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Por uma antropologia da homossexualidade em África: o caso de Cabo Verde1

Francisco Miguel (PPGAS-UnB/Brasil)

Resumo: Dada a carência de análises antropológicas em língua portuguesa sobre o tema


da homossexualidade em África, este paper – ainda em construção – pretende
apresentar aos lusófonos um breve panorama etnográfico, epistemológico e político
sobre a questão, para em seguida expor e dialogar os resultados de minha pesquisa
etnográfica junto ao movimento LGBT no arquipélago de Cabo Verde. Para tanto, farei
uso inevitavelmente de trechos de minha dissertação de mestrado já publicada.

Palavras-chave: Homossexualidade, África, Movimento LGBT

Introdução

Em minha dissertação de mestrado, intitulada “Levam má bô”:


(homo)sexualidades entre os Sampadjudus da Ilha de São Vicente de Cabo Verde
(MIGUEL, 2014), busquei em dado momento contextualizar brevemente o leitor de
língua portuguesa a respeito dos debates contemporâneos que envolvem a questão da
“homossexualidade” em países africanos. Sem – em hipótese alguma – querer esgotar
este complexo tema, pretendi além disso situar meu trabalho dentro de um campo mais
amplo de discussões, que tem como questão atual central o recrudescimento das leis
anti-homossexualidade em diversos países do continente. Por último, meu intuito ao
escrever uma seção que chamei de “„Homossexualidade‟ em África” era não apenas
apresentar um breve panorama das etnografias sobre o tema no continente e os atuais
debates em torno da criminalização de práticas homoeróticas e movimentos LGBT,
como qualificar meus usos de categorias analíticas tais como “homossexualidade”,
“homoerotismo” etc para tratar de sistemas culturais outros.

Desta forma, organizei este paper em duas seções. Na primeira, eu retomo as


discussões em torno da possibilidade de uso da categoria “homossexualidade” para dar

1
Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de
agosto de 2014, Natal/RN

1
conta, do ponto de vista da tradição antropológica, de contextos etnográficos tão
diversos, como os são em África. Além disso, retomo relatos etnográficos sobre
supostas “práticas homossexuais”, além dos registros historiográficos da Santa
Inquisição, para argumentar que se devemos estar bem atentos à atraente tese
essencialista do ser homossexual – desprendida, portanto, de tempo e espaço – tais
dados sobre homoerotismo no continente não podem ser simplesmente descartados, pois
contribuem para um poderoso argumento que desontologiza as teses exogênicas.2 Em
outras palavras, procurei um caminho que escapasse da dicotomia teórica entre
essencialistas versus construtivistas. Na segunda parte deste paper, busco sintetizar, em
linhas gerais, os resultados de minha pesquisa de campo em Cabo Verde e constatar
aproximações e afastamentos deste país dentro do cenário panafricano.

“Homossexualidade” como conceito antropológico em África ou alhures

Para escapar do aprisionamento epistemológico que a categoria “homossexual”


engendra, alguns autores como Kirkpatrick preferem, ao tratar amplamente da espécie
humana, falar em “homosexual behaviors” (2000, pp. 385-7). Tal expressão incluiria
uma série de práticas sexuais entre indivíduos do mesmo sexo biológico tais como a
masturbação, o sexo anal, oral etc. verificadas em diferentes sociedades humanas, e
virtualmente em todas (NEILL, 2009, p. 11). Esta perspectiva supostamente deslocaria
o conceito do eixo da identidade, muito relativo entre as culturas humanas, para o eixo
das práticas corporais empiricamente observáveis, acreditando assim ser esse um
critério objetivo que permitiria uma análise comparativa global.

No entanto, sabemos que as práticas corporais não carregam em si mesmas seus


significados e estes podem variar culturalmente. Esta é a razão pela qual a proposta
metodológica de Kirkpatrick ainda não é suficiente para a perspectiva propriamente
antropológica, interessada fundamentalmente na visão de mundo do outro. Aqui,
dramatiza-se um dilema central para a proposta do método comparativo do que
chamarei de uma “antropologia da (homo)sexualidade”, pois uma análise comparativa
global só poderá ser bem sucedida se levar em consideração que as percepções e os

2
“Teses exogênicas” (MIGUEL, 2014) é como chamo o conjunto de argumentos que afirmam que a
homossexualidade é uma prática ou uma identidade exógena ao continente africano, que só as teria
incorporado por uma influência ocidental após a colonização européia.

2
comportamentos corporais são relativos e podem variar de sociedade para sociedade.
Nesse sentido, é preciso estar atento ao acervo etnográfico que supõe tratar do domínio
da (homo)sexualidade, sem, contudo, descartá-lo a priori.

Assim, quando pesquisamos referências da literatura acadêmica sobre “práticas”


ou “comportamentos homossexuais” no continente africano, primeiramente
encontramos o artigo clássico do antropólogo inglês Evans-Pritchard sobre a “inversão
sexual” entre os Azande (EVANS-PRITCHARD E. E., 1970). Mas, se aprofundarmos a
pesquisa, descobrimos que, a princípio, haveria diversos relatos de “práticas
homossexuais” vindos de todo o continente.

Em “Enciclopédia da Homossexualidade”, organizada pelo historiador Wayne


R. Dynes e publicada em 1990, há em certo momento a afirmação do viajante Geoff
Puterbaugh de que “a pederastia foi virtualmente pandêmica no Norte da África durante
os períodos de dominação árabe e turca.” (PUTERBAUGH, 1990). E o mesmo autor
prossegue: “[O] Islam como um todo era tolerante com a pederastia, particularmente no
Norte da África”. Sem explicitar o que entende exatamente por “pederastia”, mas no
sentido de fornecer um exemplo, Puterbaugh tratará de um personagem da cultura
islâmica, o menino dançarino e cantor:

Algo universal no norte da África, durante o período pré-colonial, foi


o menino dançarino/cantor, amplamente preterido às mulheres em
bares e haréns suburbanos. A lógica cultural era proteger a castidade
das mulheres, que assumiriam o status de prostitutas, caso se
apresentassem desta forma. O resultado foi vários séculos de
performances eróticas desses rapazes, que eram os artistas preferidos
mesmo quando havia mulheres prostitutas disponíveis. E eles não se
continham em despertar a cobiça dos seus patrões. Um comerciante
norte africano poderia parar em um bar para uma xícara de chá e um
hookah, fornecido por um jovem rapaz, ouvir o canto, e depois
prosseguir para ter relações sexuais com o menino no local, antes de
retornar para sua loja (PUTERBAUGH, 1990:19, tradução minha).
O viajante, ou globe-trotter, como o autor mesmo se intitula, traz ainda outros
relatos de campo – inegavelmente impressionistas – de como a homossexualidade seria
encarada em países como Egito, Tunísia, Algeria e Marrocos. Mas para além desta
África islâmica do norte, Wayne R. Dynes compilou e publicou uma lista de artigos e
monografias sobre “homossexualidade” entre povos africanos subsaarianos, alcançando
mais de 500 citações (DYNES apud NEILL, 2009, p.53).

