Академический Документы
Профессиональный Документы
Культура Документы
1590/S1413-24782017227157
RESUMO
O desenvolvimento do campo de estudos em Currículo no Brasil é marcado pela
influência das teorias críticas que, mesmo quando deixam de ser majoritárias, per-
manece grande e talvez mesmo hegemônica, fazendo com que autores de outras
tendências e matizes dialoguem com ela compulsoriamente, mesmo que de modo
subliminar. Nossa hipótese de compreensão desse fenômeno vincula-se à importân-
cia intrínseca do debate para a constituição do campo do Currículo no país, conside-
rando que as tendências pós-críticas hoje majoritárias são, elas mesmas, vinculadas
a um pensamento progressista e de esquerda, a um projeto social emancipatório e
democrático, ou seja, de certo modo emergiram, como as novas esquerdas, das teo-
rias críticas e da esquerda tradicional. Procuramos, com isso, esboçar uma trajetória
indiciária dessas teorias e os diálogos promovidos por/entre elas como elemento
para a compreensão das tendências atuais no campo de estudos do Currículo e das
relações que estabelecem entre si e com as teorias críticas.
PALAVRAS-CHAVE
teorias de currículo; teoria crítica; campo do currículo.
* Uma versão inicial e reduzida deste texto foi publicada anteriormente, sob encomenda
dos editores. Oliveira, I. B.; Süssekind, M. L. From the Critical Theories to the Cri-
tique of the Theories: dialogues between social thought and its appropriations through
educational debates in Brazil. In: Darder, A.; Mayo, P.; Paraskeva, J. M. (Orgs.).
International Critical Pedagogy Reader. London: Routledge, 2015.
piraram esses debates, mas também a obra de Paulo Freire — nos anos 1970 mais
publicada fora do que dentro do Brasil — exerceu influência sobre esses autores.
Aqui, um parêntese se impõe. Paulo Freire, e suas ações educativas no final
dos anos 1950 e nos anos 1960, talvez tenha sido, com grande autonomia intelectual
e destacando-se pelo compromisso político concreto com as camadas pobres da
população, o primeiro grande autor brasileiro que pode ser relacionado às teorias
educacionais críticas, antes mesmo que seus pares europeus e estadunidenses pro-
duzissem suas obras e fizessem sucesso por aqui, o que o tornaria um autor crítico
avant la lettre. Suas obras Pedagogia do Oprimido (Freire, 1970) e Educação como prática
de liberdade, ambas escritas nos anos 1960, são ainda hoje obras icônicas no campo
do pensamento educacional progressista, ligado ao pensamento político de esquerda,
defendendo as bandeiras do socialismo e da igualdade social. Elas foram produzidas
com base em experiências efetivas desenvolvidas pelo autor em recantos pobres e
analfabetos do Brasil, comprometidas com a emancipação dessas populações por
meio da apropriação de conhecimentos formais, sempre respeitando aquilo que os
trabalhadores com quem atuava já conheciam. Freire buscava — e morreu, em 1997,
buscando —, por diferentes caminhos, superar a alienação do povo, propondo uma
educação voltada à conscientização, pensando a descolonização do terceiro mundo pela
educação, agindo em clara crítica ao modelo da escola capitalista burguesa que manti-
nha e realimentava a opressão das massas, como afirma no Esclarecimento constante
na obra Educação como prática de liberdade (Freire, 1982, p. 35-36). Freire influenciou
e continua influenciando enormemente pensadores críticos, mesmo outros que lhe
sucederam, espalhados pelo mundo, notadamente Henry Giroux e Michael Apple.
Uma das mais importantes questões no campo da educação no Brasil, ao me-
nos nos últimos cinquenta anos, tem sido a discussão sobre as relações entre política
e educação. O exemplo e a influência de Paulo Freire, tanto como pensador quanto
como secretário de Educação, nos idos de 1960 e 1982, são igualmente notáveis.
A alfabetização de trabalhadores no Nordeste no fim dos anos 1950 e início dos
anos 1960 foi apenas uma de um amplo número de experiências emancipatórias
nas políticas educacionais daquela época que a ditadura (1964–1985) tentou apagar
instituindo sua própria reforma educacional. Pode-se dizer que uma conversa compli-
cada (Pinar, 2012) sobre experiência já se desenhava nos círculos de debates sobre as
teorias em educação, embora sempre tenha parecido muito mais importante para a
maior parte dos pesquisadores brasileiros no campo da educação, sobretudo aqueles
sob influência da intelligentsia gramsciana e marxista, manter o foco nos temas da
economia e do poder (Pinar, 2011; Süssekind e Pinar, 2014).
