Elefante, de Gus Van Sant, penso em outras ques-
tões. Uma escola secundarista é o território principal de
uma teia. Ali passam vidas, jovens e mortes. Patricinhas
anoréxicas vomitando no banheiro. O filme mostra, len-
tamente, movimentos de microfascismo e linhas de vida.
Nuvens negras podem ser vistas no início e no final.
Deste filme se poderia dizer em muitas direções, penso

204
verve

Transgressão e esgotamento: aguda indiferença...

em algumas. Todos sabemos que o fato de se ter jovens


em todos os filmes selecionados não garante a possibili-
dade de uma configuração nova e criadora. Em alguma
medida, e em muitas situações, a juventude pode tra-
zer os sintomas mais crus de uma microfascistização
da cultura. Ela aparece de um jeito escancarado e sem
temor em alguns jovens. Para muitos que chegam às
universidades não é uma questão de formação, não se
trata apenas de cuidado com sua formação, freqüente-
mente já chegam aos cursos de graduação demasiada-
mente formados. Muito jovens e blindados, com cacoetes
dinossáuricos, com certezas fascistizadas. A questão não
é apenas da juventude, em alguma medida, trata-se do
desafio de deformar, de abrir espaço na fôrma, tornar
porosa a blindagem a que todos — não só os jovens —
estamos submetidos.
Em Zero de Conduite acompanhamos uma deforma-
ção criadora. Neste filme, dirigido em 1933 por Jean Vigo,
lemos o subtítulo: jovens diabos no colégio. Na seqüência
inicial, num trem, dois meninos fazem uma série de
invencionices e diabruras. Invenções de uma inocên-
cia brutal. Também inocente é o professor que, no mes-
mo vagão, dorme ao lado dos meninos: o novo profes-
sor, Huguet, aquele que no filme imita Chaplin, mas
poderia ser Keaton (já que a discussão sobre a superi-
oridade de um destes dois palhaços, presente em cena
de Sonhadores de Bertolucci, é insolúvel). Esse profes-
sor poderia se inscrever numa linhagem de persona-
gens, andando e desenhando com as pernas para o alto
na sala de aula, saudando os meninos na hora da rebe-
lião, ou ainda, se perdendo e se encontrando com eles
no passeio pela cidade. Huguet possui algo do Idiota de
Dostoievski, ou dos clowns que povoam as obras de
Samuel Beckett. Uma outra política de transgressão se
apresenta. Ele possui a grandeza de não saber o que to-
dos já sabem. E isso é altamente disruptivo e explosivo.

205
11
2007

Concomitante a esta inocência, há que se consi-


derar o complô dos meninos, em que se evidencia a
necessidade de planejamento, de inteligência e astú-
cia. O filme mostra inclusive os clichês de tudo isso, o
jargão da revolta revolucionária, os discursos, a convo-
cação, as bandeiras, etc. Clichês interessantemente
acoplados a um movimento de matilha, a um passeio
ditirâmbico, que se inicia antes e que aparece nas ima-
gens transbordantes que se seguem após a guerra de
travesseiros. Na cena final os meninos aparecem sobre
o telhado, em fila, talvez carregados pelo diabo numa
linha de saída.
Há uma certa implicação do involuntário nessa re-
volta que, no âmbito das forças, tentando evitar sim-
plificações, essencializações e dicotomias, poderia ser
pensada numa distinção entre ingenuidade e inocência.5
Em Zero de Conduite não prepondera a ingenuidade —
o infantil no sentido adulto da palavra em que se aco-
plam perfeitamente humildade e arrogância. O ingênuo,
diferentemente do inocente tenta definir-se pelo desprezo
e desconhecimento dos valores que tentam hegemonizar
e dirigir o mundo. Neste esforço de desprezá-los, muito
os preza. Esta perspectiva ingênua afirma-se pelo nega-
tivo: não querer saber, ser pelo avesso, num ato reativo.
Aparente e supostamente, tem-se um desprendimento
dos valores imperativos, mas, com efeito, opera-se na
esperança despótica de um mundo funcionando pela
lamúria, a falta e o preenchimento de demandas narcí-
sicas.
Em outra direção, os movimentos inocentes afirmam
uma potência criadora, difícil de ser localizada. O inocen-
te é um alvo não oferecido, tal qual o professor Huguet,
que nem sequer é um opositor da ordem, ele desinveste
a culpa e favorece o acaso. Não há aqui um desconheci-
mento dos valores instituídos, apenas não lhes é dada

206
verve

Transgressão e esgotamento: aguda indiferença...

importância maior, posto que estão colocados fora do foco.


A ênfase da rebelião passa, no filme, pelas autoridades
que são alvejadas e ficam acuadas, mas sai pelos telha-
dos ativamente disponível a situações em aberto.
Situações em aberto é o que reivindica o filme Sonha-
dores, de Bernardo Bertolucci. Impregnado de referênci-
as, fronteiras borradas, aprisionamento e infantilização,
por vezes, o movimento do filme é pendular, entre a
experimentação e a proteção excessiva. Em muitas
cenas os personagens não saem da casa ou pelo menos
de uma certa ambiência de impermeabilidade. Ainda as-
sim a vida escapa ao roteiro social da transgressão. A ten-
tativa de morte está implicada com uma vida suicidária
que vai se produzindo, pouco a pouco, ainda que aderida
a modelos libertários. A vergonha e o suicídio são inter-
rompidos bruscamente pela própria vida, o mundo inva-
de a casa na cena final. Um susto e uma saída.
Nisso tudo há uma política que ressoa em Beckett e
Deleuze, uma transgressão, um fio muito tênue, que diz
respeito, nesse caso, a um estado da sensibilidade con-
temporânea, que ganha fecundidade com a noção de es-
gotamento, além do que podemos chamar de cansaço.
Esse fio é capaz de amarrar ou desamarrar muitos
fenômenos atuais. Na maior parte destes filmes não se
trata tão somente do esgotamento do sujeito moderno, do
eu, mas de uma política com a vida, em que a noção de
esgotamento permite uma operatoriedade.
Para acompanhar esses movimentos nos auxilia o
último longo texto de Gilles Deleuze, publicado em 1992,
que se intitula “L’ épuisé”6 [“O esgotado”] cujo tema é o
esgotamento do possível. Este ensaio foi anexado como
posfácio à publicação de quatro roteiros de peças para
televisão de Samuel Beckett.
No “L´épuisé”, Deleuze analisa três línguas em Beckett,
e quatro maneiras de esgotar o possível que a elas cor-
respondem.

207
11
2007

É importante assinalar que no esgotamento não há


passividade, há que se estar ativo para ir ao cinema, es-
perar, pular na água, perambular, mas é preciso suspen-
der a utilidade prática da existência. O esgotamento não
é nem mesmo um estado de prontidão, que guardaria
ainda um certo campo pragmático, alguma utilidade. A
ativação no esgotamento é uma vibração intensiva, não
é para alguma coisa.
É isso o que interessa à problematização da trans-
gressão nestes filmes: uma intensificação para nada,
uma vibração intensiva. Um jogo por proliferação de
tecidos, a noção de maturidade do homem referida por
Nietzsche, algo da seriedade da criança dedicada aos
brinquedos,7 hiatos, peripécias, deiscências, silêncios.
No esgotamento, a confusão de identidades é apenas
aparente, como refere Beckett, devido à pouca aptidão de
as ter,8 o que implica, entre outras coisas, uma certa ino-
cência e ausência de humanidade, uma largueza de alma,
isto é, uma possibilidade de aumento da superfície de
contato, de expandir a gama de experiências efetivamente
experimentáveis e toleráveis, desalojando e transforman-
do os pólos dominantes dos lugares do certo e do errado
que tentam monopolizar as interpretações de mundo,
procurando manter suas paisagens congeladas numa tô-
nica invariável.
Nietzsche, referindo-se a um sim à vida, sugere essa
espécie de largueza quando atribui aos que ele denomi-
na homens nobres: “Não conseguir levar a sério por muito
tempo seus inimigos, suas desventuras, seus “malfei-
tos” inclusive - eis o indício de naturezas fortes e plenas,
em que há um excesso de força plástica, modeladora,
regeneradora, propiciadora do esquecimento (no mundo
moderno, um bom exemplo é Mirabeau, que não tinha
memória para os insultos e baixezas que sofria, e que não
podia desculpar, simplesmente porque - esquecia). Um

208
verve

Transgressão e esgotamento: aguda indiferença...

homem tal sacode de si, com “um” movimento, muitos


vermes que em outros se enterrariam (...).”9 Efetivações
de uma aguda indiferença e esgotamento: esquecer, não
levar a sério, não ter a que desculpar.
A transgressão do esgotado está cravada no instante,
um rebanho, com pouco fardo de memória e interioridade:
“não sabe o que é ontem e o que é hoje; ele saltita de lá
para cá, come, descansa, digere, saltita de novo; e assim
de manhã até a noite, dia após dia; ligado de maneira
fugaz com seu prazer e desprazer à própria estaca do ins-
tante, e, por isto, nem melancólico nem enfadado.”10 Da
mesma maneira, Malone11 não compreende nem julga.
Nas páginas finais de Malone Morre, está escrito: “Tudo
está pronto. Menos eu. Estou nascendo na morte, se é que
posso usar essa expressão. Essa a minha imagem. Merda
de gestação. Os pés já saíram de dentro da grande boceta
da existência. Posição favorável, espero. Minha cabeça
morrerá por último. Recolha as mãos. Não consigo. A dila-
cerada me dilacera. Minha história terminada, ainda es-
tarei vivo. Falta que promete. É o fim de mim. Não mais
direi eu.”12
Uma deserção do eu. É interessante assinalar que para
Deleuze “(...) apenas o esgotado é suficientemente desin-
teressado, suficientemente escrupuloso.”13
Há um agudo desinteresse que não desaba no indife-
renciado passivo ou na dialética, um desinteresse ativo
que, mesmo para nada, não nos exime do questionamen-
to de si, de estarmos muito bem informados e implicados
com uma vida para além da referência narcísica.
Os personagens de Beckett passam pelo cansaço,
mas não se detém aí, vão de um nada de vontade a um
“desinteresse escrupuloso” e têm em comum o fato de
terem visto algo que excedia os dados da situação.14 Par-
tem desautomatizados, liberados do torniquete de seu

209
11
2007

laço orgânico com o mundo, carregando leves a aguda


desafeição dos que não chegam a saber o que todo mun-
do sabe e que negam discretamente o que se julga ser
reconhecido por todo mundo.15
Nos filmes vistos, algumas transgressões esgotadas
não se inscrevem na ilusão dialética do ter ou não um
poder absoluto. Desinteressados do controle sobre a
multiplicidade supostamente impessoal e sedutora das
exposições de si, os personagens desertam esses movi-
mentos de poder - espécies de pirotecnia e iconoclastia,
superexcitações ruidosas. Esses movimentos são tam-
bém uma velha nova questão que implica cansaço e des-
canso, não um esgotamento.
Deleuze em entrevista a Marlene Chapsal refere-se
“a um prodigioso quadro de sintomas correspondentes à
obra de Samuel Beckett: não que se tratasse apenas de
identificar uma doença, mas o mundo como sintoma e o
artista como sintomatologista”,16 e ele enfatiza que esta
sintomatologia deve ser reconhecida em seu aspecto cri-
ador.
A acídia e o silêncio são criadores em Beckett. A acídia
numa aposta em sua frouxidão e em sua fecundidade, na
lentidão que não deve ser confundida tão somente com
entrega passiva ou enclausuramento. Aproximemo-la
àquela produtividade não pragmática referida anterior-
mente, um ativar-se para nada, que pode auxiliar em
uma certa operatoriedade política do involuntarismo. Um
uso astucioso e escrupuloso da abulia.
Escrúpulos no emprego da inapetência é o que rei-
vindica o filme Lavoura Arcaica, mais ainda, ele é um
filme que pergunta pela sujidade da vida. Filme de mis-
turas e indeterminação. Nada é limpo, asséptico, puro.
Na primeira cena os dois irmãos conversam na verdade
do vinho, in vino veritas ao modo do Banquete de Platão

210
verve

Transgressão e esgotamento: aguda indiferença...

ou de Kierkegaard. Logo aparecem os dois ramos da fa-


mília, o do pai, marcado pelo equilíbrio, luz e ordem e o
da mãe que se avizinha ao risco (onde estão o irmão e a
irmã que protagonizam o conflito principal do filme). Há
aqui também uma inocência, um involuntarismo trans-
gressivo. Não é uma aposta no contra, no negativo. É um
movimento menos humano, com a terra, as folhas co-
brindo, uma certa disponibilidade para o Elemental a que
se refere D. H. Lawrence, “Porque as pessoas não dei-
xam de ser amáveis ou de pensar que são amáveis, ou
de querer ser amáveis, e não são um pouco elementais
em vez disso?”17 Aqui também é recorrente a referên-
cia ao demônio no corpo, ao diabo, esse elemento de bor-
da, o que carrega. O personagem central na conversa
com o pai grita: “a impaciência também tem seus direi-
tos.” A saída do filho, o abandono da casa, não foi somente
uma fuga da opressão, da família, mas o filho torto, a ove-
lha negra, o epiléptico que vislumbra outra coisa. É sua
própria animalidade que o faz escavar uma saída, com
sua mãe como testemunha afetuosa e silenciosa.
O personagem central sabe e diz da frágil solidez da
ordem. Quer seus próprios remédios e venenos. O texto
de Raduan Nassar quase transcrito ao filme de Luiz
Fernando Carvalho, por vezes lembra, mesmo que às
avessas, mas não totalmente, um outro pai e uma outra
família, numa estranha zona de proximidade com o
romance As lojas de Canela, de Bruno Schulz.18 É todo um
emaranhado vivo, agudo, singularíssimo, os projetos
surdos de suicídio, os cheiros das roupas já usadas, man-
chas de solidão.
Na conversa com o pai falam das águas inflamáveis
do tempo, de uma geografia da moral e depois tudo é
paralisado, quando o personagem central desdiz tudo.
São enunciadas tantas máximas infernais que referi-
rei uma outra que não foi dita, a conversação final do

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11
2007

filho com o pai ressoa com os versos de William Blake


quase antecipando Foucault: “Prisões são construídas
com pedras da lei e bordéis com tijolos da religião.”19
Na última cena, a dança da irmã, bacante, possuída,
adornada com os objetos da caixa trazida pelo irmão, ves-
tígios de seus encontros extra familiares, de seus contá-
gios com o mundo. As fendas temidas pelo pai agora se
escancanram, abrem-se para a vida. Ninguém suportou
o jorro, essa embriaguez vital, máxima transgressão e
silêncio.
Um silêncio que precisa de muitas palavras, precede
e finaliza, ao modo de Beckett. Silêncio do intervalo, não
somente entre as palavras, mas no entre que não de-
signa uma correlação localizável. Acontecimento sem
início nem fim, jogo de uma vida que acedeu ao indefi-
nido. É esse o silêncio-sintoma criador que nos entres
isola os personagens de Beckett, dessubjetivando-os.
Sobriedade transgressiva de Beckett sintomatologis-
ta. Silêncio dos espaços infinitos, sem descanso nem
paz. Não mais o cansaço da pausa, ou recolhimento
solipsista, nem mesmo aquele que já teria dito o que
havia de ser dito,20 é o silêncio esgotado que se adensa
em alguns filmes que vimos, um uso do silêncio para
que as imagens se intensifiquem.
Transgressões esgotadas podem estar nesse silên-
cio.
Esgotamento e beatitude é o que acompanhamos no
filme a Menina Santa de Lucrecia Martel. A menina toca
as superfícies, se podemos pensar em santidade é ao
modo de Santa Tereza de Ávila, enfiada na espessura
dos problemas, das coisas, do mundo. Sua missão pros-
segue quase em silêncio. “Uma vocação para salvar uma
só pessoa não é pouco”, diz a menina. Seu silêncio é um
não dizer que é um sim. Que isola para estar à altura

212
verve

Transgressão e esgotamento: aguda indiferença...

das experimentações. Uma proteção provisória para


se defender das feridas mais grosseiras e parasitári-
as. O congresso médico, a formalidade das coisas, a
discussão religiosa sobre vocação, tudo isso tem ou-
tros ecos na menina. Nela e no médico Jano há algo
que transborda, um não resistir e ao mesmo tempo
perambular em silêncio. Um fechar-se estratégico, que
refere Nietzsche. Isolar-se para “não ver muitas coisas,
não ouvi-las, (...) reagir com menor freqüência possí-
vel”,21 para se abrir à violência das feridas mais sutis
da existência que aumentam a potência da vida. Não
o silêncio de uma blindagem, a menina preserva as
mãos abertas22 e sensações singularíssimas.
Uma vida quase imperceptível, mas não retraída
ou contemplativa em seu sentido comum. Ela consis-
te num instante sem limites, num se igualar ao mun-
do para vivê-lo em sua intensidade, e ao contrário de
contemplativo retraimento implica uma aguda ativi-
dade em boa parte inscrita no involuntário. Com uma
trama sutil, acasos e encontros, ao final, tudo está
próximo do afundamento enquanto as duas meninas
nadam.
Estes movimentos e políticas de transgressão, hi-
póteses especuladas a partir do encontro com estes
filmes, ressoam na pequena carta de Beckett à Michel
Polac, aceitando que trechos de Esperando Godot fossem
lidos em um programa de rádio. A carta foi a introdução
à performance radiofônica, pois Beckett se recusou a
conceder uma entrevista sobre seu trabalho. E é com
o texto desta carta que encerro estas notas. Nela, Beckett
escreve: “Você quer saber minhas idéias sobre Esperan-
do Godot, cujos excertos você me dá a honra de trans-
mitir no seu Club d’Essai, e ao mesmo tempo minhas
idéias sobre teatro. Eu não tenho idéias sobre teatro. Não
conheço nada. Não vou. É admissível. Bem menos é,

213
11
2007

antes, nessas condições, escrever uma peça e, então,


tendo feito isso, nem sequer ter idéias sobre ela.(...)
Eu não sei mais sobre essa peça do que alguém que
consiga lê-la com atenção. Eu não sei com que espíri-
to a escrevi. Eu não sei mais sobre os personagens do
que o que eles dizem, fazem e lhes acontece. Do as-
pecto deles devo ter indicado o pouco que pude entre-
ver. Os chapéus-coco por exemplo. Eu não sei quem é
Godot. Nem mesmo sei se ele existe. E não sei se eles
acreditam nisso ou não, os dois que o esperam. Os
outros dois que passam ao final de cada um dos dois
atos, deve ser para quebrar a monotonia. Tudo o que
consegui saber, eu mostrei. Não é muito. Mas me bas-
ta, é o suficiente. Diria até que estaria satisfeito com
menos. Quanto a querer encontrar em tudo isso um
sentido maior e mais elevado para levar consigo de-
pois do espetáculo, junto com o programa e as gulo-
seimas, não vejo nenhum interesse nisso. Mas tal-
vez seja possível. Eu não estou mais lá, nem estarei
jamais. Estragon, Vladimir, Pozzo, Lucky, o seu tempo
e o seu espaço, eu não pude conhecê-los um pouco
senão afastando-me bem da necessidade de compre-
ender. Eles talvez devam prestar contas a você. Que
eles se virem. Sem mim. Eles e eu estamos quites.” 23
Essas foram algumas notas avulsas e descartáveis,
um percurso supersônico por uma certa política com
a vida que esses filmes podem propor. Uma política,
lugar possível para inscrever o início de um debate.
Mais uma vez agradeço pelo convite, mais que isso
agradeço por estas intervenções bárbaras e sistemá-
ticas que o núcleo empreende, por esses nichos de
germinação (eventos, encontros, exposições, etc.), por
esses espaços de desregulagens criadoras, uma espé-
cie de guerrilha na imanência que tem engendrado.

214
verve

Transgressão e esgotamento: aguda indiferença...

Notas
1
Este texto foi escrito a partir de palestra apresentada por ocasião do Ciclo: Cinema,
Jovens e Transgressão, cujos filmes propostos foram Laranja Mecânica, Lavoura Arcaica,
Elefante, Zero de Conduta, Sonhadores e Menina Santa, na PUC-SP, no contexto dos
encontros propostos pelo Nu-Sol, em outubro de 2006.
2
Ver especialmente Paulo Rabinow. “Artificialidade e Iluminismo: da socio-
biologia à biossociabilidade” in Antropologia da razão: ensaios de Paulo Rabinow.
Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1999. Organização e tradução de João Gui-
lherme Biehl.
3
Ver prefácio de Espinosa, Baruch. Tratado teológico-político. Lisboa, Ed. IN/CM,
1988. Tradução de Diogo Pires Aurélio.
4
Nietzsche, Friedrich. Além do Bem e do Mal. São Paulo, Cia das Letras, 1992, pp.
135-136. Tradução de Paulo César de Souza.
5
Conforme a afirmação do caráter radicalmente inocente da existência em
Gilles Deleuze. Nietzsche e a Filosofia. Portugal, Editora Rés, s/d, parágrafos
8, 9 e 10. Tradução de António M. Magalhães. Bem como o artigo de Luis
Benedicto Lacerda Orlandi. “Marginando a leitura deleuziana do trágico em
Nietzsche” in Volnei Edson dos Santos (org.). O trágico e seus rastros. Londri-
na, Eduel, 2003, p. 21. No qual distingue inocência da mera ingenuidade,
candura ou pureza de belas almas.
6
Deleuze, Gilles. “L’épuisé”, que se segue a Quad et autres pièces pour la télévision, de
Samuel Beckett. Paris, Minuit, 1992.
7
Nietzsche, Friedrich. Além do Bem e do Mal - Prelúdio a Uma Filosofia do Futuro. São
Paulo, Editora Companhia das Letras, 2004, capítulo IV, parágrafo 94. p. 71.
Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza.
8
Beckett, Samuel. O Inominável. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1989, p. 47.
Tradução de Waltensir Dutra.
9
Nietzsche, Friedrich. Genealogia da Moral — Uma Polêmica. São Paulo, Editora
Companhia das Letras, 1998, p. 31. Tradução de Paulo César de Souza.
10
Friedrich Nietzsche. Segunda consideração intempestiva — da utilidade e desvan-
tagem da história. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2003, pp. 07-64. Tradução de
Marco Antonio Casanova.
11
Malone, referindo-se a animais, fardos e homens, sugere que: [...] Os animais
estão no pasto, o sol aquece as pedras e as faz faiscar. Sim, deixo minha felicidade e
retorno à raça dos homens também, que vão e vêm, muitas vezes com fardos. Eu os julguei
mal talvez, mas não creio nisso. Além do mais, eu nem os julguei. Quero apenas começar
a compreender como tais seres são possíveis. Não, não se trata de compreender. Do quê,
então? Não sei. Aqui vou eu de qualquer forma [...]. In Samuel Beckett. Malone
Morre. São Paulo, Editora Brasiliense, 1986 (e Círculo do Livro, 1988), p. 32.
Tradução e posfácio de Paulo Leminski.

