Академический Документы
Профессиональный Документы
Культура Документы
ANTROPOLOGIA E TEATRO
Docente Paulo Raposo
O meu ponto de partida são as duas artistas plásticas a que Viviane Rocha
dedica a sua tese de doutoramento: Márcia X e Beth Moysés. Mais
especificamente as performances: Desenhando com Terços (Márcia X) e
Memória do Afecto (Beth Moysés).
Duas artistas, duas mulheres, duas imagens de reivindicação no feminino,
duas simbólicas diferentes, uma única dor, um único antagonista: o
homem.
Através destes dois trabalhos de performance irei elaborando um
paralelismo entre a própria performance, o esquema psíquico descrito por
Jung, nomeadamente no que diz respeito ao conceito de arquétipo, sombra
e anima, e, os mitos envolvidos: Lilith e Eva.
2
Transformou-se numa figura nocturna, sendo muitas vezes retratada com
uma coruja de cada lado. Mulher demónio, independente, erótica e sensual,
senhora dos seus desejos e por isso também dotada de grande criatividade,
foi banida da Bíblia, e enviada para o porão do inconsciente colectivo…
Adão, triste por ter ficado sozinho, pede a Deus uma nova companheira,
uma mulher que seja mais submissa aos seus desejos. Assim, de uma
costela de Adão, Deus criou a Eva: uma mulher submissa ao seu
companheiro, dócil e maternal.
Dentro do esquema psíquico elaborado por Jung, estas duas mulheres são
dois rostos da Anima, sendo que Lilith é Anima e Sombra simultaneamente.
Dentro da sociedade patriarcal que se instalou desde tempos remotos, a
mulher que assume o seu desejo sexual é a proscrita, a meretriz, encontra-
se à margem do que é socialmente correcto e aceite. É uma mulher
poderosa e perigosa, tendo cortado com tudo o que diga respeito à Mulher-
Mãe, representa muitas vezes no Inconsciente Colectivo o Arquétipo da
Amante. É também a Sacerdotisa, a Bruxa, tantas vezes queimada na
fogueira pela Inquisição. Eva é o arquétipo da Mulher- Mãe, da cuidadora,
frágil e submissa à vontade do homem.
Márcia X
Ao observar o trabalho destas duas artístas/performers não posso deixar de
lhes perceber os contornos do Mito e do Arquétipo. Márcia X apresenta-nos
a sua performance como um ritual assumidamente sagrado, criticando o
patriarcado clerical de uma forma provocadora. Totalmente vestida de
branco, cabelos longos, soltos, descalça, vai dispondo pelo chão, lenta e
minuciosamente, terços adereços que traz ao pescoço, concebidos
especialmente para o seu trabalho, transformando-os em pénis. “Esta
performance/instalação foi realizada pela primeira vez na Casa de Petrópolis –
Instituto de Cultura (sala de jantar em processo de restauro), Julho de 2000.
Foram usados 500 terços (montados dois a dois). A sala mede 4x5m. A
performance durou 6h.”
3
De tal forma Márcia X foi marcante, que mesmo depois da sua morte, a
performance/instalação Desenhando com Terços, foi incómoda e causou
polémica:
4
A Dra Clarissa Pinkola Éstes, depois dos seus estudos em biologia e fauna
selvagem, com enfoque particular nos lobos (daí o título do livro Mulheres
que Correm com os Lobos: Mitos e Relatos do Arquétipo da Mulher
Selvagem), diz-nos que: “A atitude predadora que exercem sobre os lobos e as
mulheres aqueles que não os compreendem é surpreendentemente similar.” E
ainda: “E, sem dúvida, ambos foram perseguidos, hostilizados e falsamente
acusados de ser vorazes, velhacos e demasiado agressivos e de valer menos que os
seus detractores”. 4
5
Beth Moysés
Memória do Afecto:
DA CONSOLAÇÃO AO PARAÍSO
*por Katia Canton
Desde1994, a artista Beth Moysés assumiu o vestido de noiva como instrumento de
articulações simbólicas sobre as relações amorosas e tudo que as cerca.
Primeiro, como num tapete gigante e surreal, forrou o teto de uma capela com um
arsenal de vestidos de noiva. Elevados às alturas, eles falavam de promessas,
denunciavam expectativas reduzidas a brancas nuvens, demonstravam uma
ausência literal de pés no chão. Dependurados pelas saias, sem corpos, recheados
com panos, anônimos, os vestidos transpiravam solidão e desencanto e sugeriam
um campo minado de lágrimas.
