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Por que as pulsões de destruição ou de morte?

André Green

2018

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Por que as pulsões de destruição ou de morte?1

André Green

1 Tradução do original Por qué las pulsiones de destrucción ou de muerte? – 1ª ed. – Buenos Aires: Amorrortu, 2013.
ISBN 978-950-518-247-3.
Tradução: Felipe Ferreira De Nichile: psicólogo clínico, docente e supervisor clínico do curso de Formação em
Psicanálise no Centro de Estudos Psicanalíticos, mestre em psicologia clínica pelo núcleo Formações da Cultura e
Subjetividade pela PUC-SP e membro filiado ao instituto Durval Marcondes da SBPSP.
Consultório: Rua São Carlos do Pinhal, nº124, Bela Vista, São Paulo, CEP 01333-000 fone (11) 99915 8400.
felipenichile@gmail.com
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Por que as pulsões de destruição ou de morte?

Prefácio - André Green: pensar a destrutividade, recriar em psicanálise.

Fernando Urribarri

Certa vez, conversando sobre o seu itinerário intelectual, André Green sustentava, de forma humorística,
que se tivesse de aceitar algum rótulo, preferia o de "homem pulsional". Esta opção tinha um pano de fundo
histórico (embora ainda vigente), que dentre outras coisas, contemplava: o reconhecimento anterior de seu
livro sobre o afeto e que o caracterizou, durante algum tempo, como "o homem do afeto"; a irada reação de
Jacques Lacan ao ver-se criticado naquela obra de seu antigo discípulo, ao qual tentou desqualificar fazendo
um jogo de palavras com "o abjeto"; foi a irônica resignificação deste termo lacaniano, operada por Júlia
Kristeva, que a conduziu do autor dos Escritos até o estudo e supervisão com André Green (justamente para
aprofundar a sua investigação respeito do afeto e do pulsional enquanto irredutíveis a linguagem); os
posteriores ataques à psicanálise que partiram das neurociências e do cognitivismo, promovendo um
"homem neuronal" (Changeux), foram rebatidos pelo autor em sua obra A causalidade psíquica através de
inúmeras polêmicas, nesta ocasião, em que, novamente Júlia Kristeva, entre outros, viu-se reconhecendo-o
como um "homem pulsional", alguém que entra no jogo encarnando a defesa dos fundamentos freudianos.
Finalmente, pode completar esta mesma imagem, com a imagem proposta por J. B. Pontalis, para definir seu
velho amigo e companheiro de aventuras intelectuais: "a paixão clínica".
Pensador do pulsional, praticante de uma clínica na qual o afeto pode colocar em questão a simbolização,
sobre esta tela de fundo deveria ser quase evidente que esse novo livro de André Green aprofunda a veia
principal de seu pensamento: Por que a pulsão de destruição ou de morte? É uma pergunta que, com
diversas formulações, percorre toda a sua obra. Em seu inovador primeiro livro Narcisismo de vida e
narcisismo de morte, com a introdução de um "narcisismo negativo", (como complemento do narcisismo
positivo conceituado por Freud). O manuscrito inconcluso seu último livro denomina-se O positivo, o
negativo do negativo. As conflituosas e complexas relações entre a destrutividade e a criatividade psíquica
são um dos núcleos imperecíveis de sua extensa investigação.
Em grande parte, a potência deste livro surge da convicção de seu autor de que o por vir da psicanálise
encontra-se em relação com os destinos da pulsão de morte, ou seja, em relação com a capacidade da
psicanálise de confrontar o desafio teórico e clínico que a destrutividade comporta, tanto no nível do campo
analítico contemporâneo (definido pelo predomínio de estruturas não neuróticas), como no nível do mal estar
cultural atual (o avanço da insignificância segundo Cornelius Castoriadis). Em outras palavras: a psicanálise
depende de sua capacidade para definir o contemporâneo de sua época.
A questão do contemporâneo, como pergunta e como projeto, impulsiona e define a obra de André Green,
desde O inconsciente e a psicanálise francesa contemporânea (1962), passando por Ideias e diretrizes para
uma psicanálise contemporânea (2002), até chegar a Clínica Psicanalítica Contemporânea (2012), podemos
dizer que o contemporâneo evolui do adjetivo para o substantivo, do conceito à ideia diretriz.

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No que consiste a questão do contemporâneo? Colocando de modo simples, em reconhecer o reducionismo
teórico e os impasses práticos que causam a crise dos modelos pós-freudianos. Em propor-se a superá-los.
Neste sentido, o percurso de quase meio século da obra de nosso autor implica na elaboração de um modelo
teórico e clínico pessoal, ao mesmo tempo freudiano e original, que articula uma renovação do método
psicanalítico, uma extensão do campo clínico e uma reformulação dos fundamentos metapsicológicos. Um
percurso que, em sua última etapa, propõe reconhecer os desenvolvimentos pessoais como aportes para a
construção, necessariamente coletiva, de um novo paradigma contemporâneo: freudiano, pluralista,
complexo, estendido.
A amplitude panorâmica, a complexidade polifônica e o estilo dialógico (de leitura de diversos autores, de
colocar as ideias em jogo, de interpelar aos leitores) diferenciam este livro que agora apresentamos. A
perspectiva contemporânea se encontra, antes de tudo, expressa na estrutura mesma do texto, em sua forma
de tríptico. A exposição segue com elegância e rigor os aportes de Freud, seguidos pelos de Ferenczi e dos
grandes pensadores pós-freudianos (Klein, Lacan, Bion, Winnicott) e, finalmente, os de certos autores e
debates atuais. Por sua vez, esses aportes conceituais são colocados em relação, em tensão, a respeito das
questões levantadas no campo clínico e social.
Compreende-se: o projeto contemporâneo procura captar o presente como história, enquanto condição de
possibilidade para a elucidação e transformação dos problemas atuais. Em minha colaboração com André
Green durante a preparação de seus livros e, em especial, nos prefácios e posfácios que redigi para alguns
deles, meu aporte orientou-se para colocar em perspectiva, historicamente e conceitualmente, o que cada
novo trabalho marca em sua obra, bem como no contexto geral da psicanálise. É esta também a intenção que
anima estas linhas introdutórias.
Seguindo uma clássica distinção, é possível diferenciar no percurso de André Green uma etapa inicial
(décadas de 1960 e 1970), uma etapa de maturidade (1980 e 1990) e uma etapa tardia (inaugurada por volta
do ano 2000). O texto que aqui apresentamos, publicado em francês em 2007 (e reeditado em 2011), não
somente corresponde a terceira e última etapa, como também é especialmente representativo de sua singular
riqueza.
Desde o começo dos anos setenta até o final dos setenta, vimos o nome de André Green surgir, se destacar
e estabelecer-se como autor com seus próprios temas de interesse, sua perspectiva pessoal e seu estilo.
Partindo de uma notável preocupação com os desafios da clínica e com os limites da analisabilidade, se
delineia uma identidade freudiana de base e um pensamento pluralista que vai se enriquecendo com a
influência de "seus" autores pós-freudianos (Lacan, Winnicott, Bion), complementado pelo intercâmbio com
seus contemporâneos (especialmente com seus colegas do movimento pós-lacaniano, como Laplanche,
Pontalis, Aulagnier, Anzieu, entre outros). Emerge um estilo que sintetiza paixão clínica e pensamento
complexo.
O discurso vivo: a concepção psicanalítica do afeto (1973) é, possivelmente, o livro mais representativo
desta etapa, pois estuda este tema se aprofundando em Freud, revisando os aportes pós-freudianos e
propondo conclusões pessoais. Green concebe o afeto como modo de simbolização primário e postula a
heterogeneidade do significante psicanalítico. Inscreve o afeto em uma lógica da heterogeneidade que
caracteriza o processo de representação (a função básica do psiquismo) pela tensão irredutível entre a força e

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o sentido, o econômico e o simbólico, o estrutural e o histórico. Esta é e sempre será, uma chave
fundamental de seu pensamento.
Os decênios da maturidade (1980/1990) são, primeiramente, os de elucidação da clínica no que diz
respeito aos limites de analisabilidade, e, portanto, de novos desenvolvimentos metapsicológicos. Narcisismo
de vida e narcisismo de morte (1983) e Sobre a Loucura privada (1990) desenvolvem e consolidam a
concepção original do funcionamento e do tratamento dos casos limite, dando conta da profunda
transformação do campo analítico. Para outorgar fundamento metapsicológico à clínica, parte da pulsão
como "conceito limite" e acaba fazendo do próprio limite um conceito. O homem, ser pulsional pode
transformar-se em um "limite móvel". Por outro lado, a elaboração do narcisismo negativo (ou de morte),
busca esclarecer conceitualmente e orientar tecnicamente a clínica que se denomina "do vazio", referente à
alucinação negativa, ao luto branco, ao sentimento de vazio, entendidos como resultantes de um
desenvestimento massivo e temporal do objeto primário (expressão da destrutividade da pulsão de morte). O
"complexo da mãe morta" constitui uma síntese potente das problemáticas do "luto branco" e se torna uma
figura paradigmática da clínica contemporânea.
Os anos 90 foram marcados por uma notória inovação conceitual e pela sistematização de uma visão
teórico-clínica geral. A inovação comporta a introdução dos "metaconceitos" ou eixos conceituais. André
Green introduz uma noção de terceiridade, por meio da qual renova sua noção de simbolização, que, ao
mesmo tempo, permite articular e aprofundar uma série de noções "terciárias" prévias (a partir da "teoria da
triangulação generalizada" até os processos terciários). Pouco tempo depois é publicado seu livro mais
original: O trabalho do negativo (1993). A elaboração de suas dimensões estruturantes e desestruturantes vão
desde a especulação mais abstrata sobre as pulsões destrutivas até a mais concreta consideração das situações
limite na clínica, passando por uma revisão global dos mecanismos de defesa e da concepção do Eu. Dois
anos depois, A causalidade psíquica e A metapsicologia revisitada respondem a espectativa de numerosos
leitores que desejavam uma apresentação do conjunto do pensamento teórico de André Green.
Esquematicamente, digamos que concebe-se o sujeito psíquico como processo heterogêneo de representação,
que simboliza as relações no e entre o intrapsíquico (centrado na pulsão) e o intersubjetivo (centrado no
objeto).
A etapa tardia se inicia por volta dos anos 2000, definido pelo reconhecimento da crise da psicanálise e o
projeto de um novo paradigma para a sua superação. O projeto contemporâneo não pretende ser um novo
discurso ou dialeto (um novo "ismo" em torno de Green, por exemplo). Aponta para a construção de uma
nova matriz disciplinar, uma articulação de certas perguntas e de certas ideias diretrizes para orientar um
programa coletivo de investigação, que reconheça e aborde os desafios específicos da etapa atual. Um de
seus aspectos chave é a consideração dos casos limite como os novos pacientes paradigmáticos (do mesmo
modo que os neuróticos e psicóticos foram para os modelos freudianos e pós-freudianos, respectivamente).
Orientado "para uma psicanálise do futuro" (Green), a virada dos 2000 imprime ao trabalho de nosso
autor uma dupla orientação: de um lado, de propostas para a construção de um paradigma contemporâneo, e
por outro, de aprofundamento de seus próprios temas de investigação, dos quais se destacam questões
complementares à destrutividade do funcionamento não neurótico (denominação que tende a substituir a de
casos limite) e a criatividade do trabalho psíquico do analista.

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Cada vertente se encontra representada em duas importantes obras, publicadas em 2002. Ideias e
diretrizes para uma psicanálise contemporânea estabelece uma espécie de cartografia dos principais
problemas teóricos e clínicos ligados à prática analítica atual. E reformula os principais eixos conceituais do
pensamento de seu autor enquanto aportes (ao trabalho coletivo) para recalibrar a bússola e retraçar as
coordenadas da exploração analítica.
Em O pensamento clínico podemos destacar dois eixos temáticos principais, que caracterizam, como
dissemos, as investigações pessoais deste período. Um eixo temático corresponde ao estudo da
destrutividade: abarca desde o trabalho do negativo nas estruturas não neuróticas até a revisão da pulsão de
morte (sobre a qual voltaremos mais adiante). O outro eixo temático corresponde a uma renovada e
renovadora reflexão acerca dos fundamentos e variações da prática (o método, o processo, etc.), que indica o
desenvolvimento de um novo modelo clínico terciário, centrado na diversidade e na criatividade do trabalho
psíquico do analista. Esta teorização desemboca na nova noção de "pensamento clínico". Apontado como o
"enquadre interno do analista" (enquanto matriz representativa pré-consciente), o pensamento clínico
transforma um eixo conceitual complexo, que inclui a atenção flutuante e a contra-transferência como
dimensões complementares. O trabalho psíquico do analista articula uma série de operações heterogêneas
(escuta, fugurabilidade, imaginação, elaboração da contra-transferência, memória pré-consciente do
processo, historização, interpretação, construção, etc.). Seu melhor funcionamento é o dos "processos
terciários" sobre os quais se fundam a compreensão e a criatividade do analista.
Para concluir estes opontamentos introdutórios, vamos focalizar o tema da pulsão de morte no
pensamento de André Green. Como vimos, este concebe a destrutividade como uma dimensão essencial do
psiquismo (e um problema central para psicanálise). Considera justificada a segunda teoria pulsional de
Freud, que contrapõe as pulsões de vida e de morte, buscando dar conta de um mais além do princípio do
prazer. Contudo, rechaça certos termos da teorização freudiana. A ideia de uma pulsão "de morte", com sua
concepção biologizante e teleológica, lhe parece inconsistente. Neste sentido, propõe formulações e
fundamentações alternativas.
A investigação de André Green em torno deste tema é guiada por duas grandes interrogações: Como
opera a pulsão de morte no aparato psíquico? Em que se transforma a teoria do narcisismo com relação aos
conceitos da última teoria das pulsões? Poderíamos afirmar, resumidamente, que a primeira questão será
abordada mediante a conceitualização do trabalho do negativo. E, para responder à segunda, iremos
complexizar a teoria do narcisismo a partir da introdução do par "narcisismo de morte/ narcisismo de vida".
Nesta "aventura do negativo", (parafraseando o título de seu livro sobre Henry James), este trecho do
artigo "Pulsão de morte, narcisismo negativo e função desobjetalizante" (incluso em O trabalho do
negativo), constitui um marco sintético. Vale a pena citá-la e comentá-la: "Proporemos a hipótese de que a
meta principal das pulsões de vida é assegurar uma função objetalizante. Isto não significa que seu papel seja
somente criar uma relação com o objeto (interno e externo), mas sim se mostrar capaz de transformar
estruturas em objeto (...). Dito de outra forma, (...) pode fazer advir ao estado de objeto algo que não possui
nenhuma das qualidades, das propriedades e dos atributos de objeto, com a condição de que no trabalho
psíquico efetuado se mantenha uma única característica: um investimento significativo. (...) em última
instância, o objetalizado é o próprio investimento. (...) Por outro lado, o da pulsão de morte e desempenhar
da maneira mais extrema possível uma função desobjetalizante, por meio do desligamento".

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Isto significa que o autor de As cadeias de Eros concebe a pulsão de morte como força de
desinvestimento, e não como expulsão, ataque ou agressão - que são avatares possíveis, porém secundários -.
Em sua forma primordial, o desinvestimento afeta o próprio processo de ligação, e, portanto, aos seus
componentes (representações, objetos, tramas, "vias colaterais"). No limite, pode afetar os próprios pilares
organizadores do psiquismo: é o narcisismo de morte (enquanto desinvestimento da própria estrutura e
unidade narcísica primária). Ao desenvolver esta visão, Green propõe uma reformulação ao segundo
dualismo pulsional freudiano, mediante o par conceitual função objetalizante e função desobjetalizante.
Deste modo, procura dar um papel central ao objeto na própria dinâmica de desencadeamento e na operação
da pulsão de morte. A compulsão à repetição mais além do princípio do prazer comporta uma
desobjetalização. É um curto-circuito do "investimento significativo", condição mínima do processo
representativo e da função objetalizante. Trata-se de uma concepção processual, inerente a perspectiva que
define reciprocamente e articula o intrapsíquico com o intersubjetivo. A pulsão de morte não pode ser
compreendida exclusivamente em termos pulsionais, muito menos se estes arrastam o reducionismo de um
"automatismo repetitivo", ou o biologismo incoerente de uma "tendência a retornar ao estado
inorgânico" (que propõe uma causalidade biológica para um processo psíquico). Tampouco é possível, em
termos de relação de objeto ("inveja primária", "sadismo", etc.). A compulsão à repetição mortífera (que deve
ser distinguida da repetição desejante) corresponde ao fracasso no tecido psiquicizante (ou objetalizante) da
relação pulsão-objeto.
Finalmente, para esboçar o contexto da etapa em que este novo livro surge, devemos recordar que o ano
2000 está marcado por uma virada, de aprofundamento, no estudo da destrutividade. Dois importantes
trabalhos se destacam. O primeiro abarca a segunda metade do livro O tempo fragmentado (2000), no qual
um estudo atento da compulsão à repetição mortífera a define como um "assassinato do tempo".
O outro é o artigo "A morte em vida" (incluso em O pensamento clínico). Depois de estabelecer um
balanço de seus acordos e desacordos com Freud, formulam-se uma série de teses pessoais. André Green
postula que a pulsão de morte não existe em um estado de atividade permanente, mas sim que se instala na
sequência de uma série de frustrações, vividas em silêncio ou em ruidosa agitação. Para além disso, aquela
não tem, em relação às pulsões de vida, nem supremacia, nem subordinação, nem irreversibilidade. Depende
em grande medida da relação de objeto, pois se uma de suas funções é contribuir para intrincação das
pulsões, seu fracasso pode provocar reações de desintrincação que favorecem a expressão das pulsões de
destruição. Em análise, a pulsão de morte pode ver seus efeitos favorável ou desfavoravelmente modificados,
contudo, não é legítimo colocar em sua conta todos os fracassos da análise. Como conclusão, propõe a
denominação de "pulsões de destruição", com uma dupla orientação, interna e externa, para substituir a
terminologia freudiana e conservar o valor conceitual (e heurístico) da problemática "demoníaca", de mais
além do princípio do prazer.
Espero que este sumário repasse as principais ideias de nosso autor sobre este tema e permita ao leitor
visualizar o contexto no qual se inscreve o livro que agora tem em suas mãos. Dissemos anteriormente que é
representante da etapa tardia, marcada pela virada dos anos 2000, uma vez que André Green não prioriza
nem a exposição, nem o aprofundamento de suas próprias ideias, mas sim colocar em perspectiva,
históricamente e conceitualmente, ao mesmo tempo, os principais aportes ao seu tema. Realizou uma espécie
de "colocar em dia", que situa seus próprios trabalhos, como quem propõe um marco teórico para uma

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investigação que considera imprescindível. Se trata, por isso, antes de mais nada, de um argumento a favor
da relevância e da persistência do problema da destrutividade, ao mesmo tempo que uma reivindicação da
potência criativa da psicanálise para dar novas respostas. Por isso no coloca uma pergunta, nos interpela e
nos convoca a nos comprometermos a uma reflexão coletiva, que tenha raízes na intimidade de nossa prática
e que aposte em renovar o horizonte de nossa disciplina.

Advertência

Seria possível que a morte fosse a meta de uma pulsão? Se remetermos hipótese da pulsão de morte ao
ano de 1920, esta parecerá bizarra no sentido de que as referências ao passado não nos permitem lhe
reconhecer muitos antecedentes e, logo depois dela, apenas mais alguns poucos sucessores. Há, porém,
algumas exceções: a notável brecha aberta por Schopenhauer - sem dúvida, o filósofo mais próximo a Freud,
como ele mesmo admitia - e, na sequência, naquilo que seria uma ampliação desta brecha, com o mero
propósito de melhor cercá-la, para nos devolver a esperança da qual aquele havia nos privado, Nietzsche, que
pretende ser o mais eficaz antídoto contra a teoria freudiana. A ridícula "pulsão de morte", afirmava Deleuze.
Para retornarmos ainda mais no passado, uma vez que o próprio Freud invoca o apadrinhamento de
Empédocles, este pré-socrático segue muito isolado. Entre os materialistas da Antiguidade, nenhum vem ao
auxílio de Freud. Do lado da filosofia, consequentemente, a colheita é pobre e suas elaborações recentes
confirmam a tendência.
Abandonemos, pois, esperança de que algo venha deste lado. Aduzir-se-á então a necessidade de
retroceder ao terreno próprio dos psicanalistas? Infelizmente, tampouco esta solução parece viável, dado que
estes - e os melhores - ou bem se alinharam entre os mais ferozes críticos da "pulsão de morte", ou adotaram
o conceito sem apoiar a sua adesão em uma análise argumentanda, ou, por último, deformaram sua
significação no intuito de simplificá-la, sem que isto, não obstante, resulte na prestação de alguma verdadeira
ajuda à nossa compreensão a respeito do que se trata.
Convocaremos como reforço os homens do senso comum? Não, menos a estes do que a quaisquer outros,
afinal não há nada mais alheio ao senso comum do que compreensão da teoria psicanalítica, especialmente
no que se refere à pulsão de morte. Nos sobra, então, a ilusão do apoio daqueles que não teríamos ousado
chamar para este debate, em face de um justo ceticismo: "os "homens prendados da lucidez ". Com efeito,
cada um concebe a lucidez à sua própria maneira e tacha como obscuras as opiniões dos demais.
Não é nada fácil de conviver com a idea de ser portador de uma força de morte que se dirige
essencialmente contra si mesmo. Em todo caso, menos do que com a ideia de que somos todos assassinos,
sempre prontos a evocar a legítima defesa ou a necessidade de sobrevivência para investir contra o próximo.
Resignemos-nos: os postulados e teoremas fundamentais do pensamento psicanalítico estão de tal forma
afastados do pensamento comum e corrente que acaba rechaçado aqueles que buscam assimilá-lo a partir do
lado de fora. Se, com respeito a esta questão, o poder de convicção das ideias costuma se deparar com o

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fracasso, "o tempo da reflexão" pode servir para nutrir tanto as perguntas como às respostas à luz de um
pensamento que seja condizente com a experiência.
Uma palavra para finalizar: aderi às ideias de Freud sobre a pulsão de morte para propor uma versão, já a
muito, um tanto diferente desta. Todavia, recentemente ao escrever esta obra me pareceu, pela primeira vez,
que compreendia algo sobre as questões levantadas por esta pulsão. Porém, para ser sincero, devo dizer que
as respostas que proporei se apoiam tanto nas minhas ideias, como nas reflexões de muitos dos autores pós-
freudianos que me influenciaram. Deste modo, não tenho a ilusão de ter chegado a meta, senão, unicamente,
de haver superado uma etapa.

Croagnes, Verão de 2006.

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1. Fundamentos.

1.1 Hipótese sobre a gênese da pulsão de morte

Não vacilaremos em enfrentar a mais especulativa metapsicologia de Freud, que às vezes nos irrita por
parecer tão pouco disposta a abandonar o paraíso das ideias, ao mesmo tempo em que legisla sobre
problemas que, na prática, nos tocam profundamente; por exemplo, quando se arroga ao exame de conceitos
tão genéricos e fundamentais, tais como a vida, o amor, a destrutividade e a morte.
Em sua mais recente teorização sobre estas questões, Freud, diante do mistério da compulsão à repetição,
colocará de lado sua última hipótese. A compulsão à repetição e o mais além do princípio do prazer supõem
uma explicação inesperada e inovadora: a da pulsão como restauração de um estado anterior. Contudo, uma
hipótese de tão vasta envergadura deverá ser julgada em função de seus resultados. Para convalidar
semelhante ideia seria preciso dotá-la de uma teoria de origem, algo que seria sua condição prévia. Neste
sentido, Freud se vê em apuros. Até então a pulsão servia de aval ao originário, sobretudo quando seu
objetivo primitivo era o prazer e quando a teoria, ao mesmo tempo em que admitia a existência de conflitos
pulsionais fundamentais, somente os concebia no marco ainda não definido de pulsões de vida, cuja
qualificação e definição estavam ainda por nascer. Não é legítimo, consequentemente, dizer que as pulsões
de vida já existiam; é preciso, além disso, colocar a ressalva de que nada do que poderia se alinhar ao lado da
morte previa ou dispunha de um suporte pulsional, que até o momento não havia sido concebido. Nada
poderia, nem sequer hipoteticamente, tampouco inscrever-se no marco das pulsões de vida, uma vez que
estas ainda careciam de conceitualização. Todas as manifestações relativas à agressividade continuavam
formando parte das vicissitudes internas da libido sexual, tese esta que Adler, a sua maneira, já havia
sustentado desde a origem da psicanálise, e que Freud rejeitava, pelo menos com esta formatação. A morte
não era, em suma, senão o esgotamento do potencial da vida e, portanto, da libido, como, aliás, vem
pensando não poucos analistas contemporâneos.
A hipótese da pulsão de morte trouxe tudo isso a baila. Se o retorno a um estado anterior a vida tornava-se
a meta comum de toda pulsão, restava precisar de que modo poderia estar constituído este estado anterior,
último e primeiro.
Como sempre em Freud, a introdução de um conceito novo coloca em questão o equilíbrio do conjunto,
exigindo uma conceitualização diferente daquela que prevalecia até o momento. Qualquer esforço no sentido
de buscar compreender a pulsão de morte não pode dispensar uma atenta reflexão sobre o agrupamento
oposto, que viu nascer outras ideias em lugar de concepções anteriores, até então estabelecidas com bastante
solidez, mesmo quando adendos tardios vieram a mudar sua significação. Assim ocorre com a fase teórica
que opõe libido narcísica a libido objetal, que, a meu ver, mereceria ser chamada de "segunda teoria das
pulsões", passando os conceitos de 1920 a serem nomeados de "terceira e última teoria das pulsões".
Todavia, o destino transcorreu de outra forma e, assim, na etapa de 1913-1914 não foi possível perceber
outra coisa, senão que, segundo a própria confissão do autor, uma peripécia extraviou o juízo de Freud, o
qual se censurou em razão de se ver envolvido, inclusive contra sua própria vontade, sob a influência de seu
discípulo, que na sequência se tornou seu adversário (Carl G. Jung). A conveniência acabou por conservar a

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expressão "segunda e última teoria das pulsões", somente para as ideias apresentadas em 1920. Não obstante,
restará compreender de que maneira a revisão de 1914 preparou o caminho para revolução de 1920.
Uma originalidade da concepção deste último ano é a de apresentar-se sob um duplo aspecto, sincrônico e
diacrônico. Por um lado, tal como em suas concepções anteriores, propõe uma nova imagem sincrônica da
constituição do psiquismo, isso é o que leva Freud a sustentar que pulsão de vida e pulsão de morte
coexistem desde o nascimento. Contudo, junto a ela, e sem dúvida por cima, a justificativa da pulsão de
morte deve se associar com uma perspectiva filogenética e, portanto, diacrônica, que nisto não prescinde de
se remontar, em teoria, as origens mesmas da vida.
Nesta última teoria das pulsões, este ponto de vista não se expressa de modo isolado, ao contrário das
afirmações anteriores. Tal é a surpresa com a qual iriam se deparar os leitores de Além do princípio do
prazer. Estavam longe de suspeitar que o questionamento do princípio do prazer estivesse acompanhado,
desta vez, de uma reflexão sobre as origens da vida para tentar dar conta das diversas organizações do
psiquismo. Posição esta que se reconcilia, sem dúvida, com algumas afirmações do "Projeto de psicologia
científica para neurolólogos" de 1895, mas que carecia de precedentes na obra publicada. Confesso ter com
frequência me irritado em face desta especulação de 1920, sem ter me decidido a aceita-lá como uma espécie
de exercício lúdico, uma divagação fantasiosa da mente que deseja se conceder alguma licença imaginativa,
dentro de um pensamento frequentemente árido. Todavia, mesmo as especulações mais atrevidas de Freud,
para não dizer as mais gratuitas, vêm acompanhadas de uma reflexão que retorna ao analista problemas que,
de um modo ou de outro, resultam familiares.
O certo é que a perspectiva sincrônica não perde de todo os seus direitos. Assim testemunham as
denominações sinonímicas que Freud propõe como corolário de sua invenção: pulsões de vida - pulsão de
morte - pulsões de amor, pulsão de destruição (ou de agressão), todos os quais podem se subsumir em um
par de caráter mais teórico-clínico que especulativo: ligação e desligamento. Está claro que cada diferente
formulação pode implicar matizes, que Freud especifica. Este costume não é nenhuma novidade. Com efeito:
Como defender que a distinção entre libido narcísica e libido objetal pode carecer de qualquer relação com
as novas ideias? Esqueceu-se que Freud, antes de teorizar o narcisismo, havia prontamente designado as
"neuroses narcísicas", que na época englobavam as psicoses no geral? Na sequência haveria de reservar essa
denominação a psicose maníaco-depressiva, enquanto as antigas "neuroses narcísicas" iriam levar o nome de
"psicose", caracterizadas na sequência pela agressividade que entranham.
A prova de que as novas posições são acompanhadas de um objetivo reintegrador pode distinguir-se em
meio às suas especulações mais abstratas - como a volta da antiga problemática do sadismo que ocultava
mais ambiguidades dos que as que Freud havia suposto no passado -. Não pensamos tanto em Adler como no
caminho interno do pensamento freudiano, dominado em um primeiro momento pela mera libido, com
inclusão da regressão sádico-anal. Mas, dali em diante, Freud se prepara para formular uma nova dialética,
que relaciona a morte (destruição, sadismo) com a libido (narcísica em primeiro lugar e posteriormente de
objeto). Em 1920 sustenta que sempre reconheceu a existência de um componente sádico na pulsão sexual.
De qualquer forma, considera agora para além da possibilidade de que esta se constitua como uma perversão,
que pode se libertar em maior ou menor medida dessa ligação (desintrincação - reintrincação). Há, portanto
um possível desligamento, porém, o que Freud deseja destacar não é isso, mas sim a passagem progressiva