3
Outro pesquisador que se dedicou a compilar referências acerca do
homoerotismo em África foi James Neil, autor do livro “The Origins and Role of Same-
Sex Relations in Human Societies” (2011). Nesta obra, o autor dedica algumas páginas
para tratar dos “difusos costumes homossexuais entre os povos nativos africanos”
(2011:53). Entre as referências expostas, algumas nos reconduzem à obra de Dynes,
anteriormente citada. Reproduzirei nas páginas que seguem as referências sobre
“homossexualidade”, “sodomia” e “pederastia” encontradas nestas e em outras obras
que tratam do continente africano, para somente depois tecer algumas conclusões a
respeito delas.

A partir da leitura de “The Construction of Homosexuality” (1988) de


Greenberg, Neil (2011) sugere que a “homossexualidade” entre adolescentes parece ser
uma prática universal entre os povos africanos. Na Tanzânia, diz o autor, teria sido
relatado que

os meninos da tribo Nayakyusa deixavam a casa dos pais por volta dos
dez anos e iam viver com outros rapazes em um acampamento nos
arredores da vila principal, onde teriam relações sexuais com jovens
da mesma idade até que se casassem. Meninos pastores de Qemant e
Amhara, na Etiópia, desenvolveriam relações homossexuais com os
outros, o que inclui o sexo anal, até o momento em que se casam.
(NEIL, 2011:54, tradução minha)
Ainda de acordo com Neil (2009), antropólogos como De Becker (1969)
relataram que entre as tribos ubangi do Congo, “os homens consideravam as mulheres
como existindo essencialmente para a procriação e os adolescentes do sexo masculino
propriamente para o prazer” (NEIL, 2009:54). Por sua vez, sobre as tribos de língua
berbere da área do Oasis Siwan, no deserto da Líbia, pesquisadas por Ford & Beach
(1951), destaca Neil, “todos os homens buscam relações sexuais com os rapazes, com
os quais eles se envolvem em relações sexuais anais.” Esta atividade seria tão comum
que os homens que não praticam essas relações, segundo Neil, seriam considerados
como desviantes. Homens Siwan emprestariam seus filhos para os outros homens e eles
falariam sobre seus “casos amorosos” masculinos de forma tão aberta quanto eles
discutem o amor das mulheres (NEILL, 2009:54).

Além da tradição Azande, que possuiria o costume de “práticas homossexuais”


na formação de jovens guerreiros (EVANS-PRITCHARD, 1970), Neil (2009) cita
“relacionamentos homossexuais” hierárquicos entre homens adultos dominantes e
jovens, entre os numerosos povos tribais. Um exemplo seria o Fang, um grande grupo

4
tribal vivendo onde hoje se localiza Camarões, Guiné Equatorial e Gabão. A partir do
relato de Günter Tessmann (1913) sobre este grupo de língua Bantu, o antropólogo
Stephen Murray (1990) acrescenta que a homossexualidade era encarada como
“remédio para o bem-estar, que seria transmitido do passivo para o ativo no intercurso
sexual anal” (MURRAY, 1990:23).

Ao contrário das relações tipicamente patronais, em que homens mais velhos


penetram os mais jovens, Murray recupera o relato de um sujeito chamado Gustave
Hultsaert sobre os Nkundo do Congo e conclui que neste contexto: “o parceiro mais
jovem penetra o mais velho, [o que seria] um padrão oposto ao da hierarquia geracional
nas relações homossexuais” (MURRAY, 1990:23).

Contudo, em algumas culturas africanas, a homossexualidade também fora


majoritariamente alocada enquanto uma fase da vida, ainda que relações sexuais entre
algumas pessoas do mesmo sexo pudessem perdurar para todo sempre. Este seria o caso
dos Dahomey, relatado por Melville Herkovits (1937) e recuperado por Murray:

[quando] os jogos entre meninos e meninas são interrompidos, os


meninos não podem mais ter a companhia das meninas e o
direcionamento sexual encontra satisfação na amizade entre os
meninos do mesmo grupo. Um menino pode pegar o outro como se
este fora uma “mulher”, sendo chamada de galglo (HERKOVITS
apud MURRAY, 1990:23-4, tradução minha)
Agora, sem deixar claras as fontes, Murray (1990) afirma que entre os Fanti do
Gana e os Wolof do Senegal também há papéis de gênero invertidos entre homens e
mulheres. Novamente, sem explicitar as fontes, Murray afirma que em “relatórios
recentes”, na tribo Bangala do Congo, “a masturbação mútua e a sodomia eram muito
comuns e consideradas pelos nativos como práticas de pouca ou nenhuma vergonha”.
Murray complementa ainda que tais práticas se dariam quando pela visita de estranhos
em outras vilas ou durante o período de pescaria de campo, longe das mulheres
(MURRAY, 1990:23). De acordo com Neil, tal constatação já teria sido feita em 1909
por um sujeito chamado John Weeks, sem, contudo, dar maiores detalhes (NEIL,
2011:53).

De acordo com Murray (1990), a homossexualidade ainda seria comum entre os


jovens Hutu e Tutsi no antigo reino de Ruanda, especialmente entre os últimos, quando
treinados na corte. E de acordo com Neil, ela se daria entre os rapazes solteiros (NEIL,
2011:53). No reino próximo de Uganda, a perseguição do Rei Mwanga em 1886 ao

5
cristianismo é justificada por Murray pela rejeição cristã das investidas sexuais deste
rei, sem explicitar, contudo, quais seriam tais investidas (MURRAY, 1990:23)3.