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11
2007

12
Idem, p. 143.
13
Gilles Deleuze. L’ Épuisé. Paris, Minuit, 1992. p. 61.
14
Gilles Deleuze. Diferença e Repetição. Rio de Janeiro, Editora Graal, 1988, pp.
217-218. Tradução de Luiz Orlandi e Roberto Machado.
15
Idem, p. 217.
16
Gilles Deleuze. “Mística e masoquismo” entrevista concedida a Madeleine
Chapsal (La Quinzaine Litteraire, 1-15 de abril de 1967, p. 13) a propósito da
publicação de Présentations de Sacher-Masoch, acompanhada de um texto de
Leopold von Sacher-Masoch, “La Venus à la fourrure”. Paris, Minuit, 1967 in
Gilles Deleuze. A ilha deserta e outros textos — textos e entrevistas (1953-1974).
São Paulo, Editora Iluminuras, 2006, p. 172. Organização da edição brasileira
e revisão técnica de Luiz Benedicto Lacerda Orlandi.
17
William Blake e D. H. Lawrence. Tudo que Vive é Sagrado. Belo Horizonte,
Editora Crisálida, 2001, p. 141. Tradução de Mario Alves Coutinho.
B. Schulz. Lojas de Canelas. Rio de Janeiro, Editora Imago, 1996. Tradução de
18

Henryk Siewierski

19
William Blake e D.H. Lawrence. Op. cit., p. 31.
20
Fábio de Souza Andrade. Despalavras de Beckett. Caderno Mais!, Folha de São
Paulo, 19 de setembro de 1999.
Friedrich Nietzsche. Ecce Homo — Como Alguém se Torna o que é. São Paulo,
21

Companhia das Letras, 1995, p. 47. Tradução de Paulo César de Souza.


22
Idem, p. 47.
Beckett, Samuel. Uma carta sobre Godot. Tradução do francês de Leonardo
23

Babo. Paris, 1952. Folha de São Paulo, Caderno Mais!, 08 de setembro 1996.
Beckett escreveu ”Esperando Godot’’ em 1949, mas a peça só foi produzida
em 1953 em Paris, um pouco antes alguns excertos foram apresentados em
uma performance radiofônica no programa Club d’Essai’.

216
verve

Transgressão e esgotamento: aguda indiferença...

RESUMO

O artigo problematiza e explora filmes implicados com o tema:


Cinema, Jovens e Transgressão. Nos filmes analisados procu-
rou-se evidenciar uma política que ressoa em Samuel Beckett e
Gilles Deleuze, uma transgressão, um fio muito tênue, que diz
respeito a um estado da sensibilidade contemporânea. Um esgo-
tamento que está para além do cansaço.

Palavras- chave: transgressão, esgotamento, política.

ABSTRACT

The article complicates and explores films implied with the subject:
Movies, Young and Infringement. The analyzed films were found evi-
dent a politics that resounds in Samuel Beckett and Gilles Deleuze,
an infringement, a very thin line, which concerns a state of the
contemporary sensibility. An exhaustion that is far beyond the tired-
ness.

Keywords: infringement, exhaustion, politics.

Recebido para publicação em 03 de dezembro de 2007 e confirma-


do em 23 de outubro de 2006.

217
11
2007

arte: máquina de guerra

beatriz scigliano carneiro*

Arte pensa sem os moldes do pensamento, pensa


lidando, experimenta materiais, palavras, sons, sen-
sações, conceitos, objetos. Junta. Separa. Desmonta.
Justapõe. Informa. Deforma. Racha. Arte acontece e
analisa acontecimentos. Torna perceptível. Abre o olho.
Afina os ouvidos. Vibra as narinas. Atiça a pele. Não dá
sossego. Sinestésica, provoca sinestesias ao ecoar no cor-
po. Arte escapa de ser Arte. Lança aos doutos a pergunta
para sérias polêmicas: O que é Arte? E assim se evade
imperceptível, atravessa os templos, as salas bem pos-
tas, os cofres, foge veloz para a rua, para o lado de fora de
paredes que a guardam, protegem, valorizam. Leva com
ela seus artistas guerreiros, que não se abatem com
noites ao relento, isolados da balbúrdia bajuladora das
multidões que enaltecem quem retoca a imagem de seus

* Doutora e pós-doutoranda em Ciências Sociais na PUC-SP. Professora-pes-


quisadora no Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da
PUC-SP pelo Prodoc/Capes. Pesquisadora no Nu-Sol. Publicou o livro Relâm-
pagos com claror: Lygia Clark, Hélio Oiticica, vida como arte, pela Editora Imaginá-
rio/FAPESP em 2004.
verve, 11: 218-232, 2007

218
verve

Arte: máquina de guerra

espelhos. Não é qualquer arte, nem uma idéia de arte


em busca de canais de expressão, mas interessam ati-
tudes artistas que dão suporte à arte.
A arte escapa de elegantes salões e dos leilões, das
várias paredes de tijolos ou conceitos que a contém para
a contemplação, não como um espírito diáfano e puro,
mas carregada por pernas, braços, por corpos em fuga,
atentos ao instante exato de se moverem. São corpos de
carne, osso e sangue que percorrem as ruas, levados
pela arte, que mal sentem o frio da madrugada e os ho-
rários das refeições, concentrados em avançar pelas
invenções que vão esboçando. Invenções de máquinas
de guerra, irredutíveis aos aparelhos de dominação e às
soberanias hierárquicas. Necessárias à invenção guer-
reira de si. A arte é o que ocorre entre o artista, o que
este inventa e os espaços que ambos percorrem, produ-
zindo efeitos e catalisando forças.
A análise da arte que “cria mundos”, que constitui e
afirma estilos de vida se orienta por critérios que avali-
am se esta construção leva ao assujeitamento ou à
práticas de liberdade. Em outros termos, se tais cons-
truções artísticas funcionam como peça de aparelho de
captura, engrenagem de apaziguamento ou como má-
quina de guerra.
Por outro lado, tais critérios que não são dados pron-
tos, não formam um juízo. “O juízo impede a chegada de
qualquer novo modo de existência,”1 impede a apreen-
são “do que há de novo em um existente”2 e bloqueia a
invenção de modos de vida. Esses critérios resultam das
práticas e permitem que se percebam, dentro das mais
diversas atividades artísticas, aquelas que trazem for-
ças, aquelas que se constroem como máquinas de guer-
ra. Por resultar de experimentação concreta, parecem
estar sempre em fuga e não se separam da atividade
que se intenta analisar. A arte guerreira é aquela que,

219
11
2007

ao inventar-se, inventa as regras para sua análise e,


muito mais do que criar isso ou aquilo, “muda o valor
das coisas.”3 Portanto, para se chegar a essa arte é
preciso ir com ela, deslocar-se com a linha de fuga
que constrói, com os saberes que experimenta, com
as problematizações que acarreta. É preciso pensar
com a arte na perspectiva guerreira, recorrendo a
noções que não sejam apenas ferramentas analíticas,
mas armas.
A noção de máquina de guerra assinala que há uma
exterioridade em relação ao aparelho de Estado ou situ-
ações de autoridade hierárquica, uma exterioridade
que escapa constantemente da interiorização territo-
rial que o aparelho estatal exige para ser soberano. 4
Devido à capacidade em agenciar linhas de fuga e co-
nectá-las ao exterior, a máquina de guerra sofre cons-
tantes e, às vezes, bem sucedidos ataques de captura
por parte do Estado.
Todavia, cabe ressalvar que nem toda linha de fuga
é liberadora, há linhas de fuga destrutivas, linhas de
morte. O fascismo é um exemplo de um agenciamen-
to destas linhas destrutivas e auto-destrutivas em
uma máquina de guerra capturada, que se congela no
Estado e na afirmação de hierarquias.
Máquina de guerra relaciona-se com lutas e con-
flitos concretos e, conforme a relação que mantém com
a guerra, acaba se dividindo em dois pólos. De um lado,
quando efetiva a guerra e assim forma uma linha de
destruição, o Estado se apropria dela, “subordina-lhe
a fins políticos e lhe dá por objeto direto a guerra.”5
Aqui se incluem os choques e lutas em favor de gran-
des revoluções, que nada mais são do que aprimora-
mento do poder de Estado. Neste pólo, a máquina de
guerra se torna instituição estatal, uma instituição
capturada.

220
verve

Arte: máquina de guerra

No outro pólo, estão máquinas de guerra menores,


que traçam linhas de fuga para além do Estado e das
hierarquias, recusam a tornar-se modelos e, quando
percebidas, resistem à captura, assim, encontrando a
guerra. “(...) não seriam definidas de modo algum pela
guerra, mas por certa maneira de ocupar, de preen-
cher o espaço-tempo, ou de inventar novos espaços-
tempos.”6 Todavia, pode ocorrer que, no instante da
conquista, a máquina de guerra se metamorfoseie em
outra coisa, irredutível, lance seus dardos para longe e
escape, deixando para os captores uma casca esvazia-
da.
Em ambos os pólos há um constante movimento de
captura e fuga. Deste modo, esta noção possibilita que
se atravessem situações sem que se perca a dimen-
são libertária que possam carregar e sem fazer vista
grossa aos conflitos. Pode-se assim decodificar, captar
a passagem de algo, mesmo imperceptível, que des-
monta a identidade plena, os códigos bem postos. His-
toricamente a máquina de guerra se relaciona com um
agenciamento que nunca se fecha sobre uma forma de
interioridade ou em um território: o nomadismo.
Há uma disjunção entre o nômade e o mundo se-
dentário, no qual o sedentário seria o que procura sem-
pre codificar por meio de leis, instituições e o nômade
percorreria seus caminhos fora da Moral, fora dos tra-
çados do Estado, ignorando qualquer luta pelo reconhe-
cimento mediante critérios universais ou tidos como
tal, ou por um exercício de poder hierarquizante. “O
nomadismo não só é possível no interior do Estado, como
é absolutamente necessário para a sobrevivência de
alguns indivíduos.”7 Existências que funcionam como
máquina de guerra não se apresentam como alterna-
tivas aos modelos de subjetivação assujeitada do Esta-
do, mas carregam a força da exterioridade “que destrói

221
11
2007

a imagem e suas cópias, o modelo e suas reproduções,


toda possibilidade de subordinar o pensamento a um
modelo do Verdadeiro, do Justo ou do Direito.”8
Não se trata de um duplo contraditório: ou sedentá-
rio ou nômade, que ocupariam pólos separados. Ambos
podem estar no mesmo lugar, mas vivendo em planos
diferentes que se interceptam em situações de tensão.
Não se complementam, não são se alternam. Por outro
lado, não apenas os nômades históricos “possuem o
segredo [da máquina de guerra]: um movimento artís-
tico (...) pode ser uma máquina de guerra potencial,
precisamente na medida em que traça um plano de
consistência, uma linha de fuga criadora, um espaço
liso de deslocamento (...).”9 Pois é este traçado, este
agenciamento que se constrói sobre linhas de fuga que
define o nômade e a máquina de guerra. Não é o nô-
made que define a linha de fuga, ele é constituído por
ela.
Um artista qualquer, na medida em que escapa da
identidade sedentária de “domesticador de imagens”10
e se articula com uma exterioridade, caminhando com
linhas de fuga desconhecidas, neste momento, se en-
contra atravessado pelo nomadismo. O artista nômade
é aquele que se deixa levar pelas linhas de escape para
fora das identidades e categorizações. Suas obras ex-
pressam modos de existência e abrigam também o que
se classificaria como algo fora da arte, dissolvendo clas-
sificações arte e vida, individual e coletivo, público e
privado, abrindo passagens imprevistas entre mundos,
expandindo galáxias.
Até que ponto este artista vai se manter à altura do
caminho de sua própria arte depende da coragem de se
deslocar através dos riscos que a atividade artística
guerreira traz. Depende também da capacidade em
montar uma máquina de guerra que agencie linhas de

222
verve

Arte: máquina de guerra

fuga liberadoras e guerreiras e construa um plano de


consistência, um modo de conexão — “só tem consis-
tência, aquilo que aumenta o número de conexões”11
—, para enfrentar a “grande conjunção dos aparelhos
de captura ou de dominação.”12

***

Em 1968, as ruas de cidades em várias partes do


mundo foram ocupadas quase que simultaneamente por
ativistas, políticos, filósofos, operários, artistas, estudan-
tes, jovens na maioria. As instituições consagradas para
disciplinar corpos e mentes receberam a carga de contes-
tações múltiplas vindas de inúmeros setores manifesta-
das em praças públicas. No entanto, sorrateiramente,
em reação às formas de rebeldia dos anos 1960, as
formas de dominação corriqueiras começaram a se
metamorfosear em outra configuração.
Controle, “nome que Burroughs propõe para desig-
nar o novo monstro,”13 predomina na caracterização da
atualidade. Desde o Post-scriptum de Gilles Deleuze,
publicado em 1990, esta noção se tornou imprescindí-
vel para problematizar aspectos das relações sociais e
avaliar as resistências de uma perspectiva libertária.
Uma procedência da descrição do controle encontra-
se em Norbert Wiener, que em 1948 recuperou a pala-
vra grega kybernetes, “piloto de barco” — origem da
palavra “governador” — e denominou o amplo campo da
teoria das mensagens como cibernética.14 Tal teoria se
refere não apenas ao uso das máquinas, mas inclui uma
psicologia, um paradigma científico e as implicações
sociais de sua aplicação.15 Para Wiener comunicação e
controle se situam na mesma classe de elementos, mas

223
11
2007

com uma importante distinção. Comunicação é a sim-


ples transmissão de uma mensagem. Por sua vez, o con-
trole consiste em uma situação na qual o comando das
ações de outra pessoa depende da transmissão de uma
mensagem no imperativo, e a resposta do outro precisa
manifestar que a ordem foi compreendida.16
Burroughs retomou o termo controle da cibernética,
associando-o mais explicitamente às práticas de coman-
do e governo das ações e comportamentos. Em artigos e
entrevistas entre 1968 e começo dos anos 1970, ana-
lisou situações de dominação não necessariamente
ligadas aos meios eletrônicos. Encontrou no antigo calen-
dário maia um modelo que esclareceu aspectos dos
métodos modernos do controle. “Os antigos maias pos-
suíam um dos mais precisos e herméticos calendários
de controle jamais visto neste planeta, um calendário
que de fato controlava o que o povo pensava e sentia em
qualquer dia determinado.”17 O conhecimento do calen-
dário e dos detalhes de sua aplicação era reservado a
uma casta de sacerdotes que mantinha seu domínio
praticamente sem contingentes policiais nem soldados.
Ao se referir aos movimentos de contestação que, na
enorme velocidade proporcionada pelos meios de co-
municação, se espalhavam pelas ruas nos anos 1960,
Burroughs observou que quem controlava fazia conces-
sões para continuar controlando.18 Constatou que o
controle precisaria de oposição para se exercer, se não
houvesse nenhuma resistência, o controle não existi-
ria. Neste contexto, avaliado pelo escritor no calor dos
acontecimentos, é possível compreender melhor porque
um dos efeitos das contestações dos anos 1968 foi alguma
flexibilização da disciplina por meio de transformações
institucionais.
O controle aparece com maior visibilidade enquanto
toma o modelo de uma exacerbação de certas projeções

224
verve

Arte: máquina de guerra

disciplinares, como a de vigilância constante, na qual


se criam maneiras para que o vigiado se sinta perma-
nentemente observado durante algum confinamento. O
controle contínuo corre ao lado do aperfeiçoamento das
instituições prisionais e outros equipamentos para a
prática disciplinar. Agora, porém, o ato de vigiar ocorre
também em espaços abertos, vigia-se também a rua com
câmeras e satélites.
Entretanto, o controle não disciplina os corpos ex-
traindo deles as forças para o trabalho, ou reprimindo-
as em nome da ordem social, em espaços confinados.
Ações de controle não se resumem a técnicas sofistica-
das de vigilância, nem objetiva produzir sensações de
se estar sendo reprimido, pois no controle encontram-
se previstas resistências e oposições. “Agora não esta-
mos mais em um mundo onde um olha para muitos,
mas no seu reverso, no qual muitos olham para o um
eletrônico, traduzido numa midiosfera governada por
sinopses, em que prevalece a televisão, as sondagens,
os programas de computação e a Internet. É o tempo da
democracia midiática em que todos devem participar.”19
De início, quando se flexibilizam disciplinas, as téc-
nicas de controle surgem como conquista de liberdade.
Como no caso da Liberdade Assistida, uma das medidas
sócio-educativas previstas pelo Estatuto da Criança e
do Adolescente-ECA, criado em 1990 pelo Estado brasi-
leiro, implantada com o intuito de reduzir a internação
de jovens com infrações leves. A institucionalização da
L.A. incorporou experiências realizadas em paróquias e
sociedades de bairro que, visando retirar jovens das
prisões da FEBEM, inventaram formas de acompanha-
mento dos casos fora das grades. Entretanto, em poucos
anos, desde sua implantação, o contingente confinado
aumentou, tanto quanto o número de atendidos pela
L.A.20 Não funcionou apenas como uma flexibilização das

225
11
2007

disciplinas, mas se mostrou eficaz técnica de se neu-


tralizar e prevenir resistências à manutenção de puni-
ções e ao sistema penal para jovens, além de ampliar o
elenco das condutas passíveis de castigo.21 Estas e outras
medidas, como a criação do hospital dia para enfrentar
a crise hospitalar, exemplo citado por Deleuze, também
“passaram a integrar mecanismos de controle que riva-
lizaram com os mais duros confinamentos. Não cabe
temer ou esperar, mas buscar novas armas.”22
Participação contínua, flexibilização das disciplinas,
ênfase no aprendizado constante mediante programas
estruturados, circulação veloz de informações: estas
são algumas práticas do controle. Mudanças de estilos
de vida pela ação tecnológica também estão em curso.
As instituições disciplinares, como escolas, prisões,
asilos, exércitos, criam moldes identitários fixos, algumas
vezes estigmas para toda a vida, os quais são impres-
sos em quem por elas passam, com ressonâncias na
própria maneira de perceber o mundo. Ao mesmo tempo,
a difusão das tecnologias de comunicação e de registro
em banco de dados, pelas quais o controle se exerce
em espaços abertos, tem feito com que identidades
fixas coexistam com “sujeitos flexibilizados”23 e adap-
táveis dentro de uma “cartela” de opções, muitas vezes,
resultantes de cuidadosos estudos de técnicas de sub-
jetivação.
Enquanto prática de assujeitamento, a subjetivação
se deixa capturar por instituições religiosas, estatais
ou educacionais, e assim funciona como modelagem
do íntimo de cada um de acordo com “fôrmas” estabele-
cidas. Foucault descreveu o poder pastoral caracteri-
zado pela interiorização de uma verdade subjetiva por
cada membro do rebanho, como um tipo de poder ins-
taurado no ocidente a partir da disseminação do cristia-
nismo. Esta modalidade de relações de poder foi perdendo
a característica religiosa e “encontrou no Estado um

226
verve

Arte: máquina de guerra

novo suporte e um princípio de transformação,”24 en-


raizando-se na razão do Estado.25
Atualmente, moldar o íntimo dos indivíduos não
depende apenas de figuras similares a um pastor ou de
estruturas burocráticas centralizadas. Técnicas diversas,
provenientes dos saberes das ciências humanas, por meio
de tantas outras técnicas de divulgação e propaganda,
disseminam conhecimento da “verdade” de cada um e pa-
drões de comportamento adaptáveis a condições momen-
tâneas. “A ‘personalidade flexível’ representa uma forma
contemporânea de governamentalidade, um padrão inter-
nalizado e cultural de coerção suave,”26 sem relação direta
com práticas disciplinares.
Há formação de um verdadeiro “mercado de subjetivi-
dades”,27 com estímulos à modificação do comportamento
de modo a adequá-lo a estilos de vida focando o consumo
e relações de trabalho, à modificação do corpo confor-
me padrões ‘desejáveis’, divulgados pela literatura de
auto-ajuda e pela mídia. Neutralizou-se drasticamente
a resistência aos modelos de sociabilidade associados
a padrões de dominação. Corpos disciplinados e vontades
que se sentem seguras sob controle constante geram
consenso e tolerância mútua. Ao mesmo tempo, des-
qualifica-se qualquer atualização de modos de vida impre-
vistos, de algum “gesto que transtorna.”28
A questão da produção de modos de vida remete às
considerações de Foucault acerca das tecnologias de si.
Estas são práticas sobre o corpo ou espírito, efetuadas por
pessoas interessadas em atingir alguma finalidade. As
práticas de si, pelas quais um sujeito se constitui de modo
ativo, derivam de esquemas e vivências encontrados na
cultura, na sociedade, na história, no grupo social.29 Se a
invenção da escrita consolidou uma arte de viver baseada
na subjetivação dos discursos lidos e ouvidos em “múscu-
los e sangue,”30 os meios eletrônicos, especialmente o

227
11
2007

computador, com suas imagens e textos abertos à in-


terferência pessoal e coletiva, permitem processos de
subjetivação inéditos na história.
Afirma-se inclusive, o nascimento de uma nova cultu-
ra, denominada cibercultura,31 termo que recupera a
definição de cibernética, retirando-lhe, porém, a refe-
rência mais política ao “governo” ou à “pilotagem”, mas
não deixa de ser um nome, redundante, para a caracteri-
zação da cultura da sociedade de controle. As resistênci-
as aos policiamentos interiorizados se tornou uma
questão política urgente. Onde estariam as liberações,
muitas vezes pulverizadas em acontecimentos imper-
ceptíveis? Quais são os usos destes meios eletrônicos
de hoje para além de consolidar o controle? “As máquinas
não explicam nada, é preciso analisar os agenciamentos
coletivos dos quais elas são apenas uma parte.”32 De que
modo a potência de alguma máquina de guerra tracejada
pela arte estaria já desmontando a subjetivação assujei-
tada do controle, na qual ser adaptável e participativo se
tornaram padrões?
Entretanto, nem toda arte tem combatido assujeita-
mentos, nem tracejado linhas de fuga liberadoras. Há
arte que apenas entretém ou decora, há arte que apazi-
gua, há arte que apela a ressentimentos, há arte que
denuncia, há arte que serve à palavras de ordem.
O que é Arte? Na sociedade de controle apela-se à parti-
cipação contínua, também por meio de atividades artísti-
cas. O que é Arte? Arte é o que: Arte tira crianças da rua.
Arte inclui moradores da periferia na comunidade. A
arte promove a participação. Arte estimula a auto-estima.
A arte denuncia as falhas de instituições procurando
aprimorá-las. A arte conscientiza. A arte leva à maio-
ridade. Arte é o que: O artista passa a ser animador
cultural, não precisa mais fugir por nenhuma linha que
o leve pra fora, agora é um cidadão participativo.

