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Juliana Cláudia Teixeira Gomes Borges Amorim

Um suspiro de liberdade:
A mulher em FILHO DE PINGUÇO, de Alciene Ribeiro

UFMS
Corumbá-MS
2016
Juliana Cláudia Teixeira Gomes Borges Amorim

Um suspiro de liberdade:
A mulher em FILHO DE PINGUÇO, de Alciene Ribeiro

Trabalho de conclusão apresentado ao Curso de


Letras com habilitação em Língua Portuguesa e
Língua Inglesa, na Universidade Federal de
Mato Grosso do Sul, Campus do Pantanal, como
requisito parcial de obtenção do grau de
Licenciatura em Letras.

Orientador: Prof. Dr. Rauer Ribeiro Rodrigues

UFMS
Corumbá-MS
2016
AMORIM, Juliana Cláudia Teixeira Gomes Borges. Um suspiro de liberdade:
a mulher em FILHO DE PINGUÇO, de Alciene Ribeiro. Corumbá-MS, 2016. 90 fls.
Monografia (TCC, Curso de Letras). UFMS, Campus do Pantanal.

PÁGINA DE APROVAÇÃO

____________________________________________________________
Dr. Rauer Ribeiro Rodrigues
CPAN/UFMS
(Orientador)

____________________________________________________________
Dr. Julio Augusto Xavier Galharte
CPAN/UFMS

____________________________________________________________
Doutoranda Pauliane Amaral
CPTL/UFMS

____________________________________________________________
Dra. Eunice Prudenciano de Souza
CPTL/UFMS
Suplente

Corumbá, MS, em 20 de abril de 2016.


Para Helena, luz da minha vida.
Para Cláudio, minha melhor escolha.
Que souberam perdoar a ausência.
Que falam ao meu coração.
E que representam as letras mais importantes
da minha escrita
Agradecimentos

A minha mãe Marlene, meu exemplo maior de alma e força feminina, pelo amor
infinito, pelas mãos sempre ao alcance, por me fazer amada, forte, capaz e,
sobretudo, por me ensinar a voar, consciente de minha essência e valor.

Ao meu pai José Antunes, que em uma casa tão “cor-de-rosa”, foi doce
companhia das tardes na pracinha, olhar protetor nos bailes de carnaval e pilar
importante na feitura de tão singulares perfis femininos.

As minhas irmãs Janaína e Josie, pela nossa tríplice aliança, amor que cresce a
cada dia e nos fortalece como mulheres, em cada particularidade do nosso ser.

Ao Cláudio, meu amor, leitor dos meus textos, de meus olhos, de minh’alma.

A minha filha Helena, pela sua presença, pelos sorrisos e abraços livres de
qualquer cobrança.

À Izabel (nossa Bebé) e à Maria, por serem presentes onde quer que estejamos.

Aos amigos, antigos, novos e renovados, pelas palavras de incentivo e


admiração.

Aos meus amados professores do curso de Letras do Campus do Pantanal, rios


de águas serenas que me “deixaram” ir uma vez e me receberam de volta
quando foi preciso.

As minhas sempre lembradas companheiras: Maria Vitória, Ione, Cláudia,


Dórely, Adriana, Rosemary e toda a turma “letrada” nascida em 2006.

Às professoras da Universidade Federal Fluminense, Dra. Flávia Vieira da Silva


do Amparo e Dra. Lúcia Helena, que me receberam e me deram as mãos
quando da minha passagem pela Baía da Guanabara.

À sempre querida professora da infância, Ma. Luciene Lemos de Campos, por


me mostrar em tenra idade a leitura de pés descalços, só pelo prazer.

Aos amigos do Clube da Leitura de Corumbá e Ladário, por dividirem livros,


ideias, sonhos e conversas pelos paralelepípedos.

Ao meu estimado orientador, Prof. Dr. Rauer Ribeiro Rodrigues, que para além
de versos e rimas, cânones e textos consagrados, me conduziu à descoberta de
novas leituras e deixou-me ao alcance das riquezas das Minas Gerais. Nunca
sem elegância e sem respeito. Aceitou-me alegre sob sua orientação, mesmo
“fingindo” não saber que sempre o fizera, desde a primeira aula.

À brilhante Alciene Maria Ribeiro Leite de Oliveira, escritora Alciene Ribeiro,


pela sua poderosa voz feminina e escrita encantadora.

E para todas as vozes que me contaram histórias e permitiram que eu vivesse


livre minha imaginação.
Para Alciene, bonita, erótica, e tão
boa escritora como Santa Teresa
d´Ávila, com afagos do fã de vocês
duas e seu leitor.

Deonísio da Silva
setembro/1988
(Na dedicatória manuscrita do
livro Orelhas de aluguel,
enviado à Alciene, e que integra o
acervo da escritora no PPG-Letras
CPTL/UFMS).
SUMÁRIO

No início, há um choro 12

1. A mulher no Brasil 18
1.1 Até o século XIX 20
1.2 No século XX 28

2. A novela de Alciene Ribeiro 31


2.1 Novela infantojuvenil? 34
2.2 Alcoolismo, miséria e violência: temas fortes 37
2.3 Construção da narrativa 41

3. A mulher em Filho de pinguço 47


3.1 A violência simbólica 51
3.2 As personagens femininas 54
3.2.1 A “mãe” 55
3.2.2 Tias Marlene e Marina 61
3.2.3 Prima Sílvia 64
3.2.4 Tia Luiza (a professora) 65
3.3 Ouço vozes? 67
3.4 Para além da desilusão 70

No final, há um suspiro 72

Referências 78

Anexo 83

Apêndice (Entrevista com Alciene Ribeiro) 86


AMORIM, Juliana Cláudia Teixeira Gomes Borges. Um suspiro de liberdade:
A representação da mulher na novela FILHO DE PINGUÇO, de Alciene Ribeiro.
Corumbá-MS, 2016. 90 fls. Monografia (TCC, Curso de Letras). UFMS,
Campus do Pantanal.

RESUMO

Este trabalho, embasado em pesquisa bibliográfica, versa sobre a temática da


mulher na novela Filho de pinguço, de Alciene Ribeiro. Revisitamos a trajetória
de algumas mulheres da história feminina no Brasil e descrevemos a obra de
Alciene nas nuances em que a mulher é o foco. Analisamos a violência simbólica
― conforme conceito proposto por Pierre Bourdieu ― sofrida pelas
personagens femininas, bem como descrevemos a forma em que se dá tal
violência. Percebemos que, embora, na novela, se tratem de personagens
secundárias, as mulheres retratadas são símbolos da denúncia de um mundo
ainda marcado pelo machismo e dominação masculina, patriarcal, que trata a
mulher como objeto, a desconsidera como ser pensante e sem direitos reais,
ainda que eventualmente os tenha nos códigos jurídicos.

PALAVRAS-CHAVE: Feminismo. Literatura Brasileira. Pierre Bourdieu.


Violência simbólica.
AMORIM, Juliana Cláudia Teixeira Gomes Borges. Um suspiro de liberdade: a
representação da mulher na novela FILHO DE PINGUÇO, de Alciene Ribeiro.
Corumbá-MS, 2016. 90 fls. Monografia (TCC, Curso de Letras). UFMS,
Campus do Pantanal.

ABSTRACT

The paper is based on bibliographical research. It discusses the female theme in


the novella Filho de pinguço, by Alciene Ribeiro. We revisit the biography of
some women in Brazilian history. We describe Alciene’s text in the nuances in
which the woman is the focus. We analyze the symbolical violence – according to
the concept proposed by Pierre Bourdieu – endured by female characters in the
text. We also describe the way the violence occurs. We notice that, in spite of
the fact that the women portrayed in the novella are secondary characters, they
symbolize the disclosure of a world marked by sexism and male domination,
patriarchal, that treats woman as an object, not considering her a thinking being
without real rights, even that occasionally there are in legal code.

KEYWORDS: Brazilian literature. Feminism. Pierre Bourdieu. Symbolical


violence.
AMORIM, Juliana Cláudia Teixeira Gomes Borges. Um suspiro de liberdade: a
representação da mulher na novela FILHO DE PINGUÇO, de Alciene Ribeiro.
Corumbá-MS, 2016. 90 fls. Monografia (TCC, Curso de Letras). UFMS,
Campus do Pantanal.

RESUMEN

Este trabajo, esta basado en la pesquisa bibliografica, es sobre el tema de la


mujer en la novela Filho de Pinguço ,de Alciene Ribeiro. La relectura de la
carrera de algunas mujeres de la historia feminina en Brasil y describió el
trabajo de Alciene los matices que la mujer es el enfoque. Hemos analizado la
violencia simbólica - como concepto propuesto por Pierre Bourdieu - sufrida por
los personajes femeninos, así como describir la forma en que este tipo de
violencia tiene lugar. Nos damos cuenta de que, si bien, en la novela, se ocupa
de personajes secundarios, retratados mujeres son símbolos de la queja de un
mundo todavía marcada por el machismo y la dominación masculina,
patriarcal, es decir a la mujer como un objeto, no tener en cuenta como un
pensamiento y no hay derechos reales, aunque posiblemente tenga los códigos
legales.

PALABRAS CLAVE: Feminismo. Literatura Brasileña. Pierre Bourdieu. La


violencia simbólica.
No início, há um choro
13

Não poderia ter outra escolha que não a Literatura na conclusão da

minha formação em Letras. Acredito que a literatura seja o melhor meio para

acesso às riquezas da linguagem. Nem só pelos versos e rimas, mas pelas

personagens incríveis que conhecemos e que jamais sairão da memória, pelas

histórias e, sobretudo, pela liberdade de pensamento, que permite sonhos e

imaginação.

Que o mundo acabe, mas que fiquem os livros!

E que a humanidade, como leciona Antônio Cândido em seu texto O

direito à literatura, possa fruir a Literatura em toda a sua grandeza, pois “[...]

Uma sociedade justa pressupõe o respeito dos direitos humanos, e a fruição da

arte e da literatura em todas as modalidades e em todos os níveis é um direito

inalienável” (CANDIDO, 2011, p.7).

Esta é uma pesquisa bibliográfica. Para Gil (2002), entre as fontes

bibliográficas estão os livros de leitura corrente, obras de referência, teses e


14

dissertações, periódicos científicos, anais de encontros científicos e periódicos

de indexação e de resumo.

Parte da obra de Alciene Ribeiro, escritora mineira nascida em Ituiutaba

no ano de 1939, me foi apresentada no final de 2015 pelo seu conterrâneo

professor Rauer Ribeiro Rodrigues. Suas histórias e personagens me inundaram

de sensibilidade e me arrastaram a um mar de pequenos tesouros a serem

descobertos.

Filho de pinguço, novela de 1983, foi como primeira ostra e se tornou

minha escolha. Da primeira vez, li-a toda em um afã de fim de campeonato.

Depois, a cada releitura, vieram outras descobertas, estéticas, dramáticas,

narrativas. Classificada como literatura infanto-juvenil, conforme aponta a

Editora Lê na edição de 1989, fazendo parte da coleção Transalivre, a novela,

que aborda uma cotidiana tragédia familiar, tem maturidade de enredo de

gente grande e merece estudo, como o que propomos nesse trabalho, e ainda

outros, que certamente virão com o tempo.

Por meio de pesquisa bibliográfica, versaremos sobre a temática da

mulher na novela de Alciene, com o recorte da construção das personagens. O

tema da condição feminina é uma constante na obra da escritora. Em seu

primeiro livro, Eu choro do palhaço (1978), mais especificamente no conto

“Vinte anos de Amélia”, a escritora levanta a ponta do véu da consciência

feminina quando a personagem “reconcilia-se com a vida, quase sem ver que

andavam brigadas”, percebendo o quanto havia se anulado como pessoa para

dar vida a um casamento submisso.

O choro marcante em Filho de Pinguço é o das mulheres. Na obra elas

são personagens secundárias, envoltas ― a nosso ver ― em situação de violência


15

simbólica, conforme proposição teórica elaborada por Pierre Bourdieu (2002)1, da

qual nem se percebem vítimas.

Acreditamos que tal tema desperte reflexões acerca da segregação

feminina e também sobre o contexto violento em que se encontravam as

mulheres do passado e no qual muitas outras ainda se encontram no presente.

Nosso objetivo é o de analisar a violência simbólica sofrida pelas

personagens femininas da obra, bem como descrevê-las e conhecer como se dá a

opressão sofrida pelo universo feminino no âmbito familiar encenado pela

novela. Partimos do pressuposto ― e pretendemos, com este trabalho,

comprovar tal questão ― que as personagens femininas da novela de Alciene

internalizam a sociedade repressora que as envolve e sequer percebem a

violência simbólica a que estão submetidas.

O tema da condição feminina é uma constante da obra de Alciene

Ribeiro, presente ― para mencionar apenas alguns exemplos ― em diversos

contos do livro Eu choro do palhaço, já citado anteriormente (1978, Prêmio

Galeão Coutinho, da UBE, como melhor livro de ficção do ano), no romance

Nos beirais da memória (1989, Prêmio Concurso Nacional de Literatura Cidade

de Belo Horizonte de 1988), e em contos ainda inéditos em livro, publicados em

antologias, como “Alforria para as hortênsias” (revista Ficções, n. 2, ed. Mercado

Aberto, 1987) e “Ave Maria das Graças Santos” (Histórias Mineiras, ed. Ática,

1984).

Nosso trabalho é composto de resumo, introdução, três capítulos,

conclusão e referências. Eis nosso objetivo central:

• Analisar a violência simbólica sofrida pelas personagens

femininas, de forma a identificar como sofrem e por que

sofrem.

1 Utilizamos, de Bourdieu (2002), o livro A dominação masculina, e não o clássico O poder


simbólico (trad. Fernando Tomaz, 14. ed., Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2006), com o qual
esperamos trabalhar ― e ainda estudando a obra de Alciene ― em outra oportunidade.
16

Para tanto, verificamos se Filho de pinguço está ancorado em referente

sociológico e histórico da situação da mulher brasileira de meados do século XX

e apresentamos informações biográficas e bibliográficas sobre Alciene Ribeiro.

No primeiro capítulo, intitulado “A mulher no Brasil”, abordamos a

história das mulheres brasileiras do século XVI ao século XX de forma concisa.

Tivemos como base textual o livro História das mulheres no Brasil, organizado

pela historiadora Mary Del Priore (2015), mas também lançamos mão de artigos

que tratam da trajetória feminina, incluindo a visão de vários autores sobre os

costumes e comportamentos das mulheres brasileiras, ou das que viveram no

território a que hoje chamamos Brasil, ao longo dos séculos.

