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Um suspiro de liberdade:
A mulher em FILHO DE PINGUÇO, de Alciene Ribeiro
UFMS
Corumbá-MS
2016
Juliana Cláudia Teixeira Gomes Borges Amorim
Um suspiro de liberdade:
A mulher em FILHO DE PINGUÇO, de Alciene Ribeiro
UFMS
Corumbá-MS
2016
AMORIM, Juliana Cláudia Teixeira Gomes Borges. Um suspiro de liberdade:
a mulher em FILHO DE PINGUÇO, de Alciene Ribeiro. Corumbá-MS, 2016. 90 fls.
Monografia (TCC, Curso de Letras). UFMS, Campus do Pantanal.
PÁGINA DE APROVAÇÃO
____________________________________________________________
Dr. Rauer Ribeiro Rodrigues
CPAN/UFMS
(Orientador)
____________________________________________________________
Dr. Julio Augusto Xavier Galharte
CPAN/UFMS
____________________________________________________________
Doutoranda Pauliane Amaral
CPTL/UFMS
____________________________________________________________
Dra. Eunice Prudenciano de Souza
CPTL/UFMS
Suplente
A minha mãe Marlene, meu exemplo maior de alma e força feminina, pelo amor
infinito, pelas mãos sempre ao alcance, por me fazer amada, forte, capaz e,
sobretudo, por me ensinar a voar, consciente de minha essência e valor.
Ao meu pai José Antunes, que em uma casa tão “cor-de-rosa”, foi doce
companhia das tardes na pracinha, olhar protetor nos bailes de carnaval e pilar
importante na feitura de tão singulares perfis femininos.
As minhas irmãs Janaína e Josie, pela nossa tríplice aliança, amor que cresce a
cada dia e nos fortalece como mulheres, em cada particularidade do nosso ser.
Ao Cláudio, meu amor, leitor dos meus textos, de meus olhos, de minh’alma.
A minha filha Helena, pela sua presença, pelos sorrisos e abraços livres de
qualquer cobrança.
À Izabel (nossa Bebé) e à Maria, por serem presentes onde quer que estejamos.
Ao meu estimado orientador, Prof. Dr. Rauer Ribeiro Rodrigues, que para além
de versos e rimas, cânones e textos consagrados, me conduziu à descoberta de
novas leituras e deixou-me ao alcance das riquezas das Minas Gerais. Nunca
sem elegância e sem respeito. Aceitou-me alegre sob sua orientação, mesmo
“fingindo” não saber que sempre o fizera, desde a primeira aula.
Deonísio da Silva
setembro/1988
(Na dedicatória manuscrita do
livro Orelhas de aluguel,
enviado à Alciene, e que integra o
acervo da escritora no PPG-Letras
CPTL/UFMS).
SUMÁRIO
No início, há um choro 12
1. A mulher no Brasil 18
1.1 Até o século XIX 20
1.2 No século XX 28
No final, há um suspiro 72
Referências 78
Anexo 83
RESUMO
ABSTRACT
RESUMEN
minha formação em Letras. Acredito que a literatura seja o melhor meio para
imaginação.
direito à literatura, possa fruir a Literatura em toda a sua grandeza, pois “[...]
de indexação e de resumo.
descobertos.
gente grande e merece estudo, como o que propomos nesse trabalho, e ainda
feminina quando a personagem “reconcilia-se com a vida, quase sem ver que
Aberto, 1987) e “Ave Maria das Graças Santos” (Histórias Mineiras, ed. Ática,
1984).
sofrem.
Tivemos como base textual o livro História das mulheres no Brasil, organizado
pela historiadora Mary Del Priore (2015), mas também lançamos mão de artigos
feminina, desde o mito bíblico de Eva, sua formação miscigenada e sua história
breve biografia da autora mineira, para a qual nos valemos de material existente
e para a qual realizamos pequena entrevista com a autora (cujo teor completo
está em Apêndice), bem como exame sucinto dos elementos da obra estudada,
nos valemos das concepções de Michel Foucault (1979) a respeito das relações
de poder.
aparecem sem voz, almas e corpos dilacerados, já que são descritas pela voz
Para nós, foi como um desfile de Evas Tupinambás2, de senhoras dos salões, de
sinhazinhas, negras, amas, donas de casa com “donos”, mulheres dos anos
patriarcal, que trata a mulher como objeto, a desconsidera como ser pensante e
sem direitos reais, ainda que eventualmente os tenha nos códigos jurídicos.