228
verve

Arte: máquina de guerra

Não é nesse pólo sedentário que a máquina de guerra


agencia linhas de fuga diruptivas. Em capturas contro-
ladas não se deixa divisar sequer uma gota de sangue.
A “grande conjunção dos aparelhos de captura ou de
dominação” controla o conflito também distribuindo sor-
risos tolerantes e brindes de festas.
Interessa a arte atravessada pelo outro pólo da má-
quina de guerra, no qual a atitude artista mantém a
coragem de dizer não — um não afirmativo — às injun-
ções evidentes do controle e dizer não ao que constitui
um aspecto sutil do “novo monstro,” a saber, as “alegrias
do marketing”33 ou então “as alegrias do capitalismo
liberal.”34 Neste pólo a linha de fuga faz conexões com
modos de existência e experimenta caminhos próprios,
percursos nômades.
Aqui, a arte se constrói como máquina de guerra e
escapa das programações que lhe são oferecidas como
itinerários inevitáveis.35 Caso for percebida neste aspecto
de recusa simultânea à afirmação ética, encontra a
guerra e enfrenta as forças dos aparelhos de captura,
tanto as forças coercitivas, quanto as sedutoras.
Da perspectiva dos efeitos liberadores das linhas de
fuga, avaliam-se as forças e correntes coletivas que
agenciam a arte enquanto potência de resistência,
invenção ou que a capturam. Ao mesmo tempo em que,
com arte, se inventam as formas por vir, se exercitam
éticas, se experimentam as sociabilidades que ultra-
passam limites. E se inventam armas.

Notas
1
Gilles Deleuze. Crítica e Clínica. São Paulo, Editora 34, 1997, p.153. Tradução
de Peter Pal Pélbart.
2
Idem, p.153.

229
11
2007

3
“Criar não é tarefa do artista. Sua tarefa é mudar o valor das coisas” Yoko Ono.
Apud. Hélio Oiticica. Experimentar o Experimental, 22 de março de 1972. (da-
tilografado). Projeto HO.
4
Gilles Deleuze e Félix Guattari. “1227-Tratado de Nomadologia: a Máquina
de Guerra”. Mil Platôs — capitalismo e esquizofrenia v. 5. São Paulo, Editora 34,
1997, p.23. Tradução de Peter Pál Pelbart.
5
Idem, p. 106.
6
Gilles Deleuze. “Controle e Devir”. Conversações. São Paulo, Editora 34,
1998, p. 212. Tradução de Peter Pál Pelbart.
7
Regina Schöpke. Por uma filosofia da diferença: Gilles Deleuze, o pensador nômade.
São Paulo, EDUSP; Rio de Janeiro, Contraponto, 2004, p. 169.
8
Gilles Deleuze e Félix Guattari, 1997, op. cit., p. 47.
9
Idem, p. 109.
10
O Estado inspira uma imagem do pensamento, com diversos contornos e
variações. O artista ,“o poeta pôde exercer, em relação ao estado imperial a
função de domesticador de imagens”, como um “funcionário da soberania”. Ibi-
dem, p. 45.
11
Gilles Deleuze e Félix Guattari. “Conclusão: regras concretas e máquinas
abstratas”, 1997, op. cit., p. 223.
12
Gilles Deleuze. “Post-scriptum sobre a sociedade de controle”. In 1998, op.
cit., p. 220.
13
Gilles Deleuze e Félix Guattari. “1227-Tratado de Nomadologia: a Máquina
de Guerra”. In 1997, op. cit., p. 110.
14
Norbert Wiener. Cibernética e sociedade: o uso humano dos seres humanos. São
Paulo, Cultrix, 1968, p. 15. Tradução de José Paulo Paes.
15
Idem, p.15.
16
Idem, p. 16.
17
Daniel Odier. The job: interviews with William S. Burroughs. New York,
Penguin., 1989, p. 38. (tradução da autora).
18
William Burroughs. “The limits of control (1975)”. Grauerholz; Silverberg
(ed.) Word Vírus: A William Burroughs Reader. New York, Grove Press, 1998,
pp. 341-342.
19
Edson Passetti. Anarquismos e sociedade de controle. São Paulo, Cortez, 2003,
p.13.
20
Thiago Souza Santos. “Liberdade assistida: uma tolerância intolerável”. In
Verve 9. São Paulo, Nu-Sol, 2006, p. 120.

230
verve

Arte: máquina de guerra


21
Idem, p. 122.
22
Gilles Deleuze. “Post-scriptum sobre a sociedade de controle”. In 1998, op.
cit., p. 220.
23
Brian Holmes. The flexible personality: for a new cultural critique. Disponível em
http://www.16beavergroup.org/brian/, acessado em outubro de 2005. (tra-
dução da autora).
24
Michel Foucault. “La philosophie analytique de la politique”. Dits et écrits, v. II.,
Paris, Gallimard, 1994, p. 551. (tradução da autora).
25
Idem, p. 550. (tradução da autora).
26
Brain Holmes, op. cit. (tradução da autora).
Cristian Ferrer, O anarquismo heterodoxo de Cristian Ferrer. Entrevista, por Ilana
27

Feldman. Disponível em http://p.php.uol.com.br/tropico/html/textos/


2505,2.shl, acessado em outubro de 2005.
28
Edson Passetti e Salete Oliveira (Orgs.). A Tolerância e o Intempestivo. São
Paulo, Atelier Editorial, 2005, p. 14.
Michel Foucault. “L’éthique du souci de soi”. Dits et Ecrits, v.4, Paris,
29

Gallimard, 1996, p.356. (tradução da autora).


30
Sêneca. “Carta 84”. Cartas a Lucílio. Tradução de J. A. Segurado e Campos.
Lisboa, Fundação Calouste Gulbekian, 1991, p. 381.
31
André Lemos. Entrevista virtual, 24 de novembro de 2003. Disponível em
http://www.magnet.com.br/bits/especiais/2003/11/0001, acessado em no-
vembro de 2005.
32
Gilles Deleuze. “Controle e Devir”. In 1998, op. cit., p. 216.
33
Gilles Deleuze. “Post-scriptum sobre a sociedade de controle”. In 1998, op.
cit., p. 226.
34
Gilles Deleuze. “Controle e Devir”. In 1998. op. cit., p. 213.
35
A distinção conceitual entre percurso e itinerário encontra-se em Hypomnemata
58, fevereiro de 2005. http://www.nu-sol.org/hypomnemata/
hypomnemata58.htm

231
11
2007

RESUMO

Neste artigo considera-se a arte como máquina de guerra, enquan-


to invenção de novas práticas e arma de resistência. Propõe-se
aqui iniciar uma discussão mais ampla acerca da arte sob o foco
da experimentação de estilos de vida para enfrentar o controle e
afirmar valores libertários.

Palavras-chave: arte, máquina de guerra, práticas libertárias.

ABSTRACT

In this article art is considered as war machine, as the invention


of new practices and resisting weapon. It is proposed to start a
broader discussion on art focusing ways of life experiences to
face control and to assert libertarian values.

Keywords: art, war machine, control society.

Recebido para publicação em 22 de agosto de 2006 e confirmado


em 25 setembro de 2006.

232
verve

Cantos da revolução 2

jamais teria imaginado


que após a torrente
e o jogo de longos cabelos
machos crescidos na
rebelião dos anos sessenta
que os cabelos curtos
de tipo militar
seriam moda
nos anos oitenta

jamais teria previsto


quando abandonaríamos
o estilo habitual de
hábitos conformistas
a favor da revolução
do indivíduo simplesmente
infringindo as leis do vestir
que terno e gravata
seriam uma vez mais fechados
sobre as costelas e sobre a vontade
como um tributo às fotos do rico
e da riqueza

233
11
2007

pensava que precisamente no limite do


justo grau de pobreza
o nosso pensamento pudesse posar
resplandecendo na luz do sol
e não pensava
que assim como nada seríamos tornados
ao topázio da riqueza
vestindo roupas como se estivéssemos
vestindo poder

não imaginava
quando falávamos de amor livre
que pudesse transformar o sexo
no jogo de futebol
um jogo livre
cheio de abatidos
não me dava conta
quando as multidões de anarquistas
começavam a reaparecer
sobre as colinas do arno
e do pó
que eles eram unidimensionais
amáveis, mas sem suficiente substância

234
verve

para enfrentar as incumbentes


desordens
e o nosso atavismo bárbaro
e muitos fundadores choraram
pela sua unidimensional
previsão
e visto a sua dinamite
fazer explodir cidades
a sua física do vôo usada
para o terror
não tinha previsto
o quanto fossem insidiosos os abraços da
democracia
creio que todos desejam
passar a um nível superior
voando além
dos limites mesquinhos
das nossas vidas
a luz sublime

(julho de 1982)

235
11
2007

o único e sua propriedade1

john henry mackay*

(Parte 2)

Assim nos fala Max Stirner.


Como nós respondemos a ele?
A tentativa de avaliar seu trabalho dificilmente pode
ser melhor do que repetir suas palavras; ainda assim
devemos fazê-lo para ao menos indicar o que faz esse
livro ser incomparável.

* John Henry Mackay (1833-1864), filho de uma alemã e um escocês, viveu na


Alemanha com sua mãe após a morte precoce de seu pai. Sua longa trajetória
literária inclui escritos de diversos gêneros, mas ficou conhecido como poeta
lírico e anarquista. Seus escritos gay-amorosos foram publicados sob o pseudô-
nimo de Sagitta. A redescoberta de Max Stirner é atribuída a Mackay.

verve, 11: 236-271, 2007

236
verve

O único e sua propriedade

O significado de Der Einzige hoje é o que foi há se-


tenta anos atrás: mais suspeito e sentido do que re-
conhecido. Como poderia ser diferente em tempos em
que efetivamente tudo em que nos apoiávamos estava
sendo abalado, quando fazíamos um sincero esforço em
colocar novos valores no lugar dos velhos, quando o ve-
lho e insípido vinho foi reiteradamente derramado em
novas garrafas, em vez de ser jogado fora, e quando
estávamos ainda tão pouco convencidos da completa
inutilidade de grande parte dos valores.
A raça humana está entre a noite e o dia. Meio acor-
dada, nós esfregamos o nosso olho, ainda pesado e so-
nolento, e ainda não ousamos olhar para a luz.
Nós não somos capazes de nos separar dos velhos
abrigos dos nossos conceitos, ainda que se choquem
com as nossas cabeças; nós somos muito covardes para
deixar nosso velho país e nos lançarmos ao mar da auto-
consciência, que sozinha pode nos conduzir à outra
margem; nós ainda não temos uma genuína confiança
no futuro, apesar, ou no entanto, porque não temos mais
qualquer confiança em nós mesmos.
Nós não acreditamos mais em Deus, certamente
não. Tornamo-nos ateístas, mas permanecemos “de-
votos”. Nós não rezamos mais diante do bicho-papão2
da igreja, nós nos ajoelhamos diante dos santuários
dos nossos egos interiores.
Nós nos intoxicamos da mesma maneira e nossa
miséria ao acordar é a mesma. Nós apenas acordamos
com mais freqüência, e nossa condição hesita entre a
embriaguez e a dúvida, não mais a intoxicação eterna
e sagrada do primeiro, dos “verdadeiros” cristãos.
Assim, esse homem junta-se a nós.
Ele não aparece com a condescendência do padre:
ele não está a serviço de Deus, nem à de nenhuma

237
11
2007

idéia; nem sob a proteção da professora — ele deixa


para nós a decisão sobre se acreditamos ou rejeita-
mos o que diz; nem com o cuidado do médico — ele
nos deixa viver e morrer — pois sabe que a nossa ilu-
são é nossa doença. Ele não vem como o filósofo que
procura nos envolver na rede de um novo sistema de
especulação; ele rejeita a linguagem do filósofo, essa
língua disforme, obscura e ininteligível, utilizada por
todos aqueles que pretendem falar apenas entre si;
ele cria para si sua própria linguagem, pois sabe que
todo conhecimento pode ser compreensível, se assim
o quiser.
Ele não fala de nós; ele raramente fala conosco.
Ele fala dele e apenas dele, e nós vemos como isso,
seu Eu, remove uma amarra após a outra, até estar livre
da última, ele permanece em orgulhoso auto-senhorio
como seu próprio soberano, inconquistável, no lugar
onde finalmente conquistou.
A incomparabilidade e unicidade, anunciadas por
Stirner, não são mais nem menos que a declaração
de soberania do indivíduo. Até agora se falava apenas
de seus direitos e deveres, e de onde ambos começam
e terminam; mas ele se afirma livre do último e em
comando do primeiro. Nós temos que decidir por nós
mesmos. E como não podemos retornar à noite, deve-
mos ir ao dia.
Pois agora sabemos que somos todos egoístas. Quando
vemos nossos feitos, vemos que alguns já nos levaram
longe, muito mais longe do que a nossa consciência
quer admitir, enquanto os outros nos envolveram nos
conflitos mais insolúveis. Seria em vão continuar
buscando iludir a nós mesmos e aos outros sobre as
bases de nossas ações. Agora que os reconhecemos, o
que resta a nós se não agir de acordo?

238
verve

O único e sua propriedade

O sucesso irá nos ensinar aquilo pelo qual temos que


agradecer a Stirner, se o exemplo daqueles que já vive-
ram suas vidas ainda não nos mostrou.
É o nosso conhecimento final. Não mais resista-
mos. O dia está chegando não muito cedo após uma
noite demasiadamente longa!
Ele levantou pescoços inclinados pressionou a espada
nas mãos paralisada: tirou-nos a fé e nos deu a certeza.
Lembrou-nos de nossos verdadeiros interesses, dos nos-
sos interesses mundanos, pessoais, próprios, especiais, e
nos mostrou como buscá-los, em vez de nos sacrificar
pelos interesses ideais, sagrados, estrangeiros — os in-
teresses de todos — traz de volta a felicidade da vida,
que nós aparentemente havíamos perdido.
Ao analisar o Estado dos políticos, a sociedade dos so-
cialistas, a humanidade dos humanistas e ao trazê-los à
consciência como as barreiras à nossa propriedade, ele
deu o golpe fatal na autoridade — quebrada com o desejo
de poder da maioria, da totalidade, e de seus privilégios
— e em lugar do cidadão, do trabalhador, do homem, en-
tra o Eu, em lugar do destruidor intelectual, o criador
encarnado!
Mas não apenas isso: ao dedicar a outra parte do seu
trabalho à exaustiva investigação das condições sob as
quais esse Eu sozinho está numa posição para se desen-
volver até sua unicidade, ele o mostra em seu poder, sua
relação, sua auto-satisfação — os meios da sua força e
sua vitória final.
E no lugar da nossa raça cansada, torturada, auto-
martirizada, entra aquela orgulhosa e livre de Der Einzige
— a qual o futuro pertence.
O que ele fez, fez para ele, porque lhe dava prazer.

239
11
2007

Ele não pede agradecimento algum, e nós a ele deve-


mos nenhum.
Ele apenas nos lembrou de nossas ofensas contra nós
mesmos!
Isso é o que ele fez; e como fez não é menos que admi-
rável.
Se a naturalidade e a força são as marcas do verdadei-
ro gênio, então Max Stirner era um gênio de primeira gran-
deza. Ele vê o mundo e seu povo com seus próprios olhos e
tudo está ali diante dele na nítida luz da realidade.
Nada pode perturbar ou iludir sua visão: nem a noite
do passado, nem a colisão dos desejos de seu próprio tem-
po. Seu trabalho é completamente original, e nenhum
livro teria sido escrito com maior objetividade e ausência
de preconceito do que esse: Der Einzige und sein Eigen-
thum. Não há nada, mas nada mesmo, que Stirner as-
suma como firme e dado, a não ser seu próprio Eu. Nada o
espanta ou confunde, de início nada o “impressiona”.
Assim, ele se parece com a verdadeira criança daquele
tempo crítico, tão infinitamente adiante que começa onde
os outros se afastaram. Essa objetividade confere à sua
palavra essa certeza auto-evidente que possui este espan-
toso efeito sobre uns, e vitorioso sobre outros.
A lógica do pensador é incomparável. A consistência
lógica rígida de suas conclusões não se retrai diante de
nenhuma conseqüência. Ele não permite ao leitor levar
seus pensamentos até o fim de seus territórios; ele mes-
mo o faz. Conceitos que pareciam ser até agora inquesti-
onáveis são resolvidos por ele um a um e ele os permite
entrar em colapso. Ele rastreia o significado das palavras
até apreender seu entendimento correto, que está frequen-
temente em completa contradição com aquele que lhe era
atribuído até então. Ele despe os grandes conceitos de sua
pompa e os mostra em seu vazio; ele traz de volta à honra

240
verve

O único e sua propriedade

os desdenhados, condenados pela linguagem comum. Ele


nos ensina pela primeira vez seu verdadeiro uso.
Até agora não se pôde demonstrar sequer uma contra-
dição interna nele; o futuro não terá nada a fazer a não
ser levar adiante o que ele estabeleceu para todo o tempo.
Novas perspectivas irão se abrir em abundância, mas ele
encerrou esta discussão.
Em sua despreocupação divina e sua lógica impiedosa,
sua obra se parece com a de um homem que fez; como um
dos mais afiados pensadores de nossa época diz a respeito
do único, “não para agradar outros, mas em primeiro
lugar para agradar o próprio criador”. Já que Stirner foi
incapaz de viver de acordo com seu desejo, sua aversão foi
despertada e ele criou a obra de sua vida, sobre a qual
despejou toda a sua liberdade, enquanto todos ao seu
redor se exauriam em furiosas exclamações e fanatismo
intolerante.
Se calma, autonomia, superioridade, alegria, ironia e
generosidade são sempre as melhores marcas do verda-
deiro homem livre, afobação, incerteza, indignação, emo-
tividade, irredutibilidade dogmática e futilidade obtusa são
marcas do homem sedento pelo poder.
Um frescor no prazer na batalha perpassa esse livro da
primeira a última página. Estar à altura de seu próprio
adversário, ter um real adversário que se oponha a ele, o
qual ele possa olhar nos olhos e capturá-lo, o qual “ele
mesmo repleto de coragem, sua própria coragem” infla-
ma, estar face-a-face na batalha, é isso que Stirner dese-
ja para si! [Mackay parafraseia aqui parte das citações de
Stirner encontradas em Schiller, Wallenstein’s Tod, Ato 1,
Cena 4. Ver nota na página 1783].
Mas também ali onde o inimigo se retira timidamen-
te, onde em seu lugar surgem os fantasmas da loucura e
da ilusão, as sombras do passado, ele persegue os fugiti-

241
11
2007

vos até os esconderijos mais remotos e não descansa até


trazê-los à luz do dia e os despir como os espectrais fantas-
mas da nossa obsessão.
Ouropel e imundice— ele elimina ambos: o primeiro
não o ilude e o segundo não lhe é repugnante; o ouropel
do intelectual e a sujeira do indesejado desaparecem
diante da consciência de sua unicidade.
Sua coragem é incomparável e não se encolhe di-
ante de nenhum adversário. Ele não reconhece qual-
quer autoridade sobre si. Nada lhe é sagrado. Ele é mais
do que o debochador, mais do que o crítico. Ele é o gran-
de zombador. E sua risada chama-se liberação.
Essa coragem é sempre a mesma. Os velhos con-
ceitos, aparentemente enraizados no solo dos séculos
e firmes para a “eternidade da raça do homem” —, ele
os ataca corajosamente, assim como os recém apare-
cidos slogans de sua época, aos quais trata de “ideais
do futuro”, de uma nova época, e ambos, o velho e o
novo, decadentes e valiosos quando por ele tocados.
Tudo o que ele ataca luta sob uma bandeira, um si-
nal, uma fé. Mas ele luta só e ergue-se e cai com seu
eu — o mais significativo exemplo para a verdade das
palavras de Ibsen: “O mais forte dos homens é aquele
que está mais só” [extraído de Um inimigo do povo].
Mas tão grande quanto sua coragem é sua antevi-
são. Ele sabe que as mãos atadas não podem lutar e
que a língua paralisada não pode falar. Ele não se en-
trega às mãos do inimigo. Ele conhece a tola estupidez
do poder soberano, que em sua onipotência divina as-
sombra as moscas cujo zumbido perturba seu sono e
não percebe a raposa que se infiltra no castelo. Stirner
sabe, basta dizer “Prússia” e a obra de sua vida está des-
truída; dizer “China e Japão”, e toda criança sabe o que
ele quer dizer. Até mesmo as aulas de dinamarquês e o

242
verve

O único e sua propriedade

vizinho “autocrata de todos os russos” ele nomeia ape-


nas com...; e desde que fala de um “certo” Estado. É
evidentemente um jogo infantil; mas o poder é cego e
ele ri diante dele. Apenas quando acredita que suas
mãos certeiras talvez possam alcançá-lo é que ele dei-
xa o jogo e defende-se prontamente de uma acusação
criminal: ele escolheu a palavra “indignação” (Em-
pörung] apenas por seu significado etimológico, e não
a utilizou em sua acepção “limitada”, significando “rejei-
tada pelo direito penal”.
A armadura do pensador é impecável. Ele traz para
a solução de suas tarefas um conhecimento que nun-
ca o deixa sem recursos. Busca incansavelmente
exemplos que necessita na história do passado. A bíblia,
sobre a qual ele era sem dúvida um grande conhecedor,
sempre o proporcionava os exemplos necessários. Ape-
nas essa maravilhosa exposição sobre os homens dos
velhos e novos tempos já seria suficiente para teste-
munhar quão profundo era o seu entendimento da his-
tória humana em suas conexões internas, mesmo que
quase nenhuma página de seu livro faça menção a ela.
Acredita-se que Stirner lia pouco — em oposição a
Bruno Bauer. Isso parece estar equivocado ao obser-
varmos o número significativo de obras de seu tempo
às quais faz referência para exercitar sua crítica sobre
as idéias contidas nos livros. São citadas por Stirner
não apenas as mais importantes publicações de seu
tempo, de Feuerbach e Bauer, os primeiros escritos de
Proudhon que lhes oferece muitos alvos, mas também
as passageiras obras de então, hoje completamente
esquecidas. Essas citações, no entanto, nunca eram
escritas de memória, mas eram constantemente empre-
gadas da maneira mais cuidadosa, seguindo rigorosa-
mente as palavras de seus autores.

