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CAZUZA AO SOM DE LISPECTOR

“Eu queria anunciar aqui o seguinte: a pessoa que eu mais amo na minha vida
chama-se Clarice Lispector”. Essa afirmação foi feita por Cazuza, já um pouco tocado
pela bebida, durante sua participação em um show de Ângela Rorô no Morro da Urca,
no Rio de Janeiro, em 1988.1 Logo em seguida, o artista disse à plateia que queria cantar
uma “poesia” de Clarice que ele havia musicado. A tal poesia era, na verdade, um
trecho de Água Viva de 1973, devidamente adaptado para se tornar letra da canção “Que
o Deus venha”.2
O letrista também se inspirou em Clarice para compor “A via-crúcis do corpo” 3,
desta vez pautado no livro homônimo, publicado em 1974. Para além dessas relações
mais diretas, é possível encontrar ecos clariceanos em várias imagens de Cazuza, bem
como na recorrência do tema da liberdade, que não raro se projeta em um processo de
aprendizagem pelo amor e pelo prazer (tal como em Uma aprendizagem ou o livro dos
prazeres de 1969), na verdade, construído por meio de uma espécie de
“desaprendizagem” dos valores sociais estabelecidos.
Vale também pensar a aproximação do compositor e da escritora a partir da
linha temporal que os liga. A obra de Clarice Lispector insere-se no intervalo entre as
décadas de 1940 (a partir de Perto do coração selvagem, de 1943) e de 1970 (com a
morte da autora em 1977). Veja-se que Clarice atravessa um momento fundamental da
história do século XX, em um período que deixa entrever a ponte que leva das
discussões existencialistas e das discussões de gênero elaboradas na primeira metade do
século XX (com destaque para as respectivas obras de Sartre de Simone de Beauvoir)
aos movimentos libertários dos anos 1960 e 1970.
Assim, as premissas existencialistas de que a existência precede à essência e de
que os seres humanos são “condenados” a serem livres, bem como o entendimento de
que os papéis sociais vinculados ao gênero (mas também à classe, à raça e à orientação
sexual) são socialmente construídos, permitiram novos olhares sobre a questão da
liberdade. Nessa esteira, a contracultura dos anos 1960 e 1970 propôs-se a contestar os

1
O registro do áudio do show de Ângela, no qual Cazuza faz essa declaração e canta “Que Deus venha”
está disponível em www.youtube.com/watch?v=X3JzJHJg758. Acessado em 07/2018.
2
“Que o Deus venha” (Frejat/ Cazuza/ Clarice Lispector). Gravada originalmente pelo Barão Vermelho
no álbum Declare Guerra (1986) e regravada por Cássia Eller em Cássia Eller (1990). A única gravação
com a voz de Cazuza é justamente o registro informal do áudio desse show de Ângela Rorô.
3
“A via-crúcis do corpo” (Cazuza). Texto não musicado.
valores da sociedade patriarcal burguesa, recusando o establishment e apontado para
novas formas de experiência. Nesse conjunto, devemos compreender não apenas os
movimentos hippie e punk, e o Maio de 1968, mas também todos os movimentos
identitários que ganharam força naquele momento. Além disso, precisamos estar atentos
à emergência do rock’n’roll e de suas derivações, que funcionaram como a trilha sonora
das contestações da juventude da época.
Veja-se que Cazuza nasceu em 1958 e, portanto, viveu sua adolescência durante
os anos de 1970, já sob o influxo desses movimentos contraculturais. De algum modo,
sua obra dos anos 1980 revela, de modo peculiar, os pontos de interseção entre esse
universo e o de Clarice Lispector, lançando luz também sobre o percurso histórico que
envolve todas essas expressões. Além disso, vale considerar o impacto da AIDS nos
anos 1980 (e dos casos célebres de overdose nos anos 1970) em relação a esses
movimentos libertários, o que serviu de matéria prima para a canção “Ideologia” de
Cazuza, lançada em álbum homônimo de 1988, mesmo ano do show onde o artista
afirmou seu amor por Clarice e cantou sua versão de “Que o Deus venha”.
Segundo posterior relato de Frejat, Cazuza havia lhe dado o esboço da canção
para que o parceiro fizesse ajustes, provocando surpresa ao explicar que se tratava de
um texto da escritora: “não dava pra imaginar que era um texto de Clarice, de tão
parecida que a letra estava com o jeito dele escrever”. Para compreendermos a
semelhança, vale citar o fragmento original:
Sou inquieta, áspera e desesperançada. Embora amor dentro de mim
eu tenha. Só que eu não sei usar amor. Às vezes me arranha como se
fossem farpas. Se tanto amor dentro de mim recebi e no entanto eu
continuo inquieta, é porque eu preciso que o Deus venha. Venha
antes que seja tarde demais. Corro perigo como toda pessoa que vive
e a única coisa que me espera é exatamente o inesperado. Mas eu sei
que vou ter paz antes da morte e que experimentarei um dia o
delicado da vida. Perceberei – assim como se come e se vive o gosto
da comida. (LISPECTOR, 1998, p.51)