2 Eva Tupinambá é termo criado por Ronald Raminelli e que dá nome ao capítulo escrito por ele
na obra História das Mulheres no Brasil (2015), organizada por Mary Del Priore.
1. A mulher no Brasil
19
Mary Del Priore (1990, 2011, 2015), Ronald Raminelli (2015), Maria Ângela
Eva foi a primeira mulher, diz a Bíblia, mas muitas vieram depois.
capítulo da história, não é de se esperar que suposta obra divina, oriunda das
costelas de Adão, tenha merecido equidade no que diz respeito a sua descrição,
Brasil?
mulheres no Brasil, a história das mulheres não é apenas delas, mas também da
contra as outras), da sua loucura, dos seus amores e dos seus sentimentos (cf.
senzalas e também das casas grandes. Escravas para o amor, sexo, ou ambos, já
foram objetos servis, serventes, dondocas e madames. Foram vistas pela beleza
3 Patrícia Rehder Galvão, conhecida pelo pseudônimo Pagu (São João da Boa Vista, SP, 1910 –
Santos, SP, 1962), foi escritora, poeta, diretora de teatro, jornalista e militante política.
Comunista, consta ter sido a primeira mulher presa no Brasil por motivações políticas.
4A provocação aqui é criar uma dicotomia sobre “ser mulher”: uma dona de casa conformada
ou uma mulher que luta pelos seus direitos, como fez Pagu. Ver, por exemplo, a música Pagu,
composição de Rita Lee e Zelia Duncan (2000). Letra e canção anexas.
21
coadjuvantes. Saíram das casas, foram às ruas e ainda caminham, sem talvez
entre os tupinambás, descrito por meio dos relatos de viajantes que observaram
tradição religiosa ocidental, acabaram por fazê-lo sob padrões e valores muito
Enquanto uns destacavam a atenção delas para com seus filhos, os mantendo
com sua mulher; já os chefes podiam viver com catorze mulheres, sem que isso
5 Bebida alcoólica, à base de milho ou mandioca, tradicional dos povos indígenas do Brasil.
22
evolução das classes de idade entre os ameríndios. Sobre as índias, referia seis
classes diferentes: primeira classe de idade, comum aos dois sexos, já que ao
idade, que estendia-se até o sétimo ano depois do nascimento, quando então
aprendiam todos os deveres da mulher, como fiar algodão, tecer redes, cuidar
trabalho das mães, e logo receberiam um convite de casamento caso seus pais
6 Yves d’Évreux, citado por Raminelli (2015), foi um religioso e entomólogo francês. Participou
da expedição enviada em 1612 ao Brasil (Maranhão) pelo governo de seu país. Raminelli não
explicita a fonte de que se valeu. Ao resumir as informações de d’Évreux mencionadas por
Raminelli, destaquei em negrito as classes de idade, enfatizando a construção do inconsciente
do feminino submisso que gera a violência simbólica.
23
idade entre 25 e 40 anos, período em que atingiam o seu maior vigor; e, por fim,
a sexta classe de idade, que dizia respeito às mulheres com mais de 40 anos. As
mais sobre o grupo feminino e, sobretudo, nas velhas, o que é explicado pela
teólogos reafirmavam que o sexo feminino era mais frágil em face das tentações,
Eva e a mulher índia do século XVI, recai sobre ambas a culpa pelo pecado,
7 Jean de Léry em Viagem à terra do Brasil referiu a nudez como sendo algo mais natural às
mulheres do que aos homens: “[ ...] Mas o que mais nos maravilhava nessas brasileiras era o
fato de que, não obstante não pintarem o corpo, braços, coxas e pernas como os homens, nem
se cobrirem de penas, nunca pudemos conseguir que se vestissem, embora muitas vezes lhes
déssemos vestidos de chita e camisas. Os homens, como já dissemos, ainda se vestiam por
vezes, mas elas não queriam nada sobre o corpo e creio que não mudaram de ideia” (p. 99). O
teólogo ainda destaca a dissimulação feminina: “Imediatamente depois de morto o
prisioneiro, a mulher (já disse que a concedem a alguns) coloca-se junto do cadáver e levanta
curto pranto; digo propositadamente curto pranto porque essa mulher, tal qual o crocodilo
que mata o homem e chora junto dele antes de comê-lo, lamenta-se e derrama fingidas
lágrimas sobre o marido morto, mas sempre na esperança de comer-lhe um pedaço” (p. 157).