243
11
2007

Não apenas a história passada e presente, mas tam-


bém a vida cotidiana lhe oferece repetidas ocasiões para
resgatar sua colorida riqueza, no intuito de provar dia-
riamente a infalibilidade de suas afirmações, não obs-
tante os mais convincentes exemplos.
Ao mesmo tempo, não é a riqueza do seu conheci-
mento, a delicadeza com que o emprega e o seu intelec-
to, mas é aquilo que não pode ser aprendido e é possível
apenas aos gênios — captar o mundo dos homens com o
instinto da intuição de tal maneira que o importante
seja separado do supérfluo — o que faz de Max Stirner e
de seu trabalho tão único. Do mesmo modo que é capaz
de delinear com poucos traços uma vida humana única,
fazendo-lhe permanecer tangível em todo seu desenvol-
vimento de criança a homem, ele também demonstra
nas inundações das grandes correntezas da humanida-
de sobre a terra a trajetória das idéias através dos sécu-
los e suas idas e vindas; o que as propulsiona e onde
elas se chocam é compreendido primeiramente relaci-
onado a ele. Massas caóticas adquirem forma por suas
mãos, para que nós as reconheçamos em sua verdadei-
ra forma.
Com a mesma certeza ao atravessar a neblina do
passado, ele nos conduz através dos demolidores do
nosso agitado próprio tempo. Nem o distante, nem o
próximo confundem a sua visão, e incansavelmente nos
conduz através da nossa selva de erros, até que alcan-
cemos o solo seguro do futuro com a alta e orgulhosa
estatura de proprietário.
A linguagem e estilo do livro de Stirner — “o laborio-
so trabalho dos melhores anos de sua vida” — são tão
originais quanto seu pensamento. Ele mesmo certa vez
o chamou de “a quase desajeitada expressão do que que-
ria.” Ele afirmou sobre si mesmo que “lutou muito con-
tra uma língua que havia sido mimada por filósofos, mal

244
verve

O único e sua propriedade

utilizada pelo Estado, pela religião e outros crentes, e


capaz de gerar uma ampla confusão de conceitos.” Sua
linguagem possui, no entanto, um grande charme. Ela
não é suave e maleável, portanto não será atrativa ou
desencaminhadora; não é obscura e difícil, portanto não
irá confundir ou intimidar. Mais do que qualquer outra
coisa ela é de clareza cristalina, honesta, viva e capaz
de qualquer expressão. Não conhece frase vazia, ne-
nhuma contradição nem meias-medidas. Nunca se
contenta com pistas, e em tudo o que fala, persegue o
objetivo até que o alcance.
Afirma-se que o estilo de Stirner é cansativo devido
a suas repetições. Na realidade, Stirner nunca se repe-
te. Ao aproximar-se de seu objeto de análise de manei-
ra inventiva, sempre inovadora, ele nunca o abandona
antes de tê-lo visto por todos os ângulos e tê-lo compre-
endido. É realmente impressionante a multiplicidade
de ângulos pelos quais sua visão infalível enxerga as
coisas e os homens, além do fato de nunca ser demais
repetir verdades, o grande valor de sua obra está preci-
samente em abordar todas as objeções, em levar em
consideração todos os diversos ataques à soberania do
Eu. Quando lhe parece necessário, ele mesmo revela a
raiz etimológica do conceito a ser descoberto (por exem-
plo, Estado, sociedade etc.). Ele tem uma extraordinária
paixão por perseguir o significado da palavra e freqüen-
temente expõe sua ambigüidade pela forma perspicaz
com que a utiliza, de tal maneira que a tradução de
suas frases para outros idiomas pareça impossível. Ele
prefere a confrontação afiada de opostos de forma a
provar sua completa impossibilidade de conciliação. E
todos aqueles que utilizam meias-medidas e eufemis-
mos — os piores inimigos de qualquer progresso — o
acusarão agora, assim como antes, de “extremista”.

245
11
2007

Já os que não podiam acusar de ambigüidades seu


estilo afiado, preciso e livre, de maneira escorregadia
eles diziam ser frio.
A acusação volta-se contra os que a fazem: os que só
conseguem se aquecer no fogo artificial do entusiasmo,
nunca na própria chama pura da vida. Assim como uma
incomensurável fúria fulmina desde as profundezas de
seu livro, o calor da vida emana de sua linguagem. É
verdade que ela às vezes se torna pesada e ampla, e
somente após algumas reiteradas tentativas consegue
lidar com aquilo que pretende ultrapassar. Mas não é
falha de Stirner que ela precisa vencer o caminho atra-
vés da selva de conceitos confusos e áridas abstrações
de outros, por meio da dialética hegeliana e do jargão
do liberalismo da época. Como ela respira aliviada
quando se torna novamente a expressão dos próprios
pensamentos de seu mestre, com que luz ela então os
persegue — da alta zombaria até o cáustico desprezo,
da alegre risada a mais amarga seriedade! Ela não tor-
na a força de seu pensamento mais difícil à toa e rara-
mente se eleva a um sublime emocionalismo. Mas
onde se torna apaixonada, ela agarra com toda a força
e cria descrições dignas de um artista de primeira li-
nha, para a qual, juntamente com esses que possuem
a frágil inocência de um desejo não correspondido, es-
sas linhas também pertencem ao que Stirner escre-
veu, enquanto os sinos badalavam ao seu ouvido, que
soavam “o festival de mil anos de existência da nossa
querida Alemanha”. Esse livro parece ser frio? Que
desprezo fala do feitiço dos “verdadeiros sedutores” da
juventude, desses que “apressadamente semeiam os
grãos do auto-desprezo e reverência a Deus, que pre-
enchem jovens corações com lama e jovens mentes
com estupidez”! E que amargura, que orgulho ferrenho
das descrições do grande hospício do mundo e o insano

246
verve

O único e sua propriedade

comportamento dos internos, sua sede de vingança, sua


covardia?
Essa linguagem, tão cheia de emoção e com inesgo-
tável fonte de expressões, possui ainda uma clareza
cristalina. Torna a leitura desse livro único possível a
qualquer um que saiba pensar. Por essa razão, os filó-
sofos profissionais o rejeitam. Mas isso é completamen-
te imaterial. Quando a ciência se tornar livre, como
almeja a arte hoje em dia, Max Stirner irá ocupar o
seu devido lugar. Enquanto isso, seu livro terá passa-
do por milhares e milhares de mãos, espalhando as se-
mentes de seu pensamento sobre a terra.
Não é um livro que possa ser lido de uma vez. Também
não é um livro que se possa folhear. Ele será apanhado e
deixado de lado muitas vezes, para que os pensamentos
que emergiram possam serenar, para que as sensações
de indignação fiquem claras. A cada nova aproximação, o
livro deixará uma marca mais duradoura em nós e seu
charme cada vez mais intenso. Ele nos acompanhará pela
vida, e como nunca conseguiremos vivê-la até o fim, nun-
ca conseguiremos esgotá-lo inteiramente.
Este livro é a própria vida.

***

Os expoentes da “crítica” se defrontaram com uma


perda diante da obra.
Eles provavelmente perceberam que não poderiam
deixar de dar atenção a uma publicação que mexia
com as emoções em tantos sentidos. Porém, em parte
eles não cumpriram sua obrigação, e em parte busca-
ram dispensar-se dela. As razões são evidentes —sua
impotência.

247
11
2007

Assim, a quantidade de resenhas detalhadas e que pos-


sam ser levadas a sério é relativamente pequena; mas é
ainda muito grande para que possamos analisá-las uma a
uma cuidadosamente neste momento, ainda que mere-
cessem.
Uma breve, mesmo que incompleta, visão é necessá-
ria para esclarecer a extensão do cenário apresentado
acima relativo à recepção geral da obra.
As resenhas mais importantes são sem dúvida as con-
sideradas pelo próprio Stirner e às quais respondeu; a
elas será dada de imediato a atenção que merecem.
Primeiro, em relação aos jornais de grande circula-
ção — até onde podem ser analisados nessa conexão —,
que ignoraram completamente o livro. Eles tinham coi-
sas mais relevantes a fazer do que dar atenção a uma
importante publicação que exigiria espaço, que seria
melhor — e mais facilmente — ocupado por algum tipo
de fofoca ou discussão sobre atualidades. O tempo do
Hallisches Jahrbuch e do Deutsches Jahrbuch tinha passa-
do, e aquilo que era importante e sério era cada vez mais
espremido nos minguados espaços dos folhetins.
Os periódicos e as revistas especializadas agiram me-
nos negativamente. O Blätter für litterrische Unterhaltung
de 1846, que, diga-se, resenhava tudo, buscou em um
longo artigo chegar ao fundo do “único” [“der Einzige”].
Para eles, ele é o “excesso de filosofia de uma escola de-
cadente”, seu conceito de intelectual é completamente
falso e materialista; ele é o “profeta solitário”, e em ne-
nhum lugar está tão bem e claramente refletida a disso-
lução do hegelianismo na sua forma de manual.
Die Grenzboten, em Leipzig, ocupava-se freqüentemen-
te com Stirner. A primeira vez foi em uma resenha
escrita logo após a publicação de seu livro. O autor, um
certo W. Friedensburg, era da opinião de que as “últimas

248
verve

O único e sua propriedade

teorias dificilmente admitem outro interesse no ser hu-


mano que não seja o da atitude mais blasé e esvaziada
de pensamento, como aquela que encontra expressão
apenas no ballet contemporâneo.” Mas ele irá, de fato,
cuidar-se para não se ocupar da obra de Stirner com mais
seriedade do que já havia feito. “Quem irá me garantir,
portanto, que esse Eu não está se entretendo comigo e
não está rindo diante do tolo que considera o tradicional
como sendo o lado mais sério do senso de verdade!”
Dois anos depois, Der Einzige era chamado de apaixo-
nado, trazendo profundos sinais de uma bela alma, en-
tediada pela monotonia da vida filistina, pela história e
em esforçar-se por um objetivo! Antes, no entanto, um
futuro era ainda profetizado por essa “bela alma”, e a espe-
rança era de que Stirner “retornaria à velha bandeira após
sua fracassada revolta contra o liberalismo.” Como se ele
algum dia fosse assumir essa bandeira!
A partir da perspectiva teológica, Hengstenberg respon-
deu em seu conhecido Evangelische Kirchenzeitung no final
de 1846. Ocorreu na publicação do livro Das Verstandesthum
und Individuum [Racionalidade e o indivíduo; publicado ano-
nimamente por Karl Schmidt]. Stirner era visto como aca-
bado, seu livro foi meramente citado.
Houve muitas discussões sobre Der Einzige em Vier-
tel-jahrsschirft de Wigand e sobre sua seqüência, Die
Epigonen, além dos artigos em que Stirner respondeu pesso-
almente, e sobre os quais voltarei adiante. No terceiro
volume da primeira revista citada acima, uma seção
“Feuerbach und Der Einzige” do artigo “Characteristik
Ludwig Feuerbach”, escrito por um anônimo, é dedicada
ao “digno adversário”; no quarto volume de Die Epigonen
há um artigo, “Auflösung des Einzigen durch den Mens-
chen” [Dissolução do único por meio do homem], escrito
por Bettina von Arnim.

249
11
2007

Apenas a detalhada resenha, “De la crise actuelle de la


Philosofie Hégélienne. Les parties extrême en Allemagne,”
publicada no Revue des deux Mondes, de 1847, deve ser
lembrada. Seu autor Saint-René Taillandier é o grande
conhecedor, um especialista em relações alemãs. A rese-
nha é dedicada, conjuntamente a Ruge e Stirner. O autor
é corretamente da opinião de que a tradução do título para
o francês não deveria ser “L’individu et sa propriété”, mas
“L’unique et sa propriété”. Ele se coloca inteiramente ao
lado de Stirner e nós reproduzimos algumas passagens de
sua obra memorável na tradução alemã de [Hermann]
Jellinek, que junto com [Alfred Julius] Becher foi execu-
tado [por pelotão de fuzilamento] diante do Neutor, em
Viena: “Veja que precisão, que certeza indestrutível em
Max Stirner! Nada o abala em sua poderosa combinação
de idéias. Homem afortunado! Não possui qualquer escrú-
pulo, nenhuma hesitação ou remorso. Nunca um dialéti-
co foi tão bem defendido pela secura de sua natureza. Sua
caneta não estremece; é elegante sem ser afetada, graci-
osa sem ser tendenciosa. Onde outro seria agitado, ele
sorri naturalmente. O ateísmo é suspeito por ser ainda
religioso em demasia; acrescentar ateísmo a egoísmo, essa
é a tarefa que cumpre, e com que facilidade, com que cal-
ma de espírito!” E ainda: “o fato de que uma caneta capaz
de escrever essas coisas foi encontrada, que as escreveu
tão friamente, com tamanha elegância, é um segredo
incompreensível. Uma pessoa deve ler o livro para con-
vencer-se de que ele existe.” E, por último: “Como pode
alguém tornar esse entusiasmo sobre nada compreensí-
vel para um leitor francês?”
O francês, portanto, avalia a obra detalhadamente da
sua maneira, e no decorrer de sua pesquisa percebe que
não está do lado de Stirner como imaginava que estaria
no início da investigação: ele atira palavras contra essa
“obsessão estúpida de renunciar a si mesmo” que é tão
apaixonada quanto aquelas que utilizou anteriormente em

250
verve

O único e sua propriedade

sua avaliação. Mas é notável que foi um estrangeiro quem


encontrou a primeira e praticamente a única palavra de
carinhosa admiração pela obra e procurou ser justo sobre
sua ousadia e grandeza.
A quantidade de artigos independentes sobre Der
Einzige era extremamente pequena: a filosofia privilegiada
e suas publicações mantiveram naturalmente silêncio
mortal sobre todo o movimento. Mas o livro era menciona-
do em quase todas as considerações da filosofia “crítica”
da época.
Quem quer que se depare com um artigo sobre os
“pós-hegelianos” pode estar certo de encontrar o nome
de Stirner atrás de Strauss, Feuerbach e Bruno Bauer,
às vezes descartado com palavras de desprezo, e rara-
mente com um sério esforço de ser justo com ele, como
nos seis volumes de Brockhaus Die Gegenwart de 1851,
em um artigo anônimo “Die deutsche Philosofie seit
Hegels Tode” [“Filosofia alemã após a morte de Hegel”].
Ali, atrás de todas as suas vítimas, eles encaixotaram o
grande destruidor, feliz por ter encontrado um lugar para
seu espírito desenfreado. Stirner ainda hoje se encon-
tra nesse canto — com “seu escrito, que pode ser consi-
derado como o mais extremo que o radicalismo filosófi-
co da época produziu em corajosa e engenhosa nega-
ção,” como no verdadeiramente notável acordo literal
entre esses homens exaustivamente sabidos de nossas
grandes enciclopédias, copiando uns aos outros.
As vítimas diretas em parte mantiveram silêncio, em
parte buscaram se defender. Da parte da “Crítica” foi
pela boca de Szeliga, a quem Stirner respondeu, enquan-
to o próprio Bruno Bauer nunca chegou a mencionar o
nome de Stirner em seus escritos (Bauer já tinha abor-
dado esta discussão na época de sua pesquisa histórica
sobre a crítica do “soberano, do absoluto”) — veremos
em breve como Feuerbach se posicionou. — Os socialis-

251
11
2007

tas e comunistas não se dignaram a qualquer resposta


detalhada. Para ser exato, Marx e Engels responderam
imediatamente, mas o manuscrito de sua obra “contra
as ramificações da escola hegeliana” apenas veio à luz,
“até onde não foi devorado pelas traças,” cerca de ses-
senta anos depois, em 1903. É saborosamente intitula-
do “São Max” e é certamente o mais estúpido e vazio
escrito que as lutas dialéticas da época produziram. É
legível apenas para aquele que possuiu interesse e com-
preensão suficientes para considerar interessante essa
última polêmica de valor exclusivamente histórico. Até
mesmo seu último editor não o apoiou mais, como real-
mente deveria. Sabemos como Stirner acabou com o jar-
gão da escola pós-hegeliana e quão difícil foi, de acordo
com ele mesmo. Mas enquanto ele o transformou na
própria linguagem da vida, Marx e seu eco permanece-
ram presos a ele e depois o conduziram a abstrações
que ainda hoje — infelizmente para o trabalho não-
emancipado — dominam o partido e o deixam estagnar
nas velhas e rígidas formas. A obra — na qual aciden-
talmente Moses Hess, um antigo adversário de Stirner,
também participou — demonstra o valor reconhecido
por Marx na obra de Stirner, quando lhe dedicou uma
resposta quase tão extensa quanto o próprio Der Einzi-
ge.
Ruge foi facilmente influenciado: após a publicação
de Der Einzige, como comprova sua correspondência,
ele deu o mais caloroso reconhecimento a Stirner (“a
primeira obra legível de filosofia em alemão,” “deve ser
apoiada e divulgada”) até o entusiasmo pela crítica de
seu mais odiado adversário, Kuno Fischer. Buscou dis-
cutir com Stirner em seu Zwei Jahre in Paris [Dois anos
em Paris], no qual concedeu considerável espaço ao li-
vro de Stirner, o corajoso “chamado de despertar no
campo dos teóricos adormecidos”, em sua considera-
ção sobre “nossos últimos dez anos” (“Der Egoismus und

252
verve

O único e sua propriedade

die Praxis: ich und die Welt” [Egoísmo e experiência: Eu


e o mundo]).
Na história da filosofia — internacional e alemã —
haverá espaço para a filosofia de Stirner, mesmo que
não sempre e, claro, nem em seu devido lugar — como
o início de uma nova era — nem em seu lugar adequa-
do — como uma nova forma de pensar, que não parte
do conceito para o sujeito, para subjugá-lo, mas come-
ça pelo último, captura o objeto, para subordiná-lo. Sim,
na história da filosofia, na história da vida intelectual
do nosso século, a Stirner será atribuído com relutân-
cia um pequeno espaço, pois todo escrito da história
não é hoje em dia mais do que uma descrição do su-
cesso refletido nos olhos da maioria.
Não importa quanto adentrarmos na posição dessa
crítica, como se desenvolveu depois e fora da crítica
contemporânea descrita, ela nos levaria muito além das
fronteiras da nossa obra.