Citando Greenberg (1988), Neil afirma que durante os períodos em que a


religião proíbe a “relação sexual heterossexual”, chefes Mossi, em Burkina Faso, teriam
relações “sexuais” com rapazes adolescentes. Murray também citará os Mossi,
afirmando que entre eles, “pajens eram escolhidos entre os meninos mais bonitos de
sete a quinze anos, que se vestiriam de mulher e teriam outros atributos femininos em
relação aos chefes” (MURRAY, 1990:22).

De acordo com “pesquisadores” não identificados por Neil, seria “comum aos
homens Hottentot [da África do Sul] entrarem em pactos de assistência mútua, que
frequentemente acabariam por evoluir para relações „sexuais‟” (NEIL, 2011:53). Sobre
os Thonga, também da África do Sul, Murray cita o antropólogo suíço Henry Junod
(1927), para criticar a oscilação do argumento deste autor em atribuir razões à
homossexualidade nativa ora pela falta de mulheres ora pelas preferências sexuais dos
indivíduos. Em trabalho mais recente sobre grupos correlatos, Marc Epprecht trata dos
ngotshana nas populações indígenas do Zimbabwe. Tratar-se-iam de “casamentos
pederásticos” datados do início do século XX (EPPRECHT, 1998).

Neil (2009) também tratará da “transgeneridade” em África, apesar de


novamente não trazer as fontes de suas informações. Segundo o autor, contudo,
indivíduos “transgêneros” também são comuns entre os vários povos tribais africanos,
onde muitas vezes desempenham papel de xamãs ou curandeiros. Entre os Kwayama de
Angola, os homens “transgêneros” serviriam como adivinhos e curandeiros, se
vestiriam de maneira feminina, fariam o trabalho das mulheres e tornar-se-iam esposas
auxiliares aos homens, que poderiam ter outras esposas do sexo feminino. O mugaw,
um poderoso líder religioso de Meru do Quênia, de acordo ainda com Neil, travestir-se-
ia, sendo geralmente “passivo sexual”. Por vezes, se casaria com um homem. Neil
afirmará que os adivinhos Zulu da África do Sul são geralmente mulheres, mas dez por
cento seriam homens travestidos, e que os membros de um culto de possessão espiritual
entre os Hausa no norte da Nigéria também se travestem e assumem o papel passivo na
relação “homossexual”. Além destes, o autor faz uma nota de rodapé, acrescentando:

3
Tal argumento, contudo, será desafiado por outros pesquisadores, como recuperarei mais tarde.

6
Entre as várias tribos em que papeis homossexuais ou trangêneros
foram relatados estão os Nandi do Quênia, os Dinka e Nuer do Sudão,
os Konso and Amhara da Etiópia, os Ottoro da Nubia, os Fanti de
Gana, os Ovimbundu de Angola, os Thonga do Zimbabwe, os Tanala
e Bara de Madagascar, os Wolof do Senegal e os Lango, Iteso, Gisu e
Sebei de Uganda, entre outros (NEIL, 2011:54)
Sobre as práticas homossexuais entre mulheres, as informações são mais
escassas. De acordo com Neil (2011), relações “lésbicas” também seriam comuns entre
os Nandi do Quênia, e praticamente universal entre as mulheres solteiras Akan de Gana,
por vezes, continuando depois do casamento. Também seria uma prática comum entre
os Nkundo do Congo e as adolescentes Dahomey do sexo feminino (NEIL, 2011:53).

Deste conjunto de relatos, extraio algumas conclusões. A primeira delas é a de


que se tratam de relatos, em sua maioria, dos fins do século XIX e início do século XX
e a respeito de povos indígenas do continente. São relatos, muitas das vezes, de
viajantes e cronistas não treinados na academia e muitas das vezes nos informam
percepções impressionistas como a de Puterbaugh, que em dado momento chama a
Algeria de um “strange country” (país estranho) ao notar a contradição entre o orgulho e
a rejeição deste país ao colonizador francês. Uma segunda observação é que dado o
período histórico e o gênero dos autores (todos homens), a homossexualidade era muitas
vezes relegada a notas de rodapé, não sendo tratadas como foco de suas pesquisas ou ao
menos com maior profundidade. Isso para nem dizer a eventual subnotificação da
“homossexualidade feminina”. Por último, ainda resta a dúvida: Afinal de contas, tratar-
se-iam nestes casos propriamente de “homossexualidade”?

Como já alertamos, apesar da variedade de supostos exemplos de


comportamentos “homossexuais” em povos indígenas africanos, sabemos que tais
práticas corporais não possuem um valor simbólico em si mesmas e podem variar de
função e significação sociais. Nesse sentido, coloco em cheque até que ponto ritos de
iniciação como dos Baruya da Nova Guiné, onde os meninos e jovens, em busca da
construção de suas masculinidades, se nutrem do sêmen através do contato oral com o
pênis dos iniciadores, podem ser tidos como práticas propriamente “homossexuais”, tal
como defende Godelier, ainda que estes não pratiquem a sodomia (GODELIER, 1998,
pp. 53-4). Ou para usarmos um exemplo já citado do próprio continente africano, a
percepção do intercurso anal entre homens Fang como fármaco para o bem-estar pode
ser enquadrada como “homossexualidade”? Em outras palavras, é-se possível classificar
o ritual de iniciação dos Baruya ou a medicação Fang dentro do marco tão

7
ocidentalmente compartimentado da sexualidade? Apenas o trabalho de campo seria
capaz de responder.

Minha maneira de escapar do etnocentrismo que correlaciona um conjunto de


determinadas práticas corporais a um conceito muito comprometido com a história
ocidental (tal qual “homossexualidade” ou suas correlatas) e, ao mesmo tempo, escapar
do relativismo estéril e da impossibilidade de uma análise comparativa, é tomá-la como
categoria nativa (como o é em muitos países africanos, entre eles Cabo Verde),
investigando suas significações êmicas e estabelecendo traduções possíveis. Algo que
possibilita não cometer equívoco parecido apontado por Kaoma, por exemplo, a respeito
do ruído gerado pela categoria “família” que propagada pelos conservadores cristãos
norte-americanos em “África”, possuiria lá significação distinta, “ubuntu” (KAOMA,
2009, p. 8).

