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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Deus analisado:
os católicos e Freud
A recepção da crítica freudiana da crença religiosa
pela Igreja Católica

Ricardo Torri de Araújo

Tese de Doutorado apresentada ao


Programa de Pós-Graduação em Teoria
Psicanalítica do Instituto de Psicologia do
Centro de Filosofia e Ciências Humanas
da Universidade Federal do Rio de
Janeiro como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de
Doutor em Teoria Psicanalítica.

Orientador: Joel Birman

Novembro / 2012
Deus analisado: os católicos e Freud
A recepção da crítica freudiana da crença religiosa pela Igreja Católica
Ricardo Torri de Araújo
Orientador: Joel Birman
Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica
do Instituto de Psicologia do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade
Federal do Rio de Janeiro como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de
Doutor em Teoria Psicanalítica.

Aprovada por:

______________________________________________________________________
Presidente, Prof. Dr. Joel Birman (orientador)

______________________________________________________________________
Profa. Dra. Regina Herzog de Oliveira

______________________________________________________________________
Profa. Dra. Maria Clara Lucchetti Bingemer

______________________________________________________________________
Prof. Dr. Jurandir Freire Costa

______________________________________________________________________
Prof. Dr. Eduardo Dias Gontijo

Rio de Janeiro
Novembro / 2012
A663

Araújo, Ricardo Torri de.


Deus analisado: os católicos e Freud: a recepção da crítica freudiana da crença
religiosa pela Igreja Católica / Ricardo Torri de Araújo. Rio de Janeiro: UFRJ / Centro
de Filosofia e Ciências Humanas / Instituto de Psicologia / Programa de Pós-Graduação
em Teoria Psicanalítica, 2012.

ix, 432f.; 29,7 cm.

Orientador: Prof. Dr. Joel Birman

Tese (doutorado) Ŕ UFRJ / Centro de Filosofia e Ciências Humanas / Instituto de


Psicologia / Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, 2012.

Referências Bibliográficas: f. 395-432.

1. Psicanálise e religião. 2. Ateísmo. 3. Catolicismo. I. Birman, Joel. II.


Universidade Federal do Rio de Janeiro, Centro de Filosofia e Ciências Humanas,
Instituto de Psicologia, Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica. III. Título.

CDD: 150.1952
RESUMO

Deus analisado: os católicos e Freud


A recepção da crítica freudiana da crença religiosa pela Igreja Católica
Ricardo Torri de Araújo
Orientador: Joel Birman

Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Teoria


Psicanalítica do Instituto de Psicologia do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da
Universidade Federal do Rio de Janeiro como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Doutor em Teoria Psicanalítica.

Segundo Freud, a origem da crença em Deus é o complexo paterno. A crença religiosa


pode ser pensada como uma neurose e uma ilusão. A sua principal função é oferecer
proteção ao ser humano. E o seu destino é desaparecer, cedendo lugar a uma era
científica. A presente investigação é uma discussão dessas ideias. Discorre sobre as
relações pessoais de Freud com o fenômeno religioso. Apresenta, diacrônica e
sistematicamente, a sua crítica da religião. Conta a história da recepção da psicanálise
pelo catolicismo. E, por fim, submete a uma avaliação crítica a crítica freudiana do fato
religioso.

Palavras-chave: Psicanálise e religião, ateísmo, catolicismo


Rio de Janeiro
Novembro / 2012
ABSTRACT

God analyzed: the catholics and Freud


The reception of the freudian critic of the religious belief by the Catholic Church
Ricardo Torri de Araújo
Advisor: Joel Birman

According to Freud, the source of the belief in God in the father complex. Religious
faith can be thought as a neurosis and an illusion. Its main purpose is to grant protection
to the human being. And it is going to disappear, giving way to a scientific age. The
present investigation is a discussion of those ideas. It studies Freud‟s personal
relationship with the religious phenomenon. It presents his criticism of religion from a
diachronic and a systematic point of view. It reports the history of the reception of
psychoanalysis by catholicism. And, finally, it presents a critical evaluation of the
freudian criticism of the religious fact.

Key-words: Psychoanalysis and religion, atheism, catholicism


Rio de Janeiro
November / 2012
RÉSUMÉ

Dieu analysé: les catholiques et Freud


La réception de la critique freudienne de la croyance religieuse par l‟Église Catholique
Ricardo Torri de Araújo
Directeur de thèse: Joel Birman

D‟après Freud, la croyance en Dieu trouve son origine dans le complexe paternel. La
croyance religieuse peut être pensée comme une nevrose et comme une illusion, dont la
fonction principale consisterait à offrir protection à l‟être humain. Elle serait destinée à
disparaître pour faire place à une ère scientifique. En vue de discuter ces idées, cette
recherche disserte sur les rapports personnels de Freud avec le phénomène religieux et
présente, dans une perspective diachronique et systématique, sa critique de la religion;
ensuite, elle fait le récit de l‟histoire de la réception catholique de la psychanalyse, en
soumetant, finalement, à une évaluation critique la propre critique freudienne du fait
religieux.

Mots-clés: Psychanalyse et religion, athéisme, catholicisme


Rio de Janeiro
Novembro / 2012
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO

INTRODUÇÃO
Tema
Limites
Resumo
Avisos

CAPÍTULO 1: SIGMUND FREUD E A RELIGIÃO


O ateísmo de Freud
O interesse de Freud pela religião
Uma questão conflitiva
A formação religiosa de Freud
A identidade judaica de Freud
Judaísmo e psicanálise
A atitude de Freud face ao judaísmo, o protestantismo e o catolicismo

CAPÍTULO 2: A CRÍTICA FREUDIANA DA CRENÇA RELIGIOSA


A religião na obra de Freud
“Atos obsessivos e exercícios religiosos”
“Totem e tabu”
“O futuro de uma ilusão”
“Sobre uma visão do mundo”
“O homem Moisés e a religião monoteísta”
Síntese sistemática da crítica freudiana da religião
A origem da religião
A natureza da religião
As funções da religião
O futuro da religião
CAPÍTULO 3: HISTÓRIA DA RECEPÇÃO DA PSICANÁLISE PELA IGREJA
CATÓLICA
Durante a vida de Freud (até 1939)
Décadas de 1940 e 1950 (Pio XII: 1939-1958)
Décadas de 1960 e 1970 (João XXIII: 1958-1963 e Paulo VI: 1963-1978)
Décadas de 1980 e 1990 (João Paulo II: 1978-2005)
Balanço geral
Psicanálise e religião: irreconciliáveis?
Psicanálise e religião: compatíveis?
Da incompatibilidade ao concordismo
Abertura para o diálogo, mas sem esperança de acordo
Crítica freudiana da religião e psicanálise: independentes?
O efeito da psicanálise sobre a religião: depuração?
Jung: uma opção melhor para os católicos?
Lacan: versão católica da psicanálise?
A psicanálise como religião

CAPÍTULO 4: CRÍTICA DA CRÍTICA FREUDIANA DA CRENÇA RELIGIOSA


Crítica da crítica
Os motivos pessoais do ateísmo de Freud
O conhecimento que Freud tinha do catolicismo
“Credo quia absurdum”
O alcance epistemológico da psicanálise quanto ao problema de Deus
Crítica de “Totem e tabu”
Crítica de “O homem Moisés e a religião monoteísta”
“Totem e tabu” e “O homem Moisés e a religião monoteísta” em várias chaves de
leitura
O valor de “Totem e tabu” e de “O homem Moisés e a religião monoteísta”
A origem edipiana do ateísmo
“Deus é o pai” ou “O Pai é Deus”?
Um reducionismo psicologista
O desapreço pelas dimensões feminina e materna da religião
Freud e a mística
Freud e Nossa Senhora
As origens materna e paterna da imagem de Deus
Religião, uma neurose?
A crença em Deus, uma ilusão?
O deus de Freud: o Deus cristão?
Uma ilusão sem futuro?

CONCLUSÃO

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
APRESENTAÇÃO

O/a leitor/a vai me permitir escrever esta apresentação na primeira


pessoa do singular Ŕ apenas ela.
Este texto não foi fabricado por uma máquina. Menos ainda, foi ditado
por um oráculo. Ele tem um autor.
Certa vez, Antoine Vergote (1921), padre e psicanalista, iniciou uma
conferência ministrada num congresso acontecido em Verona, na Itália, com as
seguintes palavras: “Parto aqui da minha condição de psicanalista freudiano convicto,
bem como da minha condição de crente cristão convicto”1.
É um pouco dessa maneira que me percebo também.
Sim, porque, de um lado, sou psicólogo e mestre em psicologia e,
agora, doutorando em teoria psicanalítica, havendo algo em torno de 25 anos que
frequento, com proveito e prazer, os textos de Sigmund Freud (1856-1939). De outra
parte, sou cristão, catñlico, padre e membro da Companhia de Jesus e “estou de bem”
com essa pertença. Fui analisado por alguns anos, como também fiz a experiência dos
Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola (1491-1556). Tenho, pois, razoável
conhecimento teórico e prático tanto da psicanálise como da religião. E, mais do que
isso, tenho uma atitude positiva, de abertura e receptividade, tanto em relação a uma
quanto a outra.
É essa uma boa posição? Penso que sim. Penso que, para escrever
sobre psicanálise e religião, não basta saber psicanálise, é preciso entender também de
religião; não basta entender de religião, é preciso saber também psicanálise. Numa
palavra, é necessário ser “bilíngue”2 e, se possível, ter “dupla nacionalidade”.
Houve uma vez em que Freud disse que quem não simpatiza
minimamente com alguma coisa Ŕ ele pensava na psicanálise Ŕ não é capaz de
compreendê-la3. Não se pode dizer o mesmo da religião?

1
VERGOTE, Psicanálise e religião. Revista Portuguesa de Filosofia, v.59, f.2, p.573.
2
Cf. WHITE, Deus e a psicanálise, p.8
23
Cf. W
FREUD
HITE, Une
Deusdifficulté
e a psicanálise,
de la psychanalyse.
p.8 In: _______. Œuvres complètes, v.15, p.43.
3
Cf. FREUD, Une difficulté de la psychanalyse. In: _______. Œuvres complètes, v.15, p.43.
Freud também escreveu que somente quem passou pela experiência
pessoal da análise está em condições de julgar a psicanálise4. Esse argumento não vale
também para a religião?
Sim, tenho simpatia e conheço de uma forma experiencial tanto a
psicanálise quanto a religião. E é a partir daí que falo.
O fato, porém, de eu ser católico e freudiano não significa que o
catolicismo e o freudismo sejam compatíveis entre si. Talvez, seja apenas um sinal de
das contradições que moram em mim.
Este texto é uma tentativa de dialogar com elas.

4
Cf. FREUD, Nouvelle suite des leçons d‟introduction à la psychanalyse. In: _______. Œuvres complètes,
v.19, p.153.
INTRODUÇÃO

Tema

Talvez, o título de um texto seja a sua parte mais ponderada. Não sem
razão: trata-se da primeira informação que o leitor recebe do texto e, em não poucos
casos, da única. Ali, já se “torce o nariz” ou já se procura uma posição melhor para a
leitura. Ali, muita coisa pode se decidir, inclusive, o destino mesmo do texto: ser aberto
e lido ou ser lançado para sempre numa pilha de papéis.
A questão deste trabalho que o/a leitor/a tem em mãos pode ser
apresentada a partir do seu título. Do que se trata? Qual é o problema? Está tudo ali.
A primeira palavra do título é “Deus”. É disto que se trata, do
problema de Deus. No subtítulo, que retoma o título com outras palavras, aparece a
expressão “crença religiosa”. Qual é a crença religiosa? A crença religiosa é esta: “Creio
em Deus”. Com essas palavras, tem início o Símbolo dos Apñstolos, a oração bimilenar
que reúne os enunciados fundamentais da fé cristã.
Esta é, porém, uma tese defendida num programa de pós-graduação
em teoria psicanalítica. E, de fato, fala-se, no título, em Deus “analisado”; pouco depois,
aparecem o nome de “Freud” e, já no subtítulo, o adjetivo “freudiana”. Isso significa
que o problema de Deus será considerado psicanaliticamente, não de outro modo Ŕ
nomeadamente, não filosoficamente. Noutras palavras, não estamos interessados, aqui,
no problema da existência objetiva de Deus, mas na questão da crença subjetiva nele.
Tratando-se de uma investigação psicanalítica, o “Deus” que aparece no título deste
texto não é, pois, Deus enquanto tal, mas a ideia de Deus, Deus enquanto objeto mental,
a representação psíquica de Deus. Deixemos aos filósofos discutir se, a esse
significante, corresponde ou não Aquele que merece ser assim chamado.
Nesse sentido, falamos de Deus, mas de Deus “analisado”, isto é,
psicanalisado, interpretado psicanaliticamente, de Deus tal como Freud o concebe. Ou
seja, o objeto sobre o qual pretendemos nos debruçar é o pensamento freudiano sobre a
religião, a interpretação de Freud do fato religioso, mais exatamente, a análise a que ele
submeteu a crença em Deus.
Ora, é sabido de todos que a reflexão de Freud chegou a conclusões
pouco piedosas sobre a matéria em exame. É por isso que, no subtítulo deste trabalho, o
objeto que desejamos focalizar é nomeado como “crítica”, a “crítica freudiana da crença
religiosa”. É nisto que estamos interessados: na crítica que Freud endereçou à crença
religiosa, na suspeita sob a qual colocou a atitude daqueles que creem em Deus.
A quem, contudo, Freud endereçou essa crítica? A crença de quem foi
colocada sob suspeita? Principalmente, aos católicos. Fundamentalmente, a fé católica.
É por isso que elegemos “os catñlicos”, a “Igreja Catñlica”. Esse ponto requer um
comentário um pouco mais detalhado.
Freud, que tinha um interesse não desprezível pelo fenômeno
religioso, conheceu de perto e escreveu a respeito de duas grandes tradições religiosas: o
judaísmo e o cristianismo. Noutras palavras: as religiões ocidentais Ŕ nascidas no
Oriente, mas hegemônicas no Ocidente. Ao lado de outras religiões, o islamismo, o
hinduísmo e o budismo claramente nunca importaram muito para Freud. As religiões
mosaica e cristã, sim. Talvez, porém, se possa dizer que Freud endereçou a sua crítica
da crença religiosa particularmente ao cristianismo. E, mais exatamente ainda, que ele
tinha em mente, em especial, o catolicismo. Esse é, pelo menos, o parecer de não
poucos estudiosos5. O pastor luterano Oskar Pfister (1873-1956), por exemplo, que é o
“pai” do diálogo entre a psicanálise e a fé cristã, considerou a crítica freudiana da
religião como endereçada preferencialmente ao catolicismo6.
É verdade que “Atos obsessivos e exercícios religiosos” é um artigo
que parece descrever com mais propriedade a observância judaica dos rituais do que a
liturgia cristã, seja católica, seja protestante7. Também é verdade que “O homem Moisés
e a religião monoteísta”, obviamente, é uma obra dedicada ao judaísmo: o prñprio Freud

5
Cf. ANCONA, La psicoanalisi, p.195; BIRMAN, Estilo e modernidade em psicanálise, p.76; BIRMAN,
Desejo e promessa, encontro impossível. In: MOURA, Hélio Pellegrino. A-Deus, p.117-118; COSTA, O
risco de cada um. In: _______, O risco de cada um, p.126; GAY, A Godless jew, p.59-60; MIJOLLA-
MELLOR, A necessidade de crer, p.35; ROBERT, D‟Œdipe à Moïse, p.188 [nota 1]; VACA, Psicoanálisis y
dirección espiritual, p.439; VERGOTE, Psychanalyse et anthropologie philosophique. In: HUBER; PIRON;
VERGOTE, La psychanalyse, science de l‟homme, p.247; VITZ, Sigmund Freud‟s christian unconscious,
p.177; ZILBOORG, Psicanálise e religião, p.41, 256; ver, porém: REIK, Trente ans avec Freud, p.115.
6
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, Psicoanálisis y religión: diálogo interminable, p.74-76, 128; GAGEY, Freud
et le christianisme, p.82.
7
Cf. MEZAN, Freud, pensador da cultura, p.394; ver também: CHEMOUNI, Freud, la psychanalyse et le
judaisme, p.84; DEMPSEY, Freud, psychanalyse et catholicisme, p.51; GAGEY, Freud et le christianisme,
p.32; ROBERT, D‟Œdipe à Moïse, p.57 [nota 1]; RUBENSTEIN, L‟imagination religieuse, p.82.
manifestou, mais de uma vez, o seu receio de, com esse estudo, ofender a sensibilidade
dos judeus8.
Contudo, em “O futuro de uma ilusão”, Freud esclarece que tem em
mente a cultura euro-cristã9. E, em “Nova sequência de lições de introdução à
psicanálise”, ele explica que tem presente religião dos povos ocidentais10.
Mais precisamente, a religião que Freud critica nessas duas obras é
aquela que, entre outras coisas, garante aos seus fiéis a existência da vida após a morte.
Ora, essa é uma expectativa muito mais cristã do que judaica; no judaísmo, a vida além-
túmulo constitui-se numa crença tardia, inclusive, ausente em algumas das suas
versões11.
Em “A moral sexual „cultural‟ e a nervosidade moderna”, por sua vez,
embora Freud não cite nenhuma igreja ou religião, o que ele entende por ética sexual
“civilizada” é claramente a moral sexual ocidental, cristã, católica. De fato, trata-se, ali,
da moral sexual dominante, sancionada pela religião, que só admite o sexo dentro do
casamento legítimo, monogâmico, praticado com fins de reprodução, recomendando a
abstinência aos não-casados12.
Em suma, Freud parecia, pois, estar especialmente interessado no
judaísmo e no cristianismo; mais particularmente, no cristianismo; e, mais
especificamente ainda, no catolicismo.
A propósito, uma espantosa declaração feita por ele em 1937 parece
não deixar dúvidas a respeito:

“„The Nazis?‟ he said to René Laforgue who was urging that he


leave Vienna without delay. „I am not afraid of them. Help me
rather to combat my true enemy‟. Asked how or what that was,
8
Cf. BALMARY, O monge e a psicanalista, p.173; FREUD, Correspondance 1873-1939, p.481, 495; GAY,
A Godless jew, p.152; JONES, A vida e a obra de Sigmund Freud, v.3, p.200.
9
Cf. FREUD, L‟avenir d‟une illusion. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.179.
10
Cf. FREUD, Nouvelle suite des leçons d‟introduction à la psychanalyse. In: _______. Œuvres complètes,
v.19, p.253.
11
Cf. FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.95;
FREUD, Nouvelle suite des leçons d‟introduction à la psychanalyse. In: _______. Œuvres complètes, v.19,
p.266; MALAMOUD, Psicanálise & ciência das religiões. In: KAUFMANN, Dicionário enciclopédico de
psicanálise, p.587; ver, porém: DOMÍNGUEZ MORANO, El psicoanálisis freudiano de la religión, p.432-
433.
12
Cf. FREUD, La morale sexuelle “culturelle” et la nervosité moderne. In: _______. Œuvres complètes,
v.8, p.197-198, 201, 203, 205, 208, 216; FREUD, Le malaise dans la culture. In: _______. Œuvres
complètes, v.18, p.291-292; ver também: FREUD, Correspondance avec le pasteur Pfister 1909-1939,
p.49.
he replied, „Religion, the Roman Catholic Church‟” [“„Os
nazistas?‟, disse ele a René Laforgue que estava recomendando
insistentemente que ele deixasse Viena sem demora. „Eu não
tenho medo deles. Ajude-me, isto sim, a combater o meu
verdadeiro inimigo‟. Perguntado como ou quem era este, ele
respondeu: „Religião, a Igreja Catñlica Romana‟”]13.

Por um lado, portanto, elegemos os católicos porque foi com eles


principalmente que Freud estava falando. De outra parte, porém, sentimo-nos ainda
mais confirmados nessa escolha pelo fato de que foram os católicos, sobretudo, que
falaram com Freud. Com efeito, foram os membros da Igreja Católica, os teólogos e
psicanalistas católicos, muito mais do que os judeus ou os protestantes, que ficaram
incomodados com o que Freud escreveu, que reagiram à crítica freudiana da religião e
que entraram em diálogo com o pensamento de Freud sobre a crença em Deus.
Ao longo da preparação desta tese, frequentamos também muitos
autores judeus ou próximos do judaísmo. Dessas leituras, recolhemos, entre outras
coisas, informações preciosas sobre a formação religiosa judaica que Freud recebeu e
teorias, às vezes, um pouco engenhosas sobre uma possível filiação da psicanálise ao
judaísmo. Chegamos, porém, ao seguinte parecer: a maioria dos judeus que escrevem
sobre a interpretação de Freud do fato religioso não é de judeus praticantes. Podem até
ser muito ciosos da sua judeidade, mas não são adeptos do judaísmo. Nesse sentido, não
dialogam com a crítica freudiana da religião a partir do ponto de vista da fé judaica14. E
é isto o que nos interessa: a interlocução que os crentes entabularam com Freud.
Ora, os crentes que dialogaram com Freud são, em sua maior parte,
católicos. Há também protestantes, a começar por Pfister. Mas, depois dele, quem mais?
O anglicano Roy Stuart Lee, o luterano Paul Johannes Tillich (1886-1965), o calvinista
Paul Ricœur (1913-2005) Ŕ não são muitos nomes. Portanto, embora sem ignorar os
judeus e os protestantes, o que pretendemos focalizar, em nossa pesquisa, é o diálogo
entre os católicos e Freud em torno da análise freudiana da crença em Deus.
A respeito desta expressão “os catñlicos e Freud” Ŕ que completa o
título deste texto Ŕ, três observações se fazem ainda necessárias. Primeiramente, note-se
que se trata de “os catñlicos e Freud”, não de “Freud e os catñlicos”. Isso não é casual.

13
CLARK, Freud, p.491; cf. ANCONA, Il debito della chiesa alla psicoanalisi, p.18, 28; DANSEREAU,
Freud et l‟athéisme, p.125; VITZ, Sigmund Freud‟s christian unconscious, p.199.
14
Cf. CHEMOUNI, Freud, la psychanalyse et le judaisme, p.139-142, 167; GAY, A Godless jew, p.96.
Essa escolha significa que pretendemos dar voz, sobretudo, aos praticantes do
catolicismo a respeito do pensamento de Freud sobre a sua fé. Como está indicado no
subtítulo, pretendemos focalizar a “recepção” pela Igreja Catñlica da crítica freudiana
da crença religiosa. Naturalmente, isso supõe, como tarefa prévia, que a teoria de Freud
seja apresentada. Mas ela o será para que, em seguida, os católicos possam falar. Pois,
este é o ponto, algo que pretendemos demonstrar: Freud fez os católicos falarem,
interrogou o catolicismo, desinstalou-o, deixou-o pensativo. O que Freud fez os
católicos falarem? Responderem? Admitirem? Eis a questão.
Para dizê-lo de outro modo, sabe-se que, em 1960, em Bruxelas, na
Bélgica, Jacques Lacan (1901-1981) pronunciou duas conferências que foram
intituladas “Discurso aos catñlicos”15. De certa maneira, alterando apenas uma letra
desse título Ŕ mas uma letra decisiva Ŕ, o que pretendemos construir é o “Discurso dos
catñlicos”. Mais do que o que Freud falou sobre a religião, interessa-nos o que os
católicos falaram sobre o que Freud falou. Porque Freud os fez falar. E muito. E, desde
já, é importante que se diga: Freud não apenas os fez reagir defensivamente a algo
tomado como um ataque ao tesouro de sua fé; ele os fez repensar também as próprias
crenças e, talvez, formulá-las em termos mais razoáveis.
Outra observação. No subtítulo, empregamos a expressão “Igreja
Catñlica”, no singular, com as iniciais maiúsculas, evocando, assim, a instituição
eclesial do catolicismo. No título, porém, que é o que vem primeiro, optamos pelo
termo “catñlicos”. De novo, isso não é sem motivo. Com essa opção, pretendemos
apontar, já no título deste texto, para a existência de uma multiplicidade de posições, no
seio mesmo da Igreja Católica, a respeito de Freud, da psicanálise e da crítica freudiana
da religião. De fato, a Igreja Católica não é um bloco monolítico, um todo homogêneo,
mas uma instituição que abriga, em suas fileiras Ŕ não tão bem “enfileiradas” assim Ŕ,
uma diversidade de opiniões. Em nosso levantamento das reações dos católicos a Freud,
vamos, pois, considerar de Eugenio Pacelli (1876-1958), o papa Pio XII, chefe supremo
da Igreja Católica nas duas décadas que se seguiram à morte de Freud, a Jacques-Marie
Pohier (1926-2007), teólogo dominicano, o padre e professor de teologia que foi
proibido pela Santa Sé de lecionar, de pregar e mesmo de presidir publicamente a
eucaristia. Ou ainda, vamos de Hans Küng (1928), o teólogo que foi desautorizado de
15
LACAN, Discours aux catholiques. In: _______. Le triomphe de la religion précédé de Discours aux
catholiques, p.9-65.
chamar de “catñlica” a sua teologia, a Joseph Ratzinger (1927), o teólogo cujo
pensamento se tornou sinônimo de teologia oficial em matéria de catolicismo.
Uma última palavra sobre o título. Embora, a essa altura, isto já esteja
bastante claro, talvez, não seja demais explicitar que o nosso autor em psicanálise é
Freud; a crítica da religião em que estamos interessados é a freudiana. Citamos Lacan
acima e temos por ele um grande apreço, mas, se há um ponto em que Lacan não é
freudiano, este é em sua atitude para com a religião. De fato, Lacan está longe de
simplesmente endossar o pensamento de Freud sobre o fato religioso. As suas intuições
sobre a matéria se revestem de uma originalidade toda sua. Seria, portanto, um outro
trabalho, que não aquele a que nos propusemos, tomar por objeto o pensamento
lacaniano sobre a religião.
Alguma referência a Lacan teremos, porém, que fazer, uma vez que,
nas décadas de 60 e 70, especialmente, na França e na Bélgica, muitos padres católicos
que se tornaram psicanalistas filiaram-se ao movimento lacaniano. Chegou a haver, por
exemplo, 12 jesuítas na École Freudienne de Paris [Escola Freudiana de Paris]!16 Isso
parece sugerir que, talvez, o lacanismo tenha se configurado como uma versão da
psicanálise mais palatável aos católicos. Esse é, porém, um ponto que pretendemos
considerar apenas de passagem.
Quanto ao subtítulo, ele apenas repete de uma maneira menos
tranchant Ŕ mais acadêmica, quem sabe? Ŕ o que o título já havia dito. Enquanto
comentávamos o título, já fomos evocando, um a um, os termos de que se constitui o
subtítulo, de modo que podemos dá-lo por também explicado.

Limites

Uma coisa se define não apenas pelo que ela é, mas também pelo que
não é. Na seção precedente, definimos o que pretendemos focalizar em nosso estudo;
nesta seção, queremos indicar o que está próximo do nosso tema, sem, contudo,
constituir-se no seu objeto. De fato, a qualidade de uma pesquisa depende muito de uma
delimitação adequada do seu escopo. É preciso encontrar o ponto certo: nem demais,
nem de menos. Ao eleger os católicos, deixando os judeus e os protestantes em segundo
16
Os mais conhecidos talvez sejam Louis Beirnaert (1906-1985), François Roustang (1923), Michel de
Certeau (1925-1986), Philippe Julien e Denis Vasse.
plano, já procedemos a um corte dessa natureza. Mas há ainda outras delimitações a
mencionar.
No título do nosso trabalho, está muito claro que vamos tratar do
problema de Deus. No subtítulo, aparece a expressão “crença religiosa”, e já tivemos a
oportunidade de dizer que a crença religiosa por excelência é a crença em Deus. Seja
como for, ao discorrer sobre o assunto, a fim de evitar a repetição das mesmas palavras,
por vezes, falamos em interpretação freudiana do “fenómeno religioso” ou no
pensamento de Freud sobre a “religião” simplesmente. Queremos, pois, ressaltar que
aquilo que nos interessa na teoria freudiana do fato religioso é a sua análise da crença
em Deus. É importante que isso esteja claro, pois, embora fundamental, essa não é a
única questão que o pensamento de Freud coloca para a religião. Há, pelo menos, dois
outros grupos de questões muito estreitamente relacionados ao foco da nossa
investigação, mas sobre os quais não temos a intenção de nos debruçar especificamente.
São eles: os problemas que a psicanálise levanta para a antropologia cristã e as questões
que o pensamento freudiano coloca para a moral cristã.
Em matéria de antropologia, a tese da divisão do sujeito, isto é, da
existência do inconsciente, bem como o conceito de pulsão de morte representam, sem
dúvida alguma, grandes questões colocadas pela psicanálise para a maneira como a
tradição cristã concebe o ser humano. Há mesmo quem argumente que o inconsciente Ŕ
ou seja, o problema da falsa consciência Ŕ é a grande questão com a qual a psicanálise
interroga o pensamento cristão17. Pode até ser o problema principal; não vamos dizer
que não. Mas não é a questão que pretendemos enfrentar aqui18.

17
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, Creer después de Freud, p.88; DOMÍNGUEZ MORANO, El psicoanálisis
freudiano de la religión, p.474, 477; DOMÍNGUEZ MORANO, Experiencia cristiana y psicoanálisis, p.17.
18
Sobre psicanálise e antropologia, remetemos o leitor aos seguintes textos: ANCONA, Il debito della
chiesa alla psicoanalisi, p.11, 17, 21, 24, 49; BIRMAN, Desejo e promessa, encontro impossível. In:
MOURA, Hélio Pellegrino. A-Deus, p.122, 129, 131-132; BIRMAN, Sobre a correspondência de Freud com
o pastor Pfister. Religião e sociedade, n.11/2, p.35 [nota 12]; CARBALLO, Psicoanálisis y religión. In: PLÉ,
Freud y la religión, p.7-8, 64; DOMÍNGUEZ, Las anotaciones a los EE.EE. y el psicoanálisis (II). Manresa,
v.60, n.235, p.123; DOMÍNGUEZ, Ordenación de la afectividad y mecanismos de defensa. In: ALEMANY;
GARCÍA-MONGE, Psicología y ejercicios ignacianos, v.1. p.109, 119; DOMÍNGUEZ MORANO, El mucho
examinar. Manresa, v.62, n.244, p.275-277; DOMÍNGUEZ MORANO, El psicoanálisis freudiano de la
religión, p.18; DOMÍNGUEZ MORANO, El sujeto que ha de elegir hoy, visto desde la psicología (II).
Manresa, v.73, n.288, p.286; DOMÍNGUEZ MORANO, Psicoanálisis y religión: diálogo interminable, p.40;
DOMÍNGUEZ MORANO, Psicodinámica de los ejercicios ignacianos, p.82, 119-122, 217-219; DROGUETT,
Desejo de Deus, p.14, 19, 36, 38-39, 43-44; LECUIT, L‟anthropologie théologique à la lumière de la
psychanalyse, p.93-104, 554-564; MEISSNER, Ignatius of Loyola, p.47, 146; MEISSNER, Psychoanalysis
and religious experience, p.206-210; MONTAGNE, Notas sobre el tema del conflicto en los Ejercicios y en
el psicoanálisis. In: ALEMANY; GARCÍA-MONGE, Psicología y ejercicios ignacianos, v.2, p.320-329;
Tratando-se de moral, os problemas são ainda mais numerosos. De
saída, temos as antinomias: determinismo versus livre-arbítrio, superego versus
consciência moral, culpabilidade neurótica versus consciência de pecado, psicanálise
versus confissão, sexo por prazer versus sexo para procriar, hedonismo versus altruísmo
Ŕ a psicanálise e a fé catñlica parecem “bater de frente”. Mas há ainda outras questões,
como a crítica freudiana do mandamento do amor ao próximo19 ou a objeção de Freud
de que a pretensa religião do amor é frequentemente violenta para com minorias em seu
próprio seio ou para com grupos rivais fora dela20. Não acabou: pode-se ainda
mencionar o argumento de Freud de que os preceitos de que depende a vida social não
deveriam ser atribuídos a Deus, mas reconhecidos em sua origem puramente humana21.
Como se vê, questões não faltam. E também esses problemas são de uma importância
capital. Mas, de novo: não fazem parte do escopo da nossa pesquisa22.

VERGOTE, Aportación de los datos psicoanalíticos a la exégesis. In: BARTHES, Exégesis y hermenéutica,
p.88-140; VERGOTE, Psychanalyse et anthropologie philosophique. In: HUBER; PIRON; VERGOTE, La
psychanalyse, science de l‟homme, p.147-255; WONDRACEK, O amor e seus destinos, p.65.
19
Cf. FREUD, Le malaise dans la culture. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.288-289, 295-298, 330-
331.
20
Cf. FREUD, Psychologie des masses et analyse du moi. In: _______. Œuvres complètes, v.16, p.37.
21
Cf. FREUD, Correspondance avec le pasteur Pfister 1909-1939, p.186; FREUD, L‟avenir d‟une illusion.
In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.175, 180-183, 185; FREUD, Nouvelle suite des leçons
d‟introduction à la psychanalyse. In: _______. Œuvres complètes, v.19, p.253.
22
Sobre psicanálise e moral, pode-se, por exemplo, consultar: ANCONA, Il debito della chiesa alla
psicoanalisi, p.18, 21-22; BEIRNAERT, Aux frontières de l‟acte analytique, p.69-115; BIRMAN, Arquivos
do mal-estar e da resistência, p.360; BIRMAN, As pulsões e seus destinos, p.86; BIRMAN, Cadernos sobre
o mal, p.35; BIRMAN, Cartografias do feminino, p.17, 20-21, 31; BIRMAN, Desejo e promessa, encontro
impossível. In: MOURA, Hélio Pellegrino. A-Deus, p.118-119, 122; BIRMAN, Ensaios de teoria
psicanalítica, p.73-83, 87; BIRMAN, Gramáticas do erotismo, p.64-66; BIRMAN, Por uma estilística da
existência, p.158-159; BIRMAN, Psicanálise, ciência e cultura, p.182; BIRMAN, Retomando a história. In:
_______, Percursos na história da psicanálise, p.10; CAUSSE, La critique freudienne de l‟amour chrétien.
Revista Portuguesa de Filosofia, v.59, f.2, p.455-461; CHOISY, Psicoanálisis y catolicismo, p.37-48, 67-
86; COSTA, O ponto de vista do outro; DALBIEZ, La méthode psychanalytique et la doctrine freudienne,
t.2, p.347-367; DEMPSEY, Freud, psychanalyse et catholicisme, p.125-139; DOLTO; SEVERIN, L‟évangile
au risque de la psychanalyse, p.12; DOMÍNGUEZ, Sexualidad e institución. Selecciones de teología, v.33,
n.131, p.231-237; DOMÍNGUEZ, Sublimar la sexualidad. Sal terrae, t.88, n.5 (1034), p.373-390;
DOMÍNGUEZ MORANO, Creer después de Freud, p.93, 173-207; DOMÍNGUEZ MORANO, El psicoanálisis
freudiano de la religión, p.19, 31 [nota 12], 478, 501-502; DOMÍNGUEZ MORANO, Experiencia cristiana y
psicoanálisis, p.131-148; DOMÍNGUEZ MORANO, Los lazos de la carne. Proyección, v.32, n.139, p.299-
321; DOMÍNGUEZ MORANO, Psicodinámica de los ejercicios ignacianos, p.201-208, 219-220; FELICI, El
pecado en el pansexualismo psicoanalítico. In: FABRO, El pecado en la filosofía moderna, p.152-190;
MEISSNER, Psychoanalysis and religious experience, p.210-212, 215, 219-240; NICÉAS, O freudismo do
cardeal e a ética dos psicanalistas. In: BIRMAN; NICÉAS, A ordem do sexual, p.101-107; PLÉ, Freud et la
morale; PLÉ, La mise en question de la morale traditionnelle par la psychanalyse. Recherches et débats du
Centre Catholique des Intellectuels Français, n.78, p.115-122; POHIER, Le chrétien, le plaisir et la
sexualité; POHIER, O prazer coloca um problema original para o cristianismo. Concilium, n.100, p.1317-
1327; TORELLÒ, Psicanálise ou confissão?; VACA, Psicoanálisis y dirección espiritual, p.463-486;
VERGOTE, Psychanalyse et anthropologie philosophique. In: HUBER; PIRON; VERGOTE, La psychanalyse,
science de l‟homme, p.194-222; WALLWORK, El psicoanálisis y la ética.
Noutras palavras, o texto que o/a leitor/a tem diante de si encontra-se
na fronteira entre a psicanálise e a teologia fundamental, cujo objeto primeiro é a fé.
Não está em nossos planos escrever sobre psicanálise e teologia moral Ŕ seja moral
fundamental, seja ética da sexualidade Ŕ; também não faz parte das nossas intenções
discorrer sobre psicanálise e antropologia teológica. Essas coisas estão todas muito
entrelaçadas, é verdade; mas são diferentes.
Para dizê-lo de outro modo ainda, estamos interessados na crítica
direta Ŕ declarada, explícita, ostensiva Ŕ de Freud à religião, isto é, nas questões que
Freud colocou para aquilo que está no “coração” mesmo do fato religioso, a saber, a
crença em Deus. Reconhecemos a relevância dos problemas que a psicanálise levanta
indiretamente para a religião Ŕ para a sua concepção de homem, para a ética e a moral Ŕ,
mas não é disso que iremos tratar aqui. O problema de Deus já nos parece assunto
suficiente.
Por fim, uma última delimitação. Além de não estarmos interessados
em psicanálise e antropologia ou em psicanálise e moral, mas em psicanálise e crença
religiosa, acrescente-se que o que importa para nós é o confronto teórico entre a
psicanálise e a crença religiosa, não o aspecto vivencial da relação entre uma coisa e
outra. Ou seja, estamos interessados na discussão intelectual da crítica freudiana da
religião, não nos possíveis efeitos de uma experiência analítica sobre a fé de quem se
submete a uma análise. Há quem argumente que, mais importante do que o
enfrentamento teórico das obras de Freud sobre a religião é fazer, a pessoa que crê, a
experiência de uma análise. O divã, mais do que a escrivaninha, seria, pois, o cenário
maior do verdadeiro embate entre a psicanálise e a crença em Deus. De novo, não
vamos discordar. Mas não é sobre esse ponto que pretendemos nos debruçar nas páginas
que se seguem23.

23
Sobre essa matéria, ver, por exemplo: BELLET, Foi et psychanalyse; BELLET, Incidências da crise
analítica na vivência da fé. Concilium, n.99, p.1130-1139; BEIRNAERT, Expérience chrétienne et
psychologie, p.73-94; DOMÍNGUEZ MORANO, Creer después de Freud, p.99-114; DOMÍNGUEZ MORANO,
El psicoanálisis freudiano de la religión, p.490; LECUIT, L‟anthropologie théologique à la lumière de la
psychanalyse, p.384; POHIER, Dieu fractures, p.175-176.
Resumo

Estabelecido o tema da nossa pesquisa, o que está dentro e o que vai


ficar de fora, gostaríamos de oferecer ao/à leitor/a uma síntese de tudo o que se segue.
Além desta introdução e da conclusão final, este trabalho possui quatro capítulos. São
eles: [1] Sigmund Freud e a religião, [2] A crítica freudiana da crença religiosa, [3]
História da recepção da psicanálise pela Igreja Católica e [4] Crítica da crítica freudiana
da crença religiosa.
Primeiramente, introduzindo a questão, pretendemos dedicar um
capítulo às relações pessoais de Freud com o âmbito do religioso. O “Freud” que
aparece no título desse primeiro capítulo é Freud mesmo, o homem Freud, não ainda o
seu pensamento, razão pela qual citamos também o seu prenome.
De caráter mais biográfico, esse capítulo abarca uma série de tópicos.
O grande interesse de Freud pela religião; a sua identificação a algumas figuras bíblicas;
os seus amigos religiosos; o fato de que tenha escolhido o seu melhor e o seu pior livros
entre aqueles que dedicou à religião; por outro lado, as suas frequentes declarações de
ateísmo; a possibilidade de que essas declarações tenham um caráter denegatório; a
ambivalência, enfim, da atitude de Freud a respeito da religião Ŕ eis o que pode
constituir um primeiro grupo de questões.
O tipo de judeus que os pais de Freud foram; a circuncisão de Freud; o
seu Bar-mitzvá; a educação judaica que ele recebeu em casa e na escola; as Bíblias a
que teve acesso; o aprendizado que teve do hebraico e do ídiche; o conhecimento que
Freud tinha das festas judaicas; a familiaridade que tinha com as orações dos judeus; a
prática do judaísmo na família que Freud constituiu; a identidade judaica de Freud; a
possibilidade de que a criação da psicanálise tenha sido condicionada por essa
identidade Ŕ tudo isso pode ser reunido num segundo grupo temático.
E há ainda um terceiro: a hostilidade pessoal de Freud contra o
catolicismo; o episódio do chapéu do pai atirado na lama por um cristão; a sua
identificação a Aníbal, herói anti-romano; a sua paixão-aversão por Roma, a capital dos
católicos; o sonho anti-papal; e as razões da hostilidade de Freud contra o catolicismo: o
anti-semitismo católico; o anti-modernismo da Igreja Católica que Freud conheceu; a
conclusão de que a moral sexual católica era responsável por aquilo que Freud combatia
etc.
Somos da opinião de que, rigorosamente falando, esse capítulo tem
uma importância secundária no corpo desta tese. Seja como for, ele apresenta a inegável
vantagem de situar o pensamento de Freud sobre a religião no contexto das suas
relações pessoais com a matéria. Acreditamos que algumas coisas na obra de Freud se
tornam mais compreensíveis quando se tem presente a sua vida.
Se o primeiro capítulo não é imprescindível, o mesmo não se pode
dizer do segundo. Aliás, em nosso juízo, a importância dos quatro capítulos desta
investigação é crescente: o quarto é mais importante que o terceiro, que é mais
importante que o segundo, que é mais importante que o primeiro. Para tratar da
recepção da crítica freudiana da crença religiosa pela Igreja Católica, é necessário que
nos ocupemos, antes, da crítica freudiana da crença religiosa como tal. O capítulo dois
trata disso.
Pretendemos fazê-lo, em dois movimentos. Primeiramente, um estudo
histórico dos principais textos que Freud dedicou ao problema da religião. Em seguida,
uma síntese sistemática da crítica freudiana do fato religioso. Diacronia e sincronia;
cortes longitudinal e transversal, se preferirem.
Os textos que Freud consagrou inteiramente ao tema da religião são os
seguintes: “Atos obsessivos e exercícios religiosos” (1907), “Totem e tabu” (1913), “O
futuro de uma ilusão” (1927), a última conferência de “Novas sequência de lições de
introdução à psicanálise” (1933) Ŕ intitulada “Sobre uma visão do mundo” Ŕ e “O
homem Moisés e a religião monoteísta” (1939). Procederemos, pois, a uma
apresentação cronológica dessas obras.
Em seguida, ao realizarmos um estudo sistemático da interpretação
freudiana do fato religioso, veremos que há, na verdade, em Freud, dois modelos de
compreensão da religião: um Ŕ melhor representado por “Atos obsessivos e exercícios
religiosos”, “Totem e tabu” e “O homem Moisés e a religião monoteísta” Ŕ que compara
o fenômeno religioso ao sintoma neurótico; e outro Ŕ ilustrado por “O futuro de uma
ilusão” e “Sobre uma visão de mundo” Ŕ que prefere a analogia com o sonho. A cada
um desses dois modelos, podem ser feitas quatro perguntas fundamentais: [1] por que a
religião? [2] O que é a religião? [3] Para que a religião? E [4] o que será da religião?
Noutras palavras, pode-se perguntar pela origem, natureza, funções e futuro do
fenômeno religioso.
Muito resumidamente, essas perguntas podem ser assim respondidas.
Segundo o modelo do sintoma neurótico: [1] a crença religiosa em Deus resulta do
remorso pelo assassinato do pai primevo; [2] a religião é uma neurose, a neurose
obsessiva universal da humanidade; [3] a função da religião é ajudar o crente a resolver
a questão da culpabilidade associada ao complexo paterno; [4] comparável a uma
neurose de crescimento, a crença em Deus desaparecerá, como sói acontecer a esse tipo
de neurose.
Segundo o modelo do sonho: [1] a crença religiosa em Deus decorre
do sentimento infantil de desamparo com a consequente nostalgia do pai protetor; [2] a
religião é uma ilusão, ela realiza o desejo de todo homem de ser uma criança protegida;
[3] as crenças religiosas realizam, na verdade, vários desejos humanos, cumprem
funções diversas: [a] proteger o homem da natureza hostil; [b] reconciliá-lo com o
destino, particularmente, com a morte; [c] oferecer-lhe compensações pelos sofrimentos
da vida presente; [d] legitimar as normas sociais atribuindo-lhes uma procedência
divina; [e] responder aos grandes enigmas da existência humana; e [f] garantir
escatologicamente a realização da justiça, já que, neste mundo, ela não parece
acontecer; [4] como ilusão pré-científica, as “névoas” da crença em Deus serão
dissipadas, cedendo lugar a uma era dominada pela razão.
Até aqui, Freud: dois capítulos. Nos dois capítulos seguintes, a palavra
será dada aos católicos. Retomaremos, então, o esquema do capítulo segundo, com dois
movimentos: diacrônico e sincrônico. Primeiramente, uma abordagem histórica; em
seguida, uma discussão de caráter sistemático.
Assim, no capítulo terceiro, percorreremos, numa ordem cronológica,
os principais acontecimentos da recepção do pensamento de Freud pelo catolicismo. As
publicações mais importantes, os embates entre os autores, as intervenções do
magistério eclesiástico, os pronunciamentos papais, as associações que foram fundadas,
os periñdicos que “abriram as suas portas” para a psicanálise Ŕ esses, alguns dos
elementos da nossa narrativa.
Segmentamos o nosso levantamento em quatro etapas: [1] durante a
vida de Freud, [2] nas décadas de 40 e 50 Ŕ o que corresponde ao reinado de Pio XII
(1939-1958) Ŕ, [3] nas décadas de 60 e 70 Ŕ com os pontificados de João XXIII (1958-
1963) e Paulo VI (1963-1978) Ŕ e [4] nas décadas de 80 e 90 Ŕ o que equivale
aproximadamente ao período do papado de João Paulo II (1978-2005).
Começaremos, pois, pelas relações do próprio Freud com a Igreja
Católica. A inimizade entre ele e o padre Wilhelm Schmidt (1868-1954) e, em
particular, o receio de que a publicação de “O homem Moisés e a religião monoteísta”
resultasse numa retaliação por parte da hierarquia católica são os dois fatos mais
importantes desse período.
As décadas de 40 e 50 foram marcadas por uma forte oposição do
meio católico ao pensamento de Freud. O médico Rudolf Allers (1883-1963), o
agostiniano Cesar Vaca, o franciscano Agostino Gemelli (1878-1959) e o clérigo Pericle
Felici (1911-1982), que chegou a cardeal, são exemplos dessa atitude. Por outro lado,
pertence também a esse período o primeiro livro que advogou uma abertura da Igreja
Catñlica ao pensamento de Freud: “Psychoanalyse et catholicisme” [“Psicanálise e
catolicismo”] (1950), de Maryse Choisy (1903-1979). Criticada nominalmente por
Vaca, Gemelli e Felici, Choisy pode ser considerada a “mãe” do diálogo entre o
freudismo e a fé católica. Outro acontecimento marcante desse período foram alguns
pronunciamentos de Pio XII por ocasião de congressos de psiquiatras, neurologistas e
psicólogos.
Os “anos dourados” do diálogo entre a psicanálise e o catolicismo se
deram nas décadas de 60 e 70 e, em particular, na Bélgica e na França. De fato,
aconteceu aí uma feliz coincidência. Antes de tudo, vale recordar que a França Ŕ um dia
chamada “filha primogênita” da Igreja Ŕ é um país de profundas raízes católicas. Ora,
no período referido, a Igreja Católica havia acabado de realizar o Concílio do Vaticano
II, cuja palavra de ordem foi “aggiornamento” Ŕ isto é, atualização, abertura, diálogo
com o mundo. Durante o pontificado de Paulo VI, viveu-se, na Igreja, um tempo de
ousadias, de experiências novas, de abertura ao mundo. Por outro lado, naquela mesma
época, precisamente na França, o movimento psicanalítico encontrava-se em plena
efervescência24. Igreja aberta, psicanálise “em alta”: o encontro não poderia deixar de
acontecer Ŕ e aconteceu!

24
Sobre o boom do movimento psicanalítico, bem como sobre a crise da psicanálise nos Estados Unidos
da América, na França e na América Latina, ver: BIRMAN, Arquivos do mal-estar e da resistência, p.31,
54, 178, 192, 207; BIRMAN, Desejo e promessa, encontro impossível. In: MOURA, Hélio Pellegrino. A-
O segmento histórico acima referido começou, porém, de forma pouco
encorajadora: em 1961, o Santo Ofício proibiu os clérigos e os religiosos de exercerem
a profissão de psicanalista, bem como de se submeterem a uma análise sem a
autorização do seu bispo. A julgar por essa decisão disciplinar, não se poderia nem de
longe imaginar que a década que se inaugurava e a seguinte seriam justamente as
décadas mais “ensolaradas” das relações entre o catolicismo e a psicanálise. Com efeito,
nesse período, além do Concílio do Vaticano II, aconteceram o experimento
psicanalítico no mosteiro beneditino de Cuernavaca, no México, a entrada em cena de
uma série de autores católicos receptivos ao pensamento de Freud 25, o ingresso maciço
dos jesuítas no movimento lacaniano e algumas declarações curtas, porém, matizadas de
Paulo VI, entre outras coisas. Vale o registro, porém, de que essas duas décadas
terminaram como começaram: em 1979, Pohier foi proibido de tudo Ŕ ensinar, pregar e
presidir Ŕ, e Küng, desautorizado a ensinar teologia católica.
Por fim, as décadas de 80 e 90, que coincidem aproximadamente com
o pontificado de Karol Wojtyła (1920-2005), o gigantesco João Paulo II. William
Meissner (1931-2010), Carlos Domínguez Morano (1946) e Denis Vasse publicaram,
sobretudo, nesse período. Os três são padres jesuítas e psicanalistas, mas o primeiro,
norte-americano, psicólogo do eu; o segundo, espanhol, freudiano; e o terceiro, argelino,
lacaniano. Em nossa bibliografia, Domínguez só perde para Freud em número de títulos
citados. Também o padre diocesano Eugen Drewermann (1940) é desse tempo. Em
1989, ele publicou um livro que se pretendia uma radiografia psicanalítica do padre
católico. Dois anos depois, instado pelo Vaticano, o seu bispo retirou-lhe a licença de
lecionar teologia no seminário de Paderborn, na Alemanha.
Contada toda essa história, ainda no capítulo três, pretendemos fazer
um balanço geral desses acontecimentos. Algo que se pode perceber claramente é que as
relações entre a fé católica e o pensamento freudiano oscilaram de uma forma pendular:
foi-se, noutras palavras, de um extremo a outro. Isto é, da rejeição obstinada à acolhida

Deus, p.122; BIRMAN, Estilo e modernidade em psicanálise, p.72, 103-105, 161-162, 184-185; BIRMAN,
Freud e a experiência psicanalítica, p.101; BIRMAN, Freud e os destinos da psicanálise. In: BIRMAN;
DAMIÃO, Psicanálise, ofício impossível?, p.211, 220, 224-225; BIRMAN, Mal-estar na atualidade, p.19,
33, 81, 125-127, 143, 145, 169, 173, 183, 186, 192; BIRMAN, Por uma estilística da existência, p.137-
144; BIRMAN, Psicanálise, ciência e cultura, p.29, 38, 118,120.
25
Por exemplo, os padres diocesanos Antoine Vergote, Maurice Bellet (1923) e Hans Küng, os
dominicanos Robert-Albert Plé (1910-1988) e Jacques Pohier e os psicanalistas católicos Leonardo
Ancona (1922-2008), Françoise Dolto (1908-1988) e Ana-María Rizzuto.
acrítica; da condenação peremptória ao concordismo ingênuo. Hoje, talvez, se possa
apreciar a questão com mais equilíbrio.
Pretendemos também, nesse balanço, identificar algumas estratégias
defensivas de que se lançou mão nessa tendência concordista. Por exemplo, separar a
crítica freudiana da religião da psicanálise, de modo a descartar a primeira e aproveitar a
segunda; argumentar que o pensamento de Freud apenas purifica a fé, concorrendo,
dessa maneira, para o seu amadurecimento etc.
Outro elemento a ser esclarecido são as punições impostas pela Santa
Sé aos teólogos que citamos: Pohier, Küng e Drewermann. Em que medida a psicanálise
foi o motivo dessas sanções? Isso é algo a ser apurado. Veremos que, na verdade, a
razão principal dessas punições pouco tem a ver com Freud, e que a Igreja Católica
nunca condenou oficialmente a psicanálise Ŕ embora, talvez, tenha, sim, bons motivos
para suspeitar dela.
Um último aspecto desse balanço geral. Parece ter havido uma
disputa, entre as várias correntes “psi”, pelo “mercado” catñlico. Embora de origem
protestante, Carl Gustav Jung (1875-1961) parece ter sido o primeiro a se apressar em
propor a sua psicologia analítica como perfeitamente compatível com os pressupostos
da fé católica. Viktor Frankl (1905-1997), por sua vez, apesar de judeu, não tardou em
apresentar também a sua candidatura. Não poucos católicos, porém, ficaram com a
psicanálise. E, entre eles, boa parte preferiu a versão lacaniana da mesma. O próprio
Lacan Ŕ de criação católica, mas sempre muito ambíguo em matéria de religião Ŕ parece
ter encorajado isso. Em 1953, por exemplo, não tendo conseguido uma audiência
privada com o hierático Eugenio Pacelli, foi a Castel Gandolfo, na companhia de
Choisy, assistir, de longe, a uma audiência geral.
Antes de passarmos ao capítulo quatro, uma última observação. No
segundo capítulo, fechamos o nosso foco no tema da nossa pesquisa: a crítica freudiana
da crença religiosa. No capítulo quatro, vamos retomar essa crítica, exatamente como
ela foi ali formulada, e proceder a uma crítica da crítica. No capítulo terceiro, porém,
como o/a leitor/a terá certamente percebido, abrimos um tanto o nosso foco. Isso
decorre do fato de que, tratando-se de contar a história da recepção de Freud pelo
catolicismo, é impossível separar a crítica freudiana da crença em Deus,
especificamente, da psicanálise como tal. Por isso, de forma proposital, demos ao
capítulo três o título “Histñria da recepção da psicanálise pela Igreja Catñlica”. A
“psicanálise” que aí figura inclui a crítica freudiana da crença religiosa, que é o que nos
interessa. Mas abrange também muito mais do que isso.
Finalmente, chegamos ao capítulo quatro, o último e, talvez, o mais
importante Ŕ o mais aventuroso, por certo Ŕ capítulo desta investigação. A ideia é
retomar a crítica de Freud da crença em Deus Ŕ aqueles quatro tópicos: origem,
natureza, função e futuro Ŕ e, recolhendo contribuições diversas dos autores que
desfilaram no capítulo três, elaborar uma apreciação crítica da crítica freudiana. Não
pretendemos recusá-la em bloco; não se trata disso. Mas vamos problematizar um pouco
a coisa. Ricœur falou em dizer um “sim” e um “não” a Freud. Talvez, o que
pretendemos seja algo próximo disso. Veremos, então, que a interpretação freudiana da
religião é discutível. De fato, Freud teve intuições preciosas sobre o fenômeno religioso,
mas o seu pensamento sobre a matéria é também passível de ser criticado sob vários
aspectos.
Antes, porém, de passarmos a isso, três questões preliminares. Muitos
católicos rebateram a crítica freudiana da religião alegando que Freud era ateu por
motivos pessoais. Uns responsabilizaram a sua babá católica; outros, o seu irmãozinho,
Julius; outros ainda, o seu pai, Jacob; outros até, a sua mãe, Amalie. De saída, queremos
dizer que essa réplica não vale. Mesmo que isso fosse verdade, as razões biográficas da
incredulidade de Freud não invalidam a crítica da religião que ele elaborou. É preciso,
pois, levá-la a sério.
Por outro lado, ninguém discorda de que, para criticar adequadamente
alguma coisa, é preciso conhecê-la bem. O próprio Freud usou esse argumento tratando
da psicanálise. Pode-se, então, perguntar: Freud conhecia bem o catolicismo?
Responderemos: mais ou menos. Freud tinha um conhecimento médio daquilo que
criticou. Ilustram-no o fato de que ele tenha cometido alguns erros ao falar a respeito.
Alguns exemplos: Freud desconhece a origem vétero-testamentária do mandamento do
amor ao próximo; confunde a imaculada conceição de Maria com a concepção virginal
de Jesus; atribui a São Paulo uma teologia que surgiu séculos depois; atribui à Igreja
Católica uma sentença que nunca representou a sua posição em matéria de fé e razão
etc. Ou seja, há algumas coisas em Freud que não são discutíveis, são simplesmente
equivocadas. E isso revela o conhecimento de nível médio que ele tinha do assunto.
Finalmente, o problema da competência epistemológica da psicanálise
em se tratando do problema de Deus. Um pressuposto de toda a discussão que
sustentaremos no último capítulo desta tese é o parecer de que o problema da existência
de Deus é uma questão filosófica, não tendo a psicanálise competência epistemológica
para equacioná-lo. O problema da crença psicológica em Deus, sim, estaria dentro da
alçada da psicanálise.
Feitas essas considerações introdutórias, retomaremos aquelas quatro
perguntas: por que a religião? O que é? Para quê? E o que será dela? A primeira
pergunta, que versa sobre a origem mesma da crença em Deus, merecerá uma atenção
toda especial.
É sabido que Freud respondeu a essa pergunta tanto em “Totem e
tabu” e em “O homem Moisés e a religião monoteísta” quanto em “O futuro de uma
ilusão” e em “Sobre a visão do mundo”. É, contudo, nas duas primeiras obras que
encontramos uma teoria mais específica Ŕ e, vale dizer, mais psicanalítica também Ŕ da
origem do totemismo Ŕ supostamente, a primeira forma de religião Ŕ e do monoteísmo
judaico Ŕ do qual o cristão e católico são herdeiros. Iremos, pois, antes de tudo, tomar
esses dois textos Ŕ em nossa opinião, as duas obras mais importantes do pensamento de
Freud sobre a religião Ŕ para examiná-los em particular. Veremos, então, que, enquanto
livros de antropologia cultural, etnologia, história das religiões ou exegese bíblica,
“Totem e tabu” e “O homem Moisés e a religião monoteísta” são passíveis de inúmeras
objeções Ŕ aqui, não vamos sequer tentar resumi-las: são muitas mesmo. O próprio
Freud parece ter se antecipado a isso qualificando de “mito científico” e de
“construção”, respectivamente, as hipóteses que levanta nas duas obras. Concluiremos
que, apesar da sua estranha retórica, esses textos precisam ser lidos como livros de
psicanálise, isto é, como obras que tratam fundamentalmente de conceitos-chave para a
teorização psicanalítica. Nós, porém, estamos interessados em religião, mais do que em
metapsicologia. E, tratando-se disso, uma coisa queremos conceder a Freud: ainda que o
assassinato do pai primevo não nos pareça sustentável enquanto hipótese antropológica,
muitos crentes vivem a sua relação com Deus em termos que lembram muito a relação
de rivalidade e exclusão que se estabelece, na trama de Freud, entre os filhos e o chefe
da horda. Noutras palavras, para não poucos crentes, Deus é, de fato, concebido como o
pai primevo. Nessa medida, com o seu “Totem e tabu”, continuado pelo seu “O homem
Moisés e a religião monoteísta”, Freud “botou o dedo na ferida”.
Ainda sobre o problema da origem da crença em Deus Ŕ para nós, isso
é fundamental. Queremos também discutir essa questão de uma maneira mais ampla,
sem nos atermos exclusivamente ao modo como isso se articula em “Totem e tabu” e
em “O homem Moisés e a religião monoteísta”. De um modo geral, para Freud, a
origem da crença em Deus pode ser encontrada no complexo paterno. Por trás da crença
religiosa, está a ambivalência afetiva a respeito do pai e a culpa pela hostilidade contra
ele ou o desamparo infantil e a nostalgia do pai protetor. Em todo caso, Deus é o pai.
Por diversas vezes, Freud diz: “Deus não é senão o pai”. E, alguma vez, acrescenta:
“Deus, psicologicamente, não é senão o pai”. Muito esquematicamente, pretendemos
discutir essas afirmações da seguinte maneira. O complexo paterno, na verdade, tanto
pode resultar na crença em Deus como no ateísmo. O próprio Freud sabia disso. A
ambivalência pelo pai pode dar em ateísmo; o desamparo também pode terminar dessa
maneira. Além disso, dizer que “Deus não é senão o pai” é um reducionismo de tipo
psicologista. Nem mesmo “psicologicamente” pode-se dizer isso, porque, mesmo aí,
Deus não é somente o pai, mas a mãe também.
Queremos ainda explicitar um pouco esse dado referente ao materno.
Com efeito, pode-se criticar a teoria freudiana da religião pelo grande desapreço de que
ela dá mostras pelos elementos feminino e materno. Ilustram-no: a incapacidade de
localizar as deusas-mãe na história das religiões; a incapacidade de reconhecer, por trás
da figura do diabo Ŕ mesmo quando dotado de polpudos seios Ŕ, outra coisa além do
pai; a escolha do pai como figura protetora, sabendo-se que a mãe o antecede nessa
função; a rejeição do sentimento oceânico rollandiano como fonte da religiosidade; o
desinteresse pela experiência mística, a “cereja do bolo” da psicologia da religião; o
desinteresse por Maria, figura religiosa de primeira grandeza na Áustria católica em que
Freud viveu etc.
Hoje, em psicologia da religião, é ponto pacífico que Deus, enquanto
objeto mental, não brota do nada, não surge espontânea e imediatamente. Pelo contrário,
a imagem de Deus é configurada a partir da contribuição decisiva das figuras materna e
paterna. A mãe está mais relacionada ao anelo místico; o pai, à dimensão normativa da
religiosidade. Freud enxergou o pai; mas não viu a mãe.
A pergunta seguinte é: o que é a religião? Uma neurose e uma ilusão.
Comecemos pela neurose. A analogia estabelecida por Freud entre a religião e a neurose
baseia-se: nas semelhanças entre os rituais religiosos e os cerimoniais obsessivos (“Atos
obsessivos e exercícios religiosos”), na origem edipiana da crença religiosa (“Totem e
tabu”) e no funcionamento, em ambos os casos, do mecanismo: trauma, recalcamento,
latência e retorno do recalcado (“O homem Moisés e a religião monoteísta”). Os dois
últimos aspectos terão sido discutidos anteriormente, quando nos debruçamos sobre os
livros que lhes correspondem. O primeiro diz respeito à liturgia religiosa, não à crença
em Deus. Seja como for, tratando, em termos gerais, da questão do possível caráter
neurótico da religião, a nossa posição será a seguinte. Certamente, a prática religiosa
pode, sim, ter um caráter neurótico. E não é raro que isso aconteça. Note-se, porém, que,
quando isso se dá, estamos diante de uma deformação da religião.
Ainda sobre esse ponto, duas questões mais. Em Freud, o
recalcamento é a via da neurose, e a sublimação, da sociabilidade. Freud reconheceu a
arte como sublimação, ao passo que a religião foi taxada de neurose. Há quem diga que
isso se deve antes aos seus preconceitos anti-religiosos do que a razões justificáveis.
Além disso, a religião foi colocada por Freud sob o signo da repetição. Isso significa:
sob o signo da pulsão de morte. Ora, por que não ver, na religião, uma potência
relacionada a Eros? Se Freud tivesse se interessado pela mística, por exemplo,
dificilmente teria escapado dessa conclusão. Resumindo: por que neurose e Tanatos?
Por que não sublimação e Eros?
Examinemos, agora Ŕ sempre muito esquematicamente Ŕ, a definição
da crença religiosa como ilusão. Aqui, pretendemos argumentar da seguinte maneira.
Segundo Freud, em “O futuro de uma ilusão”, uma crença ilusória não é
necessariamente falsa; o que a caracteriza é o fato de ser motivada pelo desejo. Mais de
uma vez, Freud garante que não pretende se pronunciar sobre o valor de verdade das
crenças religiosas. Ele as considera, porém, suspeitas, pois o que elas representam “é
bom demais para ser verdadeiro”. Até aí, Freud. Agora, as questões. Em muitos outros
lugares, ao longo de sua obra, Freud empregou o conceito de “ilusão” significando o
mesmo que “falso”. Decorre daí que, para ele, as ilusões sejam algo a ser destruído.
Ademais, quando diz que algumas crenças são, mais do que ilusórias, delirantes, Freud
declara abertamente a falsidade dessas crenças. E, de outras maneiras ainda, em seus
escritos, Freud negou o valor de verdade das crenças religiosas. Ora, ele não podia ter
feito isso. Primeiramente, porque isso excede a competência epistemológica da
psicanálise. E, em segundo lugar, porque o seu conceito mesmo de “ilusão” não
pretendia chegar a tanto. Dizer que a crença em Deus é ilusória é dizer que Deus é
desejável. Apenas isso. Dessa desejabilidade de Deus, não se segue conclusão alguma
sobre o valor de verdade dessa crença. Freud acredita que o que é “bom demais” não
pode ser verdadeiro? “God is too good to be true”? [“Deus é bom demais para ser
verdadeiro”]? O argumento contrário tem o mesmo valor: aquilo que é desejável pode
perfeitamente ser o caso Ŕ por que não?
Ainda sobre a religião como ilusão. Alguns autores estão dispostos a
aceitar, sim, sem problemas, essa identificação. Mas adotando o conceito winnicottiano
de “ilusão”. No pensamento de Donald Woods Winnicott (1896-1971), a ilusão tem
uma conotação positiva: enquanto fenômeno transicional, ela é um caminho para a
realidade, não uma obstrução.
Chegamos às funções da religião. Nesse ponto, pretendemos
argumentar como se segue. Ao atribuir a Deus uma série de funções Ŕ proteger,
explicar, livrar da morte etc. Ŕ, Freud o desenha de uma determinada maneira, dotando-
o dos atributos necessários para o cumprimento das referidas funções. Noutras palavras,
o problema das funções da religião remete-nos ao problema do modo como Deus é
imaginado. E a pergunta, então, é: o Deus de Freud Ŕ o Deus que Freud criticou Ŕ é, de
fato, o Deus cristão? Nossa resposta será: não, não exatamente. O Deus de Jesus Cristo
não é onipotente; o Deus de Jesus Cristo não explica tudo; o Deus de Jesus Cristo não
poupa da morte etc. O Deus de Freud, portanto, não é o Deus cristão. Contudo, alguém
dirá: mas é o Deus de muitos cristãos! Ao que, responderemos: de fato. E, com isso,
concluiremos que a crítica freudiana da crença religiosa “atinge em cheio” a
religiosidade popular, mas “erra o alvo” em se tratando do Deus dos teñlogos.
Por fim, a pergunta: o que será da religião? A esse respeito, cumpre
dizer, primeiramente, que, em “O futuro de uma ilusão”, Freud deu mostras de uma fé
religiosa Ŕ ilusória mesmo Ŕ no progresso científico. Revelando-se, mais do que nunca,
um pensador iluminista, ele fez uma aposta que, hoje em dia, poucos estariam dispostos
a fazer. Atualmente, com efeito, a ciência já não suscita tanta esperança; temos, pelo
contrário, não poucas razões para temer o que o avanço da ciência poderá trazer. Se a
ciência já não goza do mesmo prestígio, por outro lado, a religião, longe de desaparecer,
retornou com força redobrada nas últimas décadas. Não por acaso, Lacan, que viveu
meio século depois de Freud, previu o triunfo da religião, não o seu ocaso. Seja como
for, talvez, a estimativa de Freud sobre o futuro da religião não deva ser levada tão a
sério. A esse respeito, “O futuro de uma ilusão” é um texto particularmente otimista;
mas, pouco depois, em “O mal-estar na cultura”, por exemplo, o prñprio Freud já havia
adotado um outro tom.

Avisos

Gostaríamos de terminar esta introdução com alguns avisos de tipo


técnico. Ao longo desta tese, o/a leitor/a encontrará um certo número de citações
textuais, boa parte delas, em francês, inglês, espanhol ou italiano. Tratando-se de
citações em língua estrangeira, estabelecemos como regra transcrever, primeiro, o texto
tal como o encontramos, acrescentando, logo em seguida, a nossa tradução para o
português. Advertimos, porém, que essas traduções são amadorísticas, feitas, muitas
vezes, sem muita desenvoltura, palavra por palavra. Não temos, em suma, nenhuma
intenção de “ganhar a vida” fazendo traduções.
O/A leitor/a também encontrará, em nosso estudo, um número imenso
de notas de rodapé. As notas que se acrescentam a um texto podem ser vistas como uma
riqueza; mas não falta quem as encare também como inoportunos “quebra-molas”. De
fato, quando as notas são excessivas, a fluência da leitura padece. Tenha-se presente,
contudo, que a grande maioria dessas notas é de natureza estritamente bibliográfica.
Elas não precisam ser lidas, a não ser quando houver motivos especiais para fazê-lo, tais
como a dúvida ou a curiosidade.
Nessas notas de rodapé, tratando-se de fazer referências bibliográficas,
indicamos apenas aquelas informações indispensáveis para o reconhecimento da obra
em questão: fundamentalmente, sobrenome do autor, título do texto e página indicada.
O/A leitor/a encontrará, ao final deste trabalho, nas referências bibliográficas, as
informações completas sobre cada artigo, livro ou capítulo de livro citados em nossa
pesquisa.
Por fim, uma última observação. Quanto aos autores e livros citados,
salvo alguma exceção, procuramos observar a seguinte regra. Ao nos referirmos, pela
primeira vez, a um autor, fornecemos o seu nome completo, ou quase isso,
acompanhado das datas de nascimento e morte, se houver, do mesmo. A partir daí, o
mesmo passa a ser referido apenas pelo sobrenome paterno. Os livros estrangeiros,
quando mencionados pela primeira vez, são citados mediante o título original seguido
da tradução do mesmo para o português. Feito isso, passamos a indicar a obra em
questão pelo seu título traduzido para a “língua de Camões”.
Os textos de Freud receberam um tratamento especial. Na
impossibilidade de lê-los na língua em que foram originalmente escritos, o alemão,
adotamos a sua tradução para o francês lançada, nos últimos anos, pela editora Presses
Universitaires de France (PUF). Não encontrando o título em questão nessa edição
ainda incompleta das obras de Freud, recorremos à tradução mais recente para o francês
da Gallimard. Seja como for, os textos de Freud são sempre referidos mediante a nossa
tradução para o português do título que a obra recebeu em francês. Nem sempre isso
coincide rigorosamente com a maneira pela qual os seus escritos são mais conhecidos
no Brasil. Mas não será difícil identificá-los.
CAPÍTULO 1
SIGMUND FREUD E A RELIGIÃO

O ateísmo de Freud

Sigmund Freud era ateu. O homem que nasceu em Freiberg, viveu em


Viena e morreu em Londres não acreditava em Deus. O homem que a si mesmo
comparou a Nicolau Copérnico (1473-1543) e a Charles Darwin (1809-1882) e que
desferiu contra o narcisismo humano o seu mais duro golpe26 garantia que a religião era
uma neurose e uma ilusão. O homem que foi comparado a Karl Marx (1818-1883) e a
Friedrich Nietzsche (1844-1900) e que recebeu o título de “mestre da suspeita”27
suspeitava de tudo, até da existência de Deus. O “pai” da psicanálise, o desbravador do
“sexto continente” e o descobridor da sexualidade infantil não acreditava que há, no
céu, um Deus poderoso e benevolente e tampouco cria na vida após a morte, numa
compensação para os sofrimentos da vida presente, no paraíso ou no inferno, em
preceitos divinos para observar ou na existência de respostas absolutas para os grandes
enigmas da vida humana. Definitivamente, Freud era um descrente.
Segundo Ernest Jones (1879-1958) Ŕ o biñgrafo “chapa branca” do
autor de “A interpretação do sonho” Ŕ, Freud: “Cresceu privado de qualquer crença em
um Deus ou Imortalidade, nunca parecendo ter sentido necessidade dela”28. Certa vez,
conta Jones:

“...ele me disse que nunca acreditara em um mundo


sobrenatural. Assim, do início ao fim de sua vida foi um ateu
natural, ou seja, alguém que não vê razão para acreditar na
existência de qualquer Ser sobrenatural e que não sente
necessidade emocional dessa crença”29.

Aos 18 anos de idade, numa carta que endereçou ao seu amigo


romeno Eduard Silberstein (1856-1925), datada de 18 de setembro de 1874, Freud se

26
Cf. FREUD, Leçons d‟introduction à la psychanalyse. In: _______. Œuvres complètes, v.14, p.295;
FREUD, Les résistances contre la psychanalyse. In: _______. Œuvres complètes, v.17, p.134-135; FREUD,
Une difficulté de la psychanalyse. In: _______. Œuvres complètes, v.15, p.46-51.
27
Cf. RICŒUR, Le conflit des interprétations, p.101, 148-150, 159.
28
JONES, A vida e a obra de Sigmund Freud, v.1, p.33.
29
JONES, A vida e a obra de Sigmund Freud, v.3, p.347.
descreveu como um “empírico” e um “experimentado filho deste mundo”, por contraste
aos que ele chamou de “piedosos”30. Menos de dois meses depois, no dia oito de
novembro, ele voltou a se corresponder com Silberstein, desta vez, nomeando-se como
um “ímpio estudante de medicina” e, novamente, como um “empírico”31.
Quando, porém, foi aluno de Franz Brentano (1838-1917)32, Freud
vacilou, por um momento, em seu posicionamento. Na mesma carta acima mencionada
Ŕ aquela de oito de novembro de 1874 Ŕ, Freud escreveu que Brentano “...é uma
esplêndida pessoa, sábio e filósofo, embora ache necessário sustentar a diáfana
existência de Deus com os seus pareceres”33. As aulas com o filósofo foram registradas
na carta de 13 de março de 187534. No dia 15 seguinte, ainda em correspondência com
Silberstein, Freud se reconheceu momentaneamente incapaz de refutar um argumento
favorável à existência de Deus apresentado pelo professor. Disse ele: “Não consegui [...]
escapar à sua influência Ŕ não me encontro em condições de refutar um simples
argumento teísta...”35. Freud avisou, contudo, que não pretendia se entregar tão
facilmente:

“...sou teísta, mas apenas forçado pelas circunstâncias, somente


porque sou honesto a ponto de confessar o meu desamparo em
face de seu argumento, mas não tenho a intenção de me
considerar prisioneiro com tanta rapidez e tão
completamente”36.

Freud prometeu, então, aprofundar-se no assunto a fim de decidir-se


entre o teísmo e o materialismo. Menos de duas semanas depois, no dia 27 de março, ele
voltou a escrever a Silberstein sobre a disputa em que entrara com Brentano a respeito
de Deus. Manifestou o seu desejo de refutá-lo, mas admitiu que, para tanto, precisaria

30
Cf. BOEHLICH, As cartas de Sigmund Freud para Eduard Silberstein, p.82-83.
31
Cf. BOEHLICH, As cartas de Sigmund Freud para Eduard Silberstein, p.90.
32
Brentano foi ordenado padre em 1864. Em 1873, contudo, deixou o ministério, vindo a se casar tempos
depois. Brentano permaneceu, não obstante, cristão e falava do catolicismo com grande respeito.
Filosoficamente, manteve-se fiel à tradição católica de então, dominada pelo pensamento aristotélico-
tomista. Começou a lecionar em Viena em 1874, tendo Freud frequentado cinco cursos ministrados por
ele (cf. ASSOUN, Freud, a filosofia e os filósofos, p.12-15; RIZZUTO, Por que Freud rejeitou Deus?,
p.150-153, 239; ROUDINESCO; PLON, Dicionário de psicanálise, p.92-93; VITZ, Sigmund Freud‟s
christian unconscious, p.50-56, 232 [nota 87]).
33
BOEHLICH, As cartas de Sigmund Freud para Eduard Silberstein, p.90.
34
Cf. BOEHLICH, As cartas de Sigmund Freud para Eduard Silberstein, p.121.
35
BOEHLICH, As cartas de Sigmund Freud para Eduard Silberstein, p.123.
36
BOEHLICH, As cartas de Sigmund Freud para Eduard Silberstein, p.124.
conhecer melhor o seu pensamento37. Por fim, no dia 11 de abril daquele mesmo ano,
Freud se disse “quase um convertido”, um “ex-materialista”. Mas acrescentou que sñ
iria decidir-se entre o teísmo e o materialismo depois que se aprofundasse mais na
questão38.
Como se vê, Freud sentiu-se mesmo abalado em seu ateísmo pelos
argumentos do ex-padre que acreditava ser possível provar filosoficamente a existência
de Deus. Em todo caso, superada essa crise, ele se tornou um ateu convicto e conservou
essa posição até o fim.
A vida de Freud está realmente pontilhada de gestos e, sobretudo, de
declarações que deixam claro o seu ateísmo. Uma atitude pouco piedosa de Freud Ŕ
senão deliberadamente provocativa Ŕ pode ser encontrada no fato de que, próximo de
completar 30 anos, ele tenha decidido abrir o seu consultório, dando início à sua prática
médica, em pleno domingo de Páscoa, no dia 25 de abril de 188639.
Freud era, porém, um homem de palavras, muito mais do que de
gestos; e foi com as palavras, especialmente, que ele deu a conhecer a sua posição
pessoal em matéria de religião.
Em sua obra-prima, “A interpretação do sonho” (1900), ele registrou
que, quando jovem, encontrava-se “cheio da doutrina materialista”40.
Em “A psicopatologia da vida cotidiana” (1901), expressando a sua
descrença em fenômenos miraculosos, Freud escreveu:

“...je fais partie de cette catégorie d‟individus indignes en


présence desquels les esprits suspendent leur activité et le
suprasensible s‟échappe, de sorte que je ne me suis jamais
trouvé en situation de vivre moi-même quelque chose qui suscite
chez moi la croyance aux prodiges” [“...eu faço parte dessa
categoria de indivíduos indignos na presença dos quais os
espíritos suspendem sua atividade e o supra-sensível se ausenta,
de modo que jamais me encontrei em situação de viver
pessoalmente qualquer coisa que suscitasse em mim a crença em
prodígios”]41.

37
Cf. BOEHLICH, As cartas de Sigmund Freud para Eduard Silberstein, p.126.
38
Cf. BOEHLICH, As cartas de Sigmund Freud para Eduard Silberstein, p.129.
39
Cf. JONES, A vida e a obra de Sigmund Freud, v.1, p.153.
40
Cf. FREUD, L‟interprétation du rêve. In: _______. Œuvres complètes, v.4, p.251.
41
FREUD, La psychopathologie de la vie quotidienne, p.415-416.
No dia nove de fevereiro de 1909, numa carta a Pfister, Freud se
definiu como um “vil herético”42.
Um ano e meio depois, numa carta a James Jackson Putnam (1846-
1918), datada de 18 de agosto de 1910, Freud se descreveu com “um judeu descrente”43.
Ao mesmo Putnam, no dia oito de julho de 1915, Freud escreveu:

“...je n‟ai aucune crainte du Bon Dieu. S‟il arrivait que nous
nous rencontrions un jour, j‟aurais plus de reproches à lui faire
qu‟il n‟aurait de choses à critiquer en moi” [“...eu não tenho
medo algum do Bom Deus. Se acontecesse, um dia, de nos
encontrarmos, eu teria mais censuras a lhe fazer do que ele teria
coisas a criticar em mim”]44.

Dois dias depois, comentando o livro “Human motives” [“Motivos


humanos”] (1915), de Putnam, Freud escreveu a Sándor Ferenczi (1873-1933) que o
livro tinha o seu valor, mas era “...filled with the religious sense which I am irresistibly
inclined to reject” [“...repleto de um senso religioso que eu me inclino irresistivelmente
a rejeitar”]45.
Novamente, endereçando-se a Pfister, em nove de outubro de 1918,
Freud se descreveu como “um judeu completamente ateu”46.
No dia quatro de janeiro de 1920, numa carta a Ferenczi em que se
lamenta pela morte de sua filha Sophie Freud (1893-1920), Freud escreveu: “Como ateo
confirmado no puedo acusar a nadie y me doy cuenta de que no existe sitio alguno
adonde acudir con mis quejas” [“Como ateu convicto, não posso culpar a ninguém e me
dou conta de que não tenho onde apresentar as minhas queixas”]47.
Precisamente um mês depois, ao mesmo Ferenczi, Freud se descreveu
como alguém “profundamente descrente”48.
A Hereward H.L. Carrington (1880-1958), em 24 de julho de 1921,
Freud se disse totalmente incapaz de admitir a possibilidade da vida após a morte49.

42
Cf. FREUD, Correspondance avec le pasteur Pfister 1909-1939, p.47.
43
Cf. CHEMOUNI, Freud, la psychanalyse et le judaisme, p.77.
44
FREUD, Correspondance 1873-1939, p.332.
45
GAY, A Godless jew, p.111.
46
Cf. FREUD, Correspondance avec le pasteur Pfister 1909-1939, p.105.
47
DOMÍNGUEZ MORANO, Psicoanálisis y religión: diálogo interminable, p.37.
48
Cf. FREUD, Correspondance 1873-1939, p.358.
49
Cf. FREUD, Correspondance 1873-1939, p.364.
Em 1925, em carta ao editor do Jüdische Presszentrale Zürich [Centro
de Imprensa Judaica de Zurique], Freud escreveu:

“Je puis dire que je me trouve aussi éloigné de la religion juive


que de toutes les autres religions, c.-à-d.: elles sont pour moi,
comme objet d‟intérêt scientifique, hautement significatives,
dans l‟ordre du sentiment je n‟y suis pas impliqué” [“Eu posso
dizer que me encontro tão distante da religião judaica quanto de
todas as outras religiões, i.é: como objeto de interesse científico,
elas são altamente significativas para mim; do ponto de vista
emocional, não me sinto envolvido”]50.

No dia 26 de abril de 1926, numa carta a Marie Bonaparte (1882-


1962), Freud falou de si mesmo como “um dos mais perigosos inimigos da religião”51.
Em seis de maio de 1926, ao fazer 70 anos, dirigindo-se aos membros
da sociedade B‟nai B‟rith [Filhos da Aliança], Freud declarou: “...je fus toujours un
incroyant...” [“...eu sempre fui um incrédulo...”]52.
Voltando a corresponder-se com Pfister, no dia 16 de outubro de
1927, Freud afirmou que a sua atitude em matéria de religião é “de recusa total” e
descreveu-se a si mesmo como um “herético” e um “ímpio”53.
Em “O futuro de uma ilusão” (1927), Freud citou um verso de
Heinrich Heine (1797-1856) denominando-o “um de nossos companheiros de
incredulidade”54.
No dia 24 de fevereiro de 1928, em carta a Pfister, Freud repetiu a
mesma expressão, dizendo, porém, agora: “meu „colega na incredulidade‟, Heine”55.
Em “Uma experiência religiosa” (1928), Freud mencionou a sua “falta
de crença religiosa”, bem como a sua “indiferença a respeito da vida apñs a morte”56.
No mesmo artigo, ele se definiu como “an infidel jew” [“um judeu infiel”]57.

50
FREUD, Lettre à l‟éditeur de la “Jüdische Presszentrale Zürich”. In: _______. Œuvres complètes, v.17,
p.147.
51
Cf. JONES, A vida e a obra de Sigmund Freud, v.3, p.134.
52
FREUD, Allocution aux membres de la Société B‟nai B‟rith. In: _______. Œuvres complètes, v.18,
p.115; cf. FREUD, Correspondance 1873-1939, p.398.
53
Cf. FREUD, Correspondance avec le pasteur Pfister 1909-1939, p.162.
54
Cf. FREUD, L‟avenir d‟une illusion. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.191. O mesmo Heine havia
se referido dessa maneira a Baruch Spinoza (1632-1677).
55
Cf. FREUD, Correspondance avec le pasteur Pfister 1909-1939, p.179.
56
Cf. FREUD, Une expérience vécue religieuse. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.201.
57
Cf. FREUD, Une expérience vécue religieuse. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.202.
Em 1930, na introdução ao livro que escreveu a quatro mãos com
William Christian Bullitt (1891-1967), Freud admitiu que se debruçou sobre a figura de
Thomas Woodrow Wilson (1856-1924), o ex-presidente norte-americano, com uma
certa antipatia. Ora, um dos traços mais marcantes da personalidade de Wilson é a sua
religiosidade58.
Em 1934, no prefácio à tradução de “Totem e tabu” para o hebraico,
Freud afirmou que o autor daquele livro é alguém “totalmente estranho” ao judaísmo, a
religião dos seus pais, bem como a qualquer outra religião59.
Passado um ano, no pós-escrito de sua “Autoapresentação”,
acrescentado em 1935, Freud observou que, em “O futuro de uma ilusão”, procedeu a
uma apreciação basicamente “negativa” da religião60.
Em 30 de abril de 1936, aos responsáveis pela versão em ídiche das
“Lições de introdução à psicanálise”, Freud escreveu:

“...je n‟ai [...] pas appris à lire l‟hebreu, ni le yiddish, et j‟en suis
très contrarié. Néanmoins, je suis quand même devenu un bon
juif, bien que, comme vous le savez certainement, un non-
croyant” [“...eu não [...] aprendi a ler nem em hebraico nem em
ídiche, o que muito me contraria. Apesar disso, eu me tornei,
mesmo assim, um bom judeu, ainda que, como vocês certamente
sabem, um não-crente”]61.

No dia oito de junho de 1938, respondendo ao Comitê do Instituto


Científico Ídiche, Freud descreveu como “criticamente negativa” a sua atitude para com
as religiões em geral62.
No mesmo ano, no dia 31 de outubro, ele escreveu a Charles Singer
(1876-1960): “Je ne fais pas plus mystère, dans ma vie privée que dans mes écrits, du
fait que je suis foncièrement incroyant” [“Eu não faço mais mistério, seja em minha
vida privada, seja em meus escritos, do fato de que sou fundamentalmente descrente”]63.

58
Cf. FREUD, Introduction à “Thomas Woodrow Wilson” de S. Freud et W.C. Bullitt. In: _______.
Œuvres complètes, v.18, p.365, 367.
59
Cf. FREUD, Totem et tabou. In: _______. Œuvres complètes, v.11, p.195.
60
Cf. FREUD, “Autoprésentation”. In: _______. Œuvres complètes, v.17, p.121.
61
CHEMOUNI, Freud, la psychanalyse et le judaisme, p.72.
62
Cf. JONES, A vida e a obra de Sigmund Freud, v.3, p.240-241.
63
FREUD, Correspondance 1873-1939, p.495.
Por fim, em “O homem Moisés e a religião monoteísta” (1939), Freud
observou que determinadas experiências da vida e certas observações do mundo
tornaram impossível para ele aceitar a existência de um ser supremo64.
Sim, decididamente, Freud não acreditava em Deus. Passam de duas
dezenas as declarações que colecionamos e que acabam de ser apresentadas. De que
tipo, porém, era o ateísmo de Freud?
O ateísmo de Freud pode ser qualificado de várias maneiras. Sabe-se
que, do ponto de vista metodológico, é próprio de qualquer ciência procurar a
inteligibilidade do objeto que lhe cabe sem pressupor, para tanto, a existência de Deus.
Isso vale, inclusive, quando o objeto em questão é a própria crença em Deus. No dia 31
de outubro de 1938, Freud escreveu a Singer: “...n‟importe quel examen scientifique
d‟une croyance religieuse présuppose l‟incroyance” [“...qualquer exame científico de
uma crença religiosa pressupõe a descrença”]65. Freud tem razão. Mas, até aqui, o seu
ateísmo é meramente metodológico.
O ateísmo freudiano é, contudo, mais do que apenas metodológico.
Aos olhos do inventor da psicanálise, há um conflito insuperável entre a razão e a fé, a
ciência e a religião. Em “Psicologia das massas e análise do eu”, por exemplo, Freud
compara o naturalista que conserva a fé na Bíblia a uma criança que acalenta
sentimentos ambivalentes por uma mesma pessoa, ao neurótico cuja vida psíquica
abriga moções opostas e a uma pessoa que não foi bem sucedida no processo de
unificação do próprio eu66. Ou seja, decididamente, ciência e religião, para Freud, são
irreconciliáveis. Ora, esse modo de ver as coisas é típico do pensamento do século
XVIII. O ateísmo de Freud tem, pois, uma qualidade iluminista, sendo uma marca da
sua inscrição nessa tradição67.

64
Cf. FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.201.
65
FREUD, Correspondance 1873-1939, p.495.
66
Cf. FREUD, Psychologie des masses et analyse du moi. In: _______. Œuvres complètes, v.16, p.17 [nota
1].
67
Cf. BIRMAN, Arquivos do mal-estar e da resistência, p.380; BIRMAN, Desejo e promessa, encontro
impossível. In: MOURA, Hélio Pellegrino. A-Deus, p.124; BIRMAN, Estilo e modernidade em psicanálise,
p.71-72, 74, 82, 96; BIRMAN, Freud e a política, entre judaísmo e judeidade. In: SAID, Freud e os não-
europeus, p.19; BIRMAN, Sobre a correspondência de Freud com o pastor Pfister. Religião e sociedade,
n.11/2, p.36; GAY, Freud, p.479, 484.
Metodológico, iluminista, o ateísmo de Freud é, porém, mais do que
isso. Militante, combativo, provocativo, hostil, agressivo, violento, demolidor Ŕ eis
como ele pode ainda ser qualificado68.
“Totem e tabu”, por exemplo, assemelha-se a uma intervenção
terapêutica. É como se, ao desvelar a origem da religião, Freud pretendesse curar a
humanidade da crença religiosa através da tomada de consciência do trauma recalcado
original69. Em “O futuro de uma ilusão”, por sua vez, ele afirma que o seu único
objetivo ao escrever o referido livro é mostrar a necessidade de superar o infantilismo
em que se constitui a mentalidade religiosa70. Nessa obra, Freud adota uma atitude
marcadamente normativa; ele procura persuadir quem o lê a abandonar a ilusão
religiosa, como se se tratasse de algo extremamente pernicioso 71. Aliás, embora num
clima muito cordial, na carta que endereçou a Pfister em 22 de outubro de 1927, o
prñprio Freud descreveu a publicação de “O futuro de uma ilusão” como uma
“declaração de guerra”72.
Em suma, para dizê-lo com Jurandir Freire Costa (1944), Freud foi um
“empedernido adversário da religião”73. Numa expressão curiosa, Rizzuto chegou a
descrever o ateísmo de Freud como um ateísmo “missionário”74. Com efeito, Freud não
apenas rejeitou Deus, mas conclamou os seus leitores a fazerem o mesmo75.

68
Cf. AUPING, El ateísmo de Freud a la luz del psicoanálisis freudiano. In: GRUPO ÉPSIMO, Experiencia
de Dios y psicoanálisis, p.42; BAMBERGER, A religião como ilusão? Concilium, n.16, p.79; BIRMAN,
Estilo e modernidade em psicanálise, p.73; DEMPSEY, Freud, psychanalyse et catholicisme, p.33;
DOMÍNGUEZ MORANO, Creer después de Freud, p.42, 57, 79; GAY, A Godless jew, p.39; GAY, Freud,
p.477-478.
69
Cf. PALMER, Freud e Jung: sobre a religião, p.49.
70
Cf. FREUD, L‟avenir d‟une illusion. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.190.
71
Cf. ENRIQUEZ, De la horde à l‟État, p.117.
72
Cf. FREUD, Correspondance avec le pasteur Pfister 1909-1939, p.166.
73
Cf. COSTA, Sobre psicanálise e religião. In: MOURA, Hélio Pellegrino. A-Deus, p.86.
74
Cf. RIZZUTO, Por que Freud rejeitou Deus?, p.17, 19.
75
Registre-se, contudo, que há algumas declarações de Freud que parecem contrastar com o que está dito
acima. Em “„Psicanálise‟ e „Teoria da libido‟”, ele afirma que a psicanálise não tem a intenção de minar a
religião (cf. FREUD, “Psychanalyse” et “Théorie de la libido”. In: _______. Œuvres complètes, v.16,
p.202). Em “O futuro de uma ilusão”, Freud manifesta o seu parecer de que ninguém vai perder a fé por
causa do seu livro (cf. FREUD, L‟avenir d‟une illusion. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.176, 186-
187). Numa carta endereçada a Arnold Zweig (1887-1968), em 28 de junho de 1938, ele diz não acreditar
que “O homem Moisés e a religião monoteísta” possa perturbar a fé de quem quer que seja (cf. FREUD;
ZWEIG, Correspondance 1927-1939, p.205). Por fim, numa carta que enviou ao doutor Magarik, no dia
quatro de julho de 1939, Freud escreveu: “Ninguém que procura consolo na Bíblia santa ou nos
pregadores de sinagoga [...] corre o risco de perder sua fé pelas minhas pregações. Penso até mesmo que
não chegará a saber em que acredito e defendo em meus livros. A fé não pode ser abalada por tais meios.
Não escrevo para o povo ou a massa dos crentes. Apenas produzo material científico de interesse para
uma minoria que não tem fé a perder” (GAY, Freud, p.571 [nota *]).
O interesse de Freud pela religião

Que Freud foi um ateu aguerrido, não há dúvidas. Mas ele foi também
uma espécie curiosa de ateu: um ateu muitíssimo interessado nas coisas de Deus. André
Godin (1915-1997) o descreveu como um ateu “apaixonado” pela religião76; Sophie de
Mijolla-Mellor (1946), por sua vez, afirmou que Freud tinha um “prodigioso interesse”
pelo fenômeno religioso77.
De fato, o primeiro artigo de Freud inteiramente dedicado ao
problema da religião data de 1907. As suas primeiras referências ao assunto, porém,
podem já ser encontradas em sua correspondência com Wilhelm Fließ (1858-1928), dez
anos antes. Seja como for, o fato é que, partindo daí, Freud não abandonou mais essa
questão, dedicou os últimos cinco anos da sua vida ao problema do monoteísmo
judaico, deixando-se absorver inteiramente por esse tema78, e escreveu a sua última
anotação, datada de 22 de agosto de 1938, sobre a mística79. Pode-se mesmo falar, sem
exagero, numa “onipresença” do tema da religião na obra de Freud80.
Entre as primeiras intuições compartilhadas com Fließ e a última
anotação feita numa folha avulsa, “rios de tinta” correram da pena de Freud. Um
elemento que parece atestar o seu envolvimento afetivo com a problemática religiosa é
o fato de que ele tenha escolhido o seu melhor e o seu pior livros entre aqueles
dedicados a essa matéria. Com efeito, em quatro de maio de 1913, Freud confidenciou a
Ferenczi:

“J‟écris maintenant sur le Totem, avec le sentiment que ce sera


mon „Plus Grand‟, mon „Meilleur‟, et peut-être mon dernier bon
[travail]. Des certitudes intérieures me disent que j‟ai raison”
[“Escrevo agora sobre o Totem com o sentimento de que esse
será meu „Maior‟, „Melhor‟ e, talvez, meu último bom
[trabalho]. Certezas interiores me dizem que tenho razão”]81.

76
Cf. GODIN, Reflexões recentes sobre vida espiritual cristã e psicanálise. Concilium, n.99, p.1183; ver
também: ÁVILA, Para conhecer a psicologia da religião, p.32.
77
Cf. MIJOLLA-MELLOR, A necessidade de crer, p.269.
78
Cf. JONES, A vida e a obra de Sigmund Freud, v.3, p.199, 201, 203, 361.
79
Cf. FREUD, Résultats, idées, problèmes. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.320.
80
Cf. MALAMOUD, Psicanálise & ciência das religiões. In: KAUFMANN, Dicionário enciclopédico de
psicanálise, p.585; ROUDINESCO; PLON, Dicionário de psicanálise, p.367.
81
FREUD; FERENCZI, Correspondance 1908-1914, p.510.
Freud também disse a James Strachey (1887-1967) que considerava o
quarto e último ensaio de “Totem e tabu” a sua obra “mais bem escrita”82.
Por outro lado, no dia 10 de outubro de 1927, Freud escreveu a Max
Eitingon (1881-1943) que “O futuro de uma ilusão” “...tinha muito pouco valor, mas
que seria útil para trazer algum dinheiro para a Verlag”83. No dia 16 seguinte, ao
prometer a Eitingon um exemplar do livro, Freud adiantou que o conteúdo psicanalítico
do trabalho é “muito ralo” e que, mesmo sob outros aspectos, a obra “não tem muito
valor”84. Passada uma semana, no dia 23, escreveu a Ferenczi: “Agora ele já me parece
infantil; fundamentalmente penso de outra forma; considero-o analiticamente fraco e
inadequado enquanto autoconfissão”85. A declaração mais contundente, porém, foi
recolhida por René Laforgue (1894-1962). Segundo ele, numa conversa que tiveram em
1928, referindo-se ao mesmo trabalho, Freud afirmou: “C‟est mon plus mauvais livre!
Ce n‟est d‟ailleurs pas un livre de Freud” [“É o meu pior livro! Aliás, não é um livro de
Freud”]. “C‟est le livre d‟un vieil homme” [“É o livro de um homem velho”]86.
Quanto a “O homem Moisés e a religião monoteísta”, Küng
exclamou:

“...is it not surprising that Freud, from his eightieth year,


continued to study religion intensively and devoted to it almost
the greater part of the remaining five years of his life?” [“...não é
de se admirar que Freud, já octogenário, tenha continuado a
estudar religião intensivamente, devotando a ela quase que a
maior parte dos últimos cinco anos de sua vida?”]87.

Sim, essa questão, de fato, o cativou. Freud morreu pensando nisso.


Veremos que, em sua interpretação do fenômeno religioso, uma das
analogias a que Freud recorreu é a comparação com a neurose obsessivo-compulsiva. Se
a religião é mesmo uma neurose obsessiva, discutiremos mais adiante. Que o tema da

82
Cf. FREUD, Totem et tabou. In: _______. Œuvres complètes, v.11, p.192.
83
JONES, A vida e a obra de Sigmund Freud, v.3, p.148.
84
Cf. GAY, Freud, p.476.
85
JONES, A vida e a obra de Sigmund Freud, v.3, p.148.
86
CHOISY, Le chrétien devant la psychanalyse, p.33; cf. BINSWANGER, Souvenirs sur Sigmund Freud. In:
_______, Dicours, parcours, et Freud, p.347 [nota 1]; GAGEY, Freud et le christianisme, p.29; ver
também: DANSEREAU, Freud et l‟athéisme, p.34; LECUIT, L‟anthropologie théologique à la lumière de la
psychanalyse, p.401 [nota 1], 421.
87
KÜNG, Freud and the problem of God, p.52; ver também: KÜNG, Religião: o último tabu? In: _______,
Freud e a questão da religião, p.113.
religião, contudo, foi uma verdadeira “obsessão” para Freud, isso é algo que se pode
afirmar desde já88.
Outra expressão do fascínio que a religião exerceu sobre Freud pode
ser encontrada no interesse que ele tinha pelo ocultismo. Em 24 de julho de 1921,
referindo-se aos fenômenos psíquicos ocultos, Freud escreveu a Carrington:

“Si je me trouvais au début de ma carrière scientifique au lieu


d‟être à sa fin, je ne me choisirais peut-être pas d‟autre domaine
de recherches en dépit de toutes les difficultés qu‟il présente”
[“Se eu estivesse no início da minha carreira científica, e não no
fim dela, eu talvez não escolhesse outro campo de pesquisa,
apesar de todas as dificuldades que ele apresenta”]89.

Freud se interessou particularmente pela telepatia, o elemento mais


“respeitável”, por assim dizer, do campo do ocultismo. Em “Psicanálise e telepatia” Ŕ
escrito em 1921, lido por Freud para os membros do comitê secreto no mesmo ano, mas
publicado apenas em 1941, postumamente Ŕ, ele admitiu a possibilidade da transmissão
de pensamentos90. Em “Sonho e telepatia” Ŕ um artigo publicado em 1922, não um
manuscrito comunicado reservadamente Ŕ, Freud já não se comprometeu com a tese da
existência da transmissão de pensamentos, mas também não chegou a negá-la91. Em
“Alguns acréscimos à interpretação do sonho em seu conjunto” (1925), Freud se
mostrou inclinado a admitir a realidade da telepatia, a qual constituiria o “núcleo de
verdade” do ocultismo92. Por fim, na trigésima conferência de “Nova sequência de
lições de introdução à psicanálise” (1933), Freud voltou a se mostrar propenso a admitir
a telepatia; no campo do ocultismo, esse fenómeno corresponderia a um “núcleo real de
fatos” envolto pela “impostura” e pela “fantasia”93.

88
Cf. ALONSO, Psicoanálisis y religión. Proyección, v.23, n.101, p.131-132; DALGALARRONDO, Religião,
psicopatologia e saúde mental, p.56; LACAN, Le séminaire, livre 7, p.156, 202; PLÉ, Freud et la religion,
p.46, 99; VITZ, Sigmund Freud‟s christian unconscious, p.205; WHITE, Deus e a psicanálise, p.90.
89
FREUD, Correspondance 1873-1939, p.364. Sobre o interesse de Freud pelo ocultismo: cf. JONES, A
vida e a obra de Sigmund Freud, v.3, p.369-398; ROAZEN, Freud e seus discípulos, p.268-278;
ROUDINESCO; PLON, Dicionário de psicanálise, p.752-755; ROUSTANG, Un destin si funeste, p.130-133.
90
Cf. FREUD, Psychanalyse et télépathie. In: _______. Œuvres complètes, v.16, p.108.
91
Cf. FREUD, Rêve et télépathie. In: _______. Œuvres complètes, v.16, p.144.
92
Cf. FREUD, Quelques suppléments à l‟ensemble de l‟interprétation du rêve. In: _______. Œuvres
complètes, v.17, p.186.
93
Cf. FREUD, Nouvelle suite des leçons d‟introduction à la psychanalyse. In: _______. Œuvres complètes,
v.19, p.117, 136-137.
Seja como for, por mais prudente que tenha sido a sua incursão nesse
domínio, há quem veja nesse nebuloso interesse de Freud um deslocamento da sua
questão religiosa ou uma forma substitutiva de religiosidade94. Com efeito, o gosto de
Freud pelos fenômenos ocultos, as suas superstições, o poder que ele atribuía aos
números, a crença ansiosa de que iria morrer com esta ou aquela idade Ŕ tudo isso se
avizinha do campo da religiosidade.
Outra possível evidência da atração que Freud sentia pela religião
reside no fato de que ele tenha mantido amizade com vários homens religiosos. É
verdade que os pares de Freud eram, em sua maior parte, como ele, ateus. Mas ele
também apreciou cultivar amigos religiosos. Entre eles, pode-se mencionar: Samuel
Hammerschlag (1926-1904), Wilhelm Fließ (1858-1928), Joseph Breuer (1842-1925),
James Jackson Putnam (1846-1918), Carl Gustav Jung (1875-1961), Oskar Pfister
(1873-1956), Ludwig Binswanger (1881-1966), René Laforgue (1894-1962) e Romain
Rolland (1866-1944)95. Ora, o próprio Freud nos ensinou que o fundamento libidinal da
amizade é a identificação96. Na opinião de Meissner, os amigos religiosos de Freud
funcionavam como “duplos” dele mesmo, isto é, como representantes de porções da sua
própria vida psíquica que ele, não obstante, se esforçava por repelir97.
Ao longo da sua vida, Freud não apenas se identificou a homens
profundamente religiosos, mas Ŕ o que nos parece mais significativo Ŕ se reconheceu
também em uma série de personagens saídos diretamente das páginas das Sagradas
Escrituras.
Numa carta endereçada a Fließ, datada de sete de maio de 1900, Freud
se identificou a Jacó Ŕ depois, chamado “Israel” Ŕ, que lutou com o anjo e foi ferido por
ele na perna (cf. Gn 32,23-33)98.
Numa carta que escreveu para o seu filho Ernst Freud (1892-1970),
em 12 de maio de 1938, encontrando-se prestes a transferir-se para a Inglaterra, Freud

94
Cf. AUPING, El ateísmo de Freud a la luz del psicoanálisis freudiano. In: GRUPO ÉPSIMO, Experiencia
de Dios y psicoanálisis, p.50-51, 56-58; DOMÍNGUEZ MORANO, El psicoanálisis freudiano de la religión,
p.206; MEISSNER, Psychoanalysis and religious experience, p.35, 39; PLÉ, Freud et la religion, p.60-71.
95
Talvez, se possa acrescentar ainda: Theodor Herzl (1860-1904), Arthur Schnitzler (1862-1931) e
Arnold Zweig (1887-1968) (cf. MEISSNER, Psychoanalysis and religious experience, p.49).
96
Cf. FREUD, Psychologie des masses et analyse du moi. In: _______. Œuvres complètes, v.16, p.42-48.
97
Cf. MEISSNER, Psychoanalysis and religious experience, p.48-49, 55; ver também: VERMOREL;
VERMOREL, Sigmund Freud et Romain Rolland: correspondance 1923-1936, p.541, 585; WONDRACEK, O
amor e seus destinos, p.28-29.
98
Cf. MASSON, A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess – 1887-1904, p.413.
voltou a se comparar a Jacó, que, quando ficou muito idoso, foi levado pelos filhos para
o Egito (cf. Gn 46,1-7)99.
Em “A interpretação do sonho”, Freud se identificou a José do Egito,
o decifrador de sonhos100. Com efeito, Freud e José tinham ambos um pai chamado
“Jacñ” e eram ambos intérpretes de sonhos.
Na carta que endereçou a Fließ no dia 21 de setembro de 1897, na
qual revela ter abandonado a teoria da sedução, Freud citou uma frase de Davi quando
da morte de Saul, identificando-se, assim, ao rei dos judeus (cf. 2Sm 1,20)101.
Em outra carta remetida a Fließ, datada de 23 de março de 1900, há
uma passagem em que Freud se identifica a Jesus: “Não há ninguém que possa me
ajudar minimamente no que me oprime; é minha cruz e devo carregá-la; e Deus sabe
que, na adaptação a ela, minhas costas se tornaram visivelmente recurvadas”102.
Em 1926, numa alocução aos membros da associação B‟nai B‟rith,
referindo-se aos primórdios da sua atividade científica, marcados pela incompreensão e
pelo isolamento, Freud confessou: “...je me sentais comme proscrit, évité de tous”
[“...eu me sentia como um proscrito, evitado por todos”]103. As palavras usadas por
Freud evocam um trecho do Quarto Cântico do Servo Sofredor Ŕ texto que os seus
ouvintes seguramente conheciam muito bem Ŕ, onde se lê: “Era desprezado e
abandonado pelos homens...” (Is 53,3). A Igreja Católica aplicou essas palavras a Jesus,
tendo presente, em particular, a sua paixão104.
Jacó (Israel), José, Davi, Jesus Ŕ Freud se viu em todas essas
figuras105. Porém, nenhum outro personagem bíblico foi tão importante para ele quanto

99
Cf. FREUD, Correspondance 1873-1939, p.484; ver também: CHEMOUNI, Freud, la psychanalyse et le
judaisme, p.78.
100
Cf. FREUD, L‟interprétation du rêve. In: _______. Œuvres complètes, v.4, p.535 [nota 1]; ver também:
MASSON, A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess – 1887-1904, p.369.
101
Cf. MASSON, A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess – 1887-1904,
p.266.
102
MASSON, A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess – 1887-1904, p.407.
103
FREUD, Allocution aux membres de la Société B‟nai B‟rith. In: _______. Œuvres complètes, v.18,
p.115; ver também: FREUD, Correspondance 1873-1939, p.398.
104
Freud também se identificou a Jesus no radicalismo do seu apelo para que o seguissem, sendo
despojado das suas vestes e ao ser pregado à cruz (cf. PFRIMMER, Freud, leitor da Bíblia, p.132-133, 149-
151, 174, 323-325).
105
Ele também se identificou a Ismael, como se pode constatar numa carta a Silberstein (cf. PFRIMMER,
Freud, leitor da Bíblia, p.318).
Moisés. Freud era obcecado por Moisés; tinha um verdadeiro fascínio pela sua figura106.
O envolvimento afetivo de Freud com Moisés Ŕ ou, mais do que isso, a sua
identificação a ele Ŕ transparece em dados diversos da sua biografia.
Na carta a Fließ de 26 de agosto de 1898, Freud relatou o episódio em
que esqueceu Ŕ entenda-se: recalcou Ŕ o sobrenome “Mosen” do poeta Julius Mosen
(1803-1867), o que pode ser tomado como um indício do seu envolvimento pessoal com
a figura de Moisés, uma vez que “Mosen” alude a “Moisés”107.
Num de seus sonhos romanos, Freud avistou de longe a cidade de
Roma, assim como Moisés avistou de longe a Terra Prometida108.
Analogamente, numa carta endereçada a Jung no dia 17 de janeiro de
1909, Freud escreveu:

“...if I am Moses, then you are Joshua and will take possession
of the promised land of psychiatry, which I shall only be able to
glimpse from afar...” [“...se eu sou Moisés, então, você é Josué e
tomará posse da terra prometida da psiquiatria, a qual só poderei
vislumbrar de longe...”]109.

Em “O Moisés de Michelangelo”, obra que Freud publicou


anonimamente Ŕ coisa sugestiva Ŕ, ele reconheceu que nenhuma outra obra plástica o
impressionou tão fortemente quanto a estátua de Moisés esculpida por Michelangelo
(1475-1564)110.
Seja como for, a maior evidência da imensa importância de que se
revestia a figura de Moisés para Freud é, sem dúvida, “O homem Moisés e a religião
monoteísta”, obra que consumiu os seus derradeiros esforços111.

106
Cf. FROMM, Sigmund Freud‟s mission, p.76-81, 94; GAY, Freud, p.547; ROUDINESCO; PLON,
Dicionário de psicanálise, p.518.
107
Cf. MASSON, A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess – 1887-1904,
p.325; ver também: KLEIN, Jewish origins of the psychoanalytic movement, p.95; MEZAN, Freud,
pensador da cultura, p.392; ROBERT, D‟Œdipe à Moïse, p.182 [nota 1].
108
Cf. FREUD, L‟interprétation du rêve. In: _______. Œuvres complètes, v.4, p.231.
109
MCGUIRE, The Freud/Jung letters, p.93.
110
Cf. FREUD, Le Moïse de Michel-Ange. In: _______. Œuvres complètes, v.12, p.133. Registre-se que,
na interpretação de Theodor Reik (1888-1969), o Moisés de Michelangelo poderia retratar não apenas o
libertador do povo hebreu, mas o próprio Deus Pai (cf. REIK, Ritual: psycho-analytic studies, p.307-308).
Nesse caso, os intensos afetos de Freud ligados a essa estátua teriam por objeto a divindade.
111
Um dado curioso: as iniciais dos nomes dos seis filhos de Freud formam o nome de Moisés. Da mais
velha para a caçula, os filhos de Freud são os seguintes: Mathilde, Martin (a rigor, Jean-Martin), Olivier,
Ernst, Sophie e Hanna (na verdade, Anna). Já que os dois primeiros filhos têm nomes com a mesma
Como se vê, embora o seu valor probatório seja variável, não são
poucos os elementos que atestam o grande interesse que Freud tinha pelo domínio do
religioso. Antes de terminarmos esta seção, queremos ainda acrescentar três dados, de
importância menor, mas, nem por isso, desprezíveis.
Em 27 de junho de 1882, escrevendo para Martha Bernays (1861-
1951), Freud mencionou a basílica de São Pedro, em Roma, como um local que sua
noiva apreciaria conhecer112.
A Catedral de Notre Dame foi o prédio que mais impressionou Freud
em Paris. Numa carta escrita a Martha em 1885, ele relatou ter tido uma sensação
desconhecida até então quando entrou nessa igreja. E, em “A interpretação do sonho”,
ele escreveu que o seu recanto predileto em Paris era a Catedral de Notre Dame. Como
lembrança da “Cidade Luz”, Freud escolheu justamente uma fotografia dessa igreja113.
Por fim, Freud possuía uma imensa coleção de imagens religiosas;
estatuetas de deuses e de figuras míticas decoravam o seu gabinete.
Sim, não há como negá-lo: Freud foi, de fato, um ateu muitíssimo
interessado nas coisas de Deus.

Uma questão conflitiva

Se o/a leitor/a emparelhar, agora, todas as declarações de ateísmo que


elencamos na primeira seção deste capítulo e os dados todos mencionados na seção
precedente, uma conclusão se lhe imporá naturalmente: a religião era uma questão
conflitiva para Freud; embora se nomeasse ateu, ele se sentia fortemente atraído por ela.
Há quem veja em Freud mais do que “a Godless jew” [“um judeu sem
Deus”], “a closet jew” [“um judeu enrustido”]114. Talvez, não seja o caso de se chegar a
tanto. O mínimo, porém, que se pode afirmar é que Freud tinha uma relação

inicial, “M”, são cinco, portanto, as iniciais utilizadas: “M”, “O”, “E”, “S” e “H”. Com elas, se escreve o
nome hebraico de Moisés: “Moshe” (cf. BALMARY, O monge e a psicanalista, p.172).
112
Cf. FREUD, Correspondance 1873-1939, p.22; ver também: VITZ, Sigmund Freud‟s christian
unconscious, p.62.
113
Cf. DEMPSEY, Freud, psychanalyse et catholicisme, p.57; JONES, A vida e a obra de Sigmund Freud,
v.1, p.192; VITZ, Sigmund Freud‟s christian unconscious, p.63-64.
114
Cf. KAKAR, The analyst and the mystic, p.60; ver também: RACKER, Sobre la posición de Freud frente
a la religión. In: _______. Psicoanálisis del espíritu, p.53; WIESENHÜTTER, La fe reprimida. In: ZAHRNT,
Jesús de Nazaret y Sigmund Freud, p.135-142, 151, 160; ZAHRNT, Jesús de Nazaret y Sigmund Freud,
p.308-309.
ambivalente Ŕ de atração e repulsão, encantamento e antipatia Ŕ para com a religião115.
A esse propósito, Choisy escreveu:

“¿Freud fue tan ateo como lo sostiene? Lo proclama demasiado.


Él mismo nos ha enseñado a desconfiar de las aserciones
absolutas. [...] „todo lo que es exagerado contiene un elemento
contrario‟. ¿Freud no fue más bien ambivalente ante la religión?
Desea convencerme demasiado para que yo me convenza”.
[“Freud foi tão ateu quanto diz? Proclamou-o demasiado. Ele
mesmo nos ensinou a desconfiar das afirmações absolutas. [...]
„tudo o que é exagerado contém um elemento contrário‟. Freud
não teria sido antes ambivalente diante da religião? Deseja
convencer-me demasiado para que eu me convença”]116.

A rejeição das crenças e costumes religiosos em Freud tem, com


efeito, todo o aspecto de uma denegação ou de uma formação reativa117. O próprio
Lacan sugeriu algo dessa natureza118. De fato, Freud não era serenamente indiferente à
religião, assim como Karl Abraham (1877-1925), Sándor Ferenczi (1873-1933) ou Hans
Sachs (1881-1947). Ele era, como vimos, combativamente oposto a ela.
Essa conflitividade que caracterizava a relação de Freud para com a
religião pode ser ilustrada de maneira mais pontual. Vejamos alguns exemplos.
Freud admirava Aníbal (247 a.C. - 183 a.C.), um herói anti-romano Ŕ
leia-se: anti-católico. Ao mesmo tempo, na correspondência com Silberstein, adotou
“Cipião” como pseudónimo. Ao fazê-lo, ele pretendia apenas homenagear Miguel de
Cervantes (1547-1616): Cipião e Berganza eram os dois cachorros falantes do autor de
“Don Quijote de La Mancha” [“Dom Quixote de La Mancha”]; Freud adotou o nome de

115
Cf. ANCONA, Il debito della chiesa alla psicoanalisi, p.26-28; AUPING, El ateísmo de Freud a la luz del
psicoanálisis freudiano. In: GRUPO ÉPSIMO, Experiencia de Dios y psicoanálisis, p.55; BIRMAN, Freud e a
interpretação psicanalítica, p.115-116; CARBALLO, Psicoanálisis y religión. In: PLÉ, Freud y la religión,
p.17, 25; HADDAD, O filho ilegítimo, p.25; JUNG, Memórias, sonhos, reflexões, p.136; LECUIT,
L‟anthropologie théologique à la lumière de la psychanalyse, p.379-380; PALMER, Freud e Jung: sobre a
religião, p.120; ROAZEN, Freud e seus discípulos, p.288; SILVA, O ateísmo de Freud, p.22-23, 44, 54-55;
VITZ, Sigmund Freud‟s christian unconscious, p.2-3.
116
CHOISY, Psicoanálisis y catolicismo, p.24; cf. CHOISY, Le chrétien devant la psychanalyse, p.34-35.
117
Quanto à possibilidade de que o recalcamento incida sobre a religiosidade: cf. CHOISY, Le chrétien
devant la psychanalyse, p.67; DOMÍNGUEZ MORANO, Psicoanálisis y religión: diálogo interminable, p.93;
FRANKL, A presença ignorada de Deus, p.8, 18, 39, 47-48, 55; FREUD, Correspondance avec le pasteur
Pfister 1909-1939, p.182-183; KÜNG, Freud and the problem of God, p.84-85, 87, 110; WONDRACEK, O
amor e seus destinos, p.99-100, 126, 132, 143.
118
Cf. LACAN, Discours aux catholiques. In: _______. Le triomphe de la religion précédé de Discours
aux catholiques, p.37; ver também: PLÉ, Freud et la religion, p.66-71; YERUSHALMI, O Moisés de Freud,
p.107.
“Cipião”, e Silberstein, de “Berganza”. Ocorre que “Cipião” é também o nome do
general romano que derrotou Aníbal: Cipião, o Africano (236 a.C. - 184 a.C.)119.
Ambivalência?
Numa carta a Fließ datada de três de janeiro de 1897, Freud citou a
inscrição de uma medalha Ŕ “Flavit et dissipati sunt” [“Soprou e se dispersaram”] Ŕ
omitindo o nome de Deus, o sujeito da oração120. A mesma omissão ocorreu em “A
interpretação do sonho”121. Recalcamento?
Na carta que endereçou a Fließ em seis de fevereiro de 1899, ao citar
uma frase de William Shakespeare (1564-1616) Ŕ “Deves uma morte à Natureza” Ŕ,
Freud substituiu a palavra “Deus” por “Natureza”122. O mesmo aconteceu em
“Atualidades sobre a guerra e a morte”123. Recalcamento?
Em “O futuro de uma ilusão”, Freud lançou mão do recurso literário
de conceber para si mesmo um oponente imaginário. Há quem diga que o adversário
forjado por Freud não é nem Jung, nem Pfister, nem Binswanger, mas o próprio Freud,
o seu alter-ego, aquela voz em si mesmo que ele se esforçava por silenciar124. Divisão
interna?
Por fim, em “O mal-estar na cultura”, Freud garantiu que jamais
experimentou o que Rolland chamou de “sentimento oceânico”125. Ora, quando jovem,
Freud atravessou uma fase mística de tipo panteísta; ao adentrar a Catedral de Notre
Dame, como vimos, ele sentiu algo diferente; em Roma, igualmente, no Templo de
Minerva, fez uma experiência de cunho religioso; em Atenas, ao visitar a Acrópole,
119
Cf. BOEHLICH, As cartas de Sigmund Freud para Eduard Silberstein, p.59, 61, 117-119, 216, 233;
VITZ, Sigmund Freud‟s christian unconscious, p.45-47, 195.
120
Cf. MASSON, A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess – 1887-1904,
p.221.
121
Cf. FREUD, L‟interprétation du rêve. In: _______. Œuvres complètes, v.4, p.252; ROBERT, D‟Œdipe à
Moïse, p.193 [nota 1]; ver também: ZILBOORG, Dénégations et affirmations de la foi religieuse. In: Foi,
raison et psychiatrie moderne, p.149. Vale o registro de que, em nota acrescentada em 1925, o próprio
Freud comentou o fato de haver sido censurado por essa omissão (cf. FREUD, L‟interprétation du rêve. In:
_______. Œuvres complètes, v.4, p.252 [nota 2]).
122
Cf. MASSON, A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess – 1887-1904,
p.344-345; ver também: AUPING, El ateísmo de Freud a la luz del psicoanálisis freudiano. In: GRUPO
ÉPSIMO, Experiencia de Dios y psicoanálisis, p.38-39; DEMPSEY, Freud, psychanalyse et catholicisme,
p.40 [nota 2]; LECUIT, L‟anthropologie théologique à la lumière de la psychanalyse, p.380 [nota 5]; VITZ,
Sigmund Freud‟s christian unconscious, p.77. Note-se, contudo, que, segundo Jones, a mesma
substituição de “Deus” por “Natureza” foi feita por Laurence Sterne (1713-1768) em “Tristram Shandy”,
que Freud apreciava particularmente (cf. JONES, A vida e a obra de Sigmund Freud, v.1, p.30).
123
Cf. FREUD, Actuelles sur la guerre et la mort. In: _______. Œuvres complètes, v.13, p.144.
124
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, Psicoanálisis y religión: diálogo interminable, p.99-100, 122, 145;
ENRIQUEZ, De la horde à l‟État, p.119, 133-134.
125
Cf. FREUD, Le malaise dans la culture. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.250.
Freud teve uma vivência de desrealização; e, em “O delírio e os sonhos na „Gradiva‟ de
W. Jensen”, ele descreveu uma vivência de eternidade126. Denegação?
Não, não estamos dizendo que Freud foi um crente enrustido, um
teísta recalcado, um místico não assumido ou um cristão anônimo: Freud foi, de fato,
um ateu. Tudo o que quisemos demonstrar até agora é que ele foi um ateu fortemente
interessado em religião Ŕ e não só intelectualmente.

A formação religiosa de Freud

A consideração da educação religiosa que Freud recebeu pode nos


ajudar a compreender melhor a sua atitude pessoal para com a religião. Antes, porém,
de tratarmos da sua formação em matéria de fé, é preciso que tracemos o perfil religioso
daqueles que o educaram: os seus pais.
No dia 20 de fevereiro de 1930, em carta endereçada a Abraham
Aaron Roback (1890-1965), Freud escreveu: “...mon père venait [...] d‟un milieu
chassidique” [“...meu pai veio [...] de um meio hassídico”]127. Com efeito, Jacob Freud
(1815-1896), o pai de Sigmund, foi um judeu ortodoxo influenciado pelo hassidismo,
uma forma tardia e popular do misticismo judaico. O célebre episódio do gorro de pele
do pai de Freud atirado na sarjeta por um cristão Ŕ provavelmente, um católico Ŕ atesta
que, na sua juventude, Jacob trajava-se e comportava-se como um judeu ortodoxo, isto
é, no sábado, não trabalhava, mas vestia suas melhores roupas, usava um chapéu
sabático e passeava128.
Quando Freud completou 35 anos, Jacob o presenteou com a Bíblia da
família e escreveu-lhe uma dedicatória que também se tornou célebre. O texto dessa
dedicatória é uma espécie de melitzá: trata-se de um mosaico de fragmentos da Sagrada
Escritura, da literatura rabínica e da liturgia judaica. Oito livros bíblicos são citados,
alguns deles, mais de uma vez: “Gênesis”, “Êxodo”, “Números”, “Deuteronómio”,
126
Cf. ASSOUN, Freud et la mystique. Nouvelle revue de psychanalyse, n.22, p.47-49; CHEMOUNI, Freud e
o sionismo, p.194-195; MEISSNER, Ignatius of Loyola, p.332; MEISSNER, To the greater glory, p.594;
MIJOLLA-MELLOR, A necessidade de crer, p.17, 20, 95, 270; PARSONS, The enigma of the oceanic feeling,
p.vii, 11, 19, 79-85; SILVA, O ateísmo de Freud, p.52; VERMOREL; VERMOREL, Sigmund Freud et
Romain Rolland: correspondance 1923-1936, p.305 [nota 1], 311, 341, 586-590; VITZ, Sigmund Freud‟s
christian unconscious, p.196.
127
FREUD, Correspondance 1873-1939, p.431.
128
Cf. FREUD, L‟interprétation du rêve. In: _______. Œuvres complètes, v.4, p.234; HADDAD, O filho
ilegítimo, p.37; MEZAN, Psicanálise, judaísmo: ressonâncias, p.56; ROITH, O enigma de Freud, p.84.
“Juízes”, “Jñ”, “Salmos” e “Jeremias”. Esse texto revela que Jacob possuía uma notável
familiaridade com as fontes do judaísmo129.
A mãe de Freud, Amalia Nathanson (1835-1930), por sua vez,
também foi educada dentro do judaísmo ortodoxo. A partir de uma determinada altura
de suas vidas, porém, tanto Jacob quanto Amalia passaram a sofrer a influência da
Hascalá, abandonando, por conseguinte, a ortodoxia da religião judaica em que foram
criados.
“Hascalá”, que significa “iluminismo”, é o nome de um movimento
liberal, oposto à ortodoxia religiosa, que, tendo em vista a integração dos judeus ao
Ocidente, promoveu a reforma e a modernização do judaísmo. A Hascalá surgiu em
meados do século XVIII, em Berlim, na Prússia, estabeleceu um centro em Viena no
fim do mesmo século e atingiu “em cheio” a Galícia, região de que procediam os pais
de Freud, onde se contrapôs ao hassidismo. O movimento reformista judaico consistiu
num amplo esforço de modernização e ocidentalização do judaísmo, implicando numa
reinterpretação global das tradições judaicas e numa série de mudanças doutrinais e
litúrgicas. Com o objetivo de responder ao desafio da modernidade, esse movimento
harmonizou o judaísmo ao iluminismo e contribuiu para a superação do estado de
segregação e isolamento em que se encontravam os judeus na Europa, de modo a
possibilitar a sua integração à cultura ocidental. O movimento reformista judaico
resultou, por fim, num novo judaísmo, secularizado, liberal, sem Deus, desprovido de
qualquer misticismo, despojado de todo cerimonialismo e reduzido a uma ética130.
Jacob e Amalia casaram-se numa cerimônia religiosa segundo o rito
reformado e, depois que se mudaram para Viena, abandonaram as prescrições
alimentares judaicas e deixaram de praticar quase todos os rituais costumeiros. Em
síntese, os pais de Freud foram judeus ortodoxos que passaram por um processo de
assimilação131.

129
Cf. BERNSTEIN, Freud e o legado de Moisés, p.159 [nota 10]; ROITH, O enigma de Freud, p.73;
YERUSHALMI, O Moisés de Freud, p.111-113, 164-165.
130
Cf. GABBAY, Ética judaica e psicanálise, p.67-124; GUINSBURG, Hascalá Ŕ o iluminismo judaico. In:
FRANÇA, Freud, a cultura judaica e a modernidade, p.79-89.
131
Cf. BAKAN, Sigmund Freud and the jewish mystical tradition, p.55-56, 80; FUKS, Freud e a judeidade,
p.19-20; GABBAY, Ética judaica e psicanálise, p.203 [nota 39]; GAY, Freud, p.24, 542; JONES, A vida e a
obra de Sigmund Freud, v.3, p.346; KLEIN, Jewish origins of the psychoanalytic movement, p.42;
PERESTRELLO, Freud e a tradição judaica. In: _______, A formação cultural de Freud, p.50-54, 57-58;
PFRIMMER, Freud, leitor da Bíblia, p.19, 29; VITZ, Sigmund Freud‟s christian unconscious, p.32-34;
Não se deve, porém, exagerar o grau de secularização sofrido pelos
pais de Freud. Certa feita, os netos de Jacob afirmaram que o avô tornou-se um
“perfeito livre-pensador”132. Segundo Thornton Wilder (1897-1975), uma vez, Freud
declarou: “Venho de uma contínua linha de judeus infiéis. Meu pai era um
voltariano”133. Yosef Hayim Yerushalmi (1932-2009) qualifica de “absurda” essa
afirmação. Com efeito. Jacob era um homem de mentalidade liberal e concepções
progressistas; mas dizer que era um completo livre-pensador ou um voltariano parece-
nos um exagero. Seja como for, passemos à formação religiosa que Freud recebeu de
seus pais.
No dia seis de maio de 1926, Freud declarou: “...j‟ai été élevé sans
religion...” [“...eu fui educado sem religião...”]134. Em 15 de dezembro de 1930, Freud
escreveu a J. Dwossis: “My father [...] let me grow up in complete ignorance of
everything that concerned Judaism” [“Meu pai [...] permitiu que eu crescesse na
ignorância completa de tudo o que fosse relativo ao judaísmo”]135. Jones, por sua vez,
assegurou: “...Freud foi criado em uma atmosfera caseira quase inteiramente secular”136.
De novo, isso nos parece excessivo. Com efeito, há dados que atestam
que a educação religiosa de Freud Ŕ nomeadamente, que a sua formação em matéria de
judaísmo Ŕ não foi tão deficiente quanto o que as citações acima sugerem. Freud parece
ter minimizado a educação religiosa que recebeu137. Vejamos.
Freud nasceu em seis de maio de 1856 e, conforme o registro que o
seu pai fez na Bíblia da família, foi circuncidado no dia 13 seguinte, ou seja,
religiosamente, no oitavo dia após o seu nascimento138.
Freud recebeu o nome de “Sigismund Schlomo Freud”. “Sigismund”
foi o nome de três reis da Polônia que adotaram, com relação aos judeus, uma política

ROBERT, D‟Œdipe à Moïse, p.37-41, 45; ROITH, O enigma de Freud, p.73, 84, 122; YERUSHALMI, O
Moisés de Freud, p.100-101.
132
Cf. JONES, A vida e a obra de Sigmund Freud, v.1, p.32; ROITH, O enigma de Freud, p.72.
133
YERUSHALMI, O Moisés de Freud, p.113, 201 [nota 47].
134
FREUD, Allocution aux membres de la Société B‟nai B‟rith. In: _______. Œuvres complètes, v.18,
p.115; cf. FREUD, Correspondance 1873-1939, p.398.
135
GAY, A Godless jew, p.125; cf. GAY, Freud, p.542.
136
JONES, A vida e a obra de Sigmund Freud, v.3, p.346.
137
AVIS, A hermeneutic of suspicion: Sigmund Freud. In: _______, Faith in the fires of criticism, p.66;
MEZAN, Freud, pensador da cultura, p.72-73; PFRIMMER, Freud, leitor da Bíblia, p.34; ROBERT,
D‟Œdipe à Moïse, p.39; ROITH, O enigma de Freud, p.74; SOBREIRA, Freud e o judaísmo, p.41-42 [nota
27]; YERUSHALMI, O Moisés de Freud, p.74, 101-113, 151, 201 [nota 47].
138
Cf. FUKS, Freud e a judeidade, p.20; GAY, Freud, p.22; PFRIMMER, Freud, leitor da Bíblia, p.42.
favorável. Há também um santo catñlico chamado “Sigismund”, cuja memñria era
celebrada no dia primeiro de maio: Freud nasceu no dia seis. Seja como for, algum
tempo depois do seu ingresso na Universidade de Viena, em 1873, Freud trocou o seu
prenome original pela sua variante germânica, “Sigmund”. Não se sabe o que o levou a
fazer essa alteração. Não faltam, contudo, especulações. Há, por exemplo, quem tenha
visto essa mudança como um sinal da rejeição da sua identidade judaica: o “is”
eliminado teria a ver com “Israel”. Há quem diga que essa troca não significa uma
recusa da identidade judaica por parte de Freud, mas expressa, isto sim, uma rejeição da
religião judaica. Outra possibilidade leva em conta o fato de que “Sigismund” havia se
tornado um nome típico dado aos judeus em piadas anti-semitas. “Schlomo”, por sua
vez, era o nome do avô paterno de Freud. Trata-se de um prenome ostensivamente
hebreu, correspondendo, em português, a “Salomão”. Freud jamais chegou a usá-lo ou o
abandonou muito precocemente139.
Até os dois anos e meio, Freud foi cuidado por uma babá católica,
uma tcheca de uns 40 anos aproximadamente. As famílias judias tinham o costume de
contratar empregados católicos porque estes, precisamente por não serem judeus,
podiam trabalhar no Shabat140. O nome dela era Resi Wittek141; e ela costumava levar
Freud à igreja. Quando voltavam para casa, ele imitava o padre diante da família e fazia
pregações. A babá lhe falou do céu e do inferno e deve tê-lo ameaçado com o fogo
eterno caso Freud não fosse um bom menino142. Ele se referiu a essa mulher na carta a
Fließ de três de outubro de 1897, descrevendo-a como “...uma mulher feia e idosa,
porém esperta, que muito me ensinou sobre Deus Todo-Poderoso e o inferno...”143.
Paul C. Vitz (1935) considera possível, senão provável, que a babá
católica tenha batizado Freud secretamente144. Como veremos, que Pfister tenha

139
Cf. BAKAN, Sigmund Freud and the jewish mystical tradition, p.56; CHEMOUNI, Freud, la
psychanalyse et le judaisme, p.36-38; FUKS, Freud e a judeidade, p.152 [nota 12]; GAY, Freud, p.22;
KLEIN, Jewish origins of the psychoanalytic movement, p.46, 49; VITZ, Sigmund Freud‟s christian
unconscious, p.42, 231 [nota 52].
140
Cf. DAWKINS, Deus, um delírio, p.398.
141
Resi Wittek, não Monika Zajic, como se acreditou por um tempo. “Resi” é uma abreviação de
“Theresa”, um nome comum entre os catñlicos (cf. VITZ, Sigmund Freud‟s christian unconscious, p.5,
224 [nota 16]).
142
Cf. JONES, A vida e a obra de Sigmund Freud, v.1, p.19, 153; JONES, A vida e a obra de Sigmund
Freud, v.3, p.316-317, 345-346; ROITH, O enigma de Freud, p.124.
143
MASSON, A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess – 1887-1904, p.269.
144
Cf. AVIS, A hermeneutic of suspicion: Sigmund Freud. In: _______, Faith in the fires of criticism,
p.65; VERMOREL; VERMOREL, Sigmund Freud et Romain Rolland: correspondance 1923-1936, p.540;
VITZ, Sigmund Freud‟s christian unconscious, p.17-22.
pretendido “batizar” Freud, parece fora de dúvida; que a sua babá o tenha feito de fato,
isso é pura especulação.
Em 1935 Ŕ ou seja, numa época em que trabalhava na redação de “O
homem Moisés e a religião monoteísta” Ŕ, Freud acrescentou uma nota à sua
“Autoapresentação”, na qual afirmou:

“Le fait de me plonger précocement dans l‟histoire biblique, à


peine avais-je appris l‟art de lire, a déterminé de façon
persistante, comme je le reconnus plus tard, l‟orientation de mon
intérêt” [“O fato de me introduzir muito cedo na histñria bíblica,
mal havia eu aprendido a ler, determinou de modo duradouro,
como o reconheci mais tarde, a orientação do meu interesse”]145.

Aos sete anos de idade, Freud foi introduzido por Jacob à leitura das
Sagradas Escrituras utilizando um exemplar da chamada “Bíblia de Philippson”.
Editada pelo rabino Ludwig Philippson (1811-1889), de Leipzig, a Bíblia de Philippson
é uma Bíblia judaica, em que o texto sagrado é apresentado em duas línguas, o hebraico
e o alemão, acompanhado de um extenso e rico comentário e de centenas de ilustrações
em branco e preto Ŕ para ser exato, são 685 xilogravuras; 744 se as repetidas forem
contadas. Em suma, é uma verdadeira enciclopédia. A Bíblia de Philippson é uma
versão reformada das Escrituras judaicas; ela não era utilizada pelos judeus ortodoxos,
mas apenas pelos judeus partidários das Luzes.
No dia seis de maio de 1891, quando Freud completou 35 anos, o seu
pai o presenteou com o exemplar da Bíblia de Philippson que o filho tanto manuseara ao
longo da sua infância. Segundo uma tradição da Europa central, essa idade marcava a
entrada de um homem na maturidade. O presente veio acompanhado de uma dedicatória
escrita em hebraico.
Na biblioteca de Freud, em Londres, três Bíblias foram encontradas:
[1] a Bíblia da família, presente do pai, incompleta, que consistia na terça parte da
primeira edição da Bíblia de Philippson, publicada em fascículos, entre os anos 1839 e
1853; [2] um exemplar completo da segunda edição da Bíblia de Philippson, de 1858, o

145
FREUD, “Autoprésentation”. In: _______. Œuvres complètes, v.17, p.56.
qual Freud comprou usado; e [3] uma edição de 1904 da Bíblia de Lutero, a única
tradução alemã corrente naquele tempo146.
Freud citou a Bíblia de Philippson uma vez em “A interpretação do
sonho”147. Em “O Moisés de Michelangelo”, ao fazer referência a uma passagem do
“Êxodo”, ele citou a Bíblia de Lutero148. Freud voltou a citar a tradução luterana da
Escritura no caso do “Homem dos Lobos”149.
Segundo Jones, “...Freud conhecia bem a Bíblia e estava sempre
pronto a fazer citações de ambos os Testamentos”150. De fato, em “Freud, lecteur de la
Bible” [“Freud, leitor da Bíblia”], Théo Pfrimmer afirma haver descoberto, na obra de
Freud Ŕ incluindo a sua correspondência e as atas das sessões da Sociedade Psicanalítica
de Viena Ŕ, quase 400 citações da Bíblia. Várias dessas citações referem-se a passagens
pouco conhecidas do grande público, o que demonstra que Freud era um bom
conhecedor do texto bíblico. Dos 39 livros do Antigo Testamento, ele cita 26. Como era
de se esperar, “O homem Moisés e a religião monoteísta” é a obra em que ocorre um
maior número de citações bíblicas: são 76 citações151. Numa passagem de “Freud‟s
Moses” [“O Moisés de Freud”], Yerushalmi se admira de um versículo bíblico citado
por Freud de memória com facilidade, naturalidade e conhecimento do contexto
original152. Gérard Haddad (1940), por sua vez, considera que o modo como Freud
manejava a Bíblia dava mostras de “virtuosismo”. Ele era capaz de citar passagens
pouco familiares com “pleno conhecimento”153.
Tendo iniciado a sua escolarização em casa, com a ajuda do pai, a
partir da Bíblia, Freud foi, em seguida, matriculado numa escola judaica particular.
Nesse local, ele recebeu aulas sobre a Sagrada Escritura e a história do povo judeu. Em
1865, aos nove anos de idade, Freud ingressou num ginásio, onde permaneceu por oito
anos. Naquele tempo, na Áustria, o ensino religioso era obrigatório, seja nas escolas

146
Cf. JONES, A vida e a obra de Sigmund Freud, v.3, p.346; KÜNG, Religião: o último tabu? In:
_______, Freud e a questão da religião, p.112; PERESTRELLO, Freud e a tradição judaica. In: _______, A
formação cultural de Freud, p.58, 61-64, 66; PFRIMMER, Freud, leitor da Bíblia, p.18, 20-21, 36, 60, 127-
128, 174-175; 179-181; 302-303; ROBERT, D‟Œdipe à Moïse, p.40.
147
Cf. FREUD, L‟interprétation du rêve. In: _______. Œuvres complètes, v.4, p.638.
148
Cf. FREUD, Le Moïse de Michel-Ange. In: _______. Œuvres complètes, v.12, p.152.
149
Cf. FREUD, A partir de l‟histoire d‟une névrose infantile. In: _______. Œuvres complètes, v.13, p.65
[nota c].
150
JONES, A vida e a obra de Sigmund Freud, v.3, p.346.
151
Cf. PFRIMMER, Freud, leitor da Bíblia, p.12, 36, 29, 81, 311, 362.
152
Cf. YERUSHALMI, O Moisés de Freud, p.104.
153
Cf. HADDAD, O filho ilegítimo, p.29, 38-39.
particulares, seja nas escolas públicas. Nas escolas públicas, duas horas por semana, em
média, eram dedicadas a essa disciplina; nas escolas privadas, cinco horas.
O professor de religião de Freud foi Hammerschlag. O pequeno
Sigmund teve aulas com ele, pelo menos, durante os dois últimos anos do ginásio, entre
1871 e 1873, ou, talvez, desde que entrou naquela escola, em 1865. Freud foi um aluno
muito bom em sua matéria, tendo sido aprovado com a nota máxima.
Hammerschlag exerceu grande influência sobre Freud, tendo nascido
entre os dois uma verdadeira amizade. Já com 27 anos, no dia 10 de janeiro de 1884,
numa carta enviada a Martha, Freud se referiu a Hammerschlag com gratidão e afeto,
reconhecendo haver uma “profunda simpatia” entre ele mesmo e o professor154. Duas
décadas depois, em 1904, Freud escreveu o obituário do professor155. Duas filhas de
Freud Ŕ Sophie e Anna Ŕ receberam os nomes que receberam em homenagem a parentes
de Hammerschlag: a sobrinha e a filha156.
O que dizer do Bar-mitzvá de Freud? Ele o fez? O Bar-mitzvá, como
se sabe, é o rito de iniciação pelo qual o rapaz tem acesso à comunidade dos adultos.
Costuma ser celebrado na puberdade, aos 13 anos. Não há nenhum registro de que
Freud tenha feito o seu Bar-mitzvá. Mas falta de registro não significa inexistência.
Tendo presente os costumes vigentes, pode-se supor que Freud o tenha feito, sim157.
Renato Mezan (1950) parece ser dessa opinião158. Yerushalmi considera inconcebível
que Freud não tenha passado por essa cerimônia159. Peter Gay (1923), contudo, parece
pôr em dúvida o fato de que Freud tenha feito o Bar-mitzvá160. Segundo ele, não há
qualquer evidência de que, alguma vez, Freud tenha sequer entrado numa sinagoga. Se o
fez, talvez tenha sido para assistir um ofício em memória de algum de seus amigos161.
E quanto às festas judaicas? Freud as conhecia? Tendo se mudado
para Viena, em 1859, a família de Freud adaptou-se à cultura cosmopolita da capital
austríaca e abandonou, como vimos, a observância judaica ortodoxa. As grandes festas,
154
Cf. FREUD, Correspondance 1873-1939, p.100.
155
Cf. FREUD, En mémoire du professeur S. Hammerschlag. In: _______. Œuvres complètes, v.6, p.41-
43.
156
Cf. CHEMOUNI, Freud, la psychanalyse et le judaisme, p.149-152; KLEIN, Jewish origins of the
psychoanalytic movement, p.42-43, 63-64 [notas 6, 9]; PFRIMMER, Freud, leitor da Bíblia, p.67-72, 338;
ROBERT, D‟Œdipe à Moïse, p.39; ROITH, O enigma de Freud, p.72.
157
Cf. CHEMOUNI, Freud e o sionismo, p.122, 240 [nota 16].
158
Cf. MEZAN, Psicanálise, judaísmo: ressonâncias, p.22.
159
Cf. YERUSHALMI, O Moisés de Freud, p.199-200 [nota 33].
160
Cf. GAY, A Godless jew, p.125.
161
Cf. GAY, Freud, p.543 [nota *].
contudo, eram celebradas. Freud as conhecia muito bem, estava ciente do seu sentido e
tinha familiaridade com os hábitos alimentares relacionados a cada uma delas162. Em 18
de setembro de 1874, por exemplo, aos 18 anos de idade, Freud escreveu uma carta a
seu amigo Silberstein em que se referiu de forma divertida às principais festas religiosas
judaicas, o Ano Novo (Rosh Hashana), a Páscoa (Pessach), o Dia da Expiação (Yom
Kippur) e a Festa da Libertação (Purim), relacionando-as às comidas típicas servidas em
cada uma delas163. E, no dia 23 de julho de 1882, em carta a Martha, Freud disse
“conhecer bem” o “velho costume” do repouso sabático e citou algumas datas judaicas,
tais como o dia do jejum judaico em memória da destruição do Templo de Jerusalém
(Tisha B‟va), o Ano Novo judaico, o Dia da Expiação e a Festa dos Tabernáculos
(Succoth)164. Seja como for, as orações judaicas cotidianas, as sabáticas e as dos dias de
festa parecem não ter sido ensinadas a Freud. Daí, talvez, a sua ignorância a respeito
quando do próprio casamento165.
Hebraico e ídiche: Freud dominava essas línguas? Como se sabe, o
hebraico é a língua sagrada do povo judeu, a sua língua literária e religiosa; o ídiche, por
sua vez, constitui-se na sua língua materna, aquela do cotidiano, falada, sobretudo, pelas
mulheres166. Alguns autores acreditam que Freud era versado, sim, nessas duas línguas.
Quanto ao hebraico, argumenta-se que o fato de que Jacob tenha escrito a dedicatória da
Bíblia de Philippson nessa língua sugere que o destinatário fosse capaz de compreendê-
la167. Tratando-se do ídiche, Amalia manteve o uso desse dialeto durante toda a sua
vida, sendo difícil imaginar como o seu filho poderia não conhecê-lo. Ademais, no
bairro judeu de Viena em que residiu, era impossível que Freud não se deparasse
constantemente com essa língua. Sem ter conhecimento dela, ele dificilmente teria
podido fazer a coleção de anedotas judaicas que fez168.
Porém, mais de uma vez, Freud negou conhecer tanto o hebraico
quanto o ídiche. Numa carta que endereçou a Fließ em 27 de abril de 1895, ele disse que
162
Cf. FUKS, Freud e a judeidade, p.21; KLEIN, Jewish origins of the psychoanalytic movement, p.42;
PFRIMMER, Freud, leitor da Bíblia, p.47, 90.
163
Cf. BOEHLICH, As cartas de Sigmund Freud para Eduard Silberstein, p.82-83.
164
Cf. FREUD, Correspondance 1873-1939, p.28-32.
165
Cf. PERESTRELLO, Freud e a tradição judaica. In: _______, A formação cultural de Freud, p.61.
166
Cf. FUKS, Freud e a judeidade, p.152 [nota 4].
167
Cf. BAKAN, Sigmund Freud and the jewish mystical tradition, p.50; ROBERT, D‟Œdipe à Moïse, p.39;
ROITH, O enigma de Freud, p.73; YERUSHALMI, O Moisés de Freud, p.39, 112.
168
Cf. BAKAN, Sigmund Freud and the jewish mystical tradition, p.50; FUKS, Freud e a judeidade, p.19;
ROBERT, D‟Œdipe à Moïse, p.37 [nota 3]; ROITH, O enigma de Freud, p.87, 107, 126; YERUSHALMI, O
Moisés de Freud, p.108.
precisava consultar alguém que conhecesse o hebraico a fim de compreender uma
passagem bíblica citada por seu amigo berlinense169. Em 1925, numa carta ao editor do
Centro de Imprensa Judaica de Zurique, Freud lamentou o fato de que, na sua
juventude, os professores de religião não se importassem com o ensino da língua
hebraica aos seus alunos170. Em 1930, no prefácio à tradução hebraica de “Totem e
tabu”, ele observou que não dominava a língua sagrada dos judeus 171. Em 20 de
fevereiro do mesmo ano, escrevendo para Roback, Freud afirmou:

“Mon éducation a été si peu judaïque qu‟a l‟heure actuelle je ne


suis même pas capable de lire votre dédicace qui est
évidemment écrite en hébreu. J‟ai souvent regretté plus tard
cette lacune” [“Minha educação foi tão pouco judaica que, no
momento, não sou sequer capaz de ler a sua dedicatória, que
evidentemente está escrita em hebraico. Eu muitas vezes
lamentei mais tarde essa lacuna”]172.