Para nós, os textos pesquisados trouxeram, para além da descrição de

índias, brancas, negras, ricas e pobres senhoras, a teoria fundante da segregação

feminina, desde o mito bíblico de Eva, sua formação miscigenada e sua história

escrita quase que em absoluto pelas mãos masculinas.

“A novela de Alciene Ribeiro” é o título do segundo capítulo e encerra

breve biografia da autora mineira, para a qual nos valemos de material existente

e para a qual realizamos pequena entrevista com a autora (cujo teor completo

está em Apêndice), bem como exame sucinto dos elementos da obra estudada,

por meio do modelo de estudo proposto por Massaud Moisés (2006) em A

criação literária: prosa 1, observando enredo, espaço, tempo, narrador e

descrição das personagens.

O terceiro capítulo recebeu o nome de “A mulher em Filho de pinguço” e

compreende a descrição e análise das personagens femininas da novela. Além

do aporte teórico do conceito de violência simbólica, de Pierre Bourdieu (2002),

nos valemos das concepções de Michel Foucault (1979) a respeito das relações

de poder.

Com nosso estudo percebemos que a violência está atrelada à história

das mulheres brasileiras sob as mais diversas nuances: física, psicológica,

emocional, espiritual ou simbólica. São capítulos e capítulos nos quais


17

aparecem sem voz, almas e corpos dilacerados, já que são descritas pela voz

masculina, despidas e sem nomes. Adentramos cavernas e alcovas escuras onde

permanecem na sombra e à sombra dos seus homens, segregadas e esquecidas.

Para nós, foi como um desfile de Evas Tupinambás2, de senhoras dos salões, de

sinhazinhas, negras, amas, donas de casa com “donos”, mulheres dos anos

dourados ─ que viveram sem brilho ─ e as de agora, em luta diuturna por

conquistarem empoderamento diante da sociedade que as trucida.

Nossa proposição é de que as personagens femininas de Alciene, embora

em Filho de pinguço se tratem de personagens secundárias, são símbolos de

denúncia de um mundo ainda marcado pelo machismo e dominação masculina,

patriarcal, que trata a mulher como objeto, a desconsidera como ser pensante e

sem direitos reais, ainda que eventualmente os tenha nos códigos jurídicos.

2 Eva Tupinambá é termo criado por Ronald Raminelli e que dá nome ao capítulo escrito por ele
na obra História das Mulheres no Brasil (2015), organizada por Mary Del Priore.
1. A mulher no Brasil
19

Neste capítulo, apresentamos de modo sintético, a partir dos estudos de

Mary Del Priore (1990, 2011, 2015), Ronald Raminelli (2015), Maria Ângela

D’Incao (2015), Maria Quartim de Moraes (1979) e Maria de Fátima Ribeiro

Teles (2010), a situação da mulher no território brasileiro, do período pré-

cabraliano ao século XX, como modo de situar o contexto histórico, em seus

desdobramentos sociais e culturais, a partir do qual a obra de Alciene Ribeiro se

confronta com o referente da segunda metade do século XX.

Dividimos a apresentação, que é sumária, em dois tópicos: o primeiro,

até o século XIX e o segundo, sobre o século XX.


20

1.1 Até o século XIX

Eva foi a primeira mulher, diz a Bíblia, mas muitas vieram depois.

Descrita como a responsável pelo “pecado dos homens” já em seu primeiro

capítulo da história, não é de se esperar que suposta obra divina, oriunda das

costelas de Adão, tenha merecido equidade no que diz respeito a sua descrição,

sobretudo quando comparada ao sexo masculino.

Mas, e as brasileiras? De quem herdaram as costelas? Sabemos delas? De

onde vieram? Como se comportavam? Como foram tratadas?

Índias, brancas, negras, mestiças, cafuzas, mulatas, miscigenadas,

brancas misturadas, sinhazinhas, senhoras, amas... Muitas vezes vistas como

objetos, chegaram ao voto, “sufragistas”, do quintal para as ruas, do alpendre

para a universidade, mas ainda há muito para se contar. Rainha do próprio

tanque ou, como Pagu3, indignada no palanque4? Quem são as senhoras do

Brasil?

Segundo Mary Del Priore (2015), na apresentação do livro História das

mulheres no Brasil, a história das mulheres não é apenas delas, mas também da

família, da criança, do trabalho, da mídia e da literatura. É também a história do

corpo, da sexualidade, da violência que sofreram e praticaram (às vezes umas

contra as outras), da sua loucura, dos seus amores e dos seus sentimentos (cf.

PRIORE et al., 2005).

As mulheres do Brasil “nasceram” das ocas, das alcovas chiques, das

senzalas e também das casas grandes. Escravas para o amor, sexo, ou ambos, já

foram objetos servis, serventes, dondocas e madames. Foram vistas pela beleza

ou pela ausência desta, e sofreram toda sorte de violência e injustiça.

3 Patrícia Rehder Galvão, conhecida pelo pseudônimo Pagu (São João da Boa Vista, SP, 1910 –
Santos, SP, 1962), foi escritora, poeta, diretora de teatro, jornalista e militante política.
Comunista, consta ter sido a primeira mulher presa no Brasil por motivações políticas.
4A provocação aqui é criar uma dicotomia sobre “ser mulher”: uma dona de casa conformada
ou uma mulher que luta pelos seus direitos, como fez Pagu. Ver, por exemplo, a música Pagu,
composição de Rita Lee e Zelia Duncan (2000). Letra e canção anexas.
21

Costuraram, bordaram e teceram suas histórias, mesmo que às vezes como

coadjuvantes. Saíram das casas, foram às ruas e ainda caminham, sem talvez

alcançar o lugar que verdadeiramente almejam: um lugar no qual se sintam

respeitadas e no qual tenham direitos iguais aos homens.

Como tudo começou? De quais costelas saíram as brasileiras? Há um

Brasil antes do descobrimento, e é lá que encontramos nossa primeira mulher, a

Eva Tupinambá, de Raminelli (2015). Segundo o autor, o cotidiano feminino

entre os tupinambás, descrito por meio dos relatos de viajantes que observaram

a cultura indígena em documentação dos séculos XVI e XVII, influenciados pela

tradição religiosa ocidental, acabaram por fazê-lo sob padrões e valores muito

distantes da realidade americana (cf. RAMINELLI, 2015).

Para Raminelli (2015), alguns relatos sobre as índias são bastante

dicotômicos, já que ora são docilmente descritas, ora surgem embrutecidas.

Enquanto uns destacavam a atenção delas para com seus filhos, os mantendo

próximos e carregados nas costas ou encaixados nos quadris, outros as

descrevem como feras brutas, como seres destituídos de sentimentos.

Segundo o autor, e baseado no relato dos viajantes, no que se refere ao

casamento e no caso de enfado do marido, ele podia presentear outro homem

com sua mulher; já os chefes podiam viver com catorze mulheres, sem que isso

causasse estranhamento, sendo as esposas muito bem tratadas pelos indígenas,

exceto quando esses bebiam cauim5.

O autor acrescenta que, na era colonial, as mulheres podiam sofrer todo

tipo de violência em nome da manutenção da honra do seu homem:


O adultério feminino causava grande horror. O homem enganado
podia repudiar a mulher faltosa, expulsá-la, ou ainda, em casos
extremos, matá-la, pautando-se na lei natural. Quando as
mulheres engravidavam em uma relação extraconjugal, a
criança era enterrada viva e a adúltera, trucidada ou
abandonada nas mãos dos rapazes. Em compensação, o marido
não se vingava do homem que havia mantido relações sexuais

5 Bebida alcoólica, à base de milho ou mandioca, tradicional dos povos indígenas do Brasil.
22

com sua esposa, para não ganhar a inimizade de todos os


parentes do outro, o que causaria um rompimento e,
possivelmente, daria origem a uma guerra perpétua
(RAMINELLI, 2015, p. 20).

Yves d’Evreux, citado por Raminelli (2015) 6, descreveu em detalhes a

evolução das classes de idade entre os ameríndios. Sobre as índias, referia seis

classes diferentes: primeira classe de idade, comum aos dois sexos, já que ao

nascer pouco se diferenciavam, então chamados de peitam; segunda classe de

idade, que estendia-se até o sétimo ano depois do nascimento, quando então

começavam as distinções entre os sexos, sobretudo em relação aos

comportamentos e deveres de cada um; terceira classe de idade, corresponde às

moças com idade entre 7 e 15 anos, quando essas recebiam o nome de

kugnantin, perdiam a pureza em razão das fantasias surgidas com a idade,

aprendiam todos os deveres da mulher, como fiar algodão, tecer redes, cuidar

da roças e preparar a alimentação diária, quando, enfim, guardavam silêncio

nas reuniões e aprendiam a seguir os desígnios do mundo masculino; quarta

classe de idade, jovens de 15 a 25 anos, que já cuidavam da casa, aliviavam o

trabalho das mães, e logo receberiam um convite de casamento caso seus pais

não a oferecessem a um francês em troca de alimentos. O autor destaca ainda

como a grávida era tratada:


No período da gravidez, as índias eram chamadas de puruabore,
que significa “mulher prenhe”. Ao contrário das europeias, as
grávidas ameríndias não deixavam de trabalhar até a hora do
parto, nem procuravam uma cama nessa hora, apenas se
sentavam e comunicavam às vizinhas que não tardariam a dar à
luz. [...] Depois do nascimento, a mulher continuava a exercer
normalmente suas tarefas domésticas, enquanto o homem era
cumprimentado pela aldeia. Ele ficava de cama e era tratado
como se estivesse gravemente doente (RAMINELLI, 2015, p.
22).

6 Yves d’Évreux, citado por Raminelli (2015), foi um religioso e entomólogo francês. Participou
da expedição enviada em 1612 ao Brasil (Maranhão) pelo governo de seu país. Raminelli não
explicita a fonte de que se valeu. Ao resumir as informações de d’Évreux mencionadas por
Raminelli, destaquei em negrito as classes de idade, enfatizando a construção do inconsciente
do feminino submisso que gera a violência simbólica.
23

Segundo o autor, a quinta classe de idade compreendia as mulheres com

idade entre 25 e 40 anos, período em que atingiam o seu maior vigor; e, por fim,

a sexta classe de idade, que dizia respeito às mulheres com mais de 40 anos. As

mais velhas eram preteridas e, quando morriam, não causavam comoção.

Raminelli (2015) destaca ainda que uma teoria de degeneração cobre

como um todo a descrição das comunidades ameríndias ─, entretanto, recai

mais sobre o grupo feminino e, sobretudo, nas velhas, o que é explicado pela

misoginia da tradição cristã que contamina a cultura indígena e amplia o

procedimento anterior de exclusão do feminino. No final do século XVI, vários

teólogos reafirmavam que o sexo feminino era mais frágil em face das tentações,

por estar repleto de paixões vorazes e veementes7·.

Percebemos que mesmo com o distanciamento entre o mito bíblico de

Eva e a mulher índia do século XVI, recai sobre ambas a culpa pelo pecado,

como se elas e somente elas fossem as responsáveis pelas tentações do corpo e

7 Jean de Léry em Viagem à terra do Brasil referiu a nudez como sendo algo mais natural às
mulheres do que aos homens: “[ ...] Mas o que mais nos maravilhava nessas brasileiras era o
fato de que, não obstante não pintarem o corpo, braços, coxas e pernas como os homens, nem
se cobrirem de penas, nunca pudemos conseguir que se vestissem, embora muitas vezes lhes
déssemos vestidos de chita e camisas. Os homens, como já dissemos, ainda se vestiam por
vezes, mas elas não queriam nada sobre o corpo e creio que não mudaram de ideia” (p. 99). O
teólogo ainda destaca a dissimulação feminina: “Imediatamente depois de morto o
prisioneiro, a mulher (já disse que a concedem a alguns) coloca-se junto do cadáver e levanta
curto pranto; digo propositadamente curto pranto porque essa mulher, tal qual o crocodilo
que mata o homem e chora junto dele antes de comê-lo, lamenta-se e derrama fingidas
lágrimas sobre o marido morto, mas sempre na esperança de comer-lhe um pedaço” (p. 157).
Além do dissimulatio, as índias têm sua nudez e concupiscência, eventualmente voraz,
veemente, destacada tanto entre os viajantes quanto na obra de alguns românticos, como Pero
Vaz de Caminha (1500 – A Carta) “Entre todos estes que hoje vieram não veio mais que uma
mulher, moça, a qual esteve sempre à missa, à qual deram um pano com que se cobrisse; e
puseram-lho em volta dela. Todavia, ao sentar-se, não se lembrava de o estender muito para
se cobrir” (p. 13); Pero de Magalhães Gândavo em História da Província de Santa Cruz de
(1576) “[...]. E a primeira cousa que logo lhe apresentam é uma moça, a mais fermosa e
honrada que ha na aldêa, a qual lhe dam por mulher: e daí por diante ela tem cargo de lhe dar
de comer e de o guardar, e assim não vai nunca para parte que o não acompanhe” (p.33) ; e
ainda Bernardo Guimarães em Jupira (de 1872) “Nas Selvas, Jupira cresceu linda e garbosa
como a palmeira das Campinas, mas esquiva e soberba como a ema, a rainha dos chapadões.
Suas graças fascinaram as vistas de todos os jovens bugres, que a seguiam, admirando-a e
adorando-a como um manitó caído do céu; mas a nenhum deles foi dado colher aquela
peregrina flor das selvas”.
24

desvios da alma; a partir do momento que lhes surgissem as fantasias com a

idade, já então seriam “domesticadas”, passando a servir apenas para as tarefas

de casa e para guardar silêncio: e assim se configura, da Bíblia ao sertão

ameríndio, a Eva Tupinambá.

Conforme a historiadora Mary Del Priore, na tese intitulada Ao sul do

corpo (1990), múltiplos fatores ─ durante o período colonial ─ conferiram à

mulher uma situação específica na sociedade que então se formava na Terra de

Santa Cruz. O rico período de entrecruzamento de etnias diferentes, os diálogos

entre visões diferentes de mundo, costumes, hábitos e crenças marcados pela

alteridade, fecundaram a condição feminina.