Se, como vimos, a lista de práticas “homossexuais”, “homoeróticas”,


“pederásticas” e “sodomíticas” em África parece diversa, quando buscamos a literatura
urbana e contemporânea sobre tais assuntos neste continente, encontramos uma
insistente narrativa que advoga a tese de que a “homossexualidade” é uma prática
exógena à tradição africana, desconsiderando as supostas evidências do contrário
(MOTT, 2005; KAOMA, 2009). Isso vem sendo explicado, por um lado, pela recente e
forte influência que os ortodoxos cristãos norte-americanos têm exercido em África; e,
por outro lado, a ressonância desse discurso no continente se faria não por uma
“homofobia inata” do africano, mas pela associação simbólica entre
“homossexualidade” e uma crítica latente ao ocidente (KAOMA, 2009)4. Além dessas
explicações, há a evidência de existir em África diversas formas indígenas de significar
práticas que chamaríamos no Ocidente de “homossexuais” (O‟MARA, 2013;
TUSHABE, 2013).

Seguindo esta elaboração mais sofisticada da exogenia da identidade


homossexual em África (e não do homoerotismo em si), algumas pesquisadoras, que
poderia chamar de “construtivistas sociais” têm proposto um debate promissor, que
desestabiliza o arcabouço conceitual do Ocidente para lidar com a questão. Uma dessas
pesquisadoras é a ugandense Caroline Tushabe, que faz duras críticas aos movimentos

4
Há, porém, quem sugira que em algumas culturas africanas o forte apelo à descendência inviabiliza as
ideias de homossexualidade e homoparentalidade. Para o caso Yorubá, ver Oduwole, 2013.

8
LGBTs em África (TUSHABE, 2013). Segundo a autora, a militância LGBT em vários
países do continente segue erroneamente a estratégia de apostar nas identidades de seu
acrônimo, a partir do que seria o “paradigma do armário” (SEDGWICK apud TUSHBE,
2013:147). A autora defende que este paradigma importado do ocidente, ao ser usado
para lidar com o que chama de “non sex-crossing sexualities‟ (ou sexualidades não
heterossexuais) em África, corrobora com a atitude colonial, ao pressupor uma
identidade sexual civilizada – a homossexual – que é assumida em determinado
momento da vida (na saída do armário), como em um processo autocivilizatório
(TUSHABE, 2013:149). De acordo com esta autora, a identidade homossexual,
contraposta à heterossexual, fora imposta pelos impérios coloniais de forma já
criminalizável e que não corresponderia às experiências indígenas nativas. Como
demonstração de seu argumento, a autora revela o mito ugandense do ebihindi, contado
em sua própria infância por sua avó, e que parece ter inscrito sua subjetividade dentro
de outras premissas:

Eu gostaria de proceder aqui com o mito de ebihindi que minha avó


me contou quando eu estava crescendo, como forma de explorar o
sentido de contestação e de relação com as identidades sexuais
globais. Ebihindi são pessoas que transitam de uma forma de ser em
outra. Na aldeia em que fui criada existia uma árvore perto do pântano
chamada omusisa. O mito explica que à noite ebihindi se reúnem sob
a omusisa e fazem fogo, dançam e mudam de macho para fêmea, para
meio-fêmea e meio-macho, e no conjunto de quatro partes constituídas
por um quarto de cada. No amanhecer, ebihindi revertem seu ser e se
reintegram na comunidade. A ética do mito é que existem
possibilidades de ser e que nós devemos respeitar a existência dessa
diferença. Também há a noção de que as pessoas sabem e que saber
não requer acusação ou discussão pública. [...] Ao ouvir este mito, eu
encontrei um lar „sólido‟ dentro da comunidade. O mito proporcionou
para mim um lugar de pertencimento, um espaço de autoconhecimento
e sentido para a minha existência na comunidade, porque meus
desejos e diferenças eram articulados na cosmologia de minha cultura
(TUSHABE, 2013:152).
Se a ética relativista do mito pode ser contestada, não parece restar dúvidas que
uma identidade propriamente “homossexual” não é de fácil tradução neste contexto. O
mesmo cuidado analítico parece seguir a pesquisadora Kathleen O‟Mara para tratar do
caso de Gana (O‟MARA, 2013). Segundo esta autora, se o silêncio pressuposto no
paradigma do armário age como uma estratégia de supressão da opressão no ocidente,
entre os indígenas africanos o silêncio pode ser a norma e não é necessariamente
opressivo (O‟MARA, 2013:165-166). Além disso, em Gana, o que chamaríamos de

9
“homossexualidade” teria mais a ver com um parceiro (um outro), com uma experiência
específica e não como identidade (O‟MARA, 2013:172).

Neste complexo conjunto africano, o fato é que o discurso anti-


homossexualidade – o que quer que esta categoria signifique em cada local – baseado na
tese exogênica, está produzindo um quadro de recrudescimento das leis anti-
homossexualidade em diversos Estados5. De acordo com relatório recente da Anistia
Internacional (2013), pelo menos 38 países criminalizam a homossexualidade e 4 deles
aplicam penas de morte (Amnesty International, 2013)6.

Figura 1 - Presidente do Zimbábue Robert Mugabe critica homossexualidade na Europa (Jekesai


Njikizana/AFP)

Em resposta às recorrentes afirmações sobre a homossexualidade se configurar


como prática exógena ao continente, alguns antropólogos, historiadores e militantes,
mais “essencialistas”, porém, vêm tentando demonstrar como, longe de ser uma prática

5
O presidente nigeriano Goodluck Jonathan assinara no dia 14/01/2013 uma lei que criminalizara a
homossexualidade, com penas de até 14 anos de prisão para quem viver uniões de fato com pessoas do
mesmo sexo e para quem participe de organizações em defesa dos direitos homossexuais no país
(Publico.pt, 2014). No dia 24 do mês seguinte, seria a vez do presidente de Uganda, Yoweri Museveni
assinar lei que condena os homossexuais à prisão perpétua (Globo.com, 2014).
6
Ao mesmo tempo, é interessante notar certo lugar de exceção do arquipélago de Cabo Verde neste
cenário pan-africano. Não somente não há relatos de prisões ou julgamentos, como Cabo Verde destaca-
se como o segundo país do continente a realizar uma parada do orgulho gay com a anuência das
autoridades locais.