Além do dissimulatio, as índias têm sua nudez e concupiscência, eventualmente voraz,
veemente, destacada tanto entre os viajantes quanto na obra de alguns românticos, como Pero
Vaz de Caminha (1500 – A Carta) “Entre todos estes que hoje vieram não veio mais que uma
mulher, moça, a qual esteve sempre à missa, à qual deram um pano com que se cobrisse; e
puseram-lho em volta dela. Todavia, ao sentar-se, não se lembrava de o estender muito para
se cobrir” (p. 13); Pero de Magalhães Gândavo em História da Província de Santa Cruz de
(1576) “[...]. E a primeira cousa que logo lhe apresentam é uma moça, a mais fermosa e
honrada que ha na aldêa, a qual lhe dam por mulher: e daí por diante ela tem cargo de lhe dar
de comer e de o guardar, e assim não vai nunca para parte que o não acompanhe” (p.33) ; e
ainda Bernardo Guimarães em Jupira (de 1872) “Nas Selvas, Jupira cresceu linda e garbosa
como a palmeira das Campinas, mas esquiva e soberba como a ema, a rainha dos chapadões.
Suas graças fascinaram as vistas de todos os jovens bugres, que a seguiam, admirando-a e
adorando-a como um manitó caído do céu; mas a nenhum deles foi dado colher aquela
peregrina flor das selvas”.
24
autora destaca:
entre marido e mulher, condenando essa a ser uma escrava doméstica, cuja
são apenas o seu sexo” (FOUCAULT, 1979, p. 234, grifo no original). E o feminino,
e deu origem à patologização da mulher, cujo corpo torna-se objeto médico por
excelência.
historiadora Mary Del Priore, durante o século XIX a sociedade brasileira sofreu
uma vida urbana que oferecia novas formas de convívio social, a ascensão da
mulheres da alta sociedade puderam vir à janela, mas também essa expôs a
Para D’Incao, nasce uma nova figura de mulher, agora marcada pela
das revistas femininas”, da obra organizada por Guido Mantega, Sexo e Poder,
da moça da janela, das canções de MPB do século XX8, o que espera as mulheres
contribui para que a mulher brasileira carregasse, ao longo de 400 anos, todo
descartada como um objeto, quase nunca foi vista como alguém dotada de
ser fiel, e guardar a casa, os filhos, a sua dignidade. Se eram amantes, nada
valiam; se esposas, deveriam fingir não saber das outras, então amantes. Os
8Em 1966 Chico Buarque cantava sobre a moça feia, debruçada na janela, pensando que a banda
que passava tocava para ela. Letra anexa.
27
se prover a subsistência.
quo, já que suas personagens femininas, ainda que em sua maioria sejam
1.2 No século XX
continuava-se a acreditar que ser mãe e dona de casa era o destino natural das
as regras e as aparências:
[...]. Durante os chamados Anos Dourados, aquelas que
permitissem liberdades “que jamais deveriam ser consentidas
por alguém que se preze em sua dignidade” acabavam sendo
dispensadas e esquecidas, pois “o rapaz não se lembrará da
moça a não ser pelas liberdades concedidas” 9. [...] cabia
especialmente à jovem refrear as tentativas desesperadas do
rapaz, conservando-se virgem para entrar de branco na igreja
(PRIORE, 2011, 163-164).
166).
prendia pelo estômago. A boa esposa seria a que não criticava, que evitava
9 Entre as aspas estão alguns dos conselhos encontrados em revistas como O Cruzeiro, segundo
Mary Del Priore.
29
quando o marido estivesse ausente, a que não era muito vaidosa nem
sendo boas filhas e irmãs cuidadosas, mas também travaram batalhas por seus
dos seus pares ou mesmo de outras mulheres, ainda são vistas como objeto
dentro de casa. A mulher deve permanecer no lar, cuidar dos filhos, educá-los,
importante, acima de tudo, era conservar o casamento, pois uma vez largada,
leituras críticas e nos anos 1990 e 2000 escreveu obras espíritas autorais. Desde
dos anos 1970/1980 com a tendência espiritualista das duas décadas seguintes
Nessa entrevista, concedida por telefone, a autora nos falou sobre sua
escrita, que está observando a vida o tempo todo, e que escreve a partir dos
10 Aquele que escreve para outras pessoas, por encomenda e mediante um contrato entre as
partes, sobre os mais variados assuntos.