A adaptação de Cazuza, de modo geral, limita-se a passar o eu-lírico para o


masculino e fazer o recorte dos versos, aproveitando e ressaltando o caráter poético (e
musical) do fragmento narrativo de Clarice Lispector, que sofre apenas sutis
modificações. Em relação ao conteúdo, é possível identificar alguns tons do sentimento
de inquietude, que se manifestam de maneiras comparáveis no trabalho do compositor e
da escritora.
Como se sabe, a obra clariceana estrutura-se recorrentemente em torno de
personagens femininas, que entram em conflito a partir de um momento de epifania,
gerado por algum fato do próprio cotidiano. Esse instante de iluminação conduz a uma
espécie de desestabilização subjetiva, que resulta em uma narrativa voltada para o
mundo interior das personagens, mas também para o próprio mundo da linguagem, por
onde se tenta reestabelecer a ordem e o sentido. Nesses instantes, o que se revela com
frequência é um mundo interior intenso e convulso, que só há muito custo tenta ser
represado.
Nesse contexto, as personagens clariceanas se percebem diante de três grandes
instâncias de aprisionamento, que podem ser esquematizadas do seguinte modo: a
condição social (onde pesam especialmente as opressões de gênero), a condição humana
(onde se problematiza a falta de controle sobre o próprio destino) e, por fim, a
linguagem (que tenta apreender e dar sentido à realidade). O embate entre esse mundo
interior convulso e essas limitações fornece matéria para grande parte da obra da
escritora.
Em Perto do coração selvagem (1943), por exemplo, a personagem Joana
afirma: “Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome.". 4 Esse célebre
fragmento ilustra não apenas a centralidade desse tema na obra de Clarice, mas o
próprio embate com a linguagem, isto é, com a impossibilidade de dar nomes precisos
às dimensões do mundo subjetivo.
No mesmo livro, a liberdade, quando não aparece enquanto desejo extremo e
inenarrável, fruto da angústia das limitações da condição humana e de sua linguagem
também limitada (e limitadora), aparece como opção heroica – “Liberdade? É o meu
último refúgio, forcei-me à liberdade e aguento-a não como um dom mas com
heroísmo: sou heroicamente livre. E quero o fluxo”5. Nesse sentido, “querer o fluxo”
corresponderia a negar os enquadramentos existenciais, sociais e expressionais. A opção
de ser livre é heroica, na medida em que acarreta todo o ônus do gauchismo, da dor do
não-pertencimento, da luta contra um sistema pré-estabelecido já viciado no disfarce.
O próprio título do livro, Perto do coração selvagem – cuja epígrafe revela a
referência a James Joyce, que fala sobre alguém que estava só, “perto do selvagem
coração da vida” – já prenuncia que a narrativa estará centrada nesse mundo subjetivo,
indomesticável e inquieto. Vale pontuar que universo semelhante pode ser encontrado
em composições icônicas de Cazuza, como nas letras de “Down em mim” (“Eu não sei
o que meu corpo abriga/ nessas noites quentes de verão/ e nem me importa que mil raios