10
e uma identidade estranha introduzida pelos agentes do empreendimento colonial, as
“práticas homoeróticas” já se encontravam em várias tradições culturais deste
continente (MOTT, 2005; NEILL, 2009)7. Para o antropólogo Luis Mott, que advoga
pela comprovação da existência do homoerotismo através de registros históricos, a
“homossexualidade nativa” africana teria sofrido um incremento e
“diversificação/mestiçagem cultural” com a chegada do europeu. Este, munido da
moralidade judaico-cristã tentou impor a penalização (frequentemente, o exílio) e o fim
das práticas de travestismo e de relação sexual entre indivíduos do mesmo sexo, através
de uma série de processos jurídico-religiosos da Santa Inquisição (MOTT, 2005). Tal
fato corroboraria com a tese de Marc Epprecht, de Murray e tantos outros pesquisadores
contemporâneos de que a “homofobia” – e não a homossexualidade – seria exógena à
tradição africana, uma vez que a partir da colonização, negar a “homossexualidade” foi
associado à civilização e ao progresso (apud KAOMA, 2009, p. 14).

Pesquisando na história colonial, Mott (2005) demonstra alguns exemplos de


indivíduos da África ocidental, como o do escravo Antonio, natural do Reino do Benin,
que tinha “preferências homoeróticas” e se reconhecia enquanto “Vitória” já em 1556 e
o escravo quibanda Francisco Manigongo preso na Bahia por “relações sodomíticas” em
1591 (MOTT, 2005, pp. 12-3). Se tais levantamentos historiográficos foram gerados por
questões como: “Existiram sujeitos homossexuais no passado?”, hoje as perguntas
parecem apontar para outro sentido: “Por que nos importamos tanto se existiram gays
no passado?” ou “Que tipo de relação com essas figuras, nós pretendemos cultivar?”.
Em outras palavras, é preciso ser crítico com as demandas por uma história queer
(LOVE, 2007, p. 31).

Se devemos ser cautelosos em aceitar as teses essencialistas de que tratar-se-iam


em outros tempos e lugares de práticas propriamente “homoeróticas” ou
“homossexuais”, penso que estes vários registros históricos, aos quais poderíamos
acrescentar outros de diferentes regiões etnográficas, nos deixa igualmente alertas para
o risco da atual crítica do construcionismo social que vincula a identidade
“homossexual” em África como única e exclusivamente decorrente de um processo

7
Em Cabo Verde, porém, à diferença de muitos outros países africanos, não encontro na atualidade
qualquer discurso que associe negativamente e de forma direta “homossexualidade” e o “ocidente”. Entre
outras razões possíveis para o fenômeno, o fato da sociedade crioula cabo-verdiana já ter nascido do
encontro entre europeus e africanos e não nutrir, nos dias de hoje, essa severa crítica ao “ocidente”, visto
que muitas vezes os cabo-verdianos se consideram dele fazendo parte.

11
recente de globalização das identidades sexuais. Não quero negar a existência de
recentes fluxos globais de valores e ideias, principalmente no que diz respeito à
emergência de movimentos LGBT no continente (entre eles a Associação Gay Cabo-
verdiana, como veremos adiante), mas os registros coloniais não devem ser descartados
imediatamente, pois eles podem ser um poderoso argumento de desnaturalização de
discursos que ontologizam a não-existência das práticas sexuais entre indivíduos do
mesmo sexo em áreas etnográficas como África.

Penso que uma abordagem antropológica e etnográfica não deve abandonar os


registros históricos e arqueológicos8, mas deve estar hoje absolutamente atenta para a
aplicabilidade das categorias do pesquisador como “sexualidade”, “homossexualidade”,
“homoerotismo” nas práticas nativas9. Afinal, certas práticas tidas por nós como
inscritas no domínio da sexualidade, podem ser eventualmente entendidas por outras
vias entre nossos interlocutores (HOAD, 2007; MACHARIA, 2009). Uma vez
percebendo que certas práticas se encontram de fato no campo do desejo, do prazer, da
intimidade, das subjetividades, da afetividade e das relações diádicas, o
empreendimento da antropologia da (homo)sexualidade é possível e desejável. É
preciso que achemos um caminho que escape da dicotomia
construtivismo/essencialismo.

Na Ilha de São Vicente, em Cabo Verde, após ter me certificado em pesquisa


etnográfica da possibilidade de tradução da categoria “homossexualidade” e suas
correlatas, defenderei a existência de um “Sistema Hipocrisia”10, que se configura de
maneira a tolerar a homossexualidade, mas que pressiona por um silenciamento das

8
“[...]as pinturas rupestres das cavernas de San, atribuídas aos bosquímanos da África Austral, datadas de
15 mil anos, onde são evidentes „egrégias práticas sexuais tais como sexo anal ou intracrural em grupo‟”
(MOTT, 2005, p. 12).
9
Murray aponta criticamente e com razão para a preocupação de vários autores construtivistas sociais que
argumentam pela contingência história da “homossexualidade”, mas que neste exercício acabam por
essencializar outras categorias como “heterossexualidade”, “sexualidade”, “raça”, “classe” etc (Murray
apud ROSCOE, 1996, p.209).
10
Como tratarei em momento mais oportuno, o “Sistema Hipocrisia” – com letras maiúsculas – é a
objetivação que fiz para estabilizar a percepção dos gays cabo-verdianos em relação ao seu próprio
sistema de gênero. Tanto as categorias “sistema” quanto “hipocrisia” são êmicas, mas passaram por um
processo de esvaziamento da carga moral para se tornarem uma categoria de análise objetificante e,
portanto, virtual. Os dois movimentos chaves para se compreender o Sistema Hipocrisia de Cabo Verde
são o silenciamento diante da existência da homossexualidade e a contradição entre a heteronorma e as
práticas homossexuais. No segundo capítulo, pretendo explorar o Sistema Hipocrisia a fundo.

12
práticas propriamente (homo)sexuais11. Mostrarei ainda quais são as significações
êmicas para “homossexual”, a crítica dos sujeitos gays ao seu sistema de gênero e a
dificuldade dos sujeitos em conjugar os valores românticos aos seus exercícios de
(homo)sexualidade.

O caso de Cabo Verde

Cabo Verde é um país arquipelágico, composto por dez ilhas, sendo apenas nove
delas habitadas. O arquipélago, que é uma ex-colônia portuguesa, localiza-se na região
chamada Macaronésia, próxima à Costa Ocidental da África, na altura do sahel. Realizei
meu trabalho de campo em duas de suas ilhas mais habitadas, Santiago e São Vicente.
Contudo, era nesta última que surgira – apesar do “machismo” estruturante da sociedade
cabo-verdiana – a primeira organização LGBT do país, que acompanhei
etnograficamente por um mês e meio na cidade do Mindelo.