***

O próprio Stirner respondeu por duas vezes às críticas


à sua obra. Essas respostas, que são do maior interesse e
importância, são ao mesmo tempo as últimas expressões
da sua visão sobre a vida e (com uma exceção) suas últi-
mas contribuições para revistas.
A primeira resposta opõe as três mais significativas e
importantes resenhas feitas a Der Einzige no ano 1845.
Elas vieram de três lados que haviam sido atacados por
Stirner da maneira mais afiada: do lado socialista, Moses
Hess, o comunista, respondeu; a crítica deu sua resposta
por meio de Szeliga; o terceiro que se dignou a uma res-
posta foi o próprio Feuerbach. Juntas, essas críticas foram
provavelmente as mais notáveis feitas a Stirner. Sua es-

253
11
2007

colha em relação às três foi lógica e a ocasião lhe propi-


ciou realizar, mais uma vez, seu ímpeto destrutivo contra
todos os lados. A segunda resposta de Stirner, elaborada
muito tempo depois, foi direcionada contra a resenha de
um jovem que se arriscou em abordar sua obra com
pretensão e audácia nunca antes vistas, cujo trabalho
escolar foi resgatado do esquecimento apenas por meio da
resposta de Stirner.
A primeira resposta de Stirner à crítica de Der Einzige
é encontrada em quase cinqüenta páginas do terceiro
volume de Wigand’s Vierteljahrsschrift, de 1845. Seu título
é “Recensenten Stirners” [Comentaristas de Stirner], e
as iniciais “M. St.” como assinatura não deixam dúvidas
sobre o autor.
A crítica de Szeliga, “Der Einzige und sein Eigenthum”,
foi publicada na edição de março de Norddeutsche Blätter,
publicada pelos Bauer, por Fränkel L. Köppen e pelo pró-
prio Szeliga como “Beiträge zum Feldzuge der Kritik”
[“Contribuições para a campanha da crítica”]. Szeliga (seu
verdadeiro nome era outro) era um jovem oficial, “uma
figura militar precisa no pensamento e na fala, agres-
sivo, com uma inclinação soldadesca à crítica, sem um
mínimo de revolucionário e opositor, com um campo de
visão prático e obtuso. Ele indagava apenas uma coisa da
filosofia, que o libertasse de todas as considerações bur-
guesas.” Ele não freqüentava “Os Livres” em Hippel, pro-
vavelmente por causa de sua oposição, mas pertencia ao
círculo de Bauer em Charlottenburg e era considerado
membro da “Sagrada Família”; estreou na revista literá-
ria dos Bauer com uma longa e tediosa crítica sobre Les
Mystères de Paris. A ocupação industrial de suas horas de
lazer com questões filosóficas da atualidade produziu ainda
mais brochuras, como por exemplo, Die Universalreform
und der Egoismus [“Reforma universal e egoísmo”]. Sua
crítica à obra de Stirner, sobre a qual já havia dado uma

254
verve

O único e sua propriedade

aula a um pequeno círculo, é extraordinariamente deta-


lhada. É a crítica da escola de Bauer, que aqui balança
sua arma. “Der Einzige”, ele afirma, “fornece a oportuni-
dade de um novo trabalho de auto-satisfação à crítica,”
ao qual é tão pouco uma questão de derrubada de um,
quanto da ascensão do outro. Após cuidadoso exame da
“trajetória de vida do único um”, ele é declarado ser a
“assombração das assombrações” e a posição de crítica a
essa assombração é tratada de maneira tediosa. Como
nesse caso, e também nas próximas resenhas, o exame
das réplicas de Stirner nos possibilita abordar os pontos
mais importantes, reconhecidos com tal e refutados pelo
próprio Stirner.
A segunda importante crítica a Der Einzige veio do
lado socialista, por meio de Moses Hess, em uma bro-
chura de vinte e seis páginas publicada em Darmstadt,
intitulada Die letzten Philosophen [“Os últimos filósofos”].
Hess era um dos mais ativos combatentes do ainda jovem
movimento socialista. Como Stirner, era um antigo co-
laborador do Rheinische Zeitung. Comunista em todos
os sentidos, ele escreveu artigos para a revista de
Herwegh Einundzwanzig Bogen aus der Schweiz e em
1845 refletiu precisamente sobre o capitalismo em sua
revista Gesellschaftsspiegel, “reconhecidamente o centro
do movimento socialista da época em Rhineland.” Os “úl-
timos filósofos” são para ele Bruno Bauer e Stirner, o “so-
litário” e o “único”; no entanto, ele dirige sua crítica quase
que exclusivamente ao último. Ele inicia sua apresenta-
ção com a suspeita de que “alguém poderia afirmar que os
escritos recentes publicados por filósofos alemães eram
instigados pela reação,” uma suspeita que desde então foi
monotonamente reiterada pelos socialistas contra todo
pensador liberal. Ele se esquiva rapidamente ao explicar
que Bruno Bauer e Stirner nunca se deixaram determi-
nar “pelo exterior”. Porém, se em sua opinião, “o desenvol-
vimento interior dessa filosofia que deriva da vida, teve

255
11
2007

que voltar-se a esse ‘nonsense’,” ele deixa a acusação da


reação interna vigorar, convencido de também ganhar com
isso o sucesso que ele pretendia aos olhos das massas.
Após um olhar de relance sobre o dualismo da filosofia
cristã, o “conflito entre teoria e práxis”, ele encontra no
Estado cristão daquela filosofia, a moderna igreja cristã, o
paraíso na terra. Nos cidadãos do Estado, de outro lado, ele
não vê o verdadeiro homem, mas apenas seus espíritos,
pois os corpos desses espíritos estão na sociedade burgue-
sa. A Alemanha, para ele, ainda não alcançou esse Estado
moderno, livre, que novamente pôs fim ao contraste entre
o indivíduo e a raça. Porém, seus mais recentes filósofos,
que alcançaram a realidade teórica dessa igreja moderna
e suas contradições uns em relação aos outros, apenas
consideram a relação do Estado com a sociedade burgue-
sa. Portanto, Hess aproxima-se dos conseqüentes teóri-
cos da escola filosófica.
Ele discorda de Bauer afirmando que sua crítica nada
mais é do que a crítica da alta polícia do Estado, para
manter os desprezados sob controle; ele terá uma con-
versa muito especial com o próprio Stirner. De que tipo
e quão triviais são suas objeções a ele é o que veremos
a partir da resposta de Stirner.
O terceiro na aliança compulsória é o próprio Ludwig
Feuerbach. Ele publicou sua breve resposta a Stirner,
“Uber das ‘Wesen des Christenthums’ in Bezug auf den
‘Einzigen und sein Eigenthum’” [“Sobre a essência do cris-
tianismo com referência a O único e a sua propriedade”],
no segundo volume de Wigand’s Vierteljahrsschrift de 1845
e re-publicou, sem alterações, pouco tempo depois, no
primeiro volume de seu Sämmtliche Werke [Obras reuni-
das], o Erläuterungen und Ergänzungen zun Wesen des
Christenthums [“Comentários e adições à Essência do cris-
tianismo”], no qual incluiu uma nota de rodapé: que ali,
como em qualquer lugar, ele apenas considera sua es-

256
verve

O único e sua propriedade

crita como uma escrita panorâmica, diante da qual ele


mesmo se coloca em uma relação extremamente críti-
ca. E que ele tem a ver apenas com seu tema, natureza
e espírito, enquanto deixa a ocupação com suas letras
alfabéticas para as crianças de Deus ou do Diabo.
Stirner deve ter se interessado pela resposta de
Feuerbach — e deve nos interessar — mais do que
pelas outras críticas. Nela, a reclusão de Bruckberg
buscou desviar o poderoso golpe de Stirner, desferido
precisamente nele, mas infelizmente apenas muito
breve, escrito em aforismos, e condensado em algumas
páginas.
Feuerbach nutria a maior admiração pela obra de seu
adversário e a expressou claramente. Ele se inteirou da
obra imediatamente após sua publicação e, no outono
de 1844, escreveu a seu irmão: “é um trabalho enge-
nhoso e de grande inteligência e tem algo a dizer sobre
a verdade do egoísmo — mas excêntrico, parcial, falsa-
mente definido. Sua polêmica contra a antropologia, isto
é, contra mim, está assentada em pura falta de discer-
nimento ou ausência de pensamento. Eu concordo com
ele até certo ponto; em essência, ele não me atinge. Ele
é, no entanto, o escritor mais engenhoso e livre que eu
conheço.” Se a partir dessas linhas pode-se inferir toda
a insegurança interior de Feuerbach em relação a seu
adversário — sua honestidade está em batalha cons-
tante com seu orgulho ferido — assim, essa inseguran-
ça demonstra completamente a maneira pela qual ele
acredita poder acabar com “o escritor mais engenhoso e
livre que ele conhece.” Primeiramente, ele considerou
escrever uma “carta aberta”, como relata seu mais
recente biógrafo, Wilhelm Bolin, da qual ele também
esboçou um começo. Ela ainda existe e se lê: “Caro
‘indescritível’ e ‘incomparável’ egoísta! Assim como toda
a sua escrita, é também verdadeiramente ‘incompará-

257
11
2007

vel’ e ‘único’ o seu discernimento sobre mim. Eu há


muito tempo previa essa opinião, apesar de ser tão ori-
ginal, e disse a amigos: serei tão irreconhecível que eu,
que agora sou o ‘fanático’, o ‘apaixonado’ inimigo do cris-
tianismo, serei incluído até mesmo entre seus apolo-
gistas. Mas o fato de que isso aconteceria tão rápido, de
que até mesmo já teria acontecido, é que — admito —
me surpreendeu. Isso é ‘único’ e ‘incomparável’ como
você mesmo. Por menor que seja o tempo e o desejo de
que disponho agora para refutar opiniões que não me
tocam, mas apenas à minha sombra, eu ainda assim
farei uma exceção ao caso do ‘Único Um’, do ‘Incompa-
rável Um’.”
Felizmente Feuerbach desistiu de continuar referin-
do-se a Stirner dessa maneira, mas, infelizmente,
permaneceu com suas breves “explicações,” em vez
de ter coragem e tempo para uma resposta consistente.
Em outra carta a seu irmão, de 13 de dezembro de 1844,
ele mais uma vez busca se desculpar e se conforta com a
tola, mas para sua arrogância ética muito expressiva,
suposição de que “o ataque de Stirner trai certa vaidade,
como se quisesse construir seu nome às minhas cus-
tas.” Assim, ele magnânimo,deixa ao pobre anônimo a
“alegria infantil do triunfo momentâneo.” Na realidade, o
astuto homem parece ter suspeitado que em Stirner
emergia um formidável adversário cuja vitória sobre ele
significaria nada mais do que sua própria completa des-
truição, e preferiu, assim, evitar novas batalhas para que
não traísse a fama de vitorioso por meio de novas derro-
tas. Provavelmente, por uma razão similar, ele omitiu
em assinar seu nome em seus comentários em Wigand’s
Vierteljahrsschrift, que atraiu interesse universal para a
controvérsia que era esperada de todos os lados. Casual-
mente, pode-se dizer aqui que Feuerbach e Stirner nun-
ca se encontraram pessoalmente; Feuerbach nunca veio

258
verve

O único e sua propriedade

a Berlin, e Stirner nunca saiu de lá enquanto um encon-


tro teria sido de interesse de ambos.
Como foi dito, Feuerbach, Hess e Szeliga responde-
ram a Stirner conjuntamente. Ele deve ter escrito sua
resposta “Rezensenten Stirners” [“Críticos de Stirner”] 4
imediatamente após a aparição da crítica em questão e
quase de maneira precipitada. Como Feuerbach, ele tam-
bém escreve sobre si mesmo na terceira pessoa.
Após breve caracterização dos autores: Hess como so-
cialista, Szeliga como crítico, e o anônimo — Feuerbach
—, que primeiro toca no ponto em que todos os três con-
cordam, o “Único Um” e o “Egoísta.”
Segundo eles, o “Único Um” aparece como o “espírito
dos espíritos” “como o “indivíduo sagrado que se deve li-
vrar da mente,” e como um absoluto “arrogante.”
Admita-se, o “Único Um” é uma frase vazia, uma ex-
pressão que nada expressa. Com relação às sagradas e
grandiosas frases como homem, espírito, o verdadeiro in-
divíduo etc. é ainda apenas a “frase vazia, inculta e co-
mum.” Ele, o único um, cujo conteúdo não é pensamen-
to-conteúdo, é, portanto, também indescritível e “porque
indescritível, o mais completo, e ao mesmo tempo —
sem frase.” Mas o próprio Szeliga é a frase-conteúdo,
Feuerbach com seu imaginado Único Um no Paraíso
(Deus) é a frase sem frase-proprietária, e Hess, o único
Hess, é ele mesmo apenas um arrogante — os três não o
captaram.
Suas caracterizações do egoísta são muito populares
e demasiadamente simples. Os exemplos escolhidos por
eles são despidos de sua santidade: o emocionante exem-
plo de Feuerbach, que opõe a cortesã ao amado; o de
Szeliga, da menina rica e da mulher petulante; e o que
Stirner utiliza para Hess, do europeu e do crocodilo —
eles todos dão margem a ver mais uma vez, por todos os

259
11
2007

lados a natureza do próprio interesse de alguém quando


comparada ao interesse sagrado. A santidade da união
dos sexos, orgulho de serviço, trabalho e a lei humana do
amor fornecem uma compreensão sobre descobertas que
são tão profundas quanto surpreendentes; elas demons-
tram de uma nova maneira quão sem sentido é trazer o
sagrado para simples relações sexuais, que eles permi-
tem existir por mais tempo que o interesse exige (“o
interesse de um sobre o outro cessa, mas o laço desinte-
ressante continua a existir; quão tolo é colocar o que é
absolutamente, genericamente interessante por sobre o
próprio interesse pessoal”) e quão inútil é perseguir
“altas” leis, em vez de deixar o indivíduo fazer aquilo que
lhe parece mais útil.
Stirner encerra sua resposta geral apontando que
nenhum dos três “reconheceu” a mais longa seção de
sua obra, na qual trata amplamente das relações do
egoísta com o mundo e suas associações; ou seja, todos
ignoraram essa seção. Ele finaliza dedicando algumas
palavras a cada um deles. Nelas, Stirner desconsidera
os brutos e grosseiros ataques de indignação contra o
egoísmo.
Está claro que não ocorreu a Szeliga usar crítica
“pura”: o que ele fez não é a crítica “pura”, mas a crítica
totalmente parcial.
Feuerbach não tocou de maneira alguma no ponto
que realmente importava, ou seja, “que a essência do
homem não é a de Feuerbach ou de Stirner, ou a de
qualquer outro homem.” Ele não tem nenhuma pista
disso. “Ele permanece preso em completa despreocupa-
ção com suas categorias de gênero e indivíduo, Eu e você,
homem e natureza humana,” afirma Stirner. As outras
respostas a Feuerbach desafiam uma repetição na brevi-
dade exigida aqui, tanto quanto as próprias “explicações”
de Feuerbach; para serem compreendidos, ambos de-

260
verve

O único e sua propriedade

vem ser lidos e examinados em sua completude. Portan-


to, apenas nessa medida é que as objeções de Feuerbach
devem se recolher passo a passo diante da incansável
lógica com a qual Stirner refuta cada um de seus argu-
mentos.
Stirner conclui provando a Hess que ele, enquanto
homem, não pode ser mais completo do que é: todo o
gênero humano está contido nele, em Hess, e não falta
nada daquilo que torna um homem um homem. Mostra
ainda o pouco que ele compreendeu dos egoístas se
associando entre eles; quão absurdo é assumir que a
sociedade burguesa poderia importar a ele de alguma
maneira. Ele, então, busca refutar uma série de objeções,
tendo passado sobre outros com justificado desprezo, tal
como na passagem em que se refere à oposição de
Stirner ao Estado como “oposição ordinária da burgue-
sia liberal”; “qualquer um que não tenha lido o livro de
Stirner sem dúvida vê isso imediatamente.” Finalmen-
te, Stirner explica a Hess, com alguns exemplos sim-
ples, óbvios, sua “associação de egoístas.” (Hess a cha-
mava — muito equivocadamente — “associação egoís-
ta”). Para Stirner, essa não é uma associação de egoístas
na qual alguns permitem a trapaça à custa dos outros,
mas, ao contrário, uma associação em que o contato
entre o interesse do um e o interesse de outros, mesmo
que apenas rapidamente, de passagem, é motivo para
se associarem.
Finalmente, Stirner relembra a seus três críticos de
uma passagem do pequeno artigo de Feuerbach “Kritik
des Anti-Hegel.” Já que o esquecido tratado pode apenas
ser encontrado em algumas poucas mãos, vou citá-lo
aqui. Feuerbach fala sobre o duplo tipo de crítica que
tem sido destinada aos sistemas filosóficos: a crítica do
reconhecimento e a crítica do desentendimento. Sobre
a última, ele afirma na seguinte passagem: “O crítico

261
11
2007

não separa aqui a filosofia do filósofo; ele não se identi-


fica com seu ser, não se transforma em seu outro Eu...
Ele tem sempre outras coisas na cabeça em relação ao
seu adversário; ele não pode assimilar suas idéias e,
conseqüentemente, não encontra sentido nelas a par-
tir de sua compreensão; elas se movem no espaço vazio
de seu próprio eu como átomos epicuristas, e seu en-
tendimento é a oportunidade de reunir um aparente todo
por meio de apropriados ganchos exteriores especiais.
A única, válida, objetiva medida, a idéia do sistema, da
qual a alma onipresente, ela mesma na maior das con-
tradições, é ainda a unidade, presente ou não, é para
ele um objeto, ou apenas uma má cópia feita por ele
mesmo. Portanto, ele se vê transferido ao campo de seu
adversário numa terra não-mundana, onde tudo ne-
cessariamente lhe chega tão maravilhosamente ‘Nova
Holanda’ (o antigo nome da Austrália), que ‘visão e audi-
ção lhe falham’, que ele não sabe mais se está acordado
ou sonhando e talvez, às vezes, apesar da certeza ape-
nas em rápidos momentos de seu intervalla lucida (lúci-
dos intervalos), até mesmo duvida de sua identidade e da
correção de seu entendimento. As formas mais nobres,
harmonicamente ligadas, transitam nos mais aventuro-
sos emaranhados como figuras inconsistentes, grotes-
cas, diante de seus olhos perplexos; as mais elevadas
expressões da razão soam como contos de fada sem
significado em seus ouvidos. Em sua cabeça, ele prova-
velmente encontra idéias e conceitos análogos a idéias
filosóficas, e nelas possui alguns frágeis indícios, mas
apenas para o objetivo de com elas crucificar o filósofo
como criminoso contra o senso comum. Pois ele conhece
esses conceitos apenas até certo ponto e considera esse
limite como sendo a lei de suas validades. Se eles se
estendessem para além dessas estreitas fronteiras, os
perderia de vista. Eles se perdem na neblina azul do inal-
cançável como fantasmas, o qual o filósofo, por meio de

262
verve

O único e sua propriedade

um truque secreto até agora não revelado, hipnotiza


ao mesmo tempo como a second sight5 dessa razão.”
Essas palavras de Feuerbach ajustam-se bem à
maioria, até mesmo a grande maioria de críticos de
Stirner, que acabou por saber apenas isso, a crítica do
desentendimento.
Feuerbach, no entanto, quando escreveu provavel-
mente nunca pensou que ele mesmo seria lembrado
pelo reverso de suas próprias palavras.
As esperanças às quais Stirner dá vazão — numa
ocasião futura falar mais extensamente sobre algumas
das questões tratadas, como a sociedade burguesa, a
santidade do trabalho etc. — demonstram quão seria-
mente ele pensou sobre dedicar seu mais profundo
interesse na questão social. Elas permaneceram, no
entanto, descumpridas.
Apenas uma vez mais, pela segunda e última vez,
Stirner respondeu a críticas a sua obra. Ocorreu qua-
se dois anos depois. Wigand havia dado continuidade a
seu Vierteljahrsschrift, que havia sido proibido após curta
existência, com Die Epigonen. Nele, em seu quarto volu-
me, de 1847, após seu livro ter sido comentado diver-
sas vezes em números anteriores, Stirner publicou,
sob o pseudônimo G. Edward, uma resposta a Kuno
Fischer.
Este último, na época um jovem estudante de vinte
anos de Halle, pouco tempo antes havia publicado no
Leipziger Revue um longo artigo, “Moderne Sophisten”
[“Sofistas modernos”], no qual sujeitou a escola moder-
na de filosofia a uma crítica tão insolente quanto su-
perficial, mas não pouco imaginativa. Já que aquela
revista foi imediatamente posta de lado, ele permitiu
que seu artigo fosse reeditado no quinto volume de Die
Epigonen, a pedido de Wigand, e sem respeito por seu

263
11
2007

adversário, como ele disse, o teria tornado um corpus


delicti [corpo de delito].
Enquanto isso, Stirner respondeu. Seu manuscrito
dever ter chegado às mãos de Fischer, já que junto com
sua resposta foi publicado um comentário escrito por ele.
Ambos possuíam o mesmo título, “Die philosophischen
Reactionäre” [“Os reacionários filosóficos”]; os comentári-
os de Stirner tinham o seguinte subtítulo, “Die Modernen
Sophisten. Von Kuno Fischer” [“Os sofistas modernos, por
Kuno Fischer”. A resposta de Fischer foi “Ein Apologet
der Sophistik und ein ‘philosophischer Reactionär” [“Um
apologista do sofismo e um ‘reacionário filosófico’”].
Ao se examinar de perto a resposta de G. Edwards
poderia parecer que não tivesse saído da caneta de
Stirner. Não porque o autor tenha se referido a Stirner
na terceira pessoa, o que era muito natural, mas devido
ao estilo do artigo que às vezes não refletia as inconfun-
díveis características do estilo de Stirner. Mas Fischer
assumiu com tamanha certeza que Stirner era o autor,
e este não fez qualquer esforço para contradizer essa
suposição, que temos todas as razões para acreditar que
esse ensaio, de extraordinária importância em tantos
aspectos, é uma obra de Stirner.
“Die modernen Sophisten” de Kuno Fischer inicia
com uma consideração sobre “os princípios do sofismo”,
daí parte para “os pré-requisitos filosóficos do sofismo
moderno,” como figuram para ele em Hegel (“a manifes-
tação do espírito absoluto na energia teórica e prática
do homem”), Strauss (o reconhecimento panteísta do
espírito absoluto), Bauer (o desaparecimento de qualquer
objeto em pura arbitrariedade), e Feuerbach (o ponto de
vista de qualquer humanismo). Primeiramente, ele vê
o “sofismo moderno” em Stirner: “o egoísmo absoluto ou
o reino animal espiritual.” A maior parte do tratado é
dedicada a ele. Stirner é o pietista e dogmático do egoís-

264
verve

O único e sua propriedade

mo, que vê espíritos em todo lugar; o único um “a arbitra-


riedade dogmática — que se tornou um princípio — uma
monomania fundada na crença em fantasmas.” Veremos
adiante como Stirner responde a isso. A última parte do
ensaio ocupa-se de dois livros, dos quais Fischer afir-
ma que o sofisma contido neles vai até mesmo além
de Stirner, do egoísmo ao indivíduo e deste à ironia. Esses
pontos serão também abordados mais adiante. Ao final, a
antítese ao sofisma moderno é definida — humanismo,
“humanidade livre.”
Em sua resposta, Stirner debocha da impressionante
agilidade com que Fischer termina com “a tediosa obra-
titã da crítica moderna.” Assim como tudo isso é mantido
mais ao nível pessoal do que a resposta anterior, é tam-
bém ao mesmo tempo rica em idéias mordazes e expres-
sivas. De acordo com o padrão de Fischer, todo pensador
pode ser considerado um sofista: visto dessa maneira, ou
ele é um “filósofo” ou um “sofista.” Os próximos comentá-
rios só podem ser compreendidos se mantidos em sua ver-
são integral e não podem ser reproduzidos de maneira
alguma de forma abreviada. Os conceitos definidos por
Fischer, conforme estabelecidos em seu uso como, por
exemplo, o dos “poderes objetivos do mundo”, o do “pensar”,
o do “mundo moral”, são examinados a partir de novas pers-
pectivas. Sua descrição de sofismo na história é investi-
gada: os jesuítas, os românticos (sujeitos “particulares”),
“pura crítica.” A contradição entre interesse e princípio é
abordada. A suposição de que o egoísmo de Stirner tinha
se desenvolvido como conseqüência da auto-consciência
de Bauer é confrontada com o fato de que Stirner já tinha
terminado sua obra, enquanto Bauer ainda estava preso
no trabalho de sua crítica à Bíblia, e que Stirner somente
poderia ter lembrado da proclamação da “crítica absoluta”,
em um apêndice. Fischer parece desconhecer a polêmica
de Stirner com Feuerbach. Se ele a conhecesse, não

265
11
2007

teria visto no “egoísmo” de Stirner o “dever” de um “im-


perativo categórico,” um “dogma”, pois Stirner define o
egoísta em oposição ao “dever”, ao “ser homem,” huma-
nismo, o inumano — define sua “ataraxia” [calma], sua
intransigência, seu terrorismo contra tudo que é hu-
mano. O desentendimento é tão grosseiro que Stirner
desejou desistir de toda comunidade com os homens, se
retirar de todas as características de sua organização, sim-
plesmente negando-as!
Essa resposta termina com uma indicação das podero-
sas conseqüências da obra de Stirner e uma engenhosa
comparação. Mesmo se não tivesse sido escrito por
Stirner, a resposta veio de alguém que poderia se orgu-
lhar de ter prontamente compreendido naquela época a
essência de seus ensinamentos melhor do que a maioria.
Quando, ao final, ele compara Kuno Fischer a um homem
cuja obra equivale a tornar-se famoso à tout prix [a qual-
quer preço], ele também está certo.
A resposta contemporânea de Fischer a ele bastava
como uma nova prova de que suas suposições estavam
corretas.