4
In: Perto do Coração Selvagem (LISPECTOR, 1998:70)
5
In: Àgua Viva (LISPECTOR, 1998, p.16)
partam/ qualquer sentido vago de razão”) e de “Só as mães são felizes”, onde
justamente a figura da mãe se desenha em negativo em relação às criaturas que habitam
“o lado escuro da vida” (“nunca viu Lou Reed/ walking on the wild side” ou “você
nunca ouviu falar de maldição/ nunca viu um milagre/ nunca chorou sozinha num
banheiro sujo/ nem nunca quis ver a face de Deus”).
Segundo Benedito Nunes, mais do que a preocupação em filosofar, estabelecer
ou discutir doutrinas, há na obra da escritora “uma intuição sensível de escrever sobre a
ameaça da angústia que nos acolhe, quando se anseia viver sob o signo da busca da
liberdade”.6 Sem dúvidas, essa angústia e essa inquietude, vinculadas, sobretudo, ao
desejo de liberdade, são pontos que unem profundamente as obra de Clarice e de
Cazuza.
Como já se disse, Cazuza também se inspirou diretamente em Clarice Lispector
para escrever “A via-crúcis do corpo”, em referência ao livro de contos homônimo da
escritora, de 1974. A composição visita o universo de Clarice, em seu caráter geral, mas
também por meio de referências a essa obra específica, o que se comprova em versos
como “Só não volta a infância perdida/ só não nos livramos de morrer à toa”, “A dor
pode ser disfarçada/ mas a via-crúcis do corpo/ já foi há muito traçada” e “Será que eu
tenho um destino?/ não quero ter a vida pronta/ como um plano de trabalho/ como um
sorvete de menta”.
O eu-lírico da canção, espelhando a narradora incompleta e inquieta, pergunta-se
sobre a dor da existência – a via-crúcis do corpo e da alma – e a dúvida sobre o destino
humano, na qual a liberdade é, a um só tempo, dádiva e condenação. Note-se que esses
versos também reverberam o livro Água viva, que deu origem a “Que o Deus venha”,
onde a figura de Deus (“o Deus”, delimitado pelo artigo definido) revela o princípio e o
fim de todas as coisas, atribuindo sentido à vida e a morte, trazendo plenitude e quietude
para os sujeitos, mas também se oferecendo como interlocutor dos questionamentos
sobre a existência. Tal como em “Só as mães são felizes”, são justamente as criaturas do
lado escuro da vida que aspiram ver a face de Deus.
Vale lembrar ainda que a presença de Deus faz-se mais constante e contundente
nas composições da última fase da obra de Cazuza, especialmente em alguns de seus
textos poéticos (que permanecem sem melodia) e das canções do álbum Burguesia
(1989). Nesses casos, a proximidade da morte (no contexto biográfico da ameaça da

6
NUNES apud HELENA, 2006:38.
AIDS) intensifica no compositor a alusão a essa força suprema, ora dando sentido e
alívio a seu sofrimento, ora funcionando como alvo de sua revolta e de sua rebelião (tal
como acontece com a narradora de Água viva).
Além disso, o fragmento específico que dá origem a “Que o Deus venha” toca
em um ponto de constante inquietude na obra de Cazuza: a incapacidade de amar, que
se apresenta como o grande pathos presente na obra do compositor. A recorrente
afirmação do não saber amar (em tensão com seu intenso desejo de transitividade
amorosa) atravessa várias de suas composições e se faz notória nos versos “embora
amor dentro de mim eu tenha/ só que eu não sei usar amor”.
Formulações semelhantes aparecem nas letras de “Malandragem” (“eu sou poeta
e não aprendi a amar”), “Rock’n’geral” (“ou de um coração meio surdo que não sabe
amar”), “não amo ninguém e é só amor que eu respiro” (“Não amo ninguém”), “Filho
único” (“estou na mais completa solidão/ do ser que é amado e não ama”), “Nunca sofri
por amor” (“será que nunca amei de verdade/ ou o verdadeiro amor é assim”), “Carente
profissional” (“levando em frente/ um coração deprimente/ viciado em amar errado/
crente que o que ele sente/ é sagrado/ e é tudo piada”) e “Fracasso” (“mas eu tenho a
impressão/ que todos nós somos fracassados/ eu, por exemplo: não amo...”).
De modo mais amplo, Água Viva fala do mistério do instante que, a um só
tempo, é vida e morte – criação e destruição. O livro que começa na “aleluia” de um
parto, no “uivo humano da dor de separação”, mas que é “grito de felicidade diabólica”,
fala da explosão do nascimento, da transição, da existência que se faz no limite entre a
dor e a alegria, sempre avançando para o próximo instante que provoca medo e fascínio,
pois se trata do desconhecido. Os versos adaptados de Cazuza concentram esses
sentidos, ao apontarem o perigo da vida, o sempre inesperado.
Vale notar também que há várias palavras que se repetem neste livro, bem como
em toda a obra da escritora: “grita”, “arde”, “pulsa”, “vibra”, “flui”. Como já foi dito,
essas palavras estão diretamente ligadas a um espaço interior indomesticável, que é
aprisionado pelos limites da condição humana, pelas molduras sociais que se lhe impõe
e pelo discurso que o tenta formular. Esse mesmo conjunto de palavras (ou ao menos
seus sentidos) atravessam, em grande medida, as composições de Cazuza. E, o “objeto
gritante” que se narra em Água viva também se relaciona intimamente ao universo rock,
de onde o artista extrai a natureza de seu canto e de seu grito.
Por fim, vale pensar que “o lado escuro da vida” ou aquilo que se encontra
“perto do coração selvagem” não teria tanta força se não colocassem em tensão o
sagrado e o profano, o grito e o silêncio, o fluxo e o limite, a transgressão e a redenção,
o roubo e a rosa. E assim, a letra que começa com o sujeito “áspero”, “inquieto” e
“desesperançado”, projeta a esperança de ter paz antes da morte e, mais que isso, um
fundo desejo de delicadeza. E é nesse espaço de conflito que se iluminam, mutuamente,
as obras de Cazuza e de Clarice Lispector.

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