Antes de resumir minha dissertação de mestrado, explico seu título. Ela se


chama “„Levam má bô‟, que significa no crioulo do Mindelo: “Me leva contigo”.
Apesar de não ser uma expressão proferida pelos meus interlocutores gays, mas por
seus parceiros sexuais, escolho-a para nomear aquele trabalho, porque ela é uma
metonímia de um momento ritual crucial na relação sexual entre os rapazes do Mindelo.
É no momento em que os rapazes, que chamei de “não-gays”12, dizem aos gays, nas
noites da cidade: “levam má bô”, que todo um sistema de gênero e de sexualidade se
revela em suas próprias contradições. Contradições estas condensadas na tão repetida
palavra “hipocrisia”.

É nos rituais de cortejo, e entre eles o mandar boca, que se explicita a tensão
entre o tradicional “macho” cabo-verdiano e o seu desejo homoerótico envergonhado13.
Pelo menos, é isso que sempre acusavam meus interlocutores gays. Dizem eles que em
Cabo Verde, existe algum “sistema de hipocrisia”. Mas esta é apenas uma das
perspectivas possíveis para interpretar a sexualidade masculina no arquipélago.

11
Apesar de ser possível no Mindelo atual, como veremos, que os sujeitos transgridam em seus corpos as
normas de gênero hegemônicas.
12
Adiante, neste paper, explicitarei o que entendo por “não-gays”.
13
No capítulo dois de minha dissertação, tratei a fundo do ritual de mandar bocas. Aqui é suficiente que
se esclareça que se trata de um evento em que os rapazes provocam os sujeitos gays pelas ruas da cidade.

13
No primeiro capítulo de “Levam má bô” (MIGUEL, 2014) – chamado –
“História e mito do cosmopolitismo”, mostrei que o homoerotismo em Cabo Verde
parece existir há muito mais tempo do que dizem algumas das atuais vozes do país.
Neste sentido, busquei dados historiográficos que demonstraram que no período da
Santa Inquisição registraram-se alguns relatos de experiências homoeróticas públicas no
arquipélago. Contudo, também busquei construir eu mesmo uma memória oral dos
meus interlocutores gays a respeito de suas sexualidades pelo menos nas últimas quatro
décadas. Tais dados corroborariam com a tese de que o homoerotismo não é nem novo
nem exógeno ao continente africano.

Além disso, busquei demonstrar com o caso de Julio Fogaça, militante


comunista português e homossexual, que apesar da perseguição aos sujeitos
homossexuais no império português dos séculos XVI/XVII, desde então não parece
mais haver registros da manutenção dessa perseguição jurídica à homossexualidade na
colônia africana de Cabo Verde, mesma ela ainda existindo na metrópole portuguesa.

Assim, sugeri que após a Santa Inquisição, parece haver uma atitude histórica de
desprezo do sistema penal de Cabo Verde em relação às práticas homossexuais ou
homoeróticas. Atitude estatal esta que pode estar estreitamente relacionada, eu sugiro, à
atitude mais ampla e típica dos crioulos em se silenciar quanto à evidência empírica da
(homo)sexualidade. Um exercício sexual quase indizível, que parece ser muito comum
em todo o continente (O‟MARA, 2013:166).

Para dar conta especificamente da cidade do Mindelo, recapitulei a história


particular da colonização da Ilha de São Vicente – na qual esta cidade é o epicentro –
para mostrar certas especificidades desta experiência de crioulização. Entre elas,
enumero: 1) a colonização tardia desta ilha em relação às demais do arquipélago; 2) o
seu contingente populacional original formado por crioulos cabo-verdianos e, portanto,
culturalmente menos ligados aos “continentais”; 3) a variedade de estrangeiros que
habitaram ou passaram pelo Mindelo, sendo especialmente importante a figura dos
ingleses; 4) a urbanidade atrelada a um moderno porto internacional; 5) a ligação desta
cidade com as dinâmicas atlânticas, “ocidentais” por excelência; 6) e a especialização
de uma vida boemia e intelectual, que pensaria posteriormente o país.

14
Neste sentido, o mais importante foi perceber a construção histórica,
historiográfica e mítica do “cosmopolitismo” e “liberalidade” dos sampadjudus14. Essas
características, fortemente incorporadas na auto-imagem dos mindelenses ou
sampadjudus, tornam mais plausível, nesta e não em outras ilhas de Cabo Verde, a
possibilidade de insurreição das travestes15, no evento que denominei “A Revolta das
Tchindas”, assim como do movimento LGBT que derivou deste evento.

Demonstrando o processo político e cultural de tentativa de reafricanização dos


espíritos, levado a cabo no arquipélago no século XX, assim como as atuais narrativas
de meus interlocutores, e a cultura material do Mindelo, principalmente expressa nas
artes dos gift shops locais, busquei argumentar que, ainda que os sampadjudus se
pensem cosmopolitas, este cosmopolitismo (ou morabeza16) encontra alguns limites
para a incorporação de outros. Um desses limites diz respeito a uma difusa, mas
igualmente tensa rejeição dos signos de africanidade em São Vicente. Signos de
africanidade ora pejorativamente ligados aos mandjacos (continentais), ora aos badius
(habitantes da Ilha de Santiago).

Da mesma forma, a “liberalidade” da cidade do Mindelo encontra barreiras,


como a manutenção de uma moralidade tradicional que pressiona para o silenciamento
da (homo)sexualidade como possibilidades sexual, identitária e afetiva. Assim, mesmo
que a perseguição estatal não pareça existir há muito tempo no país e que tenha existido
uma vida sexual ativa dos homossexuais no Mindelo desde pelo menos a década de
1970, estas experiências sempre tiveram de ser escondidas, como nas tubulações da
usina de dessalinização, saudosamente chamadas pelos meus interlocutores como as
“Águas Quentes” da Laginha, uma espécie de sauna improvisada para orgias noturnas.

No capítulo dois, chamado “A crítica à hipocrisia”, a partir de meus dados e


daqueles fornecidos pela pesquisadora nativa Claudia Rodrigues (2010), busquei
mostrar ao leitor a perspectiva dos homossexuais cabo-verdianos a respeito do seu
próprio sistema de gênero. Neste intento, construí uma categoria analítica, que chamei
14
Sampadjudus são aqueles que nascem na Ilha de São Vicente.
15
Por basicamente compartilhar do sexo biológico masculino e desejarem outros homens, a fronteira que
separa gays e travestes, é muito tênue e porosa. Em Cabo Verde, a identidade traveste diz respeito não
somente a classificações por intensidades de masculinização/feminilização dos corpos, mas também
reverbera posições de classe. No geral, porém, as travestes são aquelas que nasceram com órgãos genitais
masculinos, são pessoas mais pobres, que ao desejarem ser mulher mantêm seus corpos ao máximo
feminilizados e que advogam, por vezes, esta identidade para si.
16
Morabeza significa, de uma maneira geral,“bem receber” – a atitude amigável dos cabo-verdianos ao
receber convidados e estrangeiros.