Quando as “Lições de introdução à psicanálise” foram traduzidas para


o ídiche, Freud endereçou uma carta aos responsáveis pela tradução, datada de 30 de
abril de 1936, na qual lamentou não ter aprendido a ler nem o hebraico nem o ídiche173.
Por fim, numa carta a Dwossis, de 11 de dezembro de 1938, ele comentou que
infelizmente não era capaz de ler o hebraico174.
O que dizer de tudo isso? Parece-nos que o mais razoável é acreditar
que, de fato, Freud não tinha familiaridade com o hebraico e o ídiche175. A quase
ausência absoluta dessas línguas em sua obra aponta nessa direção. Em “A interpretação
do sonho”, Freud citou uma palavra ídiche: “Geseres”176. Em “O Moisés de
Michelangelo”, ele citou uma passagem da Bíblia de Lutero, desculpando-se por não

169
Cf. MASSON, A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess – 1887-1904,
p.128.
170
Cf. FREUD, Lettre à l‟éditeur de la “Jüdische Presszentrale Zürich”. In: _______. Œuvres complètes,
v.17, p.147.
171
Cf. FREUD, Totem et tabou. In: _______. Œuvres complètes, v.11, p.195.
172
FREUD, Correspondance 1873-1939, p.431.
173
Cf. CHEMOUNI, Freud, la psychanalyse et le judaisme, p.72.
174
Cf. GAY, A Godless jew, p.124 [nota 18].
175
BERNSTEIN, Freud e o legado de Moisés, p.159-161 [nota 10]; CHEMOUNI, Freud, la psychanalyse et
le judaisme, p.151-152, 240 [nota 17]; GAY, A Godless jew, p.124-125; PFRIMMER, Freud, leitor da
Bíblia, p.30, 63, 72, 106, 139, 179-181, 217, 301-302, 338; ver também: BALMARY, Le sacrifice interdit,
p.34.
176
Cf. FREUD, L‟interprétation du rêve. In: _______. Œuvres complètes, v.4, p.490-491; ROBERT,
D‟Œdipe à Moïse, p.198.
traduzir ele mesmo o texto hebraico177. Em “O homem Moisés e a religião monoteísta”,
por fim, Freud citou uma frase na língua sagrada dos judeus: “Schema Jisroel Adonai
Elohenu Adonai Echod” [“Escuta, Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor”] (Dt
6,4)178. Essa é, porém, a única citação em hebraico passível de ser encontrada nos
escritos e na correspondência publicada de Freud179.
O fato de Jacob ter escrito em hebraico a famosa dedicatória não
significa que Freud fosse capaz de compreendê-la sozinho. Ao que parece,
Hammerschlag preocupou-se mais em transmitir aos seus alunos os valores éticos e a
história dos judeus, descuidando do ensino da língua hebraica. Por conseguinte, Freud
mal aprendeu o hebraico e, depois, com o tempo, esqueceu o pouco que aprendeu180.
Com isso, terminamos a nossa enquête sobre a formação religiosa
judaica que Freud recebeu. Antes, porém, de avançarmos, caberia uma notícia sobre o
problema da observância religiosa na relação de Freud com Martha, bem como sobre a
educação religiosa que ele e a sua esposa ofereceram aos seus filhos.
Martha cresceu num lar profundamente religioso. Os seus pais eram
judeus ortodoxos. Ela era neta do renomado Isaac Bernays (1792-1849), o rabino chefe
de Hamburgo. Isaac lutara ativamente na década de 1840 contra o movimento
reformista judaico181.
Desde a época em que eram noivos, Freud se opôs a que Martha
guardasse os costumes religiosos judaicos. Zangou-se com ela, por exemplo, porque não
comia presunto, porque jejuava no Dia da Expiação ou porque, num sábado, escrevera-
lhe uma carta escondida, num jardim, sem ousar enfrentar a própria mãe182.
Freud teve atritos com os parentes de Martha, em especial, com a mãe
dela, por causa da religiosidade da família da sua futura esposa. Referindo-se ao irmão
de Martha, ele disse à sua noiva: “Eli mal sabe que farei de você uma pagã” 183. Freud

177
Cf. FREUD, Le Moïse de Michel-Ange. In: _______. Œuvres complètes, v.12, p.152.
178
FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.101.
179
Cf. PFRIMMER, Freud, leitor da Bíblia, p.217, 338.
180
Cf. GAY, Freud, p.542.
181
Cf. VITZ, Sigmund Freud‟s christian unconscious, p.59; YERUSHALMI, O Moisés de Freud, p.34.
182
Cf. KLEIN, Jewish origins of the psychoanalytic movement, p.59-60; YERUSHALMI, O Moisés de Freud,
p.34.
183
JONES, A vida e a obra de Sigmund Freud, v.1, p.126.
exigiu que Martha abandonasse o que, aos seus olhos, eram apenas “preconceitos
religiosos” e “tolas superstições”184. E Martha, por fim, cedeu185.
Freud detestava cerimônias, sobretudo, religiosas. Ele abominava, em
particular, as complexas cerimônias de um casamento judeu. Depois de haver
participado da celebração do matrimônio de seu amigo Paneth com Sophie Schwab,
Freud descreveu a cerimônia numa longa carta que mesclava horror e zombaria. Ele não
compareceu ao casamento entre Eli Bernays e a sua irmã Anna. Freud qualificou de
“simplesmente detestáveis” as cerimônias por meio das quais a união foi celebrada186.
Quanto ao próprio casamento, ele pensou, de início, em fazê-lo por meio de uma
cerimônia civil, na Alemanha, onde não se exigia o rito religioso. Martha o informou,
porém, de que, na Áustria, tal casamento não seria reconhecido: era mesmo necessário
que eles se casassem no religioso. Freud cogitou, então, por um momento, mudar de
confissão religiosa, convertendo-se ao protestantismo187.
No lar que Freud e Martha constituíram, reinou o mais absoluto
secularismo. Os seus filhos foram educados sem receberem qualquer formação
religiosa. Não havia o mais leve traço de observância litúrgica. Mesmo os feriados de
caráter social, como a Páscoa judaica Ŕ que os pais de Freud haviam continuado a
comemorar Ŕ, eram ignorados188. Martin Freud (1889-1967) testemunha:

“Our festivals [...] were Christmas, with presents under a candle-


lit tree, and Easter, with gaily painted Easter eggs. I had never
been in a synagogue, nor to my knowledge had my brother or
sisters” [“As nossas festas [...] eram o Natal, com presentes sob
uma árvore iluminada com velas, e a Páscoa, com ovos de
Páscoa alegremente pintados. Eu nunca estive em uma sinagoga
e, pelo que eu saiba, tampouco meu irmão ou minhas irmãs”]189.

184
Cf. JONES, A vida e a obra de Sigmund Freud, v.1, p.130, 133.
185
Cf. GAY, Freud, p.543; JONES, A vida e a obra de Sigmund Freud, v.1, p.109-163; JONES, A vida e a
obra de Sigmund Freud, v.3, p.232.
186
Cf. JONES, A vida e a obra de Sigmund Freud, v.1, p.129.
187
Cf. BALMARY, Le sacrifice interdit, p.76 [nota 4]; CHEMOUNI, Freud, la psychanalyse et le judaisme,
p.38-39, 184; DEMPSEY, Freud, psychanalyse et catholicisme, p.51; JONES, A vida e a obra de Sigmund
Freud, v.1, p.150, 159-160; KLEIN, Jewish origins of the psychoanalytic movement, p.60; PFRIMMER,
Freud, leitor da Bíblia, p.105; VITZ, Sigmund Freud‟s christian unconscious, p.62-63; YERUSHALMI, O
Moisés de Freud, p.34.
188
Cf. DONN, Freud e Jung, p.136-137; GABBAY, Ética judaica e psicanálise, p.205-206; GAY, Freud,
p.543; JONES, A vida e a obra de Sigmund Freud, v.1, p.161; KLEIN, Jewish origins of the psychoanalytic
movement, p.60.
189
GAY, A Godless jew, p.125; cf. GAY, Freud, p.543.
Com efeito, Martin sequer aprendeu como comportar-se numa
sinagoga. No dia do seu casamento, ao entrar no recinto, tirou a cartola que usava com a
intenção de expressar respeito pelo lugar sagrado. Quando um padrinho que estava ao
seu lado recolocou a cartola em sua cabeça, Martin pensou que fosse uma brincadeira e,
de novo, retirou-a. Foi preciso que outro padrinho repetisse o gesto e que os olhares de
reprovação no rosto dos convidados se fizessem notar para que Martin compreendesse
que devia manter a cabeça coberta dentro de uma sinagoga190.
Um jovem filósofo que visitou Freud em Londres, numa sexta-feira de
1938, conta que, ao cair da tarde, Martha se queixou do fato de que Freud não lhe
permitisse acender as velas pelo Sabbath como faziam todas as mulheres judias
piedosas. A queixa foi amistosa, quase uma brincadeira. Mas não foi Freud quem nos
ensinou a levar as brincadeiras a sério?191
Freud afastou Martha da ortodoxia judaica em que ela fora criada.
Contudo, depois que ele morreu, ela se permitia conversar sobre as festas e os costumes
judaicos. Em 1951, quando Martha morreu, os filhos providenciaram para que um
rabino falasse em seu funeral. Acredita-se que isso estivesse de acordo com um desejo
dela192.

A identidade judaica de Freud

A forte recusa da religião judaica por parte de Freud, já diversas vezes


registrada neste capítulo, pode dar a impressão de que ele não convivia bem com a
prñpria condição de judeu. Tratemos, pois, do problema da identidade judaica do “pai”
da psicanálise. Freud se manifestou muitas vezes sobre essa matéria, tendo mantido
sempre a mesma posição.
No dia 23 de julho de 1882, ele escreveu a Martha:

“...bien que les formes dans lesquelles les vieux juifs se


sentaient à l‟aise ne nous offrent plus d‟abri, quelque chose
d‟essentiel, la substance même de ce judaïsme si plein de sens et
de joie de vivre, n‟abandonnera pas notre foyer” [“...ainda que

190
Cf. GAY, A Godless jew, p.126.
191
Cf. GAY, A Godless jew, p.152-153.
192
Cf. JONES, A vida e a obra de Sigmund Freud, v.1, p.161; ROAZEN, Freud e seus discípulos, p.76.
as formas nas quais os antigos judeus se sentiam confortáveis
não nos ofereçam mais abrigo, alguma coisa de essencial, a
substância mesma desse judaísmo pleno de sentido e de alegria
de viver não abandonará o nosso lar”]193.

De novo, a Martha, em dois de fevereiro de 1886:

“Il m‟a souvent semblé que j‟avais hérité de tout l‟esprit


d‟insoumission et de toute la passion grâce auxquels nos
ancêtres défendaient leur Temple...” [“Muitas vezes me pareceu
ter herdado todo o espírito de insubmissão e toda a paixão com
os quais os nossos ancestrais defenderam o seu Templo...”]194.

Em sua “Autoapresentação” (1925), Freud informou que os seus pais


eram judeus e que ele mesmo permaneceu judeu195.
Em “As resistências contra a psicanálise” (1925), ele destacou que
jamais pretendeu ocultar a sua judeidade196.
Naquele mesmo ano, numa carta ao editor do Centro de Imprensa
Judaica de Zurique, Freud disse possuir um forte sentimento de pertença ao povo judeu,
acrescentando que transmitiu esse sentimento aos seus filhos e que, na sua casa, todos
permaneceram judeus197.
A Enrico Morselli (1852-1929), em 18 de fevereiro de 1926, ele
escreveu:

“Bien que je me sois détaché depuis longtemps de la religion de


mes ancêtres, je n‟ai jamais perdu le sentiment de solidarité
envers mon peuple...” [“Embora há muito tempo eu tenha me
separado da religião dos meus ancestrais, não perdi jamais o
sentimento de solidariedade para com o meu povo...”]198.

No dia seis de maio seguinte, aos membros da sociedade B‟nai B‟rith,


Freud disse que sempre lhe pareceu indigno e mesmo insensato negar a própria

193
FREUD, Correspondance 1873-1939, p.32.
194
FREUD, Correspondance 1873-1939, p.215.
195
Cf. FREUD, “Autoprésentation”. In: _______. Œuvres complètes, v.17, p.56.
196
Cf. FREUD, Les résistances contre la psychanalyse. In: _______. Œuvres complètes, v.17, p.135.
197
Cf. FREUD, Lettre à l‟éditeur de la “Jüdische Presszentrale Zürich”. In: _______. Œuvres complètes,
v.17, p.147.
198
FREUD, Correspondance 1873-1939, p.397.
condição de judeu. Reafirmou a sua identidade judaica, mas observou que o que o
ligava ao judaísmo não era nem a fé nem o orgulho nacional199.
Poucos dias depois, em 10 de maio do mesmo ano, a Marie Bonaparte,
Freud afirmou que jamais negou a sua pertença ao judaísmo200.
Duas semanas passadas, ele escreveu a Schnitzler:

“Os judeus [...] têm se apropriado entusiasticamente de minha


pessoa por todos os lados e em todas as partes, como se eu fosse
um grande rabino temente a Deus. Não tenho nada contra isso,
depois de ter esclarecido inequivocamente minha posição quanto
à fé. O judaísmo ainda significa muito, emocionalmente, para
mim”201.

Em 1930, no prefácio à tradução hebraica das “Lições de introdução à


psicanálise”, Freud afirmou que figurava entre os descendentes de Moisés e dos
profetas202.
Em 1934, no prefácio à tradução de “Totem e tabu” para o hebraico,
ele declarou que não praticava a religião judaica, não partilhava de ideais nacionalistas,
mas se reconhecia como judeu203.
No dia oito de junho de 1938, dirigindo-se ao Comitê do Instituto
Científico Ídiche, Freud escreveu: “...eu de bom grado e com orgulho reconheço minha
condição de judeu, embora minha atitude em relação a qualquer religião, inclusive a
nossa, seja criticamente negativa”204.
Por fim, vale acrescentar que, numa carta a Jones de 12 de julho de
1954, comentando uma declaração de Pfister de que Freud não era judeu 205, Anna Freud
(1895-1982) afirmou: “O que Pfister há de querer dizer com isso e por que quer
contestar o fato de que meu pai é judeu, ao invés de aceitá-lo?”206.

199
Cf. FREUD, Allocution aux membres de la Société B‟nai B‟rith. In: _______. Œuvres complètes, v.18,
p.115; FREUD, Correspondance 1873-1939, p.398.
200
Cf. FREUD, Correspondance 1873-1939, p.400.
201
GAY, Freud, p.541-542.
202
Cf. FREUD, Leçons d‟introduction à la psychanalyse. In: _______. Œuvres complètes, v.14, p.1.
203
Cf. FREUD, Totem et tabou. In: _______. Œuvres complètes, v.11, p.195.
204
JONES, A vida e a obra de Sigmund Freud, v.3, p.240-241.
205
Trata-se da carta que Pfister endereçou a Freud no dia 29 de outubro de 1918 (cf. FREUD,
Correspondance avec le pasteur Pfister 1909-1939, p.105).
206
GAY, Freud, p.544 [nota *]; cf. DOMÍNGUEZ MORANO, Psicoanálisis y religión: diálogo interminable,
p.150; GAY, A Godless jew, p.82 [nota 27].
O que se pode recolher de tudo isso? A seguinte conclusão: embora
rejeitasse o judaísmo como religião, Freud jamais renegou a sua identidade judaica, isto
é, a sua judeidade ou a sua judaicidade207. Freud se percebia como judeu, mas não no
sentido religioso. Ele não era praticante do judaísmo, mas era judeu. A identidade
judaica de Freud era decididamente secular. Judeu, sim, mas judeu ateu. Freud era judeu
no sentido cultural, se quisermos, não no sentido religioso. Mais: Freud se orgulhava de
não haver abraçado o cristianismo, como o fizeram muitos judeus do seu tempo208, a
fim de facilitar a sua assimilação ao Ocidente cristão; ele permaneceu judeu.
Outro aspecto das citações feitas acima é a referência ao “orgulho
nacional” ou a “ideais nacionalistas”, dos quais Freud diz não participar. Essas
expressões parecem fazer referência ao sionismo.
O sionismo foi um movimento político, de caráter não religioso,
nascido da obra “O Estado judeu” (1896), de Theodor Herzl (1860-1904), cujo objetivo
maior, face à difícil situação dos judeus no Ocidente, era a criação de uma nação judaica
na Palestina. O sionismo consistiu, pois, numa resposta política à questão judaica pela
criação de um Estado para os judeus na Palestina.
Em “Freud et le sionisme” [“Freud e o sionismo”], Jacquy Chemouni
sustenta a tese de que Freud não aderiu ao sionismo, não se comprometeu politicamente
com ele, mas encarou-o com simpatia209. Numa carta a Morselli, por exemplo, datada de
18 de fevereiro de 1926, Freud revelou a sua simpatia pela causa sionista 210. Martin, o
filho de Freud, aderiu à Kadimah, uma organização sionista, o que não desagradou ao
pai. Posteriormente, influenciado pelo filho, o próprio Freud veio a se tornar membro
honorário dessa organização. Ernst Freud, por sua vez, foi editor de um periódico
sionista, o que o pai acompanhou com aprovação211.
De fato, Freud simpatizou com o movimento sionista, mas de uma
forma, ao mesmo tempo, reticente, sem abraçar integralmente o seu ideário e sem se
207
Sobre as definições de “judaísmo”, “judeidade” e “judaicidade” propostas por Albert Memmi (1920),
ver: FUKS, Freud e a judeidade, p.151 [nota 3]; ver também: BIRMAN, Arquivos do mal-estar e da
resistência, p.381.
208
Por exemplo: Heinrich Heine (1797-1856), Michael Bernays (1834-1897), Gustav Mahler (1860-
1911), Alfred Adler (1870-1937), Viktor Tausk (1879-1919), Otto Rank (1884-1939), a família de
Ludwig Wittgenstein (1889-1951) etc. (cf. GAY, Freud, p.23, 540; MEZAN, Freud, pensador da cultura,
p.68, 80; VITZ, Sigmund Freud‟s christian unconscious, p.258 [nota 4]).
209
Cf. CHEMOUNI, Freud e o sionismo, p.15-16, 20-22, 42, 86-88, 90, 95, 103-104, 107, 134, 179, 208;
ver também: CHEMOUNI, Freud, la psychanalyse et le judaisme, p.40, 182.
210
Cf. FREUD, Correspondance 1873-1939, p.396.
211
Cf. CHEMOUNI, Freud e o sionismo, p.116-117, 133-134, 239; GAY, Freud, p.543.
comprometer com ele. Se se pode, pois, falar num sionismo freudiano, trata-se de um
sionismo parcial, hesitante e desapaixonado, sem engajamento212.

Judaísmo e psicanálise

Tratando-se do binómio “psicanálise e religião”, é possível relacionar


os dois termos em jogo de mais de uma maneira. Por exemplo: “a psicanálise é
compatível com a religião”; “psicanálise e religião são irreconciliáveis”; “a psicanálise
é, ela mesma, uma religião” etc. Oportunamente, ao longo desta investigação, cada uma
dessas proposições será considerada. Há, contudo, uma relação possível entre
psicanálise e religião que se pode examinar desde já, qual seja: “a religião Ŕ
nomeadamente, o judaísmo Ŕ influenciou a psicanálise”. Ampliando um pouco o
enfoque, a judeidade de Freud Ŕ da qual, como vimos, ele era tão cioso Ŕ exerceu
influência sobre a psicanálise.
Sobre essa matéria, há autores que minimizam a importância da
condição judaica de Freud sobre a sua obra Ŕ é o caso de Jones e Gay, justamente
aqueles que podem ser apontados como os dois biñgrafos mais importantes do “pai” da
psicanálise. Em “A Godless jew” [“Um judeu sem Deus”], por exemplo, Gay defende a
tese de que o ateísmo de Freud foi fundamental para a criação da psicanálise, o mesmo
não se podendo dizer da sua origem judaica213. Para ele, Freud deve mais à cultura
alemã e inglesa do que à cultura judaica; a psicanálise é, sobretudo, herdeira da tradição
iluminista214.
Por outro lado, há uma verdadeira legião de autores que protestam
contra a subestimação do papel da judeidade de Freud na invenção da psicanálise.
Segundo Reik, Jones não apreciou na justa medida a importância que teve para Freud a
sua condição de judeu215. Chemouni e Marthe Robert (1914-1996) concordam com
Reik216. Yerushalmi, por sua vez, discorda do parecer de Gay de que a condição judaica

212
Cf. BAKAN, Sigmund Freud and the jewish mystical tradition, p.49; GAY, A Godless jew, p.123, 126;
GAY, Freud, p.541 [nota *]; KLEIN, Jewish origins of the psychoanalytic movement, p.85; ROBERT,
D‟Œdipe à Moïse, p.72-73; YERUSHALMI, O Moisés de Freud, p.36-37.
213
Cf. GAY, A Godless jew, p.xi, 31, 37, 41, 112-113, 146-147.
214
Cf. GAY, A Godless jew, p.129, 147.
215
Cf. REIK, Trente ans avec Freud, p.42.
216
Cf. CHEMOUNI, Freud e o sionismo, p.51, 185; ROBERT, D‟Œdipe à Moïse, p.58-59 [nota 1].
de Freud não foi determinante na criação da psicanálise217. Por fim, numa conferência
proferida em Jerusalém, em agosto de 1977, Anna Freud afirmou que chamar a
psicanálise de “ciência judaica” significa conferir-lhe um “título honorífico”218.
Seja como for, em se tratando de reconhecer o valor da tradição
judaica Ŕ ou mesmo do judaísmo, stricto sensu Ŕ na fundação da psicanálise, ninguém
superou Bakan e Haddad.
Em “Sigmund Freud and the jewish mystical tradition” [“Sigmund
Freud e a tradição mística judaica”] (1958), David Bakan (1921-2004) defende a tese de
que, ao criar a psicanálise, Freud foi grandemente influenciado pelo pensamento místico
judaico, em particular, pela cabala. A psicanálise, segundo Bakan, é uma versão
secularizada do misticismo judaico; noutras palavras, é o misticismo judaico
sistematizado e desprovido dos seus elementos sobrenaturais. Freud, em suma, é uma
espécie de cabalista secularizado.
Há, de fato, uma série de convergências entre a cabala e a psicanálise,
seja em matéria de doutrina, seja quanto ao método. Por exemplo: a ênfase nos
relacionamentos sexuais e familiares, o registro da tendência ao incesto, a teoria do
desenvolvimento sexual, a concepção do ser humano como bissexual, a etiologia sexual
das neuroses, a teoria do recalque, o papel do eu no recalcamento, a sublimação, a
associação livre, as técnicas de interpretação Ŕ inclusive, dos sonhos Ŕ, os jogos de
palavras, a numerologia, a possibilidade de que uma mesma representação tenha
múltiplos significados ou mesmo significados opostos, o insight psicanalítico, a
transferência etc. Tudo isso, de algum modo, pode já ser encontrado na tradição mística
judaica.
Segundo Bakan, Freud tinha consciência da influência dessa tradição
sobre a sua invenção. Mas não citou a sua fonte por causa do anti-semitismo. Se ele
tivesse admitido as fontes judaicas do seu pensamento, as resistências contra a
psicanálise teriam sido muito maiores.

217
Cf. YERUSHALMI, O Moisés de Freud, p.178-179 [nota 25].
218
Cf. GAY, A Godless jew, p.xii, 118; ver também: BERNSTEIN, Freud e o legado de Moisés, p.104;
BIRMAN, Arquivos do mal-estar e da resistência, p.380-381; CHEMOUNI, Freud e o sionismo, p.14, 61;
GÖRRES, Todo habla en favor. Nada sostenible habla en contra. In: ZAHRNT, Jesús de Nazaret y Sigmund
Freud, p.111; ROUANET, As duas culturas da psicanálise. In: FRANÇA, Freud, a cultura judaica e a
modernidade, p.18, 24, 38.
Quando Bakan escreveu o seu livro, ele argumentou que não era
necessário que Freud tivesse lido textos da tradição mística judaica, bastando o fato de
que essa corrente estivesse impregnada na cultura em que ele viveu. Mais tarde, porém,
Bakan se alegrou com a descoberta de que, em sua biblioteca, Freud dispunha de alguns
livros sobre a cabala em alemão e da tradução francesa do “Zohar”, o livro mais
importante do misticismo judaico.
Em “L‟enfant illégitime” [“O filho ilegítimo”] (1981), por sua vez,
Haddad defende a tese de que, na criação da psicanálise, Freud foi influenciado pelo
“Talmud” e pelo Midrásh judaicos. “Talmud”, que significa “ensinamento”, é o nome
de uma obra literária escrita em hebraico e aramaico, de caráter enciclopédico, mas não
sistemática, que reúne comentários das Escrituras hebraicas. Noutras palavras, é o
ensino oral sobre a Bíblia dos judeus posto por escrito numa suma. O Midrásh, por sua
vez, é a arte talmúdica de interpretação do texto bíblico. Em sua técnica, a equivocidade
da linguagem intervém amplamente: recorre-se à ambiguidade das palavras, à
coexistência de sentidos opostos, aos jogos de letras e de palavras, aos anagramas, à
identificação entre letras e números etc. Haddad observa que a semelhança com a
técnica psicanalítica salta aos olhos; a diferença fundamental está em que, no “Talmud”,
o objeto interpretado é a Bíblia, ao passo que, em psicanálise, são as formações do
inconsciente219.
Além das analogias formais entre a psicanálise e o método talmúdico,
Haddad aponta ainda para uma série de convergências de conteúdo entre a teoria
psicanalítica e o pensamento do “Talmud”. Por exemplo, a respeito do narcisismo e da
loucura, da melancolia, da sublimação, do inconsciente, dos sonhos, dos chistes, da
perda de objeto, da transferência, da corporeidade, da sexualidade infantil, da função
terapêutica do dinheiro no tratamento, da concepção da mulher como ser inacabado, do
desencontro entre o homem e a mulher, do complexo de Édipo, da função paterna
etc.220.
O “filho ilegítimo” de que se trata no título do livro é, portanto, Freud,
ou melhor, a sua obra, a psicanálise221. E o “pai” em questão é o judaísmo, mais
exatamente, o “Talmud” e o Midrásh talmúdico. Freud e a psicanálise seriam

219
Cf. HADDAD, O filho ilegítimo, p.31-109.
220
Cf. HADDAD, O filho ilegítimo, p.111-252.
221
Cf. HADDAD, O filho ilegítimo, p.108.
descendentes do judaísmo, mas, como essa filiação não é reconhecida, trata-se de uma
descendência “ilegítima”222.
Em suma, segundo Bakan, a psicanálise herdou principalmente
conteúdos do judaísmo; segundo Haddad, a afinidade entre a psicanálise e o judaísmo
diz respeito, sobretudo, a aspectos formais. Bakan vinculou a psicanálise à tradição
mística do judaísmo, sobretudo, ao “Zohar”; Haddad, por sua vez, estabeleceu uma
filiação entre a psicanálise e a tradição rabínica, especialmente, o “Talmud”223.
Bakan é um autor muito citado; quase sempre, porém, para ser
criticado e ter as suas teses rechaçadas224. Em “Psicanálise, judaísmo: ressonâncias”
(1987), por exemplo, Mezan critica Bakan duramente: “confusões lamentáveis”, “texto
aflitivo”, “argumento absurdo”, “amadorismo desconcertante”, “tese que não se
sustenta”, “barbaridades” Ŕ são algumas das expressões utilizadas por ele ao comentar o
trabalho de Bakan225. Na orelha do livro, as considerações de Bakan são descritas como
“verdadeiramente aberrantes”. Na mesma obra, Mezan acolhe, inicialmente, a tese de
Haddad com mais simpatia, mas, por fim, termina por rejeitá-la também226. Com efeito,
“...de nada adianta procurar filiações diretas entre o judaísmo e a psicanálise, pela
simples e boa razão de que ela foi inventada por um judeu „completamente
agnñstico‟”227, conclui Mezan.
Numa conferência realizada na Associação Religiosa Israelita, no Rio
de Janeiro, comentando o livro “Psicanálise, judaísmo: ressonâncias”, lançado naquela
ocasião, Joel Birman (1946) concordou com Mezan em sua crítica das teorias de Bakan

222
Numa carta que escreveu para Freud no dia 11 de maio de 1908, Abraham observa que há um “modo
talmúdico de pensar” comum aos dois (cf. FREUD; ABRAHAM, Correspondance complète 1907-1925,
p.73). Isso parece dar alguma razão a Haddad em sua tese de que a interpretação psicanalítica das
formações do inconsciente é análoga aos comentários do “Talmud” sobre as Sagradas Escrituras.
223
Em “The riddle of Freud” [“O enigma de Freud”] (1987), Estelle Roith estabelece uma relação entre as
origens judaicas de Freud e um aspecto específico da teoria psicanalítica: aquele capítulo dedicado à
psicologia das mulheres. Segundo Roith, as teorias de Freud sobre a feminilidade foram influenciadas
pela sua relação com a própria mãe e pela cultura judaica a que ele pertenceu. A teoria psicanalítica, diz a
autora, é falocêntrica e patrocêntrica, como, de resto, o judaísmo.
224
Cf. FUKS, Freud e a judeidade, p.49-50; GAY, A Godless jew, p.130-131; ROBERT, D‟Œdipe à Moïse,
p.9 [nota 1]; ROUANET, As duas culturas da psicanálise. In: FRANÇA, Freud, a cultura judaica e a
modernidade, p.18; YERUSHALMI, O Moisés de Freud, p.99.
225
Cf. MEZAN, Psicanálise, judaísmo: ressonâncias, p.133-134, 143, 159, 161; ver também: MEZAN,
Freud, pensador da cultura, p.66-71.
226
Cf. MEZAN, Psicanálise, judaísmo: ressonâncias, p.133, 135, 142-146, 158-169; ver também: FUKS,
Freud e a judeidade, p.50-51.
227
MEZAN, Psicanálise, judaísmo: ressonâncias, p.159.
e de Haddad228. Inclinamo-nos a acompanhar esse parecer. Isso significa que a
psicanálise nada deve à origem judaica de Freud? Não exatamente.
Numa carta a Abraham de oito de outubro de 1907, Freud argumentou
que, por ter que enfrentar dificuldades maiores, um judeu é obrigado a extrair o melhor
das suas capacidades229.
Endereçando-se a Max Graf (1873-1958), o pai do “Pequeno Hans”,
Freud o desaconselhou a educar o seu filho como católico a fim de poupá-lo do anti-
semitismo, argumentando que ser judeu é uma vantagem: justamente porque é
oprimido, o judeu é obrigado a combater, o que o torna mais forte230.
Correspondendo-se com Smiley Blanton (1882-1966), Freud escreveu
que o fato de ser judeu o ajudou a suportar as críticas, o isolamento e o trabalho
solitário231.
Em 1925, em sua “Autoapresentação”, Freud observou que o fato de
ter sido discriminado por ser judeu acostumou-o com a condição de oposição
minoritária, dotando-o de uma independência de julgamento232.
No mesmo ano, em “As resistências contra a psicanálise”, Freud
observou que um judeu, mais do que qualquer outra pessoa, está habituado a ficar
isolado, na oposição. Uma vez que sustentar as descobertas da psicanálise implicava em
experimentar o isolamento, enfrentando a oposição, não é casual que justamente um
judeu tenha criado a psicanálise233.
A Morselli, em 18 de fevereiro de 1926, Freud disse não estar certo de
que a psicanálise seja um produto do espírito judaico, mas acrescentou que, se isso fosse
verdade, ele não se envergonharia234.
Por fim, no dia seis de maio seguinte, dirigindo-se aos membros da
associação B‟nai B‟rith, Freud atribuiu ao fato de ser judeu dois grandes benefícios: ter
sido poupado de uma série de preconceitos que limitariam o uso da sua inteligência e ter

228
Cf. BIRMAN, Psicanálise e judaísmo. Tempo psicanalítico, v.10, n.3, p.82.
229
Cf. FREUD; ABRAHAM, Correspondance complète 1907-1925, p.38.
230
Cf. CHEMOUNI, Freud e o sionismo, p.212 [nota 18], 222 [nota 32]; CHEMOUNI, Freud, la
psychanalyse et le judaisme, p.36.
231
Cf. CHEMOUNI, Freud, la psychanalyse et le judaisme, p.58.
232
Cf. FREUD, “Autoprésentation”. In: _______. Œuvres complètes, v.17, p.57.
233
Cf. FREUD, Les résistances contre la psychanalyse. In: _______. Œuvres complètes, v.17, p.135.
234
Cf. FREUD, Correspondance 1873-1939, p.397.
sido treinado para estar numa posição minoritária, sem se importar por ter contra si a
maioria235.
Em suma, a condição judaica de Freud foi importante para a criação
da psicanálise na medida em que, como judeu, ele estava preparado para assumir uma
posição minoritária. Independência de julgamento e tenacidade: isso é o que Freud
ganhou com o fato de ser judeu. Um judeu tem maior facilidade para pensar diferente,
maior aptidão para estar na contracorrente236. Nessa medida, o fato de pertencer ao povo
judeu foi algo decisivo para Freud na criação da psicanálise.

A atitude de Freud face ao judaísmo, o protestantismo e o catolicismo

Vimos, pois, que o judaísmo, enquanto religião, não exerceu


influência sobre a psicanálise. Freud era judeu, mas não praticante do judaísmo. Isso
não significa, porém, que ele não acalentasse certa admiração pela religião judaica.
É verdade que, numa carta que endereçou a Arnold Zweig, datada de
oito de maio de 1932, Freud fez comentários muito depreciativos sobre a terra dos
judeus. Ele observou que a Palestina não está ligada a nenhum progresso, descoberta ou
invenção; a Palestina, continuou Freud:

“...n‟a rien formé que des religions, des extravagances sacrées,


des essais présomptuex de dompter le monde des apparences
extérieures par le monde intérieur du désir...” [“...não produziu
nada senão religiões, extravagâncias sagradas, presunçosas
tentativas de dominar o mundo das aparências exteriores a partir
do mundo interior do desejo...”]237.

Também é verdade que, em 1934, numa carta a Joseph Wortis (1906-


1995), Freud escreveu: “...la religion juive et la religion chrétienne sont aussi

235
Cf. FREUD, Allocution aux membres de la Société B‟nai B‟rith. In: _______. Œuvres complètes, v.18,
p.116; FREUD, Correspondance 1873-1939, p.398.
236
Observe-se, porém, que essa afirmação pode ser discutida. De fato, a aptidão para defender ideias
impopulares e sustentar pontos de vista minoritários não é exclusividade dos judeus. Breuer, por exemplo,
era judeu e recuou diante da oposição majoritária; Darwin, por sua vez, não era judeu e não capitulou (cf.
GAY, A Godless jew, p.139-140).
237
FREUD; ZWEIG, Correspondance 1927-1939, p.75.
déplorables l‟une que l‟autre” [“...a religião judaica e a religião cristã são igualmente
deploráveis”]238.
Porém, embora não professasse o judaísmo como religião, Freud
simpatizava com a religião judaica Ŕ sobretudo, se comparada ao cristianismo e, em
particular, ao catolicismo. Essa preferência pode ser percebida em suas atitudes pessoais
e também nos juízos que ele emitiu, em suas obras, sobre o judaísmo e o cristianismo.
Como veremos, em “Totem e tabu”, Freud admite que, ao reconhecer
veladamente o assassinato do pai primevo por meio da doutrina do pecado original, o
cristianismo representou um avanço com relação ao judaísmo239.
Por outro lado, em “O homem Moisés e a religião monoteísta”, Freud
mal consegue disfarçar a sua admiração pelo monoteísmo mosaico. Freud não
acreditava em Deus. Mas o monoteísmo lhe parecia claramente superior ao politeísmo.
E o monoteísmo é uma conquista judaica. O cristianismo Ŕ e, em particular, o
catolicismo, com a sua devoção a Maria e o seu panthéon de santos Ŕ se lhe afigurava
como uma regressão à figura da divindade materna e ao politeísmo. Aos olhos de Freud,
diz Gay, os cristãos, “...sob um tênue verniz, continuam sendo os bárbaros politeístas
que sempre foram”240. Tendo abandonado o monoteísmo estrito dos judeus, o
cristianismo deu guarida ao restabelecimento da grande deusa mãe e mesmo a uma
forma mal dissimulada de politeísmo. Ademais, elementos supersticiosos, mágicos e
místicos encontraram, no cristianismo, as portas abertas. Nessa medida, o cristianismo
representou um lamentável retrocesso com relação ao judaísmo241.
Outro aspecto em que o juízo de Freud sobre as religiões pende para o
judaísmo diz respeito ao problema “fé e razão”. Como veremos, na obra de Freud, o
cristianismo Ŕ e, em particular, o catolicismo Ŕ está associado à interdição da liberdade
de pensamento. O judaísmo, por sua vez, em virtude da doutrina mosaica da
irrepresentabilidade de Deus, está do lado do progresso da vida do espírito, isto é, do
avanço intelectual. De novo, ponto para o judaísmo.

238
CHEMOUNI, Freud, la psychanalyse et le judaisme, p.39.
239
Cf. FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.168-
170, 215; FREUD, Totem et tabou. In: _______. Œuvres complètes, v.11, p.373-375.
240
GAY, Freud, p.582.
241
Cf. FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.168,
214-215.
Vê-se, pois, que “O homem Moisés e a religião monoteísta” constitui-
se numa inesperada apologia do monoteísmo judaico242. O livro de Freud sobre Moisés,
diz Judith Van Herik, “...is a defense of the cultural value of Judaism” [“...é uma defesa
do valor cultural do judaísmo”]243.
Seja como for, os juízos a respeito do judaísmo e do cristianismo
acima evocados estão fundados em razões, não decorrendo pura e simplesmente da
simpatia ou antipatia de Freud. O mesmo não se pode dizer do fato de que ele tivesse
grande admiração por São Paulo, mas nenhum interesse por Jesus. Segundo Vergote,
Freud guardou, a respeito de Jesus, um verdadeiro “voto de ignorância”244. Jesus, para
Freud, era uma figura “embaçada”, “indistinta”; São Paulo, sim, lhe parecia uma figura
admirável245. Quanto ao Apóstolo dos Gentios, em nove de maio de 1920, numa carta a
Pfister, Freud escreveu: “Par son caractère authentiquement juif, Paul a toujours eu ma
sympathie” [“Por seu caráter autenticamente judeu, Paulo sempre teve a minha
simpatia”]246. Essa preferência é um pouco desconcertante. Com muito mais frequência,
as pessoas se encantam com Jesus Ŕ mesmo não-cristãos Ŕ, mas não se entusiasmam por
São Paulo. Wilhelm Reich (1897-1957), por exemplo, nutria grande admiração por
Cristo, mas deplorava o Apóstolo das Nações. Este, em sua opinião, teria distorcido a
mensagem de Jesus247. O fato parece poder, pois, ser citado como evidência da simpatia
que Freud dispensava ao judaísmo e negava ao cristianismo.
Portanto, embora não professasse religião alguma, entre o judaísmo e
o cristianismo, Freud preferia, sem dúvida alguma, o judaísmo. Podemos, agora, dar um
passo à frente: entre o protestantismo e o catolicismo, Freud preferia, também sem
sombra de dúvidas, o protestantismo.
Já tivemos a ocasião de mencionar que, a fim de evitar a cerimônia
judaica do casamento, Freud cogitou, por um momento, tornar-se protestante. Note-se:
ele jamais considerou a possibilidade de se converter ao catolicismo. Que Freud tenha

242
Cf. GAGEY, Freud et le christianisme, p.176.
243
VAN HERIK, Freud on femininity and faith, p.190.
244
Cf. LECUIT, L‟anthropologie théologique à la lumière de la psychanalyse, p.434.
245
Cf. JONES, A vida e a obra de Sigmund Freud, v.3, p.348; ver também: DOMÍNGUEZ MORANO, El
psicoanálisis freudiano de la religión, p.331 [nota 900]; MIJOLLA-MELLOR, A necessidade de crer, p.79-
80; SILVA, O ateísmo de Freud, p.44, 52.
246
FREUD, Correspondance avec le pasteur Pfister 1909-1939, p.121.
247
Cf. REICH, O assassinato de Cristo, p.10, 76, 105-113.
cogitado abraçar o protestantismo, isso é uma evidência clara de que essa modalidade de
cristianismo despertava nele uma resistência menor.
Outro indício: Freud teve amigos protestantes. Embora a sua amizade
com Jung tenha terminado mal, não nos parece que haja qualquer exagero em dizer que
nenhum outro homem conquistou tão poderosamente o afeto e a estima de Freud quanto
Carl Gustav Jung. Ora, Jung era protestante: ele descendia de uma longa linhagem de
pastores; o seu pai era ministro da igreja reformada de Úlrico Zwinglio (1484-1531);
alguns de seus tios também eram pastores248.
Sabe-se que, no começo, o movimento psicanalítico era constituído
quase que inteiramente de judeus. Até o dia seis de março de 1907, quando Jung e
Binswanger se encontraram com Freud pela primeira vez, todos os membros do
movimento psicanalítico Ŕ na época, em torno de 20 pessoas Ŕ eram judeus. Aliás,
também um bom número dos primeiros pacientes de Freud tinha essa procedência.
Anna O., Dora, o “Homem dos Ratos” e o “Pequeno Hans” eram judeus249. Num
ambiente anti-semita, a psicanálise estava, pois, excessivamente identificada ao
judaísmo, correndo o risco de passar por ciência judaica. Nesse contexto, a acolhida da
psicanálise pelos suíços protestantes foi providencial250.
Numa carta que enviou a Abraham, datada de três de maio de 1908,
Freud se referiu à importância de Jung para o movimento psicanalítico: “Je dirais
presque que seule son entrée en scène a soustrait la psychanalyse au danger de devenir
une affaire nationale juive” [“Eu quase diria que apenas a sua entrada em cena
preservou a psicanálise do perigo de se tornar um assunto nacional judaico”]251.
Não nos parece, porém, justo afirmar que a amizade de Freud por Jung
tenha sido meramente uma questão estratégica. Freud verdadeiramente se afeiçoou por
Jung, sem que o protestantismo deste último se lhe afigurasse como um impedimento.

248
Cf. BALMARY, Le sacrifice interdit, p.104; BAUDOUIN, L‟Œuvre de Jung, p.314; DONN, Freud e Jung,
p.76, 92; JUNG, Psicologia e religião, p.49; KÜNG, Freud and the problem of God, p.65; PALMER, Freud
e Jung: sobre a religião, p.114.
249
Cf. CHEMOUNI, Freud, la psychanalyse et le judaisme, p.23, 70, 83, 93, 97, 160, 197 [nota 342]; GAY,
A Godless jew, p.77, 128, 137-138; GAY, Freud, p.545; KLEIN, Jewish origins of the psychoanalytic
movement, p.ix, xi, 32, 93.
250
Cf. BIRMAN, Arquivos do mal-estar e da resistência, p.378-379; BIRMAN, Desejo e promessa, encontro
impossível. In: MOURA, Hélio Pellegrino. A-Deus, p.120; BIRMAN, Freud e a experiência psicanalítica,
p.65; BIRMAN, Sobre a correspondência de Freud com o pastor Pfister. Religião e sociedade, n.11/2, p.32;
DONN, Freud e Jung, p.137, 216-217.
251
FREUD; ABRAHAM, Correspondance complète 1907-1925, p.71.
Rompida a relação com Jung, Freud conservou a amizade de
252
Pfister . Gay descreve a amizade de Freud por Pfister como a “menos esperada” e a
“mais pacífica”253. Os vínculos de Pfister com o protestantismo eram ainda mais
estreitos do que os de Jung, uma vez que este último, a partir de certa altura da vida,
dizia-se cristão, mas não cultivava a pertença a nenhuma denominação específica, ao
passo que Pfister era pastor luterano, protestante de profissão254.
Capaz, portanto, de manter relações amistosas com protestantes, por
outro lado, quantos católicos teve Freud entre os seus amigos? Rolland foi um grande
amigo de Freud. Em maio de 1931, Freud lhe escreveu:

“...je puis vous avouer que j‟ai rarement aussi vivement ressenti
ce mystérieux attrait d‟un être humain pour un autre qu‟en ce
qui vous concerne” [“...eu posso lhe confessar que raramente
senti tão vivamente essa misteriosa atração de um ser humano
por outro como com o senhor”]255.

Rolland deve o seu prenome Ŕ “Romain”, isto é, “Romano” Ŕ ao fato


de que, embora tenha nascido em Clamecy, na França, foi concebido em Roma. Ele teve
uma forte educação católica, podendo-se, pois, falar em “le catholique romain Rolland”
[“o católico romano Rolland”]256. Quando adulto, porém, ele abandonou a fé em que
fora criado e abraçou, sob a influência de Spinoza, o panteísmo, passando a crer num
Deus cósmico, impessoal, presente em todas as coisas. Mais tarde, Rolland encantou-se
com o hinduísmo257. O Rolland que Freud conheceu era, pois, um ex-católico.
Ao que nos consta, pois, o único amigo católico de Freud foi o
psiquiatra Laforgue, o primeiro presidente da Société Psychanalytique de Paris
[Sociedade Psicanalítica de Paris], inaugurada em 1926, e um dos fundadores, portanto,
do movimento psicanalítico na França.

252
Cf. JONES, A vida e a obra de Sigmund Freud, v.2, p.59; ROUDINESCO; PLON, Dicionário de
psicanálise, p.588.
253
Cf. GAY, A Godless jew, p.75.
254
Não convém, contudo, exagerar a eventual afinidade Ŕ ou menor hostilidade Ŕ que Freud possa ter tido
com o protestantismo. Vale o registro de que ele escolheu o nome do seu filho Jean-Martin em
homenagem a Jean-Martin Charcot (1825-1893), não a Martinho Lutero (1483-1546), como já se pensou
(cf. JONES, A vida e a obra de Sigmund Freud, v.1, p.162).
255
FREUD, Correspondance 1873-1939, p.443.
256
Cf. VERMOREL; VERMOREL, Sigmund Freud et Romain Rolland: correspondance 1923-1936, p.540.
257
Cf. PARSONS, The enigma of the oceanic feeling, p.32, 55-57, 90, 145; VERMOREL; VERMOREL,
Sigmund Freud et Romain Rolland: correspondance 1923-1936, p.107-108, 339 [nota 1].
Houve também um padre na vida de Freud: o verbita Schmidt. Este,
porém, não foi um amigo: no dia 17 de junho de 1936, numa carta a Arnold Zweig,
Freud o descreveu como o “nosso principal inimigo”258.
“Inimizade”: talvez, essa seja a palavra que melhor descreve as
relações de Freud com o catolicismo. Passemos a elas.
Seja em Freiberg, na Morávia, onde Freud nasceu, seja em Viena, na
Áustria, onde ele viveu, a religião católica era amplamente majoritária. No tempo em
que morou em Freiberg Ŕ ou seja, nos três primeiros anos de sua vida Ŕ, a cidade
contava com uma população de aproximadamente 4.500 habitantes, dos quais mais de
90% eram católicos, havendo ainda uns 3% de protestantes e mais ou menos a mesma
quantidade de judeus259. Os judeus eram tão poucos em Freiberg que sequer havia uma
sinagoga na cidade, mas apenas uma pequena sala de orações260.
Em Viena, por sua vez, em 1857, havia pouco mais de 2.000 judeus,
ou seja, 2% da população da cidade. Esse número aumentou consideravelmente dez
anos depois. Então, os judeus chegaram a somar 40.000, o que significava 6% da
população. Em 1880, o número de judeus em Viena atingiu a cifra de 72.000, o que
representava 10% dos habitantes da cidade261. De qualquer maneira, os judeus foram
sempre minoritários, e os católicos, maioria. Ou seja, Freud passou praticamente toda a
sua vida como um judeu numa sociedade amplamente dominada pelo catolicismo.
Acrescente-se a isso que essa maioria não raramente mostrou-se hostil
aos judeus. Durante a infância de Freud e os anos em que ele foi estudante, a atmosfera
sócio-política dominante em Viena foi de tolerância para com os judeus. De fato, ao
longo dos anos 1860 e mesmo nas décadas seguintes, prevaleceu, em Viena, o
liberalismo. Em 1867, por exemplo, os liberais concederam direitos civis plenos aos
judeus austríacos.

258
Cf. FREUD; ZWEIG, Correspondance 1927-1939, p.171.
259
Cf. VITZ, Sigmund Freud‟s christian unconscious, p.3; ver também: DEMPSEY, Freud, psychanalyse et
catholicisme, p.45; GAY, Freud, p.25; KÜNG, Freud and the problem of God, p.5; PFRIMMER, Freud,
leitor da Bíblia, p.42, 44; RIZZUTO, Por que Freud rejeitou Deus?, p.48, 137; ROAZEN, Freud e seus
discípulos, p.48; ZILBOORG, Psicanálise e religião, p.254. Os números variam um pouco de autor para
autor, mas todos concordam que os católicos constituíam uma ampla maioria, ao passo que os judeus,
uma pequena minoria.
260
Cf. VITZ, Sigmund Freud‟s christian unconscious, p.10, 225-226 [nota 52].
261
Cf. GAY, Freud, p.35-36; ver também: KLEIN, Jewish origins of the psychoanalytic movement, p.2;
RIZZUTO, Por que Freud rejeitou Deus?, p.118; ROAZEN, Freud e seus discípulos, p.55.
A partir dos anos 1890, porém, com a queda do liberalismo e a
ascensão do partido socialista cristão, assistiu-se a um recrudescimento do anti-
semitismo. Essa tendência atingiu o seu apogeu com a chegada de Karl Lueger (1844-
1910) ao posto de prefeito de Viena, em 1897. Lueger havia sido eleito prefeito pelo
voto popular por quatro vezes. Nas três primeiras, o imperador Francisco José (1830-
1916) vetou a sua nomeação. Na quarta, porém, já não foi possível impedi-la; o
imperador teve que sancioná-la. O próprio papa Leão XIII (1810-1903) fez pressão para
que Lueger fosse reconhecido como prefeito da cidade. Assim, em 1897, ele foi
empossado. Um dos pilares da sua plataforma política era o anti-semitismo. Lueger
permaneceu nesse cargo até a sua morte, em 1910262.
Freud era muito sensível ao anti-semitismo263. E ele o experimentou
como algo procedente, sobretudo, dos católicos264. A “maioria compacta” anti-semita a
que Freud se referiu mais de uma vez 265 é certamente a maioria católica266. E o anti-
semitismo católico é seguramente um dos motivos mais poderosos da hostilidade de
Freud contra a Igreja Católica267.
Freud sofreu discriminação por ser judeu já nos tempos do ginásio268.
Foi, contudo, a partir da época em que estudou na Universidade de Viena que ele se
defrontou mais fortemente com o anti-semitismo. Naquela universidade, houve, por
exemplo, episódios de boicote por parte dos alunos aos cursos ministrados por
professores judeus269.

262
Cf. DONN, Freud e Jung, p.111-112; GAY, Freud, p.32-33, 540; KLEIN, Jewish origins of the
psychoanalytic movement, p.70; PARSONS, The enigma of the oceanic feeling, p.24, 26; PERESTRELLO,
Freud e a tradição judaica. In: _______, A formação cultural de Freud, p.57; VITZ, Sigmund Freud‟s
christian unconscious, p.208.
263
Cf. JONES, A vida e a obra de Sigmund Freud, v.1, p.35; KLEIN, Jewish origins of the psychoanalytic
movement, p.49.
264
Cf. CHEMOUNI, Freud, la psychanalyse et le judaisme, p.47; DEMPSEY, Freud, psychanalyse et
catholicisme, p.56; GAY, Freud, p.33; JONES, A vida e a obra de Sigmund Freud, v.3, p.348; KLEIN,
Jewish origins of the psychoanalytic movement, p.46-62; PLÉ, Freud et la religion, p.53-54.
265
Cf. FREUD, Allocution aux membres de la Société B‟nai B‟rith. In: _______. Œuvres complètes, v.18,
p.116; FREUD, “Autoprésentation”. In: _______. Œuvres complètes, v.17, p.57; FREUD, Correspondance
1873-1939, p.398.
266
Cf. MEZAN, Psicanálise, judaísmo: ressonâncias, p.57; PLÉ, Mudança da igreja em relação à
psicanálise. Concilium, n.99, p.1200.
267
Cf. CHEMOUNI, Freud e o sionismo, p.184, 263 [nota 13]; CHEMOUNI, Freud, la psychanalyse et le
judaisme, p.10; DOMÍNGUEZ MORANO, Psicoanálisis y religión: diálogo interminable, p.140; KÜNG,
Freud and the problem of God, p.11-12; VITZ, Sigmund Freud‟s christian unconscious, p.208.
268
Cf. MEZAN, Psicanálise, judaísmo: ressonâncias, p.55-57; YERUSHALMI, O Moisés de Freud, p.70.
269
Cf. FREUD, “Autoprésentation”. In: _______. Œuvres complètes, v.17, p.57; ver também: CHEMOUNI,
Freud e o sionismo, p.157-168; GAY, A Godless jew, p.125; KLEIN, Jewish origins of the psychoanalytic
movement, p.50, 52, 54, 96.
No dia 16 de dezembro de 1883, em carta endereçada a Martha, Freud
relatou um episódio em que é vítima de anti-semitismo durante uma viagem de trem.
“C‟est un sale juif” [“É um judeu sujo”]270, gritou alguém numa certa altura. “Nous
autres, chrétiens, nous avons le sens du bien public. Vous, pensez donc moins à votre
chère personne” [“Nñs, cristãos, temos o sentido do bem comum. Quanto ao senhor,
pense menos em sua preciosa pessoa”]271, disse-lhe outro.
De novo, escrevendo a Martha, em seis de janeiro de 1885, Freud
relatou o episódio em que Carl Koller (1857-1944) foi chamado de “judeu sujo” por um
colega de trabalho no hospital em que trabalhavam272.
A demora da nomeação de Freud como professor da Faculdade de
Medicina de Viena deveu-se ao fato de que ele era judeu. Naquele tempo, na Áustria,
vigorava uma regra, dita do “numerus clausus”, que limitava o número dos professores
judeus a 2% do número total dos professores. Freud precisou esperar 17 anos para ser
nomeado273.
Numa carta que enviou a Abraham, em 23 de julho de 1908, Freud
observou:

“Soyez assuré que, si je m‟appelais Oberhuber, mes innovations


auraient, em dépit de tout, rencontré une résistance bien
moindre” [“Esteja seguro de que, se eu me chamasse Oberhuber,
as minhas inovações teriam encontrado, apesar de tudo, uma
resistência bem menor”]274.

Em “Contribuição à histñria do movimento psicanalítico” (1914),


Freud deu a entender que, ao rejeitarem a psicanálise estigmatizando-a como algo
nascido em solo vienense, o que estava em jogo, na verdade, era a sua origem
judaica275.
A Rolland, em quatro de março de 1923, Freud escreveu:

270
FREUD, Correspondance 1873-1939, p.89.
271
FREUD, Correspondance 1873-1939, p.89.
272
Cf. FREUD, Correspondance 1873-1939, p.142-143.
273
Cf. DONN, Freud e Jung, p.137; FREUD, L‟interprétation du rêve. In: _______. Œuvres complètes, v.4,
p.172-173; FUKS, Freud e a judeidade, p.27; KLEIN, Jewish origins of the psychoanalytic movement,
p.69-70; ROBERT, D‟Œdipe à Moïse, p.128-130, 158-159, 163-165.
274
FREUD; ABRAHAM, Correspondance complète 1907-1925, p.89.
275
Cf. FREUD, Contribution à l‟histoire du mouvement psychanalytique. In: _______. Œuvres complètes,
v.12, p.285.
“J‟appartiens [...] à une race qui, au Moyen Age, fut tenue pour
responsable de toutes les épidémies qui frappent les peuples et
que l‟on accuse présentement de la décadence de l‟Empire en
Autriche et de la perte de la guerre en Allemagne” [“Eu pertenço
[...] a uma raça que, na Idade Média, foi responsabilizada por
todas as epidemias que se abateram sobre os povos e que,
presentemente, é acusada pela decadência do Império Austríaco
e pela derrota da Alemanha na guerra”]276.

Por fim, numa entrevista concedida a George Sylvester Viereck


(1884-1962) em 1926, Freud afirmou: “Minha língua [...] é o alemão. Minha cultura,
minhas realizações são alemãs. Eu me considerava intelectualmente alemão, até que
notei o crescimento do preconceito anti-semita na Alemanha e na Áustria alemã. Desde
então prefiro denominar-me judeu”277.
O anti-semitismo levou não poucos judeus a abrirem mão da própria
condição de judeus, fazendo-se batizar, por exemplo. Numa frase que se tornou célebre,
Heine afirmou: “o batismo é o bilhete de entrada na sociedade européia” 278. Em Freud,
pelo contrário, o anti-semitismo despertava uma resposta combativa. A discriminação
tinha sobre ele o efeito de reforçar nele a sua identidade judaica: quanto mais os judeus
eram perseguidos, mais Freud se sentia e se dizia judeu; quanto piores eram os tempos
para os judeus, mais ele afirmava a sua judeidade279.
Na biografia de Freud, há dois exemplos que ilustram de uma forma
particular o fato de que a sua hostilidade contra a Igreja Católica representava, em parte,
a resposta combativa de um judeu ao anti-semitismo. A saber, a sua admiração por
Aníbal, o anti-romano, e a sua ambivalência afetiva por Roma, a “Cidade Eterna”.
Em sua infância, Freud idolatrou várias figuras280. Aníbal (247 a.C. -
183 a.C.) foi o seu herói preferido nos tempos de colegial. Aníbal foi um general semita,
cartaginês, que lutou contra os romanos, sem, contudo, alcançar o seu intento, invadir e
conquistar Roma.

276
FREUD, Correspondance 1873-1939, p.372-373.
277
FREUD, O valor da vida. In: SOUZA, Sigmund Freud e o gabinete do dr. Lacan, p.122.
278
MEZAN, Freud, pensador da cultura, p.64; cf. CHEMOUNI, Freud e o sionismo, p.61; CHEMOUNI,
Freud, la psychanalyse et le judaisme, p.39.
279
Cf. GAY, A Godless jew, p.138; KLEIN, Jewish origins of the psychoanalytic movement, p.57, 59.
280
Cf. AUPING, El ateísmo de Freud a la luz del psicoanálisis freudiano. In: GRUPO ÉPSIMO, Experiencia
de Dios y psicoanálisis, p.53; CHEMOUNI, Freud e o sionismo, p.176; FROMM, Sigmund Freud‟s mission,
p.68, 73-74, 80; VITZ, Sigmund Freud‟s christian unconscious, p.145.
“Hannibal et Rome symbolisaient pour l‟adolescent que j‟étais
l‟opposition entre la tenacité du judaïsme et l‟esprit
d‟organisation de l‟Église catholique” [“Para o adolescente que
eu era, Aníbal e Roma simbolizavam a oposição entre a
tenacidade dos judeus e o espírito de organização da Igreja
catñlica”]281.

Amílcar Barca (270 a.C. - 228 a.C.), o pai, e Aníbal, o filho, lideraram
os cartagineses em dois ataques contra os romanos, nas duas guerras púnicas. Aníbal
desejou conquistar Roma para vingar a derrota sofrida por seu pai, Amílcar. Ora, como
vimos, também o pai de Freud foi humilhado por um “romano” que atirou o seu solidéu
na sarjeta. Assim como Aníbal pretendeu vingar seu pai contra os romanos, também
Freud parece ter se sentido movido a vingar Jacob contra os católicos282.
Outro exemplo da hostilidade de Freud contra o catolicismo anti-
semita pode ser encontrado na intensa ambivalência afetiva que ele desenvolveu a
respeito de Roma. Freud era fascinado pela capital italiana; mas, por outro lado, tinha
também uma verdadeira aversão por ela. Atração e repulsão; grande desejo de conhecer
a cidade e, ao mesmo tempo, incapacidade de fazê-lo. Durante anos, Freud foi à Itália,
mas não a Roma. Chegou a estar a apenas 80 quilómetros da “Cidade Eterna”, sem,
contudo, ousar visitá-la. Somente em 1901, em sua quinta viagem à Itália, permitiu-se,
afinal, conhecer Roma. Depois disso, ele voltou cinco vezes: em 1902, 1907, 1910,
1912 e 1913.
Ora, qual era o significado de Roma para Freud? Certamente, muita
coisa estava em jogo para ele. Entre elas, o fato de que Roma é a capital do catolicismo.
No primeiro de seus quatro sonhos romanos, Freud diz ter visto, da janela de um vagão
de trem, o rio Tibre e a ponte Sant‟Ângelo283. Como se sabe, a referida ponte conduz à
Basílica de São Pedro, razão pela qual era chamada, no passado, de “ponte de São
Pedro”. Noutras palavras, o que Freud viu conduz diretamente ao Vaticano, a sede da

281
FREUD, L‟interprétation du rêve. In: _______. Œuvres complètes, v.4, p.234.
282
Cf. FREUD, L‟interprétation du rêve. In: _______. Œuvres complètes, v.4, p.235; ver também: AUPING,
El ateísmo de Freud a la luz del psicoanálisis freudiano. In: GRUPO ÉPSIMO, Experiencia de Dios y
psicoanálisis, p.55; MEZAN, Psicanálise, judaísmo: ressonâncias, p.57; PARSONS, The enigma of the
oceanic feeling, p.85.
283
Cf. FREUD, L‟interprétation du rêve. In: _______. Œuvres complètes, v.4, p.231.
Igreja Católica. Para os judeus, Roma é também o símbolo da sua opressão. Com efeito,
a Roma antiga destruiu Jerusalém; a Roma católica perseguiu os judeus284.
Ilustrações do desafeto de Freud pelo catolicismo poderiam ser
multiplicadas. Por exemplo: a epígrafe de “A interpretação do sonho” Ŕ “Flectere si
nequeo Superos, Acheronta movebo” [“Se não posso dobrar os Poderes Supremos,
moverei o Acheronte”] Ŕ é uma frase de “Eneida”, de Virgílio (70 a.C. - 19 a.C.),
proferida por Juno, inimiga de Roma285. A frase, ademais, pode ser entendida como uma
máxima oposta ao pensamento cristão286. Outro exemplo: certa vez, Freud sonhou com
a morte do papa287. Não foi ele quem nos ensinou a ver nos sonhos realizações de
desejos?
Acreditamos, porém, que esse ponto do anti-semitismo como motivo
da hostilidade de Freud contra o catolicismo está suficientemente demonstrado.
Conviria, inclusive, relativizá-lo um pouco.
De fato, em seis de janeiro de 1935, numa carta endereçada a Lou
Andreas-Salomé (1861-1937), Freud afirmou que hesitava em publicar o seu novo
trabalho sobre Moisés temendo alguma retaliação da Igreja Católica, mas, ao mesmo
tempo, ele reconheceu, nessa mesma Igreja, uma proteção contra o nazismo: “...c‟est
uniquement ce catholicisme qui nous défend contre le nazisme” [“...é unicamente esse
catolicismo que nos defende do nazismo”]288.
Algo análogo se pode ler na primeira nota preliminar ao terceiro
ensaio de “O homem Moisés e a religião monoteísta”, escrita no começo de 1938, onde
Freud aludiu ao nazismo como um novo inimigo, mais perigoso do que o antigo, a
Igreja, sob cuja proteção se vivia em Viena289.

284
Cf. ASSOUN, Freud, a filosofia e os filósofos, p.223; CHEMOUNI, Freud e o sionismo, p.180-193;
DOLTO; SEVERIN, La foi au risque de la psychanalyse, p.102; FREUD, L‟interprétation du rêve. In:
_______. Œuvres complètes, v.4, p.231, 233-234, 368; FROMM, Sigmund Freud‟s mission, p.75; FUKS,
Freud e a judeidade, p.33; MEISSNER, Psychoanalysis and religious experience, p.46-47; MEZAN, Freud,
pensador da cultura, p.112-118; PFRIMMER, Freud, leitor da Bíblia, p.176; ROBERT, D‟Œdipe à Moïse,
p.175-189, 198-200, 207, 217; SILVA, O ateísmo de Freud, p.54-56, 58; VITZ, Sigmund Freud‟s christian
unconscious, p.72-76.
285
Cf. FREUD, L‟interprétation du rêve. In: _______. Œuvres complètes, v.4, p.14, 663; VITZ, Sigmund
Freud‟s christian unconscious, p.125.
286
Cf. ANCONA, Il debito della chiesa alla psicoanalisi, p.19.
287
Cf. FREUD, L‟interprétation du rêve. In: _______. Œuvres complètes, v.4, p.271; ZILBOORG,
Psicanálise e religião, p.255-257.
288
ANDREAS-SALOMÉ, Correspondance avec Sigmund Freud 1912-1936, p.254.
289
Cf. FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.133.
Na segunda nota preliminar ao terceiro ensaio do mesmo livro, escrita
em Londres, em junho de 1938, Freud voltou a se referir ao fato de que, em Viena,
encontrava-se sob a proteção da Igreja Católica290.
No dia 23 de fevereiro de 1938, numa carta a Marie Bonaparte,
escrevendo sobre os ataques nazistas, Freud perguntou: “Ainda será possível encontrar
segurança no abrigo da Igreja Católica? Quien Sabe?”291.
Por fim, em “Uma palavra sobre o anti-semitismo” (1938), Freud
registrou uma reação de protesto da Igreja Católica contra as perseguições anti-semitas,
embora ela lhe tenha parecido pouco veemente e atrasada292.
Ou seja, no final de sua vida, Freud se deparou com uma forma tão
terrível de anti-semitismo que, comparado a ela, o catolicismo passou de inimigo a
protetor.
Outro dado que também pode relativizar um pouco o que se procurou
demonstrar nas últimas páginas é o fato de que o anti-semitismo não é uma
exclusividade da Igreja Católica; há também a discriminação dos judeus pelos
protestantes293. Seja como for, permanece o fato de que Freud sofreu o anti-semitismo
como algo procedente, sobretudo, dos católicos.
Antes de concluirmos este capítulo, acrescente-se que, embora, talvez,
tenha sido a razão principal, o anti-semitismo não foi o único motivo da malquerença de
Freud pela Igreja Católica.
É importante ter presente que o catolicismo com o qual Freud
conviveu não foi o catolicismo pós-conciliar cuja palavra de ordem era
“aggiornamento”. Pelo contrário, Freud conheceu a Igreja Catñlica num momento de
sua histñria em que ela havia “virado as costas” para a modernidade, tornando-se uma
instituição reacionária, defensiva, tradicionalista, animada pelo desejo de restauração do
ancien régime e pelo anseio de recuperação daquilo que perdera com a Revolução
Francesa294. Não é de se admirar que Freud não simpatizasse com isso.

290
Cf. FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.135.
291
JONES, A vida e a obra de Sigmund Freud, v.3, p.221.
292
Cf. FREUD, Un mot sur l‟antisémitisme. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.327.
293
Cf. DAWKINS, Deus, um delírio, p.353.
294
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, El psicoanálisis freudiano de la religión, p.447-449; DOMÍNGUEZ
MORANO, Psicoanálisis y religión: diálogo interminable, p.137-139; DOMÍNGUEZ MORANO, Teología y
psicoanálisis, p.29-30; GAY, A Godless jew, p.10.
Finalmente, cumpre ainda mencionar que a tese da etiologia sexual
das neuroses colocou Freud em “rota de colisão” com a Igreja Catñlica. De fato, o
cerceamento da vida sexual sempre encontrou na moral católica o seu principal baluarte.
Aquilo que Freud estava combatendo, a neurose, tinha a sua origem na moral sexual
repressiva dominante, que, por sua vez, encontrava na Igreja Católica a sua maior
promotora. Daí que, aos olhos de Freud, o catolicismo se lhe afigurasse como um
oponente a ser vencido295.
Fica, assim, desenhada, em seus diversos aspectos, a atitude pessoal
de Freud a respeito da religião. O próximo capítulo terá um enfoque menos subjetivo,
mais impessoal. Ali, trataremos do pensamento que Freud construiu sobre o fato
religioso.

295
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, El psicoanálisis freudiano de la religion, p.449; DOMÍNGUEZ MORANO,
Psicoanálisis y religión: diálogo interminable, p.139; DOMÍNGUEZ MORANO, Teología y psicoanálisis,
p.30, 32; DROGUETT, Desejo de Deus, p.93.
CAPÍTULO 2
A CRÍTICA FREUDIANA DA CRENÇA RELIGIOSA

A religião na obra de Freud

Se, no capítulo precedente, tratamos da relação pessoal de Freud com


a religião, neste capítulo, o nosso tema é o pensamento de Freud sobre o fato religioso.
Organizamos o nosso estudo em dois movimentos. Primeiramente, faremos uma
exposição cronológica dos principais textos em que Freud se ocupou do fenômeno
religioso. Em seguida, apresentaremos uma síntese sistemática da crítica freudiana da
religião.
O pensamento de Freud sobre o fato religioso pode ser considerado a
crítica mais “desconstrutiva” que a religião já sofreu296. Na avaliação de Pohier, Freud
vai mais fundo do que os seus predecessores Ŕ também eles, “mestres da suspeita” Ŕ
Marx e Nietzsche: “...jamais encore la foi ne s‟était vu soupçonnée d‟aussi radicale
façon” [“...nunca antes a fé se viu colocada sob suspeita de uma forma tão radical”]297.
Para Domínguez, por sua vez, a religião nunca se viu questionada de forma tão
“incisiva” quanto pela crítica que Freud lhe endereçou. A crítica freudiana do fenómeno
religioso constitui-se numa das “impugnações mais impiedosas” jamais sofridas pela
religião ao longo da história. Com efeito, nunca, antes de Freud, a crença e a prática
religiosas se viram referidas a elementos tão “obscuros, primitivos e arcaicos” quanto
aqueles apontados pelo inventor da psicanálise298. Apresentar essa crítica, histórica e
sistematicamente, diacrônica e sincronicamente, longitudinal e transversalmente, eis o
que se pretende com este capítulo.
A primeira observação teórica de Freud sobre o fato religioso pode ser
encontrada numa carta endereçada a Fließ no dia 12 de dezembro de 1897299. Por sua
vez, a última referência que ele fez ao tema em questão é uma anotação avulsa que

296
Cf. VERMOREL; VERMOREL, Sigmund Freud et Romain Rolland: correspondance 1923-1936, p.299.
297
POHIER, Au nom du Père..., p.18.
298
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, Experiencia cristiana y psicoanálisis, p.9, 15; ver também: DANSEREAU,
Freud et l‟athéisme, p.13, 16.
299
Cf. MASSON, A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess – 1887-1904,
p.287.
deixou consignada com a data de 22 de agosto de 1938300. Entre uma coisa e outra, ao
longo de quatro décadas de intensa produção intelectual, Freud mencionou de passagem
o fenômeno religioso ou se deteve mais demoradamente sobre algum aspecto do mesmo
um número incontável de vezes. A rigor, as suas referências ao fato religioso são tão
frequentes que fazer um rastreamento completo delas implicaria em repassar quase que
a totalidade dos seus escritos. Em sua tese doutoral, “El psicoanálisis freudiano de la
religión” [“A psicanálise freudiana da religião”], publicada em 1991, Domínguez tomou
a peito essa monumental tarefa, tendo consumido mais de três centenas de páginas
apenas com a exposição cronológica das incidências do tema religioso na obra de
Freud301. Carlos Padrón Estarriol, o autor do prólogo do livro, considera que o estudo
realizado por Domínguez é o mais “extenso” e “profundo” existente até os dias de
hoje302. Não nos parece que haja qualquer exagero nisso.
Seja como for, mais importante do que as alusões eventuais que Freud
tenha feito ao fenômeno religioso são aqueles escritos em que ele realmente se debruçou
sobre a matéria em pauta. Quando alguém se pergunta sobre quais foram os principais
textos que Freud dedicou ao problema da religião, a tentação é grande. A vontade que se
tem é de abraçar um feixe de, pelo menos, uma dúzia de títulos. Uma dúzia mesmo!
Poderiam ser: “Atos obsessivos e exercícios religiosos” (1907), “A moral sexual
„cultural‟ e a nervosidade moderna” (1908), “Uma lembrança da infância de Leonardo
da Vinci” (1910), “Totem e tabu” (1913), “Psicologia das massas e análise do eu”
(1921), “Uma neurose diabñlica do século XVII” (1923), “O futuro de uma ilusão”
(1927), “Uma experiência religiosa” (1928), “Dostoievski e o assassinato do pai”
(1928), “O mal-estar na cultura” (1930), “Sobre uma visão do mundo” Ŕ ou seja, a
conferência XXXV de “Nova sequência de lições de introdução à psicanálise” (1933) Ŕ
e “O homem Moisés e a religião monoteísta” (1939).
Pretendemos, porém, nos limitar a uma tarefa um pouco menos
pretensiosa. Autoriza-nos o fato de que o estudo pormenorizado da crítica freudiana da
religião já foi feito e de uma maneira que não seríamos capazes de melhorar. Ademais,
esse estudo é apenas uma tarefa prévia ao que elegemos como foco precípuo da nossa
pesquisa. Faremos, pois, uma apresentação cronológica de apenas cinco textos de Freud,

300
Cf. FREUD, Résultats, idées, problèmes. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.320.
301
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, El psicoanálisis freudiano de la religión, p.25-339.
302
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, El psicoanálisis freudiano de la religión, p.12.
justamente, aqueles de todo consagrados ao tema da religião. São eles: “Atos obsessivos
e exercícios religiosos”, “Totem e tabu”, “O futuro de uma ilusão”, “Sobre uma visão
do mundo” e “O homem Moisés e a religião monoteísta”303.
Entre esses cinco títulos, alguns autores parecem crer que “O futuro de
uma ilusão” é o texto mais representativo da crítica freudiana da religião304. Outros,
porém, consideram “Totem e tabu” o trabalho mais importante do pensamento de Freud
sobre o fato religioso305. Essas duas obras são, sem dúvida, os dois textos mais
relevantes da interpretação freudiana do fenômeno religioso. Se, porém, tivéssemos que
eleger uma delas, escolheríamos, sem hesitar, “Totem e tabu”. De fato, o livro de Freud
sobre o totemismo é, de longe, muito mais original Ŕ e também muito mais psicanalítico
Ŕ do que “O futuro de uma ilusão”306.

303
“Totem e tabu” e “O homem Moisés e a religião monoteísta” integram uma lista dos 14 principais
livros de Freud segundo Joel Birman (cf. BIRMAN, As pulsões e seus destinos, p.25).
304
Cf. BALMARY, Le sacrifice interdit, p.10; BAMBERGER, A religião como ilusão? Concilium, n.16, p.83;
BIRMAN, Estilo e modernidade em psicanálise, p.73; GAY, A Godless jew, p.41; KÜNG, Freud and the
problem of God, p.42, 55; WIESENHÜTTER, La fe reprimida. In: ZAHRNT, Jesús de Nazaret y Sigmund
Freud, p.122, 129.
305
Cf. ALONSO, Psicoanálisis y religión. Proyección, v.23, n.101, p.137; ASSOUN, Freud et les sciences
sociales, p.43-44, 72; DOMÍNGUEZ MORANO, Creer después de Freud, p.34, 37; DOMÍNGUEZ MORANO, El
psicoanálisis freudiano de la religión, p.18, 22, 95, 98-100, 107, 109, 111, 125, 144-145, 234, 288, 344,
421, 465; DOMÍNGUEZ MORANO, Psicoanálisis y religión: diálogo interminable, p.71, 105; DOMÍNGUEZ
MORANO, Teología y psicoanálisis, p.4, 11, 16, 39.
306
Não poucos autores notaram que muitas das teses defendidas por Freud em “O futuro de uma ilusão”
podem já ser encontradas na obra de Ludwig Feuerbach (1804-1872), nomeadamente, em “Das Wesen
des Christentums” [“A essência do cristianismo”] (1841) (cf. ASSOUN, Freud, a filosofia e os filósofos,
p.14; AVIS, A hermeneutic of suspicion: Sigmund Freud. In: _______, Faith in the fires of criticism, p.67-
68; BERNSTEIN, Freud e o legado de Moisés, p.84; BINSWANGER, Souvenirs sur Sigmund Freud. In:
_______, Dicours, parcours, et Freud, p.339-340; BOEHLICH, As cartas de Sigmund Freud para Eduard
Silberstein, p.90, 116; DAVID, Freud e a religião, p.12-13, 61; DOMÍNGUEZ MORANO, Creer después de
Freud, p.85; DOMÍNGUEZ MORANO, El psicoanálisis freudiano de la religión, p.241, 383-384, 453;
DOMÍNGUEZ MORANO, Experiencia cristiana y psicoanálisis, p.48; DOMÍNGUEZ MORANO, Psicoanálisis y
religión: diálogo interminable, p.107; DOMÍNGUEZ MORANO, Teología y psicoanálisis, p.24; ENRIQUEZ,
De la horde à l‟État, p.129; FREUD, L‟avenir d‟une illusion. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.176,
178; FREUD, Nouvelle suite des leçons d‟introduction à la psychanalyse. In: _______. Œuvres complètes,
v.19, p.253; FRIES, La fe en Dios, ¿ilusión o realidad? In: ZAHRNT, Jesús de Nazaret y Sigmund Freud,
p.59; GAY, A Godless jew, p.42, 53, 55-56; GAY, Freud, p.479, 482-483; JONES, A vida e a obra de
Sigmund Freud, v.3, p.354-355; KÜNG, Freud and the problem of God, p.75-76; LAPLANCHE,
Elaborações temáticas: sedução, perseguição e revelação. Revista Brasileira de Psicanálise, v.27, n.4,
p.769; LECUIT, L‟anthropologie théologique à la lumière de la psychanalyse, p.365, 378 [nota 3], 381-
383, 414; MARCUSE, Sigmund Freud, p.73; MEZAN, Freud, pensador da cultura, p.520-523; PFISTER,
L‟illusion d‟un avenir. Revue française de psychanalyse, t.41, n.3, p.512; RICŒUR, O ateísmo da
psicanálise de Freud. Concilium, n.16, p.67-68; ROAZEN, Freud: pensamento político e social, p.108;
ROCHA, O deus de Freud. Estudos de psicanálise, n.14, p.75; SIEGMUND, Fé em Deus e saúde psíquica,
p.25; VERGOTE, Psychanalyse et anthropologie philosophique. In: HUBER; PIRON; VERGOTE, La
psychanalyse, science de l‟homme, p.237; VERGOTE, Psychologie religieuse, p.38; VERMOREL;
VERMOREL, Sigmund Freud et Romain Rolland: correspondance 1923-1936, p.298 [nota 3]; VITZ,
Sigmund Freud‟s christian unconscious, p.47-49, 210, 232 [nota 73], 258 [nota 14]).
Além de todos os textos acima mencionados, há de se lembrar também
das cartas trocadas entre Freud e Pfister307. Essa correspondência contém elementos
importantes do pensamento freudiano sobre a religião, registrando também a reação
pioneira de um cristão a esse mesmo pensamento. Embora não pretendamos apresentá-
la em separado, tê-la-emos sempre presente. Observe-se, porém, que, lamentavelmente,
as cartas trocadas entre Freud e Pfister não tratam de “Totem e tabu”. Além disso, nelas,
“O homem Moisés e a religião monoteísta” é apenas anunciado.
O quarto ensaio de “Totem e tabu” foi concluído no dia 12 de maio de
1913 e lido para a Sociedade Psicanalítica de Viena no dia quatro de junho seguinte. No
mesmo ano, foi publicado pela “Imago”. Freud e Pfister discutiram essa obra em sua
correspondência? Se o fizeram, isso deve ter acontecido nas cartas que trocaram nos
meses que se seguiram à publicação de “Totem e tabu”. Ocorre que não há nenhuma
carta trocada entre os dois entre o dia 11 de março de 1913 e nove de outubro de 1918,
ou seja, ao longo de um período de cinco anos e meio. Vale lembrar que, entre 28 de
julho de 1914 e 11 de novembro de 1918, aconteceu a Primeira Grande Guerra. Não
seria de se estranhar se, durante esse período, a correspondência entre os dois tivesse
sido interrompida308.
Por outro lado, Freud concluiu o primeiro rascunho de “O homem
Moisés e a religião monoteísta” durante o verão de 1934. Em 30 de setembro, por
exemplo, comentou a obra numa carta endereçada a Arnold Zweig309, o seu principal
correspondente tratando-se desse trabalho310. E, em seis de janeiro de 1935, resumiu o
futuro livro numa carta a Andreas-Salomé311. Na correspondência com Pfister, porém,
“O homem Moisés e a religião monoteísta” sñ é mencionado em 27 de março de 1937.
Nessa ocasião, Freud anuncia a conclusão do seu estudo, diz que o livro trata de religião
e que não será agradável para Pfister312. E é só.

307
Cf. BIRMAN, Desejo e promessa, encontro impossível. In: MOURA, Hélio Pellegrino. A-Deus, p.123.
Essa correspondência recebeu uma primeira tradução parcial para o português num artigo publicado em
1984 por Joel Birman (cf. BIRMAN, Sobre a correspondência de Freud com o pastor Pfister. Religião e
sociedade, n.11/2, p.30-53).
308
A correspondência entre Freud e Pfister é incompleta: uma parte foi destruída por Freud a pedido de
Pfister; outra, talvez, tenha se perdido por ocasião do exílio de Freud. Não fica claro se as cartas do
período acima referido se perderam ou se a relação epistolar entre os dois foi suspensa durante a Primeira
Guerra Mundial (cf. DOMÍNGUEZ MORANO, Psicoanálisis y religión: diálogo interminable, p.27, 36, 52).
309
Cf. FREUD; ZWEIG, Correspondance 1927-1939, p.129-131.
310
Cf. CHEMOUNI, Freud e o sionismo, p.99-100.
311
Cf. ANDREAS-SALOMÉ, Correspondance avec Sigmund Freud 1912-1936, p.252-254.
312
Cf. FREUD, Correspondance avec le pasteur Pfister 1909-1939, p.205.
Portanto, nas cartas que trocou com Freud, Pfister reagiu a “O futuro
de uma ilusão”, mas não a “Totem e tabu”, a obra mais importante da crítica freudiana
da religião, tampouco a “O homem Moisés e a religião monoteísta”, que retoma as
hipñteses fundamentais de “Totem e tabu”313. Pfister se referiu, em alguma medida, aos
estudos de Freud sobre o totemismo e sobre o monoteísmo mosaico em “Das
Christentum und die Angst” [“O cristianismo e a angústia”], de 1944, livro que alguns
consideram a sua obra magna314.
Dito isso, passemos, pois, à primeira parte da tarefa a que nos
propusemos neste capítulo: apresentar, em ordem cronológica, os cinco textos Ŕ artigos,
livros ou capítulos de livros Ŕ que Freud dedicou ao problema da religião.

“Atos obsessivos e exercícios religiosos”

“Atos obsessivos e exercícios religiosos” é o texto inaugural da


interpretação freudiana da religião. Trata-se de um artigo escrito sob encomenda: com
ele, Freud atendeu ao pedido de colaborar com o primeiro número da “Zeitschrift für
Religionpsychologie” [“Revista de Psicologia da Religião”]315. No dia seis de março de
1907, numa sessão da Sociedade Psicanalítica de Viena, Freud compartilhou com os
colegas esse pequeno escrito. Jung estava presente: era a primeira vez que ele
participava de um encontro dos psicanalistas vienenses316.
Conforme o título do artigo anuncia, o texto assinala as semelhanças
existentes entre os atos obsessivos e os exercícios religiosos. De saída, o uso da palavra
“cerimonial” para descrever os atos obsessivos parece ser um indicativo da existência de
uma analogia entre os sintomas do neurótico obsessivo e as práticas piedosas do homem
religioso. O artigo de Freud pretende demonstrar que existem, de fato, muitas
semelhanças entre uma coisa e outra, mais do que, de início, poder-se-ia imaginar.
Em geral, os cerimoniais obsessivos são atos triviais que devem ser
realizados sempre numa certa ordem. Embora essas atividades pareçam não ter qualquer

313
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, Psicoanálisis y religión: diálogo interminable, p.71, 125, 147-148.
314
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, Psicoanálisis y religión: diálogo interminable, p.71-82; WONDRACEK, O
amor e seus destinos, p.145, 148-149.
315
Cf. JONES, A vida e a obra de Sigmund Freud, v.3, p.348.
316
Cf. FREUD, Actions de contrainte et exercices religieux. In: _______. Œuvres complètes, v.8, p.136;
JONES, A vida e a obra de Sigmund Freud, v.2, p.339.
sentido, o neurótico obsessivo sente-se compelido a realizá-las. Ele é incapaz de
renunciar a elas, e qualquer afastamento do cerimonial, seja por omissão, seja por
interrupção, resulta numa intolerável ansiedade.
As semelhanças entre esses cerimoniais neuróticos e os gestos
sagrados do ritual religioso são evidentes. Num caso como noutro, estamos diante de
rituais que, durante a sua execução, excluem outra atividade, são executados com
grande minúcia e, quando negligenciados, acarretam escrúpulos de consciência.
Mas, nesse nível de análise, há também diferenças importantes entre
uma coisa e outra: os cerimoniais obsessivos apresentam grande variedade individual e
têm um caráter privado, ao passo que os rituais religiosos são estereotipados e possuem
um caráter público. Ademais, todos os detalhes do cerimonial religioso são
significativos e têm um sentido simbólico, ao passo que os atos obsessivos parecem
tolos e absurdos. Segundo Freud, essa última diferença Ŕ justamente, a diferença
decisiva Ŕ desaparece quando submetemos os sintomas do neurótico obsessivo a uma
interpretação psicanalítica.
Com efeito, muito embora o obsessivo não tenha consciência disso,
cada detalhe do seu cerimonial tem um sentido e pode ser interpretado. A investigação
psicanalítica revela que, assim como os sintomas histéricos, o sentido dos sintomas
obsessivos é inconsciente e sexual.
Na origem da neurose obsessiva, há sempre o recalque de um impulso
sexual que, por meio desse mecanismo, é tornado inconsciente. Uma vez recalcado,
porém, o impulso sexual conserva a sua força ascendente e esforça-se permanentemente
para retornar ao registro da consciência. Ou seja, há, no obsessivo, algo que ele reprova
em si mesmo e que ameaça continuamente manifestar-se. Isso parece explicar os
sentimentos de culpa de que ele se queixa e os sentimentos de ansiedade expectante de
que padece. De fato, o neurótico obsessivo vive, de uma forma crônica, uma espécie de
expectativa de infortúnio, como se, por algum motivo, pesasse sobre ele a ameaça de
uma punição. Contudo, o que o ameaça, sem que ele o saiba, é a emergência do impulso
sexual recalcado. Os cerimoniais obsessivos são, assim, uma conciliação ou uma
formação de compromisso entre o impulso sexual recalcado e a instância responsável
pelo seu recalcamento. Ao mesmo tempo em que significam a satisfação sexual
desejada, eles funcionam como medida defensiva, isto é, como uma espécie de proteção
contra a emergência do impulso sexual recalcado e contra a punição que continuamente
ameaça cair sobre ele.
Uma última característica dos processos mentais na neurose obsessiva
é o domínio sobre eles do mecanismo psíquico do deslocamento. Por meio desse
mecanismo, um elemento realmente importante na problemática vivida pelo obsessivo é
substituído por alguma coisa inócua, irrelevante, trivial. Para se apreciar adequadamente
o simbolismo e os pormenores dos atos obsessivos, deve-se, pois, levar em conta que
sobre eles incidiu o deslocamento.
Podemos, agora, retomar a analogia entre os atos obsessivos e as
práticas religiosas. Assim como o obsessivo realiza o seu cerimonial sem conhecer o
seu sentido, também a maioria dos crentes desconhece o sentido do cerimonial religioso
que pratica. Assim como, na origem da neurose obsessiva, há sempre o recalcamento de
um impulso sexual, também a formação de uma religião parece basear-se na renúncia a
certas exigências pulsionais. Assim como, na neurose obsessiva, o recalcamento de um
impulso sexual não significa a desaparição do mesmo, mas resulta numa situação
precária, marcada por um conflito permanente, também, na vida religiosa, a renúncia a
certas exigências pulsionais revela-se um processo inadequado e interminável, sendo
frequentes as recaídas no pecado e a necessidade de atos de penitência. Assim como o
obsessivo padece de sentimentos de culpa e sofre uma ansiedade expectante, também o
homem religioso sente-se culpado, considerando-se, no íntimo, um miserável pecador,
razão pela qual teme ser punido pela justiça divina. Assim como os cerimoniais
obsessivos funcionam como medidas defensivas e protetoras contra a emergência do
impulso sexual recalcado e contra a expectativa de uma punição, também as práticas
devotas do homem religioso parecem funcionar como medidas protetoras ou de defesa.
Assim como o sintoma obsessivo consiste numa conciliação de opostos, entre o impulso
sexual recalcado e a instância responsável pelo seu recalcamento, também as práticas
religiosas são marcadas por uma contradição análoga: basta lembrarmos que, não raro,
cometem-se, em nome da religião e por causa dela, exatamente aqueles atos que por ela
mesma são proibidos. Finalmente, assim como o mecanismo do deslocamento psíquico
incide sobre os processos mentais na neurose obsessiva, também, no campo das práticas
religiosas, observa-se uma tendência para o deslocamento de valores psíquicos. Por
meio desse mecanismo, os cerimoniais triviais da prática religiosa tomam gradualmente
o lugar dos pensamentos fundamentais, adquirindo, por conseguinte, um caráter
essencial. Ou seja, o que era realmente importante é substituído por algo irrelevante. Por
isso mesmo, as religiões realizam periodicamente reformas de caráter retroativo, cujo
objetivo é restabelecer a ordem original dos valores.
A analogia entre os atos obsessivos e as práticas religiosas não se
restringe, pois, ao modo de expressão. Também a dinâmica dos processos, a motivação
subjacente e os mecanismos acionados apresentam surpreendentes semelhanças. A
única diferença significativa entre a neurose obsessiva e a religião está em que, nesta
última, as exigências pulsionais censuradas são principalmente impulsos egoístas e anti-
sociais, ao passo que, na obsessão, os impulsos recalcados são de natureza sexual317.
Seja como for, com Freud, podemos concluir:

“D‟après ces concordances et analogies, on pourrait se risquer à


concevoir la névrose de contrainte comme pendant pathologique
de la formation-de-religion, à qualifier la névrose de religiosité
individuelle, et la religion de névrose de contrainte universelle”
[“De acordo com essas concordâncias e analogias, podemos nos
arriscar a conceber a neurose obsessiva como o correlato
patológico da formação de uma religião, a qualificar a neurose
de religiosidade individual e a religião de neurose obsessiva
universal”]318.

A fórmula acima enunciada tornou-se célebre: “a neurose obsessiva é


uma religião individual; a religião, uma neurose obsessiva universal”. Freud jamais
abandonará essa tese. Ele a repetirá algumas vezes; e, em grande parte, toda a sua
reflexão posterior sobre a religião significou um aprofundamento dessa intuição inicial.
Note-se, em todo caso, que, em “Atos obsessivos e exercícios
religiosos”, Freud não faz qualquer menção ao complexo de Édipo, o complexo nuclear
das neuroses. Em “Totem e tabu”, Freud concluirá que a semelhança entre a religião e a
neurose obsessiva é ainda mais profunda do que se poderia suspeitar. Com efeito, além
da analogia estrutural, acima desenhada, ambas possuiriam igual origem edipiana319.

317
Domínguez observa, porém, que, com a teoria das pulsões formulada por Freud em 1914, a distinção
entre neurose/pulsões sexuais e religião/pulsões do eu “cai por terra” (cf. DOMÍNGUEZ MORANO, El
psicoanálisis freudiano de la religión, p.61-62).
318
FREUD, Actions de contrainte et exercices religieux. In: _______. Œuvres complètes, v.8, p.145.
319
Na esteira de “Atos obsessivos e exercícios religiosos”, Reik debruçou-se de uma forma particular
sobre o aspecto ritual das religiões. Em 1919, ele publicou um estudo prefaciado por Freud e intitulado
“Totem e tabu”320

No dia nove de abril de 1913, enquanto trabalhava na redação do


quarto ensaio de “Totem e tabu”, Freud escreveu a Jones: “É o mais ousado
empreendimento a que já me aventurei. Sobre religião, ética e quibusdem aliis [outras
coisas mais]. Deus me ajude!”321. Como observou Paul-Laurent Assoun (1948),
partindo de alguém que sempre se apresentou como ateu, eis uma “estranha oração”322.
Marie Balmary, por sua vez, comentou: “Il invoque ainsi Dieu contre dieu...” [“Ele
invoca, assim, Deus contra deus...”]323. Vejamos do que se trata.
O principal objetivo de Freud em “Totem e tabu” é decifrar o
significado e a origem do que, em antropologia cultural, ficou conhecido como
“totemismo”. O totemismo era uma questão candente naquele tempo; o Ocidente estava
encantado pelo tema na época. O inventor do totemismo como problema foi o escocês
John Ferguson McLennan (1827-1881); pertence a ele o mérito de ter despertado o
interesse científico pelo assunto, fenômeno que, até 1869, era encarado como mera
curiosidade324.
O totemismo é uma forma de organização social, moral e religiosa
primitiva. Supunha-se que essa fosse a primeira forma de organização social, moral e

“Probleme der Religionspsychologie” [“Problemas de psicologia da religião”]. Em 1928, uma segunda


edição do mesmo livro, revista e aumentada, veio à luz sob o título “Das ritual: psychoanalytic studien”
[“Ritual: estudos psicanalíticos”], traduzida para o inglês em 1946 (cf. REIK, Ritual: psycho-analytic
studies). A obra reúne quatro conferências proferidas em ocasiões distintas, entre 1914 e 1919,
independentes entre si, mas que encontram o seu denominador comum no interesse pela dimensão ritual
da religiosidade. A primeira examina os ritos que, em determinadas culturas, um homem deve observar
durante a gravidez da mulher e logo após o nascimento da criança: a couvade. A segunda estuda os ritos
de iniciação pubertária praticados por certos povos primitivos. A terceira analisa o texto do Kol Nidrei,
uma fórmula ritual recitada pelos judeus no Dia da Expiação. E, finalmente, a quarta trata do shofar, um
instrumento de sopro feito do chifre do carneiro e utilizado pelos judeus em seus ritos religiosos. Essa
quarta conferência vem acrescida de um apêndice que merece atenção particular. Trata-se de uma
interpretação psicanalítica dos eventos ocorridos com os judeus junto ao monte Sinai. Em seu estudo,
além do relato bíblico fornecido pelo “Êxodo”, o autor tem presente a estátua de Moisés esculpida por
Michelangelo, que, como se sabe, inspirou um artigo de Freud. Freud comentou esse apêndice numa carta
a Reik datada de 11 de junho de 1919 (cf. REIK, Trente ans avec Freud, p.102).
320
Breves resumos de “Totem e tabu” elaborados pelo próprio Freud podem ser encontrados em sua
“Autoapresentação” (cf. FREUD, “Autoprésentation”. In: _______. Œuvres complètes, v.17, p.114-117) e
em “O homem Moisés e a religião monoteísta” (cf. FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste.
In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.160-171, 209-210).
321
JONES, A vida e a obra de Sigmund Freud, v.2, p.352.
322
Cf. ASSOUN, Freud et les sciences sociales, p.77.
323
BALMARY, Le sacrifice interdit, p.281.
324
Cf. FREUD, Totem et tabou. In: _______. Œuvres complètes, v.11, p.200 [nota 2], 311, 322; KOLTAI,
Totem e tabu, p.28.
religiosa e que todos os povos tivessem atravessado essa etapa. O totemismo seria, pois,
o ponto zero, o marco inicial da civilização. Assim, descobrir a sua origem equivaleria a
revelar a origem mesma da cultura. Quando Freud escreveu a Jones que aquele era o
empreendimento mais ousado a que já se aventurara, ele falava sério.
Os dados sobre o totemismo foram recolhidos a partir da observação
antropológica de povos selvagens, em particular, dos aborígenes da Austrália Central,
bem como dos índios norte-americanos e de outros povos da Oceania, das Índias
Orientais e do continente africano. Considerava-se que esses povos fossem
representantes dos primitivos, algo como uma espécie de fóssil vivo, e que, neles, se
pudesse contemplar um retrato bem conservado de uma etapa primitiva da evolução
humana.
As principais fontes bibliográficas de Freud em “Totem e tabu” são as
seguintes: o livro “The descent of man and selection in relation to sex” [“A
descendência do homem e seleção em relação ao sexo”] (1871), de Charles Robert
Darwin (1809-1882); as “Lectures on the religion of the semites” [“Conferências sobre
a religião dos semitas”] (1889), de William Robertson Smith (1846-1894); a obra
“Primal law” [“Lei primeva”] (1903), de James Jasper Atkinson; os quatro volumes de
“Cultes, mythes et religions” [“Cultos, mitos e religiões”] (1905-1912), de Salomon
Reinach (1858-1932); “Elemente der Völkerpsychologie” [“Elementos da psicologia dos
povos”] (1912), de Wilhelm Wundt (1832-1920); “The golden bough” [“A rama
dourada”] (1890), de James George Frazer (1854-1941); e a monumental obra
“Totemism and exogamy” [“Totemismo e exogamia”] (1910), em quatro volumes, do
mesmo autor.
O núcleo de “Totem e tabu” pode ser encontrado no último dos quatro
ensaios da obra, cujo título é “O retorno infantil do totemismo”325. O primeiro ensaio,
porém, intitulado “O temor do incesto”, contém informações preciosas sobre o
totemismo que o quarto ensaio retoma e enriquece. Comecemos, pois, o nosso trabalho
por uma descrição do totemismo.
No totemismo, as tribos são divididas em grupos menores, os clãs,
cada qual denominado segundo o seu totem. O totem, por sua vez, é uma classe de
indivíduos, normalmente, uma espécie animal Ŕ eventualmente, um vegetal; raramente,

325
Cf. JONES, A vida e a obra de Sigmund Freud, v.2, p.357
um fenômeno da natureza; e, mais raramente ainda, um objeto artificial. Supõe-se,
contudo, que, originalmente, o totem seja sempre um animal.
O totem é considerado um antepassado, o ancestral comum do clã. Os
homens e as mulheres de um mesmo clã totêmico acreditam que possuem um mesmo
sangue, aparentados que são pelo laço dessa ascendência comum. Assim, quando um
exemplar do totem é encontrado morto, ele é pranteado e enterrado como se se tratasse
de um membro do grupo. E, quando, por alguma razão, é inevitável matá-lo, os
membros do clã pedem-lhe desculpas e apresentam alguma forma de expiação.
O totem é também considerado o protetor do clã, o seu espírito
guardião. Se, portanto, trata-se de um animal perigoso, presume-se que ele seja uma
ameaça apenas para os membros dos outros clãs; e, se essa expectativa não se cumpre, o
membro do clã ferido por um exemplar do totem é expulso do grupo.
O totem é ainda a insígnia do clã; ele é pintado ou tatuado no corpo
dos homens e representado nas armas que usam. Além disso, os membros do clã
totêmico chamam-se a si mesmos pelo nome do totem.
A filiação totêmica é transmitida pela linhagem materna, o que
significa que um homem pertence sempre ao mesmo clã totêmico que a sua mãe e as
suas irmãs. Há também o registro de casos em que o totem é herdado pela linhagem
masculina, porém, acredita-se que a descendência pela linhagem feminina seja mais
antiga.
O totemismo é caracterizado por dois tabus fundamentais. O primeiro
deles consiste na interdição “não matar o totem”, o que inclui ainda: não molestá-lo, não
tirar proveito dele, não comer a sua carne etc. Vê-se, portanto, que a relação entre o
totem e o clã é mutuamente benéfica: o totem protege os membros do clã; os membros
do clã comprometem-se a não matar nem causar sofrimento ao totem. Acredita-se que a
violação desse tabu seja punida com a morte, que, por sua vez, sobreviria através de
uma doença grave.
O segundo tabu fundamental que caracteriza o totemismo é o tabu da
endogamia, pelo qual os membros de um mesmo clã são rigorosamente proibidos de
manter relações sexuais entre si e, por extensão, de se casarem. Trata-se de uma ampla
restrição sexual: um homem não apenas não pode manter relações sexuais com a sua
mãe e com as suas irmãs; ele também não pode fazê-lo com quaisquer mulheres do seu
clã, mesmo com aquelas com as quais não tem nenhum vínculo de consanguinidade. A
interdição da endogamia está associada ainda a certos costumes de prevenção, as
evitações, que demonstram que os primitivos têm um horror ao incesto
excepcionalmente intenso. A violação do tabu da endogamia é punida com a morte,
nesse caso, imposta ao transgressor por todos os membros do clã.
Uma última característica notável do totemismo, assinalada por Smith,
é a chamada “refeição totêmica”. Esta consiste numa cerimónia pública, celebrada
periodicamente, via de regra, uma vez por ano, por todos os membros do clã. Durante a
refeição totêmica, os membros de um mesmo clã vestem-se à maneira do animal
totêmico, dançam e imitam o seu comportamento. A cerimônia compreende três atos.
Primeiro, o sacrifício: o animal totêmico é morto e devorado Ŕ cru, com ossos e carnes,
pele, sangue e entranhas Ŕ por todos os membros do clã. Em seguida, o luto: uma vez
morto e devorado, o animal totêmico é lamentado e pranteado. Finalmente, o festival:
uma orgia sagrada onde tudo é permitido, nomeadamente, as relações sexuais
endogâmicas. Em suma, a refeição totêmica anual é uma ruptura solene dos dois tabus
fundamentais do totemismo; exatamente aquilo que, em condições normais, está
severamente proibido para um indivíduo é praticado por todos nessa ocasião.
O primeiro desafio enfrentado por Freud é o de decifrar o significado
do totemismo. Os seus dois tabus fundamentais, a sua severidade, o fato de que, uma
vez por ano, sejam solenemente rompidos Ŕ o que dizer a respeito? O totem, qual é o
seu significado?
Quanto à primeira pergunta, Freud faz uma ponderação dificilmente
contestável. Onde há interdição, há desejo; só se proíbe o que se deseja praticar Ŕ do
contrário, a interdição seria injustificada, supérflua, desnecessária. Pode-se, contudo, ir
mais além e dizer: quanto mais rigorosa é a interdição, maior o desejo em jogo. A
severidade de uma proibição e a intensidade do desejo cuja realização se pretende
impedir são diretamente proporcionais.
Ora, o totemismo é caracterizado por dois tabus fundamentais,
duramente punidos em caso de transgressão, um dos quais cercado de uma série de
costumes de prevenção que visam a evitar, o mais possível, o risco de uma violação da
norma. Essa mesma norma é, não obstante, cerimonialmente rompida em festivais
periódicos. Pode-se, pois, suspeitar ou, mais do que isso, concluir que a atitude dos
primitivos em relação ao tabu da morte do animal totêmico e ao tabu das relações
sexuais endogâmicas é marcada pela ambivalência. Eles temem violá-los, mas, no
fundo, o que mais gostariam de fazer é justamente violá-los. Matar o animal totêmico e
manter relações sexuais com os membros do mesmo clã totêmico Ŕ devem ser esses os
desejos humanos mais antigos e poderosos.
A segunda pergunta, por sua vez, é: o totem, qual é o seu significado?
O animal totêmico, diz Freud, é o substituto do pai. Partindo da semelhança entre as
relações que as crianças e os primitivos estabelecem com os animais, Freud apresenta
em benefício dessa tese três casos clínicos de zoofobia infantil. Esses exemplos, vale
dizer, poderiam ser multiplicados indefinidamente. A zoofobia infantil é uma
psiconeurose muito comum entre as crianças. A sua principal manifestação, o seu
sintoma, é um medo acentuado de uma determinada espécie animal. A psicanálise tem
revelado, de uma forma quase invariável, que, nesses casos, opera-se um deslocamento
para os animais do medo que a criança tem do próprio pai. Não é difícil entender o
motivo desse deslocamento. No seio do complexo de Édipo, instaura-se uma relação de
rivalidade entre a criança e o pai na disputa pela preferência amorosa da mãe. Os
sentimentos da criança a respeito do pai são, assim, marcados pela ambivalência
emocional: o pai é, ao mesmo tempo, objeto de afeição e admiração, por um lado, e de
ódio e hostilidade, de outra parte. Na mesma medida em que é odiado e hostilizado, o
pai é também temido pela criança. Essa é uma situação dificilmente conciliável e que
requer alguma forma de solução. Esse conflito admite ser solucionado por meio de um
deslocamento dos sentimentos hostis e temerosos da criança para um substituto do pai.
Na zoofobia infantil, esse substituto é um animal. Freud acredita que, a exemplo da
fobia de animais em crianças, o animal totêmico Ŕ com o qual os primitivos têm uma
relação tão claramente ambivalente Ŕ é um substituto do pai. Aliás, eles mesmos dizem
isto: que são descendentes do seu animal totêmico, que ele é o antepassado, o ancestral
de todos os membros de um mesmo clã.
Podemos, agora, cruzar as respostas que demos às duas perguntas
acima formuladas. Se matar o animal totêmico e manter relações sexuais com os
membros do mesmo clã totêmico são os desejos humanos mais antigos e poderosos e se
o animal totêmico é um substituto do pai, então, “...les deux commandements majeurs
du totémisme, les deux prescriptions de tabou qui constituent son noyau...” [“...os dois
maiores mandamentos do totemismo, as duas prescrições de tabu que constituem o seu
núcleo...”] são exatamente aquelas que pretendem impedir “...les deux crimes d‟Œdipe,
qui tua son père et prit sa mère pour femme...” [“...os dois crimes de Édipo, que matou o
seu pai e desposou a sua mãe...”]326. Em suma, “...le système totémiste a résulté des
conditions du complexe d‟Œdipe” [“...o sistema totêmico é um produto das condições
do complexo de Édipo”]327.
Eis, portanto, o totemismo e o que ele significa. Dissemos, porém, que
o objetivo de Freud em “Totem e tabu” é decifrar o significado e a origem do
totemismo. O significado está dado. O que dizer da sua origem?
O problema da origem do totemismo remete-nos à seguinte questão:
se o totemismo é a primeira forma de organização social, moral e religiosa atravessada
por todos os povos, em que condições viveriam os primitivos antes do estabelecimento
desse regime? Freud responde a essa pergunta abraçando a hipótese da horda primeva.
Trata-se de uma hipótese formulada por Darwin a respeito dos agrupamentos de símios
superiores e que foi estendida por Atkinson aos agrupamentos de hominídeos. Algo
análogo pode ser observado nos rebanhos de bois e cavalos selvagens.
Segundo essa hipótese, a exemplo dos símios superiores Ŕ macacos
antropóides ou gorilas Ŕ, os primitivos viveriam em pequenos grupos, as hordas,
chefiadas por um macho mais velho, ciumento, violento e poderoso. Esse macho teria a
exclusividade de posse sexual de todas as fêmeas da horda, expulsando, castrando ou
matando os demais machos na medida em que passavam a representar uma ameaça para
ele.
O cenário está armado. Sabemos, agora, de que modo viviam os
primitivos antes da instauração do totemismo. Conhecemos já este último e sabemos
que ele é um produto das condições em jogo no complexo de Édipo. O que teria
acontecido na horda primeva capaz de resultar no sistema totêmico? Estamos no limiar
da hipótese fundamental de Freud sobre a origem da religião.
Sabemos que a cultura não ocupa, na obra de Freud, um lugar
secundário. Que, tratando-se de psicanalisar a cultura, a religião ocupa um lugar central
junto aos interesses de Freud. Que “Totem e tabu” representa a obra principal da crítica

326
FREUD, Totem et tabou. In: _______. Œuvres complètes, v.11, p.349.
327
FREUD, Totem et tabou. In: _______. Œuvres complètes, v.11, p.349.
freudiana da religião. Que o quarto ensaio de “Totem e tabu” contém o cerne dessa
obra. O foco pode ser fechado ainda mais.
Quinta seção do quarto ensaio de “Totem e tabu”. Freud anuncia uma
hipñtese “que pode parecer fantástica”328. Nono parágrafo. O âmago da interpretação
freudiana da origem da religião está aqui. Deixemos que Freud tome a palavra. Um
dia...
“Un jour, les frères expulsés se groupèrent, abattirent et
consommèrent le père...” [“Um dia, os irmãos expulsos se reuniram, abateram e
devoraram o pai...”]329.
“Prefácio a „Problemas de psicologia religiosa‟ de Theodor Reik”,
1919:

“...[le] chef de la horde originaire des hommes [...] a exercé son


pouvoir souverain jusqu‟au moment où ses fils s‟unirent pour
l‟abattre” [“...[o] chefe da horda primeva dos homens [...]
exerceu o seu poder soberano até o momento em que os seus
filhos se uniram para abatê-lo”]330.

“Psicologia das massas e análise do eu”, 1921: “Cette pluralité se


rassembla un jour, le tua et le dépeça” [“Essa turba se reúne um dia, o mata e o
despedaça”]331.
“Autoapresentação”, 1925: “...un jour, ses fils se rassemblèrent et,
ensemble, le terrassèrent, le mirent à mort et le consommèrent en commun...” [“...um
dia, os seus filhos se reuniram e, juntos, o abateram, o mataram e o devoraram...”]332.
“O homem Moisés e a religião monoteísta”, 1939: “...les frères
évincés [...] se liguèrent, terrassèrent le père et le dévorèrent tout cru...” [“...os irmãos
expulsos [...] se coligaram, abateram o pai e o devoraram todo cru...”] 333. E ainda: “...ce
système patriarcal prit fin dans un soulèvement des fils, qui s‟unirent contre le père, le

328
Cf. FREUD, Totem et tabou. In: _______. Œuvres complètes, v.11, p.360.
329
FREUD, Totem et tabou. In: _______. Œuvres complètes, v.11, p.360.
330
FREUD, Avant-propos à “Problèmes de psychologie religieuse” de Theodor Reik. In: _______. Œuvres
complètes, v.15, p.214-215.
331
FREUD, Psychologie des masses et analyse du moi. In: _______. Œuvres complètes, v.16, p.74.
332
FREUD, “Autoprésentation”. In: _______. Œuvres complètes, v.17, p.116.
333
FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.161.
terrassèrent et le consommèrent en commun” [“...esse sistema patriarcal teve fim num
levante dos filhos, que se uniram contra o pai, o abateram e juntos o consumiram”]334.
Eis o “big bang”335 da civilização! Para Freud, tudo teve início com
esse acontecimento, tudo começou a partir do crime primordial Ŕ o assassinato do pai
primevo:

“...cet acte criminel mémorable, par lequel tant de choses prirent


leur commencement, les organisations sociales, les restrictions
morales et la religion” [...esse ato criminoso memorável, pelo
qual tantas coisas tiveram o seu começo, as organizações
sociais, as restrições morais e a religião”]336.

O ponto está em que o pai primevo era objeto de sentimentos


ambivalentes por parte dos filhos. Ele era odiado por constituir-se para cada um deles
num obstáculo ao prazer e ao poder. Mas ele era também amado por eles. Admirado
como modelo, era o que todos aspiravam a ser. Desse modo, cometido o assassinato,
satisfeito o ódio, o amor pelo pai se fez sentir na forma de um remorso coletivo.
Esse remorso coletivo decorrente do assassinato do pai primevo gerou,
por sua vez, num só golpe, a primeira forma de organização social, as primeiras
restrições morais e Ŕ o que nos interessa Ŕ a primeira religião.
A organização social. Arrependidos, os irmãos selaram um acordo
entre si, uma espécie de contrato social, com base na igualdade de direitos.
Renunciaram coletivamente às mulheres que pertenciam ao pai, abriram mão da disputa
pelo lugar do chefe e, desse modo, instituiu-se o clã fraterno. Pode-se imaginar que,
durante algum tempo, antes que esse acordo fosse selado, os irmãos tenham disputado
entre si a condição de novo chefe da horda. Afinal, ao devorar o pai morto, cada um
deles acreditava ter adquirido parte da sua força, credenciando-se, assim, a substituí-lo.
Além do remorso, portanto, considera-se que motivos de ordem utilitária Ŕ o desejo de
evitar a guerra de todos contra todos, de pôr fim ao ciclo de disputa pelo lugar do chefe,
de viver em paz uns com os outros Ŕ possam ter concorrido para o estabelecimento do
pacto que gerou o clã fraterno.

334
FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.209.
335
Cf. ENRIQUEZ, De la horde à l‟État, p.42.
336
FREUD, Totem et tabou. In: _______. Œuvres complètes, v.11, p.361.
As restrições morais. Sob o peso do remorso, os irmãos passaram a
obedecer postumamente às leis do pai morto. Este, pelo mecanismo da obediência
tardia, tornou-se mais forte do que quando era vivo. Instituíram-se, desse modo, as duas
interdições inaugurais da cultura: não matar o totem Ŕ que é, como vimos, o substituto
do pai Ŕ e não possuir sexualmente as mulheres do clã Ŕ isto é, as mulheres do pai.
Quanto à primeira interdição, pode-se presumir que, ao longo do tempo, ela tenha se
estendido, passando de não matar o totem a não matar os irmãos, até atingir a fórmula
universal: “Não matarás” (cf. Dt 5,17; Ex 20,13). Quanto à segunda interdição, vale o
registro de que Freud percebeu, muito cedo, a sua importância para o estabelecimento
da cultura. Com efeito, já em 31 de maio de 1897, numa carta a Fließ, ele havia escrito:
“...o incesto é anti-social Ŕ a civilização consiste nessa renúncia progressiva”337.
A religião. O arrependimento coletivo levou os irmãos a mitificarem o
pai morto na figura do animal totêmico, a imagem embrionária de Deus, o que deu
origem ao totemismo. Pode-se supor que, mais tarde, muito mais tarde, o pai tenha
recuperado, na figura dos deuses, a sua aparência humana. A mitificação do pai,
portanto, gerou o totem; a subsequente deificação do totem, por sua vez, resultou na
ideia de Deus.
Observe-se que o totemismo é fundamentalmente um pacto com o pai,
pelo qual os membros de um mesmo clã totêmico comprometem-se a não matar, ferir ou
causar sofrimento ao animal totêmico, o seu substituto. Este, em troca, promete
proteção, cuidado e indulgência. A religião é um movimento de reconciliação com o
pai. Cultuar o totem é uma maneira de amar o pai morto. É como se fosse uma promessa
de nunca mais repetir o ato homicida. A “religião”, quem vem de “religare”, seria, pois,
uma forma de “religação” ao pai morto pela obediência pñstuma à sua vontade.
Note-se, porém, que a ambivalência afetiva que caracterizava a
relação dos filhos com o chefe da horda é herdada pela relação que eles estabelecem
com o animal totêmico. Com efeito, em condições normais, a vontade do pai é
respeitada por meio da observância das duas interdições fundamentais do totemismo. A
refeição totêmica, no entanto, o mais antigo festival da humanidade, consiste
precisamente numa comemoração do assassinato do pai primevo. A religião totêmica é,
desse modo, um pacto com o pai, porém, com um pai com o qual se tem uma relação
337
MASSON, A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess – 1887-1904, p.253;
ver também: FREUD, Trois essais sur la théorie sexuelle. In: _______. Œuvres complètes, v.6, p.164.
ambivalente. Ao mesmo tempo em que ela expressa o remorso dos filhos e as suas
tentativas de expiação, ela compreende a recordação triunfal da vitória sobre o pai.
Do que foi dito acima, queremos reter aquela que nos parece ser a tese
central de Freud sobre a origem do totemismo e, por extensão, de todas as religiões:

“La religion totémique avait découlé de la conscience de


culpabilité des fils en tant que tentative pour apaiser ce
sentiment et se concilier, par l‟obéissance après coup, le père
offensé. Toutes les religions ultérieures se révèlent être des
tentatives de solution du même problème, [...] elles ont toutes le
même but et sont des réactions à ce grand événement par lequel
la culture a commencé et qui depuis ne permet pas à l‟humanité
d‟accéder au repos” [“A religião totêmica decorreu da
consciência de culpabilidade dos filhos enquanto tentativa de
apaziguar esse sentimento e de reconciliação com o pai ofendido
por meio de uma obediência tardia. Todas as religiões ulteriores
se revelaram tentativas de solução do mesmo problema, [...] elas
têm todas o mesmo objetivo e são reações a esse grande
acontecimento pelo qual a cultura começou e que, desde então,
não concedeu mais à humanidade um momento de
descanso”]338.

Em “O homem Moisés e a religião monoteísta”, Freud procurou


demonstrar que essa tese estende-se à origem do monoteísmo judaico. A aplicação dela
ao cristianismo, porém, não precisou esperar tanto tempo: ela pode ser encontrada já em
“Totem e tabu”.
Com efeito, segundo Freud, o pecado original de que se acusam os
cristãos nada mais é do que o assassinato do pai primevo; e a celebração eucarística,
cerne de toda a liturgia da Igreja Católica, é o equivalente da refeição totêmica, que, por
sua vez, é a comemoração do assassinato do pai primevo. Vejamos.
Freud observa que o pecado original, segundo os cristãos, foi um
pecado cometido contra Deus Pai no alvorecer da história humana. Esse pecado foi, por
sua vez, redimido pelo sacrifício de uma vida humana, mais exatamente, pelo sacrifício
da vida do Filho, aquele que tomou sobre si toda a responsabilidade pelo pecado
original e ofereceu, com a sua morte de cruz, um sacrifício expiatório capaz de redimir
todo o gênero humano. Ora, argumenta Freud, segundo a lei de talião (cf. Dt 19,21; Ex

338
FREUD, Totem et tabou. In: _______. Œuvres complètes, v.11, p.364.
21,23-25; Lv 24,17-20), somente um assassinato pode exigir, como forma de expiação,
o sacrifício de uma outra vida. E, se o pecado em questão foi cometido contra o Pai,
trata-se, então, do assassinato do pai primevo.
O cristianismo é, desse modo, como o totemismo e as demais
religiões, uma tentativa de apaziguar o sentimento de culpa relativo ao assassinato do
pai primevo. Ocorre que a relação dos homens com o pai está marcada
irremediavelmente pela ambivalência afetiva. No cristianismo, não poderia ser
diferente. De fato, no mesmo ato pelo qual o Filho oferece ao Pai uma satisfação
expiatória, ele próprio, o Filho, se torna Deus, ao lado, ou, mais exatamente, no lugar do
Pai. O cristianismo é, assim, diferentemente do judaísmo, uma religião filial, uma
religião na qual o Filho tomou o lugar do Pai. A mesma ambivalência afetiva que
caracteriza o complexo paterno pode ser ainda registrada no ressurgimento da refeição
totêmica, comemoração do assassinato do pai, sob a forma da eucaristia cristã. A
diferença está em que a refeição totêmica significa a manducação do pai morto, ao
passo que a eucaristia cristã é a devoração daquele que tomou o seu lugar, o Filho.
Freud conclui “Totem e tabu” assinalando a existência de dois
problemas de difícil solução. O primeiro deles pode ser assim formulado: de que
maneira a memória do assassinato do pai primevo e o consequente sentimento de culpa
teriam sido transmitidos para as gerações seguintes? Para garantir a persistência dos
efeitos do sentimento de culpa decorrente do parricídio, é absolutamente necessário que
essa transmissão aconteça. E a comunicação direta e a tradição apenas seriam
insuficientes para tanto.
Não sem alguma hesitação, Freud se vê obrigado a admitir a
existência de uma mente coletiva. Esta seria o veículo por meio do qual os traços de
memória do crime primordial seriam transmitidos de uma geração para outra. Todos
padeceriam, assim, de um sentimento de culpa arcaico e inconsciente, que não precisa
ser adquirido, mas tão somente despertado.
O segundo problema admite ser assim formulado: o assassinato do pai
primevo foi, de fato, cometido ou basta que tenha sido desejado, pensado, fantasiado? A
pergunta não é sem motivo. Afinal, no âmbito clínico, uma das principais conquistas da
psicanálise foi descobrir que, nas neuroses, a realidade psíquica prevalece sobre a
realidade concreta. Ou seja, os neuróticos sentem-se culpados Ŕ e produzem sintomas
em decorrência disso Ŕ não tanto pelo que fizeram, mas pelo que desejaram, pensaram e
fantasiaram fazer.
Freud observa, contudo, que, na neurose, o pensamento substitui o ato,
uma vez que os neuróticos são, sobretudo, inibidos em suas ações. Os primitivos, ao
contrário, são desinibidos; neles, o pensamento converte-se diretamente em ação. O
assassinato do pai primevo não foi, por conseguinte, um desejo, um pensamento ou uma
fantasia; o crime primordial, de fato, aconteceu. Freud termina “Totem e tabu” citando
Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832): “Au commencement était l‟acte” [“No
princípio, foi o ato”]339. Poder-se-ia acrescentar: sim, o assassinato.
Em “Atos obsessivos e exercícios religiosos”, Freud demonstrou a
existência de uma série de semelhanças entre os costumes devotos do homem religioso
e os cerimoniais sintomáticos do neurótico obsessivo. Vimos que essas semelhanças não
são apenas superficiais, que elas não concernem apenas aos modos de expressão,
incluindo, na verdade, a dinâmica dos processos, a motivação subjacente e os
mecanismos acionados. Com “Totem e tabu”, Freud vai ainda mais longe ao demonstrar
que, não bastando a analogia estrutural entre neurose e religião, também a origem de
ambas é a mesma. O livro de Freud sobre o totemismo é, desse modo, uma continuação
e uma radicalização da sua intuição inicial sobre o caráter neurótico da religião.

“O futuro de uma ilusão”

Freud escreveu “O futuro de uma ilusão” já idoso, aos 70 anos de


idade, e doente, padecendo de um câncer na boca que não vinha cedendo ao tratamento.
Numa situação em que a maioria das pessoas procuraria o consolo da religião, ele se
debruçou sobre as crenças religiosas a fim de, mais uma vez e, agora, sob um novo
título, questioná-las340.
Se não é a principal obra da interpretação freudiana da religião, “O
futuro de uma ilusão” é indiscutivelmente o segundo texto em importância. Ele inaugura
uma nova abordagem do fenómeno religioso, continuada em “Sobre uma visão do
mundo”, antes que, com “O homem Moisés e a religião monoteísta”, Freud retomasse a
vertente melhor representada por “Totem e tabu”.
339
FREUD, Totem et tabou. In: _______. Œuvres complètes, v.11, p.382.
340
Cf. ROCHA, O deus de Freud. Estudos de psicanálise, n.14, p.70-71.
Neste último, como vimos, Freud estava particularmente interessado
na origem da ideia de Deus, e ele a fez remontar ao remorso decorrente da ambivalência
afetiva a respeito do pai. Em “O futuro de uma ilusão”, a atenção de Freud desloca-se
para o problema das crenças religiosas de um modo geral. As funções sociais dessas
crenças, o seu caráter ilusório, o problema da sua origem e uma estimativa a respeito do
futuro que as espera, são esses os temas principais de “O futuro de uma ilusão”.
Segundo Freud, a principal função das crenças religiosas é auxiliar a
cultura a cumprir o seu papel. Antes, portanto, de enumerarmos as funções específicas
dessas crenças, precisamos compreender o que Freud entende por “cultura” e de que
maneira ele concebe o seu papel.
Freud não faz distinção entre “cultura” e “civilização”. Por “cultura”
ou “civilização”, ele entende aquilo em que a vida humana difere da vida dos animais,
sobrepujando esta última. Por um lado, isso inclui todo o conhecimento acumulado e
toda a tecnologia adquirida com o objetivo de controlar a natureza e dela extrair o
necessário para a satisfação das necessidades humanas. De outra parte, compreende
também o conjunto dos regulamentos requeridos para o ajuste das relações dos homens
entre si.
Freud concebe a natureza como uma realidade inóspita, ameaçadora,
hostil. Diante dela, o ser humano sente-se fraco, impotente, desamparado. O cenário é
tal que, tomados isoladamente, os homens dificilmente seriam capazes de sobreviver.
Precisamente para fazer face aos perigos com que a natureza os ameaça, os seres
humanos se uniram, multiplicaram as suas forças e estabeleceram a cultura. A primeira
tarefa da civilização é, pois, defender o homem da natureza hostil.
Acontece que a sociedade humana cumpre essa missão de um modo
um tanto insatisfatório. Temos motivos para crer que, com os progressos da ciência, o
controle da natureza tornar-se-á cada vez mais eficaz. Ainda assim, seria uma
expectativa ilusória acreditar que, um dia, o homem conseguirá submetê-la
inteiramente.
Acrescente-se que a civilização cobra dos indivíduos um alto preço
em troca dos benefícios que lhes propicia. Por um lado, os homens não são dados
espontaneamente ao trabalho, e, de outra parte, são dotados de tendências anti-sociais. A
cultura se erige, pois, sobre a coerção e a renúncia pulsional. O pesado fardo de
sacrifício pulsional que a vida comunal exige faz com que cada ser humano seja
virtualmente um inimigo da civilização. Esta precisa, pois, ser defendida do indivíduo.
E tal defesa se opera através de medidas de coerção Ŕ regulamentos, instituições e
ordens Ŕ e por meio de outras medidas destinadas a reconciliar os homens com a
cultura, oferecendo-lhes uma compensação pelos sacrifícios que ela lhes impõe. Entre
as medidas destinadas a tornar as coisas um pouco mais toleráveis, medidas que têm o
caráter de satisfações substitutivas, Freud menciona os ideais culturais, a arte e as
crenças religiosas. Estas prestam aos indivíduos três serviços:

“...exorciser les effrois de la nature, réconcilier avec la cruauté


du destin Ŕ en particulier tel qu‟il se montre dans la mort Ŕ et
dédommager des souffrances et privations qui sont imposées à
l‟homme par la vie en commun dans la culture” [“...exorcizar os
terrores da natureza, reconciliar com a crueldade do destino Ŕ
em particular, tal como ele se revela na morte Ŕ e compensar os
sofrimentos e privações que são impostos ao homem pela vida
em comum na cultura”]341.

A essa terceira missão, acrescente-se ainda a legitimação dos preceitos


culturais, o que se consegue por meio da atribuição de uma origem divina aos
regulamentos de que depende a vida comunal.
As ideias religiosas que Freud tem em mente podem ser assim
resumidas: a vida presente está orientada para um objetivo elevado, a elevação da alma.
Neste mundo, tudo o que ocorre é expressão da vontade de uma inteligência superior
que a tudo encaminha para o melhor. Uma providência benevolente vela sobre cada ser
humano, protegendo-o das forças superiores da natureza hostil. A morte não é o fim,
porém, o começo de uma nova forma de existência. Os preceitos ensinados pelas
religiões expressam a vontade de Deus e, por isso, devem ser observados. Ao final, todo
o bem praticado será recompensado; e todo o mal, punido. Por fim, todos os sofrimentos
do tempo presente estão destinados a desaparecer.
Mas qual é a natureza dessas crenças? Segundo Freud, elas são ilusões
porque, além de servir aos interesses da cultura, elas realizam uma série de desejos
humanos. É importante precisar, pois, o que Freud entende por “ilusão”, uma vez que
ele está introduzindo um novo termo em sua interpretação do fenômeno religioso. Além

341
FREUD, L‟avenir d‟une illusion. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.158.
de ter um caráter neurótico Ŕ e isso Freud afirmou há 20 anos, em “Atos obsessivos e
exercícios religiosos” Ŕ, a religião tem uma natureza ilusória.
Uma ilusão, para Freud, não é a mesma coisa que um erro. Crer que os
insetos se desenvolvem a partir do esterco, como o fez Aristóteles (384 a.C. - 322 a.C.),
não é uma ilusão, é um erro. A crença de Cristóvão Colombo (1451-1506) de que havia
descoberto uma nova rota marítima para as Índias, por sua vez, é uma ilusão, mais do
que um erro. Por que razão? Porque Colombo desejava encontrar um novo caminho
para as Índias. O específico da ilusão, portanto, é o fato de derivar dos desejos humanos.
Uma crença ilusória é uma crença motivada pelo desejo.
Tomemos, por exemplo, a mais fundamental de todas as crenças
religiosas: a crença na onipotência e na benevolência de Deus Pai, ou seja, a crença num
Deus plenamente capaz de proteger e, de fato, propenso a fazê-lo. A origem dessa
crença pode ser encontrada no sentimento de desamparo infantil e no desejo de proteção
que dele decorre. Toda criança pequena sente-se desamparada. Percebendo-se, assim,
tão desarmada, tão impotente, tão incapaz de fazer face aos desafios com que se
defronta, é compreensível que a criança deseje encontrar alguém que a proteja. A mãe
costuma ser a primeira a ocupar esse lugar. Contudo, segundo Freud, nessa função de
proteger, a mãe é, muito cedo, substituída pelo pai, que é mais forte. O pai é idealizado
pela criança, mas o tempo passa, o indivíduo percebe que o seu pai não é aquela figura
idealizada que ele imaginara e, já adulto, se dá conta de que está fadado a permanecer
uma criança desamparada para sempre. Incapaz de dispensar a proteção outrora
desfrutada, o indivíduo abraça a crença na existência de Deus, isto é, em alguém capaz
de aliviá-lo do intolerável sentimento de desamparo, debilidade e fraqueza diante da
vida.
Freud sabe que está sugerindo uma segunda teoria sobre a origem da
ideia de Deus. Com efeito, numa certa altura, o oponente imaginário que ele criou para
si mesmo em “O futuro de uma ilusão” contra-argumenta:

“Vous avez bien déjà traité dans le passé de l‟origine de la


religion dans votre livre „Totem et tabou‟. Mais là, il en va
autrement. C‟est le rapport fils-père qui est tout, Dieu est le père
exalté, la désirance pour le père est la racine du besoin religieux.
Depuis, semble-t-il, vous avez découvert ce facteur que sont
l‟impuissance et le désaide humains, auquel est bien attribué en
général le rôle principal dans la formation de la religion, et voici
que vous transposez en termes de désaide tout ce qui était
antérieurement complex paternel” [“No passado, você já tratou
da origem da religião, em seu livro „Totem e tabu‟. Mas, lá, ela
foi colocada de outra forma. Lá, o relacionamento filho-pai é
tudo, Deus é o pai exaltado, o anseio pelo pai é a raiz da
necessidade religiosa. Mais tarde, ao que parece, você descobriu
esse fator da impotência e do desamparo humanos, ao qual é
atribuído, de uma forma geral, o papel principal na formação da
religião, e eis que você transpõe em termos de desamparo tudo o
que anteriormente era complexo paterno”]342.

Freud se desvencilha dessa aparente contradição alegando que o


remorso decorrente da ambivalência afetiva a respeito do pai corresponde aos motivos
mais profundos da origem da ideia de Deus, ao passo que o desamparo e a necessidade
de proteção constituem-se nos seus motivos manifestos343. Observe-se, em todo caso,
que ambas as explicações convergem, sim, para o complexo paterno, seja como remorso
pela hostilidade contra o pai, seja como nostalgia do pai protetor. Ou seja, as duas
hipóteses não se contradizem, mas se harmonizam entre si.
Seja como for, tratando-se dessa segunda hipótese, é fácil ver como a
crença num Deus Pai onipotente e benevolente atende “de chapa” a um desejo que pulsa
no mais profundo do coração humano. Daí o seu caráter ilusório. O mesmo pode-se
afirmar das demais crenças religiosas:

“Du fait que la Providence divine gouverne avec bienveillance,


l‟angoisse devant les dangers de la vie est apaisée, l‟instauration
d‟un ordre moral du monde assurant l‟accomplissement de
l‟exigence de justice si souvent demeurée inaccomplie au sein
de la culture humaine; le prolongement de l‟existence terrestre
par une vie future y adjoint le cadre spatial et temporel dans
lequel ces accomplissements de souhait sont censés s‟effectuer”
[“O governo benevolente da divina providência apazigua a
angústia face aos perigos da vida; a instauração de uma ordem
moral mundial assegura o cumprimento da exigência de justiça,
que tão frequentemente não se realiza no seio da cultura
humana; o prolongamento da existência terrestre por meio de
uma vida futura fornece a moldura espacial e temporal em que
estima-se que essas realizações de desejo acontecerão”]344.

342
FREUD, L‟avenir d‟une illusion. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.162-163.
343
Cf. FREUD, L‟avenir d‟une illusion. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.164.
344
FREUD, L‟avenir d‟une illusion. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.171.
O mesmo pode-se dizer das respostas que a religião oferece aos
enigmas da existência humana. Tudo isso é a realização inegável dos mais “antigos,
fortes e prementes” desejos da humanidade345.
Freud não pode provar que essas crenças sejam falsas: as doutrinas
religiosas são insuscetíveis de prova; assim como não podem ser provadas, também não
podem ser refutadas. Mas ele se sente no direito de suspeitar delas. As crenças religiosas
são suspeitas por que estão excessivamente de acordo com os desejos humanos. Os
“contos de fadas”346 da religião, diz Freud, devem ser abandonados:

“...l‟infantilisme est destiné à être surmonté, n‟est pas? L‟être


humain ne peut pas rester éternellement enfant, il faut qu‟il
finisse par sortir à la rencontre de la „vie hostile‟. Il est permis
d‟appeler cela „l‟éducation à la réalité‟. Ai-je besoin de vous
révéler encore que le seul dessein de mon écrit est d‟attirer
l‟attention sur la nécessité de ce progrès ?” [“...o infantilismo
está destinado a ser superado, não é? O ser humano não pode
permanecer uma criança para sempre, é preciso que ele, por fim,
saia ao encontro da „vida hostil‟. Pode-se chamar a isso de
„educação para a realidade‟. Preciso ainda revelar-lhe que o
único propósito deste meu escrito é chamar a atenção para a
necessidade desse avanço?”]347.

Mais do que um desejo de Freud, isso é, para ele, uma previsão, uma
estimativa sobre o destino inexorável da religião. Para fundamentar a sua expectativa,
Freud retoma a analogia entre a religião e a neurose, mais especificamente, entre a
religião e as neuroses de crescimento. A clínica psicanalítica revela que o
desenvolvimento da criança é, muitas vezes, marcado por uma fase neurótica, isto é, por
uma neurose de crescimento. Normalmente, essas neuroses infantis desaparecem de
uma forma espontânea com o próprio curso do crescimento, e isso é particularmente
verdadeiro a respeito das neuroses obsessivas de que as crianças padecem.
Analogamente, sugere Freud, pode-se supor que, ao longo da história, a humanidade em
seu conjunto tenha caído vítima de estados comparáveis às neuroses.

345
Cf. FREUD, L‟avenir d‟une illusion. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.170.
346
Cf. FREUD, L‟avenir d‟une illusion. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.170.
347
FREUD, L‟avenir d‟une illusion. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.190.
“La religion serait la névrose de contrainte universelle de
l‟humanité; comme celle de l‟enfant, elle serait issue du
complexe d‟Œdipe, de la relation au père. Selon cette
conception, il serait à prévoir que se détourner de la religion doit
s‟effectuer avec la fatale inexorabilité d‟un processus de
croissance et que nous nous trouvons aujourd‟hui même au beau
milieu de cette phase de développement” [“A religião seria a
neurose obsessiva universal da humanidade; como a neurose
obsessiva da criança, ela seria resultante do complexo de Édipo,
da relação com o pai. Segundo essa concepção, seria de se
prever que o afastamento da religião deve acontecer com a fatal
inexorabilidade de um processo de crescimento e que nós nos
encontramos, hoje, justamente no meio dessa fase de
desenvolvimento”]348.