Essa reflexão nos leva a considerar a hipótese de que, apesar das dificuldades
já citadas, os autores que emergem nos anos 1970 e suas obras críticas também
foram influenciados pelo pensamento e pelas experiências freireanas, proibidos e
coibidos pela ditadura militar, mas presentes na mente daqueles que com elas con-
viveram e puderam relacioná-las às reflexões que chegavam de além-mar. Assim,
podemos compreender a discussão proposta por Luiz Antônio Cunha, que já em
1972 entendia ser preciso pensar de modo menos ingênuo as políticas educacionais
(Cunha, 1977a, p. 9). A partir de 1973, Cunha desenvolve um trabalho de reflexão
educacional centrado em análises sociológicas do pensamento liberal e de sua
3 Essas tendências políticas surgem a partir dos movimentos libertários de 1968 e da crítica
ao regime soviético, em que houve privação de liberdades individuais e perseguições polí-
ticas a amplos grupos sociais cujas ideias divergiam daquelas do regime. A nova esquerda
se configura, portanto, na esteira da crítica ao marxismo ortodoxo e ao economicismo,
trazendo para a luta política pautas como a do feminismo, da ecologia, do livre exercício
das sexualidades e de outras minorias, diferenciando-se, com isso, da esquerda marxista e
da primazia do econômico por ela defendida, conforme interpretamos nas pistas e sinais
que caçamos nas fontes pesquisadas e considerando o debate de Bobbio (1995).
4 A junção de termos, opostos ou complementares, em uma única palavra visa a superar
a cisão indicada entre ambos, substituindo-a pela ideia de que são indissociáveis.
5 A complexidade deste debate e a multiplicidade de autores e tendências que nele se
situam exigiriam, por si só, outro texto, cabendo aqui a menção à oposição entre autores
identificados com um ou outro campo do pensamento contemporâneo.
6 Lado a lado ao suporte político da Igreja às oligarquias e conservadorismos, frutifi-
ca tanto um pensamento marxista dentro de setores das igrejas católica e protestante
(Teologias da Libertação e Pastoral da Terra) quanto um pensamento social marxista e
de inspiração teleológica que chega a influenciar significativamente a obra e o entendi-
mento da obra de Paulo Freire (Kumar, 2011; Pinar, 2011).
Na orelha desse livro, o professor Casemiro dos Reis Filho destaca que a disser-
tação de mestrado que lhe deu origem se inscreve no impulso do desenvolvimento da
pós-graduação no Brasil. Aqui, mais uma importante variável para a compreensão da
chegada e da proliferação do pensamento crítico em educação no Brasil: o grande in-
vestimento na ampliação e consolidação da pós-graduação feito no período ditatorial.
Isso contribuiu para a formação de pensadores e intelectuais nas mais diversas áreas
do conhecimento, em programas de formação que incentivaram a pós-graduação no
país, estabelecendo, também, diálogos relevantes com intelectuais de países da Europa
e dos Estados Unidos. Muitos desses precursores do pensamento crítico em educação
no Brasil tiveram contato com obras de referência ao estudarem, nos países em que
elas surgiram, com colegas dos seus principais autores ou mesmo com os próprios.
Ainda nos anos 1970, em crítica ao pensamento educacional que acusa de
ideológico, Vanilda Paiva publica, em 1977, dois artigos nos quais retoma o pen-
samento freireano e o de Pierre Furter — que andara no Brasil nos anos 1960 e
fora parceiro de Freire, tendo inclusive assinado a orelha do livro de Freire aqui já
citado — para criticar autores que se referiam à educação permanente e a propostas
de políticas educacionais atreladas a esse pensamento, algumas advindas da Organi-
zação das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), de modo
idealista e deslocado do debate fundamental em torno das questões econômicas e de
formação do trabalhador. Republicados em livro em 1985 (Paiva e Rattner, 1985),
os textos de Paiva foram complementados com um de Henrique Rattner, todos
comprometidos com a perspectiva crítica da educação, em oposição aos tecno-
cratas e aos grupos considerados ingênuos (não críticos), cuja fé na capacidade
transformadora da educação negligenciaria os fatores políticos e econômicos aos
quais estaria irremediavelmente atrelada e dos quais seria dependente. Ressalte-se
aqui a discussão de Rattner a respeito da crítica à teoria do capital humano, muito
presente em obras da primeira metade dos anos 1980 no Brasil, com destaque para
A Produtividade da escola improdutiva, de Gaudêncio Frigotto (1994), publicado
pela primeira vez em 1984 e que analisa, segundo consta em sua orelha, “a raiz do
pensamento economicista burguês que influenciou a educação nas últimas décadas”.
De modo igualmente crítico em relação ao pensamento burguês e à tecnocracia
que lhe subjaz no planejamento educacional brasileiro durante a ditadura militar,
Baía Horta (1983) assume, também, a teoria crítica como meio de superação da
ingenuidade política e sociológica do pensamento e das propostas tecnocráticas.