33
seus sentimentos, suas dores, suas esperanças. Acredita que as mulheres ainda
são tolhidas, como ela já foi, mas que pensa o casamento como um ato de
retomada, foi líder estudantil, fundou grêmios, criou jornais, militou em teatro
Buarque de Hollanda11.
11 Informações retiradas de texto da própria escritora; esse texto está hoje disponível em: <
http://gpalcieneribeiro.blogspot.com.br/p/alciene.html >. Acesso em: 14 mar. 2017.
34
texto brasileiro destinado a adolescentes e jovens cuja temática tratava, sob ótica
também pelos livros, que eram cada vez mais utilizados, nas escolas, como
professor nos discursos do PNBE 2005, que por muito tempo a literatura
empobrecida.
modalidade literária. De tal maneira, não é errado afirmar que seu público,
é tratado de maneira delicada por Alciene, com uma linguagem simples que
páginas.
36
equívoco. O escritor Luiz Vilela, citado por Rauer (2013), considera que a
longo, o conto é pequeno, curto, e a novela está entre os dois quanto à extensão
pois aborda temas ainda mais densos que o alcoolismo ― a segregação das
chama atenção dos leitores para o termo usado no título, pinguço, sugerindo
que seu uso pela autora foi uma forma de causar impacto. Para ele, a expressão
Conforme sugere, a obra não se atrela a moralismos vãos, e não trata do perfil
ou ainda, como adjetivo apenas, “diz-se dos olhos de quem bebeu álcool em
mesmo sem querer ou merecer, já é tratado pela alcunha, cujo sinônimo não é e
emprego fixo, já que é pedreiro e trabalha por obra, e que bebe mesmo sem ter
dinheiro e até mesmo sem ter geladeira, que teve de vender para pagar outras
contas. Ele pode ser vítima, mas também faz outras, sem que essas percebam:
13 Duílio Gomes, escritor mineiro de Mariana, foi integrante da chamada Geração 60, sendo
editor do Suplemento Literário de Minas Gerais nos anos 1980, além de colaborador dos
jornais Estado de Minas e Jornal do Brasil. Morreu em 2011.
14Bullying, termo originado da palavra inglesa “bully”, que significa valentão, briguento, é uma
situação caracterizada por agressões intencionais, verbais ou físicas, executadas de maneira
repetida, por um ou mais alunos, contra um ou mais colegas.
38
Alciene Ribeiro dá voz para famílias antes não lembradas pela literatura.
vozes mais agudas, que tantas vezes são silenciadas: a das mulheres.
também para o mundo”, temos que a obra de Alciene não deve encerrar apenas
mais uma história para jovens, sob linguagem simples e clara, mas também se
por aquele “novo” Brasil dos anos 80 e de seu mais genuíno representante: o
como algozes e vítimas uns dos outros, e que sofre calada um dos mais cruéis
de nosso trabalho.
nosso).
representado por personagens cujas origens estão nas camadas urbanas mais
lida tanto por adultos quanto por jovens e adolescentes. Sob esse aspecto,
universal que deve ser satisfeita sob pena de mutilar a personalidade, uma vez
romanceada o que temos é um fim nada feliz. Algo é como retomado, como se
espiral infinda.
Eis a pergunta que Alciene nos deixa nas entrelinhas: como superar a
MOISÉS, 2006).
causa e feito. A ação desenrola-se por inteiro no presente, aqui e agora, sendo o
cena.
passamos pelo botequim da vizinhança, pelas ruas do bairro e pela escola. Eis o
narrativa:
[...]. Somente interessam os acidentes geográficos onde ocorre
algo de novo, trágico ou pitoresco. Por suas origens, a novela
tende a desdobrar –se numa geografia fictícia, que serve de
cenário para a trama que enleia as personagens. O dinamismo
da novela repele o estático da paisagem: é a ação que
desencadeia as peripécias e incita à curiosidade (MOISÉS, 2006,
p. 118).