Para dizê-lo de outro modo:

“...la religion est comparable à une névrose d‟enfance, [...]


l‟humanité surmontera cette phase névrotique, comme tant
d‟enfants dépassant, en grandissant, leur névrose qui est
similaire” [“...a religião é comparável a uma neurose da
infância, [...] a humanidade superará essa fase neurótica, como
tantas crianças, ao crescerem, superam as suas neuroses, que são
similares”]349.

Descartada a religião, porém, coloca-se uma pergunta: quem ou o que


passaria a desempenhar as funções que ela realiza? Em “O futuro de uma ilusão”, Freud
supõe que, desaparecida a religião, a ciência assumiria as suas funções.
Naturalmente, algumas das tarefas que a religião propõe-se a cumprir
estariam destinadas a ficar sem quem as pudesse assumir. Por exemplo, compensar os
homens pelos sofrimentos da vida presente com a promessa da felicidade vindoura,
solucionar o problema colocado pela morte acenando para a vida eterna e garantir a
realização final da justiça com a promessa de que, na vida futura, os virtuosos serão
recompensados e os iníquos, punidos. Os seres humanos precisarão aprender a suportar
com resignação aquelas coisas contra as quais não há remédio.
Contudo, outras das funções atribuídas à religião poderiam ser
assumidas pela própria cultura, embora de um modo muito menos pretensioso. A
primeira função da religião, como vimos, consiste em proteger o homem da hostilidade
348
FREUD, L‟avenir d‟une illusion. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.184.
349
FREUD, L‟avenir d‟une illusion. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.194.
da natureza. Ora, argumenta Freud, com os progressos da ciência, a sociedade humana
já tem feito isso muito bem, tendendo a fazê-lo com cada vez mais eficiência.
Também compete à religião fornecer respostas aos enigmas da
existência humana. Para Freud, porém, a única via de conhecimento da realidade de que
dispomos é aquela aberta pela investigação científica. Veremos em “Sobre uma visão do
mundo” que a ciência não tem a aspiração de produzir um sistema de pensamento tão
abrangente quanto aquele oferecido pelas religiões. Teremos, pois, que nos contentar
com menos.
Outra das funções encampadas pela religião é a legitimação dos
preceitos da civilização por meio da sacralização da sua origem. Descartando a sua
pretensa procedência divina, Freud advoga que é preciso reconhecer que os ditames e
interdições culturais têm um fundamento social, servem ao bem comum, têm motivos
racionais. As prescrições e proibições sociais devem, pois, ser observadas não porque
Deus o quer, mas porque é do interesse de todos que seja assim. Além de ser mais
honesto, admitir a origem puramente humana da moral terá a vantagem inegável de
torná-la menos rígida e mais adaptável.
Em suma, começamos a nossa exposição sobre “O futuro de uma
ilusão” afirmando que as crenças religiosas auxiliam a civilização a cumprir o seu papel.
Chegamos, pois, à conclusão de que a cultura pode perfeitamente passar sem elas, desde
que possa contar com o auxílio da ciência, cujo poder é crescente.
Freud termina o seu texto reiterando a sua profissão de fé nos poderes
da ciência. Ele admite que:

“...notre Dieu Λόγος n‟est peut-être pas vraiment tout-puissant,


peut-être ne peut-il accomplir qu‟une petite partie de ce que ses
prédécesseurs ont promis” [“...nosso Deus Logos talvez não seja
verdadeiramente todo poderoso, talvez não possa cumprir senão
uma pequena parte do que os seus predecessores
prometeram”]350.

Mas Freud acalenta a esperança de que o progresso da ciência


aumentará, mais e mais, o poder dos homens, de modo a tornar cada vez mais
dispensável o recurso às ilusões religiosas.

350
FREUD, L‟avenir d‟une illusion. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.196.
Contudo, essa crença de Freud, não será ela uma ilusão? Freud encerra
a sua brochura com uma sentença lapidar:

“Non, notre science n‟est pas une illusion. Mais ce serait une
illusion de croire que nous pourrions recevoir d‟ailleurs ce
qu‟elle ne peut nous donner” [“Não, nossa ciência não é uma
ilusão. Ilusão seria acreditar que podemos conseguir em outro
lugar o que ela não nos pode dar”]351.

“Sobre uma visão do mundo”

“Sobre uma visão do mundo [Weltanschauung]” é o título do último


capítulo da “Nova sequência de lições de introdução à psicanálise”. Durante a Primeira
Guerra Mundial, Freud proferiu uma série de conferências na Universidade de Viena
intituladas “Lições de introdução à psicanálise”. Entretanto, ao longo dos anos 20,
muitos elementos da teoria psicanalítica passaram por uma revisão. A teoria das pulsões
foi revolucionada, uma nova descrição do aparelho psíquico foi concebida, o modo de
se compreender o complexo de Édipo feminino sofreu alterações, e uma nova teoria da
ansiedade foi formulada. As conferências da “Nova sequência de lições de introdução à
psicanálise” foram, portanto, escritas com o intento de atualizar o leitor a respeito dos
progressos da teoria psicanalítica.
A conferência intitulada “Sobre uma visão do mundo” aborda
diretamente, embora não exclusivamente, o problema da religião. Ora, tratando-se dessa
questão, o principal texto produzido por Freud ao longo da década de 20 é,
indiscutivelmente, “O futuro de uma ilusão”. Por isso, a última conferência da “Nova
sequência de lições de introdução à psicanálise” consiste numa retomada das teses
principais desse texto.
No dia 16 de fevereiro de 1929, numa carta endereçada a Pfister,
Freud escreveu:

“...l‟analyse n‟amène pas à une nouvelle conception du monde.


Elle n‟a pas besoin de cella, car elle repose sur la conception
scientifique générale du monde, avec laquelle la conception
religieuse reste incompatible” [“...a análise não leva a uma nova

351
FREUD, L‟avenir d‟une illusion. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.197.
concepção do mundo. Ela não precisa disso, pois ela repousa
sobre a concepção do mundo científica geral, com a qual a
concepção religiosa permanece incompatível”]352.

Essa declaração é um resumo do texto que pretendemos apresentar


nesta seção.
O termo “Weltanschauung” é um conceito alemão que as expressões
“visão de mundo”, “cosmovisão” ou “mundivisão” traduzem de forma aproximada.
Freud o definiu da seguinte maneira:

“...une vision du monde [Weltanschauung] est une construction


intellectuelle qui résout de façon unitaire tous les problèmes de
notre existence à partir d‟une hypothèse subsumante, dans
laquelle par conséquent aucune question ne reste ouverte, et où
tout ce qui retient notre intérêt trouve sa place déterminée. Il est
aisé de comprendre que la possession d‟une telle vision du
monde est l‟un des souhaits idéaux des hommes. En croyant en
elle, on peut se sentir en sécurité dans la vie, savoir ce à quoi on
doit aspirer, comment on peut, de la manière la plus appropriée,
assigner une place à ses affects et à ses intérêts” [“...uma visão
do mundo é uma construção intelectual que resolve de uma
forma unitária todos os problemas da nossa existência a partir de
uma hipótese compreensiva, na qual, por conseguinte, nenhuma
questão fica aberta e onde tudo o que nos interessa encontra o
seu lugar determinado. É fácil compreender que a posse de uma
tal visão do mundo é um dos desejos ideais dos homens. Crendo
nela, é possível sentir-se em segurança na vida, saber a que se
deve aspirar e como atribuir um lugar aos seus afetos e aos seus
interesses da maneira mais adequada”]353.

Definido o conceito de “Weltanschauung”, a pergunta que se coloca é


a seguinte: a teoria psicanalítica, por si mesma, é capaz de construir ou de se constituir
em uma Weltanschauung? A resposta de Freud é taxativa: não, a psicanálise é um ramo
da psicologia Ŕ é a psicologia profunda ou psicologia do inconsciente Ŕ e pertence, pois,
ao campo da ciência. Como disciplina científica, a psicanálise é incapaz de construir
uma Weltanschauung própria, cabendo-lhe aceitar a Weltanschauung científica. Esta,
por sua vez, mal merece esse nome, uma vez que é muito incompleta, não sendo capaz

352
FREUD, Correspondance avec le pasteur Pfister 1909-1939, p.186.
353
FREUD, Nouvelle suite des leçons d‟introduction à la psychanalyse. In: _______. Œuvres complètes,
v.19, p.242.
de a tudo abranger. Freud pondera que a ciência é uma atividade muito recente na
história humana e parece acalentar a esperança de que, com o tempo, ela possa produzir
uma Weltanschauung realmente digna desse nome. O fato, porém, é que, por enquanto,
em se podendo falar de uma “Weltanschauung científica”, trata-se de uma
Weltanschauung muito pobre.
Situada a Weltanschauung científica, da qual participa a psicanálise,
Freud se volta para outras três formas de Weltanschauungen: a arte, a filosofia e a
religião. Essas três formas de Weltanschauungen são incompatíveis com a
Weltanschauung científica. Contudo, entre as três potências que podem competir com a
ciência, Freud considera que “...seule la religion est l‟ennemi sérieux” [“...o inimigo
sério é somente a religião”]354. A arte, via de regra, é inofensiva ou mesmo benfazeja. A
filosofia é animada pelo projeto de abarcar o todo, de construir sistemas de pensamento
capazes de abranger a totalidade das coisas. Essa aspiração é ilusória. Mas trata-se de
uma ilusão acalentada por uma pequena elite de intelectuais; a grande massa da
humanidade não toma parte dela. A religião, por sua vez, “...est une puissance énorme
qui dispose des plus fortes émotions des hommes” [“...é um poder enorme que dispõe
das mais fortes emoções dos homens”]355.
Na sequência, Freud passa a uma interpretação do fenômeno religioso
que acrescenta pouco ou nada ao que ele já havia assentado em “O futuro de uma
ilusão”. Segundo Freud, a crença religiosa deve a sua origem ao desamparo infantil.
Durante a infância, sentindo-se desamparada, a criança encontra no pai a proteção e a
segurança de que necessita. Com o amadurecimento, porém, o indivíduo percebe que o
seu pai não é o ser dotado dos poderes ilimitados que ele imaginara. Ou seja, embora
adulto, ele se encontra tão desamparado e desprotegido como se achava na sua
meninice. Como, porém, não pode passar sem a proteção de que gozava quando
pequeno, o indivíduo:

“...remonte à l‟image mnésique du père de l‟époque enfantine,


tellement surestimé par lui; il élève celle-ci au rang de divinité et
lui fait prendre place dans le présent et dans la réalité”

354
FREUD, Nouvelle suite des leçons d‟introduction à la psychanalyse. In: _______. Œuvres complètes,
v.19, p.244
355
FREUD, Nouvelle suite des leçons d‟introduction à la psychanalyse. In: _______. Œuvres complètes,
v.19, p.245.
[“...retorna à imagem mnésica do pai da época infantil, tão
superestimada por ele; ele eleva essa imagem à condição de
divindade, dando-lhe um lugar no presente e na realidade”]356.

A crença em Deus é, pois, sustentada pela força afetiva da imagem


mnésica do pai e pela atualidade da necessidade de proteção. Essa crença é tida como
uma ilusão na medida em que consiste na realização de impulsos plenos de desejos. De
fato, crer que Deus existe nada mais é do que crer que, ao desejo humano de segurança
e proteção, corresponde um ser real capaz de atendê-lo.
Quanto ao que a religião promete fazer pelos seres humanos, Freud
destaca três benefícios:

“Elle leur donne des informations sur la provenance et


l‟apparition du monde, elle leur assure protection et bonheur
final dans les vicissitudes de la vie et elle dirige leurs opinions et
leurs actions par des précepts qu‟elle soutient avec toute son
autorité” [“Ela lhes dá informações sobre a proveniência e a
aparição do mundo, ela lhes assegura proteção e felicidade final
nas vicissitudes da vida e ela dirige as suas opiniões e ações por
meio de preceitos que sustenta com toda a sua autoridade”]357.

A primeira das três funções da religião satisfaz a necessidade que o


homem tem de conhecimento por meio de uma cosmogonia. A segunda tranquiliza o ser
humano diante dos altos e baixos da vida, garantindo-lhe conforto na desventura e um
final feliz. E a terceira estabelece os preceitos, as proibições e as restrições de que
depende o convívio social. Observe-se que os três aspectos da religião acima
mencionados correspondem pontualmente às três funções desempenhadas pelo pai Ŕ ou
pelos pais Ŕ na infância de qualquer pessoa. Informar, proteger e educar: eis o que
compete ao pai Ŕ ou aos pais Ŕ; eis também o que os crentes esperam que Deus faça.
A religião pode também ser comparada a uma neurose de crescimento:
ela faz lembrar as neuroses pelas quais muitos indivíduos passam em sua transição da

356
FREUD, Nouvelle suite des leçons d‟introduction à la psychanalyse. In: _______. Œuvres complètes,
v.19, p.247.
357
FREUD, Nouvelle suite des leçons d‟introduction à la psychanalyse. In: _______. Œuvres complètes,
v.19, p.245.
infância rumo à maturidade. Essa transição, porém, precisa consumar-se: “...le monde
n‟est pas une chambre d‟enfants” [“...o mundo não é um dormitñrio de crianças”]358.
Freud observa que, com o desenvolvimento do espírito científico, os
homens começaram a ousar tratar a religião como um assunto humano, entre outros,
submetendo-a a um exame crítico. A religião, contudo, tem reagido fortemente contra
essa audácia. Ela estabeleceu a proibição do pensamento justamente para assegurar a
sua sobrevivência. Segundo Freud, porém, a religião não tem o direito de se subtrair
desse comparecimento junto ao tribunal da razão.
Freud está convencido de que o resultado inevitável da investigação
científica da religião é o desmoronamento da Weltanschauung religiosa. Sobre os
escombros do discurso religioso, erguer-se-á um edifício muito mais modesto, sem
dúvida. Seja como for, quando isso acontecer, a humanidade terá dado um passo
gigantesco em direção da maturidade.
Em suma, a psicanálise não se pretende uma Weltanschauung;
compete-lhe acolher a Weltanschauung científica, que, na verdade, mal merece esse
nome; a Weltanschauung científica é incompatível com a Weltanschauung religiosa; e a
Weltanschauung científica está destinada a prevalecer sobre a Weltanschauung
religiosa.
Como se vê, “Sobre uma visão do mundo” é uma conferência que se
inscreve claramente na linha interpretativa de “O futuro de uma ilusão”. Note-se, a
propósito, que, embora faça uma alusão passageira ao totemismo359, Freud não faz,
nessa conferência, qualquer menção do complexo de Édipo ou do sentimento de
ambivalência afetiva a respeito do pai. Em “O homem Moisés e a religião monoteísta”,
Freud retorna ao modelo hermenêutico adotado em “Totem e tabu”. Com efeito, se
“Sobre uma visão do mundo” é uma recapitulação de “O futuro de uma ilusão”, o livro
de Freud sobre o monoteísmo mosaico é uma retomada e, mais do que isso, uma
continuação do seu trabalho sobre o totemismo360.

358
FREUD, Nouvelle suite des leçons d‟introduction à la psychanalyse. In: _______. Œuvres complètes,
v.19, p.252.
359
Cf. FREUD, Nouvelle suite des leçons d‟introduction à la psychanalyse. In: _______. Œuvres
complètes, v.19, p.247, 250.
360
Cf. FREUD, Correspondance 1873-1939, p.495.
“O homem Moisés e a religião monoteísta”

Freud deixou para o final da sua vida o seu “acerto de contas” com o
judaísmo. Com efeito, embora não tenha sido o último livro que escreveu, “O homem
Moisés e a religião monoteísta” foi o último trabalho que publicou361. Nessa obra, Freud
se debruçou sobre o problema da origem das religiões, focalizando, em particular, o
monoteísmo judaico362. “O passado de uma ilusão” não teria sido um título inteiramente
infeliz363.
Mais especificamente, a questão de “O homem Moisés e a religião
monoteísta” pode ser assim formulada: como surgiu o caráter particular do povo judeu?
Como o povo judeu adquiriu as suas características e se tornou o que é? A resposta a
que Freud chegou é que Moisés criou o judeu; o judeu é uma criação de Moisés 364. Do
Moisés egípcio, entenda-se.
De fato, em “O homem Moisés e a religião monoteísta” Freud procede
a uma tríplice desapropriação do povo judeu em favor dos egípcios: ele desapropria os
judeus de Moisés, do monoteísmo e da circuncisão. Freud “desjudaizou” Moisés e o
monoteísmo, assim como a circuncisão; Moisés, o monoteísmo e a circuncisão teriam
origens egípcias.
Freud fez mais do que isso, porém. Ele não somente “deu” Moisés aos
egípcios; ele fez dos judeus os seus assassinos365. Moisés foi um egípcio, e os judeus o
mataram Ŕ eis um resumo possível do livro de Freud sobre o monoteísmo mosaico.
Depois que Copérnico, Darwin e o próprio Freud humilharam a
humanidade com as descobertas do heliocentrismo, da evolução das espécies e do
inconsciente, respectivamente366, “O homem Moisés e a religião monoteísta” pode,

361
O último livro que Freud escreveu Ŕ aliás, inacabado Ŕ foi “Compêndio de psicanálise” (cf. Freud,
Abrégé de psychanalyse. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.225-305).
362
Cf. FREUD, Correspondance 1873-1939, p.495.
363
GAY, Freud, p.580.
364
Cf. ANDREAS-SALOMÉ, Correspondance avec Sigmund Freud 1912-1936, p.252; FREUD,
Correspondance 1873-1939, p.479; FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______.
Œuvres complètes, v.20, p.182, 185, 201, 215; FREUD; ZWEIG, Correspondance 1927-1939, p.129.
365
Cf. GAY, Freud, p.583.
366
Cf. FREUD, Leçons d‟introduction à la psychanalyse. In: _______. Œuvres complètes, v.14, p.295;
FREUD, Les résistances contre la psychanalyse. In: _______. Œuvres complètes, v.17, p.134-135; FREUD,
Une difficulté de la psychanalyse. In: _______. Œuvres complètes, v.15, p.46-51.
pois, ser considerado a quarta grande humilhação, imposta, de novo, por Freud, mas,
desta vez, unicamente ao povo judeu367.
O problema é que Freud “tirou” Moisés dos judeus num momento em
que tudo o mais lhes era tirado. Ele mesmo se deu conta disso, com um certo pesar368.
Mas não deixou de fazê-lo por esse motivo.
Não faltou, contudo, quem tentasse impedi-lo. Em 1937, Freud
publicou como artigos, na “Imago”, os dois primeiros ensaios do que viria a ser “O
homem Moisés e a religião monoteísta”. No ano seguinte, alguns judeus tentaram
dissuadi-lo de publicar a obra completa, o terceiro ensaio incluído, na forma de livro.
Além de ofender a sensibilidade dos praticantes do judaísmo, argumentaram, a
publicação poderia ser perigosa para os judeus. Freud, porém, não cedeu. Em 1939, o
seu trabalho sobre a origem do monoteísmo mosaico foi dado à estampa369.
É possível subdividir o conteúdo de “O homem Moisés e a religião
monoteísta” em três tñpicos. Primeiramente, a origem egípcia de Moisés; em seguida, a
reconstrução freudiana da história do monoteísmo judaico; por fim, a interpretação
psicanalítica da história do monoteísmo dos judeus. Seguiremos essa sequência em
nossa síntese do último livro que Freud publicou.
Em sua hipótese sobre a nacionalidade egípcia de Moisés, Freud se
fundamenta em dois argumentos. De saída, nota que o nome de “Moisés” é egípcio,
procede da língua egípcia. Isso sugere que o seu portador também o seja370.
O segundo argumento, por sua vez, baseia-se na obra de Rank, “Der
Mythus von der Geburt des Helden” [“O mito do nascimento do herñi”], publicada em
1909. Nesse livro, Rank analisa mais de uma dúzia de figuras heróicas, Édipo e Moisés,
entre eles. Observa que as civilizações têm por costume glorificar os seus heróis por
meio de mitos, que são análogos aos sonhos. Esses mitos apresentam notáveis
características comuns. Um elemento típico dos mitos do nascimento dos heróis está em
que o herói costuma ser abandonado, criado por pais adotivos e reconhecido mais tarde
pelos seus verdadeiros pais. Assim, o herói tem duas famílias: aquela que lhe deu a vida
e aquela que o salvou de um perigo e que dele cuidou. A primeira, que costuma ser de

367
Cf. YERUSHALMI, O Moisés de Freud, p.25.
368
Cf. BALMARY, Le sacrifice interdit, p.16.
369
Cf. FREUD; ZWEIG, Correspondance 1927-1939, p.205; GAY, Freud, p.571, 574-575; JONES, A vida e
a obra de Sigmund Freud, v.3, p.238, 241.
370
Cf. FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.81-84.
nível social elevado, é uma família fictícia; a segunda, que costuma ser de classe baixa,
é a família verdadeira. Em suma, segundo o mito-padrão, o herói é originário de uma
família nobre e adotado por uma família pobre371.
O caso de Moisés contradiz o mito-padrão na medida em que ele é
originário de uma família pobre, hebreia, e é adotado por uma família nobre, egípcia.
Não obstante essa diferença, Moisés tem duas famílias; e o que interessa a Freud é que,
no mito do herói, a primeira família é sempre uma família inventada, ao passo que a
segunda, sim, é que é a família real. Segue-se, pois, que Moisés foi um egípcio: a sua
segunda família é a do faraó. De acordo com Freud, a primeira família de Moisés foi
inventada pelos judeus a posteriori, por motivos nacionalistas, com o objetivo de fazer
dele um legítimo filho do povo judeu372.
A pertença de Moisés ao povo egípcio é a hipótese fundamental de
que Freud parte em sua reconstrução da história do monoteísmo judaico. Em linhas
gerais, eis como Freud a imaginou.
Na gloriosa XVIII Dinastia, durante a qual o Egito tornou-se um
império mundial, um jovem faraó subiu ao trono, por volta de 1375 a.C. O seu nome era
Amenófis IV. Durante o seu reinado, o jovem faraó abraçou uma nova religião, um
monoteísmo estrito, a crença num Deus único, simbolizado pelo disco solar: a religião
de Aton. Esse foi o primeiro caso de uma religião monoteísta na história da
humanidade. Em conformidade com essa nova profissão religiosa, Amenófis IV mudou
o seu nome para Akenaton e construiu uma nova capital real, que foi chamada Aketaton.
O jovem faraó fez da religião de Aton a religião estatal e tentou impor aos seus súditos a
nova religião. Contudo, a religião de Aton não se tornou popular, tendo permanecido
restrita a um círculo estreito em torno da pessoa do rei. Desse círculo, fazia parte
Moisés.
Moisés era um egípcio bem posicionado socialmente. Talvez, fosse
um sacerdote, um aristocrata, um alto funcionário egípcio, um membro da casa real, um
príncipe. Assim situado, ele se tornou um aderente convicto da nova religião. O reinado
de Akenaton durou, contudo, apenas 17 anos. Após a sua morte, em 1358 a.C., a nova
religião foi “varrida”, a cidade real de Aketaton foi destruída e saqueada, e a memñria

371
Cf. RANK, The myth of the birth of the hero, p.64-92.
372
Cf. FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.84-90;
ver também: FREUD, Le roman familial des névrosés. In: _______. Œuvres complètes, v.8, p.251-256.
de Akenaton, proscrita como a de um rei herético. Com a morte do rei, no entanto,
Moisés não se conformou; planejou fundar um novo reino, encontrar um novo povo, a
quem apresentaria a religião que o Egito recusara. Talvez, Moisés fosse, nessa época,
governador de uma província da fronteira, habitada por tribos semitas, tendo lhe
ocorrido escolher esse povo para executar o seu plano Ŕ nesse sentido, o povo judeu foi,
de fato, um povo “eleito”: eleito por Moisés. Uma vez que Moisés era egípcio, ele
precisou de um intérprete para se comunicar com os semitas: esse intérprete foi Aarão Ŕ
assim se entende que, na Bíblia, Aarão apareça como o porta-voz de Moisés. Moisés
comunicou, então, a sua prñpria religião ao povo judeu: a religião “mosaica”, que não
era outra senão a religião de Aton373.
Seguiu-se, então, o êxodo, isto é, a emigração dos judeus para Canaã
sob a liderança de Moisés. Esse fato teria acontecido no interregno de 1358 a 1350 a.C.,
isto é, entre a morte de Akenaton e o restabelecimento da ordem pelo general Haremhab
Ŕ e, portanto, um século antes do que a maioria dos historiadores supõe. Encontrando-se
o Egito num estado de anarquia, o êxodo teria se dado de forma pacífica. Portanto,
segundo Freud, não houve as 10 pragas do Egito ou a heróica travessia do mar
Vermelho.
Durante o êxodo, Moisés foi assassinado pelos judeus, e a religião que
ele introduziu foi abandonada. Moisés e Akenaton partilharam, assim, o mesmo destino,
aquele que está reservado a todos os déspotas esclarecidos: a rejeição. Houve, porém,
um grupo que conservou as tradições do monoteísmo egípcio transmitido por Moisés
aos judeus: foram os levitas. Os levitas eram a comitiva do Moisés egípcio; eles
conservaram a religião egípcia, mesmo depois do assassinato de Moisés. Passam-se,
então, duas gerações ou, talvez, mesmo um século.
Nessa altura dos acontecimentos, entra em cena, na trama tecida por
Freud, um outro Moisés, uma outra religião e um outro povo. Em sua marcha para
Canaã, os judeus vindos do Egito se encontram com outras tribos judias que habitavam
a região de Cades, um oásis entre a Palestina, a Península do Sinai e a Arábia Ŕ
chamemo-los, doravante, de judeus “egípcios” e “madianitas”. Nessa região, deu-se a

373
Há algumas concordâncias entre a religião egípcia e a religião dos judeus que parecem indicar uma
relação de filiação entre as duas: o monoteísmo estrito, o costume da circuncisão, a ênfase na dimensão
ética, a negação da vida além-túmulo e a condenação da magia. Pode-se ainda notar a sugestiva afinidade
fónica entre os nomes dados a Deus: “Aton” e “Adonai”. Observe-se, por outro lado, a completa ausência
da veneração do sol no monoteísmo judaico.
fusão entre os dois povos e a fundação de uma nova religião, com a adoção de um novo
Deus, um deus vulcânico, de origem árabe, que habitava a montanha Sinai-Horeb, o
Deus Iahweh. O fundador dessa nova religião foi um pastor chamado “Moisés”, um
outro Moisés, um segundo Moisés: o Moisés madianita. A união desses dois grupos deu
origem ao povo de Israel. No processo da fusão, houve concessões de ambas as partes.
Como os seguidores do Moisés egípcio haviam abandonado a religião de Aton, eles
adotaram o culto do Deus Iahweh. Os levitas, porém, não haviam se conformado com o
abandono da religião de Aton. Assim, no acordo que precisou ser selado entre os dois
lados, esse grupo exigiu que o sinal externo da religião de Aton fosse conservado, a
circuncisão, e estabeleceu certas restrições ao uso do nome do novo Deus. Os judeus
madianitas adotaram, então, o costume egípcio da circuncisão. Mais tarde, o povo de
Israel sentiu-se forte o bastante para invadir e conquistar a terra de Canaã. A unidade
política do povo judeu não durou, porém, muito tempo; posteriormente, ele se dividiu,
de novo, em duas partes: o reino de Israel e o reino de Judá. Talvez, esses dois reinos
correspondam, respectivamente, aos judeus madianitas e aos judeus egípcios.
Contudo, a religião de Aton não se desvaneceu sem deixar rasto.
Conservou-se uma tradição, e essa tradição gradativamente adquiriu influência sobre as
mentes das pessoas, de modo a transformar, afinal, o Deus Iahweh no Deus mosaico, o
Deus de origem árabe no Deus de procedência egípcia. A religião de Aton permaneceu
em estado latente, e, com o passar do tempo, o Deus Iahweh começou a perder as suas
características e a assemelhar-se cada vez mais ao antigo Deus do Moisés egípcio. Ao
final, prevaleceu, pois, o velho Deus de Akenaton. Curiosamente, na reconstrução de
Freud, a história do monoteísmo judaico é atravessada por uma persistente dualidade:
dois homens chamados “Moisés”, o egípcio e o madianita; duas fundações de novas
religiões, a religião de Aton e a religião de Iahweh; dois povos que se fundem, os judeus
egípcios e os judeus madianitas; dois nomes para Deus, “Aton” e “Iahweh”; por fim,
dois reinos que se separam, Judá e Israel, o Reino do Sul e o Reino do Norte.
Algumas das suposições aventuradas por Freud em “O homem Moisés
e a religião monoteísta” não são propriamente inéditas. A hipñtese de que Moisés fosse
egípcio, a suposição de que o monoteísmo judeu tivesse vindo do Egito, a hipótese de
que Moisés tivesse sido assassinado Ŕ todas essas suposições já haviam sido defendidas
por outros estudiosos antes de Freud. Seja como for, o mais original e, ao mesmo
tempo, o mais psicanalítico do livro de Freud sobre o monoteísmo mosaico é a
interpretação que ele sugeriu para a história acima resumida.
Vimos que, em “Atos obsessivos e exercícios religiosos”, Freud
adotou o modelo hermenêutico da neurose para compreender o fenômeno religioso. O
mesmo paradigma é utilizado em “Totem e tabu” e não deixa de estar presente em “O
futuro de uma ilusão”. Esse mesmo modelo é, agora, retomado na interpretação da
origem do monoteísmo judaico. A tese principal de Freud é que origem da religião
monoteísta é análoga à origem dos sintomas neuróticos. Há, entre o mecanismo da
neurose e a história do judaísmo, uma analogia Ŕ uma analogia, diz Freud, que se
aproxima da identidade374. Vejamos.
A gênese de uma neurose remonta invariavelmente aos traumas. Os
traumas possuem três características principais: eles ocorrem na primeira infância, antes
do quinto ano de idade; eles possuem um conteúdo sexual-agressivo; e eles são
normalmente completamente esquecidos Ŕ caem sob o recalque Ŕ, de modo a
estabelecer-se um período de latência ou de amnésia infantil. A neurose, por sua vez,
manifesta-se como efeito retardado do trauma, após o período de latência, como
resultado de um retorno do recalcado. Com efeito, o que é esquecido não é suprimido,
mas apenas recalcado. Isso significa que os traços mnésicos de um trauma conservam
todo o seu frescor, contudo, em estado inconsciente, isolados por anticatexias. Assim, o
recalcado mantém o seu impulso ascendente; esforça-se permanentemente para abrir o
caminho até a consciência. O retorno do recalcado acontece sob uma ou mais das três
condições seguintes: quando a força das anticatexias é diminuída Ŕ por exemplo,
durante o sono Ŕ; quando os elementos pulsionais que se ligam ao recalcado recebem
um reforço especial Ŕ por exemplo, durante a puberdade Ŕ; ou quando ocorrem
impressões ou vivências que se assemelham a tal ponto ao recalcado que são capazes de
despertá-lo. Em suma:

“Trauma précoce - défense - latence - éruption de la maladie


névrotique - retour partiel du refoulé: ainsi s‟énonçait la formule
que nous avons établie pour le développement d‟une névrose. Le
lecteur est maintenant invité à faire le pas suivant consistant à
admettre que dans la vie de l‟espèce humaine s‟est produit
quelque chose de semblable à ce qui se produit dans la vie des

374
Cf. FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.151.
individus. Qu‟il y a donc eu ici des processus à contenu sexuel-
agressif, qui ont laissé derrière eux des conséquences durables,
mais qui furent la plupart du temps écartés défensivement,
oubliés, et qui, ultérieurement, sont entrés en action après une
longue latence et ont créé des phénomènes semblables aux
symptómes dans leur mode d‟édification et leur tendance”
[“Trauma precoce - defesa - latência - erupção da doença
neurótica - retorno parcial do recalcado: assim se enuncia a
fórmula que nós estabelecemos para o desenvolvimento de uma
neurose. Agora, o leitor é convidado a dar o passo seguinte, que
consiste em admitir que, na vida da espécie humana, aconteceu
algo semelhante ao que acontece na vida dos indivíduos, isto é,
que, também aqui, houve processos de conteúdo sexual-
agressivo que deixaram atrás de si consequências duradouras,
mas que foram, na maior parte do tempo, defensivamente
afastados, esquecidos, e que, ulteriormente, entraram em ação
após uma longa latência e criaram fenômenos semelhantes aos
sintomas em seu modo de construção e em sua tendência”]375.

Podemos, agora, relacionar a origem do monoteísmo à origem dos


sintomas neuróticos. Na história da espécie humana, o evento traumático de natureza
sexual-agressiva a que se refere Freud é o assassinato do pai primevo, tal como narrado
em “Totem e tabu” e, agora, retomado em “O homem Moisés e a religião monoteísta”.
O seu esquecimento pelas gerações subsequentes corresponde analogamente ao
recalcamento sob o qual os traços mnésicos de um trauma caem na geração de uma
neurose. O longo tempo que se passou desde o assassinato do pai primevo até o
surgimento do monoteísmo corresponde ao período de latência. O surgimento do
monoteísmo, por sua vez, da fé num Deus único, é o próprio retorno do recalcado: o
restabelecimento do pai primevo. O Deus Pai do monoteísmo é o pai primevo
ressurreto. Na história do judaísmo, o fator precipitante desse retorno do recalcado Ŕ as
impressões ou vivências que se assemelham a tal ponto ao recalcado que são capazes de
despertá-lo Ŕ é o assassinato do Moisés egípcio.
O surgimento do cristianismo, de sua parte, dá continuidade a essa
histñria como já se viu em “Totem e tabu”. Com efeito, o assassinato do Cristo remete-
nos, uma vez mais, ao assassinato do pai primevo. O cristianismo e o judaísmo
reeditam, pela morte de Cristo e de Moisés, o assassinato do pai primevo, devendo,
pois, ser compreendidos como distintas formas de retorno do recalcado. O fragmento de

375
FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.159.
verdade histórica presente na ressurreição de Cristo consiste nisto: Cristo é Moisés
ressurreto, que, por sua vez, é o pai primevo ressurreto; a morte de Cristo reedita a
morte de Moisés, que reedita a morte do pai primevo. Toda a história da religião, do
totemismo primitivo ao monoteísmo judaico e, posteriormente, cristão, é a longa
história do retorno do recalcado, do retorno neurótico do recalcado.
Para terminar, uma última observação. Note-se que, em “O homem
Moisés e a religião monoteísta”, supõe-se, assim como em “Totem e tabu”, a existência
da transmissão hereditária dos traços mnésicos de experiências vividas por gerações
passadas. Mais exatamente, segundo Freud, há, no inconsciente de cada indivíduo, a
memória do assassinato do pai primevo376. Diz ele:

“...les êtres humains ont Ŕ de cette manière particulière Ŕ


toujours su qu‟ils ont eu autrefois un père originaire et qu‟ils
l‟ont abatu” [“...dessa maneira particular, os seres humanos
sempre souberam que, outrora, tiveram um pai originário e que
o abateram”]377.

Com isso, encerramos a nossa exposição cronológica dos principais


textos que Freud dedicou ao problema da religião. Cumprido esse percurso histórico,
passemos a uma síntese sistemática da crítica freudiana do fenômeno religioso.

Síntese sistemática da crítica freudiana da religião

O restante deste capítulo é dedicado ao estudo sistemático da


interpretação freudiana do fato religioso. Abandonamos, pois, a perspectiva diacrônica,
abraçada nas seções precedentes, para adotar uma abordagem sincrônica do problema
que nos propusemos a investigar. Como, porém, até esta altura deste capítulo,
percorremos apenas os principais textos dedicados por Freud ao exame da religião,
aproveitaremos também a nova perspectiva em que trabalharemos a partir de agora para
recolher as referências eventuais que Freud tenha feito ao fenômeno religioso em textos
não consagrados predominante ou exclusivamente a esse tema.

376
Cf. FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.172-
181, 211.
377
FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.180.
Talvez, seja oportuno oferecer, desde já, um quadro geral da crítica da
religião levada a efeito por Freud. Em sua interpretação do fato religioso, Freud utiliza
dois modelos hermenêuticos extraídos da clínica psicanalítica: a neurose e o sonho378. A
aplicação desses dois modelos ao fato religioso Ŕ como, de resto, a qualquer outra
formação cultural Ŕ tem um caráter analógico. Interpretada a partir da neurose, a
religião é concebida como a neurose obsessiva universal da humanidade; interpretada a
partir do sonho, a religião é definida como uma ilusão. Como neurose, a religião está
relacionada ao remorso pelo assassinato do pai primevo, ou seja, ela é uma tentativa de
solucionar o problema do sentimento de culpa decorrente da ambivalência afetiva a
respeito do pai. Como ilusão, a religião tem a ver com a nostalgia do pai protetor, isto é,
ela visa a atender uma série de desejos humanos, em particular, o desejo de proteção.
Uma vez que, seja como neurose, seja como ilusão, a religião tem a ver o pai, pode-se
afirmar que o complexo paterno é o polo unificador da interpretação freudiana do fato
religioso.
O modelo da neurose é relativo aos conteúdos mais propriamente
inconscientes da religião; ele traz à luz a motivação profunda do sentimento religioso. O
modelo onírico, por sua vez, está mais próximo dos conteúdos da consciência; ele nos
remete à motivação manifesta da religiosidade. “Totem e tabu” é o texto que melhor
representa a interpretação da religião a partir do modelo da neurose; já “O futuro de
uma ilusão” é a obra mais representativa da interpretação da religião segundo o modelo
onírico. O segundo texto em importância, no primeiro caso, é, sem dúvida alguma, “O
homem Moisés e a religião monoteísta”, ao passo que, tratando-se do segundo caso, o
segundo texto em importância é “Sobre uma visão do mundo”.
O conjunto da produção de Freud sobre a religião admite ser
organizado em torno de quatro perguntas fundamentais: por que a religião? O que é a
religião? Para que a religião? E o que será da religião? A essas perguntas,
correspondem, respectivamente, os problemas da origem, da natureza, das funções e do
futuro da religião. Comecemos, pois, a nossa síntese pelo problema da origem da
religião.

378
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, Creer después de Freud, p.20, 31, 78; DOMÍNGUEZ MORANO, Teología y
psicoanálisis, p.5-6; RICŒUR, De l‟interprétation, p.227; RICŒUR, O ateísmo da psicanálise de Freud.
Concilium, n.16, p.70.
A origem da religião

No primeiro parágrafo do quarto ensaio de “Totem e tabu”, Freud


admite que a religião é um fenômeno complexo, assim como os atos e as estruturas
psíquicas, que, conforme a psicanálise descobriu, são sempre sobredeterminados. Por
conseguinte, ele garante que não tem nenhuma intenção de atribuir a origem da religião
a uma fonte única, embora pretenda enfatizar uma determinada fonte, sem, contudo,
pretender que essa fonte ocupe o primeiro lugar entre os diversos fatores que concorrem
para a origem da religião. Freud expressa a sua expectativa de que, no futuro, quando as
contribuições das diversas disciplinas interessadas no estudo da religião forem
sintetizadas, então, será possível apreciar a importância relativa da sua contribuição
específica a respeito dessa questão379.
Contudo, algumas dezenas de páginas adiante, numa nota de rodapé,
Freud revela-se um pouco menos despretensioso. Ele insiste em afirmar que não
pretende subestimar a complexidade do problema e observa que apenas indicou um
novo fator, entre outros, aos quais se pode atribuir a origem da religião. Afirma que não
lhe compete a tarefa de tentar sintetizar numa unidade os diversos fatores que
participam da gênese da religião. Porém, adverte Freud, em sua opinião, numa eventual
síntese dos fatores vários que contribuem para a origem da religião, o fator por ele
indicado, embora não seja o único, não poderá ocupar senão um papel central380.
Que fator é esse? Numa palavra, é o complexo paterno ou, mais
especificamente, tratando-se de “Totem e tabu”, é o remorso pelo assassinato do pai
primevo. Sabemos, porém, que o complexo paterno compreende ainda um segundo
aspecto, a saber, a nostalgia do pai protetor.
Em “Uma lembrança de infância de Leonardo da Vinci”, Freud
escreveu:

“La psychanalyse nous a appris à connaître l‟intime corrélation


entre le complexe paternel et la croyance en Dieu, nous a montré
que le Dieu personnel n‟est psychologiquement rien d‟autre
379
Cf. FREUD, Totem et tabou. In: _______. Œuvres complètes, v.11, p.311. Não se deve excluir a
possibilidade de que esse parágrafo corresponda a uma das “frases moderadoras” que Freud disse ter
acrescentado a “Totem e tabu” apñs a conclusão da obra na carta que endereçou a Ferenczi em 17 de
junho de 1913 (cf. FREUD; FERENCZI, Correspondance 1908-1914, p.521).
380
Cf. FREUD, Totem et tabou. In: _______. Œuvres complètes, v.11, p.378 [nota 1].
qu‟un père qui a été exalté, et nous donne quotidiennement le
spectacle de jeunes gens qui perdent la foi religieuse dès que
chez eux s‟effondre l‟autorité du père. C‟est donc dans le
complexe parental que nous reconnaissons la racine du besoin
religieux; le Dieu juste et tout-puissant et la bonne Nature nous
apparaissent comme des sublimations grandioses du père et de la
mère, ou plutôt comme des renouvellements et des
réinstaurations des représentations de l‟un et de l‟autre dans la
prime enfance. La religiosité se ramène biologiquement au
désaide et besoin d‟aide longtemps persistants du petit enfant
des hommes qui, plus tard, lorsqu‟il a reconnu son délaissement
et sa faiblesse effectifs face aux grandes puissances de la vie,
ressent sa situation tout comme il l‟a ressentie dans son enfance
et cherche à en dénier la désolation par le renouvellement
régressif des puissances protectrices infantiles. Cette protection,
évitant de tomber malade de névrose, que la religion accorde à
ses croyants, s‟explique aisément par le fait que celle-ci les
débarrasse du complexe parental auquel est attachée la
conscience de culpabilité de l‟individu, comme celle de
l‟humanité tout entière, et qu‟elle liquide pour eux ce complexe,
tandis que l‟incroyant doit venir seul à bout de cette tâche” [“A
psicanálise nos tornou conhecida a íntima correlação entre o
complexo paterno e a crença em Deus, mostrou-nos que o Deus
pessoal nada mais é, psicologicamente, do que um pai que foi
exaltado, e cotidianamente podemos observar jovens que
perdem a fé religiosa tão logo a autoridade do pai se desmorona
para eles. Reconhecemos, pois, no complexo parental a raiz da
necessidade religiosa; o Deus justo e todo poderoso e a Natureza
bondosa se nos afiguram como sublimações grandiosas do pai e
da mãe, ou melhor, como restabelecimentos e restaurações das
representações que se tinha de um e de outro na primeira
infância. Biologicamente, a religiosidade remete ao duradouro
desamparo e necessidade de ajuda da criança, que, mais tarde,
quando reconhece sua impotência e fraqueza efetivas diante das
grandes potências da vida, volta a sentir-se como na infância e
procura negar o seu estado de abandono reeditando
regressivamente as potências protetoras da infância. Essa
proteção que a religião oferece aos crentes, evitando que eles
caiam doentes de neurose, se explica facilmente pelo fato de que
ela os desembaraça do complexo parental, ao qual está ligada a
consciência de culpabilidade, seja do indivíduo, seja da
humanidade inteira, liquidando para eles esse complexo, ao
passo que o descrente tem que cumprir essa tarefa sozinho”]381.

381
FREUD, Un souvenir d‟enfance de Léonard de Vinci. In: _______. Œuvres complètes, v.10, p.149.
O/A leitor/a há de nos desculpar uma citação assim tão longa. Ocorre
que, nessa passagem, estão presentes, em forma embrionária, muitas das intuições de
Freud sobre o fenômeno religioso. Adiante, voltaremos a um ou outro aspecto dessa
citação. Por ora, interessa-nos assinalar que, nela, se encontram, em germe, tanto a
concepção de que a origem da religião é a nostalgia do pai protetor resultante do
desamparo humano, quanto a hipótese de que a gênese da religião é o remorso
decorrente da hostilidade contra o pai. Note-se que Freud fala em “desamparo”,
“necessidade de ajuda”, “proteção”. Mas fala também em “culpabilidade”. Seja como
for, o polo unificador dessas duas vertentes é o complexo do pai.
O parecer de que a religião decorre do complexo paterno é uma tese
reiteradamente afirmada por Freud ao longo dos seus escritos.
No dia primeiro de setembro de 1911, ele escreveu a Jung: “So you
too are aware that the Œdipus complex is at the root of religious feeling? Bravo!”
[“Então, você também está ciente de que o complexo de Édipo está na raiz do
sentimento religioso? Bravo!”]382.
Em “Totem e tabu” (1913), Freud observou:

“...l‟exploration psychanalytique de l‟individu humain nous


enseigne avec une toute particulière insistance que pour tout
homme le dieu est à l‟image du père, que son rapport personnel
à Dieu dépend de son rapport au père charnel, vacillant et se
transformant avec lui, et que Dieu n‟est au fond rien d‟autre
qu‟un père exalté” [“...a investigação psicanalítica do indivíduo
humano nos ensina com uma insistência muito particular que o
deus de todo homem é formado à imagem do pai, que seu
relacionamento pessoal com Deus depende do seu
relacionamento com o pai de carne e osso, oscilando e se
transformando com ele, e que, no fundo, Deus não é nada mais
que um pai exaltado”]383.

A raiz de toda forma de religião, notou Freud, é o anseio pelo pai384.


Em “Sobre a psicologia do colegial” (1914), pode-se ler:

382
MCGUIRE, The Freud/Jung letters, p.196.
383
FREUD, Totem et tabou. In: _______. Œuvres complètes, v.11, p.366.
384
Cf. FREUD, Totem et tabou. In: _______. Œuvres complètes, v.11, p.367, 369.
“...Dieu lui-même n‟est [...] qu‟une exaltation de cette image du
père, telle qu‟elle se présente à la vie d‟âme de la prime
enfance” [“...o prñprio Deus não é [...] senão uma exaltação
dessa imagem do pai, tal como ela se apresenta na vida anímica
da primeira infância”]385.

Em “Uma neurose diabñlica do século XVII” (1923), Freud declarou:

“...Dieu est un substitut du père ou plus correctment: un père


exhaussé, ou en d‟autres termes encore: une réplique du père, tel
qu‟on le voyait et le vivait dans l‟enfance, l‟individu dans sa
propre enfance, et le genre humain dans ses premiers âges, en
tant que père de la horde originaire primitive” [“...Deus é um
substituto do pai ou, mais corretamente, um pai enaltecido ou,
em outros termos ainda, uma réplica do pai tal como ele era
visto e experimentado na infância, seja o indivíduo em sua
própria infância, seja o gênero humano em suas primeiras eras,
enquanto pai da horda originária primitiva”]386.

Em “O eu e o isso” (1923), Freud afirmou que as religiões encontram


a sua origem no anseio pelo pai387.
Em “Breve resumo de psicanálise” (1924), ele garantiu que a raiz do
sentimento religioso reside no relacionamento com o pai388.
Em “O futuro de uma ilusão” (1927), Freud asseverou que a origem
da religião pode ser encontrada no complexo de Édipo, isto é, na relação com o pai389.
Em “O mal-estar na cultura” (1930), ele anotou que Deus é o pai
exaltado, engrandecido390.
Na última conferência da “Nova sequência de lições de introdução à
psicanálise” (1933), Freud reiterou que Deus é a imagem mnésica do pai grandioso da
infância reativada e divinizada391.
Enfim, no resumo de Rizzuto, para Freud: “Deus é: um pai exalçado;
uma transfiguração do pai; uma semelhança do pai; uma sublimação do pai; um

385
FREUD, Sur la psychologie du lycéen. In: _______. Œuvres complètes, v.12, p.336.
386
FREUD, Une névrose diabolique au XVIIe siècle. In: _______. Œuvres complètes, v.16, p.230.
387
Cf. FREUD, Le moi et le ça. In: _______. Œuvres complètes, v.16, p.280.
388
Cf. FREUD, Court abrégé de psychanalyse. In: _______. Œuvres complètes, v.16, p.351.
389
Cf. FREUD, L‟avenir d‟une illusion. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.184.
390
Cf. FREUD, Le malaise dans la culture. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.259.
391
Cf. FREUD, Nouvelle suite des leçons d‟introduction à la psychanalyse. In: _______. Œuvres
complètes, v.19, p.247.
representante do pai; um substituto do pai; uma cópia do pai; Deus realmente é o
pai”392.
O complexo paterno, por sua vez, desdobra-se, como sabemos, em
dois aspectos. O primeiro deles é o remorso pelo assassinato do pai primevo ou o
sentimento de culpa pela ambivalência afetiva a respeito do pai. Também essa dimensão
do problema encontra-se abundantemente registrado nos textos de Freud. Alguns
exemplos bastarão.
Em “Prefácio a „Problemas de psicologia religiosa‟ de Theodor Reik”
(1919), Freud escreveu:

“...autrefois Dieu le Père, en personne, a parcouru la Terre et,


chef de la horde originaire des hommes, a exercé son pouvoir
souverain jusqu‟au moment où ses fils s‟unirent pour l‟abattre”
[“...outrora, Deus, o Pai, percorreu a Terra em pessoa e,
enquanto chefe da horda primeva dos homens, exerceu o seu
poder soberano até o momento em que os seus filhos se uniram
para abatê-lo”]393.

Em “Psicologia das massas e análise do eu” (1921), Freud descreveu


Deus como o pai primevo divinizado394.
Em sua “Autoapresentação” (1925), Freud afirmou que a hipñtese por
ele formulada em “Totem e tabu” situa a religião no terreno do complexo paterno,
edificando-a sobre a ambivalência afetiva que domina esse complexo. O pai originário,
Freud escreveu, é o modelo de Deus395.
Por fim, em “O futuro de uma ilusão” (1927), ele acrescentou:

“...ce père originaire a été [...] l‟image originaire de Dieu, le


modèle d‟après lequel les générations ultérieures ont formé la
figure de Dieu” [“...esse pai originário foi [...] a imagem
originária de Deus, o modelo a partir do qual as gerações
ulteriores formaram a figura de Deus”]396.

392
RIZZUTO, O nascimento do Deus vivo, p.53; cf. RIZZUTO, Por que Freud rejeitou Deus?, p.162.
393
FREUD, Avant-propos à “Problèmes de psychologie religieuse” de Theodor Reik. In: _______. Œuvres
complètes, v.15, p.214-215.
394
Cf. FREUD, Psychologie des masses et analyse du moi. In: _______. Œuvres complètes, v.16, p.63, 76.
395
Cf. FREUD, “Autoprésentation”. In: _______. Œuvres complètes, v.17, p.116.
396
FREUD, L‟avenir d‟une illusion. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.183.
O segundo aspecto em que se desdobra o complexo paterno é,
conforme já o dissemos, a nostalgia do pai protetor decorrente do desamparo humano.
Embora essa vertente sñ tenha sido desenvolvida em “O futuro de uma ilusão”, essa é
uma intuição antiga de Freud397.
De fato, numa carta a Ferenczi de primeiro de janeiro de 1910, Freud
escreveu:

“Je vous confie volontiers une idée qui m‟est venue juste au
tournant de l‟année: l‟últime fondement des religions, c‟est la
détresse infantile de l‟homme. Mais je m‟épargne le
développement” [“Confio ao senhor, de bom grado, uma ideia
que me ocorreu justamente na virada do ano: o fundamento
último das religiões é o desamparo infantil do homem. Poupo-
me, contudo, o desenvolvimento”]398.

No dia seguinte, Freud compartilhou o mesmo com Jung:

“It has occurred to me that the ultimate basis of man‟s need for
religion is infantile helplessness, which is so greater in man than
in animals” [“Ocorreu-me que a base fundamental da
necessidade humana de religião é o desamparo infantil, que é
muito maior no homem do que nos animais”]399.

Em 1927, Freud disse pessoalmente a Binswanger: “La religion naît


[...] du besoin de secours et de l‟angoisse de l‟enfant et de la jeune humanité...” [“A
religião nasce [...] da necessidade de ajuda e da angústia da criança e da jovem
humanidade...”]400.
Foi, contudo, apenas em “O futuro de uma ilusão” (1927) que Freud
deu pleno desenvolvimento a essa ideia. Quando criança, o ser humano se sente
desamparado e recorre ao pai como protetor. Mas essa dependência persiste na idade

397
Aliás, muito antes de Freud, Epicuro (342/341 a.C. - 271/270 a.C.) e Lucrécio (99/98 - 55 a.C.) já
haviam dito que o medo faz os deuses (cf. FERREIRA, Caminhos da utopia e da esperança. In: MOURA,
Hélio Pellegrino. A-Deus, p.151; MARCUSE, Sigmund Freud, p.74; RICŒUR, Le conflit des
interprétations, p.131). E, numa das suas lições sobre as variedades da experiência religiosa, William
James (1842-1910) exclamou: “Here is the real core of the religious problem: Help! help!” [“Eis o
verdadeiro cerne do problema religioso: Socorro! socorro!”] (JAMES, The varieties of religious
experience, p.147).
398
FREUD; FERENCZI, Correspondance 1908-1914, p.129.
399
MCGUIRE, The Freud/Jung letters, p.131.
400
BINSWANGER, Souvenirs sur Sigmund Freud. In: _______, Dicours, parcours, et Freud, p.346.
adulta; o homem percebe que está destinado a se sentir para sempre como uma criança.
Desamparado, ele busca, então, proteção num substituto do pai, Deus401.
Em “O mal-estar na cultura” (1930), ao se defrontar com uma objeção
de Rolland, para quem a origem da religiosidade residiria no sentimento oceânico,
Freud reafirmou a tese estabelecida em “O futuro de uma ilusão”:

“Pour ce qui est des besoins religieux, la dérivation à partir du


désaide infantile et de la désirance qu‟il éveille pour le père ne
semble pas pouvoir être écartée, d‟autant plus que ce sentiment
n‟est pas une simple prolongation de la vie enfantine, mais est
conservé durablement du fait de l‟angoisse devant la
surpuissance du destin. Un besoin provenant de l‟enfance, aussi
fort que celui de la protection parternelle, je ne saurais en
indiquer” [“No que diz respeito às necessidades religiosas, a sua
derivação a partir do desamparo infantil e do anseio que ele
suscita pelo pai não parece poder ser descartada, tanto mais que
esse sentimento não é um simples prolongamento da vida
infantil, mas é sustentado permanentemente pelo fato da
angústia diante do poder superior do destino. Eu não saberia
indicar uma necessidade procedente da infância tão forte quanto
a da proteção paterna”]402.

Em suma, para Freud, a origem da crença em Deus é o anseio pelo


pai. Seja a partir da culpabilidade resultante da ambivalência afetiva pelo pai, seja a
partir da necessidade de proteção paterna contra o estado de desamparo, o que está em
jogo, na crença religiosa, é o complexo paterno: Deus é o pai.
Antes, porém, de darmos por encerrada esta seção, parece-nos
oportuno incluir, pela sua afinidade com a questão da origem da ideia de Deus, o
problema da gênese da ideia do diabo. Evidentemente, não acreditando em Deus, Freud
acreditava menos ainda no diabo, de modo que também este último poderia ter a sua
origem elucidada pela análise, podendo-se, então, falar numa “demonologia
psicanalítica”. As investigações de Freud sobre a origem da crença no diabo levaram-no
a mais de uma resposta. Uma delas, porém, apresenta um estreito parentesco com o que

401
Cf. FREUD, L‟avenir d‟une illusion. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.157-158, 163-164, 170;
ver também: FREUD, Nouvelle suite des leçons d‟introduction à la psychanalyse. In: _______. Œuvres
complètes, v.19, p.247.
402
FREUD, Le malaise dans la culture. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.258.
acima afirmamos sobre a relação entre a ambivalência afetiva a respeito do pai e a
origem da crença religiosa.
Em “Uma neurose diabñlica do século XVII”, Freud sugere que,
considerando-se que a relação com o pai é ambivalente e tendo-se presente que Deus é o
substituto do pai, a mesma ambivalência que caracteriza a relação do indivíduo com o
seu pai está presente também no seu relacionamento com Deus. Ora, a clínica
psicanalítica nos ensina que, quando uma ideia possui um conteúdo contraditório, um
desfecho possível para o conflito assim configurado é a divisão dessa representação em
dois opostos. Segundo Freud, essa cisão incidiria sobre a primitiva ideia de Deus, com a
qual se tinha uma relação ambivalente, dando origem às representações contrastantes de
Deus e do diabo. Ou seja, Deus e o diabo seriam originalmente uma figura única; num
segundo momento, é que essa representação seria clivada em duas com atributos
opostos. E, uma vez que, por trás da ideia de Deus está a figura paterna, pode-se dizer
que o pai é o protótipo de Deus tanto quanto do diabo. Dessa forma, o diabo funcionaria
como uma cópia negativa de Deus, ao qual o crente pode dirigir o polo hostil da sua
ambivalência afetiva com toda razão e sem motivo para a culpabilidade403.

403
Cf. FREUD, Une névrose diabolique au XVIIe siècle. In: _______. Œuvres complètes, v.16, p.229-232.
Analogamente, Reik sugeriu que também as representações de Maria, a virgem, e de Madalena, a
prostituta, constituiriam primitivamente uma unidade, a qual teria sofrido, num segundo momento, uma
clivagem (cf. REIK, Religião e psicanálise, p.36, 71, 302). Segundo Reik, Cristo e Judas também seriam
primitivamente uma coisa só. Teria havido, então, uma cisão: Judas assumiu os aspectos indesejáveis de
Cristo; projetou-se nele o que não conviria reconhecer no Salvador. Seja como for, Judas seria apenas a
parte renegada da personalidade de Cristo, o seu alter ego (cf. REIK, Religião e psicanálise, p.119-157,
302). Acrescente-se ainda que Freud sugeriu também outras explicações para a origem da crença no
diabo. Além da hipótese acima esboçada, haveria, pelo menos, mais três possibilidades: [1] o diabo seria
a personificação da vida pulsional recalcada inconsciente, o que incluiria fundamentalmente os impulsos
sexuais censuráveis (cf. FREUD, “Autoprésentation”. In: _______. Œuvres complètes, v.17, p.80; FREUD,
Caractère et érotisme anal. In: _______. Œuvres complètes, v.8, p.193; FREUD, Inhibition, symptôme et
angoisse. In: _______. Œuvres complètes, v.17, p.214; FREUD, Une névrose diabolique au XVIIe siècle.
In: _______. Œuvres complètes, v.16, p.217-218); [2] o diabo resultaria da projeção dos sentimentos
hostis alimentados pelos vivos contra as pessoas que morreram (cf. F REUD, Actuelles sur la guerre et la
mort. In: _______. Œuvres complètes, v.13, p.150; FREUD, Totem et tabou. In: _______. Œuvres
complètes, v.11, p.264-273, 302-304, 308); e [3] o diabo teria a ver com a pulsão de morte (cf. FREUD,
Au-delà du principe de plaisir. In: _______. Œuvres complètes, v.15, p.306, 308; FREUD, Nouvelle suite
des leçons d‟introduction à la psychanalyse. In: _______. Œuvres complètes, v.19, p.190).
A natureza da religião

Assim como concebeu duas origens para o fato religioso, Freud


também definiu a natureza da religião de duas maneiras distintas: segundo ele, a religião
é uma neurose e uma ilusão. Iniciemos o nosso estudo pela primeira possibilidade.
Ao longo da sua obra, Freud estabeleceu três modos de relação entre a
religião e a neurose. Primeiramente, a religião causa a neurose; em segundo lugar, a
religião é uma neurose; e, finalmente, a religião previne a neurose.
Historicamente, a primeira associação estabelecida por Freud entre a
religião e a neurose deu-se por ocasião dos estudos sobre a histeria. Grosso modo, a
etiologia das neuroses histéricas é a repressão sexual; e a religião é, sem dúvida, um dos
grandes responsáveis por essa repressão. Nessa medida, ela se constitui num dos fatores
que contribuem para surgimento das neuroses404.
A segunda associação entre a religião e a neurose foi ensejada pelo
estudo da neurose obsessiva. Com efeito, há uma notável semelhança entre os rituais do
neurótico obsessivo e as práticas litúrgicas do homem piedoso. Uma segunda forma de
relação fica, assim, estabelecida: a religião é análoga a uma neurose. Ou, simplesmente,
a religião é uma neurose: a neurose obsessiva universal da humanidade405.
Em uma anotação de 1905, Freud escreveu: “La religion como
neurosis obsesiva. Religiñn privada” [“A religião como neurose obsessiva. Religião
privada”]406.
Passados dois anos, em “Atos obsessivos e exercícios religiosos”, ele
desenvolveu e tornou pública essa intuição. A neurose obsessiva, concluiu, é uma
religião individual; a religião, uma neurose obsessiva coletiva407.

404
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, Creer después de Freud, p.31; DOMÍNGUEZ MORANO, El psicoanálisis
freudiano de la religión, p.28; DOMÍNGUEZ MORANO, Teología y psicoanálisis, p.13. Não pretendemos
aprofundar essa primeira forma de associação entre a religião e a neurose. Ela pertence ao campo das
relações entre a psicanálise e a moral, encontrando-se, pois, fora do escopo da nossa pesquisa.
405
Essa segunda forma de associação entre a religião e a neurose nos interessa especialmente. Ela parece
responder à pergunta: o que é a religião? Ou ainda: a que ela é comparável? Em tese, Freud pretendia que
houvesse, entre a religião e a neurose, apenas uma analogia (cf. FREUD, L‟avenir d‟une illusion. In:
_______. Œuvres complètes, v.18, p.185). O mesmo Freud, porém, observou que essa analogia é tão
completa que se aproxima da identidade (cf. FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In:
_______. Œuvres complètes, v.20, p.151).
406
DOMÍNGUEZ MORANO, El psicoanálisis freudiano de la religión, p.56 [nota 91].
407
Cf. FREUD, Actions de contrainte et exercices religieux. In: _______. Œuvres complètes, v.8, p.145.
Uma vez concebida, Freud nunca abandonou essa fórmula. Ao longo
da sua obra, ele a repetiu algumas vezes408 e permaneceu fiel a ela até o fim da sua vida.
No dia oito de outubro de 1936, por exemplo, reagindo a uma conferência de
Binswanger, Freud lhe escreveu:

“Je n‟ai jamais séjourné que dans le rez-de-chaussée et le


souterrain de l‟édifice. Vous affirmez que si l‟on change de
point de vue, on voit aussi un étage supérieur, où logent des
hôtes aussi distingués que la religion, l‟art etc. [...] Si j‟avais
encore une vie de travail devant moi, j‟oserais assigner aussi à
ces personnages de haut lignage une demeure dans ma basse
maisonnette. Pour la religion, je l‟ai déjà trouvée, depuis que je
suis tombé sur la catégorie „névrose de l‟humanité‟” [“Eu jamais
residi senão no andar térreo e no porão do edifício. O senhor
afirma que, se se muda de ponto de vista, se vê também um
andar superior, onde se alojam hóspedes tão distintos quanto a
religião, a arte etc. [...] Se tivesse ainda uma vida de trabalho
pela frente, eu ousaria atribuir também a esses personagens de
alta linhagem um lugar na minha humilde casinha. Para a
religião, eu já o encontrei quando me dei com a categoria de
„neurose da humanidade‟”]409.

Em “O homem Moisés e a religião monoteísta”, por sua vez, Freud


observou: “...notre travail nous mène à un resultat qui réduit la religion à une névrose de
l‟humanité...” [“...o nosso trabalho nos leva a um resultado que reduz a religião a uma
neurose da humanidade...”]410. Desde “Totem e tabu”, continua Freud:

“...je n‟ai plus jamais douté que les phénomènes religieux ne


puissent être compris que selon le modèle des symptômes
névrotiques de l‟individu...” [“...eu nunca mais duvidei de que
os fenômenos religiosos não possam ser compreendidos senão
segundo o modelo dos sintomas neurñticos do indivíduo...”]411.

408
Cf. FREUD, “Autoprésentation”. In: _______. Œuvres complètes, v.17, p.114; FREUD, Court abrégé de
psychanalyse. In: _______. Œuvres complètes, v.16, p.350; ver também: FREUD, Avant-propos à
“Problèmes de psychologie religieuse” de Theodor Reik. In: _______. Œuvres complètes, v.15, p.213;
FREUD, L‟avenir d‟une illusion. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.184.
409
BINSWANGER, Souvenirs sur Sigmund Freud. In: _______, Dicours, parcours, et Freud, p.361; cf.
FREUD, Correspondance 1873-1939, p.470.
410
FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.133.
411
FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.136.
Em que se baseia a aproximação ou mesmo a identificação estabelecia
por Freud entre a religião e a neurose? Como vimos, essa comparação foi estabelecida,
pela primeira vez, em “Atos obsessivos e exercícios religiosos” e teve por base a
semelhança entre os rituais dos neuróticos obsessivos e as práticas religiosas dos crentes
de um modo geral.
Alguns anos depois, em “Totem e tabu”, Freud se convenceu ainda
mais da propriedade desse paralelo ao perceber que a religião é análoga à neurose
obsessiva não apenas na sua forma, mas também na sua origem, o complexo de Édipo,
que é o complexo nuclear das neuroses412. Com efeito, em “Totem e tabu”, Freud
afirmou:

“...dans le complexe d‟Œdipe se conjoignent les


commencements de la religion, de la moralité, de la societé et de
l‟art , [...] ce complexe forme le noyau de toutes les névroses...”
[“...os começos da religião, da moralidade, da sociedade e da
arte convergem para o complexo de Édipo, [...] esse complexo
forma o núcleo de todas as neuroses...”]413.

E, em “O futuro de uma ilusão”, Freud o reiterou:

“La religion serait la névrose de contrainte universelle de


l‟humanité; comme celle de l‟enfant, elle serait issue du
complexe d‟Œdipe, de la relation au père ” [“A religião seria a
neurose obsessiva universal da humanidade; como a neurose
obsessiva da criança, ela seria resultante do complexo de Édipo,
da relação com o pai”]414.

A religião é uma neurose na medida em que ela é uma tentativa de


resolver o problema do sentimento de culpa decorrente do assassinato do pai primevo.
Ela visa a solucionar o conflito gerado pela ambivalência afetiva a respeito do pai e
constitui-se num esforço de reconciliação com o pai. Contudo, ao mesmo tempo, a
religião é a expressão do triunfo do filho sobre o pai. Ou seja, a religião, tal como a

412
Cf. FREUD, Leçons d‟introduction à la psychanalyse. In: _______. Œuvres complètes, v.14, p.349;
FREUD, Trois essais sur la théorie sexuelle. In: _______. Œuvres complètes, v.6, p.165 [nota 2].
413
FREUD, Totem et tabou. In: _______. Œuvres complètes, v.11, p.377.
414
FREUD, L‟avenir d‟une illusion. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.184.
neurose, apresenta soluções para que se possa prosseguir, de um modo fantasmático, a
eterna luta entre o filho e o pai.
Estreitando ainda mais as relações entre a religião e a neurose, em “O
homem Moisés e a religião monoteísta”, Freud acrescentou que a religião pode ser
considerada uma neurose porque segue o mesmo mecanismo que preside a formação
dos sintomas neuróticos.
A neurose tem a sua origem em um evento traumático ocorrido
durante a primeira infância e vinculado ao complexo de Édipo. Diante de uma intensa
exigência pulsional que, por algum motivo, cai no desagrado da censura, o eu da
criança, ainda débil, revela-se incapaz de submetê-la racionalmente. A saída que se lhe
apresenta é o recalcamento, seguido de um período de latência. O recalcado conserva,
não obstante, a sua força ascendente e insiste em abrir o caminho de volta à consciência.
A eclosão de uma neurose consiste exatamente no retorno da exigência pulsional
recalcada, que encontra, no sintoma, uma forma substitutiva e deformada de satisfação.
Como vimos, no último texto que Freud dedicou ao estudo da religião,
o surgimento do monoteísmo mosaico obedece a essa mesma lógica. Primeiramente, um
evento traumático ocorrido na aurora da história humana e relacionado ao complexo de
Édipo: o assassinato do pai primevo. Em seguida, o esquecimento e um longo período
de latência. Por fim, desencadeado pelos assassinatos de Moisés e, mais tarde, de Jesus,
o retorno do recalcado: o ressurgimento da figura do pai morto na crença em Deus.
Trauma, recalque, latência e retorno do recalcado: esse é o mecanismo da neurose; essa
é também a lógica da religião415.
Por fim, a religião é análoga a uma neurose de crescimento. Ela se
constitui numa etapa evolutiva destinada a ser superada e substituída por uma era
científica416.
Em suma, segundo Freud, a religião pode ser qualificada como
neurose por quatro razões. Em primeiro lugar, porque, tratando-se das práticas

415
Observe-se que, ao estabelecer esse paralelo entre o desenvolvimento individual e a história da espécie
humana, Freud se inspira claramente na lei biogenética fundamental de Ernst Haeckel (1834-1919),
segundo a qual a história do indivíduo reproduz a da espécie. Ao longo da sua obra, Freud expressou a
sua adesão a esse princípio por diversas vezes (cf. FREUD, Leçons d‟introduction à la psychanalyse. In:
_______. Œuvres complètes, v.14, p.205; FREUD, Trois essais sur la théorie sexuelle. In: _______.
Œuvres complètes, v.6, p.64; FREUD, Un souvenir d‟enfance de Léonard de Vinci. In: _______. Œuvres
complètes, v.10, p.123).
416
Voltaremos a isso na seção dedicada ao problema do futuro da religião.
religiosas, o seu modo de expressão, a dinâmica dos processos envolvidos, a motivação
subjacente e os mecanismos acionados apresentam semelhanças surpreendentes com os
sintomas do neurñtico obsessivo. Isso ficou estabelecido em “Atos obsessivos e
exercícios religiosos”. Em segundo lugar, porque há uma identidade quanto ao conflito
que origina tanto a religião como a neurose obsessiva, bem como as neuroses em seu
conjunto: o complexo de Édipo. Essa foi a tese principal de Freud em “Totem e tabu”.
Em terceiro lugar, porque há uma forte analogia entre o mecanismo de uma neurose
traumática e o surgimento do monoteísmo dos judeus: trauma, recalque, latência e
retorno do recalcado. Isso ficou demonstrado em “O homem Moisés e a religião
monoteísta”. Finalmente, a religião é uma neurose porque, assim como as neuroses de
crescimento, ela está destinada a desaparecer em decorrência de um inexorável processo
de desenvolvimento. Essa hipñtese foi sugerida em “O futuro de uma ilusão”417.
O terceiro modo de associação estabelecido por Freud entre religião e
a neurose consiste, conforme anunciamos, no poder que a religião parece ter de prevenir
o desenvolvimento de uma neurose individual. Esta última possibilidade decorre da
segunda: a religião dispensa o indivíduo do desenvolvimento de uma neurose pessoal
porque é, ela mesma, uma neurose coletiva. Também esse é um ponto de vista que
Freud sustentou mais de uma vez ao longo da sua produção418.

417
Em 1927, Reik publicou “Dogma und Zwangsidee” [“Dogma e compulsão”]. A obra reúne seis
trabalhos sobre psicologia da religião numa perspectiva psicanalítica publicados em revistas ou em forma
de livro depois de 1919. Como o título o sugere, Reik leva adiante o paralelo inaugurado por Freud entre
a religião e a neurose obsessivo-compulsiva. Em “Problemas de psicologia da religião” (1919) Ŕ que, na
segunda edição, de 1928, veio a lume sob o título “Ritual: estudos psicanalíticos” Ŕ, Reik comparara os
rituais religiosos à neurose obsessiva. Levantou-se, porém, contra o seu trabalho o argumento de que os
rituais não são o elemento mais decisivo de uma religião; a crença, diziam, é que é determinante. Reik se
voltou, então, para os objetos da crença religiosa, os dogmas, revelando a existência, também aí, da
mesma dinâmica obsessivo-compulsiva. Na primeira conferência recolhida por “Dogma e compulsão”,
por exemplo, Reik procede a um estudo psicanalítico da evolução do dogma cristológico nos primeiros
séculos da era cristã. Argumenta que o dogma religioso opera segundo a lógica do pensamento obsessivo,
podendo-se identificar aí os mesmos motivos predominantes, como a ambivalência afetiva a respeito do
pai, e o emprego dos mesmos mecanismos de defesa típicos da neurose obsessiva, como a formação
reativa, a distorção, o deslocamento etc. (cf. REIK, Dogma and compulsion, p.9-161). Também Erich
Fromm (1900-1980) se interessou pelo dogma cristológico. Em 1930, ele publicou um ensaio em que
procede a uma interpretação freudo-marxista Ŕ na verdade, mais marxista do que freudiana Ŕ da evolução
do dogma cristológico ao longo dos primeiros séculos da nossa era, culminando na definição da
consubstancialidade entre o Pai e o Filho pelo Concílio de Niceia em 325. Em seu estudo, Fromm
valoriza especialmente os condicionamentos sociais, políticos e econômicos que determinaram a
definição do dogma de Cristo (cf. FROMM, O dogma de Cristo. In: _______, O dogma de Cristo, p.11-
79).
418
Cf. FREUD, L‟avenir d‟une illusion. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.185; FREUD, Le malaise
dans la culture. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.272; FREUD, Les chances d‟avenir de la thérapie
psychanalytique. In: _______. Œuvres complètes, v.10, p.68; FREUD, Psychologie des masses et analyse
Antes de passarmos para a definição da religião como ilusão, uma
palavra ainda sobre a religião e a neurose. Embora, no campo da psicopatologia, tenha
prevalecido a analogia que, acima, acabamos de trabalhar, há também, nos escritos de
Freud, comparações entre a religião e a psicose paranóica, cujo mecanismo fundamental
é a projeção419.
Essas referências são bastante precoces na obra de Freud. No dia 12
de dezembro de 1897, por exemplo, Freud escreveu a Fließ:

“Você consegue imaginar o que sejam „mitos endopsíquicos‟?


São o último produto de meu esforço mental. A tênue percepção
interna do |nosso| próprio aparelho psíquico estimula ilusões do
pensamento, que, naturalmente, são projetadas para o exterior e,
tipicamente, para o futuro e o além. A imortalidade, a
recompensa e todo o além, tudo são reflexos de nosso |mundo|
psíquico interno. Meschugge? Psicomitologia”420.

E, em “A psicopatologia da vida cotidiana”, Freud estabeleceu uma


analogia entre a religião e a paranoia com base no fato de que, em ambas, o mecanismo
da projeção desempenha um papel fundamental:

“...une large part de la conception mythologique du monde [...]


n‟est rien d‟autre que de la psychologie projetée vers le monde
extérieur” [“...uma grande parte da concepção mitolñgica do
mundo [...] não é outra coisa senão psicologia projetada no
mundo exterior”]421.

Deus, o bem e o mal, a imortalidade, os mitos do paraíso e do pecado


original, em suma, todo o mundo sobrenatural seria produto da projeção sobre a
realidade externa de fatores psíquicos inconscientes422.

du moi. In: _______. Œuvres complètes, v.16, p.81-82; FREUD, Un souvenir d‟enfance de Léonard de
Vinci. In: _______. Œuvres complètes, v.10, p.149.
419
FREUD, Remarques psychanalytiques sur un cas de paranoïa (Dementia paranoides) décrit sous forme
autobiographique. In: _______. Œuvres complètes, v.10, p.288.
420
MASSON, A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess – 1887-1904, p.287.
Essa passagem pode também ser considerada como o germe da teoria da religião de “O futuro de uma
ilusão”. De fato, já aqui, Freud sugere que as crenças religiosas sejam ilusões redutíveis à interioridade do
sujeito.
421
FREUD, La psychopathologie de la vie quotidienne, p.411.
422
Cf. FREUD, La psychopathologie de la vie quotidienne, p.412.
A religião pode ser aproximada da paranoia num outro sentido ainda.
Na medida em que se constitui numa Weltanschauung, a religião assemelha-se, tal
como a filosofia metafísica, a um delírio paranóico423.
Seja como for, não obstante as semelhanças possíveis entre o
fenômeno religioso e a psicose paranóica, não há dúvidas de que, tratando-se de fazer
um diagnóstico do fato religioso, Freud sempre deu preferência à analogia entre a
religião e a neurose, em especial, a neurose obsessiva.
Ademais, a aproximação entre a religião e a psicose remete-nos
justamente ao outro modelo hermenêutico utilizado por Freud em sua interpretação do
fenômeno religioso, qual seja, o paradigma onírico. O sonho, com efeito, na medida em
que se constitui numa realização delirante e alucinatória de desejos, é uma espécie de
psicose cotidiana424. Interpretada a partir desse modelo, a religião se nos afigura, então,
como uma ilusão425.
O que Freud entende, porém, por “ilusão”? Uma ilusão, segundo
Freud, é uma crença condicionada pelo desejo. Já em “Atualidades sobre a guerra e a
morte”, ele escreveu: “Les illusions [...] nous épargnent des sentiments de déplaisir et à
leur place nous font jouir de satisfactions” [“As ilusões [...] nos poupam de sentimentos
de desprazer e, em seu lugar, nos fazem gozar de satisfações”] 426. E assim se dá porque
as ilusões realizam os nossos desejos; o desejo é o motor da ilusão. A característica
essencial da ilusão está, pois, em que a sua motivação fundamental é o desejo427.
Precisamente sob esse aspecto, coloca-se a analogia entre a religião e
o sonho. Na verdade, segundo Freud, todas as formações do inconsciente são
realizações de desejos. Se há, porém, uma formação do inconsciente que pode ser
chamada de “realização de desejos” por antonomásia, trata-se do sonho. Na linguagem
ordinária, aliás, a palavra “sonho” pode perfeitamente designar o desejo mais profundo
de uma pessoa. Assim, quando entende as crenças religiosas como realizações de
423
Cf. FREUD, Avant-propos à “Problèmes de psychologie religieuse” de Theodor Reik. In: _______.
Œuvres complètes, v.15, p.213; FREUD, Totem et tabou. In: _______. Œuvres complètes, v.11, p.28.
424
Cf. Freud, Abrégé de psychanalyse. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.265.
425
Cf. FREUD, L‟avenir d‟une illusion. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.154, 170, 174; FREUD,
Nouvelle suite des leçons d‟introduction à la psychanalyse. In: _______. Œuvres complètes, v.19, p.260;
FREUD, Psychologie des masses et analyse du moi. In: _______. Œuvres complètes, v.16, p.81; ver
também: FREUD, Le poète et l‟activité de fantasie. In: _______. Œuvres complètes, v.8, p.170.
426
FREUD, Actuelles sur la guerre et la mort. In: _______. Œuvres complètes, v.13, p.135.
427
Cf. FREUD, L‟avenir d‟une illusion. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.171-172, 185; ver
também: FREUD, Nouvelle suite des leçons d‟introduction à la psychanalyse. In: _______. Œuvres
complètes, v.19, p.243, 252, 260.
desejos, Freud está aproximando a religião do sonho. A religião é, com efeito, uma
espécie de sonho acordado dos povos428.
A religião é, então, uma ilusão na medida em que oferece ao homem
uma imagem da realidade em que os seus traços desagradáveis são suprimidos e
substituídos por outros mais conformes ao desejo humano. Dessa forma, torna-se
possível um mundo ao contrário. Onde havia desamparo, passa a haver proteção; onde
havia sofrimento, passa a haver conforto; onde havia perplexidade, passa a haver
certeza; onde havia injustiça, passa a haver justiça Ŕ and so on. A religião pode mesmo
ser considerada a ilusão par excellence. Com efeito, pergunta Domínguez: “Quem se
atreve a prometer tanto?”429. Um Deus Pai providente, capaz de proporcionar segurança
e proteção, de afastar os terrores da natureza, de compensar as dores e as privações da
vida presente, de reconciliar o ser humano com a fatalidade do destino, em especial,
com a morte, de responder aos grandes enigmas da existência humana: “Nenhuma outra
instituição cultural jamais se atreveu a oferecer tanto”430. Em última análise, a religião
responde a um desejo fundamental do homem: o de ser “uma criança amada e
protegida”431.
A religião é, pois, uma ilusão defensiva contra a realidade; ela é
expressão de uma resistência do desejo contra as frustrações que a vida real impõe ao
homem. Trata-se, portanto, de uma manifestação da primazia do desejo sobre a

428
Em “A essência do cristianismo”, Feuerbach afirmou: “Les dogmes fondamentaux du christianisme
sont des désirs réalisés du coeur...” [“Os dogmas fundamentais do cristianismo são desejos realizados do
coração...”] (FEUERBACH, L‟essence du christianisme, p.277). Ele também escreveu: “...la religion est le
rêve de la conscience éveillée; le rêve est la clef des mystères de la religion” [“...a religião é o sonho da
consciência desperta; o sonho é a chave dos mistérios da religião”] (FEUERBACH, L‟essence du
christianisme, p.278). E disse ainda: “A religião [...] ilude o homem, ou melhor, o homem ilude a si
mesmo na religião...” (FEUERBACH, Preleções sobre a essência da religião, p.208). Como se vê, antes de
Freud, Feuerbach já havia estabelecido relações entre a crença religiosa, o desejo do homem, o sonho e a
ilusão.
429
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, Orar depois de Freud, p.20.
430
DOMÍNGUEZ MORANO, Orar depois de Freud, p.20.
431
Cf. ENRIQUEZ, De la horde à l‟État, p.124. Em “The God dellusion” [“Deus, um delírio”] (2006), não
sem alguma ironia, entre os argumentos favoráveis à existência de Deus, Clinton Richard Dawkins (1941)
cita o que ele chama de “argumento do puro desejo”. E o formula assim: “Creio mesmo em Deus! Creio
mesmo em Deus! Creio, creio, creio, creio. Creio mesmo em Deus! Portanto, Deus existe” (DAWKINS,
Deus, um delírio, p.122). Entenda-se: Deus existe porque eu desejo que Ele exista; o homem acredita no
que deseja que seja verdadeiro. Note-se, a propñsito, que “plausível” significa aquilo que é provável,
digno de ser acreditado, mas também quer dizer aquilo que é “aplaudido”, merecedor de “aplausos”. Isso
se harmoniza com a tese freudiana de que o crível é o desejável (cf. GÖRRES, Todo habla en favor. Nada
sostenible habla en contra. In: ZAHRNT, Jesús de Nazaret y Sigmund Freud, p.73).
realidade, de uma tentativa de domínio do mundo sensível pelo mundo do desejo432. Em
1930, na introdução ao livro que publicou em parceria com Bullitt, Freud vinculou a
forte religiosidade de Wilson, ex-presidente norte-americano, a uma tendência a dar as
costas ao mundo real em benefício do mundo dos desejos433. E, numa carta a Arnold
Zweig de oito de maio de 1932, ele definiu as religiões como tentativas do mundo do
desejo de controlar o mundo real434.
Outro aspecto do problema é a qualificação das crenças religiosas
como delirantes. De acordo com Freud, uma crença ilusória não contradiz
necessariamente a realidade, ao passo que uma ideia delirante está sempre em conflito
aberto com a realidade. Em “O futuro de uma ilusão”435 e em “O mal-estar na
cultura”436, Freud cogitou a possibilidade de que algumas crenças religiosas, mais do
que ilusórias, tenham um caráter delirante. A religião seria, nesse caso, um delírio de
massa. Ela recriaria a realidade a partir do desejo, remodelando, assim, de uma forma
delirante, o mundo real437.
Para concluir, um último registro: além de definir a religião como uma
neurose, uma ilusão e, eventualmente, como um delírio, Freud também a comparou a
um narcótico ou a um estupefaciente438. Aproximou-se, assim, da célebre afirmação de
Marx, segundo o qual a religião é o “ñpio do povo”439.

432
Cf. FREUD, Nouvelle suite des leçons d‟introduction à la psychanalyse. In: _______. Œuvres
complètes, v.19, p.252.
433
Cf. FREUD, Introduction à “Thomas Woodrow Wilson” de S. Freud et W.C. Bullitt. In: _______.
Œuvres complètes, v.18, p.366-367.
434
Cf. FREUD; ZWEIG, Correspondance 1927-1939, p.75.
435
Cf. FREUD, L‟avenir d‟une illusion. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.172.
436
Cf. FREUD, Le malaise dans la culture. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.268, 272.
437
Segundo o parecer de Dawkins: “Quando uma pessoa sofre de um delírio, isso se chama insanidade.
Quando muitas pessoas sofrem de um delírio, isso se chama Religião” (DAWKINS, Deus, um delírio,
p.29). O mesmo autor asseverou: “Deus [...] é um delírio; e [...] um delírio pernicioso” (DAWKINS, Deus,
um delírio, p.56). Embora Dawkins não cite Freud, há várias semelhanças entre o seu best-seller, “Deus,
um delírio”, e “O futuro de uma ilusão” Ŕ já a vizinhança semântica entre as palavras “delírio” e “ilusão”
sugere isso. O caráter combativo de ambas as obras, a oposição tipicamente iluminista entre ciência e
religião, mesmo alguns argumentos mais específicos, como a tese de que a moral não depende da religião,
aproximam bastante os dois autores. Também o fato de que a “O futuro de uma ilusão” (1927), seguiu-se,
um ano depois, a réplica de Pfister, “A ilusão de um futuro” (1928), ao passo que, a “Deus, um delírio”
(2006), seguiu-se, passado um ano, a réplica do casal Alister Edgar McGrath (1953) e Joanna Collicutt
McGrath, “The Dawkins delusion” [“O delírio de Dawkins”] (2007).
438
Cf. FREUD, L‟avenir d‟une illusion. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.189-190; FREUD,
L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.132.
439
A esse respeito, Dawkins citou George Bernard Shaw (1856-1950): “...o fato de um crente ser mais
feliz que um cético não quer dizer muito mais que o fato de um homem bêbado ser mais feliz que um
sñbrio” (DAWKINS, Deus, um delírio, p.220). Joel Birman, por sua vez, explicou o fenômeno do retorno
do religioso atualmente observado pressupondo uma equivalência entre a religião e a droga. Com efeito,
As funções da religião

O problema das funções da religião encontra-se estreitamente


relacionado ao entendimento da religião como ilusão. Naturalmente, enquanto neurose,
a religião tem a função psíquica de equacionar o problema da ambivalência afetiva a
respeito do pai e de apaziguar o sentimento de culpa decorrente desse conflito440. Mas
não é isso que pretendemos focalizar nesta seção. Interessam-nos, aqui, as funções
sociais da religião. A esse respeito, cumpre notar que, ao realizar uma série de desejos
humanos, donde o seu caráter ilusório, a religião presta um inegável serviço aos
interesses da cultura, sendo este, pois, o seu papel fundamental: auxiliar a civilização na
consecução dos seus objetivos.
Dentro desse contexto, numa certa altura de “O futuro de uma ilusão”,
Freud afirma que as crenças religiosas desempenham três tarefas: proteger o ser humano
do poder esmagador da natureza, reconciliar o homem com a crueldade do destino,
sobretudo, com a morte, e oferecer ao indivíduo compensações pelos sofrimentos que a
vida comunal lhe impõe. Um pouco adiante, Freud acrescenta que uma das funções da
religião é a legitimação dos preceitos da civilização, o que se consegue por meio da
atribuição de uma origem divina aos regulamentos que tornam a vida em sociedade
possível. Ainda em “O futuro de uma ilusão”, Freud observa que a religião oferece
respostas aos grandes enigmas que interrogam a inteligência humana. E, no mesmo
livro, ele menciona uma função adicional desempenhada pela religião: garantir a
realização final da justiça, que, na vida terrena, tão comumente deixa a desejar441.
Em “O mal-estar na cultura”, Freud voltou a elencar as funções sociais
da religião. Segundo ele, a religião desempenha, para aquele que crê, as seguintes
tarefas: solucionar, de forma cabal, os enigmas que o obsedam, assegurar que uma

na sociedade contemporânea, experimenta-se um agravamento da sensação de desamparo. Aumentam


igualmente a procura da religião pelos crentes e o consumo de drogas pelos incrédulos. A religião e a
droga seriam, pois, duas formas de proteção contra o aumentado mal-estar contemporâneo, ou ainda duas
estratégias diferentes pelas quais o sujeito procura defender-se do desamparo (cf. BIRMAN, Arquivos do
mal-estar e da resistência, p.47-54; BIRMAN, Estilo e modernidade em psicanálise, p.142, 175-179, 185-
186; BIRMAN, Mal-estar na atualidade, p.227-230, 239, 242-243).
440
Cf. FREUD, Totem et tabou. In: _______. Œuvres complètes, v.11, p.364; JONES, Ensayos de
psicoanálisis aplicado, p.162, 177.
441
Cf. FREUD, L‟avenir d‟une illusion. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.158-159, 161, 171, 175,
180.
providência velará pela sua vida e garantir que, numa existência futura, a mesma
providência compensará os sofrimentos da vida presente442.
Finalmente, na conferência “Sobre uma visão do mundo”, tratando do
que a religião promete fazer pelos homens, Freud menciona os seguintes pontos:
explicar a origem do mundo, proteger o homem da hostilidade da natureza, assegurar
compensações pelos padecimentos da vida presente e emitir prescrições e interdições443.
Como se vê, as listas de Freud não são sempre as mesmas; há itens
que figuram numa lista, mas que estão ausentes em outra. Se, contudo, reunirmos o que
ele escreveu nos três textos acima referidos, concluiremos que são seis, ao todo, as
funções desempenhadas pela religião: [1] proteger o homem da natureza hostil, [2]
reconciliá-lo com o destino, particularmente, com a morte, [3] oferecer compensações
pelos sofrimentos da vida presente, [4] explicar os enigmas da existência humana, [5]
legitimar as normas sociais e, por fim, [6] garantir a realização final da justiça.
Algumas referências eventuais a um ou outro dos seis itens que acima
relacionamos podem ser encontradas em outros textos de Freud.
Assim, por exemplo, em “Formulações sobre os dois princípios do
acontecer psíquico” (1911), bem como em “Alguns tipos de caráter revelados pelo
trabalho psicanalítico” (1916), Freud estabelece um paralelo entre a expectativa
religiosa de que a renúncia aos prazeres terrenos será recompensada
superabundantemente numa existência futura e a substituição do princípio do prazer
pelo princípio da realidade: em ambos os casos, trata-se de um adiamento do prazer. A
doutrina religiosa seria, pois, a projeção mítica de uma mudança no modo de
funcionamento mental444.
Em “Inibição, sintoma e angústia” (1926), por sua vez, Freud afirma
que a psicanálise não tem a intenção de produzir Weltanschauungen. Não sem ironia,
ele alega que deixa aos filñsofos o trabalho de elaborar esses “guias de viagem”. Em sua
opinião, manuais como esses “...sont des tentatives pour remplacer le vieux catéchisme,
si commode et si complet” [“...são tentativas de substituir o velho catecismo, tão

442
Cf. FREUD, Le malaise dans la culture. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.259.
443
Cf. FREUD, Nouvelle suite des leçons d‟introduction à la psychanalyse. In: _______. Œuvres
complètes, v.19, p.245-248.
444
Cf. FREUD, Formulations sur les deux principes de l‟avenir psychique. In: _______. Œuvres
complètes, v.11, p.18; FREUD, Quelques types de caractères dégagés par le travail psychanalytique. In:
_______. Œuvres complètes, v.15, p.16.
conveniente e tão completo”]445. Embora se trate, aqui, de uma crítica da filosofia, mais
do que da religião, é possível entrever, nessa passagem, a indicação de uma das funções
do discurso religioso, qual seja, a de prover os seus aderentes de uma Weltanschauung
capaz de silenciar as grandes questões da existência humana.
Estreitamente associada a essa função da religião, está o problema do
sentido da vida. Numa anotação de oito de julho de 1916, Wittgenstein escreveu: “To
believe in God means to see that life has a meaning” [“Crer em Deus significa ver que a
vida tem sentido”]446. Lacan também enfatizou esse ponto: “...tout ce qui est religion
consiste à donner un sens aux choses” [“...tudo o que é religião consiste em dar um
sentido às coisas”]447. O célebre psicanalista francês argumentou que o progresso
científico tende a expandir o campo do real, com as suas perturbadoras incidências
sobre a vida das pessoas. Mas prognosticou que a religião cuidará de “apaziguar os
corações”448:

“Ils sont capables de donner un sens vraiment à n‟importe quoi.


Un sens à la vie humaine, par exemple. Ils sont formés à ça”
[“Eles são capazes de dar um sentido verdadeiramente a não
importa o quê. Um sentido para a vida humana, por exemplo.
São formados nisso”]449.

Em “O mal-estar na cultura”, porém, Freud sugeriu que a pergunta


pelo sentido da vida talvez não tenha resposta450. E, numa carta endereçada a Marie
Bonaparte, datada de 13 de agosto de 1937, ele escreveu:

“Dès qu‟on s‟interroge sur le sens et la valeur de la vie, on est


malade, car ni l‟un ni l‟autre n‟existe objectivement...” [“A
partir do momento em que alguém se pergunta sobre o sentido e

445
FREUD, Inhibition, symptôme et angoisse. In: _______. Œuvres complètes, v.17, p.214.
446
WITTGENSTEIN, Notebooks 1914–1916, p.74e.
447
LACAN, Le triomphe de la religion. In: _______. Le triomphe de la religion précédé de Discours aux
catholiques, p.80
448
Cf. LACAN, Le triomphe de la religion. In: _______. Le triomphe de la religion précédé de Discours
aux catholiques, p.79, 92.
449
LACAN, Le triomphe de la religion. In: _______. Le triomphe de la religion précédé de Discours aux
catholiques, p.80; cf. LACAN, Le triomphe de la religion. In: _______. Le triomphe de la religion précédé
de Discours aux catholiques, p.81-82.
450
Cf. FREUD, Le malaise dans la culture. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.261.
o valor da vida, este alguém está doente, pois nem um nem outro
existem objetivamente...”]451.

A imagem de Deus, por sua vez, está inteiramente condicionada pelas


funções que se lhe atribui. Assim, para proteger o homem da hostilidade da natureza,
Deus é bom e poderoso; para reconciliá-lo com o destino, em particular, com a morte,
Deus é eterno e doador de vida sem fim; para oferecer-lhe compensações pelos
sofrimentos da vida presente, Deus é pródigo; para explicar-lhe os enigmas da
existência humana, Deus é sábio; para investir de autoridade as normas sociais, Deus é o
legislador; e para que, no final, os justos sejam premiados e os iníquos, punidos, Deus é
justo.
Por tudo o que faz, a religião se mostra, pois, bastante útil aos
interesses da cultura. Ela remedia, por assim dizer, as deficiências da civilização.
Segundo Freud, porém, a sociedade poderia perfeitamente dispensar esse auxílio. E isso,
no seu pensamento, não é apenas um desejo, mas uma previsão Ŕ um “prognñstico”,
digamos assim, sobre o futuro da religião.

O futuro da religião

Até os dias de hoje, em toda a longa história humana, não se


encontrou um povo sequer que não tivesse religião. Sempre houve religião452. Deixará
de haver um dia? Esse dia está se aproximando? Freud pareceu acreditar que sim.
O texto de referência sobre o problema do futuro da religião é, sem
dúvida alguma, como o seu prñprio título indica, “O futuro de uma ilusão”. Nesse livro,
como vimos, Freud explora a analogia entre a religião e as neuroses de crescimento,
nomeadamente, a neurose obsessiva das crianças. Assim como as neuroses de
crescimento são superadas com a fatal inevitabilidade de um processo de
amadurecimento, também a religião estaria destinada a ser abandonada, cedendo lugar a
uma era científica453.

451
FREUD, Correspondance 1873-1939, p.476; ver também: FREUD, O valor da vida. In: SOUZA, Sigmund
Freud e o gabinete do dr. Lacan, p.129.
452
Cf. KÜNG, Freud and the problem of God, p.72-73.
453
Cf. FREUD, L‟avenir d‟une illusion. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.184, 194.
Essa não foi, porém, a única vez que Freud se aventurou a pressagiar o
futuro do fenómeno religioso. Em “Totem e tabu”, aplicando o princípio de que a
ontogênese recapitula a filogênese, ele estabeleceu um paralelo entre as três grandes
visões do mundo que a humanidade produziu ao longo do tempo e os três estágios
fundamentais do desenvolvimento libidinal do indivíduo. A fase animista ou mitológica
corresponderia ao narcisismo; a fase religiosa teria por correlato a escolha objetal
marcada pela ligação aos pais, ou seja, o complexo de Édipo; a fase científica, por fim,
coincidiria com a maturidade, caracterizada pela substituição do princípio do prazer
pelo princípio da realidade. Com base nesse paralelo, Freud fez uma estimativa sobre o
futuro da religião: assim como o indivíduo está destinado a amadurecer, abandonando
as fases primitivas da evolução psicossexual, o desaparecimento da religião decorrerá de
um processo inexorável de desenvolvimento454.
Por seu turno, em “Sobre uma visão do mundo”, Freud escreveu:

“Si l‟on tente d‟inserer la religion dans le parcours de


développement de l‟humanité, elle n‟apparaît pas comme une
acquisition durable, mais comme un pendant de la névrose par
laquelle l‟homme de la culture pris individuellement doit passer
sur le chemin menant de l‟enfance à la maturité” [“Se se tenta
inserir a religião no percurso de desenvolvimento da
humanidade, ela não aparece como uma aquisição duradoura,
mas como um equivalente da neurose pela qual o homem
civilizado tomado individualmente deve passar no caminho que
leva da infância à maturidade”]455.

Em suma, como neurose de crescimento, como neurose obsessiva


infantil, como fase da escolha de objeto, cuja característica é a ligação da criança aos
pais, ou como o equivalente da neurose pela qual o indivíduo tem de passar em sua
transição da infância para a idade adulta, a religião está destinada a ser superada,
cedendo lugar a uma era dominada pela razão, identificada com a maturidade da história

454
Cf. FREUD, Totem et tabou. In: _______. Œuvres complètes, v.11, p.285, 298-300; ver também:
FREUD, L‟intérêt que présente la psychanalyse. In: _______. Œuvres complètes, v.12, p.121.
455
FREUD, Nouvelle suite des leçons d‟introduction à la psychanalyse. In: _______. Œuvres complètes,
v.19, p.253.
humana. Para Freud, a religião é uma neurose a ser curada e uma ilusão a ser dissipada.
E o curso mesmo da evolução humana vai cuidar dessa tarefa456.
Com essas considerações, concluímos o nosso estudo sistemático da
crítica freudiana da religião. Acreditamos, pois, que o essencial deste capítulo admite
ser assim apresentado.
Por que a religião? Por causa do complexo paterno: do sentimento de
culpa pela ambivalência afetiva a respeito do pai e da nostalgia do pai protetor.
O que é a religião? A religião é uma neurose e uma ilusão.
Para que serve a religião? Para proteger o homem da natureza hostil,
reconciliá-lo com o destino, particularmente, com a morte, oferecer-lhe compensações
pelos sofrimentos da vida presente, explicar-lhe os enigmas da existência humana,
legitimar as normas sociais e garantir a realização final da justiça.
O que será da religião? Ela desaparecerá, cedendo lugar a uma era
científica.
Em poucas palavras e da maneira mais positiva possível, isso é o
“miolo” da interpretação freudiana do fato religioso. É com essas ideias que
pretendemos dialogar no capítulo quarto deste trabalho, procedendo, assim, a uma
crítica da crítica freudiana da religião. Antes disso, porém, retomemos a vertente
diacrônica e contemos, primeiro, a história de como a Igreja Católica recebeu a
psicanálise.

456
Em “Über Religion, ein Dialog” [“Religião, um diálogo”] (1851), Arthur Schopenhauer (1788-1860)
cogitou a possibilidade de que a religião desaparecesse, como a babá que é dispensada quando uma
criança atinge certa idade (cf. VAN HERIK, Freud on femininity and faith, p.170).
CAPÍTULO 3
HISTÓRIA DA RECEPÇÃO DA PSICANÁLISE PELA IGREJA CATÓLICA

Este capítulo pretende contar a história da recepção da psicanálise pela


Igreja Católica desde os tempos de Freud até recentemente457. Para tanto, recortamos o
longo intervalo de tempo que essa tarefa abrange em quatro segmentos. Primeiramente,
um breve registro do que aconteceu durante o tempo em que Freud estava vivo, ou seja,
até o ano de 1939. Em seguida, três períodos de vinte anos cada: as décadas de 40 e 50,
60 e 70 e, por fim, 80 e 90. De uma forma aproximada, o primeiro desses três períodos
corresponde ao reinado do papa Pio XII (1939-1958); o segundo, aos pontificados de
João XXIII (1958-1963) e Paulo VI (1963-1978); e o terceiro, ao papado de João Paulo
II (1978-2005). A razão dessa periodização não é simplesmente matemática. Como
veremos, cada um desses períodos foi marcado por uma atitude dominante por parte do
catolicismo a respeito da psicanálise, a saber: recusa veemente, abertura indiscriminada
e, por fim, certo equilíbrio, acompanhado de um esfriamento da relação.

Durante a vida de Freud (até 1939)

Freud tinha perfeita consciência de que as suas teorias “batiam de


frente” com o dogma religioso. Em “Atos obsessivos e exercícios religiosos”, por
exemplo, ele admitiu que a comparação entre as práticas do homem piedoso e os

457
Sobre as reações dos judeus ao pensamento de Freud sobre a religião, especialmente, a “O homem
Moisés e a religião monoteísta”, pode-se, por exemplo, consultar: CHEMOUNI, Freud, la psychanalyse et
le judaisme, p.73, 143, 174; DINES, Duas peças de câmera. In: FRANÇA, Freud, a cultura judaica e a
modernidade, p.211; GAY, A Godless jew, p.72, 95-104, 149; GAY, Freud, p.582-583; JONES, A vida e a
obra de Sigmund Freud, v.3, p.241, 245-246; ROITH, O enigma de Freud, p.182; YERUSHALMI, O Moisés
de Freud, p.175 [nota 5], 177 [nota 23]; ZILBOORG, Psicanálise e religião, p.248-249. A respeito das
resistências dos protestantes contra a psicanálise, ver: AVIS, A hermeneutic of suspicion: Sigmund Freud.
In: _______, Faith in the fires of criticism, p.69-70; DOMÍNGUEZ MORANO, Psicoanálisis y religión:
diálogo interminable, p.164; PLÉ, Mudança da Igreja em relação à psicanálise. Concilium, n.99, p.1201.
Sobre as pressões que Pfister, especificamente, sofreu da parte dos seus colegas pastores, pode-se ler:
DOMÍNGUEZ MORANO, El psicoanálisis freudiano de la religión, p.145; DOMÍNGUEZ MORANO,
Psicoanálisis y religión: diálogo interminable, p.34, 61; GAY, A Godless jew, p.86; JONES, A vida e a
obra de Sigmund Freud, v.2, p.102; MEISSNER, Psychoanalysis and religious experience, p.74;
ROUDINESCO; PLON, Dicionário de psicanálise, p.588; WONDRACEK, O amor e seus destinos, p.39, 50-
53. Por fim, a respeito da boa acolhida que outros protestantes, além de Pfister, deram à psicanálise, ver:
AVIS, A hermeneutic of suspicion: Sigmund Freud. In: _______, Faith in the fires of criticism, p.71-72;
GAY, A Godless jew, p.88-91, 93-95; ZILBOORG, Psicanálise e religião, p.67, 78, 109, 212.
sintomas do neurñtico obsessivo tinha um teor “sacrílego”458. Em “Por que a guerra?”,
ele descreveu como uma “heresia” a sua explicação da consciência moral nos termos de
um retorno da agressividade contra o eu459. E, em “Nova sequência de lições de
introdução à psicanálise”, ele qualificou de “sacrilégio” a postulação de uma pulsão
agressiva460. “Heresia”, “sacrilégio”... foi, de fato, dessa maneira que a psicanálise foi
recebida pela Igreja Católica inicialmente.
Em 1914, fazendo um balanço da apenas começada história do
movimento psicanalítico, Freud registrou que, entre os países europeus, aquele em que a
psicanálise encontrava menor receptividade era a França461. Estaria essa resistência
relacionada ao fato de tratar-se de um país eminentemente católico? Talvez. Nos anos
60, em especial, a França chegou a ser a “Meca” dos psicanalistas. Antes disso, porém,
a invenção freudiana enfrentou ali duras resistências. Entre os elementos que
concorreram para essa oposição, Certeau menciona uma “tradição moralista” que
condenava o pansexualismo atribuído a Freud462. Não é difícil adivinhar que essa
tradição tem a ver com o catolicismo.
Ainda em 1914, Jones publicou, em alemão, um trabalho sobre a
Virgem Maria463. Em 1921, o psicanalista galês traduziu-o para o inglês com a intenção
de publicá-lo na Inglaterra. Freud, porém, ponderou:

“...I think it would be foolish to provoke God and the pious


stupidity of Old England as long as our situation is not better
insured in that remarkable island” [“...eu creio que seria uma
tolice provocar Deus e a piedosa estupidez da Velha Inglaterra
enquanto a nossa situação não estiver melhor garantida nesta
notável ilha”]464.

Outro registro de interesse ocorreu numa carta que Freud endereçou a


Pfister no dia 14 de setembro de 1926. Ali, Freud notou: “...dans l‟Autriche catholique,
458
Cf. FREUD, Actions de contrainte et exercices religieux. In: _______. Œuvres complètes, v.8, p.139.
459
Cf. FREUD, Pourquoi la guerre? In: _______. Œuvres complètes, v.19, p.77.
460
Cf. FREUD, Nouvelle suite des leçons d‟introduction à la psychanalyse. In: _______. Œuvres
complètes, v.19, p.186.
461
Cf. FREUD, Contribution à l‟histoire du mouvement psychanalytique. In: _______. Œuvres complètes,
v.12, p.276; ver também: FREUD, “Autoprésentation”. In: _______. Œuvres complètes, v.17, p.60, 109.
462
Cf. CERTEAU, Psychanalyse et histoire. In: _______, Histoire et psychanalyse, p.100-101; ver também:
GIARD, Un chemin non tracé. In: CERTEAU, Histoire et psychanalyse, p.28.
463
Cf. JONES, Ensayos de psicoanálisis aplicado, p.203-298; JONES, Psicanálise da religião cristã, p.55-
201.
464
GAY, A Godless jew, p.45; cf. DONN, Freud e Jung, p.316.
un „ecclésiastique‟ qui travaille avec l‟analyse est quelque chose de tout à fait
inimaginable...” [“...na Áustria catñlica, um „eclesiástico‟ que trabalhe com a análise é
qualquer coisa de completamente inimaginável...”]465.
Passada uma década, em 1936, o filósofo francês de orientação
católica Roland Dalbiez (1893-1976) publicou uma obra em dois volumes que teve
profunda influência sobre a recepção da psicanálise na França: “La méthode
pychanalytique et la doctrine freudienne” [“O método psicanalítico e a doutrina
freudiana”]. Dalbiez fazia parte do círculo de Jacques Maritain (1882-1973), que parece
ter sido quem o estimulou a escrever sobre Freud e a psicanálise. Nesse livro, ele
distinguiu entre o método da psicanálise e a doutrina de Freud, valorizando a primeira,
mas descartando a segunda. Dalbiez assumiu, pois, uma postura separatista a respeito da
psicanálise, admitindo o valor terapêutico da técnica da análise, mas rejeitando a sua
filosofia466.
Em 1937, um psiquiatra que era católico praticante solicitou a sua
filiação à Associação Psicanalítica de Amsterdã, e houve certa hesitação por parte da
sociedade diante dessa demanda. Freud foi consultado e, numa carta de 21 de outubro,
respondeu que o candidato deveria ser aceito467.
Embora esparsos e escassos, esses registros contam um pouco da
história dos primórdios das relações entre o catolicismo e a psicanálise. Vê-se que a
impressão inicial foi de estranhamento. Seja como for, o fato mais notável dessa história
ocorrido antes de 1939 foi a relação entre Freud e o padre Schmidt. É verdade: eles
nunca se encontraram pessoalmente. Mas se referiram um ao outro.
Wilhelm Schmidt (1868-1954) foi um padre verbita, membro da
Congregação do Verbo Divino. Cientista de renome internacional, ele foi professor da
Universidade de Viena e um dos maiores etnólogos do seu tempo. Schmidt fundou a
Escola Etnológica de Viena e dirigiu o Museu Pontifício de Etnologia de Latrão, em
Roma, de 1927 a 1939. Também fundou o instituto internacional Anthropos e o
periódico homônimo mundialmente conhecido.

465
FREUD, Correspondance avec le pasteur Pfister 1909-1939, p.156.
466
Cf. BIRMAN, Estilo e modernidade em psicanálise, p.35; BIRMAN, Freud & a filosofia, p.64; BIRMAN,
Freud e a interpretação psicanalítica, p.18-19; BIRMAN, Psicanálise, ciência e cultura, p.43, 61, 73, 75;
GAGEY, Freud et le christianisme, p.144; ROUDINESCO, História da psicanálise na França, v.2, p.75,
215.
467
Cf. REIK, Trente ans avec Freud, p.114-115.
Grande linguista de culturas primitivas, as suas contribuições mais
significativas deram-se no campo da linguagem comparada. Schmidt publicou mais de
600 títulos. A obra da sua vida foram os 12 grossos volumes, com cerca de 1.000
páginas cada um, de “Der Ursprung der Gottesidee” [“A origem da ideia de Deus”]. O
primeiro volume foi publicado em 1912; o último, postumamente, em 1955. A obra é
uma verdadeira enciclopédia das crenças religiosas e éticas das sociedades primitivas do
mundo.
A tese fundamental de Schmidt é que a maioria Ŕ senão a totalidade Ŕ
dessas sociedades é monoteísta, possuindo um conceito de Deus que serve de
fundamento para a sua moralidade. Segundo o padre verbita, de início, a religião
constituía-se numa crença em um Ser supremo, e, apenas mais tarde, essa espécie de
monoteísmo degenerou em politeísmo. Schmidt dedicou-se, pois, a fundamentar
cientificamente um dado da revelação cristã: o monoteísmo originário.
Nenhum dos 12 volumes dessa obra monumental menciona Freud.
Schmidt escreveu, porém, diversos artigos em que o critica. Em 1928, por exemplo, ele
proferiu uma conferência em Viena que foi publicada no ano seguinte sob o título “Der
Ödipus-Komplex der Freudschen Psychoanalyse und die Ehegestaltung des
Bolshewismus” [“O complexo de Édipo da psicanálise freudiana e a condição de
casamento no bolchevismo”]. Nesse artigo, Schmidt rejeita “Totem e tabu” servindo-se
dos argumentos do antropólogo norte-americano Alfred Louis Kroeber (1876-1960). A
tese freudiana de que a comunhão cristã remonta ao banquete totêmico Ŕ que, por sua
vez, celebra o assassinato do pai primevo Ŕ é rechaçada com forte indignação. A origem
que Freud atribui à sociedade, à moral e à religião é reputada revoltante.
Em sua crítica, Schmidt inclui “O futuro de uma ilusão” e estabelece
uma inesperada associação entre a psicanálise e o marxismo. De fato, considerar a
religião como uma “ilusão” não é muito diferente de defini-la como “ñpio”. Mais do
que isso, para o padre verbita, Freud e os bolchevistas perseguem o mesmo objetivo: a
destruição da família. Haveria, pois, um acordo entre o freudismo e o bolchevismo468.

468
Cf. ASSOUN, Freud et les sciences sociales, p.90 [nota 3]; DOMÍNGUEZ MORANO, Psicoanálisis y
religión: diálogo interminable, p.135 [nota 81], 140; ROUDINESCO; PLON, Dicionário de psicanálise,
p.28, 367-368; VITZ, Sigmund Freud‟s christian unconscious, p.197-198, 255 [nota 124]; YERUSHALMI,
O Moisés de Freud, p.56-58; ZILLES, Freud: a provocação do ateísmo psicanalítico. In: _______.
Filosofia da religião, p.154.
Note-se, porém, que, com toda a sua aversão pela psicanálise, Schmidt
não era anti-semita, nem tinha qualquer afinidade com o nazismo. Pelo contrário, ele foi
perseguido por assumir posições contrárias aos interesses do nacional-socialismo. Com
efeito, em 1935, Schmidt publicou a segunda edição de “Rasse und Volk” [“Raça e
povo”] atacando a doutrina racial nazista. Em 1938, ele escapou de ser capturado pela
polícia nazista e foi recebido como refugiado na Suíça469.
Schmidt teve o seu nome explicitamente citado por Freud por ocasião
dos temores que envolveram a publicação do que viria a ser “O homem Moisés e a
religião monoteísta”. Dois tipos de dificuldades levaram Freud a hesitar tratando-se da
publicação desse trabalho: a sua autocrítica e o receio de suscitar alguma retaliação por
parte da Igreja Católica. Na segunda nota preliminar ao terceiro ensaio do seu livro
sobre Moisés, Freud se referiu aos dois: os “escrúpulos interiores” e os “impedimentos
exteriores”470. Focalizaremos, agora, estes últimos.
Em carta escrita a Arnold Zweig, datada de 30 de setembro de 1934,
Freud se revelou disposto a não publicar aquela obra para evitar uma possível represália
da Igreja:

“...nous vivons ici dans une atmosphère de rigorisme catholique.


On dit que la politique de notre pays est faite par un certain Père
Schmidt, [...] qui est l‟homme de confiance du pape et qui est
malheureusement lui-même ethnologue et historien de la
religion, qui dans ses livres ne fait pas mystère de son horreur de
l‟analyse et particulièrement de ma théorie du totem” [“...nñs
vivemos aqui numa atmosfera de rigorismo católico. Fala-se que
a política do nosso país é feita por certo Padre Schmidt, [...] que
é o homem de confiança do papa e que, infelizmente, é, ele
mesmo, etnólogo e historiador da religião, que, em seus livros,
não faz mistério de seu horror da análise e, particularmente, de
minha teoria do totem”]471.

Freud prosseguiu dando como exemplo o fato de que, em Roma, a


“Rivista Italiana di Psicoanalisi” [“Revista Italiana de Psicanálise”], fundada por
Edoardo Weiss (1889-1970), tinha sido interditada por ordem de Schmidt, não tendo as

469
Cf. YERUSHALMI, O Moisés de Freud, p.185-186 [nota 29]; ver também: VITZ, Sigmund Freud‟s
christian unconscious, p.199, 256 [nota 137].
470
Cf. FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.135.
471
FREUD; ZWEIG, Correspondance 1927-1939, p.130.
boas relações de Weiss com Benito Mussolini (1883-1945) bastado para evitar essa
proibição472. Em seguida, Freud acrescentou:

“Or on peut bien s‟attendre à ce qu‟une publication de ma part


fasse un certaine sensation et n‟échappe pas à l‟attention du Père
hostile. Ainsi l‟on risquerait ici une interdiction de l‟analyse à
Vienne et un arrêt de tous nos travaux. Si le danger me
concernait moi seul, il m‟impressionnerait peu, mais priver tout
nos membres à Vienne de leur gagne-pain est pour moi une trop
grande responsabilité” [“Ora, pode-se perfeitamente esperar que
uma publicação minha cause certa sensação e não escape à
atenção do padre hostil. Assim, correríamos, aqui, o risco de
uma interdição da análise em Viena e de uma paralisação de
todos os nossos trabalhos. Se o perigo concernisse a mim
somente, ele me impressionaria pouco, mas privar do seu ganha-
pão todos os nossos membros em Viena é, para mim, uma
responsabilidade grande demais”]473.

Em novembro do mesmo ano, numa conversa com Jones, Freud


mencionou que, por ordem do Vaticano, a “Revista Italiana de Psicanálise” havia sido
suspensa. Ele suspeitava que Schmidt estivesse por trás disso. Mussolini chegou a
prometer a anulação da suspensão, mas a sua autoridade não parecia ter sido bastante474.
Nas cartas de seis de novembro e 16 de dezembro de 1934 que
endereçou a Arnold Zweig, Freud voltou a se referir ao “perigo” de publicar o seu
trabalho sobre o monoteísmo judaico475. Já sabemos do que ele está falando.
Numa certa altura, Arnold Zweig chegou a sugerir a Freud que a obra
fosse publicada reservadamente na Palestina. Eitingon, porém, discordou dessa solução,
argumentando que o estilo revelaria inevitavelmente a identidade do autor476.
Em seis de janeiro 1935, numa carta a Andreas-Salomé, Freud
afirmou que hesitava em publicar o seu último livro por medo da Igreja Católica.
Referindo-se à conclusão a que chegou com a obra, Freud escreveu:

472
Acredita-se que Schmidt tenha incitado a Santa Sé a pressionar o governo de Mussolini a pôr fim ao
movimento psicanalítico na Itália. Gemelli ficou encarregado de falar com Mussolini, que era seu amigo.
Antes de tomarem caminhos diferentes, Gemelli e Mussolini haviam sido companheiros no movimento
socialista (cf. YERUSHALMI, O Moisés de Freud, p.57-58).
473
FREUD; ZWEIG, Correspondance 1927-1939, p.130.
474
Cf. JONES, A vida e a obra de Sigmund Freud, v.3, p.198.
475
Cf. FREUD; ZWEIG, Correspondance 1927-1939, p.135-136.
476
Cf. JONES, A vida e a obra de Sigmund Freud, v.3, p.200.
“...cette formule [...], on ne peut plus, de nos jours, l‟énoncer en
Autriche, sous peine d‟encourir du gouvernement à
prépondérance catholique qui nous dirige une condamnation
publique de l‟analyse” [“...essa fñrmula [...], não se pode mais,
em nossos dias, expressá-la na Áustria, sob pena de expormo-
nos a que o governo de hegemonia católica nos dirija uma
condenação pública da análise”]477.

Em 1936, no dia 17 de junho, endereçando-se a Arnold Zweig, Freud


não escondeu a sua antipatia por Schmidt:

“Que notre principal ennemi, le P. Schmidt, ait reçu la


décoration autrichienne de l‟Art et de la Science pour ses pieux
mensonges en ethnologie, c‟est à moi que j‟en atribue le mérite”
[“Que o nosso principal inimigo, o P. Schmidt, tenha recebido a
condecoração austríaca da Arte e da Ciência por suas piedosas
mentiras em etnologia, é a mim que eu atribuo o mérito”]478.

Em 27 de março de 1937, numa carta a Pfister, Freud comentou que


“perigos externos” impediam a publicação da sua pesquisa sobre Moisés479.
No começo de 1938, na primeira nota preliminar ao que veio a ser a
terceira parte de “O homem Moisés e a religião monoteísta”, Freud manifestou o seu
receio de, publicando aquela obra, despertar a hostilidade da hierarquia católica. Esta
poderia, por exemplo, proibir o exercício da psicanálise. Disse Freud: “Ces méthodes
violentes d‟oppression ne sont certes aucunement étrangères à l‟Église” [“Por certo,
esses métodos violentos de opressão não são, de modo algum, estranhos à Igreja”]480.
Freud cogitou “engavetar” o livro481.
Na segunda nota preliminar ao terceiro ensaio de “O homem Moisés e
a religião monoteísta”, escrita em Londres, em junho de 1938, Freud voltou a se referir
ao temor que sentiu em Viena de, publicando aquela obra, sofrer algum tipo de punição
por parte da Igreja, como, por exemplo, a proibição do exercício da psicanálise na
Áustria, o que afetaria não apenas a ele, mas a todos os psicanalistas austríacos482.

477
ANDREAS-SALOMÉ, Correspondance avec Sigmund Freud 1912-1936, p.253-254.
478
FREUD; ZWEIG, Correspondance 1927-1939, p.171.
479
Cf. FREUD, Correspondance avec le pasteur Pfister 1909-1939, p.205.
480
FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.133.
481
Cf. FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.134.
482
Cf. FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.135.
Por fim, no começo da segunda parte do terceiro ensaio, Freud
mencionou, mais uma vez, o receio de que a psicanálise fosse interditada, acrescentando
que só se decidiu a publicar o último ensaio de “O homem Moisés e a religião
monoteísta” depois que deixou Viena e se estabeleceu na Inglaterra483.
E esses foram os primeiros movimentos das relações entre Freud, a
sua psicanálise e o catolicismo. Não foi, convenhamos, um bom começo.

Décadas de 1940 e 1950 (Pio XII: 1939-1958)

Freud morreu no dia 23 de setembro de 1939. Em 1940, Rudolf Allers


(1883-1963) publicou “The successful error”, obra que, mais tarde, passou a ser editada
sob o título “What‟s wrong with Freud?”. Em português, o seu livro foi publicado sob o
título “Freud”, com o subtítulo “Estudo crítico da psicanálise”, o que evidentemente não
reproduz o caráter provocativo que teria a tradução literal dos títulos em inglês: “O erro
bem-sucedido”, “O equívoco triunfante” ou “O que há de errado com Freud?”.
Allers nasceu em Viena, na Áustria. Médico psiquiatra, foi discípulo
de Freud nos anos 20, trabalhou com Adler por 13 anos e teve Frankl como discípulo.
Conheceu, pois, de perto as assim chamadas “três escolas vienenses de psicologia”. Nos
anos 30, a convite de Gemelli, transferiu-se para Milão, onde se doutorou em filosofia,
em 1934, pela Università Cattolica del Sacro Cuore [Universidade Católica do Sagrado
Coração]. Em 1938, emigrou para os Estados Unidos, tendo se tornado professor de
psicologia na Catholic University of America [Universidade Católica da América], em
Washington. Entre livros e artigos, Allers publicou aproximadamente 600 textos.
Catñlico fervoroso, ele chegou a ser chamado o “anti-Freud”484.
Um dos capítulos do livro lançado em 1940 trata das relações entre a
psicanálise e a etnologia. Allers “bate duro”: aos seus olhos, as hipñteses de “Totem e
tabu” são “puras divagações”; a base da antropologia freudiana é “fictícia”; Freud
mesmo é descrito como um “fanático”; as suas conclusões e premissas são “fantásticas”;
aquilo de que tratam os psicanalistas são “quimeras”485.

483
Cf. FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.182.
484
Cf. TORELLÒ, Psicanálise ou confissão?, p.98 [nota 1].
485
Cf. ALLERS, The successful error, p.183-184, 186-187.
Mais bombásticas, porém, são as afirmações de Allers no capítulo
intitulado “Psychoanalysis and religion” [“Psicanálise e religião”]486. Diz Allers:

“Whoever conscientiously examines psychoanalysis and


considers the facts supplied by this psychology as to its own
nature, can arrive at but one conclusion. This conclusion may be
stated briefly thus: psychoanalysis is a heresy” [“Quem quer que
examine cuidadosamente a psicanálise e considere os fatos
fornecidos por essa psicologia, pelo que diz respeito à sua
própria natureza, só pode chegar a uma conclusão. Essa
conclusão pode ser expressa brevemente assim: a psicanálise é
uma heresia”]487.

Mais:

“I hold that psychoanalysis is an enormous and a dangerous


error. I desire to prevent as many people as possible Ŕ and
primarily of course as many Christians as possible Ŕ from falling
a prey to this error” [“Eu sustento que a psicanálise é um
enorme e perigoso erro. E desejo evitar que tantas pessoas
quanto possível Ŕ e, primeiramente, é claro, que tantos cristãos
quanto possível Ŕ caiam vítimas desse erro”]488.

E ainda:

“...a Catholic ought to beware of getting too close contact with


Freudian ideas. If he is fully acquainted with them, he will avoid
such a contact by himself. If he is not, he ought to be warned
away” [“...um catñlico deve guardar-se de ter um contato muito
próximo com as ideias freudianas. Se ele tiver delas inteiro
conhecimento, evitará esse contato por si mesmo. Se não, ele
deve ser prevenido”]489.

Não acabou:

“No Catholic can ever feel tempted to make his own these ideas
Ŕ e.g. of religion as a compulsory neurosis, of God as father-
image, of communion going back to the totemistic meal Ŕ ideas,

486
Cf. ALLERS, The successful error, p.197-215.
487
ALLERS, The successful error, p.202.
488
ALLERS, The successful error, p.205.
489
ALLERS, The successful error, p.210.
which he cannot but feel to be wrong, not to say sacrilegious”
[“Um catñlico não pode jamais professar estas ideias Ŕ por
exemplo, a ideia da religião como uma neurose compulsiva, a
ideia de Deus como uma imagem do pai, a ideia de a comunhão
remontar à refeição totêmica Ŕ, ideias que ele não pode senão
considerar erradas, para não dizer sacrílegas”]490.

Referindo-se à psicanálise, Allers acrescenta:

“Its philosophy [...] is based on ideas which not only a Catholic,


but every man believing in a higher principle existing above
matter and dominating it, cannot but reject” [“A sua filosofia
[...] é baseada em ideias que não apenas um católico, mas todo
homem que acredite na existência de um princípio acima da
matéria e que a domine não pode senão rejeitar”]491.

Em suma: “Psychoanalysis appears thus as an immense error” [“A


psicanálise se nos afigura, então, como um imenso erro”] 492: “a successful error” [“um
erro bem sucedido”]493.
Note-se ainda que, nesse livro, diferentemente de Dalbiez, Allers
argumenta que não é possível separar o método psicanalítico da filosofia que o
acompanha, a fim de se acolher o primeiro e se descartar a segunda494. Noutras palavras,
não há sequer a possibilidade de um aproveitamento parcial da psicanálise; ela deve ser
rejeitada em bloco.
O livro de Allers abriu a década de 40. A segunda metade do mesmo
decênio foi marcada pela conquista de espaço pela psicanálise em três periódicos
dirigidos por católicos.
Em 1946, Choisy fundou a revista “Psyché”. Voltaremos a Choisy
alguns parágrafos adiante. Trata-se de uma figura notável.
No ano de 1947, o padre dominicano Robert-Albert Plé (1910-1988)
acrescentou ao periñdico “La vie spirituelle” [“A vida espiritual”] uma nova publicação,
então, denominada “Le supplément” [“O suplemento”]. Aberta ao diálogo entre a
espiritualidade cristã e as ciências mentais, a revista logo se mostrou interessada em

490
ALLERS, The successful error, p.213.
491
ALLERS, The successful error, p.255.
492
ALLERS, The successful error, p.257.
493
Cf. ALLERS, The successful error, p.258.
494
Cf. ALLERS, The successful error, p.214, 248, 250, 256.
artigos de psicanálise, que, por sua vez, era comumente apresentada em termos
favoráveis. Segundo João Edênio dos Reis Valle Ŕ padre da Congregação do Verbo
Divino, psicólogo e professor da PUC-SP Ŕ, o periñdico prestou um “notável serviço”
ao diálogo entre a espiritualidade e a psicologia495.
Dois anos depois, a psicanálise ganhou espaço em mais uma revista
catñlica. Fundado em 1911, o periñdico “Études carmélitaines” [“Estudos
carmelitanos”] teve a sua publicação interrompida em 1936. Passada a guerra, foi
retomado, tendo sido editado até o começo da década de 60. Antes disso, porém, em
1949, o padre carmelita Bruno de Jésus-Marie direcionou a revista para o campo das
relações entre a mística e a psicologia, “abrindo as suas portas” aos psicanalistas. Em
“L‟érotisme” [“O erotismo”] (1957), Georges Bataille (1902-1968) elogiou a
publicação496. O padre jesuíta Josef Sudbrack (1925-2010), por sua vez, descreveu o
periñdico como uma “valiosa série”497.
Essas revistas tiveram um papel não desprezível na recepção da
psicanálise pelo meio católico francês e Ŕ por que não dizê-lo? Ŕ internacional. A
França, afinal, naqueles tempos, gozava de grande ascendência cultural sobre diversos
países do mundo.
Ainda em 1949, B.G. Sanders publicou “Christianity after Freud”
[“Cristianismo depois de Freud”]. No prefácio da obra, o autor se apresenta como
alguém, por um lado, persuadido da validade do método psicanalítico e, de outra parte,
incapaz de negar a existência de Deus e a verdade da religião cristã. O seu livro é uma
tentativa de reconciliar uma coisa e outra:

“This essay [...] has a single aim: namely, to reconcile what I


believe to be two views of life which are only apparently hostile
to one another” [“Este ensaio [...] tem um único objetivo: a
saber, reconciliar o que eu acredito serem duas visões da vida
apenas aparentemente hostis entre si”]498.

495
Cf. VALLE, Religião e espiritualidade. In: AMATUZZI, Psicologia e espiritualidade, p.91 [nota 12]; ver
também: GIARD, Un chemin non tracé. In: CERTEAU, Histoire et psychanalyse, p.33-34; ROUDINESCO,
História da psicanálise na França, v.2, p.216.
496
Cf. BATAILLE, L‟érotisme, p.245.
497
Cf. SUDBRACK, Experiência religiosa e psique humana, p.35; ver também: ÁVILA, Para conhecer a
psicologia da religião, p.23; DEMPSEY, Freud, psychanalyse et catholicisme, p.8; ROUDINESCO, História
da psicanálise na França, v.2, p.212.
498
SANDERS, Christianity after Freud, p.12.
Segundo Sanders, Freud parte do princípio de que Deus não existe. A
inexistência de Deus, na obra de Freud, não é uma conclusão, mas um pressuposto.
Sanders procede, pois, a uma interpretação psicanalítica da religião Ŕ em especial, de
alguns aspectos do cristianismo Ŕ, partindo, ao contrário, do pressuposto da existência
de Deus. Ao final do trabalho, ele conclui:

“...even when examined by the Psycho-analytic method, the


phenomena of religious beliefs and practices are not
incompatible with belief in the existence of God, but are patient
of a theistic interpretation” [“...mesmo quando examinado pelo
método psicanalítico, o fenômeno das crenças e práticas
religiosas não é incompatível com a crença na existência de
Deus, mas é passível de uma interpretação teísta”]499.

Podemos, agora, voltar a Choisy. Analisada por Charles Odier (1886-


1954) e amiga de Laforgue, a jornalista e escritora Maryse Choisy (1903-1979) abraçou
o catolicismo na segunda metade da década de 30, depois de um encontro com o padre
jesuíta, filósofo, teólogo e paleontólogo Pierre Teilhard de Chardin (1881-1955).
Em 1946 Ŕ já o notamos Ŕ, ela fundou o periñdico “Psyché”. Choisy
não julgou que ser católica fosse algo incompatível com a psicanálise, tampouco com a
religiosidade oriental. Daí que Elisabeth Roudinesco (1944) tenha dito que Choisy
sonhou em fazer da sua revista a rival da “Revue française de psychanalyse” [“Revista
francesa de psicanálise”], destronando a princesa Marie Bonaparte e “...opondo ao
ateísmo freudiano uma síntese entre Roma e Bagavad-Gita”500.
Em 1949, por iniciativa do padre jesuíta John Leycester King,
professor de psicologia em Oxford, e de Choisy, aconteceu a primeira reunião de
psicoterapeutas e psicólogos clínicos católicos na Abadia Notre-Dame du Bec, um
mosteiro beneditino situado na Alta Normandia, na França. O encontro tinha por
objetivo promover uma atitude cristã no exercício da psicoterapia e da psicologia
clínica.
499
SANDERS, Christianity after Freud, p.155. Infelizmente, o livro não traz informações sobre a
identidade do autor. Sanders se apresenta como um cristão (cf. SANDERS, Christianity after Freud, p.9),
mas discorda do dogma católico da Imaculada Conceição de Maria (cf. SANDERS, Christianity after
Freud, p.134-135). Como o livro foi publicado na Inglaterra, não é pequena a probabilidade de que o
autor seja anglicano. Seja como for, é um marco digno de nota na história da recepção da psicanálise pela
fé cristã.
500
ROUDINESCO, História da psicanálise na França, v.2, p.211. Escrito em sânscrito, o “Bagavad-Gita” é
um texto religioso hindu.
O V Congresso Internacional de Psicoterapia e de Psicologia Clínica
ocorrido em Roma, no ano 1953, foi o coroamento dessa iniciativa. O congresso foi
presidido por Gemelli e, como veremos, deu ocasião a que o papa Pio XII fizesse um
importante pronunciamento501.
Em 1950, Choisy publicou “Psychoanalyse et catholicisme”,
[“Psicanálise e catolicismo”] defendendo a compatibilidade entre a psicanálise e a fé
católica. Ao longo da obra, a autora enfrenta os grandes problemas da relação entre uma
coisa e outra: o ateísmo de Freud, a concepção freudiana da sexualidade, o problema
“determinismo versus liberdade”, o dilema “sentimento inconsciente de culpa ou
consciência de pecado”, a questão “psicanálise versus confissão” e outras mais. Embora
o título do livro mencione a “psicanálise”, Choisy, dando mostras de certo ecletismo,
cita também Jung abundantemente; passa de Freud ao seu maior ex-discípulo sem ver
nisso impedimento algum. Concilia, pois, “atropelando” questões difíceis, coisas que
não se harmonizam com facilidade: o livro é um pouco simplificador.
O trabalho da escritora tem, contudo, o mérito não desprezível de
reagir à atitude de veemente rejeição da psicanálise pelo catolicismo que dominava o
cenário de então. Choisy cita nominalmente Allers, representante de uma atitude que ela
descreve como “enrijecida” e um pouco “envelhecida” já de “surda desconfiança” a
respeito da psicanálise, como se se tratasse de “algo diabñlico”: “Esta actitud me parece
poco científica para un psiquiatra” [“Esta atitude me parece pouco científica para um
psiquiatra”]502. Choisy prossegue, provocativa:

“¿Si el seðor Allers tiene tanto temor de las ideas freudianas que
hasta llega a prohibir todo contacto con ellas, debemos creer que
se siente seducido por una malsana tentación? Un hombre
seguro de su fe no tiene temor de las ideas” [“Se o senhor Allers
tem tanto medo das ideias freudianas, ao ponto de proibir todo
contato com elas, não será porque se sente seduzido por uma
tentação malsã? Um homem seguro de sua fé não tem medo das
ideias”]503.

501
Cf. BEIRNAERT, Expérience chrétienne et psychologie, p.249; ROUDINESCO, História da psicanálise na
França, v.2, p.212.
502
CHOISY, Psicoanálisis y catolicismo, p.119.
503
CHOISY, Psicoanálisis y catolicismo, p.120.
Naquele mesmo ano, o padre diocesano Joseph R. Nuttin (1909-1988),
professor de psicologia da Université Catholique de Louvain [Universidade Católica de
Lovaina], na Bélgica, publicou “Psychanalyse et conception spiritualiste de l‟homme”
[“Psicanálise e concepção espiritualista do homem”], que, traduzido para o português
em 1954, ganhou o título “Psicanálise e personalidade”. No Brasil, o livro foi reeditado
diversas vezes.
Nessa obra, Nuttin discorda da rejeição em bloco da psicanálise,
argumentando que Freud tem contribuições valiosas a oferecer a uma teoria da
personalidade humana. Pondera que a concepção espiritualista tradicional
sobrevalorizou as faculdades racionais do homem, ao passo que a psicanálise focalizou
dinamismos de outra ordem, mais ligados às suas dimensões inferiores. Nuttin
reconhece, enfim, o valor da psicanálise como método terapêutico, bem como a
importância de uma série de dados psicológicos recolhidos por ela.
Por outro lado, o autor percebe que a visão de homem e a teoria da
cultura de Freud contêm aspectos que não se coadunam com uma filosofia espiritualista,
aberta para a dimensão transcendente da existência humana. Nuttin defende, pois, uma
admissão seletiva da teoria psicanalítica pelos psicólogos e médicos de orientação
espiritualista504:

“Nous avons, en effect, beaucoup à apprendre de Freud


psychologue; mais, pour le dire en termes mesurés, Freud
philosophe traite les problèmes de manière peu critique” [“De
fato, nós temos muito a aprender com o Freud psicólogo; mas,
para dizê-lo comedidamente, o Freud filósofo trata os problemas
de maneira pouco crítica”]505.

Ainda em 1950, Gemelli publicou um artigo de interesse. Esta é, vale


o registro, a quarta vez que o mencionamos neste capítulo. Já nos referimos a ele a
propósito de Schmidt, Allers e Choisy. Gemelli já faz por merecer ser apresentado.
Agostino Gemelli (1878-1959) nasceu em Milão, na Itália. Aluno de
Emil Kraepelin (1856-1926), ele foi frade franciscano, padre, médico, psicólogo,
fundador e chanceler da Universidade Católica do Sagrado Coração de Milão. Fundou,

504
Cf. NUTTIN, Psychanalyse et conception spiritualiste de l‟homme, p.55-103; 348-351.
505
NUTTIN, Psychanalyse et conception spiritualiste de l‟homme, p.96.
inclusive, o Instituto de Psicologia da referida universidade, o qual chegou a ser o mais
proeminente da Itália506.
Em maio de 1950, como dizíamos, Gemelli publicou, na revista “Vita
e pensiero” [“Vida e pensamento”], um artigo intitulado “Psicoanalisi e cattolicesimo”
[“Psicanálise e catolicismo”]. Vale a pena citar também o subtítulo: “Un cattolico può
accettare le dottrine della psicoanalisi? É utile che un cattolico a scopo „didattico‟
ovvero a scopo terapeutico si faccia analizzare?” [“Um catñlico pode aceitar a doutrina
da psicanálise? Convém que um catñlico, com finalidade „didática‟ ou com finalidade
terapêutica, se faça analisar?”]. A resposta de Gemelli para as duas perguntas é um
rotundo “não”. Eis a sua conclusão:

“Per tutte queste ragioni il cattolico non può aderire alle dottrine
psicoanalitiche; non può accetarle; egli non può sottoporsi al
trattamento psicoanalitico; non deve un cattolico affidare i
propri congiunti malati ai trattamenti degli psicoanalisti. La p.
[psicoanalisi] è un pericolo, perchè è il frutto morboso del
grossolano materialismo di Freud” [“Por todas essas razões, o
católico não pode aderir à doutrina psicanalítica; não pode
aceitá-la; não pode submeter-se ao tratamento psicanalítico; não
deve um católico confiar os próprios parentes enfermos ao
tratamento de um psicanalista. A p. [psicanálise] é um perigo,
pois é o fruto doentio do materialismo grosseiro de Freud”]507.

Dois anos passados, em abril de 1952, Felici publicou um artigo no


“Bolletino del Clero Romano” [“Boletim do Clero Romano”] intitulado “La
psicoanalisi” [“A psicanálise”]. Felici é também uma figura importante na histñria da
recepção da psicanálise pelo catolicismo.
Pericle Felici (1911-1982) nasceu em Segni, na Itália. Foi ordenado
padre em 1933. Professor de teologia moral na Pontificia Università Lateranense
[Pontifícia Universidade Lateranense], em Roma, tornou-se bispo em 1960. Foi o
secretário geral do Concílio do Vaticano II. É considerado o “arquiteto” da revisão do
Código de Direito Canônico. Em 1967, foi elevado ao cardinalato na condição de
cardeal diácono. Em 1978, sendo ele o cardeal diácono mais velho do colégio, Felici
506
Cf. ROUDINESCO; PLON, Dicionário de psicanálise, p.367-368; ROUDINESCO, História da psicanálise
na França, v.2, p.213.
507
FELICI, Psicoanalisi. In: ROBERTI, Dizionario di teologia morale, p.1165; cf. Cf. ANCONA, Il debito
della chiesa alla psicoanalisi, p.23; ANCONA, La psicoanalisi, p.194, 227; CHOISY, Psicoanálisis y
catolicismo, p.108; ROUDINESCO, História da psicanálise na França, v.2, p.215.
teve a honra de anunciar o “Habemus Papam” [“Temos Papa”] por duas vezes: em 26
de agosto, quando da eleição de Albino Luciani (1912-1978), que adotou o nome de
João Paulo I, e em 16 de outubro, por ocasião da escolha de Karol Wojtyła, que se
tornou João Paulo II. Felici morreu em 1982, um ano antes de o novo “Cñdigo de
Direito Canónico”, para o qual ele tanto contribuiu, ser promulgado.
Seja como for, interessa-nos o fato de que, no artigo que publicou 30
anos antes, Felici advertiu que, do ponto de vista moral, “...o método psicanalítico
torna-se facilmente uma escola de corrupção‟”508. Voltaremos a falar nele.
Também em 1952, mas numa perspectiva oposta à de Gemelli e
Felici, Oraison publicou a sua tese de doutorado em teologia, intitulada “Vie chrétienne
et problèmes de la sexualité” [“Vida cristã e problemas da sexualidade”].
Marc Oraison (1914-1979) nasceu em Ambarès, na França. Médico e
padre diocesano, interessou-se particularmente por ética da sexualidade. Iniciou-se na
psicanálise no final da década de 40 pela leitura das obras de Angelo Hesnard (1886-
1969), o pioneiro do freudismo na França. Autor de mais de 20 livros Ŕ boa parte deles
traduzidos para o português Ŕ, Oraison escreveu sobre sexualidade, matrimônio,
educação sexual, celibato, culpabilidade, controle de natalidade, homossexualidade,
prostituição etc.
A tese de Oraison não é um primor em rigor teórico, mas destaca-se
pelo ineditismo das questões enfrentadas. Trata-se de uma corajosa reavaliação da moral
cristã inspirada na psicanálise. Foi um sucesso editorial, e isso atraiu a atenção das
autoridades eclesiásticas.
No dia 18 de março de 1953, o Santo Ofício determinou que o livro de
Oraison fosse incluído no Index Librorum Prohibitorum [Índice dos Livros Proibidos].
A faculdade de teologia em que a tese foi defendida, Plé, que assinou o nihil obstat
[nada obsta], assim como o padre que prefaciou o livro foram todos advertidos509.
Ainda em 1952, o padre agostiniano Cesar Vaca publicou um livro de
introdução à psicanálise, endereçado a diretores espirituais, ao qual deu o título:
“Psicoanálisis y dirección espiritual” [“Psicanálise e direção espiritual”]. Nessa obra, o

508
ROUDINESCO, História da psicanálise na França, v.2, p.216.
509
Cf. GIARD, Un chemin non tracé. In: CERTEAU, Histoire et psychanalyse, p.34-35; ROUDINESCO;
PLON, Dicionário de psicanálise, p.368-369; ROUDINESCO, História da psicanálise na França, v.2, p.212,
216-218.
autor parece assumir uma posição ambivalente perante a psicanálise. Por um lado,
reconhece o valor da obra de Freud e a sua utilidade no ministério da direção
espiritual510. Mas, de outra parte, apresenta o seu livro como:

“...una opiniñn sobre el psicoanálisis, que puede servir de


llamada de atención, o de alarma, frente a la novedad y al
peligro que ya no debemos desconocer” [“...uma opinião sobre a
psicanálise que pode servir de chamada de atenção ou de alarme
frente à novidade e ao perigo que não devemos ignorar
mais”]511.