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que permitiria relegar o sadismo a um lugar secundário. Propõe, então, a hipótese do aparecimento do
sadismo sob a influência da pulsão narcísica:

“Não cabe supor que esse sadismo é na verdade um instinto de morte que foi empurrado do Eu pela
influência da libido narcísica, de modo que surge apenas em relação ao objeto?” (Freud, 1920, p.169)

Posteriormente, será descoberto o objetivo destruidor do sadismo que aspira o aniquilamento do Eu. Mais
adiante, o sadismo se manifestará no influxo amoroso através do desejo de dominação do objeto.
Observemos a retórica de Freud, que parte de um fenômeno clínico conhecido, embora tenha dado lugar a
variadas teorizações, senão divergentes. Para defender a hipótese da associação do sadismo à pulsão de
morte, irá se apoiar nas intrincações e desintrincações da pulsão sexual, "destino" do componente sádico da
libido em sua forma perversa e sua nova meta, a destruição, segundo a nova perspectiva. Neste sentido: de
fato, esta meta é ditada pela perspectiva diacrônica: o desenvolvimento da libido narcísica expulsa da psique
o sadismo da pulsão sexual. A inquietação no sentido de acompanhar os desenvolvimentos da libido sádica
não destrutiva nos leva a manifestar os primeiros efeitos da chamada "pulsão de vida", que se coloca a
serviço da defesa do Eu. Deste modo, o poder narcísico, ao se esforçar pelo triunfo da vida, se dedica, em
suas fases iniciais, a impedir que o Eu se afundasse na destruição, circunstância esta que tornaria impossível
qualquer estruturação psíquica. Este processo antecipa o que virá a seguir, em 1925, quando a análise do
mecanismo da negação conduz a duas conclusões: em primeiro lugar, a expulsão do mau, do inquietante, do
odiado para o exterior e, paralelamente, a constituição de um Eu-prazer purificado.
O narcisismo é, portanto, o primeiro vencedor do conflito da gigantomaquia pulsão de vida - pulsão de
morte a favor das pulsões de vida. Esta etapa é a que levanta a hipótese da contraofensiva da pulsão de
morte, visando anular o desequilíbrio introduzido pela pulsão de vida. Consequentemente, historicamente
passamos de um narcisismo concebido inicialmente segundo uma matriz mortífera (as psicoses) para um
narcisismo integrador de vida, o que acaba justificando minha teoria sobre os dois narcisismos, de vida ou de
morte.
Em suma, é possível vislumbrar que Freud busca conciliar a última teoria das pulsões, que de alguma
forma parece implicar a simultaneidade e a concomitância destas, com um novo avanço, que visa esclarecer
a sucessão entre pulsões de morte ( que buscam o retorno a um estado anterior, pré-vital) e pulsões da libido
erótica (de aparecimento mais recente), na qual o narcisismo desempenha o papel fundamental em uma etapa
na qual o primeiro predomínio de Eros se manifesta. Recordando: o Eu somente pode construir-se sobre uma
concepção de prazer "purificado". Freud não esclarece de que, contudo, compreendemos que deve
momentaneamente se purificar da tentação da destrutividade e sua aspiração de retornar a não-vida.
Neste estádio, comprova-se, consequentemente a necessidade de formular o que vem em primeiro lugar e
o que vem na sequência, e verificar de que modo é possível a transição de um passo para o outro. As
teorizações precedentes (pulsões de autoconservação e pulsões sexuais; libido narcísica e libido objetal)
conformavam-se em levantar uma coexistência não unificada e a fundamentarem-se em uma forte intuição
teórico-clínico. Em 1920, sem deixar de apoiar-se em um sólido embasamento estrutural, a última teoria das
pulsões acrescenta uma dimensão fundamentada na filogênese, que estava ausente nas orientações anteriores.

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Examinaremos com maior precisão as duas concepções da ideia de pulsão de morte: a diacrônica e a
sincrônica. A primeira, que goza da preferência de Freud, consiste em imaginar de que modo uma matéria
original (orgânica) não dotada de vida é mobilizada por uma força ativa completamente irrepresentável, ou
seja, muito pouco apta para ser denominada de "pulsão de vida", sem outras precisões. O importante é o que
se segue a este acontecimento: a tensão que então surge na substância em vias de "vitalização", permanece
sob a ameaça de um retorno que busca voltar a nivelá-la, ou seja, anular esta tensão, neutralizá-la, para
restaurar um estado anterior de não-vida, isto é, de não-tensão. Assim, nasce, segundo Freud, a primeira
pulsão, "a de regressar ao inanimado". Assim: a primeira pulsão só poderia ser a pulsão de morte.
Resumindo, a pulsão originária é pulsão de morte, concepção que se apoia, recordemos, em uma hipótese
filogenética.
A outra hipótese de base, não cronológica, propõe uma visão de simultaneidade: pulsões de morte e
pulsões de vida coexistem desde o início, e sem dúvida é necessário acrescentar, "no indivíduo". Diremos
que a primeira visão é especulativa, ante-histórica ou pré-histórica, e que a segunda é conceitual,
fundamentada no equilíbrio da teoria na ontogênese, abandona a pré-história e suas especulações e faz recair
todo o peso sobre a interpretação da clínica.
Freud segue tateando:

"Partimos da grande polaridade de instintos de vida e instintos de morte. O próprio amor objetal nos
mostra uma segunda oposição assim, aquela de amor (afeição) e ódio (agressão)" (Freud, 1920, p.169).

Freud constrói hipoteticamente a articulação destas duas ordens de dados e deseja descobrir o vínculo que
permita transitar de um ao outro. Consequentemente, o que prevalece aqui segue sendo a preocupação
diacrônica, baseada na visão ontogenética.
Ainda neste ponto, o narcisismo vem em seu auxílio. Temos buscado detalhar os pensamentos
subjacententes a este desenvolvimento porque, conforme sabemos, Freud não nos dá a conhecê-los. Sua
aspiração é considerar o narcisismo como primeiro vínculo entre pulsão de morte e pulsão de vida. Contudo,
se observarmos as coisas com um pouco de perspectiva, a coerência de Freud é notável. Seu proceder, apesar
disso, está marcado pela obstinação. Em primeiro lugar, a vaguidade é tal, que não existe a possibilidade de
nada se distinguir (caos?). A seguir, seguem os primeiros investimentos identificáveis (libido unida ao corpo
do sujeito, erotismo corporal - tempo "auto" - por unificação primária, etc). Depois a etapa da unificação
primária: narcisismo propriamente dito, autoerotismo que se opõe a desaparição do conquistado, mas que
não pode resistir ao tempo enquanto tal. Sucede-lhe uma intervenção que diz respeito ao investimento e a
constituição de objeto. O efeito deste investimento consiste em não somente fazer intervir o objeto, mas a
obrigar a estrutura psíquica deslocar-se e demonstrar o que se oculta em suas dobras, revelando, assim, suas
propriedades e sua meta final.
Em duas frases: Freud disse tudo isso. Sua primeira afirmação: a insuficiência de vida na matéria
orgânica, no fundo, não é muito diferente das considerações da biologia contemporânea. A segunda
afirmação suprime a tentação de voltar atrás no que diz respeito ao desequilíbrio da vida, mesmo que
supostamente na ciência não haja nada equivalente que faça alusão a isso, a idéia aparece quando se fala em

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"retorno do catastrofismo", incluso, não obstante, nas peripécias da vida. Todavia, há novos conceitos que o
mencionam2. Para encerrar, a etapa clinicamente perceptível nas teorias do narcisismo permite pensar as
origens do Eu e seu destino, em sua relação com o objeto.

1.2. Da compulsão (coação) à repetição a reprodução originária.

O narcisismo é uma pedra angular na construção da pulsão de morte. A partir de 1914, Freud jamais
deixou de mencioná-lo entre os problemas que via necessidade de abordar. Em Além do Princípio do prazer
seu papel é ainda capital, contudo talvez já começasse a declinar, e nas elaborações futuras ele estará cada
vez menos presente. Entre "Recordar, repetir, elaborar" e Além do princípio do prazer transcorrem vários
anos.
Detenhamo-nos, porém, um momento em "Recordar, repetir, elaborar". Sentiríamos a tentação de acusar
Freud de tergiversar os fatos e de não encontrar o que procura? Uma leitura mais ou menos atenta desse
artigo invalida por completo a tentação. Ao considerar a descoberta da repetição, em um princípio, Freud de
modo algum pensa na pulsão de morte. Revela simplesmente uma forma inesperada de resistência. Está
longe de apressar-se em tirar conclusões. Ao final do artigo, movido por uma atitude francamente otimista,
recomenda ao analista observar com cuidado, estudar esta forma de resistência e de levar - uma vez que o
oferece ao analisando - todo o tempo que for necessário para reelaborar esta nova causa de estancamento da
análise. Evidentemente, Freud, no começo, não vê nela mais do que um obstáculo superável. Sem dúvida irá
precisar de vários anos para se dar conta de que está diante de algo muito distinto do que havia previsto em
um primeiro momento. Talvez seja esta a razão dos seis anos que se concede antes de chegar à conclusão
pessimista de que se trata de um efeito da pulsão de morte. Não se trata, portanto, de uma ideia preconcebida
ou de uma petição inicial.
Cabe pensar que Freud também irá se ocupar do tempo necessário para pensar sobre a questão, ainda que
o exame dos textos publicados entre 1914 e 1920 nada traga neste sentido. Todavia, durante esse período,
observamos uma reintrodução da teoria em um nível mais elevado, com os trabalhos sobre a metapsicologia
de 1915 e a uma recapitulação do essencial, para o leitor não especializado, com as Conferências
introdutórias a psicanálise. Até 1920 não irá anunciar as ideias de Além do princípio do prazer. Portanto, o
que o incita a novamente a colocar em ordem os conceitos diretores é um avanço devido a um
esclarecimento totalmente imprevisto. Em suma, um movimento "narcisista" que confere uma nova unidade
aos elementos existentes da teoria.
Inclinaria-me a atribuir um papel importante a dois acontecimentos. Em primeiro lugar, a grande
carnificina da primeira Guerra Mundial, fonte inesgotável de meditações que darão lugar a dois artigos
bastante interessantes de Freud, mas nos quais buscaríamos em vão uma alusão á pulsão de morte. O
segundo, quase contemporâneo concerne ao pensamento clínico encontrado na raiz da análise do "Homem
dos lobos".

2 As teorias do suicídio celular de Jean Claude Ameisen.


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Os trabalhos sobre metapsicologia se encerram, desta forma, em 1915, com "Luto e melancolia", cujas
hipóteses iniciais serão objeto, em 1923, de uma reinterpretação mais diretamente ligada à pulsão de morte.
Por outro lado, em Além do princípio do prazer, Freud expressará, cada vez com maior frequência, sua
convicção de que o homem carrega em seu seio um componente odioso, uma inclinação à agressão e a
destruição e, portanto, a crueldade.
De tal modo, reflexão sobre a cultura e reavaliação da clínica irão, ao mesmo tempo, ocupar o
pensamento de Freud, o deixando cada vez mais desconcertado. Estas questões exigem respostas tão radicais
que dá a impressão, desde o começo, de que teme afirmá-las de maneira demasiadamente determinante,
como se esta pudesse resultar em uma animosidade de muitos de seus discípulos. Em um primeiro momento
expressará seus pensamentos minimizando sua importância e a atribuindo a uma hierarquia de uma
preferência pessoal, que ninguém deveria ser obrigado a compartilhar, para, a seguir, encaminhar-se para a
afirmação de uma certeza que nada poderia colocar em dúvida.
Talvez para evitar a reprovação e a incompreensão, Freud negou-se a abrir os olhos com respeito à análise
do "Homem dos Lobos" (entre 1910 e 1912; a primeira redação se estende de março a maio de 1914). É
indubitável que o caso lhe perturbou a ponto de nublar seu juízo. Ainda mais quando, centrado na cena
primordial e desejoso de se impor a Jung, provavelmente subestimou o alcance de outras descobertas suas
que o haviam surpreendido, como se não pudesse dar crédito aos seus ouvidos, obrigado a negar a novidade
do que o russo, expert em compulsão à repetição, poderia lhe ensinar. Posteriormente, Serguéi Pankejeff teve
a oportunidade de proporcionar numerosos exemplos disto aos analistas que sucederam a Freud, os quais não
deram conta e insistiram na inadvertência até a morte de seu paciente. A particularidade da estrutura clínica
deste, que escapou inclusive a Freud, que desconhecia que ilustrava uma variação de organização masoquista
que se refletia em uma forma de reação terapêutica negativa. Neste momento, Freud havia podido se
interrogar sobre o papel que tinha neste destino o que ele mesmo então elaborava como pulsão de morte,
contudo a sorte desviou os golpes destinados ao paciente e foi sua esposa - a infeliz Therese, acerca da qual
Freud estivera tão gravemente equivocado - que veio a falecer de modo imprevisto e sem suscitar a mínima
observação sobre seus vínculos com a patologia do analisando daquele.
Por outro lado, a redação de Mais além do princípio do prazer é contemporânea da redação de "O
estranho" (1919), no qual Freud, pela primeira vez desde 1914, faz alusão à pulsão de morte. Não cabe
imaginar dois escritos mais distintos e que este último artigo, cujo material provém em abundância da língua
e da literatura e se apoia vigorosamente no narcisismo, e Além do princípio do prazer, que nos faz submergir
no mistério das origens da vida e avança movida a especulações, mas onde não encontraremos mais do que
uma discreta alusão ao narcisismo. Estas novas ideias, que dão a impressão de querer levantar montanhas,
remover os oceanos e estremecer o subsolo das bases do psiquismo, abandonam todo recurso à noção de
representação, renunciando inclusive a nos dar uma imagem equivalente que a substitua. Além do princípio
do prazer testemunha em vão uma desilusão a cerca da crença no prazer como guia da vida e da construção
do mundo psíquico. Rebekka terá que vestir o vestido3 mais uma vez, porém nesta ocasião Freud quer ir ao
essencial, o mundo pulsional como tal, e não aos "representantes" que nos permitem representá-lo.

3Alusão ao abandono da teoria da sedução sob uma forma popular e humorística adotada por Freud: "Rebekka, tirou o
vestido, deixou de ser noiva" (Freud, 1897).
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Poderíamos nos contentar com assinalar as atitudes contraditórias ou destacar as coincidências,
demonstrativas, umas e outras de um verdadeiro mal-estar durante esses anos. O que atrai, sobretudo, nossa
atenção é a vontade radical de Freud de não se conformar em abordar estes problemas em níveis mais ou
menos superficiais, por meio de uma reformulação teórica parcial. Sem dúvida, porque nenhuma solução
desta índole o satisfaria. De fato, aspira agora uma refundação que afete os fundamentos da teoria, ao seu
ver, à medida que o tempo passa, a única solução aceitável. Todavia, essas ideias de tão vasta envergadura,
aparentemente não são suficientes para resolver os problemas técnicos enfrentados por Freud. Neste sentido,
esse, aparentemente, prefere se desviar e deixar para mais adiante, para um momento em que se sentisse
capaz de, ao mesmo tempo, fazer a modificação da teoria a partir de um novo sentido que quer lhe imprimir
e responder aos problemas da clínica. Terá que esperar, então, até 1923 em O Eu e o Isso, para obter uma
visão de conjunto da nova metapsicologia, que desemboca na criação da segunda tópica.
A menção da compulsão à repetição em "O estranho" e sua ausência na análise do "Homem dos lobos"
sugerem, a meu ver, um duplo assinalamento. O primeiro é que Freud de modo algum teria "esquecido" esta
descoberta, que reaparece em um texto. O segundo, é que a omissão da descoberta em uma resenha detalhada
de caso parece supor certa reticência a respeito de dar a conhecê-la abertamente, antes de incluí-la em um
conjunto articulado. O que acontece em O Eu e o Isso. Será necessário mais algum tempo para que se possa
assistir à consumação de suas ideias em "O problema econômico do masoquismo", no qual vemos Freud
resoluto em afirmar suas hipóteses, seja qual for o preço que terá de pagar. O ano de 1924 será aquele no
qual coincidiram sua resolução de afirmar suas ideias e os primeiros questionamentos profundos da técnica
psicanalítica. (Ferenczi e Rank, 1924).
Na sequência mantém aberto o debate: os resultados insatisfatórios da análise devem-se à técnica e a
teoria de Freud, ou, ao o que este mesmo definirá um pouco mais adiante, como o papel dos obstáculos ao
tratamento, quando se coloca em relevo a influência deletéria da pulsão de morte, francamente considerada
aparte e assinalada como responsável? Sabemos até que ponto os analistas se valeram da ideia de que as
acusações levantadas contra a pulsão de morte, em grande parte, facilitam redimir os seus erros e suas
limitações. Contudo, a meu ver, não logram demonstrar na prática o que teriam de melhor pra oferecer.
E é aqui, sem dúvida, onde devemos buscar o enigma da resistência levantado pelo recurso à pulsão de
morte, um dos axiomas da vida pulsional, segundo Freud. O que constitui ao mesmo tempo sua força e sua
fragilidade é que este pensamento se pretende, ao mesmo tempo, physis e psyque, aletheia e origen,
movimento e causa de movimento, gerador e produto da geração, e o fato de que somente é possível
entendê-lo deste modo. Demasiadamente visionário para os médicos e fisiólogos, demasiadamente impuro
para os filósofos, ao mesmo tempo carne e espírito, Eu e nous-nós4. E a necessidade de dar lugar a todas
estas contradições passa por sua redescoberta por meio da escuta do paciente e da leitura dos colegas.
Se disserem que demasiado é demasiado5 é que a era dos grandes sistemas está terminada. Que não
aceitamos nos conformar com o Ser, a Linguagem ou a Relação? Não podemos fazê-lo porque nenhum
destes termos quer dizer nada a margem de sua relação com os outros e talvez, também, que tenhamos deixar
escapar.

4"Nous" no original, provável jogo de palavras entre o "nous", a inteligência ou motor imóvel dos gregos, e "nous",
nosso em francês.
5 expressão em francês que significa que algo passou dos limites.
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Com efeito: é preciso ressaltar que Freud não agrega mais um a uma série de sistemas existentes, mas sim
que cria um outro a partir do que os precedentes não podiam englobar. Em razão dos objetos definidos por
sua própria exclusão, Freud irá apropriar-se destas obscuridades presentes para sustentar um discurso que
não se assemelha a qualquer outro. Não é, portanto, uma posição antisistemática - facilidade a qual se nega -
mas um sistema que se interessa por aquilo que os demais deixam de lado, para terminarem, mais cedo ou
mais tarde, em becos sem saída. Os mesmos, talvez, que serviram a Freud de porta de entrada para aceder à
solução teórico-clínica que tanto lhe custou encontrar.
Por isso, Além do princípio do prazer situa-se como um momento fecundo do qual, a posteriori, terá que
compreender a composição, examinar o equilíbrio interno, buscar os eixos fundamentais - sem deixar de
atentar quanto à sua combinação híbrida - e levantar-se a questão - que forçosamente faz parte desse texto
juntamente com a pulsão de morte - dos riscos de um afogamento teórico, sem estar em condições de
imaginar o que possa aspirar a substituí-lo. Além do princípio do prazer é uma solução temporal, cuja
consumação será O Eu e o Isso, situação na qual o primeiro destes textos é anterior, visto a partir do
posterior. O pensamento será aqui, então, um esporão para que descubramos, quase sempre a posteriori, o
sentido, a função, a necessidade do que já havia sido levantado anteriormente. Sua "reinscrição atual" nos
fará retroceder até os limites de um realismo artificial que, mais do que nos libertar, nos coloca em um
atoleiro, dado que se apoia em um solo demasiadamente arenoso.
Este pensamento que aprofunda avançando ou avança eliminando, carece de precedente? Não, porém, o
que nos assombra é que não esgotaremos esta questão questionando os conteúdos que imediatamente a
precedem. Como vimos: quase nada anuncia a pulsão de morte. E então? Uma especulação sem origem? Ou
melhor, um achado com origens esquecidas, mas que agora aparece sob outro enfoque para anunciar uma
conclusão que com frequência é recebida como inadmissível.
Com efeito: o postulado ao qual Freud sempre se manteve fiel, e que não por isso deve deixar de ser
questionado, engloba implicitamente a morte em seu discurso e o dissimula em nome de uma paz da alma
que somente existe como um anseio misericordioso. A amizade de Freud por Willhelm Fliess, frente a
evidente resistência deste, talvez tenha obrigado o inventor da psicanálise a contentar-se com fórmulas
menos perturbadoras que as do "Projeto de Psicologia Científica para Neurólogos", as quais ele permaneceu
silenciosamente fiel durante cerca de quarenta anos (de 1895 a 1935). Por isso é necessário retornar a estas.
O "Projeto" inicia-se com hipóteses que outorgam o primeiro lugar à ideia de que os processos psíquicos
estão quantitativamente determinados. A quantidade Q (quantidade exterior) está submetida às leis gerais do
movimento. Um princípio fundamental concerne à atividade dos constituintes do psiquismo, e, segundo as
palavras de Freud,.

"Este princípio prometia muita luz, pois parecia abarcar a função em seu conjunto. É o princípio da
inércia neuronal: anuncia que os neurônios procuram se aliviar da quantidade. A partir disto, terá que
compreender edifício e desenvolvimento, assim como [operações dos neurônios]" (Freud, 1895, p.316).

O processo de descarga constitui a função primária do sistema neuronal. Esse funcionamento não é,
contudo, compatível com as exigências da vida, que em determinados casos demandam uma retenção
necessária para ele: fome, respiração, sexualidade, por exemplo.

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"Por isso, o sistema de neurônios está forçado a resignar a tendência originária à inércia, ou seja, ao nível
zero. Tem que admitir um acúmulo de Qn para resolver as demandas da ação específica" (ibid., pág. 317).
Ali, "o afan de manter ao menos o Qn o mais baixo possível sem eliminá-la”. Tal será o efeito do
princípio de constância, função secundária imposta pelas exigências da vida.
Idealmente, se isso fosse possível, as "necessidades internas" aspiram a uma descarga completa, análoga à
fuga na função primária. Contudo, não é assim que se sucede, e o ideal terá de conformar-se a falta de uma
inércia que converta o sistema em não excitável, com uma constância que evitará os inconvenientes das
variações de grande amplitude.
Em termos mais familiares, a atividade neuronal está constituída por dois sistemas que obedecem a dois
princípios. O primeiro, submetido à função primária, tem a capacidade de descarregar-se por inteiro, como
sugere a atividade da vida de relação do sistema nervoso central. Esta função entra em jogo cada vez que a
atividade psíquica enfrenta-se com a necessidade de se desembaraçar do que se costumava chamar de
"excitações noceptivas", que supostamente levam o sistema a um estado de não excitabilidade que procura o
repouso. Mas outro sistema acompanha o precedente: o sistema que se chamava "autônomo" (vegetativo) e
que não obedece ao mesmo princípio, porque não tem a propriedade de descarregar-se por completo das
excitações não prazeirosas. Dado que na maioria das vezes este sistema depende de outros para apaziguar a
excitação que o coloca em estado de desprazer, e posto que a ação destes outros não possa ser imediata, deve
tolerar a tensão, pelo menos durante algum tempo, ainda que seja desagradável. Diferentemente do anterior,
é regido pela função secundária, que torna indispensável à tolerância a certo estado de tensão antes que esta
possa descarregar-se por meio da ação específica que os outros executam. Atualmente, é curioso comprovar a
analogia com as ideias de Gerald Edelman, que contrapõe o sistema do não-Eu e o sistema do Eu (aos quais
estão ligados os valores). Aqui se levanta um considerável questionamento: o postulado de identidade entre
morte e repouso. E de que forma aquilo que foi a justa busca do repouso se converte em aspiração à morte.
Convoca-se a pulsão morte para repousar, ou melhor, para matar o ruído da vida?
A seguir, a partir da descoberta da psicanálise. Freud irá manter um largo debate sobre as relações entre o
princípio da constância e o princípio da inércia, algo que continua aferrado à atividade que tem por meta
suprimir a tensão interna produzida pelos estímulos. Dai, mais adiante, o ressurgimento do interesse por meio
de Bárbara Low e seu princípio do nirvana, que volta ao tema do velho princípio freudiano da inércia e, da
mesma forma, aponta para a abolição de toda tensão. É o que Freud retoma em Além do princípio do prazer,
desta vez explicitamente levando a abolição das tensões até a morte, enquanto a união dos processos de vida
aumenta o nível delas, cuja síntese tem que cumprir (final do capítulo VI de Além do princípio do prazer).
Resta assim aplainado o caminho que postulará a existência das pulsões de morte, em 1920. Sem dúvida,
para Freud a pulsão de morte é a primeira pulsão, a que visa anular as tensões nascidas da introdução da vida
na matéria inerte. A reunião de duas células ligadas pela “vida”, ou seja, a reprodução segue sendo o modelo
e terá como consequência a ideia de pulsão de vida, já que a sexualidade não é suficiente para responder a
suas questões.
Em suma, a necessidade da ligação prevalece sobre a busca de prazer. Se continuamos a supor que a
pulsão restabelece um estado anterior; o que cabe pensar do estágio mais originário da vida que não foi
aniquilado pelo retorno ao estado de não-vida? Freud deslizou da noção de repetição para um termo

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considerado equivalente: a reprodução. Como consequência, sua reflexão o leva a contemplar um fenômeno
que não pode ter nenhum correspondente na vida psíquica do indivíduo. A dimensão clínica resta
abandonada em benefício de uma especulação biológica, sem substrato algum no que chamamos de “vida
mental”. O mito (Platão) talvez aqui nos diga mais do que a reflexão, porque se permite abordar o que o
pensamento filosófico se recusa a tratar. Faz-se necessário associá-lo ao preconceito de uma ficção
eloquente, ou é a racionalidade mesma que a oculta nas dobras dos interditos de pensamento, pois, todavia,
não havia ainda encontrado ferramentas para falar conceitualmente deste? Tratar-se-á de um caso particular
de figurabilidade (Botella & Botella, 2001)?
Teríamos, não obstante, a certeza de que nossa aspiração ao repouso se eleve a tais extremos? Está claro
que desde suas origens a psicanálise tem encontrado orientações semelhantes. E, a posteriori, o que é, pois, a
repressão senão isto?
Todavia, assim como Hamlet se interroga: “to sleep, perchance to dream”, diremos com ele, reprimir,
porém, como fazê-lo frente ao retorno do reprimido? Quem pode prever, com efeito, o que este será e de que
forma estaremos preparados para enfrenta-lo? A paz, tão custosamente adquirida, assitirá o retorno de que
guerra e quem poderá garantir que sairemos, sem sombra de dúvida, vencedores dela? Dispomos, para dizer
a verdade, de uma grande reserva de racionalizações que são de muito pouca utilidade.
A repetição converteu-se em repetição de um modelo, o dos primeiros tempos da origem da vida. De
agora em diante, a reflexão deverá ocupar-se das relações da ligação e do desligamento, conceitos menos
discutíveis, e das razões da impossível volta atrás em direção à morte. Não há clínica sem metapsicologia;
não há metapsicologia sem assinalamento do que escapa por completo à apreensão da psicologia. O que, de
perto ou de longe, se assemelha a observação direta não tem nada a dizer a respeito. Nada é mais difícil do
que a observação destes princípios, porque a experiência da transferência, fundamento do pensamento
clínico, resiste com dificuldades à sedução do observável de fato, esquecendo-se que este teve de se
conceber, acima de tudo, para ser pensável e observável.
A sexualidade e a morte são as duas invenções da espécie. Não é Freud que o diz, senão Francois Jacob.
Portanto, o passo que a teoria psicanalítica tem de flanquear é o da sexualidade a Eros (das pulsões de vida
ou de amor), e da morte à pulsão de morte.
Sabíamos: o que interessa ao psicanalista é a psicossexualidade. Contudo, em que consiste este “psico”
que designa o objeto do psicanalista? Em outras palavras: De que maneira a sexualidade do biólogo adota as
características que a tornam psicossexualidade, ou seja, sexualidade humana? No que diz respeito à morte,
nada, até aqui, a destinava a ocupar-se deste problema. Freud havia deixado para a filosofia apoderar-se dela,
contudo, muda de opinião e retoma o que, a seu juízo, lhe pertence, com a especulação da pulsão de morte. E
se alguém é absolutamente refratário a ela, convém submeter à reflexão sobre o que na vida compete a
morte.
Assim, e dado que temos apostado no mito como ficção daquilo que a razão não pode pensar, extraiamos
do texto freudiano o mito que vai nos ajudar a pensar o impensável, sem prejuízo de, a seguir, desarmá-lo
com a esperança de lançar luz nele.