***

Um ano depois da publicação de Der Einzige, também


na editora de Wigand, uma obra anônima Das Verstan-
desthum und das Individuum [“A racionalidade e o indiví-
duo”] apareceu, e foi rapidamente seguida por outra, uma
obra menos extensa com o título Liebesbriefe ohne Liebe
[“Cartas de amor sem amor”]. Seu autor se auto-denomi-
nava Karl Bürger. Na realidade, o autor de ambas era um
jovem filósofo, que havia sido por um tempo membro do
círculo de Hippel, e posteriormente também do Köthener

266
verve

O único e sua propriedade

Kellergesellschaft [sociedade da adega (de vinhos) Köthen],


cujo nome real era Dr. Karl Schmidt, de Dessau. Ele, pos-
teriormente, retornou à sua teologia, escreveu numero-
sos trabalhos pedagógicos e se fez conhecer principalmente
por meio de sua obra de vários volumes Geschichte der Pä-
dagogik [“História da pedagogia”].
Foi nesses dois escritos que Kuno Fischer tão astuta-
mente percebeu a transição do mundo “espiritual” ao
“mundo natural animal” e à “ironia”. Eles podem ser
desconsiderados aqui, nem tanto por essa razão, mas por-
que de fato as pessoas freqüentemente acreditavam ter
visto nessas obscuras produções, escritas às pressas, uma
última continuação de Stirner, e que eles podiam ridicu-
larizá-lo com elas. Porém, se o próprio Stirner esperava
que seu adversário “fosse tão honesto a ponto de não espe-
rar” que ele lesse mais do que uma página do Verstandes-
thum, então nós também nos contentaríamos com essa
uma página.
Um resumo disso seria o esforço do autor em mostrar o
que “a única verdade seria, se alguém fosse algum dia
mera razão.” Claramente vinculado a Der Einzige, Das
Verstandesthum und das Individuum parece culminar com
a afirmação: “O indivíduo não pensa coisas atomísticas,
singulares, mas, ao contrário, encara, olha e as apanha.”
O Liebesbriefe ohne Liebe é mais propriamente uma paró-
dia tola de Lucinde de Schlegel; deste podemos ficar até
mesmo sem a uma página.

***

No ano 1846, Stirner recebeu a visita de um jovem


poeta muito entusiasmado com sua obra — “no entanto,
no sentido oposto, contrário.” Ele veio apresentar-lhe pri-

267
11
2007

meiro um poema que havia acabado de escrever. O jovem


poeta chamava-se Alfred Meissner e sua obra era intitu-
lada Ziska. A resposta de Stirner, relatada pelo próprio
Meissner, é uma das poucas expressões pessoais emiti-
das por ele mesmo que permaneceram para nós. Mas há
outra razão para repeti-las aqui.
Stirner devolveu o manuscrito com as palavras: “Você
deveria ter moldado Ziska como um poema heróico cômi-
co. Em uma espécie de Batrachomyomachia! [uma tempes-
tade num copo d’água; muito barulho por nada. A palavra é
o nome de um poema de escárnio heróico em grego, su-
postamente de Pigres de Caria, e significa As Batalhas
dos Sapos e do Rato.] Os mitos da igreja cristã torna-
ram-se escravos do destino, como os pagãos também se
tornaram. Os contrastes do papado e do protestantismo tor-
naram-se de tal forma algo do passado que um poema com
esse conteúdo só poderia interessar, digamos, a teólogos.
Não deve mais haver oposição à Igreja. Tornou-se comple-
tamente indiferente para nós: não se disputa mais bata-
lhas ultrapassadas. Sim, eu tenho certeza: deveria ter sido
um poema heróico cômico.”
Essa resposta é tão característica para ele que pode
ser considerada aqui como um ponto de partida para
uma última análise da influência e conseqüências de
Der Einzige und sein Eigenthum no futuro. Por menor que
seja nele e dele mesmo, o livro realmente indica a posi-
ção que Stirner assumiu em sua luta. Essa luta não era
contra as formas exteriores da visão de mundo cristã, a
mofada e decadente igreja do presente, mas contra esse
espírito, que constrói cada vez em novas formas, novas
fortalezas de poder, o espírito do cristianismo, que como
uma obscura neblina estende-se no passado.
A realização de Stirner é ter despido esse espírito de
sua santidade e tê-lo exposto como o insubstancial espíri-
to da nossa imaginação. Enquanto as mentes mais radi-

268
verve

O único e sua propriedade

cais de seu tempo — Strauss, Feuerbach, Bauer — ainda


se baseavam decisivamente, mas temerosamente, nas
concepções de sagrado, ele as dissolve e as deixa desinte-
grar.
Ele ultrapassa o cristianismo em suas derradeiras con-
seqüências. Ele está destruído. Ele se estende atrás de
nós com sua humilhação de milhares de anos, sua de-
pravação da irmandade, seus incontáveis horrores, com
os quais mancha a história, suas mentiras, seu auto-
despojamento de qualquer orgulho, cada propriedade, cada
alegria e beleza genuínas; e ainda que prevaleça hoje em
seus efeitos finais, Stirner, todavia, tirou isso de nós —
como uma maldição!
Assim, ele permanece na fronteira entre dois mundos,
e com ele começa uma nova época na vida da humanida-
de: a época da liberdade!
Ainda não encontramos para isso melhor nome que
anarquia: a ordem determinada pelo interesse mútuo, em
vez da condição prévia de ausência de ordem do poder; a
exclusiva soberania do indivíduo sobre sua personalidade,
em lugar de sua subjugação; a responsabilidade de si
sobre suas ações em lugar de sua dependência — sua
unicidade!
Sobre as bases da visão de mundo cristã repousam os
pilares de todos os conceitos que sustentam o poder; como
Stirner lhes retirou o chão, eles tiveram que cair, e com
eles cai aquilo que defendiam.
Tão poderosa será essa reversão sem sangue de
todas as relações de vida — e comparativamente tão
rápido quanto certo — que esse livro imortal em suas
conseqüências será um dia comparado à Bíblia.
Assim como esse livro “sagrado” figura no início do
calendário cristão, para levar por dois mil anos seus
desastrosos efeitos para quase todo canto do mundo

269
11
2007

habitado, está também o livro profano do primeiro e auto-


consciente egoísta no início dessa nova era, na qual
vivemos os primeiros sinais, para exercer uma influ-
ência tão benéfica quando o “livro dos livros” foi pernici-
oso.
Se desejarmos dizer mais uma vez o que é, como pode-
ríamos fazê-lo melhor do que com as próprias palavras
do criador? São elas: “Um crime poderoso, despreocu-
pado, desavergonhado, sem consciência e orgulhoso”
— cometido contra a santidade de qualquer autoridade! E
com Max Stirner perguntamos, triunfando na irrupção
da tempestade purificadora e liberadora causada por ele:
“Não estremece em trovões distantes, e não vê como o
céu torna-se previsivelmente silencioso e sombrio?”

Notas
1
Quinto capítulo extraído do livro Max Stirner — his life and his work. Traduzido da
terceira edição em alemão por Hubert Kennedy. Concord, Peremptory Publicati-
ons, 2005. A obra de Stirner Der Einzige und sein Eigenthum foi traduzida por
Mackay como The unique one and his property, mais próxima da tradução em português
O único e a sua propriedade. No entanto, a versão em inglês, editada por David
Leopold, é intitulada The ego and its own (Cambridge, Cambridge University Press,
1995). (NT).
2
O autor utiliza o termo bogeyman, que na literatura anglo-saxã refere-se a um
monstro imaginário que assusta crianças, frequentemente escondido embaixo da
cama ou dentro do armário. O uso do termo indica ainda um medo irracional diante
de algo ou alguém.
3
A citação de Stirner encontrada em Wallenstein’s Tod, Ato I, cena 4, de Schiller,
conforme estabelecido por Steven T. Byington em O Único e sua propriedade, é: Eu
ouso defrontar qualquer adversário o qual possa ver e medir com meus olhos, vigor
inflama minha coragem vigor para a batalha. Ou, na clássica tradução de Samuel
Taylor Coleridge: Eu enfrento cada combatente O qual possa ver, fixando olho no
olho Que, cheio de coragem, incita coragem também em mim. (NT)
4
A resposta de Stirner aos seus críticos encontra-se em “Rezensenten Stirners”, In
Bernd A. Laska, Max Stirner: parrega, kritiken, repliken. Nürnberg, LSR-Verlag,
1986, pp. 147-205. (N.E)
5
em inglês no original alemão (Nota de Mackay).

270
verve

O único e sua propriedade

RESUMO

Apresentação da obra de Max Stirner O único e sua proprieda-


de, por John Henry Mackay. 2ª parte.

Palavras-chave: Max Stirner, único, associação.

ABSTRACT

Presentation of Max Stirner’s work The ego and its own, by John
Henry Mackay. 2st part.

Keywords: Max Stirner, unique, association.

Indicado para publicação em 08 de novembro 2005.

271
11
2007

a direita está crescendo?

a esquerda que cresce, a direita está crescendo?

mas não estamos observando e experimentando a


liberação do planeta?

no século dos genocídios


da conduta ética tipo Lincoln, à conduta ética
tipo Martin Luther King, a...

(agosto de 1983, tipo, em italiano no texto)

272
verve

Foucault, fulgurações da diferença

Resenhas

foucault,
fulgurações da diferença salete oliveira*

Margareth Rago e Alfredo Veiga-Neto (orgs.). Figuras de


Foucault. Belo Horizonte, Autêntica, 2006, 296 pp.

Michel Foucault costumava dizer que o saber não é fei-


to para compreender, é feito para cortar. Outra maneira
sua de afirmar o duplo indissociável entre poder e saber.
Fulguração de vida. Vida fulgurada, também, por Nietzsche,
que se interessava por produzir o conhecimento daquilo
que o corpo experimenta. Experimentações em fulgura-
ção estética que se fazem vida na vida. Nos espaços em
que ela sobra, excede e escapa. Não se deixa agarrar, tal
os versos em prosa heraclítica de seu poeta predileto, René
Char. Tal a escrita explosiva em suas centelhas.
Uma fulguração ocorrida em estrelas no espaço sideral
é designada por astrônomos como uma liberação de ener-
gia, de forma explosiva, da qual resulta um aumento
rápido do brilho do astro no qual ocorre, promovendo-lhe
alterações, diferenças. No planeta Terra ela é designa-

* Doutora em Ciências Sociais e pesquisadora no Nu-Sol, professora no Depar-


tamento de Política da PUC/SP.
verve, 11: 273-277, 2007

273
11
2007

da por um raio que incide em sua superfície provocando-


lhe sulcos, vestígios. Rastros em astros, diferentes.
Diferentes fulgurações, também, encontradas em
Figuras de Foucault. Livro organizado por Margareth Rago e
Alfredo Veiga-Neto como efeito das exposições realizadas
no “Colóquio Internacional Michel Foucault, 20 anos depois”,
ocorrido em 2004 na UNICAMP.
Os vinte quatro artigos dispostos no livro em ordem alfa-
bética pelos primeiros nomes dos autores — Alfredo (Veiga-
Neto), Ana (Maria de Oliveira Burmester), André (Duarte),
Antonio (Cavalcanti Maia), Carmen (Lúcia Soares), Denise
(Bernuzzi de Sant‘Anna), Durval (Muniz de Albuquerque
Júnior), Edson (Passetti), Flávia (Biroli), Frédéric (Gros),
Kleber (Prado Filho), Luiz (B. L. Orlandi), Márcio (Alves da
Fonseca), Margareth (Rago), Nathalie (Piégay), Oswaldo
(Giacóia Junior), Pedro (de Souza), Richard (Groulx), Richard
(Miskolci), Salma (Muchail), Sílvio (Gallo), Tânia (Navarro
Swain), Tony (Hara) e Vera (Portocarrero)— oferecem-se
ao leitor em travessias múltiplas que o incitam, também,
à travessura de subverter o abecedário para tocar em suas
próprias urgências de A a Z e de Z a A. AZs-ZAs. Da zona à
anarquia; da loucura ao sexo; do eu ao si; da estética à
vida.
Fulguram, explodem diferenças. Está-se diante de
uma profusão de análises acompanhadas por inúmeros
Foucault. Inútil aventar a homogeneidade ou a edificação
de conceitos. Trata-se do espaço do precário, provisório,
arredio.
É possível estar diante de fulgurações de Foucault-
arquivo, quando “o uso do arquivo não permite amarrar o
homem e a obra” (p. 184), como destaca Nathalie Piégay.
Das pedagogias do corpo, passando pelo filósofo mascara-
do, o leitor depara-se com o sorriso no rosto de Foucault,
em uma conversa ridente, ao melhor gosto do gato de

274
verve

Foucault, fulgurações da diferença

Alice trazido por Luiz Orlandi, o sorriso estancado por


Durval Abuquerque em uma incursão colorida, na qual a
genealogia imiscui-se na zona cinza do mostrar-se à vida
em combate, até mesmo no momento da morte.
Hoje quando alguém morre é comum fazer seu necro-
lógio. Os gregos antigos não lançavam mão de tal prática.
Ao invés de discorrer sobre o morto, faziam uma única
pergunta: viveu com paixão? Embate profícuo revolvido por
Frédéric Gros acerca da diferença entre a retórica do co-
nhecimento de si socrático-cristão e o exercício estético
do cuidado de si. “Quem sou eu é uma questão que se arti-
cula através da relação instaurada entre o diretor de cons-
ciência e o seu eu dirigido, nos primeiros monastérios
cristãos. Isto quer dizer que esta interrogação se inscreve
num dispositivo preciso de obediência incondicional e in-
definida ao Outro, enquanto que a questão grega O que
você está fazendo de sua vida se inscreve num projeto pon-
tual de liberação” (p. 136).
A estética de existir explode no espaço em uma pro-
fusão liberadora de fulgurações de estéticas da exis-
tência, em “Heterotopia, anarquismo e pirataria”, com
Edson Passetti. Insurreição de um sabor único que faz po-
der saber do indomesticável nos anarquismos e compõe
com Foucault em dança com Max Stirner um arco teso de
arremessos certeiros. Leveza de criança, outra antena pro-
pícia, distante do corsário e próximo ao pirata. “A criança
é o retorno do adulto que rangeu, tornou-se pirata de si,
desdobrado, artístico. É a eclosão da surpresa oceânica
como tormenta ou calmaria, aprendizado de exercícios em
espaços heterotópicos, onde se dissolvem os absolutos de
autoridade e liberdade junto com o governo político” (p. 117).
Navegações díspares em ressonância heterotópica nos
descaminhos da nau foucaultiana, em Tony Hara, que das
crises e abalos extrai de Foucault superfícies da atualida-
de covarde e entristecida, na qual há uma direta cor-

275
11
2007

respondência entre o depauperamento da imaginação e


da vida policiada. O combate não cessa; vem habitar na
experimentação do desassombro da criança. “Não se trata
evidentemente do retorno aos antigos valores transcen-
dentais ancorados na forma de um Deus, mas sim rachar
a Terra, as palavras, as nossas convicções e perder-se e
encontrar-se no labirinto infinito da própria vida, tal como
o intrépido argonauta nietzschiano” (p. 278).
Embates e debates outros no campo da educação, abor-
dados por Alfredo Veiga-Neto, acerca da dominação e vio-
lência na escola, e re-pensados por Sílvio Gallo ao propor
uma nova filosofia da educação. Ao leitor podem ressoar
na memória, também, passagens imperdíveis de Foucault–
professor, não só aquele que, como muitos contam, dava
aulas admiráveis, como o acrobata sublinhado por Didier
Eribon, que tantas vezes, em seus cursos no Collège de
France, esperava por uma questão que nunca vinha. Ou
ainda, um outro que ao ser encarregado de ministrar uma
disciplina intitulada Psicologia Geral, adentrava na sala e
já na primeira sessão, alertava: como tudo que é geral não
existe vou dar o curso sobre o que está me inquietando no
momento presente. Ou ainda mais um, aquele que reser-
vava a alguns alunos onicontentes, que freqüentam a
universidade, o título de beduínos. É bem verdade que,
naquela época, os estudantes torciam, faziam de tudo para
não se encontrarem em tal condição, e, assim, escapar da
questão final proposta pelo professor: disserte sobre a fa-
mília neurótica, ou seja, a família.
Da família como modelo central da arte de governar,
tema tratado por Márcio Fonseca; atravessando uma
análise arguta de Oswaldo Giacóia acerca da biopolítica,
biopoder, e os investimentos do governo sobre a vida o
leitor mais uma vez se estende e distende percursos,
outras palavras, para se deparar na companhia de
Margareth Rago com as duas grandes interdições da po-

276
verve

Experiências e liberações

lítica moderna apontadas por Foucault: o sexo e a políti-


ca. Sensibilidade sutil que vem amalgamar gestos anar-
quistas, femininos em práticas de experimentações de
si, na coragem ímpar da anarquista Emma Goldman, na
ousadia inventiva da associação Mujeres Libres, durante
a Guerra civil espanhola, de mulheres que não caíram
nas armadilhas liberais de generalização do feminismo.
As pesquisas, os problemas, as pistas, as fulgurações
deixadas por Foucault possibilitam a instauração deste
bom encontro tecido pelos autores no livro Figuras de
Foucault. Do negro imprime-se a caligrafia amarela e
da figura na penumbra em cinza é possível subverter-
se as palavras e as coisas de A a Z e de Z a A, e neste
espaço delicado e vigoroso não esquecer que as genea-
logias são mais precisamente insurreições.

experiências e liberações bruno andreotti*

Gilles Deleuze. A Ilha Deserta. São Paulo, Iluminuras,


2006, 383 pp.

Filósofo. Pós-estruralista. Filósofo da diferença. Pen-


sador do devir, do acontecimento. Esses e muitos outros
epítetos podem ser atribuídos a Gilles Deleuze. Nenhum
enunciado, porém, pode dar conta desse nome, se por
nome entendermos algo que denomina um aconteci-

* Pesquisador no Nu-Sol, bacharel e licenciado em História pela PUC-SP,


mestrando no Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da
PUC-SP.
verve, 11: 277-281, 2007

277
11
2007

mento, uma multiplicidade. Um livro é uma máquina.