algumas cenas, e outras, por vezes, são apenas citadas. São as seguintes:
compadre; Seu João (dono do botequim); freguês no bar; tias Marlene e Marina
com a filharada; tio Wolninho; prima Sílvia; Francisco (Fran); Seu Juellas
43
Cláudio; e Benjamim.
da vizinhança de algum tempo de nossas vidas. Elas não são boas, nem más,
pela mãe, que mesmo não se tratando de “parte tocável”, quase conseguimos
desnudar algumas delas, porque a novela ergue e tece com palavras suas almas,
e assim como que visualizamos seus corpos, ouvimos o que dizem, sofremos
do trivial, e sobrevivem sempre, dia após dia, parecendo não pararem muito
para pensar sobre o que vivem, ou sobre aqueles com quem vivem.
o domingo, bebe sem parar, sem ao menos tomar banho. É descrito como
precisa plateia, gente para ouvir e bater palma para as suas histórias, uma
Tem medo da violência do pai contra a mãe, mas teme que ela, ao se defender,
também o maltrate. Às vezes tem ódio pelos dois e não foge porque tem receio
A mãe fica com as crianças em casa, apesar de ter estudado mais que o
marido. É também descrita pelos olhos do menino, nem boa nem má, mas é
“sabichona”. Depois de uma briga, é vista pelo filho por meio do seu “chorar”
especial:
45
comprar alguns doces expostos na vitrine, sem que tenha coragem de comprá-
los fiado, mesmo com autorização paterna. Em casa, depara-se com a “ameaça”
da violência do pai, ora contra ele, ora contra a mãe. Essa, por sua vez, tem no
realizadas por colegas, que acabam por culminar em uma briga na segunda-
do pai, que mesmo tão cedo já vem alcoolizado, é tratado por esse com respeito
e macheza e é por fim humilhado pela mãe e pelo menino, quando descobre a
filho.
O pai, sim, desmorona, alheio. Esse é o seu fim. O fim que recomeça até o
final derradeiro, em algum dia, logo ou distante, não se sabe. Seu olhar é para o
vácuo, não há esperança. A vida retoma seu curso. O pai dá dinheiro ao filho e
diz para que compre o doce que queria comprar. Há um doce na vida que
em Filho de pinguço.
3. A mulher em Filho de pinguço
48
muitas das personagens femininas são citadas uma única vez; são elas: tias
americanos que retratam a década de 1950, aquelas donas de casa que apreciam
a televisão e seguem sua rotina de faxina, cozinha e bordado, não fosse sua
gordas, mas suspeitamos que nem mesmo elas se descreveriam, porque seguem
Medo de não cumprir a sina de ser mulher? Como a mãe o foi? E como a mãe
de sua mãe?
armadilhas prontas para aprisionar o sexo feminino não existe outro maior do
presença delas na narrativa, tendo por fulcro a tensão entre a violência que as
sabemos por meio do pensamento do menino, que menciona o medo que sente
trecho abaixo:
O menino, deitado, ouve discussões, tapa os ouvidos,
revira-se na cama. Tem medo do pai bater na mãe, dela
empurrá-lo.
− Não bate na mãe não, pai – pede baixinho.
A cabeça debaixo da coberta, tremura no corpo, reza.
Um dia foge, um dia. Por enquanto falta coragem. Fome e frio
seguram a vontade de correr. Sozinho no mundo ainda é pior
do que aquele inferno (p. 7).
emocional que impera naquela casa, pois que as mulheres parecem existir para
longo dos séculos. Não seria mais o corpo a ser punido, mas a alma. À expiação
sua maioria, de uma violência silenciosa, cada uma sob uma forma, mas todas
violentadas. Sem reconhecimento, quase sem voz, sem vontade. Sob a definição
definição a força exercida contra alguém. Usada no plural, vis vem a nomear os
simbólica, o mecanismo que faz com que os indivíduos vejam como “natural” as
apesar de uma ou outra queixa, não parecem perceber que são vítimas de
tampouco exigem direitos. Agem como se não houvesse outra forma de agir.
mães e mães de suas mães, e uma para as outras, ou pelo sistema político ou
3.2.1. A “mãe”
diante do que sofre, e por algumas vezes chegou a empurrar o marido, mas por
que tenta garantir, é seu único consolo, já que aqui vemos tal objeto não como
qual mais trabalha. Trabalho que não é reconhecido nem mesmo pelo filho:
[...]