1.3 O andaime escamoteável do narcisismo.

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Em uma obra anterior, Narcisismo de vida, narcisismo de morte, assinalamos a singularidade do
narcisismo na teoria. Seu lugar varia de uma ideia não teorizada a sua plena teorização em 1915, para logo
desaparecer e não aparecer mais, salvo em algumas menções intermitentes, depois de 1920.
A explicação deste eclipse reside, sem dúvida, no fato de que a última teoria das pulsões, para Freud,
relativizava o interesse do conceito de narcisismo, suspeito de monismo pulsional. Com esta última teoria
pulsional o dualismo recupera toda sua importância, e depois de 1920, o narcisismo só aparecerá de modo
ocasional, sem que haja uma designação explicita do exato lugar que ocupa. Implicitamente presente desde
as origens da psicanálise, sendo utilizado para qualificar certos tipos de neurose, definidas somente por seu
caráter inanalisável devido à qualidade intransferível de sua libido, que se supõe fixa (estancada) no Eu (as
chamadas “neuroses narcísicas”). A rigor, alcançará seu desenvolvimento pleno através da exposição do caso
Schereber, e, por um tempo, será uma ferramenta de primeira importância. O surgimento da última teoria das
pulsões só pôde permitir a extensão de seu status teórico devido ao fato de que esta volta a recorrer
amplamente ao dualismo pulsional, ao qual Freud permanecia muito apegado, apesar de ter se mantido
afastado dele por um tempo. Havia poucas razões para complementar e conservar o narcisismo, pois o
próprio Freud acusava-se de deixar refletir um ponto de vista monista. E nisto, chegado o momento de
separar-se de Jung, não podia senão fazer com que sobre a teoria pairasse a sombra do dissidente que havia
tomado posição contra o papel excessivo que seu antigo mestre atribuía a vida pulsional. Portanto, Freud se
viu obrigado a escolher: ou a renunciar ao narcisismo, ou propor uma mudança de status teórico. A primeira
solução – que foi adotada – não explica o fato de Freud de vez em quando voltar a esta, sem, contudo, levar
mais adiante o alcance a e significação de seu papel na nova teoria. Enquanto a segunda posição não logrou
nenhuma forma de consenso, uma vez que nem Grünberger nem Kohut, apesar de apreciáveis avanços,
buscaram verdadeiramente resolver este problema: O que ocorre com a teoria do narcisismo com relação
aos conceitos de pulsão de vida e pulsão de morte que a sucedem?
Foi por isso que 1983 me propus distinguir, dentro da teoria freudiana tardia, um narcisismo de vida, que
no geral corresponderia com aquele descrito por Freud em 1914, e um narcisismo de morte. Enquanto o
primeiro aspira à unidade do Eu e exerce uma função objetalizante, o segundo expressa a tendência a chegar
em um grau zero de excitação, ao serviço de uma função desobjetalizante, atividade sob o domínio da pulsão
de morte.
Devemos mencionar um último argumento: a intervenção de um narcisismo agente de unificação não é
um obstáculo para o acesso a um inconsciente reprimido, que, por definição, questiona a unidade do Eu que
busca negá-lo? Preferi a solução de um narcisismo de duas faces, a de Janus. A primeira razão disto reside no
fato de que esta solução não obstaculiza em absoluto o princípio de teórico de um Eu dividido, mesmo
quando uma parte deste busca a unificação, e, verdadeiramente, remete a um antagonismo vida/não-vida, e
inclusive, de modo mais radical, opõe uma forma totalizante e uma forma parceladora, resultado de uma
fragmentação. O narcisismo, com efeito, está condenado, em razão de sua fragilidade, à ameaça permanente
de parcelamento. Este aspecto estava implícito no narcisismo unificador de 1913, pois as elaborações de
Freud já destacavam sua tendência à divisão (síndrome de influência e delírio de vigilância). O que não era
mais do que uma potencialidade se converteria, na minha visão, em uma tentação permanente. Em algumas

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formas clínicas, o narcisismo deixa de funcionar como um ameaça para constituir-se em meta principal de
uma vocação aniquiladora, que para melhor diferenciar-se da precedente temos chamado de “narcisismo
negativo”, que é, sem dúvida, uma das mais devastadoras formas da pulsão de morte.
O narcisismo, por consequência, logo se dilui, em 1920. Havíamos chegado a um ponto em que nos
parecia que o recurso ao mito era o único capaz de evitar problemas. Ou seja: já teríamos este mito à nossa
disposição; bastaria extraí-lo das linhas de força do texto. Ninguém poderá dizer que a mitologia clássica nos
faltará. O mito de Sísifo era uma espécie de ilustração da compulsão à repetição e o do Aristófanes no
Banquete de Plantão, citado por Freud em Além do princípio do prazer, nos proporcionava um relato
lendário muito próximo ao pensamento psicanalítico a respeito das diferenças dos sexos em sua relação com
os tipos de eleição sexual.
Freud reconhecia-se como mitólogo (a teoria das pulsões é nossa mitologia”), mas de fato era inventor de
mitos e intérprete do seu sentido. Quando abordava os conteúdos mais especulativos de sua teoria, e se via
incapaz de conseguir continuar falando a linguagem da ciência, a qual considerava, não obstante, a única
válida, se permitia uma incursão fora desta última, para tentar transmitir aquilo que se mostrava refratário a
sua expressão através do discurso científico.
“Na atual penumbra em que se acha na teoria dos instintos, não convém rejeitar qualquer ideia que
prometa alguma luz. Partimos da grande polaridade de instintos de vida e instintos de morte. O próprio amor
objetal nos mostra uma segunda oposição assim, aquela de amor (afeição) e ódio (agressão). Se
conseguíssemos relacionar essas duas polaridades, fazer uma remontar à outra! Há muito reconhecemos um
componente sádico no instinto sexual; ele pode, como sabemos, tornar-se autônomo e, como perversão,
dominar toda a tendência sexual da pessoa. Ele também aparece, como instinto parcial dominante, numa das
“organizações pré-genitais”, como as denominei. Mas como pode o instinto sádico, que visa a ferir o objeto,
ser derivado do Eros conservador da vida? Não cabe supor que esse sadismo é na verdade um instinto de
morte que foi empurrado do Eu pela influência da libido narcísica, de modo que surge apenas em relação ao
objeto? Então ele entra a serviço da função sexual; no estágio oral da organização da libido, a posse amorosa
ainda coincide com a destruição do objeto, depois o instinto sádico se separa e enfim, no estágio da primazia
genital, para a finalidade da procriação, assume a função de subjugar o objeto sexual até o ponto exigido para
a realização do ato. Podemos dizer, de fato, que o sadismo expulso do Eu mostrou o caminho aos
componentes libidinais do instinto sexual; depois estes acorrem para o objeto. Quando o sadismo original
não experimenta atenuação ou fusão, produz-se a conhecida ambivalência de amor e ódio na vida
amorosa.” (Freud, 1920, p. 169).

Impressionante acrobacia intelectual! Detalhemos:

I. Os postulados: pulsões de vida e pulsões de morte, libido narcísica e libido objetal, as fases desta
última e suas metas.

II. Os principais movimentos:

1- sadismo originário (não intrincado); Pulsão de morte,

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2- investimento do Eu pelas pulsões de vida, narcisismo primário (investimento e não pulsão),
3- expulsão do sadismo originário pela libido narcísica, masoquismo primário residual,
4- fonte narcisista objetal e desenvolvimento da libido objetal:
a) fase oral, aniquilação do objeto (consumo);
b) separação (sem precisão, analidade?);
c) fase genital; domínio do objeto sexual;
d) expulsão narcísica, indica o caminho a seguir até o objeto, e
e) intrincação da pulsão de vida - pulsão de morte.

III. Os resultados da intrincação, ambivalência amor-ódio.

Sobre a base destas figuras do mito que reúne e opõem os protagonistas, Freud descreve combinações de
pulsões de vida ou de morte, narcísica e de objetalização. Detenhamos-nos por um momento. A pergunta
feita por Freud: como é possível que Eros, provisoriamente vencedor da morte, possa resistir ao movimento
subsequente do retorno ao anterior, que ao estragar o objeto devolveria seu lugar à compulsão de morte?
Assinalamos que a construção freudiana nos obriga ao retorno ao estado de morte, a menos que imaginemos
um tempo em que Eros resiste, se opondo a sua aniquilação. À tentativa de restauração das forças de morte,
Freud opõe uma contra ofensiva vital decisiva. Ao sucumbir aos assaltos do sadismo originário, as forças,
que querem despojar a vida de sua frágil conquista, batem em retirada sob o efeito da mobilização da libido
narcísica, que quer se manter e que se nega a desaparecer. É impossível não ver aqui a astúcia de Freud para
sair de um mau passo, contudo, se refletirmos sobre o conjunto da passagem, adverte-se então que nesta
época o sadismo originário se adianta ao masoquismo originário. Freud, todavia, não se apropriou da ideia
de que a agressividade é somente o resultado da parte projetada da pulsão de morte. Os fragmentos não
projetados e retidos no Eu constituem o essencial desta pulsão, expressa sob a figura do masoquismo, o qual,
mais adiante, estará na origem do trabalho endógeno da morte.
No que concerne ao sadismo originário, Freud considera que seu objetivo é o prejuízo do objeto. Restam,
então, pela primeira vez reunidos pulsão de destruição e objeto. Creio, não obstante, que se Freud faz aqui
intervir a libido narcísica, é porque o objeto – e, portanto a libido objetal - ainda não resulta identificável
como tal. Somente o é sob a forma pulsional que se pretende indestrutível. A destrutividade se manifesta,
antes de qualquer coisa, contra o que se logrou a organizar: a libido narcísica, que hoje alguns chamariam de
self. Afinal de contas, se Freud a coloca no centro de sua atenção é porque somente nela exibe um esboço de
organização. A libido objetal, ao mesmo tempo em que permanece na condição de objetivo, não pode,
todavia não buscar a forma de objeto, nem defender a sua autonomia, nem definir seu modo de
funcionamento. Em outras palavras, Freud postula aqui uma sucessão ontogenética entre libido narcísica e
libido objetal. A primeira é mais antiga que a segunda. O narcisismo aparece como o núcleo mais medular
das pulsões de vida, como o eixo portador de todo o futuro edifício do Eu, o único, na época, que pode
exercer uma resistência organizada contra as pulsões de morte, ainda que pese afirmar que esse núcleo
central também é vulnerável.
Uma confirmação sinistra desta ideia: antes que os nazistas concebessem os campos de extermínio, já
haviam começado o processo de aniquilação dos judeus mediante procedimentos "artesanais". Assim, os

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embarcavam a bordo de caminhonetes e os matavam com gás. Quando sentiam que suas vidas estavam
ameaçadas, os judeus, reféns do pânico, se precipitavam pela saída traseira, pisoteando tudo o que lhes
aparecia pela frente, caminhando inclusive sobre os seres mais queridos que os acompanhassem. Sem dúvida
alguma, este pânico os fazia perder a consciência de suas reações, que de outro modo estas teriam sido
amenizadas pelo desejo de proteger os seus. De acordo, porém o desejo de salvar a própria pele os levava a
desconhecer que se convertiam nos carrascos involuntários de seus próprios filhos.
Há aqui uma contradição aparentemente insolúvel, contudo indispensável, recordarmos que a natureza
narcísica da libido é sua responsável quando se encontra privada do complemento da libido de objeto. O que
está em plena conformidade com as ideias de Freud acerca das estruturas narcísicas: autárquicas e devido a
isso debilitadas pela ausência de libido objetal, que somente entra em jogo em um segundo tempo. Essa
libido, fundadora da organização do Eu, mostra-se particularmente frágil no caso de perda libidinal.
Pensemos na neurose narcísica por excelência: a melancolia.
O investimento quase exclusivo é, então, o do complemento libidinal das pulsões de autoconservação.
Para assegurar a sobrevivência da pulsão de vida, a resistência se organiza em torno deste complemento
libidinal das pulsões de autoconservação. Em síntese, a luta pela vida se sustenta sobre o narcisismo que é
amor e unidade de si, saído, por sua parte, do embasamento do autoerotismo que mantém suas aquisições
buscando "perseverar em seu ser” 6 .
Consequência: aquele investimento poderá dar lugar ao compromisso de um corpo (narcísico) em luta
com as pulsões de morte ameaçadoras. Poderia ser isso o que está na base das estruturas psicossomáticas.
Todo poderoso e vulnerável narcisismo: estado de um corpo bastião, refúgio onde se instala a vida, mas que,
não obstante, padece de uma carência de libido objetal que poderia consolidar sua fatura. O poderoso biombo
está consolidado e parece não ter falhas, todavia, se chega a fissurar-se, a estrutura psíquica se reduz a nada
mais do que uma fachada, uma imagem que deixa transparecer sua fragilidade.
Freud chega a uma conclusão radical: a necessidade de admitir que o único amor verdadeiro é o amor de
objeto. O amor de si por si mesmo, no narcisismo, não é mais do que o refúgio que certamente pode
assegurar ao Eu um socorro provisório, parcial e temporário. Contudo, é, justamente, apenas uma fachada. A
estrutura psíquica conhece o perigo da ilusão, e, no que lhe pese, a partir de outro ponto de vista, a ilusão lhe
é necessária para ajudar a sustentá-la em um nível de atividade suficiente e alimentar a autoestima. Eu
narcísico purificado, mas também muito vulnerável.
Narcisismo, colocada em jogo do amor de si em caso de ameaça mortal. Narcisismo, suporte da ilusão:
narcisismo que sustenta o ideal do Eu. Libido narcísica ou primária antiobjetal ou pré-objetal.
Palavras obrigatórias em cenas de amantes: "Você não me ama! Só ama a você mesm (a)”! Resposta:
"Você parece amar, mas somente para que te devolvam aquilo que você apenas empresta. Não ama, senão
para ser amado"! Alguns autores (Lacan) tem sustentado que o fundamento do amor somente poderia ser
narcisista. De modo que, deverás, não surpreende que invoquem a impossibilidade de ir mais além do ódio
(ódioenamoramento).

6Hoje se insistiria no papel do objeto nesta transformação. Ao nosso ver, um argumento destas características não
modifica em nada a construção freudiana.
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Se aprofundarmos a discussão em qualquer direção, se chega ao fundo quando se adverte que as
limitações narcisistas do amor de objeto são solidárias do ódio. Há apenas uma solução para quem não é
místico: intrincar (amor e ódio).
O narcisismo afasta a morte, desaloja, persiste, persegue a pulsão de morte saída nesta primeira forma de
ocupação (de investimento) do Eu, que quer a manutenção de Eros contra a força que queria sua volta atrás,
até a não vida. Quando esta batalha estiver terminada, a libido objetal sexual poderá desenvolver seu ciclo:
oral e, logo, genital. Aqui um "esquecimento" de Freud, que pula a fase anal, quando foi o primeiro a
ressaltar as estreitas relações entre o sadismo a partir do "Homem dos ratos". Talvez porque não conseguiu
ver que nele havia o elo perdido de ligação entre a libido narcísica e a libido objetal exteriorizada no
adestramento esfincteriano, que deve renunciar ao influxo ambivalente sobre o objeto7 . E tampouco nada
disse sobre a fase fálica.
O que importa, a despeito deste ponto cego, é o papel que Freud faz cumprir ao narcisismo: o de um
andaime de sustentação contra os assaltos da pulsão de morte e da qual já não se tratará na sequência,
levando em conta que pulsões de vida e pulsões de morte repartem o campo de batalha.
O que Freud destaca pela primeira vez é o estreito laço entre pulsão de vida (ou amor), conservação do Eu
e do objeto e, por último, os avatares dos investimentos objetais, que tem como pano de fundo a preocupação
em salvaguardar o objeto, através das peripécias que este experimenta ao longo do tempo.
Compreendemos, então, a derida posição freudiana que pareceu se interessar unicamente pela relação
objetal, quando, na verdade, o que está em vista, enquanto manifestação das pulsões de vida e de amor é a
salvaguarda do objeto a qualquer preço. E, afinal de contas, o que deve ser salvo a qualquer custo é o amor
de objeto, mediante a supremacia das pulsões de vida ou de amor. Vale ressaltar que: não há o mínimo
recurso à psicologia, as observações da relação mãe-bebê, aos enfoques evolutivos. Trata-se, realmente, de
metapsicologia, ou melhor, de uma nova metapsicologia. De tal modo, para distingui-la da de 1915,
proponho lhe dar o nome de “última metapsicologia”, por analogia a últma teoria das pulsões.
Como consequência, é a esse narcisismo, como escoramento, com efeito, que nós devemos prestar
atenção, evitando dois erros. O primeiro reside em negar sua exitência em benefício de uma relação de
objeto primária e imediata; o segundo, em lhe fazer desempenhar um papel que nos dispense de ver que
ultima teoria das pulsões perite agora desmontar os andaimes para observar as mudanças que podem ser
inferidas por meio das relações de objeto. Não é possivel crer, tampouco, que tudo está dito. Freud teve,
ainda, que retocar os grandes conceitos que permitem as visões de conjunto, mitológicas, que propõe, a fim
de integrá-las à teoria.
Quando Freud prossegue com sua elaboração, somente ficam cara a cara as pulsões de vida e de morte. O
narcisimo de agora que está mais fundido nas pulsões de vida desapareceu da cena. Freud dá vazão então a
um notável aprés coup teórico. Se bem que não apresenta nenhuma ideia nova, reinterpreta as que já vinham
anteriormente sutentado.
À fase oral associa a aniquilação do objeto. Esta destruição total não implica uma agressividade
particular. É a consequência do consumo do objeto, ponto de vista já defendido por Ferenczi antes que o
proprio Freud o adotasse. A separação que segue me parece uma consequência da distinção progressiva entre
libido narcísica e libido objetal, como nos mostra a analidade. Freud não faz alusão a ela. Não se pode senão

7 "A analidade primária"; Green, (2002).


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pensar na analidade com o surgimento dos conflitos entre expulsão e retenção, a aparição clinicamente
verificável das relações entre a agressividade da sexualidade infantil (estágio sádico-anal) e a disposição das
fezes, no lugar em que a mãe se encontra durante o adestramento esfincteriano. Ainda: o objeto anal
entesourado quando é interno e objeto de repulsa quando se logra espulsá-lo. Como pode Freud esquecê-lo,
assim como o estágio fálico com seu componete agressivo dominante?
Logo chega o estágio genital, que incumbe diretamente o objeto. Nele, a agressividade detecta-se por
meio do desejo de imperar sobre o objeto sexual, um impeto muitas vezes mais simbólico que real, a fim de
dar testemunho da supremacia do varão. Freud, então, se lança a prolongar sua especulação anterior. A
direção tomada pelas pulsões de vida, nada mais faz do que seguir a indicação do narcisismo, que expulsou
do Eu as pulsões destrutivas. Na sequência, são a busca e o investimento do objeto os que mostram o
caminho para a libido objetal. O Eu já não é o centro prioritário de interesse para por em xeque a morte. É o
objeto que ocupa este lugar, mesmo que tomado de ambivalência. Observação capital: o amor de objeto se
converte no objetivo mais fundamental. Uma vez garantida à sobrevivência do Eu, e estabelecidos seus
fundamentos, o amor de objeto é o objetivo das pulsões de vida, provavelmente porque o alvo da libido, a
fusão com outro objeto, é o que melhor expressa à vocação das pulsões de vida. E, também, sem dúvida,
porque as aniquilações objetais e o intercambio entre o Eu e o objeto dão um sentido de evolução libidinal.
As pulsões de vida já não dependem somente da meta pulsional: se encontram sob a dependência de uma
relação com o outro como outro e como complemento do objeto. Subsistem, contudo, a duas forças
enfrentadas, em virtude da manutenção da ambivalência. Freud jamais postulou um mais além desta, ou,
melhor dizendo, um mais além das pulsões de vida e de morte, tanto pior para os idealistas.

1.4. A falsa simetria do sadomasoquismo

S.M.: estas duas iniciais converteram-se na sigla que hoje denomina o sadomasoquismo. Seria necessário
retornar muito na obra de Freud para encontrar os rastros deste acoplamento de um contrastado par. A
associação existe desde os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade:
“Sadismo e masoquismo ocupam uma posição especial entre as perversões, já que a oposição entre
atividade e passividade, na qual se baseiam, é uma das características gerais da vida sexual" (Freud, 1905, p.
53).
Todavia, na edição de 1924, Freud agrega uma nota que põe fim a esta falsa simetria, ao esclarecer que
concebe agora a existencia de um masoquismo primário erógeno: “O sadismo não utilizado na vida se
reverte contra a própria pessoa e faz nascer um masoquismo secundário, que vem juntar-se ao primário”.
Vê-se, então, que o par de opostos sadismo-masoquismo já não são concebíveis sob essa forma. Antes
deste acréscimo, os trabalhos de metapsicologia de 1915 retomam o aclopamento de 1905. A última teoria
das pulsões (1920) considera separadamente o sadismo originário e o masoquismo primário, o qual passa a
ter o direito a um tratamento especial em "O problema econômico do masoquismo" (Freud, 1924). Temos
mostrado que os ataques do sadismo original recaem sobre a primeira organização das pulsões de vida: o
narcisismo. O que sobrevive a estes ataques e não se desvia para o exterior sob a forma de agressividade

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permanece no Eu e constitui um resíduo mortífero, que vai ser, durante toda a vida, o suporte das tendências
autodestrutivas do indivíduo. E Freud especifica:
“deste modo, o masoquismo nos aparece sob a luz de um grande perigo, o que não ocorre em absoluto
com sua contraparte, o sadismo.” (Freud, 1924).
Em outras palavras, o sadismo mata ao outro, mas o masoquismo mata o sujeito. Por isso reinteira-se a
afirmação de que o pricípio do prazer é o guardião de nossa vida, e não somente de nosso psiquismo. Freud
termina com uma idéia antiga que identificava o desprazer com um estado de tensão e o prazer com a
distensão. De agora em diante, o qualitativo retoma seus direitos: há tensões praseirosas e distensões
desprazeirosas. Freud define então a função dos três princípios: nirvana: associado à morte; prazer à
reivindicação da libido, e realidade, ao mundo exterior. “na verdade, nenhum destes três princípios é
destituído pelos outros”. Deixemos de um lado o desenvolvimento no qual Freud expõe os exemplos do
masoquismo pressumivelmente femino, e tampouco nos ocuparemos dos detalhes das formas do
masoquismo originário, feminino, moral. Em “O problema economico do masoquismo”, Freud repete e
precisa seu pensamento:

“Depois que sua parte principal foi transposta para fora, para os objetos, permanece em seu interior, como
seu resíduo, o masoquismo propriamente erógeno que, por um lado, tornou-se componente da libido, e, por
outro lado, ainda tem seu próprio ser como objeto. Este masoquismo, então, seria testemunha e um vestígio
daquela fase de formação que sucedeu o amalgama tão importante para vida, de Eros e do Instinto de
morte” (Freud, 1924).

E agrega que o sadismo projetado para o exterior “pode (...) ser introjetado novamente, regressando para
dentro e voltando a sua situação anterior” dá então a esste movimento o nome de “masoquismo secundário,
que vem somar-se ao original”.
Advertir-se-á a diferença entre a versão de 1920 de Além do princípio do prazer e a de 1924. Em 1920, o
acento estava posto no sadismo originário, efeito da pulsão destrutiva – a primeira pulsão – que procura
destruir os lineamentos de Eros estabelecido sobre o corpo próprio. O resíduo da pulsão de morte que não
pode ser evacuado para o exterior constitui o potencial de autodestruição que ameaça ao indivíduo. Em 1924
se leva prioritariamente em conta o masoquismo originário. É certo que Freud recorda que o sadismo
originário é identico ao masoquismo, mas aqui se preocupa, antes de tudo, pelo masoquismo original
primário, que em um tempo ulterior poderá dar origem a um masoquismo secundário reintrojetado no
interior. Podemos escrever o seguinte:

Sadismo originário = masoquismo originário (primário); - expulsão ao exterior – resíduo mortífero –


projeção reintrojetada – masoquismo secundário.

Como se vê, os destinos do sadismo e do masoquismo são diferentes, a simetria do original que se rompe,
pelos efeitos do masoquismo primário constitui uma poderosa ameaça para a sobrevivência do indivíduo, e
não somente para sua vida psiquica. Todavia, conclui Freud “nem a autodestruição da pessoa pode produzir-
se sem satisfação libidinal” (ibid). A autodetruição está encadeada a Eros, do qual não poderia se libertar.

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Levanta-se aqui a difícil questão da renúncia pulsional, que Freud abordará em detalhe no Mal-estar na
civilização. O original (sadismo ou masoquismo) é o efeito das pulsoes de destruição ou de morte. Tanto uma
quanto a outra tem em Eros um inimigo comum, com o qual irão se aliar, chegado o momento, no futuro.

1.5 – Refundações, avanços, transações.

O que faz Freud depois de Além do princípio do prazer? Em primeiro lugar, muda de vértice. Faz-nos
submergir nos subsolos da organização biológica, para desembarcar em um mito psicanalítico. Agora, ao não
poder ainda realizar o seu programa, muda de rumo. A mudança se concentrará em Psicologia das massas e
análise do Eu, no qual, Surpresa! Em momento algum alude à pulsão de morte, apesar de que seu
pensamento antecipatório descreve, sem o saber, a asceção e a estrutura do nazismo. É já se esboça a
inquietude de ocupar-se dos fenomenos grupais e do pensamento coletivo, e também, do papel do outro na
vida psíquica. Mais um tempo de respiro e, heis aqui, finalmente O Eu e o Isso, como refundação dos
teoremas e exposição da nova metapsicologia. Não nos demoraremos nisto: bastará-nos apenas assinalar suas
inovações.
I. No fundamento do psiquismo, o Isso, passando pelas seguintes etapas:
1) Recusa do inconsciente, substituição pelo Isso. Ou seja, superação da concepção do
inconsciente como sistema, em favor do Isso. No Isso, nenhuma menção do conceito de
representação, nem sequer inconsciente.
2) O elemento fundamental do psiquismo é a monção pulsional.
3) O dualismo pulsional se reparte em pulsões de vida ou de amor e pulsões de morte ou
destruição, e gera tensão ou descarga.
II. O Eu
Na sequência, a maior parte das defesas que nele surge são inconscientes. Sua expressão
principal: a identificação. Também dele dependem o sistema perceptivo e o desencadeamento da
angústia.
III. O Supereu
Recém-chegado ao sistema, produto de uma cisão dentro do Eu, dividido entre supereu e ideal do
eu. O Supereu se constitui através da identificação com o Supereu dos pais. Instaura-se um novo
mecanismo, ligado à virtualidade. Não relação de objeto, mas relação com o objeto (ausente) do
objeto. O Supereu finca suas raizes no Isso e é modificável pela regressão. Como o Isso, pode ser
composto de uma parte destrutiva e uma parte amorosa, em conflito uma com a outra.