15
de “Sistema Hipocrisia”. Esvaziei-a de sua carga moral e denunciativa, tal qual
pronunciada pelos sujeitos gays, e pretendi com ela apenas dar conta da sistematização
desses dados.

Figura 2 - Manifestante exibe uma placa contra a "hipocrisia" na Primeira Parada do Orgulho Gay de Cabo Verde
em 2013, o Mindelo Pride (AGC/Facebook/Divulgação)

Pareceu-me significativo a recorrência da palavra “hipocrisia” quando os


sujeitos gays se referiam a sua sociedade, acusando-a moralmente. Contudo, longe de
ter um único significado, a categoria êmica “hipocrisia” é recorrentemente entendida 1)
ora como acusação do típico silenciamento da sociedade cabo-verdiana em relação à
evidência empírica da homossexualidade, 2) ora como acusação da suposta contradição
– diagnosticada por estes mesmos sujeitos gays – entre (hetero)normas e (homo)práticas
conviventes nesta sociedade.

Além disso, o “Sistema Hipocrisia” é uma estratégia analítica minha que


pretendeu objetificar um quadro onde convivem em disputa pelo menos dois modelos
de sexualidade masculina, como elaborados pelo antropólogo Peter Fry (1982b). Em
linhas gerais, tentei demonstrar que enquanto o “modelo hierárquico” é ainda
hegemônico na sociedade cabo-verdiana, entre outras razões por dialogar com o sistema
de gênero mais amplo do arquipélago – marcado pela dominação masculina – o

16
“modelo simétrico” desponta como outra possibilidade de conformação das
subjetividades masculinas em relação à (homo)sexualidade em Cabo Verde.

Compreendido isso, neste capítulo ainda contextualizei o momento histórico em


que o movimento LGBT surgiu no país, assim como o novo léxico sexual e identitário.
Para tanto descrevi o evento que denominei de a “Revolta das Tchindas”, momento de
ruptura simbólica em que as travestes do Mindelo saíram vestidas de drag à luz do dia
na década de 1990, como forma de lutarem contra, novamente, a “hipocrisia”.

Argumentei que este evento foi um marco historicamente importante para 1)


trazer a silenciada homossexualidade de volta ao debate público; 2) instaurar ou
reatualizar as identidades sexuais e, assim, reorganizar o sistema de gênero cabo-
verdiano; e, 3) inaugurar o que viria a ser o moderno movimento LGBT local.

Em seguida, contudo, lanço a hipótese da anacronia deste movimento que,


inspirado nas experiências e na gramática do movimento LGBT internacional
(construído desde o final da década de 1960 em países norte-americanos e europeus),
não parece mais corresponder às expectativas e aos dilemas da sociedade crioula cabo-
verdiana – tampouco à sua população gay – neste início de século XXI. Isso porque as
pautas que estão postas, geradas em outros sistemas sociais, encontram um
assentamento precário no arquipélago.

17
Figura 3 - Manifestante exibe uma placa pró casamento gay em Cabo Verde no Mindelo Pride
(AGC/Facebook/Divulgação)

Por exemplo, a descriminalização da homossexualidade, tal como perseguida


pelos movimentos LGBT em muitos países africanos, é uma pauta não-gramatical em
Cabo Verde, pois a efetiva criminalização de fato nunca parece ter ocorrido no país,
apesar do código penal tê-la prescrita até 2004. Outro exemplo seria a inviabilidade da
legalização do casamento gay. Isso porque o modelo hegemônico de casamento
ocidental, marcado pela co-habitação dos cônjuges, é um modelo historicamente
rejeitado pelas práticas culturais na sociedade crioula e as homoafetividades no
arquipélago parecem não fugir dos modelos de afetividade e conjugalidade tradicionais
cabo-verdianos.

Por último, a própria demarcação das fronteiras identitárias promovida pelo


movimento LGBT (e que constam inclusive em sua própria sigla) parecem não
corresponder à fluidez dos homossexuais cabo-verdianos, que muitas vezes se afastam
discursivamente das classificações sexuais-identitárias como tchinda, traveste,
“homossexual”, “bissexual”, “ativo”, “passivo” etc, em uma clara postura queer. Algo
que parece ser uma tendência em outros lugares do continente (O‟MARA, 2013:168)

Desta forma, busco compreender como é possível a permanência de tal


movimento político. Sugiro a hipótese de que a associatividade pela causa gay em Cabo

18
Verde pode ser explicada por uma busca pela modernidade e cosmopolitismo, típicos na
sociedade mindelense onde este movimento nasce e se mantém restrito. Além disso, o
movimento LGBT local, encarnado na Associação Gay Cabo-verdiana Contra a
Discriminação, pode ser explicado não somente por pretensões políticas e pessoais de
seus líderes, dominantes da gramática ocidental, como também refletindo um
descontentamento difuso em relação às possibilidades de construção de pessoa dos
sujeitos “homossexuais” naquele país.

Neste sentido, trago à tona a polissemia de categorias nativas como


“homofobia”, “preconceito” e “violência”. O que descubro ao analisá-las é de que elas
possuem significados cambiantes e, por vezes, distintos do que se supõe em outros
contextos culturais. Se a “homofobia” é frequentemente negada entre meus
interlocutores gays sampadjudus, pois é largamente associada à “violência física” – algo
que, apesar de acontecer, se diz não ser uma prática comum no Mindelo, o
“preconceito” ou a “discriminação” competem com a “tolerância”, no discurso e na
prática. Essa parece também ser a realidade, por exemplo, entre os citadinos em Gana
(O‟MARA, 2013:173) e entre os indígenas de Uganda (TUSHABE, 2013:152).