Segundo Vaca, na psicanálise, encontram-se, ao mesmo tempo:

“...verdades ricas que harán avanzar la psicología y el


conocimiento del hombre, y magma oscuro y terroso de
equivocaciones que han de ser depuradas y corregidas”
[“...verdades preciosas que farão avançar a psicologia e o
conhecimento do homem e magma obscuro e terroso de
equívocos que devem ser depurados e corrigidos”]512.

O livro de Vaca, publicado na Espanha, é claramente uma reação à


recepção excessivamente generosa concedida à psicanálise pelos católicos na França. O
padre agostiniano observa que “...los llamados „psicoanalistas catñlicos‟ pululam por
todas partes, especialmente allende los Pirineos” [“...os chamados „psicanalistas
catñlicos‟ pululam por toda parte, especialmente além dos Pirineus”]513. Vaca cita
nominalmente Choisy, a quem chama de “capitã” dos psicanalistas catñlicos514. E
defende a tese de que “...se hace imprescindible adoptar en Espaða un criterio acerca del
psicoanálisis” [“...se faz imprescindível adotar, na Espanha, um critério acerca da
psicanálise”]515. Entre a feroz oposição de Allers a Freud e a generosa acolhida
oferecida por Choisy, Vaca fica com o primeiro:

“Concedemos que ALLERS es un enemigo cerrado del freudismo


y que su opinión parece muy tajante. Pero, después de conceder
510
Cf. VACA, Psicoanálisis y dirección espiritual, p.11-12, 526.
511
VACA, Psicoanálisis y dirección espiritual, p.15.
512
VACA, Psicoanálisis y dirección espiritual, p.20.
513
VACA, Psicoanálisis y dirección espiritual, p.14-15.
514
Cf. VACA, Psicoanálisis y dirección espiritual, p.440-441, 513, 520.
515
VACA, Psicoanálisis y dirección espiritual, p.19.
eso..., tiene razñn” [“É verdade que Allers é um inimigo fechado
do freudismo e que sua opinião parece muito contundente. Mas,
depois de conceder isso..., ele tem razão”]516.

Sim, continua:

“Hemos de reconocer que Allers tiene razñn. No voy a lanzarme


a condenar la postura de los psicoanalistas católicos, cuya buena
fe vuelvo a respetar, pero es lo cierto que no se mueven en
terreno firme. Si se quiere mantener una actitud clara y
consecuente con toda la trama del pensamiento de la filosofía
católica, necesariamente hay que condenar el freudismo”
[“Temos que reconhecer que Allers tem razão. Não vou arrojar-
me a condenar a postura dos psicanalistas católicos, cuja boa fé
volto a reconhecer, mas é certo que não se movem em terreno
firme. Se se quer manter uma atitude clara e consequente com
toda a trama do pensamento da filosofia católica, deve-se
necessariamente condenar o freudismo”]517.

Feita uma introdução geral à teoria psicanalítica, Vaca dedica os


últimos capítulos do livro ao que ele denomina a “filosofia” de Freud. O capítulo
dedicado ao tema “psicanálise e religião” começa com as seguintes palavras:

“Con pena, más bien que con ánimo airado, comienzo este
capítulo triste del psicoanálisis, que constituirá siempre un
estigma para la obra de FREUD. Si en otros puntos de doctrina,
los errores están mezclados con hallazgos científicos
aprovechables, cuando llega a tratar de la Religión, FREUD deja
de ser un valor constructivo para convertirse en la vulgaridad de
un sectario, con todos los prejuicios, toda la indocumentación y
toda la cerrazón mental, a que nos tenían acostumbrados los
materialistas del siglo pasado. Detrás de sus teorías sobre la
Religión, se trasluce al judío ateo, enemigo declarado de Cristo.
Por eso, lo que hace ya no es ciencia, ni examen sereno de los
hechos, sino interpretación caprichosa y torcida, negación
sistemática y desfiguraciñn de realidades” [“Com pesar, mais do
que com ânimo irritado, começo este capítulo triste da
psicanálise, que constituirá sempre um estigma para a obra de
Freud. Se, em outros pontos de doutrina, os erros estão
mesclados com achados científicos aproveitáveis, quando trata
da religião, Freud deixa de ser um valor construtivo para
converter-se na vulgaridade de um sectário, com todos os
516
VACA, Psicoanálisis y dirección espiritual, p.483.
517
VACA, Psicoanálisis y dirección espiritual, p.524.
preconceitos, toda a falta de documentação e toda a cerração
mental a que nos acostumaram os materialistas do século
passado. Por trás de suas teorias sobre a religião, transluz o
judeu ateu, inimigo declarado de Cristo. Por isso, o que faz já
não é ciência, nem exame sereno dos fatos, mas interpretação
caprichosa e torcida, negação sistemática e desfiguração de
realidades”]518.

Uma parte significativa desse capítulo é dedicada a “Totem e tabu”.


Contudo, enquanto apresenta o texto maior da crítica freudiana da religião, Vaca mal
contém a sua indignação. Diz que Freud nasceu para romancista, mas que se enganou de
carreira, que, como romance, aquilo não estaria mal. Descreve como “páginas
abomináveis” e como “monte de barbaridades” o que se lê em “Totem e tabu”.
“Estupendo disparate!”, vocifera519. Numa certa altura, quando está a ponto de começar
a apresentação do quarto ensaio, aquele do assassinato do pai primevo, exclama: “Dios
me perdone la transcripción de una serie de blasfemias, que no hago sino con la
esperanza de que sean aborrecidas”[“Deus me perdoe a transcrição de uma série de
blasfêmias, que não faço senão com a esperança de que sejam execradas”] 520. Um pouco
adiante, reagindo ao parecer de Freud de que, no cristianismo, o Filho substituiu o Pai,
Vaca explode:

“¡Dios nos ampare! ¿Habrá leído alguna vez Freud el


Evangelio? Si no lo leyó, ¿para qué habla? Y si lo hizo, ¿donde
está la honradez de esa adulteración tan descarada y cínica de
lo que aquél contine? [...] En verdad, que hace falta acordarse
de la mansedumbre y de la caridad de ese mismo Jesús, para no
airarse contra quien esto escribe” [“Deus nos proteja! Será que
Freud leu alguma vez o Evangelho? Se não o leu, por que fala?
E se o fez, onde está a honradez dessa adulteração tão
descarada e cínica do que aquele contém? [...] Na verdade, é
preciso lembrar-se da mansidão e da caridade desse mesmo
Jesus para não irar-se contra quem escreve isso”]521.

Os impropérios se multiplicam ao longo do capítulo que Vaca dedicou


ao pensamento de Freud sobre a religião: “ignorância crassa”, “contradição sem

518
VACA, Psicoanálisis y dirección espiritual, p.421.
519
Cf. VACA, Psicoanálisis y dirección espiritual, p.433-435.
520
VACA, Psicoanálisis y dirección espiritual, p.433.
521
VACA, Psicoanálisis y dirección espiritual, p.435.
sentido”, “afirmações gratuitas”, “erro”, “calúnia”, “arbitrariedade”, “falsidade”,
“desfaçatez”, “fundamento falaz”, “fantasia”, “apriorismo”, “má fé”, “estupendo
sofisma”, “absurdo” etc. Ŕ eis que Freud faz Vaca dizer522. Também da ironia se serve o
padre agostiniano. Perto do final do capítulo, Vaca conclui desqualificando Freud
quando se trata de religião:

“En realidad, FREUD no puede ser llamado un „enemigo


peligroso‟ de la Religiñn. Está acostumbrada ésta a lidiar toros
mucho más dificiles y a enfrentarse con mentalidades más
potentes que la de este médico, sumamente inteligente cuando se
mantiene en su campo, pero muy pobre cuando se sale de él”
[“Na realidade, Freud não pode ser chamado um „inimigo
perigoso‟ da religião. Esta está acostumada a enfrentar touros
muito mais difíceis e a defrontar-se com mentalidades mais
potentes do que a desse médico sumamente inteligente quando
se mantém em seu campo, mas muito pobre quando dele
sai”]523.

Encontramo-nos ainda em 1952. Este foi, de fato, um ano repleto de


acontecimentos dignos de nota. No dia 14 de setembro, Pio XII fez o primeiro dos três
discursos que realizou de interesse para a nossa pesquisa. Numa alocução aos
participantes do Primeiro Congresso Internacional de Histopatologia do Sistema
Nervoso, o papa Pacelli dirigiu-se aos médicos, tratando dos limites morais que os
novos métodos de investigação e de tratamento médicos devem respeitar. Um dos novos
métodos considerados foi o psicanalítico.
A esse respeito, o Santo Padre advertiu que o procedimento
psicanalítico de mergulhar no mundo das representações sexuais trazendo à tona todos
os desejos inconscientes constitui-se num risco para a pureza. Não se pode fazê-lo, nem
mesmo com fins terapêuticos. Os métodos indiretos, centrados na consciência, são
preferíveis. Disse o Romano Pontífice:

“Il n‟est pas prouvé, il est même inexact, que la méthode


pansexuelle d‟une certaine école de psychanalyse soit une partie
intégrante indispensable de toute psychothérapie sérieuse et
digne de ce nom...” [“Não está provado, é mesmo inexato, que o
método pansexual de uma certa escola de psicanálise seja uma
522
Cf. VACA, Psicoanálisis y dirección espiritual, p.421-462.
523
VACA, Psicoanálisis y dirección espiritual, p.446.
parte integrante indispensável de toda psicoterapia séria e digna
desse nome...”]524.

A que “escola de psicanálise” referia-se o Bispo de Roma? Alguns


anos passados, comentando o discurso papal, Felici avaliou: “...non è difficile vedere in
questa scuola, la scuola freudiana nel senso stretto...” [“...não é difícil ver nessa escola a
escola freudiana no sentido estrito...”]525. Para Felici, é com Freud que Pio XII está
falando, e as suas palavras são de “condenação”526. Plé, por sua vez, ponderou: “Sñ se
trata aí [...] de „uma certa escola‟ e de um pansexualismo ao qual o prñprio Freud se
afirma estranho”527. E acrescentou: “Não se pode pensar que Freud seja visado...”528.
Não mesmo?
Em 1953, o padre dominicano Victor White (1902-1960) publicou
“God and the unconscious” [“Deus e o inconsciente”], uma coletânea que reúne
conferências, palestras e artigos vários publicados entre 1942 e 1952. O livro foi
traduzido para o português, em Lisboa, sob o título “Deus e a psicanálise”, dando
margem a uma confusão que uma tradução literal do título original teria evitado. De
fato, embora White trate também da psicanálise, é perceptível a sua inclinação para a
psicologia analítica junguiana. Basta dizer que o prólogo do livro é de Jung.
1953 foi também o ano da fundação da Association Internacionale
d‟Études Médico-psychologiques et Religieuses [Associação Internacional de Estudos
Médico-psicológicos e Religiosos] (AIEMPR). A iniciativa partiu dos padres Louis
Beirnaert, Bruno de Jésus-Marie e Charles Durand e do doutor Charles Nodet (1907-
1982), da Sociedade Psicanalítica de Paris. A nova associação nasceu com o objetivo de
promover o diálogo entre a reflexão teológica, de um lado, e a psiquiatria, a psicologia e
a psicanálise, de outra parte. A rigor, surgiu, de início, como sociedade especificamente
católica. Muito cedo, porém, adquiriu um caráter ecumênico, passando a contar com

524
PIUS PP. XII, Iis qui interfuerunt Conventui primo internationali de Histopathologia Systematis
nervorum. Acta apostolicae sedis, v.19, n.15, p.783.
525
FELICI, Psicoanalisi. In: ROBERTI, Dizionario di teologia morale, p.1166.
526
Cf. FELICI, El pecado en el pansexualismo psicoanalítico. In: FABRO, El pecado en la filosofía
moderna, p.188; ver também: FELICI, El pecado en el pansexualismo psicoanalítico. In: FABRO, El pecado
en la filosofía moderna, p.155-156, 187.
527
PLÉ, Mudança da Igreja em relação à psicanálise. Concilium, n.99, p.1202.
528
PLÉ, Mudança da Igreja em relação à psicanálise. Concilium, n.99, p.1202; cf. PLÉ, Freud et la
religion, p.8 [nota 4].
membros protestantes e ortodoxos, além de católicos. Desde 1957, a AIEMPR celebra,
a cada três anos, os seus congressos internacionais529.
No dia 13 de abril de 1953, Pio XII discursou para os participantes do
V Congresso Internacional de Psicoterapia e Psicologia Clínica. O congresso foi
presidido por Gemelli, e a alocução pontifícia foi realizada diante da associação fundada
por Choisy. Nesse pronunciamento Ŕ sem dúvida, o mais importante jamais feito por
um papa no que diz respeito à psicanálise Ŕ, o Santo Padre pareceu desaconselhar os
psicólogos cristãos a seguirem o método psicanalítico. Não sem razões. De fato, para a
fé cristã, o homem é uma unidade psíquica, constitui-se numa totalidade indivisível; é
um ser aberto para o transcendente, que tende para Deus; e, apesar das determinações
que pesam sobre ele, é livre, senhor de si, capaz de governar-se. Unidade,
transcendência, liberdade: nada disso é reconhecido pela psicanálise. Além do mais, o
método psicanalítico parece não reconhecer a existência de uma culpabilidade sã, que se
resolve no confessionário; ignora que certos segredos não devem ser revelados, mas
devem permanecer como tais; e põe em risco, como já se disse, a virtude da castidade.
A esse respeito, Pio XII voltou a manifestar a sua preferência pelos métodos indiretos,
que dispensam a evocação à consciência do mundo inconsciente dos desejos sexuais530.
Um ano depois, numa carta encíclica sobre a virgindade consagrada,
assinada em 25 de março de 1954, o papa Pio XII escreveu:

“...apartam-se do senso comum, a que a Igreja sempre atendeu,


aqueles que vêem no instinto sexual a mais importante e mais
profunda das tendências humanas, e concluem daí que o homem
não o pode coibir durante toda a sua vida sem perigo para o
organismo e sem prejuízo do equilíbrio da sua personalidade”531.

É difícil não ver nessa declaração uma referência indireta à


psicanálise.

529
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, Asociación internacional de estudios médico-psicológicos y religiosos.
Revista Portuguesa de Filosofia, v.59, f.2, p.597; DOMÍNGUEZ MORANO, Psicoanálisis y religión: diálogo
interminable, p.160; DOMÍNGUEZ MORANO, Teología y psicoanálisis, p.8, 69 [nota 21].
530
Cf. PIUS PP. XII, Iis, qui interfuerunt Conventui internationali quinto de psychotherapia et
psychologia. Acta apostalicae sedis, v.20, n.6, p.278-286; ver também: BEIRNAERT, Expérience
chrétienne et psychologie, p.247-259 ; ROUDINESCO, História da psicanálise na França, v.2, p.216;
ZILBOORG, Psicanálise e religião, p.212.
531
PIO XII, Sacra virginitas. In: _______. Documentos de Pio XII (1939-1958), p.656.
Em 1955, porém, Choisy publicou “Le chrétien devant la
psychanalyse” [“O cristão diante da psicanálise”]. O primeiro capítulo do livro,
dedicado ao discurso que Pio XII fez em 13 de abril de 1953, só pode ser descrito como
um esforço “herñico” para demonstrar que, naquela ocasião, o Santo Padre não
desaconselhou a adoção do método psicanalítico por um psicoterapeuta católico532.
Segundo Choisy, a referência do papa ao “pansexualismo”, por exemplo, nada tem a ver
com a psicanálise. Mais! A psicanálise não contradiz nenhum dos princípios enunciados
pelo Romano Pontífice:

“Parmi les principes que le Saint-Père a énoncés dans son


discours, il n‟en est pas un auquel nous ne puissions souscrire”
[“Entre os princípios enunciados pelo Santo Padre em seu
discurso, não há um sequer que nós não possamos
subscrever”]533.

Ao longo do capítulo primeiro, a escritora recolhe os pontos principais


do discurso do Vigário de Cristo. A sua retomada, porém, é intercalada por afirmações
como as seguintes: “Mais n‟est-ce pas ce que nous avons toujours soutenu?” [“Mas não
é isso o que nñs sempre dissemos?”]534; “Nous sommes donc parfaitement d‟accord
avec le Souverain Pontife” [“Nñs estamos, pois, perfeitamente de acordo com o
Soberano Pontífice”]535; “...il n‟est pas un seul mot avec lequel nous n‟ayons été
d‟accord depuis toute éternité” [“...não há uma sñ palavra com a qual nñs não estejamos
de acordo desde toda a eternidade”]536; “...je n‟ai pas dit autre chose” [“...eu não disse
outra coisa”]537; “C‟est exactement le point sur lequel j‟ai insisté” [“É exatamente o
ponto sobre o qual eu insisti”]538.
No mesmo ano de 1955, Felici assinou o verbete “Psicoanalisi”
[“Psicanálise”] do prestigioso “Dizionario di teologia morale” [“Dicionário de teologia
moral”]. O seu parecer a respeito da psicanálise é bastante desfavorável. Segundo ele, a
psicanálise freudiana leva a um verdadeiro “absurdo”; trata-se de um grande “castelo”,

532
Cf. CHOISY, Le chrétien devant la psychanalyse, p.5-29.
533
CHOISY, Le chrétien devant la psychanalyse, p.14.
534
CHOISY, Le chrétien devant la psychanalyse, p.15.
535
CHOISY, Le chrétien devant la psychanalyse, p.17.
536
CHOISY, Le chrétien devant la psychanalyse, p.18.
537
CHOISY, Le chrétien devant la psychanalyse, p.26.
538
CHOISY, Le chrétien devant la psychanalyse, p.27.
“original” e “fantasioso”, construído a partir de uma experiência limitada a indivíduos
“psiquicamente desequilibrados”539. O verbete culmina com um juízo moral
condenatório sobre o ato de praticar ou submeter-se a uma psicanálise:

“...data la scarsa efficacia e la pericolosità del metodo


psicoanalítico, difficilmente poteva scusarsi da peccato mortale
chi scientemente e liberamente lo avesse adottato e si fosse ad
esso sottoposto” [“...dada a escassa eficácia e a periculosidade
do método psicanalítico, dificilmente poderia desculpar-se de
pecado mortal aquele que consciente e livremente o houvesse
adotado e a ele se submetesse”]540.

Ainda em 1955, mas numa tendência oposta, em um artigo publicado


em “Faith, reason and modern psychiatry” [“Fé, razão e psiquiatria moderna”],
Zilboorg lamentou que muitos crentes rejeitassem a psicanálise por considerá-la hostil à
religião:

“La plupart des théologiens et des penseurs religieux, au lieu de


rassembler toutes ces observations et de les examiner
froidement, préférènt [...] rejeter toute la richesse de la
psychanalyse sous prétexte qu‟elle contredit les principes de la
foi religieuse” [“A maior parte dos teñlogos e pensadores
religiosos, ao invés de reunir todas essas observações e de as
examinar friamente, preferem [...] rejeitar toda a riqueza da
psicanálise sob o pretexto de que ela contradiz os princípios da
fé religiosa”]541.

Zilboorg termina o seu artigo, insistindo em que as descobertas


psicolñgicas de Freud têm “aspectos positivos”, a despeito de sua atitude anti-
religiosa542.
O médico psiquiatra e psicanalista Gregory Zilboorg (1890-1959) Ŕ
vale o registro Ŕ nasceu na cidade de Kiev, na Rússia, e emigrou para os Estados Unidos
da América em 1919. Filho de judeus ortodoxos, ele foi educado na fé judaica, mas, ao

539
Cf. FELICI, Psicoanalisi. In: ROBERTI, Dizionario di teologia morale, p.1165.
540
FELICI, Psicoanalisi. In: ROBERTI, Dizionario di teologia morale, p.1165; cf. PLÉ, Freud et la religion,
p.8 [nota 2].
541
ZILBOORG, Dénégations et affirmations de la foi religieuse. In: Foi, raison et psychiatrie moderne,
p.139.
542
Cf. ZILBOORG, Dénégations et affirmations de la foi religieuse. In: Foi, raison et psychiatrie moderne,
p.149.
alcançar a maioridade, abandonou a religião de sua infância. Tendo sido um quaker por
um período de sua vida, converteu-se, em 1954, ao catolicismo. Em 1962, três anos
após a sua morte, lançou-se “Psychoanalysis and religion” [“Psicanálise e religião”],
volume que reúne 11 artigos de Zilboorg publicados entre 1935 e 1958.
Em 1956, na Irlanda, o padre Peter J.R. Dempsey, missionário
franciscano de Santa Clara, publicou “Freud, psychoanalysis, catholicism” [“Freud,
psicanálise, catolicismo”]. Nesse livro, Dempsey discorre, com simplicidade e clareza,
sobre as pulsões, o aparelho psíquico, as fases da evolução psicossexual, os mecanismos
de defesa do eu, enfim, procede a uma introdução geral ao pensamento freudiano. Uma
convicção parece movê-lo nesse esforço: “...l‟esprit catholique peut s‟enrichir de faits
ou de vérites découvertes par l‟analyse...” [“...o espírito catñlico pode se enriquecer de
fatos ou de verdades descobertas pela análise...”]543. Convencido disso, referindo-se aos
princípios essenciais da psicanálise, diz Dempsey: “...nous nous sommes efforcés de les
intégrer autant que possible dans le cadre de la pensée catholique” [“...nñs nos
esforçamos para integrá-los tanto quanto possível no quadro do pensamento
catñlico”]544.
No dia 10 de abril de 1958, Pio XII se dirigiu aos participantes do XIII
Congresso Internacional de Psicologia Aplicada545. Nessa alocução, o Romano Pontífice
retomou alguns pontos dos discursos anteriores: reafirmou a unidade psicológica do ser
humano; insistiu na existência de um eu, centro da personalidade, que dispõe livremente
de si mesmo; e garantiu que os dinamismos inconscientes não são irresistíveis, mas
podem ser dominados Ŕ sobretudo, pelo sujeito normal. O tema dos segredos
inconfessáveis, presente no discurso precedente, reapareceu também aqui.
Zilboorg comentou os discursos de Pio XII de 13 de abril de 1953 e 10
de abril de 1958 num pequeno artigo intitulado “A esfera moral da psiquiatria”,
publicado pela primeira vez em 1958546. No mesmo ano, num artigo intitulado “Freud e
a religião”, Zilboorg observou que, embora, em 1953, o papa tenha indicado “as
limitações morais de certos aspectos da psicanálise”, ele “...não tomou uma atitude

543
DEMPSEY, Freud, psychanalyse et catholicisme, p.10.
544
DEMPSEY, Freud, psychanalyse et catholicisme, p.9.
545
Cf. PIUS PP. XII, Iis qui interfuerunt Conventui XIII Societatis internationalis “de Psychologie
appliquée”. Acta apostalicae sedis, v.25, n.6-7, p.268-282.
546
Cf. ZILBOORG, Psicanálise e religião, p.205-210.
irreconciliável para com a psicanálise como teoria e como método de psicoterapia”547.
Zilboorg acrescentou ainda que “...o nome de Freud nem foi sequer mencionado no
discurso papal...”548.
Felici, portanto, considerou que Pio XII havia condenado a
psicanálise. Plé, Choisy e, agora, Zilboorg entenderam que não.
Em 1957, com o objetivo de evitar que pessoas psicologicamente
desequilibradas se tornassem padres, a Santa Sé passou a exigir que os candidatos ao
sacerdócio se submetessem a uma perícia psiquiátrica. Essa decisão ocasionou o
surgimento de associações psicológicas destinadas ao discernimento das vocações.
Nesse contexto, em 1959, Plé, Beirnaert, Oraison e Andrée Lehmann,
fundaram a Association Médico-psychologique d‟Aide aux Religieux [Associação
Médico-psicológica de Ajuda aos Religiosos] (AMAR), cujo objetivo era oferecer ajuda
psicoterapêutica Ŕ e, eventualmente, acesso a uma análise Ŕ aos membros das
congregações e ordens religiosas549. Fundada por um padre dominicano, outro jesuíta e
um terceiro diocesano Ŕ sem falar em Lehmann Ŕ, a associação não teve dificuldades
para ganhar a confiança de muitos formadores e superiores religiosos, que passaram a
lhes enviar seminaristas, padres e freiras necessitados de ajuda psicológica. Em meados
dos anos 70, porém, a sociedade foi dissolvida em virtude de contradições internas550.
No mesmo ano de 1959, Felici publicou “Il peccato nel
pansessualismo psicoanalitico” [“O pecado no pansexualismo psicanalítico”]. Sensível,
de um modo especial, às tensões entre a teologia moral e a psicanálise, Felici acusou
esta última de ateísmo, materialismo, pansexualismo, negação da existência de uma
norma objetiva, da liberdade individual, da noção de pecado e da culpabilidade real551.
No mesmo texto, Felici citou Gemelli, concordando com ele. Em “La
psicanalisi, oggi” [“A psicanálise, hoje”], este último escreveu:

“Quien ha leído las obras Totem y tabú, así como Moisés y el


monoteísmo [...] tiene suficientes argumentos para afirmar que
547
ZILBOORG, Psicanálise e religião, p.212.
548
ZILBOORG, Psicanálise e religião, p.212.
549
Em 1966, Constant Bouchaud (1920-2010), padre sulpiciano, fundou outra sociedade nos moldes da
AMAR, desta vez, porém, destinada ao clero diocesano.
550
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, El psicoanálisis freudiano de la religión, p.485 [nota 182]; GIARD, Un
chemin non tracé. In: CERTEAU, Histoire et psychanalyse, p.34; ROUDINESCO; PLON, Dicionário de
psicanálise, p.369; ROUDINESCO, História da psicanálise na França, v.2, p.218, 220-221, 223.
551
Cf. ANCONA, Il debito della chiesa alla psicoanalisi, p.23, 25.
Freud es tan extraño al mundo religioso y especialmente al
católico, que un coloquio con él o con sus fieles seguidores, es
imposible” [“Quem quer que tenha lido obras como Totem e
tabu e Moisés e o monoteísmo [...] tem argumentos suficientes
para afirmar que Freud é tão estranho ao mundo religioso e,
especialmente, ao católico que um diálogo com ele ou com seus
fiéis seguidores é impossível”]552.

Felici também mencionou “...los intentos, a menudo... heroicos, de


armonizar con la doctrina catñlica los postulados materialistas del maestro de Viena”
[“...as tentativas, frequentemente... herñicas, de harmonizar com a doutrina catñlica os
postulados materialistas do mestre de Viena”]553. Uma dúzia de páginas adiante, ele
citou Choisy como exemplo de um esforço dessa natureza554.
Na pequena bibliografia que recolheu ao final do seu texto, Felici
elogiou Gemelli, descrevendo o seu trabalho “A psicanálise, hoje” como “breve”,
porém, “magnífico”. Por outro lado, em relação a “Psicanálise e catolicismo”, de
Choisy, disse ter “reservas”, por causa de sua “simpatia” por Freud555.
Allers contra Freud; Choisy contra Allers; Vaca, Felici e Gemelli
contra Choisy.

Décadas de 1960 e 1970 (João XXIII: 1958-1963 e Paulo VI: 1963-1978)

Em 1961, J.B. Torellò publicou “É meglio il confessore o lo


psicanalista?” [“É melhor o confessor ou o psicanalista?”]. A rigor, o livro trata das
relações entre o catolicismo e a psicanálise, com clara predileção pelas questões que a
psicanálise levanta no campo da ética. A alternativa entre a confissão sacramental e o
tratamento psicanalítico é objeto apenas de um pequeno capítulo no final da obra556.
Seja como for, a escolha do título do livro indica o quanto essa questão era candente
naquele tempo. Muitos padres viam na figura do analista um rival, na medida em que o

552
FELICI, El pecado en el pansexualismo psicoanalítico. In: FABRO, El pecado en la filosofía moderna,
p.166.
553
FELICI, El pecado en el pansexualismo psicoanalítico. In: FABRO, El pecado en la filosofía moderna,
p.154.
554
Cf. FELICI, El pecado en el pansexualismo psicoanalítico. In: FABRO, El pecado en la filosofía
moderna, p.166.
555
Cf. FELICI, El pecado en el pansexualismo psicoanalítico. In: FABRO, El pecado en la filosofía
moderna, p.190; ver também: CHOISY, Le chrétien devant la psychanalyse, p.11.
556
Cf. TORELLÒ, Psicanálise ou confissão?, p.176-188.
divã freudiano parecia ter surgido para transformar o confessionário catñlico em “peça
de museu”. Sobre as relações entre uma e coisa, muito se escreveu 557 Ŕ inclusive, ainda
que só parcialmente, esse livro de Torellò.
Referindo-se à situação da psicanálise na Itália, diz Torellò: “Muitos
crentes pensam nela com horror, como se fosse uma doutrina pornográfica e uma prática
terapêutica vergonhosa e anti-religiosa...”558. Torellò descreve Gemelli e Allers como
“dois inimigos encarniçados” da psicanálise, não se reconhecendo entre eles559. Gemelli
lhe parece, por vezes, “demasiado drástico” em sua condenação da psicanálise 560; e
Allers se lhe afigura como o “crítico mais implacável” que a obra de Freud já
conheceu561. Por outro lado, Torellò cita Choisy como exemplo de “...entusiasmos
extremistas, tolerâncias excessivamente liberais e assimilações impuras...”562. O autor
parece inclinado a manter-se equidistante seja da intolerância de uns seja da liberalidade
de outros.
Há uma coisa, porém, que um católico não pode admitir. Torellò
considera a interpretação freudiana da cultura Ŕ o que inclui a moral e a religião Ŕ como
“...a parte pior e mais infundada da Psicanálise, incompatível com uma concepção
espiritualista do homem e com a fé cristã”563. “O futuro de uma ilusão”, avalia Torellò,
é o livro em que se encontram os “maiores erros” de Freud564.
No dia 15 de julho de 1961, o Santo Ofício tornou públicas quatro
decisões disciplinares. As duas últimas dizem respeito à psicanálise diretamente e
merecem ser citadas textualmente.

557
Cf. ALLERS, The successful error, p.200-201, 209; BIRMAN, Foucault et la psychanalyse, p.44, 49, 91,
98; CHOISY, Le chrétien devant la psychanalyse, p.177-191; CHOISY, Psicoanálisis y catolicismo, p.119-
135; FELICI, El pecado en el pansexualismo psicoanalítico. In: FABRO, El pecado en la filosofía moderna,
p.181-182; FREUD, Abrégé de psychanalyse. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.267; FREUD, La
question de l‟analyse profane. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.11; FREUD, Prix Goethe 1930. In:
_______. Œuvres complètes, v.18, p.352; GAY, A Godless jew, p.39-40; KAKAR, The analyst and the
mystic, p.63; LACAN, Le triomphe de la religion. In: _______. Le triomphe de la religion précédé de
Discours aux catholiques, p.78; ORAISON, Le médicin psychanalyste et le confesseur. Recherches et
débats du Centre Catholique des Intellectuels Français, n.21, p.153-172; SIEGMUND, Fé em Deus e saúde
psíquica, p.207-219; SILVA, O ateísmo de Freud, p.74, 113; SNOECK, Confession et psychanalyse;
WHITE, Deus e a psicanálise, p.261-275; ZILBOORG, Psicanálise e religião, p.59, 72-74.
558
TORELLÒ, Psicanálise ou confissão?, p.55.
559
Cf. TORELLÒ, Psicanálise ou confissão?, p.57.
560
Cf. TORELLÒ, Psicanálise ou confissão?, p.90.
561
Cf. TORELLÒ, Psicanálise ou confissão?, p.94-95.
562
TORELLÒ, Psicanálise ou confissão?, p.59.
563
TORELLÒ, Psicanálise ou confissão?, p.69.
564
Cf. TORELLÒ, Psicanálise ou confissão?, p.70.
Diz o terceiro ponto: “Il est interdit aux clercs et aux religieux de
s‟aquitter de l‟office de psychanalyste...” [“É proibido aos clérigos e aos religiosos
exercer o ofício de psicanalista...”]565.
No último parágrafo, por sua vez, se lê:

“Il faut réprouver l‟opinion de ceux qui prétendent qu‟il est


absolument nécessaire qu‟une formation psychanalytique
précède la réception des ordres sacrés, ou que les candidats au
sacerdoce ou à la profession religieuse doivent se soumettrre à
des examens et investigations psychanalytiques proprement dits.
Ce qui vaut encore s‟il s‟agit de s‟assurer de l‟aptitude requise
pour le sacerdoce ou la profession religieuse. De même les
prêtes, les religieux et les religieuses ne peuvent consulter des
psychanalystes sans la permission de l‟Ordinaire pour une cause
grave” [“Deve-se reprovar a opinião daqueles que pretendem
que seja absolutamente necessário que uma formação
psicanalítica preceda a recepção das ordens sacras ou que os
candidatos ao sacerdócio ou à profissão religiosa devam se
submeter a exames e investigações psicanalíticas propriamente
ditas. O que vale ainda se se trata de se assegurar da aptidão
requerida para o sacerdócio ou a profissão religiosa. Da mesma
forma, os padres, os religiosos e as religiosas não podem
consultar psicanalistas sem a permissão do Ordinário por motivo
grave”]566.

A monição de 1961 parece ter sido motivada pelo experimento em


curso no mosteiro de Cuernavaca, no México567. Com efeito, naquele tempo, o padre
Grégoire Lemercier (1912-1987), prior de um mosteiro beneditino, levou 60 monges a
fazerem uma terapia de grupo conduzida por dois psicanalistas. A psicanálise passou
pelo mosteiro como um tsunami: 40 monges e, por fim, o prñprio Lemercier “deixaram

565
SUPREME SACRÉE CONGREGATION DU SAINT-OFFICE, Doctrines dangereuses et psychanalyse. La
documentation catholique, v.58, n.1357, p.1000.
566
SUPREME SACRÉE CONGREGATION DU SAINT-OFFICE, Doctrines dangereuses et psychanalyse. La
documentation catholique, v.58, n.1357, p.1000; cf. PLÉ, Mudança da Igreja em relação à psicanálise.
Concilium, n.99, p.1203; ROUDINESCO, História da psicanálise na França, v.2, p.222. A esse respeito,
Ancona ponderou que, na carta encíclica “Sacerdotalis cælibatus” [“Celibato sacerdotal”], assinada em
24 de junho de 1967, Paulo VI admitiu o recurso a um psicanalista por parte de um sacerdote que
estivesse em dificuldades (cf. ANCONA, Il debito della chiesa alla psicoanalisi, p.33). Note-se, porém,
que, no referido documento, o papa Montini admitiu a possibilidade de se recorrer a um “médico” ou
“psicñlogo” competente, sem citar explicitamente um “psicanalista” (cf. PAUL VI, Le célibat sacerdotal.
La documentation catholique, v.64, n.1498, p.1268).
567
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, Psicoanálisis y religión: diálogo interminable, p.163; DOMÍNGUEZ
MORANO, Teología y psicoanálisis, p.8; PLÉ, Mudança da Igreja em relação à psicanálise. Concilium,
n.99, p.1204.
o hábito”. Depois que tudo acabou, em 1966, Lemercier publicou o livro “Dialogues
avec le Christ” [“Diálogos com o Cristo”], com o subtítulo “Moines en psychanalyse”
[“Monges em psicanálise”], fazendo um relato da experiência.
Nascido na Bélgica em 1912 e ordenado padre em 1938, Lemercier foi
enviado ao México no começo dos anos 40 com a missão de fundar um mosteiro
beneditino. Depois de duas tentativas fracassadas, em 1950, ele fundou um mosteiro a
12 quilômetros de Cuernavaca, ao qual deu o nome de “Santa Maria da Ressurreição”.
Nesse mosteiro, desenvolveu-se “...uma experiência revolucionária, única no mundo,
que impressionou a opinião pública”568.
Fundado o mosteiro, Lemercier decidiu iniciar a sua análise pessoal
com o psicanalista Gustavo Quevedo. Foi a “ascese mais dura de minha vida”, relatou
mais tarde569. Em seguida, a psicanálise foi proposta aos demais membros do mosteiro.
Alguns padres idosos recusaram a oferta; alguns jovens também não acolheram a
proposta; mas a maior parte da comunidade aceitou o desafio. Os interessados foram
divididos em grupos de oito membros, e os grupos assim formados passaram a se reunir
uma ou duas vezes por semana sob o acompanhamento do doutor Quevedo e da
psicanalista argentina Frida Zmud, ambos filiados à International Psychoanalytical
Association [Associação Internacional de Psicanálise]. Nenhum dos dois analistas
contratados para o trabalho professava qualquer tipo de fé religiosa.
O abade Laurentin observou que a iniciativa de Lemercier:

“...partiu da constatação de um fato: as razões que levam os


homens ao claustro são variadas e, muitas vezes, confusas. Além
disso está comprovado que todos os mosteiros devem rechaçar
as vocações baseadas em equívocos, em motivações alheias ao
chamado de Deus. [...] há certas vocações autênticas co-
habitando com traumas ou desvios psicológicos (infantilidade,
narcisismo, neurose) que bloqueiam ou perturbam a vida
religiosa. Ora, esses traumas e desvios são perfeitamente
curáveis e tal cura propicia não só o aumento da fé como
também a diminuição de vocações frustradas”570.

568
LEMERCIER, Psicanálise e religião, p.20.
569
Cf. LEMERCIER, Psicanálise e religião, p.28.
570
LEMERCIER, Psicanálise e religião, p.12.
Lemercier sabia que a experiência era arriscada: “Freud não é sempre
mencionado como ateu? Será que a falta de confiança na terapia não se baseia no medo
de que percam a fé os que a ela se submeterem?”571. Mas, apesar disso, não recuou
diante do desafio de submeter todo o seu mosteiro ao crivo da psicanálise.
Passados quatro anos, os resultados da experiência pareciam ter sido
devastadores Ŕ pelo menos, do ponto de vista quantitativo. Com efeito, dentre os 60
membros do mosteiro, apenas 20 permaneceram; os outros 40 abandonaram a vida
religiosa572.
O abade Laurentin comentou o fato. É verdade que, antes da
introdução da psicanálise, o número de monges “...era maior, mas dentre eles havia
vocações ilusñrias que a análise simplesmente desmascarou”573. “A psicanálise foi
considerada nociva porque destruía as verdadeiras vocações. Estas, na realidade, foram
purificadas e fortalecidas mediante essa depuração”574, garante Laurentin.
Segundo Lemercier, não apenas as vocações foram purificadas, mas
também a fé dos que fizeram a experiência: “...a terapia é para os monges uma
purificação da fé que, ao passar por crises e dúvidas, renasce mais forte e mais
pessoal...”575. Ademais, embora tenha havido uma perda quantitativa significativa, o
ganho qualitativo foi inegável:

“Depois de quatro anos, os resultados são positivos. As


vocações falsas voltaram à vida secular, sem desesperos nem
feridas, porém curadas e esclarecidas. A fé daqueles que
permaneceram foi purificada, autenticada. A análise liberou em
muitos deles dons literários e artísticos até então desconhecidos.
O trabalho no mosteiro tornou-se mais eficaz e a vida
comunitária mais harmoniosa”, testemunha o abade
Laurentin576.

Ou seja, a quantidade foi “substituída pela qualidade”, argumenta


577
Lemercier .

571
LEMERCIER, Psicanálise e religião, p.35-36.
572
Note-se, contudo, que, dentre os 40 que saíram, somente 10 já eram monges formados; os 30 restantes
eram apenas postulantes.
573
LEMERCIER, Psicanálise e religião, p.15.
574
LEMERCIER, Psicanálise e religião, p.16.
575
LEMERCIER, Psicanálise e religião, p.36.
576
LEMERCIER, Psicanálise e religião, p.13.
577
Cf. LEMERCIER, Psicanálise e religião, p.39.
Não foi esse, porém, o juízo de Paulo VI. O Sucessor de Pedro
condenou a experiência de Cuernavaca, fechou o mosteiro e, a partir daí, passou a ter,
com relação à psicanálise, uma atitude de desconfiança578. “Neutralidade hostil”: com
essa expressão, Roudinesco e Michel Plon (1940) descreveram a atitude do papa
Montini a respeito da psicanálise579.
Convocado por João XXIII, o Concílio do Vaticano II foi inaugurado
no dia 11 de outubro de 1962. Passados três anos, quanto terminou, em oito de
dezembro de 1965, o ocupante da cátedra de Pedro já era outro: Paulo VI.
Philippe Julien entendeu o parágrafo 62 da “Gaudium et spes” [“As
alegrias e as esperanças”] Ŕ um dos documentos mais importantes promulgados pelo
concílio Ŕ como sinal da adoção por parte da Igreja de uma posição de maior
receptividade para com a psicanálise580. Note-se, porém, que, nesse número, o texto
conciliar não menciona a “psicanálise”, mas a “psicologia”: “...sejam suficientemente
conhecidos e usados não somente os princípios teológicos, mas também as descobertas
das ciências profanas, sobretudo da psicologia e da sociologia...”581.
Não faltou, contudo, quem reivindicasse tal pronunciamento. Com
efeito, numa das sessões do concílio, um grupo de 10 bispos latino-americanos
defendeu o valor e a utilidade da psicanálise no campo da atividade eclesiástica. Esse
grupo encontrou o seu porta-voz em Dom Sergio Méndez Arceo (1907-1992), o bispo
de Cuernavaca, em cuja diocese ficava o mosteiro beneditino que foi psicanalisado.
No dia 23 de setembro de 1965, Méndez Arceo tomou a palavra e se
pronunciou nos seguintes termos:

“Não encontro explicação para o silêncio do esquema 13582


sobre a psicanálise. A psicanálise se nos apresenta como uma
verdadeira ciência, com seu objeto, seu método e sua própria
teoria. Essa ciência não está ainda totalmente madura e não é
desprovida de perigos, o que se deve levar em conta, mas não
podemos por isso ignorar a revolução psicanalítica que não é

578
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, Psicoanálisis y religión: diálogo interminable, p.163 [nota 55]; ver
também: ROUDINESCO, História da psicanálise na França, v.2, p.222-223.
579
Cf. ROUDINESCO; PLON, Dicionário de psicanálise, p.369.
580
Cf. JULIEN, La psychanalyse et le religieux, p.10-11; ver também: ANCONA, Il debito della chiesa alla
psicoanalisi, p.33.
581
A Igreja no mundo de hoje. In: Compêndio do Vaticano II, p.215 [n.62].
582
O chamado “esquema 13” é, justamente, o esboço do que viria a ser a constituição pastoral “Gaudium
et spes”.
menor que a revolução técnica. O discurso analítico faz parte da
cultura humana, impõe uma renovação do conceito do homem e
levanta problemas dos quais não se tinha antes a menor idéia. A
Igreja, por causa do dogmatismo anti-cristão de certos analistas,
tomou uma posição que lembra o caso de Galileu; mas não há
um único campo de pastoral no qual não se deva levar em conta
a psicanálise. [...] Se, por conseguinte, a Igreja quer estabelecer
um diálogo sincero e leal com o homem de hoje, ela não pode
ignorar os analistas autênticos, aos quais deve dirigir-se
diretamente e não por intermédio da moral ou da teologia”583.

No dia 28, o bispo de Cuernavaca “voltou à carga”:

“Nosso texto leva em consideração a mudança que o mundo


sofreu em todos os seus aspectos: revolução científica, técnica,
econômica etc. Por que nem menciona a revolução psicanalítica,
tão estreitamente ligada ao condicionamento da fé? É bem
verdade que a psicanálise não atingiu ainda sua maturidade
plena, nem tampouco está livre de certos perigos que precisamos
considerar. Porém é uma ciência digna desse nome, pois a
descoberta de Freud foi tão genial quanto a de Copérnico ou a
de Darwin. Quer desejemos ou não, somos obrigados a levá-la
em consideração, pois o inconsciente mora dentro de cada um de
nós e condiciona todas as atividades humanas, culturais,
económicas, religiosas e pastorais”584.

O discurso de Dom Méndez Arceo não surtiu, porém, o efeito


desejado. O fato é que o Concílio do Vaticano II não se pronunciou sobre a psicanálise.
Um ano antes do encerramento do concílio, em 1964, o padre jesuíta
Louis Beirnaert (1906-1985) enfeixou num mesmo volume 22 artigos publicados, em
sua maior parte, nas décadas de 50 e 60. Deu ao resultado o título de “Expérience
chrétienne et psychologie” [“Experiência cristã e psicologia”]. Como sói acontecer com
as coletâneas, o livro aborda as questões mais variadas. A psicanálise pode ser útil ao
ministério da direção espiritual? É necessário recorrer a um psicanalista ao admitir um
candidato ao sacerdócio ou à vida consagrada? A santidade depende da sanidade? A
“infância espiritual” de que se trata no cristianismo tem algo a ver com a imaturidade
psíquica de que falam os psicanalistas? Pode haver algum masoquismo nas práticas de

583
PLÉ, Mudança da Igreja em relação à psicanálise. Concilium, n.99, p.1203; cf. DOMÍNGUEZ MORANO,
Psicoanálisis y religión: diálogo interminable, p.163-164; DOMÍNGUEZ MORANO, Teología y
psicoanálisis, p.8-9; ROUDINESCO, História da psicanálise na França, v.2, p.223.
584
LEMERCIER, Psicanálise e religião, p.12; cf. SILVA, O ateísmo de Freud, p.79-80. Não se deve
descartar a hipótese de que este seja, na verdade, outro trecho do mesmo discurso com a data errada.
renúncia, penitência e mortificação recomendadas pela ascética cristã? Pode acontecer
de uma pessoa se iludir, deixando-se, na verdade, levar por uma tentação quando pensa
que está buscando o bem? Eis apenas uma pequena amostra das diversas questões
enfrentadas por Beirnaert nessa feliz coletânea.
Beirnaert é um dos verbetes do “Dictionnaire de la psychanalyse”
[“Dicionário da psicanálise”] (1997) elaborado por Roudinesco e Plon 585. Aí, ele é
descrito como um dos “companheiros íntimos” de Lacan e como alguém que
desempenhou um “papel importante” na histñria das relações entre a psicanálise e o
catolicismo. Beirnaert é também citado nos seminários que Lacan ministrou nos dias 15
e 29 de junho de 1955586. Vale a pena dar uma notícia biográfica a seu respeito.
Beirnaert nasceu em Ascq, na França. Ingressou na Companhia de
Jesus em 1923. Ordenado padre, foi professor de filosofia e teologia e redator da
prestigiosa revista jesuítica “Études” [“Estudos”]. Entre os anos de 1943 e 1944,
Beirnaert participou de um grupo de trabalho sobre a obra de Teilhard de Chardin. Ali,
ele conheceu Robert Desoille (1890-1966). Este, por sua vez, o convidou para
frequentar um grupo de psicanalistas que contava com a presença, entre outros, de
Françoise Dolto (1908-1988), André Berge (1902-1995) e Juliette Boutonnier (1903-
1994). Em 1946, Beirnaert começou a fazer uma análise com Daniel Lagache (1903-
1972) e ingressou na Sociedade Psicanalítica de Paris. Ele completou a sua formação
analítica com três supervisões feitas por Sacha Nacht (1901-1977), Francis Pasche
(1910-1996) e Jacques Lacan (1901-1981). Beirnaert acompanhou Lacan e Lagache,
entre outros, ao abandonar a Sociedade Psicanalítica de Paris e ingressar na Sociedade
Francesa de Psicanálise (1953-1964) e, depois, na Escola Freudiana de Paris (1964-
1981), da qual foi co-fundador e onde teve um papel destacado. Há quem diga que ele
foi a “eminência parda” da escola de Lacan587. Depois da dissolução da Escola
Freudiana de Paris, pertenceu ainda a um grupo de analistas denominado “Errata”.
Beirnaert não era escritor de livros, mas de artigos. Por duas vezes, os
seus artigos foram reunidos numa coletânea e publicados em forma de livro: em 1964,
como vimos, e, postumamente, em 1987, em “Aux frontières de l‟acte analytique”
[“Nas fronteiras do ato analítico”]. Este último reúne 22 artigos publicados, em sua

585
Cf. ROUDINESCO; PLON, Dicionário de psicanálise, p.54.
586
Cf. LACAN, Le séminaire, livre 2, p.325, 327, 357, 360-361, 368.
587
Cf. DOSSE, Michel de Certeau, p.319.
maior parte, na década de 70. Dois desses textos, aliás, eram ainda inéditos. A
diversidade dos temas tratados nesse livro está indicada no subtítulo do mesmo: “La
Bible, saint Ignace, Freud et Lacan” [“A Bíblia, santo Inácio, Freud e Lacan”]588.
No mesmo ano de 1964, Vergote publicou, na Bélgica, um capítulo
sobre psicanálise e antropologia filosñfica em “La psychanalyse, science de l‟homme”
[“A psicanálise, ciência do homem”]. O texto tem um caráter programático: em pouco
mais de 100 páginas, Vergote percorre os grandes temas da relação da psicanálise com a
antropologia filosófica, a ética e a religião. O seu foco, porém, é a antropologia; para
Vergote, a psicanálise não é uma antropologia completa, mas não se pode fazer uma
antropologia completa sem a psicanálise589. É preciso, pois, dar ouvidos a Freud.
Vergote é um dos grandes nomes do diálogo entre a fé católica e a
psicanálise. É ele o “SR. X” dos seminários que Lacan ministrou nos dias 15 e 29 de
junho de 1955590. Voltemo-nos para ele por um momento.
Padre diocesano, psicanalista e professor da Universidade Católica de
Lovaina, Antoine Vergote nasceu em Courtrai, na Bélgica, em 1921. No começo dos
anos 50, Nuttin Ŕ na época, o presidente do Instituto de Psicologia Ŕ o encarregou de
desenvolver um programa de psicologia da religião. Vergote fez a sua formação
psicanalítica em Paris, na Société Française de Psychanalyse [Sociedade Francesa de
Psicanálise], entre 1954 e 1958. Foi analisado por Lacan. Tornou-se um dos fundadores
da École Belge de Psychanalyse [Escola Belga de Psicanálise], ao lado de outros
membros da Sociedade Francesa de Psicanálise, extinta em 1964. Tornou-se, no começo
dos anos 70, presidente dessa nova escola.
Dois anos depois da publicação do capítulo de livro acima
mencionado, Vergote lançou “Psychologie religieuse” [“Psicologia religiosa”]. Apesar
do aspecto geral do título da obra, Freud é, de longe, o autor mais citado; “Psicanálise
da religião” não teria sido um título inadequado para o livro. De fato, a obra é, em
grande medida, um amistoso e inteligente diálogo com a crítica freudiana da religião.
Ou, então, é um manual de psicologia da religião que leva em conta, com grande
apreço, as contribuições de Freud. Os grandes temas da psicologia da religião são aí

588
Cf. ROUDINESCO, História da psicanálise na França, v.2, p.217; WOODROW, Les jésuites, p.278-279.
589
Cf. VERGOTE, Psychanalyse et anthropologie philosophique. In: HUBER; PIRON; VERGOTE, La
psychanalyse, science de l‟homme, p.154, 222.
590
Cf. LACAN, Le séminaire, livre 2, p.337, 355-361; LECUIT, L‟anthropologie théologique à la lumière
de la psychanalyse, p.479 [nota 2], 513.
percorridos: a experiência religiosa, a origem da ideia psicológica de Deus a partir das
figuras materna e paterna, a conversão, o ateísmo, as fases da evolução do sentimento
religioso Ŕ eis algumas das questões examinadas por Vergote, sempre com a clareza e a
profundidade costumeiras.
Também em 1966, Roustang publicou um pequeno artigo, na revista
“Christus”, que causou espécie: “Le troisième homme” [“O terceiro homem”].
François Roustang nasceu em 1923. Em 1942, ingressou na
Companhia de Jesus. De 1956 a 1967, trabalhou na revista “Christus”, da qual foi o
diretor a partir de 1964. No mesmo ano, participou da fundação da Escola Freudiana de
Paris. Pouco depois, começou uma análise com Serge Leclaire (1924-1994), a qual
durou dois anos.
Consta que o artigo “O terceiro homem” foi escrito por Roustang de
improviso, na seção “Chronique” [“Crónica”], para completar a revista. Quando
surgiram os cristãos, eles se descreviam como a “terceira raça”, distinguindo-se, desse
modo, dos judeus e dos pagãos. No Concílio do Vaticano II, por sua vez, dois grupos se
digladiaram: os reformistas majoritários e os conservadores minoritários. Em seu artigo,
Roustang anuncia o surgimento de uma “terceira raça”, de um “terceiro povo”, de um
“terceiro homem”. O terceiro homem é o cristão posterior ao concílio. Roustang traça-
lhe o perfil, enumerando-lhe as características. Uma delas, porém, é decisiva: o terceiro
homem é independente da Igreja; pensa por si mesmo e preza, sobretudo, a liberdade Ŕ
liberdade frente aos ritos religiosos, liberdade de todo formalismo, liberdade com
respeito às instituições, liberdade de pensamento e expressão. O terceiro homem foi
longe demais, muito mais longe do que podiam imaginar mesmo os reformistas do
Vaticano II. E o terceiro homem está aí591.
Como nota Roudinesco: “Aparentemente, o texto nada tem a ver com
o freudismo. Todavia, as reflexões que contém são uma conseqüência direta das
modificações operadas pela psicanálise nas opiniões do autor”592.
Esse pequeno artigo, aparentemente fortuito, “explodiu como uma
bomba”. O papa Paulo VI ordenou expressamente ao superior geral da Companhia de
Jesus, o padre Pedro Arrupe (1907-1991), que Roustang fosse demitido da função de
diretor da “Christus”. Roustang foi substituído pelo padre Le Blond. A sua demissão foi
591
Cf. ROUSTANG, Le troisième homme. Christus, n.52, t.13, p.561-567.
592
ROUDINESCO, História da psicanálise na França, v.2, p.224.
um escândalo. Philippe Laurent, o superior provincial de Paris, pediu à direção da
revista para cessar imediatamente a venda do número incriminado. Algum tempo
depois, Roustang rompeu com a fé catñlica, “largou a batina”, casou-se e tornou-se
psicanalista593.
Ainda em 1966, o médico Gastão Pereira da Silva (1897-1987), que se
descreve como um “espiritualista convicto”594, publicou “O ateísmo de Freud”. Silva
correspondeu-se com Freud e teve a honra de ser citado por Jones em sua célebre
biografia do “pai” da psicanálise. Foi um divulgador da invenção freudiana, tendo se
empenhado em vencer as resistências contra a mesma.
Na obra citada, Silva observa que, no Brasil, há uma grande
hostilidade contra a psicanálise no meio eclesial em virtude da atitude anti-religiosa de
Freud. Diz ele:

“Diante do pressuposto ateísmo de Freud, não são poucos os


clérigos que, nem sequer, abrem um livro qualquer da doutrina
freudiana, afastando-se dela como o diabo da cruz, por mêdo de
enfrentá-la, ou por julgarem que a Psicanálise tenha tido, ou tem
ainda, o propósito de invadir a seara do catolicismo ou do
protestantismo. Para êstes, um psicanalista aparece-lhes, „como
um nôvo Mefistófeles convencional e vestido com indumentária
moderna‟. Dêsse modo, continua ainda, até hoje, a haver
acentuada incompreensão entre grande parte do clero, quanto à
aceitação da Psicanálise na religião. O fato de Freud combatê-la,
chegando mesmo a compará-la a uma „neurose compulsiva
universal‟, provocou, com isso, verdadeira onda de opositores
cristãos”595.

Silva observa, contudo, que é possível distinguir entre a psicanálise


como tal e a atitude de Freud em matéria de religião, abraçando a primeira sem acolher
a segunda. Nos Estados Unidos da América, por exemplo, isso já seria uma prática
corrente596.
Um ano depois, ainda no Brasil, o padre e médico maranhense João
Miguel Mohana (1925-1995) publicou “Padres e bispos auto-analisados”. O livro foi
um grande sucesso: a primeira edição esgotou em poucos meses.

593
Cf. DOSSE, Michel de Certeau, p.86-88.
594
Cf. SILVA, O ateísmo de Freud, p.13.
595
SILVA, O ateísmo de Freud, p.75.
596
Cf. SILVA, O ateísmo de Freud, p.76-77.
Reconhecendo que o clero católico padece de importantes bloqueios
psicológicos e inconscientes, o autor considera muito aconselhável que os padres e
bispos sejam psicanalisados, a exemplo do que aconteceu em Cuernavaca com os
monges beneditinos. Ocorre que isso é inviável: uma psicanálise é bastante dispendiosa,
requer muito tempo, e, além disso, poucos analistas têm suficiente familiaridade com a
problemática sacerdotal. A solução sugerida por Mohana é a auto-análise, guiada pelos
subsídios oferecidos pelo seu livro597.
Observe-se, contudo que o que o autor chama de “auto-análise”
consiste num exame pessoal inspirado não apenas na psicanálise de Freud, mas também
nas contribuições de Adler, Jung, Frankl, Fromm, Karen Horney (1885-1952) etc. Ao
final de cada capítulo, Mohana sugere uma série de questões para esse autoexame.
Embora um pouco ingênuo, o livro não deixa de ser um marco na história da recepção
da psicanálise pelo meio católico.
Voltemos para a Europa. No final da década de 60, o padre
dominicano Robert-Albert Plé (1910-1988) publicou dois estudos que parecem fazer um
díptico: “Freud et la religion” [“Freud e a religião”], em 1968, e “Freud et la morale”
[“Freud e a moral”], em 1969.
Neste capítulo, já nos referimos a Plé várias vezes: ele fundou o
periñdico “Le supplément” em 1947; em 1952, assinou o nihil obstat da tese de Oraison,
que entrou no Index; argumentou que Pio XII não condenou a psicanálise em seu
discurso de 1953; e, em 1959, fundou a AMAR ao lado de Beirnaert, Oraison e
Lehmann. Plé foi, sem dúvida, um militante da acolhida da psicanálise pelo catolicismo.
A sua contribuição mais notável, porém, parece ter sido a publicação dos dois livros
acima mencionados.
Em “Freud e a religião”, Plé apresenta o pensamento de Freud sobre o
fenômeno religioso, defende o ponto de vista de que a posição de Freud sobre a religião
constitui-se num problema pessoal dele, independente da psicanálise como tal, e critica
essa mesma interpretação do fato religioso, acolhendo-a em parte e argumentando que a
teoria de Freud pode, afinal, ter um efeito purificador sobre a fé dos que creem em
Deus. Em suma, Plé identifica, isola e neutraliza a crítica freudiana da religião. Mas,
com isso, ele coloca a psicanálise em condições de ser acolhida pela Igreja.

597
Cf. MOHANA, Padres e bispos auto-analisados, p.7-11.
Em “Freud e a moral”, por sua vez, o autor procura afastar a crença,
muito difundida naquela época, de que a psicanálise, doutrina pansexual, promoveria a
imoralidade e a libertinagem. Plé parece convencido de que o pensamento de Freud
pode contribuir de forma significativa para a renovação da teologia moral propugnada
pelo Concílio do Vaticano II.
Um traço característico da posição de Plé, perceptível tanto na
primeira quanto na segunda obra, está em que a sua teologia é tomista, e a sua
psicanálise, marcada pelo viés da ego-psychology [psicologia do eu], versão oficial do
freudismo naqueles tempos. Muitos padres psicanalistas contemporâneos de Plé não
exibirão o mesmo apreço pela teologia de Santo Tomás de Aquino (1225-1274) e
preferirão seguir Lacan Ŕ sobretudo, na França Ŕ quando se trata de psicanálise. Seja
como for, os dois livros de Plé acima referidos são uma clara tentativa de “vender”
Freud para os católicos, de apresentá-lo de uma maneira simpática, palatável.
Enfrentando os problemas do ateísmo e do pansexualismo de Freud, ele procurou
“pavimentar” a via de entrada da psicanálise no seio da Igreja Católica.
O final dos anos 60 e o início da década seguinte ficaram marcados
por uma série de referências de Paulo VI à psicanálise. Se até o papa pôs-se a falar a
respeito, é porque a questão estava mesmo na “ordem do dia”.
No dia 22 de junho de 1969, na homilia que fez por ocasião da
cerimônia de canonização de Julie Billiart (1751-1816), Paulo VI admitiu que a
investigação da psicologia dos santos tem resultado em “observações extremamente
interessantes”, merecendo toda a atenção da Igreja. “La psychanalyse moderne”, disse o
Santo Padre, “nous a aujourd‟hui habitués à découvrir et à remuer le fond trouble de
l‟esprit humain...” [“A psicanálise moderna nos acostumou, hoje, a descobrir e a
revolver o fundo conturbado do espírito humano...”]598, coisa que Paulo VI parece
encarar positivamente.
Na homilia que fez na cerimônia em que Santa Teresa de Jesus (1515-
1582) foi proclamada doutora da Igreja, em 27 de setembro de 1970, o papa Montini
observou que:

598
PAUL VI, La canonisation de Julie Billiart. La documentation catholique, v.66, n.1544, p.655; cf.
ROUDINESCO, História da psicanálise na França, v.2, p.223.
“...l‟introspection psychanalytique décompose l‟instrument
fragile et complexe que nous sommes [...] pour écouter le
trouble murmure de son subconscient animal, le cri de ses
passions désordonnées et de son angoisse désespérée” [“...a
introspecção psicanalítica decompõe o instrumento frágil e
complexo que somos nós [...] para escutar o perturbado
murmúrio de seu subconsciente animal, o grito de suas paixões
desordenadas e de sua angústia desesperada”]599.

No dia 15 de março de 1972, por ocasião de uma audiência geral,


Paulo VI reconheceu que a psicanálise realiza explorações “interessantes” e “úteis” das
profundezas do inconsciente e da vida pulsional e emocional do homem. O papa
advertiu, porém, que essas pesquisas não podem ignorar a disposição natural do homem
a agir segundo a indelével lei moral, que, quando violada, dá origem ao remorso600.
No dia 13 de setembro de 1972, Paulo VI dedicou a sua audiência
geral ao tema da castidade. Nessa alocução, o Santo Padre constatou com pesar o
erotismo que pervade a cultura contemporânea e citou a psicanálise como exemplo
desse lamentável estado de coisas. A companhia em que o papa Montini colocou a
invenção de Freud não é muito honrosa:

“Sur le plan scientifique, nous avons la psychanalyse; en


pédagogie, l‟éducation sexuelle; dans le domaine littéraire,
l‟inévitable érotisme; dans le publicité, l‟appel aux bas instincts;
dans les spectacles, l‟exhibition indécente tendant à l‟obscénité;
dans la presse, des publications pornographiques perfidement
diffusées; dans les loisirs, la recherche des plaisirs les plus
ignobles et les plus séduisants; sur le plan de l‟amour, enfin, qui
est le plus haut, on confond le rêve lyrique et génereux du don
de soi avec l‟égoïsme sensuel, passionel” [“No plano científico,
temos a psicanálise; em pedagogia, a educação sexual; no
domínio literário, o inevitável erotismo; na publicidade, o apelo
aos baixos instintos; nos espetáculos, a exibição indecente
tendendo à obscenidade; na imprensa, as publicações
pornográficas perfidamente difundidas; nos lazeres, a busca dos
prazeres mais ignóbeis e sedutores; no plano do amor, enfim,
que é o mais alto, confunde-se o sonho lírico e generoso do dom
de si com o egoísmo sensual, passional”]601.

599
PAUL VI, Sainte Thérèse d‟Avila proclamée docteur de l‟église. La documentation catholique, v.67,
n.1572, p.908.
600
Cf. PAUL VI, La conscience. La documentation catholique, v.69, n.1606, p.306.
601
PAUL VI, La pureté. La documentation catholique, v.69, n.1617, p.867; cf. CENCILLO, Presentacion.
In: ZAHRNT, Jesús de Nazaret y Sigmund Freud, p.10.
Numa audiência geral concedida no dia 21 de março de 1973, ao
exortar os fiéis católicos à conversão quaresmal, Paulo VI comparou a revisão de vida
anterior a essa conversão a uma espécie de psicanálise religiosa e moral602.
Chegada a semana santa, no dia 18 de abril de 1973, na audiência
geral da quarta-feira, o papa Montini recomendou a confissão pascal comparando-a aos
métodos terapêuticos da psicanálise: “...qui fouillent tout, découvrent tout, mais ne
peuvent apporter ce don indicible qu‟est le pardon” [“...que remexem tudo, descobrem
tudo, mas não podem proporcionar esse dom indizível que é o perdão”]603.
Por fim, numa audiência geral concedida no dia sete de novembro de
1973, Paulo VI dedicou um pequeno, mas importante parágrafo da sua alocução à
psicanálise. O papa reconheceu a importância da psicanálise, valorizando-a, mas
também apontou alguns dos seus limites:

“Nous avons de l‟estime pour ce courant désormais célèbre


d‟études anthropologiques, bien que nous ne trouvions pas
celles-ci logique avec elles-mêmes ni toujours confirmées par
des expériences satisfaisantes et bienfaisantes, ni complétée par
la science des cœurs que nous puisons à l‟école de la spiritualité
catholique” [“Temos apreço por essa corrente atualmente
célebre de estudos antropológicos, mas não os consideramos
coerentes consigo mesmos, nem sempre confirmados por
experiências satisfatórias e salutares, nem completos sem a
ciência dos corações que podemos tomar da escola da
espiritualidade catñlica”]604.

Nessa mesma audiência, Paulo VI citou o livro “La psicoanalisi” [“A


psicanálise”], de Ancona605. Trata-se do único livro de psicanálise já citado por um
papa. É justo que lhe dediquemos alguma atenção.
Leonardo Ancona (1922-2008) foi um médico especializado em
doença nervosa e mental. Foi aluno de Gemelli, a quem sucedeu na Universidade

602
Cf. PAUL VI, Careme et revision de vie. La documentation catholique, v.70, n.1630, p.351.
603
PAUL VI, “Faire ses Paques”. La documentation catholique, v.70, n.1632, p.452.
604
PAUL VI, L‟année sainte et le renouveau de la conscience personnelle. La documentation catholique,
v.70, n.1643, p.1001-1002; cf. ANCONA, Il debito della chiesa alla psicoanalisi, p.33; ROUDINESCO,
História da psicanálise na França, v.2, p.223.
605
Cf. PAUL VI, L‟année sainte et le renouveau de la conscience personnelle. La documentation
catholique, v.70, n.1643, p.1001.
Católica do Sagrado Coração de Milão. Diferentemente do seu mestre, porém, Ancona
assumiu uma atitude receptiva a respeito da psicanálise606. Em 1950, tornou-se
professor no Instituto de Psicologia da referida universidade; em 1959, chegou a diretor
do tal instituto. Em 1965, foi transferido para a sede romana da mesma universidade.
Ancona foi, portanto, diretor do Instituto de Psicologia de 1959 a 1965 em Milão e,
depois, em Roma, de 1965 a 1978 Ŕ ou seja, por duas décadas. Tornou-se membro da
Società Psicoanalitica Italiana [Sociedade Psicanalítica Italiana] em 1975. Em 2006,
aos 84 anos de idade, Ancona publicou um pequeno livro ao qual deu um sugestivo
título: “Il debito della chiesa alla psicoanalisi” [“A dívida da Igreja para com a
psicanálise”]. Segundo ele, a psicanálise contribuiu para a compreensão do fenômeno
religioso, daí que a Igreja tenha um débito para com ela.
“A psicanálise”, de 1963, é uma obra de introdução à teoria
psicanalítica escrita por um católico capaz de reconhecer o seu valor e interessado em
ajudar a Igreja a superar a atitude de incompreensão, desconfiança e hostilidade ao seu
respeito607.
Observe-se que, nesse livro, a compreensão que o autor tem da
psicanálise é aquela dominante nas sociedades psicanalíticas filiadas à Associação
Psicanalítica Internacional na época em que o livro foi escrito, ou seja, a ego
psychology. Ancona cita Heinz Hartmann (1894-1970) e Ernst Kris (1900-1957)
abundantemente; por outro lado, parece desconhecer a existência de Lacan. Seja como
for, esse viés da psicologia do eu talvez tenha facilitado o seu trabalho de apresentar a
psicanálise como algo palatável.
Note-se também que Ancona tem o mérito de ser honesto o bastante
para admitir que submeter-se a uma análise pode mesmo ser algo perigoso para um
católico, seja do ponto de vista moral, seja espiritualmente falando. Uma análise pode
facilmente minar a vida de oração do analisante, assim como pode, pior do que isso,
resultar na perda da fé. A atitude de “reserva” da Igreja a respeito da psicanálise é, pois,
compreensível: Ancona não se atreve a discordar do juízo emitido por Gemelli em 1950
ou do Monitum de 1961. Trata-se, contudo, de uma “cautela” apenas, de ter
“prudência”, não propriamente de uma condenação definitiva608.

606
Cf. ANCONA, La psicoanalisi, p.215-216.
607
Cf. ANCONA, La psicoanalisi, p.16, 171-172, 199.
608
Cf. ANCONA, La psicoanalisi, p.194-199.
O padre dominicano Jacques-Marie Pohier (1926-2007) se interessou
pela psicanálise quando se convenceu da sua importância para a disciplina que ensinava:
a teologia moral. No final dos anos 50, começou a estudar psicanálise, e, em 1962,
obteve dos seus superiores autorização para submeter-se a uma análise.
Uma década depois, em 1972, ele lançou “Au nom du Père...” [“Em
nome do Pai...”]. O livro reúne cinco artigos publicados entre 1966 e 1970, e, não
bastando a alusão que o título parece fazer a um célebre conceito lacaniano, Pohier
escolheu por subtítulo da obra “Recherches théologiques et psychanalytiques”
[“Investigações teolñgicas e psicanalíticas”].
É verdade que, em 1967, ele já havia publicado “Psychologie et
théologie” [“Psicologia e teologia”]. Mas esse trabalho era muito mais piagetiano do
que freudiano, embora, ao final do mesmo, ao tratar do celibato consagrado, alguns
conceitos psicanalíticos Ŕ tais como complexo de Édipo, sublimação, recalcamento,
castração etc. Ŕ fossem invocados609. Seja como for, agora, com “Em nome do Pai...”,
Pohier “brindava” os seus leitores com uma obra eminentemente teológico-psicanalítica.
Ninguém melhor do que o próprio autor para se apresentar:

“Je suis un croyant et un théologien, qui ai découvert


intellectuellement la psychanalyse après de longues annés
d‟études philosophiques et théologiques, et qui ai fait
l‟expérience personelle de la psychanalyse plus tardivement
encore, après de longues annés de vie religieuse et de recherche
d‟inteligence de la foi. C‟et donc ma propre foi que je cherche à
comprendre, et c‟est éventuellement la psychanalyse qui me sert
à en interpréter la signification” [“Eu sou um crente e um
teólogo que descobriu intelectualmente a psicanálise depois de
longos anos de estudos filosóficos e teológicos e que fez a
experiência pessoal da psicanálise mais tardiamente ainda,
depois de longos anos de vida religiosa e de busca de
inteligência da fé. É, pois, a minha própria fé que procuro
compreender, e, eventualmente, é a psicanálise que me serve
para interpretar-lhe a significação”]610.

Dos cinco artigos relançados em “Em nome do Pai...”, três abordam


diretamente o problema da paternidade de Deus. O mais importante deles parece ser
aquele com o qual a obra se abre e que dá nome ao conjunto. Trata-se de uma reação de
609
Cf. POHIER, Psychologie et théologie, p.348-361.
610
POHIER, Au nom du Père..., p.8-9.
Pohier a “De l‟interprétation: essai sur Freud” [“Da interpretação: ensaio sobre Freud”]
(1965), de Paul Ricœur (1913-2005), que, por sua vez, é, em larga medida, uma reação
deste último ao pensamento freudiano sobre a religião.
No último capítulo da obra, Pohier manifesta o seu parecer de que a
posição da Igreja Católica em matéria de prazer e sexualidade precisa ser reconsiderada.
Para tanto, um melhor conhecimento da sexualidade humana pode ajudar. E, nesse
sentido, a psicanálise pode ser útil611. Esse capítulo foi ainda relançado separadamente,
em 1974, na forma de um livrinho, intitulado: “Le chrétien, le plaisir et la sexualité”
[“O cristão, o prazer e a sexualidade”].
Em 1973, o padre diocesano e psicanalista Maurice Bellet (1923)
publicou “Foi et psychanalyse” [“Fé e psicanálise”]. Bellet doutorou-se sob a orientação
de Ricœur e colaborou na revista “Christus”. O seu nome foi proposto por Roustang em
1964, que, na época, era o diretor da revista.
O livro em questão enfeixa três artigos, um inédito e os outros dois
publicados anteriormente nas revistas “Études” e “Le supplément”, nos anos de 1968 e
1972. Um traço característico da abordagem de Bellet reside no fato de que o que lhe
interessa não é o debate teórico entre a fé e a psicanálise, mas o confronto da fé com a
experiência analítica. Ele argumenta que, enquanto experiência, a psicanálise constitui-
se em “...une épreuve de vérité plus dure pour le croyant que la discussion de thèses sur
la religion” [“...uma prova de verdade mais dura para o crente do que a discussão de
teses sobre a religião”]612. Noutras palavras, segundo Bellet, submeter-se a uma análise
é uma experiência “...bien plus éprouvante pour la foi que de „combattre les thèses
athées‟ de Freud” [“...muito mais difícil para a fé do que „combater as teses ateias‟ de
Freud”]613.
O que pode acontecer com a fé de um crente que se submete a uma
análise? Como ajudar espiritualmente uma pessoa que, ao mesmo tempo, está
atravessando um processo analítico? São essas questões clínicas e pastorais que
interessam a Bellet. O seu trabalho foi reeditado em 2008 sem qualquer alteração,
segundo o juízo de que, apesar de o texto mais antigo do livro ter sido publicado há 40
anos, a obra conservava grande atualidade.

611
Cf. POHIER, Au nom du Père..., p.212-214.
612
BELLET, Foi et psychanalyse, p.8.
613
BELLET, Foi et psychanalyse, p.128.
Em 1974, Vergote publicou “Interprétation du langage religieux”
[“Interpretação da linguagem religiosa”]. Esse livro reúne, numa versão revista, artigos
publicados anteriormente de forma independente. Nessa coletânea, porém, a psicanálise
é apenas uma entre as várias referências teóricas empregadas pelo autor. A
fenomenologia existencial, por exemplo, também se faz presente.
Em 1975, Pohier publicou um artigo intitulado “Um caso de fé pñs-
freudiana na ressurreição?”. Nesse texto, valendo-se de Freud, ele coloca em questão a
crença na ressurreição: “...instruído e construído como sou pela experiência
psicanalítica Ŕ eu me interrogo sobre a fé cristã na ressurreição...”614. Com efeito, nada
desmente tão fortemente o narcisismo humano e os sentimentos infantis de onipotência
quanto a morte. Daí que o desejo da imortalidade seja um dos mais poderosos desejos
humanos. Daí que a crença na imortalidade Ŕ que decorre da crença na ressurreição de
Cristo Ŕ possa cair sob a suspeita de ser ilusória.
No mesmo ano, Certeau lançou “L‟écriture de l‟histoire” [“A escritura
da histñria”]. O livro reúne textos vários, alguns inéditos, outros publicados
anteriormente, entre os quais, alguns revistos e corrigidos, todos eles, enfim,
pertencentes ao período que vai de 1969 ao ano da publicação da obra. A quarta parte
dessa compilação foi intitulada “Écritures freudiennes” [“Escrituras freudianas”] e traz
dois estudos do autor sobre a interpretação freudiana da religião, sendo visível a sua
preferência por aqueles trabalhos de Freud mais relacionados ao campo da história:
“Uma neurose diabñlica do século XVII”615 e “O homem Moisés e a religião
monoteísta”616.
Michel de Certeau (1925-1986) nasceu em Chambéry, capital da
Saboia, na França. Em 1950, ingressou na ordem dos jesuítas; seis anos depois, foi
ordenado padre. A partir daí, Certeau e Roustang trabalharam juntos na “Christus”, uma
revista de espiritualidade inaciana da Companhia de Jesus. François Courel (1924-2001)
também fazia parte da equipe. Os três se interessaram por psicanálise.
Em 1960, Certeau doutorou-se em teologia pela Sorbonne com uma
tese sobre os escritos místicos de Jean-Joseph Surin (1600-1665). Historiador,
especializado nos séculos XVI e XVII, Certeau tinha interesses diversos. História,

614
POHIER, Um caso de fé pós-freudiana na ressurreição? Concilium, n.105, p.613.
615
Cf. CERTEAU, Ce que Freud fait de l‟histoire. In: _______, L‟écriture de l‟histoire, p.291-311.
616
Cf. CERTEAU, La fiction de l‟histoire. In: _______, L‟écriture de l‟histoire, p.312-358.
filosofia, teologia, mística, antropologia, linguística, psicanálise Ŕ todos esses saberes
despertaram a sua atenção.
Ao lado de Beirnaert e Roustang, Certeau esteve entre os 134
psicanalistas que, em 1964, liderados por Lacan, fundaram a Escola Freudiana de Paris.
Ele se enquadrava no perfil desejado por Lacan, que pretendia abrir o seu grupo a não
praticantes de psicanálise capazes de fazê-la irradiar em outros campos. Como membro
dessa sociedade, Certeau participou de grupos de discussão, pronunciou conferências
várias e publicou artigos diversos em revistas e livros. Diferentemente, porém, de
Beirnaert, Roustang e Courel, Certeau nunca foi psicanalista de profissão. Frequentou
os seminários de Lacan, participou muito ativamente do movimento psicanalítico
francês, mas não gostava de ser tomado por psicanalista e, ao que parece, não foi
analisado. Certeau esteve também entre aqueles que tentaram impedir juridicamente a
dissolução da Escola Freudiana de Paris por Lacan em 1980617.
Em 1974, em co-autoria com Jean-Marie Domenach (1922-1997),
Certeau publicou “Le christianisme éclaté” [“O cristianismo feito em pedaços”]. No
livro, ele colocou em questão o caráter universal da mensagem cristã, relativizando as
pretensões da Igreja e do próprio cristianismo. A obra Ŕ que, aliás, foi publicada sem a
prévia autorização dos seus superiores Ŕ tornou problemática a permanência de Certeau
na Companhia de Jesus618. Naquele mesmo ano, Certeau deixou a comunidade jesuítica
em que morava, passando a residir num apartamento pessoal619. Registre-se que, assim
como no caso de Roustang, a questão não era especificamente psicanalítica, mas
eclesiológica.
A mística foi também um dos grandes interesses de Certeau. A revista
“Christus”, em que ele colaborou, se notabilizou justamente por valorizar os aspectos
místicos, mais do que os ascéticos, dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio de
Loyola. Certeau desejava compreender a mística; o seu détour psicanalítico foi, pelo
menos, em parte, animado por essa busca. Ele acreditava que a psicanálise poderia ser
útil na compreensão da experiência espiritual dos místicos. Mas não julgava que a
psicanálise pudesse captar o sentido último dessa experiência. O seminário “Encore”

617
Cf. DOSSE, Michel de Certeau, p.317-318; GIARD, Un chemin non tracé. In: CERTEAU, Histoire et
psychanalyse, p.35, 50.
618
Cf. DOSSE, Michel de Certeau, p.200-205.
619
Cf. DOSSE, Michel de Certeau, p.604.
[“Mais, ainda”], de Lacan, transcorreu entre os anos de 1972 e 1973620. Nesse
seminário, Lacan focalizou justamente aquele que era o campo de investigação de
Certeau: a mística. Nessa época, Certeau teve as suas obras estudadas pelos membros da
Escola Freudiana de Paris. Numerosos grupos e cartéis se constituíram para discutir os
seus trabalhos sobre a mística. Certeau circulava entre eles para responder às suas
perguntas. Ele escreveu o verbete sobre mística da “Encyclopædia universalis”
[“Enciclopédia universal”]621. Em 1982, publicou o primeiro volume de “La fable
mystique” [“A fábula mística”], dedicado ao discurso dos místicos. O livro foi um
acontecimento; a Escola da Causa Freudiana, porém, não recebeu bem a obra. O volume
segundo do mesmo trabalho, que pretendia focalizar a dimensão corporal da experiência
mística, ficou inacabado622.
No ano que se seguiu à morte de Certeau, publicou-se “Histoire et
psychanalyse” [“Histñria e psicanálise”]. A obra recolhe uma dezena de textos que ele
publicara nos anos 70 e 80, quatro deles mais diretamente relacionados à psicanálise623.
Em 1976, passado um ano do lançamento por Certeau de “A escritura
da histñria”, Roustang publicou “Un destin si funeste” [“Um destino tão funesto”]. Na
época, o livro foi um grande sucesso. A obra versa, em grande parte, sobre o movimento
psicanalítico: trata do conflito entre Freud e Jung, do suicídio de Viktor Tausk (1879-
1919), da relação entre Freud e Georg Groddeck (1886-1934), entre outras questões. O
destino trágico a que o título da obra se refere parece ser o do movimento psicanalítico.
De fato, segundo o autor, a psicanálise é, por definição, avessa a institucionalizar-se,
uma vez que as sociedades de analistas se baseiam justamente naquilo que, ao final de
uma análise, deveria estar liquidado: a transferência. Ou seja, uma associação de
psicanalistas é uma “contradição em termos”624.
Para o tema desta investigação, o livro de Roustang interessa
especialmente por um tipo de relação que ele reconhece haver entre a psicanálise e a
religião. E essa relação é a seguinte: a psicanálise, não raro, funciona como uma

620
LACAN, Le séminaire, livre 20.
621
CERTEAU, Mystique. In: Encyclopædia universalis, v.11, p.521-526.
622
Cf. DOSSE, Michel de Certeau, p.319, 324, 328-329, 331-332, 339-342, 557-576.
623
Cf. CERTEAU, Le “roman” psychanalytique. In: _______, Histoire et psychanalyse, p.107-136;
CERTEAU, L‟institution de la pourriture: Luder. In: _______, Histoire et psychanalyse, p.219-238;
CERTEAU, Lacan: une éthique de la parole. In: _______, Histoire et psychanalyse, p.239-268; CERTEAU,
Psychanalyse et histoire. In: _______, Histoire et psychanalyse, p.85-106.
624
Cf. ROUSTANG, Un destin si funeste, p.28.
religião. Em “Um destino tão funesto”, diz Roudinesco, Roustang acusa o movimento
psicanalítico de possuir todas as “taras” de uma religião625. Voltaremos a isso.
Antes, porém, de deixarmos Roustang, acrescente-se que, tendo se
tornado psicanalista, aos poucos, ele foi se interessando pelo papel da sugestão e da
hipnose na cura analítica. Em 1986, publicou “Lacan, de l‟équivoque à l‟impasse”
[“Lacan, do equívoco ao impasse”], explicitando a sua ruptura com Lacan e a
psicanálise. Como o título já o sugere, nesse livro, o autor procede a uma crítica
extremamente mordaz de Lacan, emitindo um juízo bastante desfavorável sobre o seu
pensamento. Ex-cristão, ex-católico, ex-padre, ex-jesuíta, ex-psicanalista e ex-
lacaniano, Roustang tornou-se hipnoterapeuta.
Em 1977, Pohier publicou um livro pelo qual “pagou caro”, muito
caro: “Quand je dis Dieu” [“Quando eu digo Deus”]. Ao que parece, ele mesmo
pressentia que algo pudesse acontecer, pois, no prefácio da obra, depois de dizer que,
pela primeira vez na vida, escreveria por prazer e que aquele seria o seu primeiro
verdadeiro livro, Pohier acrescentou: “Aujourd‟hui, je vais dire sur Dieu ce que j‟ai
envie de dire. Et comme j‟ai envie de le dire. [...] Que va-t-il arriver?” [“Hoje, eu vou
dizer sobre Deus o que eu tenho vontade de dizer. E do jeito que eu tenho vontade de
dizê-lo. [...] O que vai acontecer?”]626. Dois anos depois, Pohier foi proibido pelo
Vaticano de fazer pregações, presidir publicamente a eucaristia e ensinar teologia.
Numa palavra, ele foi interditado.
O documento da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé que
condenou “Quando eu digo Deus” é de três de abril de 1979627. Segundo essa
declaração, o livro de Pohier contém uma série de erros e de proposições ambíguas,
perigosas. Os erros são os seguintes: nega a existência, na Escritura, de uma doutrina
que o magistério pode determinar628; nega a vida após a morte, a ressurreição e a vida
eterna com Deus629; nega o valor redentor e sacrificial da paixão e da morte de Jesus630;
e nega a ressurreição corporal de Cristo, bem como a sua permanência como sujeito real

625
Cf. ROUDINESCO, História da psicanálise na França, v.2, p.689.
626
POHIER, Quand je dis Dieu, p.10.
627
Cf. SACRÉE CONGRÉGATION POUR LA DOCTRINE DE LA FOI, Déclaration sur le livre du R.P. Jacques
Pohier, “Quand je dis Dieu”. La documentation catholique, v.76, n.1762, p.366.
628
Cf. POHIER, Quand je dis Dieu, p.51-55.
629
Cf. POHIER, Quand je dis Dieu, p.97-114.
630
Cf. POHIER, Quand je dis Dieu, p.155-171.
após a sua existência histórica631. Já as proposições ambíguas, perigosas, versam sobre:
o conceito cristão da transcendência de Deus632, a divindade de Cristo633, a presença real
de Cristo na eucaristia634, o papel do sacerdote na atualização dessa presença635 e a
infalibidade eclesial636.
Certeau reagiu vivamente contra a condenação de Pohier pelo
magistério eclesiástico. No dia 23 de setembro de 1979, ele publicou um artigo
intitulado “Écraser les faibles” [“Esmagar os fracos”], no jornal “Le Monde”,
manifestando-se a respeito637. Domínguez, por sua vez, descreveu Pohier como uma
figura “martirial”, como alguém cujo caso evidenciava a grande dificuldade implicada
pelo encontro entre a teologia e a psicanálise638.
Pohier deixou a Ordem dos Pregadores em 1984. No ano seguinte, ele
publicou “Dieu fractures” [“Deus despedaçado”]. Nesse livro, Pohier compartilha a dor
que lhe acarretaram as sanções que lhe foram impostas pela Igreja, reconsidera alguns
pontos de “Quando eu digo Deus” Ŕ por exemplo, sobre o candente tema da ressurreição
Ŕ, discorre sobre a crise da vida religiosa Ŕ particularmente, na ordem a que pertencera Ŕ
e volta a escrever sobre teologia. Boa parte das suas reflexões pode ser situada no
campo da escatologia e da teologia moral; temas como a morte, a ressurreição, a vida
eterna, a sexualidade e a culpabilidade, entre outros, são percorridos por Pohier com a
sua habitual agudeza e independência. Na mesma obra, ele também desconstrói uma
série de aspectos importantes do modo como Deus costuma ser imaginado. Isso parece
explicar o título do livro: “Dieu fractures”, isto é, Deus despedaçado, quebrado, partido.
Pohier, de fato, rompe em pedaços ideias e representações habituais de Deus639.
Posteriormente, tendo deixado a condição de padre e dominicano,
Pohier tornou-se secretário administrativo da Association pour le Droit de Mourir dans
la Dignité [Associação pelo Direito de Morrer na Dignidade] (ADMD), uma sociedade
que milita pela legalização da eutanásia voluntária. Voltaremos ao seu caso a fim de
631
Cf. POHIER, Quand je dis Dieu, p.189-238.
632
Cf. POHIER, Quand je dis Dieu, p.25-38.
633
Cf. POHIER, Quand je dis Dieu, p.43-49.
634
Cf. POHIER, Quand je dis Dieu, p.55-63.
635
Cf. POHIER, Quand je dis Dieu, p.63-68.
636
Cf. POHIER, Quand je dis Dieu, p.51-55.
637
Cf. DOSSE, Michel de Certeau, p.377.
638
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, Experiencia cristiana y psicoanálisis, p.63; DOMÍNGUEZ MORANO,
Psicoanálisis y religión: diálogo interminable, p.167-168; DOMÍNGUEZ MORANO, Teología y
psicoanálisis, p.10.
639
Cf. POHIER, Dieu fractures, p.387.
avaliarmos o quanto a condenação de Pohier significou uma condenação da psicanálise
pelo magistério da Igreja.
No mesmo ano em que Pohier publicou “Quando eu digo Deus” Ŕ isto
é, em 1977 Ŕ, Dolto lançou um livro que foi um sucesso de vendas: “L‟évangile au
risque de la psychanalyse” [“O evangelho à luz da psicanálise”].
Nascida em 1908, Françoise Marette foi educada no catolicismo. Da
formação que recebeu, conservou uma “fé catñlica ardorosa”640. Em 1939, defendeu
uma tese de doutorado sobre psicanálise e pediatria. Em 1942, casou-se com Boris
Dolto (1899-1981), um médico russo imigrante, passando a usar o sobrenome do
marido. Boris pertencia à Igreja ortodoxa russa, da qual Françoise se aproximou. Em
entrevista concedida a Alain Manier, em 29 de maio de 1988, alguns meses antes de sua
morte, ela afirmou:

“Penso, no que me diz respeito, que eu não teria podido encarar


ser psicanalista se não tivesse sido crente. Eu não era beata, de
jeito nenhum, até porque ninguém da minha família era, e a
psicanálise me havia levado a acreditar que a religião não
passava de neurose, só servia para dar culpa. Mas foi
trabalhando que percebi que se tratava de uma coisa
inteiramente diversa e foi, sobretudo, casando com Boris, ou
seja, entrando em contato com a liturgia ortodoxa”641.

Dolto dedicou-se à psicanálise de crianças. Ficou famosa pelos


programas de rádio que começou a fazer em 1969; publicou livros de grande sucesso
junto ao público; falava e escrevia numa linguagem acessível a todos.
Roudinesco e Plon descrevem-na como a “segunda grande
personalidade” do movimento psicanalítico francês, atrás apenas de Lacan 642. As
trajetórias de Lacan e Dolto se cruzaram em 1938. Passada a Segunda Grande Guerra,
os dois se tornaram os “melhores amigos do mundo”643; nas quatro décadas que se
seguiram, eles foram o “casal parental” de gerações sucessivas de psicanalistas
franceses644 Ŕ um “casal esplendoroso”, segundo Roudinesco645. Do ponto de vista

640
Cf. ROUDINESCO; PLON, Dicionário de psicanálise, p.158.
641
DOLTO, Auto-retrato de uma psicanalista, p.142.
642
Cf. ROUDINESCO; PLON, Dicionário de psicanálise, p.157; ver também: ROUDINESCO, Jacques Lacan,
p.241.
643
Cf. ROUDINESCO, Jacques Lacan, p.249.
644
Cf. ROUDINESCO; PLON, Dicionário de psicanálise, p.158.
institucional, Dolto esteve sempre com Lacan. Eles estiveram juntos na criação da
Sociedade Francesa de Psicanálise, em 1953, e na fundação da Escola Freudiana de
Paris, em 1964.
Segundo Roudinesco e Plon, muitos católicos franceses perderam o
medo de se submeterem a uma análise por causa de Dolto 646. Ela contribuiu, pois,
significativamente para a recepção da psicanálise pelos católicos na França.
Em “O evangelho à luz da psicanálise”, entrevistada por Gérard
Sévérin, Dolto elege a psicanálise como instrumento de leitura dos evangelhos. O livro
foi reeditado várias vezes e traduzido em diversas línguas. Foi também um livro
polêmico, criticado tanto por teñlogos quanto por psicanalistas: “Uns acusavam Dolto
de fazer uma exegese iconoclasta e psicologizante dos textos sagrados, outros se
mostravam hostis a essa tentativa de cristianização da psicanálise”647.
A obra poderia perfeitamente se chamar Ŕ e seria mais exato Ŕ “O
complexo de Édipo nos evangelhos” ou ainda “Os evangelhos e a castração”. Com
efeito, aos olhos de Dolto, Jesus insiste em que as pessoas se emancipem de seus pais
(cf. Mt 19,5), recomendando os pais a deixá-las partir (cf. Mc 10,14). Ao longo de sua
vida, por diversas vezes, ele teria agido nessa direção. No episódio em que o menino
Jesus é perdido e reencontrado no Templo, ele “castra” os seus pais de sua
possessividade648. Nas bodas de Caná, trata-se do “parto” de Jesus por Maria: ele resiste
em “nascer” para a sua vida pública, está angustiado; mas ela insiste, e, afinal, Jesus
inaugura o seu ministério, realizando o seu primeiro sinal649. Na ressurreição do filho da
viúva de Naim, Jesus promove a separação entre mãe e filho, ocupando o lugar de
terceiro650. Na ressurreição da filha de Jairo, Jesus rompe a relação “incestuosa” entre o
chefe da sinagoga e a sua filha de 12 anos; a menina passa da condição de objeto amado
à de sujeito desejante651. Na ressurreição de Lázaro, Jesus corta o “cordão umbilical”
que ligava Lázaro a ele, Jesus, libertando-o do estado de dependência “fetal” em que
Lázaro se encontrava, deixando de fazer para ele o papel de mãe e de pai que o

645
Cf. ROUDINESCO, História da psicanálise na França, v.2, p.282.
646
Cf. ROUDINESCO; PLON, Dicionário de psicanálise, p.160.
647
ROUDINESCO; PLON, Dicionário de psicanálise, p.160.
648
Cf. DOLTO; SÉVÉRIN, L‟évangile au risque de la psychanalyse, p.33-40.
649
Cf. DOLTO; SÉVÉRIN, L‟évangile au risque de la psychanalyse, p.51-61.
650
Cf. DOLTO; SÉVÉRIN, L‟évangile au risque de la psychanalyse, p.77-104.
651
Cf. DOLTO; SÉVÉRIN, L‟évangile au risque de la psychanalyse, p.105-123.
alimentam652. Por fim, no episódio da unção de Betânia, Jesus opera uma ruptura entre
si e Maria de Betânia653. Em resumo, Jesus, que foi como que “empurrado” por sua mãe
a começar a sua vida pública, separou-se de seus pais, separou a viúva de Naim do seu
filho, separou Jairo de sua filha, separou Lázaro de si mesmo e separou também Maria
de Betânia de si mesmo. Noutras palavras, com Dolto, a psicanálise descobre, nos
evangelhos, o que sempre soube. Talvez, não seja muito; mas uma clara convergência
entre a mensagem cristã e a psicanálise fica delineada.
O que faz sucesso merece bis. Em 1979, Sévérin voltou a entrevistar
Dolto, o que resultou no segundo volume de “O evangelho à luz da psicanálise”. Nesse
livro, destaca-se a noção de “desejo”. No episñdio da cura da filha de uma mulher
estrangeira, Jesus descobre o seu desejo: a sua missão de Messias universal 654. Nas
parábolas da ovelha e da moeda perdidas, o pastor e a dona de casa, respectivamente,
partem em busca do objeto que falta, o objeto-causa do desejo655. No episódio da
samaritana, Jesus conduz uma mulher à verdade do seu desejo 656. Na parábola do filho
pródigo, o filho mais velho peca contra o seu desejo, ao passo que o caçula luta pelo
próprio desejo. Cada qual ao seu modo, ambos passam do registro da necessidade ao
registro do desejo657. Na parábola do fariseu e do publicano, o fariseu vive conforme a
lei de Moisés, mas não segundo a lei do desejo, e, por isso, Jesus o desaprova658. Na
parábola do rico e de Lázaro, o homem rico vive segundo as suas necessidades, para a
satisfação delas, permanecendo fechado para a dimensão do desejo, aquela que poderia
levá-lo a abrir-se para o outro659. Em suma, o segundo volume de “O evangelho à luz da
psicanálise” poderia perfeitamente se chamar: “Jesus e o desejo”. Com efeito, de acordo
com Dolto, Jesus ensina o desejo e leva a ele660; Jesus conduz ao desejo, não a uma
moral661; Jesus nos dá a conhecer o desejo662; Jesus libera o desejo do homem663; Jesus

652
Cf. DOLTO; SÉVÉRIN, L‟évangile au risque de la psychanalyse, p.125-140.
653
Cf. DOLTO; SÉVÉRIN, L‟évangile au risque de la psychanalyse, p.141-150.
654
Cf. DOLTO; SÉVÉRIN, O evangelho à luz da psicanálise, livro 2, p.13-18.
655
Cf. DOLTO; SÉVÉRIN, O evangelho à luz da psicanálise, livro 2, p.19-33.
656
Cf. DOLTO; SÉVÉRIN, O evangelho à luz da psicanálise, livro 2, p.35-53.
657
Cf. DOLTO; SÉVÉRIN, O evangelho à luz da psicanálise, livro 2, p.55-70.
658
Cf. DOLTO; SÉVÉRIN, O evangelho à luz da psicanálise, livro 2, p.95-108.
659
Cf. DOLTO; SÉVÉRIN, O evangelho à luz da psicanálise, livro 2, p.109-137.
660
Cf. DOLTO; SÉVÉRIN, O evangelho à luz da psicanálise, livro 2, p.7, 10.
661
Cf. DOLTO; SÉVÉRIN, O evangelho à luz da psicanálise, livro 2, p.7.
662
Cf. DOLTO; SÉVÉRIN, O evangelho à luz da psicanálise, livro 2, p.68.
663
Cf. DOLTO; SÉVÉRIN, O evangelho à luz da psicanálise, livro 2, p.104.
é o itinerário do desejo664; Jesus veio para nos ensinar a viver o nosso desejo665. O único
pecado é pecar contra a lei do desejo, é não se arriscar para viver o seu desejo 666. De
novo, a psicanálise descobre, nos evangelhos, o que sempre soube667.
Em 1981, novamente entrevistada por Sévérin, Dolto publicou “La foi
au risque de la psychanalyse” [“A fé à luz da psicanálise”], obra que foi traduzida para
nove línguas. Como o título da obra o indica, aqui, já não se trata mais de uma
interpretação psicanalítica de passagens evangélicas selecionadas, mas de uma reflexão
sobre a fé feita por uma psicanalista. Terceiro e último de uma série, esse livro parece
dar mostras de uma menor inventividade.
Em 1978, entre o primeiro e o segundo volumes de “O evangelho à
luz da psicanálise”, Vergote lançou “Dette et désir” [“Dívida e desejo”]. Em “Psicologia
religiosa”, de 1966, ele havia avançado a tese de que a experiência religiosa possui dois
eixos fundamentais: o paterno e o materno. “Dívida e desejo” leva adiante essa intuição,
focalizando, agora, os desvios psicopatológicos correspodentes a cada um desses eixos.
Não é difícil adivinhar que os dois termos do título do livro fazem referência,
respectivamente, à neurose obsessiva668 e à histeria669, ou seja, à patologia da
culpabilidade e aos descaminhos do desejo no campo da experiência religiosa. O livro
trata também dos chamados “fenómenos extraordinários” que, por vezes, acompanham
a experiência mística, tais como vozes, visões, estigmas etc.670, e ainda das possessões
demoníacas671. Em suma, talvez se possa dizer que “Psicologia religiosa” é o livro de
Vergote sobre a psicologia religiosa “normal”, por assim dizer, ao passo que “Dívida e
desejo” é a obra que ele dedicou aos desvios psicopatológicos da psicologia religiosa.
Não nos parece infundado considerar essas duas obras como as mais importantes que
Vergote produziu.
No mesmo ano de 1978, Küng escreveu “Existiert Gott?” [“Deus
existe?], um denso e alentado volume de filosofia da religião em que o parecer de
664
Cf. DOLTO; SÉVÉRIN, O evangelho à luz da psicanálise, livro 2, p.120.
665
Cf. DOLTO; SÉVÉRIN, O evangelho à luz da psicanálise, livro 2, p.149.
666
Cf. DOLTO; SÉVÉRIN, O evangelho à luz da psicanálise, livro 2, p.69-70.
667
Observe-se que, na mesma década de 70, também Beirnaert publicou quatro pequenos artigos em que
comenta psicanaliticamente algumas passagens bíblicas, a saber, a história de Caim e Abel, a cura de um
endemoninhado em território pagão, a parábola do filho pródigo e o relato de Pentecostes (cf. BEIRNAERT,
Aux frontières de l‟acte analytique, p.165-195).
668
Cf. VERGOTE, Dette et désir, p.61-162.
669
Cf. VERGOTE, Dette et désir, p.163-223.
670
Cf. VERGOTE, Dette et désir, p.225-265.
671
Cf. VERGOTE, Dette et désir, p.267-303.
diversos pensadores sobre o problema de Deus Ŕ tais como Feuerbach, Marx, Nietzsche,
entre outros Ŕ é apresentado e discutido pelo teólogo. Uma centena de páginas desse
livro é dedicada à crítica freudiana da religião.
No ano seguinte, Küng foi convidado para ministrar as famosas
“Terry Lectures” [“Conferências Terry”] na Universidade Yale, em New Haven, e
adotou como texto esse capítulo que dedicara a Freud. Traduzido para o inglês Ŕ e,
depois, para outras línguas Ŕ, o texto dessa palestra foi publicado como livro sob o título
“Freud and the problem of God” [“Freud e o problema de Deus”]. Em português, a obra
veio a lume apenas em 2006, sob o título “Freud e a questão da religião”, mas
acrescentada de uma palestra feita por Küng em 1986, em Washington, perante a
Associação Americana de Psiquiatria, que, naquela ocasião, o homenageou concedendo-
lhe o Prêmio Oskar Pfister672.
Hans Küng nasceu em Sursee, na Suíça, em 1928. Em 1954, foi
ordenado padre. Seis anos depois, tornou-se professor de teologia em Tübingen, na
Alemanha. Foi consultor teolñgico do Concílio do Vaticano II. Em 1967, publicou “Die
Kirche” [“A Igreja”]. E, em 1971, lançou “Unfehlbar? Eine Anfrage” [“Infalibilidade?
Um inquérito”].
No dia 15 de fevereiro de 1975, a Congregação para a Doutrina da Fé
se pronunciou sobre esses dois livros de Küng, advertindo que a opinião do autor sobre
a infalibilidade papal, o magistério de Igreja e a consagração da eucaristia por leigos
contrastava com a doutrina da Igreja Católica que deve ser professada por todos os fiéis.
A congregação lembrou, então, ao professor de Tübingen, que a autoridade eclesiástica
encarregou-o de ensinar teologia dentro do espírito da doutrina da Igreja, e não para que
ele combatesse essa doutrina ou a colocasse em dúvida673.
Passados cinco anos, Küng não havia se colocado de acordo com o
magistério eclesiástico; pelo contrário, naquele período, ele havia explicitado ainda mais
claramente a sua contradição com a doutrina oficial. Assim, no dia 15 de dezembro de
1979, a Congregação para a Doutrina da Fé declarou que, em seus escritos, Küng se
afastava da integridade da verdade da fé católica e, consequentemente, não poderia mais

672
Cf. KÜNG, Religião: o último tabu? In: _______, Freud e a questão da religião, p.101-131.
673
Cf. SACRÉE CONGRÉGATION POUR LA DOCTRINE DE LA FOI, Déclaration de la Congrégation pour la
Doctrine de la foi sur deux livres du prof. Hans Küng. La documentation catholique, v.72, n.1672, p.258-
259.
ser considerado um teólogo católico, tampouco ensinar teologia em nome da Igreja
Católica674.
Küng teve, então, a sua licença para ensinar teologia católica
revogada. Ele permaneceu, porém, como professor de teologia ecumênica em Tübingen
até aposentar-se em 1996. Desde então, tornou-se professor emérito. As suas faculdades
presbiterais não foram revogadas, de modo que Küng conservou também o exercício do
seu sacerdócio. No dia 26 de setembro de 2005, no palácio papal de Castel Gandolfo,
Bento XVI e Küng surpreenderam não poucas pessoas ao se encontraram para jantar e
discutir amistosamente teologia.
No mesmo ano em que Küng foi desautorizado pela Santa Sé, Ana-
Maria Rizzuto Ŕ uma psicanalista argentina que emigrou para os Estados Unidos da
América em 1964 Ŕ publicou um livro muito citado: “The birth of the living God” [“O
nascimento do Deus vivo”]. O tema do seu estudo é a origem da ideia psicológica de
Deus, ou seja, a gênese da representação do divino na mente humana. Recorrendo a um
estudo empírico, em que vários casos são examinados, a principal conclusão a que
chega a autora é que a representação de Deus encontra a sua origem fundamental nas
figuras materna e paterna. A geração psíquica da ideia do divino é um processo longo,
nunca acabado, complexo, em que vários fatores intervêm, podendo-se, contudo,
destacar a mãe e o pai675. Note-se que Rizzuto admite perfeitamente a origem parental,
materna e paterna, da ideia psicológica de Deus, sem extrair daí qualquer conclusão
sobre a sua existência ou inexistência. Voltaremos a isso.

Décadas de 1980 e 1990 (João Paulo II: 1978-2005)

Chegamos, assim, ao quarto e último segmento histórico da nossa


investigação sobre a recepção da psicanálise pela Igreja Católica. Comparado aos dois
períodos precedentes, o segmento histórico que pretendemos examinar agora tem uma
densidade visivelmente menor. Aliás, o leitor certamente terá percebido que as décadas
de 50 e 60, em particular, foram especialmente significativas para a história das relações
entre o catolicismo e a psicanálise. Seja como for, embora menos densos, os dois

674
Cf. SAGRADA CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ, Declaração acerca de alguns pontos da
doutrina teológica do prof. Hans Küng. L‟Osservatore romano, ano 10, n.52 (526), p.8.
675
Cf. RIZZUTO, O nascimento do Deus vivo, p.254-256, 258, 261, 272, 274, 276.
últimos decênicos do século XX e mesmo os primeiros anos do século em curso não
foram vazios de acontecimentos dignos de nota, mas ficaram também marcados por
fatos que nos cumpre, nesta seção, registrar. A menor densidade desse período, contudo,
parece sugerir uma narrativa diferente, por ordem temática, ao invés de cronológica.
O material pertencente ao período histórico em estudo pode ser
organizado em cinco blocos: primeiramente, o tema “psicanálise e Bíblia”; em seguida,
quatro autores de notável envergadura: Drewermann, Meissner, Vasse e Domínguez Ŕ
os três últimos, jesuítas.
Sobre o recurso à psicanálise na interpretação das Sagradas Escrituras,
já mencionamos, na seção precedente, os trabalhos de Beirnaert e, sobretudo, Dolto.
Podemos, agora, acrescentar que, em 1986, Marie Balmary inscreveu também o seu
nome nesse campo de pesquisa com a publicação de “Le sacrifice interdit” [“O
sacrifício interditado”].
Nessa obra, a autora procede a um comentário psicanalítico de
algumas passagens bíblicas, boa parte delas retiradas do “Gênesis”, tais como: o pecado
original de Adão e Eva, o dilúvio universal, o arco-íris que apareceu após o dilúvio, a
nudez de Noé, a torre de Babel, a vocação de Abraão, a cura de Sara, o sacrifício de
Isaac, a figura de Ismael, a destruição de Sodoma e Gomorra, a figura de Abimelec, o
julgamento de Salomão etc. Também algumas cenas dos evangelhos são comentadas, a
saber: Maria e José, o batismo de Jesus, as tentações no deserto, o encontro com
Nicodemos, a expulsão de um espírito mudo, a recomendação de oferecer a outra face, o
dito de Jesus de que veio trazer a divisão ou a espada, o mandamento do amor ao
próximo, a parábola do filho pródigo, a eucaristia, a morte de Jesus etc.
Passados uns poucos anos, em 1993, a Pontifícia Comissão Bíblica
publicou um documento intitulado “A interpretação da Bíblia na Igreja”. O prefácio
desse documento é assinado pelo então cardeal Joseph Ratzinger (1927). De fato, a
Pontifícia Comissão Bíblica é um órgão da Congregação para a Doutrina da Fé, da qual
Ratzinger foi o prefeito de 1981 até a conclusão do pontificado de João Paulo II.
Uma seção do texto é dedicada às abordagens “psicolñgicas e
psicanalíticas” das Sagradas Escrituras. O documento observa que:

“A extensão moderna das pesquisas psicolñgicas ao estudo das


estruturas dinâmicas do inconsciente suscitou novas tentativas
de interpretação dos textos antigos, e também da Bíblia. Obras
inteiras foram consagradas à interpretação psicanalítica de textos
bíblicos”676.

Qual é o valor dessa abordagem? O que dizer dessa “exegese


psicanalítica”? A Pontifícia Comissão Bíblica acredita que essa abordagem significa,
para o entendimento da Bíblia, um “enriquecimento”; que ela se insere numa
“compreensão pluridimensional da Escritura”; que um estudo interdisciplinar conduzido
por exegetas e psicanalistas apresenta “vantagens certas”; e que esse esforço comum
promete ser “fecundo”677. Ao mesmo tempo, o documento adverte que as fronteiras de
cada disciplina devem ser respeitadas. E acrescenta: “...uma psicologia ou psicanálise
atéias tornar-se-iam incapazes de considerar os dados da fé”678.
Por fim, mais recentemente, em 2003, Daniel Duigou Ŕ um padre
diocesano francês que também é psicólogo e psicanalista Ŕ publicou um título que
lembra muito os livros de Dolto: “Psychanalyse des miracles du Christ” [“Psicanálise
dos milagres de Cristo”].
Nessa obra, Duigou procede a uma interpretação psicanalítica dos sete
sinais realizados por Jesus no “Evangelho de João”: a transformação da água em vinho
nas bodas de Caná, a cura do filho de um funcionário real, a cura de um paralítico na
piscina de Betesda, a multiplicação dos pães e dos peixes, a caminhada de Jesus sobre
as águas do mar da Galileia, a cura de um cego de nascença e a ressurreição de Lázaro.
Segundo o autor, nesses sete sinais, Jesus age de modo a promover a superação de uma
relação de dependência para com as figuras parentais, favorecendo o advento do sujeito.
Corte do cordão umbilical, segundo nascimento, passagem para a idade adulta, tomada
das rédeas da própria vida, assunção da própria história, autonomia, liberdade,
responsabilidade Ŕ eis o que Duigou enxerga nos gestos que Jesus praticou no quarto
evangelho. Haveria, pois, uma espécie de convergência entre o sentido das ações de
Jesus e o que se pretende em uma análise.
Mais especificamente, nas bodas de Caná, Jesus se separa de sua mãe,
torna-se adulto e começa a sua vida pública Ŕ Duigou destaca a frase: “O que há entre

676
PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA, A interpretação da Bíblia na Igreja, p.33-34.
677
Cf. PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA, A interpretação da Bíblia na Igreja, p.34-35.
678
PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA, A interpretação da Bíblia na Igreja, p.34.
mim e ti, mulher?” (Jo 2,4)679. Na cura do filho de um funcionário real, um homem
poderoso, iludido com a própria onipotência, se reconhece necessitado dos outros para
viver680. Na cura de um paralítico na piscina de Betesda, um homem que culpava os
outros pelo próprio infortúnio assume, instigado por Jesus, o seu desejo de viver e a
responsabilidade pela própria vida681. Na multiplicação dos pães e dos peixes, o
verdadeiro milagre é a partilha682. No episódio em que Jesus caminha sobre as águas, os
discípulos, que tinham uma relação infantil com Jesus, colocando-o no lugar de pai ou
de mãe protetores, passam a ter com ele uma relação adulta: passam da dependência à
autonomia. Jesus se separa dos discípulos, entrega-os a si mesmos, para que cresçam em
liberdade683. Na cura de um cego de nascença, Jesus ajuda uma pessoa a se libertar da
condenação social de que era vítima e que havia internalizado; noutras palavras, trata-se
de uma desculpabilização684. E, na ressurreição de Lázaro, trata-se, como nas bodas de
Caná, da separação da mãe, isto é, do corte dos vínculos incestuosos que prendiam
Lázaro à sua família685.
Como se vê, há já uma consistente tradição de textos nascidos da
aposta de que a psicanálise pode ajudar na compreensão da Bíblia. Passemos, agora, aos
quatro autores acima anunciados, a começar por um teólogo que mobilizou a opinião
pública alemã.
Eugen Drewermann nasceu em 1940, em Bergkamen, na Alemanha.
Filho de um pai luterano e de uma mãe católica, ele foi ordenado padre em 1966.
Dotado de uma erudição espantosa, estudou filosofia, teologia, moral, exegese bíblica,
religiões comparadas, psicologia analítica e psicanálise.
Drewermann publicou dezenas de livros, não se podendo dizer que a
preocupação com a ortodoxia seja a sua característica mais notável. Em 1986, o cardeal
Ratzinger escreveu ao arcebispo de Paderborn, Johannes Joachim Degenhardt (1926-
2002), manifestando a sua profunda preocupação com as posições teológicas assumidas
por Drewermann, particularmente, a respeito do nascimento virginal de Jesus. Em 1989,
porém, Drewermann publicou algo ainda mais ousado: “Kleriker: Psychogramm eines

679
Cf. DUIGOU, Psicanálise dos milagres de Cristo, p.17-39.
680
Cf. DUIGOU, Psicanálise dos milagres de Cristo, p.41-58.
681
Cf. DUIGOU, Psicanálise dos milagres de Cristo, p.59-76.
682
Cf. DUIGOU, Psicanálise dos milagres de Cristo, p.77-92.
683
Cf. DUIGOU, Psicanálise dos milagres de Cristo, p.93-113.
684
Cf. DUIGOU, Psicanálise dos milagres de Cristo, p.115-132.
685
Cf. DUIGOU, Psicanálise dos milagres de Cristo, p.133-152.
Ideals” [“Clérigo: psicograma de um ideal”]. Na França, o livro saiu com o título
“Fonctionnaires de Dieu” [“Funcionários de Deus”].
Nessa obra, o autor se propõe a traçar o retrato psicológico do
eclesiástico, o que é feito de forma impiedosa. Com efeito, o perfil do clérigo desenhado
por Drewermann não é nada honroso. O padre, segundo ele, é, antes de tudo, um fraco;
é alguém socialmente mal-sucedido e que encontrou, na vocação presbiteral, um meio
de autopromoção686; é um homem fixado edipianamente à própria mãe e incapaz de
aceitar outra mulher como objeto de amor687.
A análise de Drewermann é bastante extensa Ŕ chega a ser prolixa Ŕ, e
não temos a intenção de resumi-la aqui. Um elemento, porém, reiterado ao longo da
obra e que, talvez, tenha desgostado especialmente o magistério eclesiástico é a sua
crítica ao celibato presbiteral, bem como o fato de que tenha colocado em dúvida a
condição celibatária de Jesus688. Sobre o primeiro ponto, por exemplo, diz Drewermann:

“Quand deux clercs se rencontrent, de quoi parlent-ils au bout de


deux minutes? Mais, voyons! des sentiments des autres, avec
une préférence absolue pour les questions concernant l‟amour,
donc les problèmes du couple, dans et en dehors du mariage.
Tout comme les détenus parlent sans cesse de liberté et les
malades de santé, ainsi la pensée des ces êtres qui ont renoncé à
l‟amour et verrouillé leur affectivité tourne-t-elle sans cesse
autour de ce qu‟il y a de plus intime et affectivement de plus
intense dans la vie d‟autrui. Les clercs font penser à des bêtes
transies de froid qui se pressent aux portes des maisons pour
réduire au moins spatialement la distance les separant des lieux
chaleureux dont l‟accès leur est refusé” [“Quando dois clérigos
se encontram, sobre o que falam depois de dois minutos? Isso
mesmo! sobre os sentimentos dos outros, com uma preferência
absoluta pelas questões que concernem ao amor, isto é, os
problemas do casal, dentro e fora do casamento. Tal como os
prisioneiros falam sem cessar de liberdade e os doentes, de
saúde, assim o pensamento desses seres que renunciaram ao
amor e bloquearam a sua afetividade gira incessantemente em
torno do que há de mais íntimo e afetivamente mais intenso na
vida dos outros. Os clérigos fazem pensar em animais transidos
de frio que se encostam às portas das casas para reduzir

686
Cf. DREWERMANN, Fonctionnaires de Dieu, p.77.
687
Cf. DREWERMANN, Fonctionnaires de Dieu, p.444, 497.
688
Cf. DREWERMANN, Fonctionnaires de Dieu, p.449, 613, 615.
espacialmente ao mínimo a distância que os separa dos lugares
onde há calor e em que o acesso lhes é recusado”]689.

Em outro lugar, ele acrescenta:

“...l‟effet des prêtres sur leur semblables est bien celui de


citernes sèches. Certes, ils parlent toujours d‟amour entre les
hommes, mais ils ont en même temps appris à se derober avec
angoisse et effroi devant tout amour qui s‟offre, tout au moins
s‟il vient d‟une femme” [“...o efeito dos padres sobre seus
semelhantes é o de cisternas secas. É verdade, eles falam
continuamente do amor entre os homens, mas, ao mesmo tempo,
aprenderam a recuar, com angústia e medo, diante de toda oferta
de amor, pelo menos, quando ela é feita por uma mulher”]690.

Essas duas citações oferecem uma amostra do tom de Drewermann.


Há dezenas de passagens assim no seu livro. Como se vê, o seu estilo é um pouco
provocativo.
O livro de Drewermann não ficou sem consequências. Em 1991,
Degenhardt, o seu bispo, desautorizou-o a ensinar teologia no seminário católico local.
No ano seguinte, a sua licença para pregar foi também retirada. Drewermann passou,
desde então, a trabalhar como autor e conferencista freelancer. Em 2005, deixou a
Igreja Católica.
O caso Drewermann foi marcado por grande exposição midiática:
todo o debate entre ele e o episcopado alemão que terminou com a sua punição teve
ampla cobertura pela imprensa, e mesmo a sua decisão de desligar-se da Igreja foi
anunciada pela televisão, num talk show. De frequente convidado para entrevistas,
Drewermann passou a responsável por um programa de rádio em que conversa com os
seus ouvintes691.
Além do caso Drewermann, a história mais recente das relações entre
o catolicismo e a psicanálise ficou ainda marcada pelas contribuições de três padres
jesuítas e psicanalistas: Meissner, Vasse e Domínguez.

689
DREWERMANN, Fonctionnaires de Dieu, p.144.
690
DREWERMANN, Fonctionnaires de Dieu, p.219.
691
Domínguez comentou a obra de Drewermann em: DOMÍNGUEZ MORANO, Psicoanálisis clerical. In:
GONZÁLES FAUS, “Clérigos” en debate, p.65-128. Outra reação ao mesmo livro pode ser encontrada em:
MOREIRA, Eugen Drewermann e a psicanálise da igreja clerical. Revista eclesiástica brasileira, v.55,
n.218, p.395-405.
Em 1984, William W. Meissner (1931-2010) publicou
“Psychoanalysis and religious experience” [“Psicanálise e experiência religiosa”].
Nessa obra, o autor apresenta e, em seguida, avalia a crítica freudiana da religião. Os
motivos pessoais do ateísmo de Freud, assim como algumas polaridades entre a
psicanálise, de um lado, e a antropologia e a moral cristãs, de outra parte, são também
examinados.
Uma característica da abordagem de Meissner é o fato de que ele seja
norte-americano. Por um lado, isso o aproxima do inglês Donald Woods Winnicott
(1896-1971): Meissner dedica todo um capítulo do seu livro ao conceito winnicottiano
de “objeto transicional”, vendo aí a possibilidade de manter a tese de Freud de que a
religião é uma ilusão, mas encarando, agora, a ilusão de uma forma positiva, como um
caminho para a realidade692. De outra parte, a psicanálise de Meissner é, em grande
medida, aquela que floresceu nos Estados Unidos da América, a ego psychology; e ele
parece celebrar o fato de que esse desdobramento da teoria psicanalítica no Novo
Mundo tenha resultado em que as tensões entre os discursos psicanalítico e religioso
diminuíssem. Sem dúvida, ao postular uma área do eu livre de conflitos e ao conceder
uma maior autonomia ao eu, a ego psychology aumentou consideravelmente as chances
de uma harmonização entre a psicanálise e a antropologia cristã693.
Em 1992, Meissner publicou “Ignatius of Loyola: the psychology of a
saint” [“Inácio de Loyola: a psicologia de um santo”]. Nesse livro, ele leva ao divã de
Freud Ŕ ou será o de Hartmann? Ŕ ninguém menos do que Santo Inácio de Loyola, o
patrono dos Exercícios Espirituais e o fundador da Companhia de Jesus. Meissner não
foi o primeiro a fazê-lo, nem será o último; mas ninguém levou essa tarefa tão a sério
quanto ele: o seu livro tem quase 500 páginas694.

692
Cf. MEISSNER, Psychoanalysis and religious experience, p.160-184.
693
Cf. MEISSNER, Psychoanalysis and religious experience, p.205-206, 216.
694
A propósito, note-se que, num artigo publicado originalmente em 1957, intitulado “L‟experience
fondamentale d‟Ignace de Loyola et l‟expérience psychanalytique” [“A experiência fundamental de
Inácio de Loyola e a experiência psicanalítica”], Beirnaert aventurou-se a interpretar psicanaliticamente a
experiência vivida por Inácio quando da sua estadia em Manresa, na Espanha, entre 1522 e 1523. Nesse
artigo, Beirnaert concluiu que Inácio passou por uma experiência espiritual que significou uma espécie de
liberação do imaginário, de superação do narcisismo, de ruptura da fascinação pelo eu especular em que
ele se encontrava cativo. Isso significa dizer que o vivido por Inácio pode ser comparado a uma
experiência psicanalítica (cf. BEIRNAERT, Expérience chrétienne et psychologie, p.291-329). Beirnaert
voltou a comentar psicanaliticamente aspectos da vida ou do ensinamento de Santo Inácio de Loyola em
outros quatro artigos publicados entre os anos 70 e 80 (cf. BEIRNAERT, Aux frontières de l‟acte
analytique, p.197-243). Em 1991, também o padre jesuíta Juan Auping escreveu um artigo em que
procede a uma interpretação psicanalítica do que chamou o “caso” Santo Inácio (cf. AUPING, Experiencia
Em 1999, Meissner publicou “To the greater glory: a psychological
study of ignatian spirituality” [“Para a maior glñria: um estudo psicolñgico da
espiritualidade inaciana”]. Nesse livro, o autor se propõe a interpretar os Exercícios
Espirituais inacianos a partir da psicanálise. Meissner está convencido de que o
fundador da Companhia de Jesus foi um psicólogo intuitivo, um talentoso observador
dos movimentos internos da experiência psíquica humana, tendo tido insights
psicológicos de grande valor. Ocorre que Inácio consignou numa retórica espiritual
aquilo que constatou. Meissner se propõe, então, a traduzi-lo em termos psicanalíticos.
A obra consiste, pois, num estudo psicanalítico da espiritualidade inaciana, num diálogo
entre a perspectiva psicanalítica e a doutrina espiritual de Santo Inácio de Loyola.
Um fato digno de nota Ŕ e a se lamentar Ŕ é o americanocentrismo do
trabalho de Meissner. Na sua bibliografia, por exemplo, ele cita os psicólogos do eu
Hartmann e Kris. Mas não cita Lacan. Exceção feita a Beirnaert, Meissner ignora
completamente os psicanalistas católicos da escola francesa, tais como: Bellet, Certeau,
Dolto, Plé, Pohier, Vasse, Vergote etc. Desconhece Domínguez. Em suma, parece
pouco interessado no que se passa do outro lado do Atlântico. Observe-se ainda que,
assim como Beirnaert em “Experiência cristã e psicologia”, Meissner também evita a
palavra “psicanálise” no subtítulo dos dois livros que publicou na década de 90, dando
preferência ao termo “psicologia”, embora, tanto num caso como no outro, trate-se de
psicanálise, ainda que seja aquela assim chamada nos Estados Unidos695.

de Dios y psicoanálisis: el caso de san Ignacio. In: GRUPO ÉPSIMO, Experiencia de Dios y psicoanálisis,
p.123-173). Nascido na Holanda, na década de 40, e radicado no México desde 1977, John Andrew
Auping Birch, mais conhecido como “Juan Auping”, é psicanalista e orientador de Exercícios Espirituais.
Outras psicanálises do fundador da Companhia de Jesus podem ser encontradas em: DOMÍNGUEZ, Ignacio
de Loyola psicoanalizado. Proyección, v.40, n.170, p.171-191; DOMÍNGUEZ MORANO, Ignacio de Loyola
a la luz del psicoanálisis. Proyección, v.53, n.222, p.27-56; JURADO, El psicoanálisis de san Ignacio.
Gregorianum, v.74, n.4, p.737-748; MONTAGNE, Identidad espiritual y psicoanálisis. In: ALEMANY;
GARCÍA-MONGE, Psicología y ejercicios ignacianos, v.2, p.261-270.
695
Sobre psicanálise e espiritualidade inaciana, pode-se ainda consultar: AUPING, La ayuda del
psicoanálisis en los Ejercicios espirituales. In: GRUPO ÉPSIMO, Experiencia de Dios y psicoanálisis,
p.195-216; CERTEAU, L‟espace du désir. Christus, n.77, t.20, p.118-128; FONT, Discernimiento de
espíritus. Manresa, v.59, n.231, p.127-147; DOMÍNGUEZ, Las anotaciones a los EE.EE. y el psicoanálisis
(I). Manresa, v.60, n.234, p.3-20; DOMÍNGUEZ, Las anotaciones a los EE.EE. y el psicoanálisis (II).
Manresa, v.60, n.235, p.115-134; DOMÍNGUEZ, Las tres maneras de humildad. Manresa, v.68, n.268,
p.287-303; DOMÍNGUEZ, Ordenación de la afectividad y mecanismos de defensa. In: ALEMANY; GARCÍA-
MONGE, Psicología y ejercicios ignacianos, v.1, p.109-140; DOMÍNGUEZ MORANO, Discernimiento y
libertad en los ejercicios ignacianos. Proyección, v.38, n.162, p.203-218; DOMÍNGUEZ MORANO, El
mucho examinar. Manresa, v.62, n.244, p.273-287; DOMÍNGUEZ MORANO, El sujeto que ha de elegir hoy,
visto desde la psicología (I). Manresa, v.73, n.287, p.145-160; DOMÍNGUEZ MORANO, El sujeto que ha de
elegir hoy, visto desde la psicología (II). Manresa, v.73, n.288, p.285-302; DOMÍNGUEZ MORANO,
Psicodinámica de los ejercicios ignacianos; MONTAGNE, Notas sobre el tema del conflicto en los
Cruzemos, pois, o oceano. Do outro lado, encontraremos Vasse e
Domínguez.
Denis Vasse nasceu na Argélia, nos anos 30. Entre 1951 e 1957,
cursou medicina no seu país de origem. Médico formado, ingressou na Companhia de
Jesus em 1958. Em 1971, foi ordenado padre. Antes disso, porém, fez a sua formação
psicanalítica em Paris, ao longo dos anos 60, no grupo de Lacan, Dolto e Leclaire. Foi
membro da Escola Freudiana de Paris de 1964 a 1980, isto é, desde a fundação até a
dissolução da mesma. Entre os anos 1976 e 1979, ocupou o cargo de vice-presidente
daquela sociedade. Com a extinção da Escola Freudiana de Paris, Vasse tornou-se
membro da associação Psychanalyse et Anthropologie [Psicanálise e Antropologia]696.
Vasse publicou, até hoje, algo próximo de duas dezenas de livros. Três
deles foram traduzidos para o português pelas Edições Loyola, que pertencem à
Companhia de Jesus: “L‟ombilic et la voix” [“O umbigo e a voz”], de 1974, cujo tema é
a psicanálise de duas crianças, “L‟Autre du désir et le Dieu de la foi” [“O Outro do
desejo e o Deus da fé”], lançado em 1994, e “La souffrance sans jouissance ou le
martyre de l‟amour” [“O sofrimento sem gozo ou o martírio do amor”], publicado em
1998. Estes dois últimos livros nos interessam mais diretamente.
“O Outro do desejo e o Deus da fé” tem por subtítulo “Lire
aujourd‟hui Thérèse d‟Avila” [“Ler Teresa d‟Ávila hoje”]. O livro foi publicado em
português com o título “Leitura psicanalítica de Teresa d‟Ávila”. O trabalho consiste
num comentário psicanalítico de inspiração lacaniana dos escritos de Santa Teresa de
Jesus, a Teresa de Ávila (1515-1582). O autor faz abundantes e longas citações dos
textos de Teresa, dando mostras de conhecer-lhe a obra completa, e utiliza toda a bateria
conceitual lacaniana, podendo-se também, aqui e ali, encontrar alguma citação textual
de Lacan. O livro foi dedicado àquela que Vasse descreve como “amiga” e “irmã”,
Françoise Dolto, na época, falecida há apenas três anos.
Em “O sofrimento sem gozo ou o martírio do amor”, Vasse se debruça
sobre os escritos autobiográficos de Santa Teresinha do Menino Jesus e da Sagrada
Face, a Teresa de Lisieux (1873-1897). De novo, Vasse se propõe a comentar

Ejercicios y en el psicoanálisis. In: ALEMANY; GARCÍA-MONGE, Psicología y ejercicios ignacianos, v.2,


p.320-329.
696
Cf. HADDAD, O dia em que Lacan me adotou, p.240; ROUDINESCO, História da psicanálise na França,
v.2, p.707.
psicanaliticamente os escritos de uma santa carmelita, embora, desta vez, o emprego de
conceitos lacanianos seja mais comedido. A decepção da mãe de Teresa com o sexo da
filha; a ambivalência afetiva da mãe e o desejo inconsciente de que a filha morresse; a
anorexia infantil de Teresa, que recusou o peito materno aos dois meses; o luto não
realizado pela perda, por morte ou entrada no Carmelo, de suas mães substitutas; a
melancolia; as mães que Teresa buscou na ama-de-leite, numa irmã mais velha e em
Nossa Senhora; a busca da lei do pai no Carmelo; os sintomas histéricos de Teresa; as
suas crises de escrúpulos; os escritos autobiográficos de Teresa como tentativa de cura Ŕ
eis alguns elementos da interessante trama analisada por Vasse697.
Por fim, Domínguez. Nascido em Huelva, na Espanha, em 1946,
Carlos Domínguez Morano ingressou na Companhia de Jesus em 1962. Graduado em
filosofia, teologia, letras e psicologia, doutor em filosofia e ciências da educação e em
teologia, Domínguez fez a sua formação em psicanálise na Associação Médico-
psicológica de Ajuda aos Religiosos (AMAR), de Paris, e no Instituto de Psicoterapia
Analítica Peña Retama, de Madrid. Desde 1978, é professor de psicologia geral e de
psicologia da religião na Faculdade de Teologia de Granada e diretor e psicólogo clínico
do Centro de Psicoterapia Illíberis da mesma cidade.
Autor fecundo, desde os anos 70, Domínguez tem publicado artigos e
livros sobre a candente relação entre a psicanálise e o fenômeno religioso. Hoje, ele é,
com certeza, um dos mais respeitados artífices do diálogo Ŕ interminável, na sua opinião
Ŕ entre a fé cristã e o pensamento freudiano. Destacamos, em seguida, cinco dos seus
trabalhos.
Em 1991, Domínguez publicou a sua tese de doutorado, “El
psicoanálisis freudiano de la religión” [“A psicanálise freudiana da religião”]. Esse
livro é, sem dúvida, o mais exaustivo estudo sobre a interpretação freudiana do fato
religioso de que temos notícia. Domínguez percorre a obra completa de Freud, “de fio a

697
Também Drewermann se interessou pela psicologia de Santa Teresinha do Menino Jesus, a qual,
porém, ele considera, com a sua habitual mordacidade, um exemplo do “triunfo da destruição masoquista
de si mesmo” (cf. DREWERMANN, Fonctionnaires de Dieu, p.172). Depois de citar um texto da santa, por
exemplo, Drewermann comenta: “...celui qui ne se sentirait pas inquiet, comme homme, comme pasteur,
devant de tels accents de dépouillement mystique de soi-même, mais qui y verrait sans réserve un modèle
exemplaire de la pauvreté chrétienne doit s‟attendre à se voir reprocher son incapacité à distinguer entre
névrose et sainteté...” [“...aquele que não se sentisse inquieto, seja como homem, seja como pastor, diante
de tais expressões de despojamento místico de si mesmo, mas que visse aí, sem reservas, um modelo
exemplar da pobreza cristã deveria estar preparado para se ver censurado em sua incapacidade de
distinguir entre neurose e santidade...”] (DREWERMANN, Fonctionnaires de Dieu, p.375).
pavio”, rastreando todas as ocorrências do tema “religião” passíveis de serem
encontradas em seus escritos. Oferece, além disso, uma síntese sistemática do
pensamento de Freud sobre o fenômeno religioso e, ao final, uma análise crítica desse
mesmo pensamento.
No ano seguinte, Domínguez lançou a sua tese de livre docência,
“Creer después de Freud” [“Crer depois de Freud”], traduzida para o português por
Eduardo Dias Gontijo (1952) e publicada, em 2003, pelas Edições Loyola. Na primeira
parte desse livro, Domínguez oferece um resumo da sua tese doutoral; as três partes
restantes da obra recolhem alguns artigos publicados na revista “Proyección”
[“Projeção”], de Granada, nos anos 70 e 80, e incluem também textos inéditos. A
atualidade de Freud, os riscos do autoengano na oração, o contraste entre o Deus
anunciado por Jesus e o modo como Deus costuma ser imaginado, a culpabilidade, a
ética sexual cristã, a obediência e a pobreza religiosas, a ocorrência da transferência nas
relações pastorais, a psicologia dos grupos cristãos Ŕ em linhas gerais, são esses os
temas que o autor examina, sempre com o recurso da psicanálise.
No ano 2000, Domínguez publicou “Psicoanálisis y religión: diálogo
interminable” [“Psicanálise e religião: diálogo interminável”], obra também traduzida
para o português por Gontijo e lançada pelas Edições Loyola em 2008. O diálogo de
que se trata nesse livro é aquele travado entre a psicanálise e a religião tal como
representados, respectivamente, por Freud e Pfister. A extensa e preciosa
correspondência que os dois trocaram entre 1909 e 1939 e os dois grandes livros desse
diálogo Ŕ “O futuro de uma ilusão”, de Freud, e “A ilusão de um futuro”, de Pfister Ŕ
constituem-se no objeto principal desse estudo de Domínguez.
Em 2003, ele lançou ainda “Psicodinámica de los ejercicios
ignacianos” [“Psicodinâmica dos exercícios inacianos”]. Desde os anos 80, Domínguez
vinha publicando artigos Ŕ sobretudo, na revista “Manresa” Ŕ sobre a espiritualidade
inaciana. O livro de 2003 reúne, num único volume, toda a sua produção nessa área. Ao
fazê-lo, Domínguez submeteu a uma revisão crítica os artigos mais antigos, escreveu
capítulos inteiramente novos e arranjou tudo de modo que o resultado final se
apresentasse como um todo orgânico. O significado psicológico da ordenação dos afetos
pretendida pelos Exercícios Espirituais, o difícil manejo da culpabilidade mobilizada
pela primeira semana da mesma experiência, as semelhanças e dessemelhanças entre a
psicoterapia e o acompanhamento espiritual, o discernimento, a eleição, os três graus de
humildade Ŕ eis alguns dos temas de que se ocupa o autor. O livro termina com uma
entrevista com o também padre jesuíta Adolfo Chércoles (1936), a quem Domínguez
atribui a intuição de boa parte das ideias aprofundadas na obra.
Por fim, o seu mais recente lançamento é a obra “Experiencia
cristiana y psicoanálisis” [“Experiência cristã e psicanálise”], de 2006. Também esse
livro recolhe uma série de textos publicados anteriormente como artigos em lugares e
ocasiões diversas. O papel das figuras materna e paterna na geração da imagem que o
ser humano faz de Deus, a concepção da morte de Jesus enquanto sacrifício expiatório
oferecido ao Pai, a celebração da eucaristia enquanto atualização desse mesmo
sacrifício, as fantasias inconscientes que estão por trás da devoção mariana, a invasão da
experiência cristã pelo sentimento de culpa, a rigidez da moral sexual da Igreja, o
exercício da autoridade e do poder por parte da hierarquia eclesiástica, a ambivalência
da experiência religiosa, as patologias que caracterizam essa mesma experiência, a
identidade religiosa dos místicos e dos profetas, a relação entre a fé e o mundo dos
desejos, a religião como defesa contra a angústia, o processo de amadurecimento da fé
cristã etc. Ŕ eis alguns dos temas que Domínguez examina, sempre munido do “bisturi”
freudiano.

Balanço geral

Feito esse levantamento dos fatos mais importantes Ŕ sobretudo, dos


acontecimentos bibliográficos Ŕ da já longa história da recepção da psicanálise pelo
catolicismo, a nossa tarefa, neste capítulo, não está, porém, terminada. Primeiramente,
porque, agora, nos é dada a ocasião, contemplando o todo, de tirar algumas conclusões
dessa história. Em segundo lugar, porque há algumas questões que apareceram em
nossa narrativa, mas que não era oportuno aprofundar quando se apresentaram e que,
agora, sim, podem ser retomadas.
Comecemos pelas conclusões. Terminado o nosso relato, uma
impressão que nos vem ao espírito é que a história das relações entre o catolicismo e a
psicanálise é uma história tensa. Em meados dos anos 30, na Itália, uma revista de
psicanálise foi fechada; em 1952, Pio XII desabonou certa escola de psicanálise; em
1953, a tese de Oraison entrou no Índex; em 1961, os padres e as freiras foram proibidos
de se tornarem psicanalistas e de se submeterem a uma análise sem a autorização do
bispo; em 1966, Roustang perdeu o cargo de diretor de uma revista; em 1974, Certeau
ficou em situação difícil por causa de um livro; em 1979, Pohier foi proibido de pregar,
dar aulas de teologia e rezar missas abertas; no mesmo ano, Küng foi desautorizado
como teólogo católico; e, em 1991, Drewermann perdeu o emprego de professor num
seminário. Em todos esses casos, o responsável pela medida punitiva foi alguma
instância da Igreja encarregada de zelar pela integridade da fé católica: o papa, o Santo
Ofício, a Congregação para a Doutrina da Fé ou o bispo local. Definitivamente, há um
problema entre a hierarquia da Igreja e a psicanálise.
Não convém, contudo, superestimá-lo. A lista que acabamos de
compor pode nos dar uma impressão distorcida da realidade. Pois, em alguns desses
exemplos, o motivo da punição não foi a psicanálise. Nomeadamente, os casos de
Roustang, Certeau e Küng pouco ou nada tem a ver com a criação de Freud. Entenda-se:
é verdade que os três, em maior ou menor medida, interessaram-se pela psicanálise e
escreveram sobre o assunto. Mas eles não tiveram os problemas que tiveram por causa
da psicanálise. O que estava em jogo, fundamentalmente, nos três casos, era a
eclesiologia.
Além disso, um caso que gostaríamos de examinar mais de perto,
nesta altura, é o de Pohier. Ninguém recebeu uma punição tão severa quanto ele. Daí a
importância de que o seu caso se reveste. A condenação de Pohier tem o valor de uma
condenação implícita da psicanálise pelo magistério da Igreja? Segundo o nosso
parecer, não. Vejamos.
“Quando eu digo Deus” é um livro inteligente, estimulante,
surpreendente, desconcertante, que faz pensar. Mas não é um livro de psicanálise, nem
mesmo fundado em argumentos psicanalíticos. “Quando eu digo Deus” é,
eminentemente, um livro de teologia. O tratado sobre Deus, a teologia fundamental, a
antropologia teológica, a cristologia, a escatologia, a eclesiologia, a eucaristia e o
sacramento da ordem Ŕ eis as principais disciplinas sobre as quais o livro tem algo a
dizer.
A presença da psicanálise na argumentação do autor é mínima. Pohier
cita Freud em dois momentos apenas; em ambos, valendo-se dele no desenvolvimento
de teses que não foram identificadas pela Congregação para a Doutrina da Fé como
problemáticas.
Na primeira citação698, ao refletir sobre Deus enquanto criador, Pohier
menciona Freud de passagem, apoiando-se nele ao argumentar que o infantil está
sempre aí e que seria uma pretensão megalomaníaca do homem Ŕ infantil, entenda-se Ŕ
acreditar-se o responsável pelo mal. Na segunda ocasião em que Pohier se refere a
Freud699, ele apenas menciona as três feridas narcísicas impostas pela ciência ao homem
para, em seguida, introduzir o tema da necessidade de uma quarta revolução, desta vez,
uma revolução teológica, passível de ser assim formulada: o homem não é o centro de
gravidade de Deus, não se constitui na sua preocupação maior. A Congregação para a
Doutrina da Fé não se pronunciou sobre esses elementos da reflexão de Pohier aos quais
o nome de Freud foi ligado.
Por outro lado, ao argumentar que a salvação não consiste na abolição
da contingência humana700, assim como ao rejeitar o valor redentor e sacrificial da
paixão e da morte de Jesus701 Ŕ essas, sim, teses problemáticas segundo a Congregação
para a Doutrina da Fé Ŕ, Pohier poderia ter recorrido à psicanálise. Mas não o fez.
Segundo Pohier, a contingência humana Ŕ ou seja, a sua mortalidade,
concupiscência, suscetibilidade a sofrer etc. Ŕ não é um acidente da criação, de modo
que Deus não vai livrar o ser humano dela escatologicamente. A salvação não é a
abolição da contingência; ser salvo não é deixar de ser homem; Deus não vai salvar o
homem da sua humanidade. Noutras palavras Ŕ mais próximas da linguagem
psicanalítica Ŕ, Deus não vai realizar os desejos infantis de onipotência do ser humano.
Essa tese, como se vê, poderia ter sido referida à psicanálise. Mas Pohier não o fez.
Além disso, Pohier rejeita a concepção da morte de Jesus como
sacrifício expiatório Ŕ particularmente, da maneira como Santo Anselmo de Cantuária
(1033/1034-1109) a formulou. Domínguez também criticou essa teologia, mas valendo-
se de argumentos psicanalíticos, recurso ausente na argumentação de Pohier, que é
estritamente teológica.