Que uso faremos dela?
Há certos livros que provocam furos e desmorona-
mentos no leitor. Furam sua blindagem, os muros que
habilmente constrói, dia após dia, para quando se olhar
no espelho confortavelmente dizer: Eu. Desmoronam
esse Eu, e, portanto, ler algo assim é colocar-se em
risco, pois nunca se sabe muito bem o que irá des-
moronar. Devemos ser dignos desses livros, estar à al-
tura deles, desse acontecimento suscitado por livros
assim, como são os de Deleuze, como é A Ilha Deserta,
uma coletânea de textos preparada por David Lapou-
jade e não um livro projetado por ele. Deleuze dizia
que escrever é fazer um outro falar de uma certa for-
ma. É delicioso poder ler tantos outros, ver a filosofia
de Deleuze fazer com que essas singularidades falem.
Podemos notar sua preocupação com a experiência
em muitos textos (pp. 29-32), não propriamente com o
que é a experiência, mas quem, como, onde, quando,
em que caso, quanto se experimenta. Experimentar
como um processo de individuação, que não é a de um
indivíduo, mas de um acontecimento, um mergulho
no virtual, uma atualização e nunca, ou pelo menos
apenas de uma maneira secundária, uma recognição.
Sempre está em jogo nessa experiência uma liberação
de algo. Criar condições para que se possa experimen-
tar de uma outra maneira. O eu faz parte das coisas
que é preciso dissolver (pp. 24-29). Somos demais
formatados para apreender a novidade de cada experi-
ência; demasiadamente blindados para abrir-nos à
multiplicidade de forças em jogo num acontecimento:
o organismo contendo o corpo sem órgãos, o Édipo con-
tendo o desejo, a imagem contendo o pensamento. A
experiência é representada e não vivida. É para afirmar
essa experiência, para liberá-la de qualquer finalidade,
unidade, verdade ou sentido, que os escritos de Deleuze

278
verve

Experiências e liberações

funcionam. São escritos intempestivos, palavra de va-


lor singular em Nietzsche e Deleuze.
Essas experiências liberadas são intempestivas, no
tempo e contra o tempo, são perturbadoras. São experiên-
cias que criam, destroem para criar. Qual a relação disso
com a política? Para alguns, essa pergunta faz todo senti-
do, visto que é necessário explicitar ou desenhar, para
uns não faz nenhum, pois é óbvia demais. É que essas
experiências liberadas são interpretações, e interpretar
já é mudar as coisas, já é política. Nem sempre o intem-
pestivo é político-histórico, mas há momentos em que o
político e o histórico coincidem (pp. 155-166). Tomar o po-
der, objetivo de toda revolução, é coisa de escravos. Os
intempestivos, diz Deleuze, são criadores, o que implica uma
nova relação com aquilo que se chama política, que não
passa por um partido, por uma vanguarda e tampouco por
uma tomada do poder, e sim pela invenção de uma máqui-
na de guerra. O desejo é revolucionário, não no sentido de
que queira a revolução, mas constrói máquinas que se
inserem no campo social (pp. 295-305), esparrama-se pela
história, para que seja liberado do Édipo, da psicanálise. O
desejo não é representado, é produzido política, econômi-
ca e historicamente; no entanto, a máquina de interpre-
tação psicanalítica aparece para formatar esse desejo no
Édipo. Liberar o desejo do Édipo é liberar uma multi-
plicidade de um Eu (pp. 345-352). Liberar os fluxos,
descodificar, desterritorializar... é arriscado. Deleuze ja-
mais negou os perigos dessas experiências; contudo, elas
valem a pena.
Tudo isso e um tanto mais ou menos despertou mal-
entendidos. Notável é o que se fica sabendo numa pe-
quena nota de rodapé (pp. 103-105): Kostas Axelos, filósofo
grego que dirigiu a coleção Argumentos, na qual Deleuze
publica “Apresentação de Sacher-Masoch” em 1967 e “Es-
pinosa e o problema da expressão” em 1968, escreve, em

279
11
2007

1972, sobre O Anti-Édipo no Le Monde: “Honorável profes-


sor francês, bom esposo, excelente pai de dois filhos en-
cantadores, amigo fiel (...) queres que teus alunos e teus
filhos sigam na ‘vida real’ o caminho de tua vida, ou por
exemplo o de Artaud, que tantos escrevinhadores invo-
cam?” (p. 104). Há pessoas que entendem Deleuze sem
nunca ter lido uma linha de sua obra, enquanto alguns a
lêem exaustivamente e nada entendem. Só se descobre a
novidade de um autor ao colocar-se no ponto de vista que
ele inventou. Estando nesse ponto o leitor é levado num
fluxo propiciado pela leitura. Aí ela se torna fácil, simples
e alegre (pp. 293-294).
Quando interrogado diretamente sobre como essas ex-
periências liberadas podem atuar politicamente, a resposta
de Deleuze não poderia ser melhor: “Se o soubéssemos,
não diríamos, fá-lo-íamos.” (p. 339). Nunca há certezas nes-
se campo de experimentações que propõe Deleuze. É que
um livro jamais pode responder ao desejo enquanto livro,
mas em função daquilo que o rodeia, em si mesmo não
tem valor. Só politicamente um livro pode responder a um
desejo, fora do livro (pp. 277-292).
A preocupação com a criação de novas condições de
experimentação pode ser vista em diversos campos e já
está no próprio modo como Deleuze tratava a filosofia:
menos como história e mais como devir. Ver o uso singu-
lar que ele faz de Bergson (pp. 33-45) e (pp. 47-71), Kant
(pp. 79-97) e do estruturalismo de 1972 (pp. 229-247). É
que a criação conceitual de Deleuze não opera por filia-
ções, mas por alianças. E essas alianças não se dão ape-
nas com filósofos e com a filosofia, mas com artistas e
com a arte (pp. 171-174) e mesmo com cientistas e com
a ciência. Talvez seja uma das passagens mais inte-
ressantes do livro o momento em que, numa comunica-
ção à Sociedade Francesa de Filosofia, Ferdinand Alquié,
professor de Deleuze, o censura por não ter usado em sua
exposição exemplos propriamente filosóficos, mas mate-

280
verve

Um sacrifício para o condutor político

máticos, biológicos etc., e com isso negar a especificidade


da filosofia. Ele responde: a crença na especificidade da
filosofia eu aprendi com o senhor (p. 144). Deleuze nos
mostrou que importava menos o que uma coisa é do que
os usos que dela se poderia fazer, dos modos como se faz
funcionar.
Logo de início se é avisado sobre o que no livro não há:
textos inéditos ou póstumos, exceto o texto que dá nome
ao livro, “Causas e Razões da Ilha Deserta”. O mais pro-
fundo é a pele, tudo já estava lá, na superfície do que já
estava escrito e publicado, Deleuze não queria póstumos,
comenta Lapoujade... Mas como seria interessante se
Deleuze fosse alvo de uma traição tão potente como aquela
cometida por Max Brod com Kafka, que deveria ter quei-
mado suas obras incompletas e escritos pessoais, mas
preferiu publicá-los... Na traição se está em risco, e no
risco está a possibilidade da invenção de uma máquina de
guerra.

um sacrifício
para o condutor político edson passetti*

Ismail Kadaré. A filha de Agamenon. O sucessor. São Pau-


lo, Companhia das Letras, 2006, 217 pp. Tradução de Bernar-
do Joffily.

Uma noite, durante um jantar, um jovem editor pro-


piciou uma breve e intensa conversação sobre Thomas
Bernhard, de quem eu tinha lido recentemente Per-

* Coordenador do Nu-Sol, Núcleo de Sociabilidade Libertária, e professor no


Depto de Política e no Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências
Sociais da PUC-SP.
verve, 11: 281-287, 2007

281
11
2007

turbações, presente de um amigo. Um outro livro pousa-


do na mesa de leituras de minha casa, ganho de outro
amigo, intitulado A filha de Agamenon. O sucessor, duas
ficções de Ismail Kadaré, de alguma maneira me atiça-
va e me rechaçava.
Olhava para um dos títulos e pensava em Fidel Cas-
tro na sua longevidade e nas imprecisas notícias sobre
seu estado atual de saúde, fato adequado e esperado
quando se trata da vida de um ditador, e em seu suces-
sor, o irmão Raul, que se vier a ocupar o lugar do condu-
tor continuará a ditadura do proletariado por linhagem
de sangue, já em voga na Coréia do Norte. O outro título
me levava à jovem Ifigênia, filha de Agamenon, sacrifi-
cada em nome do direito do rei à vida de cada guerreiro
numa guerra pela recuperação da bela Helena, esposa
raptada pelo formoso Paris. O livro de Kadaré, enfim, ti-
nha contra ele um certo filme baseado em um de seus
romances. E, por isso, também, ele fazia parte de minhas
salutares perturbações.
Ismail Kadaré viveu na Albânia tomada pelos fascis-
tas, nazistas, socialistas soviéticos e depois alinhada
ao governo chinês, desde 1968 até a morte de Mao-Tsé
tung. Buscou o exílio na França antes do fim da ditadu-
ra, em 1992, durante o governo de Ramiz Alia, o suces-
sor de Enver Hodja (1945-1985), que procurou reabrir
diplomaticamente o país reatando relações com os Esta-
dos Unidos, União Soviética, Itália e Grécia, e realizan-
do eleições em 1991. O resultado reafirmou a vitória
dos comunistas que por si só foi insuficiente para gerar
uma paz temporária. O caos político e econômico per-
maneceu gerando não só uma imigração em massa para
os portos da Itália, mas provocando a chamada de uma
nova eleição que levou os democratas ao governo. Como
na URSS, a ditadura do proletariado ruía diante do dis-
positivo eleitoral democrático.

282
verve

Um sacrifício para o condutor político

Kadaré foi um resistente sem pretender virar herói


ou mártir. Consta que publicou O grande inverno, em
1977, lisonjeando o ditador, para poder continuar escre-
vendo, mas que desde então arranjou um jeito de envi-
ar seus escritos para o exterior como foi o caso de A
filha de Agamenon, concluído em 1985, conforme atesta
Claude Durand, presidente da Fayard, no prefácio desta
edição brasileira. Entre outubro de 2002 e março de 2003,
escreveu O sucessor, complementando o breve livro an-
terior com a mesma escrita enxuta e trágica, traduzida
por Bernardo Joffily, brasileiro que chegou a trabalhar
na rádio Tirana juntamente com o líder do PC do B, João
Amazonas, quando tinha admirações pelo regime de
Hodja. Mas não foram somente eles os apreciadores bra-
sileiros da pouco conhecida ditadura do proletariado al-
banesa. O sociólogo e deputado federal pelo PT Florestan
Fernandes, depois de visitar o país no início da década
de 1990, provavelmente cercado por programas oficiais,
ao regressar declarou seu grande entusiasmo com aque-
le socialismo, numa época em que PT era sigla que as-
sociava socialismo e democracia.
Ismail Kadaré compôs um díptico sobre os sacrifícios
ao poder, os assujeitamentos, medos, as maneiras da
ditadura do proletariado, a sucessão do Condutor, o que
dita as leis, que nos remetem à Cuba de hoje em dia,
mas não só às tiranias governamentais. As ditaduras
não acabam simplesmente com a morte do ditador, a
sucessão ou a substituição do regime; elas criam os dis-
positivos de exceção, articulando expectativas da popula-
ção e medidas jurídico-políticas que, gradativamente, são
incorporados pelas democracias. Afinal, as ditaduras tam-
bém são governos com altos índices de consentimento
obtidos por adesão ou medo.
Ismail Kadaré fala da Albânia, o “lugar das águias”,
uma terra por onde circula uma estranha fábula sobre

283
11
2007

como atingir o mundo de cima sentado nas asas desta


ave de rapina que exige do transladado, somente peda-
ços de carnes. Por mais equipado que se esteja corre-se
o risco da guarnição acabar, pois a travessia pelos pre-
cipícios é longa, a águia cobra regularmente sua ração
e se pode chegar lá no mundo de cima reduzido ao es-
queleto de um morto cujas carnes foram lentamente
devoradas. A águia, como o ditador ou qualquer gover-
nante, alimenta-se dos que pretendem chegar ao cume.
Suzana é a filha do possível Sucessor do Condutor.
Ela ama um jovem de quem deverá se afastar para agra-
dar os governantes. O seu apaixonado namorado des-
cartável recebe em troca um surpreendente convite para
assistir, na primavera, a comemoração do primeiro de
maio em um lugar especial na tribuna de honra. Ele
atravessa o livro pelas ruas de Tirana pensando sobre a
razão do convite, encontrando pessoas muito e pouco
conhecidas que vão ficando pelo caminho, agrupadas em
pequenos currais ou lugares reservados a indivíduos
muito, pouco e menos importantes do que ele naquele
dia. Todos desconfiam dele e ele de cada um. Suzana, a
Ifigênia da vez, cederá. O Sucessor se imaginará o futu-
ro Condutor e este será substituído conforme desejava.
Tudo simples, poderoso e mortal!
Com a chegada da democracia, das empresas, das
participações e das inclusões sociais, aparecem, ime-
diatamente, outras comemorações articuladoras das
massas como os festejos recordes de apresentações ao
ar livre com bandas de rock’n’ roll em que vips também
vão ficando pelo caminho entre os espectadores e o pal-
co, fato que se comunica com os eventos em ambientes
fechados patrocinados por empresas privadas, estatais
ou mistas que promovem celebridades instantâneas e
ostracismos irreversíveis. Na ditadura ou na democra-
cia, a maneira de distribuição do rebanho vip é similar;

284
verve

Um sacrifício para o condutor político

as dúvidas entre os escolhidos se parecem, e todos se


assujeitam para serem convidados especiais do tirano
do Estado ou da glorificação da participação na empresa,
ostentando o convite na mão ou a camiseta no tronco,
sua medida de beleza e jovialidade. Trata-se de uma
maneira sutil de sujeição nos escalões superiores que
conjuga a obediência por amor à distinção e ao mérito
procedimentais da tradicional burocracia do Estado mo-
derno com a produtividade da burocracia privada. Será
que hoje em dia “educação, trabalho produtivo e treina-
mento militar” somente fazem parte do antigo triângulo
revolucionário?
A entrada da Romênia e da Bulgária na União Euro-
péia, no final de 2006, facilitará a futura absorção da
Albânia e da sua população liberta dos horrores que
se abateram sobre ela no Kossovo, durante a ditadura
Milosevic, no final do milênio passado. O governo de to-
dos por um só (ditadura) ou o governo de todos por cada
um (democracia), com ou sem divisão de poderes gover-
namentais, segundo Proudhon, apenas mantêm a con-
tinuidade do Estado, ora com mais ou menos autorida-
des e liberdades. Diríamos, ora em nome do proletaria-
do, ora em favor da população, para agradar o tirano ou
a empresa. Entretanto, se empresa e governo estão as-
sociados e se ajustam por modulações fazendo com que
os assujeitados amem os superiores, participando dire-
tamente nesta vida institucionalizada, isto não se trans-
forma em “lei de ferro”; há também a linha de fuga: o
libertarismo ou Anarquia, praticamente impossível sob
o regime ditatorial, torna-se um provável acontecimen-
to a partir das restaurações democráticas.
O sucessor, o segundo livro dentro do livro, leva o lei-
tor para outro canto. Ali onde não se mistura mais pro-
letariado ou povo com dirigentes, superiores e empre-
sários. Estamos diante dos arranjos, composições, pe-

285
11
2007

quenas vinganças, jogos de morte, exílios, invejas que


compõem a gramática do poder soberano. Ao condutor
se deve tudo: “peça o que quiser, todos estamos dispos-
tos a nos sacrificar” (p. 213).
O sucessor é achado morto no outono, num 14 de
dezembro, em sua residência. Foi suicídio ou homicí-
dio? Sabe-se somente que era esperada a queda do su-
cessor.
A continuidade do Condutor no sucessor depende
menos do anúncio do escolhido do que dos ininterruptos
arranjos burocráticos, da vontade do déspota, do proletá-
rio mais proletário. Sobre o sucessor recaem muitos
olhos e seus gestos se tornam involuntariamente sus-
peitos. Até a beleza da reforma arquitetônica que reali-
zou em sua residência será a justa medida das invejas.
De que valerão a sua devoção incondicional e inabalá-
vel e a de sua esposa ao partido único? Depois de repen-
tinamente morto, resta à sua família aceitar a partida
para o exílio num confinamento no interior da Albânia,
carregando o veredicto de traição do quase condutor,
quando apenas ocorreu mais uma trapaça palaciana.
A destruição do sucessor foi irremediável desde a
reluzente inauguração da residência reformada pelo ar-
quiteto, equilibrando medida, ordem, proporção, ameaçan-
do a individualidade do Condutor e a burocracia da dita-
dura. Trata-se da explicitação de mais um momento da
história da individualidade, quando se estabelece a rela-
ção de proximidade entre a ditadura do proletariado e a
aristocracia decadente, escondendo outros segredos pe-
los labirintos que levam aos porões. Estes lá permanece-
rão, até serem lembrados pela nova face do indivíduo,
agora não mais dissolvido no coletivo, na linhagem de
sangue ou na vanguarda da razão iluminista como dita-
dura do proletariado, mas no governo de todos por cada
um, com a futura democracia e a consolidação da Euro-

286
verve

Um sacrifício para o condutor político

pa como um grande Estado sobre os Estados federados.


Disse, então, o arquiteto: “mudam os regimes, os hábi-
tos, as catedrais, mas os crimes são sempre os mes-
mos. E a inveja, o seu primeiro móvel, tão amiúde es-
quecida, longe de amainar torna-se cada vez mais te-
nebrosa”.
Fidel Castro agoniza. Cuba esperará até sua morte
para assistir sua sucessão pela linhagem de sangue do
ditador ou por outra eminente democracia? Nesta soci-
edade de controle em que vivemos não faltam seguido-
res, amantes da obediência, do individualismo. Uma
ditadura permanece mesmo depois da morte do sobera-
no ao provocar o aparecimento de dispositivos de exceção
que atravessam governos e expandem fluxos autoritários
em nome da segurança democrática.
O livro de Kadaré fala da emergência de dispositivos
de exceção presentes na ditadura e por isso é mais do
que uma crítica à ditadura comunista a serviço de de-
mocratas juramentados. Provoca e perturba. Faz lem-
brar, na atualidade, que muita gente se entusiasma com
Hannah Arendt e suas reflexões sobre o totalitarismo,
talvez pela recusa a ler as reflexões menos liberais de
Raymond Aron sobre democracia e totalitarismo. Entre-
tanto, estes mesmos dois lados omitem as contínuas
repetições registradas nestes regimes (quando muito,
retratam semelhanças entre o totalitarismo nazista e o
comunista), e pressentem que as diferenças podem pro-
vocar uma vida libertária como indicara Proudhon. Eles
crêem que é possível se precaver de perturbações.
A continuidade da relação condutor-sucessor exige o
sacrifício; este é o princípio do poder soberano em qual-
quer regime, seu direito de matar, mesmo no Estado de
Direito.

287
11
2007

um livro para
usar, brincar, jogar acácio augusto*

Daniel Colson. Pequeño léxico filosófico del anarquismo —


De Proudhon a Deleuze. Buenos Aires, Nueva Visión, 2003,
287 pp. Tradução Heber Cardoso.

Não se trata de um dicionário. Embora o dicionário


Aurélio apresente léxico e dicionário como sinônimos
na primeira definição; é a segunda definição de léxico
que nos aproxima do livro de Daniel Colson: “conjunto
das palavras usadas numa língua, ou num texto, ou por
um autor”. Qualquer pessoa poderia dizer: “Um anar-
quista se submetendo à dureza da ordem alfabética?”.
Ao contrário, é nesta opção de organizar o livro na forma
de um léxico que está a delícia de ler o livro de Colson e
a dificuldade em resenhá-lo. Há uma possibilidade infi-
nita de comentar cada verbete.
Trata-se de um livro com múltiplas entradas que se
bastam por si; um livro rizomático que não se lê da pri-
meira à última página, seguindo a ordem do alfabeto.
Favorece o leitor que pode pegá-lo e ir à busca do que
lhe interessa, ignorando livremente o resto. Como su-
gere o autor, “cada leitor pode eleger as entradas que
melhor lhe convier, seja porque experimenta uma afi-
nidade particular e intuitiva com tal ou qual palavra, tal
ou qual idéia, seja porque algumas constituem uma cris-
talização particularmente importante em sua maneira

* Bacharel em Ciências Sociais pela PUC-SP, mestrando no Programa de Estu-


dos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP, pesquisador no Nu-Sol e
Secretário do Centro de Cultura Social de São Paulo (CCS-SP).

verve, 11: 288-292, 2007

288
verve

Um livro para usar, brincar e jogar

de pensar, de sentir ou de perceber” (p. 15). Somente


como um livro para um fim específico, é que mantêm
semelhança com um dicionário comum.
As palavras são objetos de lutas. A maneira como são
escritas ou ditas, onde e quem as redige ou pronuncia,
estão sempre sob o fogo cruzado das lutas políticas. Lutas
móveis e dinâmicas, que se desdobram em liberações,
libertações, dominações, fissuras, junções. São objetos
pelos quais se luta, à revelia dos que querem decretar
seu definitivo estatuto dando a última palavra. Para os
anarquistas, as palavras são inventadas em luta, nos
seus embates e enfretamentos de resistências e experi-
mentações de liberdade. São vitais instrumentos, lan-
ças de guerreiros. Os dicionários ao tentarem estancar
essa luta, dando o definitivo significado das palavras, as-
semelham-se à frieza dos livros de códigos jurídicos.
É no sentido das palavras em luta que Colson compõe
seu léxico. Não é uma enciclopédia do anarquismo, que
pretende indicar o significado correto de cada palavra,
idéia ou expressão. Não é, também, um livro de história
do anarquismo à maneira de Max Netllau ou do jeito de
Daniel Guérin. Colson dá um tratamento singular, mas
não aleatório, a cada verbete que escolheu para compor
seu livro, estabelecendo analogias, conexões, movimen-
tos e aproximações muitas vezes surpreendentes.
Trata-se de uma conversa que quer “fazer visível
as afinidades secretas (...) que unem filósofos e teóri-
cos tão diferentes como Espinoza, Leibniz, Stirner,
Proudhon, Bakunin, Tarde, Nietzsche, Bergson, Foucault,
Simondon, Deleuze e alguns outros” (p. 14). Busca apro-
ximações e distanciamentos no campo de luta das prá-
ticas discursivas, levando ao limite do possível (p. 137)
o sentido anárquico da palavra libertário.
Maio de 1968. Este acontecimento se espalhou como
centelhas pelo mundo; e abriu caminho para que

289
11
2007

marxistas, desencantados com o autoritarismo da


URSS, estudassem o anarquismo e investissem em uma
bizarra síntese entre marxismo e anarquismo, vendo
nisto, a expressão da atitude dos jovens no maio de 1968
(leia-se Daniel Guérin). No entanto, aparte sua importân-
cia histórica com repercussões inclusive no Brasil (caso
de Daniel Guérin), livros-síntese deste calibre se es-
truturam na enfadonha e redundante divisão idéias-
movimento. Deixam clara a opção teórica e metodológica
pelo marxismo.
O livro de Colson também é um efeito, menos imedia-
to, das experimentações de maio de 1968. Mas segue ou-
tro caminho. Vai em busca de pensadores que extraíram
das experimentações vivenciadas pelos jovens dessa ge-
ração uma outra possibilidade de pensar e de viver, sem
pleitear o anúncio de um novo anarquismo. Percorre os
ditos e escritos de Foucault, Deleuze, Nietzsche e outros
para adicionar novas palavras ao vocabulário libertário,
rever antigas e, por vezes de maneira um pouco apres-
sada, e muito empolgado, salvar algumas. O mais interes-
sante, é que afirma a anarquia como uma atitude que
libera o viver, que encara a vida, em suas manifestações
mais cotidianas, como uma luta por liberdade no presen-
te; em oposição ao anarquismo como “registro classifica-
tório e identitário das categorias da ordem dominante”
(p. 31). Mostra que há muita potência de liberdade na
associação Proudhon e Deleuze, Bakunin e Espinoza. Mui-
to mais do que poderia estabelecer a teoria ou que poderi-
am imaginar alguns anarquistas defensores das sagra-
das escrituras.
A associação entre Foucault, Deleuze e a anarquia não
é uma novidade. No Brasil, desde os anos 1980 essa afini-
dade, no sentido que Colson dá a essa palavra (pp. 21-22),
aparece em escritos de anarquistas como Edson Pas-
setti e Margareth Rago. Entretanto, encontramos per-

290
verve

Um livro para usar, brincar e jogar

cursos e reflexões singulares em cada um desses auto-


res, anarquistas diferentes com diferentes anarquias,
marcando uma alegre descoberta no Brasil, na Europa e
nos Estados Unidos.
É estranho que autores como Antonio Negri e Michel
Hardt, com seu conceito de Multidão, e Murray Bookchin,
com suas preocupações ecológicas que vão de encontro
com os atuais investimentos de Estados, empresas e
organismos internacionais, são mais bem recebidos
entre alguns anarquistas, do que Foucault, Deleuze ou
Nietzsche, com suas inquietações libertárias sobre esté-
tica da existência, processos de subjetivação e vontade de
potência.
Uma das referencias teóricas dessa maneira de pen-
sar o anarquismo encontra-se no livro de Bookchin,
Anarquismo social ou anarquismo como estilo de vida: um
abismo intransponível, e que desemboca em grupos que
procuram desesperadamente pela existência de uma
classe operária ou que atuam à maneira paroquial de uma
ONG.
Um anarquista não quer abolir o poder, toma-o para si.
O Léxico de Colson apresenta a possibilidade de encontrar
em Nietzsche, Foucault, Deleuze, Espinoza corajosos
parceiros, que junto aos clássicos anarquistas e suas
experimentações na história do movimento operário, nos
dão vitalidade para a luta (ver o verbete vital pp. 274-275).
O sentido anárquico que Colson dá à noção nietzschiana
de eterno retorno (pp. 87-93) é um belo momento do livro em
que a injeção de vitalidade nos toma, enrubescendo
alguns anarquistas que insistem em manter vivo, com a
ajuda de “aparelhos”, um certo humanismo e a evidente
herança iluminista que habitou o pensamento libertário.
Alguém que já passou pelo livro de Colson poderia
dizer: “O que fazer com verbetes como autonomia (pp. 43-
44) ou com passagens onde Colson afirma a busca de

291
11
2007

outro mundo ou de uma outra composição das forças?”