É neste debate, que surge, ao fim, uma análise do ritual do mandar bocas – um
hábito encontrado nas ruas do Mindelo, em que rapazes provocam os sujeitos gays.
Argumento que este ritual em Cabo Verde não só não pode ser apressadamente
compreendido como atos “homofóbicos”, pois muitas vezes as intenções da provocação
é a consumação do ato sexual com os gays, como este ritual, quando analisado de perto,
pode revelar que a suposta dominação masculina, encarnada na performance sexual da
penetração, pode ser simbolicamente invertida, contradizendo em parte o “modelo
hierárquico” proposto por Fry (1982b), como tento deixar claro no terceiro capítulo.

Se no segundo capítulo, dei maior atenção às representações sociais dos sujeitos


gays em Cabo Verde, no capítulo três, chamado “Levam má bô”, busquei evidenciar a
partir dos meus interlocutores no Mindelo, como se dá uma parte da vida sexual e
afetiva dos rapazes crioulos. Dessa forma, trouxe a cantada de Julio a mim que, além de
deflagrar a importância do corpo gay do antropólogo como agente produtor fundamental
da própria etnografia, revela em seu cortejo muito do contexto cultural no qual os
rapazes cabo-verdianos estão imersos e a partir do qual eles elaboram suas estratégias
sexuais.

19
Assim, a síntese cultural cabo-verdiana contida na cantada de Julio se reflete em
alguns trechos, como quando surgem: 1) a virilidade do homem cabo-verdiano e de sua
abordagem; 2) a exaltação do corpo feminino como signo de sociabilidade entre os
homens; 3) a dominação masculina pressuposta no “modelo hierárquico”, que segrega
“ativos” e passivos”, conferindo-os valores distintos; 4) a menção e afiliação à
religiosidade católica; 5) a aproximação cultural com o Brasil e as atualizações que este
exporta para Cabo Verde; e 6) a simulação da “homofobia” através das bocas e
obscenidades ditas.

E, apenas sob o manto da heteronormatividade, surge o desejo homoerótico, já


permitido pela lei desde 2004, mas ainda envergonhado. Nesta conversa com Julio e em
outras, percebo que o desejo homoerótico, quando enunciado, é feito em volume baixo,
sem estrilo (escândalo), como sempre será a própria consumação do ato. Além de tudo,
o ruído na comunicação com Julio, no que diz respeito a nossa (in)compreensão mútua
dos significados de “gay” para o outro, revela para mim, a importante informação de
que ser “gay” por aquelas ilhas tem a ver com feminilidade, identidade e afetividade
para alguns e apenas desejo homoerótico para outros.

Esses “outros” seriam os homens “não-gays” – categoria na qual pretendi


englobar todos os sujeitos que não se reconheciam a partir de uma identidade não-
heterossexual. Este critério não é apenas uma arbitrariedade do antropólogo, mas dos
próprios interlocutores gays que tendiam sempre a enquadrar esses rapazes (chamados
por eles de “hétero com as aspas” ou “não-gays”) sobre uma mesma classe. O prefixo
“não” não é à toa: ele foi utilizado aqui porque é justamente na coincidência das
respostas negativas desses rapazes, quando perguntados se são “gays”, que há uma
possibilidade de classificá-los dentro de um mesmo grupo, haja vista que outras
características como idade, condição socioeconômica, estado civil etc. me eram muito
difícil precisar. Mas é evidente que, como qualquer exercício taxonômico, ele é
precário.

De qualquer forma, esses sujeitos ainda que não se reconheçam ou que se


“assumam” “gays”, estão habitando o universo homoerótico e se relacionando
sexualmente com outros homens. Assim, neste terceiro capítulo, abordo três rapazes-
exemplos: Julio, John (badiu) e Joaquim. Por um lado, os três têm em comum o fato de
não se considerarem “gays” e, ao mesmo tempo, os desejarem sexualmente. Por outro,

20
se aproximam por não vislumbrarem se relacionar com os sujeitos gays de forma afetiva
e conjugalizada, como propagado por certos modelos.

Reclamações dos sujeitos gays crioulos acerca da “estupidez” desses homens


não-gays e da “hipocrisia” contida neste sistema de “homens e bichas” são proferidas a
toda hora. Todavia, insisto ao longo da dissertação que esta não é uma especificidade
das relações homossexuais, pois tal reclamação ocorre, de acordo com a literatura sobre
o país, também nas relações heterossexuais, quando mulheres apresentam queixas
semelhantes em relação à “estupidez” dos rapazes ou aos seus afastamentos dos valores
românticos (LOBO, 2012). De fato, a questão do romantismo em África é tema muito
mais amplo (XXXX).

Por último, para além das estratégias de abordagem do Julio, existe algumas
outras possibilidades de abordagem dos rapazes, quando estes pretendem obter sexo
com os sujeitos gays. Seja através do olhar, do assovio ou do mandar boca, esses
rapazes encontram formas de chamar a atenção dos gays e de ter com eles17. Mas este
não é um exercício unilateral: também os sujeitos gays possuem estratégias de atração
dos rapazes. Entre essas estratégias, chama a atenção: o uso da linguagem fática e do
acionamento do parentesco, ainda que fictício. Ambas têm o objetivo de não amedrontar
os rapazes.

Assim, busquei narrar mais detalhadamente um destes rituais de cortejo de


sucesso como forma não apenas de ilustrar as dinâmicas, mas de argumentar que a
“passividade” pressuposta no “modelo hierárquico” pode ser invertida no ato sexual
real. Por último, percebo que as experiências (homo)sexuais fugazes com esses fugidios
rapazes não-gays já não parecem satisfazer às expectativas dos sujeitos gays cabo-
verdianos, que cada vez mais incorporam valores românticos da monogamia, do afeto
mútuo, da conjugalidade, da cohabitabilidade etc, que chegam através de vários canais,
como a mídia, as suas próprias experiências emigratórias e o movimento LGBT
internacional. O que percebo nos sampadjudus é uma angustia por não poderem realizar

17
Ter com é uma locução crioula que abrange alguns de significados no campo semântico das relações
pessoais. Quando um sujeito tem com outro, isso poderá significar que o sujeito teve uma única relação
sexual com o outro ou que com ele mantém relações sexuais contínuas. Por outro lado, a expressão pode
se referir também a um relacionamento afetivo/sexual com alguma fixidês que se estabeleça entre dois
sujeitos. A locução, contudo, não está restrita ao universo homoerótico e é também acionada em relações
heterossexuais.

21
plenamente seus projetos de sujeito gay cosmopolita dentro de uma cultura nacional
como a sua.

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