Para a historiadora, as brasileiras herdaram da mulher indígena o espólio

de tradições que essa detinha na estrutura tribal; herdaram, da mulher branca,

os modos de viver e morrer importados com a emigração de Portugal; e

herdaram das sociedades africanas, do tipo sudanês e banto, comportamentos e

mentalidades características do espaço que a mulher ocupava em seu interior. A

autora destaca:

O processo de adestramento pelo qual passaram as mulheres


coloniais foi acionado através de dois musculosos instrumentos
de ação. O primeiro, um discurso sobre padrões ideais de
comportamento, importado da Metrópole, teve nos moralistas,
pregadores e confessores os seus mais eloquentes porta-vozes.
Elementos para este discurso normatizador já se encontravam
impregnados na mentalidade popular portuguesa ─ e mesmo
europeia ―, [...] cabendo à Igreja Metropolitana adaptar valores
caros e conhecidos das populações femininas, para um discurso
com conteúdo e objetivo específicos. Esse discurso foi
pulverizado sobre toda a atividade religiosa exercida na
Colônia, dando especial sabor normativo aos sermões
dominicais, às palavras ditas pelo padre no confessionário, às
regras das confrarias e irmandades, aos “causos” moralizantes,
aos contos populares, aos critérios com que se julgavam os
infratores das normas, através da “murmuração” e da
maledicência. A mentalidade colonial foi sendo assim
lentamente penetrada e impregnada por este discurso (PRIORE,
1990, p. 21-22).
25

Outro instrumento de dominação sobre a mulher, apontando por Priore

(1990), foi o discurso normativo médico a respeito do comportamento feminino,

que dava caução ao religioso, na medida em que asseverava cientificamente que

a função natural da mulher era a procriação. Com o tempo, a relação de poder,

já implícita no escravismo, reproduzia-se no nível das relações mais íntimas

entre marido e mulher, condenando essa a ser uma escrava doméstica, cuja

existência se justificava por cuidar da casa, cozinhar, lavar a roupa e servir ao

chefe de família com o seu trabalho e seu sexo.

Segundo Michel Foucault, em Microfísica do Poder, durante muito

tempo se tentou fixar as mulheres à sua sexualidade, dizendo-se a elas “Vocês

são apenas o seu sexo” (FOUCAULT, 1979, p. 234, grifo no original). E o feminino,

conforme acrescentavam os médicos, era então sempre frágil, quase sempre

doente, e sempre indutor de doença. Tal movimento se acelerou no século XVIII

e deu origem à patologização da mulher, cujo corpo torna-se objeto médico por

excelência.

Segundo Maria Ângela D’Incao no capítulo intitulado “Mulher e família

burguesa”, da obra História das mulheres no Brasil, organizada pela

historiadora Mary Del Priore, durante o século XIX a sociedade brasileira sofreu

uma série de transformações: “a consolidação do capitalismo; o incremento de

uma vida urbana que oferecia novas formas de convívio social, a ascensão da

burguesia e o surgimento de uma nova mentalidade e também a sensibilidade e

a forma de pensar o amor” (D’INCAO, 2015, p. 223). Conforme a autora, as

mulheres da alta sociedade puderam vir à janela, mas também essa expôs a

intimidade da família e permitiu que os olhares vindos de fora, não apenas do

marido, cuidassem das vidas femininas.

Para D’Incao, nasce uma nova figura de mulher, agora marcada pela

valorização da intimidade e da maternidade. O lar é acolhedor, os filhos bem-

educados, e as mulheres são ainda mais dedicadas aos maridos, às crianças, e


26

desobrigadas de qualquer trabalho produtivo, sendo fiéis representantes da

retidão e probidade, tesouro social imprescindível (cf. D’INCAO, 2015).

Para Maria Quartim de Moraes (1979) no capítulo “A ‘nova’ moral sexual

das revistas femininas”, da obra organizada por Guido Mantega, Sexo e Poder,

por ainda muito tempo o discurso e a prática do “saber científico” reforçaram a

ideia de um modelo engessado de mulher:


[...], o discurso e a prática do “saber científico”, por exemplo,
reforçam a necessidade da presença da mãe nos primeiros anos
de vida: a mãe que deixa seu filho em creches é uma pessoa que
se explica e justifica (ou seja, com um sentimento de culpa)
muito mais do que outras cujos filhos são entregues às
empregadas domésticas. A psicologia e a psicanálise vulgares,
por sua vez, antes de serem críticas à estrutura autoritária da
família, terminam sendo o reforço da “boa família” (não é a
instituição que importa: são as pessoas...) ao descobrir atrás das
perturbações e neuroses razões do tipo “(sic) mal
relacionamento com a figura materna”, “não-resolução do
complexo de Édipo” e assim por diante (MORAES, 1979, p. 80-
81).

Após quatro séculos, da descrição da Eva Tupinambá, lá do século XVI, e

da moça da janela, das canções de MPB do século XX8, o que espera as mulheres

brasileiras na centúria vindoura? O que mudará?

Em resumo, podemos dizer que a ideologia de ser disseminadora do

pecado, herdeira da primeira fêmea da história da humanidade, também

contribui para que a mulher brasileira carregasse, ao longo de 400 anos, todo

tipo de violência causada principalmente pelo macho da sua espécie. Usada e

descartada como um objeto, quase nunca foi vista como alguém dotada de

direitos e vontade, e sua existência consistia em agradar ao companheiro, lhe

ser fiel, e guardar a casa, os filhos, a sua dignidade. Se eram amantes, nada

valiam; se esposas, deveriam fingir não saber das outras, então amantes. Os

8Em 1966 Chico Buarque cantava sobre a moça feia, debruçada na janela, pensando que a banda
que passava tocava para ela. Letra anexa.
27

enfeites, os bailes, e também as janelas, serviram de vitrines, onde seus corpos

eram expostos, desejados, negociados, ultrajados, violentados, descartados.

Começamos a desconfiar ― pelo discurso dominante, hegemônico,

disseminado ad nausean ― que às mulheres não cabia outro destino. Talvez

mais bem cuidadas, se fossem filhas de pais abastados, ou se casadas com

homens ricos, ou, ainda, sempre maltrapilhas e desgastadas, caso fossem

escravas, ou filhas de homens sem posses, a mulher ficava subjugada a um

“ser” ou “ter” independente de si, na dependência de a qual homem

pertencesse. Jamais autônomas, às mulheres caberia sempre e apenas a

heteronomia, mais apropriada a escravos ou a crianças, dependentes por

definição legal e por incapacidade ─ melhor dizer: impossibilidade social ─ de

se prover a subsistência.

A literatura de Alciene Ribeiro, a nosso ver, é um brado contra tal status

quo, já que suas personagens femininas, ainda que em sua maioria sejam

dependentes financeiramente de seus maridos, ainda que trabalhem apenas em

casa, já se mostram cientes de sua condição, conscientes de seus direitos. Nem

sempre reclamam, mas apontam o tempo todo a sua insatisfação. É o que

mostramos nesta monografia.


28

1.2 No século XX

Para Mary Del Priore, em seu livro Histórias Íntimas: sexualidade e

erotismo na história do Brasil, de 2011, ainda em meados do século XX

continuava-se a acreditar que ser mãe e dona de casa era o destino natural das

mulheres, cabendo à masculinidade a iniciativa e a participação no mercado de

trabalho, e também a força e o espírito de aventura. Sobre o comportamento,

ainda não importavam os desejos ou a vontade de agir espontaneamente, mas

as regras e as aparências:
[...]. Durante os chamados Anos Dourados, aquelas que
permitissem liberdades “que jamais deveriam ser consentidas
por alguém que se preze em sua dignidade” acabavam sendo
dispensadas e esquecidas, pois “o rapaz não se lembrará da
moça a não ser pelas liberdades concedidas” 9. [...] cabia
especialmente à jovem refrear as tentativas desesperadas do
rapaz, conservando-se virgem para entrar de branco na igreja
(PRIORE, 2011, 163-164).

Em contrapartida, adverte a autora, relações sexuais de homens com

várias mulheres eram não só permitidas como desejadas, tendo-se horror ao

homem virgem e inexperiente. Para suas aventuras, os homens preferiam as

mulheres “galinhas ou biscates”, com as quais podiam desenvolver todos os

tipos de familiaridades proibidas com as “moças de família” (PRIORE, 2011, p.

166).

A historiadora ainda afirma que a medida da felicidade conjugal era

baseada no bem-estar do marido, e esse seria resultado das “prendas

domésticas” da companheira, afinal, a mulher conquistava pelo coração e

prendia pelo estômago. A boa esposa seria a que não criticava, que evitava

comentários desfavoráveis, a que se vestia sobriamente, a que limitava passeios

9 Entre as aspas estão alguns dos conselhos encontrados em revistas como O Cruzeiro, segundo
Mary Del Priore.
29

quando o marido estivesse ausente, a que não era muito vaidosa nem

provocava ciúmes no marido.

Segundo Maria de Fátima Ribeiro Teles, em sua dissertação de mestrado

de 2010, intitulada Feminilidade e resistência: mulheres, arte, política e

sexualidade, a história das mulheres no Brasil tem sido marcada por

estereótipos de submissão, reclusão e repressão, bem como pelas concepções de

maternidade, de reprodução e de toda sorte de produção de comportamentos.

Cuidavam da educação das crianças, dos afazeres domésticos e dos maridos,

sendo boas filhas e irmãs cuidadosas, mas também travaram batalhas por seus

direitos, por melhores condições de vida e de trabalho e, aos poucos, buscaram

liberdade para seus corpos (cf. TELES, 2010, passim).

Percebemos que as personagens femininas, em Filho de pinguço, situadas

em meados da segunda metade do século XX, já estudam, já podem sair de casa

sem a companhia dos homens e, ainda que sob resmungos, já se mostram

contrariadas e fazem pequenas reclamações. Todavia, continuam sob violência

dos seus pares ou mesmo de outras mulheres, ainda são vistas como objeto

sexual, e ainda devem respeito e obediência aos companheiros. Por medo,

conformismo ou ignorância, parecem preferir a casa e o marido à solidão.

A nosso ver, Alciene Ribeiro consegue, em Filho de pinguço, dar voz às

personagens femininas, todavia, explicita, na arquitetura romanesca e nos

detalhes da construção narrativa, a nódoa da dominação masculina herdada

dos séculos passados.

Na obra, são os homens que trazem, ou deveriam trazer, o dinheiro para

dentro de casa. A mulher deve permanecer no lar, cuidar dos filhos, educá-los,

e priorizar o bem-estar do marido. A vontade desse, sobretudo se sexual, deve

ser atendida em detrimento da falta de desejo da companheira, pois o

importante, acima de tudo, era conservar o casamento, pois uma vez largada,

caberia à mulher ser entregue à solidão e maledicência da sociedade. Para nós,

em Filho de pinguço, Alciene Ribeiro presentifica, ficcionalizado, o referente


30

histórico, social, cultural e conjugal ainda vivenciado pelas mulheres brasileiras

na segunda metade do Século XX.


2. A novela de Alciene Ribeiro
32

Nascida em 1939, Alciene Ribeiro é mineira de Ituiutaba e iniciou sua

carreira como escritora de literatura em 1976 nas páginas do Suplemento

Literário de Minas Gerais. A primeira obra teve como título Eu choro do

palhaço. A coletânea, lançada em 1978, foi considerada o melhor livro de contos

daquele ano pela União Brasileira de Escritores. Com mais de 20 títulos no

mercado, a escritora atua também como ghost-writer10, revisa textos, realiza

leituras críticas e nos anos 1990 e 2000 escreveu obras espíritas autorais. Desde

2010, retomou as obras ficcionais, e tem um romance inédito em que talvez ─ é

o que depreendemos de palavras da escritora ─ faça uma síntese da ficcionista

dos anos 1970/1980 com a tendência espiritualista das duas décadas seguintes

(ver entrevista no Apêndice).

Nessa entrevista, concedida por telefone, a autora nos falou sobre sua

escrita, que está observando a vida o tempo todo, e que escreve a partir dos

10 Aquele que escreve para outras pessoas, por encomenda e mediante um contrato entre as
partes, sobre os mais variados assuntos.
33

seus sentimentos, suas dores, suas esperanças. Acredita que as mulheres ainda

são tolhidas, como ela já foi, mas que pensa o casamento como um ato de

auxílio mútuo entre marido e mulher, sempre ao lado um do outro.

Artigo de Pauliane Amaral e Rauer Ribeiro Rodrigues (2014) informa que

Alciene não concluiu na adolescência o estudo secundário, antigo ginásio, e só

voltou aos bancos escolares em 1967, concluindo o curso Normal em 1971 e se

licenciando em História em 1975, aos 37 anos de idade. Ao lado da trajetória

doméstica, como mãe de três filhos, e da trajetória escolar e acadêmica

retomada, foi líder estudantil, fundou grêmios, criou jornais, militou em teatro

amador e presidiu um Centro de Estudos, que recebeu o nome de Sérgio

Buarque de Hollanda11.

Vejamos, na sequência, aspectos sobre a novela de Alciene Ribeiro.

11 Informações retiradas de texto da própria escritora; esse texto está hoje disponível em: <
http://gpalcieneribeiro.blogspot.com.br/p/alciene.html >. Acesso em: 14 mar. 2017.
34

2.1 Novela infantojuvenil?

Filho de pinguço, lançado em 1983, foi apontado na época como o único

texto brasileiro destinado a adolescentes e jovens cuja temática tratava, sob ótica

terna e com profundo sentimento, do problema do alcoolismo. Considerado um

livro tenso, de texto trabalhado e envolto de emoções, rendeu à autora o Prêmio

Coleção do Pinto. A escritora também receberia, ao longo dos anos, outras

premiações, como o Galeão Coutinho, da UBE, e ainda o selo “Altamente

Recomendável da FNLIJ”12, para o livro infantojuvenil Drácula Tupiniquim.

Novela classificada como “infantojuvenil”, Filho de pinguço apresenta

densidade e profundidade no enredo ao abordar tema delicado que é, muitas

vezes, vivenciado por jovens brasileiros. Na contracapa da edição de 1989,

lemos que a busca de liberdade e autoconhecimento do adolescente já era então

fortalecida pela informação recebida por intermédio da televisão e do rádio, e

também pelos livros, que eram cada vez mais utilizados, nas escolas, como

instrumentos de discussão de vida, e eram assim cada vez mais reconhecidos

em seu valor pelos educadores.

Fabrícia Vellasquez Paiva (2008) observa na dissertação A Literatura

Infantojuvenil na formação social do leitor: a voz do especialista e a vez do

professor nos discursos do PNBE 2005, que por muito tempo a literatura

infantojuvenil foi entendida e estudada especialmente pelos setores da

educação, sobretudo em razão de seus textos estarem ligados ao compromisso

de algum ensinamento, de alguma mensagem ou, ainda, de alguma moral.

