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Evaldo Piolli
E
Em um inquérito policial de veio de um descontentamento generalizado da popu-
mais de 2 mil páginas, ela- lação com o aparato institucional da democracia im-
borado pela Polícia Civil do plantado após a ditadura (1964-85), e que, agora, dá
Estado do Rio de Janeiro, sinais claros de esgotamento.
em 2014, para apurar, inves- Portanto, nada mais oportuno do que termos em
tigar e responsabilizar 23 mãos esse livro Mikhail Bakunin: Obras Escolhi-
pessoas por “atos violentos das, publicado pelas editoras Hedra e Imaginário
na cidade” durante as mani- com textos selecionados desse pensador libertário.
festações anticopa, o nome de Bakunin, morto em Uma edição primorosa e muito bem organizada,
1876, aparece como um dos suspeitos de liderar esse com 722 páginas, que ainda traz um apêndice com
movimento. Seu nome foi citado por manifestantes textos de estudiosos da obra de Bakunin, além de
em ligações feitas por celular que foram intercepta- uma parte final dedicada à apresentação de dados
das pela polícia durante as investigações. O jornal cronológicos de sua vida.
Folha de S. Paulo noticiou esse fato em sua edição Mikhail Aleksandrovitch Bakunin nasceu em
do dia 28 de julho do mesmo ano. 1814, na Rússia, filho de pais aristocratas pertencen-
A eclosão das manifestações nos anos de 2013 e tes à “pequena nobreza” russa. Quando jovem, trans-
2014 trouxe para a cena política nacional, por con- feriu-se para a Alemanha para iniciar seus estudos
ta das opções políticas de muitos dos manifestantes, na escola hegeliana, a qual veio a se constituir a base
entre eles os black blocs, o tema do anarquismo, jun- e o fundamento das suas ideias revolucionárias, junta-
tamente com o nome de Bakunin e de outros de ex- mente com Blanqui, Herzen, Marx e Darwin, que con-
pressão desse movimento, aspecto que revela a força tribuíram mais perifericamente. Participou de quase
e atualidade de suas ideias. todas as revoltas que ocorreram na Europa durante o
Senão, vejamos. Os partidos, principalmente aque- século XIX. Esteve na Suíça, Bélgica e França, onde
les que se apresentam como defensores dos trabalha- conheceu Marx e Engels na residência de Proudhon,
dores, se transformaram em verdadeiras máquinas no ano de 1845. Aliás, Proudhon é quem, mais tarde,
eleitorais, envolvidos hoje em esquemas de arrecada-
ção e de corrupção. Os sindicatos, por sua vez, seguem
preservando a estrutura burocratizada reprodutora do
peleguismo. O questionamento dessas instituições pe- EVALDO PIOLLI é professor da Faculdade de Educação
los movimentos de rua iniciados em 2013, no Brasil, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
gismo”, “A Ciência e a Questão Vital da Revolução”, do proletariado, bem como os progressos da indústria
“Programa da Sociedade da Revolução Internacional”, e do comércio foram a causa de sua miséria relativa.
“A Ciência e o Povo” e “Os Enganadores”. Mas é em Os progressos intelectuais e progressos materiais con-
“Educação Integral” que podemos encontrar o melhor tribuíram igualmente, portanto, para aumentar sua es-
de seu pensamento sobre o tema, o qual se vincula cravidão. O que resulta disso? Que devemos rejeitar e
ao seu projeto de sociedade fundado na igualdade combater essa ciência burguesa, assim como devemos
econômica e na liberdade. Para ele, o domínio da ci- combater e rejeitar a riqueza burguesa” (p. 272).
ência e da razão, atrelado a uma educação antiautori-
tária constitui-se como elemento fundamental para a Para Bakunin, tanto a ciência quanto a riqueza são
emancipação humana. De outra parte, toda proposta bem comum e patrimônio de todos e, como tal, não
pedagógica advinda do Estado e pactuada com os in- devem ser apropriadas apenas por uma classe.
teresses da burguesia tem por pretensão a reprodução Nesse quadro, pois, a universidade estará a ser-
das relações de dominação, o doutrinamento, o con- viço dessa dominação. Através da sua burocracia irá
formismo e a formação de indivíduos docilizados e alienar os professores/intelectuais, disciplinará seus
adaptados ao mundo produtivo. alunos, obtendo como produto uma ciência alienada.
O estudo cuidadoso desses textos será de grande O leitor encontrará muitos elementos para aproximar
valia para o debate atual sobre o tema da educação as críticas de Bakunin à conformação da universidade
integral. Poderá ser desfeita, por exemplo, parte da brasileira hoje, bem como para que se percebam as
confusão provocada pelos programas governamentais1 relações feitas por ele, em certa medida, no aprofun-
de escolas de tempo integral ou de ensino integrado, damento da burocracia universitária, nos controles
confundidos, muitas vezes, com educação integral. No centralizados, no ranqueamento das instituições, nas
entanto, o simples fato de uma escola desenvolver um avaliações heterônomas, nos prêmios de produtivida-
programa de complementação curricular ou mesmo de, na privatização da pesquisa, no currículo Lattes e
um ensino profissionalizante, no contraturno do ensino no produtivismo acadêmico e sua indução à produção
das matérias do currículo comum, está bem distante da de papers em periódicos cada vez mais padronizados.