698
Cf. POHIER, Quand je dis Dieu, p.80.
699
Cf. POHIER, Quand je dis Dieu, p.233-234.
700
Cf. POHIER, Quand je dis Dieu, p.97-129.
701
Cf. POHIER, Quand je dis Dieu, p.155-171.
Por fim, vale acrescentar que, num artigo publicado em 1975, Pohier
colocara em questão a fé na ressurreição baseando-se na psicanálise702. Aqui, porém, o
autor retoma o mesmo problema e radicaliza a sua posição, mas sem se apoiar na
invenção freudiana703.
Em suma, por tudo isso, pelas citações de Freud que Pohier fez e
também pelas que ele não fez, sentimo-nos inclinados a concluir que a condenação de
“Quando eu digo Deus” pela Congregação para a Doutrina da Fé em 1979 não tem o
valor de uma condenação implícita da psicanálise pelo magistério eclesiástico.
Acrescente-se ainda que, segundo o próprio Pohier, o seu dossier no
Vaticano foi aberto em decorrência do seu questionamento da exigência do celibato
presbiteral e do seu engajamento a favor do aborto. Ele não foi condenado pela
Congregação para a Doutrina da Fé “apenas” pelo que está indicado na declaração que
formalizou esse juízo704.
Vale também o registro de que, em “Deus despedaçado”, muito mais
do que em “Quando eu digo Deus”, Pohier cita a psicanálise e os psicanalistas
abundantemente, dezenas de vezes. Aparentemente, tendo ficado interditado no meio
teológico, ele estreitou os seus laços com a psicanálise e os psicanalistas nos anos que
se seguiram à sua punição, tendo encontrado, nesse ambiente, acolhida e amizade, em
suma, um novo lar. Um grupo de psicanalistas, por exemplo, dedicou todo um
seminário ao estudo do seu “Quando eu digo Deus”705.
Com essas considerações, não estamos dizendo que não há problemas
entre o magistério eclesiástico e a psicanálise; o que estamos tentando demonstrar é que
os problemas que há são menores do que podem parecer. Não poucos autores
concordam quanto a este juízo: apesar de tudo, a Igreja Católica não chegou jamais a
condenar oficialmente a psicanálise706. É verdade que ela esteve próxima de fazê-lo: nos
anos 50, houve pressões para que o magistério eclesiástico se pronunciasse em termos

702
Cf. POHIER, Um caso de fé pós-freudiana na ressurreição? Concilium, n.105, p.611-626.
703
Cf. POHIER, Quand je dis Dieu, p.189-238.
704
Cf. POHIER, Dieu fractures, p.183.
705
Cf. POHIER, Dieu fractures, p.114.
706
Cf. DACQUINO, Religiosidad y psicoanálisis, p.211; DOMÍNGUEZ MORANO, El psicoanálisis freudiano
de la religión, p.477; DOMÍNGUEZ MORANO, Psicoanálisis y religión: diálogo interminable, p.162;
DOMÍNGUEZ MORANO, Teología y psicoanálisis, p.8; PLÉ, Freud et la religion, p.8 [nota 4]; PLÉ,
Mudança da Igreja em relação à psicanálise. Concilium, n.99, p.1201, 1203; ROUDINESCO; PLON,
Dicionário de psicanálise, p.368.
condenatórios sobre a invenção de Freud. A AIEMPR, porém, desempenhou um papel
importante no evitamento dessa condenação707.
Passemos a outra conclusão. Contemplando a sequência dos fatos que
relatamos nas seções precedentes, uma conclusão que se nos impõe é que a história das
relações entre o catolicismo e a psicanálise parece ter obedecido a um movimento
pendular, indo de um extremo a outro, para, por fim, aproximar-se, talvez, de um ponto
médio. Com efeito, no processo de recepção da psicanálise pelo catolicismo, é possível
reconhecer três momentos: rejeição veemente, acolhida ingênua e abertura para o
diálogo sem perspectiva de síntese.
Temos, pois, três teses: [1] a psicanálise e a religião são
irreconciliáveis; [2] a psicanálise e a religião são compatíveis; e [3] a psicanálise e a
religião podem dialogar, mas sem esperança de acordo. Acrescente-se que a segunda
tese valeu-se de dois argumentos principais: [a] a crítica freudiana da religião pode ser
separada da psicanálise; [b] a psicanálise apenas purifica a religião, sem aniquilá-la.
Examinemos tudo isso mais de perto, em seções separadas: queremos nos posicionar a
respeito.

Psicanálise e religião: irreconciliáveis?

Os representantes mais ardorosos da incompatibilidade radical entre a


religião e a psicanálise podem ser encontrados nos primeiros tempos da história da
recepção da obra de Freud pelo catolicismo.
Em “O erro bem-sucedido”, por exemplo, Allers observa que há
pessoas que julgam que podem crer na religião e, ao mesmo tempo, na psicanálise sem
incorrer numa contradição. Aos seus olhos, porém, isso é impossível: “...psychoanalysis
is basically anti-Christian. There is no way out of this dilemma: one either believes in
Christ or in psychoanalysis” [“...a psicanálise é basicamente anti-cristã. Não há como
escapar a este dilema: ou se crê em Cristo ou se crê na psicanálise”]708.

707
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, Asociación internacional de estudios médico-psicológicos y religiosos.
Revista Portuguesa de Filosofia, v.59, f.2, p.597; DOMÍNGUEZ MORANO, Psicoanálisis y religión: diálogo
interminable, p.160; DOMÍNGUEZ MORANO, Teología y psicoanálisis, p.8
708
ALLERS, The successful error, p.197-198.
Essa incompatibilidade se manifesta em diversos planos. Um deles é o
da antropologia. Diz Allers:

“Even a superficial acquaintance with psychoanalysis enables


anyone to see the enormous gulf separing Christian mentality
from that implied in the Freudian conception of man” [“Um
conhecimento superficial da psicanálise basta para que se veja o
enorme abismo que separa a mentalidade cristã daquela
implicada pela concepção freudiana do homem”]709.

Mais especificamente:

“A philosophy which denies free will, ignores the spirituality of


the soul, and with shallow materialism, without any attempt at a
proof, identifies mental and bodily phenomena, knows of no
other end than pleasure, is given to a confused but nevertheless
obstinate subjectivism, is blind to the true nature of the human
person Ŕ such a philosophy cannot have even one point in
common with Christian thought. It is its perfect opposite”
[“Uma filosofia que nega o livre arbítrio, que ignora a
espiritualidade da alma, que, num materialismo vazio, sem
qualquer tentativa de prova, identifica fenômenos mentais e
corporais, que não conhece nenhum outro fim que o prazer, que
é dada a um confuso, mas, apesar disso, obstinado subjetivismo,
que é cega para a verdadeira natureza da pessoa humana Ŕ tal
filosofia não pode ter sequer um ponto em comum com o
pensamento cristão. Ela é o seu perfeito contrário”]710.

Em suma: “...Catholic philosophy and psychoanalysis exclude each


other” [“...a filosofia catñlica e a psicanálise se excluem mutuamente”]711.
Referindo-se ao pensamento catñlico, Vaca, o autor de “Psicanálise e
direção espiritual”, pergunta e responde: “¿Es compatible el psicoanálisis integral de
FREUD con esta ideología? Evidentemente no” [“A psicanálise integral de Freud é
compatível com essa ideologia? Evidentemente, não”]712. E acrescenta:

“No, rotundamente no. El psicoanálisis como conjunto, con su


filosofía y su concepción del hombre, de ninguna manera lo

709
ALLERS, The successful error, p.199.
710
ALLERS, The successful error, p.199-200.
711
ALLERS, The successful error, p.248.
712
VACA, Psicoanálisis y dirección espiritual, p.518.
admitimos. Es [...] una apostasía de nuestra fe [...]. En esta
forma, un catñlico nunca puede ser freudiano” [“Não,
rotundamente, não. A psicanálise como conjunto, com sua
filosofia e sua concepção de homem, de maneira alguma nós a
admitimos. É [...] uma apostasia da nossa fé [...]. Dessa forma,
um catñlico nunca pode ser freudiano”]713.

Freud pode, então, ser encarado como uma espécie de “cavalo de


Trñia” na cidade de Deus714. Ao acolher a psicanálise, o catolicismo estaria abrindo as
portas para um inimigo mortal.
Opiniões como essas podem soar antigas, desusadas Ŕ engraçadas até.
E é fácil simplesmente rotular Allers e Vaca, entre outros, de reacionários
empedernidos, descartando-os em seguida.
Segundo o parecer de Küng, muitas “falsas batalhas” foram travadas
entre a psicanálise e a religião715. Mas... terão sido falsas mesmo? Será que tudo não
passou de um mal-entendido?
Ora, vale lembrar que, entre os representantes da tese em consideração
nesta seção, o primeiro nome a citar é o de Freud.
Numa carta que enviou a Abraham, datada de três de maio de 1908,
ele argumentou que é mais fácil para um judeu, como Abraham, do que para um cristão,
como Jung, aceitar a psicanálise. Jung, diz Freud, “...en tant que chrétien et fils de
pasteur, ne trouve le chemin qui mène jusqu‟à moi qu‟au prix de grandes résistances
intérieures” [“...enquanto cristão e filho de pastor, não encontra o caminho que leva a
mim senão ao preço de grandes resistências interiores”]716. Freud entendia, pois, que há,
no cristianismo, algo especialmente avesso, resistente, senão francamente hostil à
psicanálise.
Depois da defecção de Jung, Freud atribuiu à religiosidade do mesmo
Ŕ isto é, ao seu cristianismo Ŕ a sua incapacidade de admitir alguns dos postulados mais

713
VACA, Psicoanálisis y dirección espiritual, p.520; cf. VACA, Psicoanálisis y dirección espiritual,
p.483-484.
714
Cf. GAGEY, Freud et le christianisme, p.7.
715
Cf. KÜNG, Religião: o último tabu? In: _______, Freud e a questão da religião, p.109.
716
FREUD; ABRAHAM, Correspondance complète 1907-1925, p.71.
importantes da psicanálise. Ou seja, Jung teria se afastado de Freud por motivos
religiosos717.
Antes que isso acontecesse, porém, numa carta endereçada a Jung em
16 de maio de 1909, Freud se referiu a Pfister nos seguintes termos:

“Whether he will be able to preserve his residue of faith for long


strikes me as doubtful; he is only at the beginning of a far
reaching development, and the bad company he keeps is bound
to have its effect” [“Tenho dúvidas de que ele será capaz de
conservar por muito tempo o que lhe resta de fé; ele está apenas
no começo de um longo desenvolvimento, e a má companhia em
que ele anda terá, com certeza, o seu efeito”]718.

Ou seja, segundo a estimativa de Freud, tendo abraçado a psicanálise,


Pfister estava fadado a perder a fé em pouco tempo.
Ferenczi também pensava assim. Numa carta que endereçou a Freud
no dia 22 de março de 1910, fazendo referência a Pfister, ele escreveu:

“Curieusement, il pense que „notre Freud a offert à la théologie


une méthodologie qui n‟est pas moins significative pour elle que
l‟analyse spectrale pour l‟astronomie‟. Il ne se doute pas encore
que la conception analytique poussée jusqu‟au bout fait table
rase de la théologie. Il va bien s‟en apercevoir” [“Curiosamente,
ele pensa que „nosso Freud ofereceu à teologia uma metodologia
que não é menos significativa para ela do que a análise espectral
para a astronomia‟. Ele não desconfia ainda de que a concepção
analítica levada às últimas consequências faz tábua rasa da
teologia. Ele vai percebê-lo claramente”]719.

Outra evidência de que, para Freud, psicanálise e religião são


incompatíveis pode ser encontrada numa pergunta que fez a Pfister, na carta lhe
endereçou em nove de outubro de 1918:

717
Cf. FREUD, Contribution à l‟histoire du mouvement psychanalytique. In: _______. Œuvres complètes,
v.12, p.309-310; FREUD, “Psychanalyse” et “Théorie de la libido”. In: _______. Œuvres complètes, v.16,
p.197-198; ver também: BIRMAN, Desejo e promessa, encontro impossível. In: MOURA, Hélio Pellegrino.
A-Deus, p.121; DOMÍNGUEZ MORANO, Creer después de Freud, p.70.
718
MCGUIRE, The Freud/Jung letters, p.108.
719
FREUD; FERENCZI, Correspondance 1908-1914, p.163.
“...pourquoi la psychanalyse n‟a-t-elle pas été créée par l‟un de
tous ces hommes pieux, pourquoi a-t-on attendu que ce fût un
juif tout à fait athée?” [“...por que a psicanálise não foi criada
por um desses homens religiosos, por que se teve que esperar
por um judeu completamente ateu?”]720.

Segundo Freud, portanto, só um ateu, como ele, poderia ter inventado


a psicanálise; um crente seria incapaz de fazê-lo.
Em sua “Autoapresentação” (1925), Freud registrou o fato de que
Pfister tenha se tornado analista conservando-se religioso, sem, contudo, manifestar
admiração por isso721. Em 25 de novembro de 1934, porém, dirigindo-se a Pfister
privadamente, Freud assim se expressou:

“Le fait que vous puissiez être un analyste aussi convaincu, tout
en restant un ecclésiastique, fait partie de ces contradictions qui
rendent la vie si intéressante” [“O fato de que o senhor seja um
analista tão convicto e, ao mesmo tempo, um eclesiástico faz
parte dessas contradições que tornam a vida tão
interessante”]722.

O tom de Freud é gentil, sem dúvida. Mas ficou dito: para ele, ser
psicanalista e pastor é uma contradição.
Em “A questão da análise leiga” (1926), Freud definiu o analista como
um ministro de almas “leigo”, isto é, secular, não religioso 723. E, numa carta a Pfister de
25 de novembro de 1928, ele comentou:

“Je ne sais si vous avez saisi le lien secret qui existe entre
l‟„Analyse par les non-médicins‟ et l„Illusion‟. Dans l‟un, je
veux prñteger l‟analyse contre les médecins, dans l‟autre contre
les prêtres. Je voudrais lui assigner un statut qui n‟existe pas
encore, le statut de pasteurs d‟âmes séculiers qui n‟auraient pas
besoin d‟être médecins et pas le droit d‟être prêtres” [“Eu não
sei se o senhor percebeu a ligação secreta que existe entre a
„Análise leiga‟ e a „Ilusão‟. Numa, quero proteger a análise dos
médicos, na outra, dos padres. Eu quereria dar-lhe um estatuto
que não existe ainda, o estatuto de pastores de alma seculares,

720
FREUD, Correspondance avec le pasteur Pfister 1909-1939, p.105.
721
Cf. FREUD, “Autoprésentation”. In: _______. Œuvres complètes, v.17, p.118.
722
FREUD, Correspondance avec le pasteur Pfister 1909-1939, p.203.
723
Cf. FREUD, La question de l‟analyse profane. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.84.
que não precisariam ser médicos nem teriam o direito de serem
padres”]724.

Em resumo, na opinião de Freud, [1] a religiosidade dificulta a


admissão da psicanálise, [2] podendo, inclusive, levar uma pessoa a abandonar a
psicanálise; [3] um homem religioso que entra em contato com a psicanálise está
destinado a perder a fé; [4] só um ateu poderia ter criado a psicanálise; [5] ser
psicanalista e pastor é uma contradição; [6] um psicanalista é um ministro de almas não
religioso; [7] psicanalistas não devem, pois, ser sacerdotes. Sim, definitivamente, para
Freud, psicanálise e religião não se coadunam.
Compreende-se, pois, o que Freud escreveu em “O homem Moisés e a
religião monoteísta” (1939):

“La recherche psychanalytique que nous pratiquons est [...]


l‟objet d‟une attention méfiante de la part du catholicisme. Nous
n‟affirmerons pas que ce soit à tort” [“A pesquisa psicanalítica
que realizamos é [...] acompanhada com desconfiança pelo
catolicismo. Não vou dizer que seja sem razão”]725.

Um psicanalista, a propñsito, disse a Bellet: “Si l‟Église se méfie de la


psychanalyse, elle a bien raison...” [“Se a Igreja desconfia da psicanálise, ela tem toda
razão...”]726.
Outro sinal de que psicanálise e religião são como “ñleo e água” Ŕ não
se misturam Ŕ pode ser encontrado no desconforto que muitos psicanalistas cristãos já
tiveram a ocasião de experimentar justamente em virtude do fato Ŕ estranho fato Ŕ de
serem psicanalistas e cristãos.
Com estas palavras, Sévérin iniciou a sua entrevista com Dolto: “C‟est
rare de rencontrer des psychanalystes qui, en public, se disent croyants et chrétiens” [“É
raro encontrar psicanalistas que, em público, se dizem crentes e cristãos”]727. Dolto, por

724
FREUD, Correspondance avec le pasteur Pfister 1909-1939, p.183; cf. FREUD, Correspondance avec le
pasteur Pfister 1909-1939, p.183-186; ver também: DOMÍNGUEZ MORANO, Psicoanálisis y religión:
diálogo interminable, p.137, 153-154. Note-se que, no original, a palavra é “Priester”, ou seja, padre,
sacerdote.
725
FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.133.
726
BELLET, Foi et psychanalyse, p.43; cf. DOMÍNGUEZ MORANO, El pastor y sus imágenes. Proyección,
v.23, n.101, p.159.
727
DOLTO; SÉVÉRIN, L‟évangile au risque de la psychanalyse, p.9.
sua vez, comentou: “Certains psychanalystes, c‟est surprenant, me reprochent de
croire...” [“Alguns psicanalistas, é surpreendente, me censuram por crer...”]728.
Muitos psicanalistas desconfiam de Vergote por ele ser padre729;
também Ricœur sofreu preconceitos por ser crente730.
Rubem Alves (1933), por exemplo, parece estar se justificando
quando diz: “...eu sou psicanalista e eu tenho fé. E não tenho de cometer nenhum
suicídio intelectual para que elas [a psicanálise e a fé] convivam dentro de mim”731.
Analogamente, referindo-se ao fundador da Companhia de Jesus e ao
criador da psicanálise, Meissner escreveu:

“My path through life has been an effort to integrate these two
disparate influences in some meaningful way Ŕ in both a
personal and an intellectual sense” [“A minha trajetñria na vida
tem sido um esforço para integrar essas duas influências
díspares de alguma maneira significativa Ŕ tanto num sentido
pessoal quanto intelectual”]732.

Beirnaert, de sua parte, confessou ter se deparado várias vezes com a


mesma questão: “Comment pouvez-vous à la fois être psychanalyste et religieux?”
[“Como você pode ser, ao mesmo tempo, psicanalista e religioso?”]733. Seguidor de
Jesus e discípulo de Freud, ele é apresentado por Alain Woodrow (1938) como um
exemplo do casamento entre “o fogo e a água”734.
O mesmo Beirnaert confessou que houve momentos em sua vida em
que se sentiu dilacerado em função dessa dupla pertença735. Numa certa altura, ele se
deu conta de que, ao se nomear como “jesuíta e psicanalista”, o “e” estava demais.
Suprimiu, então, o “e” que fazia a ligação736.
Entre os anos 2002 e 2003, em Paris, Jacques-Alain Miller (1944)
ministrou o curso “Um esforço de Poesia”. As quatro últimas lições desse curso,
728
DOLTO; SÉVÉRIN, La foi au risque de la psychanalyse, p.99.
729
Cf. LECUIT, L‟anthropologie théologique à la lumière de la psychanalyse, p.215.
730
Cf. LECUIT, L‟anthropologie théologique à la lumière de la psychanalyse, p.215 [nota 4]; ver também:
LECUIT, L‟anthropologie théologique à la lumière de la psychanalyse, p.606.
731
ALVES, Prefácio. In: DROGUETT, Desejo de Deus, p.7.
732
MEISSNER, Ignatius of Loyola, p.x.
733
BEIRNAERT, Aux frontières de l‟acte analytique, p.132; cf. BEIRNAERT, Aux frontières de l‟acte
analytique, p.140.
734
Cf. WOODROW, Les jésuites, p.278.
735
Cf. WOODROW, Les jésuites, p.279.
736
Cf. BEIRNAERT, Aux frontières de l‟acte analytique, p.11.
ocorridas nos dias 14 e 21 de maio737 e quatro e 11 de junho de 2003738, foram
intituladas “Religião, psicanálise”. Miller evitou propositalmente o uso da conjunção
aditiva “e” entre os termos “religião”, “psicanálise”, parecendo, com isso, sugerir a
impossibilidade da união entre uma coisa e outra. Por outro lado, ele também não usou a
conjunção disjuntiva “ou”, embora fosse essa, na opinião de muitos, a partícula que
caberia colocar entre os termos em questão.
Lacan, por exemplo, parecia ser dessa opinião. De fato, numa
entrevista concedida em 29 de outubro de 1974, no Centre Culturel Français [Centro
Cultural Francês], em Roma, ele afirmou que as relações entre a psicanálise e a religião
“...não são muito amigáveis. Em suma, é ou uma ou a outra. Se a religião triunfar como
é o mais provável Ŕ falo da verdadeira religião, não há senão uma verdadeira Ŕ se a
religião triunfar, isso será sinal de que a psicanálise fracassou”739.
Por fim, segundo Joel Birman, há uma “polaridade insofismável”
entre psicanálise e religião; não há complementaridade possível entre elas740.
Psicanálise e religião são “essencialmente divergentes”; há uma “diferença
fundamental” entre uma coisa e outra741. Essa incompatibilidade reside
fundamentalmente em que a religião é orientada, em suas práticas sociais, pela
dimensão da promessa, ao passo que a psicanálise pretende apenas levar o sujeito ao
encontro da verdade singular do seu desejo742.
Com Birman, avançamos para além da simples afirmação da
“incompatibilidade de gênios” entre a psicanálise e a religião e encontramos uma
indicação sobre o porquê dessa oposição. Psicanálise e religião não se dão porque a
primeira está do lado do desejo, e a segunda, da promessa. Este binómio, “desejo e
promessa”, pode ser multiplicado.

737
Cf. MILLER, Religión, psicoanálisis. In: CHORNE; GOLDENBERG, La creencia y el psicoanálisis, p.35-
68.
738
Cf. MILLER, Religião, psicanálise. Opção lacaniana, n.39, p.9-24.
739
Entrevista do dr. Lacan à imprensa. In: Cadernos Lacan, p.15-16. Esse trecho da entrevista não foi
publicado em “Le triomphe de la religion” [“O triunfo da religião”]. A mesma ideia aparece, porém, em:
LACAN, Le triomphe de la religion. In: _______. Le triomphe de la religion précédé de Discours aux
catholiques, p.78-79.
740
Cf. BIRMAN, Desejo e promessa, encontro impossível. In: MOURA, Hélio Pellegrino. A-Deus, p.116.
741
Cf. BIRMAN, Desejo e promessa, encontro impossível. In: MOURA, Hélio Pellegrino. A-Deus, p.122.
742
Cf. BIRMAN, Desejo e promessa, encontro impossível. In: MOURA, Hélio Pellegrino. A-Deus, p.126,
128.
A psicanálise e a religião não se dão. Porque a psicanálise 743 faz
análise; a religião, síntese744. A psicanálise desliga; a religião745 liga. A psicanálise está
do lado do inconsciente; a religião, do eu. A psicanálise está interessada no
descentramento do sujeito; a religião, no seu centramento. Na psicanálise, trata-se do
sujeito barrado; na religião, do indivíduo746. Para a psicanálise, o sujeito é clivado; para
a religião, ele é uno. A psicanálise tem a ver com o que é parcial; a religião, com o total.
A psicanálise é “sexofílica”; a religião, “sexofñbica”. A psicanálise é arqueolñgica; a
religião, teleológica. A psicanálise leva o sujeito a confrontar-se com o desamparo; a
religião, pelo contrário, lhe oferece proteção747.
Mais! O que a religião e a psicanálise fazem com o real da castração é
diferente. A religião vela, mascara, encobre, tampona a castração; a religião tapa o furo,
obtura a falta, preenche o vazio, sutura a divisão, responde ao enigma, dá sentido ao
sem-sentido, nomeia o inominável. A psicanálise... tudo ao contrário.
Desenvolver cada uma dessas afirmações é uma tarefa que ultrapassa
o que nos propusemos a fazer neste trabalho748. Seja como for, uma conclusão se pode
extrair dessa série de antinomias: indepedentemente da crítica freudiana da religião Ŕ
que, acima, não foi sequer mencionada Ŕ, há profundas divergências entre a psicanálise
e a religião. Definitivamente, as duas coisas “não batem”.

743
Cuja etimologia é “psico” + “análise”.
744
No dia 30 de julho de 1915, numa carta a Andreas-Salomé, Freud afirmou que não sentia necessidade
de síntese, pois a unidade lhe parecia um dado, de modo que o que lhe interessava era a separação, ou
seja, a análise (cf. ANDREAS-SALOMÉ, Correspondance avec Sigmund Freud 1912-1936, p.43-44). Em
nove de outubro de 1918, em carta endereçada a Pfister, Freud ponderou que a técnica psicanalítica não
precisava se preocupar com a síntese, pois o analisante se encarregava disso melhor do que ninguém (cf.
FREUD, Correspondance avec le pasteur Pfister 1909-1939, p.104; ver também: BIRMAN, Alquimia no
sexual. In: BIRMAN; NICÉAS, A ordem do sexual, p.78-79; BIRMAN, Desejo e promessa, encontro
impossível. In: MOURA, Hélio Pellegrino. A-Deus, p.131; BIRMAN, Ensaios de teoria psicanalítica, p.14;
BIRMAN, Freud e a experiência psicanalítica, p.52, 58 [nota 2], 147; BIRMAN, Freud e a interpretação
psicanalítica, p.99; BIRMAN, Sobre a correspondência de Freud com o pastor Pfister. Religião e
sociedade, n.11/2, p.33-34; WONDRACEK, O amor e seus destinos, p.71-73, 76, 82, 106-107, 109, 114).
745
Do latim “religare”.
746
Do latim “individuus”, cuja etimologia é “in” + “dividuus” (indivisível).
747
Cf. BIRMAN, Desejo e promessa, encontro impossível. In: MOURA, Hélio Pellegrino. A-Deus, p.140;
BIRMAN, Estilo e modernidade em psicanálise, p.74-75, 85-86, 159; BIRMAN, Psicanálise, ciência e
cultura, p.10; JULIEN, La psychanalyse et le religieux, p.29.
748
Algumas delas, inclusive, são certamente discutíveis.
Psicanálise e religião: compatíveis?

Que há um problema Ŕ e um problema sério Ŕ entre a psicanálise e a


religião, isso é algo que foi percebido muito claramente pelos primeiros autores que
refletiram sobre a matéria. A tese da incompatibilidade colocou-se, pois, naturalmente
desde o começo das relações entre uma coisa e outra. Novidade foi dizer o contrário. No
mundo católico, a primeira a fazê-lo foi Choisy.
Já tivemos a ocasião de registrar como, por exemplo, em 1955, ela
defendeu o parecer de que a psicanálise estava inteiramente de acordo com o que Pio
XII esperava de uma teoria psicológica. Antes disso, porém, já em 1950, Choisy
garantiu que as dificuldades entre o freudismo e a fé catñlica eram “mais aparentes do
que reais”749. Parafraseando um dito célebre, a escritora chegou mesmo a dizer: “Un
poco de psicoanálisis aleja de Dios. Mucho acerca a Él” [“Pouca psicanálise afasta de
Deus. Muita aproxima d‟Ele”]750.
Primeira a hastear a bandeira da compatibilidade entre a religião e a
psicanálise, Choisy fez escola. Num artigo que publicou em 1958, Zilboorg, por
exemplo, afirmou: “...ser um indivíduo religioso e professar uma religião não exclui a
prática da profissão psicanalítica”751.
Em 1966, já próximo de concluir o livro que dedicou ao ateísmo de
Freud, Silva escreveu: “De tudo quanto vimos dizendo até aqui, podemos concluir que
Psicanálise e Religião não se contradizem. Não são, de modo algum, incompatíveis, ou
antagônicas, como pensam ainda alguns, por incompreensão, ou por intolerância”752. A
psicanálise e a religião perseguem o mesmo fim. Ambas valorizam o amor e se servem
dele como instrumento. Não há, pois, entre o psicanalista e o clérigo, o diretor espiritual
e o analista, “nenhuma oposição”, “nenhuma incompatibilidade”753.
Em 1972, referindo-se a “Jesus und Freud” [“Jesus e Freud”], que
reúne as contribuições de sete conferencistas, o psicanalista católico Albert Görres
(1918-1996) escreveu: “A los autores de la presente obra les une la opinión de que el
psicoanálisis y el cristianismo no son dos cosas que se excluyen entre sí” [“A opinião de

749
Cf. CHOISY, Psicoanálisis y catolicismo, p.17.
750
CHOISY, Psicoanálisis y catolicismo, p.179.
751
ZILBOORG, Psicanálise e religião, p.244.
752
SILVA, O ateísmo de Freud, p.95.
753
Cf. SILVA, O ateísmo de Freud, p.103, 107, 109, 111, 113.
que a psicanálise e o cristianismo não são excludentes entre si une os autores da
presente obra”]754.
Em 1973, ao apresentar a tradução espanhola do mesmo livro, o padre
e psicanalista Luis Cencillo (1923-2008) escreveu:

“Visiones verdaderas del hombre y de su amplia problemática


profunda no pueden estar en contradicción sino aparente; han de
ser por fuerza complementarias” [“Visões verdadeiras do
homem e de sua ampla problemática profunda não podem estar
senão em contradição aparente; hão de ser forçosamente
complementares”]755.

Em outro lugar, Cencillo acrescentou: “...la verdad no puede temer


nada de la verdad” [“...a verdade não pode temer nada da verdade”]756.
Em 1974, Plé assegurou: “...a vivência psicanalítica não é
incompatível com a fé e a moral cristãs”757.
Por fim, em 1977, Dolto comparou as descobertas de Freud às de
Copérnico e Galileu Galilei (1564-1642): de início, a Igreja se lhes ofereceu resistência;
mas, depois, reconheceu que não havia nenhuma contradição entre as suas teorias e a
revelação cristã. Atualmente, disse ela, a Igreja se opõe à psicanálise 758. E, no entanto:
“Rien du message du Christ n‟était en contradiction avec les découvertes freudiennes”
[“Nada na mensagem de Cristo está em contradição com as descobertas freudianas”]759.
Todos esses autores, de um modo ou de outro, são herdeiros da via
aberta por Choisy no começo dos anos 50. Choisy foi, contudo, apenas a pioneira, no

754
GÖRRES, Todo habla en favor. Nada sostenible habla en contra. In: ZAHRNT, Jesús de Nazaret y
Sigmund Freud, p.63.
755
CENCILLO, Presentacion. In: ZAHRNT, Jesús de Nazaret y Sigmund Freud, p.11.
756
CENCILLO, Aportaciones de Freud al cristianismo. In: ZAHRNT, Jesús de Nazaret y Sigmund Freud,
p.365.
757
PLÉ, Mudança da Igreja em relação à psicanálise. Concilium, n.99, p.1204. Vale o registro de que,
animados por uma visão análoga, o primeiro Igor Caruso (1914-1981) e os membros do Círculo Vienense
de Psicologia Profunda tentaram levar a cabo uma síntese entre a psicanálise e o catolicismo (cf.
DOMÍNGUEZ MORANO, El psicoanálisis freudiano de la religión, p.482 [nota 173]; DOMÍNGUEZ MORANO,
Psicoanálisis y religión: diálogo interminable, p.157, 164 [nota 58]).
758
Cf. DOLTO; SÉVÉRIN, L‟évangile au risque de la psychanalyse, p.12.
759
DOLTO; SÉVÉRIN, L‟évangile au risque de la psychanalyse, p.13. Note-se, porém, que Dolto não
reconhece o cristianismo real como uma concretização minimamente fiel da mensagem de Jesus (cf.
DOLTO; SEVERIN, L‟évangile au risque de la psychanalyse, p.13). Para ela, o verdadeiro cristianismo é
uma religião a ser descoberta (cf. DOLTO, Psychanalyse et foi. Recherches et débats du Centre Catholique
des Intellectuels Français, n.78, p.180, 183). Portanto, o cristianismo de que Dolto fala Ŕ e que, segundo
ela, se harmoniza com a psicanálise Ŕ não é o existente.
âmbito católico, da tese da compatibilidade. Se ampliarmos os nossos horizontes,
veremos que o maior representante do concordismo foi contemporâneo de Freud e seu
amigo pessoal: o pastor luterano Oskar Pfister.
No dia 29 de outubro de 1918, respondendo a uma pergunta que Freud
lhe fizera na carta precedente Ŕ por que se teve que esperar por um judeu
completamente ateu para que a psicanálise fosse criada? Ŕ, Pfister argumentou,
primeiramente, que Freud não era judeu e, em segundo lugar, que tampouco era ateu. E
se explicou:

“...car quiconque vit pour la vérité vit en Dieu, quiconque lutte


pour la libération de l‟amour est, selon Jean, IV, 16, dans le sein
de Dieu” [“...pois quem quer que viva para a verdade vive em
Deus, quem quer que lute pela libertação do amor permanece,
segundo João, IV, 16, no seio de Deus”]760.

Pfister concluiu, então: “Jamais il n‟y eut meilleur chrétien...”


[“Jamais houve cristão melhor...”]761.
Dez anos depois, em “A ilusão de um futuro”, Pfister comparou Freud
ao primeiro filho da parábola de Mt 21,28-32: aquele que disse ao pai que não iria
trabalhar na vinha, mas, depois, arrependido, foi. De fato, Freud diz que não crê em
Deus, mas, aos olhos do pastor, se comporta como um cristão. Ou seja, verbalmente,
Freud é um ateu; na prática, um servidor de Deus. Para Pfister, uma pessoa que luta pela
verdade e combate pelo amor só pode estar muito próxima de Deus762.
Ao final do mesmo texto, Pfister cita Jo 13,35, onde se afirma que o
verdadeiro discípulo de Jesus pode ser reconhecido pelo amor. Com base nesse critério,

760
FREUD, Correspondance avec le pasteur Pfister 1909-1939, p.105; cf. DEMPSEY, Freud, psychanalyse
et catholicisme, p.45.
761
FREUD, Correspondance avec le pasteur Pfister 1909-1939, p.105. Não poucos autores reagiram
contra essa declaração de Pfister, que desconhece Freud duplamente, como judeu e como ateu (cf. COSTA,
Sobre psicanálise e religião. In: MOURA, Hélio Pellegrino. A-Deus, p.86; GAY, A Godless jew, p.81;
PFRIMMER, Freud, leitor da Bíblia, p.153-154; YERUSHALMI, O Moisés de Freud, p.31; ver também:
HIRSCH, ¿Qué papel desempeña la fe cristiana en la praxis psicoterapéutica? In: ZAHRNT, Jesús de
Nazaret y Sigmund Freud, p.252; ZAHRNT, Jesús de Nazaret y Sigmund Freud, p.354). O próprio Freud
parece ter respondido indiretamente a Pfister na carta que lhe endereçou no dia 16 de fevereiro de 1929,
em que diz: “Je ne sui pas [...] un Nathan” [“Eu não sou [...] um Natan”] (FREUD, Correspondance avec le
pasteur Pfister 1909-1939, p.186; cf. GAY, A Godless jew, p.82 [nota 28]).
762
Cf. PFISTER, L‟illusion d‟un avenir. Revue française de psychanalyse, t.41, n.3, p.504.
o pastor conclui que, embora se declare ateu, Freud é muito mais cristão do que muitas
pessoas que se dizem cristãs763.
Por fim, em 1934, por ocasião do Congresso de Psicanálise de
Lucerna, na Suíça, Pfister apresentou um trabalho intitulado “Neutestamentliche
Seelsorge und psychoanalytische Therapie” [“Cura de almas neotestamentária e terapia
psicanalítica”]. Nesse texto, que se tornou um artigo da revista “Imago” no mesmo ano,
Pfister observa que tanto a pastoral evangélica quanto a prática analítica têm por
objetivo a libertação do sujeito pela verdade e a restauração da sua capacidade de amar,
podendo-se, pois, falar numa convergência entre uma coisa e outra764.
Como se vê, Pfister é, sem dúvida, o campeão do concordismo765. Ele
não apenas defendeu a compatibilidade entre a psicanálise e a fé cristã766, mas fez do
inventor da psicanálise uma espécie de cristão anónimo, “batizou” Freud 767. O próprio
Freud, aliás, numa carta que lhe escreveu no dia 13 de abril de 1919, observou que a
“bondade” do pastor levava-o a querer reunir tudo o que estivesse em oposição Ŕ fossem
ideias, fossem pessoas768. Não sem ironia, Domínguez chegou a sugerir que “Até Deus
por Freud” bem poderia ser a divisa de alguns estudiosos cristãos da psicanálise Ŕ entre
eles, Pfister769.
Antes de concluirmos esta seção, já que mencionamos, primeiro, os
autores católicos, para, em seguida, focalizarmos a figura de um protestante, citemos,
agora, um autor mais próximo da tradição do judaísmo: Erich Fromm (1900-1980)770.
Em “Psychoanalysis and religion” [“Psicanálise e religião”], de 1950,
Fromm defende a tese de que, em seus objetivos, a psicanálise e as religiões Ŕ isto é, as
religiões humanistas, não autoritárias Ŕ são convergentes771. Entre aquelas que Fromm
reconhece como religiões humanistas, estão o taoísmo, o budismo, o profetismo judaico,

763
Cf. PFISTER, L‟illusion d‟un avenir. Revue française de psychanalyse, t.41, n.3, p.546.
764
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, Psicoanálisis y religión: diálogo interminable, p.56-60; ver também:
DOMÍNGUEZ MORANO, Psicoanálisis y religión: diálogo interminable, p.81, 123, 146, 148-150, 178, 183.
765
Cf. LECUIT, L‟anthropologie théologique à la lumière de la psychanalyse, p.425.
766
Note-se, em todo caso, que o cristianismo que Pfister julgava compatível com a psicanálise era a
versão protestante do mesmo, não o catolicismo, o qual ele criticou duramente (cf. GAY, A Godless jew,
p.84-85; WONDRACEK, O amor e seus destinos, p.67 [nota 243]).
767
Cf. GAGEY, Freud et le christianisme, p.75.
768
Cf. FREUD, Correspondance avec le pasteur Pfister 1909-1939, p.110.
769
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, El psicoanálisis freudiano de la religión, p.481; DOMÍNGUEZ MORANO,
Psicoanálisis y religión: diálogo interminable, p.178.
770
Fromm foi criado num lar judaico ortodoxo; abandonou, porém, o judaísmo antes dos 30 anos de idade
(cf. ÁVILA, Para conhecer a psicologia da religião, p.58; GAY, A Godless jew, p.105).
771
Cf. FROMM, Psychoanalysis and religion, p.65-98.
o misticismo cristão e o panteísmo de Spinoza. Além de Lao-Tse, Buda e Isaías, entre
outros, Fromm se refere a Jesus, nominalmente, como representante de uma religião
humanista772. Ele observa, porém, que, no desenvolvimento posterior da religião cristã,
pode-se reconhecer tanto a tendência humanista quanto a autoritária773.
Por fim, numa conferência pronunciada em 1957, em Cuernavaca, no
México, Fromm comparou a psicanálise ao zen-budismo, constatando a existência de
várias afinidades entre uma coisa e outra. A mais importante delas é a analogia entre o
fim do zen-budismo Ŕ a experiência da iluminação, o satori Ŕ e o objetivo de uma
análise: tornar consciente o inconsciente. Fromm reconhece, porém, que os caminhos
para se chegar a essas metas são inteiramente diferentes.
Note-se, em todo caso, que o que ele chama de “psicanálise” é uma
modificação daquilo que Freud inaugurou: trata-se da “psicanálise humanística”. O que
Fromm entende por “inconsciente”, por exemplo, pouco tem a ver com o inconsciente
freudiano. Seja como for, temos aqui outro exemplo de concordismo entre a psicanálise
Ŕ ou melhor, uma versão dela Ŕ e a religião Ŕ desta vez, numa outra tradição774.

Da incompatibilidade ao concordismo

As duas teses que procuramos ilustrar nas seções precedentes sempre


tiveram Ŕ e têm ainda Ŕ quem as represente. Talvez, porém, se possa afirmar que, na
história da recepção da psicanálise pelo catolicismo, assistiu-se, entre as décadas de 50 e
60, a um deslocamento da tese da incompatibilidade para a tese da conciliação, que
passou a prevalecer.
No dia nove de março de 1960, em Bruxelas, na Bélgica, Lacan
registrou a abertura da Igreja Catñlica à psicanálise: “Je ne suis certes pas pour me
plaindre que des ecclésiastiques renvoient leurs ouailles à la psychanalyse”
[“Certamente, não estou aqui para me lamentar de que os eclesiásticos mandem as suas
ovelhas para a psicanálise”]775.

772
Cf. FROMM, Psychoanalysis and religion, p.37, 48, 76, 81.
773
Cf. FROMM, Psychoanalysis and religion, p.45.
774
Cf. FROMM, Psicanálise e zen-budismo. In: SUZUKI; FROMM; DE MARTINO, Zen-budismo e
psicanálise, p.92-162.
775
LACAN, Discours aux catholiques. In: _______. Le triomphe de la religion précédé de Discours aux
catholiques, p.30.
Em “Theology after Freud” [“Teologia depois de Freud”], de 1970, o
teólogo americano Peter Homans (1930-2009) observou que, de judeu ateu, Freud
chegou a ser transformado num verdadeiro Padre da Igreja776. Ou seja, Freud, que, de
início, foi satanizado777 pelos crentes, tornou-se objeto, na sequência, de uma verdadeira
canonização778.
Em 1974, Plé publicou um artigo intitulado “Mudança da Igreja em
relação à psicanálise”779.
No mesmo ano, o padre diocesano e psicossociólogo Paul Georges
Cosson (1927) escreveu:

“De uns quinze anos para cá, fala-se cada vez menos
negativamente da psicanálise. Jornais, revistas e livros
„confessionais‟ dão uma informação exata e documentada. Sua
imagem social não é mais „apavorante‟. As primeiras
„condenações oficiais‟ foram esquecidas, salvo por certos
incrédulos”780.

Também Godin, padre jesuíta, mencionou, ainda em 1974, uma


“mudança do vento” nas relações entre a psicanálise e a fé cristã781.
Por fim, em 1988, Joel Birman registrou a aceitação crescente da
psicanálise pelo mundo religioso: “...o discurso religioso passou de uma repulsa
absoluta da Psicanálise para um reconhecimento relativo...”782; “...o discurso religioso
não repele mais a Psicanálise como outrora, mas convive com esta com o devido
reconhecimento de uma modalidade de saber que existe no espaço social”783.
Como explicar que dois inimigos figadais tenham se tornado grandes
amigos? De duas maneiras. Admitindo que a Igreja mudou e que a psicanálise também

776
Cf. SCHARFENBERG, Encuentro entre el psicoanálisis y la teología. In: ZAHRNT, Jesús de Nazaret y
Sigmund Freud, p.167.
777
Cf. FRANCO, El psicoanálisis y la experiencia de Dios. In: GRUPO ÉPSIMO, Experiencia de Dios y
psicoanálisis, p.12.
778
Cf. SCHARFENBERG, Encuentro entre el psicoanálisis y la teología. In: ZAHRNT, Jesús de Nazaret y
Sigmund Freud, p.195-196.
779
Cf. PLÉ, Mudança da Igreja em relação à psicanálise. Concilium, n.99, p.1200-1204.
780
COSSON, A psicanálise e sua imagem social entre os crentes. Concilium, n.99, p.1128.
781
Cf. GODIN, Reflexões recentes sobre vida espiritual cristã e psicanálise. Concilium, n.99, p.1183.
782
BIRMAN, Desejo e promessa, encontro impossível. In: MOURA, Hélio Pellegrino. A-Deus, p.117.
783
BIRMAN, Desejo e promessa, encontro impossível. In: MOURA, Hélio Pellegrino. A-Deus, p.122; ver
também: ANCONA, Il debito della chiesa alla psicoanalisi, p.30-33; KÜNG, Religião: o último tabu? In:
_______, Freud e a questão da religião, p.108-109; ZAHRNT, Jesús de Nazaret y Sigmund Freud, p.308,
321.
mudou784. Mais exatamente: a relação entre o catolicismo e a psicanálise se modificou
porque, com o Concílio do Vaticano II, a Igreja procurou se modernizar e, nesse
esforço, talvez tenha passado por um período de abertura indiscriminada. Por outro
lado, porque, com a era pós-freudiana, a psicanálise sofreu alterações e se
descaracterizou Ŕ aliás, já tivemos a ocasião de registrar, aqui e ali, como a ego
psychology, por exemplo, facilitou o trabalho de harmonização entre a psicanálise e a fé
cristã.
Numa entrevista concedida ao jornalista Vittorio Messori (1941), no
dia 15 de agosto de 1984, o cardeal Ratzinger observou que, nos anos que se seguiram
ao Concílio do Vaticano II, a atmosfera eclesial foi marcada por um “otimismo” muito
pouco “crítico” e escassamente “realista”. Caberia mesmo falar numa “euforia” pñs-
conciliar. Assistiu-se a uma abertura ao mundo moderno “sem filtros nem freios”, sem
“discriminação” nem “discernimento”. Estabeleceu-se uma “fé” nas ciências que sñ
pode ser descrita como “ingênua”. As ciências humanas Ŕ entre elas, a psicologia e a
sociologia Ŕ foram acolhidas como uma espécie de “novo evangelho”, como balizas
“cientificamente seguras” e referências “incontestáveis” para o pensamento cristão. Nos
conventos, por exemplo, assistiu-se a uma penetração Ŕ não raro, “sem filtro algum” Ŕ
das mais variadas escolas de psicologia e de psicanálise, o que resultou numa crise de
identidade por parte de não poucas religiosas e num difundido esvaziamento da
motivação pela vida consagrada. Os tratados espirituais de outrora cederam lugar aos
manuais de divulgação da psicanálise; a psicologia, mesmo “a mais banal”, substituiu a
teologia785.
Por outro lado, também os psicanalistas passaram a aceitar melhor a
religião de um modo geral, deixando de encarar a convivência entre a psicanálise e a
religião como uma impossibilidade radical. Aos olhos de Joel Birman, porém, essa
inflexão é o resultado de uma distorção: os psicanalistas tornaram-se mais receptivos à
religião na medida em que aproximaram as suas práticas dos registros da promessa e da
salvação, inserindo-se, desse modo, na lógica da religião786.

784
Cf. MEISSNER, Psychoanalysis and religious experience, p.205, 216.
785
Cf. RATZINGER; MESSORI, Entretien sur la foi, p.38-40, 73-74, 115-116, 218-219.
786
Cf. BIRMAN, Desejo e promessa, encontro impossível. In: MOURA, Hélio Pellegrino. A-Deus, p.118,
141-143.
O médico psiquiatra E. Eduardo Krapf (1901-1963) constatou que, já
na década de 60, houve uma melhora nas relações entre a psicanálise e a religião. E,
recolhendo os dois pontos de vista acima apresentados, perguntou:

“¿Acaso no podemos suponer que el mejor entendimiento


existente entre el psicoanálisis y la religión [...] se basa o bien en
una falsificación del primero, o bien en una secularización de la
segunda? ¿O bien a fin de cuentas se trata al mismo tiempo de
ambas cosas, de falsificaciñn y de secularizaciñn?” [“Não se
pode, por acaso, supor que o melhor entendimento existente
entre a psicanálise e a religião [...] se baseia em uma falsificação
da primeira ou então numa secularização da segunda? Ou então,
no final das contas, trata-se, ao mesmo tempo, de ambas as
coisas, de falsificação e de secularização?”]787.

Sim, talvez se possa mesmo argumentar que a harmonização entre a


psicanálise e a religião é uma operação que faz violência tanto a uma como a outra; a
conciliação só é possível ao preço de uma adulteração de, pelo menos, uma das duas ou
ainda de ambas788.
Uma ilustração disso parece poder ser encontrada em “The murder of
Christ” [“O assassinato de Cristo”], que Wilhelm Reich (1897-1957) publicou em 1953.
Nessa obra, Reich concebeu uma espécie de concordância entre o cristianismo e a sua
teoria psicológica, a bioenergética ou orgonomia. Ocorre que o entendimento reichiano
do cristianismo é bastante singular. Aos seus olhos, o cristianismo existente é uma
religião em frontal contradição com a vida e os ensinamentos de Cristo; a Igreja
condena o que Cristo, o seu pretenso fundador, recomendou. O Cristo reichiano, longe
de ter sido abstinente sexualmente, por exemplo, é o próprio modelo do homem de
caráter genital, isto é, do homem não encouraçado, dotado de potência orgástica:
“...Cristo possui todas as marcas do caráter genital”789. Em última análise, portanto,
pode-se dizer que o verdadeiro cristianismo Ŕ isto é, o autêntico conjunto de práticas e
doutrinas coerentes com aquelas de Cristo Ŕ é a prñpria bioenergética. Diz Reich: “Se
tivesse sido instaurada uma religião Cristã conforme a verdadeira natureza biológica de

787
KRAPF, Psicoanálisis y religión. In: ADORNO; DIRKS, Freud en la actualidad, p.234.
788
Cf. BEIRNAERT, Aux frontières de l‟acte analytique, p.132.
789
REICH, O assassinato de Cristo, p.35.
Cristo, teríamos chegado diretamente ao que [...] são as tendências dos atuais
conhecimentos bioenergéticos orgonómicos”790.
Talvez, não fosse necessário ir tão longe para provar o que estamos
defendendo. Seja como for, esse exemplo parece demonstrar o seguinte. Há três
maneiras de fazer a psicanálise e o cristianismo coincidirem: uma consiste em distorcer
a psicanálise; a outra, o cristianismo; a terceira consiste em modificar tanto uma coisa
como outra Ŕ sendo isso o que Reich, ex-discípulo de Freud, fez. Em suma, a
harmonização entre a psicanálise e o cristianismo só é possível ao preço de uma
adulteração de, pelo menos, uma das duas grandezas em jogo.

Abertura para o diálogo, mas sem esperança de acordo

O fato, porém, de que não acreditemos na possibilidade de uma


conciliação entre a psicanálise e a religião não significa que sejamos partidários da pura
e simples ruptura de relações entre uma coisa e outra.
Em “Psicanálise e religião”, Fromm reconhece a existência de duas
posições extremas, sugerindo uma espécie de terceira via:

“There are psychoanalysts who are practicing religionists as


well as others who consider the interest in religion a symptom of
unsolved emotional conflicts. The position taken in this book
differs from both...” [“Há psicanalistas que são religiosos
praticantes, assim como há aqueles que consideram o interesse
religioso como um sintoma de conflitos emocionais não
resolvidos. A posição tomada neste livro difere de ambas as
alternativas...”]791.

Para Fromm, com efeito, tanto a tese da oposição irreconciliável


quanto o ponto de vista da identidade de interesses são falaciosas792.
A terceira via de Fromm não é, contudo, exatamente aquela em que
nos reconhecemos. Entre a incompatibilidade radical e o concordismo ingênuo, a
posição que advogamos é aquela que mantém a abertura para o diálogo, sem, contudo, a
perspectiva da síntese.
790
REICH, O assassinato de Cristo, p.60.
791
FROMM, Psychoanalysis and religion, p.vii.
792
Cf. FROMM, Psychoanalysis and religion, p.9.
Sim, é sempre possível dialogar, e o diálogo sempre vale a pena. O
diálogo, porém, não pressupõe que, ao final, os interlocutores chegarão a um acordo. Os
católicos e os judeus, por exemplo, não dialogam? E, no entanto, ao fazê-lo, nenhum
dos dois pretende abrir mão da sua identidade, deixando de ser o que é. O católico não
vai se converter ao judaísmo, e tampouco o judeu vai aceitar Jesus como o Messias. E,
no entanto, falam entre si.
Vale o registro de que, numa certa medida, também essa atitude
caracterizou a interlocução entre Freud e Pfister. No dia três de abril de 1922, Pfister
escreveu:

“Une différence dans les choses de l‟éthique, de la religion et de


la philosophie demeure, qui ni vous ni moi ne considérons
comme un fossé” [“Em matéria de ética, religião e filosofia,
persiste uma diferença que nem o senhor nem eu consideramos
como um abismo”]793.

Ou seja, a constatação da diferença não nos impede de dialogar.


Com a troca entre os dois de “O futuro de uma ilusão” e “A ilusão de
um futuro”, no dia 20 de fevereiro de 1928, Pfister descreveu a sua diferença de opinião
com Freud sobre a religião como uma “controvérsia amigável”794. E acrescentou: “Il n‟y
a guère de danger que vous vous présentiez au baptême ou que je saute à bas de la
chaire” [“Não há muito perigo de que o senhor se apresente para o batismo ou de que eu
me jogue do púlpito”]795. Ou seja, não vamos chegar a um acordo, mas nem por isso
vamos deixar de dialogar.
Caracterizemos, pois, estas duas atitudes de que se constitui a terceira
via que propugnamos: abertura para o diálogo e impossibilidade de síntese.
Na história das relações entre a psicanálise e a fé cristã, a abertura
para o diálogo encontra muitos representantes, com os quais não podemos senão
concordar.

793
FREUD, Correspondance avec le pasteur Pfister 1909-1939, p.132.
794
Cf. FREUD, Correspondance avec le pasteur Pfister 1909-1939, p.177.
795
FREUD, Correspondance avec le pasteur Pfister 1909-1939, p.177.
Drewermann considera um “escândalo” que Freud permaneça, ainda
hoje, “completamente ignorado” pela Igreja Catñlica796.
Na opinião de Sanders, “...the Christian must take Psycho-analysis
seriously...” [“...o cristão deve levar a psicanálise a sério...”]797.
Mais especificamente, segundo Urbano Alonso, “...Freud hace una
crítica de la religiñn que ha de tomarse muy en serio...” [“...Freud faz uma crítica da
religião que deve ser tomada muito a sério...”]798.
Joachim Scharfenberg (1927-1996), pastor luterano e psicanalista,
nota que vários teólogos aceitam a crítica freudiana da religião como algo a ser levado
em conta, como um “desafio genuíno e positivo”799.
Embora faça objeções ao pensamento de Freud sobre o fenômeno
religioso, Ricœur não quer que as suas considerações levem o seu leitor a “...se furtar a
instrução e à rude aprendizagem pelas quais a sua fé deve passar sob a condução de
Freud e da psicanálise”800. “Estamos ainda longe de ter incorporado a verdade do
freudismo sobre a religião”801, diz logo em seguida. E acrescenta: “...temos ainda a
aprender de Freud...”802; “...a lição da psicanálise ainda não foi apreendida”803.
Para Pohier: “Le théologien et le croyant se doivent [...] de prendre
très sérieux la critique freudienne de la religion” [“O teñlogo e o crente devem [...]
tomar muito seriamente a crítica freudiana da religião”] 804. Em seu parecer, trata-se de
uma crítica: “...fort intéressante, [...] souvent pertinente, et juste pour l‟essentiel”
[“...muito interessante, [...] com frequência pertinente e, no essencial, justa”]805.
O monge trapista John Eudes Bamberger (1926) descreve o
pensamento de Freud como um “desafio” para a teologia806.
“Theologians can learn from Freud...” [“Os teñlogos tem o que
aprender com Freud...”]807, garante Küng.

796
Cf. MOREIRA, Eugen Drewermann e a psicanálise da igreja clerical. Revista eclesiástica brasileira,
v.55, n.218, p.402.
797
SANDERS, Christianity after Freud, p.17.
798
ALONSO, Psicoanálisis y religión. Proyección, v.23, n.101, p.145.
799
Cf. WIESENHÜTTER, La fe reprimida. In: ZAHRNT, Jesús de Nazaret y Sigmund Freud, p.132.
800
RICŒUR, O ateísmo da psicanálise de Freud, Concilium, n.16, p.76-77.
801
RICŒUR, O ateísmo da psicanálise de Freud, Concilium, n.16, p.77.
802
RICŒUR, O ateísmo da psicanálise de Freud, Concilium, n.16, p.77.
803
RICŒUR, O ateísmo da psicanálise de Freud, Concilium, n.16, p.77.
804
POHIER, Au nom du Père..., p.22.
805
POHIER, Dieu fractures, p.175.
806
Cf. BAMBERGER, A religião como ilusão? Concilium, n.16, p.78, 80, 89.
Para Giacomo Dacquino:

“Hoy se siente vivamente la necesidad de construir un puente


entre la teología y el psicoanálisis. Es necesario un encuentro
entre estas dos disciplinas para un cambio de ideas y de
experiencias, libre de prejuicios” [“Hoje, sente-se vivamente a
necessidade de construir uma ponte entre a teologia e a
psicanálise. É necessário um encontro entre essas duas
disciplinas para uma troca de ideias e experiências, livre de
preconceitos”]808.

Segundo Plé, “...le théologien peut trouver un grand profit de la


fréquentation de Freud” [“...o teñlogo pode tirar um grande proveito da frequentação de
Freud”]809.
Aos olhos do teólogo Andrés Torres Queiruga (1940), a psicanálise é
a grande “matéria pendente” do pensamento teolñgico cristão810. É a “revolução
pendente” da teologia, a revolução que a teologia ainda não realizou, embora precise
fazer. De fato, o pensamento teológico já assimilou as descobertas de Galileu, já admitiu
as hipóteses de Darwin, já se deixou instruir pelas considerações de Marx, mas ainda
não “sentou para conversar” com Freud, pelo menos, não suficientemente811.
A admissão pela reflexão teológica das questões levantadas pela
psicanálise é mínima812. Não se pode dizer que a teologia catñlica seja “pñs-
freudiana”813. Não, a teologia da Igreja Catñlica é “pré-freudiana”; ela ainda não
dialogou com Freud. Ora, adverte Domínguez: “La teología [...] no puede ser ajena [...]
a la crítica proveniente [...] del psicoanálisis...” [“A teologia [...] não pode ser alheia [...]
à crítica proveniente [...] da psicanálise...”]814.
Na opinião de Domínguez, uma série de questões teológicas pode ser
beneficiada pela elucidação que a abordagem psicanalítica pode lhes trazer; o tratado
sobre Deus, a teologia fundamental, a antropologia teológica, a soteriologia, a

807
KÜNG, Freud and the problem of God, p.93.
808
DACQUINO, Religiosidad y psicoanálisis, p.221.
809
PLÉ, Freud et la morale, p.173.
810
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, Experiencia cristiana y psicoanálisis, p.11.
811
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, Experiencia cristiana y psicoanálisis, p.52.
812
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, Psicoanálisis y religión: diálogo interminable, p.162; DOMÍNGUEZ
MORANO, Teología y psicoanálisis, p.7.
813
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, El psicoanálisis freudiano de la religión, p.492; DOMÍNGUEZ MORANO,
Experiencia cristiana y psicoanálisis, p.40.
814
DOMÍNGUEZ MORANO, El psicoanálisis freudiano de la religión, p.18-19.
mariologia, a moral fundamental, a ética da sexualidade, a liturgia, a eclesiologia, a
exegese bíblica, a espiritualidade, a escatologia, a pastoral individual, a pastoral de
grupos Ŕ uma série de tratados da teologia pode ser fecundada pela psicanálise815.
Para Vergote, a psicanálise tem contribuições importantes a oferecer,
sobretudo, às antropologias filosófica e teológica816.
Referindo-se às luzes que Freud lança sobre a origem e o devir do
sujeito moral, Plé avisa: “...le moraliste ne peut les ignorer” [“...o moralista não pode
ignorá-las”]817.
Para Ancona, a Igreja tem um “débito” para com a psicanálise
especialmente pelo que esta última ofereceu ao moralista e ao confessor818.
Propugnando o diálogo, Cencillo escreveu:

“Dado lo irreversible de las aportaciones de Freud y su eficacia


terápica, pese a quienes partidísticamente se niegan a admitirlo,
no puede el cristianismo seguir ignorándolo o cerrándose a él, ni
puede el psicoanálisis irse convirtiendo más y más en una secta
anti-cristiana. Ha de entablarse el diálogo” [“Dado o irreversível
das contribuições de Freud e sua eficácia terapêutica, apesar
daqueles que de uma forma partidária se negam a admiti-la, o
cristianismo não pode continuar ignorando-a ou fechando-se a
ela, tampouco pode a psicanálise ir se convertendo cada vez
mais numa seita anti-cristã. É preciso começar o diálogo”]819.

Juan Guillermo Droguett, por sua vez, afirmou: “Nossa proposta [...] é
de inclusão e diálogo; não dá para seguir pensando que os enunciados de Freud são
blasfêmias”820. E, adiante, acrescentou:

“Não precisamos adotar uma atitude defensiva, pois nossa


postura é basicamente de diálogo reflexivo; não nos situamos,
frente à psicanálise, em plano apologético ou defensivamente,
fugindo das interpelações autênticas que possam ser feitas.
Muito pelo contrário, queremos aproveitar ao máximo os

815
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, Creer después de Freud, p.92; DOMÍNGUEZ MORANO, Teología y
psicoanálisis, p.38, 56.
816
Cf. LECUIT, L‟anthropologie théologique à la lumière de la psychanalyse, p.31.
817
PLÉ, Freud et la morale, p.174.
818
Cf. ANCONA, Il debito della chiesa alla psicoanalisi, p.37, 47.
819
CENCILLO, Presentacion. In: ZAHRNT, Jesús de Nazaret y Sigmund Freud, p.11-12; cf. CENCILLO,
Aportaciones de Freud al cristianismo. In: ZAHRNT, Jesús de Nazaret y Sigmund Freud, p.359-360.
820
DROGUETT, Desejo de Deus, p.16-17.
elementos positivos que aparecerem nesta análise para melhor
esclarecer o fenômeno. Trata-se aqui de deixar-se
questionar...”821.

Sim, o diálogo. Animado, talvez, pela expectativa de que a


interpelação mútua seja enriquecedora. Não, porém, pela esperança da síntese. Não há
síntese possível entre a psicanálise e a fé cristã822. A religião e a psicanálise, pondera
Jurandir Freire Costa (1944), são “...irredutíveis a um mesmo denominador comum”823.
Referindo-se ao diálogo entre a psicanálise e a teologia, Carballo
escreveu:

“Pasados están los tiempos en que tal diálogo consistía en


enfrentar „posiciones‟ o „sistemas‟. O, por el contrario, en
intentar conciliarlos...” [“Passou o tempo em que tal diálogo
consistia en enfrentar „posições‟ ou „sistemas‟. Ou, pelo
contrário, em tentar conciliá-los...”]824.

Portanto, nem rejeição mútua, nem concordismo. O autor disse ainda:

“...sin renunciar a los postulados fundamentales de la teología o


del psicoanálisis, [...] se puede llegar a una fecundación
recíproca...” [“...sem renunciar aos postulados fundamentais da
teologia ou da psicanálise, [...] pode-se chegar a uma fecundação
recíproca...”]825.

Por sua vez, tratando do mesmo diálogo entre a psicanálise e a


religião, Domínguez concluiu o livro que escreveu sobre a correspondência entre Freud
e Pfister com estas palavras:

“...quizás tengamos que reconocer que si hoy aún se mantiene


como un diálogo inacabado, es porque, no por accidente sino
por esencia, esté llamado a ser un diálogo inacabable” [“...talvez
tenhamos que reconhecer que, se ainda hoje se mantém como

821
DROGUETT, Desejo de Deus, p.85; ver também: LECUIT, L‟anthropologie théologique à la lumière de
la psychanalyse, p.368, 376.
822
Cf. BELLET, Foi et psychanalyse, p.136; GODIN, Reflexões recentes sobre vida espiritual cristã e
psicanálise. Concilium, n.99, p.1184.
823
Cf. COSTA, Sobre psicanálise e religião. In: MOURA, Hélio Pellegrino. A-Deus, p.94.
824
CARBALLO, Psicoanálisis y religión. In: PLÉ, Freud y la religión, p.91.
825
CARBALLO, Psicoanálisis y religión. In: PLÉ, Freud y la religión, p.91.
um diálogo não terminado, é porque, não por acidente, mas por
essência, está chamado a ser um diálogo interminável”]826.

Entre a psicanálise e a religião, não há chance de síntese. Resta,


portanto, a manutenção de um questionamento mútuo. A relação entre a psicanálise e a
religião está destinada a permanecer como questão sempre aberta. Ou seja, como um
diálogo sem fim827.

Crítica freudiana da religião e psicanálise: independentes?

Com isso, não está ainda dito tudo o que precisávamos dizer sobre a
tese concordista. Observamos, acima, que a tese da compatibilidade entre a psicanálise e
a religião valeu-se de dois argumentos principais: [a] a crítica freudiana da religião pode
ser separada da psicanálise; [b] a psicanálise apenas purifica a religião, sem aniquilá-la.
Consideremos, agora, o primeiro desses argumentos.
A crítica freudiana da religião não é o único problema da relação entre
a psicanálise e a religião. Mas, talvez, seja o maior de todos os problemas. Com efeito, a
crítica freudiana da religião é uma objeção frontal, explícita, direta, declarada da
psicanálise contra a religião. Não há como ignorá-la.
Diante disso, uma solução que, cedo, se desenhou para aqueles que
gostariam de acolher a psicanálise, mas não podiam concordar com o pensamento de
Freud sobre o fenômeno religioso, foi separar uma coisa da outra. E qual não foi o
contentamento dos que assim procederam ao constatarem que podiam invocar a
autoridade do próprio Freud nessa estratégia!
Com efeito, há, na obra de Freud, algumas passagens que parecem
autorizar a tese da independência entre a interpretação freudiana do fato religioso e a
psicanálise como tal.
No dia nove de fevereiro de 1909, Freud escreveu a Pfister:

“En soi, la psychanalyse n‟est pas plus religieuse qu‟irréligieuse.


C‟est un instrument sans parti dont peuvent user religieux et

826
DOMÍNGUEZ MORANO, Psicoanálisis y religión: diálogo interminable, p.186.
827
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, Creer después de Freud, p.94; DOMÍNGUEZ MORANO, El psicoanálisis
freudiano de la religión, p.24, 484; DOMÍNGUEZ MORANO, Experiencia cristiana y psicoanálisis, p.9.
laïques, pourvu que ce soit uniquement au service de la
délivrance d‟êtres souffrants” [“Em si, a psicanálise não é nem
religiosa nem irreligiosa. É um instrumento imparcial, o qual
pode ser usado por religiosos e leigos, desde que seja
unicamente a serviço da libertação dos sofredores”]828.

Em “O futuro de uma ilusão”, Freud reconhece que, no seio do


movimento psicanalítico, há uma diversidade de opiniões, de maneira que muitos
analistas não compartilham a sua posição a respeito da religião829. E acrescenta:

“En réalité, la psychanalyse est une méthode de recherche, un


instrument impartial, un peu comme le calcul infinitésimal. [...]
Si l‟on peut tirer de l‟application de la méthode psychanalytique
un argument nouveau contre la teneur en vérité de la religion,
tant pis pour la religion, mais les défenseurs de la religion
auront le même droit à se servir de la psychanalyse pour
apprécier pleinement la significativité affective de la doctrine
religieuse” [“Na verdade, a psicanálise é um método de
pesquisa, um instrumento imparcial, um pouco como o cálculo
infinitesimal. [...] Se se pode extrair da aplicação do método
psicanalítico um novo argumento contra o teor de verdade da
religião, tanto pior para a religião, mas os defensores da religião
terão o mesmo direito de se servirem da psicanálise para
apreciar plenamente a significação afetiva da doutrina
religiosa”]830.

Vale a pena interromper Freud para dar a palavra a Choisy. Em


“Psicanálise e catolicismo”, logo depois de fazer essa citação, ela revelou:

“Cuando un día publique mis Memorias contaré la conmoción


que me produjo esa frasecita; cómo me señaló la cita con el
destino que, al menos una vez en la vida, conoce todo escritor
auténtico; cómo he deseado inmediatamente recoger el desafío y
cómo, después de esa lectura, tuve la idea de fundar Psyché. Por
lo tanto, con el permiso de Freud, puedo poner el método
analítico al serviço de mis convicciones espirituales” [“Quando
eu publicar, um dia, minhas Memórias, contarei a comoção que
essa pequena frase produziu em mim; como a citação me
marcou com o destino que, pelo menos, uma vez na vida, todo
828
FREUD, Correspondance avec le pasteur Pfister 1909-1939, p.47. Essa declaração é, talvez, a frase
mais citada de toda a correspondência entre Freud e Pfister (cf. DOMÍNGUEZ MORANO, Creer después de
Freud, p.69; DOMÍNGUEZ MORANO, Psicoanálisis y religión: diálogo interminable, p.143).
829
Cf. FREUD, L‟avenir d‟une illusion. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.177.
830
FREUD, L‟avenir d‟une illusion. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.178.
escritor autêntico conhece; como desejei imediatamente aceitar
o desafio e como, depois dessa leitura, tive a ideia de fundar
Psyché. Portanto, com a permissão de Freud, posso colocar o
método analítico a serviço de minhas convicções espirituais”]831.

Voltemos, porém, a Freud, pois há ainda uma citação a fazer. No dia


26 de novembro de 1927, referindo-se a “O futuro de uma ilusão”, de novo,
correspondendo-se com Pfister, ele escreveu:

“...les vues exprimées dans mon essai ne font pas partie


intégrante du système analytique. C‟est mon attitude personelle;
on la rencontre chez beaucoup de non-analystes et de pré-
analystes et elle n‟est sûrement pas partagée par un grand
nombre de braves analystes. Si j‟ai tiré certains arguments, ou
plutót, à vrai dire, un seul argument, de l‟analyse, cela ne devrait
empêcher personne d‟exploiter la méthodologie sans parti de
l‟analyse au service de l‟opinion opposée” [“...as opiniões
expressas em meu ensaio não são parte integrante do sistema
analítico. É a minha atitude pessoal; ela pode ser encontrada em
muitos não-analistas e pré-analistas e seguramente não é
compartilhada por um grande número de valorosos analistas. Se
tirei certos argumentos, ou melhor, na verdade, um único
argumento da análise, isso não deveria impedir ninguém de
explorar a metodologia imparcial da análise a serviço da opinião
contrária”]832.

Não bastando essas citações, há também o fato de que, segundo


Pfister, o mesmo Freud encorajou-o a reagir a “O futuro de uma ilusão”, oferecendo-lhe
ainda a possibilidade de publicar a sua réplica numa revista do movimento psicanalítico,
a “Imago”833.
Realmente, no dia 21 de outubro de 1927, Pfister manifestou o seu
desejo de expressar a sua divergência a respeito de “O futuro de uma ilusão”834. No dia
seguinte, Freud encorajou Pfister a posicionar-se publicamente contra o referido livro835.

831
CHOISY, Psicoanálisis y catolicismo, p.31-32; cf. CHOISY, Le chrétien devant la psychanalyse, p.39.
832
FREUD, Correspondance avec le pasteur Pfister 1909-1939, p.172. Para Mezan, o único argumento
psicanalítico de “O futuro de uma ilusão” é a tese de que a crença religiosa deriva do estado de
desproteção infantil (cf. MEZAN, Freud, pensador da cultura, p.515). Para Domínguez, Freud está se
referindo, aqui, ao conceito de “ilusão”: tal como os sonhos, as ilusões realizam desejos (cf. DOMÍNGUEZ
MORANO, Psicoanálisis y religión: diálogo interminable, p.105, 107, 133).
833
Cf. PFISTER, L‟illusion d‟un avenir. Revue française de psychanalyse, t.41, n.3, p.503.
834
Cf. FREUD, Correspondance avec le pasteur Pfister 1909-1939, p.163.
835
Cf. FREUD, Correspondance avec le pasteur Pfister 1909-1939, p.166.
Em 24 de novembro, Pfister propós a Freud publicar a sua réplica a “O futuro de uma
ilusão” na revista “Imago”, ponderando que, dessa forma, conseguir-se-ia evitar que
algumas pessoas rejeitassem a psicanálise em bloco836. Dois dias depois, Freud acolheu
a proposta de Pfister837. No dia 11 de janeiro de 1928, Freud revelou que aguardava
ansiosamente a réplica de Pfister838. Por fim, no dia 24 de fevereiro, Freud escreveu: “Il
était absolument nécessaire que mon Illusion fût contredite par quelqu‟un appartenant à
nos milieux...” [“Era absolutamente necessário que minha Ilusão fosse contradita por
alguém que pertencesse ao nosso meio...”]839.
Ora, se Freud desejou que um psicanalista defendesse, numa revista
do movimento psicanalítico, um ponto de vista oposto ao seu em matéria de religião, é
porque, em sua opinião, a sua interpretação do fenômeno religioso era independente da
psicanálise como tal, podendo, pois, ser separada desta última e, eventualmente,
descartada. Não é assim?
Sim, é assim que muitos partidários da concordância entre a
psicanálise e a religião pensam. Como vimos, o primeiro a separar o método
psicanalítico da doutrina freudiana foi Dalbiez; Choisy apreciou muito a ideia; e, depois
deles, muitos outros defenderam a tese da independência entre a psicanálise e as
opiniões pessoais de Freud sobre a religião.
Para não cansarmos o/a leitor/a com uma série de citações muito
840
parecidas entre si , façamos apenas duas citações. A primeira é do padre jesuíta Antal
Benkö (1920), o fundador do departamento de psicologia da PUC-Rio: “...as posições
tomadas por Freud em relação à religião constituem sua opinião pessoal e não são
836
Cf. FREUD, Correspondance avec le pasteur Pfister 1909-1939, p.170.
837
Cf. FREUD, Correspondance avec le pasteur Pfister 1909-1939, p.172.
838
Cf. FREUD, Correspondance avec le pasteur Pfister 1909-1939, p.174.
839
FREUD, Correspondance avec le pasteur Pfister 1909-1939, p.178.
840
Cf. ALONSO, Psicoanálisis y religión. Proyección, v.23, n.101, p.132, 143, 145 [nota 2], 146 [nota 4];
AUPING, El ateísmo de Freud a la luz del psicoanálisis freudiano. In: GRUPO ÉPSIMO, Experiencia de Dios
y psicoanálisis, p.59; BAMBERGER, A religião como ilusão? Concilium, n.16, p.89; CHOISY, Le chrétien
devant la psychanalyse, p.38, 57, 70; CHOISY, Psicoanálisis y catolicismo, p.21; DACQUINO, Religiosidad
y psicoanálisis, p.211; DANSEREAU, Freud et l‟athéisme, p.9, 14; DROGUETT, Desejo de Deus, p.87-88;
GAY, A Godless jew, p.102-103; FRANCO, El psicoanálisis y la experiencia de Dios. In: GRUPO ÉPSIMO,
Experiencia de Dios y psicoanálisis, p.15; GÖRRES, Todo habla en favor. Nada sostenible habla en contra.
In: ZAHRNT, Jesús de Nazaret y Sigmund Freud, p.98-99; KÜNG, Freud and the problem of God, p.75, 80,
87; LECUIT, L‟anthropologie théologique à la lumière de la psychanalyse, p.377; MEISSNER,
Psychoanalysis and religious experience, p.4; PLÉ, Freud et la religion, p.45, 71, 99; SCHARFENBERG,
Encuentro entre el psicoanálisis y la teología. In: ZAHRNT, Jesús de Nazaret y Sigmund Freud, p.199;
SILVA, O ateísmo de Freud, p.13-14, 20, 42, 76, 90; WIESENHÜTTER, La fe reprimida. In: ZAHRNT, Jesús
de Nazaret y Sigmund Freud, p.132; ZILBOORG, Psicanálise e religião, p.31, 147, 190, 213, 244, 259;
ZILLES, Freud: a provocação do ateísmo psicanalítico. In: _______. Filosofia da religião, p.138, 154.
conseqüências necessárias da psicanálise mesma”841. Por conseguinte, “...uma pessoa
poderá ser psicanalista, isto é, empregar o sistema de Freud como método de
investigação científica e de terapia, sem seguir [...] sua posição perante a religião”842.
Sanders, por sua vez, se expressou de forma tão tranchant que vale a
pena citá-lo textualmente:

“...when Freud is talking about how to cure neurotics he is


speaking as a specialist on his own subject; but when he goes on
to talk general philosophy he is speaking as an amateur. It is
therefore quite sensible to attend to him with respect in the one
case and not in the other Ŕ and that‟s what I do” [“...quando
Freud fala sobre como curar neuróticos, ele fala como um
especialista sobre o seu objeto; mas, quando ele passa a falar de
filosofia geral, ele fala como um amador. É, portanto,
inteiramente razoável ouvi-lo com respeito no primeiro caso,
mas não no outro Ŕ e é isso o que eu faço”]843.

De nossa parte, gostaríamos muito de acreditar na independência entre


a crítica freudiana da religião e a psicanálise. Seria muito conveniente se fosse assim; o
problema da relação entre a psicanálise e a religião poderia ser mais facilmente
resolvido. Não estamos, porém, convencidos dessa independência.
Essa questão costuma ser decidida com a citação de alguma das
ponderações de Freud acima referidas. Argumenta-se: se o próprio Freud defendeu a
imparcialidade da psicanálise em matéria de religião, então, não há motivo para
discussão. Não se pode, contudo, descartar a hipótese de que, ao sustentar a neutralidade
da psicanálise no que se refere a religião, Freud estivesse, simplesmente, “fazendo
política”.
Freud foi o grande estrategista político do movimento psicanalítico;
ele sempre esteve interessado e, mais do que isso, empenhado na disseminação da sua
invenção, a psicanálise844. Já tivemos a ocasião de registrar o fato de que Jung era uma
peça fundamental na política de Freud de fazer expandir a psicanálise para fora do
mundo judaico. Ora, Pfister também fazia parte desse jogo: “For Freud, Pfister was a

841
BENKÖ, Psicologia da religião, p.44.
842
BENKÖ, Psicologia da religião, p.45.
843
SANDERS, Christianity after Freud, p.22.
844
Cf. BIRMAN, Cadernos sobre o mal, p.100; BIRMAN, Freud e a experiência psicanalítica, p.74 [nota
1].
key that would unlock doors to the outside world, almost as much as Jung” [“Para
Freud, Pfister era uma chave que abriria as portas para o mundo exterior quase tanto
quanto Jung”]845, garante Gay. Pfister tinha um “valor estratégico excepcional” para
Freud846, reconhece Mezan.
No dia 16 de outubro de 1927, Freud admitiu que adiou por muito
tempo a escrita de “O futuro de uma ilusão” em consideração a Pfister847. Mas Freud fez
mais do que isso: ele declarou que tudo aquilo era apenas a sua opinião pessoal para
não ferir os sentimentos do pastor. Isto é, do pastor e de todos os cristãos que viessem a
lê-lo, bem como das pessoas de sensibilidade religiosa. Portanto, ao dizer que a
psicanálise é neutra, não é anti-religiosa, Freud estava apenas contemporizando,
“fazendo política”848.
Que a crítica freudiana da religião e a psicanálise não são
independentes, mas inseparáveis, esse é um ponto de vista compartilhado por vários
autores.
Para Ricœur, o método psicanalítico e a doutrina freudiana são
inseparáveis849. Aos seus olhos, a interpretação psicanalítica da cultura não é fruto de
uma extensão tardia e facultativa do que originalmente não pretendia ser mais do que
um ramo da psiquiatria ou uma psicologia individual. Pelo contrário, a psicanálise é, de
saída, uma hermenêutica geral da cultura, uma interpretação da cultura como um todo.
Ela não se interessa, pois, pela cultura a título acessório ou indireto850.
Na opinião de Assoun, longe de ser uma espécie de apêndice da
psicanálise, a interpretação da cultura é uma expansão necessária da mesma. O interesse
de Freud pela cultura não procede de um capricho, mas de uma necessidade. A
psicanálise é, pois, comparável a um “Jano de duas faces”, uma das quais está voltada
para o psiquismo, enquanto a outra contempla a cultura851.

845
GAY, A Godless jew, p.77.
846
Cf. MEZAN, Freud, pensador da cultura, p.513.
847
Cf. FREUD, Correspondance avec le pasteur Pfister 1909-1939, p.162.
848
Cf. CLÉMENT; KAKAR, A louca e o santo, p.236; DOMÍNGUEZ MORANO, El psicoanálisis freudiano de
la religión, p.148; GAY, Freud, p.478; PLÉ, Freud et la religion, p.50-51.
849
Cf. RICŒUR, Le conflit des interprétations, p.102, 105.
850
Cf. RICŒUR, Le conflit des interprétations, p.122-123, 316.
851
Cf. ASSOUN, Freud et les sciences sociales, p.17, 23, 34.
Para Mezan, igualmente, a interpretação da cultura é um “momento
essencial” da teorização psicanalítica. A análise da cultura e a teoria psicanalítica estão
indissoluvelmente ligadas852.
Allers, Felici e Vaca Ŕ os três, partidários da incompatibilidade entre o
catolicismo e Freud Ŕ negaram que a crítica freudiana da religião pudesse ser destacada
da psicanálise853.
Segundo Beirnaert, enfim, o discurso de Freud sobre a religião é um
elemento estrutural do discurso freudiano como um todo. Não se pode, pois, isolar a
crítica freudiana da religião da psicanálise854.
Esse é também o juízo para o qual nos sentimo inclinados. Se a
interpretação freudiana do fato religioso pudesse ser separada da psicanálise como tal,
as coisas seriam muito mais fáceis. Mas o fato é que não é assim.

O efeito da psicanálise sobre a religião: depuração?

Outro argumento de que sempre se valeram os defensores da


compatibilidade entre a psicanálise e a religião consiste em afirmar que a psicanálise
apenas purifica a religião, não tendo o poder de aniquilá-la, de modo que a religião nada
tenha a temer da psicanálise.
Pretende-se que esse raciocínio valha seja para a experiência da
análise, seja para o embate teórico com a psicanálise, isto é, tanto o crente que se deita
no divã de um analista, quanto o teólogo que enfrenta o desafio que o pensamento de
Freud representa sairiam ganhando com a psicanálise, não abandonariam a religião,
mas, pelo contrário, teriam a sua fé depurada, amadurecida, tornada adulta, menos
infantil.
Embora sem se referir especificamente à “psicanálise”, a célebre
constituição “Gaudium et spes” recomendou o recurso à “psicologia” na pastoral com a
expectativa de que “...também os fiéis sejam encaminhados a uma vida de fé mais pura

852
Cf. MEZAN, Freud, pensador da cultura, p.418, 433, 436, 482, 531, 577 [nota 123].
853
Cf. ALLERS, The successful error, p.214, 248, 250, 256; FELICI, El pecado en el pansexualismo
psicoanalítico. In: FABRO, El pecado en la filosofía moderna, p.188-189; VACA, Psicoanálisis y dirección
espiritual, p.422, 520-522.
854
Cf. BEIRNAERT, Aux frontières de l‟acte analytique, p.53-58, 66.
e amadurecida”855. Já tivemos a ocasião de registrar que esse foi, aliás, um dos
argumentos de Lemercier em sua defesa do acontecido em Cuernavaca. A verdade,
porém, é que essa tese tornou-se um verdadeiro “lugar comum” entre os que propugnam
a admissão da psicanálise pela religião. De novo, vamos poupar o/a leitor/a de uma série
de citações muito parecidas entre si856. Citemos, pois, apenas quatro autores, dois
protestantes e dois católicos.
Em 1928, em sua réplica a “O futuro de uma ilusão”, Pfister descreveu
o método psicanalítico como “...un instrument merveilleux pour purifier et faire
progresser la religion...” [“...um instrumento maravilhoso para purificar e fazer avançar
a religião...”]857. No dia nove de fevereiro do ano seguinte, o pastor escreveu a Freud:
“Je ne crois pas que la psychanalyse élimine l‟art, la philosophie, la religion mais
qu‟elle contribue à les épurer” [“Eu não creio que a psicanálise elimine a arte, a
filosofia, a religião, mas que contribua para purificá-las”]858.
Plé elegeu como epígrafe do último e conclusivo capítulo do seu livro
“Freud e a religião” justamente essa frase de Pfister859. E esta é, com efeito, a sua
aposta: a psicanálise pode purificar a fé dos crentes Ŕ da idolatria, das projeções, do
infantilismo, da neurose, da ilusão etc.860. Disse o padre dominicano:

“Certains des chrétiens qui ont été analysés semblent témoigner


que cette expérience, loin de leur avoir fait „perdre‟ la foi, les a
provoqués à une profonde purification” [“Alguns cristãos que
855
A Igreja no mundo de hoje. In: Compêndio do Vaticano II, p.215 [n.62].
856
Cf. ALONSO, Psicoanálisis y religión. Proyección, v.23, n.101, p.141; AVIS, A hermeneutic of
suspicion: Sigmund Freud. In: _______, Faith in the fires of criticism, p.71; BENKÖ, Psicologia da
religião, p.45; BEIRNAERT, Aux frontières de l‟acte analytique, p.134-136; BEIRNAERT, Expérience
chrétienne et psychologie, p.8; CHOISY, Psicoanálisis y catolicismo, p.15; DACQUINO, Religiosidad y
psicoanálisis, p.35, 165-166, 218-219; DANSEREAU, Freud et l‟athéisme, p.9, 38, 44-45, 52, 187;
DOMÍNGUEZ MORANO, Creer después de Freud, p.94; DROGUETT, Desejo de Deus, p.108-109, 115;
FRANCO, El psicoanálisis y la experiencia de Dios. In: GRUPO ÉPSIMO, Experiencia de Dios y
psicoanálisis, p.12; GAY, A Godless jew, p.93-95; GÖRRES, Todo habla en favor. Nada sostenible habla
en contra. In: ZAHRNT, Jesús de Nazaret y Sigmund Freud, p.99; HIRSCH, ¿Qué papel desempeña la fe
cristiana en la praxis psicoterapéutica? In: ZAHRNT, Jesús de Nazaret y Sigmund Freud, p.248, 251-252;
JONES, A vida e a obra de Sigmund Freud, v.3, p.356; KÜNG, Freud and the problem of God, p.100; PLÉ,
Mudança da Igreja em relação à psicanálise. Concilium, n.99, p.1203; SCHARFENBERG, Encuentro entre el
psicoanálisis y la teología. In: ZAHRNT, Jesús de Nazaret y Sigmund Freud, p.173; SILVA, O ateísmo de
Freud, p.80; VERGOTE, Psicanálise e religião. Revista Portuguesa de Filosofia, v.59, f.2, p.577;
WIESENHÜTTER, La fe reprimida. In: ZAHRNT, Jesús de Nazaret y Sigmund Freud, p.160-164.
857
PFISTER, L‟illusion d‟un avenir. Revue française de psychanalyse, t.41, n.3, p.503.
858
FREUD, Correspondance avec le pasteur Pfister 1909-1939, p.184; cf. DOMÍNGUEZ MORANO,
Psicoanálisis y religión: diálogo interminable, p.68, 123, 178, 183.
859
Cf. PLÉ, Freud et la religion, p.97.
860
Cf. PLÉ, Freud et la religion, p.134-144.
foram analisados parecem testemunhar que essa experiência,
longe de fazê-los „perder‟ a fé, estimulou-os a uma profunda
purificação”]861.

Ricœur, por sua vez, afirmou:

“Mon hypothèse de travail [...] est que la psychanalyse est


nécessairement iconoclaste, indépendamment de la foi ou de la
non-foi du psychanalyste, et que cette „destruction‟ de la
religion peut être la contrepartie d‟une foi purifiée de toute
idolâtrie” [“Minha hipñtese de trabalho [...] é que a psicanálise é
necessariamente iconoclasta, independentemente da fé ou da
não-fé do psicanalista, e que essa „destruição‟ da religião pode
ser a contrapartida de uma fé purificada de toda idolatria”]862.

E, em outro lugar, acrescentou: o freudismo “...já fortaleceu a crença


dos descrentes, mas ainda mal começou a purificar a fé dos crentes”863.
Por fim, segundo Cencillo:

“...la experiencia psicoanalítica de Freud está llamada a depurar


el cristianismo de cierta ganga anticristiana (por antihumana)
que se le había ido adhiriendo a lo largo de sus dos milenios de
existencia” [“...a experiência psicanalítica de Freud está
chamada a depurar o cristianismo de certa ganga anti-cristã (por
anti-humana) que se lhe foi aderindo ao longo de seus dois
milênios de existência”]864.

Para ele, certas descobertas de Freud podem apenas resultar numa


“depuração” do religioso865. A psicanálise pode livrar o cristianismo daqueles elementos
não-cristãos que se lhe agregaram ao longo da história866. A psicanálise deixa, pois,
intacto o núcleo da fé cristã; o que ela elimina não é genuinamente cristão: é

861
PLÉ, Freud et la religion, p.143.
862
RICŒUR, De l‟interprétation, p.226.
863
RICŒUR, O ateísmo da psicanálise de Freud. Concilium, n.16, p.77.
864
CENCILLO, Aportaciones de Freud al cristianismo. In: ZAHRNT, Jesús de Nazaret y Sigmund Freud,
p.360.
865
Cf. CENCILLO, Aportaciones de Freud al cristianismo. In: ZAHRNT, Jesús de Nazaret y Sigmund Freud,
p.366.
866
Cf. CENCILLO, Aportaciones de Freud al cristianismo. In: ZAHRNT, Jesús de Nazaret y Sigmund Freud,
p.372, 378.
“ferrugem”. Segue-se que, para Cencillo, o pensamento de Freud é “benéfico” ao
cristianismo; ele veio apenas “saneá-lo”867.
O que dizer de tudo isso? Como encarar a tese de que a psicanálise
concorre apenas para a purificação da religião, não para a sua aniquilação, vindo, assim,
prestar-lhe um serviço involuntário?
De novo, sentimo-nos obrigados a dizer que seria muito conveniente Ŕ
para a religião, entenda-se Ŕ se fosse assim. Mas não nos parece que as coisas se dêem
sempre desse jeito. Mais razoável é admitir que tudo pode acontecer com a fé de quem
entra em contato com a psicanálise Ŕ seja com o divã do analista, seja com os livros de
Freud. Tudo! Pode-se perder a fé; pode-se purificá-la; pode-se, nesse sentido, fortalecê-
la; pode-se até adquirir a fé Ŕ ou recuperá-la Ŕ com a psicanálise!
Em “Le jour où Lacan m‟a adopté” [“O dia em que Lacan me
adoutou”], publicado em 2002, o médico psiquiatra Gérard Haddad faz um relato da sua
vida e, em particular, da sua própria análise, conduzida por Lacan. Nascido na Tunísia,
em 1940, Haddad foi educado dentro das tradições religiosas judaicas, mas, a partir da
adolescência, afastou-se do judaísmo, chegando a se tornar um marxista completamente
ateu. A partir de 1969, ele fez uma análise com Lacan que se estendeu por 12 anos,
sendo interrompida apenas pela morte deste último. No curso de sua análise, Haddad
reconverteu-se ao judaísmo, sendo esse um elemento central em sua cura868, e tendo ele
se sentido apoiado por Lacan nesse movimento869.
Admitamos, porém, que o caso de Haddad não é frequente. O mais
comum é a perda da fé ou, eventualmente, a sua maturação pelo contato com a
psicanálise.
Uma análise, adverte Pohier, pode perfeitamente não resultar numa
saudável purificação da fé870. Não há nenhuma garantia de que a religiosidade de um
analisante sobreviverá a um processo analítico ou de que sairá dele depurada.
Diz Bellet:

867
Cf. CENCILLO, Aportaciones de Freud al cristianismo. In: ZAHRNT, Jesús de Nazaret y Sigmund Freud,
p.372, 389, 396.
868
Cf. HADDAD, O dia em que Lacan me adotou, p.229, 245.
869
Cf. HADDAD, O dia em que Lacan me adotou, p.189, 191, 216.
870
Cf. POHIER, Dieu fractures, p.176.
“L‟analyse est, pour bien des chrétiens, une épreuve si radicale
de la foi qu‟on ne peut décemment la ramener à une
„réinterprétation‟ simple. Sans parler de ceux pour qui l‟analyse
est le fin de leur foi” [“A análise é, para muitos cristãos, uma
prova tão radical da fé que não se pode propriamente reduzi-la a
uma simples „reinterpretação‟. Sem falar daqueles para quem a
análise é o fim de sua fé”]871.

Donde o aviso: “...on peut bien „perdre la foi‟ dans l‟analyse”


[“...pode-se muito bem „perder a fé‟ na análise”]872.
Acrescente-se ainda que, para não poucos psicanalistas, tratando-se de
uma análise, a perda da fé é não apenas um desfecho possível, mas aquilo mesmo que se
espera que aconteça como resultado do processo analítico.
Numa carta a Eitingon, de 20 de junho de 1927, Freud escreveu: “It
remains to be considered [...] wheter analysis in itself must really lead to the giving up
of religion” [“Resta considerar [...] se a análise, em si mesma, deve realmente levar ao
abandono da religião”]873.
Para alguns analistas, a resposta a essa pergunta é, sem dúvida
alguma, “sim”. Diz o padre carmelita Jean-Baptiste Lecuit (1965):

“...bien des analystes Ŕ la grande majorité sans doute, mais


comment l‟évaluer? Ŕ considèrent la persistance de la foi d‟un
analysant comme un indice d‟une avancée insuffisante du travail
psychanalytique, le sujet n‟ayant pas encore reconnu le caractère
infantile de sa croyance en Dieu” [“...muitos analistas Ŕ a grande
maioria, sem dúvida, mas como mensurá-lo? Ŕ consideram a
persistência da fé de um analisante como um sinal de um
progresso insuficiente do trabalho psicanalítico, o sujeito não
tendo ainda reconhecido o caráter infantil de sua crença em
Deus”]874.

Alguns analistas argumentam que, sendo a religião uma neurose,


como ensinou Freud, o abandono da fé religiosa pelo analisante é uma condição

871
BELLET, Foi et psychanalyse, p.116.
872
BELLET, Foi et psychanalyse, p.125; cf. BELLET, Foi et psychanalyse, p.34; BELLET, Incidências da
crise analítica na vivência da fé. Concilium, n.99, p.1132; COSSON, A psicanálise e sua imagem social
entre os crentes. Concilium, n.99, p.1125; LECUIT, L‟anthropologie théologique à la lumière de la
psychanalyse, p.371, 374.
873
GAY, A Godless jew, p.12; cf. LECUIT, L‟anthropologie théologique à la lumière de la psychanalyse,
p.372; ver também: BIRMAN, Por uma estilística da existência, p.19.
874
LECUIT, L‟anthropologie théologique à la lumière de la psychanalyse, p.371.
necessária, embora não suficiente, para que se possa considerar finalizada a sua
análise875.
Aos olhos de Roudinesco, se um padre se submetesse a uma análise,
certamente perderia a vocação: “...não vemos como uma vocação pudesse ser despojada
de seu conteúdo neurótico sem desaparecer ela própria. Dentro da perspectiva freudiana,
toda crença mística, religiosa ou fanática tem sua origem na neurose, ou mesmo na
psicose”876. A historiadora do movimento psicanalítico continua:

“...a penetração da psicanálise na vida religiosa corre sempre o


risco de levar ao rompimento dos padres com a religião. Nesse
sentido, o freudismo é um perigo para a Igreja, e o Santo Ofício
tem razão em desconfiar de todas as experiências
psicanalíticas”877.

Numa perspectiva lacaniana, por exemplo, pode-se afirmar que,


embora não seja condição suficiente, o abandono da fé religiosa é uma condição
necessária para o final de uma análise. Sendo “Deus” uma maneira de se nomear o
Outro, o final de uma análise, na medida em que implica na admissão de que o Outro
não existe, significa também a perda da crença em Deus878.
Mais exatamente: a entrada em análise se dá com o estabelecimento
da transferência, a constituição do analista como sujeito suposto saber Ŕ ou seja, como
Outro Ŕ e a fé no analista. O fim de uma análise, por sua vez, implica na dissolução da
transferência, na destituição do sujeito suposto saber, na queda do Outro, na perda da fé.
Não só na perda da fé no analista, mas na perda da fé simplesmente. Uma análise
termina com a liquidação da transferência; a religião, por sua vez, baseia-a no vínculo
transferencial. A fé religiosa supõe a conservação do sujeito suposto saber; uma análise,
a sua superação. Daí que a psicanálise seja anti-religiosa879.
Em vista disso, para muitos analistas, a perda da fé é alguma coisa que
não apenas pode acontecer numa análise, mas algo que deve acontecer. Digamos,

875
Cf. CARBALLO, Psicoanálisis y religión. In: PLÉ, Freud y la religión, p.8; DALBIEZ, La méthode
psychanalytique et la doctrine freudienne, t.2, p.370-371.
876
ROUDINESCO, História da psicanálise na França, v.2, p.218.
877
ROUDINESCO, História da psicanálise na França, v.2, p.219.
878
Cf. CHORNE; GOLDENBERG, La creencia y el psicoanálisis, p.22, 83-86, 88.
879
Cf. ROUSTANG, Un destin si funeste, p.32-35, 43, 87, 104.
porém, que a perda da fé seja, no mínimo, uma possibilidade. Só isso já basta para
descartarmos a tese de que a psicanálise apenas purifica a religião.
Outro motivo para recusarmos esse ponto de vista é o fato de que a
ideia de uma religiosidade adulta, amadurecida, inteiramente purificada de elementos
infantis pela psicanálise tem todo o aspecto de uma ilusão. Segundo Domínguez, a ideia
mesma de uma fé completamente depurada Ŕ emancipada de toda determinação
inconsciente, isenta de toda conexão com o mundo infantil, livre de todo elemento
patológico Ŕ é uma ilusão880. Além de ilusória, uma fé assim seria, ademais, uma fé
desumanizada881. Diz Vergote:

“L‟idée d‟une santé sans troubles et celle d‟une authenticité


religieuse sans ombrages ne sont que des phantasmes
d‟omnipotence blindée” [“A ideia de uma saúde sem
perturbações e aquela de uma autenticidade religiosa sem
sombras não são senão fantasmas de inexpugnável
onipotência”]882.

Em suma, recolhendo as posições que fomos assumindo nas últimas


seções deste capítulo: gostaríamos muito de que a crítica freudiana da religião pudesse
ser separada da psicanálise; seria muito conveniente se a psicanálise apenas purificasse
a religião; ficaríamos felizes se a psicanálise e a religião concordassem entre si. Mas, ao
que parece, as coisas não são assim. Há graves problemas entre a psicanálise e a
religião, e a crítica freudiana do fenômeno religioso é apenas um desses problemas. Isso
não exclui a possibilidade do diálogo entre uma coisa e outra, mas certamente afasta
qualquer esperança de uma síntese harmoniosa. Muito honestamente, isso é o que
pensamos.

880
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, El psicoanálisis freudiano de la religión, p.486; DOMÍNGUEZ MORANO,
Experiencia cristiana y psicoanálisis, p.10, 157; DOMÍNGUEZ MORANO, Psicoanálisis y religión: diálogo
interminable, p.178; DOMÍNGUEZ MORANO, Psicodinámica de los ejercicios ignacianos, p.19.
881
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, Ciencia, ilusión y creencia. Revista Portuguesa de Filosofia, v.59, f.2,
p.443-444.
882
VERGOTE, Dette et désir, p.308.
Jung: uma opção melhor para os católicos?

Havendo, assim, dificuldades tão grandes entre a psicanálise e a


religião, não é de se admirar que, no “mercado” das teorias psicológicas, muitos
cristãos, católicos e protestantes, tenham preferido a psicologia analítica de Jung, ao
invés da psicanálise de Freud883.
Aliás, ao que parece, o próprio Jung se empenhou em se apresentar
aos cristãos como preferível a Freud. Em “Modern man in search of a soul” [“O homem
moderno em busca de uma alma”], por exemplo, ele observou:

“The fact that many clergymen seek support or practical help


from Freud‟s theory of sexuality or Adler‟s theory of power is
astonishing, inasmuch as both these theories are hostile to
spiritual values...” [“O fato de que muitos clérigos busquem
apoio ou ajuda prática na teoria da sexualidade de Freud ou na
teoria do poder de Adler é surpreendente, uma vez que ambas
essas teorias são hostis a valores espirituais...”]884.

De acordo com Silva, Pio XII foi um dos “constantes leitores” de


885
Jung . No discurso de 13 de abril de 1953, ao defender a unidade psicológica do
indivíduo, o papa Pacelli estaria acenando para a psicologia de Jung886. O mesmo se
pode dizer, na opinião de Beirnaert, da referência que Pio XII fez a uma escola de
psicologia que vinha estudando um dinamismo afetivo dirigido a Deus descoberto no
mais profundo do psiquismo humano887.

883
Cf. LACOUTURE, Jésuites, v.2, p.279; PALMER, Freud e Jung: sobre a religião, p.212; TORELLÒ,
Psicanálise ou confissão?, p.89; ZILBOORG, Psicanálise e religião, p.97.
884
JUNG, Modern man in search of a soul, p.228.
885
Cf. SILVA, O ateísmo de Freud, p.61.
886
Cf. SILVA, O ateísmo de Freud, p.82.
887
Cf. BEIRNAERT, Expérience chrétienne et psychologie, p.257. Observe-se, contudo, que, na mesma
alocução, o papa Pacelli asseverou que as religiões não procedem do inconsciente, tampouco de um
impulso afetivo, mas do conhecimento objetivo de Deus pela revelação (cf. PIUS PP. XII, Iis, qui
interfuerunt Conventui internationali quinto de psychotherapia et psychologia. Acta apostalicae sedis,
v.20, n.6, p.284). Segundo Gemelli, ao sustentar esse ponto de vista, Pio XII estaria criticando Jung (cf.
FELICI, El pecado en el pansexualismo psicoanalítico. In: FABRO, El pecado en la filosofía moderna,
p.156 [nota 6]). Em “A presença ignorada de Deus”, Frankl se opós a Jung e assumiu a tese papal,
apresentando-se, pois, implicitamente, como preferível ao psiquiatra suíço (cf. FRANKL, A presença
ignorada de Deus, p.49-51). Sobre o subjetivismo da psicologia junguiana, pode-se consultar: DEMPSEY,
Freud, psychanalyse et catholicisme, p.34-35; KÜNG, Freud and the problem of God, p.64-6; TORELLÒ,
Psicanálise ou confissão?, p.87.
Nesta seção, queremos, porém, registrar que, apesar de Jung haver
conquistado a simpatia de não poucos cristãos Ŕ talvez, até do papa Pacelli Ŕ,
numerosos também são aqueles que o rejeitaram, preferindo, apesar de tudo, Freud. Para
esses autores, a maior compatibilidade entre a psicologia analítica de Jung e o
cristianismo é enganosa.
De acordo com Fromm, comparado a Freud, Jung é mais amigo da
religião Ŕ do catolicismo, em particular Ŕ apenas aparentemente888.
Vergote, por sua vez, declarou: “...en dépit des apparences, nous
jugeons la psychologie jungienne aussi peu religieuse, pour le moins, que le freudisme
athée...” [“...apesar das aparências, consideramos a psicologia junguiana tão pouco
religiosa, pelo menos, quanto o freudismo ateu...”]889. Em sua opinião, a psicologia de
Jung é “...plus éloignée du christianisme que celle de Freud” [“... mais distante do
cristianismo do que a de Freud”]890.
Jean-François Catalan, padre jesuíta e professor de psicologia no
Centre Sèvres, em Paris, afirma que, sob certos aspectos, o ateísmo de Freud está mais
próximo do cristianismo do que a religiosidade junguiana891.
Embora junguiano, White admitiu: “Creio que a amizade de Jung
apresenta um desafio muito mais sério e radical à religião tal como a conhecemos do
que um dia o fez a hostilidade de Freud”892.
O padre dominicano Augustin Léonard considera Freud “menos
perigoso” do que Jung893.
Torellò descreve a psicologia junguiana como “tão sugestiva quanto
ambígua e falaz”894. Jung, diz Torellò um pouco acidamente, “...tinha a obsessão de
falar sempre do Cristianismo, sem dele compreender nada!”895.
Ricœur garante que, entre Freud e Jung, fica com o primeiro. E se
explica: “Avec Freud je sais où je suis et où je vais; avec Jung, tout risque de se

888
Cf. CLÉMENT; KAKAR, A louca e o santo, p.240.
889
VERGOTE, Psychologie religieuse, p.174.
890
VERGOTE, Psychanalyse et anthropologie philosophique. In: HUBER; PIRON; VERGOTE, La
psychanalyse, science de l‟homme, p.231-232; cf. VERGOTE, Psychologie religieuse, p.274.
891
Cf. CATALAN, O homem e sua religião, p.100.
892
PALMER, Freud e Jung: sobre a religião, p.214; cf. PALMER, Freud e Jung: sobre a religião, p.246.
893
Cf. ZILBOORG, Dénégations et affirmations de la foi religieuse. In: Foi, raison et psychiatrie moderne,
p.132; ZILBOORG, Psicanálise e religião, p.163.
894
Cf. TORELLÒ, Psicanálise ou confissão?, p.84.
895
Cf. TORELLÒ, Psicanálise ou confissão?, p.177.
confondre...” [“Com Freud, eu sei onde estou e aonde vou; com Jung, tudo parece se
confundir...]896.
Zilboorg, por sua vez, afirmou: “Des attitudes comme celle de C.G.
Jung, qui s‟efforçait de gagner l‟intérêt et la sympathie des croyants par ses allusions à
Dieu, sont susceptibles d‟apporter plus de confusion que de lumière” [“Atitudes como a
de C.G. Jung, que se esforçou por ganhar o interesse e a simpatia dos crentes por meio
de suas alusões a Deus, podem trazer mais confusão do que luz”]897.
De sua parte, Roustang disparou: “...l‟œuvre jungienne est une soupe,
un syncrétisme séduisant, un vivier où tous les poissons ont leur chance” [“...a obra
junguiana é uma sopa, um sincretismo sedutor, um viveiro onde todos os peixes têm a
sua vez”]898.
Segundo Sudbrack, a cosmovisão junguiana é “gnosticizante”899.
Fazer de Jung, como muitas vezes se tem feito, um “psicñlogo religioso no sentido do
cristianismo” é algo que não procede900.
Em “Interpretação da linguagem religiosa”, Vergote utiliza as
expressões “bruxaria psicolñgica” e “psicologia gnostizante” para se referir à teoria
psicológica de Jung901.
Por fim, discursando para os católicos, em Bruxelas, Lacan
manifestou a sua admiração por ver Jung preferido pelos cristãos, “...comme si la gnose
païenne, voire une sorcellerie rustique, pouvaient renouveler les voies d‟accès à
l‟Éternel” [“...como se a gnose pagã, ou mesmo uma bruxaria rústica, pudessem renovar
as vias de acesso ao Eterno”]902.

Lacan: versão católica da psicanálise?

Roudinesco conta que, inicialmente, Beirnaert se interessou pelas


obras de Jung. Mas não se demorou muito nisso. Chegou a ir a Zurique para encontrar-
896
RICŒUR, De l‟interprétation, p.177; cf. RICŒUR, Le conflit des interprétations, p.206.
897
ZILBOORG, Dénégations et affirmations de la foi religieuse. In: Foi, raison et psychiatrie moderne,
p.132; cf. ZILBOORG, Psicanálise e religião, p.163.
898
ROUSTANG, Un destin si funeste, p.65.
899
Cf. SUDBRACK, Experiência religiosa e psique humana, p.18.
900
Cf. SUDBRACK, Experiência religiosa e psique humana, p.21.
901
Cf. VERGOTE, Interprétation du langage religieux, p.38.
902
LACAN, Discours aux catholiques. In: _______. Le triomphe de la religion précédé de Discours aux
catholiques, p.41.
se com o psiquiatra; porém, achou Jung... “demasiadamente religioso”903! Como vimos,
Beirnaert acabou se tornando um discípulo de Lacan. Ele não foi o único a fazer essa
escolha.
Segundo Roudinesco e Plon, Lacan era tão ateu quanto Freud 904. No
dia nove de março de 1960, dirigindo-se aos católicos, ele afirmou: “...je ne professe
aucune appartenance confessionnelle...” [“...eu não professo nenhum vínculo
confessional...”]905. Balmary, porém, considera difícil definir a posição pessoal de
Lacan em matéria de religião906. Com efeito, a relação de Lacan com a religião Ŕ e,
nomeadamente, com o catolicismo Ŕ é marcada por uma certa ambiguidade.
“Je suis un enfant de curé” [“Sou filho de padre”], dizia Lacan 907. A
afirmação, um tanto desconcertante, pode ser entendida em, pelo menos, dois sentidos.
Primeiramente, parece sugerir que Lacan Ŕ ou o seu pensamento, se preferirmos Ŕ é o
resultado de uma impossibilidade ou de uma transgressão. Em segundo lugar, que o
catolicismo teve uma importância significativa na sua formação pessoal e intelectual.
Numa outra ocasião, com efeito, Lacan afirmou: “...je suis d‟origine catholique” [“...eu
sou de origem catñlica”]908.
Jacques-Marie Émile Lacan nasceu no dia 13 de abril de 1901.
Recebeu o batismo na Igreja Católica. Foi criado num ambiente familiar marcadamente
religioso. Estudou no colégio Stanislas, dos padres maristas, mas que, em 1901, fora
confiado ao clero diocesano e a professores leigos. Esse colégio era frequentado pelos
filhos da alta e média burguesia católica.
Com algo em torno de 20 anos Ŕ e, em parte, influenciado pela leitura
de Nietzsche Ŕ, Lacan se rebelou contra a tradição religiosa em que fora educado,
abandonando definitivamente a religião. Um dos sinais dessa renúncia pode ser
encontrado no fato de que ele decidiu não mais usar o prenome “Marie”: desde as suas

903
Cf. ROUDINESCO, História da psicanálise na França, v.2, p.217.
904
Cf. ROUDINESCO; PLON, Dicionário de psicanálise, p.369.
905
LACAN, Discours aux catholiques. In: _______. Le triomphe de la religion précédé de Discours aux
catholiques, p.28.
906
Cf. BALMARY, Le sacrifice interdit, p.32, 35.
907
LACAN, Le triomphe de la religion précédé de Discours aux catholiques, contracapa.
908
LACAN, Le séminaire, livre 17, p.133.
primeiras publicações, em 1926, ele assinou “Jacques Lacan” Ŕ ou, eventualmente,
“Jacques-M. Lacan”909.
Em 1926, Marc-Marie (1907-1994), o irmão caçula de Lacan, decidiu
tornar-se monge beneditino. Desde pequeno, ele manifestara o desejo de tornar-se
padre. Lacan, que sempre se mostrara muito paternal para com o irmão, revoltou-se
contra a escolha de Marc-Marie e fez de tudo para evitar a sua entrada no mosteiro. Em
1931, ao pronunciar os votos religiosos, o irmão mais novo de Lacan adotou o nome de
Marc-François em homenagem a São Francisco de Assis (1181/1182-1226). Em 1935,
ele foi ordenado padre. Lacan estava presente.
Lacan dedicou a sua tese doutoral, defendida em 1932, ao irmão
caçula. A “estranha” dedicatñria, na expressão de Certeau, diz o seguinte: “Au R.P.
Marc-François Lacan, bénédictin de la Congrégation de France, mon frère en religion”
[“Ao R.P. Marc-François Lacan, beneditino da Congregação da França, meu irmão em
religião”]910. Com efeito, somente outro beneditino, um confrade, poderia chamar a
Marc-François de “irmão em religião”. O que Lacan está pretendendo dizer? Que é
beneditino também? Talvez, por isso, na segunda edição da tese, ocorrida em 1975, a
dedicatñria foi modificada. Ficou assim: “À mon frère, le R.P. Marc-François Lacan,
bénédictin de la Congrégation de France” [“Ao meu irmão, o R.P. Marc-François
Lacan, beneditino da Congregação da França”]911.
Apesar de se declarar ateu, Lacan se casou na Igreja Católica e
mandou batizar os seus filhos. Judith (1941), sua filha, foi matriculada num colégio
religioso e fez a primeira comunhão.
Em 1953 Ŕ ano da cisão do movimento psicanalítico francês e do
célebre “discurso de Roma” Ŕ, Lacan pediu ao seu irmão beneditino que interviesse em
seu favor para que o papa Pio XII o recebesse numa audiência. Supõe-se que Lacan
desejasse conquistar o apoio da Igreja Católica para a recém-fundada Sociedade
Francesa de Psicanálise. Lacan chegou a falar em prestar homenagem ao “Pai comum”.
Marc-François pensou que o irmão tivesse se reconvertido ao catolicismo. Mas o monge

909
Note-se, em todo caso, que “Jacques” também é um nome cristão: ele corresponde, em português, a
“Tiago”. No grupo dos 12 apñstolos de Jesus, havia dois homens com esse nome: um, filho de Zebedeu, o
chamado “Tiago maior”; outro, filho de Alfeu, o “Tiago menor”. “Émile”, por sua vez, era o nome do avô
paterno de Lacan.
910
CERTEAU, Lacan: une éthique de la parole. In: _______, Histoire et psychanalyse, p.259; cf. DOSSE,
Michel de Certeau, p.327.
911
CERTEAU, Lacan: une éthique de la parole. In: _______, Histoire et psychanalyse, p.293 [nota 47].
beneditino não conhecia ninguém na Cúria Romana, e a audiência não foi concedida.
Lacan apelou para a embaixada francesa, mas, mesmo assim, o encontro com o Romano
Pontífice não aconteceu. Lacan visitou, então, a residência de verão do Santo Padre, em
Castel Gandolfo, a fim de assistir a uma audiência geral. Choisy e Leclaire
acompanharam-no.
Nos dias 26 e 27 de setembro de 1953, no Istituto di Psicologia da
Università di Roma [Instituto de Psicologia da Universidade de Roma], realizou-se o
congresso dos psicanalistas de línguas românicas, que incluía também os holandeses.
Lacan ficara encarregado de fazer o relatório teórico do congresso, mas, com a sua
recente saída da Sociedade Psicanalítica de Paris, os membros dessa associação
entenderam que ele estava desobrigado dessa tarefa. Os organizadores italianos do
evento, porém, ofereceram-lhe uma tribuna para falar, e Lacan fez, de forma
improvisada, no dia 26, o famoso “discurso de Roma”. O texto do relatñrio que ele
havia preparado, por sua vez, intitulado “Fonction et champ de la parole et du langage
en psychanalyse” [“Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”], foi
distribuído aos assistentes e tornou-se uma espécie de manifesto da nova associação de
psicanalistas que surgia, a Sociedade Francesa de Psicanálise.
Não falta quem considere esse relatório de Lacan como o texto mais
importante do pensamento psicanalítico francês. Um detalhe, porém, que pode passar
desapercebido é que esse texto está pontilhado de alusões ao âmbito religioso. O “mais
alto trono do mundo”912, a “aporia do cristianismo”913, a “força das igrejas”914, o
“milagre operado pela fala do psicanalista”915, “pregar aos doentes o Evangelho”916, a
“ausência de pontuação na Bíblia”917, o “catecismo analítico”918 Ŕ eis algumas das
expressões que ocorrem no relatório lacaniano. Além disso, direta ou indiretamente,
Lacan faz referência às seguintes passagens bíblicas: “Eles [...] têm ouvidos, mas não
ouvem” (Jr 5,21; cf. Ez 12,2; Mc 8,18)919; “Amarrais fardos pesados e os põem sobre os

912
Cf. LACAN, Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: _______. Escritos, p.239.
913
Cf. LACAN, Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: _______. Escritos, p.265 [nota
22].
914
Cf. LACAN, Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: _______. Escritos, p.285.
915
Cf. LACAN, Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: _______. Escritos, p.307.
916
Cf. LACAN, Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: _______. Escritos, p.307.
917
Cf. LACAN, Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: _______. Escritos, p.315.
918
Cf. LACAN, Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: _______. Escritos, p.316.
919
Cf. LACAN, Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: _______. Escritos, p.255.
ombros dos homens...” (Mt 23,4)920; “Eu sou o princípio, o mesmo que vos falo” (Jo
8,25)921; “No princípio, era o Verbo” (Jo 1,1)922; “E o Verbo se fez carne” (Jo 1,14)923;
e “A pedra que os construtores rejeitaram tornou-se a pedra angular...” (Sl 118/117,22;
cf. Mt 21,42; Mc 12,10; Lc 20,17; At 4,11; Ef 2,20; 1Pd 2,6)924. Talvez não seja exagero
dizer que, se o responsável pelo relatório do congresso fosse Choisy, Beirnaert ou
Dolto, não se ouviriam tantas referências ao tema religioso.
Em “Lacan, envers et contre tout” [“Lacan, a despeito de tudo e de
todos”], publicado em 2011, Roudinesco afirma que a família de Lacan não realizou o
seu desejo de terminar os seus dias na Itália, em Roma ou em Veneza, e de que uma
cerimônia católica fosse realizada por ocasião do seu funeral925. Numa entrevista
concedida à revista “Le Point”, Judith Miller, filha de Lacan, protestou: “Isto é uma
infâmia e ela [Roudinesco] terá que responder. Meu pai perdeu a fé (católica) aos 17
anos. Ele se descrevia como agnóstico...”926.
Como se vê, não há injustiça em dizer que Lacan era ambíguo com
respeito ao catolicismo. E, talvez, essa ambiguidade ajude a explicar o fato de que
tantos católicos tenham ingressado na escola lacaniana. Na segunda metade do século
passado, os católicos que se interessaram por psicanálise Ŕ e, entre eles, não poucos
padres Ŕ preferiram a vertente lacaniana927. Com a cisão do movimento psicanalítico
francês, a Sociedade Psicanalítica de Paris ficou sendo uma associação mais frequentada
por judeus, ao passo que a Sociedade Francesa de Psicanálise e, depois, a Escola
Freudiana de Paris Ŕ ou seja, as escolas lacanianas Ŕ ficaram sendo associações mais

920
Cf. LACAN, Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: _______. Escritos, p.264.
921
Cf. LACAN, Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: _______. Escritos, p.267.
922
Cf. LACAN, Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: _______. Escritos, p.272.
923
Cf. LACAN, Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: _______. Escritos, p.299 [nota
49].
924
Cf. LACAN, Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: _______. Escritos, p.316 [nota
64]. Ver ainda: LACAN, Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: _______. Escritos,
p.279, 310.
925
Cf. ROUDINESCO, Lacan, envers et contre tout, p.175. Em outros livros, Roudinesco dissera que Lacan
sonhou com um funeral catñlico por “galhofa” ou “fanfarronice” (cf. ROUDINESCO, História da
psicanálise na França, v.2, p.739; ROUDINESCO, Jacques Lacan, p.407). Sobre as relações pessoais de
Lacan com o catolicismo, ver: ROUDINESCO; PLON, Dicionário de psicanálise, p.369-370; ROUDINESCO,
História da psicanálise na França, v.2, p.121-122; 280-282; ROUDINESCO, Jacques Lacan, p.23-29, 193,
214-215.
926
BERLINCK, Divãs da discórdia. O globo, 22 out. 2011, Prosa & verso, p.1.
927
Cf. BIRMAN, Mal-estar na atualidade, p.88; HADDAD, O dia em que Lacan me adotou, p.240, 246,
254, 270; LECUIT, L‟anthropologie théologique à la lumière de la psychanalyse, p.17, 372 [nota 3], 479-
481; ROUDINESCO, História da psicanálise na França, v.2, p.224.
ligadas ao catolicismo928. Além da França, a versão lacaniana da psicanálise se difundiu,
sobretudo, na Bélgica, em Portugal, na Espanha, na Itália, na América Latina e no
Japão929. Ou seja, exceção feita ao Japão, em países de tradição católica.
Entre os padres lacanianos, há de se mencionar, de maneira especial,
aqueles que eram membros da Companhia de Jesus, isto é, os jesuítas. Em “Après
Freud” [“Depois de Freud”], de 1968, celebrando o prestígio desfrutado pela
psicanálise, Jean-Bertrand Pontalis (1924) escreveu: “...partout, même chez les prudents
jésuites, on accueille Freud les bras ouverts” [“...por toda parte, mesmo entre os
prudentes jesuítas, Freud é acolhido de braços abertos”]930. Mas foi com Lacan que os
jesuítas Ŕ na verdade, não tão prudentes assim Ŕ aprenderam a ler Freud.
A Escola Freudiana de Paris Ŕ a “escola de Lacan”, fundada em 1964
e dissolvida em 1980 Ŕ chegou a contar, em seus quadros, com nada menos que 12
jesuítas931. Entre eles, estão: Louis Beirnaert, François Roustang, Michel de Certeau,
Daniel Mercadier, Jacques Laberge, François Courel, Philippe Julien e Denis Vasse932.
Na expressão de Miller, os jesuítas se “apaixonaram” por Lacan,
“investiram muito” nele933. “La Société de Jésus misa sur son École” [“A Companhia de
Jesus apostou em sua Escola”]934. Referindo-se aos jesuítas, Miller escreveu:

“...ils décidèrent de peupler l‟École freudienne de Paris, de


Jacques LACAN, ayant compris que c‟etait le bon cheval [...].
Douze jésuites à l‟EFP! [...] Jacques LACAN [...] jouissait d‟une
situation de quasi-monopole sur le jésuite dans la psychanalyse”
[“...eles decidiram povoar a Escola freudiana de Paris, de
Jacques LACAN, tendo compreendido que o cavalo favorito era
aquele [...]. Doze jesuítas na EFP! [...] Jacques LACAN [...]
gozava de uma situação de quase-monopólio sobre o jesuíta na
psicanálise”]935.

928
Cf. HADDAD, O dia em que Lacan me adotou, p.240, 254; ROUDINESCO, História da psicanálise na
França, v.2, p.282-283.
929
Cf. BIRMAN, Freud e os destinos da psicanálise. In: BIRMAN; DAMIÃO, Psicanálise, ofício impossível?,
p.222.
930
PONTALIS, Après Freud, p.26.
931
ROUDINESCO; PLON, Dicionário de psicanálise, p.370.
932
Cumpre observar que Roustang, Mercadier, Laberge e Julien abandonaram a Companhia de Jesus. Por
outro lado, vale também o registro de que, segundo Roudinesco, interessado no apoio da Igreja Católica,
Lacan pressionava os seus discípulos padres a não romperem com a condição presbiteral (cf.
ROUDINESCO, História da psicanálise na França, v.2, p.282).
933
Cf. LINDENBERG, Des jesuítes et des complots. La cause freudienne, n.56, p.56-57.
934
LACAN, Le triomphe de la religion précédé de Discours aux catholiques, contracapa.
935
MILLER, Le neveu de Lacan, p.37; cf. MILLER, Le neveu de Lacan, p.84, 101, 285, 343.
A partir dos anos 80, porém, o cenário se modificou: “Zéro jésuite à
l‟École de la Cause freudienne!” [“Zero jesuíta na Escola da Causa freudiana!”]936,
exclama Miller, lamentando-se. Num debate com Daniel Lindenberg (1940), o genro de
Lacan declarou:

“...j‟ai toujours trouvé vexant de ne pas voir de Jésuite à l‟École


de la Cause freudienne. Cela m‟a inquiété. Lacan, lui, avait dans
son École douze Jésuites, il trustait les Jésuites qui
s‟intéressaient à la psychanalyse, et apparemment, nous avions
été désertés par tous” [“...eu sempre achei humilhante não haver
nenhum jesuíta na Escola da Causa Freudiana. Isso tem me
preocupado. Lacan, ele, tinha doze jesuítas em sua escola, ele
monopolizava os jesuítas que se interessavam por psicanálise, e
aparentemente nñs fomos abandonados por todos”]937.

A verdade é que os jesuítas andaram desaparecendo não apenas do


movimento psicanalítico francês, mas da própria Companhia de Jesus. Seja como for,
tendo em vista o tempo em que Lacan Ŕ qual novo Jesus e os doze apóstolos Ŕ contava
com uma dúzia de jesuítas em sua escola, como explicar o fato de que a corrente
lacaniana de psicanálise tenha conquistado de forma tão dominante a confiança dos
católicos? Seria o lacanismo uma versão católica da psicanálise?
Segundo Roudinesco, duas coisas, principalmente, concorreram para
que os católicos preferissem Lacan. Primeiramente, o fato de que a Sociedade Francesa
de Psicanálise e, depois, a Escola Freudiana de Paris não exigissem que os psicanalistas
fossem médicos. Ora, a grande maioria dos padres desejosos de se tornarem analistas
havia estudado filosofia, teologia e, eventualmente, alguma outra coisa, mas não
medicina938. A Sociedade Psicanalítica de Paris, por sua vez, dificilmente admitia um
não-médico.
Mais importante do que isso, porém, é o fato de que a própria teoria de
Lacan parece mais afeita ao catolicismo do que a psicanálise freudiana stricto sensu. O
sabor filosófico da leitura que Lacan faz de Freud; a linguagem não biológica e não

936
MILLER, Le neveu de Lacan, p.37.
937
LINDENBERG, Des jesuítes et des complots. La cause freudienne, n.56, p.55.
938
Dos oito jesuítas que citamos nominalmente acima, por exemplo, apenas Mercadier e Vasse eram
médicos.
materialista da psicanálise lacaniana; as múltiplas referências de Lacan ao misticismo
cristão; as suas frequentes alusões à técnica de direção de consciência; as ressonâncias
entre os três registros lacanianos e as três pessoas da Santíssima Trindade; a afirmação
da primazia do simbólico, que parece confirmar a precedência do Verbo; a ausência, em
Lacan, de uma crítica demasiado severa das crenças religiosas Ŕ tudo isso certamente
contribuiu para que, com Lacan, os catñlicos se sentissem muito mais “em casa” do que
com Freud. Lacan, diz Roudinesco, “...traduz o discurso freudiano para uma língua
familiar à cultura catñlica”939.
Isso significa que não apenas Jung e, em seguida, Frankl ofereceram-
se aos católicos como alternativa a Freud. Ao seu modo e com sucesso não desprezível,
também Lacan o fez.

A psicanálise como religião

Este estudo localiza-se no campo dos cruzamentos entre a psicanálise


e a religião, e já tivemos a ocasião de cogitar mais de uma relação possível entre as duas
grandezas em jogo. Vale a pena recordá-las, por ordem de entrada: [1] “a religião
influenciou a psicanálise”; [2] “a psicanálise é incompatível com a religião”; [3] “a
psicanálise concorda com a religião”; [4] “a psicanálise apenas purifica a religião”.
Dessas quatro afirmações, a única que admitimos, recorde-se, é a segunda. Há, porém,
mais uma possibilidade, e queremos considerá-la agora, antes de encerrarmos este
capítulo. Em nosso relato histórico da recepção da psicanálise pelo catolicismo, esta tese
apareceu quando mencionamos o livro de Roustang, “Um destino tão funesto”. Trata-se
do seguinte: [5] “a psicanálise é, ela mesma, uma religião”.
No dia 13 de fevereiro de 1910, Freud escreveu a Jung:

“...you mustn‟t regard me as the founder of a religion. My


intentions are not so far reaching. [...] I am not thinking of a
substitute for religion...” [“...você não deve me considerar como

939
ROUDINESCO, História da psicanálise na França, v.2, p.282; cf. ROUDINESCO; PLON, Dicionário de
psicanálise, p.370; ROUDINESCO, História da psicanálise na França, v.2, p.281; ROUDINESCO, Jacques
Lacan, p.215; ver também: CERTEAU, Psychanalyse et histoire. In: _______, Histoire et psychanalyse,
p.103; DOSSE, Michel de Certeau, p.335; LECUIT, L‟anthropologie théologique à la lumière de la
psychanalyse, p.480; ROUSTANG, Un destin si funeste, p.41; ZIZEK, O real da ilusão cristã. In: SAFATLE,
Um limite tenso, p.173.
o fundador de uma religião. As minhas intenções não vão tão
longe. [...] Não estou pensando num substituto para a
religião...”]940.

Numa carta que endereçou a Ferenczi em oito de junho de 1913,


Freud comentou o fato de que, nos Estados Unidos da América, Jung teria dito que a
psicanálise era uma religião, não uma ciência941.
Na “Nova sequência de lições de introdução à psicanálise”, Freud
garantiu que a psicanálise não é nem pretende ser uma Weltanschauung942.
Numa entrevista coletiva concedida em Roma, no dia 29 de outubro
de 1974, Lacan disse esperar que a psicanálise não se torne uma religião943.
Não, nem Freud nem Lacan pretendiam que a psicanálise fosse uma
religião; nada mais distante da psicanálise do que a religião. No entanto, certa vez, o
próprio Freud observou que o marxismo acabou ficando muito parecido com aquilo que
combatia, a religião944. Não se poderia dizer o mesmo da psicanálise? Há, de fato,
semelhanças não desprezíveis entre a psicanálise e a religião.
Embora possa parecer estranho, no movimento psicanalítico, há
“deuses”. Numa carta que escreveu a Pfister em 26 de fevereiro de 1911, Freud fez
referência à “deusa Libido”945; em “O futuro de uma ilusão”, por sua vez, ele falou em
“nosso Deus Λόϒοϛ”946.
Há uma “Sagrada Escritura”. Segundo Haddad, pode-se muito bem
comparar os “Escritos”, de Lacan, a uma Bíblia; aliás, o volume é muito semelhante947.
As obras de Freud, tanto quanto, podem desempenhar o mesmo papel.
Há “dogmas”. O relato é de Jung:

940
MCGUIRE, The Freud/Jung letters, p.137.
941
Cf. FREUD; FERENCZI, Correspondance 1908-1914, p.520.
942
Cf. FREUD, Nouvelle suite des leçons d‟introduction à la psychanalyse. In: _______. Œuvres
complètes, v.19, p.242, 267; ver também: FREUD, Correspondance avec le pasteur Pfister 1909-1939,
p.186.
943
Cf. LACAN, Le triomphe de la religion. In: _______. Le triomphe de la religion précédé de Discours
aux catholiques, p.80.
944
Cf. FREUD, Nouvelle suite des leçons d‟introduction à la psychanalyse. In: _______. Œuvres
complètes, v.19, p.265-266.
945
Cf. FREUD, Correspondance avec le pasteur Pfister 1909-1939, p.86.
946
Cf. FREUD, L‟avenir d‟une illusion. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.195-196.
947
Cf. HADDAD, O dia em que Lacan me adotou, p.86.
“Tenho ainda uma viva lembrança de Freud me dizendo: „Meu
caro Jung, prometa-me nunca abandonar a teoria sexual. É o que
importa, essencialmente! Olhe, devemos fazer dela um dogma,
um baluarte inabalável‟. Ele me dizia isso cheio de ardor, como
um pai que diz ao filho: „Prometa-me uma coisa, meu caro filho:
vá todos os domingos à igreja!‟”948.

Há “papas”. Certa vez, Binswanger perguntou a Freud por que Jung e


Adler, os seus alunos mais antigos e, talvez, mais bem dotados intelectualmente, o
deixaram. Freud respondeu que eles quiseram se tornar papas949.
Há “cardeais”. Em 1912, por iniciativa de Jones, apñs as dissidências
de Adler e Wilhelm Stekel (1868-1940) e durante a crise que terminaria com a defecção
de Jung, foi instituído um comitê secreto, verdadeiro “colégio de cardeais”. Abraham,
Ferenczi, Rank e Hanns Sachs (1881-1947), além de Jones, faziam parte do grupo. Em
1919, Eitingon juntou-se a eles950.
Há “profetas”. Freud chamou Jung de “profeta”951; Jung se referiu a
Freud da mesma maneira952. No Hospital Psiquiátrico de Burghölzli, onde Jung
trabalhava, diziam que Freud era Alá, e Jung, o seu profeta953. Também se comparou
Jung a Jesus, e Freud a João Batista954. Outra possibilidade consiste em ver em Lacan o
profeta de Freud, o seu legítimo “porta-voz”.
Há “missionários”. Freud esperava que Jung promovesse a difusão da
psicanálise para além dos meios judaicos em que ela se encontrava inicialmente
confinada. Na expressão de Fromm, Jung seria uma espécie de “Paulo da nova
religião”955.
Há “heresias”. Numa carta a Pfister, datada de 24 de janeiro de 1919,
Freud descreveu como “heréticas” as opiniões do pastor sobre a constituição e o

948
JUNG, Memórias, sonhos, reflexões, p.136; cf. PALMER, Freud e Jung: sobre a religião, p.24.
949
Cf. BINSWANGER, Souvenirs sur Sigmund Freud. In: _______, Dicours, parcours, et Freud, p.277; cf.
ROAZEN, Freud e seus discípulos, p.281.
950
Cf. ROUDINESCO; PLON, Dicionário de psicanálise, p.122-123.
951
Cf. FREUD, Sigmund. Leçons d‟introduction à la psychanalyse. In: _______. Œuvres complètes, v.14,
p.278; JUNG, Memórias, sonhos, reflexões, p.139.
952
Cf. JUNG, Memórias, sonhos, reflexões, p.151.
953
Cf. DONN, Freud e Jung, p.141.
954
Cf. DONN, Freud e Jung, p.242.
955
Cf. FROMM, Sigmund Freud‟s mission, p.86.
significado da pulsão sexual956. Em sua “Autoapresentação”, Freud se referiu a Adler e
a Jung como os dois “hereges”957.
Há “excomunhões”. A segunda cisão do movimento psicanalítico
francês, ocorrida em 1964, ficou conhecida como a “excomunhão”958. Nessa época, a
Sociedade Francesa de Psicanálise negociava a sua filiação à Associação Internacional
de Psicanálise. Esta última estava disposta a conceder o reconhecimento solicitado,
desde que Lacan fosse excluído Ŕ ou “excomungado” Ŕ do quadro dos analistas didatas.
Com a cisão subsequente, Lacan fundou a sua própria sociedade, a Escola Freudiana de
Paris.
Há “catñlicos” e “protestantes”. Pode-se comparar a Associação
Internacional de Psicanálise à Igreja Católica e os lacanianos aos protestantes959. De
fato, a primeira, fundada pelo próprio Freud, tem um caráter oficial; o cisma lacaniano,
por sua vez, resultou numa verdadeira pulverização do movimento psicanalítico.
Há Weltanschauung. Apesar de Freud, do que Freud escreveu, a teoria
psicanalítica pode perfeitamente funcionar como uma visão globalizante. Segundo
Roustang, há psicanalistas que só entendem de psicanálise; para eles, a psicanálise é
tudo, um discurso totalizante, análogo ao discurso religioso960.
Essa lista poderia ser aumentada: no movimento psicanalítico, há
também oráculos, anátemas, conversões, noviços, liturgia, moral, hierarquia,
intolerância etc.961 Mas o que dissemos já basta. Não parece haver nenhuma

956
Cf. FREUD, Correspondance avec le pasteur Pfister 1909-1939, p.109.
957
Cf. FREUD, “Autoprésentation”. In: _______. Œuvres complètes, v.17, p.100.
958
Cf. LACAN, Le séminaire, livre 11, p.9; ROUDINESCO, História da psicanálise na França, v.2, p.381-
392; ROUDINESCO, Jacques Lacan, p.308, 317.
959
Cf. HADDAD, O dia em que Lacan me adotou, p.83-84; LACAN, A ciência e a verdade. In: _______.
Escritos, p.891.
960
Cf. ROUSTANG, Un destin si funeste, p.45-46.
961
Sobre a psicanálise como religião, pode-se consultar: ALLERS, The successful error, p.186-187;
ANCONA, Il debito della chiesa alla psicoanalisi, p.21; AVIS, A hermeneutic of suspicion: Sigmund
Freud. In: _______, Faith in the fires of criticism, p.69; BALMARY, Le sacrifice interdit, p.74; BALMARY,
O monge e a psicanalista, p.41; BELLET, Foi et psychanalyse, p.120-121; BENKÖ, Psicologia da religião,
p.39; BIRMAN, Arquivos do mal-estar e da resistência, p.29-31; BIRMAN, Desatar com atos. In: _______,
Percursos na história da psicanálise, p.206; BIRMAN, Desejo e promessa, encontro impossível. In:
MOURA, Hélio Pellegrino. A-Deus, p.141-142; BIRMAN, Estilo e modernidade em psicanálise, p.99, 145-
146, 165, 181-185; BIRMAN, Finitude e interminabilidade do processo psicanalítico. In: BIRMAN; NICÉAS,
Análise com fim ou sem fim?, p.29-30; BIRMAN, Freud e a experiência psicanalítica, p.31-38, 70, 100,
102, 105, 120-121, 128-129; BIRMAN, Freud e a interpretação psicanalítica, p.14, 207; BIRMAN, Mal-
estar na atualidade, p.19-21, 111-115; BIRMAN, Psicanálise, ciência e cultura, p.110, 120-121, 155-160;
BIRMAN, Sobre a correspondência de Freud com o pastor Pfister. Religião e sociedade, n.11/2, p.37;
CARBALLO, Psicoanálisis y religión. In: PLÉ, Freud y la religión, p.4, 6, 55; DANSEREAU, Freud et
l‟athéisme, p.38; DOMÍNGUEZ MORANO, Creer después de Freud, p.11; DOMÍNGUEZ MORANO, El
impropriedade em afirmar que a psicanálise, muitas vezes, tem funcionado como uma
religião.
Talvez, isso explique, ademais, o ateísmo de muitos seguidores de
Freud. São ateus porque professam outra espécie de “religião”.
Em “De Man met de Glazen Hoed” [“O homem com o chapéu de
vidro”], de 1973, Ernest Verbeek escreveu: Freud “...no necesitaba una religiñn; era el
fundador de una nueva religiñn, la religiñn atea del psicoanálisis” [“...não necessitava de
uma religião; era o fundador de uma nova religião, a religião ateia da psicanálise”]962.
Os primeiros discípulos de Freud, por sua vez, eram também homens
destituídos de qualquer crença religiosa: “Their religion was the Movement” [“A sua
religião era o Movimento”]963, sugere Fromm. O movimento psicanalítico ocupou,
assim, o lugar da religião na vida deles.

“Here, in the Movement, they found everything Ŕ a dogma, a


ritual, a leader, a hierarchy, the feeling of possessing the truth,
of being superior to the uninitiated...” [“Aqui, no movimento,
eles encontraram tudo Ŕ um dogma, um ritual, um líder, uma
hierarquia, o sentimento de possuir a verdade, de ser superior
aos não iniciados...”]964.

Encontram-se, assim, a segunda e a quinta afirmações sobre as


relações entre a psicanálise e a religião que sugerimos. “A psicanálise é incompatível
com a religião” porque “a psicanálise é, ela mesma, uma religião”.
Isso, com certeza, é uma desfiguração da psicanálise. Mas não deixa
de ser uma possibilidade.
Dito isso, encerramos a nossa jornada pela história da recepção da
psicanálise pelo catolicismo. No próximo capítulo, derradeiro e mais importante

psicoanálisis freudiano de la religion, p.492; DONN, Freud e Jung, p.149, 180; DROGUETT, Desejo de
Deus, p.19; FERREIRA, Caminhos da utopia e da esperança. In: MOURA, Hélio Pellegrino. A-Deus, p.144;
FROMM, Sigmund Freud‟s mission, p.83-94, 105-112; FUKS, Freud e a judeidade, p.145-149; GAY, A
Godless jew, p.18-21, 145; HADDAD, O dia em que Lacan me adotou, p.62, 122, 127, 138, 151, 291, 297;
KÜNG, Freud and the problem of God, p.87; MEZAN, Freud, pensador da cultura, p.264, 271-272, 289;
MOURA, Pecados do capital: pecados capitais. In: MOURA, Hélio Pellegrino. A-Deus, p.27-28; ROAZEN,
Freud e seus discípulos, p.281, 301; ROUSTANG, Un destin si funeste, p.25-27, 31-54, 103.
962
AUPING, El ateísmo de Freud a la luz del psicoanálisis freudiano. In: GRUPO ÉPSIMO, Experiencia de
Dios y psicoanálisis, p.54; cf. AUPING, El ateísmo de Freud a la luz del psicoanálisis freudiano. In:
GRUPO ÉPSIMO, Experiencia de Dios y psicoanálisis, p.55.
963
FROMM, Sigmund Freud‟s mission, p.105.
964
FROMM, Sigmund Freud‟s mission, p.112.
capítulo desta investigação, focalizaremos um aspecto particular do edifício
psicanalítico: a crítica a que Freud submeteu a crença em Deus. Retomaremos, então, a
perspectiva sincrônica e procederemos a uma avaliação crítica da crítica freudiana da
crença religiosa.
CAPÍTULO 4
CRÍTICA DA CRÍTICA FREUDIANA DA CRENÇA RELIGIOSA

Crítica da crítica

Freud sabia perfeitamente que a sua crítica do fenômeno religioso não


ficaria sem resposta, mas estava destinada a despertar as mais vivas reações.
Numa carta a Ferenczi, datada de oito de maio de 1913, referindo-se
ao quarto ensaio de “Totem e tabu”, ele escreveu: “Depuis l‟Interprétation des rêves, je
n‟ai rien écrit avec autant de conviction; je peux donc pressentir le sort de cet essai”
[“Desde a Interpretação dos sonhos, não escrevi nada com tanta convicção; assim, posso
pressentir a sorte desse ensaio”]965. Cinco dias depois, acrescentou:

“Depuis l‟Interpr.[étation] des r.[êves] [...], je n‟ai jamais


travaillé à quoi que ce soit avec autant d‟assurance et
d‟exaltation. L‟accueil sera à la mesure: une tempête
d‟indignation, à l‟exception de mes fidèles les plus proches”
[“Desde a Interpr.[etação] dos s.[onhos] [...], não trabalhei no
que quer que seja com tanta segurança e exaltação. A recepção
será proporcional: uma tempestade de indignação, com exceção
de meus seguidores mais prñximos”]966.