Muitas vezes apontada como transmissora de uma cultura da ordem,

necessária, por vezes, à sociedade capitalista, essa literatura acabou

empobrecida.

12 Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil.


35

A autora aponta, porém, que na contemporaneidade houve mudança na

literatura infantojuvenil, especialmente quanto à avaliação de sua importância

para a sociedade, transformando-se não apenas em si mesma – no âmbito da

temática –, mas também e principalmente, quanto à própria estrutura textual,

de forma que a ficcionalidade e a exemplaridade tomam novo corpo,

aproximando-se ainda mais dos efeitos provocados por qualquer outra

modalidade literária. De tal maneira, não é errado afirmar que seu público,

antes compreendido exclusivamente de jovens, também pode ser o de crianças,

como também de qualquer faixa etária:

Embora os textos infantojuvenis contemporâneos apresentem


ainda um discurso direcionado a um público específico –
constituindo-se, pois como um texto sobre e para a infância –
ele não exclui todos os demais leitores que queiram dele
aproveitar a leitura, ou, ainda, que escolham uma obra
infantojuvenil em detrimento de um livro de literatura clássica
destinado exclusivamente a adultos. A obra infantojuvenil
apresenta encantamentos não apenas em suas temáticas de
fadas e bruxas, mas também em sua lógica interna, uma vez
que é passível de leitura a qualquer idade (PAIVA, 2008, p. 97).

Filho de pinguço se enquadra, a nosso ver, nas características definidas

por Fabrícia Vellasquez Paiva (2008). O tema do alcoolismo, considerado tenso,

é tratado de maneira delicada por Alciene, com uma linguagem simples que

pode despertar interesse de jovens e adultos.

Segundo Massaud Moisés (2006), a palavra “novela” remonta ao italiano

“novella”, originário da Provença, onde significa “relato, comunicação, notícia,

novidade”. Em vernáculo, o termo circula com a designação de “engano”,

“embuste” ou “mentira”, mas diz respeito, de maneira geral, a uma história

fictícia, longa, jorrando emoções fáceis, transmitida por rádio ou televisão. Em

estudos literários é empregada por vezes de modo “defeituoso” por alguns

críticos, rotulada como narrativa com mais de cem e menos de duzentas

páginas.
36

A novela ocupa, do ponto de vista histórico, posição menos


relevante que a do conto e do romance. Identificada com as
manifestações populares de arte, atende ao desejo de aventura e
fuga realizado com o mínimo de profundidade e o máximo de
anestésico: raro se nivela, em matéria de requinte estético, às
formas em prosa vizinhas. Prato variado mas ligeiro, não se
detém no exame do dia a dia real, preocupando-se acima de
tudo com o pitoresco, que é tão cedo esquecido quanto mais
facilmente seduz. [...]. Pressupondo que tudo se conheça, ou
que se converta em atos e acontecimentos visíveis, a novela
contempla, não indaga, finge, não questiona, fantasia, não
interroga. No entanto, por estar mais próxima da vida diária,
graças aos “ingênuos” e vulgares expedientes, reflete por vezes
a subjetividade do leitor [...] (MOISÉS, 2006, p.112).

A opinião de Moisés se configura extravagante, para não dizer que é um

equívoco. O escritor Luiz Vilela, citado por Rauer (2013), considera que a

divisão das narrativas em gêneros, no que se refere ao aspecto estrutural,

questão secundária, já que tanto conto, novela e romance despertam nele o

mesmo interesse e importância. Para Vilela, são diferentes: o romance é grande,

longo, o conto é pequeno, curto, e a novela está entre os dois quanto à extensão

(cf. RAUER, 2013).

Nem por ser novela, o que jamais seria justificativa de menor

importância quando comparado a outro gênero de narrativa, como o conto ou o

romance, tampouco pela classificação infantojuvenil, nada ─ a nosso ver ─

diminui a grandeza estética e literária desse Filho de pinguço.

Alciene Ribeiro consegue, certamente, atingir além do público jovem,

pois aborda temas ainda mais densos que o alcoolismo ― a segregação das

camadas populares, a condição feminina e o desemprego são trazidos à tona.

Com o drama do vício do álcool denunciado no título da obra, com poderosa

força criadora da linguagem e de um universo ficcional próprio, erguido com

sensibilidade, acuidade e poderosa visão de mundo, criando um narrador que

evita prejulgamentos e adere emocionalmente ao drama das personagens,

Alciene deixa ao leitor a palavra final diante do que lê.


37

2.2 Alcoolismo, miséria e violência: temas fortes

Na terceira edição do Filho de pinguço (Editora Lê, 1989) Duílio Gomes13

chama atenção dos leitores para o termo usado no título, pinguço, sugerindo

que seu uso pela autora foi uma forma de causar impacto. Para ele, a expressão

colocada na capa tem muito mais a denunciar do que o vazio alcoólatra.

Conforme sugere, a obra não se atrela a moralismos vãos, e não trata do perfil

das consequências de uma simples ressaca, mas do estado psicológico e em

degradação de um pai de família que, não conseguindo se desligar do vício do

alcoolismo, provoca uma pequena tragédia familiar.

“Pinguço”, segundo o dicionário Priberam, é adjetivo e substantivo

masculino, que significa “que ou aquele que se embriaga, embriagado, bêbedo”,

ou ainda, como adjetivo apenas, “diz-se dos olhos de quem bebeu álcool em

demasia ou que está com muito sono”.

Ainda sobre o título, e em tempos de bullying14, podemos antever que,

para além da história do próprio “pinguço”, saberemos do seu filho, que

mesmo sem querer ou merecer, já é tratado pela alcunha, cujo sinônimo não é e

nunca será motivo de orgulho nem ostentação.

E mais ainda para a narração da história de uma família, temos o relato

da história de muitas famílias brasileiras da década de 1980, em enredo que

continua atual. Há a descrição de um contexto familiar, cujo chefe não tem

emprego fixo, já que é pedreiro e trabalha por obra, e que bebe mesmo sem ter

dinheiro e até mesmo sem ter geladeira, que teve de vender para pagar outras

contas. Ele pode ser vítima, mas também faz outras, sem que essas percebam:

13 Duílio Gomes, escritor mineiro de Mariana, foi integrante da chamada Geração 60, sendo
editor do Suplemento Literário de Minas Gerais nos anos 1980, além de colaborador dos
jornais Estado de Minas e Jornal do Brasil. Morreu em 2011.
14Bullying, termo originado da palavra inglesa “bully”, que significa valentão, briguento, é uma
situação caracterizada por agressões intencionais, verbais ou físicas, executadas de maneira
repetida, por um ou mais alunos, contra um ou mais colegas.
38

― Dinheiro não sobra, conta na porta toda hora, amolação.


Vendemos a geladeira para o espanhol da esquina, não deram
pela falta? (P. 13)15.

Alciene Ribeiro dá voz para famílias antes não lembradas pela literatura.

É a chamada “voz do oprimido”. E na verdade nos faz refletir sobre outras

vozes mais agudas, que tantas vezes são silenciadas: a das mulheres.

A própria autora, no prefácio de Eu choro do palhaço (1978), afirma que

o papel da literatura é de denúncia, a “serviço do homem”, constituindo-se

retrato escrito de determinado momento da evolução histórica da sociedade,

com a ressalva, entretanto, de que a literatura, sem o propósito de resolver, vem

para apontar certas condições opressoras do homem.

Por sua trajetória de vida, e sob a condição de resgate do “ser mulher

também para o mundo”, temos que a obra de Alciene não deve encerrar apenas

mais uma história para jovens, sob linguagem simples e clara, mas também se

constituir em texto denunciativo e reflexivo acerca dos problemas enfrentados

por aquele “novo” Brasil dos anos 80 e de seu mais genuíno representante: o

povo brasileiro. Nas 48 páginas da edição de 1989 temos o retrato de uma

família pobre, imersa em um novo paradigma social e político do país tropical

daquela época e que, à margem da sociedade dominante, tem seus membros

como algozes e vítimas uns dos outros, e que sofre calada um dos mais cruéis

tipos de violência: a simbólica, assunto que será abordado no próximo capítulo

de nosso trabalho.

Regina Zilberman (1991) adverte que, apesar de não desejar uma

literatura vista sob efeito ou reflexo de panorama extraliterário (como

mudanças históricas e políticas), devemos perceber que o escritor

contemporâneo interage com seu tempo e sociedade. No tocante às mudanças

políticas ocorridas no Brasil, sobretudo, a partir de 1985 sob o governo de um

presidente civil, percebemos na literatura a tentativa de dar expressão a

15 Nas referências à novela Filho de Pinguço, indicamos somente a página.


39

segmentos até então ausentes ou de posição secundária na literatura, resultante

da emergência da voz do oprimido, de que a ficção passa a ser portadora (grifo

nosso).

Zilberman cita a tentativa de exposição do elemento popular,

representado por personagens cujas origens estão nas camadas urbanas mais

inferiorizadas, sob a presença do marginal, então representado pela figura do

trabalhador desempregado, o proletário, ou subprofissional, ou ainda o

mendigo. Também aparece o fora da lei que escolhe “cobrar” da sociedade o

descaso com que o trata. E também há toda sorte de personagens simbólicas,

que encarnam o homem do povo que corresponde, de modo geral, ao indivíduo

que, dentro da pirâmide social, ocupa posição inferior.

Alciene, em Filho de pinguço, aborda personagens dessas camadas

populares enredadas em temas fortes como o alcoolismo, miséria e violência,

enunciadas em sensível linguagem coloquial, de maneira que a novela pode ser

lida tanto por adultos quanto por jovens e adolescentes. Sob esse aspecto,

lembramo-nos de Antonio Candido (2011), para quem a literatura é um

instrumento poderoso de instrução e educação:


A literatura confirma e nega, propõe e denuncia apoia e
combate, fornecendo a possibilidade de vivermos
dialeticamente os problemas. Por isso é indispensável tanto a
literatura sancionada quanto a literatura proscrita; a que os
poderes sugerem e as que nascem dos movimentos de negação
do estado de coisas predominante (CANDIDO, 2011, p. 175).

Segundo Candido (2011), a literatura corresponde a uma necessidade

universal que deve ser satisfeita sob pena de mutilar a personalidade, uma vez

que liberta do caos e, portanto, humaniza. Pode ser um instrumento consciente

de desmascaramento, pelo fato de focalizar as situações de restrição dos

direitos, ou de negação deles, como a miséria, a servidão, a mutilação espiritual.

A linguagem simples usada por Alciene é o tipo de linguagem que

Antonio Candido destaca para uma proposta de sentido efetiva:


40

[...] o conteúdo só atua por causa da forma, e a forma traz em si,


virtualmente, uma capacidade de humanizar devido à
coerência mental que pressupõe e que sugere. [...] Toda obra
literária pressupõe esta superação do caos, determinada por um
arranjo especial das palavras e fazendo uma proposta de
sentido (CANDIDO, 2011, p. 178).

Filho de pinguço, com sua linguagem fluida e clara, produz sentidos,

empreende denúncia e, assim, permite a fruição da literatura e a faz como

instrumento formador, conscientizador, na dialética que faz da mimese, ainda

que sem catarse, a negação do referente.


41

2.3 Construção da narrativa

Narrada em terceira pessoa de forma onisciente, a novela de Alciene

apresenta o tempo trabalhado de forma linear, com o enredo se desenvolvendo

linearmente, com princípio, meio e fim; entretanto, ao final, não sabemos se há

de fato um fim ou uma esperança de continuidade, já que longe de história

romanceada o que temos é um fim nada feliz. Algo é como retomado, como se

seguisse a normalidade, que não levará a lugar algum. Um eterno retorno de

degradação, um oroboro que se alimenta de si mesmo e se autorreplica em uma

espiral infinda.

Eis a pergunta que Alciene nos deixa nas entrelinhas: como superar a

desilusão permanente? Busquemos na construção, na arquitetura da narrativa,

resposta para essa indagação.

Segundo Massaud Moisés (2006), tal como o conto, a estrutura da novela

caracteriza-se por ser plástica, concreta e horizontal; sob a perspectiva da

terceira pessoa, o autor se coloca fora dos acontecimentos, ou concede a uma

personagem a direção da narrativa; o novelista concentra-se em multiplicar os

expedientes narrativos, formulando sucessivas células dramáticas que,

formadas por justaposição, não desagradam o leitor; o enredo é visível e nada

esconde, tampouco dissimula profundidades dramáticas ou psicológicas (cf.

MOISÉS, 2006).

Moisés ainda aponta que o tempo da novela é o histórico, marcado pelo

relógio ou pelo calendário, fluindo a narrativa em temporalidade horizontal,

correspondendo ao encadeamento de fatos numa linha sujeita ao princípio da

causa e feito. A ação desenrola-se por inteiro no presente, aqui e agora, sendo o

pretérito condensado em breves anotações. Não há interesse de seguir os passos

das personagens desde o nascimento, mas surpreendê-las no momento em que

estão maduras para agir. Quanto ao futuro, pertence ao imponderável, à lei do


42

acaso, que pode conduzir à morte, ao exílio, ou a formas equivalentes de sair de

cena.

Verificamos, já em suas primeiras linhas, que em Filho de pinguço as

personagens são apreendidas “de surpresa”, no meio da vida já “em

movimento”, o que é apresentado ao leitor sem explicações anteriores:


O pai abraçou o menino, um cheiro forte de suor, cachaça
e cigarro.
― Hê filho, dá um beijo ― falou apertando o garoto.
Ele arranhou a boca na barba, retribuiu o abraço, um
pouco de medo. Tem medo dele falante assim. Se não bebe é
outro, e aí não tem o susto, mas gostosura de ser, um sossego
bom. Mais tarde o pai fica bravo, já sabe, costume (p. 5).

O espaço é quase que em absoluto a casa da família, mas também

passamos pelo botequim da vizinhança, pelas ruas do bairro e pela escola. Eis o

que preconiza Massaud Moisés sobre o cenário da novela como estrutura

narrativa:
[...]. Somente interessam os acidentes geográficos onde ocorre
algo de novo, trágico ou pitoresco. Por suas origens, a novela
tende a desdobrar –se numa geografia fictícia, que serve de
cenário para a trama que enleia as personagens. O dinamismo
da novela repele o estático da paisagem: é a ação que
desencadeia as peripécias e incita à curiosidade (MOISÉS, 2006,
p. 118).