Esta introdução do Supereu é revolucionária. Assina o impacto dos processos culturais sobre o aparato
psíquico, efeito dos processos edípicos e grupais, para além da confituosidade individual. O Supereu
condena os desejos proibidos, principalmente os incestuosos (de amor) ou parricidas (de morte). Como se
tratam de desejos inconscientes, aquele engedra sentimento de culpa, ou melhor, “necessidade de

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autopunição”. A intrincação da pulsão de morte e a função sexual (parte das pulsões de vida) da origem ao
masoquismo originário, que se decompoe em várias formas (erógeno, feminino, moral).
Uma modificação importante: o primeiro é agora o masoquismo, enquanto expressão central da
pulsão de morte; a agressão não é mais do que a parte projetada para fora (conforme o modelo da libido
narcísica que expulsa o sadismo originário). Daqui em diante, a pulsão de morte se refugia no coração do Eu
e não é possível combatê-la diretamente. Somente suas formas intrincadas poderão ser objeto de uma análise,
que nas circunstâncias afortunadas conduzirá a sua dissolução ou a sua integração ao Eu. A prova do êxito
relativo desta operação é a existencia da reação terapeutica negativa. A meu ver, este é o argumento decisivo
que haveria de inclinar a opinião de Freud em favor da certeza no que concerne a pulsão de morte.
Argumento não somente clínico, mas metapsicológico. É possível sustentar que "Análise terminável e
Análise interminável" lhe está consagrado em sua totalidade. Agreguemos, não obstante, que os argumentos
de Freud são menos decisivos do que ele os crê, porque outras técnicas, às margens da sua, podem chegar às
vezes a resultados melhores. Contudo, nada de otimismo ilusório: o problema levantado por Freud não é um
artifício, e ainda hoje se mantém intacto.
A comunidade analítica recebeu melhor O Eu e o Isso do que Além do princípio do prazer, ainda que
não sem reservas: “Sim, mas sem a pulsão de morte”, verdadeira sabotadora da confiaça no si mesmo do
analista. Os analistas derramam lágrimas de nostalgia pela época em que dispunham de uma primeira tópica
bem cômoda: nada poderia substituir a tríade inconsciente, preconsciente, consciente. E, no mais, se o Eu é
inconsciente de suas próprias resistências; a quem cabe fiar-se? O supereu é muito útil, sem dúvida, porém,
no mais das vezes, ele será concebido como efeito da relação com os pais. De maneira geral, a comunidade
de analistas parece pensar: “Um esforço a mais e seremos analistas de tudo, quando nos desfizermos destes
ressabiamentos de metafísica”! Pobres improvisadores de uma realidade simplificada e ingênua! Freud peleja
e prossegue. Seu programa deve ser consumado. Volta ao complexo de Édipo por fim teorizado – o que não
se podia fazer antes de Totem e tabú – aprofunda seus fundamentos, reflete sobre seu destino, e até sobre o
seu declínio. Certamente, abordou a relação da teoria com alguns problemas clínicos, como a consciência de
culpa, agora compreensível graças ao Supereu E então, em 1924, com “O problem econômico do
masoquismo”, chega ao termino de uma reflexão iniciada em 1895. Logo Sabina Spielrein e Barbara Low,
classificam, na sequência, os princípios do fundamento psíquico em conformidade com três eixos:

1) O princípio do nirvana de Low, aspiração ao nível zero da excitação libidinal (nirvana); deve
colocar-se em relação com a pulsão de morte sem ser acessível à investigação psíquica do
indivíduo. Associa-se ao velho princípio da inércia de 1895, e a hipótese da pulsão de morte de
Além do princípio do prazer.
2) A modificação dos precedentes nos seres vivos e sua substituição pelo princípio do prazer, que
recorda o velho princípio de constância, acessível à investigação analítica.
3) Uma nova modificação do precedente nos seres vivos mais complexos, sob a influência da
realidade. O princípio da realidade, salvaguarda do princípio do prazer. Causa de frustração, mas
condição de vida psíquica viável.

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Esta nova relação explica que, como seres humanos, tenhamos que tratá-las com o par princípio do
prazer – princípio da realidade. Contudo, as sequelas da pulsão de morte obrigam Freud a considerar o papel
silencioso e infinitamente perigoso desta, que a seu ver, jamais pode comprovar-se de maneira direta em
estado puro. A relação fundamental das duas pulsões, de vida e de morte, é sua presença em estado de
intrincação, ou como resultado de uma desintrincação, ou seja, fusionadas ou desfusionadas. Podem então
resultarem inteligíveis três aspectos qualificados de exemplares por Freud: a consciência de culpa, o
masoquismo e a reação terapêutica negativa.
Agora entendemos a vantagem do recurso ao mito. Por um lado graças à perspectiva que lhe permitiu
tomar e às especulações que logrou articular, abriu um caminho até a clínica. O mito lhe proporcionou uma
primeira visão que parte da biologia e, mediante o desenvolvimento de seus próprios meios, (psíquicos),
chega à evolução individual, desde logo sobre a base do complexo de Édipo, que não é redutível a um
enfoque evolutivo individual. Totem e tabú nos indica um caminho antropológico.
Freud acreditava ter concretizado seu programa de 1920. Não há dúvidas, porém 1921 se perfilam no
horizonte: Psicologia das massas e análise do Eu exige uma exploração de outra ordem. As pulsões de vida
e de morte seguiram tendo seu papel, porém em um nível diferente, antropológico. Voltará a buscar o mito
para explorar esse campo.
O retorno ao mito é, portanto, o retorno a um estado originário do pensamento que pode seguir dois
caminhos: o biológico, que tenderá a sexualidade infantil como ponto finall, o antropológico, que conduzirá
a teorização dos grupos e da cultura. Restará então refletir sobre isso no O mal-estar na civilização e, por
fim, última palavra da obra, em Moisés e o monoteísmo. Aqui terá que se valer da clínica, contudo sem ficar
subjulgado a ela, tendo a coragem para prosseguir a especulação até abrir novos campos de saber. É
indubitável que sem a criação do Supereu nada teria sido possível. Porém, será ainda necessário levar a
teoria que o involucra até a aventura da pulsão de morte.
O valor clínico das questões que Freud levanta a partir de 1920, e sua relação com os trabalhos de
metapsicologia de 1915, são questões agora resolvidas, mesmo quando se intensificam as disputas nos meios
psicanalíticos sobre a validez das explicações do fundador da teoria psicanalítica. Nos sobra recordar as
revisões que Freud fez de dois de seus postulados. O primeiro vincula o desprazer a um excesso de tensões
que não podem nem ser descarregadas nem reprimidas. Não obstante, agora (em 1924) Freud reconhece que
há tensões prazeirosas e distensões desprazeirosas. Daqui em diante, a qualidade levanta um problema
independentemente de sua relação com a quantidade. O segundo dos postulados é a descoberta da cisão em
seu artigo de 1927 dedicado ao fetichismo, com a ênfase no processo de recusa que cinde o Eu da criança
quando esta se nega a escolher a favor do fantasma ou da realidade, isto é, quando adota uma solução que
contribui para desintegrá-lo. Freud admite a coexistência destas duas respostas contraditórias, sim e não ao
mesmo tempo, que abrem uma brexa decisiva na unidade do Eu, e cuja intervenção nas estruturas não
neuróticas, principalmente perversas e psicóticas é patente.
Pode dizer-se que em 1927 o programa de 1920 fecha o círculo, no que pese Freud não se deter ali.
Recorda-se que a referência à ação das pulsões não pode conformar-se com um enfoque estritamente
individual ou familiar (edípico). A partir de 1929 se abrirá um novo campo de investigação, que em 1930 terá
como resultado seu maior trabalho: O mal-estar na civilização.

!29
Freud transfere seu campo de investigação para a sociedade e, na sequência, vê nesta o âmbito de
eleição da pulsão de morte. Com efeito: a cultura só pode fundar-se com a renúncia pulsional. O sacrifício
consentido por este abandono, longe de satisfazer-se com a produção de efeitos compensatórios de ordem
narcísica, cria como resposta uma reação de protesto contra esta renúncia. O campo da cultura se converte no
espaço para onde se deslocam os efeitos mais destrutivos da pulsão de morte. Laurence Kahn (2005) atribuiu
a essa evolução toda a sua importância, e não é uma casualidade, sem dúvida, que faz parte dos poucos
autores que compreendem a necessidade do conceito de pulsão de morte. Natalie Zaltzman e Jean-Luc
Donnet também discutiram algumas consequências desta “transferência” de Freud. (Donnet e Zalzman,
2003).
A obra de Freud se encerra, portanto, com o parricídio de Moisés, porém, coisa rara, Freud nos entrega
aqui uma última mensagem na qual se conjuga o que se pode relacionar com os efeitos da pulsão de morte
nos planos individual e coletivo, contudo, não diz uma única palavra a respeito. Silencia este conceito. Não
creio que tenha vacilado em colocar em jogo esta hipótese. Mas parece, em verdade, que estava bastante
preocupado com o futuro da teoria psicanalítica, ao ponto de refrear-se a dizer o que pensava sobre esta.
Aceitava correr riscos frente ao público, mas temia um possível repúdio dos seus.·.

1.6 Conclusão: a transcendência em Freud

Freud, autor antifilosófico, mas filósofo contra a sua vontade, levanta a existência de uma polaridade
transcendental em sua obra. Sem dúvida alguma não quis reconhecer-se nela. Não expressou de maneira
suficientemente clara seu pensamento acerca da Weltanschauung em 1933? A ciência, somente a ciência. No
artigo que escreveu como prefácio à Enciclopédia Universal, René Thom, mais cientista que Freud, mas
também mais rigoroso enquanto crítico da ciência, adotou este título sugestivo: “La science , malgré tout” [A
ciência, a pesar de tudo].
A Freud custou tolerar que o incluíssem em marcos de pensamento a priori concebidos para excluí-lo,
contudo, ele mesmo, ao mesmo tempo em que rechaça outros recursos, com frequência se comporta de modo
anticientífico; por exemplo, quando nega as limitações que lhe impõe a teoria de Darwin contra a de
Lamarck. Argumentação aparentemente variável: “Sou psicanalista, não sábio”. Em outras palavras: “Não é
grave, mais para frente irão concordar comigo”. Se levantarmos a hipótese de uma transcendência em Freud,
não o fazemos para dar respostas que busquem forçar uma porta que deveria permanecer fechada: “não, não
há transcendência na obra de Freud”. Ao que responderemos: “Sim, não há uma, senão duas transcendências,
que governam esta obra única”. Portanto, dois pilares, mais além da terapia freudiana. A primeira,
fundamental para ela, é o resultado de nossa condição de humanos vivos. Esta transcendência tem sua
origem, por conseguinte, no nível biológico, ou melhor, mais metabiológico que biológico. Afirma a
vinculação da psicanálise com as ciências da natureza. Exige uma reflexão sobre a vida, em suas formas
mais humildes que se transmitem ao humano. Freud aqui está mais perto de Darwin. O humano não supera o
vivo, que segue sendo parte pregnante nele.

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O segundo pilar, tão fundamental quanto o anterior, ainda que descoberto mais tardiamente, é
antropológico. Orienta-lhe a ideia de que o vivo humano é tão humano quanto vivo. Não por isso deixa de
depender do que pertence propriamente ao homem, em favor daquilo que o une a vida. A antropologia se
define trabalhosamente, mas abre o capítulo de uma especificidade. Na visão antropológica, a relação de um
humano com outros é tão fundamental quanto o que vincula o humano à vida, pois, se não se leva em
consideração este ponto de vista, o humano vivo deixa de ser um humano. O Umwelt8 do homem (Von
Weizsächer) não pode se conformar em dizer que o entorno do homem está constituído por seu mundo. Esse
Umwelt é acima de tudo um Umwelt humano, e mesmo o mundo da physis é também um mundo psicológico,
que é a aquisição do que faz o vivo humano. Isso é o que existe no seio da relação analítica mais profunda;
mas tenhamos cuidado: o humano é único em sua humanidade, mas também é duplo – masculino e feminino
-, sem ser de todo dissociado de suas relações com o animal.
Biologia e antropologia não podem supor a mera relação com a vida. Devem incluir assim mesmo – ao
se relacionar com o vivo mortal e humano –, o que é imortalizado pela cultura. Isso é o que nos ensina a
reflexão freudiana a respeito da pulsão de morte, que acabou colonizando o mundo cultural.

Nota sobre Empédocles de Agrigento

Ao final de sua obra, e para sustentar suas posições, Freud se refere a Empédocles, sobretudo em
“Análise terminàvel e interminável” (1937). Empédocles, porém, já que ele existe – e inclusive não há mais
que ele – é uma referência com a qual alguém se honra ao citá-la? Nada pode ser mais incerto, porque suscita
opiniões muito controversas, como se verá.
Neto de um campeão olímpico igualmente chamado de Empédocles; homem de estado, democrata
ainda que de origem aristocrática, e que havia recusa a realeza que lhe fora oferecida; médico e curandeiro de
polêmica reputação e partidário de um pluralismo (que tem como base os quatro elementos: o fogo, a água, o
vento da terra) e de teorias naturalistas. Como Freud, se interessava pela sensação e pela teoria do
conhecimento, desejoso de reduzir os fenômenos físicos e psíquicos dos seres humanos, dos animais e dos
vegetais, a processos naturais universais. Assim é este filósofo arcaico, sobre o qual alguns questionam que
mereça esta qualificação (Kojève). Não poderíamos nos fiar por completo nele, sem exercer sua crítica.
Alguns o vinculam aos pitagóricos. Temos mais fragmentos dele do que de qualquer dos filósofos socráticos
ou pré-socráticos. Empédocles expressa seu pensamento em versos e supõe-se que tenha sido um dos
fundadores da retórica. Sua filosofia se ocupa de temas diversos. A respeito, não se dispensará de dizer
alguns absurdos, como sugerir, segundo Varrón, que os homens surgiram na terra como os espinafres
(autóctones), ou que nascem homens ou mulheres de acordo com o calor – os homens são quentes – ou o frio
– as mulheres são frias -. Também se tinha em alta conta e se considerava um deus. Aristóteles, que o citou
abundantemente, qualificava seus pensamentos de “balbucios”.
Para Freud, todavia, seguirá sendo o teórico que vem em auxílio de sua última teoria das pulsões.

8 ambiente
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“Ora por amor conformam juntos
Uma única disposição, ora cada um deles
“Separado pelo Ódio inimigo está”

Empédocles teve, assim mesmo, a intuição daquilo que Freud afirmaria como intrincação e
desintrincação das pulsões. Amor e ódio são princípios, não causas.

“Sob o domínio do Ódio todas as coisas


Estão separadas e diferentes de forma,
Porém sob o efeito do Amor o todo do qual concorrem
Animadas pelo desejo compartilhado de estar juntas.”.

Estes versos foram extraídos dos comentários de Simplício à física de Aristóteles. Logo, Burnet (1892)
sintetiza: “A função do Amor é produzir a união, a do ódio é rompê-la”. O Amor somente está em condições
de exercer seu efeito quando o Ódio divide a esfera. Consequentemente, tal como na teoria freudiana o amor
sobrevive ao ódio.
Aristóteles sustentava que o mundo está agora em um período de Ódio. Eu não saberia dizer que
conhecimento direto, ou através do testemunho dos autores gregos, Freud tinha da filosofia pré-socrática.
Como ele mesmo assinalou, entrou em contacto com estas ideias através de Theodor Gomperz. E referindo-
se a Empédocles, este último escreveu (Gomperz, 1896): “O mérito de sua doutrina foi incalculável”.
Todavia, Burnet não evitava tratá-lo como charlatão. Enquanto Kojève considera que o parêntese
antitético que aspira o reconciliar com Parmenides (de quem Empédocles foi aluno) e Heráclito – a esfera e o
rio – é uma monstruosidade. De fato, a dominante heracliteana é perceptível. Kojève (1968) fundamenta sua
análise na ideia de ciclo, questionado por Bollack (1965-1969).
As contradições não faltam em Empédocles. Pluralista (os quatro elementos), francamente não fazia
distinção entre mundo inanimado e orgânico, nem tampouco separava natureza e alma (Dumont et al, 1988).
Dota de natureza divina os quatro elementos. A alma é um daimon empurrado para fora de sua morada
natural. É portadora de uma culpa original pelo sangue que derramou e o perjúrio que cometeu. Expulsa de
seu local de origem, lhe está vedada voltar a ele. Em todo caso, não poderá fazê-lo antes de transcorridos dez
mil anos. Dali a obra sobre as purificações. A ideia de uma alma que se separa do corpo foi atribuída a Alfred
Von Kremer, a quem, ao longo de exaustivas investigações sobre o pensamento oriental, sustentou que o
vapor nascia do sangue quente recentemente derramado e que se elevava ao céu, que é a origem da ideia de
alma como sopro (“pneuma”). O coração é a sede da alma. Diferentemente de Lucrécio, Empédocles
compartilha, pois, a ideia de uma alma imortal. A contradição situa-se entre a concepção materialista (visão
científica) e a concepção religiosa (impregnado pelo orfismo). Esta referência sem dúvida seduziu Freud, que
se reencontrou com Empédocles como pensador do movimento. Sentiu-se próximo a Pitágoras, Parmenides e
Anaxágoras, defendeu as ideias do pensador jônico.
Empédocles terminou seus dias no exílio, longe de Agriento. A versão de sua morte por suicídio – teria
se jogado na cratera do Etna, e uma de suas sandálias havia sido encontrada em um dos poços do vulcão –
parece verdadeiramente fabulosa, tal como a vida deste precursor de Freud.

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2 – A onda de choque da pulsão de morte: Ferenczi, Melanie Klein, Bion, Winnicott, Lacan... E
certas estruturas clínicas.

2.1 Ferenczi e a análise mútua

A posteridade freudiana se divide em várias correntes que adotam diferentes posições acerca da pulsão
de morte. Existem aqueles - mais numerosos - que não acreditam nela e buscam conceitos substitutos que são
como trajes mal cortados. Ferenczi inaugura uma nova clínica sem se pronunciar sobre isso. Também
existem os que aspiram continuar a obra de Freud, orientando-a pela busca das fixações nos primeiros
estágios de desenvolvimento: Melanie Klein. Da ali em diante, a preocupação essencial é se definir na
relação com esta analista. Alguns - Bion, por exemplo - ampliam e definem com maior rigor as ideias de
Klein. Seguem aderindo à hipótese da pulsão de morte ou de destruição. Outros, ao mesmo tempo em que
reconhecem a importância do aporte kleiniano, diferenciam-se dela: Winnicott. Existem, ainda assim, os que
são efetivamente partidários de uma teoria das pulsões, mas substituem a pulsão de morte pela agressividade.
Esta é a posição da psicanálise norte-americana, encabeçada por Heinz Hartmann. Finalmente, Jacques
Lacan traz ter durante muito tempo flertado com a morte - o Senhor Absoluto -, passando a omiti-la cada vez
mais na medida em que o movimento lacaniano passa a embarcar em uma luta definitiva contra seus
adversários. Para concluir, há uma última corrente que já não quer ouvir falar de pulsões, sejam de vida, ou
menos ainda, de morte. Não se pode dizer que os filhos honrem a Freud! Matemos a pulsão de morte e
viveremos em paz. Nos dias atuais, a moda concede seus favores a uma corrente relacionial: relação de
objeto (Fairbain e Klein), relacionismo (Greenberg e Mitchell), relacionismo pragmático (Renik). Freud já
não tem outro destino senão o enterro definitivo. Afortunadamente, não na França.
Já havíamos assinalado a "coincidência", em 1924, das impugnações da clínica e da técnica freudiana,
um ano depois de O Eu e o Isso: Otto Rank, cuja teoria que substituiu a de Freud, não perdurou, e, sobretudo
Sándor Ferenci, mais inclinado aos problemas técnicos, e que, como consequência de uma série de trabalhos
apresentados entre 1927 e 1933, angariou mais seguidores. Mais do que estes aportes, alguns dos quais
ganharam celebridade a justo título, o que nos diz o essencial é o Diário Clínico, de 1932.
Todo este período esteve marcado por relações difíceis ente Freud e Ferenczi. Por mais que este último
tivera lhe jurado fidelidade, Freud não deixava de sentir que seu colaborador e amigo se afastava dele. Hoje a
questão se coloca de outra forma. À luz da experiência analítica mais recente, teria razão Ferenczi ao
estremecer, por pior que fosse, o edifício freudiano? "Diante dos pequenos não", dizem os pais que brigam,
como se seus filhos já há muito tempo não houvessem adivinhado, ainda melhor que os próprios
interessados, que há divórcio no ar. O certo é que o entorno de Ferenczi desaconselha a publicação do Diário,
logo depois de sua morte, e preferem esperar até que o clima estivesse mais sereno. Mesmo que Ferenczi
tenha falecido em 1933, suas publicações acabaram chegando ao público em 1955. Em 1957, aparece o
terceiro volume da biografia de Freud escrita por Jones, no qual ataca Ferenczi. Em 1969 finalmente se
publica o Diário Clínico. Ferenczi é tratado tal qual um dissidente, como se houvesse unido forças a um
Jung, um Adler ou um Stekel. Estou convencido de que Freud se estivesse vivo, teria rechaçado estas

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manobras, por mais violenta que fosse a oposição entre seu biógrafo e seu “paladino". Ele sabia que podia ao
menos contar com a integridade de seu discípulo, se não com sua ortodoxia.
O diário de Ferenczi deixa escapar um som patético: o grito de um homem atormentado entre o desejo
de seguir sendo quem era, ao preço de um grande perigo, e da necessidade de alinhar-se com a opinião de
Freud, para não perder o seu amor.
Com Ferenczi inauguram-se:
A) Uma clínica psicanalítica centrada no Eu e que leva a uma técnica reparadora.
B) Um deslocamento do acento para a contratransferência.

É indubitável que Ferenczi não carece de lucidez no que se refere à Freud, lhe transborda uma
demanda de amor incondicional que o impede de renunciar à sua aprovação. Não é exagero afirma que a
pulsão de morte é o "não dito" do desacordo entre eles. Contudo, o que importa são as medidas técnicas para
lhe fazer frente. Ferenczi se demonstra disposto a reconhecer os efeitos mortíferos da pulsão de destruição
quando destaca a desaparição dos fenômenos somáticos de autoconservação:

“[O paciente] já quase não se preocupa com sua respiração e seu coração, nem pela conservação de
sua vida em geral (...) e inclusive considera com interesse a destruição e a mutilação, como se tivesse
desejado deixar de ser quem é e estes padecimetos se inflingiram a outro” (carta de 10 de janeiro,
Correspondência Freud Ferenczi, 1932).

A insensibilidade é um modo de vingança contra o sádico. Sobrevem então o que é descrito como
excorporação. Cisão e automização da vida psiquica se convertem em defesas psíquicas buscadas. Ferenczi
mostra que o paciente exporta seu masoquismo. O final da sessão destrói as conquistas que ela própria havia
permitido.
A posição de Ferenczi é ambivalente. Por um lado, reconhece como patológica a marca do que Freud
sustenta com a idéia de pulsão de morte, contudo, por outro lado, atribui sua responsabilidade aos pais. Freud
criticara sua crença excessiva na realidade descrita pelo analisando. A análise mútua contribui com esta
defesa pela realidade: “Foi o outro quem...” Ferenczi, por outro lado, admite o predominio do princípio do
prazer. Nesta oportunidade invoca o caso do masoquismo: o sofrimento como fonte de satisfação, o que não
exclui colocar em jogo as pulsões sádicas. De fato, a técnica ferencziana faz da análise um solo fértil e
conduz ao “terrorismo do sofrimento” (ibid, p.97).
Ferenczi persiste na sua atração pelos problemas da técnica, enquanto Freud preferia que se apartasse
deste caminho e aceitasse a presidência da Associação Internacional para resolver os problemas políticos do
momento. Contudo, por coincidência, com a ativação subterrânea de seu sentimento de culpa, a saúde de
Ferenczi se deteriora. Judith Dupont (1982) com justiça resume os três pontos de discussão: a hipótese sobre
o trauma, a resposta que lhe dá a análise mútua e, por último, “o processo” do esquadre, segundo a expressão
de Raymond Cahn (1983).
Na análise se produz um ponto de inflexão. O paciente sofre menos por suas fixações do que pelo
trauma que acaba ficando sem resposta e pela hipocrisia dos adultos, refletida a seguir na sociedade, e logo
no tratamento analítico. A causa da neurose não é mais a força da pulsão de destruição, mas nas

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consequencias do trauma que acarreta em uma retirada defensiva do paciente, o qual adota, frente ao
agressor, uma visão deformada. É essencial que o analista corrobore com este ponto de vista às vezes
caricaturesco para reconhecer a realidade subcente a ela, e ante a qual todo o mundo se silencia. Ferenczi não
faz menos alusão a sua experiencia como analisando de Freud que como analista de seus próprios pacientes.
Sempre se volta ao lugar preponderante da autocrítica. Freud veria nisso um efeito da consciência de
culpa, solução que não é aceita por Ferenczi. Em síntese, este último vê na origem do trauma a perpetuação
da hipocrisia parental de confusão de línguas. Em uma prefiguração de Winnicott, considera da maior
importância submetar o enquadre à crítica. Converte-se em advogado das causas desesperadas. Podemos nos
peguntar o que envolve esta técnica de retorno inconsciente ao passado. Ferenczi não volta a valorizar a
teoria do trauma, anterior a 1897? Maximiza o poder do trauma e advoga a favor de uma “histeria orgânica”
na qual se expressa o papel de um pensamento do corpo e de suas vicissitudes. Soma-se a isso uma
incapacidade fatal do pai analista para responder a isto; em outras palavras, uma carência inevitável do meio.
Uma transferência negativa ocasiona uma supercompensação que o analista interpreta como uma
transferência amorosa, espantado frente a esta reação, o analista aparta a libido de sua contratransferência, o
que o leva a demoradamente tomar consciencia desta contratransferência negativa e provoca um retorno
acentuado da supercompensação.
Adverte-se do dilema aqui presente: se supõe que uma atitude de superação da neutralidade evita esta
agitação. Teríamos que retornar até a cura dos primeiro tempos e abandonar a neutralidade, que demonstra
ser um obstáculo para mobilizar a organização da neurose. Assinalaremos, todavia, que a maior parte dos
casos expostos por Ferenczi são de mulheres e levantam o problema do componente histérico de sua
patologia, ainda que seja “histeria orgânica”. A análise mútua, solução a todas essas dificuldades – estima
Ferenczi – acabará por gerar mais efeitos positivos do que nocivos.
De que modo a ánalise mútua permite a análise da transferência? De modo surpreendente,
aparentemente a racionalização se apodera das construções teóricas do analista. Afinal, a quebra desta
técnica acaba com ela. De qualquer forma, é possível se perguntar se a revelação atual não constitui o
retorno ingênuo de uma experiência que já demonstrou seus limites. Ferenczi buscava uma solução para o
estancamento de sua própria análise com Freud, e não fará melhor que seu mestre. Será o proveito ler o
debate entre ambos para comprovar que acabou em um beco sem saída, quando entrou em jogo o atoleiro
analítico, expressão de uma transferência quase psicótica. Ferenczi estava muito perto de ter consciência
disso e compreende que acabou preso com Freud em uma armadilha semelhante. E se tivéssemos pura e
simplesmente frente a um caso de reação terapêutica negativa que acabou passando, de modo inadvertido,
para o objeto da transferência, ou seja, Freud? Assim indica a alusão deste a Ferenczi em “Análise
terminável e interminável”, escrito depois da morte do húngaro.
É uma maneira de reconhecer aqui o efeito da transferência com o risco de ignorar a resistência de
transferência. Nesta oportunidade se coloca em questão a compulsão à repetição. A resistência se vale dela
para blindar-se da oportunidade de elaborá-la:

“De que serve repetir o trauma ao pé da letra e com a mesma decepção frente ao mundo inteiro e toda
a humanidade?” (Ferenczi, 1932).