― Mas hoje é domingo, mãe, ninguém trabalha.
― Ninguém, só a bobona aqui.
― Fazer comida não é trabalho, mãe!
― Ah, até você, muito bonito, seu pai está fazendo
escola. Não vejo a hora de acabar este domingo – suspira.
―A senhora não gosta de domingo?
― E dá para gostar? É o pior dia da semana para mãe de
família. Vá cuidar do seu para-casa, vá, com tanto feriado você
tinha de deixar para a última hora! ― reclama (p.7).
trabalho, as atividades realizadas no lar passaram a não ter valor, uma vez que
filhos, quando, na verdade, enfatiza que não o faz por ter um nome a zelar, o
que é corroborado pela irmã. Mais vale aguentar a situação a ser uma mulher
também para a relação sexual é porque é esperado que seja assim, posto que
todo homem brasileiro tem por direito sua bebida, seu esporte e sua mulher.
homens e da igreja. A mãe, por outro lado, percebe que não é reconhecida, já
que é somente uma trabalhadora do lar, é uma escrava, pois que não tem dia
físico, por colocar o corpo alheio sob domínio da ordem, do status quo ─ é assim
que age a violência simbólica, descrita por Bourdieu: envolta pela ideologia
espezinha.
Eis uma das situações da novela em que tal conjunto de drama e dor se
revela:
envolve em uma briga, posto que certo é que o menino defenda a “macheza” da
E continua:
[...]
― Você tem é de orientar, dar exemplo, e fica falando
assim, mandando o filho ser marginal ― a mãe soluça alto.
― Que marginal, mulher! Está com titica na cabeça?
Moleque que não apanha na rua não vira gente.
― Ele está todo machucado, não viu não? ― alisa o
menino. ― Eu não entendo você, nem parece pai ― abraça-se
ao filho, esconde o rosto, os ombros trementes de pranto [...]
(p.40).
[...]
― Minha burrice, né? Agora eu sou a ruim, mas a burra
aqui não faz filho brigar na rua, sabe por que ele brigou, hem?
Sabe? ― ela aponta o dedo na cara do pai e desanda num choro
esquisito.
Não é choro alto nem calado, mais parece suspiro,
gemido, como se alguma coisa tapasse a garganta, segurasse a
fala. O menino não conhece este choro, um modo novo da mãe
sofrer, porque ela está sofrendo demais, está [...] (p. 43).
A mãe não está satisfeita com a vida que leva, mas com o intuito de
preservar a cria e o próprio nome, aceita a violência imposta pelo marido, para
sua normalidade, ainda que tenha medo e indignação. Cabe ao narrador, por
suas estratégias narrativas, pela escolha lexical, pelas opções textuais, pelos
“mar”, que lembra “mér” em francês e que significa mãe. Ambas são mães e
mulheres.
Tia Marlene tem marido mulherengo e tia Marina, um que não trabalha.
Elas e a irmã (“mãe”) tentam defender, cada uma delas, como sendo “sua” a
os coagem.
Para tia Marlene, a “mãe” do menino está melhor do que ela com um
Para tia Marina, seu sofrimento é ter o marido em casa à toa, sem
trabalho.
Percebemos que para o menino, porém, que tudo observa, a tia reclama à
toa, pois que o tio Wolninho, apesar de não trabalhar, cuida das crianças e ajuda
na cozinha, sobrando, assim, tempo para a tia fofocar com a vizinha. Para o
menino, o trabalho executado dentro de casa pelo tio, ainda que este não
O que as irmãs concordam é que pior seria ficar sem marido, pois que
sem eles, seriam “mulheres largadas”. Eis o discurso que referenda a violência
morte do cunhado beberrão, a irmã teria sua liberdade, era o caso apenas de ter
paciência:
― Paciência, um belo dia ele morre de cirrose, e sem um
dedo de culpa sua; nem diante de Deus, nem diante dos
meninos ― tia Marina sentencia (p. 14).
que justificada. A justificativa está na voz social que ecoa o modo de dominação
Para Bourdieu (2002), a própria ordem social funciona como uma imensa
alicerça, e que tem distribuição bastante estrita das atividades atribuídas a cada
sempre um suspiro de liberdade pelo qual a mulher pode escapar, pela qual seu
dor como denúncia, pela qual a violência simbólica e a violência física podem ser
suplantadas, contornadas, uma vez que não podem ser elididas, pois o mundo
malícia. Como o pinguço é retratado de modo derrisório, por seus gestos, por
que a descreve.