A personagem principal é o menino, chamado assim, tendo ainda em

destaque as personagens “pai” e “mãe”, que como o primeiro, também não

recebem nomes próprios. A ausência de nomes próprios parece indicar que se

trata de drama comum a muitas famílias, é como se a história pudesse ser de

qualquer família, de qualquer outra pessoa, de qualquer um de nós.

Outras personagens aparecem como pano de fundo, participando de

algumas cenas, e outras, por vezes, são apenas citadas. São as seguintes:

compadre; Seu João (dono do botequim); freguês no bar; tias Marlene e Marina

com a filharada; tio Wolninho; prima Sílvia; Francisco (Fran); Seu Juellas
43

(espanhol da esquina e pai de Fran); tia Luíza (professora do menino); Maurício;

Cláudio; e Benjamim.

Segundo Moisés (2006), em decorrência de sua multiplicidade dramática,

a população da novela não conhece limite. Os protagonistas tornam-se

numerosos, e as personagens secundárias aparecem com frequência, em razão

do entrelaçamento de dramas, embora suas ações nem sempre apresentem

consequências futuras. Daí a razão de certas figuras apenas apresentarem uma

espécie de paisagem humana, aparecerem e depois desaparecerem sem voltar.

No caso dessa novela, as personagens descritas por Alciene parecem sair

da vizinhança de algum tempo de nossas vidas. Elas não são boas, nem más,

são verdadeiras. Podemos encontrá-las pelos ônibus ou pelas calçadas de

qualquer cidade brasileira. Não há descrições físicas das personagens, nem

atributos, com exceção do “cheiro de morrinha” vindo do pai, e mencionado

pela mãe, que mesmo não se tratando de “parte tocável”, quase conseguimos

senti-lo. Mesmo assim, “sem” cores ou cabelos específicos, conseguimos

desnudar algumas delas, porque a novela ergue e tece com palavras suas almas,

e assim como que visualizamos seus corpos, ouvimos o que dizem, sofremos

suas dores. Sob suas características psicológicas, parecem saídas do cotidiano,

do trivial, e sobrevivem sempre, dia após dia, parecendo não pararem muito

para pensar sobre o que vivem, ou sobre aqueles com quem vivem.

O pai é pedreiro e alcoólatra, e desde sexta-feira, um feriado comum, até

o domingo, bebe sem parar, sem ao menos tomar banho. É descrito como

malcheiroso e violento, e exigia do filho a valentia e, em casa, uma “ordem”, a

“sua”, já que se considerava importante e digno de respeito:

Às vezes chegava da rua com aqueles cheiros e se enfezava por


nadinha de tudo. Gritava com a mãe, batia nos meninos,
xingava. Mas antes ficava chato e era o interrogatório: só
pergunta com resposta já sabida. Indagava para ouvir bis de
vantagens: gracinha de criança, bonito na escola, valentia na
rua. Principalmente valentia, um dever custoso ao menino (p.5).
44

Para a esposa, a “mãe” do menino, o marido é descrito como alguém que

precisa plateia, gente para ouvir e bater palma para as suas histórias, uma

pessoa sem juízo, um bobo, explorado por desocupados:


― Ele é explorado e ainda agradece, os desocupados comem
e bebem às custas do bobo! – desabafa (p.7).

O “filho de pinguço” é ainda menino, e é sob sua percepção,

“encarnado” na figura do narrador onisciente, que deparamos com seus

sentimentos ambíguos de medo, revolta, compaixão, asco e vergonha. Por um

lado, a raiva da bebedeira do pai; do outro, o medo de perdê-lo pela cirrose.

Tem medo da violência do pai contra a mãe, mas teme que ela, ao se defender,

também o maltrate. Às vezes tem ódio pelos dois e não foge porque tem receio

de ficar sozinho no mundo. Antes de tudo, é um sonhador:


A cabeça debaixo da coberta, tremura no corpo, reza. Um dia
foge, um dia. Por enquanto falta coragem. Fome e frio seguram
a vontade de correr. Sozinho no mundo ainda é pior do que
aquele inferno.
― Mãe, se a senhora empurrar o pai ele cai, igual aquele dia.
Nunca saberá o vencedor da briga. Sentimentos
desencontrados de amor e raiva não definem sua torcida. Ora é
pela mãe, ora pelo pai, chega a querer, muito dentro, a morte de
um deles (p. 7-8).

[...]. Quem morre primeiro, a mãe ou o pai? Ela sabichona,


formada normalista, ou ele escondendo a quarta série atrás do
copo?
― Quarta série o quê, invencionice de político chibungo, eu
formei no curso primário, quarto ano, orador da turma,
diploma e tudo. Naquele tempo a gente estudava mesmo, não
era a enrolação de hoje não.
Dói mais a morte de cirrose ou de doença de mulher? Mãe
chorosa ou pai espancando, qual faz mais falta até ele crescer
um pouco, carteira no bolso, a vida lá fora? (p. 24-25).

A mãe fica com as crianças em casa, apesar de ter estudado mais que o

marido. É também descrita pelos olhos do menino, nem boa nem má, mas é

“sabichona”. Depois de uma briga, é vista pelo filho por meio do seu “chorar”

especial:
45

Quando a mãe chora só com o olho, é amor. O choro de raiva


envolve boca, fala, pé e mão, quer distância. Mas o choro de
amor dá um troço gostoso na barriga, o mundo pode até se
virar contra, nenhuma importância.
O pai fedendo? Que me importa!
A prima convencida? Dane-se.
O Fran por cima? Bom proveito!
Choro barulhento é briga com o pai, choro calado acarinha
filho. [...] (p. 39).

A mãe se denomina como uma “bobona” e uma pessoa explorada, cuja

única distração é a televisão:


― Antes vendessem a televisão ― tia Marina.
― E televisão não vicia também, futebol, corrida? E minha
novela, a burra de carga precisa distração, ora ― mãe (p. 14).

A narrativa começa no domingo, com o pai alcoolizado desde a sexta. O

menino é o responsável por pegar, sem pagamento, bebidas e cigarros para o

pai no botequim do bairro, de propriedade do português Seu João. Lá se sente

envergonhado por não levar dinheiro, e é alvo de chacotas por parte do

comerciante e de alguns de seus fregueses, e é lá que também “sonha” em

comprar alguns doces expostos na vitrine, sem que tenha coragem de comprá-

los fiado, mesmo com autorização paterna. Em casa, depara-se com a “ameaça”

da violência do pai, ora contra ele, ora contra a mãe. Essa, por sua vez, tem no

menino o depositário de suas reclamações, que também reclama para as irmãs,

quando chegam para uma visita.

O menino é também ridicularizado na escola, alvo de piadinhas

realizadas por colegas, que acabam por culminar em uma briga na segunda-

feira, após o fim de semana prolongado. Após ser chamado de “filho de

pinguço” agride e também é agredido fisicamente por um dos colegas, voltando

machucado para casa. É recebido pela mãe com curativos, lágrimas,

lamentações e recomendações para que não se envolva em brigas. Na chegada

do pai, que mesmo tão cedo já vem alcoolizado, é tratado por esse com respeito

pela valentia, que associa o comportamento agressivo do filho a ato de bravura


46

e macheza e é por fim humilhado pela mãe e pelo menino, quando descobre a

razão da briga: ter sido a criança chamada de “filho de pinguço”.

Como superar a desilusão permanente?

Não há resposta da autora para essa pergunta, pois não há esperança de

um fim diferente. A mãe é tomada de prostração e é, junto do filho, quase

levada ao tombamento da realidade, já que não há meios de mudá-la. Talvez o

que os mantenha em pé é justamente o fato de permanecerem juntos, mãe e

filho.

O pai, sim, desmorona, alheio. Esse é o seu fim. O fim que recomeça até o

final derradeiro, em algum dia, logo ou distante, não se sabe. Seu olhar é para o

vácuo, não há esperança. A vida retoma seu curso. O pai dá dinheiro ao filho e

diz para que compre o doce que queria comprar. Há um doce na vida que

continua ― eis a esperança como palavra final do narrador de Alciene Ribeiro

em Filho de pinguço.
3. A mulher em Filho de pinguço
48

A obra Filho de pinguço desperta reflexões acerca de temas relevantes

como: relações familiares, sujeitos marginalizados, alcoolismo e violência, entre

outros. Desses, elencamos o último tema, mais especificamente a violência

sofrida pelas personagens femininas da obra: embora secundárias, as

personagens femininas da novela encerram aspectos cruciais no âmbito da

narrativa, e como tal merecem detido estudo.

Com exceção da “mãe”, que está presente ao longo de todo o enredo,

muitas das personagens femininas são citadas uma única vez; são elas: tias

Marlene e Marina; prima Sílvia; e tia Luíza, a professora.

Segundo Massaud Moisés (2006), as personagens da novela são

geralmente planas, ou bidimensionais, estáticas e definidas, carentes de

profundidade. Poucas são as que se salientam, enquanto outras assumem

função paisagística. Parecem por vezes bonecos, faltando-lhes a agitação íntima

que constitui apanágio das individualidades e dos caracteres marcantes; vazias


49

de tônus psicológico, reduzidas na exposição de inquietação interior, entregam-

se à ação como se ignorassem outro destino.

Não há quaisquer descrições físicas das personagens femininas de Filho

de pinguço, nada que as diferenciem ou individualizem. São como “enfeites” ou

“atrizes secundárias” em um teatro puramente masculino. São representadas

como objetos de desejo, mães, esposas, cuidadoras do lar, empregadas e, em

decorrência disso, não apresentam ações genuínas ou próprias, autônomas.

As personagens femininas de Filho de pinguço parecem saídas de filmes

americanos que retratam a década de 1950, aquelas donas de casa que apreciam

a televisão e seguem sua rotina de faxina, cozinha e bordado, não fosse sua

precária condição financeira, diversas dos enlatados hollywoodianos. Por não

termos suas descrições físicas, nãos as sabemos bonitas, feias, magras ou

gordas, mas suspeitamos que nem mesmo elas se descreveriam, porque seguem

a rotina, parecendo conformadas com a vida que levam, e seguem pobres,

cuidam dos filhos, e, às vezes, quase às escondidas, reclamam da própria sorte.

Não parecem felizes. Seria por falta de opção? Ou medo da solidão?

Medo de não cumprir a sina de ser mulher? Como a mãe o foi? E como a mãe

de sua mãe?

Maria Quartim de Moraes (1975) já havia mencionado que de todas as

armadilhas prontas para aprisionar o sexo feminino não existe outro maior do

que a sensação de solidão, impotência e fracasso individual com que as

mulheres enfrentam as dificuldades em se amoldarem aos “padrões femininos”;

em viver o “destino de mulher”.

Segundo a autora, como se falasse diretamente com as mulheres,


A dificuldade em encontrar a própria identidade no quadro
estreito das “características psicologicamente específicas da
mulher” – pois, afinal, ser mulher é provocar paixões, criar
filhos ou cozinhar? ou são todas estas coisas? – só é superada
por esta de situar-nos socialmente, de nos entendermos como
mais uma sofrendo os mesmos problemas e vivendo as mesmas
perplexidades (MORAES, 1975, p. 70).
50

Assim são as “filhas de Eva” também na novela de Alciene. São iguais a

tantas outras que, apenas para manterem-se “situadas” socialmente (mães,

esposas, filhas), sofrem caladas, e mesmo quando falantes, ao se perceberem

sofredoras, seguem a vida, criando filhos e maridos, e cozinhando comida e

gente, “cozinhando”, às vezes, elas mesmas.

São vítimas de silenciosa violência simbólica.

Este capítulo se estrutura em três tópicos: no primeiro, apresentamos o

conceito de violência simbólica, no segundo, discorremos sobre o impulso

libertador que lateja na obra de Alciene, no terceiro, apresentamos as diversas

personagens femininas da novela Filho de pinguço, discorrendo sobre a

presença delas na narrativa, tendo por fulcro a tensão entre a violência que as

submete, ainda que silenciosa e simbólica, e o impulso de evasão.


51

3.1 A violência simbólica

Ao longo da novela, apesar de não “presenciarmos” violência física, a

sabemos por meio do pensamento do menino, que menciona o medo que sente

da agressão iminente, já que a presenciara em outros momentos, como no

trecho abaixo:
O menino, deitado, ouve discussões, tapa os ouvidos,
revira-se na cama. Tem medo do pai bater na mãe, dela
empurrá-lo.
− Não bate na mãe não, pai – pede baixinho.
A cabeça debaixo da coberta, tremura no corpo, reza.
Um dia foge, um dia. Por enquanto falta coragem. Fome e frio
seguram a vontade de correr. Sozinho no mundo ainda é pior
do que aquele inferno (p. 7).

Há também alguns gritos do pinguço, mas, sobretudo, é a violência

emocional que impera naquela casa, pois que as mulheres parecem existir para

os homens apenas como objetos. O castigo imposto a elas é de total abandono.

Michel Foucault (1987) afirma que também as formas de punição mudaram ao

longo dos séculos. Não seria mais o corpo a ser punido, mas a alma. À expiação

que tripudia sobre o corpo deveria suceder um castigo sobre o coração, o

intelecto, a vontade, as disposições:


Momento importante. O corpo e o sangue, velhos partidários
do fausto punitivo, são substituídos. Novo personagem entra
em cena, mascarado. Terminada uma tragédia, começa a
comédia, com sombrias silhuetas, vozes sem rosto, entidades
impalpáveis. O aparato da justiça punitiva tem que ater-se,
agora, a esta nova realidade, realidade incorpórea
(FOUCAULT, 1987, p. 20).

Acreditamos que as personagens femininas de Alciene são vítimas, em

sua maioria, de uma violência silenciosa, cada uma sob uma forma, mas todas

violentadas. Sem reconhecimento, quase sem voz, sem vontade. Sob a definição

bourdieana de violência simbólica dissertaremos sobre a forma como tais

personagens são, na novela, vitimadas pelos homens.


52

Medeiros e Zimmermann (2014) observam que no emprego histórico da

palavra violência, o substantivo é derivado da palavra vis, que tem por

definição a força exercida contra alguém. Usada no plural, vis vem a nomear os

órgãos sexuais masculinos e também as forças militares. Tais verbetes criam um

conjunto de significados relacionados entre si, formando um campo de sentido

que se resume no uso da força contra a liberdade.