No dia primeiro de julho do mesmo ano, correspondendo-se com


Abraham, Freud previu “duros ataques” contra “Totem e tabu”, garantindo, porém, que
isso não o perturbaria967.
No corpo mesmo de “Totem e tabu”, Freud previu “resistências
afetivas” contra a sua obra, afirmando que elas precisariam ser superadas para que a
importância da sua hipótese sobre a origem da religião fosse reconhecida968.
Também no corpo de “O futuro de uma ilusão”, Freud previu reações
contrárias ao seu trabalho, acrescentado, porém, que já estava acostumado969.
Numa carta que endereçou a Richard Dyer-Bennett, em nove de
dezembro de 1928, Freud observou: “Mon Avenir d‟une illusion ne m‟a guère valu que
965
FREUD; FERENCZI, Correspondance 1908-1914, p.511.
966
FREUD; FERENCZI, Correspondance 1908-1914, p.514.
967
Cf. FREUD; ABRAHAM, Correspondance complète 1907-1925, p.239.
968
Cf. FREUD, Totem et tabou. In: _______. Œuvres complètes, v.11, p.378 [nota 1].
969
Cf. FREUD, L‟avenir d‟une illusion. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.177.
des désaveux et souvent même des protestations indignées” [“Meu Futuro de uma
ilusão não me trouxe senão desaprovações e, frequentemente, mesmo protestos
indignados”]970.
Escrevendo a Jones, em três de março de 1936, Freud disse que, caso
fosse publicado, o seu livro sobre Moisés “despertaria considerável polêmica”971.
Numa carta ao seu filho Ernst, datada de 17 de janeiro de 1938,
referindo-se ao mesmo trabalho, Freud escreveu: “...je ne m‟attends pas à être accueilli
avec beaucoup d‟amabilité par la critique scientifique. Les juifs se sentiront très
offensès” [“...eu não espero ser acolhido com muita amabilidade pela crítica científica.
Os judeus sentir-se-ão muito ofendidos”]972.
Correspondendo-se com Singer, no dia 31 de outubro do mesmo ano,
Freud admitiu que as conclusões do seu livro sobre o monoteísmo mosaico poderiam
ofender os judeus, mas não se mostrou disposto a abrir mão de publicá-lo por causa
disso. Argumentou:

“...qu‟y puis-je? J‟ai passé toute ma longue vie à défendre ce


que je considérais comme la vérité scientifique, même quand la
chose était gênante et désagréable por mon prochain. Je ne puis
la terminer par un acte de reniement” [“...o que posso fazer?
Passei toda a minha longa vida defendendo o que eu considerava
como sendo a verdade científica, ainda quando a coisa era
incômoda e desagradável para o meu próximo. Eu não posso
terminá-la com um ato de desmentido”]973.

Por fim, numa carta inédita do final dos anos 30, Freud se disse
preparado para uma “investida furiosa” dos judeus contra a sua obra “O homem Moisés
e a religião monoteísta”974.
Sim, Freud tinha toda a razão; ele não se enganou em suas previsões.
As críticas, de fato, vieram, e o fizeram “aos borbotões”. O assunto “Freud e a religião”,
escreveu Jones: “Tem despertado mais controvérsia e condenação do qualquer outro de
seus textos, exceto, talvez, os que tratam de sexualidade”975. E, segundo o parecer de

970
FREUD, Correspondance 1873-1939, p.419.
971
Cf. JONES, A vida e a obra de Sigmund Freud, v.3, p.213.
972
FREUD, Correspondance 1873-1939, p.481.
973
FREUD, Correspondance 1873-1939, p.495.
974
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, El psicoanálisis freudiano de la religión, p.305 [nota 826].
975
JONES, A vida e a obra de Sigmund Freud, v.3, p.345.
Küng: “Nowhere did Freud find less support than for his views on ethnology and
history of religion” [“Em nenhum outro ponto Freud encontrou tão pouco apoio para as
suas concepções quanto em etnologia e histñria da religião”]976.
Como, porém, interpretar essas críticas?
Segundo Freud, a psicanálise é uma disciplina fadada a despertar
resistências. Essas resistências têm uma natureza afetiva, mas tendem a se revestirem de
uma roupagem intelectual, justificando-se racionalmente e dissimulando a sua
verdadeira motivação. O fato, porém, é que as resistências que a psicanálise suscita têm
um valor de confirmação para a mesma psicanálise; ao resistirem, as pessoas estão se
comportando exatamente como a psicanálise esperava que se comportassem977.
Seriam as reações contra a crítica freudiana da religião apenas
resistências emocionais disfarçadas? O próprio Freud sugeriu que sim978. O que dizer,
então, do presente capítulo? Nele, pretendemos proceder a uma apreciação crítica da
crítica freudiana da crença em Deus. Estaria todo ele sob o signo da defesa? Constituir-
se-ia todo ele num monumento à resistência? Não passaria todo ele de uma bela
racionalização?
É preciso, nesta altura, que sejamos honestos o bastante para
admitirmos que a tarefa a que nos propusemos é bastante delicada. É extremamente
difícil julgar com neutralidade a crítica freudiana da religião. Quer isso seja feito por
pessoas religiosas, quer por indivíduos mais identificados ao pensamento de Freud, é
inevitável que fatores de ordem afetiva pesem, em alguma medida, nessa avaliação979.
Portanto, o que se segue corre, sim, o risco de funcionar segundo a lógica da defesa, de
constituir-se em resistência e de configurar-se como racionalização.

976
KÜNG, Freud and the problem of God, p.66.
977
Cf. FREUD, Constructions dans l‟analyse. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.61; FREUD,
Contribution à l‟histoire du mouvement psychanalytique. In: _______. Œuvres complètes, v.12, p.250,
266; FREUD, Court abrégé de psychanalyse. In: _______. Œuvres complètes, v.16, p.344; FREUD, De la
psychanalyse. In: _______. Œuvres complètes, v.10, p.37; FREUD, Les résistances contre la psychanalyse.
In: _______. Œuvres complètes, v.17, p.130, 134; FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In:
_______. Œuvres complètes, v.20, p.145-146; FREUD, Nouvelle suite des leçons d‟introduction à la
psychanalyse. In: _______. Œuvres complètes, v.19, p.222.
978
Cf. FREUD, Court abrégé de psychanalyse. In: _______. Œuvres complètes, v.16, p.351; FREUD, Totem
et tabou. In: _______. Œuvres complètes, v.11, p.378 [nota 1]; ver também: REIK, Trente ans avec Freud,
p.58.
979
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, Creer después de Freud, p.80; DOMÍNGUEZ MORANO, El psicoanálisis
freudiano de la religión, p.465; LECUIT, L‟anthropologie théologique à la lumière de la psychanalyse,
p.366, 376.
Mas não nos parece razoável interpretar dessa maneira toda reação
contra as ideias de Freud. De fato, nem toda objeção contra a psicanálise é defensiva;
nem toda opinião contrária pode ser taxada de resistência; nem todo argumento contra
Freud é pura racionalização980. Ou seja, nem sempre a crítica confirma o criticado. Se
toda crítica contra a psicanálise fosse tratada dessa maneira, a psicanálise tornar-se-ia
uma disciplina “blindada”, inatacável, um dogma, que desqualifica as críticas que
recebe transformando-as em argumentos em seu próprio favor.
O conceito de resistência não pode, pois, ser usado de modo a desviar
a discussão do mérito do caso. Dediquemo-nos, então, a isto: ao mérito do caso. E que o
leitor julgue em que medida as nossas conclusões estão ou não determinadas pelos
nossos afetos.
Cumpre-nos ainda dizer, desde já, que, ao criticar a crítica freudiana
da crença religiosa, não pretendemos, de forma alguma, rejeitá-la como um todo.
Naturalmente, também não estamos dispostos a admiti-la sem reservas. Para dizê-lo
com Ricœur:

“...il faut refuser l‟alternative de deux platitudes: celle de


l‟apologète, qui rejetterait en bloc l‟iconoclasme freudien, celle
de l‟éclectique, qui juxtaposerait l‟iconoclasme de la religion et
la symbolique de la foi” [“...é preciso recusar a alternativa de
duas banalidades: aquela do apologista, que rejeitaria em bloco
o iconoclasmo freudiano, e aquela do eclético, que justaporia o
iconoclasmo da religião e a simbñlica da fé”]981.

Com efeito, o pensamento de Freud sobre a religião tem “valor” e tem


982
“limites” . Sendo assim, continua Ricœur:

“...je tente de construire le oui et le non que je prononce sur la


psychanalyse de la religion. La foi du croyant ne saurait sortir
intacte de cet affrontement, mais non plus la conception
freudienne...” [“...eu tento construir o sim e o não que eu
pronuncio sobre a psicanálise da religião. A fé do crente não

980
Cf. ALLERS, The successful error, p.viii, 249-252; MEZAN, Freud, pensador da cultura, p.556;
ROAZEN, Freud e seus discípulos, p.326; ROITH, O enigma de Freud, p.23.
981
RICŒUR, De l‟interprétation, p.527.
982
Cf. RICŒUR, De l‟interprétation, p.510; RICŒUR, O ateísmo da psicanálise de Freud. Concilium, n.16,
p.74.
sairá intacta desse enfrentamento, mas não menos a concepção
freudiana...”]983.

Portanto, admissão parcial da crítica freudiana da religião. E,


igualmente, recusa parcial.
Para dizê-lo com Scharfenberg:

“...ni se descartaría a Freud del diálogo, como peligro mortal, ni


se le aceptaría con total ausencia de espíritu crítico, como
„apñstol del amor‟...” [“...nem se descartaria Freud do diálogo,
como perigo mortal, nem se o aceitaria com total ausência de
espírito crítico, como „apñstolo do amor‟...”]984.

Freud não é uma ameaça mortal com a qual não seja possível dialogar;
mas também não é alguém cujo pensamento sobre o fenômeno religioso possa ser
admitido acriticamente. Fazer esse discernimento, eis a nossa tarefa neste capítulo.

Os motivos pessoais do ateísmo de Freud

Antes, porém, de debruçarmo-nos sobre a interpretação freudiana do


fato religioso, há três questões preliminares que dizem respeito ao conjunto dessa crítica
e que precisamos considerar.
A primeira delas é a seguinte: não poucos autores alegaram que Freud
tinha motivos pessoais para não crer em Deus, de modo que o seu pensamento sobre
essa matéria não seria isento, mas estaria comprometido por condicionamentos sofridos
durante a sua infância985. Numa espécie de “virada de mesa”, é como se esses autores
argumentassem: a crítica freudiana da religião é que é uma racionalização do ateísmo
freudiano, tendo este, na verdade, uma origem puramente afetiva. Sendo assim, “Totem
e tabu” e “O futuro de uma ilusão”, por exemplo, teriam mais a dizer sobre a pessoa de

983
RICŒUR, De l‟interprétation, p.529; cf. RICŒUR, De l‟interprétation, p.511, 527; ver também:
DOMÍNGUEZ MORANO, Creer después de Freud, p.81; POHIER, Au nom du Père..., p.16-18, 21, 23.
984
SCHARFENBERG, Encuentro entre el psicoanálisis y la teología. In: ZAHRNT, Jesús de Nazaret y
Sigmund Freud, p.186.
985
Cf. FRANCO, El psicoanálisis y la experiencia de Dios. In: GRUPO ÉPSIMO, Experiencia de Dios y
psicoanálisis, p.14; RIZZUTO, Por que Freud rejeitou Deus?, p.248; SILVA, O ateísmo de Freud, p.42-43;
VITZ, Sigmund Freud‟s christian unconscious, p.xii; ZILBOORG, Dénégations et affirmations de la foi
religieuse. In: Foi, raison et psychiatrie moderne, p.138-139.
Freud do que sobre aquilo de que pretendem tratar, a religião986. Nas palavras de
Meissner:

“Behind the Freudian argument about religion stands Freud the


man, and behind Freud the man, with his prejudices, beliefs, and
convictions, lurks the shadow of Freud the child” [“Por trás do
argumento freudiano sobre a religião, está Freud, o homem, e,
por trás de Freud, o homem, com os seus preconceitos, crenças e
convicções, espreita a sombra de Freud, a criança”]987.

Essa tese nos interessa porque ela costuma ser apresentada como um
argumento que pretende desqualificar em bloco o pensamento de Freud sobre o
fenômeno religioso. Trata-se de uma boa réplica?
Psicanalisando o criador da psicanálise, fazendo, pois, o “feitiço”
voltar-se contra o “feiticeiro”, ou ainda “operando” o grande “cirurgião” da mente
humana com o seu prñprio “bisturi”988, as hipóteses que foram aventadas dentro desse
quadro interpretativo variam conforme o fator etiológico ao qual se pretendeu atribuir o
ateísmo de Freud: a sua relação com a babá católica, com o irmão mais novo, com o pai
ou com a mãe.
Já tivemos a ocasião de mencionar a babá católica de Freud, Resi
Witteck. Essa mulher, que ameaçou o pequeno Sigmund com o fogo do inferno, foi
demitida e presa por roubo quando Freud tinha algo em torno de dois anos e meio989. Há
quem acredite que a atitude negativa de Freud a respeito da religião possa estar
relacionada ao terror que essa mulher representou para ele990. Também há a
possibilidade de que o súbito desaparecimento da sua adorada Nannie tenha sido
traumático para Freud, explicando, de algum modo, a sua posterior aversão pelas
religiões e, em particular, pelo catolicismo991. Jones, porém, depois de considerar duas

986
Cf. ALONSO, Psicoanálisis y religión. Proyección, v.23, n.101, p.146; DACQUINO, Religiosidad y
psicoanálisis, p.28; WHITE, Deus e a psicanálise, p.90.
987
MEISSNER, Psychoanalysis and religious experience, p.vii; cf. GAY, A Godless jew, p.57.
988
AUPING, El ateísmo de Freud a la luz del psicoanálisis freudiano. In: GRUPO ÉPSIMO, Experiencia de
Dios y psicoanálisis, p.37; RACKER, Sobre la posición de Freud frente a la religión. In: _______.
Psicoanálisis del espíritu, p.41.
989
Cf. MASSON, A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess – 1887-1904,
p.272-273.
990
Cf. DACQUINO, Religiosidad y psicoanálisis, p.26; JONES, A vida e a obra de Sigmund Freud, v.1,
p.32.
991
Cf. GAY, A Godless jew, p.103 [nota 77]; SILVA, O ateísmo de Freud, p.38-45; VITZ, Sigmund Freud‟s
christian unconscious, p.3-8, 22-26 etc.
ou três hipóteses ventiladas, descartou a possibilidade de que o ateísmo de Freud
pudesse ser explicado a partir da sua relação com a babá católica992.
Outro elemento biográfico que pode ter determinado a atitude de
Freud em matéria de religião é a morte do seu irmão mais novo, Julius. Julius nasceu
em outubro de 1857, quando Freud tinha um ano e meio, e morreu seis meses depois.
Na carta que escreveu a Fließ em três de outubro de 1897, Freud admitiu que recebeu o
irmãozinho com “desejos hostis” e “ciúme”, tendo a sua morte deixado atrás de si “o
germe das |auto-|recriminações”993. Com base nisso, há quem argumente que Freud teria
cometido o assassinato psicológico do irmão, sentindo-se culpado por sua morte e
passando a temer o dia do juízo994.
Note-se, a propósito, que a primeira possibilidade não exclui a
segunda. Conjugando as duas hipóteses acima levantadas, alguns autores sugeriram que
a origem do ateísmo de Freud talvez residisse nas duas catástrofes que lhe sobrevieram
na infância: a morte de Julius, de quem ele não gostava e cuja morte o deixou com
remorsos, e a perda do seu primeiro grande amor, a sua babá católica, que desapareceu
para sempre ao ser presa por furto995.
Explorando uma outra possibilidade, Heinrich Racker (1910-1961)
sugeriu que a origem do ateísmo de Freud pudesse ser encontrada na sua relação com o
próprio pai. A hipótese de Racker supõe o seguinte encadeamento de fatos: Freud foi
abertamente o filho predileto da sua mãe. Essa preferência teve, para ele, o valor de uma
vitória sobre o seu pai. Em decorrência disso, Freud sentiu-se culpado, passando a
sofrer angústia de castração e a sentir a necessidade de oferecer uma reparação. Freud
idealizou, então, a imago paterna e submeteu-se a essa imagem engrandecida do pai.
Mas, em seguida, revoltou-se contra essa submissão, que, afinal, o colocava numa

992
Cf. JONES, A vida e a obra de Sigmund Freud, v.3, p.345-346.
993
Cf. MASSON, A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess – 1887-1904,
p.269.
994
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, Creer después de Freud, p.80; DOMÍNGUEZ MORANO, El psicoanálisis
freudiano de la religión, p.439 [nota 60]; JONES, A vida e a obra de Sigmund Freud, v.1, p.20-21; JONES,
A vida e a obra de Sigmund Freud, v.2, p.155; PFRIMMER, Freud, leitor da Bíblia, p.45, 47-51, 53, 56-57
etc.
995
Cf. DANSEREAU, Freud et l‟athéisme, p.21-28; ZILBOORG, Psicanálise e religião, p.151-154, 215-218,
254, 258-259.
posição feminina, homossexual. A negação freudiana da existência de Deus seria, pois,
uma expressão da sua revolta contra o pai996. Engenhoso, não?
A mais sofisticada, porém, de todas as tentativas de explicar o ateísmo
de Freud a partir de razões pessoais é aquela construída por Rizzuto em “Why did Freud
reject God?” [“Por que Freud rejeitou Deus?], de 1998. Segundo essa autora, além do
contato com o pai, tão valorizado por Freud, também a relação com a mãe é
fundamental para a geração da imagem de Deus. A figura materna é, na verdade, a base
a partir da qual a criança desenvolve a sua primeira representação de Deus, que, por sua
vez, fica sujeita a ulteriores transformações.
Ora, Freud teve duas figuras maternas. A primeira delas foi a sua
babá, Resi Wittek. Essa mulher teria sido o seu primeiro grande amor. Com ela, Freud
estabeleceu um profundo vínculo libidinal. Por outro lado, ele não parece ter constituído
um vínculo afetivo forte com a sua mãe, havendo, isto sim, um distanciamento
emocional entre os dois. A mãe de Freud apenas surgiu em sua percepção edipiana
posteriormente, depois do desaparecimento da sua babá.
Segundo Rizzuto, a mãe de Freud, Amalie Nathansohn Freud, era uma
mulher de personalidade forte, dominadora, possessiva, voluntariosa, tirânica, belicosa e
narcisista. Na família, Amalie desempenhou o papel de uma verdadeira matriarca; era o
membro dominante do casal, aquela que carregava o fardo da família, podendo-se
imaginar que ela inspirasse em Freud um verdadeiro terror.
Quanto Freud tinha dois anos e meio, a sua babá, acusada de roubo,
foi demitida e encarcerada. Esse repentino desaparecimento da sua ama o deixou
completamente desamparado. Assim, subitamente privado do seu primeiro amor, o
pequeno Sigmund se voltou para o seu pai, em busca de proteção e consolo.
No entanto, o seu pai não tardou em desapontá-lo. A incapacidade de
Jacob de garantir condições de vida dignas para a família; a desastrosa mudança de
Freiberg para um gueto judeu de Viena, onde passaram a viver na pobreza; o
nascimento das novas crianças, que Freud atribuía ao seu pai; a afirmação feita por

996
Cf. RACKER, Sobre la posición de Freud frente a la religión. In: _______. Psicoanálisis del espíritu,
p.50-51, 55, 69-72; ver também: AUPING, El ateísmo de Freud a la luz del psicoanálisis freudiano. In:
GRUPO ÉPSIMO, Experiencia de Dios y psicoanálisis, p.41-46; BEUCHOT, Psicoanálisis y experiencia
religiosa. In: GRUPO ÉPSIMO, Experiencia de Dios y psicoanálisis, p.31-34; DACQUINO, Religiosidad y
psicoanálisis, p.26-27; FRANCO, El psicoanálisis y la experiencia de Dios. In: GRUPO ÉPSIMO,
Experiencia de Dios y psicoanálisis, p.14.
Jacob, quando Freud contava sete ou oito anos, de que ele não viria a ser ninguém; a
falta de heroísmo do pai quando humilhado por um cristão Ŕ tudo isso contribuiu para
que o pequeno Sigmund perdesse toda a admiração pelo próprio pai.
Decepcionado, conclui Rizzuto, Freud “...não tinha um pai para
idealizar ou „elevar‟ a Deus. [...] Ele estava sozinho no mundo...” 997. Ou seja: “...não
havia nada que valesse a pena revivificar entre seus primeiros objetos, nada que pudesse
ser transformado em uma representação de Deus que oferecesse consolo e proteção. A
única escolha psíquica de Freud era a que ele fez: ele ficou „sem Deus‟”998.
O ateísmo de Freud foi, portanto, o resultado do “...fracasso de todos
os objetos primários de Freud: sua mãe, sua ama e seu pai. [...] As experiências de vida
de Freud não lhe proporcionaram as condições psíquicas para a crença em Deus” 999. Por
conseguinte, restava-lhe apenas uma alternativa: admitir que estava só, desprotegido.
Uma peça particularmente curiosa na construção de Rizzuto é a
relação que ela estabelece entre o pai de Freud, a Bíblia de Philippson e a coleção de
antiguidades que Freud iniciou logo após a morte de Jacob.
Freud ficou profundamente abalado pela morte do seu pai. O
desaparecimento de Jacob levou-o a reviver o sentimento de desamparo que ele
experimentara quando da separação da sua babá. Naquela ocasião, Freud havia se
voltado para o seu pai. Agora, pela primeira vez, ele estava sozinho com a sua mãe, e já
sabemos que sentimentos ela despertava nele.
Menos de três semanas após a morte do seu pai, Freud se mudou para
um novo consultório e o decorou com peças de gesso de estátuas florentinas. As peças
produziram um efeito tranquilizador sobre ele. Começava, assim, uma coleção que
Freud cultivaria pelo resto da sua vida. Para Rizzuto, essa coleção tem a ver com Jacob.
Aos sete anos de idade, Freud foi iniciado pelo seu pai na leitura das
Escrituras a partir de um exemplar da Bíblia de Philippson. Quando Freud completou 35
anos, Jacob o presenteou com essa Bíblia. A semelhança entre as peças da coleção
arqueológica de Freud e as ilustrações contidas nessa edição das Escrituras é espantosa.
Com base nisso, Rizzuto sugere que, desamparado após a morte do seu pai, Freud
“...inconscientemente trouxe Jakob de volta, reproduzindo em sua coleção as ilustrações

997
RIZZUTO, Por que Freud rejeitou Deus?, p.234.
998
RIZZUTO, Por que Freud rejeitou Deus?, p.238.
999
RIZZUTO, Por que Freud rejeitou Deus?, p.253.
que eles haviam visto juntos na Bíblia de Philippson. [...] Freud satisfez sua necessidade
da presença do pai colecionando antiguidades”1000.
As peças da coleção de Freud seriam, pois, o equivalente a objetos
transicionais Ŕ isto é, objetos transicionais apropriados à idade de Freud quando iniciou
a coleção. Mais do que isso, elas ofereciam a Freud o que a religião costuma
proporcionar aos crentes: o conforto da presença do pai. Ou seja, as antiguidades que
Freud passou a colecionar “...evocavam a proteção psíquica do pai. Tal presença
psíquica tornou-se para Freud o substituto da proteção oferecida pela religião”1001. Isso
significa que, embora Freud tenha rejeitado Deus e a religião para “se libertar do
vínculo com o pai”, a seu prñprio modo, ele “...também se agarrou firmemente à
presença do pai”1002.
Rizzuto conclui que as teorias de Freud sobre a religião “...podem ser
lidas como uma psicobiografia não propositada de sua transformação particular e
impremeditada em um „judeu sem Deus‟”1003.
Não vamos entrar, aqui, no mérito de todas essas hipóteses. Queremos
apenas responder a uma pergunta. Ainda que todas essas especulações sejam
procedentes Ŕ o que nos parece muito discutível Ŕ, está, com isso, devidamente tratado o
pensamento de Freud sobre o fato religioso? Não, absolutamente.
É verdade que, entre os autores que acreditam que Freud tinha
motivos pessoais para não crer em Deus, há aqueles que reconhecem que essa
constatação não desmerece a crítica freudiana da religião1004. Mas há também aqueles
que consideram a explicitação desses condicionamentos como uma réplica ao
pensamento de Freud sobre a matéria em questão. Ora, desqualificar a interpretação
freudiana do fato religioso a partir dos elementos biográficos que pesaram sobre ela é
um procedimento inaceitável.

1000
RIZZUTO, Por que Freud rejeitou Deus?, p.244; cf. RIZZUTO, Por que Freud rejeitou Deus?, p.93,
109.
1001
RIZZUTO, Por que Freud rejeitou Deus?, p.245.
1002
RIZZUTO, Por que Freud rejeitou Deus?, p.246.
1003
RIZZUTO, Por que Freud rejeitou Deus?, p.255.
1004
Cf. DANSEREAU, Freud et l‟athéisme, p.37-38; MEISSNER, Psychoanalysis and religious experience,
p.viii, 56-57; RACKER, Sobre la posición de Freud frente a la religión. In: _______. Psicoanálisis del
espíritu, p.69.
Primeiramente, porque é um reducionismo psicológico, um
psicologismo. A teoria da religião de Freud diz algo sobre o seu autor, é verdade. Mas,
com certeza, diz muito mais sobre o fato religioso como tal1005.
Em segundo lugar, porque se trata de um argumento ad hominem, que
desqualifica o autor da ideia, ao invés de enfrentar a ideia em questão. A análise da
pessoa de Freud pode ajudar a compreender o seu ateísmo, mas deixa intocada a sua
interpretação do fato religioso. Freud apresenta argumentos racionais contra a fé e as
crenças religiosas. Apontar para as razões pessoais que ele teria para não crer em Deus é
esquivar-se da discussão.
Em terceiro lugar, porque, mesmo que a atitude anti-religiosa de Freud
estivesse inteiramente condicionada por motivos de ordem pessoal, há de se levar em
conta que os eventuais conflitos psíquicos de que padecem os intelectuais não resultam
forçosamente em teorias equivocadas. Ou seja, Freud poderia perfeitamente ter motivos
pessoais para não crer em Deus e, não obstante, estar inteiramente correto em suas
posições a respeito da religião1006.
Portanto, segundo o nosso parecer, as explicações biográficas do
ateísmo de Freud não se constituem num tratamento adequado da interpretação
freudiana do fenômeno religioso1007. Pode-se até admitir que o pensamento de Freud
sobre essa matéria reflete a sua subjetividade. Não obstante, ele deve ser tomado
objetivamente. A crítica freudiana da religião não pode, pois, ser descartada sem mais.
Ela reclama Ŕ e merece Ŕ ser levada a sério. Apreciá-la, dialogar com ela, criticá-la, eis
o que pretendemos neste capítulo.

O conhecimento que Freud tinha do catolicismo

A segunda questão que precisamos considerar preliminarmente, antes


de avaliarmos a interpretação freudiana do fenômeno religioso, é o problema do grau de

1005
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, Creer después de Freud, p.83, 88; DOMÍNGUEZ MORANO, El psicoanálisis
freudiano de la religion, p.438, 443-444, 446, 467, 474; DOMÍNGUEZ MORANO, Teología y psicoanálisis,
p.28, 37.
1006
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, El psicoanálisis freudiano de la religion, p.438; JAMES, The varieties of
religious experience, p.28.
1007
Cf. BEIRNAERT, Aux frontières de l‟acte analytique, p.50; BIRMAN, Freud e a experiência
psicanalítica, p.45; DOMÍNGUEZ MORANO, Psicoanálisis y religión: diálogo interminable, p.145-146;
PALMER, Freud e Jung: sobre a religião, p.17, 22.
conhecimento a respeito das religiões, de um modo geral, e do catolicismo, em
particular, de que Freud dispunha. Para criticar com propriedade uma realidade
qualquer, é preciso conhecê-la com profundidade. Freud entendia de religião? Estava
bem informado sobre o catolicismo?
Alguns autores julgam que sim1008. Da nossa parte, porém, sentimo-
nos inclinados a estimar como mediano o conhecimento que Freud tinha sobre religião Ŕ
nomeadamente, sobre o catolicismo. Esse julgamento tem por base alguns indicadores.
Um deles é o interlocutor imaginário de Freud em “O futuro de uma ilusão”.
Como se sabe, em seu livro de 1927, Freud lançou mão de um
conhecido recurso retórico: criou, para si mesmo, a partir do início do capítulo quarto,
um oponente fictício1009. Há quem tenha visto, nessa figura, o pastor Pfister1010; outros
julgaram que esse personagem representava Jung1011; outros ainda viram aí
Binswanger1012.
Pfister é, sem dúvida, o mais votado. Mas não vamos entrar nessa
discussão. O que nos interessa, aqui, é que, ao forjar um interlocutor contrário a si
mesmo, Freud se viu obrigado a fazer um esforço de abstração e imaginar o que diria
uma pessoa que defende a religião. Dessa maneira, ele nos ofereceu uma imagem
bastante precisa do quanto ele mesmo conhecia da posição que lhe era oposta. Noutras
palavras, o oponente de Freud em “O futuro de uma ilusão” é a personificação dos
conhecimentos que ele tinha sobre religião.
Coloca-se, então, a pergunta: o que dizer do adversário que Freud
fabricou para si mesmo? É bom? Entende da matéria? Sabe mesmo do que está falando?
Defende a religião com propriedade? Faz boa figura como representante dos que têm
fé?
Para Vaca, o interlocutor forjado por Freud levanta apenas aquelas
objeções que convém ao próprio Freud1013. Na opinião de Plé, o oponente que Freud

1008
Cf. FUKS, Freud e a judeidade, p.33; GANTHERET, Préface. In: FREUD, Totem et tabou, p.33 [nota 2];
JONES, A vida e a obra de Sigmund Freud, v.3, p.346.
1009
Cf. FREUD, L‟avenir d‟une illusion. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.161.
1010
Cf. MEISSNER, Psychoanalysis and religious experience, p.64, 73, 82; MEZAN, Freud, pensador da
cultura, p.514, 599; MIJOLLA-MELLOR, A necessidade de crer, p.34, 89; ROUDINESCO; PLON, Dicionário
de psicanálise, p.287; WONDRACEK, Freud, Pfister e suas ilusões. In: _______, O futuro e a ilusão, p.168;
WONDRACEK, O amor e seus destinos, p.45.
1011
Cf. ROAZEN, Freud: pensamento político e social, p.107.
1012
Cf. PARSONS, The enigma of the oceanic feeling, p.167.
1013
Cf. VACA, Psicoanálisis y dirección espiritual, p.438.
inventou para si mesmo é fraco, de modo que Freud acabe triunfando sobre ele com
certa facilidade1014. Domínguez, por sua vez, descreve o interlocutor de Freud em “O
futuro de uma ilusão” como “mal informado”1015. Segundo Reik Ŕ o próprio Reik! Ŕ, o
oponente que Freud arranjou para si poderia ser melhor:

“L‟adversaire aurait pu soulever des objections et des questions


plus puissantes. Freud aurait pu choisir un adversaire plus
judicieux...” [“O adversário poderia ter levantado objeções e
questões mais poderosas. Freud poderia ter escolhido um
adversário mais inteligente...”]1016.

Falando de uma forma geral, Vergote descreve “O futuro de uma


ilusão” como um livro mais “popular” do que “profundo”1017. Silva, por seu turno,
considera a mesma obra o livro “mais fraco” de Freud1018. Aliás, já tivemos a
oportunidade de registrar que o próprio Freud não tinha um conceito muito elevado
desse trabalho.
O fato é que Freud, como vimos, era avesso ao fenômeno religioso,
alimentando uma especial hostilidade contra o catolicismo. Assim, ele encarava o
assunto com preconceito, não com simpatia1019. Ora, pode alguém conhecer o que não
ama? Para conhecer bem, é preciso amar; dificilmente se conhece com profundidade
algo que, de saída, se hostiliza. A aversão de Freud pela Igreja Católica, em particular,
deve, pois, tê-lo impedido de informar-se com mais cuidado sobre o catolicismo1020.
Pfrimmer observa que os conhecimentos bíblicos de que Freud
dispunha eram limitados, apresentando lacunas e dando mostras de uma falta de
familiaridade com certas passagens das Escrituras1021. Na opinião de alguns autores,
Freud tinha um conhecimento reduzido sobre o judaísmo1022. Vergote considera que

1014
Cf. PLÉ, Freud et la religion, p.26, 56.
1015
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, El psicoanálisis freudiano de la religión, p.246.
1016
REIK, Trente ans avec Freud, p.55; cf. DOMÍNGUEZ MORANO, Psicoanálisis y religión: diálogo
interminable, p.99 [nota 124].
1017
Cf. VERGOTE, Necessidade e desejo da religião na ótica da psicologia. In: PAIVA, Necessidade e
desejo, p.16.
1018
Cf. SILVA, O ateísmo de Freud, p.34.
1019
Cf. MEISSNER, Psychoanalysis and religious experience, p.7; PLÉ, Freud et la religion, p.53.
1020
Cf. PLÉ, Freud et la religion, p.59-60, 98.
1021
Cf. PFRIMMER, Freud, leitor da Bíblia, p.227-228.
1022
Cf. CARVALHO, A “cura pelo espírito”. In: FRANÇA, Freud, a cultura judaica e a modernidade, p.71;
CHEMOUNI, Freud e o sionismo, p.62, 122; ROBERT, D‟Œdipe à Moïse, p.68; RUBENSTEIN, L‟imagination
religieuse, p.76-77. Reik, por exemplo, parecia mais bem informado sobre as tradições judaicas do que
Freud dominava insuficientemente a teologia judaico-cristã1023. Vitz nota que Freud
parece não ter lido muitos autores religiosos1024. Zilboorg, por sua vez, comentou:

“A gente procurará em vão uma referência de Freud aos muitos


crentes genuínos como S. Inácio de Loiola, São Francisco de
Sales ou S. João da Cruz. Parece que Freud, o pesquisador audaz
porém cuidadoso, estudou pouco ou que deu mostras de ter
estudado pouco os escritos e a psicologia dos grandes homens
da Igreja, dos profetas e do salmista”1025.

Pfrimmer fez um levantamento do número de livros sobre a história


das religiões, a Bíblia, o judaísmo e o cristianismo que podem ser encontrados na
biblioteca de Freud. Há apenas oito volumes sobre cristianismo1026. Não é muito; aliás,
é pouco, muito pouco.
Acrescente-se ainda que Freud teve escassa experiência clínica com
pacientes praticantes de alguma religião. Os seus pacientes eram, em sua maior parte,
judeus não praticantes. Não se pode, pois, afirmar que a interpretação freudiana da
religião esteja avalizada por uma extensa experiência clínica com pessoas religiosas1027.
Resulta de tudo isso que, segundo alguns autores, ao criticar a religião,
Freud traça-lhe um retrato distorcido, desfigurado, caricatural1028. Diz Vergote:

“Malheureusement, Freud ne porte pas autant d‟attention


vigilante aux phénomènes religieux qu‟au discours de ses

Freud. Reik foi um especialista em psicanálise da religião. Publicou três grandes obras, todas elas,
coletâneas de conferências várias, anteriormente proferidas: “Probleme der Religionspsychologie”
[“Problemas de psicologia da religião”] (1919) Ŕ que, na segunda edição, de 1928, revista e aumentada,
veio a lume sob o título “Das ritual: psychoanalytic studien” [“Ritual: estudos psicanalíticos”] Ŕ, “Der
eigene und der fremde Gott” [“O Deus prñprio e o Deus alheio”] (1923) e “Dogma und Zwangsidee”
[“Dogma e compulsão”] (1927). Reik se debruçou, de uma forma particular, sobre o judaísmo. O seu
ponto de partida foi sempre o pensamento de Freud, especialmente, “Totem e tabu”; e a sua chave de
leitura do fenômeno religioso foi preferencialmente o modelo fornecido pela neurose obsessiva. Os
escritos de Reik sobre religião dão mostras de que ele não apenas entendia de psicanálise, mas conhecia a
fundo o objeto ao qual se propusera a aplicá-la: a religião. Os trabalhos de Reik não têm, contudo, nem de
longe, a mesma genialidade de Freud.
1023
Cf. VERGOTE, Psychologie religieuse, p.196.
1024
Cf. VITZ, Sigmund Freud‟s christian unconscious, p.213, 215.
1025
ZILBOORG, Psicanálise e religião, p.237; ver também: LECUIT, L‟anthropologie théologique à la
lumière de la psychanalyse, p.433 [nota 2].
1026
Cf. PFRIMMER, Freud, leitor da Bíblia, p.303.
1027
Cf. AVIS, A hermeneutic of suspicion: Sigmund Freud. In: _______, Faith in the fires of criticism,
p.66-67; VITZ, Sigmund Freud‟s christian unconscious, p.210-215.
1028
Cf. CENCILLO, Aportaciones de Freud al cristianismo. In: ZAHRNT, Jesús de Nazaret y Sigmund
Freud, p.361; MEISSNER, Psychoanalysis and religious experience, p.92.
patients. Loin de là! Alors qu‟il prend grand soin d‟étayer ses
principes théoriques sur des expériences rigoureusement
observées, ses références à la religion sont effrontément
lacuneuses” [“Infelizmente, Freud não presta aos fenômenos
religiosos a mesma atenção vigilante que dispensa ao discurso
de seus pacientes. Longe disso! Enquanto que ele toma grande
cuidado de estabelecer seus princípios teóricos sobre
experiências rigorosamente observadas, suas referências à
religião são impudentemente deficientes”]1029.

O/A leitor/a dirá, talvez, que, com isso, estamos desmentindo o que
dissemos no capítulo primeiro desta tese. Não nos parece que seja assim. No começo
desta pesquisa, argumentamos que Freud sabia mais de religião do que o que o seu
propalado ateísmo poderia fazer crer. Agora, estamos ajuntando que, de outra parte, ele
sabia menos sobre a matéria do que conviria a um crítico do assunto.
Gostaríamos, porém, de ilustrar de uma forma mais pontual a tese que
estamos defendendo nesta seção. Nos escritos de Freud, há alguns acentos que causam
estranheza, algumas observações que denotam desinformação e mesmo algumas
afirmações sobre as quais tudo o que se pode dizer é que são errôneas.
Exemplifiquemos.
Como se sabe, para o judaísmo e, por extensão, mesmo para o
cristianismo, o “pai” dos crentes é Abraão. Aliás, na língua hebraica, “Abraão” significa
justamente “pai da multidão”1030. Moisés, por sua vez, é o libertador e o legislador,
aquele que liderou a libertação do povo hebreu da escravidão no Egito e aquele por
intermédio de quem Iahweh fez o dom da Lei aos israelitas. Na Escritura, não se fala em
qualquer descendência começada com Moisés1031.
Freud, porém, estranhamente, ignora Abraão. A rigor, ele o menciona
apenas em três ocasiões1032: numa carta a Jung de 27 de agosto de 19071033; no caso do
“Homem dos Lobos” Ŕ mas, aí, a citação é do paciente1034 Ŕ; e, de passagem, em “O

1029
LECUIT, L‟anthropologie théologique à la lumière de la psychanalyse, p.431-432; cf. CENCILLO,
Aportaciones de Freud al cristianismo. In: ZAHRNT, Jesús de Nazaret y Sigmund Freud, p.366; LECUIT,
L‟anthropologie théologique à la lumière de la psychanalyse, p.431-435.
1030
Cf. FUKS, Freud e a judeidade, p.77.
1031
Cf. YERUSHALMI, O Moisés de Freud, p.188.
1032
Cf. PFRIMMER, Freud, leitor da Bíblia, p.173, 218, 316, 319-320.
1033
Cf. MCGUIRE, The Freud/Jung letters, p.34.
1034
Cf. FREUD, A partir de l‟histoire d‟une névrose infantile. In: _______. Œuvres complètes, v.13, p.63.
homem Moisés e a religião monoteísta”1035. Por outro lado, Freud faz de Moisés a
grande figura paterna do judaísmo, o que não corresponde ao modo como ele é encarado
pelos judeus1036. Ou seja, Freud salta o primeiro livro da Torah, com os patriarcas, para
fazer a fé monoteísta iniciar com Moisés, no “Êxodo”. “Curioso deslocamento”, diz
Balmary1037.
Outro exemplo. O mandamento do amor ao próximo como a si mesmo
é citado pelo apóstolo Paulo (cf. Rm 13,9; Gl 5,14), por Tiago (cf. Tg 2,8) e pelos três
evangelistas sinóticos (cf. Mt 5,43; 22,39; Mc 12,31; Lc 10,27). Essa máxima, porém,
não é paulina nem tampouco cristã, mas judaica: faz parte da Lei de Moisés, podendo
ser encontrada no “Levítico” (cf. Lv 19,18). Freud, contudo, ao citar essa injunção
moral, embora demonstre saber que se trata de um preceito anterior ao cristianismo,
parece ignorar a origem vétero-testamentária desse mandamento1038.
Mais uma ilustração. Ao dizer que o cristianismo é a religião do Filho
Ŕ isto é, do Filho que destronou o Pai Ŕ, Freud ignora a centralidade da doutrina da
Santíssima Trindade para o cristianismo. O Deus dos cristãos não é o Pai simplesmente,
mas o Pai, o Filho e o Espírito Santo; o batismo, o sacramento que faz um cristão, é
ministrado em nome da Trindade; o sinal da cruz, “carteira de identidade” dos cristãos,
é trinitário; o Credo, síntese da fé cristã, tem uma estrutura trinitária Ŕ e assim por
diante1039.
Quarto exemplo. Segundo a doutrina católica, a concepção imaculada
de Maria significa que, a fim de ser preparada para se tornar mãe de Jesus, Maria foi
concebida em estado de graça, sem a mancha do pecado original Ŕ não se supõe que,
para isso, os seus pais não tenham tido uma relação sexual. A concepção virginal de
Jesus, por sua vez, significa que Maria concebeu o seu filho sem que, para isso, tivesse

1035
Cf. FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.102,
122, 124.
1036
Cf. BALMARY, Le sacrifice interdit, p.61, 113, 115.
1037
BALMARY, O monge e a psicanalista, p.137; cf. BALMARY, O monge e a psicanalista, p.148.
1038
Cf. FREUD, Le malaise dans la culture. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.295; ver também:
BALMARY, Le sacrifice interdit, p.45, 51; DOMÍNGUEZ MORANO, El psicoanálisis freudiano de la
religión, p.274; PFRIMMER, Freud, leitor da Bíblia, p.84, 196. Aliás, também Lacan parece desconhecer
isso, pois ele chama de “evangélico” o mandamento em questão (cf. LACAN, Discours aux catholiques. In:
_______. Le triomphe de la religion précédé de Discours aux catholiques, p.45).
1039
Cf. ALONSO, Psicoanálisis y religión. Proyección, v.23, n.101, p.150 [nota 39]; GAGEY, Freud. In:
LACOSTE, Dicionário crítico de teologia, p.753; LECUIT, L‟anthropologie théologique à la lumière de la
psychanalyse, p.136-137; MIJOLLA-MELLOR, A necessidade de crer, p.58; VITZ, Sigmund Freud‟s
christian unconscious, p.170.
tido uma relação sexual com o seu marido, o que caracteriza a vinda do Messias como
um dom de Deus para a humanidade, isto é, como uma intervenção divina na história
humana. Freud, porém, por duas vezes Ŕ numa carta a Pfister de 18 de março de 1909 e
em “Totem e tabu” Ŕ confunde uma coisa com outra, ou seja, fala da concepção
imaculada entendendo-a como concepção virginal1040.
Quinto. Entendido como culpa originária herdada pelas gerações
seguintes, o conceito de “pecado original” foi formulado no começo do século V por
Santo Agostinho (354-430). Naturalmente, o bispo de Hipona se baseou em alguns
textos do Apóstolo das Nações; mas o autor dessa doutrina é Agostinho, não Paulo.
Freud, porém, atribuiu a São Paulo a paternidade da doutrina do pecado original1041.
As ilustrações poderiam ainda ser multiplicadas1042. O que dissemos,
porém, já nos parece o bastante para a justificativa do nosso juízo: o conhecimento que
Freud tinha de religião Ŕ particularmente, do catolicismo Ŕ é, no máximo, de nível
médio, não é profundo. Há imprecisões e mesmo algumas incorreções em seus escritos
sobre a matéria.
Note-se, a propósito, que não há nisso qualquer desrespeito para com
Freud: ele mesmo reconheceu Ŕ e mais de uma vez Ŕ o caráter aventuroso das suas
incursões ao campo da psicologia da religião.
Na introdução que preparou para o primeiro ensaio de “Totem e tabu”,
publicado separadamente na revista “Imago”, em 1912, ele descreveu como “leigos” ou
“diletantes” os analistas que têm se empenhado na aplicação do modo de pensar
psicanalítico aos problemas da mitologia, da psicologia da religião, da etnologia, da

1040
Cf. FREUD, Correspondance avec le pasteur Pfister 1909-1939, p.52-53; FREUD, Totem et tabou. In:
_______. Œuvres complètes, v.11, p.333; ver também: DOMÍNGUEZ MORANO, Creer después de Freud,
p.65; DOMÍNGUEZ MORANO, El psicoanálisis freudiano de la religión, p.456; DOMÍNGUEZ MORANO,
Experiencia cristiana y psicoanálisis, p.107.
1041
Cf. FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.165-
166, 214; ver também: DOMÍNGUEZ MORANO, El psicoanálisis freudiano de la religión, p.435;
DOMÍNGUEZ MORANO, Experiencia cristiana y psicoanálisis, p.24, 26, 93; MIJOLLA-MELLOR, A
necessidade de crer, p.60.
1042
Em “Totem e tabu”, Freud cita a lei do talião de um modo improcedente (cf. FREUD, Totem et tabou.
In: _______. Œuvres complètes, v.11, p.374): na Escritura, ela jamais é aplicada a propósito da morte,
valendo apenas para feridas parciais (cf. HADDAD, O filho ilegítimo, p.213-214). A afirmação de que o
“Apocalipse” está repleto de invectivas contra São Paulo (cf. FREUD, “Grande est la Diane des
Éphésiens”. In: _______. Œuvres complètes, v.11, p.52) parece não ter qualquer fundamento (cf.
DOMÍNGUEZ MORANO, El psicoanálisis freudiano de la religión, p.435).
linguística etc. Admitiu que ele próprio não é um especialista na área que vai adentrar e
se desculpou antecipadamente por eventuais fraquezas dos seus resultados1043.
Numa carta a Abraham datada de seis de abril de 1914, referindo-se a
“O Moisés de Michelangelo”, Freud reconheceu que, tratando-se dos artigos publicados
na revista “Imago”, é difícil evitar um certo amadorismo, pois os autores se aventuram
em domínios em que não são peritos1044.
Por fim, em “Contribuição à histñria do movimento psicanalítico” e
em “Nova sequência de lições de introdução à psicanálise”, Freud admitiu que os
analistas que fazem aplicações da psicanálise às ciências do espírito Ŕ inclusive, às
ciências da religião Ŕ são diletantes, não dispondo de conhecimentos especializados nas
áreas em que têm feito as suas incursões1045.
O/A leitor/a terá notado que as duas últimas seções deste capítulo
abarcam o conjunto da crítica freudiana da religião: a seção anterior salvou a crítica
toda; a presente fez toda ela balançar.

“Credo quia absurdum”

Há ainda um outro exemplo da pouca familiaridade de Freud com o


que pensa a Igreja Católica. Trata-se, porém, de um ponto tão importante que merece
ser tratado separadamente.
Em “O futuro de uma ilusão”, Freud cita uma sentença de um Padre
da Igreja: “Credo quia absurdum” [“Creio porque é absurdo”]1046. Ao fazê-lo, ele
parece entender que essa frase representa a posição da Igreja Católica em matéria de fé
e razão. Põe-se, então, a criticar a referida sentença1047.

1043
Cf. FREUD, Totem et tabou. In: _______. Œuvres complètes, v.11, p.383-384.
1044
Cf. FREUD, Le Moïse de Michel-Ange. In: _______. Œuvres complètes, v.12, p.129; FREUD;
ABRAHAM, Correspondance complète 1907-1925, p.286; ver também: FREUD, Le Moïse de Michel-Ange.
In: _______. Œuvres complètes, v.12, p.131. A revista “Imago”, como se sabe, é a revista da psicanálise
aplicada (cf. FREUD, Contribution à l‟histoire du mouvement psychanalytique. In: _______. Œuvres
complètes, v.12, p.294).
1045
Cf. FREUD, Contribution à l‟histoire du mouvement psychanalytique. In: _______. Œuvres complètes,
v.12, p.280; FREUD, Nouvelle suite des leçons d‟introduction à la psychanalyse. In: _______. Œuvres
complètes, v.19, p.230.
1046
Cf. FREUD, L‟avenir d‟une illusion. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.168; ver também: FREUD,
Le malaise dans la culture. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.297; FREUD, L‟homme Moïse et la
religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.164, 196.
1047
Vale o registro de que também Feuerbach e Dawkins citam essa frase tomando-a como representativa
do pensamento cristão (cf. FEUERBACH, Preleções sobre a essência da religião, p.364; MCGRATH;
Qual é o significado dessa máxima? Dizer “creio porque é absurdo”
equivale a dizer “creio sem a razão”. Ou seja, a fé e a razão são contraditñrias entre si.
As doutrinas religiosas estão dispensadas de comparecer ao tribunal da razão.
Eduardo Gontijo chegou mesmo a sugerir que a principal acusação de
Freud contra a religião versa sobre a irracionalidade, o dogmatismo e a incorrigibilidade
desta última1048. De fato, por diversas vezes, ao longo da sua obra, Freud manifestou o
seu juízo de que a fé e a razão são grandezas irreconciliáveis. Três exemplos bastarão.
Numa carta que endereçou a Andreas-Salomé, datada de 11 de
dezembro de 1927, tratando da ilusão religiosa, Freud escreveu: “Je ne fais pas [...] la
chasse à toutes les illusions, mais pourquoi se cramponner à celle d‟entre elles qui
frappe la raison au visage?” [“Eu não persigo [...] todas as ilusões, mas por que se
apegar, dentre elas, àquela que esbofeteia a razão?”]1049. A crença religiosa é um “tapa
no rosto” da razão.
Em “Dostoiévski e o assassinato do pai” (1928), Freud atribui a
inclinação ao ateísmo do célebre escritor russo à sua grande inteligência. As suas
recaídas reacionárias, por sua vez, são creditadas a uma inibição neurótica do seu
pensamento1050. Crer não é inteligente.
Em “O homem Moisés e a religião monoteísta” (1939), por sua vez,
Freud cita a Igreja Catñlica, nomeadamente, como o “inimigo implacável” da liberdade
de pensamento1051. O catolicismo não gosta que pensem.
A frase “Credo quia absurdum” seria, pois, apenas uma ilustração
emblemática daquilo que caracteriza as religiões de um modo geral e, em particular, a
tradição católica.

MCGRATH, O delírio de Dawkins, p.32). Rolland, por sua vez, contradizendo a sentença em questão,
publicou, em 1888, um livreto intitulado “Credo quia verum” [“Creio porque é verdadeiro”] (cf.
PARSONS, The enigma of the oceanic feeling, p.93, 95, 158).
1048
Cf. GONTIJO, Limites e alcance da leitura freudiana da religião. In: MASSIMI; MAHFOUD, Diante do
mistério, p.153, 156; ver também: GAY, A Godless jew, p.4-7, 11-13, 15, 17, 28, 32, 43, 50, 66, 73, 80,
94, 105.
1049
ANDREAS-SALOMÉ, Correspondance avec Sigmund Freud 1912-1936, p.214.
1050
Cf. FREUD, Dostoïevski et la mise à mort du père. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.218-219.
1051
Cf. FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.133;
ver também: FREUD, La morale sexuelle “culturelle” et la nervosité moderne. In: _______. Œuvres
complètes, v.8, p.214; FREUD, L‟avenir d‟une illusion. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.167, 188-
189; FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.201;
FREUD, Nouvelle suite des leçons d‟introduction à la psychanalyse. In: _______. Œuvres complètes, v.19,
p.244, 254-256, 265; FREUD, Pourquoi la guerre? In: _______. Œuvres complètes, v.19, p.79; FREUD, Un
souvenir d‟enfance de Léonard de Vinci. In: _______. Œuvres complètes, v.10, p.104.
A respeito dessa sentença, deparamo-nos com uma certa diversidade
de comentários. Freud acredita que o autor da frase seja um Padre da Igreja;
normalmente, ela é atribuída a Tertuliano (160-220), o bispo de Cartago1052. Alguns
autores, porém, garantem que Tertuliano jamais escreveu essa frase1053. Outros dizem
que a sentença é, sim, de Tertuliano, mas do Tertuliano herético 1054. Outros ainda
argumentam que a máxima é de Tertuliano, em “De carne Christi” [“A carne de
Cristo”], mas está citada erradamente1055. Outros, por fim, admitem que a frase é de
Tertuliano, mas advertem que Freud não a compreendeu corretamente1056. Seja como
for, numa coisa, todos concordam: essa frase não representa o pensamento da Igreja
Católica em matéria de fé e razão; é um sinal de desconhecimento do catolicismo
atribuir-lhe a referida posição1057.
Tratando-se das relações entre a fé e a razão, há duas atitudes
extremas: o fideísmo e o racionalismo. Grosso modo, o fideísmo subestima a razão e
superestima a fé; o racionalismo, por sua vez, faz o contrário: subestima a fé e
superestima a razão. Ou seja, para o fideísmo, como consequência do pecado original, a
razão humana ficou debilitada, enfraquecida, obscurecida. A razão tem, assim, pouca ou
nenhuma ajuda a prestar à fé. A fé não tem um suporte racional; a única justificação da
fé é a própria fé. O racionalismo, ao contrário, concebe a razão humana como uma
realidade robusta e confiável. A única fonte do conhecimento humano Ŕ inclusive, do
conhecimento de Deus Ŕ é a razão.
O ensinamento da Igreja sobre as relações entre a fé e a razão ocupa
uma posição equidistante das duas extremidades em que se constituem o fideísmo e o
racionalismo. Os católicos não são racionalistas, com certeza. Mas tampouco são

1052
Cf. DALGALARRONDO, Religião, psicopatologia e saúde mental, p.158 [nota 107].
1053
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, El psicoanálisis freudiano de la religión, p.324 [nota 883]; MCGRATH;
MCGRATH, O delírio de Dawkins, p.32; REIK, Dogma and compulsion, p.33; ver, porém: REIK, Dogma
and compulsion, p.89, 104-121, 153.
1054
Cf. PLÉ, Freud et la religion, p.106-107 [nota 24].
1055
Cf. FREUD, L‟avenir d‟une illusion. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.168 [nota a]; FREUD,
L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.164 [nota a];
MIJOLLA-MELLOR, A necessidade de crer, p.134-135; RATZINGER; D‟ARCAIS, Deus existe?, p.29 [nota
2].
1056
Cf. GÖRRES, Todo habla en favor. Nada sostenible habla en contra. In: ZAHRNT, Jesús de Nazaret y
Sigmund Freud, p.86; VACA, Psicoanálisis y dirección espiritual, p.440.
1057
Cf. ZILBOORG, Dénégations et affirmations de la foi religieuse. In: Foi, raison et psychiatrie moderne,
p.138-139. Também não representa o pensamento protestante: cf. PFISTER, L‟illusion d‟un avenir. Revue
française de psychanalyse, t.41, n.3, p.522-526.
fideístas. Contra o racionalismo, a Igreja afirma que a razão não basta. Por outro lado,
contra o fideísmo, a Igreja afirma que a fé é racional.
A máxima “Credo quia absurdum” é uma sentença fideísta. O
fideísmo foi formalmente condenado pelo catolicismo por meio de uma constituição
dogmática conciliar promulgada mais de meio século antes da redação por Freud de “O
futuro de uma ilusão”. Convocado e presidido pelo papa Pio IX (1792-1878), o Concílio
do Vaticano I teve lugar entre os anos 1869 e 1870 e promulgou duas constituições
dogmáticas: a “Dei Filius” [“Filho de Deus”], sobre a fé catñlica, e a “Pastor æternus”
[“Pastor eterno”], sobre a Igreja. Segundo a constituição dogmática “Dei Filius”, a fé e
a razão não se contradizem, mas se ajudam mutuamente, colaborando de maneira
frutuosa1058.
Em 1998, João Paulo II dedicou toda uma encíclica a esse tema. Já na
primeira frase do documento, o papa polonês escreveu: “La foi et la raison sont comme
les deux ailes qui permettent à l‟esprit humain de s‟elever vers la contemplation de la
verité” [“A fé e a razão são como as duas asas que permitem ao espírito humano se
elevar para a contemplação da verdade”]1059. Todo o restante dessa carta Ŕ uma das
melhores de Wojtyła Ŕ é um desenvolvimento dessa tese apresentada já na abertura do
documento. Segundo o Santo Padre, “...il existe une profonde et indissoluble unité entre
la connaissance de la raison et celle de la foi” [“...há uma unidade profunda e
indissolúvel entre o conhecimento da razão e o da fé”]1060. “La raison et la foi ne
peuvent donc être séparées...” [“A razão e a fé não podem, pois, ser separadas...”]1061.

“Il ne peut donc exister aucune compétitivité entre la raison et la


foi: l‟une s‟intègre à l‟autre, et chacune a son propre champ
d‟action” [“Não pode, pois, existir nenhuma concorrência entre
a razão e a fé: uma implica a outra, e cada uma tem o seu
prñprio campo de ação”]1062.

Ao final do texto, citando a constituição “Dei Filius”, João Paulo


concluiu: “L‟Église demeure en effect profondément convaincue que la foi et la raison

1058
Cf. DENZINGER; HÜNERMANN, El magisterio de la Iglesia, p.770-771.
1059
JEAN-PAUL II, La foi et la raison, p.5.
1060
JEAN-PAUL II, La foi et la raison, p.28.
1061
JEAN-PAUL II, La foi et la raison, p.29.
1062
JEAN-PAUL II, La foi et la raison, p.29.
„s‟aident mutuellement‟...” [“A Igreja continua, de fato, profundamente convencida de
que a fé e a razão „se ajudam mutuamente‟...”]1063.
Dois anos depois, num debate entre Joseph Ratzinger e Paolo Flores
d‟Arcais (1944), acontecido em Roma, no dia 21 de fevereiro de 2000, o cardeal
lembrou que São Paulo pregou no Areópago, isto é, no centro da cultura antiga, em
diálogo com os filósofos, o que demonstra que o apóstolo anunciava algo que fazia
apelo à razão1064. Na mesma ocasião, Ratzinger citou um versículo de uma carta de São
Pedro (cf. 1Pd 3,15), o qual ele traduziu assim: os cristãos devem estar dispostos a
“demonstrar o logos”, isto é, o “sentido profundamente racional” das suas
convicções1065.
Tendo se tornado papa, numa célebre conferência pronunciada na
Universidade de Ratisbona, na Baviera, no dia 12 de setembro de 2006, Ratzinger
destacou o vínculo indissolúvel que há entre a fé e a razão. Nessa ocasião, Bento XVI
desenvolveu o seu argumento a partir de uma frase do sábio imperador bizantino
Manuel II Paleñlogo, citada três ou quatro vezes no texto, qual seja: “Ne pas agir selon
la raison est contraire à la nature de Dieu” [“Não agir segundo a razão é contrário à
natureza de Deus”]1066.
Mais recentemente, em julho de 2010, numa entrevista concedida ao
jornalista alemão Peter Seewald (1954), o Sumo Pontífice insistiu no elo entre a fé e a
razão, chegando mesmo a dizer que o fato de que um professor tenha se tornado papa
talvez seja um sinal de que Deus tenha desejado que a racionalidade da fé fosse,
justamente, colocada em primeiro plano1067.
Portanto, definitivamente, a frase “Credo quia absurdum” não
representa o pensamento católico. Gontijo diz ter aprendido com o padre jesuíta
Henrique Cláudio de Lima Vaz (1921-2002) que “...os caminhos da ciência rigorosa, da
razão sensata e da humana humanidade não se opõem nunca aos da verdadeira fé”1068. A
expressão Ŕ esta, sim! Ŕ que representa a posição da Igreja sobre a matéria em questão é
1063
JEAN-PAUL II, La foi et la raison, p.126.
1064
Cf. RATZINGER; D‟ARCAIS, Deus existe?, p.30-31.
1065
Cf. RATZINGER; D‟ARCAIS, Deus existe?, p.31; ver também: RATZINGER, La foi chrétienne hier et
aujourd‟hui, p.33-36; RATZINGER; D‟ARCAIS, Deus existe?, p.11-22, 28-37, 51, 80.
1066
Cf. BENOÎT XVI, Foi, raison et université. La documentation catholique, v.103, n.2366, p.925-926,
929.
1067
Cf. BENOÎT XVI, Lumière du monde, p.108-110.
1068
GONTIJO, Limites e alcance da leitura freudiana da religião. In: MASSIMI; MAHFOUD, Diante do
mistério, p.143 [nota 1]; ver também: VASSE, La vie et le vivants, p.157.
a seguinte: “fides quaerens intellectum” [“a fé que procura a inteligência”], de Santo
Anselmo1069.
Aliás, Freud sabia disso. Como vimos, na segunda metade dos anos
1870, ele estudou as provas da existência de Deus nos cursos de filosofia que fez com
Brentano, chegando a ficar inclinado ao teísmo, dada a força dos argumentos que lhe
foram apresentados. Ou seja, ele tinha conhecimento do esforço feito pela fé católica
para se justificar perante o tribunal da razão, tendo podido constatar pessoalmente o
poder de convencimento desse esforço. Por alguma razão, porém, passados 50 anos,
quando escreveu “O futuro de uma ilusão”, Freud pareceu não ter presente as aulas que
tivera de filosofia da religião.

O alcance epistemológico da psicanálise quanto ao problema de Deus

Por fim, uma terceira questão que abarca o pensamento de Freud sobre
a religião de uma forma global e que nos pareceu conveniente considerar
preliminarmente: o problema da competência espistemológica da psicanálise para
discutir a questão da existência de Deus.
Segundo Vergote Ŕ que se descreve como um “velho professor de
psicologia da religião”1070 Ŕ, boa parte dos problemas entre a psicologia e a religião
resulta de mal-entendidos epistemológicos. Esclareçamos, pois, as coisas.
A existência de Deus é uma questão da mais absoluta importância.
Não é, pois, de se admirar que estudiosos dos mais diversos ramos do saber sintam-se
atraídos por ela. Trata-se, porém, de um problema que ultrapassa a competência
epistemológica das ciências. Isso inclui a psicologia, a psicologia da religião e também
a psicanálise. A psicanálise não tem nada a dizer sobre se Deus existe ou não. A
existência efetiva de Deus, a verdade objetiva da religião, a realidade ontológica de
Deus, o valor de verdade das crenças religiosas, a verdade última da fé Ŕ nada disso
pertence à psicanálise; a psicanálise não sabe nada disso1071.

1069
Cf. MEISSNER, Psychoanalysis and religious experience, p.109-110; PLÉ, Freud et la religion, p.106.
1070
Cf. VERGOTE, Reflexões. In: PAIVA, Necessidade e desejo, p.103.
1071
ALONSO, Psicoanálisis y religión. Proyección, v.23, n.101, p.140, 146 [nota 3]; ÁVILA, Para conhecer
a psicologia da religião, p.17, 24; BAUDOUIN, L‟Œuvre de Jung, p.304; DOMÍNGUEZ MORANO, El
psicoanálisis freudiano de la religión, p.358; GÖRRES, Todo habla en favor. Nada sostenible habla en
contra. In: ZAHRNT, Jesús de Nazaret y Sigmund Freud, p.63, 103; JUNG, O símbolo da transformação na
Isso decorre do fato de que a questão da existência de Deus não é um
problema empírico Ŕ entenda-se, científico, portanto, psicanalítico. Com efeito, Deus
não é um dado da realidade sensível, não é um fato observável no mundo, acessível ao
método empírico, pertencente ao campo do cientista. Para dizê-lo com Wittgenstein:
“God does not reveal himself in the world” [“Deus não se revela no mundo”]1072. O
transcendente é, por definição, inacessível ao escopo da ciência. Logo, não há como
provar cientificamente a sua existência, tampouco a sua inexistência. A ciência não
pode, pois, afirmar ou negar Deus. Está fora da sua alçada estabelecer verdades nesse
domínio. Por conseguinte, a psicanálise, que é uma ciência, deve abster-se de qualquer
pronunciamento sobre se Deus existe ou não, assim como deve silenciar sobre o valor
de verdade das crenças religiosas1073.
Não sendo um problema científico, a questão da existência de Deus
pertence ao filósofo e ao teólogo. Nomeadamente, compete à filosofia da religião e à
teologia filosófica discutir essa matéria1074.
Por outro lado, não cabendo ao psicanalista decidir sobre o problema
de Deus, o que lhe compete investigar? O psicanalista tem, por assim dizer, o seu
“ângulo” de abordagem da questão. Não lhe cabe falar de Deus enquanto tal; mas, sobre
Deus enquanto realidade psicológica, sim, ele tem muito a dizer. A dimensão objetiva
da religião lhe escapa; o seu polo subjetivo, porém, encontra-se inteiramente dentro da
sua “jurisdição”. A verdade dos enunciados religiosos não lhe pertence; mas a
enunciação dos mesmos por um sujeito, isto sim, é da sua competência1075.

missa, p.1, 46; KÜNG, Freud and the problem of God, p.80; LECUIT, L‟anthropologie théologique à la
lumière de la psychanalyse, p.221; SILVA, O ateísmo de Freud, p.12, 16; VERGOTE, Processos
psicológicos Ŕ vergonha, sentimento de culpa Ŕ e sentido bíblico do pecado em particular em Romanos 7.
In: PAIVA, Necessidade e desejo, p.129; VERGOTE, Psicanálise e religião. Revista Portuguesa de
Filosofia, v.59, f.2, p.573; VERGOTE, Psychologie religieuse, p.9, 16, 201.
1072
WITTGENSTEIN, Tractatus logico-philosophicus, p.73 [§ 6.432].
1073
Cf. DACQUINO, Religiosidad y psicoanálisis, p.33; MCGRATH; MCGRATH, O delírio de Dawkins,
p.35, 53-57, 95; MORIN, Para falar de Deus, p.56, 100; SANDERS, Christianity after Freud, p.10, 133;
SILVA, O ateísmo de Freud, p.19; VERGOTE, Psychologie religieuse, p.11; ZILBOORG, Dénégations et
affirmations de la foi religieuse. In: Foi, raison et psychiatrie moderne, p.131-132; ZILBOORG,
Psicanálise e religião, p.69, 119, 162-163.
1074
Cf. DALGALARRONDO, Religião, psicopatologia e saúde mental, p.15, 66 [nota 52]; DROGUETT,
Desejo de Deus, p.107; SANDERS, Christianity after Freud, p.157; VALLE, Psicologia e experiência
religiosa, p.19; VERGOTE, Psychologie religieuse, p.14.
1075
ALETTI, A representação de Deus como objeto transicional ilusório. In: PAIVA; ZANGARI, A
representação na religião, p.20, 33, 42; BAUDOUIN, L‟Œuvre de Jung, p.310; CATALAN, O homem e sua
religião, p.17, 135; DACQUINO, Religiosidad y psicoanálisis, p.34; DOMÍNGUEZ MORANO, Ciencia,
ilusión y creencia. Revista Portuguesa de Filosofia, v.59, f.2, p.453; DOMÍNGUEZ MORANO, Creer
después de Freud, p.94; DOMÍNGUEZ MORANO, Experiencia cristiana y psicoanálisis, p.9-10, 17-18, 71;
Atualmente, esse modo de ver as coisas parece gozar de ampla
1076
aceitação . Mas será que isso estava claro para Freud?
O filósofo Ludwig Marcuse (1894-1971) parece acreditar que sim.
Segundo ele, Freud não se manifestou sobre a existência de Deus. O que lhe interessava
não era Deus como tal, mas as ideias ou as imagens que os seres humanos fazem de
Deus: “[Freud] Nunca se pronunciou sobre Deus Ŕ nem em sentido negativo; somente
sobre os deuses dos humanos”1077. Citando Marcuse, Ricœur declarou: “Freud, a-t-on
dit, ne parle pas de Dieu, mais du dieu et des dieux des hommes...” [“Freud, foi dito,
não fala de Deus, mas do deus e dos deuses dos homens...”]1078.
Há, porém, quem veja as coisas de outra maneira. Fromm, por
exemplo, parece entender que Freud Ŕ isto, é a psicanálise freudiana, não apenas o
homem Ŕ nega a existência de Deus1079. Palmer, por sua vez, escreveu: “O foco do
ataque de Freud foi a crença na realidade objetiva de Deus: a crença de que há de fato
um Pai transcendente, vivo, concreto e personificado, que existe fora da psique e que se
revela a nós por meio das imagens e dos rituais da religião”1080.
Em vão se procura na obra de Freud a frase: “Deus não existe” Ŕ isso,
de fato, Freud nunca afirmou. No segundo ensaio de “Totem e tabu”, porém, ele
asseverou que os demônios e os deuses não existem efetivamente, mas são criações da
mente humana:

DOMÍNGUEZ MORANO, Ignacio de Loyola a la luz del psicoanálisis. Proyección, v.53, n.222, p.28;
DOMÍNGUEZ MORANO, Psicodinámica de los ejercicios ignacianos, p.83 [nota 37]; DROGUETT, Desejo de
Deus, p.64; JUNG, Interpretação psicológica do dogma da Trindade, p.51 [nota 17]; JUNG, Psicologia e
religião, p.8; PALMER, Freud e Jung: sobre a religião, p.161, 166, 180, 174, 193-194, 202, 219, 234, 240;
RIZZUTO, O nascimento do Deus vivo, p.18.
1076
Em toda a bibliografia que consultamos, Dawkins é o único autor que discorda do que acima
estabelecemos. Para ele, a questão da existência de Deus é um problema científico. Dawkins admite que a
ciência ainda não está em condições de provar a inexistência de Deus, mas entende que a mesma pode já
fazer um juízo de probabilidade sobre a questão. E esse juízo é: a existência de Deus é improvável; quase
com certeza, Deus não existe. Um dia, a ciência estará em condições de prová-lo (cf. DAWKINS, Deus, um
delírio, p.55-110, 154-214; ver também: LEUBA, Psychologie du mysticisme religieux, p.447-454).
1077
MARCUSE, Sigmund Freud, p.76; cf. MARCUSE, Sigmund Freud, p.73.
1078
RICŒUR, De l‟interprétation, p.231; cf. RICŒUR, Le conflit des interprétations, p.131, 145; RICŒUR,
O ateísmo da psicanálise de Freud. Concilium, n.16, p.70.
1079
Cf. FROMM, Psychoanalysis and religion, p.8 [nota 3].
1080
PALMER, Freud e Jung: sobre a religião, p.247; ver também: CHOISY, Le chrétien devant la
psychanalyse, p.204-205; DALBIEZ, La méthode psychanalytique et la doctrine freudienne, t.2, p.372;
DROGUETT, Desejo de Deus, p.86, 95-96; SILVA, O ateísmo de Freud, p.80; VERGOTE, Psychologie
religieuse, p.15, 150.
“...les démons ne peuvent être tenus, en psychologie, pour des
choses ultimes qui défient toute tentative de les ramener à autre
chose. Il en serait autrement si les démons existaient
effectivement; mais nous savons bien qu‟ils sont eux-mêmes,
comme les dieux, des créations des forces animiques de
l‟homme; ils ont été créés par quelque chose et de quelque
chose” [“...os demónios não podem ser tidos, em psicologia,
como coisas últimas que desafiam toda tentativa de serem
reconduzidos a outra coisa. Seria diferente se os demônios
existissem efetivamente; mas nós bem sabemos que eles
mesmos são, como os deuses, criações das forças anímicas do
homem; eles foram criados por alguma coisa e de alguma
coisa”]1081.

Ora, pelo que propusemos acima, Freud não poderia ter dito isto: que
os deuses e os demônios não existem de fato. Ao fazê-lo, ele incorre num mal-entendido
epistemológico.
Tenhamos, pois, presentes essas considerações. Voltaremos a isso,
mais de uma vez, em nossa crítica da crítica freudiana da crença religiosa.

Crítica de “Totem e tabu”

Feitas as considerações preliminares que nos pareceram necessárias,


passemos, pois, ao exame crítico da interpretação freudiana da crença em Deus.
No capítulo segundo, vimos que o pensamento de Freud sobre o
fenômeno religioso pode ser organizado em torno de quatro temas fundamentais: a
origem, a natureza, as funções e o futuro da religião. Noutras palavras: por quê? O que
é? Para quê? E o que será? Ŕ da crença em Deus.
Retomemos, pois, esse esquema; comecemos a nossa crítica da crítica
pelo problema da origem da religião. Essa questão merecerá uma atenção toda especial.
Vamos dedicar-lhe não apenas esta seção, mas também as 10 seções seguintes.
O que se segue está, pois, organizado da seguinte maneira.
Primeiramente, tomaremos as duas obras que Freud dedicou especificamente ao
problema da origem da religião: “Totem e tabu” e “O homem Moisés e a religião
monoteísta”. Na primeira, Freud ocupou-se do aparecimento do totemismo, considerado

1081
FREUD, Totem et tabou. In: _______. Œuvres complètes, v.11, p.227.
como a primeira religião da história humana; na segunda, procurou explicar o
surgimento do monoteísmo mosaico, herdado, por sua vez, pelos cristãos. Em ambas, a
hipótese fundamental de Freud consiste em conceber o assassinato do pai primevo como
o evento originador da crença em Deus: em última análise, o totem dos primitivos e a
divindade paterna dos judeus e cristãos seriam o chefe da horda primeva ressurreto.
Feita a apreciação crítica dessas duas obras, discutiremos ainda a teoria freudiana da
origem da religião em termos mais gerais, de modo a incluir também o que se lê, por
exemplo, em “O futuro de uma ilusão”. Passemos, então, sem mais delongas, a “Totem
e tabu”.
Criticar bem “Totem e tabu” talvez não seja uma tarefa fácil; criticá-
lo, porém, simplesmente é uma tarefa para a qual não falta matéria-prima. De fato,
segundo Herbert Marcuse (1898-1979), nenhuma outra peça da teoria de Freud foi
“mais veementemente rejeitada” do que a hipñtese formulada em “Totem e tabu”1082.
Na avaliação de Eugène Enriquez (1931), esse é o livro “mais controverso” e “mais
contestado” de Freud1083. Assoun, por sua vez, faz notar que as reações contrárias a
“Totem e tabu” sñ são comparáveis aos protestos que a teoria da sexualidade infantil ou
a tese da etiologia sexual das neuroses suscitaram1084.
Jones registra que, fora do meio psicanalítico, “Totem e tabu” foi
recebido com “completa descrença”, como se se tratasse de uma “fantasia pessoal” de
Freud1085. “Suposições incomprovadas e bastante incertas”, “devaneio psicanalítico”,
“inferências assombrosas”, “noções extremamente controversas”, “extravagância total”,
“reconstrução improvável” Ŕ são algumas das expressões que aparecem na síntese que
Gay preparou de “Totem e tabu”1086. O mesmo autor recorda que alguns críticos
descreveram o quarto ensaio da obra como o “vóo de Ícaro” de Freud Ŕ isto é, ousado e
fatal1087.
Roudinesco e Plon estimam que, ao lado de “Uma lembrança de
infância de Leonardo da Vinci” e de “O homem Moisés e a religião monoteísta”,
“Totem e tabu” encontra-se entre os livros “mais criticados” de Freud: “Os três

1082
Cf. MARCUSE, Eros e civilização, p.69.
1083
Cf. ENRIQUEZ, De la horde à l‟État, p.61.
1084
Cf. ASSOUN, Freud et les sciences sociales, p.89.
1085
Cf. JONES, A vida e a obra de Sigmund Freud, v.2, p.359.
1086
Cf. GAY, Freud, p.305, 307.
1087
Cf. GAY, Freud, p.305.
encerram, com efeito, erros patentes e interpretações equivocadas que não escaparam ao
olhar vigilante dos especialistas em arte, antropologia e histñria das religiões”1088.
“Totem e tabu”, reconhecem os mesmos autores, suscitou “severas críticas”, muitas
delas, “justificadas”1089.
O antropólogo inglês Robert Ranulth Marett (1866-1943) descreveu o
livro de Freud sobre o totemismo como “a just so story” [“apenas uma histñria”]1090.
Segundo Bronisław Malinowski (1884-1942), a hipñtese ali formulada é “atraente”, mas
“fantástica”1091. George Vetter descreveu “Totem e tabu” como um “conto de fadas”1092.
Dalbiez qualificou a hipñtese do parricídio original como uma “antropologia
romanceada”1093. O grande historiador das religiões Mircea Eliade (1907-1986)
descreveu “Totem e tabu” como um “roman noir frénétique” [“romance negro
frenético”] e um livro de “horror stories” [“histñrias de horror”]1094. Paul Radin (1883-
1959), por sua vez, afirmou: “Pour un esprit aussi vif que celui de Freud, son Totem et
tabou constitue vraiment une performance déplorable...” [“Para um espírito tão vivo
quanto o de Freud, seu Totem e tabu constitui verdadeiramente um feito
deplorável...”]1095.
Realmente, “Totem e tabu” é uma obra objetável sob vários aspectos.
A começar pelos pressupostos antropológicos de que parte. São eles: a hipótese da

1088
ROUDINESCO; PLON, Dicionário de psicanálise, p.756.
1089
Cf. ROUDINESCO; PLON, Dicionário de psicanálise, p.759.
1090
Freud acreditava que a expressão fosse de Kroeber, mas, na verdade, ela foi empregada por Marett
(cf. ASSOUN, Freud et les sciences sociales, p.77 [nota 37], 89; FREUD, Psychologie des masses et analyse
du moi. In: _______. Œuvres complètes, v.16, p.61; JONES, A vida e a obra de Sigmund Freud, v.3,
p.321). Em 1920, Kroeber publicou um artigo na revista “American anthropologist” [“Antropñlogo
americano”], intitulado “Totem and taboo, an ethnological psychoanalysis” [“Totem e tabu, uma
psicanálise etnolñgica”], no qual apresentou 10 objeções contra a hipñtese de Freud. Em 1929, no
periñdico “American journal of sociology” [“Jornal americano de sociologia”], Kroeber publicou um
segundo artigo, ao qual deu o nome “Totem and taboo in retrospect” [“Totem e tabu em retrospectiva”].
A segunda reação foi mais indulgente do que a primeira (cf. ASSOUN, Freud et les sciences sociales, p.89
[nota 2]; KOLTAI, Totem e tabu, p.53-54; LACAN, Le séminaire, livre 17, p.127-128; LÉVI-STRAUSS,
Totemismo hoje, p.75 [nota 1]). Nesse segundo artigo, Kroeber mencionou a expressão “a just-so story”
(cf. FREUD, Psychologie des masses et analyse du moi. In: _______. Œuvres complètes, v.16, p.61 [nota
c]; ver também: ASSOUN, Freud et les sciences sociales, p.9, 94; GAY, Freud, p.304; KOLTAI, Totem e
tabu, p.53; MALINOWSKI, Sex and repression in savage society, p.172).
1091
Cf. MALINOWSKI, Sex and repression in savage society, p.165.
1092
Cf. JONES, A vida e a obra de Sigmund Freud, v.3, p.328.
1093
Cf. DALBIEZ, La méthode psychanalytique et la doctrine freudienne, t.2, p.359.
1094
Cf. AZEVEDO; OLDMEADOW, Ocultismo e religião, p.12, 34, 51, 67-68; KÜNG, Freud and the problem
of God, p.73-74; ZILLES, Freud: a provocação do ateísmo psicanalítico. In: _______. Filosofia da
religião, p.154.
1095
GANTHERET, Préface. In: FREUD, Totem et tabou, p.43; cf. JONES, A vida e a obra de Sigmund Freud,
v.3, p.328.
horda primeva, a tese de que o totemismo constitui-se numa etapa primeira e obrigatória
da evolução dos povos, o parecer de que existe um vínculo necessário entre o sistema
totêmico e a exogamia e a afirmação de que a refeição totêmica integra o totemismo
necessariamente.
A hipótese da horda primeva, segundo a qual os primitivos viveriam
em pequenos agrupamentos dominados por um macho mais velho, ciumento e violento,
Freud a retirou de Darwin. Hoje, contudo, segundo a antropologia cultural, ela não mais
se sustenta. Trata-se de uma hipótese infundada, elaborada numa época em que não se
dispunha de dados confiáveis e não confirmada pelas pesquisas subsequentes.
A tese de que o totemismo constitui-se na primeira forma assumida
pela religião na história humana, sendo, além disso, um estágio atravessado
universalmente por todos os povos não se encontra em melhor situação. Estudos
posteriores à publicação de “Totem e tabu” demonstraram que o totemismo não pode
ser considerado o primeiro estágio de evolução da cultura humana e que tampouco se
constitui numa etapa obrigatória para todas as civilizações. Atualmente, conhecem-se
muitos povos, entre os mais antigos etnologicamente, que jamais praticaram o
totemismo. Ademais, mesmo entre os povos que praticaram o totemismo, trata-se de
uma etapa ulterior do seu desenvolvimento, não do estágio inicial da sua evolução. Ou
seja, o totemismo não é nem original nem universal.
Também o vínculo entre o totemismo e a exogamia, pressuposto por
Freud, é discutível. Antes mesmo da publicação de “Totem e tabu”, Frazer sustentou
que o sistema totêmico não é caracterizado invariavelmente pelas práticas exogâmicas.
Em “Totemismo e exogamia”, de 1910, ele defendeu o ponto de vista de que as duas
instituições são fundamentalmente independentes entre si, embora tenham se cruzado
acidentalmente em muitas tribos1096. Segundo a antropologia cultural contemporânea,
Frazer estava certo. Não há uma relação necessária entre o totemismo e a exogamia.
Finalmente, a hipótese de que a refeição totêmica caracteriza
universalmente o totemismo não mais se sustenta. A rigor, ela nunca se sustentou:
Smith, de quem Freud recolheu essa informação, baseou a sua tese em um único
caso1097. Por outro lado, há centenas de tribos totêmicas em que esse ritual encontra-se

1096
Cf. FREUD, Totem et tabou. In: _______. Œuvres complètes, v.11, p.335.
1097
Cf. FREUD, Totem et tabou. In: _______. Œuvres complètes, v.11, p.350, 358.
inteiramente ausente. Ou seja, os festivais descritos por Smith não integram o sistema
totêmico necessariamente.
Em resumo, segundo Darwin:

“...l‟être humain [...] avait originellement vécu en assez petites


hordes, à l‟intérieur desquelles la jalousie du mâle le plus vieux
et le plus fort empêchait la promiscuité sexuelle” [“...o ser
humano [...] vivia originalmente em hordas relativamente
pequenas, no interior das quais o ciúme do macho mais velho e
mais forte impedia a promiscuidade sexual”]1098.

Darwin estava equivocado.


Segundo Wundt, “...la culture totémiste a constitué partout [...] un
stade préliminaire aux développements ultérieurs...” [“...a cultura totêmica constituiu
em toda a parte [...] um estado preliminar aos desenvolvimentos ulteriores...”]1099. E, a
exemplo de Wundt:

“...de nombreux chercheurs sont enclins à reconnaître en lui [en


le totémisme] une phase nécessaire par laquelle le
développement humain est partout passé” [“...muitos
pesquisadores tendem a reconhecer nele [no totemismo] uma
fase necessária atravessada em toda a parte pelo
desenvolvimento humano”]1100.

Eles estavam enganados.


Quanto à exogamia, apesar de Frazer, Freud pressupós que “...l‟union
du totémisme et de l‟exogamie existe et s‟avère très solide” [“...a união entre o
totemismo e a exogamia existe e se mostra muito sñlida”]1101. Isso não procede.
E, segundo Smith, “...la mise à mort et l‟absorption périodiques du
totem ont été [...] une partie significative de la religion totémique” [“...a morte e a
ingestão periódicas do totem foram [...] uma parte significativa da religião
totêmica”]1102. Também isso não é verdade.

1098
FREUD, Totem et tabou. In: _______. Œuvres complètes, v.11, p.341.
1099
FREUD, Totem et tabou. In: _______. Œuvres complètes, v.11, p.312.
1100
FREUD, Totem et tabou. In: _______. Œuvres complètes, v.11, p.200 [nota 2].
1101
FREUD, Totem et tabou. In: _______. Œuvres complètes, v.11, p.201.
1102
FREUD, Totem et tabou. In: _______. Œuvres complètes, v.11, p.357.
Na preparação de “Totem e tabu”, Freud se baseou na antropologia
evolucionista, em voga naquele tempo. Tratava-se, porém, de uma antropologia “de
gabinete”, sem base empírica confiável. Com o desenvolvimento posterior do trabalho
de campo, a mesma caiu em descrédito.
A horda primeva, o totemismo como etapa primeira e universal da
evolução dos povos, a obrigatoriedade do vínculo entre totemismo e exogamia, a
necessidade do vínculo entre totemismo e refeição totêmica Ŕ nada disso se mantém;
tudo isso é recusado pela antropologia cultural contemporânea. Há, pois, quase uma
unanimidade em se afirmar que as teses defendidas por Freud em “Totem e tabu” são,
do ponto de vista da antropologia cultural, inaceitáveis1103.
Quando Freud escreveu a obra em questão, o totemismo era um
problema de primeira grandeza. Nas décadas que se seguiram, porém, os antropólogos
se desinteressaram pelo assunto, passando a encará-lo como uma falsa questão1104. Em
“Le totémisme aujourd‟hui” [“O totemismo hoje”], por exemplo, Claude Lévi-Strauss
(1908-2009) procedeu a uma crítica “devastadora” da teoria do totem1105; o antropólogo
simplesmente “demoliu” a noção de totemismo1106. Segundo Lévi-Strauss, o totemismo
não existe; trata-se de uma “ilusão”, de um “fantasma”, de uma “categoria falsa”. Não
há nada na realidade com características definidas que possa fazer jus a essa
classificação: “...o totemismo é uma unidade artificial que existe somente no
pensamento do antropñlogo e à qual nada de específico corresponde na realidade”1107. A
noção de “totemismo” é “inconsistente”, “ilusñria”. A diversidade dos fenómenos que
ela pretende abarcar basta para “estourá-la”, “dissolvê-la”. É o caso, pois, de renunciar a

1103
Cf. ALLERS, The successful error, p.169-187; BASTIDE, Sociologie et psychanalyse, p.83-90;
DALGALARRONDO, Religião, psicopatologia e saúde mental, p.22; DOMÍNGUEZ MORANO, Creer después
de Freud, p.81-82; DOMÍNGUEZ MORANO, El psicoanálisis freudiano de la religión, p.421-425, 428, 465;
DOMÍNGUEZ MORANO, Teología y psicoanálisis, p.27; ESPINA BARRIO, Freud e Lévi-Strauss, p.49-55, 95,
179, 184; GAY, Freud, p.309; JONES, A vida e a obra de Sigmund Freud, v.2, p.357; JONES, A vida e a
obra de Sigmund Freud, v.3, p.321; KÜNG, Freud and the problem of God, p.67, 73-74; MEZAN, Freud,
pensador da cultura, p.321; PALMER, Freud e Jung: sobre a religião, p.85-86; ROAZEN, Freud e seus
discípulos, p.298; ROAZEN, Freud: pensamento político e social, p.93, 103; WIESENHÜTTER, La fe
reprimida. In: ZAHRNT, Jesús de Nazaret y Sigmund Freud, p.133.
1104
Cf. GANTHERET, Préface. In: FREUD, Totem et tabou, p.12.
1105
Cf. YERUSHALMI, O Moisés de Freud, p.175 [nota 6].
1106
Cf. MEZAN, Freud, pensador da cultura, p.343-345.
1107
LÉVI-STRAUSS, Totemismo hoje, p.21; cf. LÉVI-STRAUSS, Totemismo hoje, p.13-25.
ela1108. Pode-se, pois, afirmar que o problema que Freud propôs-se a resolver com
“Totem e tabu” é um problema “irreal”1109.
O fato é que os dados antropológicos que Freud aceitou convinham a
ele. Uma das objeções que se costuma fazer contra “Totem e tabu” é que Freud parecia
estar, de antemão, munido de uma teoria sobre a origem da religião. Ao se debruçar
sobre os grossos tratados de antropologia recolhendo dados, ele apenas procurava
evidências que corroborassem as suas hipóteses. Os dados são, pois, manipulados, isto
é, admitidos na medida em que se encaixam numa teoria pré-concebida1110. Numa carta
endereçada a Jung, datada de 17 de dezembro de 1911, o próprio Freud se disse um
pouco enfadado com as leituras sobre o totemismo que vinha fazendo porque já se
sentia de posse das verdades que estava tentando provar1111.
Além desses pressupostos antropolñgicos, “Totem e tabu” se assenta
também sobre um pressuposto de natureza biológica: a hipótese da transmissão
hereditária dos traços mnésicos do assassinato do pai primevo. Evidentemente, a
tradição oral não seria suficiente para explicar a transmissão da memória do crime
primordial ao longo da história humana. Dessa forma, para elucidar como
acontecimentos que sucederam com uma geração determinada poderiam continuar
operando através de gerações sucessivas, Freud se viu obrigado a pressupor que, assim
como há, segundo Lamarck, uma herança filogenética de caracteres adquiridos, haveria
também, por intermédio de uma mente coletiva, uma transmissão de traços mnésicos de
eventos históricos particularmente significativos. A memória do assassinato do pai
primevo seria, pois, herdada por essa via.
Jean-Baptiste Lamarck (1744-1829) foi um biólogo francês, precursor
de Darwin. Ele considerava que as espécies não são imutáveis, mas que, com fins de

1108
Cf. LÉVI-STRAUSS, Totemismo hoje, p.53.
1109
Cf. LÉVI-STRAUSS, Totemismo hoje, p.25; ver também: BATAILLE, L‟érotisme, p.223; LÉVI-STRAUSS,
Les structures élémentaires de la parenté, p.24; LÉVI-STRAUSS, Totemismo hoje, p.75, 77. Registre-se,
contudo, que, em “Les structures elémentaires de la parenté” [“As estruturas elementares do
parentesco”], de 1949, Lévi-Strauss criticou “Totem e tabu”. Em 1962, com “Le totémisme aujourd‟hui”
[“O totemismo hoje”], endureceu ainda mais a sua opinião sobre o trabalho de Freud. Em 1985, porém,
com “La potière jalouse” [“A oleira ciumenta”], o antropñlogo assumiu uma posição mais ponderada
sobre o valor de “Totem e tabu”, reconhecendo o mérito de Freud (cf. ESPINA BARRIO, Freud e Lévi-
Strauss, p.48, 98-99).
1110
Cf. ALLERS, The successful error, p.182; GAY, Freud, p.302, 310; KÜNG, Freud and the problem of
God, p.37, 66; MIJOLLA-MELLOR, A necessidade de crer, p.235; ROBERT, D‟Œdipe à Moïse, p.270;
RUBENSTEIN, L‟imagination religieuse, p.77-78. Veremos que, tratando-se dos dados bíblicos, isso vale
também para “O homem Moisés e a religião monoteísta”.
1111
Cf. MCGUIRE, The Freud/Jung letters, p.211.
adaptação ao meio ambiente, certos órgãos desenvolver-se-iam, ao passo que outros
seriam atrofiados ou desapareceriam. Lamarck acreditava que esses caracteres
adquiridos ou perdidos eram transmitidos de uma geração para outra. Assim, os
esforços realizados por um animal para melhor adaptar-se ao seu meio ambiente teriam
o efeito de produzir, em seu próprio corpo, determinadas modificações que, por sua vez,
seriam passíveis de serem transmitidas aos seus filhotes. Em suma, os caracteres
adquiridos seriam hereditários.
O que Freud fez foi estender essa hipótese da transmissão hereditária
dos caracteres adquiridos aos traços mnésicos de acontecimentos históricos
especialmente marcantes. Ao supor que a memória do assassinato do pai primevo fosse
transmitida hereditariamente, Freud transpôs para o campo da psicologia a hipótese
biológica lamarckiana.
Esboçada em “Totem e tabu”1112, essa hipñtese foi retomada em “O
homem Moisés e a religião monoteísta”:

“...peuvent être à l‟œuvre dans la vie psychique de l‟individu


non seulement des contenus vécus par lui-même, mais aussi des
contenus innés, des élements d‟origine phylogénétique, un
héritage archaïque” [“...podem estar operantes na vida psíquica
do indivíduo não somente conteúdos vividos por ele mesmo,
mas também conteúdos inatos, elementos de origem
filogenética, uma herança arcaica”]1113.

Essa herança arcaica incluiria não apenas disposições, mas também


traços de memória do vivido por gerações anteriores1114. Por meio desse expediente:

“...les précipités psychiques des ces temps originaires étaient


devenus un bien héréditaire qui, à chaque nouvelle génération,
nécessite seulement d‟être réveillé, non d‟être acquis” [“...os
precipitados psíquicos desses tempos originários se tornaram um
bem hereditário que, a cada nova geração, necessita somente de
ser despertado, não adquirido”]1115.

1112
Cf. FREUD, Totem et tabou. In: _______. Œuvres complètes, v.11, p.379.
1113
FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.177.
1114
Cf. FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.179.
1115
FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.211.
Ainda durante a vida de Freud, a biologia recusou a doutrina da
herança dos caracteres adquiridos em que se baseava a hipótese de uma transmissão de
traços mnésicos. “Essa doutrina foi completamente desacreditada há mais de meio
século”1116, escreveu Jones em 1953. Freud sabia disso1117. Não obstante, conservou-se,
até o final da sua vida, um “obstinado adepto” do “desacreditado lamarckismo”1118.
Informado do descrédito em que caíra o pensamento de Lamarck, ele achava que
estavam “todos errados” e “...ignorava toda a evidência biolñgica contrária”1119. Uma
vez que a tradição oral seria insuficiente para explicar a preservação da memória do
crime primordial, Freud não encontrou alternativa senão insistir na tese da herança
arcaica:

“...je n‟ai aucun scrupule à énoncer que les êtres humains ont Ŕ
de cette manière particulière Ŕ toujours su qu‟ils ont eu autrefois
un père originaire et qu‟ils l‟ont abattu” [“...não tenho nenhum
escrúpulo em declarar que os seres humanos sempre souberam Ŕ
dessa maneira particular Ŕ que, outrora, tiveram um pai
originário e que o mataram”]1120.

Não sem razão, Gay descreve como “obstinada” a crença de Freud na


transmissão hereditária dos caracteres adquiridos1121. Yerushalmi, por sua vez, qualifica
de “encarniçado” o apego de Freud a essa hipñtese1122. Segundo o historiador judeu,
face ao psico-lamarckismo freudiano, “...mesmo o mais ardoroso e leal admirador de
Freud sñ pode murmurar: „Certum, quia absurdum est‟” [“Certo, porque é
absurdo”]1123. Roith, por sua vez, descreve como “constrangedor” para o movimento
psicanalítico o apego de Freud a Lamarck1124.
Em suma, do ponto de vista da biologia, a hipótese em que Freud se
baseia era e continua sendo insustentável. Desde o princípio, o lamarckismo foi
rechaçado pelos próprios psicanalistas e, hoje, é quase unanimemente descartado pela

1116
JONES, A vida e a obra de Sigmund Freud, v.3, p.309.
1117
Cf. FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.179.
1118
Cf. JONES, A vida e a obra de Sigmund Freud, v.3, p.310.
1119
JONES, A vida e a obra de Sigmund Freud, v.3, p.312.
1120
FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.180.
1121
Cf. GAY, A Godless jew, p.133.
1122
Cf. YERUSHALMI, O Moisés de Freud, p.60.
1123
YERUSHALMI, O Moisés de Freud, p.61.
1124
Cf. ROITH, O enigma de Freud, p.133.
biologia. A hipótese freudiana da transmissão hereditária dos traços mnésicos do
assassinato do pai primevo é, portanto, inaceitável1125.
Convém, contudo, dar a Freud a chance de uma tréplica. Esta talvez
possa encontrar a sua melhor formulação numa ponderação de Joel Birman. Segundo
este, ao recorrer a Lamarck, Freud estava enunciando numa retórica biológica Ŕ
inadequada, talvez Ŕ uma tese de grande pertinência. Qual seja: o ponto de vista de que
o psiquismo do sujeito não pode ser concebido unicamente na temporalidade de uma
história individual, devendo também ser referido a uma história mais abrangente, aquela
de toda a espécie humana1126. Disso, com efeito, não há como duvidar.
Outra consideração digna de nota é aquela feita por Enriquez e Mezan.
Segundo esses autores, a hipótese da transmissão hereditária dos traços mnésicos do
parricídio não é indispensável: basta supor a universalidade do complexo de Édipo;
basta reconhecer que o complexo de Édipo é estruturante da cultura humana1127. Se
Freud tivesse escrito “Totem e tabu” meio século depois, na França, provavelmente ele
encontraria um referencial teórico capaz de ajudá-lo a dizer o que queria sem precisar de
Lamarck1128.

1125
Cf. DALBIEZ, La méthode psychanalytique et la doctrine freudienne, t.2, p.358-359; DOMÍNGUEZ
MORANO, Creer después de Freud, p.82; DOMÍNGUEZ MORANO, El psicoanálisis freudiano de la religión,
p.336-338, 426-428; DOMÍNGUEZ MORANO, Teología y psicoanálisis, p.27-28; ENRIQUEZ, De la horde à
l‟État, p.195-197; ESPINA BARRIO, Freud e Lévi-Strauss, p.58; GAY, Freud, p.309; JONES, A vida e a
obra de Sigmund Freud, v.3, p.302-313, 325-326, 363; LECUIT, L‟anthropologie théologique à la lumière
de la psychanalyse, p.409-410, 493; MALINOWSKI, Sex and repression in savage society, p.157; MEZAN,
Freud, pensador da cultura, p.547; PALMER, Freud e Jung: sobre a religião, p.87, 89; ROUDINESCO;
PLON, Dicionário de psicanálise, p.521, 758; YERUSHALMI, O Moisés de Freud, p.63-64, 142; ver,
porém: BERNSTEIN, Freud e o legado de Moisés, p.63-77, 119, 123-133, 155-157 [notas 19, 26].
1126
Cf. BIRMAN, Arquivos do mal-estar e da resistência, p.376-377; BIRMAN, Freud e a política, entre
judaísmo e judeidade. In: SAID, Freud e os não-europeus, p.14-15.
1127
Cf. ENRIQUEZ, De la horde à l‟État, p.192-199; MEZAN, Freud, pensador da cultura, p.562-563.
1128
Além das suposições antropológicas e biológicas acima mencionadas, há também um pressuposto de
natureza teolñgica em “Totem e tabu”, a saber: a interpretação da morte de Jesus na cruz como sacrifício
expiatório oferecido a Deus pelo perdão do pecado original. Com base nessa suposição, Freud concluiu
que o pecado original é o assassinato do pai primevo. Alguns autores argumentam que a teologia do
sacrifício expiatório não se sustenta mais (cf. DOMÍNGUEZ MORANO, Creer después de Freud, p.153-156;
DOMÍNGUEZ MORANO, El psicoanálisis freudiano de la religión, p.499-501; DOMÍNGUEZ MORANO,
Experiencia cristiana y psicoanálisis, p.23-29, 86-88, 92-98, 100-101; DOMÍNGUEZ MORANO,
Psicoanálisis y religión: diálogo interminable, p.71, 125; DOMÍNGUEZ MORANO, Teología y
psicoanálisis, p.39-50; DREWERMANN, Fonctionnaires de Dieu, p.94; POHIER, Dieu fractures, p.278-282;
POHIER, Quand je dis Dieu, p.155-171; VARILLON, Joie de croire, joie de vivre, p.68-79; VERGOTE,
Psicanálise e religião. Revista Portuguesa de Filosofia, v.59, f.2, p.583). Vale, porém, o registro de que
essa concepção da morte de Jesus foi recentemente reafirmada pelo papa Bento XVI (cf. BENOIT XVI,
Lumière du monde, p.180; RATZINGER / BENOÎT XVI, Jésus de Nazareth, v.1, p.183; RATZINGER /
BENOÎT XVI, Jésus de Nazareth, v.2, p.55-58, 62-63, 99, 103-104, 111, 132, 136, 142-144, 149, 157-159,
191, 199-203, 215-216, 247, 255-256, 261-272, 285-287; ver, porém: RATZINGER, La foi chrétienne hier
et aujourd‟hui, p.158, 197, 205).
Seja como for, além da fragilidade dos seus pressupostos, o raciocínio
mesmo de Freud em “Totem e tabu” é discutível em alguns aspectos. Pode-se, por
exemplo, estimar como uma contradição o estatuto de acontecimento histórico
conferido ao assassinato do pai primevo.
Sabe-se que, nos primórdios da investigação psicanalítica, Freud
acreditava que, na origem da neurose, haveria um evento traumático real. Essa
suposição ficou conhecida como “teoria da sedução”: quando crianças, os neuróticos
teriam sido molestados sexualmente por um adulto. Mas essa teoria não durou muito
tempo.
No dia 21 de setembro de 1897, em carta endereçada a Fließ, Freud
expressou assim o seu abandono da teoria da sedução: “Não acredito mais em minha
neurótica |teoria das neuroses|”1129. Freud supusera, até então, que a sedução por um
adulto realmente teria acontecido na infância dos seus pacientes. Mas, na medida em
que relatos dessa natureza iam se avolumando, ele se viu diante da constação de que o
abuso de crianças por adultos era algo muito mais frequente do que se poderia imaginar.
A improbabilidade de índices tão elevados de abuso sexual levou Freud a concluir que
os relatos dos seus pacientes expressavam fantasias, mais do que experiências reais.
Fantasias, vale dizer, que tinham o poder de gerar neuroses tanto quanto as experiências
reais.
Portanto, no âmbito da clínica, Freud abandonou a teoria da sedução,
que ressaltava o papel patogênico dos traumas reais acontecidos na primeira infância,
vindo a reconhecer, em troca, que as fantasias possuíam o mesmo poder patogênico que
qualquer experiência traumática real ou, mais do que isso, que a fantasia, isto é, a
realidade psíquica, interna, tinha primazia sobre a realidade material, externa. Contudo,
em “Totem e tabu”, ele afirmou o caráter material do assassinato do pai primordial. “Au
commencement était l‟acte” [“No princípio, foi o ato”]1130: são as últimas palavra de
Freud Ŕ ou, na verdade, de Goethe Ŕ na obra em questão. Numa conversa com Jones,
fazendo uma comparação entre “A interpretação do sonho” e “Totem e tabu”, Freud
afirmou: “Naquela ocasião apresentei o desejo de matar o pai e agora apresento o

1129
MASSON, A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess – 1887-1904, p.265.
1130
FREUD, Totem et tabou. In: _______. Œuvres complètes, v.11, p.382.
assassinato mesmo; no fim das contas, é um grande passo entre um desejo e um
feito”1131.
Ou seja, para explicar o surgimento da religião, Freud conservou uma
concepção que, no âmbito da clínica das neuroses, ele tivera que descartar. Isso é
“estranho”, opina Ricœur1132. É “contraditñrio”, julga Domínguez1133. Ao invés de ser
considerado um acontecimento real, o assassinato do pai primevo poderia ter sido
situado no registro da fantasia1134. Freud julgou que era necessário que o crime
primordial fosse um acontecimento real. Mas isso contradiz o que ele havia aprendido
com a experiência clínica.
De novo, porém, é justo que demos a Freud a oportunidade da
tréplica. E, mais uma vez, na ausência de Freud, encontramos em Joel Birman quem
possa formular essa tréplica. Segundo ele, ao contrário do que comumente se pensa,
com o abandono da teoria da sedução em favor do reconhecimento da importância da
fantasia, Freud não descartou a busca de um fundamento real para o universo
fantasmático1135. O professor cita como exemplos dessa persistente preocupação de
Freud com o real, além de “Totem e tabu”, o caso do “Homem dos Lobos”1136 e “O
homem Moisés e a religião monoteísta”1137.
Também Mezan apresentou um argumento que vem a propósito
registrar. Para ele, Freud tinha motivos para insistir no caráter de realidade do
parricídio, não se contentando em concebê-lo como algo fantasiado. A relação entre o
chefe da horda e os filhos é uma relação dual. O que “Totem e tabu” quer pensar é o
advento do social a partir dessa estrutura dual. Para tanto, duas coisas precisam

1131
JONES, A vida e a obra de Sigmund Freud, v.2, p.354; ver também: ASSOUN, Freud et les sciences
sociales, p.76-77, 145; LACAN, Le séminaire, livre 17, p.129-130.
1132
Cf. RICŒUR, De l‟interprétation, p.516.
1133
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, Creer después de Freud, p.86; DOMÍNGUEZ MORANO, El psicoanálisis
freudiano de la religión, p.458-462; DOMÍNGUEZ MORANO, Teología y psicoanálisis, p.33-34; ver
também: MEISSNER, Psychoanalysis and religious experience, p.64.
1134
Cf. BERNSTEIN, Freud e o legado de Moisés, p.118-123; GAY, Freud, p.309-310; ROAZEN, Freud:
pensamento político e social, p.104.
1135
Cf. BIRMAN, Ensaios de teoria psicanalítica, p.133; BIRMAN, Fantasma, verdade e realidade. In:
BIRMAN; DAMIÃO, Psicanálise, ofício impossível?, p.159, 173; BIRMAN, Sujeito, estrutura e arcaico na
metapsicologia freudiana. In: _______, Percursos na história da psicanálise, p.259.
1136
Cf. FREUD, A partir de l‟histoire d‟une névrose infantile. In: _______. Œuvres complètes, v.13, p.31-
32, 37, 45-58, 93-95, 118 [nota 1], 119 [nota 1].
1137
Acrescente-se ainda que, com o abandono da teoria da sedução, Freud não descarta simplesmente a
idéia de sedução, mas recupera-a em outros termos. O corpo do infante é erogeneizado pelos cuidados
maternos, e isso não deixa de ser uma forma de sedução (cf. BIRMAN, Fantasma, verdade e realidade. In:
BIRMAN; DAMIÃO, Psicanálise, ofício impossível?, p.158).
acontecer: a entrada em cena de um terceiro e a identificação entre os membros do clã.
O assassinato do chefe da horda dá conta desses dois elementos. Mas ele o faz enquanto
acontecimento real, não como algo apenas desejado. Se o parricídio fosse só um
fantasma, estaríamos ainda no nível do sonho, ou seja, num momento solipsista.
Somente o assassinato como acontecimento tem o poder de romper esse solipsismo
originário1138.
Sim, talvez, a contradição acima apontada não seja, afinal, contradição
alguma. Freud não se engana tão facilmente assim. Há, contudo, uma segunda objeção
contra o seu raciocínio em “Totem e tabu” que nos parece mais consistente. Trata-se da
alegação de que a sua argumentação é atravessada por um “círculo vicioso”. Para dizê-
lo com Lévi-Strauss: a hipñtese concebida por Freud “...fait naître l‟état social de
démarches qui le supposent” [“...faz nascer o estado social de comportamentos que o
supõem”]1139. Vejamos.
A horda primeva é um agrupamento natural onde não há lei. As
relações entre os seus membros são relações de força bruta. A rigor, não há pai, não há
filhos e tampouco há irmãos. O clã fraterno, por sua vez, é uma sociedade humana onde
há lei. Existem normas e instituições sociais estabelecidas que, de uma maneira
impessoal, regulam o comportamento dos seus membros. Nesse regime, há pai, há
filhos e há irmãos. O assassinato do chefe da horda é algo próprio de um agrupamento
natural; o remorso pelo assassinato do pai é típico de uma sociedade humana. Há, pois,
um salto qualitativo Ŕ um verdadeiro abismo! Ŕ entre a horda primeva e o clã fraterno.
Freud pretende dar conta de como, partindo de uma coisa, se chegou à outra.
Em “Sex and repression in savage society” [“Sexo e repressão na
sociedade selvagem”], de 1927, Malinowski procedeu a uma cuidadosa análise crítica
de “Totem e tabu”1140. Talvez, a principal objeção levantada pelo antropólogo polonês
contra Freud seja a circularidade do seu raciocínio. Segundo a hipñtese de “Totem e
tabu”, o assassinato do chefe da horda resultou num estado de remorso coletivo. Ora, o

1138
Cf. MEZAN, Freud, pensador da cultura, p.342, 347, 402-422, 435, 568, 576; ver também: LECUIT,
L‟anthropologie théologique à la lumière de la psychanalyse, p.454; RICŒUR, De l‟interprétation, p.242.
1139
LÉVI-STRAUSS, Les structures élémentaires de la parenté, p.563; cf. ROAZEN, Freud: pensamento
político e social, p.103. Lecuit fala também numa “petitio principii” [“petição de princípio”] ou num
“paralogismo” (cf. LECUIT, L‟anthropologie théologique à la lumière de la psychanalyse, p.391-396, 446-
450, 599); Lacan, por sua vez, usou a expressão “círculo mítico” (cf. LACAN, A agressividade em
psicanálise. In: _______. Escritos, p.120).
1140
Cf. MALINOWSKI, Sex and repression in savage society, p.148-172.
remorso supõe a consciência moral. E só há consciência no âmbito da cultura. Ou seja,
Freud “...places culture in conditions in which, ex hypothesi, it cannot exist” [“...põe
cultura em condições onde, ex hypothesi, ela não poderia existir”]1141. Noutras palavras:

“...the theory of Freud [...] tries to explain the origins of culture


by a process which implies the previous existence of culture and
hence involves a circular argument” [“...a teoria de Freud [...]
tenta explicar a origem da cultura por um processo que implica a
existência prévia da cultura e, consequentemente, envolve um
argumento circular”]1142.

Essa objeção Ŕ formulada, talvez, primeiramente por Malinowski Ŕ foi


retomada por Dalbiez e, depois dele, por muitos outros autores1143:

“Supposons que le meurtre du père de la horde primitive se soit


produit, en quoi ce meurtre expliquerait-il l‟apparition dans le
psychisme des fils d‟un sentiment moral de culpabilité? Il ne
faut pas perdre de vue que nous sommes, par hypothèse, en
présence d‟une horde animale et non d‟une horde humaine.
Comment concevoir que le simple fait d‟avoir tué son père soit
capable de faire surgir ex nihilo dans le psychisme d‟un animal
l‟idée abstraite de norme et la conscience de s‟être écarté de
cette norme?” [“Suponhamos que o assassinato do pai da horda
primeva tenha acontecido: de que maneira esse assassinato
explicaria a aparição, no psiquismo dos filhos, de um sentimento
moral de culpabilidade? Não se deve perder de vista que nós
estamos, por hipótese, em presença de uma horda animal e não
de uma horda humana. Como entender que o simples fato de
haver matado o seu pai seja capaz de fazer surgir ex nihilo, no
psiquismo de um animal, a ideia abstrata de norma e a
consciência de haver se distanciado dessa norma?”]1144.

Geza Roheim (1891-1953) Ŕ o antropólogo e psicanalista húngaro


que, durante um período da sua carreira, tomou a defesa de “Totem e tabu” Ŕ procurou
refutar essa objeção. Em “The riddle of the Sphinx” [“O enigma da Esfinge”], de 1934,

1141
MALINOWSKI, Sex and repression in savage society, p.151.
1142
MALINOWSKI, Sex and repression in savage society, p.153.
1143
Cf. BAMBERGER, A religião como ilusão? Concilium, n.16, p.83; BASTIDE, Sociologie et
psychanalyse, p.85; BENKÖ, Psicologia da religião, p.42; DOMÍNGUEZ MORANO, El psicoanálisis
freudiano de la religión, p.424; PALMER, Freud e Jung: sobre a religião, p.92; PESCH, Freud, p.101;
SANDERS, Christianity after Freud, p.53; VACA, Psicoanálisis y dirección espiritual, p.450, 467.
1144
DALBIEZ, La méthode psychanalytique et la doctrine freudienne, t.2, p.357.
ele argumentou que, em “Totem e tabu”, Freud apresenta um relato dramático bastante
condensado do modo como as coisas realmente se deram. Na verdade, o pai a que se
refere Freud são gerações consecutivas de pais; e os filhos, gerações incontáveis de
filhos. Foi apenas de uma forma muito gradual, espaçada no tempo, que tudo aconteceu.
Aliás, em “O homem Moisés e a religião monoteísta”, o prñprio Freud ponderou que,
em “Totem e tabu”, a histñria do assassinato do pai primevo foi contada de forma
condensada, como se tivesse acontecido uma única vez, quando, na verdade, ela se
repetiu inúmeras vezes ao longo de milhares de anos1145.
Não é difícil, porém, perceber a debilidade dessa tréplica. Mesmo
pulverizando o que Freud, inicialmente, apresentou de uma forma comprimida, é
forçoso admitir que, em algum momento, uma mesma geração de irmãos foi,
simultaneamente, capaz de assassinar o pai e acometida por remorsos por causa disso.
Parricidas e arrependidos ao mesmo tempo: como é possível?1146
Em defesa de Freud, pode-se ainda argumentar que o arrependimento
sentido pelos filhos parricidas não pressupõe obrigatoriamente uma consciência moral.
Em “O mal-estar na cultura”, o mesmo Freud esclareceu que o remorso consecutivo ao
crime primordial é o resultado da ambivalência afetiva a respeito do pai, não de uma
consciência moral pressuposta1147. Ou seja, o polo hostil da relação ambivalente teria
levado ao assassinato do chefe da horda. Uma vez satisfeito o ódio, o polo amoroso
responderia pelo arrependimento decorrente do assassinato do pai primevo.
Ocorre que a ambivalência diz respeito ao pai, não ao chefe da horda.
Nas hordas animais, não há ambivalência na relação com o chefe. “Animais não sentem
culpa nem ambivalência quando eliminam o chefe do bando, para ocupar seu lugar”1148,
pondera Jurandir Freire Costa. Se o chefe é morto e deposto, não há culpa, remorso ou
arrependimento. O ciclo de disputa pelo lugar do líder repete-se indefinidamente. Por
que, no caso do homen, o ciclo se interrompe? Por causa da ambivalência, responde
Freud. Ocorre que a ambivalência é já do domínio da cultura. “Remorse, mental

1145
Cf. FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.160;
ver também: FREUD, Totem et tabou. In: _______. Œuvres complètes, v.11, p.362 [nota].
1146
Cf. ROBINSON, Geza Roheim. In: _______, A esquerda freudiana, p.85-86.
1147
Cf. FREUD, Le malaise dans la culture. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.319; ver também:
BEIRNAERT, Aux frontières de l‟acte analytique, p.104.
1148
COSTA, Sobre psicanálise e religião. In: MOURA, Hélio Pellegrino. A-Deus, p.89; cf. CHOISY,
Psicoanálisis y catolicismo, p.26-27; LECUIT, L‟anthropologie théologique à la lumière de la
psychanalyse, p.394; MIJOLLA-MELLOR, A necessidade de crer, p.54.
conflict, ambivalent emotion Ŕ these are cultural, that is human, and not animal
responses” [“Remorso, conflito psíquico, ambivalência afetiva Ŕ essas são respostas
culturais, isto é, humanas, não animais”]1149, adverte Malinowski. De novo, Freud faz
derivar a cultura da cultura. O seu raciocínio é circular Ŕ como uma serpente mordendo
a própria cauda1150, como o Barão de Münchausen que se esforça em sair do pântano
puxando o próprio cabelo1151 ou como no círculo: “Cristñvão carrega o Cristo, o Cristo
segura o mundo: onde Cristñvão põe os pés?”1152
Não acabou. Quando, tratando da horda primeva, Freud se refere ao
recurso a uma nova arma1153 e menciona o uso da linguagem1154, mais uma vez, ele está
supondo a existência da cultura antes do advento da mesma cultura1155. Na narrativa
concebida por Freud em “Totem e tabu”, haveria, pois, antes do suposto advento da
cultura: armas, linguagem, ambivalência afetiva, lei Ŕ numa palavra, cultura!

Crítica de “O homem Moisés e a religião monoteísta”

O que dizer de “O homem Moisés e a religião monoteísta”? Para


Miller, trata-se de um livro “misterioso”1156, “estranho”, “extravagante”1157. Para
Charles Melman, é o trabalho mais “enigmático” de Freud1158; para Yerushalmi, o mais
“opaco”1159; para Gay, o mais “controverso”1160; para Roudinesco e Plon, um dos mais
“audaciosos”1161.

1149
MALINOWSKI, Sex and repression in savage society, p.162. Ademais, o chefe da horda, tal como
desenhado por Freud, não tem por que ser amado. Compreende-se que ele seja odiado, mas não se vê por
que motivo ele devesse ser amado (cf. BEIRNAERT, Freud, la religion et la civilisation. Recherches et
débats du Centre Catholique des Intellectuels Français, n.21, p.178; LECUIT, L‟anthropologie
théologique à la lumière de la psychanalyse, p.393 [nota 2]).
1150
Cf. LECUIT, L‟anthropologie théologique à la lumière de la psychanalyse, p.447 [nota 7].
1151
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, El psicoanálisis freudiano de la religión, p.424.
1152
Cf. LECUIT, L‟anthropologie théologique à la lumière de la psychanalyse, p.448 [nota 4].
1153
Cf. FREUD, Totem et tabou. In: _______. Œuvres complètes, v.11, p.361.
1154
Cf. FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.160.
1155
Cf. LECUIT, L‟anthropologie théologique à la lumière de la psychanalyse, p.389, 407.
1156
Cf. MILLER, Religión, psicoanálisis. In: CHORNE; GOLDENBERG, La creencia y el psicoanálisis, p.65.
1157
Cf. MILLER, Religião, psicanálise. Opção lacaniana, n.39, p.18, 21.
1158
Cf. MELMAN, O complexo de Moisés. In: _______. Para introduzir a psicanálise nos dias de hoje,
p.370.
1159
Cf. YERUSHALMI, O Moisés de Freud, p.24.
1160
Cf. GAY, A Godless jew, p.148.
1161
Cf. ROUDINESCO; PLON, Dicionário de psicanálise, p.518; ver também: FUKS, Freud e a judeidade,
p.96; MARCOS, O homem Moisés e a religião monoteísta. Percurso, n.36, p.102; ROITH, O enigma de
Freud, p.169, 182.
Sobre “O homem Moisés e a religião monoteísta”, Gay afirmou: “A
obra é uma produção curiosa, mais hipotética do que Totem e Tabu, mais desalinhada
do que Inibições, Sintomas e Angústia, mais ofensiva do que O Futuro de uma
Ilusão”1162. E ainda:

“...no conjunto da obra de Freud, o Moisés e o monoteísmo


permanece como uma espécie de excentricidade, à sua maneira
mais extravagante do que Totem e Tabu. Quando refletiu pela
primeira vez nele, pensara em lhe dar o subtítulo „Um Romance
Histñrico‟. Teria feito muito bem se mantivesse sua intenção
original”1163.

Martin Buber (1878-1965) descreveu o livro em questão como um


gesto “lamentável”, “não científico”, “baseado em hipñteses infundadas”1164. Para
Abraham Shalom Yahuda (1877-1951), no ódio de que deu mostras a Israel, a tese de
Freud poderia ter sido defendida por “um dos cristãos mais fanáticos” 1165. Salo
Wittmayer Baron (1895-1989), por sua vez, descreveu o livro de Freud sobre o
monoteísmo mosaico como um “esplêndido castelo suspenso no ar”1166.
Segundo Richard J. Bernstein (1932): “Nos sessenta anos decorridos
desde a publicação do livro de Freud1167, a maior parte dos estudiosos (egiptólogos,
historiadores judeus, antropólogos e etnólogos) concorda com o julgamento inicial de
Baron”1168. O mesmo autor utiliza adjetivos vários para classificar “O homem Moisés e
a religião monoteísta”: “difícil”, “desconcertante”, “escandaloso”, “embaraçoso”,
“constrangedor”, “afrontoso”, “fantástico”, “fictício”, “chocante”, “blasfemo” etc.1169
Por sua vez, o historiador da psicanálise Paul Roazen (1936-2005) descreve a obra em
questão como um livro “confuso”, “desconexo”, “frágil”, “atrevido”, “aventuroso”,
“novelesco”, repleto de “erros crassos”1170.

1162
GAY, Freud, p.546.
1163
GAY, Freud, p.584.
1164
Cf. GAY, Freud, p.582.
1165
Cf. GAY, Freud, p.582.
1166
Cf. BERNSTEIN, Freud e o legado de Moisés, p.16, 145 [nota 3]; JONES, A vida e a obra de Sigmund
Freud, v.3, p.364; ROUDINESCO; PLON, Dicionário de psicanálise, p.518; YERUSHALMI, O Moisés de
Freud, p.132.
1167
Bernstein publicou “Freud and the legacy of Moses” [“Freud e o legado de Moisés”] em 1998.
1168
BERNSTEIN, Freud e o legado de Moisés, p.145 [nota 3].
1169
Cf. BERNSTEIN, Freud e o legado de Moisés, p.9, 19, 23.
1170
Cf. ROAZEN, Freud: pensamento político e social, p.111-118.
Antonio Ávila qualifica “O homem Moisés e a religião monoteísta”
como “pura fábula”1171. Cæsar Malta Sobreira (1957) descreve o mesmo livro como um
“devaneio literário” de Freud Ŕ ou ainda como a obra-prima da “literatura fantástica”
freudiana1172. White, de sua parte, o definiu assim: uma “construção fantasiosa de
andaimes pseudo-histñricos”1173.
Alguns críticos garantem que, se o livro tivesse sido escrito por
qualquer outra pessoa, teria sido ignorado Ŕ ou não teria sido sequer publicado1174.
Talvez, se possa mesmo afirmar que nenhum outro livro comprometeu tanto o prestígio
de Freud enquanto investigador sério e pensador rigoroso quanto “O homem Moisés e a
religião monoteísta”1175. Referindo-se a essa obra, Domínguez escreveu:

“Presentada a modo de ficciñn [...], habría merecido un premio


por su encendida imaginación. Con la pretensión de ser
explicación histórica, Freud hizo un flaco favor a su prestigio de
intelectual exigente” [“Apresentada como ficção [...], mereceria
um prêmio por sua imaginação fértil. Com a pretensão de ser
explicação histórica, Freud prestou um fraco serviço ao seu
prestígio de intelectual exigente”]1176.

Domínguez observa que o juízo que cabe fazer sobre “O homem


Moisés e a religião monoteísta” é “ainda mais severo” do que aquele a respeito de
“Totem e tabu”1177. Ou seja, a obra de Freud sobre a origem do monoteísmo judaico é
ainda mais passível de ser criticada Ŕ portanto, frágil, discutível Ŕ do que o seu livro
sobre a origem do totemismo.
Antes, porém, de passarmos a essa crítica, convém notar, de saída, que
o maior crítico do livro em questão é o próprio Freud. Nenhuma outra obra de Freud
teve um tempo de gestação tão longo quanto “O homem Moisés e a religião
monoteísta”. Ademais, a respeito de nenhum outro trabalho, Freud hesitou tanto na hora
de publicá-lo. Dois tipos de dificuldades levaram Freud a vacilar tratando-se dar a lume

1171
Cf. ÁVILA, Para conhecer a psicologia da religião, p.38.
1172
Cf. SOBREIRA, Freud e o judaísmo, p.136.
1173
Cf. WHITE, Deus e a psicanálise, p.89.
1174
Cf. BAKAN, Sigmund Freud and the jewish mystical tradition, p.137; YERUSHALMI, O Moisés de
Freud, p.132.
1175
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, El psicoanálisis freudiano de la religión, p.466.
1176
DOMÍNGUEZ MORANO, Creer después de Freud, p.82.
1177
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, Creer después de Freud, p.82.
o seu livro sobre Moisés: os “impedimentos exteriores” e os “escrúpulos interiores”1178.
Noutras palavras, o receio de suscitar alguma retaliação por parte da Igreja Católica e a
sua própria autocrítica. Sobre o primeiro, já falamos; tratemos, agora, da segunda.
Em carta escrita a Arnold Zweig, datada de 30 de setembro de 1934,
Freud reconheceu que uma das razões pelas quais não havia se decidido ainda a publicar
“O homem Moisés e a religião monoteísta” era o fato de que o seu trabalho não lhe
parecesse satisfatoriamente seguro, não se encontrando ele completamente satisfeito
com o livro1179.
Em 27 de outubro do mesmo ano, Freud escreveu a Eitingon que, se
estivesse mais seguro sobre a sua hipótese sobre Moisés, não temeria o perigo
externo1180.
Pouco depois, no dia seis de novembro, Freud admitiu a Arnold Zweig
que o risco de provocar uma punição por parte da Igreja Católica não era o único
impedimento: “Plus grave est le fait que le roman historique ne résiste pas à ma propre
critique. J‟exige encore plus de sûreté...” [“Mais grave é o fato de que o romance
histñrico não resista à minha prñpria crítica. Eu exijo ainda mais segurança...”]1181.
Os “escrúpulos interiores” foram, de novo, mencionados na carta a
Arnold Zweig de 16 de dezembro. Nessa correspondência, Freud chegou a descrever a
sua construção como uma “estátua formidável” edificada sobre um “pedestal de barro”,
passível de ser “derrubada” por “qualquer tolo”1182.
Em seis de janeiro do ano seguinte, em carta endereçada a Andreas-
Salomé, Freud admitiu que um dos motivos pelos quais hesitava em publicar “O homem
Moisés e a religião monoteísta” era o fato de que os fundamentos histñricos da sua
hipótese não lhe parecessem suficientemente sólidos1183.
Em 13 de fevereiro de 1935, escrevendo, de novo, a Arnold Zweig,
Freud disse que colocou “para descansar” o manuscrito sobre Moisés1184; e, no dia 13 de
junho, contou que o pós “de lado”1185.

1178
Cf. FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.92,
135.
1179
Cf. FREUD; ZWEIG, Correspondance 1927-1939, p.130.
1180
Cf. JONES, A vida e a obra de Sigmund Freud, v.3, p.200.
1181
FREUD; ZWEIG, Correspondance 1927-1939, p.135.
1182
Cf. FREUD; ZWEIG, Correspondance 1927-1939, p.136.
1183
Cf. ANDREAS-SALOMÉ, Correspondance avec Sigmund Freud 1912-1936, p.254.
1184
Cf. FREUD; ZWEIG, Correspondance 1927-1939, p.140.
Entre uma carta e outra, no dia 14 de março, Freud admitiu a
“fraqueza” da sua construção histñrica, o que o teria “desviado” da ideia de publicar o
trabalho1186.
Numa carta a Jones, de três de março de 1936, Freud admitiu que a
sua teoria carecia da “necessária confirmação histñrica” e que ele não se encontrava em
condições de assegurar a “fidedignidade de suas pressuposições”. Nessa mesma ocasião,
Freud disse que, por essas razões, não havia publicado ainda o seu livro sobre Moisés,
nem pretendia fazê-lo1187.
Passados dois anos, a situação não havia mudado: na carta que
endereçou a Pfister em 27 de março de 1937, Freud observou que, não bastando os
“perigos exteriores”, os “escrúpulos” o impediam de publicar “O homem Moisés e a
religião monoteísta”1188.
Por fim, numa carta inédita a Marie Bonaparte, Freud confessou-lhe
que a obra em questão era um livro que, ora, o “impressionava”, ora, o “desagradava
profundamente”1189.
A autocrítica de Freud a respeito desse trabalho não está, contudo,
registrada apenas em sua correspondência particular. No corpo mesmo de “O homem
Moisés e a religião monoteísta”, por diversas vezes, Freud se interrompe e coloca em
questão o valor do que está escrevendo.
Ao final do primeiro ensaio da obra, Freud reconhece a fragilidade dos
argumentos que apresenta em favor da hipótese da origem egípcia de Moisés. Não
obstante, segue adiante mesmo assim. Alega que essa suposição promete ser muito
fecunda, podendo ajudar a explicar a origem do judaísmo e do monoteísmo em geral1190.
A insegurança de Freud a respeito da sua hipótese inicial está
estampada no título do segundo ensaio: “Se Moisés foi um egípcio...”1191. A formulação
é insegura, incerta, condicional. Freud não ousa escrever: “Já que Moisés foi um
egípcio...” ou “Tendo sido Moisés um egípcio...”. Mas admite o caráter hipotético,

1185
Cf. FREUD; ZWEIG, Correspondance 1927-1939, p.146.
1186
Cf. FREUD; ZWEIG, Correspondance 1927-1939, p.143.
1187
Cf. JONES, A vida e a obra de Sigmund Freud, v.3, p.213.
1188
Cf. FREUD, Correspondance avec le pasteur Pfister 1909-1939, p.205.
1189
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, El psicoanálisis freudiano de la religión, p.305 [nota 827].
1190
Cf. FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.90-
91, 95.
1191
Cf. FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.92.
especulativo e aventuroso das suas formulações no próprio título do segundo dos três
ensaios reunidos pela obra.
Ao abrir o segundo ensaio, Freud anuncia uma série de deduções
extraídas da hipótese de que Moisés tenha sido egípcio. Admite que essas deduções
repousam sobre probabilidades psicológicas, faltando-lhes uma prova objetiva, e
reconhece que o provável e o verdadeiro podem não coincidir1192.
Numa certa altura do segundo ensaio, numa nota de rodapé, Freud
admite que faz um uso discutível dos dados bíblicos, o qual ele descreve como
“autocrático” e “arbitrário”1193.
Ainda no segundo ensaio, tendo já avançado um tanto, Freud descreve
a sua construção como um “edifício de conjecturas” e relembra que todas as suas
hipñteses estão sob o “fator-dúvida”, não precisando ele repeti-lo a cada passo1194.
Um pouco mais adiante, Freud admite que talvez possa ter
apresentado a sua reconstrução com uma afimatividade injustificada e reconhece a
existência de pontos fracos em seu edifício1195.
Algumas páginas mais, e Freud observa que, em sua construção, cada
hipñtese é baseada na precedente e, assim, sucessivamente, o que constitui um “ponto
fraco” da sua argumentação1196. De fato, Freud funda uma hipótese sobre outra Ŕ como
num castelo de cartas Ŕ; quanto mais avança em sua construção, menor é a
probabilidade de cada nova hipótese.
Por fim, na segunda nota preliminar ao terceiro ensaio de “O homem
Moisés e a religião monoteísta”, escrita em Londres, em junho de 1938, Freud compara
o seu livro a “uma dançarina que se equilibra sobre a ponta de um pé”1197.
A nossa opinião a respeito de tudo isso: Freud tinha mesmo razões
para duvidar tanto. É, pois, o caso de tomarmos a sério a sua autocrítica. Vejamos.
Se se quisesse resumir “O homem Moisés e a religião monoteísta” em
uma frase, uma possibilidade seria esta: “Moisés foi um egípcio, e os judeus o
mataram”. Examinemos, pois, primeiramente, as duas teses que essa frase encerra.

1192
Cf. FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.92.
1193
Cf. FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.103
[nota 1].
1194
Cf. FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.108.
1195
Cf. FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.119.
1196
Cf. FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.127.
1197
Cf. FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.136.
A tese da origem egípcia de Moisés não era inédita; já havia ocorrido
a outros autores antes de Freud1198. Aliás, na própria obra de Freud, muito antes da
publicação de “O homem Moisés e a religião monoteísta”, essa possibilidade já havia
sido sugerida. Nas “Lições de introdução à psicanálise”, por exemplo, publicadas em
1916, Freud conta uma anedota em que perguntam a um inteligente garoto judeu quem
foi a mãe de Moisés. Sem titubear, ele responde que foi a princesa egípcia. Contra-
argumentam que não, que a princesa apenas tirou Moisés da água. Ao que, o menino
replica: “C‟est ce qu‟elle dit...” [“É o que ela diz...”]1199. Trata-se de um chiste, por
certo. Mas não foi Freud quem nos ensinou a levar as brincadeiras a sério?
No primeiro ensaio de “O homem Moisés e a religião monoteísta”,
Freud apresenta dois argumentos em favor da nacionalidade egípcia do grande líder
judeu. O primeiro deles é o fato de que “Moisés” seja um nome egípcio. Esse é, porém,
um argumento muito pouco convincente. Pelo menos, por três razões. Primeiramente,
porque, segundo o relato bíblico, foi a princesa egípcia que o encontrou nas águas do rio
Nilo e o criou. O que Freud esperava? Que ela lhe desse um nome hebreu? Que ele
tivesse um nome egípcio, esse é um dado coerente com a lenda1200. Em segundo lugar,
porque, ao longo da história, os judeus sempre tiveram o costume de adotar nomes
típicos dos lugares em que viveram. Nada de errado, portanto, com o nome de
Moisés1201. Por fim, porque, além do Moisés supostamente egípcio, Freud introduz
outro Moisés na história. Este, apesar de ter o mesmo nome, é madianita. Ou seja, neste
caso, a origem egípcia de um nome não se revela decisiva para a nacionalidade do seu
portador. Por que haveria de sê-lo no outro caso?1202
Em seu segundo argumento em favor da origem egípcia de Moisés,
Freud se baseia, como vimos, no estudo de Rank sobre os mitos de nascimento dos
heróis. Note-se, porém, que de acordo com o mito padrão de Rank, o herói é sempre

1198
Cf. GAY, Freud, p.548; JONES, A vida e a obra de Sigmund Freud, v.3, p.365; MEZAN, Psicanálise,
judaísmo: ressonâncias, p.148; MILLER, Religião, psicanálise. Opção lacaniana, n.39, p.22;
ROUDINESCO; PLON, Dicionário de psicanálise, p.519; YERUSHALMI, O Moisés de Freud, p.26.
1199
FREUD, Sigmund. Leçons d‟introduction à la psychanalyse. In: _______. Œuvres complètes, v.14,
p.166; cf. REIK, Trente ans avec Freud, p.49; YERUSHALMI, O Moisés de Freud, p.21; ver também:
BEIRNAERT, Aux frontières de l‟acte analytique, p.32; FREUD, D‟un type particulier de choix d‟objet chez
l‟homme. In: _______. Œuvres complètes, v.10, p.200.
1200
Cf. BERNSTEIN, Freud e o legado de Moisés, p.20; MELMAN, O complexo de Moisés. In: _______.
Para introduzir a psicanálise nos dias de hoje, p.369.
1201
Cf. BERNSTEIN, Freud e o legado de Moisés, p.19-20.
1202
Cf. BEIRNAERT, Aux frontières de l‟acte analytique, p.37; ver também: BAKAN, Sigmund Freud and
the jewish mystical tradition, p.138; YERUSHALMI, O Moisés de Freud, p.137.
alguém de origem social elevada que é adotado por pais de classe baixa: pais
verdadeiros nobres, pais adotivos pobres. O caso de Moisés, na verdade, não se
enquadra no modelo de Rank; está invertido. Mas Freud não explica de maneira
satisfatória essa singular inversão1203.
Acompanhamos, pois, Ricœur em sua avaliação:

“Le nombre des hypothèses hasardeuses de ce livre est


impressionnant. La première hypothèse est celle d‟un Moïse
égyptien [...]. Malheureusement, ni las présomptions tirées du
nom de Moïse, ni celles que suggère le récit de sa naissance [...]
ne donnent beaucoup de crédit à l‟hypothèse d‟un Moïse
égyptien” [“O número de hipñteses temerárias desse livro é
impressionante. A primeira hipótese é aquela de um Moisés
egípcio [...]. Desgraçadamente, nem as suposições tiradas do
nome de Moisés, nem aquelas que o relato do seu nascimento
sugere [...] dão muito crédito à hipótese de um Moisés
egípcio”]1204.

Citamos, há pouco, uma carta a Arnold Zweig em que Freud descreve


o seu trabalho como uma “estátua formidável” edificada sobre um “pedestal de barro”.
Uma expressão análoga Ŕ “estátua de bronze com os pés de barro” Ŕ ocorre no corpo
mesmo de “O homem Moisés e a religião monoteísta”1205. O “pedestal” ou os “pés” de
“barro” a que Freud se refere parecem ser a hipñtese da origem egípcia de Moisés. De
fato, todas as suposições ulteriores baseiam-se nessa hipótese fundamental: se Moisés
foi um egípcio, então, ele transmitiu aos judeus a religião egípcia, e, depois, vem todo o
resto. Em nosso juízo, os fundamentos da construção de Freud não são mesmo muito
confiáveis.
A hipótese do assassinato de Moisés, por sua vez, já havida sido
cogitada por Goethe. O escritor alemão, porém, imaginou um assassinato político,

1203
Cf. BAKAN, Sigmund Freud and the jewish mystical tradition, p.149; BERNSTEIN, Freud e o legado de
Moisés, p.20-21; YERUSHALMI, O Moisés de Freud, p.143. Acrescente-se ainda que, “Se Moisés foi um
egípcio...” Ŕ como diz o título do segundo ensaio Ŕ, como explicar que ele tenha matado um egípcio para
defender a um hebreu (cf. Ex 2,11-12)? Só a consciência de pertença ao povo hebreu pode explicar esse
gesto tão significativo de Moisés, que Freud, no entanto, parece negligenciar (cf. DOMÍNGUEZ MORANO,
El psicoanálisis freudiano de la religión, p.431).
1204
RICŒUR, De l‟interprétation, p.240; cf. PALMER, Freud e Jung: sobre a religião, p.60.
1205
FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.92.
cometido por Josué1206. Não foi essa a fonte de Freud. Freud encontrou a tese do
assassinato de Moisés pelos judeus num livro do historiador e exegeta Ernst Sellin
(1867-1946), intitulado “Mose und seine Bedeutung für die israelitisch-jüdische
Religionsgeschichte” [“Moisés e o seu significado para a religião judaico-israelita”],
publicado em 1922. Sellin baseou a sua hipótese em alusões encontradas nos livros
proféticos, particularmente, em “Oséias”1207.
Ocorre que o trabalho de Sellin foi duramente criticado por eruditos
judeus, de modo que o próprio Sellin abandonou a sua tese e se retratou 1208. Na visita
que fez a Freud, em Londres, em junho de 1938, Yahuda deu-lhe a informação de que
Sellin havia abandonado a sua hipñtese. Freud, no entanto, “deu de ombros” e disse:
“Deve ser verdade, de qualquer jeito”1209. Freud ignorou a retratação de Sellin, assim
como ignorou o descrédito em que caíra a tese da transmissão hereditária dos caracteres
adquiridos1210.
Segundo Jones, na verdade, a suposta retratação de Sellin nunca
aconteceu. Pelo contrário, depois de formular a hipótese do assassinato de Moisés em
1922, Sellin teria publicado, passados 13 anos, um novo livro em que apresentava novas
provas para a mesma hipótese1211. Não é isso, porém, o mais importante. Quer Sellin
tenha mudado ou não de opinião, o que importa é saber se a sua tese se sustenta.
A hipótese do assassinato de Moisés pelos hebreus baseia-se numa
interpretação que se lê em Os 12,15Ŕ13,1. Num breve, mas denso artigo, o biblista
Johan Lust se debruçou sobre esse pequeno trecho das Escrituras e concluiu que a
exegese de Sellin segue uma metodologia ultrapassada. Os métodos contemporâneos de
interpretação bíblica não confirmam a leitura de Sellin segundo a qual Os 12,15Ŕ13,1
contém um relato velado do assassinato de Moisés pelo seu povo1212.