Nesse momento, a crítica desencantada é substituída por uma enérgica
performance-manifesto. Os vestidos são finalmente (re)ocupados. Descem ao chão,
são habitados pelas mulheres aos quais pertenciam. Por mais velhos, apertados ou
folgados, curtos ou longos que estejam agora, ao vestí-los, elas (re)clamam as
memórias de amor e afetividade que a simples presença do vestido ritualizava num
momento específico do passado.
Os corpos dessas mulheres vestidas de noiva caminham hoje pelas ruas e avenidas
num percurso em que as promessas do passado se mesclam e reivindicam
concretização no futuro. Que todo sonho embutido no símbolo do vestido branco se
torne a bandeira da paz, do amor e da solidariedade a espelhar e penetrar o agora
em diante.
Carregando rosas, cujas pétalas são desgarradas e jogadas ao chão, as mulheres
parecem querer rastrear uma memória e contaminar o espaço urbano e seus
habitantes com sentimentos de paz e afeto. Por fim, à chegada, as hastes nuas das
rosas, pontuadas agora somente por espinhos são despejadas numa profunda
cratera cavada por suas próprias mãos, na terra. As dores são enterradas num ato
simbólico que combina coragem e resignação.
É assim que essa performance-manifesto transcende os limites da arte e ganha um
significado de urgência amorosa dentro de um universo de violências cotidianas,
6
que começa nas relações familiares e contamina todos os tipos de situações na vida
da cidade.
Que as mulheres vestidas de branco possam completar seu percurso, contagiando
outras pessoas pelo caminho. Que possam de fato enterrar seus espinhos.
E que esse caminho substitua uma atitude resignada, de consolação, e clame por
um estado tomado por uma generosa e contagiosa afetividade. Que ele seja
seguido.
*Katia Canton é crítica de arte. Acompanha sistematicamente a produção de Beth
Moysés desde 1994.” 7
7
Mas os contos de fadas terminam todos no “E viveram felizes para sempre”.
Nunca ninguém sabe como é que o príncipe e a princesa vivem a rotina do
dia a dia. Questiono-me se esta performance de Beth Moysés não estará a
perpetuar o síndrome de vitimização destas mulheres, a maior parte delas
vítimas de violência doméstica. Elas tinham concerteza um sonho quando
casaram, expectativas, ilusões… A expulsão do Paraíso é um momento
difícil, é o despertar para a realidade, é sair de um conforto infantil de
nutrição e protecção. Não vou, nesta reflexão, entrar pela explicação dos
padrões e mecanismos de projecção das mulheres vítimas de violência, pois
isso daria mais uma série de considerações. Mas não acho esta performance
de Beth Moysés interessante a um nível de reestruturação da ferida interna.
Da minha apreciação, considero sim que é uma revalidação e um reforço da
vitimização destas mulheres – O Elogio da Vítima, que olham para nós com
ar de abandono e tristeza, praticando um ritual simbólico de destruição de
tudo o que foi por elas idealizado: queimar as memórias, enterrar os
espinhos, espalhar as pétalas das rosas… desfilando mórbida e
silenciosamente nos seus vestidos de noiva que agora, com o passar dos
anos, se transformam numa imagem grotesca – porque já não há fecho que
resista, porque já não serve, etc. No fundo, parecem dizer-nos “Tenham
pena de nós”, e todo este ritual não ajuda à verdadeira recuperação do seu
poder pessoal. Porque o que acontece a um nível psicológico, e
consequentemente físico, a mulheres vítimas de violência doméstica é a
perda do seu poder pessoal.
A Dra Christiane Northrup dá-nos uma perspectiva do patriarcado, que ela
diz resultar em dependência, que se encaixa em tudo o que tenho vindo a
argumentar:
“A cosmologia judaico-cristã que informa que a civilização ocidental encara o corpo
feminino e a sexualidade feminina de Eva como responsáveis pelo declínio da
espécie humana. Durante milhares de anos, as mulheres foram rebaixadas,
maltratadas, queimadas na fogueira e acusadas de todos os malefícios, única e
simplesmente por causa do seu sexo. Esquecemo-nos, nesta era de mudanças tão
rápidas, que às mulheres só foi reconhecido o direito de voto em 1920! (…) A
crença de que é suposto os homens dominarem as mulheres está bem arreigada
em muitas tradições ocidentais.