Irritam certas passagens do livro, tanto quanto a ausên-
cia de Willian Godwin no verbete sobre a justiça (p. 143) ou
o fato de se deter a uma bibliografia quase que exclusi-
vamente francesa. Isso, no entanto, não me impede de
vibrar, no verbete seguinte (justificação, Idem) ao ler: “O
anarquismo rechaça qualquer justificação, tanto para si
como para os outros” (Ibidem).
Deleuze dizia que se lê um livro como quem ouve um
disco. Vamos até uma parte, se não nos serve passamos
para outra. Disse, também, em seu abecedário feito com
Claire Parnet, que na condição de filósofo, escrevia para
não filósofos. Afinal, continua Deleuze, músicos não
gravam discos para serem ouvidos apenas por músicos e
artistas não fazem arte para ser apreciada apenas por
artistas. Pois nada impede que uma pessoa qualquer possa
produzir — ao ouvir uma música, apreciar uma tela ou ler
um livro — um encontro que possua preciosidade apenas
para ela.
Penso que a força e a beleza desse livro de Colson está
exatamente nisso. Desde seu formato é um livro que não
se destina a iniciados, sejam anarquistas, marxistas,
filósofos ou sociólogos. Pode ser aberto por qualquer um
sem preocupação de segui-lo até o fim e sem a necessida-
de de aprová-lo ou reprová-lo, mas para utilizá-lo, não da
maneira que bem entender, mas na medida em que se é
afetado por uma vontade de anarquizar.
Daniel Colson é professor de sociologia na Universida-
de de Saint-Étienne, pesquisador no CRESAL (CNRS),
integrante da livraria libertária La Gryffe, em Lyon e
autor, entre outros livros de Anarchosyndicalisme et
Communisme — 1920/1925 e diversos artigos na impren-
sa libertária francesa e de outros países. Um breve estudo
seu sobre o pensamento de Proudhon pode ser encontrado
no volume 9 de Verve, este Léxico, infelizmente, não
possui tradução em língua portuguesa.

292
verve

Roberto Freire: anarquia aqui e agora

roberto freire:
anarquia aqui e agora josé maria c. ferreira*

Roberto Freire. O tesão pela vida. São Paulo, Editora Fran-


cis, 2006, 320 pp.

Elaborar uma resenha crítica ao último livro publi-


cado por Roberto Freire — O tesão pela vida — não é,
para mim, uma tarefa fácil. Várias razões estão na
origem desta afirmação. Em primeiro lugar, amizade
traduzida em múltiplas pulsões de vida unem-me a
Roberto Freire enquanto perdurarem as nossas trajetó-
rias biológicas e sociais. Em segundo lugar, não conheço
em profundidade e extensão a vastíssima obra publica-
da pelo autor, nomeadamente em livros e artigos. Por
último, o lugar sócio-histórico de Roberto Freire no âm-
bito dos anarquismos que interpretam e vivem a anar-
quia assume uma singularidade exemplar no Brasil,
cujas generalizações são difíceis de discernir a nível
planetário.
Devo, desde já, acrescentar que este livro tem uma
contribuição importante de João da Mata, Jorge Goia e
Vera Schroeder, integrantes do Coletivo Anarquista
Brancaleone. Estes muito devem a Roberto Freire na
construção e vivificação da Soma enquanto terapia
anarquista. Diga-se também, em abono da verdade, que
sem eles a obra e a vida de Roberto Freire não teria a
plasticidade social que atualmente detém. Para os devi-

* Professor do SOCIUS — Instituto Superior de Economia e Gestão da Uni-


versidade Técnica de Lisboa e editor da Revista Utopia.
verve, 11: 293-298, 2007

293
11
2007

dos efeitos aconselha-se a leitura dos capítulos 16, 21 e


22 — “O anarquismo somático” (pp. 201-208); “Escravidão
e corpos mutilados: a capoeira como resgate da vida” (pp.
267-275); “Capoeira Angola: a terapia pelo corpo” (pp. 276-
288) — de João da Mata, os capítulos 17 e 19 — “Antenas
anarquistas contemporâneas” (pp. 209-219); “A liberdade
no risco” — de Jorge Goia (pp. 235-251) e, ainda, “Menos
prosa e mais poesia” de Vera Schroeder (pp 252-266).
Sabendo de antemão das dificuldades que já enun-
ciei, para elaborar o meu discurso narrativo debruçar-
me-ei sobre três fatores explicativos que atravessam a
centralidade da obra e vida de Roberto Freire. Assim, de
início procurarei incidir na análise da Soma como uma
terapia anarquista baseada numa epistemologia e me-
todologia interdisciplinar. Por outro lado, focarei a im-
portância dos pressupostos antinômicos da análise de
Roberto Freire em relação a fenômenos biológicos, eco-
nômicos, sociais, políticos e culturais. Por último, su-
blinhe-se a construção e a vivência da anarquia aqui e
agora a partir de uma pedagogia que tem a sua essên-
cia em indivíduos livres e soberanos.
Neste livro, desde o primeiro capítulo sente-se que a
relação de Roberto Freire com a psicanálise e a psicolo-
gia foi fundamental na sua formação de médico e de
inventor do conceito de Soma enquanto terapia anar-
quista. Entre as múltiplas contribuições de autores de
diferentes origens epistemológicas — filosofia, antropo-
logia, ética, psicologia, psicanálise, biologia, sociologia,
etc... — destaca-se sobremaneira Wilhelm Reich. Este
autor foi fundamental para abrir as pistas biológicas e
sociais de libertação do corpo, da mente e da psique dos
seres humanos inscritos nos parâmetros do princípio
da realidade normativa do Estado e da sociedade capita-
lista. Sendo uma criação e adepto dos pressupostos da
psicanálise desenvolvidos por Sigmund Freud, Wilhelm

294
verve

Roberto Freire: anarquia aqui e agora

Reich, após o advento histórico do fascismo em alguns


países europeus e a evolução do socialismo soviético,
entra em ruptura com o seu chefe e torna-se um defen-
sor acirrado da libertação total dos corpos dos indivíduos
da escravidão exercida pela religião, pelo Estado e pelo
capitalismo. Os seus livros e experiências emblemáti-
cas que realizou nos Estados Unidos da América servi-
ram de antídoto a todo o tipo de castração bioenergética
e, simultaneamente, de projeção mundial para os que
aspiravam evoluir no sentido da emancipação individu-
al e social.
Não admira que Roberto Freire encontre em Reich a
base da desconstrução psicológica e psicanalítica que lhe
faltava realizar em relação à influência perniciosa que
Sigmund Freud exercia nas modalidades terapêuticas de
normalização dos doentes e, sobretudo, em relação à sua
identidade com a ordem social vigente. A Soma, enquan-
to terapia anarquista, centra-se no indivíduo enquanto
totalidade de vida bioenergética, social, política, cultural,
econômica e civilizacional. Neste sentido, para Roberto
Freire havia uma impossibilidade de explicar qualquer
fenômeno biológico ou social sem articulá-lo com a to-
talidade universo. Devido a essa relação de interdepen-
dência sistemática e profunda entre a parte e o todo, a
sociedade global e os indivíduos, Roberto Freire cria a
Soma no decorrer da década de 70 do século XX. Não só é
genuinamente uma terapia anarquista, baseada na auto-
educação bioenergética dos corpos, da mente e da psi-
que, como também é objeto de experimentação grupal
em vários Estados do Brasil.
Embora seja impossível discernir sobre todos os pa-
radigmas e autores citados neste livro, outras dimen-
sões epistemológicas ajudam a compreender a obra de
Roberto Freire. Engels, Clastres e Foucault. Se há algum
resquício de contradição epistemológica em Roberto Frei-

295
11
2007

re neste livro é justamente na associação política, an-


tropológica, biológica e social que faz entre estes três
autores. A tese materialista histórica e dialética de
Friedrich Engels é incompatível com os pressupostos
analíticos de Pierre Clastres e Michel Foucault. A contra-
dição emerge não só porque Engels, progenitor máximo
do modelo marxista, tenha se revelado uma “peste”
analítica societal, cujas conseqüências determinis-
tas geraram a escravidão individual e coletivas. O
problema maior é o seguinte: como conciliar as no-
ções de família, propriedade privada e luta de classes
com indivíduos livres e soberanos, sem necessidade
de chefes e de amos. Se a Soma — enquanto autores
da libertação dos corpos e das vidas dos indivíduos —,
encontra em Pierre Clastres e Michel Foucault fami-
liaridades e correspondências efetivas com o étimo
Anarquia, o mesmo não podemos dizer em relação a
Engels.
Na perspectiva de Roberto Freire existe sempre um
pressuposto inquestionável: a anarquia aqui e agora.
Esta dimensão da sua vida e obra leva-nos para os cam-
pos do amor, da amizade, da solidariedade e da liberdade.
É uma diferença que o separa de todos os anarquismos
ortodoxos, quer eles se denominem anarco-sindicalismo,
comunismo libertário ou anarco-comunismo. Antes de
qualquer revolução social ou classe social predestina-
das a transformarem-se em coveiros do capitalismo,
do Estado e da religião, para Roberto Freire, cada indi-
víduo per se deve ser único como ator da sua própria
libertação. Essa libertação é inextrincavelmente asso-
ciada a uma interdependência e complementaridades sis-
temáticas, entre a morte e a vida, a teoria e a prática, o
amor e o ódio, a guerra e a paz. Neste domínio demonstra
a sua identidade com o anarco-individualismo preco-
nizado por Max Stirner.

296
verve

Roberto Freire: anarquia aqui e agora

Diga-se de passagem que uma das críticas do movi-


mento libertário feitas a Roberto Freire reside na sua ação
individual e coletiva que implica uma experimentação
efetiva da Soma, como terapia anarquista, que é sem dú-
vida alguma a visibilidade social maior da anarquia aqui
e agora. Os conteúdos e formas das críticas que lhe foram
endereçadas pelo movimento libertário que, por ironia do
destino, partiram daqueles que se julgam os herdeiros e
guardiões genuínos da anarquia no Brasil, resulta do fato
que Roberto Freire e os seus “acólitos” vendem e ganham
dinheiro com a sua mercadoria denominada anarquia. Per-
gunto a mim mesmo e a todos que se identificam com a
anarquia: quem não é objeto de compra e de venda nesta
sociedade? No caso específico da vida de Roberto Freire,
caso quisesse enriquecer, quer pela via profissional, quer
pela via patrimonial herdada, não necessitava de pautar a
sua trajetória biológica e social no sentido da emancipa-
ção individual e social. Para este efeito teria aproveitado
a venda da sua mente, da sua psique e do seu corpo de
uma forma mais rentável, sem estar sujeito às dificulda-
des de sobrevivência econômica e financeira da Soma.
Ao entrar em ruptura com a militância dedicada ao
comunismo no Brasil, viu na experimentação comunitá-
ria de tipo anarquista as bases de desconstrução dos
múltiplos autoritarismos e couraças intrapessoais e in-
terpessoais. Para isso o melhor antídoto é a aprender-
mos a auto-governarmo-nos, a auto-educarmo-nos e a
auto-compreendermo-nos, de tal foram que possamos
decidir e liderar as nossas vidas, sem precisarmos de
alguém para isso, inclusive do anátema que certos anar-
quistas ortodoxos lhe lançaram de ser o “guru” do Soma,
enquanto terapia anarquista.
Por fim, na atualidade, em que medida os elementos
analisados neste livro sobre a vida e obra de Roberto
Freire tem pernas para se desenvolver.

297
11
2007

No meu entendimento, há razões suficientes para in-


tegrar e desenvolver o imaginário individual e coletivo da
anarquia, pelos seguintes elementos. Em primeiro lugar,
pelo fato de associar a totalidade de cada ser humano à
sua realidade intrínseca de seres biológicos e sociais. A
complementaridade e a interdependência ajuda-nos a dar
um sentido às nossas vidas no sentido de uma ecologia e
uma pedagogia assentes na biodiversidade e equilíbrio
ecossistêmico em escala planetária. A vida em vez da
morte impõe-se sobremaneira em todas as relações
sociais, mas também em relação a todas as relações que
mantemos com as demais espécies animais e vegetais.
Se compreendo bem o sentido do conceito de diferença
e de liberdade dos corpos em atos de amor e de liberdade
na obra de Roberto Freire em relação aos seres humanos
de cor branca, preta, amarela, cinzenta, etc..., também
devo perceber e compreender, sem o ter explicitado de
forma concreta, que essa dimensão está implícita em
qualquer ser vegetal ou animal.
Outro fator importante a sublinhar reside no conteú-
do auto-construtivo e de auto-governo dos corpos que é
dado pela dinâmica de grupo assente nos pressupostos
da pedagogia libertária e em algumas especificidades da
capoeira Angola. Quer uma opção, quer outra, ajudam-
nos enormemente a assimilar informação, conhecimento
e energia sobre o nosso metabolismo energético, e
também de nós mesmos como atores inscritos na cons-
trução do imaginário individual e coletivo de pulsões de
vida como potenciação da anarquia, em detrimento das
pulsões de morte que produzem e reproduzem o Estado, o
capitalismo e os Deuses de diferentes tipos.
Finalmente, para concluir. Este livro de trezentas e
vinte páginas — O tesão pela vida — é um hino à anarquia
que, em última instância, expressa a vida de um homem
que muito admiro e que vale a pena ler enquanto subsis-
tirmos no planeta Terra.

298
verve

NADA VEZES NADA

TUDO
VEZES
TUDO

NADA

ÀS VEZES

MUITO

MUITO

MAIS QUE

TUDO

299
11
2007

NU-SOL
Publicações do Núcleo de Sociabilidade Libertária, do Programa de
Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP.

hypomnemata
Boletim eletrônico mensal, 1999-2007
flecheira libertária
(comentário semanal do nu-sol sobre pessoas, coisas e planeta), desde
13 de fevereiro de 2007, em www.nu-sol.org

vídeos
Libertárias, 1999
Foucault-Ficô, 2000
Um incômodo, 2003
Foucault, último, 2004
Manu-Lorca, 2005
A guerra devorou a revolução. A guerra civil espanhola, 2006
Cage, poesia, anarquistas, 2006

CD-ROM
Um incômodo, 2003 (artigos e intervenções artísticas do Simpósio Um
incômodo)

Coleção Escritos Anarquistas, 1999-2004


1. a anarquia Errico Malatesta
2. diálogo imaginário entre marx e bakunin Maurice Cranston
3. a guerra civil espanhola nos documentos anarquistas C.N.T.
4. municipalismo libertário Murray Bookchin
5. reflexões sobre a anarquia Maurice Joyeux
6. a pedagogia libertária Edmond-Marc Lipiansky
7. a bibliografia libertária — um século de anarquismo em língua portu-
guesa Adelaide Gonçalves & Jorge E. Silva
8. o estado e seu papel histórico Piotr Kropotkin
9. deus e o estado Mikhail Bakunin
10. a anarquia: sua filosofia, seu ideal Piotr Kropotkin
11. escritos revolucionários Errico Malatesta
12. anarquismo e anticlericalismo Eduardo Valladares
13. do anarquismo Nicolas Walter

300
verve

14. os anarquistas e as eleições Bakunin, Kropotkin, Malatesta, Mirbeau,

Grave, Vidal, Zo D’Axa, Bellegarrigue, Cubero


15. surrealismo e anarquismo Joyeux, Ferrua, Péret, Doumayrou, Breton,

Schuster, Kyrou, Legrand

16. nestor makhno e a revolução social na ucrânia Makhno, Skirda,


Berkman

17. arte e anarquismo Ferrua, Ragon, Manfredonia, Berthet, Valenti

18. análise do estado — o estado como paradigma do poder Eduardo


Colombo

19. o essencial proudhon Francisco Trindade

20. escritos contra marx Mikhail Bakunin


21. apelo à liberdade do movimento libertário Jean-Marc Raynaud

22. a instrução integral Mikhail Bakunin

23. o bairro, o consumo, a cidade... espaços libertários Bookchin, Boino,


Enckell

24. max stirner e o anarquismo individualista Armand, Barrué, Freitag


25. o racionalismo combatente: francisco ferrer y guardia Ramón Safón

26. a revolução mexicana Flores Magón

27. anarquismo, obrigação social e dever de obediência Eduardo Colombo


28. bakunin, fundador do sindicalismo revolucionário Gaston Leval

29. autoritarismo e anarquismo Errico Malatesta

Livros

Edson Passetti e Salete Oliveira (orgs.). Terrorismos. São Paulo, Cortez,


2006.

Edson Passetti e Salete Oliveira (orgs.). A tolerância e o intempestivo.


São Paulo, Ateliê Editorial, 2005.
Edson Passetti (org.). Curso livre de abolicionismo penal. Rio de Janeiro,
Editora Revan/Nu-Sol, 2004.
Edson Passetti (org.). Kafka-Foucault, sem medos. São Paulo, Ateliê
Editorial, 2004.
Mikhail Bakunin. Estatismo e anarquia. São Paulo, Ed. Imaginário/Ícone
Editora/Nu-Sol, 2003.
Pierre-Joseph Proudhon. Do Princípio Federativo. São Paulo, Ed.
Imaginário/Nu-sol, 2001.

301
11
2007

Recomendações para colaborar com verve

Verve aceita artigos e resenhas que serão analisados pelo Con-


selho Editorial para possível publicação. Os textos enviados à re-
vista Verve devem observar as seguintes orientações quanto à for-
matação:

Extensão, fonte e espaçamento:

a) Artigos: os artigos não devem exceder 26.000 caracteres


contando espaço (aproximadamente 15 laudas), em fonte Times
New Roman, corpo 12, espaço duplo.

b) Resenhas: As resenhas devem ter no máximo 05 páginas


(até 9.000 caracteres com espaço), em fonte Times New Roman,
corpo 12, espaço duplo.

Identificação:

O autor deve enviar mini-currículo, de no máximo 03 linhas,


para identificá-lo em nota de rodapé.

Resumo:

Os artigos devem vir acompanhados de resumo de até 10 li-


nhas — em português e inglês — e de três palavras-chave (nos
dois idiomas).

Notas explicativas:

As notas, concisas e de caráter informativo, devem vir em nota


de fim de texto.

Citações:

As referências bibliográficas devem vir em nota de fim de texto


observando o padrão a seguir:

I) Para livros:

Nome do autor. Título do Livro. Cidade, Editora, Ano, página.

Ex: Max Stirner. O falso princípio de nossa educação. São Paulo,


Imaginário, 2001, p. 74.

II) Para artigos ou capítulos de livros:

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verve

Nome do autor. “Título” in Título da Obra. Cidade, Editora, ano,


página.

Ex: Michel de Montaigne. “Da educação das crianças” in Ensai-


os, vol. I. São Paulo, Nova Cultural, Coleção Os pensadores, 1972,
p.76.

III) Para citações posteriores:

a) primeira repetição: Idem, p. número da página.

b) segunda e demais repetições: Ibidem, p. número da página.

c) para citação recorrente e não seqüencial: Nome do autor, ano,


op. cit., p. número da página.

IV) Para resenhas

As resenhas devem identificar o livro resenhado, logo após o


título, da seguinte maneira:

Nome do autor. Título da Obra. Cidade, Editora, ano, número de


páginas.

Ex: Pierre-Joseph Proudhon. Do Princípio Federativo. São Paulo,


Ed. Imaginário, 2001, 134 pp.

V) Para obras traduzidas

Nome do autor. Título da Obra. Cidade, Editora, ano, número de


páginas. Tradução de [nome do tradutor].

Ex: Michel Foucault. As Palavras e as Coisas. São Paulo, Martins


Fontes, 2000. Tradução de Salma T. Muchail.

As colaborações devem ser encaminhadas por meio eletrônico


para o endereço verve@nu-sol.org salvos em extensão rtf. Na impossi-
bilidade do envio eletrônico, pede-se que a colaboração em disquete
seja encaminhada pelo correio para:

Revista Verve

Núcleo de Sociabilidade Libertária (Nu-Sol), Programa de Estudos


Pós-graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Rua Ministro
Godói, 969, 4o andar, sala 4E-20, Perdizes, CEP 05015-001,
São Paulo/SP.

Informações e programação das atividades


do Nu-Sol no endereço:

www.nu-sol.org

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