1206
Cf. ROUANET, As duas culturas da psicanálise. In: FRANÇA, Freud, a cultura judaica e a
modernidade, p.23-24; YERUSHALMI, O Moisés de Freud, p.26.
1207
Cf. FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.113-
114, 125, 138-139; ROUDINESCO; PLON, Dicionário de psicanálise, p.519.
1208
Cf. RICŒUR, De l‟interprétation, p.240; RIZZUTO, Por que Freud rejeitou Deus?, p.177; ROBERT,
D‟Œdipe à Moïse, p.273-274 [nota 1].
1209
JONES, A vida e a obra de Sigmund Freud, v.3, p.366.
1210
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, El psicoanálisis freudiano de la religión, p.434.
1211
Cf. JONES, A vida e a obra de Sigmund Freud, v.3, p.367; YERUSHALMI, O Moisés de Freud, p.184
[nota 21].
1212
Cf. LUST, Freud, Hosea and the murder of Moses. Ephemerides theologicae lovanienses, v.65, f.1,
p.81-93; ver também: DOMÍNGUEZ MORANO, El psicoanálisis freudiano de la religión, p.433-434.
Registre-se ainda que, segundo Yerushalmi, caso tivesse ocorrido, o assassinato de Moisés não teria sido
esquecido, pois a tradição bíblica judaica não se caracteriza por ocultar as iniquidades dos israelitas,
A verdade é que Freud gostou da hipótese de Sellin. Ela lhe convinha.
O modelo explicativo de Freud Ŕ trauma, recalque, latência e retorno do recalcado Ŕ
exigia um acontecimento traumático originário. Na origem do totemismo, estava o
assassinato do pai primevo. Freud precisava de algo equivalente a um parricídio na
origem do monoteísmo mosaico. A analogia da religião com a neurose traumática
requeria o trauma. Só poderia haver retorno do recalcado se houvesse um acontecimento
traumático recalcado, passível de retornar. A hipótese de Sellin atendia perfeitamente a
essa exigência1213.
Essa última consideração nos dá o ensejo de passarmos a outros
aspectos de “O homem Moisés e a religião monoteísta” que nos parecem também
objetáveis Ŕ assim como a origem egípcia de Moisés e o seu assassinato pelos judeus.
Freud não apenas aceitou a hipótese de Sellin porque essa lhe convinha, mas parece ter
procedido da mesma maneira com os dados bíblicos. Quando discutimos “Totem e
tabu”, já havíamos sugerido algo semelhante referindo-nos aos dados antropológicos.
Ao que parece, o mesmo aconteceu no livro de Freud sobre o monoteísmo mosaico: ele
manipulou os dados da Escritura em função de uma tese pré-concebida.
De fato, o tratamento que Freud concede ao texto bíblico é um tanto
arbitrário. Alguns elementos, ele admite como verdades com uma ingenuidade
surpreendente; outros Ŕ a narração do êxodo, por exemplo Ŕ, ele recusa em bloco sem a
menor hesitação. Ou seja, Freud faz um uso seletivo das passagens bíblicas: acolhe o
que lhe interessa e despreza o que não lhe parece útil; admite o que se harmoniza com a
sua hipótese e rejeita o que não se encaixa nela1214. Aliás, numa nota de rodapé a “O
homem Moisés e a religião monoteísta”, o prñprio Freud reconhece que faz um uso
“autocrático” e “arbitrário” dos dados bíblicos, recolhendo o que lhe convém e
descartando o que não lhe interessa1215. Tudo o que estamos dizendo é que achamos que
ele tem razão.

muito pelo contrário (cf. YERUSHALMI, O Moisés de Freud, p.135, 137). Jacques Derrida (1930-2004),
porém, criticou esse argumento de Yerushalmi (cf. DERRIDA, Mal de arquivo, p.83-87).
1213
Cf. GAY, Freud, p.549; RICŒUR, Le conflit des interprétations, p.133-137; YERUSHALMI, O Moisés
de Freud, p.47.
1214
Cf. ALLERS, The successful error, p.199 [nota]; BALMARY, Le sacrifice interdit, p.34; BERNSTEIN,
Freud e o legado de Moisés, p.24, 29; DOMÍNGUEZ MORANO, El psicoanálisis freudiano de la religión,
p.312, 430, 466; MEZAN, Freud, pensador da cultura, p.627; PFRIMMER, Freud, leitor da Bíblia, p.219.
1215
Cf. FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.103
[nota 1]; ver também: FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres
complètes, v.20, p.183.
Acompanhamos, pois, Ricœur em seu parecer:

“Il est à peine besoin de dire que Moïse et le Monothéisme n‟est


aucunement au niveau d‟une exégese de l‟Ancien Testament et
ne satisfait à aucun degré aux exigences les plus élémentaires
d‟une herméneutique ajustée à un texte” [“Quase não é
necessário dizer que Moisés e o Monoteísmo não está em
absoluto no nível de uma exegese do Antigo Testamento e não
satisfaz em nenhum grau às exigências mais elementares de uma
hermenêutica ajustada ao texto”]1216.

Também a argumentação de Freud, de um modo geral, é discutível.


Em praticamente todos os passos do seu arrazoado em “O homem Moisés e a religião
monoteísta”, Freud faz suposições altamente especulativas. Como vimos, por diversas
vezes, ele se interrompe e admite a fragilidade das suas hipóteses. Não obstante, feito
isso, segue adiante como se tudo tivesse sido provado com todo o rigor1217.
Uma objeção, por exemplo, que Freud admite e que, em nossa
opinião, tem mesmo procedência versa sobre a explicação que ele, afinal, alcançou do
monoteísmo mosaico. Está bem! Digamos que o monoteísmo dos judeus tenha mesmo
derivado do monoteísmo egípcio. Mas, e o monoteísmo egípcio? Originou-se do quê?
Freud apenas transfere o problema. Ou, melhor, talvez, não: ele sugere que a causa
determinante do surgimento do monoteísmo egípcio tenha sido o fato de que o Egito
tenha se tornado um império mundial. De fato, um império global sugere um Deus
universal1218. Se a intenção de Freud era explicar a origem do monoteísmo judaico
simplesmente, então, está explicado. Mas, se ele pretendia dar conta da origem do
monoteísmo como tal, a sua explicação acaba sendo muito mais sociológica Ŕ para não
dizer “marxista” Ŕ do que psicanalítica1219. Aliás, o próprio Freud se dá conta disso1220.
Mas reconhecer um problema não significa resolvê-lo.

1216
RICŒUR, De l‟interprétation, p.523; cf. RICŒUR, O ateísmo da psicanálise de Freud. Concilium, n.16,
p.76.
1217
Cf. BERNSTEIN, Freud e o legado de Moisés, p.21, 25, 35, 149 [nota 16]; MEZAN, Freud, pensador da
cultura, p.624, 628 [nota 169]; VACA, Psicoanálisis y dirección espiritual, p.429.
1218
Cf. FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.97,
137, 165.
1219
Cf. BERNSTEIN, Freud e o legado de Moisés, p.33; DOMÍNGUEZ MORANO, El psicoanálisis freudiano
de la religión, p.319; LAPLANCHE, Elaborações temáticas: sedução, perseguição e revelação. Revista
Brasileira de Psicanálise, v.27, n.4, p.771; MEZAN, Freud, pensador da cultura, p.626.
1220
Cf. FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.143-
144.
Fizemos, porém, uma concessão acima que, na verdade, não
deveríamos ter feito. Hoje em dia, considera-se, pelo menos, duvidoso que o
monoteísmo egípcio tenha qualquer relação com o monoteísmo judaico. O judaísmo
parece ter uma dívida maior com as religiões mesopotâmicas, pouco ou nada devendo
ao Egito1221.
O Deus de Moisés era um Deus local, não um Deus universal, como
Freud pretende que o Deus egípcio tenho sido. Ademais, a fé de Israel em Iahweh não
excluía a existência de outros deuses, apenas afirmava a supremacia do Deus dos
judeus. Portanto, a rigor, mal se pode falar em “monoteísmo mosaico”; sñ se pode falar
em “monoteísmo” propriamente a partir da era dos profetas, ou seja, pelo menos, quatro
séculos depois de Moisés. Antes disso, cabe falar, no máximo, em “henoteísmo”, isto é,
na eleição de uma divindade sem que a existência de outras seja negada1222.
O Deus dos egípcios era chamado “Aton”; o dos judeus, “Adonai”.
Apesar da afinidade fônica, considera-se improvável que uma palavra derive de
outra1223.
Além disso, a antecipação freudiana da datação do êxodo em um
século1224 também é um problema: ele não pode ter acontecido depois de 1.250 a.C.1225.
Em suma, a origem egípcia de Moisés, o seu assassinato pelos judeus,
o tratamento dispensado por Freud aos dados bíblicos, o caráter altamente especulativo
da argumentação freudiana, o tipo de explicação fornecida do monoteísmo egípcio, a
origem egípcia do monoteísmo judeu, a própria ideia de monoteísmo mosaico, o
parentesco entre Adonai e Aton, a cronologia freudiana do êxodo Ŕ tudo isso é muito
discutível1226. E esses problemas todos empilhados fazem de “O homem Moisés e a
religião monoteísta” um livro bastante frágil.
Antes de passarmos para a seção seguinte, um último registro. Vimos,
no capítulo segundo, que a elaboração teórica de Freud na obra em questão pode ser
1221
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, El psicoanálisis freudiano de la religión, p.432; MEISSNER,
Psychoanalysis and religious experience, p.113, 121-122, 128; RICŒUR, De l‟interprétation, p.240.
1222
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, El psicoanálisis freudiano de la religión, p.433; LACAN, Le séminaire,
livre 17, p.134; MEISSNER, Psychoanalysis and religious experience, p.124, 128.
1223
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, El psicoanálisis freudiano de la religión, p.431; GAY, Freud, p.584.
1224
Cf. FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.105-
106, 108, 126-127.
1225
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, El psicoanálisis freudiano de la religión, p.311, 318; MEISSNER,
Psychoanalysis and religious experience, p.118; SANDERS, Christianity after Freud, p.43-44.
1226
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, Creer después de Freud, p.82-83; DOMÍNGUEZ MORANO, El psicoanálisis
freudiano de la religion, p.429-436; DOMÍNGUEZ MORANO, Teología y psicoanálisis, p.28.
dividida em duas partes: a reconstrução da história do monoteísmo dos judeus e a
interpretação psicanalítica dessa história. Tudo o que dissemos acima tem a ver com a
primeira dessas duas partes. Freud interpretou a história do monoteísmo judaico
aplicando a ela o modelo da neurose traumática, com os momentos: trauma,
recalcamento, latência e retorno do recalcado.
Discutiremos abaixo, ao tratarmos da natureza da religião, se o fato
religioso pode mesmo ser comparado a uma neurose. Por ora, o que nos parece
oportuno registrar é que interpretar a história das religiões a partir do esquema causal do
desenvolvimento de uma neurose é, para dizer o mínimo, um procedimento temerário.
Com efeito, apesar de Haeckel, da ontogênese à filogênese, há um passo gigantesco. Em
“O homem Moisés e a religião monoteísta”, Freud parece, pois, ter levado longe demais
a analogia entre o individual e o coletivo1227. Em outros lugares, aliás, o próprio Freud
ponderou que não é bom transplantar um conceito muito longe do solo em que
nasceu1228, havendo, pois, a possibilidade de que o paralelo entre a ontogênese e a
filogênese seja injustificado1229.

“Totem e tabu” e “O homem Moisés e a religião monoteísta”


em várias chaves de leitura

Não obstante as muitas objeções que lhe foram feitas, Freud jamais
recuou quanto a “Totem e tabu”, mostrando-se impermeável a toda crítica. A mesma
pertinácia caracterizou a maneira como ele se aferrou, 25 anos depois, a “O homem
Moisés e a religião monoteísta”1230 Ŕ embora, nesse caso, Freud tenha tido que resistir
por um período muito menor: ele morreu no mesmo ano da publicação do livro.
Em “Neuroses de transferência: uma síntese”, de 1915, recebidas já as
primeiras críticas, Freud reafirmou, com alguns detalhes novos, a hipótese do
assassinato do chefe da horda primeva formulada em “Totem e tabu”1231.

1227
Cf. MEISSNER, Psychoanalysis and religious experience, p.105, 112; YERUSHALMI, O Moisés de
Freud, p.140.
1228
Cf. FREUD, L‟avenir d‟une illusion. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.184; FREUD, Le malaise
dans la culture. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.332.
1229
Cf. FREUD, L‟avenir d‟une illusion. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.194.
1230
Cf. BERNSTEIN, Freud e o legado de Moisés, p.88; GAY, Freud, p.571; KOLTAI, Totem e tabu, p.59;
PFRIMMER, Freud, leitor da Bíblia, p.200, 317, 336.
1231
Cf. FREUD, Neuroses de transferência: uma síntese, p.77-82.
Em “O futuro de uma ilusão” (1927), ele argumentou que o seu livro
sobre o totemismo tinha o mérito de reunir, num todo consistente, um número
considerável de fatos dispersos e relevantes1232.
Por fim, em “O homem Moisés e a religião monoteísta” (1939), tendo
retomado “Totem e tabu” resumidamente, Freud advertiu que aquele que tinha por
“fantástica” a sua hipñtese ignorava a “riqueza” e a “força probatñria” que ela
encerrava1233, não havendo nada, em sua construção, que tivesse sido “inventado
gratuitamente” ou que carecesse de “fundamentos sñlidos”1234. Passado, pois, um quarto
de século da publicação de “Totem e tabu”, Freud declarou: “Aujourd‟hui encore je
tiens fermement à cet édifice” [“Ainda hoje, me atenho firmemente àquele
edifício”]1235.
Teria sido, contudo, por pura teimosia que Freud se apegou a essas
obras? Talvez, não. Para Lacan, “Totem e tabu” é um livro “mal compreendido” e “mal
criticado”1236. Segundo Melman, “O homem Moisés e a religião monoteísta” é um
trabalho que ainda não foi tomado como “conviria” e que continua suscitando as
“maiores incompreensões”1237. Talvez, portanto, Freud tenha resistido porque foi
incompreendido e, consequentemente, criticado de forma improcedente. Talvez, seja
possível interpretar “Totem e tabu” e “O homem Moisés e a religião monoteísta” numa
chave de leitura que explicite o valor que essas obras têm e que Freud, com razão,
procurou defender1238.
De fato, os dois livros em questão admitem leituras várias. Na opinião
de Betty Fuks, o livro de Freud sobre o monoteísmo judaico é um “hiper-texto”:
“...múltiplos sentidos [...] borbulham em suas páginas”1239. O mesmo, certamente, se
pode dizer sobre o trabalho de Freud a respeito do totemismo.
Com efeito, pode-se mesmo perguntar: “Totem e tabu” e “O homem
Moisés e a religião monoteísta” são livros de quê? Antropologia, etnologia, psicologia

1232
Cf. FREUD, L‟avenir d‟une illusion. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.163.
1233
Cf. FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.163.
1234
Cf. FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.164.
1235
FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.210.
1236
Cf. LACAN, Discours aux catholiques. In: _______. Le triomphe de la religion précédé de Discours
aux catholiques, p.33.
1237
Cf. MELMAN, O complexo de Moisés. In: _______. Para introduzir a psicanálise nos dias de hoje,
p.367.
1238
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, Experiencia cristiana y psicoanálisis, p.234, 242.
1239
FUKS, Freud e a judeidade, p.87.
social, história das religiões, exegese bíblica, autobiografia, história do movimento
psicanalítico, política, sociologia, literatura, psicanálise, metapsicologia Ŕ afinal, são
livros de quê? Em que “prateleira” da “estante” dos saberes deve-se colocá-los?
Comecemos por “Totem e tabu”. E comecemos pela “intenção
consciente” de Freud, digamos assim, a seu respeito.
Segundo aquilo que Freud declarou explicitamente, “Totem e tabu” é
um trabalho de aplicação da psicanálise a um problema específico da psicologia
social1240, a saber, o totemismo. No prefácio do livro, Freud diz que a sua intenção é
contribuir para a elucidação do problema do totemismo a partir da psicanálise1241. Numa
nota do primeiro ensaio de “Totem e tabu”, ele anuncia que, no quarto ensaio da obra,
fará uma tentativa de resolver o problema do totemismo aplicando-lhe a psicanálise1242.
A primeira seção do referido quarto ensaio é dedicada a uma descrição do totemismo,
ou seja, a uma apresentação do problema de que se vai tratar1243. A seção seguinte
recolhe as tentativas diversas de explicação do fenômeno e termina com a conclusão de
que nenhuma delas é satisfatória1244. A terceira seção se abre com o anúncio de que a
psicanálise pode lançar um “raio de luz” sobre toda aquela “obscuridade”1245. Freud dá
partida, então, à sua “tentativa de explicação do totemismo” pela psicanálise1246.
Ora, naquele tempo, acreditava-se que o totemismo fosse a primeira
forma de organização social, moral e religiosa e que esse estágio fosse atravessado
universalmente pelas culturas1247. Por conseguinte, explicar a origem do totemismo
significava, de uma só vez, explicar a origem da sociedade, da moral e da religião.
De fato, numa carta a Jung, datada de 20 de agosto de 1911, Freud
anunciou que estava trabalhando num campo em que aquele não esperaria encontrá-

1240
Cf. FREUD, Contribution à l‟histoire du mouvement psychanalytique. In: _______. Œuvres complètes,
v.12, p.282; FREUD, Totem et tabou. In: _______. Œuvres complètes, v.11, p.217-218, 383-384.
1241
Cf. FREUD, Totem et tabou. In: _______. Œuvres complètes, v.11, p.193-194.
1242
Cf. FREUD, Totem et tabou. In: _______. Œuvres complètes, v.11, p.200 [nota 2].
1243
Cf. FREUD, Totem et tabou. In: _______. Œuvres complètes, v.11, p.311-320.
1244
Cf. FREUD, Totem et tabou. In: _______. Œuvres complètes, v.11, p.325, 341.
1245
Cf. FREUD, Totem et tabou. In: _______. Œuvres complètes, v.11, p.343.
1246
Cf. FREUD, Totem et tabou. In: _______. Œuvres complètes, v.11, p.349; ver também: FREUD,
L‟avenir d‟une illusion. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.163.
1247
Cf. FREUD, Totem et tabou. In: _______. Œuvres complètes, v.11, p.312, 320, 363; ver também:
FREUD, Avant-propos à “Problèmes de psychologie religieuse” de Theodor Reik. In: _______. Œuvres
complètes, v.15, p.215; FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres
complètes, v.20, p.162, 197; FREUD, Psychologie des masses et analyse du moi. In: _______. Œuvres
complètes, v.16, p.61.
lo1248. De início, ele não revelou do que se tratava. Mas o mistério não durou muito
tempo. No dia primeiro do mês seguinte, Freud escreveu: “...my work in these last few
weeks has dealt with the same theme as yours, to wit, the origin of religion” [“...o meu
trabalho, nessas últimas semanas, tem tratado do mesmo tema que o seu, a saber, a
origem da religião”]1249.
A expressão “psicogênese da religião” aparece numa carta de Freud a
Jones, datada de cinco de novembro de 19111250, e numa carta endereçada a Pfister, no
dia 14 de dezembro seguinte1251.
No pós-escrito do “caso Schreber”, publicado naquele mesmo ano,
Freud manifesta a sua expectativa de que os seus estudos sobre o totemismo tornem
possível uma “compreensão psicanalítica das origens da religião”1252.
No primeiro parágrafo do quarto ensaio de “Totem e tabu” (1913), ele
avisa que vai tratar ali da “origem” ou da “gênese” da religião, de uma das “fontes”
dessa instituição1253. Na quinta seção do mesmo ensaio Ŕ o ponto culminante do livro Ŕ,
Freud concebe a hipótese do assassinato do pai primevo e atribui a esse crime
memorável o começo das organizações sociais, das restrições morais e da religião1254.
Na última seção, ele formula o resultado da sua investigação dizendo que os começos da
religião, da moralidade, da sociedade e da arte convergem para o complexo de
Édipo1255. Numa nota, pouco depois, Freud avalia o papel do fator por ele indicado nas
origens da religião, da moralidade e da sociedade1256.
Em “O interesse que a psicanálise apresenta” (1913), ele assegura que
a psicanálise está em condições de lançar luz sobre o problema das origens das grandes
instituições culturais: a religião, a moralidade, o direito e a filosofia1257.
Em “Contribuição à histñria do movimento psicanalítico” (1914),
Freud observa que, em “Totem e tabu”, ele tratou do problema das origens das
instituições culturais humanas mais importantes: o estado, a moralidade e a religião1258.
1248
Cf. MCGUIRE, The Freud/Jung letters, p.194.
1249
MCGUIRE, The Freud/Jung letters, p.196.
1250
Cf. JONES, A vida e a obra de Sigmund Freud, v.2, p.351.
1251
Cf. FREUD, Correspondance avec le pasteur Pfister 1909-1939, p.93.
1252
Cf. FREUD, Remarques psychanalytiques sur un cas de paranoïa (Dementia paranoides) décrit sous
forme autobiographique. In: _______. Œuvres complètes, v.10, p.303.
1253
Cf. FREUD, Totem et tabou. In: _______. Œuvres complètes, v.11, p.311.
1254
Cf. FREUD, Totem et tabou. In: _______. Œuvres complètes, v.11, p.361.
1255
Cf. FREUD, Totem et tabou. In: _______. Œuvres complètes, v.11, p.377.
1256
Cf. FREUD, Totem et tabou. In: _______. Œuvres complètes, v.11, p.378 [nota 1].
1257
Cf. FREUD, L‟intérêt que présente la psychanalyse. In: _______. Œuvres complètes, v.12, p.120.
Em “Lições de introdução à psicanálise” (1916-1917), ele indica a
consciência de culpabilidade decorrente do assassinato do pai primevo como a fonte
última da religião e da moralidade1259.
Em “Prefácio a „Problemas de psicologia religiosa‟ de Theodor Reik”
(1919), Freud observa que os primeiros laços sociais, as limitações morais
fundamentais, bem como a forma mais antiga de religião surgiram como reação ao
assassinato do chefe da horda primeva1260.
Em “Psicologia das massas e análise do eu” (1921), ele atribui ao
assassinato do chefe da horda primeva os começos da religião, da moralidade e da
organização social1261.
Em “„Psicanálise‟ e „Teoria da libido‟” (1923), Freud afirma que a
ordem cívica, a moralidade, o direito e a religião surgiram ao mesmo tempo, como
formações reativas ao complexo de Édipo1262.
Em “Breve resumo de psicanálise” (1924), ele declara que a finalidade
da religião, do direito, da ética e da vida cívica é possibilitar o domínio do complexo de
Édipo1263.
Em “Autoapresentação” (1925), Freud afirma que a culpabilidade
decorrente do assassinato do pai primevo inaugurou a organização social, a religião e a
limitação moral1264. Na mesma obra, ele diz que, em “Totem e tabu”, ele explorou as
origens da religião e da moral1265.
Em “As resistências contra a psicanálise” (1925), Freud sugere que a
superação do complexo de Édipo está intimamente ligada aos inícios da moralidade, da
religião e da ordem social1266.
Em “A questão da análise leiga” (1926), ele considera que a
psicanálise pode contribuir valiosamente para o esclarecimento da origem da cultura
humana e das suas grandes instituições, tais como a arte, a religião e a ordem social1267.
1258
Cf. FREUD, Contribution à l‟histoire du mouvement psychanalytique. In: _______. Œuvres complètes,
v.12, p.282.
1259
Cf. FREUD, Leçons d‟introduction à la psychanalyse. In: _______. Œuvres complètes, v.14, 343.
1260
Cf. FREUD, Avant-propos à “Problèmes de psychologie religieuse” de Theodor Reik. In: _______.
Œuvres complètes, v.15, p.214-215.
1261
Cf. FREUD, Psychologie des masses et analyse du moi. In: _______. Œuvres complètes, v.16, 61.
1262
Cf. FREUD, “Psychanalyse” et “Théorie de la libido”. In: _______. Œuvres complètes, v.16, p.203.
1263
Cf. FREUD, Court abrégé de psychanalyse. In: _______. Œuvres complètes, v.16, p.353.
1264
Cf. FREUD, “Autoprésentation”. In: _______. Œuvres complètes, v.17, p.116.
1265
Cf. FREUD, “Autoprésentation”. In: _______. Œuvres complètes, v.17, p.120.
1266
Cf. FREUD, Les résistances contre la psychanalyse. In: _______. Œuvres complètes, v.17, p.133.
No prefácio à tradução hebraica de “Totem e tabu”, escrito em 1930 e
publicado em 1934, Freud diz que o livro tem por tema a origem da religião e da
moralidade1268.
Por fim, em “O homem Moisés e a religião monoteísta” (1939), ele
afirma que, com o assassinato do pai, tiveram início a ordem social, as leis ordinárias e
a religião1269.
Como se vê, a lista dos termos elencados por Freud varia um pouco:
ordem social, estado, religião, moralidade, ética, direito, filosofia, arte etc. Ŕ eis aquilo
cuja origem ele pretende desvendar com “Totem e tabu”. Note-se que o termo que
Freud jamais se esquece de mencionar é “religião”. Seja como for, reunindo esses
elementos todos, numa palavra, o seu trabalho sobre o totemismo contém uma teoria
sobre a origem da “cultura”; em “Totem e tabu”, há uma “genealogia da Kultur”1270; a
obra em questão versa sobre a “aurora” da humanidade, o “big bang” da civilização1271;
“Totem e tabu” pode, enfim, ser lido como um livro sobre a passagem da natureza para
a cultura, isto é, sobre a constituição da ordem simbólica1272. Essa é, pois, uma primeira
possibilidade Ŕ e aquela que Freud parecia ter mais presente em sua consciência.
O que dizer do seu estudo sobre o monoteísmo mosaico? Em “Totem
e tabu”, Freud especula sobre um acontecimento anterior à história: a origem do
totemismo. Em “O homem Moisés e a religião monoteísta”, porém, ele reconstrñi um
acontecimento situado já no interior da história: a origem do monoteísmo judaico1273.
É verdade que, em 1934, Freud chegou a pensar no trabalho em
questão como um romance histñrico: “O homem Moisés, um romance histñrico”, eis
como o livro seria chamado1274. Ao qualificar desse modo a sua pesquisa, ele pareceu
ter se inspirado em Thomas Mann (1875-1955), que, em 1933, publicou a primeira parte

1267
Cf. FREUD, La question de l‟analyse profane. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.76.
1268
Cf. FREUD, Totem et tabou. In: _______. Œuvres complètes, v.11, p.195.
1269
Cf. FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.210.
1270
Cf. KOLTAI, Totem e tabu, p.32, 42, 111.
1271
Cf. ENRIQUEZ, De la horde à l‟État, p.42.
1272
Cf. BIRMAN, Cadernos sobre o mal, p.188; BIRMAN, Estilo e modernidade em psicanálise, p.128-133;
ver também: GAY, Freud, p.301; MALAMOUD, Psicanálise & ciência das religiões. In: KAUFMANN,
Dicionário enciclopédico de psicanálise, p.585.
1273
Cf. YERUSHALMI, O Moisés de Freud, p.47-48.
1274
Cf. ANDREAS-SALOMÉ, Correspondance avec Sigmund Freud 1912-1936, p.252; FREUD, L‟homme
Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.76; FREUD; ZWEIG,
Correspondance 1927-1939, p.129, 135; ver também: JONES, A vida e a obra de Sigmund Freud, v.3,
p.213.
da tetralogia “Joseph und seine Brüder” [“José e seus irmãos”]1275. Numa introdução
inédita ao rascunho do que viria a ser “O homem Moisés e a religião monoteísta”,
escrita em 1934, Freud esclareceu que, ao qualificar dessa maneira a sua obra, estava
indicando que ela possuía um valor de verdade indeterminado, provável, talvez, mas
não certo1276. A mesma explicação, ele deu a Jones, em três de março de 1936: faltava
ao seu livro a “necessária confirmação histñrica”, não se encontrando Freud em
condições de assegurar a “fidedignidade de suas pressuposições”1277.
Numa carta a Eitingon, porém, datada de 13 de novembro de 1934, ele
afirmou: “Não sou bom em romances histñricos. Que fiquem para Thomas Mann”1278.
O fato de que tenha descartado a expressão “romance histñrico” indica que, embora
tenha hesitado a respeito, Freud, por fim, desistiu de propor a sua obra sob esse título,
reivindicando para ela um caráter histórico1279. E, com efeito, em sua versão final, “O
homem Moisés e a religião monoteísta” não se apresenta como uma “obra de
imaginação”, mas como uma “reconstrução científica com pretensões de verdade”1280.
Portanto, ao publicar o seu último estudo sobre Moisés, Freud
pretendia estar apresentando um trabalho de história, de história das religiões Ŕ mais
exatamente, um livro sobre o surgimento do monoteísmo dos judeus1281. Atesta-o, por
exemplo, o fato de que, numa carta a Arnold Zweig, datada de dois de maio de 1935, ele
tenha manifestado a esperança de que a sua hipótese sobre Moisés fosse confirmada por
escavações arqueológicas. Referindo-se a recentes descobertas sobre o príncipe
Thothmes, Freud escreveu:

“Si j‟étais millionnaire, je financerais la poursuite des fouilles.


Ce Thotmès pourrait être mon Moïse, et je pourrais me vanter de
l‟avoir deviné” [“Se eu fosse milionário, eu financiaria o

1275
Cf. FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.76.
1276
Cf. FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.217-
218; ver também: BERNSTEIN, Freud e o legado de Moisés, p.83; YERUSHALMI, O Moisés de Freud, p.42-
43.
1277
Cf. JONES, A vida e a obra de Sigmund Freud, v.3, p.213.
1278
JONES, A vida e a obra de Sigmund Freud, v.3, p.200; cf. BERNSTEIN, Freud e o legado de Moisés,
p.83; YERUSHALMI, O Moisés de Freud, p.44.
1279
Cf. YERUSHALMI, O Moisés de Freud, p.49; ver também: JONES, A vida e a obra de Sigmund Freud,
v.3, p.367.
1280
Cf. MEZAN, Freud, pensador da cultura, p.622; ver também: DOMÍNGUEZ MORANO, Creer después
de Freud, p.82.
1281
Cf. CATTAN, O Moisés e o monoteísmo de Freud, p.33, 34 [nota 30]; YERUSHALMI, O Moisés de
Freud, p.22-23, 45, 96, 155.
prosseguimento das escavações. Esse Thothmes poderia ser o
meu Moisés, e eu poderia me vangloriar de o haver
adivinhado”]1282.

Entre 1936 e 1937, aconteceu um episódio do mesmo teor. Nas


escavações realizadas em Tell el-Amarna, no Egito, foram descobertas tabuinhas que
continham uma lista com os nomes dos frequentadores de um templo dedicado ao culto
de Aton. Dessa lista, constavam dois nomes que podiam ser interpretados como os de
Moisés e Aarão. Arnold Zweig chegou a ver nessa descoberta uma confirmação da
hipótese de Freud de que o monoteísmo judaico procedia do monoteísmo egípcio.
Freud, contudo, se mostrou menos convencido do valor probatório dessa descoberta1283.
Seja como for, o que esse episñdio ilustra é o fato de que, para Freud, “O homem
Moisés e a religião monoteísta” continha uma hipñtese histñrica passível de
confirmação arqueológica.
Por fim, em 17 de janeiro de 1938, numa carta ao seu filho Ernst,
referindo-se ao livro em questão, Freud escreveu: “Ce sont mes débuts assez tardifs
d‟historien...” [“É a minha estreia, um tanto tardia, como historiador...”]1284.
No corpo mesmo do texto de “O homem Moisés e a religião
monoteísta”, Freud, por diversas vezes, reivindica a historicidade da sua construção.
Segundo ele, naquele livro, trata-se da “gênese do monoteísmo”1285, da “reconstrução da
histñria originária do povo de Israel”1286, da “histñria da religião judaica”1287 ou da
“histñria da religião do antigo Israel”1288 Ŕ em todo caso, de uma incursão na “histñria
das religiões”1289. O segundo ensaio, em particular, é descrito por Freud como um
“estudo puramente histñrico” ou como uma “construção histñrica”1290. Tendo o terceiro

1282
FREUD; ZWEIG, Correspondance 1927-1939, p.145.
1283
Cf. JONES, A vida e a obra de Sigmund Freud, v.3, p.212.
1284
FREUD, Correspondance 1873-1939, p.481.
1285
Cf. FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.182,
186.
1286
Cf. FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.119.
1287
Cf. FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.124,
129, 144, 146-147, 151.
1288
Cf. FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.130.
1289
Cf. FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.193.
1290
Cf. FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.131,
137, 182.
ensaio um caráter mais psicológico1291, Freud sugere, então, que a sua investigação
como um todo possa ser chamada de “histñrico-psicolñgica”1292.
Em suma, “oficialmente”, digamos assim, “Totem e tabu” é um livro
em que Freud, com o auxílio da psicanálise, procura solucionar um problema
antropolñgico, qual seja, a origem do totemismo. “O homem Moisés e a religião
monoteísta”, por sua vez, é uma obra em que Freud, sempre lançando mão da
psicanálise, se empenha em desvendar um mistério da história das religiões, a saber, a
gênese do monoteísmo mosaico. Antropologia e história, portanto, respectivamente.
Essas não são, porém, as duas únicas maneiras de se ler as obras em
questão1293 Ŕ e, talvez, também não as mais felizes. Interpretanto-se “Totem e tabu”
como um livro de antropologia e tomando-se “O homem Moisés e a religião
monoteísta” como um trabalho de histñria, as duas obras ficam sujeitas a todas as
objeções que reunimos nas duas seções precedentes. Mas há várias outras chaves de
leitura para esses livros.
Uma delas é a chave autobiográfica. Dizer que há, nos livros de Freud,
elementos reveladores da subjetividade do seu autor não chega a ser uma novidade.
Exagerando um pouco, Peter J. Swales (1948) chegou a dizer que, “...taken as a whole,
Freud‟s work represents the longest and strangest autobiography in Western literature”
[“...tomada como um todo, a obra de Freud representa a mais extensa e estranha
autobiografia da literatura ocidental”]1294.
Assim, por exemplo, em “Uma lembrança de infância de Leonardo da
Vinci” (1910), parece haver um forte envolvimento pessoal de Freud com o quadro
“Sant‟Ana com a Madona e o Menino”, do artista renascentista. Assim como, naquela
pintura, Jesus parece ter duas mães, Maria e Ana, também Freud teve duas mães, isto é,
uma mãe biológica, Amalia, e uma mãe funcional, a sua babá1295.
Em “O Moisés de Michelangelo” (1914) Ŕ trabalho que pode ser
considerado um “precursor” de “O homem Moisés e a religião monoteísta”1296 Ŕ, Freud

1291
Cf. FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.137.
1292
Cf. FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.183.
1293
Cf. ASSOUN, Freud et les sciences sociales, p.90; KOLTAI, Totem e tabu, p.16, 52; PFRIMMER, Freud,
leitor da Bíblia, p.166; RICŒUR, De l‟interprétation, p.179.
1294
VITZ, Sigmund Freud‟s christian unconscious, p.229 [nota 137]; cf. VITZ, Sigmund Freud‟s christian
unconscious, p.138, 143-144, 151, 155.
1295
Cf. VITZ, Sigmund Freud‟s christian unconscious, p.26-30, 69.
1296
Cf. MARCOS, O homem Moisés e a religião monoteísta. Percurso, n.36, p.106.
sugere que a estátua de Moisés esculpida por Michelangelo retrata o grande líder dos
judeus dominando a sua cólera contra os hebreus idólatras em nome de uma causa
maior, as tábuas dos dez mandamentos1297. Vários autores suspeitaram que Freud
estivesse, na verdade, se projetando na escultura de Michelangelo: Moisés
corresponderia ao próprio Freud; os hebreus idólatras equivaleriam aos discípulos
dissidentes Ŕ na época, Adler, Jung, Stekel e Tausk Ŕ; e as tábuas da Lei representariam
a psicanálise1298.
Por fim, no dia 23 de outubro de 1927, numa carta a Ferenczi, Freud
escreveu, de uma forma um tanto enigmática, que considerava “O futuro de uma ilusão”
um livro “inadequado enquanto autoconfissão”1299.
Se os trabalhos acima citados manifestam a privacidade do seu autor,
o mesmo se pode dizer, senão com mais razão, de “Totem e tabu”1300 e “O homem
Moisés e a religião monoteísta”1301: mais do que sobre o totemismo e o monoteísmo
mosaico, essas obras falam daquele que as escreveu. Diz Tales A.M. Ab‟Sáber: “...o
pensar a religião de Freud é sempre um pensar sobre si mesmo, é sempre um pensar
também a sua prñpria coisa...”1302. Daí que os livros de Freud sobre religião tenham
sempre um quê de autobiográfico.
Para constatar o envolvimento pessoal de Freud com as obras em
questão, basta consultar a sua correspondência particular. Ferenczi foi o principal
confidente de Freud no tempo da elaboração de “Totem e tabu”; Arnold Zweig e
Andreas-Salomé, os seus maiores interlocutores quando da preparação de “O homem
Moisés e a religião monoteísta”.
1297
Cf. FREUD, Le Moïse de Michel-Ange. In: _______. Œuvres complètes, v.12, p.151.
1298
Cf. BIRMAN, Freud e a experiência psicanalítica, p.75; DOMÍNGUEZ MORANO, El psicoanálisis
freudiano de la religión, p.155-156; JONES, A vida e a obra de Sigmund Freud, v.2, p.362-365; JONES, A
vida e a obra de Sigmund Freud, v.3, p.361-362; MEZAN, Freud, pensador da cultura, p.266, 389, 396,
419; MIJOLLA-MELLOR, A necessidade de crer, p.236; PFRIMMER, Freud, leitor da Bíblia, p.175, 178,
184-185; ROAZEN, Freud e seus discípulos, p.323-325; ROAZEN, Freud: pensamento político e social,
p.111; ROUDINESCO; PLON, Dicionário de psicanálise, p.519; YERUSHALMI, O Moisés de Freud, p.116-
117; ver também: BAKAN, Sigmund Freud and the jewish mystical tradition, p.121-131; DONN, Freud e
Jung, p.292-297; FREUD, Correspondance 1873-1939, p.452; FREUD; FERENCZI, Correspondance 1908-
1914, p.431; KLEIN, Jewish origins of the psychoanalytic movement, p.94.
1299
Cf. JONES, A vida e a obra de Sigmund Freud, v.3, p.148.
1300
Cf. GAY, Freud, p.310-311; MEZAN, Freud, pensador da cultura, p.291-292, 343, 595, 599, 639.
1301
Cf. RIZZUTO, Por que Freud rejeitou Deus?, p.180-181; ROAZEN, Freud e seus discípulos, p.585-587;
ROAZEN, Freud: pensamento político e social, p.113, 118, 123; VERMOREL; VERMOREL, Sigmund Freud
et Romain Rolland: correspondance 1923-1936, p.583-584.
1302
AB‟SÁBER, As tábuas da lei: religião e cultura em Freud. In: JARDILINO; SANTOS, Ensaios de religião
e psicologia, p.104; cf. AB‟SÁBER, As tábuas da lei: religião e cultura em Freud. In: JARDILINO; SANTOS,
Ensaios de religião e psicologia, p.99, 103, 105, 108, 113.
No dia 11 de agosto de 1911, Freud escreveu a Ferenczi: “Je suis tout
Totem et Tabou” [“Eu sou todo Totem e Tabu”]1303.
Em quatro de maio de 1913:

“J‟écris maintenant sur le Totem, avec le sentiment que ce sera


mon „Plus Grand‟, mon „Meilleur‟, et peut-être mon dernier bon
[travail]. Des certitudes intérieures me disent que j‟ai raison”
[“Escrevo agora sobre o Totem com o sentimento de que esse
será meu „Maior‟, „Melhor‟ e, talvez, meu último bom
[trabalho]. Certezas interiores me dizem que tenho razão”]1304.

Quatro dias depois:

“Je travaille à la dernière partie de mon essai sur le Totem [...].


Depuis l‟Interprétation des rêves, je n‟ai rien écrit avec autant de
conviction...” [“Trabalho na última parte de meu ensaio sobre o
Totem [...]. Desde a Interpretação dos sonhos, não escrevi nada
com tanta convicção...”]1305.

Por fim, no dia 13 de maio de 1913:

“...le travail sur le Totem s‟est achevé hier. [...] Depuis


l‟Interpr.[étation] des r.[êves] [...], je n‟ai jamais travaillé à quoi
que ce soit avec autant d‟assurance et d‟exaltation” [“...o
trabalho sobre o Totem ficou pronto ontem. [...] Desde a
Interpr.[etação] dos s.[onhos] [...], não trabalhei no que quer que
seja com tanta segurança e exaltação”]1306.

Terminada a redação de “Totem e tabu”, passada a empolgação que


acompanhou aquele trabalho, Freud começou a duvidar do valor do que havia escrito.
Registram-no as cartas que ele enviou a Ferenczi nos dias 12, 17 e 26 de junho de
19131307, bem como a sua correspondência com Abraham de primeiro de julho
seguinte1308. Na opinião de Gay, esse dado é um “indício certo” de um “profundo

1303
FREUD; FERENCZI, Correspondance 1908-1914, p.317.
1304
FREUD; FERENCZI, Correspondance 1908-1914, p.510.
1305
FREUD; FERENCZI, Correspondance 1908-1914, p.511.
1306
FREUD; FERENCZI, Correspondance 1908-1914, p.514.
1307
Cf. FREUD; FERENCZI, Correspondance 1908-1914, p.520-521, 525.
1308
Cf. FREUD; ABRAHAM, Correspondance complète 1907-1925, p.239; ver também: GAY, Freud,
p.303; ROAZEN, Freud e seus discípulos, p.299.
envolvimento emocional”1309. Podemos acrescentar que a euforia que acompanhou a
elaboração de “Totem e tabu” não é um sinal menor desse envolvimento.
Quanto a “O homem Moisés e a religião monoteísta”, em 16 de
dezembro de 1934, numa carta endereçada a Arnold Zweig, referindo-se a Moisés,
Freud escreveu: “L‟homme, et ce que je voulais faire de lui, me poursuit
continuellement” [“O homem e o que eu queria fazer dele me perseguem
continuamente”]1310. Três semanas depois, em carta a Andreas-Salomé, datada de seis
de janeiro de 1935, referindo-se ao problema do que viria a ser “O homem Moisés e a
religião monoteísta”, Freud afirmou: “Il m‟a poursuivi tout au long de ma vie” [“Ele me
perseguiu durante a minha vida inteira”]1311. Nessa mesma correspondência, ele
observou que a conclusão a que chegou com a obra, a sua “inestimável intuição”, o
deixou “completamente fascinado”1312. No dia dois de maio seguinte, Freud escreveu a
Arnold Zweig: “Le Moïse ne lâche pas mon imagination” [“O Moisés não deixa minha
imaginação”]1313. No dia 21 de fevereiro de 1936, ainda se correspondendo com Arnold
Zweig, Freud falou em dar livre curso à “fantasia” a respeito de Moisés 1314. Em 28 de
abril de 1938, ele escreveu a Jones: o “...meu Moisés [...] me atormenta como uma
„alma penada‟”1315. Por fim, no começo da segunda parte do terceiro ensaio de “O
homem Moisés e a religião monoteísta”, residindo já em Londres, Freud confessou que,
quando estava ainda em Viena, chegou a pensar em não publicar aquele trabalho. Mas,
acrescentou: ele o “atormentava” como um “espírito não exorcizado”1316. Como duvidar
de que Freud estivesse afetivamente envolvido com a obra em questão?
Outro sinal desse envolvimento pode ser encontrado no fato de que
Freud não apenas admirava o Moisés da Bíblia, que lhe era apresentado pela tradição,
mas, de certa forma, forjou o seu próprio Moisés, concebeu-o de uma forma particular,
fazendo dele uma tela de projeção. Seja em “O Moisés de Michelangelo”, seja em “O

1309
Cf. GAY, Freud, p.303-304.
1310
FREUD; ZWEIG, Correspondance 1927-1939, p.136.
1311
ANDREAS-SALOMÉ, Correspondance avec Sigmund Freud 1912-1936, p.254.
1312
Cf. ANDREAS-SALOMÉ, Correspondance avec Sigmund Freud 1912-1936, p.253.
1313
FREUD; ZWEIG, Correspondance 1927-1939, p.145.
1314
Cf. FREUD; ZWEIG, Correspondance 1927-1939, p.162.
1315
JONES, A vida e a obra de Sigmund Freud, v.3, p.229.
1316
Cf. FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.182.
homem Moisés e a religião monoteísta”, o Moisés de que se trata não é o Moisés
bíblico, mas o Moisés de Freud, dos desejos de Freud1317.
Seja como for, admitindo-se que os estudos de Freud sobre o
totemismo e o monoteísmo mosaico sejam reveladores da vida emocional do seu autor,
o que eles dão a conhecer? Há várias propostas. Uma das mais ventiladas consiste em
argumentar que o assassinato do pai primevo e o homicídio de Moisés estão
relacionados ao complexo paterno de Freud, isto é, aos seus conflitos edipianos com o
próprio pai, manifestando, pois, a sua ambivalência afetiva a respeito de Jacob1318.
Tratando-se de “Totem e tabu”, especificamente, não poucos
comentadores enfatizaram o fato de que esse estudo é inseparável do conflito entre
Freud e Jung; a obra teria sido motivada pela disputa entre os dois. De fato, “Totem e
tabu” é, em grande parte, uma resposta ao livro “Wandlungen und Symbole der Libido”
[“Símbolos e transformações da libido”], que Jung publicou em 19121319.
No dia 13 de maio de 1913, Freud escreveu a Ferenczi que o seu
“Totem e tabu”, cuja redação ele havia acabado de terminar, haveria de separá-los de
Zurique como um ácido separa um sal1320. No mesmo dia, ele enviou uma carta a
Abraham afirmando que a sua pesquisa sobre o totemismo teria por consequência a
separação entre a psicanálise e a religião ariana, o que é uma provável alusão a Jung1321.
Passadas duas semanas, no dia primeiro do mês seguinte, Freud escreveu a Abraham e
observou que, talvez, “Totem e tabu” viesse a acelerar a sua ruptura com Jung1322. Um
mês depois, no dia primeiro de julho, ele voltou a escrever ao mesmo amigo admitindo

1317
Cf. AB‟SÁBER, As tábuas da lei: religião e cultura em Freud. In: JARDILINO; SANTOS, Ensaios de
religião e psicologia, p.112-113; MARCOS, O homem Moisés e a religião monoteísta. Percurso, n.36,
p.106; MOSCOVICI, Préface. In: FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste, p.17, 31; ver também:
FREUD, Le Moïse de Michel-Ange. In: _______. Œuvres complètes, v.12, p.152, 154-155.
1318
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, El psicoanálisis freudiano de la religión, p.108, 306, 443; FUKS, Freud e a
judeidade, p.53; MEISSNER, Psychoanalysis and religious experience, p.50-53; MEZAN, Freud, pensador
da cultura, p.623; ROBERT, D‟Œdipe à Moïse, p.215, 239, 263, 274; VERMOREL; VERMOREL, Sigmund
Freud et Romain Rolland: correspondance 1923-1936, p.547; YERUSHALMI, O Moisés de Freud, p.28,
98, 117-120.
1319
Cf. BEIRNAERT, Aux frontières de l‟acte analytique, p.49-53, 65; DONN, Freud e Jung, p.241;
GANTHERET, Préface. In: FREUD, Totem et tabou, p.17-18; GAY, Freud, p.303, 308; JONES, A vida e a
obra de Sigmund Freud, v.2, p.350-351, 353; MCGUIRE, The Freud/Jung letters, p.194, 196, 205;
MEZAN, Freud, pensador da cultura, p.263, 265, 286-287, 305, 319, 354, 389, 423; MIJOLLA-MELLOR, A
necessidade de crer, p.31, 54 [nota 9], 55 [nota 10], 231-234; ROAZEN, Freud e seus discípulos, p.296-
297; ROAZEN, Freud: pensamento político e social, p.104.
1320
Cf. FREUD; FERENCZI, Correspondance 1908-1914, p.514.
1321
Cf. FREUD; ABRAHAM, Correspondance complète 1907-1925, p.233.
1322
Cf. FREUD; ABRAHAM, Correspondance complète 1907-1925, p.237.
que o livro em questão poderia aumentar grandemente o abismo que os separava dos
suíços1323.
Para François Gantheret (1934), “Totem e tabu” é um ato1324 Ŕ aliás, o
título do prefácio que ele escreveu para o livro de Freud é, justamente, “um ato”1325. Isto
é, um ato de separação de Jung. “Taticamente...”, avalia Roazen, “...o livro foi o
primeiro tiro na luta com Jung”1326. Roustang chegou mesmo a dizer: “Sans l‟affaire
Jung, nous n‟aurions sans doute [...] Totem et Tabou...” [“Sem a questão Jung, nñs, sem
dúvida, não teríamos [...] Totem e Tabu...”]1327.
Freud sofreu dois desmaios na frente de Jung, ambos relacionados ao
motivo do parricídio, isto é, ao suposto desejo de morte de Freud por Jung1328. A
hipótese do assassinato do pai primevo pelos filhos conflagrados pode, pois, ser
remetida ao sentimento de Freud de que Jung desejava a sua morte1329.
Quanto a “O homem Moisés e a religião monoteísta”, vários
estudiosos interpretaram a tese de Freud de que Moisés era egípcio como uma expressão
do seu próprio desconforto com a condição de judeu. Encontrando-se identificado a
Moisés, ao negar a pertença deste último ao povo hebreu, Freud estaria rejeitando a
própria judeidade. A obra traduziria, então, a negação, por parte de Freud, da sua
identidade judaica. Essa é, porém, uma interpretação controversa: alguns a
defenderam1330; outros a criticaram1331.
Outra possibilidade de leitura para as obras em apreço consiste em
argumentar que elas foram condicionadas pelo estado em que se encontrava o
movimento psicanalítico no momento em que foram geradas. Assim, uma interpretação
possível de “Totem e tabu” consiste em ver, no chefe da horda, o prñprio Freud e, nos

1323
Cf. FREUD; ABRAHAM, Correspondance complète 1907-1925, p.239.
1324
Cf. GANTHERET, Préface. In: FREUD, Totem et tabou, p.17.
1325
Cf. GANTHERET, Préface. In: FREUD, Totem et tabou, p.9.
1326
ROAZEN, Freud: pensamento político e social, p.93.
1327
ROUSTANG, Un destin si funeste, p.23; cf. ROUSTANG, Un destin si funeste, p.75.
1328
Cf. JUNG, Memórias, sonhos, reflexões, p.141-142.
1329
Cf. BEIRNAERT, Aux frontières de l‟acte analytique, p.49-53, 65.
1330
Cf. BAKAN, Sigmund Freud and the jewish mystical tradition, p.148; RICŒUR, De l‟interprétation,
p.239; ROAZEN, Freud e seus discípulos, p.333; ROAZEN, Freud: pensamento político e social, p.113-
115; ROITH, O enigma de Freud, p.19; SAID, Freud e os não-europeus. In: SAID, Freud e os não-
europeus, p.61, 65; SILVA, O ateísmo de Freud, p.37; VITZ, Sigmund Freud‟s christian unconscious,
p.29; ver também: YERUSHALMI, O Moisés de Freud, p.28, 178 [nota 25].
1331
Cf. CHEMOUNI, Freud e o sionismo, p.11-12; CHEMOUNI, Freud, la psychanalyse et le judaisme, p.28,
34, 40, 177; FUKS, Freud e a judeidade, p.90; PERESTRELLO, Freud e a tradição judaica. In: _______, A
formação cultural de Freud, p.59-60; YERUSHALMI, O Moisés de Freud, p.29.
filhos rebeldes, os seus discípulos dissidentes, nomeadamente, Adler, Jung, Stekel e
Tausk. Por sua vez, em “O homem Moisés e a religião monoteísta”, Moisés
representaria Freud; e os hebreus que o mataram, Rank e Ferenczi1332. Ou seja, embora
pretendesse estar teorizando sobre a origem do totemismo Ŕ ou do monoteísmo judaico
Ŕ, Freud “...en realidad estaba dando expresiñn a algo que ocurría a su alrededor” [“...na
realidade estava dando expressão a algo que ocorria ao seu redor”] 1333. Ou ainda:

“Freud, creyendo que escribía una teoría científica de la historia


del hombre, lo que en realidad estaba haciendo era la crónica
profunda de lo que sucedía en su grupo psicoanalítico” [“Freud,
crendo que escrevia uma teoria científica da história do homem,
o que, na realidade, estava fazendo era a crônica profunda do
que sucedia em seu grupo psicanalítico”]1334.

Enfim, os conflitos entre Freud e Jacob, Freud e Jung, Freud e os


dissidentes, Freud e a própria judeidade Ŕ diversos fatores de ordem pessoal podem ter
condicionado os livros que ele escreveu sobre o totemismo e o monoteísmo mosaico1335.
Há, contudo, mais duas possibilidades de leitura das obras em juízo
que queremos deixar registradas nesta seção. A primeira delas pode ser chamada de
“sociolñgica” ou “política”.
Segundo Joel Birman, onde Freud escreve “civilização”, deve-se ler
“modernidade”. Em “O mal-estar na civilização”, por exemplo, não se trata da
civilização lato sensu, mas do mal-estar da civilização moderna, isto é, da civilização

1332
Cf. ALONSO, Psicoanálisis y religión. Proyección, v.23, n.101, p.147 [nota 13]; BIRMAN, A razão da
impostura. In: BIRMAN; NICÉAS, O objeto na teoria e na prática psicanalítica, p.47; CARBALLO,
Psicoanálisis y religión. In: PLÉ, Freud y la religión, p.11-17, 20; DOMÍNGUEZ MORANO, Creer después
de Freud, p.84; DOMÍNGUEZ MORANO, El psicoanálisis freudiano de la religión, p.104-107; MEZAN,
Freud, pensador da cultura, p.265, 292, 352, 389; MIJOLLA-MELLOR, A necessidade de crer, p.31-33;
ROUANET, As duas culturas da psicanálise. In: FRANÇA, Freud, a cultura judaica e a modernidade, p.23.
1333
CARBALLO, Psicoanálisis y religión. In: PLÉ, Freud y la religión, p.23.
1334
CARBALLO, Psicoanálisis y religión. In: PLÉ, Freud y la religión, p.23-24.
1335
Essa abordagem dos livros em questão sofreu, porém, uma crítica que fazemos questão de anotar.
Segundo Yerushalmi, “O homem Moisés e a religião monoteísta” foi rejeitado quase que unanimemente
pelos historiadores da religião, exegetas e antropólogos. Diante desse quadro, tendeu-se a subjetivizar o
livro, isto é, a tratá-lo como um documento psicológico da vida interior de Freud, como uma espécie de
confissão. Freud, porém, não pretendia isso quando escreveu o referido livro; não foi essa, certamente, a
sua intenção consciente. Declaradamente, o trabalho de Freud sobre o monoteísmo mosaico é um livro de
história, de história das religiões, em particular, do judaísmo (cf. YERUSHALMI, O Moisés de Freud, p.22-
23, 96, 155). Na mesma linha, Bernstein ponderou que a tendência a interpretar “O homem Moisés e a
religião monoteísta” em chave autobiográfica decorreu da dificuldade de sustentá-lo como um trabalho de
história das religiões (cf. BERNSTEIN, Freud e o legado de Moisés, p.9, 17, 109). Isto é, foi uma saída,
uma maneira de “salvar” o livro de Freud da avalanche de críticas que desabou sobre ele.
ocidental que, a partir do século XVIII, passou por um processo de modernização. O
desamparo de que Freud fala é o desamparo moderno, aquele decorrente da morte de
Deus e do desencantamento do mundo1336.
Analogamente, “Totem e tabu” versaria não sobre a gênese da cultura
como tal, mas sobre a origem da modernidade, da civilização moderna ocidental. A
horda primeva representaria o ancien régime; o chefe da horda seria o rei Ŕ o detentor
absoluto e exclusivo do gozo Ŕ; a rebelião dos filhos corresponderia às revoluções
francesa, inglesa e norte-americana; o parricídio equivaleria à deposição do rei Ŕ na
França, à sua decapitação Ŕ; e o clã fraterno, à sociedade republicana e democrática,
onde vigora a igualdade entre os cidadãos. A hipñtese forjada por Freud em “Totem e
tabu” consistiria, então, no mito fundador da modernidade1337.
Segundo Melman, “O homem Moisés e a religião monoteísta” deve
ser interpretado no contexto político em que a obra nasceu. O nazismo baseou-se na
suposta filiação de um povo ao grupo indo-europeu. Ora, Freud demonstrou que a
filiação é um fantasma, havendo um corte irredutível entre o sujeito e o seu ancestral.
Ou seja, o último livro de Freud sobre Moisés seria uma tentativa de responder à
loucura nacionalista que começava a grassar na Europa1338.
Outra possibilidade para “O homem Moisés e a religião monoteísta”
foi sugerida por Edward W. Said (1935-2003). Segundo ele, o fato de que o Moisés de
Freud não seja um judeu, mas um egípcio, configura a judeidade como algo fundado na
encruzilhada entre duas tradições. Esse modo de conceber a identidade judaica teria
consequências decisivas sobre a atualidade, sugerindo a possibilidade de uma
coexistência pacífica de judeus e palestinos num mesmo território. Com efeito, se os
judeus adotaram como patriarca alguém diferente deles mesmos, se o judaísmo foi
fundado por um forasteiro, os israelitas poderiam, agora, perfeitamente conviver com

1336
Cf. BIRMAN, Arquivos do mal-estar e da resistência, p.25, 45, 47, 59-65, 93-96, 128, 358-359, 383;
BIRMAN, Cadernos sobre o mal, p.49, 96, 98-99, 102, 171-172; BIRMAN, Estilo e modernidade em
psicanálise, p.9-10, 12, 22, 115; BIRMAN, Mal-estar na atualidade, p.17, 38-40, 123-125, 140-143.
1337
Cf. BIRMAN, Arquivos do mal-estar e da resistência, p.65-67, 70, 97-99, 131-134, 156-157, 163;
BIRMAN, Cadernos sobre o mal, p.97-98, 101-102.
1338
Cf. MELMAN, O complexo de Moisés. In: _______. Para introduzir a psicanálise nos dias de hoje,
p.370; ver também: BEIRNAERT, Aux frontières de l‟acte analytique, p.32-46.
uma outra tradição Ŕ no caso, a palestina Ŕ, compartilhando com ela o mesmo
território1339.
Para terminar, uma última chave de leitura. Pode-se muito bem ler
“Totem e tabu” e “O homem Moisés e a religião monoteísta” como livros de literatura.
Sabe-se que Freud é um dos grandes estilistas da língua alemã, razão pela qual,
inclusive, recebeu, em 1930, o prêmio Goethe1340. Ele mesmo considerava o quarto e
último ensaio do seu livro sobre o totemismo como a sua obra “mais bem escrita”1341.
Thomas Mann, por sua vez, saudou “Totem e tabu” como uma “obra-prima
literária”1342. E o prñprio Freud cogitou, como vimos, publicar “O homem Moisés e a
religião monoteísta” como um romance histórico, a exemplo de Mann. O que nos
impede de apreciar os livros em questão como literatura?

O valor de “Totem e tabu” e “O homem Moisés e a religião monoteísta”

Não está, contudo, concluído o elenco das chaves de leitura que se


podem aplicar aos livros de Freud sobre o totemismo e o monoteísmo mosaico.
A melhor maneira de se interpretar “Totem e tabu” consiste em lê-lo
como um mito científico. A indicação nos foi dada pelo prñprio Freud em “Psicologia
das massas e análise do eu”1343.
Diz Lacan:

“Il suffit de lire Totem et tabou avec simplement l‟œil ouvert,


pour s‟apercevoir que si ce n‟est pas ce que je vous dis, c‟est-à-
dire un mythe, c‟est absolument absurde” [“Basta ler Totem e
tabu mantendo simplesmente o olho aberto para perceber que, se
isso não é o que lhes digo, ou seja, um mito, é completamente
absurdo”]1344.

1339
Cf. BIRMAN, Freud e a política, entre judaísmo e judeidade. In: SAID, Freud e os não-europeus, p.12,
26-31; SAID, Freud e os não-europeus. In: SAID, Freud e os não-europeus, p.70-74.
1340
Cf. FREUD, Prix Goethe 1930. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.343-355; ver também:
CHORNE; GOLDENBERG, La creencia y el psicoanálisis, p.103-104.
1341
Cf. FREUD, Totem et tabou. In: _______. Œuvres complètes, v.11, p.192.
1342
Cf. PALMER, Freud e Jung: sobre a religião, p.211.
1343
Cf. FREUD, Psychologie des masses et analyse du moi. In: _______. Œuvres complètes, v.16, p.74,
80.
1344
LACAN, Le séminaire, livre 4, p.210.
“Totem e tabu” é um mito, o único mito inventado na época
1345
moderna . “Totem e tabu” é um mito proposto por Freud ao homem moderno1346.
Para Joel Birman, a hipótese formulada por Freud em seu estudo sobre
o totemismo não tem a pretensão de remontar a um acontecimento historicamente
determinado, mas possui um caráter mítico1347. “Totem e tabu” é uma “parábola”1348. As
hipóteses ali levantadas Ŕ e também em “O homem Moisés e a religião monoteísta” Ŕ
têm um estatuto ficcional1349. Diz ele: “Não pretendemos atribuir qualquer validade
histórico-sociológica a esta leitura freudiana da constituição da cultura, que tem
evidentemente um estatuto mítico”1350.
“Totem e tabu” é um mito porque pensa a origem, e a origem sñ
admite ser representada pela via do mito. Freud recorre, pois, a um mito porque o
discurso científico stricto sensu revela-se insuficiente para expressar o que ele deseja
formular. Mas o mito também é uma forma de razão. Por meio de uma narrativa,
“Totem e tabu” apresenta uma cena que pretende revelar algo de verdadeiro sobre a
origem1351.
Em se tratando de um mito, a hipótese freudiana do assassinato do pai
primevo não deve ser tomada literalmente1352, porém, como algo figurativo, como uma
forma narrativa de expressão das condições de possibilidade da cultura. Encarada como
um mito, a hipótese do crime primordial subtrai-se a todas as objeções de caráter

1345
Cf. LACAN, Le séminaire, livre 7, p.208; ver também: LACAN, Le séminaire, livre 7, p.209, 212-213.
1346
Cf. LACAN, Discours aux catholiques. In: _______. Le triomphe de la religion précédé de Discours
aux catholiques, p.35.
1347
Cf. BIRMAN, Desejo e promessa, encontro impossível. In: MOURA, Hélio Pellegrino. A-Deus, p.138;
BIRMAN, Sujeito, estrutura e arcaico na metapsicologia freudiana. In: _______, Percursos na história da
psicanálise, p.241-242.
1348
Cf. BIRMAN, Psicanálise, ciência e cultura, p.135.
1349
Cf. BIRMAN, Estilo e modernidade em psicanálise, p.151.
1350
BIRMAN, Ensaios de teoria psicanalítica, p.121; ver também: DOMÍNGUEZ MORANO, Creer después
de Freud, p.89; DOMÍNGUEZ MORANO, El psicoanálisis freudiano de la religion, p.133-134, 428-429,
469; DOMÍNGUEZ MORANO, Teología y psicoanálisis, p.36; LÉVI-STRAUSS, Les structures élémentaires
de la parenté, p.563; MARCUSE, Eros e civilização, p.70; MILLER, Religión, psicoanálisis. In: CHORNE;
GOLDENBERG, La creencia y el psicoanálisis, p.62.
1351
Cf. ASSOUN, Freud et les sciences sociales, p.87; ESPINA BARRIO, Freud e Lévi-Strauss, p.98; FUKS,
Freud e a cultura, p.20-24; MALAMOUD, Psicanálise & ciência das religiões. In: KAUFMANN, Dicionário
enciclopédico de psicanálise, p.589; MARCOS, O homem Moisés e a religião monoteísta. Percurso, n.36,
p.101; MEZAN, Freud, pensador da cultura, p.339 [nota 84], 353.
1352
Em “My analysis with Freud” [“Minha análise com Freud”], de 1977, Abram Kardiner (1891-1981)
conta que, uma vez, quando discutia com Freud a hipótese do assassinato do pai primevo, ele exclamou:
“Bah! ne prenez pas ça trop au sérieux. C‟est une chose que j‟ai rêvée un dimanche de pluie” [“Ah! não
tome isso tão a sério. É algo que eu sonhei num domingo de chuva”] (ASSOUN, Freud et les sciences
sociales, p.97 [nota 23]; cf. GANTHERET, Préface. In: FREUD, Totem et tabou, p.53). De fato, “Totem e
tabu” não é um livro para ser tomado literalmente. É um mito.
histórico que lhe foram endereçadas e que, acima, recolhemos 1353. Encarar “Totem e
tabu” como um mito também significa dispensá-lo de dar resposta a todas as perguntas
que poderíamos formular: um mito dissipa apenas em parte a névoa que envolve a
origem; não tem a pretensão de responder a todas as perguntas1354.
Além de tomar o trabalho de Freud sobre o totemismo como um mito,
convém também lê-lo em chave estrutural1355, ao invés de fazê-lo segundo os esquemas
mentais próprios da época de Freud, o evolucionismo e o historicismo1356.
Quanto a “O homem Moisés e a religião monoteísta”, a melhor
categoria para pensar a hipótese ali apresentada é a de “construção”, no sentido
psicanalítico do termo1357. Vimos que, em meados dos anos 1930, Freud cogitou propor
o seu livro sobre o monoteísmo mosaico como um romance histórico. Ele desistiu de
fazê-lo porque substituiu a categoria de romance histórico pela de construção1358.
Em “Construções na análise”, publicado em 1937, Freud trata de um
tipo específico de intervenção analítica, a construção, na qual o analista apresenta ao

1353
Cf. ENRIQUEZ, De la horde à l‟État, p.62.
1354
Cf. MEZAN, Freud, pensador da cultura, p.342.
1355
Encarada como um mito e interpretada em perspectiva estrutural, a aventura concebida por Freud em
“Totem e tabu” apresenta analogias surpreendentes com a histñria de Adão e Eva relatada no livro do
“Gênesis”. De saída, em ambas, a forma literária é mítica, não se devendo, pois, tomar literalmente o que,
ali, se lê. As duas tratam de um acontecimento fundante. E, em ambas, temos: [1] um desejo ilimitado de
onipotência: ser como deuses (cf. Gn 3,5); ocupar o lugar do chefe da horda primeva; [2] uma proibição
fundamental: não comer do fruto da árvore que está no meio do jardim (cf. Gn 3,3); não matar o chefe da
horda e não possuir sexualmente as suas mulheres; [3] uma transgressão: Eva e Adão comem (cf. Gn 3,6);
o assassinato do pai primevo; [4] um paraíso irremediavelmente perdido: a expulsão do paraíso (cf. Gn
3,23-24); na verdade, jamais possuído: o paraíso da identificação ao chefe da horda; [5] uma existência
posterior marcada pela culpa e pela incompletude: as dores do parto, o trabalho, a mortalidade (cf. Gn
3,16-19); o remorso pelo parricídio e a renúncia coletiva a ocupar o lugar do pai (cf. DOMÍNGUEZ
MORANO, El psicoanálisis y el mal. Proyección, v.22, n.98, p.268-278; ver também: DOMÍNGUEZ
MORANO, Psicodinámica de los ejercicios ignacianos, p.191; RUBENSTEIN, L‟imagination religieuse,
p.121).
1356
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, Creer después de Freud, p.89; DOMÍNGUEZ MORANO, El psicoanálisis
freudiano de la religión, p.469; DOMÍNGUEZ MORANO, Teología y psicoanálisis, p.36; ver também:
ESPINA BARRIO, Freud e Lévi-Strauss, p.49-50.
1357
Cf. FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.105,
108, 110, 119, 127, 160, 169, 182; ver também: AB‟SÁBER, As tábuas da lei: religião e cultura em Freud.
In: JARDILINO; SANTOS, Ensaios de religião e psicologia, p.111; BIRMAN, Arquivos do mal-estar e da
resistência, p.377; CHORNE; GOLDENBERG, La creencia y el psicoanálisis, p.126; MARCOS, O homem
Moisés e a religião monoteísta. Percurso, n.36, p.107.
1358
Cf. MOSCOVICI, Préface. In: FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste, p.24-25. Certeau,
porém, parece ter conservado a categoria de “romance histñrico” para pensar “O homem Moisés e a
religião monoteísta”. No estudo que dedicou a esse livro, ele o situou no terreno misto da história e da
ficção, considerando-o meio-história, meio-romance, isto é, um meio-termo entre a história e o romance,
em suma, um romance histórico ou uma ficção científica (cf. CERTEAU, La fiction de l‟histoire. In:
_______, L‟écriture de l‟histoire, p.312-358; ver também: CERTEAU, Le “roman” psychanalytique. In:
_______, Histoire et psychanalyse, p.107-136; CERTEAU, L‟histoire, science et fiction. In: _______,
Histoire et psychanalyse, p.53-84; DOSSE, Michel de Certeau, p.345).
analisante um fragmento esquecido da sua história. Um elemento importante a respeito
desse tipo de intervenção é o fato de que, mais do que a verdade da construção, o que
importa são os efeitos que ela produz, ou melhor, a sua pertinência é decidida pelos seus
efeitos. De fato, uma construção errônea não resulta em nada; é simplesmente inútil,
embora seja também inofensiva. Uma construção acertada, por sua vez, produz efeitos:
desperta lembranças, desencadeia associações, estimula sonhos, em suma, ativa a
tendência ascendente do recalcado. Portanto, uma construção é confirmada pelas
consequências que tem sobre o analisante; o que importa, em matéria de construção, são
os seus efeitos1359.
Assim, se o concebido por Freud em seu trabalho sobre o monoteísmo
mosaico é uma construção, isso significa que, mais do que a verdade daquela hipótese, o
que interessa são os seus efeitos1360.
Portanto, “Totem e tabu” como mito, “O homem Moisés e a religião
monoteísta” como construção. E os dois Ŕ acrescentamos agora Ŕ como livros de
psicanálise.
Em “O homem Moisés e a religião monoteísta”, comentando as
críticas feitas a “Totem e tabu”, Freud afirmou:

“...avant tout je ne suis pas ethnologue, je suis psychanalyste.


J‟avais le droit d‟extraire de la littérature ethnologique ce dont je
pouvais avoir besoin pour le travail analytique” [“...acima de
tudo, eu não sou etnólogo, mas psicanalista. Eu tenho o direito

1359
Cf. FREUD, Constructions dans l‟analyse. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.61-73; ver também:
FREUD, Abrégé de psychanalyse. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.270-271; FREUD, A partir de
l‟histoire d‟une névrose infantile. In: _______. Œuvres complètes, v.13, p.37, 39, 48-50; FREUD,
Remarques sur un cas de névrose de contrainte. In: _______. Œuvres complètes, v.9, p.143, 176; ver
ainda: BIRMAN, Cadernos sobre o mal, p.90; BIRMAN, Estilo e modernidade em psicanálise, p.151;
BIRMAN, Freud e a interpretação psicanalítica, p.88-89, 235; BIRMAN, Psicanálise, ciência e cultura,
p.20.
1360
Em “O Moisés e o monoteísmo de Freud”, Marcelo Dreyfus Cattan defende uma tese ousada.
Segundo ele, o último grande livro de Freud deve ser entendido como um ato analítico, uma espécie de
intervenção, corte, interpretação ou pontuação. O paciente sobre o qual incide esse ato não é um sujeito
singular, mas uma formação social, um sujeito coletivo, a saber, o povo judeu. A queixa desse paciente é
o anti-judaísmo. E o sintoma que a intervenção pretende curar é o próprio monoteísmo. A meta
terapêutica da intervenção é, portanto, provocar um efeito de descrédito na crença monoteísta, noutras
palavras, a superação do judaísmo enquanto religião. Em suma, em “O homem Moisés e a religião
monoteísta”, Freud trata do caso judaico. Seja qual for o valor dessa leitura de Cattan, note-se que ela é
consequente com o conceito freudiano de construção. Com efeito, tratando-se de uma construção, o que
importa não é se ela é verdadeira ou falsa, mas se é eficiente ou não, curativa ou não (cf. CATTAN, O
Moisés e o monoteísmo de Freud, p.4, 12, 27, 29-32, 40 [nota 48], 95; ver também: PALMER, Freud e
Jung: sobre a religião, p.49).
de extrair da literatura etnológica o que possa necessitar para o
trabalho analítico”]1361.

Com isso, Freud dá a entender que faz psicanálise, não etnologia.


Também não faz história das religiões ou exegese bíblica. Os livros de Freud sobre o
totemismo e o monoteísmo judaico são livros de psicanálise. Recorrem, sim, a uma
retórica antropológica ou histórica; fazem uso, sim, de uma metáfora etnológica ou
bíblica. Mas são livros de metapsicologia psicanalítica1362.
Segundo Lacan, “Totem e tabu” trata da origem do sujeito, mais do
que da origem da cultura, e a categoria de “pai morto” é decisiva na solução desse
problema. Esse conceito seria a grande contribuição de “Totem e tabu”1363.
Diz Lacan: “...o verdadeiro pai, o pai simbñlico, é o pai morto”1364. E
ainda: “...que é um Pai? Ŕ É o Pai morto Ŕ responde Freud...”1365. E continua: “...le père
en tant qu‟il promulgue la loi est le père mort, c‟est-à-dire le symbole du père. Le père
mort, c‟est le Nom-du-Père...” [“...o pai enquanto aquele que promulga a lei é o pai
morto, isto é, o símbolo do pai. O pai morto é o Nome-do-Pai...”]1366.
De fato, não há cultura Ŕ e tampouco há sujeito Ŕ sem a referência
paterna. O livro que Freud escreveu sobre o totemismo trata, justamente, da instauração
dessa função. “Totem e tabu” é um estudo sobre a origem da função paterna. Esse é o
seu legado principal. E a instauração da referência paterna se dá pelo assassinato do
chefe da horda. Esse assassinato constitui o chefe da horda como pai; ele transforma o
chefe da horda em pai. O pai só existe, pois, enquanto pai morto, isto é, enquanto ser
mítico: “...il n‟est de père que tué...” [“...não há pai senão morto...”]1367.
Ao invés, portanto, do que disse Fiódor Dostoievski (1821-1881):
“Deus está morto, tudo é permitido”, temos: “Deus está morto, nada mais é permitido”.
1361
FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.210.
1362
Cf. BEIRNAERT, Aux frontières de l‟acte analytique, p.48-49, 60-61; BIRMAN, Freud e a experiência
psicanalítica, p.134-135; DOMÍNGUEZ MORANO, Creer después de Freud, p.88-89; DOMÍNGUEZ
MORANO, El psicoanálisis freudiano de la religión, p.468, 472; DOMÍNGUEZ MORANO, El psicoanálisis y
el mal. Proyección, v.22, n.98, p.270; DOMÍNGUEZ MORANO, Teología y psicoanálisis, p.35-36; FUKS,
Freud e a judeidade, p.87; MEZAN, Freud, pensador da cultura, p.266, 319, 322, 325, 351, 624.
1363
Cf. MEZAN, Freud, pensador da cultura, p.354-380, 560, 624.
1364
LACAN, Situação da psicanálise e formação do psicanalista em 1956. In: _______. Escritos, p.472.
1365
LACAN, Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano. In: _______. Escritos,
p.827.
1366
LACAN, Le séminaire, livre 5, p.146; cf. LACAN, Le séminaire, livre 7, p.356-357.
1367
ENRIQUEZ, De la horde à l‟État, p.203; cf. ENRIQUEZ, De la horde à l‟État, p.43-44, 48, 65, 74-76,
104, 203-204; KOLTAI, Totem e tabu, p.49, 89-91, 101; LECUIT, L‟anthropologie théologique à la lumière
de la psychanalyse, p.453.
Isto é, o chefe da horda está morto, nada mais é permitido Ŕ ou algumas coisas não são
permitidas Ŕ, porque surgiu o pai, a instância interditora1368. O pai enquanto instância
interditora só existe depois de morto.
Com “Totem e tabu”, aprendemos, pois, que, entre as condições de
possibilidade da cultura Ŕ e da constituição do sujeito Ŕ está a instauração de um limite
para o gozo absoluto, da lei, portanto, representada pelo pai morto1369.
Quanto a “O homem Moisés e a religião monoteísta”, é um pouco
mais difícil precisar a sua contribuição para a metapsicologia freudiana1370. Ainda
assim, Cristina M. Marcos escreveu: “O Moisés de Freud é menos uma aplicação da
psicanálise à religião do que a retomada e o desenvolvimento de noções essenciais à
teoria psicanalítica, como o recalcamento, o trauma, o parricídio, o saber inconsciente,
entre outras”1371. E, segundo a leitura de Fuks, em seu trabalho sobre o monoteísmo
mosaico, Freud tematizou, através da metáfora da história bíblica, o problema da
transmissão e do porvir da psicanálise1372.
Outra contribuição inegável de “O homem Moisés e a religião
monoteísta” Ŕ embora, neste caso, não se trate propriamente de uma contribuição
psicanalítica Ŕ pode ser encontrada na seção intitulada “O progresso na vida do
espírito”1373. O fato de que essa seção possa ser destacada do restante da obra, bem
como o apreço que Freud tinha por ela podem ser demonstrados pelo fato de que, em
1938, ela tenha sido lida por Anna Freud, em nome do seu pai, no Congresso
Psicanalítico de Paris, e publicada em separado, um ano depois1374.
Na referida seção, Freud observa que a proibição mosaica de venerar
Deus sob uma forma visível, a interdição da feitura de imagens de Deus, foi ocasião,

1368
Cf. CHORNE; GOLDENBERG, La creencia y el psicoanálisis, p.25-26; DALGALARRONDO, Religião,
psicopatologia e saúde mental, p.230; KOLTAI, Totem e tabu, p.114; LACAN, Discours aux catholiques.
In: _______. Le triomphe de la religion précédé de Discours aux catholiques, p.36; VERGOTE, Dette et
désir, p.66.
1369
Cf. BIRMAN, Estilo e modernidade em psicanálise, p.130-132; BIRMAN, Psicanálise, ciência e
cultura, p.126-127, 135-137; FUKS, Freud e a cultura, p.28.
1370
Cf. MEZAN, Freud, pensador da cultura, p.625.
1371
MARCOS, O homem Moisés e a religião monoteísta. Percurso, n.36, p.103. O “entre outras”,
certamente, inclui a noção de “repetição”.
1372
Cf. FUKS, Psicanálise, judeidade, alteridade. In: FRANÇA, Freud, a cultura judaica e a modernidade,
p.54-55; ver também: CHORNE; GOLDENBERG, La creencia y el psicoanálisis, p.101-116.
1373
Cf. FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.190-
194; ver também: FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes,
v.20, p.194-200, 202, 207.
1374
Cf. FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.77.
para o povo judeu, de um notável um progresso espiritual, de uma importante vitória da
espiritualidade sobre a sensorialidade, da intelectualidade sobre a sensibilidade Ŕ do
princípio paterno sobre o materno, se quisermos Ŕ, sendo esse avanço uma característica
fundamental da identidade judaica. Esse progresso na vida do espírito seria responsável
pela alta estima pelo trabalho intelectual que se observa entre os judeus, bem como por
todo um conjunto de atividades que implicam na renúncia pulsional e nas quais os
judeus se notabilizam.
Para dizê-lo de outro modo, o mais importante na doutrina de Moisés,
a sua novidade, não seria a crença num Deus único; nisso, talvez, os egípcios tenham se
antecipado aos judeus. A contribuição mosaica fundamental residiria na invisibilidade e
na irrepresentabilidade de Deus1375. Esse modo de ver as coisas Ŕ ou, no caso, de não
vê-las Ŕ teria levado os judeus a um especial esforço de abstração, distanciando-os do
mundo da sensibilidade e abrindo caminho para o âmbito da intelectualidade. A
interdição de fazer imagens de Deus teria, pois, estimulado os judeus a desenvolverem o
intelecto, tornando-os hábeis na técnica do raciocínio abstrato, da dedução, da inferência
e no manejo de conceitos e de palavras, configurando-se, desse modo, a tradição do
verbo1376.
Para Bernstein, isso Ŕ em que se pode reconhecer o legado de Moisés
e a essência da judeidade Ŕ é o que de mais importante se pode ler em “O homem
Moisés e a religião monoteísta”1377.
Outra contribuição ainda do livro em questão pode ser encontrada na
interpretação psicanalítica do anti-semitismo que a obra oferece. Não foi a primeira vez
que Freud refletiu sobre o assunto; mas trata-se do comentário mais elaborado que ele
fez a respeito1378.

1375
Cf. FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.94-
95.
1376
Cf. BIRMAN, Freud e a política, entre judaísmo e judeidade. In: SAID, Freud e os não-europeus, p.19-
21; MEZAN, Psicanálise, judaísmo: ressonâncias, p.39-41.
1377
Cf. BERNSTEIN, Freud e o legado de Moisés, p.11, 103, 105-106.
1378
Cf. FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.170-
171, 200; ver também: FREUD, Analyse de la phobie d‟un garçon de cinq ans. In: _______. Œuvres
complètes, v.9, p.31 [nota 1]; FREUD, Un souvenir d‟enfance de Léonard de Vinci. In: _______. Œuvres
complètes, v.10, p.121 [nota 2]. Sobre a psicanálise do anti-semitismo, pode-se ainda consultar: DOLTO;
SÉVÉRIN, L‟évangile au risque de la psychanalyse, p.98; FERENCZI, Thalassa, p.57; FUKS, Freud e a
judeidade, p.92-95; MEZAN, Psicanálise, judaísmo: ressonâncias, p.71-115; REIK, Religião e psicanálise,
p.147, 243-254; TRACTENBERG, Psicanálise da circuncisão, p.41-42, 85-100, 102, 137, 146.
Por fim, um último registro, mas um registro que nos interessa
especialmente. Por tudo o que foi dito acima, está claro que, em nossa avaliação, a
hipñtese do assassinato do pai primevo concebida por Freud em “Totem e tabu” e
retomada em “O homem Moisés e a religião monoteísta” não se constitui numa teoria
aceitável sobre a origem da crença em Deus. Deus não é o pai primevo ressurreto; a fé
religiosa não é o retorno do trauma do crime primordial. Porém, é preciso fazer uma
concessão a Freud.
Em numerosas religiões, Deus é representado como Pai. Ora,
representar a Deus dessa maneira dá margem a que Ele seja concebido como o pai
imaginário da primeira infância, ou seja, como uma figura muito parecida com o pai
primevo freudiano. E, realmente, a relação de muitos crentes com Deus parece mesmo
reproduzir a relação edipiana com esse pai imaginário, sendo, pois, caracterizada pela
ambivalência afetiva, pela rivalidade recíproca, pela exclusão mútua e pela
culpabilidade. Sim, na experiência de não poucos fiéis, Deus é, de fato, imaginado como
uma espécie de pai primevo, isto é, como um rival, amado e odiado, com quem a única
relação possível é a de exclusão: “ou eu ou ele”. Muitos crentes vivem, pois, a sua
relação com Deus nos mesmos termos em que os membros da horda primeva viviam,
segundo Freud, a sua relação com o pai primevo.
Nessa medida, Freud “botou o dedo na ferida”; Freud tem razão.
“Totem e tabu” e “O homem Moisés e a religião monoteísta” têm, pois, o mérito
inegável de destacar, ao seu modo, o papel que o complexo paterno joga Ŕ com tudo o
que isso significa: ambivalência afetiva, hostilidade contra o pai, culpabilidade etc. Ŕ
nas religiões de um modo geral e no judaísmo e no cristianismo em particular.
Acrescente-se, porém: conceber Deus dessa maneira é uma má-
formação ou uma perversão da imagem do Deus de Jesus e da mensagem evangélica. O
Deus revelado por Jesus não é assim; esse não é o Deus cristão, embora possa ser o
Deus de muitos cristãos1379.

1379
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, Ciencia, ilusión y creencia. Revista Portuguesa de Filosofia, v.59, f.2,
p.452-453; DOMÍNGUEZ MORANO, Creer después de Freud, p.152-154, 156, 164, 168, 200; DOMÍNGUEZ
MORANO, El psicoanálisis freudiano de la religión, p.472; DOMÍNGUEZ MORANO, Experiencia cristiana y
psicoanálisis, p.30, 35, 38, 50-51, 60, 74, 147, 164-166, 184, 210, 234; DOMÍNGUEZ MORANO,
Psicodinámica de los ejercicios ignacianos, p.26, 31, 92, 250-252, 259; CATALAN, O homem e sua
religião, p.130-132; RIZZUTO, O nascimento do Deus vivo, p.176.
A origem edipiana do ateísmo

Com isso, encerramos o nosso comentário das duas obras que Freud
dedicou especialmente ao problema da origem da crença em Deus. Não está, porém,
concluída a nossa interlocução com Freud a respeito dessa matéria. De fato, a crença em
Deus pode ser atribuída ao remorso pelo assassinato do pai primevo Ŕ e isso, acabamos
de considerar Ŕ ou, mais genericamente, ao complexo paterno como tal.
O que se segue está, pois, organizado da seguinte maneira: [1] para
Freud, a origem da crença em Deus é o complexo paterno; e isso abrange: a
ambivalência afetiva e a culpabilidade pela hostilidade contra o pai, de um lado, e o
desamparo e a nostalgia do pai protetor, de outra parte. Seja como for, [2] “Deus é o
pai”. Freud chegou mesmo a dizer: [3] “Deus não é senão o pai”. E ainda: [4] “Deus,
psicologicamente, é somente o pai”.
Reagiremos ao quadro assim desenhado argumentando como se segue:
[1] o complexo paterno está na origem não só da crença em Deus, mas também do
ateísmo. Esse é o tema desta seção. Em seguida: [2] teologicamente falando, Deus não é
o pai, o Pai é que é Deus. E ainda: [3] dizer que Deus é somente o pai é um
psicologismo. Mais: [4] nem mesmo psicologicamente se pode afirmar isso, porque
Deus é a mãe também. Consideremos, pois, inicialmente, a possibilidade de que o
complexo paterno esteja na origem do ateísmo.
Tratando-se da interpretação freudiana da religião, a relação edipiana
com o pai é classicamente pensada como responsável pela crença na existência de Deus.
Ocorre que o complexo paterno pode estar na origem tanto da religiosidade quanto da
irreligiosidade. Sendo a relação com o pai marcada pela ambivalência afetiva, pode-se
dizer que o polo amoroso dessa ambivalência concorre para a crença em Deus, ao passo
que o polo hostil, para o ateísmo. Noutras palavras, a assunção de uma atitude passiva
diante do pai estaria na origem da fé, ao passo que a tomada de uma posição ativa frente
ao mesmo resultaria na descrença.
O ateísmo não é apenas a falta da crença; o ateísmo é, ele mesmo, uma
forma de crença. Para dizê-lo com Pfister, o ateísmo é uma “crença negativa”1380. O
ateu não apenas não crê na existência de Deus; ele crê na inexistência de Deus. O ateu é,

1380
Cf. FREUD, Correspondance avec le pasteur Pfister 1909-1939, p.184.
pois, um crente de que Deus não existe. Ora, essa crença também pode ser afetivamente
motivada. De fato, onde há crença, há desejo. A negação da existência de Deus pode,
assim, perfeitamente abrigar o desejo da morte do pai. O ateísmo, sugeriu Pfister, pode
muito bem ser “uma forma disfarçada de assassinato do pai”1381. Ou seja: “Aqueles que
brigam com Deus podem estar reencenando na esfera religiosa a luta edipiana que não
conseguiram vencer em casa”1382. Se o ateísmo, assim como a crença religiosa, também
é condicionado pelo desejo, isso significa que também ele, e não apenas a fé, tem um
caráter ilusório. O ateísmo realiza um desejo edipiano, o da inexistência do pai, sendo,
pois, no sentido freudiano, uma ilusão1383.
Portanto, a ambivalência afetiva a respeito do pai explica tanto a
credulidade quanto a incredulidade. O mesmo vale para o desamparo. A crença num
Deus Pai onipotente e providente certamente satisfaz a uma necessidade humana de
proteção que, por sua vez, decorre da experiência do desamparo. Mas o desamparo tem,
na verdade, efeitos ambivalentes. Ele tanto pode suscitar a fé religiosa como pode
fomentar a mais completa descrença: desamparado, diz Vergote, “...le sujet peut aussi
bien se tourner contre Dieu que vers Lui” [“...o sujeito tanto pode se voltar contra Deus
como para Ele”]1384.
A existência do mal e do sofrimento, por exemplo, é tradicionalmente
encarada como um desafio Ŕ talvez, justamente, o maior desafio Ŕ à crença na existência

1381
Cf. PFISTER, L‟illusion d‟un avenir. Revue française de psychanalyse, t.41, n.3, p.513.
1382
GAY, Freud, p.485.
1383
Cf. BEIRNAERT, Aux frontières de l‟acte analytique, p.119, 128, 133; CHOISY, Le chrétien devant la
psychanalyse, p.41-42; CHOISY, Psicoanálisis y catolicismo, p.33; DACQUINO, Religiosidad y
psicoanálisis, p.116, 134-139; DANSEREAU, Freud et l‟athéisme, p.49; DOMÍNGUEZ MORANO, Creer
después de Freud, p.43-48; DOMÍNGUEZ MORANO, El psicoanálisis freudiano de la religión, p.72, 80-81,
184, 256-257, 353-358; DOMÍNGUEZ MORANO, Psicoanálisis y religión: diálogo interminable, p.126;
DOMÍNGUEZ MORANO, Psicodinámica de los ejercicios ignacianos, p.34; GÖRRES, Todo habla en favor.
Nada sostenible habla en contra. In: ZAHRNT, Jesús de Nazaret y Sigmund Freud, p.102-103; KÜNG,
Freud and the problem of God, p.85; LECUIT, L‟anthropologie théologique à la lumière de la
psychanalyse, p.215; MCGRATH; MCGRATH, O delírio de Dawkins, p.76; MEISSNER, Psychoanalysis and
religious experience, p.89; POHIER, Au nom du Père..., p.38, 169; RACKER, Sobre la posición de Freud
frente a la religión. In: _______. Psicoanálisis del espíritu, p.72-73; RIZZUTO, Por que Freud rejeitou
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A representação na religião, p.281-282; VERGOTE, Psychologie religieuse, p.268, 281-283, 314, 317;
VITZ, Sigmund Freud‟s christian unconscious, p.220-221; ZAHRNT, Jesús de Nazaret y Sigmund Freud,
p.317; ZILLES, Freud: a provocação do ateísmo psicanalítico. In: _______. Filosofia da religião, p.157;
ver também: AUPING, El ateísmo de Freud a la luz del psicoanálisis freudiano. In: GRUPO ÉPSIMO,
Experiencia de Dios y psicoanálisis, p.41-46, 59; BEUCHOT, Psicoanálisis y experiencia religiosa. In:
GRUPO ÉPSIMO, Experiencia de Dios y psicoanálisis, p.31-34; FRANCO, El psicoanálisis y la experiencia
de Dios. In: GRUPO ÉPSIMO, Experiencia de Dios y psicoanálisis, p.14.
1384
VERGOTE, Psychologie religieuse, p.117; cf. VERGOTE, Psychologie religieuse, p.112, 116-117, 145,
237.
de Deus. E não são poucas as pessoas que perdem a fé precisamente em decorrência de
uma experiência em que se sentiram desamparadas e desvalidas. Consta, por exemplo,
que não foram poucos os judeus que deixaram de crer em Deus após o genocídio da
Segunda Grande Guerra.
Em suma, em matéria de crença religiosa, o complexo paterno Ŕ seja
enquanto ambivalência afetiva, seja enquanto desamparo Ŕ é uma “espada de dois
gumes”: vale tanto para a fé quanto para a irreligiosidade.
A tese de que a relação com o pai pode estar também na origem do
ateísmo é de Freud. É bem menos conhecida do que a outra, mas é freudiana. Vejamos.
Em “O chiste e sua relação com o inconsciente” (1905), Freud
considera que os ditos espirituosos, como as formações do inconsciente em geral,
realizam desejos censurados. Entre os vários tipos de chistes examinados, estão aqueles
que atacam os dogmas religiosos e a crença em Deus 1385. Há desejo, pois, na
irreverência, na blasfêmia e na negação da existência de Deus.
Em “Uma lembrança de infância de Leonardo da Vinci” (1910), Freud
estabelece uma correlação entre o desmoronamento da autoridade paterna e a perda da
fé religiosa, entre a emancipação com relação ao pai e o ateísmo 1386. A incredulidade de
Leonardo é explicada dessa maneira1387.
Em “Anotações psicanalíticas sobre um caso de paranñia (Dementia
paranoides) descrito de forma autobiográfica” (1911), Freud se ocupa do paciente
psiquiátrico mais famoso do mundo, o célebre “caso Schreber”. Sabe-se que o delírio
psicótico de Schreber assumiu um acentuado caráter religioso, sendo as suas relações
com Deus um motivo de primeira grandeza. Ora, a esse respeito, uma das coisas que se
pode constatar é que Schreber reproduz, na sua relação com Deus (Gott), o já vivido na
relação com o próprio pai, o doutor Daniel Gottlob Moritz Schreber. Uma forte
ambivalência afetiva, em particular, caracteriza tanto a sua atitude para com Deus
quanto o seu relacionamento com o próprio pai. Por vezes, Deus é visto como aliado;
outras, como perseguidor. Submissão e revolta, sujeição e rebeldia, obediência e
desacordo, veneração e hostilidade Ŕ a relação de Schreber para com Deus oscila entre
um polo e outro. Seja como for, o fato que, nesse caso, importa destacar é que a

1385
Cf. FREUD, Le mot d‟esprit et sa relation à l‟inconscient, p.217.
1386
Cf. FREUD, Un souvenir d‟enfance de Léonard de Vinci. In: _______. Œuvres complètes, v.10, p.149.
1387
Cf. FREUD, Un souvenir d‟enfance de Léonard de Vinci. In: _______. Œuvres complètes, v.10, p.151.
blasfêmia, revolta contra Deus, pode ser relacionada à hostilidade contra o pai, do qual
Deus é o substituto1388. Pode-se acrescentar: o ateísmo também.
O caso do “Homem dos Lobos”, publicado em 1918, é ilustrativo de
uma neurose obsessivo-compulsiva de conteúdo religioso. Entre as compulsões de que o
“Homem dos Lobos” padecia, estão alguns pensamentos irreverentes, blasfematñrios,
hostis a Deus, tais como “Deus-porco”, “Deus-excremento”, “Deus-imundície”. Durante
uma viagem, por exemplo, quando via três pequenos montes de esterco de cavalo na
estrada, ele pensava automaticamente na Santíssima Trindade. Para Freud, esse impulso
hostil do “Homem dos Lobos” contra Deus encontra a sua origem na hostilidade que ele
nutria contra o próprio pai1389. Ao emancipar-se em relação ao prñprio pai, o “Homem
dos Lobos” perde automaticamente a fé religiosa: “La piété tomba em même temps que
sa dépendance vis-à-vis du père...” [“A piedade cai ao mesmo tempo em que a sua
dependência a respeito do pai...”]1390. Freud disse algo análogo de Leonardo da Vinci.
No artigo “Uma experiência religiosa” (1928), Freud analisa uma
experiência vivida por um jornalista Ŕ ao que tudo indica, um protestante Ŕ que recupera
a fé religiosa depois de havê-la perdido momentaneamente. Por que ele perdeu a fé?
Essa pergunta pode ser respondida em dois níveis: um mais superficial, acessível à
consciência, outro mais profundo, fruto de uma interpretação psicanalítica. Num nível
mais superficial, o que leva o jornalista a perder a fé é a contemplação de uma cena de
horror, é o deparar-se com uma injustiça: o cadáver de uma velhinha simpática sobre
uma mesa de dissecação1391. É como se ele dissesse: “Deus não existe! Se existisse, isso
não aconteceria!”. Num nível mais profundo, ele perdeu a fé porque se revoltou contra o
prñprio pai. Diz Freud: “...la volonté d‟anéantir le père peut devenir consciente comme
doute en l‟existence de Dieu...” [“...a vontade de aniquilar o pai pode se tornar
consciente na forma de dúvida sobre a existência de Deus...”] 1392. É como se ele
dissesse: “Odeio o meu pai! Preferiria que ele não existisse. Aliás, odeio Deus Pai
também! Deus não existe!”.

1388
Cf. FREUD, Remarques psychanalytiques sur un cas de paranoïa (Dementia paranoides) décrit sous
forme autobiographique. In: _______. Œuvres complètes, v.10, p.243, 250-251, 261, 273-274, 278.
1389
Cf. FREUD, A partir de l‟histoire d‟une névrose infantile. In: _______. Œuvres complètes, v.13, p.14-
15, 64, 66-67, 81, 114.
1390
FREUD, A partir de l‟histoire d‟une névrose infantile. In: _______. Œuvres complètes, v.13, p.67.
1391
Cf. FREUD, Une expérience vécue religieuse. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.201.
1392
FREUD, Une expérience vécue religieuse. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.203.
Por fim, em “Dostoiévski e o assassinato do pai” (1928), observa-se
que, ao longo de sua vida, o autor de “Os irmãos Karamazov” oscilou entre a propensão
a crer e o ateísmo. Freud atribui a inclinação a crer do célebre escritor russo ao seu
sentimento de culpa pelo desejo de morte do pai, sendo o seu ateísmo creditado à sua
grande inteligência1393. Contudo, já que a relação com a figura paterna é marcada pela
ambivalência afetiva1394, poder-se-ia também atribuir a propensão a crer de Dostoiévski
ao polo amoroso dessa ambivalência, ficando a atração pelo ateísmo por conta do polo
hostil da mesma.
Sim, como se vê, a tese da origem edipiana da descrença religiosa é
freudiana. Essa possibilidade, porém, costuma ser colocada em segundo plano. De fato,
uma vez que o ateísmo parece ser a “posição oficial” da psicanálise, ele costuma ser
muito menos investigado psicanaliticamente do que a crença em Deus. Freud
interpretou psicanaliticamente o discurso da fé, desvendando as suas raízes
inconscientes. O comentário é de Beirnaert:

“Qu‟il n‟ait pas fait le même travail à propos du discours athée,


c‟est là le signe d‟une partialité qu‟il devait à sa position
personnelle de „juif infidèle‟” [“Que ele não tenha feito o
mesmo trabalho a propósito do discurso ateu, isso é o sinal de
uma parcialidade que ele devia à sua posição pessoal de „judeu
infiel‟”]1395.

Ou seja, que a origem edipiana da irreligiosidade não tenha sido


estudada com o mesmo interesse e semelhante profundidade que a relação da
religiosidade com o complexo paterno, esse é um fato que, talvez, se deva “colocar na
conta” da posição pessoal de Freud a respeito do fato religioso1396.

1393
Cf. FREUD, Dostoïevski et la mise à mort du père. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.218-219.
1394
Cf. FREUD, Dostoïevski et la mise à mort du père. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.214.
1395
BEIRNAERT, Aux frontières de l‟acte analytique, p.124.
1396
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, Creer después de Freud, p.43, 48; DOMÍNGUEZ MORANO, El psicoanálisis
freudiano de la religión, p.81, 97, 353; RACKER, Sobre la posición de Freud frente a la religión. In:
_______. Psicoanálisis del espíritu, p.72.
“Deus é o pai” ou “O Pai é Deus”?

Atribuir a origem da crença em Deus ao complexo paterno significa


dizer que Deus é o pai. O pai idealizado, engrandecido, exaltado, aumentado,
enaltecido, glorificado, transfigurado; mas, em todo caso, o pai. Para Freud, Deus é o
pai.
Alguns autores reagiram, porém, a essa afirmação simplesmente
invertendo os termos de que ela se constitui, transformando o sujeito em predicado e
vice-versa e dizendo: “Deus não é o pai; o Pai é que é Deus”1397.
Ou seja, não é que Deus seja o produto de um engrandecimento da
figura do pai, como pretende Freud; o pai é que é uma antecipação infinitamente
diminuída da imagem de Deus. Deus não é uma imagem aumentada do pai; o pai é que
é uma imagem diminuída de Deus. Deus não é uma projeção do pai terreno; pelo
contrário, o pai deste mundo é que é uma primeira encarnação da imagem de Deus.
Deus não é um derivado do pai, o substituto do pai; o oposto disso é que é o caso. Em
suma, Pai é Deus; o Pai, por excelência e por definição, é Deus; a figura concreta do pai
com o qual cada ser humano entra em contato em sua história particular é apenas uma
antecipação infinitamente empobrecida daquilo que Deus, propriamente, é. A
paternidade de Deus é que é primacial; ela é que vem primeiro.
Para dizê-lo com White: “Deus é menos um Grande Pai do que o pai
físico um pequeno Deus”1398. Frankl, por sua vez, escreveu:

“Na realidade, Deus não é uma imago de pai, mas o pai é uma
imago de Deus. Para nós, o protótipo de toda divindade não é o
pai, mas exatamente o contrário é verdadeiro: Deus é o protótipo
de toda paternidade. Apenas do ponto de vista ontogenético,
biológico e biográfico, o pai é primeiro; ontologicamente,
porém, Deus está em primeiro lugar. Assim, psicologicamente, a
relação filho-pai é anterior à relação homem-Deus, porém,
ontologicamente esta relação não é modelo, mas sua imagem.
Do ponto de vista ontológico, meu pai carnal que me gerou

1397
Cf. BEUCHOT, Psicoanálisis y experiencia religiosa. In: GRUPO ÉPSIMO, Experiencia de Dios y
psicoanálisis, p.34; CHOISY, Le chrétien devant la psychanalyse, p.36; CHOISY, Psicoanálisis y
catolicismo, p.26; DACQUINO, Religiosidad y psicoanálisis, p.21, 23; PALMER, Freud e Jung: sobre a
religião, p.165; RACKER, Sobre la posición de Freud frente a la religión. In: _______. Psicoanálisis del
espíritu, p.67.
1398
WHITE, Deus e a psicanálise, p.111.
fisicamente é o primeiro representante casual daquele que tudo
gerou; portanto, do ponto de vista ontológico, meu criador
natural é apenas o primeiro símbolo e, de alguma maneira,
também a imago do Criador sobrenatural de toda natureza”1399.

Nessa mesma linha, em 2007, no primeiro volume do seu livro sobre


Jesus, o papa Ratzinger observou que a paternidade de Deus é a “origem” e a “medida”
de toda paternidade1400. Ou seja, para Bento XVI, Pai é Deus. Os pais terrenos são
apenas pálidos reflexos do Pai celestial. Portanto, não é o Pai do céu que retira a sua
paternidade dos pais terrenos, mas os pais terrenos é que devem o que neles há de
paternidade ao Pai que é Deus.
Mais recentemente, o Santo Padre foi ainda mais explícito. Na
audiência geral de 23 de maio de 2012, na praça São Pedro, ele afirmou:

“Alguns críticos da religião afirmaram que falar do „Pai‟, de


Deus, seria uma projecção dos nossos pais para o céu. Mas é
verdade o contrário: no Evangelho, Cristo mostra-nos quem é
pai e como é um pai autêntico, de tal forma que podemos intuir
a verdadeira paternidade, aprender também a paternidade
genuína”1401.

Nessa ocasião, o Romano Pontífice não citou os nomes dos críticos da


religião que tinha em mente. Não há dúvida, porém, de que ele estava falando com
Freud. Com efeito, Freud é o principal representante do ponto de vista que Bento XVI
contestou.

Um reducionismo psicologista

Para Freud, Deus não somente é o pai, Deus é somente o pai. Em


“Totem e tabu”, por exemplo, ele escreveu: “...Dieu n‟est au fond rien d‟autre qu‟un
père exalté” [“...no fundo, Deus não é nada mais que um pai exaltado”] 1402. E, em
“Sobre a psicologia do colegial”, ele afirmou que Deus “não é senão” uma exaltação da

1399
FRANKL, A presença ignorada de Deus, p.46.
1400
Cf. RATZINGER / BENOÎT XVI, Jésus de Nazareth, v.1, p.165.
1401
BENTO XVI. O cristianismo religião da confiança. L‟osservatore romano, ano 43, n.21 (2.214), p.3.
1402
FREUD, Totem et tabou. In: _______. Œuvres complètes, v.11, p.366.
imagem do pai tal como esse é percebido na infância1403. Note-se: “não é nada mais
que”, “não é outra coisa senão”; ou, para dizê-lo positivamente, “é apenas”, “é somente”
Ŕ o pai. Esse é o problema. Formulada desse modo, a tese freudiana é uma afirmação
reducionista de tipo psicologista. Vejamos.
O parecer de que a figura paterna contribui significativamente para a
construção da imagem de Deus é um ponto de vista perfeitamente aceitável. Até aí, não
há dificuldade alguma. O problema, segundo Vergote, está em que:

“...de la thèse selon laquelle Dieu serait la projection de l‟image


paternelle, on conclut parfois qu‟il n‟est que projection...” [“...da
tese segundo a qual Deus seria a projeção da imagem paterna,
conclui-se, por vezes, que ele não é senão projeção...”]1404.

Por conseguinte, “...Dieu ne serait que l‟image agrandie du père,


l‟image paternelle projetée dans l‟infini” [“...Deus seria apenas a imagem do pai
engrandecida, a imagem paterna projetada no infinito”]1405.
Ora, argumenta o professor, a abordagem psicológica da religião não
esgota a compreensão do fenômeno religioso1406: “Tudo que é humano [...] tem uma
dimensão psicológica. Mas nada do que é humano é exclusivamente psicológico. A
psicologia não é uma antropologia acabada. Ela não explica, pois, a religião...”1407.
Seguramente, isso vale também para a psicanálise.
A psicanálise pode, sim, ser de grande valia na compreensão do
fenômeno religioso. A sua contribuição terá, porém, necessariamente, um caráter
parcial: “...la psychanalyse [...] peut nos aider à tenter de comprendre, en partie, ce
qu‟est la foi” [“...a psicanálise [...] pode nos ajudar a tentar compreender, em parte, o
que é a fé”]1408, pondera Dolto. E continua: “...a psicanálise não explica tudo. Num
determinado momento ela para...”1409.

1403
Cf. FREUD, Sur la psychologie du lycéen. In: _______. Œuvres complètes, v.12, p.336.
1404
VERGOTE, Psychologie religieuse, p.184.
1405
VERGOTE, Psychologie religieuse, p.200.
1406
Cf. VERGOTE, Necessidade e desejo da religião na ótica da psicologia. In: PAIVA, Necessidade e
desejo, p.12.
1407
VERGOTE, Processos psicológicos Ŕ vergonha, sentimento de culpa Ŕ e sentido bíblico do pecado em
particular em Romanos 7. In: PAIVA, Necessidade e desejo, p.128.
1408
DOLTO; SÉVÉRIN, La foi au risque de la psychanalyse, p.9.
1409
DOLTO; SÉVÉRIN, O evangelho à luz da psicanálise, livro 2, p.146; ver também: DROGUETT, Desejo
de Deus, p.86-87, 103.
Quando, portanto, tendo desvendado alguns dinamismos psicológicos
subjacentes à crença religiosa, Freud afirma que Deus, na verdade, é apenas isso, ele
perde de vista o caráter parcial da sua visada e incorre num reducionismo. E, como se
trata da redução do fenômeno ao seu aspecto psicolñgico, cabe falar em “psicologismo”.
De fato, nas relações entre a psicologia e a religião, há duas formas de
reducionismo possíveis. A primeira delas, chamada “espiritualismo”, “angelismo” ou
“animismo”, consiste em não reconhecer a pertinência de uma abordagem psicológica
do fato religioso. As coisas de Deus estariam fora do alcance das ciências mentais; o
psicólogo, o psiquiatra ou o psicanalista nada teriam a dizer sobre religião. Freud, uma
vez, protestou contra isso1410 Ŕ e com toda a razão. A experiência humana de Deus
acontece no psiquismo dos crentes, donde a legitimidade de uma abordagem psicológica
ou psicanalítica da mesma.
O psicologismo, por sua vez, é o contrário do espiritualismo. O
espiritualismo é um reducionismo a partir “de cima”; o psicologismo, “de baixo”.
Conquistada a sua “cidadania” no campo da elucidação do fenómeno religioso, a
psicologia ou a psicanálise podem sentir que o que elas têm a dizer sobre a matéria é
tudo o que há para ser dito. A sua perspectiva abarca tudo; o seu ângulo de visão esgota
o assunto. A isso, chamamos “psicologismo”1411.
Ao se debruçar sobre a arte, por exemplo, Freud reconheceu que há
algo aí que escapa de todo à psicanálise. O dom artístico, por exemplo, seria algo
enigmático, inanalisável, fora do alcance da psicanálise1412. Freud teria sido mais
prudente se tivesse reconhecido esse não-saber também no que diz respeito a Deus.

1410
Cf. FREUD, Nouvelle suite des leçons d‟introduction à la psychanalyse. In: _______. Œuvres
complètes, v.19, p.254-255.
1411
Cf. ALONSO, Psicoanálisis y religión. Proyección, v.23, n.101, p.141, 144, 146 [nota 3]; BEIRNAERT,
Expérience chrétienne et psychologie, p.8; DACQUINO, Religiosidad y psicoanálisis, p.33, 220; FONTI I
RONDON, Religión, psicopatología y salud mental, p.32, 35-36, 42; GAGEY, Freud et le christianisme,
p.10, 30; JUNG, Resposta a Jó, p.1, 4; JUNG, O símbolo da transformação na missa, p.96; MEISSNER,
Ignatius of Loyola, p.xxvi-xxvii, 309-310, 330; MEISSNER, To the greater glory, p.65; MONTAGNE,
Identidad espiritual y psicoanálisis. In: ALEMANY; GARCÍA-MONGE, Psicología y ejercicios ignacianos,
v.2, p.258, 264, 267; STERN, Quelques aspects spirituels de la psychothérapie. In: Foi, raison et
psychiatrie moderne, p.161-162; VACA, Psicoanálisis y dirección espiritual, p.458; VALLE, Religião e
espiritualidade. In: AMATUZZI, Psicologia e espiritualidade, p.83-84; VERGOTE, Dette et désir, p.51;
VERGOTE, Psychologie religieuse, p.9-10, 41.
1412
Cf. FREUD, “Autoprésentation”. In: _______. Œuvres complètes, v.17, p.113; FREUD, Dostoïevski et
la mise à mort du père. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.207, 209; FREUD, Le Moïse de Michel-
Ange. In: _______. Œuvres complètes, v.12, p.131; FREUD, L‟intérêt que présente la psychanalyse. In:
_______. Œuvres complètes, v.12, p.122; FREUD, Prix Goethe 1930. In: _______. Œuvres complètes,
O desapreço pelas dimensões feminina e materna da religião

Nesta altura, alguém poderia, contudo, objetar da seguinte maneira.


Na verdade, Freud nunca pretendeu saber tudo sobre Deus. Se, algumas vezes, ele disse
que Deus “não é senão” o pai, deve-se entender que, implicitamente, Freud tinha
presente o ponto de vista psicolñgico em que trabalhava. De fato, em “Uma lembrança
de infância de Leonardo da Vinci”, ele escreveu: “...le Dieu personnel n‟est
psychologiquement rien d‟autre qu‟un père qui a été exalté...” [“...o Deus pessoal nada
mais é, psicologicamente, do que um pai que foi exaltado...”]1413.
Se, de fato, é assim, retiramos a acusação de psicologismo contra
Freud que fizemos na seção precedente. E não apenas isso: embutida na imputação de
psicologismo, estava a acusação de negar a existência de Deus, coisa que, como vimos,
ultrapassa a competência epistemológica da psicanálise. De fato, se Deus “não é senão”
o pai, é porque Deus, como tal, não existe.
Aceitemos, então, a tréplica acima oferecida. Não está, com isso,
porém, encerrada a discussão. Isso porque, na verdade, nem mesmo psicologicamente se
pode dizer que Deus não é senão o pai. Deus não é apenas o pai; Deus é a mãe também.
As figuras materna e paterna contribuem ambas para a construção da imagem de Deus.
Esta é, aliás, uma das objeções mais frequentes contra a interpretação
freudiana do fenômeno religioso: o pouco apreço demonstrado por Freud, nesse
domínio, pelos elementos feminino e materno1414.
Na verdade, esse menosprezo não caracteriza somente o pensamento
freudiano sobre o fato religioso. Como afirmou Zilboorg: “O conjunto dos escritos de
Freud é de um franco androcentrismo, e a figura central nas suas reflexões era sempre o
pai”1415. Quando Freud se pôs a pensar sobre a religião, as coisas não funcionaram
diferentemente. Ele mesmo usou, certa vez, a expressão “dark continent” [“continente

v.18, p.353; FREUD, Un souvenir d‟enfance de Léonard de Vinci. In: _______. Œuvres complètes, v.10,
p.163.
1413
FREUD, Un souvenir d‟enfance de Léonard de Vinci. In: _______. Œuvres complètes, v.10, p.149.
1414
Em “A psicose e a feminilidade”, Joel Birman cogitou sobre a “expulsão”, o “esquecimento” ou o
“recalque” da feminilidade na teoria freudiana da psicose e, em particular, no caso Schreber (cf. BIRMAN,
A psicose e a feminilidade. In: _______, Sobre a psicose, p.15). A psicose pode, de fato, ser pensada
como horror da feminilidade, isto é, do real da castração, da ausência do falo, da experiência do
desamparo (cf. BIRMAN, A psicose e a feminilidade. In: _______, Sobre a psicose, p.25-27). De uma
forma análoga, tratamos, aqui, da negligência da feminilidade Ŕ e da maternidade Ŕ na teoria freudiana da
religião.
1415
ZILBOORG, Psicanálise e religião, p.240.
negro”]1416 para se referir ao que a vida sexual da mulher representava para a
psicanálise. Analogamente, não poucos autores descreveram como um “ponto cego” Ŕ
ou disseram algo semelhante sobre Ŕ o papel da mulher e da mãe na concepção
freudiana do fenômeno religioso1417.
Dentro do campo psicanalítico, Jones foi o primeiro a valorizar a
feminilidade e a maternidade na interpretação da religião1418. Ao seu modo, Jung
também valorizou Ŕ talvez, até demais Ŕ os elementos feminino e materno em sua
psicologia da religião1419. Freud, por sua vez, sempre concedeu escassa importância a
essas dimensões em seus escritos sobre o fato religioso.
Vale a pena percorrer alguns dos seus textos a fim de melhor nos
compenetrarmos disso. A obra-prima da psicanálise freudiana da religião é “Totem e
tabu” (1913). Esse trabalho impressiona por motivos vários, entre eles, pelo lugar
completamente irrelevante que a trama concebida por Freud reserva para a mulher e
para a mãe. Três exemplos bastarão.
Qual foi o papel das mulheres no assassinato do pai primevo, o grande
acontecimento que fundou a cultura? Como sujeitos, elas não têm papel algum; são
apenas objetos sexuais disputados pelos homens1420.
A refeição totêmica poderia muito bem representar a devoração da
mãe. O pequeno Arpád, por exemplo Ŕ paciente de Ferenczi citado por Freud Ŕ,

1416
Cf. FREUD, La question de l‟analyse profane. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.36.
1417
Cf. ALONSO, Psicoanálisis y religión. Proyección, v.23, n.101, p.150; AUPING, El ateísmo de Freud a
la luz del psicoanálisis freudiano. In: GRUPO ÉPSIMO, Experiencia de Dios y psicoanálisis, p.46-50;
DACQUINO, Religiosidad y psicoanálisis, p.25; DANSEREAU, Freud et l‟athéisme, p.121-125, 188;
DOMÍNGUEZ MORANO, Creer después de Freud, p.62-66, 86; DOMÍNGUEZ MORANO, El psicoanálisis
freudiano de la religion, p.81, 93-94, 139, 151, 211, 219-220, 247, 265-266, 287, 292-293, 317, 323, 400,
444-445, 455-457, 476; DOMÍNGUEZ MORANO, Experiencia cristiana y psicoanálisis, p.52-53, 105-107;
DOMÍNGUEZ MORANO, Teología y psicoanálisis, p.33-34, 53-56; MEISSNER, Psychoanalysis and religious
experience, p.131, 137-140; PALMER, Freud e Jung: sobre a religião, p.98; POHIER, Dieu fractures,
p.297-301; RICŒUR, De l‟interprétation, p.513; RIZZUTO, Por que Freud rejeitou Deus?, p.19, 164, 166-
167, 181, 225; RUBENSTEIN, L‟imagination religieuse, p.75-87; STEIN, Parricídio e Deus-Pai na obra de
Freud. Concilium, n.163, p.380.
1418
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, Creer después de Freud, p.117 [nota 3]; DOMÍNGUEZ MORANO,
Experiencia cristiana y psicoanálisis, p.53 [nota 18], 67, 107-110; DOMÍNGUEZ MORANO, Psicoanálisis y
religión: diálogo interminable, p.153; DOMÍNGUEZ MORANO, Psicodinámica de los ejercicios ignacianos,
p.266 [nota 34], 268 [nota 38].
1419
Cf. DACQUINO, Religiosidad y psicoanálisis, p.30, 54; DOMÍNGUEZ MORANO, Experiencia cristiana y
psicoanálisis, p.119-123; LECUIT, L‟anthropologie théologique à la lumière de la psychanalyse, p.141;
VERGOTE, Psychologie religieuse, p.171-174.
1420
Cf. ASSOUN, Freud et les sciences sociales, p.194, 196; ENRIQUEZ, De la horde à l‟État, p.91;
GANTHERET, Préface. In: FREUD, Totem et tabou, p.27; MEZAN, Freud, pensador da cultura, p.342;
ROAZEN, Freud e seus discípulos, p.72; RUBENSTEIN, L‟imagination religieuse, p.142.
manifestou, certa vez, o desejo de comer “mãe em conserva”, isto é, de devorar a sua
mãe, não o próprio pai1421. Em “Australian totemism” [“Totemismo australiano”], de
1925, Roheim sugeriu que, no festim totêmico, o que estava em jogo era a devoração da
mãe. Para ele, o animal totêmico simbolizaria, antes de tudo, a mãe; apenas de uma
forma secundária, representaria o pai1422. Freud, porém, jamais viu, no totem, outra
coisa senão o pai.
Em seu esboço dos desdobramentos ulteriores ao totemismo, Freud
admite que houve deusas-mãe, mas não sabe explicar direito a sua origem, nem onde
colocá-las ao certo: “Où se trouve dans ce développement la place pour les grandes
divinités maternelles, [...] je ne saurais l‟indiquer” [“Onde se encontra, nesse
desenvolvimento, o lugar das grandes divindades maternas, [...] eu não saberia
indicar”]1423.
Em “Uma lembrança de infância de Leonardo da Vinci” (1910), Freud
cita a deusa Mut dos egípcios e outras divindades maternas, tais como Ísis, Hathor,
Neith de Saís, Ateneia, Afrodite etc.1424. Em “Grande é a Diana dos efésios” (1911),
Freud observa que, historicamente, Éfeso, qual a moderna Lourdes, tem sido a cidade
sede de uma sucessão de deusas-mãe. Originalmente, havia ali a deusa Oupis, cultuada
por tribos asiáticas. Os invasores jônicos, porém, rebatizaram-na de “Artêmis”
(“Diana”). Finalmente, Éfeso tornou-se a cidade de Maria, a grande divindade materna
dos cristãos1425. Em “O motivo da escolha dos cofres” (1913), Freud faz referência a
uma série de divindades femininas Ŕ inclusive, às grandes deusas-mãe do Oriente1426. O
fato, porém, é que, embora mencionadas, as divindades maternas não têm um lugar
relevante na teoria freudiana da religião1427.

1421
Cf. FREUD, Totem et tabou. In: _______. Œuvres complètes, v.11, p.348.
1422
Cf. ROBINSON, Geza Roheim. In: _______, A esquerda freudiana, p.74-75; ROUDINESCO; PLON,
Dicionário de psicanálise, p.665.
1423
FREUD, Totem et tabou. In: _______. Œuvres complètes, v.11, p.368-369; cf. FREUD, L‟homme
Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.123 [nota 1], 141, 163; FREUD,
Psychologie des masses et analyse du moi. In: _______. Œuvres complètes, v.16, p.74, 76; ver também:
ASSOUN, Freud et les sciences sociales, p.197; ASSOUN, Voyage au pays des mères. Nouvelle revue de
psychanalyse, n.45, p.128-129; MEZAN, Freud, pensador da cultura, p.539; RICŒUR, De l‟interprétation,
p.514; VAN HERIK, Freud on femininity and faith, p.77-78, 179-180 [nota 38].
1424
Cf. FREUD, Un souvenir d‟enfance de Léonard de Vinci. In: _______. Œuvres complètes, v.10, p.112-
113, 119-120, 123.
1425
Cf. FREUD, “Grande est la Diane des Éphésiens”. In: _______. Œuvres complètes, v.11, p.49-53.
1426
Cf. FREUD, Le motif du choix des coffrets. In: _______. Œuvres complètes, v.12, p.51-65.
1427
Em “Das trauma der geburt und seine bedeutung für die psychoanalyse” [“O trauma do nascimento e
o seu significado para a psicanálise”], de 1924, Rank concede atenção particular às deusas-mãe, que ele
Em “Uma neurose diabñlica do século XVII” (1923), Freud constata
que, em algumas aparições ao pintor Christoph Haitzmann (1651/1652-1700), o diabo
se lhe apresenta portando seios de mulher Ŕ aliás, dois polpudos pares de seios. Freud,
no entanto, procura elucidar a presença desse traço feminino e materno na representação
do diabo sem admitir a possibilidade de que ele tenha alguma coisa a ver com a mãe ou
com a mulher. Para Freud, Haitzmann teria projetado a própria feminilidade sobre a
figura do diabo. Ou, então, ele teria deslocado a sua ternura infantil da mãe para o pai,
de modo que este último portasse um traço daquela1428. Note-se, porém, que essa
segunda explicação sugere que a mãe está por trás do pai, que, por sua vez, está por trás
do diabo. Em “Totem e tabu”, Freud afirma que o conceito de “demónio” é uma espécie
de “biombo”1429. Poder-se-ia, então, dizer: por trás do biombo do diabo, está o pai; e,
por trás do biombo do pai, a mãe. Mas Freud não chega à mãe como origem da
representação do diabo. Assim como Deus, o diabo, para Freud, decididamente, é um
substituto do pai1430.
Em “O futuro de uma ilusão” (1927), Freud faz a crença religiosa
decorrer da nostalgia do pai protetor. Acontece que, se a função primeira de Deus é
proteger o ser humano do desamparo experimentado face ao mundo hostil, é a mãe,
mais do que o pai, a primeira figura a desempenhar esse papel para a criança1431. Freud
sabe disso, mas observa:

“Dans cette fonction, la mère est bientót relayée par le père, plus
fort, à qui cette fonction dès lors reste dévolue durant toute
l‟enfance” [“Nessa função, a mãe é logo substituída pelo pai,

considera anteriores à divindade paterna. Rank supõe que o divino seria concebido primariamente
enquanto mãe: “...la fase materna representa verdaderamente el modo más primitivo de la vida
religiosa...” [“...a fase materna representa verdadeiramente o modo mais primitivo da vida religiosa...]
(RANK, El trauma del nacimiento, p.123). Num segundo momento, haveria uma substituição do materno
pelo paterno. Estabelecido o pai, tender-se-ia a um retorno à divindade materna. Esse retorno, porém,
estaria destinado a enfrentar fortes reações (cf. RANK, El trauma del nacimiento, p.118-126).
1428
Cf. FREUD, Une névrose diabolique au XVIIe siècle. In: _______. Œuvres complètes, v.16, p.234-236,
247.
1429
Cf. FREUD, Totem et tabou. In: _______. Œuvres complètes, v.11, p.308.
1430
Cf. FREUD, Une névrose diabolique au XVIIe siècle. In: _______. Œuvres complètes, v.16, p.227,
229-232; ver também: MEZAN, Freud, pensador da cultura, p.526-527, 530-531. Rank, por sua vez,
sugeriu que o diabo teria um significado primitivamente feminino, materno (cf. RANK, El trauma del
nacimiento, p.118, 126).
1431
Cf. BIRMAN, As pulsões e seus destinos, p.125-128; BIRMAN, Cartografias do feminino, p.48, 152-
153, 156, 161; BIRMAN, Freud e a interpretação psicanalítica, p.123-126.
mais forte, a quem essa função fica reservada, a partir daí, ao
longo de toda a infância”]1432.

Ou seja, Freud admite que, historicamente, a figura materna precede a


paterna como instância protetora. Contudo, depois de fazer esse registro, ele passa
imediatamente para a figura paterna, que substitui a mãe nesse papel e converte-se,
doravante, no protetor por antonomásia. Isso é estranho para quem, ao longo de toda a
sua obra, sempre insistiu no significado das experiências mais precoces1433. Se, no
psiquismo do crente, Deus ocupa o lugar da instância protetora, ele tem mais motivos
para evocar a mãe do que lembrar o pai1434.
Por fim, uma observação a respeito de “O homem Moisés e a religião
monoteísta” (1939). Em 1912, Abraham publicou um estudo psicanalítico da
personalidade do farañ do Egito Amenñfis IV, que adotou o nome de “Akenaton”.
Segundo Abraham, o faraó teria a sua vida afetiva condicionada pelo complexo de
Édipo. Influenciado por sua mãe, a rainha Teje, a quem era fixado libidinalmente, ele
substituiu o culto de Amon, o deus de seu pai, a quem hostilizava, pelo culto de Aton.
Mais: ele elevou o deus Aton à dignidade de deus único, isto é, não um deus entre
outros ou acima dos outros, mas o único deus e o deus universal.
Como se vê, no artigo de Abraham, pode-se já registrar a tese da
origem egípcia do monoteísmo e a observação de que o monoteísmo egípcio antecipou
o monoteísmo judaico. Curiosamente, porém, embora Freud conhecesse esse trabalho
de Abraham1435, ele não se refere a ele em “O homem Moisés e a religião monoteísta”.
Seja como for, mais importante do que isso é o fato de que Abraham concede à mãe do
faraó um papel decisivo na origem do monoteísmo egípcio1436. Freud, porém, embora
faça referência a ela uma vez1437, não reserva para a mesma Ŕ ou para qualquer outra

1432
FREUD, L‟avenir d‟une illusion. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.164.
1433
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, Creer después de Freud, p.62; DOMÍNGUEZ MORANO, El psicoanálisis
freudiano de la religión, p.247; DOMÍNGUEZ MORANO, Psicoanálisis y religión: diálogo interminable,
p.112; RIZZUTO, Por que Freud rejeitou Deus?, p.166-167; VAN HERIK, Freud on femininity and faith,
p.156.
1434
Cf. DALGALARRONDO, Religião, psicopatologia e saúde mental, p.61-64; FRIES, La fe en Dios,
¿ilusión o realidad? In: ZAHRNT, Jesús de Nazaret y Sigmund Freud, p.48-49; PALMER, Freud e Jung:
sobre a religião, p.98 [nota 36]; RIZZUTO, O nascimento do Deus vivo, p.62.
1435
Cf. FREUD; ABRAHAM, Correspondance complète 1907-1925, p.190-204.
1436
Cf. ABRAHAM, Amenhotep IV [Echnaton]. In: _______, Psychanalyse et culture, p.136, 140-141,
144, 160.
1437
Cf. FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.189.
mulher Ŕ qualquer função relevante na origem do monoteísmo1438. Definitivamente,
para Freud, Deus nada tem a ver com o feminino ou com o materno.

Freud e a mística

Além dos exemplos acima considerados da pouca importância


atribuída por Freud aos elementos feminino e materno em sua teoria da religião, há
outros dois que queremos examinar com mais cuidado, em seções separadas: a rejeição
da mística Ŕ o que inclui o sentimento oceânico Ŕ e o desinteresse por Maria, a mãe de
Jesus. Tratemos, inicialmente, da relação de Freud com a mística.
“O futuro de uma ilusão” foi publicado em novembro de 1927 e, logo
em seguida, enviado por Freud a Rolland. No dia cinco de dezembro, porém, Rolland
escreveu a Freud convidando-o a considerar o que lhe parecia ser o verdadeiro
sentimento religioso, a fonte subterrânea da energia religiosa que as igrejas captariam e
canalizariam, a sensação religiosa espontânea. Esse sentimento Ŕ que Rolland diz
conhecer pessoalmente e que poderia ser constatado entre cristãos como entre não-
cristãos, tanto no Ocidente quanto no Oriente Ŕ seria independente de toda escritura,
doutrina, dogma, crença na vida após a morte ou organização eclesial, ou seja, seria algo
completamente diferente das religiões institucionalizadas. Rolland o descreveu assim:

“...le fait simple et direct de la sensation de l‟„eternel‟ (qui peut


très bien n‟être pas éternel, mais simplement sans bornes
perceptibles, et comme océanique)” [“...o fato simples e direto
da sensação do „eterno‟ (que pode perfeitamente não ser eterno,
mas simplesmente sem limites perceptíveis e como que
oceânico)”]1439.

A verdadeira fonte da religiosidade seria, pois, um sentimento de


profunda união com o mundo circundante, como se não houvesse fronteiras entre o si
mesmo e o todo1440. O oceano é, de fato, um bom símbolo para representar essa
sensação; ele parece mesmo aludir a uma unidade ilimitada em que a diversidade se

1438
Cf. BERNSTEIN, Freud e o legado de Moisés, p.53-54, 148-149 [nota 14], 152-153 [nota 8]; ROITH, O
enigma de Freud, p.182-185.
1439
VERMOREL; VERMOREL, Sigmund Freud et Romain Rolland: correspondance 1923-1936, p.304.
1440
Cf. FREUD, Le malaise dans la culture. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.249-250.
dissolve e os opostos se fundem1441. Rolland tirou a expressão “sentimento oceânico” do
santo hindu Sri Ramakrishna (1836-1886), que, por sua vez, a encontrou num texto
sânscrito medieval, utilizando-a para descrever as próprias experiências místicas.
Rolland trabalhava na biografia de Ramakrishna quando propôs a Freud o problema em
questão1442.
No dia 14 de julho de 1929, Freud endereçou uma carta a Rolland
dizendo-lhe que vinha pensado muito a respeito do tal sentimento oceânico e que
pretendia elucidá-lo psicanaliticamente num trabalho a ser concluído e publicado em
breve, ou seja, no que viria a ser “O mal-estar na cultura”1443. Mais tarde, ao dedicar um
exemplar desse livro a Rolland, Freud se referiu ao escritor francês como seu grande
amigo “oceânico”, definindo-se a si mesmo, por seu turno, como um animal
“terrestre”1444. Ficou, com isso, declarada a amizade; mas também o estranhamento.
O primeiro capítulo de “O mal-estar na cultura” é, todo ele, dedicado
ao problema levantado por Rolland. De saída, Freud garante que, da sua parte, nunca
experimentou nada parecido ao sentimento oceânico, embora não exclua a possibilidade
de que outras pessoas possam fazê-lo1445.
Em seguida, Freud argumenta que o referido sentimento é apenas o
sentimento primitivo do eu conservado na idade adulta; ou seja, aos seus olhos, o
sentimento oceânico não tem uma natureza primária, mas pode ser reduzido ao
sentimento do eu do bebê. Com efeito, o bebê não distingue entre o seu corpo e o seio
materno, o próprio eu e os objetos, o interior e o exterior, o dentro e o fora.
Originalmente, o eu do bebê abarca tudo; mais tarde, é que ele separa de si o mundo
exterior. Algo desse sentimento do eu primário pode, contudo, ser conservado, em
algum registro, mesmo na idade adulta, podendo-se regredir a essa organização. As
pessoas com quem isso acontece, experimentam o sentimento oceânico1446.

1441
Cf. KAKAR, The analyst and the mystic, p.6.
1442
Cf. CLÉMENT; KAKAR, A louca e o santo, p.108-109; DOMÍNGUEZ MORANO, El psicoanálisis
freudiano de la religión, p.263; KAKAR, The analyst and the mystic, p.5-6.
1443
Cf. VERMOREL; VERMOREL, Sigmund Freud et Romain Rolland: correspondance 1923-1936, p.308.
1444
Cf. VERMOREL; VERMOREL, Sigmund Freud et Romain Rolland: correspondance 1923-1936, p.328.
1445
Cf. FREUD, Le malaise dans la culture. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.250-251. No primeiro
capítulo, colocamos em dúvida essa declaração. Seja como for, vale o registro de que, assim como Freud,
James também afirmou não ter experiência pessoal dos estados místicos (cf. JAMES, The varieties of
religious experience, p.328). O psicólogo norte-americano assumiu, não obstante, face ao misticismo,
uma atitude muito mais receptiva do que Freud.
1446
Cf. FREUD, Le malaise dans la culture. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.252-254.
Por fim, com base nesse arrazoado, Freud descarta o sentimento
oceânico como fonte da religiosidade. Rejeitada a hipótese de Rolland, ele reafirma o
que dissera em “O futuro de uma ilusão”: a fonte primária do sentimento religioso é
mesmo o desamparo infantil e a nostalgia do pai protetor1447.
A esse respeito, observe-se: em sua análise do sentimento oceânico,
Freud mal reconhece o caráter materno do mesmo1448. Ele aponta para essa dimensão, é
verdade, quando nota que o sentimento em questão é herdeiro da indiferenciação entre o
corpo do bebê e o seio da mãe1449. Mas não insiste nisso. Ao que parece, foi Andreas-
Salomé, numa carta de quatro de janeiro de 1930, a primeira a assinalar que o
sentimento oceânico tem uma qualidade materna1450.
De fato, o sentimento oceânico remete, fundamentalmente, a um
estado de indistinção entre a criança e a mãe. Portanto, ao apontar para esse sentimento
como a verdadeira fonte da religiosidade, Rolland estava propondo, implicitamente,
uma origem materna, ao invés de paterna, para o sentimento religioso. Ao rejeitar o
sentimento oceânico em favor da nostalgia do pai, Freud estava, pois, reafirmando a
procedência paterna, e não materna, da religiosidade1451.
Freud não apenas descartou o sentimento oceânico rollandiano em “O
mal-estar na cultura”, mas, em seus estudos sobre a religião, desconsiderou a mística, de
um modo geral1452. Talvez, se possa dizer que uma religião se constitui de cinco
elementos principais: crenças, ritos, normas, instituição e mística Ŕ noutras palavras,

1447
Cf. FREUD, Le malaise dans la culture. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.258; ver também:
FREUD, Correspondance 1873-1939, p.424.
1448
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, Creer después de Freud, p.64, 119 [nota 6]; DOMÍNGUEZ MORANO, El
psicoanálisis freudiano de la religión, p.265-266; DOMÍNGUEZ MORANO, Experiencia cristiana y
psicoanálisis, p.174.
1449
Cf. FREUD, Le malaise dans la culture. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.252.
1450
Cf. ANDREAS-SALOMÉ, Correspondance avec Sigmund Freud 1912-1936, p.227.
1451
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, El psicoanálisis freudiano de la religión, p.261-266; DOMÍNGUEZ
MORANO, Orar depois de Freud, p.40-42, 56-57, 67-68; NICÉAS, 1939-1912. In: MOURA, Hélio
Pellegrino. A-Deus, p.210; SUDBRACK, Experiência religiosa e psique humana, p.19-20, 136; VAN
HERIK, Freud on femininity and faith, p.157. Em “Childhood and society” [“Infância e sociedade”],
publicado em 1950, Erik Erikson (1902-1994) observa que, na primeira fase do desenvolvimento
humano, a criança estabelece uma estreita união amorosa com a mãe. A separação da figura materna, por
sua vez, resulta numa espécie de nostalgia do paraíso perdido, podendo-se aí reconhecer a origem do
sentimento religioso (cf. ERIKSON, Infância e sociedade, p.71, 229-230). Ou seja, para Erikson, a
religiosidade é antes anseio pela mãe do que pelo pai. A tese de que o sentimento religioso remonta ao
desejo de reviver a sensação de unidade com a matriz maternal foi reiterada em “Young man Luther” [“O
jovem Lutero”], lançado por Erikson em 1958 (cf. ERIKSON, Luther avant Luther, p.313).
1452
Cf. LECUIT, L‟anthropologie théologique à la lumière de la psychanalyse, p.405, 433 [nota 2];
VERGOTE, Psychanalyse et anthropologie philosophique. In: HUBER; PIRON; VERGOTE, La psychanalyse,
science de l‟homme, p.229-231.
doutrina, liturgia, moral, eclesialidade e experiência de Deus. Em “Atos obsessivos e
exercícios religiosos”, Freud focalizou os ritos religiosos; em “A moral sexual „cultural‟
e a nervosidade moderna” e em “O mal-estar na cultura”, voltou-se para a moral Ŕ
sobretudo, para a ética sexual Ŕ; em “Totem e tabu” e em “O homem Moisés e a religião
monoteísta”, Freud se concentrou na fé em Deus Pai; em “Psicologia das massas e
análise do eu”, desvendou a estrutura libidinal da Igreja1453; e, em “O futuro de uma
ilusão” e em “Sobre uma visão do mundo”, ele se debruçou sobre as crenças religiosas
de um modo geral. Ou seja, praticamente todos os aspectos de que se constitui uma
religião foram contemplados por Freud em suas pesquisas, com exclusão de um
somente: o misticismo.
No tempo de Freud, vários pesquisadores colocaram em primeiro
plano o estudo psicológico da experiência mística. Pode-se citar, por exemplo, Henri
Delacroix (1873-1937), na França; Joseph Maréchal (1878-1944), na Bélgica; Theodore
Flournoy (1854-1920) e Ferdinand Morel (1888-1957), na Suíça; Richard Maurice
Bucke (1837-1902), no Canadá; William Ernest Hocking (1873-1966) e James Henry
Leuba (1867-1946), nos Estados Unidos da América etc. De fato, o objeto por
excelência da psicologia da religião é a experiência humana de Deus, constituindo-se a
mística na “cereja do bolo” dessa experiência. Freud, porém, não julgou que esse
assunto merecesse maior atenção. Ele estava interessado apenas na religião do homem
comum1454; a mística, evidentemente, não fazia parte disso1455.
Freud chegou a esboçar uma teorização da experiência mística,
concebida como uma forma obscura de percepção do inconsciente1456, mas não avançou
muito nessa direção. No dia 22 de agosto de 1938, ele anotou numa folha de papel:
“Mystique, l‟autoperception du royaume extérieur au moi, le ça” [“Mística, a

1453
Cf. FREUD, Psychologie des masses et analyse du moi. In: _______. Œuvres complètes, v.16, p.31-38,
73.
1454
Cf. FREUD, Le malaise dans la culture. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.259-260.
1455
Cf. PARSONS, The enigma of the oceanic feeling, p.8, 77, 199 [nota 78].
1456
Cf. FREUD, La psychopathologie de la vie quotidienne, p.411-412; FREUD, Nouvelle suite des leçons
d‟introduction à la psychanalyse. In: _______. Œuvres complètes, v.19, p.162; MASSON, A
correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess – 1887-1904, p.287; ver também:
KRISTEVA, Cet incroyable besoin de croire, p.17-18, 38; LECUIT, L‟anthropologie théologique à la
lumière de la psychanalyse, p.411-414, 417-418.
autopercepção do reino exterior ao eu, o isso”] 1457. Esse registro, porém, ficou como
intuição a ser mais aprofundada e melhor compreendida.
Nos escritos de Freud, o termo “misticismo” tem um significado não
muito preciso. O místico é o misterioso, o inexplicável, o irracional, o enigmático1458.
Trata-se de um domínio mal delimitado, onde cabem o sonho, o ocultismo, a telepatia, a
superstição, a magia e a feitiçaria1459.
Uma coisa, porém, é certa: seja lá o que for que Freud entenda por
“misticismo”, o fato é que o termo tem, para ele, uma conotação inequivocamente
negativa1460. Numa carta que endereçou a Jung em 12 de maio de 1911, Freud se referiu
ao misticismo como algo de que se é “acusado”, como uma espécie de má reputação1461.
Em “Psicanálise e telepatia”, Freud comentou que, ainda naquela data Ŕ ou seja, em
1921 Ŕ, a psicanálise era suspeita de “misticismo”1462. Em 1929, Roback publicou
“Jewish influence in modern thought” [“Influência judaica no pensamento moderno”],
atribuindo a Freud inclinações místicas. Freud lhe escreveu, no dia 20 de fevereiro de
1930, dizendo não se reconhecer naquela afirmação1463. Numa carta a Rolland, de 19 de
janeiro de 1930, Freud descreveu Jung como alguém “um pouco místico”, ao que tudo
indica, num sentido desabonador1464. Por fim, consta que, certa vez, Viktor von
Weizsaecker (1886-1957) admitiu que, talvez, fosse um tipo de místico. Freud ficou
“visivelmente horrorizado” e exclamou: “Isso é terrível!”1465.
Numa carta que enviou a Abraham, no dia 20 de julho de 1908, Freud
comentou que a eles, judeus, “falta o elemento místico”1466. Correspondendo-se com

1457
FREUD, Résultats, idées, problèmes. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.320; ver também:
ASSOUN, Freud et la mystique. Nouvelle revue de psychanalyse, n.22, p.61; MOSCOVICI, Le monde réel.
Nouvelle revue de psychanalyse, n.22, p.73.
1458
Cf. FREUD, “Autoprésentation”. In: _______. Œuvres complètes, v.17, p.75; FREUD, Psychologie des
masses et analyse du moi. In: _______. Œuvres complètes, v.16, p.53.
1459
Cf. FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.165,
168; FREUD, Nouvelle suite des leçons d‟introduction à la psychanalyse. In: _______. Œuvres complètes,
v.19, p.112, 137; ver também: VERMOREL; VERMOREL, Sigmund Freud et Romain Rolland:
correspondance 1923-1936, p.584.
1460
Cf. DADOUN, Un vol d‟Upanishads au-dessus de Sigmund Freud. Nouvelle revue de psychanalyse,
n.22, p.143-144.
1461
Cf. MCGUIRE, The Freud/Jung letters, p.184.
1462
Cf. FREUD, Psychanalyse et télépathie. In: _______. Œuvres complètes, v.16, p.102.
1463
Cf. FREUD, Correspondance 1873-1939, p.430.
1464
Cf. FREUD, Correspondance 1873-1939, p.428-429.
1465
PALMER, Freud e Jung: sobre a religião, p.24.
1466
Cf. FREUD; ABRAHAM, Correspondance complète 1907-1925, p.87. Mezan reagiu fortemente a essa
declaração, alegando que o judaísmo possui, sim, correntes místicas e que Freud tinha todas as condições
de saber disso (cf. MEZAN, Freud, pensador da cultura, p.281; MEZAN, Psicanálise, judaísmo:
Hans Ehrenwald, em 14 de dezembro de 1937, Freud mencionou a “rejeição do
misticismo” como uma característica peculiar do judaísmo1467 Ŕ uma característica
positiva, entenda-se. Também em “O homem Moisés e a religião monoteísta”, Freud
apontou a rejeição da mística como uma das características da religião judaica. O fato
de que o cristianismo tenha reintroduzido elementos místicos em suas práticas seria
mais um sinal de que, comparado ao judaísmo, ele representaria num retrocesso1468.
Numa carta que endereçou a Rolland, em 20 de julho de 1929, Freud
lhe confessou: “La mystique m‟est aussi fermée que la musique” [“A mística me é tão
fechada quanto a música”]1469. Em “O Moisés de Michelangelo”, ele deu a conhecer que
tinha grande sensibilidade para as criações literárias e as obras plásticas, mas que era
quase incapaz de apreciar a música1470. Rolland, além de místico, era músico e
musicólogo. Tocava piano admiravelmente bem, compunha, fazia crítica musical,
escreveu uma tese de musicologia e uma biografia de Ludwig van Beethoven (1770-
1827) que, durante muito tempo, foi a melhor existente1471. Freud, por sua vez, tinha
uma verdadeira fobia musical. Surpreendente aversão! A terra natal de Freud era uma
terra de grande musicalidade. Dizia-se que todo tcheco nascia com um violino nas
mãos. Viena, por sua vez, no tempo de Freud, era a capital mundial da música. A capital
austríaca era um grande centro mozartiano, a cidade natal de Franz Schubert (1797-
1828) e a casa de não-vienenses como Beethoven, Johannes Brahms (1833-1897),
Gustav Mahler (1860-1911), Arnold Schönberg (1874-1951) e Alban Berg (1885-1935).
Freud, porém, não tinha ouvido musical, não sabia cantar, não ia a concertos, não
entendia de música. Levava as mãos aos ouvidos quando entrava num restaurante ou
numa cervejaria onde uma orquestra estivesse tocando. Apreciava algumas óperas, e só.

ressonâncias, p.127). O autor acrescentou, porém, que, enquanto experiência de fusão com o divino, o
misticismo está mesmo ausente da tradição judaica (cf. MEZAN, Freud, pensador da cultura, p.400; ver
também: HADDAD, O filho ilegítimo, p.167; YERUSHALMI, O Moisés de Freud, p.189-190 [nota 16]).
1467
Cf. FREUD, Correspondance 1873-1939, p.479; ver também: GAY, A Godless jew, p.132.
1468
Cf. FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.165,
168. Contudo, numa carta que endereçou a Jung em 16 de abril de 1909, Freud mencionou a qualidade
tipicamente “judaica” do seu “misticismo” (cf. MCGUIRE, The Freud/Jung letters, p.106). Ou seja, ele
admitiu a existência de uma mística judia e acrescentou que ele mesmo se reconhecia nela. Contradição?
Talvez, não. O “misticismo judaico” a que Freud se refere, aqui, parece compreender apenas as suas
superstições a respeito dos números, que, por sua vez, tem a ver com a cabala (cf. CHEMOUNI, Freud, la
psychanalyse et le judaisme, p.123-124; GAY, A Godless jew, p.130-131 [nota 31]).
1469
FREUD, Correspondance 1873-1939, p.424.
1470
Cf. FREUD, Le Moïse de Michel-Ange. In: _______. Œuvres complètes, v.12, p.131.
1471
Cf. ROUDINESCO; PLON, Dicionário de psicanálise, p.666; VERMOREL; VERMOREL, Sigmund Freud et
Romain Rolland: correspondance 1923-1936, p.79-80.
Para tanto, certamente concorriam o texto e o interesse dramático das mesmas. “Don
Giovanni” era a sua favorita1472.
É curioso que, na carta a Rolland, ao manifestar a sua pouca
familiaridade com a mística, Freud cite o seu igual estranhamento pela música. De fato,
ambas são inebriantes1473. Mais! De algum modo, ambas podem ser referidas ao âmbito
do materno1474.
Outro sinal do escasso apreço de Freud pela mística é o fato de que ele
jamais tenha revelado qualquer interesse pelas religiões orientais, tendo se dedicado
unicamente ao estudo do judaísmo e do cristianismo. Rolland, que era místico e músico,
tinha verdadeira paixão pela Índia; ele se interessou vivamente pelo hinduísmo, tendo
dedicado vários textos a essa religião1475. Freud, que não gostava nem de mística nem
de música, jamais revelou qualquer interesse pelas religiões do Oriente1476.
No dia 25 de outubro de 1926, Freud fez uma visita a Rabindranath
Tagore (1861-1941), em Viena, atendendo a um convite deste último. Pouco depois, um
professor de filosofia em Calcutá, também indiano, foi ao encontro de Freud. Este
parece não ter se impressionado muito com os indianos, pois, no dia 13 de dezembro
seguinte, numa carta a Ferenczi, observou: “Minha necessidade de indianos no
momento está inteiramente satisfeita”1477.
Concluída a biografia de Ramakrishna, Rolland enviou a Freud um
exemplar do seu livro. Em resposta, numa carta de 19 de janeiro de 1930, Freud admitiu
que sempre se manteve “afastado” da “selva hindu” em que Rolland procurava fazê-lo
penetrar agora1478.