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Ferenczi reclama o direito de expressar sua decepção diante do paciente com a finalidade de buscar
uma transferência mais positiva. A análise mútua nos ensina que ela não diminue em nada o papel dos
fantasmas mais inconscientes. Ferenczi admite não ter jamais conseguido obter mediante esta técnica a
rememoração dos processos traumáticos almejados.
Atribui, também, uma razão ao desejo de morte de certas crianças, o que explica as posições
sacrificiais do analista na análise mútua. Desilusão: em 31 de março de 1932 escreve: “Ideia pouco
regojizante: o paciente conseguiu subtrair-se por completo à análise e, em seu lugar, toma a mim em
análise!”.
A "imersão" deve chegar até a situação intrauterina, a qual traduz a onipotência das mães, que não
podem deixar de absorver por identificação uma parte da vítima. Todo ódio é projeção que protege da dor, o
que recorda a identificação projetiva que somente mais tarde será definida por Melanie Klein. Neste sentido,
o aspecto pulsional da sexualidade infantil não é senão a inversão da violência passional dos adultos, que
conduz a confusão de línguas, artificialmente implantada nas crianças. Ferenczi chega a uma construção
muito inovadora do psiquismo infantil, que facilita o caminho para o pensamento de Winnicott.
Teria sido de nosso gosto ter-lhe perguntado uma das perguntas que levanta: “Quem está louco: nós ou
o paciente”? Colocarmos em dúvida a saúde dos adultos levará necessariamente a uma crítica de Freud. Na
opinião de Ferenczi, este, apesar de muitas decepções, segue apegado à análise no plano intelectual, mas não
no plano emocional, enquando mostra-se obediente a um Supereu que seria o do investigador das ciências
naturais. Em suma, Freud não ama verdadeiramente seus pacientes e não está disposto a lhes consentir os
sacrifícios que Ferenczi aceita. Este tem a coragem e associar suas dificuldades às sua própria experiência
infantil e ao papel culpabilizante de sua mãe.
De algum modo, Ferenczi leva ao absurdo a teoria psicanalítica. Dado que o analisa não poderia
analisar o que permanece não analisado nele, se vê na obrigação de se tornar o analisando do analisando,
como se o paciente fosse capaz de neutralidade, e pudesse renunciar de beneficia-se com a oportunidade que
de tal modo lhe é oferecida, de "sacrificar" o analista como na situação de passagem ao ato amoroso. Em
certos casos uma cisão divide um Eu, que observa com total insensibilidade, de um Eu afetivamente
implicado. A rememoração não podia ser outra coisa senão a manifestação das cicatrizes traumática – sempre
de origem externa – da psique que procura fazer frente à dupla matar ou ser morto. Ir ao fundo das coisas
significa nos colocarmos à disposição do paciente de maneira “apaixonadamente ativa”. Apaixonamento ao
modo da Paixão de Jesus Cristo. A análise mútua deve ser concluída com um perdão mutuo.
Porém, o que é isso? O que hoje nos interessa é que Ferenczi abriu um novo campo clínico e
descreveu formas transferenciais “nos limites do analisável”. Por isso a questão não termina com sua
desaparição física e segue até a análise dos dias atuais, com a teoria de Winnicott. Um problema persiste
intacto: os dos limites do analisável e as modificações técnicas sustentáveis que podem efetuar-se com as
estruturas não neuróticas. Esta situação não é estranha à preferência atual que alguns autores têm pelo face a
face psicanalítico. É significativo que, com Ferenczi, abra-se uma alternativa à teoria pulsional, na qual é
possível adivinhar, em germe, uma teoria relacional que não deixará de ampliar-se. A dimensão
intersubjetiva ganha o lugar da intrapsíquica. As mudanças desta última são sempre as consequências de
efeitos intersubjetivos. Porém, o que ocorre entre dois sujeitos? O fracasso de Ferenczi é a vingança da
dimensão intrapsíquica e confirmação de que o ponto de vista de Freud não está superado. É indubitável que

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teria de chegar a uma nova concepção da articulação entre ambos para dar ao tratamento alguma
oportunidade de êxito.

2.2 – Melanie Klein ou a destrutividade generalizada

Melanie Klein fez uma primeira análise com Ferenczi. Não de todo satisfeita com esta experiência,
voltou a tentá-la com Abraham, que lhe deu um melhor resultado. Não lhe foi difícil formular seu próprio
sistema de pensamento, porque havia formado convicções firmes. Todavia, em seus textos inicias, não cita
outro autor além de Freud, de quem manifestamente se considera herdeira legítima. Não é uma tarefa simples
apresentar a evolução do sistema kleiniano desde seu início até os dias atuais. Elisabeth Bott Spillus (1988)
poderá guiar o leitor interessado nesta trajetória.
De nossa parte, nos limitaremos a abordar os pontos que concernem à pulsão de morte. Klein, com
efeito, distingue-se dos outros psicanalistas por sua adesão sem reservas a este conceito. Se em algum
momento chega a questionar Freud, isto não se deve, na verdade, ao uso excessivo que faz da última teoria
das pulsões. Seria mais por haver limitado muito os pontos de vista pra os quais ela concebe uma aplicação
muito extensa.
Seu âmbito de escolha é a psicanálise de crianças e dos adultos com regressões graves: Digamos desde
já: a teoria, por mais apaixonante que seja, lhe interessa menos que a técnica e a clínica com crianças, que
nesta época ainda estavam, em grande medida, por serem construídas e levantavam problemas atinentes à
adaptação da técnica utilizada com adultos. Sua atenção se centrava na importância da interpretação precoce
da transferência negativa. Na opinião de Klein, esta última não difere em absoluto da do adulto, que é
preciso interpretar com profundidade. A via de expressão dessa transferência é um temor francamente
perceptível.
Melanie Klein ainda irá levar algum tempo para elaborar a teoria, que irá expor na sequência no
momento propício e de modo repetitivo. A teoria Kleiniana – em sua ambição de marcar uma continuidade
com o último Freud – se apoia, em termos bastante gerais, no predomínio das pulsões destrutivas sobre as
pulsões eróticas. A busca do prazer é somente secundária e defensiva em relação à inquietude de neutralizar
ou efeitos destas pulsões de destruição.
As primeiras elaborações teóricas estruturadas datam de 1928, no artigo dedicado aos “primeiros
estágios do conflito edípico e a formação do Supereu” (Klein, 1932, p.137). Para ela, o conflito edípico nasce
mais ou menos no primeiro ano de vida e se estende até o terceiro ano. Klein segue Abraham: prazer de
mamar na origem, seguido do prazer de morder (segundo subestágio oral). Às vezes, inibição derivada de um
sadismo oral anormalmente elevado. De qualquer forma, uma libido particularmente forte pode anteceder
uma frustração e ser afetada, consequentemente, por uma inibição. O nocivo é, portanto, a aparição
prematura do sadismo. No juízo de Klein, o desenvolvimento do Eu se adianta ao desenvolvimento da libido.
A frustração resultante se acompanha de uma angústia que é consequência dos “stimuli que se acumulam
sem descarga possível”, afirmação que se reitera de Freud a Bion. Os temores da criança convergem no
objeto externo, posição desempenhada pelo desenvolvimento, com a realidade que reconhecerá a “mãe boa”

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e substituirá a destruição do objeto por sua conservação. Como em Freud, o instinto de morte se desvia para
o exterior, contudo, ao mesmo tempo, constituem perigos internos ao lado dos vindos de fora. O sadismo oral
alcança seu apogeu durante e depois do desmame. Dirigido contra o peito da mãe, estende-se ao interior de
todo o seu corpo.
Não obstante, esse sadismo oral se prolonga com o sadismo uretral. A criança, inundada, afogada,
queimada e envenenada expulsa grande quantidades de urina contra a mãe, vingando-se, assim, da frustração
que ela lhe havia infligido (enurese, jogos contra o pênis). O pênis é investido de atividades cruéis, o que se
repete na função sexual e a inibe. Os desejos sádico-orais se associam aos desejos sádico anais.

“A meta primitiva consiste em devorar e destruir o seio materno” (Klein, 1932, p.143).

Como se advertirá, a fase fálica é essencialmente sádica. Melanie Klein reivindica-se, aqui, sucessora
de Abraham.

“Eu sei por experiência o quanto é difícil lograr que se admita a correspondência que estas ideias
escandalosas têm com a realidade, contudo, a análise de crianças muito pequenas não nos permite duvidar
delas, porque nos oferecem com precisão e evidência a imagem de crueldades imaginárias que acompanham
a estes desejos em toda a sua abundância, sua força e multiplicidade” (ibid., p.144)

É, sem dúvida, a “verdadeira” filha de Freud a que dá relevo às suas posições. Recordaremos a data:
1928, ano dos artigos do último período de Ferenczi, em especial “A criança no adulto”.
Então, ao invocar Abraham, Klein sustenta que o prazer que o lactante obtém com estas satisfações
sádicas não se deve somente a libido: está ligado a um violento apetite de destruição, “que visa prejudicar e
aniquilar o objeto”. Supõem-se que isto se produza entre os seis e os doze meses. Esta situação conduz a uma
intensificação de um sadismo em face da frustração vinculada a impossibilidade de satisfazer as
necessidades libidinais. Os ataques se estendem aos pênis do pai (no plural, porque dispõe de muitos)
incorporados pela mãe. O pênis converte-se no mais temível agente destruidor, e tem, segundo Klein, um
papel muito importante na etiologia dos transtornos mentais, contudo – assinalaremos – somente sob a forma
de pênis-incorporado-ao-ventre da mãe e constituindo, com esta, o fantasma do progenitor combinado.
No que concerne à cena primeva, nela o sadismo é temido pelos desejos de morte que engedra, os
quais dão lugar a uma destruição mútua exacerbada, signo dos maus-tratos trocados entre os dois parceiros:
pênis convertido em animal perigoso ou carregado de armas explosivas, vagina imaginada em paralelo como
ratoeira envenenada.
Constitui-se um Édipo: “em minha opinião, o conflito edípico inicia-se no menino uma vez que este
sente ódio pelo pai e deseja se unir a mãe, de maneira geral, para destruir o pênis presente dentro do corpo
materno”. Segundo Klein, as pulsões genitais aparecem ao mesmo tempo em que as pregenitais. Em
consequência, não sucedem a estas últimas. Ao cabo de certo tempo, a destrutividade gera uma culpa
reparadora, dado que o que se desenvolveu antes é uma guerra sem piedade, acompanhada de fantasmas
vingadores por parte dos pais.

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A culpa pelos fantasmas masturbatórios genitais deriva dos fantasmas sádicos dirigidos contra os pais,
é não de seu conteúdo incestuoso (ibid., 148-9). Klein aqui se apoia em uma citação de Freud acerca da
precedência do ódio sobre o amor, assim como em outras, que abordam a liquidação do complexo de Édipo,
tirados de Inibição, Sintoma e Angústia e, por último, de O Eu e o Isso. Não há qualquer dúvida de que leu
bem Freud, porém – ela mesma o diz – prefere um processo mais simples e mais direto (ibid., p.150). Em
outras palavras, o Supereu se instaura precocemente contra as pulsões destrutivas, o que é tanto mais
inevitável, quanto que essas pulsões se desviam para o exterior, ou seja, até o objeto, e não podem provocar
como reação, mais que hostilidade, por um mecanismo de origem filogenética.

“não há nenhum período da vida em que a oposição entre o Eu e o Supereu seja tão acentuada como
durante a primeira infância” (ibid., p.153).

Freud se levanta contra esta opinião. De fato, Melanie Klein – em contraste com ele – se apoia
exclusivamente em processos endopsíquicos. As relações do Eu com os objetos se reproduzirão nas relações
ulteriores entre Supereu e Eu, tal como Freud já havia sustentado em “Luto e melancolia” de 1915.
A interpretação de Klein não estaria influenciada pelos seus modelos de referência: a projeção
paranóica, a esquizofrenia, a hipocondria, a catatonia? Recordemos o laço privilegiado destas com o
narcisismo. No que se atem a analidade, a interpretação do papel desempenhado pelos excrementos como
projeções dotadas de imensas capacidades de destruição “se traduz” de modo caricaturesco. Estes objetos
não estão presentes sob uma única forma, mas sendo repetidos de muitas maneiras. A posse do interior do
corpo representa a posse da mãe externa “e simboliza, ao mesmo tempo, o mundo exterior e a realidade”. É
justo recordar que Klein menciona, ainda assim, o papel jogado pela libido (erótica) e a influência da
realidade. Débil contrapeso, origem do que se chamará “bom objeto”.
A seguir, Melanie Klein reunirá estas observações e descreverá duas grandes fases características da
sexualidade infantil. Em primeiro lugar, a esquizoparanóide, marcada na criança por posições persecutórias e
profundas angústias de aniquilamento, que causam a dissociação, a renegação, a idealização e a onipotência,
que são contemporâneas do surgimento das angústias paranóides, que acompanham uma vivência de
despedaçamento, fragmentação e ataques destrutivos por parte do objeto. É sucedida pela fase depressiva,
que começa com os primeiros esboços de unificação do objeto, quando se assiste a aparição da culpa com
desejos de reparação dos danos que foram causados: um sentimento de responsabilidade pelas devastações
destrutivas. A separação entre fase esquizoparanóide e fase depressiva se justificava pela evolução, na qual a
segunda sucedia à primeira. No futuro, essa sucessão será impugnada e a opinião dos kleinianos se inclinará
para uma simultaneidade (várias vezes repetida) de ambas as fases. Especificar-se-á o papel da introjeção e
da projeção. As monções pulsionais e os fantasmas inconscientes são pouca coisa mais do que duas faces de
uma mesma realidade. Os fantasmas são a expressão da pulsão (Susan Isaacs). A psicopatologia kleiniana
tende a se remontar, cada vez mais atrás na evolução da criança para compreender as raízes do psiquismo.
Em 1946 aparece um artigo importante, “Notas sobre alguns mecanismos esquizoides” (Klein, 1946).
Até então Melanie Klein, ao mesmo tempo em que falava da fase esquizoparanóide, somente havia abordado
os fatos da fase “paranóide", deixando de lado a fase “esquizo”. Aqui, o proceder obedece mais uma vez ao
desejo de ir mais além e de ir mais atrás na evolução. Klein enxerga nela as marcas das fixações psicóticas

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primárias resultantes das primeiras relações objetais, que existiriam desde o começo da vida. Consagra-se no
exame das relações do primeiro vínculo e descreve os processos de dissociação (splitting) que ocasionam a
fragmentação do Eu. A dissociação é ao mesmo tempo interna e externa. Dissociação, renegação e
onipotência cumprem um papel comparável à repressão nos estágios ulteriores implicados na neurose.
Fixação oral e efeitos das pulsões destrutivas convergem. As projeções se produzem na mãe (e não somente
sobre ela).
Descreve-se, então, a identificação projetiva (projeção do ódio, dirigido contra a mãe, em partes da
própria personalidade: identificação com as partes projetadas). A expulsão afeta também as partes boas, e sua
consequência é o temor de ter perdido a capacidade de amar, apesar da idealização. O Eu pode experimentar
o sentimento de não ter nem vida, nem autonomia. Dissossiação violenta e projeção excessiva colorem a
tonalidade persecutória do objeto. Melanie Klein insiste – a atitude, bastante rara nela, merece ser destacada
– na natureza narcisista que deriva dos processos introjetivos e projetivos infantis, pois o objeto não faz
senão refletir uma parte do sujeito. Deles se desprende uma sensação de artificialidade. Um narcisismo
excessivo impede a elaboração da fase esquizoparanóide em direção a fase depressiva.
Assim, se a fase depressiva havia ajudado a compreender a psicogênese dos estados maníaco-
depressivos, o estudo dos mecanismos esquizóides é esclarecedor quanto aos estados esquizofrênicos. Aqui
Klein procura mais uma vez teorizar o que Freud deixara em aberto ou insuficientemente desenvolvido.
Melanie Klein despertou um interesse fulminante na British Society, onde ganhou a adesão de Joan
Riviere, Susan Isaacs, Hanna Segal, John Sutherland, Paula Heimann (que logo se separaria dela) e Herbert
Rosenfeld. Não nos compete enumerar todos os membros da escola kleiniana. Em razão de seu interesse pela
psicose, âmbito no qual se impuseram as ideias de Klein, todos estes autores de converteram em
representantes da escola kleiniana clássica, que seguiria com bastante fidelidade as teses propostas por sua
fundadora. Bion, saído desta linhagem, logo se diferenciaria pela originalidade de seus aportes.
Rosenfeld, sem dúvida, foi o melhor clínico do grupo. Forjou sua reputação como especialista nos
estados psicóticos. Um de seus aportes mais originais se relaciona aos estados narcísicos. A tendência
kleiniana de enfatizar, sobretudo, as relações de objeto havia a conduzido a ignorar a patologia narcísica.
Rosenfeld descreve um narcisismo destrutivo que, como eu mesmo propus anteriormente, não é mais do que
uma das expressões da pulsão de morte. Aprofunda-se, da mesma forma, na identificação projetiva e nos
estados confusionais e de despersonalização. Especifica a noção de psicose de transferência. E também,
consagra estudos à toxicomania e ao alcoolismo.
O que traçar como conclusão deste breve repasse das ideias de Melanie Klein? Se por um lado
suscitaram grande entusiasmo e fervor, por outro, também despertaram objeções e críticas radicais. Sem nos
remontarmos a Edward Glover (1945), enumeraremos algumas delas:

1 - o acento bastante predominante no papel das pulsões destrutivas contribui mais para desnaturalizar
a teoria freudiana do que para prolongá-la. Para Freud, o importante era o intrincação e o desintrincação das
pulsões de amor ou de vida com a libido. Neste caso, já não se respeita nenhum equilíbrio: o campo está
integralmente ocupado pelas pulsões destrutivas.
2 - para muitos analistas, os kleinianos ignoram o conceito de inconsciente, porque não fazem nada
senão traduzir nos termos de sua teoria os efeitos constantemente percebidos da destrutividade.

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3 - a exagerada insistência nos estados precoces conduz a uma teoria na qual o anterior sempre explica
o exterior e incita a constantemente levar mais para traz, até a oralidade e inclusive antes, os pontos de
fixação.
4 - a realidade exterior não cumpre por si só nenhum papel. Depende exclusivamente da aceitação da
realidade interna. Este aspecto será objeto de impugnação de Winnicott.
5 - o Edipo desaparece porque não poderia ser resumido ao que disse dele Melanie Klein, e o pai não é
o mesmo que sua representação como "pênis do pai no ventre da mãe”.
6 - há um Supereu precoce antes do Edipo, ponto impugnado pelo próprio Freud.
7 - o Eu se reduz a seus mecanismos primitivos. Com isso, a dissociação tal como a levanta, Freud
desaparece, em benefício de uma interpretação kleiniano deste conceito; em essência este separa os aspectos
subjetivos do mau objeto dos relativos ao bom objeto.
8 - As relações de objeto estão presentes desde o início. À evolução da relação entre o Eu e o objeto
não cumprem praticamente nenhum papel.
9 - os kleinianos somente lêem, somente citam e somente é levam em conta aquilo que escrevem os
demais kleinianos. A bibliografia de seus artigos é de um sectarismo caricaturesco.

A evolução não irá consertar este estado das coisas, que se resolverá com o pensamento de Bion,
através de uma ruptura quase cismática. Adicionado a isso, da pena de Winnicott saltará a luz uma franca
oposição às ideias Klein.
Ao reler Melanie Klein nos dias atuais, a comunidade de analistas se divide entre aqueles que admiram
essa visão inovadora, invenção que não vacila em levar a hipótese das pulsões de morte a um ponto diante do
qual o próprio Freud teria retrocedido, e aqueles que resistem a uma visão infernal, apocalíptica, difícil de
admitir quando se leva em conta o que nos ensina a experiência com a criança, que, em Klein, parece ter
afogado sua libido amorosa em um banho de sangue das pulsões destrutivas. Sem dúvida alguma os
kleinianos do futuro sentirão por si só, a tentação de baixar as pretensões desta concepção extremista que
gera tantas reservas. Surgirão formulações substitutas dentro do movimento kleiniano na pena de Bion ou
entre os companheiros de rota, como Winnicott.
Todos os que tiveram um contato direto com Melanie Klein assinalaram seu grande rigor, sua
prudência antes de propor uma interpretação e seu conhecimento do mundo infantil. Contudo, com o tempo,
acabou-se admitindo que ela não fosse uma grande teórica e que ela não deveria ser julgada neste terreno. O
certo é que haveria de marcar a evolução da psicanálise de modo decisivo, por mais que tenha provocado
ataques virulentos e fosse combatida durante muito tempo. Dentro da associação psicanalítica internacional
ocupou uma posição marginal antes de obter o reconhecimento de seus pares. E, mesmo que ainda tenha
numerosos adversários, já não se pode ignorar o que ela foi. O mais interessante, todavia, é que permitiu a
eclosão de obras como as de Wilfred R. Bion e Donald W. Winnicott. A França, que só tem tido olhos para
Jacques Lacan, iria ignorar durante muito tempo está influência. Intuição precoce de uma verdade que resta a
ser descoberta, ou erro trágico?

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2.3 - W.R. Bion: retorno ao pensamento

Dedicar um capítulo especialmente para Bion não significa apenas querer dissociá-lo de Melanie Klein
e seus discípulos - isto é, do kleinismo clássico - senão reconhecer em sua obra uma originalidade particular,
que se define, entre outras coisas, por um retorno ao pensamento de Freud é um ressurgir dos conceitos
psicanalíticos do pensamento.
Não retomaremos em detalhes os elementos de sua teoria: contentaremos-nos em destacar aqueles que
se relacionam com a pulsão de morte. Uma noção constitui a ponte entre a teoria freudiana e a de Klein. Em
Além do princípio do prazer, conceitualiza os dois mecanismos essenciais da ligação e do desligamento
como característicos dos funcionamentos de Eros e das pulsões de morte. Bion, de sua parte, fará do conceito
de vínculo um pilar de suas ideias. Em seu célebre artigo "Ataques ao vínculo" escreve:

"Utilizo a palavra 'vínculo' porque desejo examinar a relação do paciente com uma função é não com o
objeto que ela cumpre; não me interesso somente pelo seio, o pênis ou o pensamento verbal, mas por sua
função, que é a de criar vínculo entre os objetos" (Bion, 1959, p.115).

Nesta definição aparecem duas ideias notáveis. A primeira é o interesse por uma teoria das funções. A
expressão "relação de objeto" indica pela primeira vez o que é uma relação: uma função. A segunda
incorpora na concepção kleiniana a ideia de que o pensamento verbal constitui o vínculo entre os objetos.
Com efeito: é preciso ressaltar que Bion se interessará, sobretudo, pelo pensamento e na repercussão que têm
sobre ele alguns funcionamentos psíquicos. Em um prolongamento do pensamento de Klein, expresso em
"Notas sobre alguns mecanismos esquizóides", utiliza os mecanismos descritos por ela neste artigo:
dissociação, renegação, onipotência, evacuação e expulsão na identificação projetiva.
Bion dá muita importância a este último mecanismo. Vê-se em necessidade de descobrir uma
identificação projetiva “normal”, oposta a outra “excessiva”, assim como postula uma dissociação
infinitesimal (minute), quase impossível de detectar. Sua tese princeps se resume a um dilema: evacuar a
frustração ou elaborá-la. A evacuação é, como em Freud, o resultado da acumulação de tensões
desprazerosas que impede o funcionamento do pensamento. No psicótico, a frustração não só está ligada a
uma satisfação libidinal isolada. “A existência do analista objeto encarna a frustração básica, com o desejo de
rechaçar tudo o que provém dele. Ou seja, de destruí-lo e separar-se de todos os meios possíveis dos
fragmentos produzidos na destruição”. Os ataques assassinos contra o que une a dupla, contra ela própria e
contra o objeto engendrado por ela reforçam o ódio. Aqui se especifica o papel do objeto, consiste em
antecipar a ameaça e experimentar o medo da criança, que despertou nela o medo de morrer. O objetivo desta
receptividade às identificações projetivas da criança é a capacidade de ensonhamento da mãe, que contribui
com a construção da função alpha naquele, uma função que permite transformar as impressões de material
bruto e sem sentido em material apto para a elaboração pelo sonho, pelo mito, a alucinação, a paixão.
O que se questiona já não é somente a preponderância das pulsões destrutivas, mas também sua
infiltração nas pulsões de amor, para terminar englobando ao mesmo tempo a realidade interna e a realidade
externa. Aquelas pulsões são a causa de um terror de aniquilação iminente e colocam em ação a formação

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prematura, precipitada de relações de objeto precárias, constituída por um substrato psíquico frágil, ou seja,
que não comporta capacidade alguma de absorção dos processos psíquicos.
Há que valer-se da transferência para perceber todos os efeitos que acabamos de descrever. Ainda, as
funções psíquicas cuja formação exige vínculos de fato, como o sonho, devem ser reinterpretadas ao marco
do predomínio destrutivo. Mais que para estimular a função de integração, estes vínculos servem de fato para
evacuação. Bion chega a uma teoria do pensamento e no pensamento, cuja ausência se faz sentir com
crueldade no pensamento kleiniano.
A grande originalidade de Bion consiste na invenção, junto aos fatores de amor (A) e ódio (O), de uma
terceira categoria fundamental: o conhecimento (C). Carece de correspondência no pensamento freudiano?
Não seria possível visualizar nela um análogo da função de ligação que precede ao princípio do prazer ao
qual chega Freud no final de Além do princípio do prazer?

O pensamento de Bion é, contudo, um pouco mais complexo. Distingue entre conhecimento positivo
(C+) e conhecimento negativo (-C). Este último tem como base uma onipotência na qual é mais vantajoso
não saber que saber. Isto é o que posiciona Bion mais próximo de Freud, teórico do masoquismo e da reação
terapêutica negativa. Bion formula a hipótese de que os ataques destrutivos levam a evacuar uma primeira
frustração, ainda que sustente que, se esta chegar a se repetir, o que se evacua é o psiquismo integralmente,
em resposta a uma repetição que amplia o campo da destruição.

Com Bion, se bem não se menciona de maneira explícita, a pulsão de morte se torna mais concebível,
mais aceitável – diria eu -, mais pensável. Posto que este seja o verdadeiro objetivo das pulsões de
destruição: fazer com que o psiquismo seja impensável, procurar que não se possa pensar e que a noção
mesma de causalidade perca toda a validez.

“o modelo que proponho para esse desenvolvimento [o desenvolvimento hipertrofiado do aparato de


identificação positiva] é o de que uma psique que funciona conforme o princípio de que a evacuação de um
seio mau é sinônimo da obtenção de suprimentos de um pênis bom” (Bion, 1959, p.128)

Há aqui uma equivalência mortífera que conduz, em certos casos, inclusive a preferir a ignorância por
evacuação ao interesse de uma compreensão, causa de prazer e fator de crescimento. No limite, mas vale
evacuar as tensões da vida e preferir a redução ao zero da morte.

2.4 – D. W. Winnicott: o par indivíduo entorno.

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Onde situar Winnicott? Quando viajei a Nova York, em 1969, para fazer uma conferência, o
apresentaram e o consideraram como um kleiniano! Esta caracterização deve tê-lo surpreendido, pois há
tempos já contribuía à controvérsia contra os partidários do kleinismo. E eu agregaria que ainda hoje o
continua fazendo, dado que em nossos dias ele é o alvo principal dos kleinianos. E não porque alguma vez
tenha renegado a profunda influência que Melanie Klein exerceu sobre seu pensamento, mas porque sempre
teve a inquietude de assinalar seus pontos de desacordo com ela. Por isso, diremos que a virada
winnicottiana, próximo à década de 1950, teve tanta importância, a nosso ver, como a que marcou a chegada
de Melanie Klein à cena psicanalítica em 1930.

Todavia, sua dissidência não se limitou a Klein. Frequentemente lhe ocorre que deve colocar a ela e a
Freud no mesmo saco para ressaltar seu desacordo com ambos. É possível afirmar que o principal argumento
que ele opõe a estes é o reproche que lhes faz por terem se interessado unicamente pelo mundo interior e
terem feito pouco caso do papel do entorno, ou seja, da “patologia” materna, como se não houvesse diferença
alguma entre ter uma mãe normal, neurótica, depressiva ou psicótica. A questão não engana ao levar em
consideração um papel patógeno direto, senão em perguntar-se como contribuem as marcas características do
comportamento materno na organização da personalidade psíquica da criança.

A obra de Winnicott é considerável e não pretendemos resumi-la nestas páginas, mas sim recordarmos
de sua argumentação no que se refere à pulsão de morte, a cujo respeito se pronunciou de maneira bastante
explícita.

Winnicott teve uma atitude matizada quanto ao papel da destrutividade (a questão não se levanta como
pulsão de morte). Admite sua influência considerável e, como Melanie Klein, a coloca em primeira linha.
Sabemos que foi contabilizado entre os partidários da relação de objeto. Na realidade tem sido possível
demonstrar (Davis e Wallbridge, 1981) que essa pertinência era mais moderada do que predendia-se
assinalar. Winnicott não crê na existência de objetos desde o início da vida. A natureza humana (Winnicott,
1988), obra inconclusa, permite lançar luz às ideias sobre este aspecto.

Com efeito: para ele não é possível pensar os inícios da vida na perspectiva de um indivíduo e de um
objeto distintos. A seu ver, na origem não existe, todavia um self individual capaz de separar o Eu do não eu.
Nesse estado de indistinção originária não há mais do que um magma confuso, e a observação do bebê não
pode permitir imaginar para ele, neste campo que supostamente o caracteriza, um lugar “no qual houvesse
um sítio para se colocar e ver” (ibid., p.171). Seria, inclusive, mais convincente conceber na origem da vida
psíquica “uma unidade entorno-individual”. E seria inclusive mais admissível associar o ser do par
indivíduo-entorno ao não ser no que concernem às formas primevas desta unidade. O ser nasceria do não ser
como consequência dos intercâmbios entre os componentes do par. Todavia, esse novo ser nascente somente
conquista a possiblidade de surgir do novo ser, porque devemos reconhecer no objeto uma atividade
importante, através dos cuidados, através dos cuidados que dispensem, sem que nos resulte possível, de
algum modo, identificar a forma sob a qual existem quando nos situamos hipoteticamente no lugar do bebê.