65
personagens. Ainda que sofra violência, pelo referido histórico de ser mulher, e
pela razão de “abandonar” o lar, filhos ou marido, para trabalhar, isso não fica
evidente na narrativa.
Sua importância profissional não deve ser esquecida, já que se sabe pela
crianças.
feminina por meio do magistério primário foi uma forma das mulheres
Argumenta a autora:
A possibilidade de aliar ao trabalho doméstico e à maternidade,
uma profissão revestida de dignidade e prestígio social fez que
ser professora se tornasse extremamente popular entre as
jovens. Se, a princípio, temia-se a mulher instruída, agora tal
instrução passava a ser desejável, desde que regulamentada e
dirigida no sentido de não oferecer riscos sociais (ALMEIDA,
2004, p. 11).
importante não apenas como complemento da renda familiar, mas também por
Tia Luíza não está mais dentro de casa, e na sala de aula, onde exerce sua
sensibilidade:
― Toda bebida que contém álcool é uma bebida alcoólica.
Atenção aqui, todo mundo, não é só ele não ― bate na mesa. ―
A palavra se explica, bebida alcoólica, contém álcool. ― Escreve
no quadro: álcool / alcoólica. ― Cerveja tem álcool, hem tia? ―
um gaiato perguntou lá atrás. ― Tem... cerveja tem álcool... ―
olhou de soslaio para o menino, caiu em si. ― Vamos ao ponto,
quem não entendeu a fotossíntese? ― Voltou-se cúmplice para
ele: ― Qualquer dúvida me procure depois da aula, viu? (p.
15).
tinha o propósito de constranger um deles, como uma figura materna, Tia Luíza
ajudá-lo a sanar dúvidas também em outro momento, longe das chacotas dos
colegas.
suspiro de liberdade, ainda que não concretizado. Seja pela fala da mãe quando,
direitos e de liberdade.
por aceitar sua condição e fica ao lado daquele marido que a faz infeliz, mas o
suspiro de liberdade vindo de uma dona de casa, viúva, que se diz “a primeira
mãe alforriada por tempo de serviço”, mas que, em pleno Dia das Mães, tem a
entregues à televisão:
Muitas rodadas de café depois, do alto da revolta
amordaçada, diz, chega. Mas no quarto, reduto do seu fortim
depredado, a trégua cheira amoníaco. O aviso de parada
proibida no círculo molhado da colcha nova. De sentinela o riso
do pequeno anarquista, tão recém-nascido e já no exercício do
cinismo.
Cata as sobras do domingo, dia das mães, e espera, torcendo
o avental, que se deem ao respeito (p. 6).
violência que chega ao asco, e iguala assassino e assassinato aos que não se
subentendida como fecho melancólico do livro, ainda que matizada pelo doce a
está alcoolizado e que da rua chega embriagado, o que pode ser esperança, o
que pode ser consciência transformadora? Como o texto pode ser lido por
Laura Degaspare Monte Mascaro (2011) afirma que a literatura pode ter
crítico sobre o outro para conhecimento e reflexão. Para além do doce que
criança desde a primeira vez que vai ao bar, o modo caricato do pai descrito
71
descarta tal modo de ser, pois o vê como indigno de ser seguido. Eis a
sobretudo pela evidência do título, e ainda que estejam ao fundo da cena, sob a
descrever a novela, tivemos contato com a fortuna crítica de sua obra, fortuna
chegamos com o nosso estudo. O conceito teórico central de que nos valemos
Deonísio da Silva
setembro/1988
pinguço. Quanto aos predicados físicos, Alciene faz comentário singelo e auto
irônico (ver Apêndice). No essencial, comentou que tal dedicatória serviu para
deleite e proveito.
brasileira do final do século XX, como choro, como ranger de dentes, como
drama e dor, mas também como registro da luta e das conquistas que surgem
companheiro, ora pelo filho, ora pela família, ora por certo difuso entorno
social, ora por outras mulheres. São vistas apenas pela função de organizadora
do lar e como objeto de desejo. Ainda que insatisfeitas, demonstrando isso aqui
ou ali e de modo mais evidente quando com outras mulheres, parecem preferir
aceitar os maus tratos de que são vítimas; no caso da mãe da novela, ela prefere
trabalho dentro de casa não é visto como uma função útil e, sob o império do
alguns contos da escritora. Em cada uma dessas narrativas, seja no discurso das
empresas, já decidem quando e com quem querem ter filhos, assim como com
quem morar. Não se incomodam tanto com a condição de solteiras, ainda que
muitas ― a maioria ― aspirem ao casamento e, ainda que não sejam vistas com
bons olhos, já não esperam que suas decisões sejam engendradas por outras
pessoas.