proposta de educação integral defendida por Bakunin. Outro texto fundamental presente na coletânea é
Também no que se refere à ciência, a crítica de “Escrito Contra Marx”, redigido em 1872, após a ex-
Bakunin é contundente sobre a sua aplicação no pulsão de Bakunin da I Internacional, juntamente com
contexto da sociedade burguesa, fundamentalmente James Guillaume. No texto é apresentado o ponto de
quanto à apropriação que a burguesia fez desse tipo vista de Bakunin sobre o direcionamento dado por
de conhecimento através do Estado e das universida- Marx e seus seguidores à I Internacional. Bakunin
des. Ele alega que os usos do conhecimento científico será um crítico feroz ao programa político defendido
configuram-se como elemento primordial da domina- por Marx. Contudo, é bom esclarecermos, que não
ção de classe e do poder do Estado. São críticas que foi em função da radicalização dessas divergências,
se reportam ao ensino universitário para as classes como pregam muitos, que a I Internacional se dissol-
privilegiadas e ao relacionamento entre a produção da veu, mas, acima de tudo, pela forte repressão às diver-
ciência e de tecnologias com a exploração do trabalho, sas seções em vários países após a Comuna de Paris,
o enriquecimento da burguesia e o fortalecimento do ocorrida em 1871.
aparelho estatal. Como ele mesmo diz: A I Internacional foi fundada em setembro de 1864
em Londres, desenvolvendo uma forte atração entre
“Em resumo, na organização atual da sociedade, os pro- os trabalhadores europeus, não devendo, portanto,
gressos da ciência foram a causa da ignorância relativa sua popularidade apenas ao fato de ter proclamado a
Comuna de Paris em 1871, e sim de ter criado seções
em diversos países da Europa e nos Estados Unidos.
1 O Programa Mais Educação, instituído pela Portaria Intermi- Ela surge num contexto de fortalecimento dos Estados
nisterial n. 17/2007 e regulamentado pelo Decreto 7.083/10,
constitui-se como estratégia do Ministério da Educação para nacionais como necessidade imperativa dos trabalha-
induzir a ampliação da jornada escolar e a organização cur- dores para responder ao processo de acumulação do
ricular na perspectiva da educação integral. Outro exemplo
é o Programa Escolas de Tempo Integral (ETI), desenvolvido
capital. A I Internacional foi constituída a partir da
pelo governo do estado de São Paulo. percepção dos trabalhadores de que a organização em
“É preciso ser verdadeiramente insensato para ima- É preciso, no entanto, fazer justiça a Marx, uma
ginar que os trabalhadores da Inglaterra, da Holanda, vez que o socialismo científico será mais propagado
da Bélgica, da França, do Jura, da Itália, da Espanha, pelos leninistas do que por ele próprio. Para Marx o
socialismo é um movimento espontâneo das massas por Bakunin. O que ele diria sobre os atuais partidos
e cabe ao marxismo o papel de registrar e dar consci- brasileiros que adotam em suas siglas palavras como
ência. Bakunin vai na mesma direção ao compreender “social”, “socialista”, “trabalhista”, “trabalhadores” ou
que não se trata de inculcar um socialismo científico, mesmo “comunista”, mas que na prática são, no máxi-
“mas de exprimir o movimento real das massas”. No mo, democratas defensores da ordem burguesa? O que
entanto, os marxistas se dividirão em torno dessa ques- diria o nosso pensador libertário sobre o financiamen-
tão. Kautsky (1834-1934) e Lenin (1870-1924), ao cri- to desses partidos por grandes corporações? E sobre o
ticarem a espontaneidade das massas, confluirão com sindicalismo burocrático e suas centrais dependentes
suas ideias para as armadilhas do socialismo científico do imposto sindical e das contribuições compulsórias?
denunciadas por Bakunin. O centralismo democrático E sobre as festas de 1º de Maio promovidas pelas cen-
de Lenin, tomado de empréstimo de Kautsky, virá es- trais sindicais, com sorteios de automóveis e shows de
tabelecer a supremacia do partido e seus revolucioná- cantores sertanejos, repletas de políticos oportunistas?
rios profissionais dotados de conhecimento científico Aliás, algumas dessas centrais, inclusive, fizeram a de-
em detrimento de outras formas possíveis de organi- fesa aberta da nova lei da terceirização (PL 4.330/04),
zação dos trabalhadores. Esse caminho, para muitos, a qual, se aprovada, afetará a vida de milhares de
teria desenvolvido as condições que favoreceram, trabalhadores, retrocedendo, em muitos aspectos, às
posteriormente, o surgimento do stalinismo. Por sua condições de contratação típicas do século XIX.
vez, Rosa de Luxenburgo e Aton Pannekoek cuidarão Enfim, ao ler muitos dos escritos incluídos nes-
de preservar o aspecto libertário das ideias de Marx, se livro, o leitor chegaria à mesma conclusão a que
defendendo os conselhos e a autogestão. No entanto, cheguei: de que, com certeza, se Bakunin estivesse
compartilho da ideia de que, se podemos encontrar vivo e morando aqui no Brasil, teria se envolvido, com
na obra de Marx esse viés libertário, isso é devido à certeza, nas manifestações de rua e proferido muitas
convivência e aos embates com Bakunin. críticas ao Estado e seus mecanismos de repressão, à
Os escritos reunidos nesse livro constituem, por- corrupção, aos partidos (de esquerda e de direita) e aos
tanto, um documento histórico de grande relevância sindicatos pelegos. Não se furtaria em tecer críticas se-
para todos que pretendem compreender a história das veras aos intelectuais, à ciência, à educação, bem como
lutas sociais e da organização dos trabalhadores no também à classe média conservadora que hoje clama
final do século XIX. Contudo, vale reafirmar, que o pela volta dos militares ao poder no Brasil. Portanto,
leitor perceberá a atualidade desses escritos e a força tal como consta no inquérito policial do Rio de Janei-
das ideias e críticas neles contidas. Olhando para a ro, Bakunin é, sim, uma voz presente no nosso tempo,
cena política brasileira recente, com pouco esforço, imortalizada por sua contundente crítica à sociedade
encontraremos muitos pontos da crítica elaborada burguesa e suas instituições.