Neste estágio, este não tem qualquer consciência do entorno ou dos cuidados que se lhe dispendam
como tais. A aposta essencial dos primeiros estágios passa por assegurar a continuidade entre a vida
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intrauterina e a vida do lado de fora, assim como entre os diferentes aspectos da vida psíquica. Quando as
primeiras etapas correm de maneira satisfatória, evitam à reação a intrusão, que desemboca em uma
consciência prematura e, portanto, prejudicial e parasitária do objeto, a situação na normalidade, tal como
Winnicott a apresenta, favorece o desenvolvimento da autonomia e da criatividade já em ação, que procedem
da gênese do objeto.

De todas as construções que conheço sobre o nascimento do objeto no início da vida psíquica, a de
Winnicott me parece a mais convincente, mais ainda, a única convincente, esta concepção leva em conta os
laços existentes na realidade, mas dos quais a criança ainda não consegue ter nenhuma consciência clara. Os
vive com uma sensação de totalidade - dual, não obstante -, sem consciência alguma dos campos
constitutivos da dualidade.

Frente a uma situação semelhante, o erro consiste em apresentar aqueles laços sob rúbricas distintas
(ponto de vista de um observador externo), ou como desenvolvimento de uma das polaridades, e inclusive
em levar em conta somente a ação de uma destas; por exemplo, o objeto. Dai a ambiguidade da expressão
“relação de objeto”. Relação entre quem e quem? Relação de objeto com quem? Negligência da linguagem
que oculta de fato uma frouxidão do pensamento
A teorização de Winnicott, admitamos, é hipotética, mas esta especulação é mais eloquente que o
resultado de muitas das verdades presumidas marcadas pela cegueira de um observador afetado pela rigidez
psíquica. Winnicott prossegue: esse estado nascido do par indivíduo-entorno, que não comporta qualquer
consciência de um objeto, seja qual for, corresponde a um estado de “solidão fundamental” provavelmente
relacionado com o que Freud chama de “narcisismo primário”, o que poderá aparecer em certas regressões.
Winnicott vê nele um equivalente do que Freud atribui ao funcionamento ligado à pulsão de morte.
O acesso a essa forma primitiva está longe de ser fácil, pois essa última está recoberta pelo
desenvolvimento de relações de objeto posteriores (trata-se, então, do que em Freud corresponde à
"repressão primária"?). Winnicott (ibid., p.172) esclarece que imagina em algum momento um "estado
aprasível de não vida que pode ser aprazivelmente alcançado por uma repressão levada ao extremo”. A
comparação proposta com a pulsão de morte se baseia na caracterização desse estado como “anterior à
animação da vida”.
Que eu saiba Winnicott não retomou jamais a este desenvolvimento em sua obra publicada, o que
devemos lamentar. Discutimos, com frequência, sua argumentação contra as ideias de Freud. Na origem
encontramos tal qual em Freud, um estado que pode assemelhar-se ao narcisismo primário. Esta observação
bastaria por si só para diferenciar Winnicott dos partidários, desde Michael Balint, das relações de objeto,
para os quais o narcisismo primário não existe. Consequentemente, Winnicott não é uma relacionista
“absoluto”. A originalidade da posição winnicottiana radica na afirmação de que o objeto existe (nos
cuidados maternais que dispensa) e não existe (posto que não há Eu que o reconheça). Solidão essencial?
Estamos tão longe da retirada de investimentos a um nível zero? É preciso aceitar as ambiguidades das
situações que podem se dar na realidade sem que existam, frequentemente, as organizações psíquicas
necessárias para reconhecê-las. Se trata, portanto, de escolher entre uma situação perceptível a partir do
exterior, sem possibilidade alguma de ser percebida interiormente, e uma descrição que possa distinguir de

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entrada o indivíduo do entorno. Esta ambiguidade irá reaparecer em Winnicott com os objetos transicionais
que são e não são o seio ou o objeto.
Apreciar-se-á a importância da modificação winnicottiana. Advertem-se, ao mesmo tempo, as
diferenças em relação às hipóteses de Freud e suas transformações em Melanie Klein e Bion. Contrariamente
ao que seus detratores pretendem, o pensamento psicanalítico está em transformação permanente. Dá menos
provas de rigidez que de flexibilidade quando a especulação se defende de maneira convincente. Não de
maneira pseudorealista, mas como produto de uma imaginação livre de preconceitos.

2.5 Alguns aportes franceses, de Lacan a Balier.

A psicanálise francesa tem estado indiscutivelmente marcada por Jacques Lacan durante o último meio
século. É justo, portanto, que comecemos por ele. Contudo: Lacan jamais se pronunciou francamente acerca
da pulsão de morte. No começo de sua obra, esta somente está presente sob a máscara filosófica: a morte
como Senhor Absoluto. É possível relacionar seu uso com a influência de Hegel durante a elaboração da
primeira parte da teoria lacaniana? Sem dúvida. Em todo caso, na sequência, Lacan já não alude a ela desta
forma. É possível dizer, contudo, que desaparecem as ideias englobadas pela noção? Creio que o conceito de
gozo pode ser vinculado com ela, toda vez que o gozo impõe indiretamente suas formas em relação com a
pulsão de morte. Gozo no sentido de horror, tal como dele falam as formas graves de perversão, sejam
destrutivas ou ligadas à psicose. Todavia, a teoria da pulsão de morte resta em suspenso.
Na filiação lacaniana, Jean Laplanche se manisfesta resolutamente contra a teoria freudiana da pulsão
de morte. No lugar da última teoria pulsional de Freud, que opõe pulsões de morte às pulsões de vida, prefere
sua própria, que distingue entre pulsões sexuais de morte e pulsões sexuais de vida. As primeiras são
compreensíveis em termos de caos, enquanto as segundas experimentam já um esboço de organização. Não
equivaleria isto a adotar uma teoria monista da libido construtiva ou destrutiva? Em nossa opinião, convém
opor o caos, que é condição do Isso freudiano, e o nada, que é a tendência à aniquilação (nível zero) da
inércia e do nirvana. Por exemplo, a inibição da pulsão não se deve a instauração do caos, mas a extinção de
toda a expressão da pulsão, capaz inclusive de afetar a autoconservação (anorexia).
Na outra borda da clínica, Pierre Marty levou a sério as idéias de Freud, sem deixar, por isso, de
modificá-las. A referência a destrutividade é, na verdade, uma noção que soa aos especialistas em
psicossomática, que assistem às vezes a um triunfo da morte, nem sempre justificados pela gravidade dos
transtornos somáticos. Porém, Marty prefere falar de “desorganizações contraevolutivas”. Como quer que
seja, as descrições dos psicossomatistas acomodam o conceito de pulsão de morte, sem forçar os fatos.
Voltaremos a isto, cabe ainda precisar que este conceito somente cobra sentido quando é acoplado ao de
pulsão de vida.
Se retornarmos agora a clínica psicanalítica comum, corrente, a concepção de Jean-Claude Rolland se
destaca pela sua originalidade. Rolland jamais omite se referir ao artigo de Freud “Bate-se em uma criança”.
O acúmulo masoquista de fracassos do Eu, a busca de sansões inconscientes que satisfaçam a necessidade de
autopunição, assim como a multiplicação das reações terapêuticas negativas, que impulsionam a busca de
tratamentos cada vez mais penosos, dão testemunho, em sua opinião, da intensidade da culpa inconsciente,

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que reclama castigos incessantes, equivalentes à realização da fantasia de ser golpeado pelo pai. Que a libido
erótica não possa, nestes casos, nada além de ser movida porque carece de outros caminhos pelos quais possa
procurar satisfação, de acordo, porém, o que se passa com o erotismo quando se invoca a pulsão de morte?
Podemos buscar a solução pelo lado de um sadomasoquismo generalizado? Parece-me muito difícil, porque,
no mínimo, deveríamos falar de libido erótica degradada. O afeto inconsciente nos recordemos, para Freud,
carece de qualidades. No máximo, podem se opor estados de grande excitação pulsional e de apatia próxima
à morte psíquica. Aqui se trataria, melhor, e literalmente, de um desencadeamento pulsional cravado em sua
meta e gerador de despersonalização. Isto é o que nos mostra a patologia dos grandes perversos. Neste caso,
não é o inconsciente o que atua, senão o Isso de uma bipolaridade pulsional erótica e destrutiva.
Devemos recordar também os trabalhos de Micheline Enriquez (1984), consagrados ao que ela chama
de “encruzilhadas do ódio”. Enriquez põe o acento no complexo ódio-sofrimento e concentra sua atenção na
paranóia, no masoquismo e na apatia. Destaca as afinidades eletivas entre paranóia e masoquismo. Enquanto
à apatia, é possível compreendê-la como tentativa de domínio da morte psíquica.
No mais, cabe mencionar os trabalhos de Claude Balier (1996; Balier (ed.), 2005) sobre a
psicocriminalidade psicanalítica. Esses aportes implicam uma mudança radical em nossas ideias sobre a
destrutividade. Já em 1966, Balier publicava o resultado de suas investigações sobre a patologia sexual dos
comportamentos violentos. Seus relatos provocam calafrios. A violação se concebe como efeito de uma
compulsão. É um processo opressivo. Quando é antecedido de produções psíquicas, estas são objeto de uma
renegação, acompanhada de uma desidentificação. Frenquentemente, o processo acarreta outras passagens ao
ato: suicídio, automutilação, violação de outro preso. A atividade onírica geralmente está exclusivamente
habitada por pesadelos. Também surgem “fantasmas”: medo de ser violado ou fantasma de violação do
outro. Nos sonhos, saltam a luz temas psicóticos (infanticídio cometido pelos pais do sujeito), como uma
sensação de implosão e uma dor insuportável na cabeça.
Com frequência encontram-se numerosas fobias pré-genitais, que podem conter apenas uma histeria
de conversão, uma ou outra de caráter “primitivo” que é testemunha de uma ameaça de aniquilamento,
próxima aos terrores noturnos. O sexual está a serviço da violência (Bergeret, 1984). O problema dos limites
dentro-fora se menciona com referência às relações entre fantasma, percepção e alucinação. Prevalece-se
uma imagem parental, é a da mãe: objeto primário. No mundo interno, o bom é inacessível e o mau, sempre
invasor (Donnet e Green, 1973). O acting out busca uma resolução mediante a descarga do mau. Entre os
afetos predominam os de fúria e violência. A alucinação negativa (André Green) e o pictograma (Piera
Aulagnier) ajudam a pensar a psique. Ademais as fronteiras do Eu estão mal estabelecidas e colocam em
interdito os limites dentro-fora (interno-externo) e dentro-dentro (consciente pré-consciente e inconsciente).
A defesa dominante é a recusa ou a cisão. Conflito e ato estão radicalmente dissociados. De fato, a
cimentação do Eu é frágil: há temor de afundamento, acompanhado de uma “confusão primária a três”. Isto
se explica, talvez, pelo fato de que, com frequência, o futuro violador foi violado na infância. Uma depressão
narcísica se comprova, muitas vezes, no fundamento da psique. O assassinato geralmente é o resultado de
uma onipotência, a de um eu grandioso; o ódio é proponderante, tal qual o sadismo, a passivação
(passividade forçada) e o medo de amar reparte o quadro clínico. O incesto é o modelo de perversão por
excelência.

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Claude Balier busca uma construção metapsicológica convincente, que não coloca em jogo a pulsão de
morte de um modo direto. A regressão afeta o psiquismo: pulsão, narcisismo, projeção, abolição da dimensão
objetal do outro como outro. Neste ponto reencontraremos as cruas expressões da cena primordial, enquanto
a inquietude provocada pelas imagos parentais traduz um fracasso da interiorização do falo. Estas formam
uma perversão lidam com a psicose e entranham uma ameaça de desobjetalização com prejuízo do
sentimento de identidade, desejo de domínio e alucinação negativa, que conduzem a uma espécie de abolição
do sujeito. A ameaça de despersonalização pesa sobre as passagens ao ato, o trabalho de ligação revela aqui
sua carência.
Alguns anos depois, Balier volta a todos estes problemas, tratados em um livro coletivo com seus
colaboradores (Balier (ed.), 2005, p.146). Questionam-se as imagos parentais: “Trata-se de uma figura
paterna?” Resposta: “Ao ser o pai admirado e inacessível, a figura que sai dele é uma representação
diretamente filiada ao eu ideal, dai, a ideia que mais vale a pena ressaltar é a "não mãe"" (Claude Le Guen).
A segunda observação é a seguinte: por mais forte que seja a impressão de uma patologia de origem
intersubjetiva, não é por isso que esta deixa de colocar em relação dois psiquismos.
Mencionemos o papel atribuído à sociogênese da criminalidade, que leva em conta a relevância da
psicogênese. E assinalaremos, para finalizar, que o mais difícil nas relações com tais sujeitos é não deixar de
lembrar que, na relação com seus terapeutas, ele tem direito ao mesmo respeito atribuível a qualquer outro
ser humano.

2.6 – A psicossomática de Pierre Marty

Entre as patologias que hoje se denominam “somatoses” (por analogia às psicoses), algumas levantam
problemas originais. A incidência psicossomática já há muito tempo se assiná-la, pelo menos desde o século
XIX. Fulano, alérgico às violetas, sofre uma crise de asma ao deparar-de com um ramo delas composto,
todavia, de flores artificias. Abundam os exemplos em que os efeitos de simulação colocam em movimento
uma patologia crítica. A chamada “medicina psicossomática” se fundava, com frequência, em uma etiologia
de “choques”, traumas, que com o tempo acabou superada. Do mesmo modo, foram muitos os autores que
salientaram o papel da sugestão. Nos movimentos analíticos do mundo todo, sempre houve médicos
aficionados em descobrir quadros clínicos embasados em patogenia discutível, que relacionava o sintoma
somático e um acontecimento psíquico.
Assim, o hipertenso estava “muito tenso”, o ulceroso “era sangue ruim” e o nervoso tinha “os nervos
mais fortes do que o sangue”. Esta concepção, que encontrava raízes na sabedoria popular, não chegou muito
longe. Quando a psicoterapia se mostrava indicada para lutar contra estes estados, na maioria das vezes se
recomendava uma terapia de apoio, inclusive a hipnose (que retorna a moda) e, em nossos dias, as terapias
cognitivo-comportamentais. As terapias breves e de ação rápida eram as preferidas. Tratava-se de limpar o
psiquismo destes estorvos inúteis.
Havia em todo mundo uma grande diversidade de escolas em que certos nomes se fizeram ilustres,
logo célebres: Franz Alexander, Helen Flanders Dunbar, Metard Boss, etc. Na França é preciso citar,

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sobretudo, René Held e Michel Sapir. Na realidade, em que pese ao interesse de muitos psicanalistas, não
havia ainda uma concepção propriamente psicossomática. Foi Pierre Marty, fundador da Escola
Psicossomática de Paris, o responsável por trazer a luz uma nova concepção psicanalítica. Pouco a pouco,
esta escola estendeu sua influência no plano internacional e ganhou reconhecimento, mesmo que numerosos
psicanalistas seguissem manifestando seu desacordo com as concepções de Marty.
Não recapitularemos todos os ambitos nos quais os avanços da psicanálise permitiram progressos:
raquialgias, cefaléias, alergias, retocolite hemorrágica, glaucoma, dermatoses, etc. Conformaremos-nos em
mencionar algumas ideias que colocaram em relevo Pierre Marty e seus colaboradres. Michel Fain, Michel
de M’Uzan e Christian David (cf. Marty, M’Uzan e David, 1963). Depois da morte de Marty, Claude
Smadja, Marilia Aisenstein e Gérald Szwec se encarregaram de prolongar sua teoria; M’Uzan elaborou sua
própria concepção. Com este último, Marty descrevia em 1962 o “pensamento operatório”, convertido,
posteriormente em “vida operatória” (Marty e M’Uzan, 1962). Tratava-se então – resumindo muito – de
descrever o psiquismo de certos indivíduos perdidos em um pragmatismo corrosivo, que pouco a pouco
conseguia carcomer sua vida psíquica até despojá-la de toda vitalidade – todo desejo – e os levava a pensar, a
sentir e a raciocinar de um modo que lhe eximia de qualquer recurso ao fantasma. Este comportamento
psíquico exige várias observações:

1 – a referência a um funcionamento mental – noção especificamente francesa, pouco utilizada em


outros lugares – nele se comprova a falta de flexibilidade e vitalidade do psiquismo, que não leva em
consideração o equilíbrio psíquico entre as diferentes modalidades; linguagem, atividade onírica, fantasmas,
afetos, passagens ao ato, somatização, etc., e nele se adverte que as formações originárias do caráter
(neuroses de caráter e de comportamento) têm um papel preponderante. Tradicionalmente compara-se o
funcionamento mental do neurótico com o do psicótico. Na sequência é preciso contemplar a possibilidade
de traçar um paralelo com funcionamento mental do paciente psicossomático.
2 – irregularidade do pré-consciente. O papel do pré-consciente, que é, como se sabe, a parte do
inconsciente capaz de se converter em consciente, tem sido reconhecido, pela psicanálise contemporânea,
como algo cada vez mais importante para o equilíbrio psíquico. Segundo Marty, a “espessura” do pré-
consciente deve ser considerado como zona tampão entre o inconsciente e o consciente. Marty utiliza a
expressão “folhado” de pré-consciente, imaginando uma superposição de camadas nas quais se produz a
elaboração psíquica. Neste sentido: conforme a sua teoria, o pré-consciente registra, mas não emite, ou seja,
suas mensagens não são recebidas no nível do psiquismo consciente.
3 – de fato, esta observação corrobora com a pobreza da vida fantasmática dos pacientes em questão.
Fez-se notar que, em ocasiões, essa vida fantasmática, longe de estar ausente, não se integrava, em contas
resumidas, à vida psíquica; para dizer de algum modo, se desenvolvia fora dela.
4 – O funcionamento operatório completa este quadro no qual se comprova uma mecanização do
psiquismo que quase não associa. Os discursos deste paciente são estereotipados; a vida a psíquica
associativa não os reativa. Nascem e morrem em um mesmo lugar, enterrado por um “é tudo” que proíbe
qualquer desenvolvimento e, consequentemente, empobrece as deduções que podem acontecer a partir das
relações entre associações.

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É necessário, contudo, distinguir os pacientes que somente apresentam alguns traços psicossomáticos
daqueles que tem um verdadeiro perfil psicossomático. Entre as defesas que são características deles, foram
descritos os procedimentos auto calmantes, que aqui tomam o lugar dos auto erotismos e cumprem mais o
papel de extinções por esgotamento do que de satisfações substitutas.
A esta configuração geral podemos acrescentar signos de gravidade:

1 – O quadro de depressão essencial, sem perda de objeto nem conflito significativo, constituído por
uma atonia, uma queda da vitalidade psíquica e uma energia minguada, que faz recordar uma morte psíquica.
2 – A extensão de uma vida operatória progressiva, marcada pela monotonia e o caráter apagado do
psiquismo, que aparece como esmagado e apático.
3 – o caminha até uma desorganização progressiva na qual tanto os processos psíquicos como os
processos somáticos refletem o que Marty chama de “desorganizações contra evolutivas”, evocadoras de um
império exercido pelas pulsões destrutivas.

O que pensar do papel da pulsão de morte nos casos em que os mecanismos vitais parecem
neutralizados? Sem abusar da linguagem vitalista, isto significa que, dado que os conflitos psíquicos não
podem ser elaborados, o “ruído da vida” continua ensurdecido. O silêncio, fundo contra o qual atuariam as
pulsões de morte – segundo Freud -, alimenta a psique com um desligamento desorganizador. E pode
acontecer dos quadros clínicos, a despeito de tratamentos apropriados, evoluam para um estado de
agravamento físico, capaz de levar a morte.
Tais são as características que devemos recordar nos casos de patologia psicossomática. Estas ideias,
que despertaram muito interesse nos meios psicanalíticos da França e de outros países, permitiram a difusão
das concepções dos psicanalistas da Escola de Paris. No que isto pese, as polemicas não cessaram. Vale
levantar uma oposição significativa entre a concepção da escola psicossomática francesa e a dos autores
kleinianos e anglo-saxões em geral.
Vale ressaltar que estas teorizações levam muito a sério a diferença entre as ideias da Escola de Paris e
a teoria contraria que se apoia na conversão (Valabrega, 1980). Todavia, enquanto a noção de conversão
generalizada tem tido poucas confirmações, a psicossomática não tem deixado de recrutar cada vez mais
adeptos.
A ideia de um confronto entre psicose e somatose vai se impondo cada vez mais, as concepções
propostas nestes últimos anos sobre a comparação entre foraclusão lacaniana e vida operatória deram origem
a interessantes debates. Neles encontram aplicação noções como a da alucinação negativa, não sem relação
com a alexitimia de Peter Sifneos (1975). Em resumo, abre-se um novo campo de exploração para o trabalho
do negativo.
Cabe assinalar, por último, que estes casos exigem modificações técnicas importantes. Obrigam a
buscar soluções alternativas ao tratamento psicanalítico clássico: face a face, sessões menos frequentes,
colocada em prática de uma “conversação psicanalítica” (Roussillon, 2005), diante da impossibilidade de
instaurar um enquadre tradicional. As patologias psicossomáticas passaram a formar parte, cada vez em
maior medida, dos campos de investigação da terapêutica psicanalítica; mal adaptadas ao modelo da neurose

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que serve de referência ao tratamento psicanalítico clássico, são, em termos gerais, aquilo que os
especialistas em psicossomática chamam de “neurose de mentalização insuficiente”.

2.7 - A desordem da autoconservação

Se falamos de pulsão de morte e a levamos a suas últimas consequências o objetivo buscado por ela, o
propósito de semelhante força é conseguir matar o indivíduo. Neste sentido: poucos exemplos de tal índole
podem ser citados em apoio a esta tese. A psicossomática do adulto tem nos colocado à frente de quadros
clínicos que podem evoluir até a morte por meio da desorganização essencial. Contudo, esses casos, por mais
impressionantes que sejam, estão longe de serem os únicos a terem o poder de arrastar o paciente até a
morte. Sem pretensões de exaustividade, gostaríamos de agregar a esse conjunto os casos de desordem da
autoconservação. Os dividiremos em duas categorias: os transtornos de condutas alimentares e as
toxicomanias.
Os primeiros são, em parte, o resultado de uma inibição massiva do apetite, suporte da
autoconservação. A inibição ocupa um lugar restrito na obra de Freud. Recordemos, desde logo, Inibição,
sintoma e angústia (1926): apenas quatro páginas introduzem o tema naquela que será a obra mestra de
Freud sobre a angústia. Ainda que insuficientes, são melhores que nada. Sem que inibição e sintoma se
excluam, podem, contudo se associarem. Freud se conforma agora com designar as quatro funções em que
identifica à primeira: a função sexual, a alimentação, a locomoção, e o trabalho profissional. De entrada salta
à vista uma diferença. Uma pessoa pode sobreviver sem sexualidade e sem se mover ou trabalhar. Não pode,
porém, viver sem comer. As greves de fome, levadas até o fim, terminam com a morte dos grevistas.
Consequentemente, tudo predispõe à inibição alimentar a um destino particularmente grave. Freud apelou
não poucas vezes ao aforismo segundo o qual fome e sexo dominam o mundo, porém, não dedicou nenhum
estudo específico à problemática da anorexia.
A ingestão de comida (e o aumento de peso) é fonte de angústia para o anoréxico. A bulimia também
supõe um desordenamento do mecanismo da autoconservação, sem introduzir as mesmas consequências,
ainda que a obesidade crônica e incurável não deixe de repercutir sobre a saúde. Aqui, o vômito se oferece
como solução parcial. O mesmo ocorre com os anoréxicos, que o provocam logo depois de comerem. "Vou
fazer como os romanos", dizia o pai de um de meus pacientes, muito preocupado com seu peso, e um grande
aficionado nas mulheres magras, "com medidas de modelo".
Freud (1926, p.207) qualifica esses estados de "limitação funcional do Eu". Atribui sua causa a uma
autopunição devido à sexualização da função, seja por precaução, seja por empobrecimento da energia. Esta
patologia - e, sobretudo a anorexia - parece ter tido um forte crescimento, a julgar pela quantidade de estudos
que lhes foram consagrados (Jeammet, 2005; Brusset, 1977; Combe, 2002). Não podemos mencionar em
detalhe as descobertas e as hipóteses destes autores, porque são complexos, como é o tema. Assinalemos de
passagem que os métodos coercitivos de antigamente tem desaparecido, para deixar em primeiro plano a
relação psicoterapêutica, uma psicoterapia bem adaptada às circunstâncias desta patologia hipersensível a

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qualquer repúdio, frustração, qualquer incompreensão. Colette Combe sustenta uma posição original
verdadeiramente psicossomática, ao subtrair a constância de uma perturbação do equilíbrio hormonal como
um dos signos mais discretos que revelam uma anorexia em curso de constituição.
Pode observar-se com satisfação que, em nossos dias, as curas são frequentes. Destaquemos que a
terapia mostra a constância da má aceitação da sexualidade feminina (fobia à transformação de um corpo
juvenil em um corpo dotado de "armadilhas": peitos, ventre, nádegas). O sujeito procura dissimular estas
marcas de diferenciação sexual na medida do possível. Repúdio do sexo, repúdio da relação com o outro
sexuado e conflitos pregenitais com a imagem materna levam, no final das contas, a um repúdio da vida.
Pode-se morrer de anorexia.
A bulimia, frequente sem anorexia, é capaz de coexistir com um apetite completamente são,
manifestando-se por crises. Quando uma destas se produz, o que vai nisso, em meio à desordem, é todo o
conteúdo do refrigerador, seguido ou não de vômitos. Por outro lado, implementar-se-iam medidas contra a
eventual obesidade: vômitos, laxantes para aplainar a barriga, ginástica intensa, atividade esportiva
esgotante, etc. Segundo minha experiência, a bulimia se instala nos furos de uma relação agressiva,
destrutiva, contra alguém íntimo: a mãe, irmã, etc. O sujeito se surpreende frente às interpretações propostas
pelo analista, pois há de passar muito tempo antes que possa tomar consciência da hostilidade
verdadeiramente destrutiva que endereça a um ser querido, de quem depende ou dependeu demasiadamente
durante a infância.
Talvez pareça discutível incluírmos no mesmo capítulo a toxicomania, cuja frequência também
experimenta um crescimento devido à maior facilidade de acesso aos tóxicos. Sem me alocar uma pretensa
competência que não tenho para abordar este tema específico, distinguirei empiricamente "as drogas que
matam com rapidez", daquelas cuja ação é mais benigna e lenta e que só dão a conhecer seus efeitos nocivos
mais tarde, sem colocar em questão o prognóstico vital. Compreenderá-se-a que aqui faço uma distinção
entre a heroína e o resto, ainda que haja outras drogas bastante perigosas, com as quais seus consumidores
jogam desafiando a morte.
Não recordaremos a gravidade das condutas sociais dos sujeitos em abstinência. Não se trata tanto de
estigmatizar comportamentos, como de destacar que a abstinência gera um verdadeiro delírio para obter a
droga, que, dependendo do caso, chega a deixar os pais do sujeito sem nada. Aqui também faz falta um
tempo maior de experiência, para que o analista possa resistir às sabotagens, às tentativas de desincentivos e
o desespero frente às recaídas, antes que surja, muito tempo depois, uma saída possível. Porém, o digamos: a
overdose é um suicídio que se ignora. Não são poucos os entes queridos que se consolam distinguindo
overdose de tentativa de suicidio. Distinção vã, cuja explicação superficial não consegue senão mascarar as
feridas, demasiadamente dolorosas para o entorno, de um ato tão desesperado.
Como se advertirá, em todos estes casos a pulsão de morte não é uma mera expressão metafórica.
Deve-se tomá-la ao pé da letra, ainda que os mercadores da morte que as comerciam, as tragam sem cuidado.
Como dizia um deles, a quem um temporário buscava restituir culpa: "De algo tenho que viver".