Vasconcellos (2002), em seus estudos sobre o sociólogo Pierre Bourdieu,

aponta que o francês tentou desvendar, por meio do conceito de violência

simbólica, o mecanismo que faz com que os indivíduos vejam como “natural” as

representações ou as ideias sociais dominantes. Nas palavras de Bourdieu:


[...] sempre vi na dominação masculina, e no modo como é
imposta e vivenciada, o exemplo por excelência desta
submissão paradoxal, resultante [...] de violência simbólica,
violência suave, insensível, invisível a suas próprias vítimas,
que se exerce essencialmente pelas vias puramente simbólicas
da comunicação e do conhecimento, ou, mais precisamente, do
desconhecimento, do reconhecimento ou, em última instância,
do sentimento [...] (BOURDIEU, 2002, p. 5-6).

As personagens de Alciene são descritas como mulheres comuns, que

apesar de uma ou outra queixa, não parecem perceber que são vítimas de

violência, já que parecem não considerarem possíveis quaisquer mudanças,

tampouco exigem direitos. Agem como se não houvesse outra forma de agir.

Eis o referente ao qual o universo ficcional se refere:

A sexualidade feminina é prisioneira, portanto, dos estreitos


limites sociais em que se desenrola a vida da mulher. A
sociedade fragmenta o indivíduo tanto por causa do modo em
que as condições materiais de existência são produzidas e
reproduzidas (separação do produtor dos meios de produção;
atividade econômica orientada pela busca do lucro e não pela
satisfação das necessidades do homem), quanto pela divisão
sexual das atividades e da vida social de modo geral. A esfera
pública – o mundo do trabalho, da política, do poder e da
autoridade – é essencialmente masculina, enquanto que a
“realização pessoal” da mulher encontra-se comprometida
com o espaço em que se situa a esfera privada (a casa, o lar). E
53

se a dicotomia público/privado é vivenciada pelo homem de


maneira a privilegiar a “realização” no trabalho (no público) e,
secundariamente no privado (lar-mulher-e-filhos sendo
sinônimos de “repouso e refúgio do guerreiro”) a mulher
recebe a esfera privada como locus apropriado para a história de
sua vida (MORAES, 1975, p. 70, negritos nossos).

Parece que tudo conspira para a manutenção do silêncio e para o

silenciamento da mulher e do feminino. Sob dogmas passados pela Igreja, pelas

mães e mães de suas mães, e uma para as outras, ou pelo sistema político ou

pela ordem econômica vigentes, cujo grande “mantenedor” é o homem, essas

mulheres simplesmente parecem aceitar seu destino.


54

3.2 As personagens femininas

Neste tópico, apresentamos, quase que em formato de verbetes, com

abonações, as personagens femininas da novela Filho de pinguço, enfatizando a

violência simbólica e a estrutura subliminar, social, familiar e psicológica, que as

constrange, e o grito libertador que pulsa em cada uma, que lateja se

manifestando de algum modo nas entrelinhas do narrado, pela focalização

aderente do narrador ao drama feminino ou por outras estratégias narrativas.


55

3.2.1. A “mãe”

A personagem mãe tem voz ― na verdade, resmungos. É por meio deles

que demonstra em alguns momentos sua inquietação, talvez uma indignação,

diante do que sofre, e por algumas vezes chegou a empurrar o marido, mas por

medo ou desconhecimento, acaba por empurrar a vida. A televisão, diversão

que tenta garantir, é seu único consolo, já que aqui vemos tal objeto não como

um fim, mas remédio da situação que vive.

Já no início da obra a vemos reclamar do domingo como sendo o dia no

qual mais trabalha. Trabalho que não é reconhecido nem mesmo pelo filho:

[...]
― Mas hoje é domingo, mãe, ninguém trabalha.
― Ninguém, só a bobona aqui.
― Fazer comida não é trabalho, mãe!
― Ah, até você, muito bonito, seu pai está fazendo
escola. Não vejo a hora de acabar este domingo – suspira.
―A senhora não gosta de domingo?
― E dá para gostar? É o pior dia da semana para mãe de
família. Vá cuidar do seu para-casa, vá, com tanto feriado você
tinha de deixar para a última hora! ― reclama (p.7).

Moraes (1975) lembra que, se em períodos passados a unidade doméstica

constituía a célula produtiva das sociedades, a separação histórica entre lar e

local de trabalho processou-se concomitantemente às transformações no

processo de produção, levando à perda de importância do papel econômico da

família; se, por um lado, a produção fora de casa tornou-se sinônimo de

trabalho, as atividades realizadas no lar passaram a não ter valor, uma vez que

foram então consideradas como prolongamentos naturais das características

específicas (biológicas) do sexo feminino.

Para a autora, o trabalho doméstico perdeu toda a aparência de atividade

produtiva, pois é realizado fora do processo capitalista de produção e


56

circulação de mercadorias; entretanto, as tarefas no lar também absorvem

tempo e dispêndio de energia, apesar de estarem mistificadas sob a capa do

“natural”, da “vocação” feminina, da contrapartida conjugal ao pão

conquistado pelo homem no mercado.

A “mãe” mesmo reconhecendo que não vive um bom casamento e

considerando o marido um “traste”, diz não o abandonar por temer pelos

filhos, quando, na verdade, enfatiza que não o faz por ter um nome a zelar, o

que é corroborado pela irmã. Mais vale aguentar a situação a ser uma mulher

“largada”, na “boca do povo”:


[...]
― Inferno é o meu, que tenho um nome a zelar, os
meninos; não fosse, largava o traste ― mãe.
― Cruz-credo, irmã, mulher largada cai na boca do
povo ― tia Marlene [...] (p.13).

Mesmo bêbado, sem tomar banho, o marido reclama seus direitos de

“esposo”, enfatizando que se o faz, faz sob reconhecimento jurídico e religioso

sobre a posse da “mulher”, de seu corpo, de seu “sexo”:


― Vem cá, senta aqui ― puxa a mãe pelo braço, malícia
no rosto.
― A panela vai queimar ― esquiva-se, desgostosa.
― Deixa queimar, uai! ― o pai, autoritário.
― A janta, bem! Agora não posso sentar não ― a mãe
tenta conciliar, medrosa.
― Ora a janta, mulher! Quem quer saber de janta agora,
hem? Vem cá, só falta aqui é mulher, escuta só: Brahma, futebol
e mulher, a paixão do brasileiro macho, da gema ― ele diz,
achando-se muito espirituoso (p. 19-20).

O desejo do homem é justificável. Se ele exige a atenção da mulher

também para a relação sexual é porque é esperado que seja assim, posto que

todo homem brasileiro tem por direito sua bebida, seu esporte e sua mulher.

Pierre Bourdieu (2002) afirma que o princípio da inferioridade e da

exclusão da mulher é o princípio de divisão de todo o universo, e é tal princípio

que estabelece a dissimetria fundamental, ou seja, a do sujeito e do objeto, do


57

agente e do instrumento, instaurada entre homem e mulher no terreno das

trocas simbólicas, das relações de produção e reprodução do capital simbólico,

cujo dispositivo principal é o mercado matrimonial.

A “mãe” não tem interesse na continuação daquele diálogo, tenta se

esquivar, mas é repreendida, tal a um empregado pelo seu patrão, quando na

falta de uma tarefa executada. O marido, aqui na condição de sujeito, reclama

seus direitos sobre o objeto que lhe pertence:


[...]
― E daí, deixo o feijão queimar e depois, o quê que eu
dou para seus filhos comer? Cerveja por acaso? Cerveja? Ah,
me larga, que coisa, nem tomou banho, escovou dente.
― Está importante a madame, cheia de pose hem? Mas
tem obrigação comigo, que diabo. Sou seu marido na igreja e
no cartório. E comigo é na hora do pinicão. Sustento você para
quê, hem, para quê? Para bater perna na rua, maldizer da vida
alheia? Uma bisca sem serventia, só isso que você é, uma bisca.
Largo tudo ainda, vai ver, desapareço assim ó – tenta estalar os
dedos desgovernados, em vão. Fica o gesto como aviso, e
reforça: ― E pode escrever, todo bicho vai relevar, estou
coberto de razão.
― Já vai tarde ― a mãe fala baixo.
― Aí, resmungar é com você mesmo, em resmungo tira
de letra, acorda e dorme reclamando, agora, assistência para o
marido é neca, uma bela merda, caprichada e fedida (p.20,
negritos nossos).

As reclamações do marido são para ele justificadas pela justiça dos

homens e da igreja. A mãe, por outro lado, percebe que não é reconhecida, já

que é somente uma trabalhadora do lar, é uma escrava, pois que não tem dia

para descanso, mas não diz isso ao marido.

Já Foucault (1987) afirma que o corpo também está diretamente

mergulhado num campo político ─ as relações de poder têm alcance imediato

sobre o corpo na intimidade; elas o investem, o marcam, o dirigem, o supliciam,

sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a cerimônias, exigem-lhe sinais:


[...]. Este investimento político do corpo está ligado, segundo
relações complexas e recíprocas, à sua utilização econômica; é,
numa boa proporção, como força de produção que o corpo é
58

investido por relações de poder e de dominação; mas em


compensação sua constituição como força de trabalho só é
possível se ele está preso num sistema de sujeição (onde a
necessidade é também um instrumento político
cuidadosamente organizado, calculado e utilizado); o corpo só
se torna força útil se é ao mesmo tempo corpo produtivo e
corpo submisso. Essa sujeição não é obtida só pelos
instrumentos da violência ou da ideologia; pode muito bem ser
direta, física, usar a força contra a força, agir sobre elementos
materiais sem, no entanto, ser violenta; pode ser calculada,
organizada, tecnicamente pensada, pode ser sutil, não fazer uso
de armas nem do terror, e no entanto continuar a ser de ordem
física [...] (FOUCAULT, 1987, p.29).

Ao descrever o domínio das instituições sobre o corpo, assujeitando o

sujeito, Foucault descreve a violência física como um instrumento de

dominação e um agir que, sendo “sutil”, estabelece um domínio que também é

físico, por colocar o corpo alheio sob domínio da ordem, do status quo ─ é assim

que age a violência simbólica, descrita por Bourdieu: envolta pela ideologia

dominante, o sujeito se assujeita a uma ordem que lhe explora, esmaga,

espezinha.

Eis uma das situações da novela em que tal conjunto de drama e dor se

revela:

A mãe coou o café, olhos inchados de choro e sono,


nenhuma palavra, pés arrastando o cansaço de muitos
domingos.
― O quê que é a merenda, mãe? ― pergunta quando ela
lhe passa a lancheira [...] (p. 25).

Cada personagem, imerso em seu mundo, desconhece a dor alheia.

A opinião da mãe também é desprezada pelo marido, quando o filho se

envolve em uma briga, posto que certo é que o menino defenda a “macheza” da

espécie. A ela cabe chorar:


[...]
Aquela exaltação toda do pai contou: ele passou no Seu
João, mas não para acerto dos vales. A mãe conteve mal e mal
um soluço e o menino se preparou para receber mais cobrança.
59

― Vem cá, mulher, que bobagem é essa? – puxa a mãe


pelo braço. Seu filho está virando home, escuta só, trata de
acostumar, você não viu nada ainda – termina debochado. [...]
(p. 40).

E continua:
[...]
― Você tem é de orientar, dar exemplo, e fica falando
assim, mandando o filho ser marginal ― a mãe soluça alto.
― Que marginal, mulher! Está com titica na cabeça?
Moleque que não apanha na rua não vira gente.
― Ele está todo machucado, não viu não? ― alisa o
menino. ― Eu não entendo você, nem parece pai ― abraça-se
ao filho, esconde o rosto, os ombros trementes de pranto [...]
(p.40).

Ao criticar o marido, recebe mais repreensão:

― Depois de tudo eu não posso o consolo de um


traguinho? Você nem imagina o que passei hoje e me recebe
com essa ladainha, inferno!
― Eu aqui pelejando sozinha, o filho cheio de pancada,
que castigo é este, não mereço esta vida ― a mãe nem ouve.
―Cala a matraca, mulher, poxa, você me enerva, droga,
uma coisa à-toa e parece dilúvio, o mundo não acabou não! [...]
(p.43).

E como para uma espécie de vingança, acaba por desabafar:

[...]
― Minha burrice, né? Agora eu sou a ruim, mas a burra
aqui não faz filho brigar na rua, sabe por que ele brigou, hem?
Sabe? ― ela aponta o dedo na cara do pai e desanda num choro
esquisito.
Não é choro alto nem calado, mais parece suspiro,
gemido, como se alguma coisa tapasse a garganta, segurasse a
fala. O menino não conhece este choro, um modo novo da mãe
sofrer, porque ela está sofrendo demais, está [...] (p. 43).

A mãe, sacudida da prostração, puxou o filho de lado.


Abraçados, o tremor de um se prolongou no outro, quase
derrubando-os. O pai desmorona no sofá e olha o vácuo, olhos
de peixe morto, alheio. Os dois mal respiram, tensos (p. 44, 47).
60

A mãe não está satisfeita com a vida que leva, mas com o intuito de

preservar a cria e o próprio nome, aceita a violência imposta pelo marido, para

além do desejo de liberdade. Com exceção de alguns resmungos, a vida segue

sua normalidade, ainda que tenha medo e indignação. Cabe ao narrador, por

suas estratégias narrativas, pela escolha lexical, pelas opções textuais, pelos

significados discursivos construídos, pelos efeitos de sentido gerados pela

arquitetura da novela, indiciar o suspiro pela liberdade e a crítica à opressão.


61

3.2.2. Tias Marlene e Marina

Essas são as irmãs da “mãe” que aparecem no domingo com a filharada.

Para o menino, com a chegada das tias recomeçaria a “lenga-lenga” de

reclamações por parte dessas e também da mãe sobre o pai.

Apesar de receberem nomes próprios, ao contrário da personagem

“mãe”, percebemos que os nomes Marlene e Marina se iniciam pela partícula

“mar”, que lembra “mér” em francês e que significa mãe. Ambas são mães e

mulheres.

Tia Marlene tem marido mulherengo e tia Marina, um que não trabalha.

Elas e a irmã (“mãe”) tentam defender, cada uma delas, como sendo “sua” a

desgraça maior ─ a desgraça está no cônjuge, não é do sistema, não é da

concepção civilizatória que ordena a sociedade. Elas têm consciência da

opressão e de seu agente mais próximo, falta-lhes a compreensão de que são

todos, agentes e pacientes, submetidos a uma ordem maior que simbolicamente

os coagem.

Para tia Marlene, a “mãe” do menino está melhor do que ela com um

marido “beberrão”, melhor do que ela que tem um mulherengo.

Para tia Marina, seu sofrimento é ter o marido em casa à toa, sem

trabalho.