Ainda assim sofrem preconceito, são mal remuneradas mesmo que nas
mesmas funções exercidas por homens, e são vistas como objetos de desejo, seja
xingamentos não pelo que “fizeram” de errado, mas sempre com cunho sexual,
Sua competência ainda não vale mais que seu bom corte de cabelo, nem
mais que suas unhas bem-feitas e terninho impecável. E ainda são estupradas,
749.024 atendimentos17.
mulheres.
Referências
D’INCAO, Maria Ângela. Mulher e família burguesa. In: PRIORE, Mary Del
(org.). História das mulheres no Brasil. 10. ed. São Paulo: Contexto, 2015.
GIL, Antonio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. 4.edição. São Paulo:
Atlas, 2002.
GOMES, Duílio. [1ª. orelha]. In: LEITE, Alciene Ribeiro. Filho de pinguço. 3. ed.
Belo Horizonte: Lê,1989.
MOISÉS, Massaud. A criação literária: prosa 1. 20. ed. São Paulo: Cultrix, 2006.
MORAES, Maria Quartim de. A “nova” moral sexual das revistas femininas. In
MANTEGA, Guido. (Org.). Sexo e poder. São Paulo: Brasiliense, 1979.
<http://www.educacao.ufrj.br/ppge/dissertacoes/dissertacao_fabricia_vellasque
z.pdf>. Acesso em: 23 fev. 2016.
PRIORE, Mary Del (org.). História das mulheres no Brasil. 10. ed. São Paulo:
Contexto, 2015.
RAMINELLI, Ronald; Eva Tupinambá. In: PRIORE, Mary Del. (org.). História
das mulheres no Brasil. 10. ed. São Paulo: Contexto, 2015.
LEITE, Alciene Ribeiro. Ave Maria das Graças Santos. In: Arinos, Afonso et al.
Histórias Mineiras. São Paulo: Ática, 1984. p.18-21 (Minas de Livros)
LEITE, Alciene Ribeiro. Filho de pinguço. Prêmio Coleção do Pinto. 3. ed. Belo
Horizonte: Lê,1989.
SITES CONSULTADOS
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<http://www.otempo.com.br/cidades/escritor-mineiro-du%C3%ADlio-gomes-
morre-em-belo-horizonte-1.438461>. Acesso em: 20 fev. 2016.
<http://www.spm.gov.br/assuntos/violencia/ligue-180-central-de-atendimento-
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<http://www.usinadetextos.com.br/servicos/ghost-writer/o-trabalho-do-
escritor/>. Acesso em: 18 fev. 2016.
Anexo
84
Pagu
A Banda
(Chico Buarque)
insistiu
Pra ver a banda passar Pra ver a banda passar cantando coisas de amor
O homem sério que contava dinheiro parou O que era doce acabou
A moça triste que vivia calada sorriu Em cada canto uma dor
Apêndice
87
Alciene – Eu vivi um pouco isso e com a vivência é fácil falar sobre o assunto.
Na obra, marido e mulher são frustrados. Ela está infeliz e não quer se
aproximar daquele homem bêbado, que nem toma banho. As mulheres
são às vezes muito tolhidas.
88
Juliana – A mãe, em Filho de pinguço, chora só com o olho: como seria esse
choro?
Alciene – Há, sim, Juliana. Um romance nascido após minha única conversa
com Chico Xavier. Um livro que reúne duas décadas de escrita e que
ficou longo demais, com muitas personagens. Penso que terei que o
dividir em dois volumes, e ainda terei que trabalhar bastante nele para
alguns ajustes que evitem dificuldade de compreensão.
Alciene – Ah, fiquei lisonjeada. Fui bonita realmente, não sou mais, mas
erótica? Não sei. Não sei, mas lambeu meu ego. Gostei muito.