2.8. Unidade e diversidade das depressões

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Levando em consideração que Freud, em 1923, designa a melancolia como "cultivo puro das pulsões
de morte", seria paradoxal não lhe consagrar um estudo independente. "Luto e melancolia” de 1915 é um dos
mais completos estudos de Freud. A partir de 1909, aproximadamente, este mantinha uma discussão -
sobretudo epistolar - com Karl Abraham, a quem devemos algumas das mais importantes intuições sobre o
tema, mais particularmente no que diz respeito à fixação oral. Todavia, como Freud fez notar a seu discípulo,
a melancolia é mais propriamente um problema tópico. Cabe entender por isso que a divisão do Eu, entre
uma parte identificada com o objeto, para substituir sua perda, e outra, que segue obedecendo a suas funções
tradicionais, instaura um novo mecanismo na psicopatologia freudiana. Os outros componentes da
melancolia (regressão ao estágio oral, fixação canibalística, predomínio do ódio, preponderância narcísica),
apesar de manter sua importância, acabam ficando por detrás do problema tópico. Com efeito: imaginar que
o Eu possa cindir-se com a finalidade de que parte dele ocupe o lugar do objeto perdido é uma intuição
capital e identifica com clareza a regressão narcísica que afeta o Eu. Dai a ambiguidade do suicidio. A quem
se mata? A si mesmo, ou a uma parte do outro que se faz substituir, em sua perda, por uma parte do Eu? Nem
sempre é fácil determiná-lo. Compreende-se aqui a complexidade da intervenção da pulsão de morte.
Já faz algum tempo, a discussão tem se referido à unicidade ou a pluralidade das formas depressivas.
Conhecemos, certamente, várias formas de depressão: reativas que seguem a um acontecimento vivido como
traumático; estacionais devido essa falta de luz da estação fria; de involução causadas pelos efeitos da idade
sobre o cérebro; depressões essenciais, da psicossomatose e etc. Todavia, na prática, nas situações correntes,
levanta-se o problema de distinguir entre melancolia - psicose unipolar ou bipolar - e depressão neurótica.
Digamos, a princípio, que no transcurso de uma cura analítica é raro que falte a reação depressiva. Ao
abordar problemas cruciais e árduos durante a transferência, não é excepcional notar a instauração de um
período regressivo marcado por todas as marcas da depressão: quer se trate de uma tomada de consciência
sobre a importância da culpa inconsciente ou de uma desvalorização narcísica, de um fracasso sentimental ou
profissional, do sentimento de decepcionar o analista e não poder responder a suas supostas expectativas, as
razões convergem na formação de um quadro clínico no qual dominam o pessimismo, o abatimento, a apatia,
a renúncia e a retirada. Esses episódios, com análise ou sem ela, podem se repetir e, inclusive, às vezes,
desembocar em tentativas de suicídio, com menos frequência, contudo, que nos estados melancólicos.
Podem ser de curta duração e desaparecer com o uso de medicamentos ou sem eles, ou, no mais das vezes,
como consequência do uso de diversos antidepressivos, dos mais leves aos mais pesados. O tratamento
antidepressivo pode ser utilizado e costuma ser eficaz. Ainda assim, gera no paciente a impressão de estar
"fora de si", como se as mudanças que nele se produzem, fossem criadas apenas por sua incumbência. A
sugestão de não buscar nada além da recuperação dos níveis de serotonina é produto de um pensamento
psiquiátrico fármaco-mecânico que frequentemente propicia uma negação da atividade psíquica. Atualmente,
inclusive, alguns psiquiatras o denunciam. Sucessivamente, um luto banal, uma decepção sentimental ou um
problema conjugal ou profissional justificariam, no juízo dos generalistas, a prescrição de um antidepressivo.
Para que a sofrer em vão, esforçando-se por ignorar - à mercê de uma defesa maníaca camuflada - que o
sofrimento é parte da vida? Este "hedonismo químico", é preciso dizê-lo, é desumanizante. Até os animais
tem direito de ficarem tristes.

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Descrevemos uma forma depressiva a qual denominamos "a mãe morta". Ao contrário do que o nome
parece indicar aqui se trata da depressão de uma mãe viva, mas que, em razão de um acontecimento
desconhecido por seu filho, perdeu o gosto de viver, ou seja, dela ocupar-se dele de modo vivaz, com a dose
de alegria que geralmente acompanha os cuidados maternais. Não reinteirarei a descrição em detalhes.
Remeto a ela o leitor interessado (Green, 1980). Esta síndrome é com frequência uma descoberta da
transferência que põe à prova o analista. Muitos autores tem certificado esta estrutura clínica.
Sem dúvida se revelarão outras formas clínicas ignoradas pela tradição, o essencial será, neste
pluralismo exibido pelo leque depressivo, agir de forma tal que torne manifesto a unidade profunda das
fixações e das defesas depressivas. Da depressão essencial, a princípio não conflitiva - depressão quase no
sentido atmosférico do termo - à depressão de involução, atribuível, sem chance de erro possível, ao estado
cerebral, a gama depressiva se apresenta em todos os matizes. Das depressões melancólicas graves, rebeldes
e reincidentes, que frequentemente obrigam a recorrer à sismoterapia, trás o fracasso da medicação, ao
"simples conflito afetivo, profundamente organizado, traz em si uma ameaça ou uma real perda do amor por
parte do objeto, são muitas as ocasiões e circunstâncias que podem favorecer o desencadeamento da
depressão”.
Devemos culpabilizar à pulsão de morte sempre e por toda parte? Não seria possível afirmá-lo, salvo
quando surgem veleidades ou sérias ameaças de suicídio. E, ainda nestes casos, a questão é discutível. De
qualquer forma, quanto mais enfrentamos um "narcisismo cerrado", impermeável à relação com o próximo, e
portadores de um verdadeiro delírio, como na melancolia, mais nos consideraremos autorizados a suspeitar
da intervenção das pulsões autodestrutivas. A variedade da vida se encarrega se de nos fazer compreender a
posteriori o porquê do acesso depressivo e de suas causas, avaliadas segundo o coeficiente narcísico, a
precocidade das fixações e a intensidade do ódio inconsciente.

2.9. Suicidio(s): patologia e normalidade

Ainda que pareça estranho pouco se fala sobre suicídio nas elaborações de Freud sobre a pulsão de
morte. Todavia, está é a grande preocupação dos psicanalistas quando sobrevém a melancolia e, com efeito,
em 1923, Freud define esta como "o cultivo puro das pulsões de morte". Se não menciona o suicídio, talvez
seja porque este não se encontre, orgânica ou exclusivamente, ligado à pulsão de morte e englobe motivações
complexas, como o fato da morte se dar com a intenção de matar outra pessoa. Contudo, a questão segue
sendo misterosa.
Como quer que seja, o suicídio é também a principal preocupação do analista nos momentos difíceis
do tratamento. Seja qual for o ponto de partida desta patologia que vai levar ao suicídio, o momento suicida
é, sem dúvida, uma inversão massiva da destruição que se dirige contra o Eu. Este instante pode ser
observado nas mais diversas estruturas. A teatral histeria chega a surpreender pelas passagens ao ato, porém,
também nas neuroses de caráter, nos casos limite e em certas psicoses à margem da melancolia (paranóia).
Conscientemente, estamos na presença de uma gama de estados que vão, desde o desejo de colocar fim a um

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sofrimento que acabou se tornando intolerável, até o mais extremo desespero, que caracteriza a melancolia.
Todavia, assim mesmo, podemos comprovar o aparecimento de um movimento impulsivo, um arrebate que
nada poderia prever contemporâneo da sensação que o analista pode ter de que o sujeito está preso a um
atoleiro do qual não consegue sair, como se estivesse dizendo "não" a vida, em um sobressalto que implica o
desejo de terminar. Devemos ressaltar que não é possível invocar unilateralmente as forças de destruição,
mesmo que no momento de passar ao ato estas se mobilizem ao máximo.
A agressão se dirige, sem dúvida, antes contra outra pessoa, do que costuma estar focalizada no
próprio sujeito. Assim, às vezes ocupa o primeiro plano o desejo de afetar aos progenitores, com frequência o
pai, para reprovar sua passividade ou seu desinteresse, ou a mãe, objeto das fixações mais antigas - orais -
também é condenada. Mais do que o próprio sujeito, é seu entorno que recebe este atentado, antes de se
matar, a ideia a que se aferra não é tanto a de colocar fim na própria vida, senão de seu sofrimento, em
algumas situações, nega toda intenção agressiva em relação aos pais. A transferência, todavia a demonstra
com a claridade, porém, esta intenção é difusa para o sujeito, que a nega quando os outros a mencionam.
Esses desejos são inconscientes. Não se conformam com manifestar uma pulsão de agressão: desejam
alcançar o Eu. Ou seja, afetar o narcisismo, dai a sensação de insuficiência, de fracasso, de desvalorização e,
em primeiro lugar, a perda da esperança de mudar a situação.
Foi sustentada (Green, 1994) a ideia de que o suicídio poderia ter por causa o desejo de colocar fim,
não a vida presente propriamente dita, senão a um porvir, que não poderia mais que piorar. Ausentar-se da
vida é deter o invencível progresso do mal, se entregar a esta autodesaparição definitiva para deixar de sentir,
a cada dia mais, a própria desvalia. Pode também assinalar o sentimento, bastante difícil de suportar, de não
ser mais do que a sombra de si mesmo, e oferecer este espetáculo aos outros, acentuando progressivamente
uma degradação tanto mais árdua de viver quanto de produzir-se em sujeitos de narcisismo frágil e projetivo.
É preciso lembrar, neste ponto, a observação de Freud, muito pertinente, em "Luto e melancolia", quando
destaca o contraste entre uma forte fixação ao objeto e uma debilidade do investimento.
Como se sabe, a fixação é oral-agressiva, tanto que a debilidade do investimento alude ao fato de que
esta possa ser retirada no caso de decepção com o objeto. Há que se reinterar: na depressão suicida não se
trata tanto de frustração como de decepção. Decepção com o objeto, seguramente, do qual se espera muito e
indubitavelmente com pouco realismo, mas, sobretudo, decepção a respeito da própria autoestima. Pode-se
notar que nossas descrições se situam nas proximidades da melancolia, quando prevalece o desejo de já não
ser, em um ato nutrido de reprovações, tanto ao outro, quanto a si mesmo: ao outro nas depressões
neuróticas, a si mesmo na melancolia. O desejo de autopunição é patente, mas também o é o de marcar aos
outros mediante este ato. "Vejam o que vocês fizeram de mim. Não souberam me insuflar de amor à vida,
esperança no futuro, confiança em mim mesmo e nos outros". Existe aqui uma renegação de reconhecimento
do amor que os outros sentem pelo sujeito, uma projeção sobre os outros da incapacidade de amar.
É inútil insistir neste ponto, nada sabe e nem se tem como saber, sobre o que é a morte, como
comprovam as especulações sobre a vida mais além, que procuram remediar a angústia de um vazio
inconoscível, porém, o suicida, ao menos tanto quanto os outros, concebe a morte como uma paz na alma
finalmente alcançada. Este pensamento consola frente aos tormentos da vida, da sensação de não ser amado e
de jamais o poder ser. Algumas tentativas consumadas podem, inclusive, induzir os demais a enxergar o
suicídio de maneira similar ao que acontece àqueles que falecem após uma longa enfermidade incurável,

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deixam de sofrer. Não foi possível minimizar seus sofrimentos, nem sequer nos casos em que não se trata de
melancolia. Em certas formas de psicose, o que torna a vida aborrecida pode ser o sentimento de ter sido
rejeitado pela existência, a sensação de ser perpetuamente invadido, parasitado, colonizado, por um objeto
que despoja de identidade.
Às vezes, o suicida supostamente aporta à prova de que temos tão pouco apego a vida que estaríamos
prontos a abandoná-la a qualquer momento. Assim, Kirilov é arrancado do universo dostoievskiniano e
oferece a sua vida a quem a peça, como prova de que Deus não existe. Esta metáfora subentende talvez o
desejo de provar que o universo é absurdo, que não tem qualquer sentido e que o suicídio, portanto, não é
uma ofensa a Deus, pois este não existe. Aceitar semelhante sacrifício de si próprio é lhe atribuir demasiada
importância.
Em ocasiões, e até com muita frequência, levanta-se a situação inversa. Em muitas religiões, amar a
Deus é sofrer por ele. Nas seitas que precederam o cristianismo, os primeiros adeptos ficavam orgulhos em
sofrer e até mesmo em sacrificar suas vidas pelo Mestre da justiça. Porém, vale lembrar que se
retrocedermos em nossa história, esta está repleta de mortes sacrificiais.
Enquanto escrevia esta obra, alguém que conhecia a minha intenção, me perguntou se eu iria abordar o
tema dos assassinos suicidas, aos quais abusivamente chamamos de "kamikazes". Invoquei minha
ignorância: jamais havia conhecido, nem de perto, nem de longe, homens ou mulheres assim. De qualquer
forma, isto não é motivo suficiente para me abster de refletir a respeito. Parece-me que os assassinos suicidas
representam para as nações não providas de meios técnicos sofisticados, algo assim como a arma absoluta.
Para além do fato de que, em certos casos, o herói que se imola é esperado no paraíso por setenta virgens
(setenta!: o suficiente para satisfazer até mesmo os apetites mais vorazes) e sua família recebe compensações
econômicas - preço pelo seu heroísmo sacrificial -, há nisso material para meditar. Por um lado, a imolação é
a negação de todo desejo individual - salvo o de se sacrificar por uma causa -, que conduz a uma
identificação completa com a arma utilizada (a bomba); por outro lado, é o meio que torna possível a
esperança de ganhar de vez em quando. Com efeito: como ganhar contra quem joga "perdendo para ganhar"
ignorando o desejo de salvar sua vida?
Neste caso, a perda humana é compensada por um ganho da divindade. Na Ilíada, cada combatente
vendia caro a sua pele. Os deuses se misturavam ao jogo: desviavam as flechas lançadas contra o inimigo,
mudavam a trajetória da lança que deveria alcançá-lo. Para os assassinos suicidas não importa que
sobrevenham quaisquer destas peripécias. Não há deus algum ao qual se possa invocar para dirigir a
destruição contra si mesmo ou contra quaisquer outros. Esta inversão da autoconservação sugeriria a
autodestruição, contudo os kamikazes contestariam; que se trata pura e simplesmente da maneira mais segura
de matar o outro. Um suicídio? Não acredito! Um mártir, mais provavelmente.
Não me ocuparei aqui dos aspectos sociológicos do suicídio, que começam a serem mais bem
conhecidos e lançam outra perspectiva sobre a questão. Em suma, falar de suicídio implica na adoção de
posições que vão, desde a mais estreita intimidade, ligada a derrota do desejo de viver, até outras mais
distantes que consideram apenas os fenômenos a partir da ótica dos grandes números, e como o afã de
comparar populações. Durkeheim (1897) em seu estudo sociológico do suicídio, não nos ajuda a
compreender pessoalmente do que se trata. Por mais que a psicanálise possa fazê-lo, seus argumentos nem
sempre conseguem colocar freio neste desejo de deixar de viver. Impede a morte dos "heróicos" toxicômanos

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ou dos corredores de fórmula 1? O risco de morte faz parte da excitação de viver. O que mais se pode fazer?
Jogar o tarot aos sábados à noite? Não, obrigado! Nestas circunstâncias, cada despertar é uma ressurreição, e
cada vitória um novo nascimento.
Um último ponto. O suicídio é uma tentação recorrente. Alguns pacientes o tentam cinco, dez ou vinte
vezes antes de aceitar viver. E mesmo que sejam muito versados nos produtos e nas doses letais, podem se
surpreender de acordar, apesar de haverem respeitado todas as instruções que deveriam tê-los levado além.
Surpreendem-se de ter de reconhecer que talvez não desejem tanto morrer quanto acreditavam.
Uma questão divide os pesquisadores: todos os suicídios são patológicos? Há suicídios normais,
considerados como atos lúcidos? Não saberia dizer com certeza. O que posso afirmar é que, se uma
enfermidade grave e incapacitante me afetasse, limitando assim meus meios físicos e, sobretudo psíquicos,
gostaria de ser capaz de decidir sobre o abandono da cena sem que se suspeite que quero cometer um ato
insensato. Também sucede que ao ser alcançado pela invalidez, perde-se a consciência do próprio estado
(Alzheimer) e se sobrevive.
Foi um ato semelhante, que lhe permitiu morrer com dignidade, o que Freud pediu a seu médico Max
Schur: ajudá-lo, chegado o momento, a dar o passo. De modo algum lhe ocorreu atribuir isso a uma má
jogada da pulsão de morte. Freud considerava que era a hora de finalizar e pediu à morfina que cumprisse
sua tarefa para escapar de sofrimentos em vão. Max Schur a administrou, e isso o levou a uma morte
tranquila. Invejo sua sorte.

2.10. Breves observações sobre a clínica

A teoria da pulsão de morte defendida por Freud com referência na compulsão à repetição
interpretava, de modo inovador, certos estados psíquicos observados durante o tratamento: neuroses,
depressões, casos limite e, às vezes, psicoses. Os dois campos clínicos que temos tratado os correspondentes
a psicocriminalidade e a psicossomática, distinguem-se de modo significativo. No caso da criminologia,
domina o quadro que Balier chama de "recurso ao ato", a saber, que nele a solução através do ato aparece
como coação, e nestas estruturas não cabe esperar qualquer elaboração psíquica. No que se refere à
psicossomática, pelo contrário, o recurso obrigado, por falta da organização psíquica, carente no nível do
preconsciente, parece ser a somatização. Em outras palavras, a solução força a distinguir entre "corpo
atravessado pelo significante" (Lacan), que pode explicar a conversão, e somatose e passagem ao ato, onde,
no nível do sintoma, não pode ser invocada nenhuma estruturação pelo significante.
Temos assim uma interessante simetria. Tudo sucede como se a "coisa mental" não representasse mais
que uma parte "psiquicizada" de um conjunto maior. É necessário ressaltar o pleonasmo. O psiquismo é a
parte psiquicizada. Na realidade se a psiquização parece tautológica, é porque resulta difícil de definir.
Diremos em uma palavra que, centrada pela pulsão, é capaz, graças às suas representações, de evoluir até
uma forma de relação com o Outro. O Outro existe de modo explicíto e cumpre seu papel na construção dos
sintomas e do quadro clínico. Se isso é de fácil ilustração, a partir dos quadros da psicocriminologia, sua
aplicação na psicossomática não é tão simples. Temos destacado o papel da somatose, no qual está em ação

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um corpo não significado. Agregaremos a isso que aqui o inconsciente fica fora do jogo [hors-je]. Ou fora do
Eu [hors-Je]? A sintomatologia o contorna e alcança as zonas psíquicas além do princípio do prazer.
As aparições da pulsão de morte se dão muito mais além do princípio do prazer, onde um psiquismo
"esburacado" freia de maneira somente muito insuficiente a morte, a do outro ou a própria.
Tal é a coerência do pensamento clínico. Caberia esperar sem dúvida, novas elaborações sobre esse
paralelo entre passagem ao ato externo e passagem ao ato interno (Green, 1973).

Conclusão

Há mais de meio século desde a aparição, em 1920, do texto revolucionário de Freud, seu impacto na
comunidade analítica ainda se faz sentir. O que dizer? Talvez possamos resumir a situação desta forma: "Se
as palavras foram recusadas, a coisa, por outro lado, geralmente foi reconhecida". Com efeito: se na
posteridade freudiana custa encontrar a expressão "pulsão de morte", ficamos verdadeiramente obrigados a
comprovar que, de Ferenczi até hoje, o problema central da psicanálise reside, sem dúvida, nas diversas
formas de destrutividade. Essa regularidade é reveladora e também problemática, pois se cumpre às expensas
do sexual, sempre colocado numa posição de inferioridade, em benefício de vários novos conceitos. De fato,
depois de Freud e Ferenczi, com Melanie Klein, uma modificação teórica modificou a perspectiva da
psicanálise. Depois, os autores tiveram de aprovar, ou, de modo mais geral, combater o ponto de vista
kleiniano, tanto como a teoria freudiana, se não mais. Contudo, a reflexão sobre a pulsão de morte não se
detém aqui com os autores posteriores a Klein. Após a morte dos grandes nomes da psicanálise aqui
destacados e cuja posição resumimos, surgiu uma nova geração. A questão, com efeito, não pode passar por
simplesmente saltar a página da pulsão de morte, sem a possibilidade de examinar uma vez mais o conceito
freudiano em sua totalidade. Por isso o nosso comentário não termina com os aportes contemporâneos, e
"segue rio acima" até a obra do inventor daquela pulsão. Por mais discutíveis que sejam suas ideias, são elas,
creio, as que dão mais o que pensar.

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3. A pulsão de morte no campo social: o mal estar na civilização.

3.1 A pulsão de morte na cultura

Frequentemente nos contentamos em recordar a influência da formação biológica de Freud sobre a


teoria que construiu. É indiscutível. Todavia, ainda que de modo algum tenha se formado em antropologia e
sociologia, inclinou-se para essas disciplinas por sua própria escolha.
Já em 1913, Totem e tabu efetua um avanço que será decisivo nesta direção. Freud retorna a este
domínio de investigação em 1921, com Psicologia das massas e análise do Eu, que imediatamente segue
Além do princípio do prazer. Dez anos separam esta última obra do O Mal estar na civilização, porém, desta
vez não era a manifestação de um movimento pendular que o levava a este polo do pensamento. Vimos que
de 1920 a 1930 sua reflexão o impulsiona a precisar as consequências clínicas referentes à última teoria das
pulsões e à segunda tópica do aparelho psíquico, além dos desenvolvimentos referentes ao complexo de
Édipo, o masoquismo e a recusa. O retorno à cultura em O futuro de uma ilusão (1929), sem alusão à pulsão
de morte. Contudo, em 1930, a convicção de Freud acerca da verdade de suas teorias reafirma-se e, longe de
retroceder, adentra o campo da cultura. Assim começa, então, o turno de O mal-estar na civilização.
Não nos enganemos. Ao escrever O mal-estar na civilização, Freud não acreditava que estivesse
fazendo outra coisa, senão entregando-se a uma interessante digressão. Não previa que os pensadores de
Maio de 68 iriam sustentar que este texto era tudo o que restara de mais valioso em sua obra. Alguns anos
mais tarde, aconteceria uma reavaliação mais razoável de seu pensamento, porém, atualmente, no que diz
respeito à pulsão de morte, O mal-estar na civilização é insubstituível. Insubstituível? Pode ser! Contudo,
verdadeiro?
O que diz Freud em O mal-estar na civilização? Antes de tudo, amplia a discussão acerca da religião,
em seguida ao O futuro de uma ilusão. Não é de surpreender que este trabalho se inicie com uma crítica ao
Eu. Mais uma vez, o Freud darwinista mostra-se ostensivamente, ainda que a psicanálise advogue pela
conservação de um passado que testemunha a sobrevivência de suas marcas no Eu. Neste sentido, interroga-
se sobre a meta da existência humana. Interrompe a ilusão que se marcara frente a este questionador e
responde sem rodeios: a aspiração à felicidade e a manutenção deste estado. Porém, o homem não consegue
escapar do sofrimento. Freud repassa os meios adotados para buscar, o que equivale a voltar à satisfação das
pulsões.

“O sentimento de felicidade provocado pela satisfação de uma pulsão selvagem, não dominada pelo
Eu, é incomparavelmente mais intenso que o obtido por meio da saciação de uma pulsão refreada” (Freud,
1930, pg. 266).

Em outras palavras, ao proclamar a morte dos gladiadores nos jogos circenses, experimentava-se uma
alegria muito maior do que a que presenciamos hoje em dia, frente ao triunfo da equipe de futebol pela qual
torcemos. A sublimação aqui já fez o seu trabalho, e prossegue com ele em outra parte. Resta ainda a vida de

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eremita. E, por último, o amor: amar e ser amado. Aleatório e arriscado. A religião? Força à infantilização
psíquica. O domínio da natureza pela ciência não basta, em que pese as inegáveis gratificações que procura,
para assegurar nossa felicidade, e a infelicidade, todavia, está demasiadamente difundida entre os homens.
O que é a civilização? O nome designa a totalidade das obras e das organizações cuja instituição nos
afasta do estágio animal e de nossos antepassados, e que servem a dois fins: a proteção do homem frente às
intempéries da natureza e a regulamentação das reações dos homens entre si. As conquistas para o domínio
da natureza já são incontáveis. Neste sentido, os progressos para resolver a problemática que surge nas
relações entre os homens são mais limitados. É possível dizer que a cultura é tal qual a agricultura, a
domesticação das forças da natureza em favor dos fins do homem. Não obstante, regularmente nos foge ao
controle as situações de catástrofe natural, às quais estamos submetidos: terremotos, ciclones, tsumanmis,
inundações, erupções vulcânicas, epidemias, etc. De fato, a natureza só é em parte domesticável.
Nem todas as ideologias são portadoras de paz. Também semeiam a morte e ameçam aos povos mais
civilizados. Para limitar os seus estragos, temos dado o direito, ainda que este possa desaparecer da noite
para o dia, a favor dos preconceitos mais obscurantistas. Pensemos o nacional socialismo e o comunismo.
Toda civilização impõe aos seus sujeitos limitações à satisfação de suas pulsões individuais. Freud acredita,
contudo, na existência de um “processo civilizatório” que se desenvolve para além de toda a humanidade. A
sexualidade parece hoje mais livre que em seus tempos, contudo não se contenta em absoluto com o que
logrou nos últimos decênios. Reivindica cada vez mais liberdade e combate inclusive a ideia de “natureza
humana”, um artefato de pensamento, diz-se, destinado a limitar nossas possibilidades de gozo. A
sublimação ganhou terreno, não há dúvida, porém seus servidores constituem uma minoria de peso, escasso
no conjunto. A renúncia cultural impõe graves sacrifícios à liberdade de expressão pulsional.
Freud evoca uma evolução ideal na qual Eros e Ananké teriam se tornado os pais da civilização
humana. Contudo, é possível dar a Ananké a estatura para frear Eros? A vida amorosa é uma preocupação
dos povos civilizados. Todavia, o que hoje os atrai é a pornografia, que gostaria de passar por cima da
monogamia, e da vida familiar. Consequentemente, Freud se vê na obrigação de levantar a questão das
tendências contrárias à vida erótica propiciada pela civilização. Tabus e restrições limitam a expansão sem
travas da vida sexual, sobretudo infantil. A maior tolerância de nossa época está longe de favorecer sua livre
expressão, sem que se leve aqui em conta as desigualdades "constitutivas”. O amor heterossexual e
monogâmico é legitimado e considerado, na maioria dos casos, a norma, a despeito dos mais abundantes
descumprimeitos desta, que passam despercebidos ou que são sancionados quando percebidos. A
homossexualidade já não é um delito, contudo, longe de se contentarem com este resultado, os homossexuais
reivindicam a igualdade absoluta. Se a natureza não lhes dá capacidade de procriar, temos a adoção para
corrigir esta limitação, até que a biologia nos dê subsídios para eliminá-la.
Seja como for, a vida sexual do chamado “homem civilizado” está sempre restrita por proibições já
vigentes nas sociedades, sem legitimidade , de maneira bastante estrita. De qualquer forma, a diferença dos
sexos submete a nossa vida pulsional a uma limitação de fato. A tolerância à frustração varia segundo os
homens. A moral cristã gostaria que amassássemos ao próximo como á nós mesmos, contudo, seria possível
fazê-lo sempre que quiséssemos? A tendência a explorar o outro para nossa comodidade ou nosso prazer é
um dado constante de observação. Por outro lado, a preferencia é inevitável. No mais a maldade do próximo

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para com os outros é também um fato pouco discutível. Seria possível superar a reciprocidade que é sua
consequência?
Tudo isso, como vemos, leva Freud onde ele deseja nos levar: ao admitir os maus feitos da pulsão de
morte.

“O ser humano não é um ser manso, amável e frequentemente capaz de se defender se o atacam,
contudo, é lícito atribuir sua dotação pusional de uma boa cota de agressividade.” (Freud, 1930, P.297).