Na mesma linha, outra de muitas obras emblemáticas do período é Capita-
lismo e Educação, de Wagner Rossi, publicado em 1980. O título evidencia o perten-
autores como Ivor Goodson (1995) e seu foco na historicidade das disciplinas dos
currículos e nas narrativas de identidades.
Moreira (2001), mapeando os debates do campo nesse período, abre a discussão
sobre o multiculturalismo ao investigar as noções de currículo presentes em 46 artigos
apresentados na reunião anual nacional de pesquisadores promovida pela ANPEd9.
Ele verifica que os estudos abordam o debate discutindo currículo e relações raciais;
currículo e diversidade cultural; currículo, multiculturalismo e políticas de currículo;
multiculturalismo e formação de professores; e currículo e gênero. Apenas um artigo
assumiu o tópico de currículo e classe social. Com base em sua análise dos temas
tratados na maioria das vezes nesse grupo de artigos, Moreira identifica apenas um
autor como grande influência no campo (Moreira, 2001, p. 73), Peter McLaren,
embora reconheça a presença de outros autores, incluindo uma definidora influência
espanhola, nessa década, nomeadamente a partir dos debates que trazem Gimeno
Sacristán e Jurjo Torres Santomé, autor de El curriculum oculto (1994). Moreira expressa
inquietude com o papel secundário que o conceito de classe social adquiriu como sujeito
dos estudos curriculares (Moreira, 2001, p. 72). Para ele, a raison d’être do campo seria
de que o conceito de classe social não pode, absolutamente, ser esquecido quando
se trata de debater currículo em um país com tantas desigualdades sociais (Moreira,
2002, p. 93). Mais, tarde, Moreira, colaborando em outro livro, publicado com Regina
Leite Garcia (2003), Currículo na contemporaneidade: incertezas e desafios, traz autores
que, a partir de abordagens diversas, discutem questões do campo do currículo sem
necessariamente trazer questões relacionadas a estudos de classes. O interesse na pu-
blicização da produção internacional e da circulação da diversidade do campo assume
prioridade em relação a esta ou aquela tendência específica.
Desde 1988, vivendo sob um movimento de democratização da sociedade,
observamos no Brasil a ampliação das ações afirmativas, ao mesmo tempo em que
se consolida o estado republicano com base no federalismo e na representatividade,
assolado por fisiologismo e corrupção. Enquanto isso, apesar de inegáveis avanços
econômicos, o país ainda se debate com imensas desigualdades sociais e a frequente
depreciação da miscigenação e da diversidade cultural. Por essa razão, poder, economia,
política, cultura, identidade, colonização e democracia têm sido importantes temas para
os pesquisadores em educação que se dedicam ao campo do Currículo. Não obstante,
nesse contexto, é compreensível que as ideias marxistas tenham sido inspiradoras não
só de críticas sociais e educacionais, mas que os teóricos críticos tenham dominado o
campo por tanto tempo. Sob esse enfoque, os teóricos críticos escreveram a história
do campo, embora isso não o dispa de pluralidade ou complexidade, sendo, para Pinar,
tão teoricamente sofisticado que apenas saber dele abre possibilidades para
a provocação de uma miríade de trocas, a maioria das quais não irão ocorrer
em inglês ou ser publicados na América do Norte, mas serão reconhecidos nas
histórias disciplinares que os futuros estudiosos de currículo serão obrigados a
escrever. (Pinar, 2011, p. 3-4)
10 Além das já citadas pioneiras (Nilda Alves hoje atua na UERJ), temos notadamente o
grupo da UFES, coordenado pelo professor Carlos Eduardo Ferraço, e um grupo sob
a coordenação de Inês Barbosa de Oliveira, também na UERJ, além de um grupo na
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), sob a coordenação de
Maria Luiza Süssekind e Carmen Sanches Sampaio.
REFERÊNCIAS
Alves, N. et al. Criar currículo no cotidiano. São Paulo: Cortez, 2001.
Alves, N.; Garcia, R. L. (Orgs.). O sentido da escola. Petrópolis: DP&A, 2008.
Alves, N.; Oliveira, I. B. (Orgs.). Pesquisa nos/dos/com os cotidianos das escolas: sobre
redes de saberes. Petrópolis: DP&A, 2008.
Apple, M. Ideologia e currículo. São Paulo: Brasiliense, 1982.
Süssekind, M. L.; Pinar, W. F. Quem é... William F. Pinar?. Petrópolis: De Petrus, 2014.
Torres, C. A. (Ed.). Education, power and personal biography. Dialogues with critical
educators. Nova York/Londres: Routledge, 1998.
SOBRE AS AUTORAS