A organização patriarcal da nossa sociedade exige que as mulheres, os seus
cidadãos de segunda categoria, ignorem ou rejeitem as suas esperanças e sonhos
8
por deferências aos homens e às exigências das suas famílias. Este sistemático
bloqueio, ou negação, das nossas necessidades de auto-expressão e auto-
realização provoca em nós uma enorme dor emocional. Para escondera as suas
dores, as mulheres habituaram-se a usar aditivos e desenvolveram
comportamentos de dependência que levaram a um ciclo infindável de maus tratos
que nós mesmas ajudamos a perpetuar.” 9
Para quem não está familiarizado com o Mito de Lilith, a Eva como
tentadora é um eco. Mas Eva, antes de ter tentado foi tentada. E quem é
que tentou Eva? A serpente que é tida como Lilith. A psique cendida. Duas
faces da mesma Anima, mas uma delas foi obrigada a permanecer
escondida no inconsciente, transformando-se em Sombra.
A Experiência em Aberto
A performance, de acordo com Victor Turner, é a experiência que se
completa através de uma forma de expressão. O professor Jonh Cowart
Dawsey, no seu artigo Turner, Benjamin e Antropologia da Performance: O
lugar olhado (e ouvido) das coisas, questiona o que se entende por
completar essa experiência. Se a performance fica em aberto, não acabada,
temos que ter atenção para onde é que ela fica aberta – se para as feridas
internas do objecto da performance, ou se para o caminho da resolução.
Senão, não estará o autor da performance a usar as situações e as pessoas
como meros objectos decorativos e estéticos?
9
– a Porta voz das Evas e as suas “Noivas Cadáver”, no seu cortejo fúnebre
não questionador, mas potencialmente catalisador de identificações várias
entre vítimas.
10
ANEXOS
11
Márcia X – Desenhando com Terços
12
LILITH
EVA
13
O Mito Do Amor Romântico
14
NOTAS
1
In Mulheres que Correm com os Lobos, Dra Clarissa Pinkola Estés*, Suma de Letras, 2001,
Prólogo (tradução minha do castelhano).
*Diplomada em Psicologia Analítica Jungiana pela Associação Internacional De Psicologia
Analítica de Zurique, Suíça, é cantadora guardiã dos antigos contos da tradição latino
americana e poeta de renome internacional. Foi directora executiva do C.G. Jung Center for
Education and Research dos Estados Unidos, e doutorou-se em estudos interculturais e
psicologia clínica.
2
http://www.youtube.com/watch?v=FQ7R_FPMF4k
Excerto do documentário sobre Lilith: Banned from the Bible para o Canal História
3
Informação retirada do site http://nu-chao.blogspot.com/2006/04/obra-de-mrcia-
x-censurada-na-exposio.html
4
In Mulheres que Correm com os Lobos, Dra Clarissa Pinkola Estés, Suma de Letras, 2001,
pp. 12-13, (tradução minha do castelhano).
5
http://marciax.uol.com.br/mxText.asp?sMenu=3&sText=26
6
In Mulheres que Correm com os Lobos, Dra Clarissa Pinkola Estés, Suma de Letras, 2001,
p. 542, (tradução minha do castelhano).
7
http://www.bethmoyses.com.br/bethmoys.htm
8
In Through the Looking Glass – A search for the Self in the mirror of relationships,
Seminars in Psychological Astrology, Vol 5, Richard Idemon (1938-1987)*, Edited by
Howard Sasportas, 1992, p. 118-119 (tradução minha do inglês).
*Astrólogo, Terapeuta, Conferencista e Professor Norte Americano.
9
In Corpo de Mulher Sabedoria de Mulher, Christiane Northrup M.D.*, Sinais de Fogo, 1998,
p. 31
*Médica ginecologista-obstetra e trabalhou na Drmouth Medical School e no Tufts New
England Medical Center antes de co-fundar o centro de saúde Women to Women em
Yarmouth, Maine, que se tornou num modelo para as clínicas para mulheres nos EUA. Foi
presidente da American Holistic Medical Association e é actualmente Professora Assistente de
Ginecologia-Obstetrícia no College of Medicine da Universidade de Vermont.
15
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ÉSTES, Clarissa Pinkola. 2001 “Mujeres que corren com los lobos”, Madrid: Suma de Letras
NORTHRUP, Christiane. 1998 “Corpo de Mulher Sabedoria de Mulher”, Lisboa: Sinais de Fogo
IDEMON, Richard. 1992 “Through the Looking Glass – A search for the Self in the mirror of
relationships”. Seminars in Psychological Astrology, Volume 5, Maine: Howard Sasportas
CAMPBELL, Joseph. 2001 “Thou Art That – Transforming Religious Metaphor”, California:
New World Library
JUNG, C. G. 2002rp “ The Archetypes and the Collective Unconscious”, London: Routledge
16