Percebemos que para o menino, porém, que tudo observa, a tia reclama à

toa, pois que o tio Wolninho, apesar de não trabalhar, cuida das crianças e ajuda

na cozinha, sobrando, assim, tempo para a tia fofocar com a vizinha. Para o

menino, o trabalho executado dentro de casa pelo tio, ainda que este não

trabalhe, é considerado uma ajuda, e não uma obrigação, já que se trata de

serviço designado às mulheres.


62

O que as irmãs concordam é que pior seria ficar sem marido, pois que

sem eles, seriam “mulheres largadas”. Eis o discurso que referenda a violência

simbólica que as constrange e dá forma ao que pensam.

Há um discurso conformado em tia Marina que acredita que, com a

morte do cunhado beberrão, a irmã teria sua liberdade, era o caso apenas de ter

paciência:
― Paciência, um belo dia ele morre de cirrose, e sem um
dedo de culpa sua; nem diante de Deus, nem diante dos
meninos ― tia Marina sentencia (p. 14).

As tias são a representação da violência silenciosa e esta é para elas mais

que justificada. A justificativa está na voz social que ecoa o modo de dominação

construído pelas instituições, da religião à justiça, passando pela voz popular

como se fosse a voz de Deus.

Para Bourdieu (2002), a própria ordem social funciona como uma imensa

máquina simbólica, que tende a ratificar a dominação masculina sobre a qual se

alicerça, e que tem distribuição bastante estrita das atividades atribuídas a cada

um dos sexos: reserva-se o mercado público aos homens e a casa, o domus, a

vida restrita, às mulheres.

Para essas mulheres, a liberdade não é maior do que o medo da solidão

ou da maledicência. Parecem seguir a vida, sem muito questioná-la, e esperam

passivas pela morte, único meio capaz de arrebentar os grilhões que as

prendem a maridos inúteis aos quais desprezam.

Mas, na novela de Alciene Ribeiro, assim como em suas outras obras, há

sempre um suspiro de liberdade pelo qual a mulher pode escapar, pela qual seu

narrador feminino, como um deus onisciente de saias e salto alto, representa a

dor como denúncia, pela qual a violência simbólica e a violência física podem ser

suplantadas, contornadas, uma vez que não podem ser elididas, pois o mundo

encenado tem um referente que não homologa, no momento, mais do que a


63

esperança. E há esperança, como há um doce na vitrine que será degustado na

última linha da narrativa.


64

3.2.3. Prima Sílvia

Essa é o desejo do primo, o “menino”. Na paquera com ela, afirma que a

prima “é receptiva, claro”.

Como o menino vê a prima, é possível descrever, inferir, divergir do

estatuído socialmente ou fica bem claro que ele já a coisifica também?

O pai também aponta a sobrinha da esposa como “objeto” de desejo:


― Ah, entendi tudo, aquela prima dele está crescidinha, ele
tem chamego pela bichinha. Você pensa que não vejo? É da
idade, escuta só, ele é gamado nela. O moleque decerto sentiu
pinicão e não ganhou o remédio ― o pai cai na gargalhada (p.
19).

Prima Sílvia ainda é jovem, mas já é objetificada, coisificada, vista como

objeto da dominação masculina. Para a figura masculina, tanto do ponto de

vista do pai, quanto do menino, ela é tentação, e, portanto, objeto de desejo e

malícia. Como o pinguço é retratado de modo derrisório, por seus gestos, por

suas palavras, pela embriaguez, pelo equilíbrio físico precário e moralmente

deplorável, seu desejo quase incestuoso, sua fala exaltadora do desejo

masculino sem freios e sem respeito ao desejo ou ao não-desejo feminino, eleva

por antítese aqueles a quem agride.

Nesse diapasão, Prima Sílvia, personagem evocada e passiva, ganha

foros de agredida e desperta sentimento compassivo por oposição ao bêbado

que a descreve.
65

3.2.4. Tia Luiza (a professora)

Tia Luíza é professora tendo, portanto, estudado mais que as outras

personagens. Ainda que sofra violência, pelo referido histórico de ser mulher, e

pela razão de “abandonar” o lar, filhos ou marido, para trabalhar, isso não fica

evidente na narrativa.

Sua importância profissional não deve ser esquecida, já que se sabe pela

história da educação que foram as mulheres as primeiras educadoras de nossas

crianças.

Almeida (2004) observa que a possibilidade de profissionalização

feminina por meio do magistério primário foi uma forma das mulheres

vislumbrarem a oportunidade de sustento sem a obrigação do casamento nem a

humilhação de ter de viver da caridade alheia, marital. Durante o século

XX, no Brasil, o plano educacional significou oportunidades educacionais para

moças e meninas, proporcionando às mulheres, notadamente de classe média, a

principal oportunidade de ingressar no mercado de trabalho.

Argumenta a autora:
A possibilidade de aliar ao trabalho doméstico e à maternidade,
uma profissão revestida de dignidade e prestígio social fez que
ser professora se tornasse extremamente popular entre as
jovens. Se, a princípio, temia-se a mulher instruída, agora tal
instrução passava a ser desejável, desde que regulamentada e
dirigida no sentido de não oferecer riscos sociais (ALMEIDA,
2004, p. 11).

Para Hashimoto e Simões (2012), desde as primeiras décadas do século

XX tornou-se visível a presença feminina em distintos segmentos do mercado

de trabalho, participação crescente entre 1920 e 1980, em meio ao processo de

urbanização e industrialização da sociedade brasileira. O trabalho era

importante não apenas como complemento da renda familiar, mas também por

suas consequências sociais, tais como: transformações nas expectativas de


66

realização pessoal e profissional, independência financeira, e alterações

familiares entre a mãe e os filhos, por exemplo.

Tia Luíza não está mais dentro de casa, e na sala de aula, onde exerce sua

autoridade sobre os alunos, mostra-se dotada de força, capacidade e

sensibilidade:
― Toda bebida que contém álcool é uma bebida alcoólica.
Atenção aqui, todo mundo, não é só ele não ― bate na mesa. ―
A palavra se explica, bebida alcoólica, contém álcool. ― Escreve
no quadro: álcool / alcoólica. ― Cerveja tem álcool, hem tia? ―
um gaiato perguntou lá atrás. ― Tem... cerveja tem álcool... ―
olhou de soslaio para o menino, caiu em si. ― Vamos ao ponto,
quem não entendeu a fotossíntese? ― Voltou-se cúmplice para
ele: ― Qualquer dúvida me procure depois da aula, viu? (p.
15).

Com posição firme sobre os alunos, ao perceber que a dúvida surgida

tinha o propósito de constranger um deles, como uma figura materna, Tia Luíza

demonstra compaixão para com o aluno agredido e esclarece que poderia

ajudá-lo a sanar dúvidas também em outro momento, longe das chacotas dos

colegas.

A compaixão, com o sentido de se colocar no lugar do outro, como o faz

a professora, também a liberta da rede de violência simbólica de outras

personagens femininas. Na dor do outro, numa espécie de catarse, ela sai da

posição de vítima e se torna autora da sua história.


67

3.3 Ouço vozes?

Apesar das personagens femininas em Filho de pinguço se sujeitarem à

violência simbólica, o narrador impõe elementos discursivos que indiciam um

suspiro de liberdade, ainda que não concretizado. Seja pela fala da mãe quando,

sob resmungos, fala da vontade de ganhar o mundo, ou pela condição da

professora, Tia Luiza, que, sendo professora e tendo estudado, já se encontra no

mercado do trabalho, essas mulheres procedem de modo diferente, tanto na

narrativa quanto da história do século XX, na busca de oportunidades, de

direitos e de liberdade.

Na obra, percebemos que a mãe, na obrigação de guardar a cria, acaba

por aceitar sua condição e fica ao lado daquele marido que a faz infeliz, mas o

faz ensaiando queixas:


― Inferno é o meu, que tenho um nome a zelar, os meninos;
não fosse, largava o traste ― mãe (p. 13).

Também em outras obras da escritora encontramos mulheres que

reclamam de suas condições segregadas e que esperam a liberdade, como a

personagem mãe de Nos beirais da memória (1989):


Mãe entregue, renega a dona de briga pelo acreditado nos
contrastes de ser. Parada nos olhos, não é a mãe que eu
conheço, ciosa de teoria decorada defendida na raça e na língua.
O nervoso da mãe, rotina, até diverte.
― Faço jornada dupla, dois expedientes ― até três, e nada
ganho por isso. O Governo tem de pagar salário para dona de
casa, onde já se viu, exploram minha força de trabalho.
Essas ideias, mãe tira dos papeis, livros e revistas que o Tio
Zil traz todo fim de semana.
[...] Ela confirma minha certeza em ditos de que o pai nada
entende, é um alienado, insensível à luta de classes (p. 9).

― Ah Deus, para que que servem as benditas aulas de Moral


e Cívica, os famigerados Estudos de Problemas Brasileiros?
Dona de Casa faz jus a salário, ela dá condições de trabalho a
terceiros, ajuda na organização social. Não aparece, mas ai do
68

país se entrássemos em greve, por exemplo, aí sim, dariam


valor ao suor derramado no rabo do fogão (p. 13).

A personagem conhece seus direitos e tem a admiração por parte do


filho:

― Boa essa ― mãe riu. ― Mãe de família é a cinta que dá


forma harmoniosa à sociedade. Não é a roupa do Presidente
que eu lavo, mas lavo a de um trabalhador, peça importante ao
todo orgânico.
― Oba! ― Neném aplaudiu. ― Vai falar bonito assim lá nas
profundas, igual professora! (p. 13).

Alciene, no conto “Alforria para as hortênsias” (1987) apresenta esse

suspiro de liberdade vindo de uma dona de casa, viúva, que se diz “a primeira

mãe alforriada por tempo de serviço”, mas que, em pleno Dia das Mães, tem a

alforria quebrada e se vê fazendo café enquanto os filhos e netos estão

entregues à televisão:
Muitas rodadas de café depois, do alto da revolta
amordaçada, diz, chega. Mas no quarto, reduto do seu fortim
depredado, a trégua cheira amoníaco. O aviso de parada
proibida no círculo molhado da colcha nova. De sentinela o riso
do pequeno anarquista, tão recém-nascido e já no exercício do
cinismo.
Cata as sobras do domingo, dia das mães, e espera, torcendo
o avental, que se deem ao respeito (p. 6).

Já no conto “Ave Maria das Graças Santos” (1984), o narrador assume o

discurso indignado contra o feminicídio, cometido em close narrativo de

violência que chega ao asco, e iguala assassino e assassinato aos que não se

indignam e reagem ao narrado, e à sociedade, cúmplice do machismo que vê

sua intangível honra na liberdade do corpo feminino.

Algumas personagens femininas, cientes de seus direitos, almejam a

liberdade e suspiram, mas ainda estão longes de quebrar a clausura imposta

pelos desejos de uma sociedade patriarcal.


― A panela vai queimar ― esquiva-se, desgostosa.
― Deixa queimar, uai! ― o pai, autoritário.
69

― A janta, bem! agora não posso sentar não― a mãe


tenta conciliar, medrosa (p.19).
70

3.4 Para além da desilusão

Para além da desilusão, poderia uma obra como a novela Filho de

pinguço, de Alciene Ribeiro, ser direcionada a crianças ou adolescentes, se corre

o risco de pouco acrescentar a vidas já sem esperança? Tal desesperança,

subentendida como fecho melancólico do livro, ainda que matizada pelo doce a

que a personagem-criança terá acesso, pode contribuir para uma leitura

formadora de crianças, adolescentes e jovens? Como faria isso?

Ou seja, do mundo circular de humilhação e medo, do pai que, em casa,

está alcoolizado e que da rua chega embriagado, o que pode ser esperança, o

que pode ser consciência transformadora? Como o texto pode ser lido por

crianças ou adolescentes que tomam conhecimento do problema ou vivenciam

pela ficção um problema doméstico, e ir além do drama insolúvel?

Laura Degaspare Monte Mascaro (2011) afirma que a literatura pode ter

o papel de veicular discursos que legitimam e fazem compreender as ideias dos

homens e dos povos que os proferem. A literatura é capaz de trazer a surpresa e

a inovação que carregam todos os homens enquanto seres únicos e originais. A

literatura também vem a serviço de pessoas isoladas do convívio social, ou das

esferas políticas oficiais, correndo por fora e acima, disseminando discursos:


A literatura nos devolve um olhar originário para o mundo,
possibilitando que nos deparemos com a questão da identidade
e de nossa relação com o outro de forma mais autêntica,
escapando à impessoalidade e à medianidade, porque
descobrimos um olhar para o mundo que não ambiciona
dominá-lo, ou ao outro (MASCARO, 2011, p. 203).

A leitura de Filho de pinguço, para além da desilusão, representa o papel

da literatura como a garantia de direito humano, como meio de garantir o olhar

crítico sobre o outro para conhecimento e reflexão. Para além do doce que

finalmente terá em mãos, e que representa um objeto de desejo acalentado pela

criança desde a primeira vez que vai ao bar, o modo caricato do pai descrito
71

pelo narrador é derrisório, e pelo riso literário, em lição subliminar, o leitor

descarta tal modo de ser, pois o vê como indigno de ser seguido. Eis a

construção da narrativa, pelas escolhas que faz, construindo efeito de sentido

cujo significado, entre a adesão à criança e às mulheres e a rejeição ao pai

pinguço, forja visão de mundo compatível com o processo formador da criança a

ser realçada em sala de aula.


No final, há um suspiro
73

Ainda que, em Filho de pinguço, a personagem central seja um menino,

sobretudo pela evidência do título, e ainda que estejam ao fundo da cena, sob a

aparente capa de personagens secundárias, são as personagens femininas que

mereceram nossa atenção e estudo neste trabalho. A atuação das personagens

femininas se destaca no drama encenado na narrativa de Alciene Ribeiro. Para

descrever a novela, tivemos contato com a fortuna crítica de sua obra, fortuna

ainda incipiente, e nos debruçamos sobre os poucos dados biográficos

disponíveis. Aduzimos a essas informações uma pequena entrevista que

realizamos com a escritora (ver Apêndice), depois de concluída nossa análise, e

as declarações que colhemos da escritora homologam conclusões a que

chegamos com o nosso estudo. O conceito teórico central de que nos valemos

para o estudo da atuação das personagens foi o de violência simbólica, proposto

por Pierre Bordieu (2002).