1472
Cf. ASSOUN, Freud et la mystique. Nouvelle revue de psychanalyse, n.22, p.65; GAY, Freud, p.166;
JONES, A vida e a obra de Sigmund Freud, v.1, p.31; ROAZEN, Freud e seus discípulos, p.59-60; SILVA, O
ateísmo de Freud, p.34, 65; VITZ, Sigmund Freud‟s christian unconscious, p.117-118, 194, 213-214, 225
[nota 48].
1473
Daí que, na canção “Paratodos”, do seu disco de 1993, Chico Buarque (1944) tenha podido dizer:
“Fume Ary, cheire Vinícius, beba Nelson Cavaquinho”.
1474
Cf. KRISTEVA, Cet incroyable besoin de croire, p.34-35; LECUIT, L‟anthropologie théologique à la
lumière de la psychanalyse, p.406 [nota 3]; VERMOREL; VERMOREL, Sigmund Freud et Romain Rolland:
correspondance 1923-1936, p.116, 585-586; ver também: ROAZEN, Freud e seus discípulos, p.60.
1475
Cf. ROUDINESCO; PLON, Dicionário de psicanálise, p.667.
1476
Em “O homem Moisés e a religião monoteísta”, Freud menciona de passagem o islamismo e as
religiões orientais (cf. FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres
complètes, v.20, p.172).
1477
JONES, A vida e a obra de Sigmund Freud, v.3, p.139.
1478
Cf. FREUD, Correspondance 1873-1939, p.428.
Na obra de Freud, há apenas duas referências às religiões da Índia: o
uso do conceito de “nirvana”1479, que é um termo fundamental do vocabulário religioso
sânscrito da Índia antiga, e a referência a Brhad-Aranyaka-Upanisad, uma teoria em
forma de mito que aparece num texto religioso da Índia1480.
Se Freud tivesse se interessado mais pelo hinduísmo, teria entrado em
contato com uma religião em que o misticismo ocupa um lugar proeminente e na qual
há uma maior sensibilidade para com a representação de Deus enquanto mãe. Com
efeito, no hinduísmo, há divindades masculinas e femininas. Kali, a Grande Mãe, é a
divindade materna do hinduísmo1481.
Há, de fato, uma profunda relação Ŕ e não só no Oriente Ŕ entre a
experiência mística e a representação materna do divino. Para o místico alemão Mestre
Eckhart (1260-1327), Deus é não apenas Pai, mas também Mãe1482. São João da Cruz
(1542-1591) lançou mão da metáfora do desmame para descrever a experiência da
privação da presença de Deus1483. Em “Traité de l‟amour de Dieu” [“Tratado do amor
de Deus”], de 1616, São Francisco de Sales (1567-1622) explora abundantemente a
analogia entre a experiência de união amorosa com Deus e a amamentação1484.
Ramakrishna, de sua parte, afirmou:

“Who can ever know God? I don‟t even try. I only call him as
Mother.... My nature is that of a kitten. I only cries „Mew, mew‟.
The rest it leaves to the mother” [“Quem pode conhecer Deus?
Eu nem mesmo tento. Apenas chamo-o de Mãe.... Sou como um
gatinho. Apenas grito: „Miau, miau‟. O resto é com a mãe”]1485.

1479
Cf. FREUD, Au-delà du principe de plaisir. In: _______. Œuvres complètes, v.15, p.329; FREUD,
Abrégé de psychanalyse. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.296.
1480
Cf. MALAMOUD, Psicanálise & ciência das religiões. In: KAUFMANN, Dicionário enciclopédico de
psicanálise, p.585; VERMOREL; VERMOREL, Sigmund Freud et Romain Rolland: correspondance 1923-
1936, p.307.
1481
Cf. CLÉMENT; KAKAR, A louca e o santo, p.116, 170-171; PAIVA, Representação da religião no
encontro das culturas. In: PAIVA; ZANGARI, A representação na religião, p.114, 122, 125; VERGOTE,
Psychologie et religion. In: LENOIR; TARDAN-MASQUELIER, Encyclopédie des religions, v.2, p.2276,
2283.
1482
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, Experiencia mística y psicoanálisis, p.21; DOMÍNGUEZ MORANO,
Psicodinámica de los ejercicios ignacianos, p.262 [nota 27].
1483
Cf. VERGOTE, Psychologie et religion. In: LENOIR; TARDAN-MASQUELIER, Encyclopédie des
religions, v.2, p.2286.
1484
Cf. SALES, Traité de l‟amour de Dieu, v.1, p.60, 208, 278-281, 365-367; SALES, Traité de l‟amour de
Dieu, v.2, p.2-4, 8, 16, 78, 176-180, 407.
1485
KAKAR, The analyst and the mystic, p.16.
Madeleine “Lebouc” [“O bode”] (1853-1918), a paciente de Pierre
Janet (1859-1947), descreveu uma experiência de êxtase desta maneira:

“Sou como uma criança no colo de sua mãe que, de tempos em


tempos, abre os olhos e aprecia o contentamento de ser
embalada, adormecendo em seguida. (...) Acontece às vezes de
eu sair destes estados trazendo apenas uma lembrança vaga,
como se eu tivesse estado com Deus”1486.

E, numa carta ao seu filho Manuel, datada de 20 de maio de 1933, a


grande mística mexicana Concepción Cabrera de Armida (1862-1937) escreveu: “Dios,
si es tres veces santo, es mil veces MADRE” [“Deus, se és três vezes santo, és mil vezes
MÃE”]1487.
Sim, definitivamente, a mística é um domínio feminino: tem a ver
com uma representação materna do divino, com o estabelecimento de uma relação
fusional com a mãe, com a histeria Ŕ ou, talvez, com a psicose Ŕ e com a identidade
feminina da pessoa do místico. Se Freud tivesse admitido o sentimento oceânico
rollandiano, se tivesse se interessado mais pela experiência mística, a sua teoria da
religião seria muito diferente, colocando-se, certamente, para além dos esquemas
conceituais do complexo paterno e da neurose obsessiva1488.

Freud e Nossa Senhora

Por fim, um último exemplo do desapreço de Freud pelas dimensões


feminina e materna do fato religioso: o seu desinteresse por Maria, a mãe de Jesus.
Freud nasceu numa região profundamente marcada pela devoção
mariana. A sua terra natal, a Moravia, era conhecida como “Jardim Mariano”. Freiberg,
a aldeia em que Freud viveu até os três anos, era o destino de uma importante
peregrinação mariana. Havia, ali, cinco igrejas. A principal delas, munida de uma torre
de 60 metros de altura, era consagrada à Natividade de Nossa Senhora. O campanário
desse templo mariano era muito mais alto do que as edificações do seu entorno. E a casa

1486
MIJOLLA-MELLOR, A necessidade de crer, p.155.
1487
FRANCO, El psicoanálisis y la experiencia de Dios. In: GRUPO ÉPSIMO, Experiencia de Dios y
psicoanálisis, p.17.
1488
Cf. GUIRDHAM, Christ and Freud, p.11, 19, 38; MIJOLLA-MELLOR, A necessidade de crer, p.122, 130.
em que Freud nasceu ficava a uns 200 metros dessa igreja. A aldeia girava em torno da
praça do mercado. No centro dessa praça, havia uma estátua de Maria feita de pedra1489.
Na Viena católica em que Freud viveu, a mãe de Jesus não era menos
venerada. Não obstante, embora tenha se interessado muito por religião, Freud
dispensou escassa atenção a Nossa Senhora1490.
A rigor, não se pode dizer que o nome de Maria esteja ausente dos
seus escritos. Freud estabeleceu uma correlação entre Deus e o pai, Maria e a mãe1491;
citou Nossa Senhora a partir de quadros em que ela é retratada1492; observou que, em
Éfeso, Maria é a representante mais recente de uma linhagem de divindades
maternas1493; citou a imaculada conceição de Maria1494; mencionou as aparições
milagrosas da mãe de Jesus1495; referiu-se a Nossa Senhora de Lourdes1496; estimou a
devoção mariana dos católicos como um retrocesso em relação ao monoteísmo
conquistado pelos judeus1497 etc.1498
Mas, apenas isso. Não há, na obra de Freud, nenhuma interpretação
psicanalítica mais elaborada sobre a figura de Nossa Senhora. Ora, Maria é uma
representação religiosa de primeira grandeza que se assenta sobre dados históricos
relativamente exíguos. Esse fato parece sugerir que ela é, em larga medida, um produto
das forças psíquicas da cristandade e, por conseguinte, um objeto de enorme interesse
para a psicologia da religião1499. Freud não pensou assim.

1489
Cf. PFRIMMER, Freud, leitor da Bíblia, p.43; VERMOREL; VERMOREL, Sigmund Freud et Romain
Rolland: correspondance 1923-1936, p.539; VITZ, Sigmund Freud‟s christian unconscious, p.3, 10-11,
224 [nota 11], 226 [nota 55]; ZILBOORG, Psicanálise e religião, p.254.
1490
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, Creer después de Freud, p.65; DOMÍNGUEZ MORANO, El psicoanálisis
freudiano de la religión, p.456; DOMÍNGUEZ MORANO, Experiencia cristiana y psicoanálisis, p.106-107.
1491
Cf. FREUD, Correspondance avec le pasteur Pfister 1909-1939, p.53.
1492
Cf. FREUD, Fragment d‟une analyse d‟hystérie. In: _______. Œuvres complètes, v.6, p.275, 279 [nota
1], 283 [nota 2], 298; FREUD, Un souvenir d‟enfance de Léonard de Vinci. In: _______. Œuvres
complètes, v.10, p.112, 115-116, 138-141.
1493
Cf. FREUD, “Grande est la Diane des Éphésiens”. In: _______. Œuvres complètes, v.11, p.49-53.
1494
Cf. FREUD, Correspondance avec le pasteur Pfister 1909-1939, p.52-53; FREUD, Totem et tabou. In:
_______. Œuvres complètes, v.11, p.333.
1495
Cf. FREUD, Les chances d‟avenir de la thérapie psychanalytique. In: _______. Œuvres complètes,
v.10, p.71.
1496
Cf. FREUD, Nouvelle suite des leçons d‟introduction à la psychanalyse. In: _______. Œuvres
complètes, v.19, p.237.
1497
Cf. FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.168,
214-215.
1498
Cf. FREUD, A partir de l‟histoire d‟une névrose infantile. In: _______. Œuvres complètes, v.13, p.63;
FREUD, Le malaise dans la culture. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.256; FREUD, Une névrose
diabolique au XVIIe siècle. In: _______. Œuvres complètes, v.16, p.218, 220-223, 236, 239, 241, 245-
246; FREUD; ABRAHAM, Correspondance complète 1907-1925, p.122.
1499
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, Experiencia cristiana y psicoanálisis, p.103.
Psicanaliticamente, o mínimo que se pode dizer da devoção mariana é
que ela se revela especialmente receptiva a transferências e projeções de tipo
materno1500. Santa Teresa de Jesus, por exemplo, escreveu:

“...cuando muriñ mi madre [...] afligida fuíme a una imagen de


Nuestra Señora y supliquéla fuese mi madre, con muchas
lágrimas” [“...quando a minha mãe morreu [...], aflita, dirigi-me
a uma imagem de Nossa Senhora e lhe pedi, com muitas
lágrimas, que ela fosse a minha mãe”]1501.

Atraídos por essa representação religiosa, tão interessante do ponto de


vista psicanalítico, não poucos discípulos de Freud dedicaram-lhe alguma atenção.
Em 1923, Jones publicou “Essays in applied psycho-analysis”
[“Ensaios de psicanálise aplicada”], traduzido parcialmente para o português sob o título
“Psicanálise da religião cristã”. A mesma obra foi também traduzida para o espanhol Ŕ
de novo, apenas em parte Ŕ e intitulada “Ensayos de psicoanálisis aplicado” [“Ensaios
de psicanálise aplicada”]. O trabalho reúne uma série de conferências e artigos,
independentes entre si, entre as quais há, pelo menos, seis de psicanálise da religião.
Um aspecto digno de nota na abordagem de Jones é o interesse que ele
dispensou aos elementos feminino e materno da religiosidade. Ambas as traduções
acima referidas trazem, por exemplo, um extenso estudo do psicanalista galês,
publicado originalmente em 1914, sobre a lenda da concepção de Jesus por Maria, isto
é, sobre a cena evangélica da anunciação a Maria1502. Numa conferência proferida em
1930, Jones se interessou pelo dogma católico da virgindade de Nossa Senhora,
observando que a afirmação da virgindade da mãe implica na negação da participação
da figura paterna na geração de Jesus, o que sugere que a crença católica na maternidade
virginal de Maria tenha um caráter edipiano1503. Reconhecendo que a intercessão de
Maria desempenha um papel destacado no catolicismo, Jones ressaltou a importância

1500
Cf. DREWERMANN, Fonctionnaires de Dieu, p.296, 441, 443-444, 447; MEISSNER, Ignatius of Loyola,
p.242.
1501
JESÚS, Libro de la vida. In: _______. Obras completas, v.1, p.598 [c.1, n.7]. Santa Teresinha do
Menino Jesus e da Sagrada Face parece ter feito algo semelhante (cf. VASSE, O sofrimento sem gozo ou o
martírio do amor, p.45-46).
1502
Cf. JONES, Ensayos de psicoanálisis aplicado, p.203-298; JONES, Psicanálise da religião cristã, p.55-
201.
1503
Cf. JONES, Ensayos de psicoanálisis aplicado, p.163. Vários outros autores seguiram, depois, essa
pista.
que essa tradição concedeu ao elemento materno na economia da salvação,
diferentemente do judaísmo e do protestantismo, ambos avessos ao culto de divindades
maternas1504.
A mesma atenção ao feminino no âmbito da psicanálise da religião
pode ainda ser encontrada: nas referências que Jones faz à deusa mãe, cultuada,
sobretudo, nas religiões orientais e que teria retornado em Maria1505; na menção da
delicadeza e da benevolência de Jesus e na referência à sua submissão ao Pai, o que
faria dele uma figura de caráter materno, passivo1506; na análise da figura do Espírito
Santo, que também possuiria, segundo Jones, uma qualidade feminina1507; e na
consideração de uma suposta feminilidade do clero católico1508.
O livro “Der eigene und der fremde Gott” [“O Deus prñprio e o Deus
alheio”] Ŕ publicado em 1923, traduzido para o português em 1934 sob o título
“Religião e psicanálise: o Deus prñprio e o Deus alheio” Ŕ reúne 11 conferências
independentes entre si proferidas por Reik entre os anos 1920 e 1921. Temas diversos
do campo da psicologia da religião são aí examinados, por exemplo: a concepção
virginal de Jesus por Maria; a lenda de que Maria teria sido engravidada por um soldado
romano de nome “Pantera”; uma suposta relação incestuosa entre Jesus e Maria; a
também presumida unidade primitiva entre as representações de Maria de Nazaré e
Maria Madalena, a virgem e a prostituta; a veneração dos cainitas Ŕ os seguidores de
Caim, assassino de Abel Ŕ por Judas Iscariotes; a crença na existência do diabo; o
sentimento sinistro que os ídolos e ritos primitivos despertam; o ódio entre as religiões
etc. Como se vê, Reik apreciava temas fortes. Note-se, em todo caso, que, em, pelo
menos, quatro dessas conferências, Reik se ocupa, em maior ou menor medida, da
figura de Maria1509. Em “Os deuses ressuscitados”, por exemplo, ele esboça uma
interessante história da evolução da deusa mãe na tradição judaico-cristã. Começa
supondo que os israelitas, como todos os povos semitas, veneravam uma deusa mãe.
Num segundo momento, ela teria sido substituída pelo Deus Iahweh, masculino,

1504
Cf. JONES, Ensayos de psicoanálisis aplicado, p.159, 162-163, 171, 173.
1505
Cf. JONES, Ensayos de psicoanálisis aplicado, p.158, 169-171.
1506
Cf. JONES, Ensayos de psicoanálisis aplicado, p.161, 170.
1507
Cf. JONES, Ensayos de psicoanálisis aplicado, p.163; JONES, Psicanálise da religião cristã, p.203-
227.
1508
Cf. JONES, Psicanálise da religião cristã, p.219, 222.
1509
Cf. REIK, Religião e psicanálise, p.15, 17-18, 27-89, 302.
paternal. Com o advento do cristianismo, a deusa mãe retorna no culto a Maria. O
protestantismo, por seu turno, rechaça novamente a figura da deusa mãe1510.
Apesar de protestante, Jung, diversamente de Freud, e a exemplo de
Jones e Reik, se interessou psicologicamente pela figura de Maria. Segundo Jung, o
elemento feminino é uma lacuna do protestantismo; trata-se de algo que os católicos
souberam conservar e que, em 1950, com o dogma da assunção de Nossa Senhora,
reforçaram. Jung sustentou que Maria é o quarto elemento da Santíssima Quaternidade,
a anima de Deus1511.
Também Fromm, num ensaio publicado originalmente em 1930,
observou que, se o Deus paterno dos judeus vencera a luta contra as divindades
maternas do Oriente, com o cristianismo, através da pessoa de Maria, emergiu
novamente a figura da deusa mãe1512. “O catolicismo...”, observa Fromm, “...significou
a volta disfarçada à religião da Grande Mãe, que havia sido derrotada por Jeová.
Somente o protestantismo voltou-se para o deus pai”1513.
Em se tratando de psicanalisar a devoção mariana, um tema que
despertou a atenção de diversos autores foi o dogma católico da maternidade virginal de
Nossa Senhora Ŕ aquele mesmo que, como vimos, Freud tomou como a imaculada
conceição. Em “O tabu da virgindade”, Freud considerou a fantasia infantil que nega a
relação sexual entre os pais e transforma a mãe numa virgem intacta1514. Mas não lhe
ocorreu relacionar essa fantasia a Maria, virgem e mãe. Isso não escapou, porém, a
Jones. E outros, depois dele, retomaram esse ponto.
Segundo Dolto, por exemplo, a maternidade virginal de Maria é uma
crença condicionada por desejos de natureza edipiana. De fato, a mãe virgem é a mãe
dos sonhos do pequeno Édipo: “Tout fils voudrait que sa mère fut vierge” [“Todo filho
gostaria que a sua mãe fosse virgem”]1515. Se a mãe é virgem, Édipo não tem rival: “...le

1510
Cf. REIK, Religião e psicanálise, p.76-82. Reik também se refere a Maria em “Dogma e compulsão”,
de 1927 (cf. REIK, Dogma and compulsion, p.140-143, 148).
1511
Cf. JUNG, Interpretação psicológica do dogma da Trindade, p.5, 21, 58-59; JUNG, Psicologia e
religião, p.68, 75, 78; ver também: BAUDOUIN, L‟Œuvre de Jung, p.311-312; PALMER, Freud e Jung:
sobre a religião, p.198, 203, 236.
1512
Cf. FROMM, O dogma de Cristo. In: _______, O dogma de Cristo, p.62-64.
1513
FROMM, O dogma de Cristo. In: _______, O dogma de Cristo, p.79.
1514
Cf. FREUD, Le tabou de la virginité. In: _______. Œuvres complètes, v.15, p.96.
1515
DOLTO; SÉVÉRIN, L‟évangile au risque de la psychanalyse, p.26.
garçon [...] peut croire qu‟il comble le désir da sa mère” [“...o garoto [...] pode crer que
ele preenche o desejo da sua mãe”]1516.
A conclusão é de Pohier:

“...le fantasme de la virginité de la mère reprèsente donc la


permanence du désir inconscient de posséder la mère, dans la
dénégation du rapport mère-père” [“...o fantasma da virgindade
da mãe representa, então, a permanência do desejo inconsciente
de possuir a mãe na denegação do relacionamento mãe-pai”]1517.

Julia Kristeva (1941), por sua vez, exclamou: “...como não crer nisso?
A mãe virgem? Eles [os cristãos] a querem virgem com efeito, para melhor amá-la ou
por ela serem amados sem rival”1518.
Não vamos discutir, aqui, o mérito de todas essas afirmações sobre
Nossa Senhora: elas não foram feitas por Freud, e é com ele que estamos dialogando.
Recolhemos essa pequena amostra de psicanálise da devoção mariana apenas para
indicar o seguinte: Maria é uma representação religiosa interessante psicanaliticamente;
e apenas o desapreço de Freud pelos elementos feminino e materno do fenômeno
religioso pode explicar o fato de que ele não tenha dispensado a ela a atenção que
merece.

As origens materna e paterna da imagem de Deus

Retomemos, pois, o fio da nossa argumentação. É chegado o momento


de concluí-la. Acima, afirmamos que nem mesmo psicologicamente se pode dizer que
Deus não é senão o pai. Deus não é apenas o pai; Deus é a mãe também. As figuras
materna e paterna contribuem ambas para a construção da imagem de Deus. Dito isso,
oferecemos uma série de exemplos da negligência com que Freud tratou as dimensões
feminina e materna da religiosidade. Vejamos, porém, mais de perto, essa tese das
origens materna e paterna da representação do divino.

1516
DOLTO; SÉVÉRIN, L‟évangile au risque de la psychanalyse, p.27.
1517
POHIER, Au nom du Père..., p.115; cf. POHIER, Au nom du Père..., p.116; ver também: DOMÍNGUEZ
MORANO, Creer después de Freud, p.197; DOMÍNGUEZ MORANO, Experiencia cristiana y psicoanálisis,
p.110, 112-113,127.
1518
KRISTEVA, No princípio era o amor, p.54.
Enquanto objeto mental, Deus não surge no psiquismo do sujeito de
um modo espontâneo, direto, natural, instintivo. A ideia de Deus não brota no espírito
da criança por “geração espontânea”1519. Não há instinto religioso. “L‟homme n‟est pas
religieux [...]. Il le devient” [“O homem não é religioso [...]. Ele se torna religioso”]1520.
E, para tanto, as figuras materna e paterna são fundamentais.
O relacionamento do ser humano com Deus, o Outro, é condicionado
pelo seu relacionamento com os outros, a começar pelos pais. A relação primitiva da
criança com os pais é o suporte básico da configuração da imagem de Deus. A gênese
da representação que o ser humano faz de Deus é, pois, mediada pelas figuras materna e
paterna. Para usar uma expressão que Henri Bergson (1859-1941) consagrou, as “duas
fontes da religião” Ŕ ou da imagem de Deus Ŕ são as figuras da mãe e do pai.
A religião possui, então, dois polos fundamentais, dois eixos
estruturantes: o materno e o paterno. As figuras da mãe e do pai plasmam, de um modo
igualmente importante, o sentimento religioso e a imagem de Deus no coração do ser
humano1521: “L‟image divine résulte des deux images parentales...” [“A imagem divina
resulta das duas imagens parentais...”]1522; “...l‟image de Dieu est nécessairement
médiatisée par les deux figures qui sont à l‟origine de toute existence: le père et la
mère” [“...a imagem de Deus é necessariamente mediatizada pelas duas figuras que
estão na origem de toda existência: o pai e a mãe”]1523.
A relação da criança com a mãe é a condição de possibilidade da
vertente mística da religiosidade. Na configuração da experiência religiosa, o eixo
materno contribui com as bases psicológicas do anelo místico. A dimensão materna
responde, pois, pelo desejo de Deus, constituindo-se na infra-estrutura psíquica da

1519
Cf. VERGOTE, Psychologie religieuse, p.293.
1520
VERGOTE, Psychologie religieuse, p.25.
1521
Cf. VERGOTE, Psychologie religieuse, p.155-212, 296.
1522
VERGOTE, Psychologie religieuse, p.191.
1523
VERGOTE, Psychologie religieuse, p.184; cf. CATALAN, O homem e sua religião, p.149, 151;
DACQUINO, Religiosidad y psicoanálisis, p.52-53, 55; DOMÍNGUEZ MORANO, Creer después de Freud,
p.115-117; DOMÍNGUEZ MORANO, Orar depois de Freud, p.54-55; DOMÍNGUEZ MORANO, Psicodinámica
de los ejercicios ignacianos, p.16, 21; FONT I RONDON, Religión, psicopatología y salud mental, p.55;
GODIN, Le Dieu des parents et le Dieu des enfants, p.21-22; LECUIT, L‟anthropologie théologique à la
lumière de la psychanalyse, p.550-553; RIZZUTO, O nascimento do Deus vivo, p.68-69, 77, 272;
VERGOTE, Reflexões. In: PAIVA, Necessidade e desejo, p.108.
dimensão amorosa da experiência de Deus. A relação unitiva da criança com a mãe é o
“leito” da experiência mística1524.
Mediante o símbolo paterno, por sua vez, é que Deus ganha um nome,
uma forma e uma representação. O paterno tem a ver também com a dimensão
normativa da religiosidade. A transformação da realidade histórica circundante em
Reino de Deus corresponde, pois, ao polo paterno da experiência religiosa1525.
Os eixos materno e paterno da experiência humana de Deus são
correlativos, respectivamente, das vertentes mística e profética da religiosidade. Natham
Söderblom (1866-1931) propôs uma tipologia das religiões que as distingue em dois
grupos: místicas e proféticas. As religiões místicas valorizam em especial a experiência
de comunhão com o divino, o qual é concebido de preferência a partir da figura
materna; as religiões proféticas concebem a Deus preferencialmente como pai e
encarecem particularmente a dimensão ética da religiosidade. O judaísmo, o
cristianismo e o islamismo seriam religiões proféticas, ao passo que o hinduísmo e o
budismo, religiões místicas. Mais do que tipos de religião, contudo, talvez, essas duas
polaridades possam ser pensadas como correntes presentes, em maior ou menor grau,
em todas as religiões. Há, com efeito, uma complementaridade entre a mística e a
profecia, ou seja, entre os polos materno e paterno da experiência que o ser humano faz
de Deus1526.
De tudo isso, queremos recolher a ideia de que, psicologicamente
falando, a origem da crença religiosa é o complexo parental ou, se quisermos, o
complexo materno-paterno, não o complexo paterno simplesmente. Houve um período
da produção de Freud em que ele mesmo esteve muito próximo de admitir essa tese. No
dia dois de janeiro de 1910, numa carta a Jung, ele escreveu:

1524
Cf. DADOUN, Un vol d‟Upanishads au-dessus de Sigmund Freud. Nouvelle revue de psychanalyse,
n.22, p.150; DOMÍNGUEZ MORANO, Creer después de Freud, p.117-121; DOMÍNGUEZ MORANO,
Experiencia cristiana y psicoanálisis, p.54-56, 173-179, 203-204, 206-208; DOMÍNGUEZ MORANO,
Experiencia mística y psicoanálisis, p.18-22; DOMÍNGUEZ MORANO, Orar depois de Freud, p.39-41, 56-
58; DOMÍNGUEZ MORANO, Psicodinámica de los ejercicios ignacianos, p.21-23, 262; LEDOUX, La
relation d‟absence. Nouvelle revue de psychanalyse, n.22, p.242; VERGOTE, Psychologie religieuse,
p.159-180, 208-210.
1525
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, Creer después de Freud, p.121-123; DOMÍNGUEZ MORANO, Experiencia
cristiana y psicoanálisis, p.56-57, 205, 208-210; DOMÍNGUEZ MORANO, Orar depois de Freud, p.41-43,
58-60; DOMÍNGUEZ MORANO, Psicodinámica de los ejercicios ignacianos, p.24-26.
1526
Cf. ÁVILA, Para conhecer a psicologia da religião, p.101; DOMÍNGUEZ MORANO, Experiencia
cristiana y psicoanálisis, p.13, 169-173, 195; DOMÍNGUEZ MORANO, Psicodinámica de los ejercicios
ignacianos, p.24 [nota 12], 58; PARAT, L‟inconscient et le sacré, p.38; VERGOTE, Psychologie religieuse,
p.157-158.
“After infancy he [the man] cannot conceive of a world without
parents and makes for himself a just God and a kindly nature...”
[“Passada a infância, ele [o homem] não é capaz de conceber um
mundo sem pais e forja para si mesmo um Deus justo e uma
natureza amável...”]1527.

No mesmo ano, em “Uma lembrança de infância de Leonardo da


Vinci”, Freud retomou as representações do Deus justo e da Natureza bondosa como
sublimações grandiosas das figuras paterna e materna Ŕ ou ainda como uma espécie de
restauração do modo como os pais eram percebidos pela criança na primeira infância.
Ou seja, ao par formado pelas figuras do pai e da mãe, corresponderiam as
representações de Deus e da Natureza1528. Posteriormente, contudo, essa correlação
praticamente desapareceu dos textos freudianos.
Por outro lado, há uma ambiguidade que pode ser encontrada mesmo
em textos mais tardios. De novo, em “Uma lembrança de infância de Leonardo da
Vinci”, ao tratar da raiz da crença religiosa, Freud oscilou entre as expressões
“complexo paterno” e “complexo parental”1529. Duas décadas passadas, em “O mal-
estar na cultura”, Freud mencionou o destino como um substituto da instância
“parental”, não “paterna”1530. Por fim, na conferência “Sonho e ocultismo”, Freud
indicou a crença infantil na onisciência dos pais Ŕ não apenas do pai Ŕ como origem da
crença dos adultos na onisciência de Deus1531.
O fato, porém, é que, apesar dessas oscilações, oficialmente, para
Freud, Deus é o pai, pouco ou nada tendo a ver com a mãe. Nesta e nas três seções
precedentes, estivemos argumentando que as duas instâncias, a paterna e a materna, são
igualmente importantes para a compreensão do fenômeno religioso.
E nunca é demais insistir: do reconhecimento da ocorrência de
idealizações, transferências e projeções de tipo materno e paterno sobre a imagem de
Deus, não se segue conclusão alguma sobre a sua existência. Se, como vimos, dizer que

1527
MCGUIRE, The Freud/Jung letters, p.131.
1528
Cf. FREUD, Un souvenir d‟enfance de Léonard de Vinci. In: _______. Œuvres complètes, v.10, p.149.
1529
Cf. FREUD, Un souvenir d‟enfance de Léonard de Vinci. In: _______. Œuvres complètes, v.10, p.149.
1530
Cf. FREUD, Le malaise dans la culture. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.314.
1531
Cf. FREUD, Nouvelle suite des leçons d‟introduction à la psychanalyse. In: _______. Œuvres
complètes, v.19, p.138; ver também: DOMÍNGUEZ MORANO, Creer después de Freud, p.63-64; PLÉ, Freud
et la religion, p.38 [nota 54].
“Deus não é senão o pai” é um reducionismo psicologista, o mesmo vale para
afirmações do tipo: “Deus não é senão a mãe” ou “Deus não é senão o pai e a mãe” Ŕ ou
ainda: “Nossa Senhora não é senão a mãe”.
As crianças idealizam os seus pais; os analisantes operam
transferências sobre os seus analistas; e os enamorados fazem projeções sobre os objetos
do seu amor. Isso não significa que os pais, os analistas e as pessoas por quem nos
apaixonamos não tenham existência própria, mas sejam criaturas do nosso desejo. Os
mecanismos da idealização, da transferência e da projeção não implicam na inexistência
do objeto sobre o qual incidem.
Diz Küng: “The mere fact of projection [...] does not decide the
existence or nonexistence of the object to which it refers” [“O simples fato da projeção
[...] não decide a existência ou não-existência do objeto a que ela se refere”]1532. Assim,
“...da influência da relação pais-filhos sobre a religião e a imagem de Deus, não se pode
ainda Ŕ ao contrário do que supunha Freud Ŕ deduzir nada a favor ou contra a existência
de Deus...”1533. Evidentemente, essa influência pode significar que a imagem que o ser
humano faz de Deus está deformada, precisando, talvez, ser modificada. Os teólogos
precisarão estar atentos a isso. Nada, porém, fica decidido sobre a existência daquele
cuja imagem estaria, dessa maneira, alterada1534.

Religião, uma neurose?

As últimas 11 seções deste capítulo foram dedicadas ao problema da


origem da crença em Deus. Retomando a síntese sistemática da interpretação freudiana
do fato religioso que propusemos no capítulo segundo, temos ainda três temas a
considerar: a natureza, as funções e o futuro do fenômeno religioso. Seremos mais
breves no tratamento dessas questões. Comecemos pelo problema da natureza da
religião.

1532
KÜNG, Freud and the problem of God, p.77-78.
1533
KÜNG, Religião: o último tabu? In: _______, Freud e a questão da religião, p.111.
1534
Cf. AVIS, A hermeneutic of suspicion: Sigmund Freud. In: _______, Faith in the fires of criticism,
p.72-73; DACQUINO, Religiosidad y psicoanálisis, p.52, 55-56, 59, 94; DANSEREAU, Freud et l‟athéisme,
p.187; FRANKL, A presença ignorada de Deus, p.85; MEISSNER, Psychoanalysis and religious experience,
p.viii, 11, 14; PLÉ, Freud et la religion, p.138; RACKER, Sobre la posición de Freud frente a la religión.
In: _______. Psicoanálisis del espíritu, p.61; ZILLES, Freud: a provocação do ateísmo psicanalítico. In:
_______. Filosofia da religião, p.156.
O que é a religião? Segundo Freud, o fato religioso pode ser pensado
de duas maneiras: como uma neurose e como uma ilusão. Consideremos,
primeiramente, a questão da natureza neurótica da religião.
Na verdade, muito do que dissemos acima já se referia a esse ponto.
De fato, em “Totem e tabu”, Freud comparou a religião a uma neurose com base em sua
origem edipiana: o complexo de Édipo, que é o complexo nuclear das neuroses, estaria
também na origem do fenómeno religioso. Em “O homem Moisés e a religião
monoteísta”, por sua vez, Freud sustentou a analogia entre a religião e a neurose com
base no mecanismo que rege o seu funcionamento: o mesmo mecanismo do
desencadeamento da neurose Ŕ trauma, recalcamento, latência e retorno do recalcado Ŕ
regularia o surgimento do monoteísmo mosaico. Ao criticar as duas obras acima
referidas, portanto, descontruímos já muito do que parecia justificar a equiparação entre
a religião e a neurose.
Não podemos nos esquecer de “Atos obsessivos e exercícios
religiosos”. Mas, ali, Freud não considera a crença em Deus como tal; o que ele julga
comparável aos sintomas do neurótico obsessivo é a liturgia religiosa, que não se
encontra no foco da nossa pesquisa.
Seja como for, mesmo já tendo nos antecipado sobre a matéria, e
ainda que “Atos obsessivos e exercícios religiosos” não vise diretamente o objeto da
nossa investigação, consideremos, de uma forma geral, a objeção levantada por Freud
de que a religião tem um caráter neurótico, podendo ser comparada a uma neurose ou
mesmo ser definida como uma neurose, a neurose obsessiva universal da humanidade.
O que dizer a esse respeito?
Antes de tudo, é preciso admitir que, sim, a religiosidade não raro
assume feições obsessivas. Pfister, talvez, tenha sido o primeiro cristão a reconhecê-lo.
E, depois dele, muitos outros concederam que a objeção de Freud não é gratuita.
Em “O cristianismo e a angústia”, procedendo a uma interpretação
psicanalítica da história da tradição judaico-cristã, Pfister reconhece certos períodos do
judaísmo e do cristianismo como claramente obsessivo-compulsivos. Grosso modo, aos
olhos do pastor, entre as várias versões do judaísmo, a mais obsessiva teria sido o
farisaísmo, ou seja, o judaísmo tardio, aquele com o qual Jesus se defrontou. No âmbito
do cristianismo, por sua vez, nada superaria o catolicismo em obsessividade; Pfister
descreve a Igreja Catñlica como o “sistema mais obsessivo-compulsivo da histñria”1535.
Por outro lado, na evolução do judaísmo, o profetismo teria significado uma tentativa de
“correção de rota”; o próprio Jesus, sobretudo, teria procurado curar o judaísmo da sua
obsessividade1536. Na história do cristianismo, de sua parte, esse esforço de cura e de
restauração da religião advogada por Jesus teria sido empreendido pela reforma
protestante. Pfister admite, não obstante, a presença de elementos obsessivos também na
versão protestante do cristianismo1537.
Segundo Jung, embora não seja, por definição, uma neurose, a religião
pode ser vivida, em casos particulares, de uma forma neurótica1538.
Para Fromm, nem todo ritual funciona segundo a lógica obsessivo-
compulsiva; há rituais racionais e rituais irracionais, estes, sim, obsessivos1539.
Na opinião de Ricœur, um ritual religioso ganha feições obsessivas
quando perde o sentido de seu próprio simbolismo1540.
Vergote se mostrou pronto a reconhecer que muitos fiéis vivem, sim, a
sua religião de uma forma neurótico-obsessiva. A propñsito, o “dette” [“dívida”] de
“Dette et désir” [“Dívida e desejo”], que ele publicou em 1978, aponta exatamente para
o desvio neurótico-obsessivo da religiosidade1541.
Segundo Küng, os cristãos deveriam admitir com autocrítica que as
práticas religiosas podem, de fato, assumir um caráter obsessivo-compulsivo, não sendo
incomum que isso aconteça. Quando marcadas pela rigidez, pelo literalismo, pela
compulsividade, pela repetitividade e pela perda de sentido, as práticas religiosas ficam
mesmo muito parecidas com os sintomas do neurótico obsessivo1542. O teólogo advertiu,
porém, que isso não acontece sempre, nem necessariamente1543.

1535
Cf. WONDRACEK, O amor e seus destinos, p.172.
1536
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, Psicoanálisis y religión: diálogo interminable, p.127; PFISTER, L‟illusion
d‟un avenir. Revue française de psychanalyse, t.41, n.3, p.509.
1537
Cf. CARBALLO, Psicoanálisis y religión. In: PLÉ, Freud y la religión, p.41; WONDRACEK, O amor e
seus destinos, p.138-185. Pfister não viveu para testemunhá-lo, mas, nessa linha, poder-se-ia argumentar
que o Concílio do Vaticano II representou um esforço por parte da Igreja Católica no sentido de uma
“desobsessivação” (cf. CARBALLO, Psicoanálisis y religión. In: PLÉ, Freud y la religión, p.42).
1538
Cf. PALMER, Freud e Jung: sobre a religião, p.148.
1539
Cf. FROMM, Psychoanalysis and religion, p.106-111.
1540
Cf. RICŒUR, O ateísmo da psicanálise de Freud. Concilium. n.16, p.72; ver também: DANSEREAU,
Freud et l‟athéisme, p.45, 47-48, 187.
1541
Cf. VERGOTE, Dette et désir, p.61-162.
1542
Cf. KÜNG, Freud and the problem of God, p.96-97.
1543
Cf. KÜNG, Freud and the problem of God, p.114.
Meissner também reconheceu que muitas pessoas religiosas praticam
a sua fé de uma maneira obsessiva; a grande massa dos crentes confirma, pois, as
formulações de Freud1544.
Domínguez, por sua vez, observou que certas práticas religiosas Ŕ por
exemplo, os exames de consciência Ŕ podem fomentar o desenvolvimento de traços
obsessivos, tais como os comportamentos de autocontrole, o estado permanente de
alerta, a atitude de vigilância contínua, a compulsão de contar, o sentimento de culpa, a
escrupulosidade, a dúvida, as formações reativas etc.1545.
Todos esses autores, portanto Ŕ e aí há judeus e cristãos, católicos e
protestantes Ŕ, admitem a possibilidade de que a religiosidade seja praticada de uma
forma neurótica, nomeadamente, obsessivo-compulsiva. Nenhum deles, porém, diria
que a religião é, ela mesma, uma neurose. A eventualidade acima reconhecida é sempre
encarada como uma deformação da religião.
Na réplica que escreveu a “O futuro de uma ilusão”, Pfister, por
exemplo, admite que um grande número de expressões da vida religiosa tem um caráter
neurñtico obsessivo: “Sans nul doute, Freud, en ce sens, a parfaitement raison...” [“Sem
dúvida alguma, Freud, nesse sentido, tem toda a razão...”]1546. Contudo, prossegue o
pastor, essa obsessividade não faz parte da essência mesma da religião, não lhe é
inerente; a religião, como tal, não é obsessiva. A obsessividade é uma deformação Ŕ
uma deturpação, uma desfiguração ou um adoecimento Ŕ da religião. Deformação
contra a qual, diga-se, Jesus lutou1547. Deformação contra a qual, acrescente-se, tem
lutado o protestantismo1548.
Aos olhos de Meissner, muito do que Freud escreveu sobre a
religiosidade pode mesmo ser observado na experiência de um grande número de fiéis.
O que confirma as observações de Freud, porém, são as expressões primitivas, pouco

1544
Cf. MEISSNER, Psychoanalysis and religious experience, p.15.
1545
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, El mucho examinar. Manresa, v.62, n.244, p.284-287; DOMÍNGUEZ
MORANO, Psicodinámica de los ejercicios ignacianos, p.130-134.
1546
PFISTER, L‟illusion d‟un avenir. Revue française de psychanalyse, t.41, n.3, p.507.
1547
Cf. PFISTER, L‟illusion d‟un avenir. Revue française de psychanalyse, t.41, n.3, p.507-512.
1548
Cf. PFISTER, L‟illusion d‟un avenir. Revue française de psychanalyse, t.41, n.3, p.511; ver também:
DOMÍNGUEZ MORANO, Psicoanálisis y religión: diálogo interminable, p.124; FREUD, Correspondance
avec le pasteur Pfister 1909-1939, p.178.
desenvolvidas, infantis, imaturas, da fé religiosa1549. De novo, a ideia de que o
patológico da religião não é a sua regra, mas uma descaracterização da mesma1550.
Além dessa admissão em termos, temos ainda duas questões a levantar
a propósito da equiparação entre a religião e a neurose. A primeira delas é a seguinte:
por que não conceber a religião como uma forma de sublimação, ao invés de enquandrá-
la na categoria de neurose? Vejamos.
Tanto o mecanismo psíquico da sublimação quanto o mecanismo do
recalque incidem sobre determinadas exigências pulsionais barradas pela censura;
ambos constituem-se em desenlaces possíveis para o conflito psíquico. A diferença está
em que a sublimação significa uma canalização da energia pulsional para outras vias,
socialmente valorizadas, ao passo que o recalque implica num estancamento dessa
mesma energia. Nesse caso, o que é recalcado, expulso da consciência, mantém, não
obstante, a sua força ascendente e tende permanentemente a emergir, de novo, no plano
da consciência. O sintoma neurótico consiste justamente no retorno deformado do
recalcado, isto é, numa solução de compromisso entre a exigência pulsional que teve
negado o seu escoamento direto e a censura que o impediu. A sublimação e o recalque
são, portanto, as duas alternativas extremas que se apresentam para todo destino
pulsional que não seja a satisfação direta. O recalque constitui-se no caminho para a
neurose, ao passo que a sublimação constitui-se no caminho para a cultura.
Segundo o parecer de Freud, a criação artística Ŕ assim como a
investigação científica e o trabalho intelectual Ŕ representam uma solução bem-sucedida
para o conflito psíquico; a religião, por sua vez, significa uma fixação a um conflito não
solucionado. Ou seja, Freud se mostrou benevolente com a arte, mas intolerante com a
religião; a arte tem, aos seus olhos, uma dignidade da qual a religião jamais desfrutou
em sua opinião.
Para dizê-lo com Dalbiez: “Si la sympathie de Freud pour l‟art est
évidente et avouée, son antipathie pour la religion n‟est pas moins évidente et pas moins
avouée” [“Se a simpatia de Freud pela arte é evidente e confessa, sua antipatia pela

1549
Cf. MEISSNER, Psychoanalysis and religious experience, p.x, 14-15, 59, 89-90, 137, 158, 187-188.
1550
Aliás, convém lembrar que, em algumas formulações, o próprio Freud afirmou que a neurose
obsessiva é uma “caricatura” ou uma “imagem distorcida” da religião (cf. FREUD, Totem et tabou. In:
_______. Œuvres complètes, v.11, p.281; ver também: FREUD, “Autoprésentation”. In: _______. Œuvres
complètes, v.17, p.114). Freud também declarou que a neurose obsessiva é uma religião “caricaturizada”,
isto é, representada de uma forma grotesca (cf. FREUD, Court abrégé de psychanalyse. In: _______.
Œuvres complètes, v.16, p.350).
religião não é menos evidente e confessa”] 1551. Ricœur, por sua vez, formulou deste
modo o seu pensamento: “...la sympathie de Freud pour les arts n‟a d‟égale que sa
sévérité pour l‟illusion religieuse...” [“...a simpatia de Freud pelas artes sñ é comparável
à sua severidade para com a ilusão religiosa...”]1552. De fato, há uma notável “diferença
de tom” no modo como uma e outra são tratadas1553. Ao contrário da religião, a arte,
para Freud, é a forma não neurótica, não obsessiva, da satisfação substituta1554. Ludwig
Marcuse resumiu bem a questão: “A religião ele [Freud] combateu [...]. Com as artes ele
viveu em paz...”1555.
É verdade que, aqui e ali, Freud reconheceu a possibilidade de que a
religião fosse uma sublimação1556. Também é verdade que, por outro lado, ele também
desvendou os dinamismos psicológicos subjacentes ao domínio da arte, aproximando-a,
desse modo, do campo da neurose1557. Seja como for, com muito mais frequência, Freud
situou a religião do lado do recalque e da neurose, reconhecendo nas atividades
artísticas1558 Ŕ bem como nas científicas Ŕ as vias prototípicas da sublimação. Talvez,
seja difícil evitar a conclusão de que a exclusão da religiosidade por parte de Freud do
campo da sublimação tenha resultado dos seus preconceitos anti-religiosos1559.

1551
DALBIEZ, La méthode psychanalytique et la doctrine freudienne, t.1, p.457.
1552
RICŒUR, De l‟interprétation, p.165; cf. RICŒUR, De l‟interprétation, p.523; RICŒUR, Le conflit des
interprétations, p.137, 196.
1553
Cf. RICŒUR, Le conflit des interprétations, p.137.
1554
Cf. RICŒUR, De l‟interprétation, p.165; RICŒUR, Le conflit des interprétations, p.196.
1555
MARCUSE, Sigmund Freud, p.84.
1556
Cf. FREUD, A partir de l‟histoire d‟une névrose infantile. In: _______. Œuvres complètes, v.13, p.62,
68, 112-115; FREUD, “Autoprésentation”. In: _______. Œuvres complètes, v.17, p.118; FREUD,
Correspondance avec le pasteur Pfister 1909-1939, p.46, 76, 104, 172; FREUD, Un souvenir d‟enfance de
Léonard de Vinci. In: _______. Œuvres complètes, v.10, p.149; ver também: LECUIT, L‟anthropologie
théologique à la lumière de la psychanalyse, p.217-219.
1557
Cf. FREUD, “Autoprésentation”. In: _______. Œuvres complètes, v.17, p.112; FREUD, Court abrégé de
psychanalyse. In: _______. Œuvres complètes, v.16, p.352; FREUD, Formulations sur les deux principes
de l‟avenir psychique. In: _______. Œuvres complètes, v.11, p.19; FREUD, Leçons d‟introduction à la
psychanalyse. In: _______. Œuvres complètes, v.14, p.389; FREUD, Le délire et les rêves dans la
“Gradiva” de W. Jensen. In: _______. Œuvres complètes, v.8, p.39-126; FREUD, Totem et tabou. In:
_______. Œuvres complètes, v.11, p.281.
1558
Cf. FREUD, Le malaise dans la culture. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.266, 284; FREUD,
Trois essais sur la théorie sexuelle. In: _______. Œuvres complètes, v.6, p.176; FREUD, Un souvenir
d‟enfance de Léonard de Vinci. In: _______. Œuvres complètes, v.10, p.163.
1559
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, Creer después de Freud, p.86-87; DOMÍNGUEZ MORANO, El psicoanálisis
freudiano de la religion, p.76, 81-82, 88, 97, 158, 347, 359-364, 462-464; DOMÍNGUEZ MORANO,
Experiencia mística y psicoanálisis, p.34 [nota 81]; DOMÍNGUEZ MORANO, Psicoanálisis y religión:
diálogo interminable, p.95, 97; DOMÍNGUEZ MORANO, Teología y psicoanálisis, p.15, 33-35; DROGUETT,
Desejo de Deus, p.98; KAKAR, The analyst and the mystic, p.x, 59; PLÉ, Freud et la religion, p.110, 121;
GONTIJO, Limites e alcance da leitura freudiana da religião. In: MASSIMI; MAHFOUD, Diante do mistério,
p.145; POHIER, Au nom du Père..., p.18; VERGOTE, Psychanalyse et anthropologie philosophique. In:
A segunda questão que gostaríamos de colocar, acima anunciada,
pode ser assim formulada: por que não ver, na religião, algo relacionado a Eros Ŕ ou
seja, uma potência da vida e do amor Ŕ, ao invés de concebê-la como o retorno do
recalcado?
Vimos que, para Freud, “...la religion est la monotone répétition de ses
propres origines. Elle est un sempiternel piétinement sur le sol de son propre archaïsme”
[“...a religião é a monótona repetição de suas próprias origens. Ela é um sempiterno
repisar do solo de seu prñprio arcaísmo”] 1560. De fato, o assassinato de Cristo é uma
repetição do assassinato de Moisés, o qual repete o assassinato do pai primevo; a
eucaristia cristã, de sua parte, é uma repetição da refeição totêmica, que, por sua vez,
celebra o crime primordial Ŕ eis o eterno retorno do recalcado.

“Ce qui est frappant, dans cette histoire”, observa Ricœur, “c‟est
qu‟elle ne constitue pas une avance, une découverte, un progrès,
mais la sempiternelle répétition des ses propres origines; à
proprement parler, pour Freud, il n‟y a pas d‟histoire de la
religion: son thème, c‟est l‟indestructibilité des ses propres
origines; la religion est précisément le lieu où les constellations
affectives les plus dramatiques se révèlent indépassables; sa
thématique est par excellence archaïque: elle parle de père et de
fils, de père tué et regretté et de fils repentant et révolté; elle est
à ce titre le lieu du piétinement émotionnel” [“O que é
impressionante, nessa história, é que ela não constitui um
avanço, uma descoberta, um progresso, mas a sempiterna
repetição das suas próprias origens; falando propriamente, para
Freud, não há história da religião: o seu tema é a
indestrutibilidade das suas próprias origens; a religião é
precisamente o lugar onde as constelações afetivas mais
dramáticas se revelam insuperáveis; a sua temática é, por
excelência, arcaica: ela fala de pai e de filhos, de pai assassinado
e pranteado e de filhos arrependidos e revoltados; ela é,
enquanto tal, o lugar da estagnação emocional”]1561.

Ora, a religião pode não ser simplesmente o reiterado retorno do


recalcado, isto é, da problemática resultante da ambivalência afetiva do filho pelo pai.
Ela pode ser outra coisa. Pode estar relacionada ao complexo materno, como já se viu.

HUBER; PIRON; VERGOTE, La psychanalyse, science de l‟homme, p.225; ZILBOORG, Psicanálise e


religião, p.36; ver, porém: BIRMAN, Estilo e modernidade em psicanálise, p.92-97.
1560
RICŒUR, De l‟interprétation, p.513; cf. RICŒUR, O ateísmo da psicanálise de Freud. Concilium, n.16,
p.76.
1561
RICŒUR, De l‟interprétation, p.238.
Ou pode estar relacionada a Eros e, portanto, estar a serviço da vida e do amor.
“Religião” vem de “religare”; em psicanálise, o que “liga” Ŕ ou “religa” Ŕ é Eros1562.
A teoria das pulsões que Freud concebeu em 1920 poderia ter dado
ensejo a uma nova abordagem do fenômeno religioso.

“La última teoría de las pulsiones en Freud pudiera dar lugar a


una perspectiva más halagüeña y esperanzadora sobre la
religiosidad...” [“A última teoria das pulsões em Freud poderia
dar lugar a uma perspectiva mais alvissareira e esperançosa
sobre a religiosidade...”]1563.

Porém, isso não aconteceu.


Como se sabe, em “Além do princípio do prazer”, Freud estabeleceu
uma oposição entre as pulsões de vida e as pulsões de morte. Contudo, lamenta Ricœur,
Freud:

“...n‟a, à aucun moment, soupçonné que cette mythique d‟Eros


pourrait concerner une épigénèse du sentiment religieux, ni que
Éros pourrait être un autre nom du Dieu johannique...” [“...não
suspeitou, em momento algum, que essa mítica de Eros pudesse
ter a ver com uma epigênese do sentimento religioso, nem que
Eros pudesse ser um outro nome do Deus joânico...”]1564.

Ou seja:

“Freud me paraît exclure sans raison, je veux dire sans raison


psychanalytique, la possibilité que la foi soit une participation à
la source d‟Eros et qu‟ainsi elle concerne, non la consolation de
l‟enfant en nous, mais la puissance d‟aimer, que la foi vise à
rendre adulte cette puissance, face à la haine en nous et hors de
nous Ŕ face à la mort” [“Freud me parece excluir sem razão,
quero dizer, sem razão psicanalítica, a possibilidade de que a fé
seja uma participação na fonte de Eros e que, assim, ela diga
respeito não à consolação da criança em nós, mas à potência de
amar, de que a fé visa a tornar adulta essa potência, face ao ódio
em nós e fora de nós Ŕ face à morte”]1565.

1562
Cf. DACQUINO, Religiosidad y psicoanálisis, p.49-50, 145.
1563
ALONSO, Psicoanálisis y religión. Proyección, v.23, n.101, p.149 [nota 36].
1564
RICŒUR, De l‟interprétation, p.515.
1565
RICŒUR, De l‟interprétation, p.515.
Em suma, para Freud, a religião tem a ver com o anseio pelo pai, com
a neurose obsessiva e com a pulsão de morte. Se ele tivesse admitido o sentimento
oceânico, por exemplo, como fonte da religiosidade, Freud teria dado com a nostalgia
da mãe, com a histeria Ŕ ou a psicose Ŕ e com a pulsão de vida enquanto categorias mais
apropriadas para pensar o fenômeno religioso.
Por fim, uma última questão. Freud não apenas comparou a religião a
uma neurose, mas disse também que a religião é neurotizante. Antes de concluirmos
esta seção, indaguemo-nos também sobre esse ponto.
Convém notar, de saída, que, a esse respeito, encontramos em Jung
um ponto de vista diametralmente oposto ao de Freud. Numa passagem que se tornou
clássica, o psiquiatra suíço afirmou:

“During the past thirty years, people from all the civilized
countries of the earth consulted me. [...] Among all my patients
in the second half of life Ŕ that is to say, over thirty-five Ŕ there
has not been one whose problem in the last resort was not that of
finding a religious outlook on life. It is safe to say that every one
of them fell ill because he had lost that which the living
religious of every age have given to their followers, and none of
them has been really healed who did not regain his religious
outlook” [“Durante os últimos 30 anos, pessoas de todos os
países civilizados da terra me consultaram. [...] Entre todos os
meus pacientes que se encontravam na segunda metade da vida
Ŕ isto é, acima dos 35 Ŕ, não houve um sequer cujo problema,
em última análise, não fosse o de encontrar uma perspectiva
religiosa na vida. Pode-se afirmar com segurança que cada um
deles caiu enfermo porque perdera aquilo que as religiões vivas
de todas as eras têm dado aos seus seguidores e que nenhum
deles foi realmente curado sem que recuperasse a sua
perspectiva religiosa”]1566.

1566
JUNG, Modern man in search of a soul, p.229. Na bibliografia que consultamos, deparamo-nos por
sete vezes com a citação textual dessa passagem: cf. CHOISY, Psicoanálisis y catolicismo, p.131-132;
KÜNG, Freud and the problem of God, p.109-110; PALMER, Freud e Jung: sobre a religião, p.182; SILVA,
O ateísmo de Freud, p.62; SOBREIRA, Freud e o judaísmo, p.143; TORELLÒ, Psicanálise ou confissão?,
p.208; WHITE, Deus e a psicanálise, p.97-98; 273-274.
Ou seja, para Jung, a religião não é neurótica nem neurotizante; a falta
dela é que faz o homem adoecer; a prática da religião, por sua vez, é terapêutica, tem
efeitos curativos1567. Frankl assumiu uma posição semelhante1568.
Em 1962, o filósofo e teólogo Georg Siegmund (1903-1989) publicou
um estudo que versa exatamente sobre a matéria em questão: “Gottesglaube und
Seelische Gesundheit” [“Fé em Deus e saúde psíquica”]. Nessa obra, valendo-se do
estudo de alguns casos, o autor defende o ponto de vista de que há uma correlação
positiva entre a ausência ou a perda da fé e a enfermidade mental, por um lado, e, de
outra parte, a conservação ou a recuperação da fé e o restabelecimento da saúde
psíquica.
Mais recentemente, o professor de psicopatologia da UNICAMP
Paulo Dalgalarrondo Ŕ que, aliás, não é religioso Ŕ defendeu uma tese num concurso
para professor titular em que o mesmo problema foi retomado. O seu trabalho foi
publicado em 2008, sob o título “Religião, psicopatologia e saúde mental”. A sua
conclusão foi que há uma correlação positiva entre religiosidade e sanidade mental1569.
Vergote, por sua vez, assumiu uma posição intermediária sobre a
questão. Segundo ele, a religião pode ser nociva para a saúde mental, assim como pode
concorrer para a sanidade psíquica1570.
Sentimo-nos inclinados a acompanhá-lo em seu juízo, dando, assim,
alguma razão a Freud, mas também aos que assumiram um ponto de vista
diametralmente oposto ao seu. Um pouco só de experiência basta para concluir que a
religião é marcada pela ambivalência: não é só nociva, nem apenas benfazeja, podendo,
contudo, ser uma coisa ou outra. De fato, uma vivência religiosa pode ser sadia ou
doentia, benéfica ou maléfica, saudável ou patológica; pode libertar, como pode

1567
Cf. JUNG, Interpretação psicológica do dogma da Trindade, p.88; JUNG, Memórias, sonhos, reflexões,
p.127-128; JUNG, Psicologia e religião, p.111; ver também: ÁVILA, Para conhecer a psicologia da
religião, p.42-43; PALMER, Freud e Jung: sobre a religião, p.122, 181, 205.
1568
Cf. FRANKL, A presença ignorada de Deus, p.8, 52-59; TORELLÒ, Psicanálise ou confissão?, p.112.
1569
DALGALARRONDO, Religião, psicopatologia e saúde mental, p.177-191, 259-261; ver também:
CATALAN, O homem e sua religião, p.135-136; DALGALARRONDO, Religião, psicopatologia e saúde
mental, p.64, 67; MCGRATH; MCGRATH, O delírio de Dawkins, p.129-133; PFISTER, L‟illusion d‟un
avenir. Revue française de psychanalyse, t.41, n.3, p.543. Vale, porém, o registro de que, embora praticar
uma religião possa ser saudável, fazê-lo movido apenas por essa razão é pervertê-la, constituindo-se numa
utilização funcionalista da mesma, o que contradiz a gratuidade com que cabe procurá-la (cf. LECUIT,
L‟anthropologie théologique à la lumière de la psychanalyse, p.587, 602).
1570
Cf. VERGOTE, Necessidade e desejo da religião na ótica da psicologia. In: PAIVA, Necessidade e
desejo, p.19; VERGOTE, Processos psicológicos Ŕ vergonha, sentimento de culpa Ŕ e sentido bíblico do
pecado em particular em Romanos 7. In: PAIVA, Necessidade e desejo, p.128.
destruir; pode contribuir para o bem, como pode concorrer para o mal. Praticar uma
religião pode, pois, preservar uma pessoa de adoecer psiquicamente, assim como pode,
pelo contrário, fazê-la cair enferma1571. Eis o que nos parece mais sensato admitir.

A crença em Deus, uma ilusão?

Além de equiparar a religião a uma neurose, Freud também a definiu


como uma ilusão. Recapitulemos, primeiro, o pensamento freudiano para que, em
seguida, possamos pôr as questões que nos parecem pertinentes.
Freud tinha um sentido todo seu para a palavra “ilusão”.
Normalmente, o conceito de “ilusão” tem a conotação de engano, erro, falsidade,
equívoco. Freud, porém, utilizou esse termo de uma maneira singular, diferente do
significado comum que ele tem. Tendo taxado as crenças religiosas de “ilusões”, ele se
apressou em precisar como entendia a palavra: “Une illusion n‟est pas la même chose
qu‟une erreur, elle n‟est pas non plus nécessairement une erreur” [“Uma ilusão não é a
mesma coisa que um erro, tampouco é necessariamente um erro”]1572. Uma ilusão,
prossegue Freud, “...n‟est pas nécessairement fausse, c‟est-à-dire irréalisable ou en
contradiction avec la réalité” [“...não é necessariamente falsa, isto é, irrealizável ou em
contradição com a realidade”]1573.

“Il reste caractéristique de l‟illusion qu‟elle dérive de souhaits


humains [...]. Nous appelons donc une croyance illusion lorsque,
dans sa motivation, l‟accomplissement de souhait vient au
premier plan...” [“O que é característico da ilusão é o fato de
derivar de desejos humanos [...]. Chamamos, pois, uma crença
de ilusão quando, em sua motivação, a realização de desejo
ocupa o primeiro plano...”]1574.

1571
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, Experiencia cristiana y psicoanálisis, p.13, 155-158, 166, 168;
DOMÍNGUEZ MORANO, Psicodinámica de los ejercicios ignacianos, p.17, 19; LECUIT, L‟anthropologie
théologique à la lumière de la psychanalyse, p.587, 602; VALLE, Psicologia e experiência religiosa, p.78.
1572
FREUD, L‟avenir d‟une illusion. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.171.
1573
FREUD, L‟avenir d‟une illusion. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.172.
1574
FREUD, L‟avenir d‟une illusion. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.171-172; cf. FREUD,
Nouvelle suite des leçons d‟introduction à la psychanalyse. In: _______. Œuvres complètes, v.19, p.243.
Para Freud, portanto, ilusão é uma crença motivada pelo desejo; ilusão
é uma crença afetivamente determinada. Uma crença ilusória não é, pois,
obrigatoriamente falsa; o que a caracteriza é o fato de ser prenhe de desejo1575.
Em conformidade com essa definição, numa certa altura de “O futuro
de uma ilusão”, Freud garantiu que não pretendia se manifestar sobre a verdade ou a
falsidade das crenças religiosas:

“Cette investigation n‟a pas pour propos de prendre position sur


la valeur de vérité des doctrines religieuses. Il nous suffit des les
avoir reconnues dans leur nature psychologique comme des
illusions” [“Esta investigação não tem a intenção de se
posicionar a respeito do valor de verdade das doutrinas
religiosas. Para nós, basta havê-las reconhecido em sua natureza
psicolñgica como ilusões”]1576.

Em todo caso, percebe-se claramente que, embora não pretenda


declarar a falsidade das crenças religiosas, Freud as considera suspeitas. Em tese, ele
admite que uma ilusão possa ser verdadeira, mas, diz Vergote, Freud “...não crê que tal
seja o caso”1577.
E por que não? Porque seria conveniente demais:

“...en effet il serait fort beau qu‟il y eût un Dieu, Créateur de


mondes et Providence bienveillante, qu‟il y eût un ordre moral
du monde et une vie dans l‟au-delà, mais il est néanmoins très
frappant que tout cela soit exactement ce que nous ne pouvons
manquer de nous souhaiter” [“...de fato, seria muito bonito se
houvesse um Deus, Criador de mundos e Providência
benevolente, se houvesse uma ordem moral do mundo e uma
vida no além, porém, constitui-se num fato admirável que tudo
isso seja exatamente como estamos fadados a desejar que
seja”]1578.

1575
Cf. BIRMAN, Cartografias do feminino, p.140-141; BIRMAN, Desejo e promessa, encontro impossível.
In: MOURA, Hélio Pellegrino. A-Deus, p.125; BIRMAN, Estilo e modernidade em psicanálise, p.78, 95-96;
BIRMAN, Freud e a experiência psicanalítica, p.28-29; BIRMAN, Por uma estilística da existência, p.102;
DANSEREAU, Freud et l‟athéisme, p.48; PFISTER, L‟illusion d‟un avenir. Revue française de
psychanalyse, t.41, n.3, p.505; WHITE, Deus e a psicanálise, p.93.
1576
FREUD, L‟avenir d‟une illusion. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.174.
1577
VERGOTE, Psicanálise e religião. Revista Portuguesa de Filosofia, v.59, f.2, p.575; cf. ALETTI, A
representação de Deus como objeto transicional ilusório. In: PAIVA; ZANGARI, A representação na
religião, p.25-26.
1578
FREUD, L‟avenir d‟une illusion. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.174.
Na carta que endereçou a Pfister no dia sete de fevereiro de 1930,
Freud perguntou: “...a-t-on [...] le droit de s‟attendre à ce que tout soit réjouissant?”
[“...será que temos [...] o direito de esperar que tudo seja agradável?”]1579. Aos seus
olhos, seguramente, não.
Em 1904, por exemplo, ao visitar a Acrópole, em Atenas, na Grécia,
Freud realizou um antigo e ardente desejo. Ao fazê-lo, porém, viveu, por um momento,
uma singular experiência: ele duvidou da existência real do que estava diante dos seus
olhos; o que estava vivendo lhe pareceu “too good to be true” [“bom demais para ser
verdadeiro”]1580.
Ou seja, para Freud, o que é excessivamente bom, não pode ser
verdadeiro; o que realiza “em cheio” os desejos humanos é suspeito, não pode ser real.
Deus, por exemplo. Para Freud, “...God is too good to be true” [“...Deus é bom demais
para ser verdadeiro”]1581.
Dito isso, apresentemos as nossas considerações.
Primeiramente, queremos registrar que “O futuro de uma ilusão” não é
o único texto em que Freud empregou o conceito de “ilusão”. Em muitos outros lugares,
ele utilizou esse termo. Não encontramos, porém, nenhuma ocorrência da palavra em
que ela designasse algo verdadeiro. Vejamos.
Em “Uma lembrança de infância de Leonardo da Vinci” (1910), Freud
se refere aos biógrafos que idealizam os seus biografados, transformando-os em heróis,
e lamenta que, procedendo desse modo, os escritores sacrifiquem a verdade a uma
ilusão1582.
Na primeira parte de “Atualidades sobre a guerra e a morte” (1915),
os conceitos de “ilusão” e “desilusão” têm um papel importante. A ilusão é a crença de
que não haveria mais guerras entre as grandes nações europeias, ou, pelo menos, a
expectativa de que, havendo guerras, seriam guerras civilizadas. A desilusão é a

1579
FREUD, Correspondance avec le pasteur Pfister 1909-1939, p.190.
1580
Cf. FREUD, Lettre à Romain Rolland. In: _______. Œuvres complètes, v.19, p.332-333; ver também:
VITZ, Sigmund Freud‟s christian unconscious, p.195.
1581
CHAPMAN, Freud‟s critique of religion: neglect of the anxiety theory. Psychoanalysis and
contemporary thought, v.20, n.1, p.153.
1582
Cf. FREUD, Un souvenir d‟enfance de Léonard de Vinci. In: _______. Œuvres complètes, v.10, p.157.
realidade da Primeira Grande Guerra, cruel como nunca, entre os países do Velho
Mundo1583.
Em “Uma dificuldade da psicanálise” (1917), Freud descreve a teoria
do geocentrismo como uma ilusão1584.
Em “Psicologia das massas e análise do eu” (1921), Freud considera
que os grupos altamente organizados são mantidos pela ilusão Ŕ ou ainda pela
“miragem” Ŕ de que há um líder que ama todos os membros do grupo igualmente1585. A
verdade, porém, é que o líder não ama ninguém, senão a si próprio; o líder de um grupo
é, por definição, um narcisista.
Na mesma obra, Freud considera que uma pessoa enamorada é uma
pessoa fascinada, encantada, como que hipnotizada, numa palavra, “iludida”. Como
resultado de um superinvestimento libidinal do objeto amado, aquele que ama idealiza a
pessoa por quem se sente apaixonado e tem o seu julgamento a respeito do objeto do
seu amor falsificado. Uma pessoa enamorada é, assim, uma pessoa cativa da “cegueira
do amor”: ela não percebe o objeto em que investe o seu afeto como ele realmente é1586.
Em “Sonho e telepatia” (1922), Freud emprega a expressão “ilusões
de memñria” querendo, com isso, significar lembranças falsas1587.
Em “„Psicanálise‟ e „Teoria da libido‟” (1923), tratando da teoria da
sedução Ŕ que foi abandonada por ser considerada errônea Ŕ, Freud utiliza
alternativamente as expressões “erro” e “ilusão”1588.
Em “Por que a guerra?” (1933), Freud qualifica de “ilusão” a
expectativa dos bolchevistas de fazer desaparecer a agressividade entre os homens pela
instituição de uma sociedade igualitária onde todos teriam as suas necessidades
materiais satisfeitas1589.

1583
Cf. FREUD, Actuelles sur la guerre et la mort. In: _______. Œuvres complètes, v.13, p.129-135.
1584
Cf. FREUD, Une difficulté de la psychanalyse. In: _______. Œuvres complètes, v.15, p.46.
1585
Cf. FREUD, Psychologie des masses et analyse du moi. In: _______. Œuvres complètes, v.16, p.32,
63-64.
1586
Cf. FREUD, Psychologie des masses et analyse du moi. In: _______. Œuvres complètes, v.16, p.49-54.
1587
Cf. FREUD, Rêve et télépathie. In: _______. Œuvres complètes, v.16, p.142.
1588
Cf. FREUD, “Psychanalyse” et “Théorie de la libido”. In: _______. Œuvres complètes, v.16, p.193.
1589
Cf. FREUD, Pourquoi la guerre? In: _______. Œuvres complètes, v.19, p.78; ver também: FREUD, Le
malaise dans la culture. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.299, 331; FREUD, Nouvelle suite des
leçons d‟introduction à la psychanalyse. In: _______. Œuvres complètes, v.19, p.266.
Por fim, em “Nova sequência de lições de introdução à psicanálise”
(1933), Freud descreve a crença na bondade da natureza humana como uma “ilusão
perniciosa”1590.
Como se vê, na maioria dos casos acima referidos, o que é ilusório é
desejável: não haver mais guerras; os nossos biografados serem heróis; a Terra ser o
centro do universo; o líder amar todos os membros do grupo; a pessoa que nós amamos
ser tudo o que esperamos que ela seja; a agressividade ser erradicada pela abolição da
propriedade privada; o homem ser bom etc. O que queremos registrar é que, nas
ocorrências do termo em Freud, nunca o ilusório é verdadeiro.
Decorre disso, aliás, que, aos seus olhos, uma ilusão deva ser
destruída. Em “As perspectivas futuras da terapia psicanalítica” (1910), Freud observou
que os psicanalistas “destroem” as ilusões1591. Numa carta que escreveu a Rolland em
quatro de março de 1923, ele declarou:

“...j‟ai passé vraiment une grande partie de ma vie [...] à


travailler à la destruction de mes propres illusions et de celles de
l‟humanité” [“...eu, de fato, passei uma grande parte da minha
vida [...] trabalhando na destruição das minhas próprias ilusões e
daquelas da humanidade”]1592.

Por fim, fazendo uma referência a essa declaração, na dedicatória que


fez para Freud em “Liludi”, Rolland escreveu: “To Freud the Destroyer of Illusions”
[“Para Freud, o Destruidor de Ilusões”]1593.
De tudo isso, recolhemos, pois, a seguinte conclusão: embora, em
tese, Freud admita a possibilidade de que as crenças ilusórias sejam verdadeiras, na
realidade, ele não parece considerar essa eventualidade seriamente. Ao dizer que uma
crença religiosa é ilusória, Freud está dando a entender que ela é falsa.

1590
Cf. FREUD, Nouvelle suite des leçons d‟introduction à la psychanalyse. In: _______. Œuvres
complètes, v.19, p.187; ver ainda: FREUD, “Autoprésentation”. In: _______. Œuvres complètes, v.17,
p.90; FREUD, Le malaise dans la culture. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.267; FREUD, L‟homme
Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.208; FREUD, Nouvelle suite des
leçons d‟introduction à la psychanalyse. In: _______. Œuvres complètes, v.19, p.268; FREUD, Quelques
suppléments à l‟ensemble de l‟interprétation du rêve. In: _______. Œuvres complètes, v.17, p.185.
1591
Cf. FREUD, Les chances d‟avenir de la thérapie psychanalytique. In: _______. Œuvres complètes,
v.10, p.70.
1592
FREUD, Correspondance 1873-1939, p.373.
1593
PARSONS, The enigma of the oceanic feeling, p.222 [nota 4].
Não é preciso, porém, especular tanto sobre o conceito freudiano de
ilusão para chegarmos a essa conclusão. De fato, Freud não se contentou em descrever
as crenças religiosas como ilusórias; ele as qualificou também de delirantes. O
específico de uma ideia delirante Ŕ Freud explica Ŕ é o fato de ela encontrar-se em
contradição aberta com a realidade. Já em “O futuro de uma ilusão”, Freud ponderou
que algumas doutrinas religiosas, mais do que simplesmente ilusórias, são delirantes,
tão inverossímeis são elas, tal a contradição que há entre elas e a realidade1594. Em “O
mal-estar na cultura”, por sua vez, ele examinou as diferentes técnicas desenvolvidas
pelos homens para tentar escapar ao sofrimento e alcançar a felicidade. Entre elas,
estaria a remodelagem delirante da realidade, isto é, a recriação do mundo, substituindo-
se o mundo existente por um mundo mais de acordo com os desejos humanos. “C‟est
comme un tel délire de masse que nous devons [...] caractériser les religions de
l‟humanité” [“É como um delírio de massa desse tipo que devemos [...] caracterizar as
religiões da humanidade”]1595, sugere Freud. Ora, quando diz que algumas crenças
religiosas são, mais do que ilusórias, delirantes, ele se pronuncia claramente sobre o seu
valor de verdade e declara peremptoriamente a sua falsidade.
De outras maneiras ainda, Freud negou o valor de verdade das crenças
religiosas. Alguns exemplos bastarão.
No dia dois de janeiro de 1910, numa carta a Jung, Freud descreveu o
Deus justo e a natureza benevolente que o ser humano forja para si mesmo a partir das
imagens dos pais como “...the two worst anthropomorfic falsifications he could have
imagined” [“...as duas piores falsificações antropomñrficas que ele poderia ter
imaginado”]1596.
Em “O futuro de uma ilusão” (1927), Freud observa que é possível
extrair do método psicanalítico um novo argumento “contra o teor de verdade da
religião” e admite que, com aquela obra, ele fez, de fato, afirmações “contra o valor de
verdade das religiões”1597. Com efeito, há doutrinas religiosas “absurdas”, e, entre elas,
há inegáveis “contradições mútuas”1598.

1594
Cf. FREUD, L‟avenir d‟une illusion. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.172.
1595
Cf. FREUD, Le malaise dans la culture. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.268.
1596
MCGUIRE, The Freud/Jung letters, p.131.
1597
Cf. FREUD, L‟avenir d‟une illusion. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.178.
1598
Cf. FREUD, L‟avenir d‟une illusion. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.188.
Em “O mal-estar na cultura” (1930), Freud descreve as doutrinas
religiosas como algo manifestamente “estranho” à realidade efetiva1599.
Na introdução ao livro que publicou em parceria com Bullitt, redigida
em 1930, Freud associa a forte religiosidade de Wilson a uma tendência a desconsiderar
o mundo real em benefício do mundo dos desejos1600.
Na “Nova sequência de lições de introdução à psicanálise” (1933),
Freud declara que as afirmações da religião são “indignas de fé”1601. Diz ele: “...nous
estimons que la teneur en vérité de la religion peut bien être purement et simplement
négligée” [“...nñs julgamos que o teor de verdade da religião pode perfeitamente ser
pura e simplesmente desconsiderado”]1602. Segundo ele, as consolações que a religião
promete “não merecem a menor confiança”1603.
Por fim, numa carta a Jones, de três de março de 1936, Freud diz que
os resultados do seu livro sobre Moisés “...contêm uma refutação da mitologia nacional
judaica...”1604.
Em suma, seja implicitamente com o conceito de “ilusão”, seja
abertamente com a noção de “delírio”, seja ainda de outras maneiras, acima
exemplificadas, o fato é que Freud se pronunciou sobre o valor de verdade das crenças
religiosas, declarando a sua falsidade. “Sem dúvida que Freud acreditou que a fé
religiosa não é apenas uma ilusão naquele seu sentido particular da palavra, mas que é
falsa também”1605, sintetiza White.
Ora, parece que houve, aqui, uma extrapolação. Tudo o que Freud
pode dizer é que as crenças religiosas são conformes aos desejos humanos. Tudo o que
lhe compete afirmar é que as doutrinas das religiões são ilusórias naquele sentido estrito
por ele mesmo estabelecido. Do fato de que as crenças religiosas realizem desejos, não
se segue conclusão alguma sobre o valor de verdade das mesmas. Do fato de que as

1599
Cf. FREUD, Le malaise dans la culture. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.260.
1600
Cf. FREUD, Introduction à “Thomas Woodrow Wilson” de S. Freud et W.C. Bullitt. In: _______.
Œuvres complètes, v.18, p.366-367.
1601
Cf. FREUD, Nouvelle suite des leçons d‟introduction à la psychanalyse. In: _______. Œuvres
complètes, v.19, p.251.
1602
FREUD, Nouvelle suite des leçons d‟introduction à la psychanalyse. In: _______. Œuvres complètes,
v.19, p.252.
1603
Cf. FREUD, Nouvelle suite des leçons d‟introduction à la psychanalyse. In: _______. Œuvres
complètes, v.19, p.252.
1604
JONES, A vida e a obra de Sigmund Freud, v.3, p.213.
1605
WHITE, Deus e a psicanálise, p.93.
doutrinas das religiões sejam ilusórias, não decorre nem a falsidade nem a veracidade
delas.
Com efeito, ao desejo humano de Deus, pode perfeitamente
corresponder a real existência d‟Ele Ŕ por que não? Aliás, numa certa filosofia da
religião, o fato de que haja uma convergência entre as crenças religiosas e as aspirações
mais profundas do coração humano vale como um argumento em favor da veracidade
dessas mesmas crenças1606. Freud, por sua vez, parece trabalhar com o pressuposto
contrário: o que é desejável é suspeito, não pode ser real. Da nossa parte, parece-nos que
o mais razoável é considerar que a desejabilidade de uma crença deixa em aberto o
problema do seu valor de verdade. É desejável: é verdadeiro? É desejável: é falso? Nem
uma coisa nem outra. É desejável: é possível.
Sim, a religião é uma ilusão. “Mas”, argumenta Vergote, “uma ilusão
pode ser verdadeira; sob esse aspecto, a psicologia não tem competência para
julgar”1607. Tampouco a psicanálise.
Para dizê-lo com Küng: o desejo de Deus “...certamente ainda não é
nenhum argumento a favor da existência de Deus, mas também não é nenhum
argumento contra; ao desejo de Deus pode corresponder um Deus real...”1608.

“It does not follow Ŕ as some theologians have mistakenly


concluded Ŕ from man‟s profound desire for God and eternal life
that God exists and eternal life and happiness are real. But those
atheists who think that what follows is the nonexistence of God
and the unreality of eternal life are mistaken too” [“Do profundo
desejo humano de Deus e da vida eterna não se segue Ŕ como
alguns teólogos erradamente concluíram Ŕ que Deus exista e que
a vida e a felicidade eternas sejam reais. Mas aqueles ateus que
concluíram que o que se segue disso é a não-existência de Deus
e a não-realidade da vida eterna estão errados também”]1609.

O teólogo prossegue:

1606
Cf. SIEGMUND, Fé em Deus e saúde psíquica, p.26.
1607
VERGOTE, Necessidade e desejo da religião na ótica da psicologia. In: PAIVA, Necessidade e desejo,
p.18.
1608
KÜNG, Religião: o último tabu? In: _______, Freud e a questão da religião, p.112; cf. KÜNG, Freud
and the problem of God, p.78.
1609
KÜNG, Freud and the problem of God, p.79.
“Perhaps this being of our longings and dreams does actually
exist. Perhaps this being who promises us eternal bliss does
exist. [...] Perhaps. Who knows?” [“Talvez, esse ser que é objeto
de nossos desejos e sonhos realmente exista. Talvez, esse ser
que nos promete felicidade eterna exista. [...] Talvez. Quem
sabe?”]1610.

Não poucas pessoas raciocinam desta maneira: “Deus tem de existir,


[...] porque, se não existir, a vida seria vazia, sem sentido, inútil, um deserto de
insignificância”1611. Dawkins contra-argumenta: “Talvez a vida seja vazia”1612. Sim,
com certeza. Mas, talvez, não o seja. Dawkins continua: “É impressionante [...] a
quantidade de gente que não consegue entender que „X é um consolo‟ não significa „X é
verdade‟”1613. De fato. Mas também não significa: “X é falso”. E ainda: “...o potencial
de consolo de uma crença não eleva seu valor de verdade”1614. Certamente. Mas
também não o diminui.
Em suma, Freud teria feito melhor atendo-se escrupulosamente ao
conceito de ilusão tal como ele mesmo o formulou. Se, por “ilusão”, entende-se uma
crença prenhe de desejo cujo valor de verdade está fora do alcance da psicanálise
decidir, então, não há problema algum em que as crenças religiosas sejam descritas
dessa maneira.
Antes de concluirmos esta seção, dois registros. Primeiramente, vale
notar que, num certo sentido, em “O homem Moisés e a religião monoteísta”, a relação
entre religião e verdade se colocou de outra maneira. O próprio Freud chamou a atenção
para isso. No dia 27 de outubro de 1934, numa carta a Eitingon, ele observou que,
diferentemente do que afirmara em “O futuro de uma ilusão”, em seu estudo sobre o

1610
KÜNG, Freud and the problem of God, p.79-80; cf. AVIS, A hermeneutic of suspicion: Sigmund
Freud. In: _______, Faith in the fires of criticism, p.73, 77; BAMBERGER, A religião como ilusão?
Concilium, n.16, p.85; CHOISY, Le chrétien devant la psychanalyse, p.41-42; CHOISY, Psicoanálisis y
catolicismo, p.33; DOMÍNGUEZ MORANO, Ciencia, ilusión y creencia. Revista Portuguesa de Filosofia,
v.59, f.2, p.440-441; DOMÍNGUEZ MORANO, Psicoanálisis y religión: diálogo interminable, p.124, 127,
170, 172, 174; FROMM, Psychoanalysis and religion, p.12 [nota 1]; MORIN, Para falar de Deus, p.76;
PALMER, Freud e Jung: sobre a religião, p.110; WONDRACEK, Freud, Pfister e suas ilusões. In: _______,
O futuro e a ilusão, p.190; ZAHRNT, Jesús de Nazaret y Sigmund Freud, p.317; ZILLES, Freud: a
provocação do ateísmo psicanalítico. In: _______. Filosofia da religião, p.156, 158.
1611
DAWKINS, Deus, um delírio, p.456.
1612
DAWKINS, Deus, um delírio, p.456.
1613
DAWKINS, Deus, um delírio, p.19.
1614
DAWKINS, Deus, um delírio, p.20.
monoteísmo mosaico, chegou à conclusão de que a religião não repousava inteiramente
sobre a ilusão, mas possuía um cerne histórico de verdade1615.
Além de ser mais um exemplo de que, ao usar o conceito de ilusão,
Freud frequentemente queria dizer “falso”, essa carta explicita um deslocamento da
questão. Em “O homem Moisés e a religião monoteísta”, a crença religiosa tem a ver
com a verdade, a religião veicula uma verdade histórica, qual seja, o parricídio.
Segundo Freud, a religião não veicula uma verdade material; materialmente Ŕ isto é,
literalmente, em seu nível manifesto Ŕ, as doutrinas religiosas são falsas. No entanto,
elas contêm, de uma forma oculta e deformada, uma verdade histórica. A verdade
histórica das doutrinas religiosas é o assassinato do pai primevo1616.
Discutimos já, com algum cuidado, a hipótese do crime primordial,
formulada por Freud em “Totem e tabu” e retomada, um quarto de século depois, em “O
homem Moisés e a religião monoteísta”. Não vamos voltar a isso agora. Fica, porém,
anotado: em outro lugar, que não em “O futuro de uma ilusão”, o prñprio Freud admitiu
que, num certo sentido, a religião pode ter a ver com a verdade.
Por fim, um último registro. Um argumento que não podemos deixar
de mencionar, uma vez que vários autores o sustentam, consiste em admitir que a
religião é, sim, uma ilusão, porém, uma ilusão no sentido winnicottiano.
Segundo Winnicott, o “psicanalista dos bebês”, a ilusão pertence ao
campo dos fenômenos transicionais. Estes, por sua vez, estão na transição entre o
interno e o externo, o dentro e o fora, o eu e o não-eu, o subjetivo e o objetivo, o
privado e o público, o pessoal e o compartilhado, a fantasia e a realidade. Ou seja, os
fenômenos transicionais não contradizem a realidade, mas servem de caminho para ela.
Enquanto fenômeno transicional, a ilusão é uma via para a realidade, não um
impedimento ao acesso a ela. O ilusório e o real não são opostos entre si. Diversos
autores aceitam, pois, a tese de Freud de que a religião é uma ilusão, entendendo,

1615
Cf. JONES, A vida e a obra de Sigmund Freud, v.3, p.200.
1616
Cf. ANDREAS-SALOMÉ, Correspondance avec Sigmund Freud 1912-1936, p.253; BERNSTEIN, Freud e
o legado de Moisés, p.87; FREUD, “Autoprésentation”. In: _______. Œuvres complètes, v.17, p.121;
FREUD, L‟homme Moïse et la religion monothéiste. In: _______. Œuvres complètes, v.20, p.208; JONES,
A vida e a obra de Sigmund Freud, v.3, p.221.
porém, o conceito de ilusão à maneira de Winnicott, com a conotação positiva que ele
lhe confere1617.

O deus de Freud: o Deus cristão?

Ninguém é simplesmente ateu. Todo ateu é sempre ateu de um


determinado Deus. Todo crítico da crença em Deus é sempre crítico de Deus imaginado
de uma certa maneira1618.
Em sua crítica das doutrinas religiosas, o “Homem dos Lobos”, por
exemplo, revoltou-se contra Deus concebido como um ser cruel, que exigiu de Abraão o
sacrifício da vida do seu filho, que sacrificou, ele mesmo, o próprio Filho e que faz com
que os homens se tornem culpáveis a fim de, em seguida, castigá-los1619. É esse Deus Ŕ
um Deus ávido de sangue, sádico, não há dúvida Ŕ que o “Homem dos Lobos” se recusa
a aceitar.
Cabe, então, a pergunta: de que Deus Freud era ateu? Em sua crítica
do fenômeno religioso, qual era a imagem de Deus que Freud tinha em mente?
A resposta a essa pergunta pode ser encontrada nas funções que Freud
atribuiu à religião. Para Freud, Deus serve para quê? Como vimos, fundamentalmente,
para proteger o homem em seu desamparo. Mas também para reconciliá-lo com o
destino, particularmente, com a morte, para oferecer-lhe uma compensação pelos
sofrimentos da vida presente, para resolver os enigmas da existência humana, para
legitimar as normas sociais e para garantir a realização final da justiça. E, em

1617
Cf. ALETTI, A representação de Deus como objeto transicional ilusório. In: PAIVA; ZANGARI, A
representação na religião, p.27; DALGALARRONDO, Religião, psicopatologia e saúde mental, p.68-69;
DOMÍNGUEZ MORANO, Ciencia, ilusión y creencia. Revista Portuguesa de Filosofia, v.59, f.2, p.431, 444;
DOMÍNGUEZ MORANO, Psicoanálisis y religión: diálogo interminable, p.124, 170-177; DOMÍNGUEZ
MORANO, Orar depois de Freud, p.31-34; KAKAR, The analyst and the mystic, p.25; MEISSNER,
Psychoanalysis and religious experience, p.xi, 16-18, 160-184; PALMER, Freud e Jung: sobre a religião,
p.98-103; PONTALIS, L‟illusion maintenue. Nouvelle revue de psychanalyse, n.4, p.7-9; RIZZUTO, O
nascimento do Deus vivo, p.229-234, 267, 269, 273; VALLE, Psicologia e experiência religiosa, p.97-99;
WINNICOTT, O brincar e a realidade, p.9-44; WINNICOTT, Transitional objects and transitional
phenomena. In: CAPPS, Freud and freudians on religion, p.211-219; ver, porém: ALETTI, A representação
de Deus como objeto transicional ilusório. In: PAIVA; ZANGARI, A representação na religião, p.22-25;
LECUIT, L‟anthropologie théologique à la lumière de la psychanalyse, p.540.
1618
Cf. ALETTI, A representação de Deus como objeto transicional ilusório. In: PAIVA; ZANGARI, A
representação na religião, p.30 [nota 3], 35; VARILLON, Joie de croire, joie de vivre, p.38.
1619
Cf. FREUD, A partir de l‟histoire d‟une névrose infantile. In: _______. Œuvres complètes, v.13, p.60,
63, 84.
conformidade com essas funções, Deus é imaginado por Freud de uma determinada
maneira: como pai, como todo-poderoso, como um “sabe-tudo” etc.
A questão que queremos, pois, colocar é a seguinte: o deus de que
Freud era ateu é mesmo o Deus cristão? O deus que ele criticou em suas obras é mesmo
o Deus revelado por Jesus Cristo? A forma como grafamos o “deus” de Freud e o
“Deus” cristão já denuncia a nossa resposta.
Estabelecemos uma diferença entre o deus que Freud tinha em mente
e o Deus cristão porque o Deus revelado por Jesus Cristo é um Deus surpreendente:
“...le Dieu de Jésus-Christ n‟a pas grand-chose à voir avec ce que les humains imaginent
être dieu” [“...o Deus de Jesus Cristo não tem muita coisa a ver com o que os humanos
imaginam ser deus”]1620, adverte Pohier. O Deus de Jesus, continua o teñlogo, “...ne
coïncide pas avec le concept humain de divinité” [“...não coincide com o conceito
humano de divindade”]1621. Há uma “originalidade” no modo de ser do Deus de
Jesus1622; Jesus “subverteu” a ideia de “Deus”1623.
Em “Crer depois de Freud”, Domínguez distingue entre o deus infantil
e o Deus de Jesus. O deus infantil é um deus concebido na justa medida dos desejos e
temores infantis. O Deus de Jesus, porém, é um Deus diferente: Ele não “bate” com o
que seria de se esperar; não “casa” com o deus dos desejos da criança; não tem o
tamanho dos anseios infantis. “Dieu n‟est pas un superbe bouche-trou...” [“Deus não é
um estupendo tapa-buraco...”], resume Dolto1624.
O deus infantil é uma réplica do pai imaginário; o Deus de Jesus é Pai,
não, porém, o pai da nossa infância. O deus infantil é onipotente; o Deus de Jesus não é
todo-poderoso: é um Deus débil, porque é amor. O deus infantil resolve magicamente os
nossos problemas; o Deus de Jesus nos encoraja a tentarmos resolver, nós mesmos, os
nossos problemas. O deus infantil explica tudo; o Deus de Jesus deixa uma série de
perguntas sem resposta: o mal, o sofrimento dos inocentes, o futuro da humanidade etc.
1620
POHIER, Quand je dis Dieu, p.18.
1621
POHIER, Quand je dis Dieu, p.22.
1622
Cf. POHIER, Quand je dis Dieu, p.28.
1623
Cf. POHIER, Quand je dis Dieu, p.138.
1624
DOLTO; SEVERIN, La foi au risque de la psychanalyse, p.104; ver também: BEIRNAERT, Aux frontières
de l‟acte analytique, p.157 [nota 2]; DOMÍNGUEZ MORANO, Creer después de Freud, p.106-107, 177
[nota 6], 339; DOMÍNGUEZ MORANO, El psicoanálisis freudiano de la religión, p.497, 506; DOMÍNGUEZ
MORANO, Experiencia mística y psicoanálisis, p.28; DOMÍNGUEZ MORANO, Orar depois de Freud, p.46-
48, 53; DOMÍNGUEZ MORANO, Psicodinámica de los ejercicios ignacianos, p.141-142 [nota 5], 260-261;
POHIER, Dieu fractures, p.91, 113-115, 135, 327-394; POHIER, Quand je dis Dieu, p.237-238; VERGOTE,
Interprétation du langage religieux, p.135-159.
O deus infantil nega a morte; o Deus de Jesus reconhece-a como constitutiva da
condição humana: Ele, que não poupou o seu Filho Unigênito da morte, não tem por
que dispensar os seus filhos adotivos da mesma.
O Deus de Jesus, enfim, não é um deus forte; não é Júpiter ou Zeus.
Não pode tudo; não atende instantaneamente aos nossos pedidos; não resolve os nossos
problemas num “piscar de olhos”. Não sabe tudo; não é um deus “explica-mundos”; não
responde a todas as questões. Não vai nos preservar da morte: não somos imortais;
vamos morrer e, uma vez mortos, aguardamos o dom da ressurreição Ŕ o que é
diferente. Sim, o Deus de Jesus não é exatamente aquilo que esperávamos: num certo
sentido, o Deus de Jesus é um “escândalo” (cf. 1Co 1,23)1625.
Entre os diversos atributos divinos, acima indicados, há dois que
gostaríamos de focalizar agora: a paternidade e a onipotência. Eles se revestem de uma
importância particular porque decorrem daquela que é, aos olhos de Freud, a principal
função de crença religiosa: proteger o ser humano em seu desamparo. Porque é pai,
Deus se importa com o homem desamparado; porque é onipotente, Deus é capaz de
protegê-lo. Acrescente-se ainda que as primeiras palavras do símbolo da fé cristã são
justamente estas: “Creio em Deus Pai Todo-Poderoso”.
O primeiro dos atributos de Deus é, pois, a paternidade. A paternidade
de Deus é a representação fundamental do cristianismo. A fé cristã é uma fé que se
enuncia, antes de tudo, em nome do Pai1626.
Vivemos, porém, como Ratzinger bem observou, numa sociedade pós-
freudiana, que desconfia de todo pai e de toda paternidade1627. Impressionado, talvez,
pela corrosividade dessa crítica, Ricœur chegou mesmo a considerar que uma fé sem
ilusão, purificada de toda idolatria Ŕ uma fé pós-freudiana, portanto Ŕ, seria uma fé que
renunciasse a Deus enquanto Pai. A imagem do Pai seria uma objetivação ilusória do

1625
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, Creer después de Freud, p.130-139, 347; ver também: DOMÍNGUEZ
MORANO, El psicoanálisis freudiano de la religión, p.498; DOMÍNGUEZ MORANO, Experiencia cristiana y
psicoanálisis, p.21, 228-232; DOMÍNGUEZ MORANO, Psicodinámica de los ejercicios ignacianos, p.254-
255; DOMÍNGUEZ MORANO, Teología y psicoanálisis, p.51; POHIER, Dieu fractures, p.367-372, 386.
1626
Cf. POHIER, Au nom du Père..., p.24-25, 31, 152. Aliás, Deus é Pai não só para os cristãos, mas para
as grandes religiões monoteístas e ainda para muitas outras religiões, tais como as religiões egípcias,
assírio-babilônicas, gregas e romanas (cf. POHIER, Au nom du Père..., p.93, 95).
1627
Cf. RATZINGER; MESSORI, Entretien sur la foi, p.89.
totalmente Outro, uma coisificação de Deus, um ídolo do Todo-Outro. Seria preciso,
pois, abrir mão da representação de Deus enquanto Pai1628. Diz Ricœur:

“...si l‟illusion religieuse procède du complexe du père, la


„démolition‟ de l‟Œdipe ne s‟achève que dans la représentation
d‟un ordre des choses privé de tout coefficient paternel, d‟un
ordre anonyme, impersonnel” [“...se a ilusão religiosa procede
do complexo do pai, a „demolição‟ do Édipo não se consuma
senão na representação de uma ordem de coisas privada de todo
coeficiente paterno, de uma ordem anónima, impessoal”]1629.

Pode-se, pois, falar numa “renúncia ao pai”1630.


Pohier, contudo, rejeita essa renúncia: um Deus que não fosse Pai,
anónimo, impessoal, como o de Ricœur, não seria o Deus bíblico, o Deus cristão. Um
Deus assim talvez pudesse ser o Deus dos filósofos, dos sábios, mas não o Deus de
Abraão, Isaac e Jacó, o Deus de Jesus Cristo. Os cristãos não seriam cristãos se não
fossem filhos de Deus1631.
Domínguez concorda com Pohier, e sentimo-nos inclinados a
acompanhá-lo nesse parecer. Que Deus é Pai, isso pertence ao núcleo fundamental da
revelação cristã; trata-se, portanto, de algo irrenunciável. Não é possível abrir mão da
paternidade de Deus, tratando-se do Deus cristão. Mas há mais de uma maneira de
entendê-la. Em que sentido, Deus é Pai?
Deus é Pai para cada cristão no mesmo sentido em que foi Pai para
Jesus: Ele não o preservou, enquanto homem, da sua contingência, fragilidade e
finitude. Ele não o liberou da vida, com os seus desafios e tarefas, tampouco o livrou da
morte. Sendo Pai de Jesus, Deus não o eximiu da responsabilidade, da dúvida, da
tentação, da solidão, da angústia, da frustração, da ignorância, da sensação de abandono
e, por fim, da morte. Esse é o modo de Deus ser Pai. Se Deus é Pai, ele o é nesse
sentido. E, como se vê, essa maneira de Deus ser Pai pouco tem a ver com o pai
imaginário da nossa infância1632.

1628
Cf. POHIER, Au nom du Père..., p.31, 35-36, 40-43, 49.
1629
RICŒUR, De l‟interprétation, p.320.
1630
Cf. RICŒUR, De l‟interprétation, p.321, 528.
1631
Cf. POHIER, Au nom du Père..., p.39, 44, 47, 52-53.
1632
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, Creer después de Freud, p.347; DOMÍNGUEZ MORANO, Experiencia
cristiana y psicoanálisis, p.45, 71-73, 231; DOMÍNGUEZ MORANO, Psicodinámica de los ejercicios
ignacianos, p.255-256.
Ainda segundo Domínguez, não se trata de renunciar a Deus enquanto
Pai, mas, sim, à onipotência que se lhe atribui; Deus é Pai, mas não é todo-poderoso1633.
Não, pelo menos, no sentido em que se costuma entender essa onipotência.
O deus criticado por Freud é o deus todo-poderoso. Seja enquanto
retorno do pai primevo, em “Totem e tabu”, seja enquanto herdeiro do pai protetor, em
“O futuro de uma ilusão”, o deus de que se trata em Freud é o deus onipotente.
Ocorre que o Deus revelado por Jesus Cristo não é todo-poderoso; Ele
é amor e, enquanto tal, é débil. O Deus de Jesus é amor que se expõe, não poder que se
impõe. Para Jesus, o poder foi antes uma tentação do que um atributo. Os milagres que
ele realizou, por exemplo, revelam antes a sua compaixão face ao sofrimento humano
do que o seu poder1634.
O padre jesuíta François Varillon (1905-1978) escreveu: “On dit
parfois: Dieu peut tout! Non, Dieu ne peut pas tout, Dieu ne peut que ce que peut
l‟Amour. Car il n‟est qu‟Amour” [“Às vezes, se diz: Deus pode tudo! Não, Deus não
pode tudo, Deus não pode senão o que pode o Amor. Pois, ele não é senão Amor”]1635.

“Dieu est-il Tout-Puissant? Non, Dieu n‟est qu‟Amour, ne venez


pas me dire qu‟il est Tout-Puissant. Dieu est-il Infini? Non, Dieu
n‟est qu‟amour, ne me parlez pas d‟autre chose. Dieu est-il
Sage? Non. [...] A toutes les questions que vous me poserez, je
vous dirai: non et non, Dieu n‟est qu‟Amour” [“Deus é Todo-
Poderoso? Não, Deus não é senão Amor, não me venha dizer
que ele é Todo-Poderoso. Deus é Infinito? Não, Deus não é
senão Amor, não me fale de outra coisa. Deus é Sábio? Não. [...]
A todas as questões que você me colocar, eu lhe direi: não e não,
Deus não é senão Amor”]1636.

Mais! Sendo Deus todo amor, Ele é pobre, dependente e humilde: “Si
Dieu n‟est qu‟amour, il est le plus dépendant des êtres, il est un infini de dépendance”

1633
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, El psicoanálisis freudiano de la religión, p.496-497; DOMÍNGUEZ
MORANO, Experiencia cristiana y psicoanálisis, p.20.
1634
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, Creer después de Freud, p.136; DOMÍNGUEZ MORANO, Experiencia
cristiana y psicoanálisis, p.73; DOMÍNGUEZ MORANO, Experiencia mística y psicoanálisis, p.41-42;
DOMÍNGUEZ MORANO, Psicodinámica de los ejercicios ignacianos, p.197-199; ver também: POHIER,
Dieu fractures, p.372-380.
1635
VARILLON, Joie de croire, joie de vivre, p.26.
1636
VARILLON, Joie de croire, joie de vivre, p.25.
[“Se Deus não é senão amor, ele é o mais dependente dos seres, ele é um infinito de
dependência”]1637. Nada mais distante da ideia de onipotência.
Tendemos a imaginar Deus como aquele que tem o poder de fazer o
que quer, como alguém forte, vencedor, que é servido por todos etc. Mas não é esse o
Deus que Jesus deu a conhecer. Comentando o hino cristológico de Fl 2,6-11, Fernando
Armellini, membro da Congregação dos Padres do Sagrado Coração de Jesus, escreveu:

“Contemplando o Crucificado, nós nos encontramos diante de


uma surpresa: Deus não é forte e poderoso, mas frágil; não é
vencedor, mas derrotado; não é rico, mas despojado de tudo; não
é servido, mas se torna escravo do homem; não faz o que quer,
deixa que os homens façam dele o que querem. Fraco, vencido,
pobre, servo, humilhado... por amor, este é o verdadeiro
Deus”1638.

Crer num Deus onipotente é, na verdade, uma estratégia de


conservação dos sonhos infantis de tudo poder: em algum lugar Ŕ no caso, em Deus Ŕ, a
onipotência existe e pode ser colocada a serviço de quem crê. O Deus todo-poderoso é,
pois, uma criação imaginária do desejo infantil, é uma projeção do pai idealizado, é uma
invenção nossa. Não é o Deus de Jesus. O Deus de Jesus é diferente. O Deus de Jesus é
o Deus-Amor1639.
Talvez, de novo, não se trate, aqui, de abrir mão da onipotência
divina, mas de reinterpretá-la. O Deus cristão é onipotente, sim. Mas a sua onipotência é
a onipotência do amor1640. Confiamos a palavra a Varillon:

“La toute-puissance de Dieu est la toute-puissance de l‟amour,


c‟est l‟amour qui est tout-puissant!” [“A onipotência de Deus é a
onipotência do amor, é o amor que é todo-poderoso!]1641.
“En Dieu, il n‟y a pas d‟autre puissance que la puissance de
l‟amour” [“Em Deus, não há outro poder que o poder do
amor”]1642.

1637
VARILLON, Joie de croire, joie de vivre, p.31; cf. VARILLON, Joie de croire, joie de vivre, p.28-32.
1638
ARMELLINI, Celebrando a palavra, v.4, p.132; ver também: FRIES, La fe en Dios, ¿ilusión o realidad?
In: ZAHRNT, Jesús de Nazaret y Sigmund Freud, p.34; WIESENHÜTTER, La fe reprimida. In: ZAHRNT,
Jesús de Nazaret y Sigmund Freud, p.162.
1639
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, Experiencia cristiana y psicoanálisis, p.18-20, 65, 98-99.
1640
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, Experiencia cristiana y psicoanálisis, p.22-23.
1641
VARILLON, Joie de croire, joie de vivre, p.26.
1642
VARILLON, Joie de croire, joie de vivre, p.26.
“Dieu est tout-puissant bien sûr mais c‟est l‟amour qui est tout-
puissant. Il ne s‟agit pas de n‟importe quelle puissance. Dieu ne
peut que ce que peut l‟amour” [“Deus é todo-poderoso, com
certeza, mas é o amor que é todo-poderoso. Não se trata de
qualquer poder. Deus não pode senão o que pode o amor”]1643.

Em suma, o Deus de Jesus é Pai, sim, mas não como o pai da nossa
infância; o Deus de Jesus é todo-poderoso, sim, mas a sua “onipotência” Ŕ se assim se
pode ainda chamá-la Ŕ é a onipotência do amor; o Deus de Jesus é Deus, enfim, mas não
parece ter muito a ver com o deus de Freud. O deus visado pela crítica freudiana da
religião Ŕ isto é, o deus que protege, poupa da morte, oferece compensações, explica
tudo, prescreve e proscreve, pune e recompensa Ŕ não se parece muito com o Deus dado
a conhecer por Jesus Cristo.
Segundo Vergote, talvez se possa afirmar que o que Freud denuncia
não é a religião como tal, mas um tipo específico de religião, a religião “funcional”,
também chamada “interessada”, isto é, uma forma de religião inteiramente determinada
pelas necessidades e interesses humanos1644. O Deus revelado por Jesus, contudo, não é
um deus feito sob medida, do tamanho exato das carências do homem e segundo as suas
necessidades.
Disse um cardeal: “Le dieu que nous adorons n‟est pas celui que nient
les athées” [“O deus que nñs adoramos não é aquele que os ateus negam”]1645. Não é
aquele que Freud, por exemplo, nega. Segundo o padre Ricardo Cabezas de Herrera
Fernandez, autor de “Freud, el teologo negativo” [“Freud, o teñlogo negativo”], de
1989, Freud nos diz o que Deus não é, podendo, assim, ser tomado como uma espécie
de teólogo negativo1646. Vergote, por sua vez, afirmou que o pensamento de Freud, tal
como ele se apresenta em “O futuro de uma ilusão”, “...demeure une critique très
valable d‟un certain fétichisme religieux” [“...permanece como uma crítica muito válida
de um certo fetichismo religioso”]1647, na medida em que o objeto visado por essa crítica

1643
VARILLON, Joie de croire, joie de vivre, p.149-150; cf. VARILLON, Joie de croire, joie de vivre, p.77,
134, 219, 221.
1644
Cf. VERGOTE, Psychologie religieuse, p.133, 150-151; ver também: ÁVILA, Para conhecer a
psicologia da religião, p.91-93; CATALAN, O homem e sua religião, p.70-74; DANSEREAU, Freud et
l‟athéisme, p.52.
1645
BALMARY, Le sacrifice interdit, p.29.
1646
Cf. WONDRACEK, Freud, Pfister e suas ilusões. In: _______, O futuro e a ilusão, p.197.
1647
VERGOTE, Psychanalyse et anthropologie philosophique. In: HUBER; PIRON; VERGOTE, La
psychanalyse, science de l‟homme, p.235.
não é o Deus cristão, mas uma falsa representação de Deus, um ídolo religioso, um
fetiche, portanto.
Nesta altura, porém, alguém poderia objetar da seguinte maneira:
embora possa não ser o Deus cristão, o deus de Freud é o deus de muitos cristãos. O
Deus revelado por Jesus Cristo, acima retratado, é um Deus muito sofisticado. Talvez,
seja o Deus dos teólogos ou dos cristãos supostamente mais amadurecidos na fé. Para a
maior parte dos crentes, no entanto, deus é, de fato, aquele que Freud desenhou.
Chamem-no de “deus infantil”, “deus funcional”, “ídolo”, “fetiche”, como quiserem.
Mas o fato é que esse é o deus da grande massa dos fiéis.
Aliás Ŕ segue a tréplica Ŕ, em sua crítica da religião, o alvo visado por
Freud é declaradamente a religiosidade popular. Ele nunca pretendeu outra coisa. Em
“O mal-estar na cultura”, o prñprio Freud observou que, em “O futuro de uma ilusão”,
tratou da religião do homem comum, a única, segundo ele, que merece ser propriamente
chamada de “religião”1648.
Ainda em “O futuro de uma ilusão”, Freud cogitou sobre o que seria
de uma forma mais elaborada de religião. Segundo ele, uma religião desse tipo já não
teria apelo algum; ninguém quereria professá-la. Uma religião mais refinada seria,
enfim, desinteressante1649.
Como “suco de maçã”, pode-se dizer! Numa espirituosa carta
endereçada a Marie Bonaparte, em 19 de março de 1928, pouco após a publicação de
“O futuro de uma ilusão”, Freud estabeleceu uma analogia entre as religiões e as
bebidas e observou que mesmo algumas bebidas com uma graduação alcoólica mínima
ou simplesmente sem álcool algum são oferecidas sob o nome de “religião”. Ora, disse
Freud, “...ficar bêbado com pomerit (suco de maçã) é realmente ridículo”1650.

1648
Cf. FREUD, Le malaise dans la culture. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.259-260.
1649
Cf. FREUD, L‟avenir d‟une illusion. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.195.
1650
JONES, A vida e a obra de Sigmund Freud, v.3, p.434. Vale o registro de que, ao assumir essa posição,
Freud encontra-se muito prñximo de Feuerbach. Disse o pai do ateísmo moderno: “...sñ um Deus
ilimitado, livre de qualquer lei, milagroso, que salva o homem de todas as dificuldades [...] é um Deus.
Mas um Deus que, por exemplo, só me ajuda nas doenças através de médicos e remédios [...] é um Deus
inteiramente supérfluo, desnecessário...” (FEUERBACH, Preleções sobre a essência da religião, p.171). O
filósofo acrescentou ainda: “Um Deus que não faz mais milagres, portanto, que não realiza mais desejos,
que não ouve mais prece (sic), [...] um tal Deus é um Deus imprestável, inútil” (FEUERBACH, Preleções
sobre a essência da religião, p.266; ver também: FREUD, Le malaise dans la culture. In: _______. Œuvres
complètes, v.18, p.272). Por fim, também Dawkins argumentou de uma forma parecida. Reconhecendo a
existência de uma forma “sutil” e “amena” de religião, de uma religião de tipo “decente” e “contido”, ele
ponderou que, do ponto de vista numérico, essa forma de religião é “irrelevante” (cf. DAWKINS, Deus, um
Diante dessa tréplica Ŕ sem dúvida, poderosa Ŕ, queremos fazer as
seguintes considerações. De saída, é forçoso admitir que, embora não seja o Deus
cristão, o deus de Freud é, de fato, o deus de muitos cristãos. Concluímos, então, que a
crítica freudiana da religião se revela procedente quando se tem em mente a
religiosidade popular. Resta saber se Freud se contenta mesmo em ter desconstruído
apenas as crendices do fiel comum.
Seja como for, o tipo de religião que estamos advogando, aqui, não é a
religiosidade popular, porém, uma forma mais elaborada de crença e prática religiosa.
Parece-nos arbitrário da parte de Freud decidir que a única forma de “religião” digna
desse nome seja a religião do homem comum1651. Há certamente outras formas de
religião, inclusive, formas de religião em que a relação do crente com Deus é marcada
por uma maior gratuidade. O crente de uma tal religião estaria mesmo pronto a admitir
que, talvez, Deus não sirva mesmo para nada, que Deus, afinal, não está aí para servir
para o que quer que seja. Se isso não passa de “suco de maçã”, o fato, porém, é que há,
sim, quem aprecie esse tipo de bebida.

Uma ilusão sem futuro?

É muito difícil, senão impossível, não crer absolutamente em nada.


Crer é uma necessidade antropológica. Quem alega que não acredita em Deus
forçosamente deposita a sua esperança em alguma outra coisa. Quem garante que não
crê em Deus não é, por causa disso, um descrente completo1652.
Como vimos, em seu prognóstico sobre o desaparecimento da religião,
Freud depositou a sua esperança no advento de uma era científica. A ciência era, pois, a
crença de Freud. Esse tipo de fé não costuma se reconhecer como tal. Mas, é preciso
dizê-lo: isso é fé também. Pode-se mesmo afirmar que Freud acreditava na ciência de
uma forma religiosa. O que ele fez, na verdade, foi substituir uma fé por outra: a fé em

delírio, p.14). E levantou praticamente a mesma questão de Feuerbach: “...para que serve um Deus que
não faz milagres e que não ouve preces?” (DAWKINS, Deus, um delírio, p.92).
1651
Cf. PARSONS, The enigma of the oceanic feeling, p.43; PFISTER, L‟illusion d‟un avenir. Revue
française de psychanalyse, t.41, n.3, p.511; RICŒUR, De l‟interprétation, p.239, 523; VALLE, Ilusão e
desejo. In: PAIVA; ZANGARI, A representação na religião, p.281; VERGOTE, Psychanalyse et
anthropologie philosophique. In: HUBER; PIRON; VERGOTE, La psychanalyse, science de l‟homme, p.226-
231, 239; ZILBOORG, Psicanálise e religião, p.252.
1652
Cf. KRISTEVA, Cet incroyable besoin de croire, p.8, 26, 39.
Deus pela fé na ciência. “Messianismo científico”, eis como Pfister designou a posição
de Freud1653.
Segundo o pastor, Freud militava no campo científico de uma forma
religiosa, “com veneração e fervor”, podendo-se descrever o seu gabinete de trabalho
como um verdadeiro “templo”1654. Não se pode dizer que Freud não tenha dado motivos
para o uso dessa linguagem.
Numa carta enviada a Silberstein, em sete de março de 1875, Freud se
referiu a Darwin e a Haeckel como “nossos mais modernos santos”1655. Referindo-se a
Hermann von Helmholtz (1821-1894), Freud afirmou: “Ele é um de meus ídolos”1656.
Escrevendo a Fließ, no dia seis de fevereiro de 1899, Freud empregou a expressão
“religião da ciência”1657. Numa carta que endereçou a Pfister, datada de 26 de fevereiro
de 1911, Freud mencionou a “deusa Libido”1658. Em “O futuro de uma ilusão”, por sua
vez, usou expressão “nosso Deus Λόϒοϛ”1659. Freud, diz Eduardo Gontijo, “...punha
toda a sua fé em seu adorado deus Logos...”1660. Em conformidade com isso, em sua
vasta coleção de estatuetas, a preferida de Freud era Palas Atena, símbolo da razão1661.
Eros e Logos eram, pois, os “deuses mitolñgicos” de Freud1662.
Tendo acreditado assim, religiosamente, nos poderes da ciência, pode-
se dizer, sem medo de cometer uma injustiça, que Freud, o destruidor de ilusões, se
iludiu também. A crença de Freud na vitória final da ciência, adverte Pfister, é uma

1653
Cf. PFISTER, L‟illusion d‟un avenir. Revue française de psychanalyse, t.41, n.3, p.529; ver também:
DANSEREAU, Freud et l‟athéisme, p.34, 43, 49; KÜNG, Freud and the problem of God, p.81-84, 87;
PFISTER, L‟illusion d‟un avenir. Revue française de psychanalyse, t.41, n.3, p.536; WIESENHÜTTER, La fe
reprimida. In: ZAHRNT, Jesús de Nazaret y Sigmund Freud, p.137, 151.
1654
Cf. PFISTER, L‟illusion d‟un avenir. Revue française de psychanalyse, t.41, n.3, p.503-504.
1655
Cf. BOEHLICH, As cartas de Sigmund Freud para Eduard Silberstein, p.116.
1656
JONES, A vida e a obra de Sigmund Freud, v.1, p.54.
1657
Cf. MASSON, A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess – 1887-1904,
p.344.
1658
Cf. FREUD, Correspondance avec le pasteur Pfister 1909-1939, p.86.
1659
Cf. FREUD, L‟avenir d‟une illusion. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.195-196.
1660
GONTIJO, Limites e alcance da leitura freudiana da religião. In: MASSIMI; MAHFOUD, Diante do
mistério, p.153; cf. BAMBERGER, A religião como ilusão? Concilium, n.16, p.83; GAY, A Godless jew,
p.20, 26, 64-65.
1661
Cf. DONN, Freud e Jung, p.28.
1662
Cf. BAMBERGER, A religião como ilusão? Concilium, n.16, p.80; ver também: ALVES, Prefácio. In:
DROGUETT, Desejo de Deus, p.12.
crença motivada pelo desejo: é ilusória, portanto. Freud previu, pois, o fim da ilusão
religiosa iludido, ele mesmo, pela ciência1663.
Além de Pfister, também Reik Ŕ que não era religioso e que, por sua
veneração pelo criador da psicanálise, recebeu dos colegas o apelido de “símile
Freud”1664 Ŕ denunciou o caráter ilusório do cientificismo de Freud. Com efeito, em
dezembro de 1927, “O futuro de uma ilusão” foi debatido numa das reuniões de quarta-
feira. Reik manifestou, então, o seu parecer de que o otimismo de Freud a respeito do
progresso científico e do adventício reinado da razão lhe parecia ilusório, podendo-se,
pois, falar na “ilusão de um futuro”. No ano seguinte, Pfister adotou precisamente esse
título para a réplica que escreveu ao livro de Freud1665.
A ciência é, portanto, a ilusão de Freud1666. O entusiasmo de Freud
pelo seu deus Logos tem o caráter de uma ilusão intelectualista1667. Acreditar que é
possível viver sem ilusão é também uma ilusão1668.
Ilusão iluminista, diga-se. Com efeito, em nenhum outro livro, Freud
se mostrou tão marcadamente um Aufklärer e um herdeiro do pensamento do século
XVIII quanto em “O futuro de uma ilusão”. Freud pode mesmo ser considerado o
último grande representante do século das Luzes, o derradeiro philosophe da Ilustração,
constituindo-se o seu livro sobre o desaparecimento da religião, nas palavras de
Enriquez, no “canto do cisne do racionalismo”1669.

1663
Cf. PFISTER, L‟illusion d‟un avenir. Revue française de psychanalyse, t.41, n.3, p.537. Opera-se, aqui,
uma curiosa inversão de papéis: agora, é Pfister quem pode acusar Freud de estar sendo otimista demais,
de estar se iludindo (cf. GAY, Freud, p.487).
1664
Cf. ROUDINESCO; PLON, Dicionário de psicanálise, p.655.
1665
Cf. REIK, Trente ans avec Freud, p.62, 65; ver também: BIRMAN, Desejo e promessa, encontro
impossível. In: MOURA, Hélio Pellegrino. A-Deus, p.141; BIRMAN, Sobre a correspondência de Freud
com o pastor Pfister. Religião e sociedade, n.11/2, p.36; DOMÍNGUEZ MORANO, Ciencia, ilusión y
creencia. Revista Portuguesa de Filosofia, v.29, f.2, p.442-443; DOMÍNGUEZ MORANO, Psicoanálisis y
religión: diálogo interminable, p.134-135, 153.
1666
Cf. ENRIQUEZ, De la horde à l‟État, p.144.
1667
Cf. MIJOLLA-MELLOR, A necessidade de crer, p.93.
1668
Cf. CATALAN, O homem e sua religião, p.85.
1669
Cf. ENRIQUEZ, De la horde à l‟État, p.119; ver também: COSTA, Sobre psicanálise e religião. In:
MOURA, Hélio Pellegrino. A-Deus, p.86, 91; DOMÍNGUEZ MORANO, Ciencia, ilusión y creencia. Revista
Portuguesa de Filosofia, v.59, f.2, p.438-440; DOMÍNGUEZ MORANO, Creer después de Freud, p.71, 79;
DOMÍNGUEZ MORANO, El psicoanálisis freudiano de la religión, p.167, 248, 289, 376, 437, 450, 453-454,
472, 486; DOMÍNGUEZ MORANO, Orar depois de Freud, p.29; DOMÍNGUEZ MORANO, Teología y
psicoanálisis, p.21; FROMM, Algumas reflexões pós-marxistas e pós-freudianas sobre a religião e a
religiosidade. Concilium, n.76, p.829; GAY, A Godless jew, p.41-68; MARCUSE, Eros e civilização, p.78;
MILLER, Religião, psicanálise. Opção lacaniana, n.39, p.13; RICŒUR, Le conflit des interprétations,
p.145; ROCHA, O deus de Freud. Estudos de psicanálise, n.14, p.69-94; SILVA, O ateísmo de Freud, p.15,
32, 34; VERGOTE, Psychanalyse et anthropologie philosophique. In: HUBER; PIRON; VERGOTE, La
psychanalyse, science de l‟homme, p.238-240.
A religião, contudo, não desapareceu; o que caiu num certo
descrédito, nas últimas décadas, é o discurso científico. Ao contrário do que Freud
previu em “O futuro de uma ilusão”, a ciência está, hoje, em crise, e a religião, “em
alta”. Atualmente Ŕ Joel Birman escreveu em 1997 Ŕ, “...o ceticismo sobre o poder da
racionalidade científica se articula ao ressurgimento em escala planetária do discurso
religioso”1670. O Freud iluminista, pondera o autor, se surpreenderia com o atual retorno
da religião; o Freud romântico, não1671.
Quem nunca se iludiu com o projeto cientificista é o pastor Pfister. No
dia 24 de novembro de 1927, ele escreveu a Freud:

“Votre substitut de religion, c‟est en substance la pensée des


lumières du XVIIIe siècle, orgueilleusement revue et
modernisée. Je dois avouer qu‟en dépit de la joie que me
procurent les progrès de la science et de la technique, je ne crois
pas à la suffisance et à la solidité de cette solution du problème
de la vie. On peut se demander si, tout bien pesé, le progrès
scientifique a rendu les hommes plus hereux et meilleurs” [“O
seu substituto da religião é, em substância, o pensamento das
luzes do século XVIII, orgulhosamente revisto e modernizado.
Eu devo confessar que, a despeito da alegria que me
proporcionam os progressos da ciência e da técnica, não acredito
na suficiência e na solidez dessa solução do problema da vida.
Pode-se perguntar, ponderando-se bem, se o progresso científico
tornou os homens mais felizes e melhores”]1672.

Aos olhos do pastor, Freud encarava o progresso científico com


excessivo otimismo1673. Parecia ignorar que o avanço tecnológico pode ser ameaçador,
mais do que um motivo de esperança1674. Em palavras que Meissner descreveu como
“quase proféticas”1675, Pfister escreveu:

1670
BIRMAN, Estilo e modernidade em psicanálise, p.45; cf. BIRMAN, Estilo e modernidade em
psicanálise, p.71-72, 142, 165-167.
1671
Cf. BIRMAN, Estilo e modernidade em psicanálise, p.180.
1672
FREUD, Correspondance avec le pasteur Pfister 1909-1939, p.169. Uns poucos anos antes,
Wittgenstein havia escrito: “We feel that even when all possible scientific questions have been answered,
the problems of life remain completely untouched” [“Sentimos que, mesmo quando todas as questões
científicas possíveis estiverem respondidas, os problemas da vida restarão completamente intocados”]
(WITTGENSTEIN, Tractatus logico-philosophicus, p.73 [§ 6.52]).
1673
Cf. PFISTER, L‟illusion d‟un avenir. Revue française de psychanalyse, t.41, n.3, p.532.
1674
Cf. PFISTER, L‟illusion d‟un avenir. Revue française de psychanalyse, t.41, n.3, p.535-536.
1675
Cf. MEISSNER, Psychoanalysis and religious experience, p.96.
“Que deviennent les merveilleuses conquêtes de la science
lorsqu‟elles se mettent au service de l‟activité des hommes pour
l‟argent, lorqu‟elles sont inféodées aux passions inhumaines et à
la cruaté?” [“O que acontece com as maravilhosas conquistas da
ciência quando são colocadas a serviço da ganância dos homens,
quando são submetidas às paixões desumanas e à
crueldade?”]1676.

Ludwig Marcuse, por sua vez, observou que, hoje1677, alguém poderia
perguntar a Freud: “Será que todas as cruzadas da histñria mundial causaram tanto mal
quanto a ciência futuramente poderá causar?”1678
Com efeito, em “O futuro de uma ilusão”, Freud depositou toda a sua
esperança no progresso científico. Passadas algumas décadas, a ciência já não inspira a
mesma esperança; pelo contrário, não raro, é motivo de temor. O progresso científico é
ambivalente, trazendo, por um lado, inegáveis benefícios, mas, de outra parte,
representando uma ameaça não menos incontestável1679.
Disse o papa Bento XVI: “Nous voyons aujourd‟hui que le progrès
peut être aussi destructeur” [“Vemos hoje que o progresso pode também ser
destruidor”]1680. O progresso, acrescentou o Santo Padre, tornou-se uma “ameaça” ou
um “perigo”1681.
Se, portanto, no século das Luzes, a razão foi glorificada como nunca
dantes, na pós-modernidade em que vivemos, ela já não desfruta, nem de longe, do
mesmo prestígio1682. A credibilidade da ciência, tão altiva no tempo de Freud, encontra-
se, hoje, muito abalada1683. Hodiernamente, prevalece um ceticismo em relação à
ciência e ao seu progresso1684. As promessas do projeto iluminista, em suma, não se
realizaram1685.
A contrapartida dessa crise da ciência parece ser, nos nossos dias, o
que vem sendo chamado de o “retorno do religioso”. No tempo em que Freud viveu,

1676
PFISTER, L‟illusion d‟un avenir. Revue française de psychanalyse, t.41, n.3, p.536.
1677
Corria o ano de 1956.
1678
MARCUSE, Sigmund Freud, p.79.
1679
Cf. KÜNG, Freud and the problem of God, p.82.
1680
BENOIT XVI, Lumière du monde, p.66.
1681
Cf. BENOIT XVI, Lumière du monde, p.67, 107.
1682
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, Creer después de Freud, p.66.
1683
Cf. KÜNG, Religião: o último tabu? In: _______, Freud e a questão da religião, p.112.
1684
Cf. ZILLES, Freud: a provocação do ateísmo psicanalítico. In: _______. Filosofia da religião, p.156-
157.
1685
Cf. ROCHA, O deus de Freud. Estudos de psicanálise, n.14, p.75.
podia-se realmente observar um declínio da religiosidade1686. Iludido, talvez, por esse
estado de coisas Ŕ “iludido” em mais de um sentido Ŕ, Freud profetizou o
desaparecimento da religião. Mas a religião parece estar de volta1687. Deus “...não
apenas não está „morto‟ [...], como nunca pareceu estar mais vivo” 1688, observa o casal
McGrath. Pode-se, pois, falar num “reencantamento do mundo” ou ainda numa
“revanche de Deus”1689.
Portanto, as previsões de Freud sobre o fim das religiões não se
confirmaram. Pelo contrário, o século XXI parece mesmo estar destinado a ser, como
André Malraux (1901-1976) previra, o século da vitória das religiões1690. Quem também
previu o triunfo da religião, ao invés do seu declínio, foi Lacan. Numa entrevista
coletiva concedida em Roma, no dia 29 de outubro de 1974, ele prognosticou a vitória
da religião1691.
Não nos parece justo, porém, enfatizar demais o erro de avaliação de
Freud a respeito do futuro do fenômeno religioso. Primeiramente, porque Ŕ embora,
como vimos, ele tivesse uma “queda” pelo ocultismo Ŕ Freud nunca se pretendeu um
futurologista. O que ele consignou em 1927 é antes a expressão de uma esperança do
que uma previsão calculada. Ademais, vale o registro de que, em textos posteriores, o
prñprio Freud abandonou o otimismo que dominou “O futuro de uma ilusão”. O
entusiasmo cientificista revelado nesse livro durou pouco; nas publicações seguintes,

1686
Cf. FREUD, L‟avenir d‟une illusion. In: _______. Œuvres complètes, v.18, p.178, 187; FREUD,
Psychologie des masses et analyse du moi. In: _______. Œuvres complètes, v.16, p.37, 81.
1687
Cf. MILLER, Religião, psicanálise. Opção lacaniana, n.39, p.10; MILLER, Religión, psicoanálisis. In:
CHORNE; GOLDENBERG, La creencia y el psicoanálisis, p.55.
1688
MCGRATH; MCGRATH, O delírio de Dawkins, p.13.
1689
Cf. CATALAN, O homem e sua religião, p.27, 42, 156; CHORNE; GOLDENBERG, La creencia y el
psicoanálisis, p.31; DALGALARRONDO, Religião, psicopatologia e saúde mental, p.51, 231; KÜNG,
Religião: o último tabu? In: _______, Freud e a questão da religião, p.102, 107; LACAN, A terceira. In:
Cadernos Lacan, p.49; MCGRATH; MCGRATH, O delírio de Dawkins, p.12, 133, 137; MIJOLLA-MELLOR,
A necessidade de crer, p.9; RATZINGER; D‟ARCAIS, Deus existe?, p.107; ROUDINESCO; PLON, Dicionário
de psicanálise, p.288.
1690
Cf. KOLTAI, Totem e tabu, p.77-78; MIJOLLA-MELLOR, A necessidade de crer, p.7. Vale o registro de
que, segundo Joel Birman, o atual retorno do religioso é uma reação contra o agravamento do sentimento
de desamparo, noutras palavras, contra a intensificação do mal-estar na civilização, causada pelo
desencantamento do mundo e pela morte de Deus. O retorno do religioso pode ser visto como uma
tentativa de restauração da figura do pai protetor, num mundo em que o pai foi humilhado Ŕ entenda-se: o
pai e o Pai (cf. BIRMAN, Arquivos do mal-estar e da resistência, p.47-54, 75; BIRMAN, Estilo e
modernidade em psicanálise, p.142, 175-179, 185-186; BIRMAN, Mal-estar na atualidade, p.227-230).
1691
Cf. Entrevista do dr. Lacan à imprensa. In: Cadernos Lacan, p.15-16; LACAN, Le triomphe de la
religion. In: _______. Le triomphe de la religion précédé de Discours aux catholiques, p.78-83, 87; ver
também: CHORNE; GOLDENBERG, La creencia y el psicoanálisis, p.169.
Freud recuperou inteiramente o seu habitual ceticismo1692. Disso, o melhor exemplo é
“O mal-estar na cultura”.
Segundo Joel Birman, em “O futuro de uma ilusão”, Freud se revelou
mesmo um pensador iluminista. Porém, já em 1915, em “Atualidades sobre a guerra e a
morte” Ŕ especialmente, no primeiro capítulo, intitulado “A desilusão causada pela
guerra” Ŕ, ele havia dado sinais de um desencantamento com o ideário iluminista. Em
“O mal-estar na cultura”, por sua vez, publicado em 1930, esse distanciamento se
caracterizou de forma completa. Ali, Freud rompe claramente com o projeto iluminista:
abandona a valorização excessiva da ciência, rejeita a ideia de progresso civilizatório,
descarta a crença de que a razão científica vai garantir a felicidade humana. Em suma,
de início, Freud esteve, sim, ligado aos ideais cientificistas do iluminismo; mas, depois,
se emancipou deles1693.
Em “O homem Moisés e a religião monoteísta”, igualmente, Freud se
mostrou muito menos otimista diante da possibilidade de uma superação futura da
religião pela razão. Nessa obra, ele desenvolveu a ideia de que a crença religiosa, tal
como a neurose, tem uma força compulsiva, não se deixando mover facilmente por
argumentos racionais. Assim, na opinião de Bernstein: “Freud não se chocaria nem se
surpreenderia pelo recente ressurgimento do fundamentalismo religioso que irrompeu
em todo o mundo”1694.

1692
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, Ciencia, ilusión y creencia. Revista Portuguesa de Filosofia, v.59, f.2,
p.436; DOMÍNGUEZ MORANO, Creer después de Freud, p.42, 71; DOMÍNGUEZ MORANO, Psicodinámica
de los ejercicios ignacianos, p.15; ver também: FUKS, Freud e a judeidade, p.160 [nota 48].
1693
Cf. BIRMAN, Estilo e modernidade em psicanálise, p.75, 82-84, 86, 89, 133-136; BIRMAN, Mal-estar
na atualidade, p.39-42, 134, 138-139, 144.
1694
BERNSTEIN, Freud e o legado de Moisés, p.100; cf. MILLER, Religião, psicanálise. Opção lacaniana,
n.39, p.10, 21.
CONCLUSÃO

Depois de um estranhamento inicial, na grande “fermentação” que


antecedeu o Concílio do Vaticano II e, sobretudo, após a realização do mesmo concílio
ecumênico, a Igreja olhou para a psicanálise com grande esperança. Não poucos
catñlicos passaram a frequentar a obra de Freud, e um número “bíblico” de jesuítas
entrou na escola de Lacan.
O encontro entre o catolicismo e a psicanálise revelou-se, porém,
menos fecundo do que se esperava. O capítulo VIII de “Freud et le christianisme”
[“Freud e o cristianismo”], de Jacques Gagey, é uma espécie de carta aberta aos padres
jesuítas que se empenharam em articular a psicanálise e a fé cristã pela via do
pensamento lacaniano. Fazendo um balanço desse esforço, Gagey descreve-o como
“decepcionante” e “improdutivo”; numa palavra, foi um “fracasso” 1695. Segundo o
historiador Peter Gay, de sua parte, a tentativa de reconciliação entre a psicanálise e a
religião, iniciada com Oskar Pfister e levada adiante por outros autores, “não levou a
lugar algum”, terminou numa “declaração de falência”1696.
Sim, é preciso admiti-lo. O encontro entre o catolicismo e o
marxismo, por exemplo, resultou na teologia da libertação, que, por sua vez, mudou a
face da Igreja e, pelo menos, por duas ou três décadas, teve o seu momento na vida
eclesial. O encontro entre o pensamento católico e a descoberta de Freud ou ainda não
se deu, é uma revolução “pendente”, por acontecer, como quer Andrés Torres
Queiruga1697, ou não tem como acontecer, trata-se de um “encontro impossível”, na
expressão de Joel Birman1698. Há, com efeito, entre a fé católica e o freudismo impasses
dificilmente superáveis, o que torna o encontro entre uma coisa e outra um
acontecimento improvável, ainda não realizado, apenas imaginável num futuro
hipotético.
O fato, porém, de que não haja possibilidade de síntese não significa
que não possa haver contato, diálogo, relação. Nesta pesquisa, focalizamos, em

1695
Cf. GAGEY, Freud et le christianisme, p.201-231.
1696
Cf. GAY, A Godless jew, p.112.
1697
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, Experiencia cristiana y psicoanálisis, p.11, 52.
1698
Cf. BIRMAN, Desejo e promessa, encontro impossível. In: MOURA, Hélio Pellegrino. A-Deus, p.116-
143.
particular, um dos problemas entre a psicanálise e o catolicismo: a poderosa crítica que
Freud desenvolveu sobre a crença em Deus. O que concluímos?
Para os crentes, concluímos que vale a pena ler Freud. Sendo versado
em psicanálise, um teólogo católico suspeitará, por exemplo, de uma imagem de Deus
excessivamente conforme aos desejos humanos e estará advertido contra o risco de que
o cuidado com as normas litúrgicas e a observância de preceitos morais caiam nas
“malhas” da lñgica obsessiva.
Para os psicanalistas, concluímos que vale a pena não tomar como
“última palavra” o que Freud escreveu sobre religião. É curioso que, na maioria das
vezes, quem se interessa por psicanálise da religião seja, ele mesmo, religioso 1699. Os
ateus e agnósticos raramente se importam com isso. É como se, com o que Freud deixou
consignado sobre o assunto, a coisa tivesse ficado resolvida. Ora, o que procuramos
demonstrar nesta investigação é que, não obstante as preciosas intuições de Freud sobre
o fenômeno religioso, o seu pensamento sobre a matéria é passível de ser criticado sob
vários aspectos. A crítica freudiana da religião é, no mínimo, discutível, eis o que nos
empenhamos em provar.
Em suma, se os crentes têm o que aprender com Freud e se os
freudianos têm em que desconfiar de Freud, isso significa que vale a pena dialogar. Esse
diálogo não promete acordo algum, não resultará em síntese nenhuma. Mas pode ser de
grande valia para as partes envolvidas.

1699
Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, Psicoanálisis y religión: diálogo interminable, p.162; DOMÍNGUEZ
MORANO, Teología y psicoanálisis, p.7.
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O autor: Nascido em 1967, em Belo Horizonte, MG, Ricardo Torri de Araújo é
psicólogo e mestre em psicologia pela UFMG e doutor em teoria psicanalítica pela
UFRJ. Graduado em teologia pela FAJE, o autor é padre jesuíta. Reside no Rio de
Janeiro e é professor do departamento de psicologia da PUC-Rio. O seu endereço
eletrônico é: ricardotorri@hotmail.com.

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