Abrimos este trabalho de conclusão de curso com epígrafe disponível no

Acervo Alciene Ribeiro, que se encontra no Programa de Pós-Graduação em


74

Letras Mestrado e Doutorado da UFMS do Campus de Três Lagoas. No livro

Orelhas de aluguel, o escritor, acadêmico, filólogo e professor universitário

Deonísio da Silva, em dedicatória manuscrita no livro Orelhas de aluguel que

enviou a Alciene, anotou:

Para Alciene, bonita, erótica, e tão


boa escritora como Santa Teresa d´Ávila,
com afagos do fã de vocês duas e seu
leitor.

Deonísio da Silva
setembro/1988

A escritora de contos de cunho erótico não comparece à novela Filho de

pinguço. Quanto aos predicados físicos, Alciene faz comentário singelo e auto

irônico (ver Apêndice). No essencial, comentou que tal dedicatória serviu para

lhe “lamber o ego”. E a qualidade da escritora, incensada por Deonísio, o

estudo da novela nos demonstra e realça. Filho de pinguço, como as demais

narrativas de Alciene Ribeiro, trata de problemas candentes, normalmente

transformados em dramalhões na mão de escritores menos talentosos,

formatando narrativa pungente, sóbria, delicada, capaz de ser lida por

adolescentes do final do ensino básico a empedernidos universitários com igual

deleite e proveito.

A obra de Alciene Ribeiro se erige como eco da voz plural da mulher

brasileira do final do século XX, como choro, como ranger de dentes, como

drama e dor, mas também como registro da luta e das conquistas que surgem

do suspiro das mulheres no recesso do lar ou no selvagem mercado de trabalho,

da conquista diária e permanente, pois Alciene Ribeiro encena em sua obra o

suspiro da liberdade da mulher brasileira de seu tempo.

Apesar de lançada no final do século passado, em 1983, a obra apresenta

temáticas atuais e relevantes para a sociedade, como o problema do alcoolismo,

que atinge milhares de famílias brasileiras, e a condição feminina. No primeiro


75

capítulo, a partir de estudos amplos sobre a mulher, fizemos um breve

apanhado histórico sobre a trajetória da condição feminina no Brasil até o

século XX, salientando as condicionantes sociais, culturais, históricas e

institucionais herdadas pelas mulheres da atualidade.

As mulheres são, em sua maioria e desde sempre na sociedade brasileira,

segregadas pelos afazeres domésticos, a rotina familiar, o cuidado com os filhos

e a obediência aos desejos do marido; elas estão “presas” à televisão, mas

também, e principalmente, submetidas à violência simbólica, imposta ora pelo

companheiro, ora pelo filho, ora pela família, ora por certo difuso entorno

social, ora por outras mulheres. São vistas apenas pela função de organizadora

do lar e como objeto de desejo. Ainda que insatisfeitas, demonstrando isso aqui

ou ali e de modo mais evidente quando com outras mulheres, parecem preferir

aceitar os maus tratos de que são vítimas; no caso da mãe da novela, ela prefere

a verborreia do marido, sua bebedeira e a falta de dinheiro, a viver sozinha,

passando a ser uma “largada” diante da sociedade.

A violência na obra não é vivenciada apenas na pele, é, sobretudo,

silenciosa, embora sensorial, pois que há (maus) cheiros, espaço degradado e

gritos. A violência é principalmente contra a alma, já que a mulher tem suas

vontades e desejos desrespeitados: as mulheres da novela de Alciene são

vítimas constantes de maus tratos e desprezo por parte dos cônjuges. O

trabalho dentro de casa não é visto como uma função útil e, sob o império do

casamento, são obrigadas a servir ao marido, seja na mesa ou na cama.

A condição feminina retratada nas personagens secundárias de Filho de

pinguço surge em outras narrativas de Alciene como protagonista da cena.

Mencionamos, ao longo deste trabalho, o romance Nos beirais da memória e

alguns contos da escritora. Em cada uma dessas narrativas, seja no discurso das

personagens femininas, seja no modo de narrar imposto pelo narrador, seja na

focalização, seja na adesão do narrador à ótica da mulher, fica ressaltado o


76

sentimento de empatia do arquinarrador16 de Alciene Ribeiro com a superação

da condição feminina sob o jugo machista patriarcal.

As mulheres de hoje ― no referente histórico e social dos grandes

centros urbanos brasileiros ― ocupam funções importantes em grandes

empresas, já decidem quando e com quem querem ter filhos, assim como com

quem morar. Não se incomodam tanto com a condição de solteiras, ainda que

muitas ― a maioria ― aspirem ao casamento e, ainda que não sejam vistas com

bons olhos, já não esperam que suas decisões sejam engendradas por outras

pessoas.

Ainda assim sofrem preconceito, são mal remuneradas mesmo que nas

mesmas funções exercidas por homens, e são vistas como objetos de desejo, seja

pelos homens, seja pela sociedade. Ainda são inúmeras as propagandas

veiculadas pela mídia televisa ostentando mulheres em trajes minúsculos e com

o título de “causadoras do pecado”. Quando ofendidas, recebem

xingamentos não pelo que “fizeram” de errado, mas sempre com cunho sexual,

chamadas “vagabundas”, “piranhas” etc., ou pelas suas características físicas,

ditas “feias”, “horrorosas” ou “bregas”.

Sua competência ainda não vale mais que seu bom corte de cabelo, nem

mais que suas unhas bem-feitas e terninho impecável. E ainda são estupradas,

assassinadas em nome da honra, e castigadas em nome de Eva. Os números de

violência contra as mulheres são alarmantes e crescentes no Brasil e no mundo.

Para se ter ideia do problema, o serviço de denúncia LIGUE 180,

oferecido pela Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da

República, criado em 2005, e com o objetivo de receber denúncias de violência e

de orientar as mulheres sobre seus direitos, registrou em 2015 o equivalente a

749.024 atendimentos17.

16 Conceito de Ismael Cintra. Ler <http://seer.fclar.unesp.br/letras/article/view/322>.


17 Ver <http://www.spm.gov.br/noticias/ligue-180-registrou-749-024-atendimentos-em-2015>
77

A situação, porém, não é nova, e sequer se pode dizer que melhorou:

O critério de sexo tem sido fundamental para demarcar a


menos valia das mulheres traçando, ao longo dos séculos, um
caminho de menor titularidade. Se na Grécia Antiga as
mulheres e os escravos estavam excluídos dos direitos de
cidadania, era, entretanto, teoricamente possível ao escravo
alcançar a liberdade em virtude de feitos heroicos. Mas, para as
mulheres não havia possibilidade de superar sua condição de
sexo [...] (PITANGUY in BARSTED e PITANGUY, 2011, p.24).

Alciene Ribeiro, em sua obra, e na construção ficcional das personagens

femininas de Filho de pinguço, é a voz feminina falando por outras mulheres.

Conforme sua trajetória de vida e profissional, iniciada tardiamente, há de ter

percebido, ou algumas vezes vivenciado, pequenas lacunas na vida de muitas

mulheres.

Há um início da quebra da violência simbólica em algumas personagens da

novela. Umas já estudam, algumas já ensaiam as primeiras vozes de revolta,

mas ainda estão longe ― toda elas! ― da liberdade.


78

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2016.
83

Anexo
84

Pagu

(Rita Lee e Zelia Duncan)

Mexo, remexo na inquisição Uh! Uh!


Só quem já morreu na fogueira
Sabe o que é ser carvão Fama de porra louca
Uh! Uh! Uh! Uh! Tudo bem!
Minha mãe é Maria Ninguém
Eu sou pau pra toda obra Uh! Uh!
Deus dá asas à minha cobra
Hum! Hum! Hum! Hum! Não sou atriz
Modelo, dançarina
Minha força não é bruta Meu buraco é mais em cima...
Não sou freira,
Nem sou puta... Porque nem!
Toda feiticeira é corcunda
Porque nem! Nem!
Toda feiticeira é corcunda Toda brasileira é bunda
Nem! Meu peito não é de silicone
Toda brasileira é bunda Sou mais macho que muito homem...
Meu peito não é de silicone
Sou mais macho que muito homem... Nem!
Toda feiticeira é corcunda
Nem! Nem!
Toda feiticeira é corcunda Toda brasileira é bunda
Nem! Meu peito não é de silicone
Toda brasileira é bunda Sou mais macho que muito homem...(2x)
Meu peito não é de silicone
Sou mais macho que muito homem... Ratatá! Ratatatá
Hiii! Ratatá
Ratatá! Ratatá! Ratatá! Taratá! Taratá!
Taratá! Taratá!

Letra e áudio disponível em <


Sou rainha do meu tanque
http://www.vagalume.com.br/rita-
Sou Pagu indignada no palanque
lee/pagu.html >, acesso em 20 de março
Hanhan! Ah! Hanran!
de 2016.
85

A Banda

(Chico Buarque)

Estava à toa na vida A moça feia debruçou na janela

O meu amor me chamou Pensando que a banda tocava pra ela

Pra ver a banda passar

Cantando coisas de amor A marcha alegre se espalhou na avenida e

insistiu

A minha gente sofrida A lua cheia que vivia escondida surgiu

Despediu-se da dor Minha cidade toda se enfeitou

Pra ver a banda passar Pra ver a banda passar cantando coisas de amor

Cantando coisas de amor

Mas para meu desencanto

O homem sério que contava dinheiro parou O que era doce acabou

O faroleiro que contava vantagem parou Tudo tomou seu lugar

A namorada que contava as estrelas parou Depois que a banda passou

Para ver, ouvir e dar passagem

E cada qual no seu canto

A moça triste que vivia calada sorriu Em cada canto uma dor

A rosa triste que vivia fechada se abriu Depois da banda passar

E a meninada toda se assanhou Cantando coisas de amor

Pra ver a banda passar

Cantando coisas de amor

Letra e áudio disponível no site


O velho fraco se esqueceu do cansaço e pensou Vagalume, acesso em 20
de março de 2016.
Que ainda era moço pra sair no terraço e dançou
86

Apêndice
87

Entrevista concedida pela escritora Alciene Ribeiro, por telefone,


no dia 20 de março de 2016, a Juliana Cláudia Amorim.

Juliana - Como foi sua trajetória profissional?

Alciene – Sempre gostei de escrever, mas a vontade de escrever


profissionalmente veio quando já era casada. Não tinha muita
experiência, mas resolvi mostrar três contos para o escritor Luiz Vilela,
que me disse que dois eram perfeitamente publicáveis, mas que o
terceiro era horrível. Comecei a participar de pequenos concursos na
minha região, mas tudo foi muito difícil. O marido era sistemático e a
sociedade não via com bons olhos uma mulher, mãe de família, nessas
condições. Na tentativa de agradar ao marido resolvi usar o nome
Alciene Ribeiro Leite, com o sobrenome dele ao final, mas hoje, teria
feito diferente. Penso que, como marca, um nome mais curto seria
melhor. Já basta que meu nome é complicado, não é? (Risos)

Juliana – Filho de pinguço tem uma razão especial?

Alciene – Tive um irmão alcoólatra e acompanhei todo os problemas dele,


mas o enredo da história é ficcional.

Juliana – Existiu uma pesquisa específica para a escrita dessa obra?

Alciene – Não fiz uma pesquisa específica. Eu apenas estou observando a


vida o tempo todo e escrevo o que vem de dentro. Eu quis falar do
sofrimento de uma família com o problema.

Juliana – Percebemos que a temática da mulher é recorrente em sua obra. Por


quê?

Alciene – Eu vivi um pouco isso e com a vivência é fácil falar sobre o assunto.
Na obra, marido e mulher são frustrados. Ela está infeliz e não quer se
aproximar daquele homem bêbado, que nem toma banho. As mulheres
são às vezes muito tolhidas.
88

Juliana – Para a senhora, quais seriam as marcas das personagens femininas de


Filho de pinguço?

Alciene – As mulheres são infelizes e sem liberdade.

Juliana – A mãe, em Filho de pinguço, chora só com o olho: como seria esse
choro?

Alciene – Quando o choro é só com o olho, há sentimento. É a mãe cuidando


da cria. Quando o choro tem gritos, é sinal de revolta.

Juliana – A senhora chora só com o olho?

Alciene – Sim, Juliana (risos).

Juliana – Percebemos que há um intervalo em sua escrita ficcional. Quando a


senhora a retomou?

Alciene – Sempre estive disposta a me entrosar no mundo da escrita, sendo


uma das fundadoras da Associação de Escritores em Belo Horizonte, mas
tudo sempre foi muito difícil, principalmente para uma mulher. Meu
marido me acompanhava de certa forma, mas isso também me tolhia um
pouco. Depois vieram as tecnologias, a internet, e eu ainda não me sinto
à vontade. Não leio blogs nem nada, apenas tenho um e-mail.

Juliana – Quando e por qual razão começou a escrever obras espíritas?

Alciene – Coincidentemente, com a descoberta da doutrina espírita, achei que


precisava me recolher um pouco. Achei que deveria usar o meu dom de
escrever para falar a outras pessoas. Não escrevo obras mediúnicas, falo
sobre a doutrina. Tenho alguns romances e histórias infantis. Passo
noções de religiosidade. Muitas pessoas não entendem isso e meu
recolhimento serviu para diminuir o patrulhamento.

Juliana – Existe algum projeto em execução? Algum romance inédito?


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Alciene – Há, sim, Juliana. Um romance nascido após minha única conversa
com Chico Xavier. Um livro que reúne duas décadas de escrita e que
ficou longo demais, com muitas personagens. Penso que terei que o
dividir em dois volumes, e ainda terei que trabalhar bastante nele para
alguns ajustes que evitem dificuldade de compreensão.

Juliana – Gostaria que a senhora me falasse a respeito da dedicatória escrita por


Deonísio da Silva em setembro de 1988, epígrafe de meu trabalho.

Alciene – Ah, fiquei lisonjeada. Fui bonita realmente, não sou mais, mas
erótica? Não sei. Não sei, mas lambeu meu ego. Gostei muito.

Juliana – Meu trabalho versa sobre a representação feminina em Filho de


pinguço. O que senhora pensa sobre a condição das mulheres na
atualidade?

Alciene – Algumas mulheres ainda estão presas, sobretudo em relação ao


casamento. Eu penso que o homem e a mulher têm que entender que o
casamento demanda auxílio mútuo. Eu mesma casei com um homem
que era dez anos mais velho que eu e não sabia coar um café. Desconfio
que não me lia, mas começou algumas leituras. Não sou a favor de um
feminismo arraigado, mas, ao contrário do ditado que diz que atrás de
um grande homem sempre tem uma grande mulher, acredito que os dois
caminhem juntos, ao lado um do outro.
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Concluiu-se este trabalho em


21 de março de 2016, e a
versão definitiva em
abril de 2017.

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