Não basta fingir que só o outro é assim. É necessário reconhecermos em nós mesmos o que parece tão
fácil denunciar no outro. A racionalidade não é suficiente para nos levar a renunciar a uma agressividade
presente desde que a humanidade existe. As grandes obras poéticas de origem são epopeias bélicas que
tratam de temas como vencer e dominar o adversário que prejudicam nossas satisfações pulsionais: O
Mahabhatara, a Ilíada e A Canção dos nibelungos.
Detenhamo-nos em um só exemplo de nossa civilização: a Ilíada. No canto XI (Homero, 1955, versos
67-385), que descreve a terceira jornada de combate, vemos os atenienses em ação, que sabem que estão em
desvantagem, uma vez que Zeus outorga sua preferência aos troianos. E ainda que o saibam, redobram sua
paixão, apesar da ausência de Aquíles a seu lado. Na passagem em que descreve façanhas de Agamenon
"pastor de povos", Homero nos entrega um inflamado relato da fogosidade guerreira do "rei dos reis" em
batalha. Este grande massacrador de homens vê cair sob seus golpes muitos dos troianos e sua força faz dele
uma fera cuja energia multiplicada, liberada pelo combate, sugere em sua atividade assassina a comparação
com mais de um animal de vigor indomável, animado por um furor insensível à humanidade do adversário.
Agamenon recorda o leão que mata sem descanso, cortando os membros e arrancando as cabeças de seus
inimigos, e inclusive um impiedoso lobo. O Átrida persegue as suas presas "suas terríveis mãos manchadas
de sangue e de poeira" (ibid.). E não há somente homens contra ele. Zeus pessoalmente se interpõe em seu
caminho, dotado de uma energia pouco comum, a que convém ao pai dos Imortais. Com frequência a raiva
dos combatentes, causada pela morte de seus familiares e aliados, decuplica sua sede de vingança. Pensa-se,
então, em um ódio provocado, aferrado ao sofrimento. Não é o que acontece com Agamenon. Neste caso,
como é possível duvidar da ativação de uma pulsão de morte exteriorizada, da qual Aquíles, na sequência, irá
mostrar um insuperável exemplo?
As ideologias presumidamente opostas tem demonstrado que suas más jogadas eram piores que
aquelas que elas condenavam nos papéis. A abolição da propriedade privada deu origem ao gulag e, a nova
ordem, aos campos de extermínio. O país no qual se ergue a estátua da liberdade tem prisioneiros
acorrentados e torturados, o da revolução francesa praticou a tortura na Argélia. A propriedade privada
começa pela apropriação de objetos de amor. Por isso não é possível fixar-se limites. Não há porque esquecer
que a civilização condene a violência, e a guerra é monopólio do Estado.
Freud, por fim, chega a sua teoria das pulsões, a última. Até agora vinha se dedicando ao que
poderíamos chamar de uma "clínica sociológica", segunda - ou primeira? - vertente de sua teoria pulsional,
que se aplica tanto ao indivíduo da clínica psicanalítica, como ao homem como membro do socius. Aqui
estamos: Além do princípio do prazer ocupou-se dos fundamentos biológicos; O Eu e o Isso, do homem em

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suas relações com seus genitores, e O mal-estar na civilização, do homem em sociedade. Uma volta
completa.
Freud se lança ao que poucos antes dele ousaram fazer: valeu-se da observação de fatos
antropológicos e sociológicos como se consagrara a uma descrição clínica, sem se incomodar com conceitos
que delimitassem o normal e o patológico, o individual e o coletivo. Uma única realidade: a realidade
psíquica observável nos homens. Sem dúvida alguma os representantes destas disciplinas antropológicas e
sociais se sentem invadidos, colonizados. A meta do empreendimento freudiano não é conquistar ou anexar,
mas fazer prevalecer um aspecto até então desconhecido desta realidade psíquica humana, sem alcance
moralizador. Aqui quase não há fronteiras que valham: o elo condutor do pensamento é colocar em evidência
uma exclusão.
A descoberta do narcisismo é qualificada como "decisiva" (Freud, 1930, p.304), em conformidade
com a teoria exposta em Além do princípio do prazer, que introduzia a pulsão de morte. Ideia que Freud
defende novamente, porém desta vez sem reservas, apesar das resistências (o termo é dele) a sua volta: “O
fato de outros haverem mostrado e ainda mostrarem a mesma rejeição não me surpreende. Pois as crianças
(os pobres coitados) não gostam de ouvir,* quando se fala da tendência inata do ser humano para o “mal”,
para a agressão, a destruição, e também para a crueldade.”. O Diabo, disse Freud, ainda é o melhor
subterfúgio para desculpar a Deus. Eros liga; as pulsões de destruição desligam. Como tornar inofensivo o
desejo de agressão? O sentimento de culpa inconsciente contribui com essa meta.
No capítulo VII de O mal-estar na civilização, Freud expõe as consequências da renúncia pulsional
(tema ao qual adjudicará muita importância em Moisés e o monoteísmo). Neste sentido: a renúncia às
satisfações pulsionais está na origem da consciência moral (devido ao fato de que o Supereu torna sua esta
renúncia). Esta consciência, diga-se de passagem, pede sempre mais. Neste ponto, não é possível nada
compreender do pensamento de Freud, se omitirmos a ideia de que a libido erótica agora está atada a libido
agressiva e destrutiva, e acompanhada por ela. Freud sustenta que na criança deve ser gerada uma quantidade
considerável de agressividade contra a autoridade o que lhe impede de viver as primeiras, contudo, não
obstante, as mais importantes satisfações, seja qual for o tipo de privação pulsional que se lhe demande; fica
obrigada a renunciar à satisfação de sua agressividade vingativa. Pela via da identificação, toma para si a
autoridade inatacável (ibid.). Irei me permitir me citar um pouco extensamente:
"Observamos aqui a diferença em relação aos trabalhos de metapsicologia que se ocupam dos destinos
da pulsão sexual. Quando a pulsão de morte vem a sustentar o conceito por detrás da manifestação da pulsão
agressiva ou destrutiva, passa a exigir algo além: a renúncia à satisfação pulsional (para conservar o amor da
autoridade submetendo-se a suas proibições). Não se trata de repressão - que a faria existir sob a forma do
reprimido inconsciente - mas de renúncia (abandono, aceitação do sacrifício) da agressividade vingativa (que
ameaça potencialmente "a vida" do objeto, com a perda de seu amor e sua proteção). Aqui intervêm não
formas inventivas de outras ligações que disfarçam a demanda pulsional primitiva, mas sim um
desligamento, um solta-prende ao serviço do Supereu. Dai em diante, este irá abrir caminho para um
masoquismo primordial. É o trabalho do negativo da pulsão de morte. Ela suportará uma forma de
religamento parcial com o Supereu, instância que liga a agressividade ao serviço do sentimento de culpa.
Contudo, Freud não deixa de insistir nisto: a Iigação não é completa; nem sempre está em condições de ligá-

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lo completamente. Resta uma parte de agressividade flutuante da qual o masoquismo pode apoderar-se
contra os interesses do Eu” (Green, 2006).

A apropriação da instância superegóica consiste na assimilação de um interdito isolado por um sistema


coordenado e indiscutível, um feixe de proibições que reforça sua razão de ser e sua coerência mediante o
investimento secundário do conjunto, anônimo porque não está ligado a uma pessoa. Tanto rigor é difícil de
suportar e respeitar. Por isso a psique não se detém ali. Conta, todavia, com o recurso ao procedimento da
cisão, ao qual apela nesta circunstância. O sujeito serve a dois amos ao mesmo tempo, ainda que esteja em
contradição com um ou com o outro "Minha crença me proíbe de satisfazer tal ou qual pulsão, porém, meu
desejo pede a Deus que me perdoe por minhas debilidades". Muitas obras literárias descrevem com talento
esta situação cindida. Em suma, sempre e em toda parte nos deparamos com a dupla: tentação de transgredir
o interdito - pedido de perdão por tê-lo feito. E, para mudar de registro, os sistemas políticos rígidos e
opressivos utilizam a mesma receita: acusação, confissão pública, sanção, arrependimento.
Verifiquemos a diferença. A repressão difere, dissimula camufla, rechaça, se aliena do conciente; a
renúncia abandona, solta a presa para salvaguardar o objeto. A pulsão é sacrificada, tem que desprender-se
dela. A recompensa pela renúncia é a obtenção do amor dos pais. Porém, o preço é um sacrifício imenso, que
não pode senão reforçar o protesto agressivo contra a privação da satisfação pulsional.
Este conceito é de origem tardia. Freud se vale dele em 1930, e voltará a fazê-lo em sua obra
testamental Moisés e o monoteísmo (1939), a consciência de culpa associável ao Supereu, que o autor prefere
chamar de necessidade de "autopunição", mostra seus vínculos com o masoquismo e com a reação
terapêutica negativa. A noção de fazer mal não se funda sobre efeitos da satisfação pulsional, mas na
imposição de um terceiro em posição de outro, a imago parental, a qual, ainda que o sujeito espere dela amor
e proteção, a força a renunciar a satisfação cobiçada (ainda que às vezes obtida de modo encoberto).
A interiorização da autoridade - graças à instauração do Supereu- explica esta necessidade de
autopunição. Recordemos: o Supereu da criança se forma a imagem do Supereu dos pais. Em outras
palavras, os pais podem ser julgados por suas faltas, mas em referência àquilo ao qual dizem obedecer, de
qualquer forma, segue sendo insubstituível. Ademais, a adversidade se interpreta como castigo de um
Supereu de origem divina. Assim, os infortúnios do povo judeu sempre foram explicados pelos profetas que
acusam seus membros de más práticas ou de más interpretações do Torá. O destino, diz Freud, (1930, p.317)
é considerado como substituto da instância parental. Consequentemente, angústia frente à autoridade e
angústia frente ao Supereu se sucede. O Supereu vê tudo, nada pode lhe ser ocultado. Daí um sentimento de
culpa, independente das circunstâncias.
Afinal de contas, a necessidade de receber amor e merecê-lo governa tudo. De fato, a causa da
renúncia é a consciência, e introjeta-se ela.

“A situação se inverte, como é frequente suceder. “Se eu fosse o pai e você o filho, eu trataria você
mal.” A relação entre Supereu e Eu é o retorno, deformado pelo desejo, de relações reais entre o Eu ainda
não dividido e um objeto externo. Também isso é típico. A diferença essencial, porém, está em que a
severidade original do Super-eu não é — ou não é tanto — a que experimentamos de sua parte ou atribuímos
a ele, mas representa nossa própria agressividade para com ele” (Freud, 1930).

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Como se pode observar, a introdução do Supereu na segunda tópica cria um tipo de causalidade que,
em conjunto com o componente pulsional, apresenta um dado antropológico: a relação do Supereu com o Eu
que faz intervir o Outro. Contrapartida: o Supereu finca suas raízes no Isso. Freud chegará a defender a
hipótese de um "assassinato do pai primordial", que será a conclusão de sua obra.
O obstáculo à satisfação pulsional e o desejo de transgressão agravam o sentimento de culpa
inconsciente quando se trata apenas das pulsões agressivas. Conclusão:

“quando uma tendência instintual sucumbe à repressão, seus elementos libidinais se transformam em
sintomas, seus componentes agressivos, em sentimento de culpa" (Freud, 1930).

Daqui por diante, Freud fica obcecado pela filogênese e suas conclusões se voltam para este lado. Dai
a obra que encerra todo o seu pensamento: Moisés e o monoteísmo. Processo de civilização e
desenvolvimento individual caminham paralelamente e convergem na ideia de assassinato do Pai.
Reconhecê-lo é, para Freud, buscar a satisfação narcísica de ser melhor que os outros que se obstinam em se
limparem, se negarem a tomar consciência disso.

3.2 – O parricídio originário

Estranho epílogo. Durante os anos em que elabora Moisés e o monoteísmo, de 1937 a 1939, o tema do
assassinato do pai, presente no pensamento de Freud desde 1913 (Totem e tabu), e mesmo antes, se enriquece
de muitas reflexões. Evidentemente não é uma causalidade que sua obra se encerre com este texto. O
assassinato do pai é, sem dúvida, um dos principais temas do pensamento freudiano, portanto, esta eleição
não é de se surpreender. Não, nem sequer no caso de uma obra que poderia se vincular à “novela histórica”,
na qual ficção e verdade parecem coincidir na mente de Freud.
Ao redor deste tema, Freud costura e insere esse núcleo em um contexto teórico que é o único capaz
de explicar sua importância. O leitor que lê consecutivamente O mal-estar na civilização e Moisés e o
monoteísmo sente uma perfeita continuidade no discurso teórico. Com somente uma exceção: a ausência de
qualquer menção da pulsão de morte em Moisés. Todavia, O mal-estar na civilização aprofundou-se muito
no papel da agressividade desencadeada pela autoridade externa que nega ao sujeito numerosas satisfações
pulsionais primárias. Ainda: Freud havia descrito as diferentes etapas que irão marcar a trajetória da angústia
frente à autoridade externa, a qual evoluiria, com o tempo, para uma transformação em submissão ante o
Supereu. Durante toda essa evolução, recorda constantemente que a fonte da angústia reside na autoridade
não interiorizada em um princípio e posteriormente assimilada ao Supereu.
Qual é a razão que Freud, ao retomar o elo de sua reflexão sete anos depois, assiná-la a enorme
importância do papel do Supereu religioso, sem dizer uma única palavra sobre a intervenção das pulsões de
destruição? Aqui voltamos a um Édipo, no qual estão presentes as manifestações de rivalidade e oposição

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entre filhos e pais, mas onde a fonte dinâmica – a saber: a ação das pulsões destrutivas – não se menciona
explicitamente. Não obstante, os dados descobertos pouco antes, como a renúncia pulsional, são objeto de
uma teorização mais profunda. O “progresso na vida do espírito9” se vincula à diferença entre os
testemunhos dos sentidos, associados à mãe, e os testemunhos devidos ao progresso da espiritualidade –
deduções, inferências, implicações -, associados ao pai. Não há dúvida de que há aqui algum enigma que não
se deixa resolver com facilidade. Abordemos, pois, este mistério e busquemos compreender a ideia
subjacente a teoria.
Para Freud, é preciso definir um conflito básico: o que se passa entre a criança (a maioria das vezes só
se ocupa do varão) e a autoridade que proíbe: o pai castrador. O que equivale a dizer que, no seu
entendimento, o conflito entre a criança, dominada pelas pulsões que nada buscam além de se satisfazerem, e
o obstáculo à gratificação pulsional, haveria um complexo fundamental. Dele derivam a ameaça de castração
e a formação do Supereu, gerador de culpa inconsciente e da necessidade de castigo. Persiste a questão da
fonte do conflito. O que o causa seriam os poderes agressivos que tomam parte na formação das pulsões de
destruição, ou basta prestar contas da intensidade do conflito, por sua referência filogenética, ou pela
inevitabilidade de seu aparecimento?
Freud praticamente não formula a questão, nem ao menos propõe uma resposta, porque sua profunda e
inquebrantável convicção em um aspecto filogenético desta tese se afirma não uma, mas duas vezes. Aquilo
que explica a resposta religiosa. Depois da escravidão no Egito, já não se teme ao faraó, mas ao deus dos
vulcões. Yahvé. Recordemos que o monoteísmo justifica a onipotência de Deus, tem como origem a efêmera
religião de Akenatón, que só reinou por um período limitado; à sua morte, os sacerdotes recuperaram o poder
e restabeleceram a religião antiga, que lhes outorgava a primazia. Morto o Faraó, se erradicou, suprimiu,
censurou radicalmente tudo o que poderia evocá-lo, e, inclusive, foram destruídos nos monumentos alusões a
ele.
Em suma, o mesmo conflito sempre se reproduz: entre uma nova forma de poder ético destronando o
anterior, por trás do qual a aspiração de reestabelecer os antigos símbolos de soberania do primeiro conduz a
sua queda. Ou ainda um novo poder quer reverter um poder mais antigo em seu próprio benefício, ou a
vingança deste último se manifesta em seu retorno e na perseguição dos jovens adeptos de seu rival.
Para Freud, este nó conflitivo se mostra – pelo menos neste texto -, mais importante que a natureza
pulsional das forças que ambicionam verem-se com o poder. É o que se deduz da estranha omissão da
pulsão de morte em Moisés... O Novo testamento virá a prolongar o Antigo, certamente, mas também
assegurar sua hegemonia sobre ele. Jesus destrona Moisés e durante muito tempo os cristãos perseguiram os
judeus. Mais adiante, o islamismo, o mais recente dos três monoteísmos, irá a posteriori reivindicar a sua
superioridade. Nisto estamos. Todavia, o parricídio ancestral talvez tenha conseguido apagar toda a marca de
sua própria presença.
A morte experimenta uma recusa, porque aqui nenhuma pulsão a expressa, contudo, sua violência
segue sendo temível, irracional, fanática. A esperança em um compromisso que torne compatíveis os três
monoteísmos e lhe permita coexistir em paz parece uma ilusão.
A conclusão de Moisés e o monoteísmo, que é também a última palavra da obra de Freud, tem um
alcance considerável. Contra todo geneticismo ingênuo que tenda a atribuir maior importância ao mais

9 referente a renúncia
!66
antigo, Freud adota um ponto de vista estrutural. Prima cai na sequencia de Summa. E Summa nada mais é
do que a figura do Pai. Formidável a aposta da psicanálise de nossos dias, que parece repetir o julgamento
que devia julgar Orestes. Freud, de sua parte, é, não obstante, o pai, e isso é o que proclama a voz em plenos
pulmões. De nada serve, portanto, tal como ocorre atualmente, apoiar-se nas observações de crianças que em
uníssono querem fazer valer o primado da mãe. Freud bem sabe que ela existe, mas parece querer nos dizer:
o pai é outra coisa, o “progresso da espiritualidade”, o que anima a vida da cultura e a referência que os
homens necessitam, para, no momento oportuno, se levantarem contra ele, rebelarem-se, assassiná-lo, e se
arrependem. Não há a possibilidade de nada semelhante do lado da mãe. Não significa que devemos ignorar
o matricídio, e menos ainda o incesto, contudo, ainda que o incesto se realize, são raras às vezes em que isto
implica a oportunidade de façanhas culturais, e o assassinato da mãe não conhece outro castigo senão a
loucura.
Neste sentido, se fosse possível eleger, mais valem a angústia de castração e o medo do pai que a
fragmentação e a sedução pela mãe. Além disso, também se leva em conta a veneração pelo pai, o respeito
que lhe é devido e a homenagens que se lhe rendem. O pai é o pai morto. A mãe morta é outra coisa: uma
depressão infinita, sempre recorrente, o “oposto da vida”.

3.3 – Discussões recentes sobre o processo cultural

As ideias expressas por Freud em O mal-estar na civilização tem sido objeto de recentes discussões.
No colóquio da Unesco organizado pela Sociedade Psicanalítica de Paris, um debate moderado por Jean-
Louis Baldacci Nathalie Zaltzman enfrentou Jean-Luc Donnet (Donnet e Zaltzman, 1993). Enquanto a
primeira focaliza o paralelismo entre progresso civilizatório e o progresso do tratamento, o segundo se
manteve alinhado com o pessimismo freudiano.
A concepção pré-freudiana de enxerga tradicionalmente no homem o efeito de uma diferença de
natureza com relação ao animal, a mercê da presença de uma transcendência espiritual. Que esta seja uma
aquisição da evolução das espécies e no fundo se manifeste como essencial ao ser humano, ou que seja a
consequência de uma domesticação rigorosa das pulsões, o resultado é o mesmo: o homem está dotado de
um poder espiritual. As teses de Freud combatem esta concepção. Sobretudo, porque o homem representa
uma continuidade da linhagem animal. E, quando comparado com o animal, aparece muito mais investido
pelos dados pulsionais, porque a diferença entre os instintos e as pulsões enriquece estas com recursos da
astúcia e da inteligência, colocadas a serviço de suas metas.
Outra comprovação: a cultura, longe de conseguir “humanizar” o homem, fracassa na maioria das
ocasiões. A civilização não pode com a barbárie. As forças desta última pode se reavivar e alcançar picos
inesperados em períodos em que parece inconcebível que lhe suceda algo assim. Pensemos na Shoah. Isto é
o que acabou sendo denominado de “pessimismo freudiano”, ao qual Freud respondeu que somente poderia
ser considerado como tal em comparação com o otimismo exagerado de seus adversários. Em suma, ele
levou até o final a empresa da desilusão que era, a seu ver, a meta da psicanálise.

!67
Jean-Luc Donnet (1995 & 1998) ocupou-se da questão do Supereu e das relações do processo cultural
com a sublimação, os contempla a partir da visão do trabalho da cultura. De modo que para o indivíduo a
meta segue sendo a conquista e a conservação das vantagens outorgadas às pulsões, para o processo cultural
a prioridade é a instauração de uma unidade colocada acima dos indivíduos. Conclusão evidente: a
manutenção da coesão dentro do grupo, por meio, entre outras coisas, das identificações mútuas que unem as
pessoas.
Esta disparidade entre Supereu individual e Supereu cultural provém, portanto, das diferentes metas
perseguidas por ambos. Todavia, um remete ao outro; o primeiro é o reflexo do tempo sob a espécie,
enquanto o segundo depende da transmissão geracional, garantindo a continuidade entre as gerações. O
Supereu da criança se constrói sobre o Supereu dos pais. As imagens valorizadas por cada cultura colocam
em comunicação as dimensões grupal e individual. Aqui intervém a transmissão intergeracional.
Este ponto de vista cultural nos aliena cada vez mais de nossas condições de origem: animais.
Impondo ao homem, consequentemente, a necessidade de suportar uma dose cada vez maior de frustração,
tema que temos amplamente abordado. Como compensar estas perdas de satisfação? Aparentemente, a
renúncia jamais encontra uma compensação suficiente pelos sacrifícios que deve consentir. Não nos
estendemos sobre o que é demandado da satisfação das pulsões sexuais. Por estar permanentemente
empurrando o homem, a pulsão exige uma vigilância igualmente permanente. No seio de Eros, as categorias
pulsionais constitutivas substituem umas às outras. A sublimação, destino das pulsões, prolonga a via dos
deslocamentos de meta, associada ao investimento privilegiado das atividades psíquicas superiores (ética,
religião, etc.), urge ressaltar que, com efeito, o homem não somente depende de sua animalidade originária,
mas que esta adota nele uma tonalidade de loucura; recordemos nossa discussão em “Entre a loucura e a
psicose” (Green, 1990).
A sexualização de todos os processos psíquicos encontra aqui uma oportunidade de revanche. Temos
visto que a invenção das pulsões destrutivas não faz mais do que estender o campo da renúncia, principal
fonte da culpa inconsciente. Os conjuntos defensivos renegação – cisão – projeção e o par idealização-
persecutoriedade (Melanie Klein) contribuem para a transformação das formas pulsionais originárias. Afinal
de contas, esses resultados devem ser medidos com a régua da ilusão: “O Supereu, por ser uma instancia tão
irredutível ao Eu, como o é o Isso, constitui uma reserva de ilusões” (Donnet & Zaltzman, 2003, p. 228).
O trabalho analítico deve ser comparado com o trabalho da cultura. Sempre se encontra o
superinvestimento das funções psíquicas superiores (a referência a “verdade”). Seguem reflexões sobre o
lugar do tratamento nos valores analíticos. Para Donnet, esse tratamento continua sendo dado “por
aditamento”.
Esta articulação entre o individual e o coletivo é problemática. O Supereu cultural e seus ideais
combinam seus efeitos sem deixar de respeitar seus espaços recíprocos. Em diálogo com Jean-Luc Donnet,
Nathalie Zaltsman vê, nos dois trabalhos, o de tratamento e de cultura, um acréscimo de gasto psíquico,
porque a dominância do princípio do prazer não pode se realocar. Consequentemente, o esforço que tem de
fazer para investir o desprazer do sacrifício é, forçosamente, maior. Recorre-se aos serviços de Eros e de
Ananké. Zaltzman (ibid., p.212) assiná-la que o caráter direto das satisfações é de importância menor do que
a de outra prioridade. “[A evolução humana] só faz o investimento de suas experiências de prazer ou de
sofrimento através do que estas representam na economia do desejo do outro”

!68
Aproveito a oportunidade de recordar aqui as minhas ideias sobre a “causalidade psíquica”, que não
incumbe exclusivamente às ciências da natureza humana e tampouco às ciências humanas antropológicas. É
a ocasião também para, de passagem, recordar a referência ao “Grande Outro” de Lacan, instancia fora de si.
Neste caso é preciso remeter-se a um Supereu cultural (Diatkine, 2000). O Fora de Si [Hors Soi] vem ao
recordar, no momento oportuno, as concepções de Freud sobre o movimento civilizatório “acima da
humanidade”. O processo deve se apoiar sobre os valores do investimento e o reconhecimento, em cujas
raízes se encontraram as defesas, a repressão, a forclusão, a renegação, a destruição ou a autodestruição. E é
o próprio Freud quem assimila o processo cultural da humanidade e o processo de desenvolvimento ou
educação do homem individual. Efeito de Eros, portanto. Zaltzman não se decide por adotar os pontos de
vista do pessimismo freudiano, no que pese a oposição entre Eros e Tánatos. Parece-me que ao invocar o
acréscimo do investimento, ela recupera as idéias freudianas finais, que reconhecem o vínculo entre o
trabalho de englobamento das pulsões de vida, em busca de sínteses cada vez mais vastas, e o inevitável
aumento das tensões que esta busca implica.
Para terminar, se Jean-luc Donnet acerta ao recordar com Walter Benjamin “o fracasso imemorial da
cultura no domínio das relações entre os homens”, Nathalie Zaltzman, ao me citar, conclui que hoje há mais
verdade do que nunca entre estes. Contudo, o certo é que a verdade nem sempre vence a mentira e a ação
destrutiva que esta busca promover.
Para descrever de modo sumário: por um lado, fidelidade ao pessimismo freudiano; por outro, abertura
para uma esperança rejeitada com demasiada rapidez.
Mas o que pensamos disso?

3.4. - A pulsão de morte e a linguagem: Laurence Khan

Nas resenhas das discussões precedentes foi possível escutar a voz daqueles que não crêem, daqueles
que crêem com e como Freud e, finalmente, daqueles que ao mesmo tempo em que levavam em conta à
dialética pulsional, experimentavam a necessidade, inspirada por Lacan, de associa-lá a um Fora de Si,
Nadie, [Personae] (no sentido de Homero) ou Grande Outro, cujos laços com a Palavra e o Nome do Pai
eram mencionados de forma explícita ou eram intuídos de modo implícito.
Chega o momento de nos ocuparmos de uma intervenção fundamental que devemos a Laurence Khan.
Faire parler le destin, sua obra mais recente, o exige. Tanto na análise de textos, como de conceitos, Khan
(2006) pretende posicionar o fiel do debate e assim o faz. Até aqui temos colocado as posições daqueles que
compartilham o pessimismo de Freud. Não será possivel acusar Khan de advogar a causa da ilusão.
Antigamente, identificava-se a psicanálise com um empreendimento que visava à liberação das cadeias da
repressão; atualmente, mudou-se de posição, requisitando que abandonemos toda esperança, devido ao poder
das forças de destruição. A análise de nada serve frente a este poder de morte? Os psicanalistas acreditavam
que Freud queria arrastá-los nesta direção: resistentes à tentação de desaparecer, se opuseram a ele.

!69
Infelizmente, o clima da época, até o final da vida de Freud, com a ascensão do nazismo, não estava
muito propício à criação de ilusões. Isto é o que testemunha a parte final de Moisés e o monoteísmo, na qual
aquele descobre a aliança contra a natureza do progresso e a barbárie. Certamente, O mal-estar na
civilização não é um texto isolado. Valèry advertiu-nos que as civilizações são mortais, mas não chegou a
afirmar que podiam se suicidar. Outros pensadores nos alertaram sobre a crise na civilização européia
(Hurssel, Spengler), mas nenhum identificou uma pulsão de morte. Seja como for, a fé que havia se
originado da Ilustração do século XVIII era muito excessiva. Era difícil prever que os regimes políticos
posteriores à guerra de 1914-1918 nos fariam testemunhas deste descambe da razão humanista.
Todavia, Freud - temos dito - não se lançou de cabeça em 1920, foi necessário esperar até 1930 para
vê-lo falar de certezas, como seguiria fazendo até sua morte. Se quisermos rastrear a as origens da virada de
1920, é preciso ressaltar, sem dúvida, o questionamento do conceito de inconsciente e sua substituição,
pouco depois, pelo de Isso. O que significa dizer que a comprovação da carência de um sistema
fundamentado em representações inconscientes e sua substituição pelo Isso obriga a adoção de uma
concepção mais econômica e energética, em cuja base destaca-se o papel das monções pulsionais (Green,
2006). Outro passo atrás no que diz respeito à frágil razão, aqui ainda mais superada. Contudo, Freud não
deixa de empregar seus dotes a seu serviço, contanto que a razão aceite renunciar a suas ilusões:

"Fazer o destino falar é a linha de resistência do pensamento quando opõe a crença e a violência da
busca das causas, quando embarcamos na descrição de todas as formas de desamparo humano e do modo
como este é tratado pelo indivíduo e pela comunidade (Kahn, 2005, p.16)".

Aparentemente, o darwinismo de Freud, sempre presente, mas discreto, ocupa aqui o primeiro plano,
sem nada ceder à herança "humana" recebida de nossos pais. Na união de ambos: a experiência psicanalítica,
excluída de toda mística romântica. Freud segue estando, segundo Kahn, próximo de Kant, como Bion o
postulará explicitamente, contudo, em um sentido muito distinto. Como é possível confiar no pensamento,
quando este, analisado e já não analista, mostra suas determinações inconscientes, que distam de ser
racionais?
"Aparelho da alma" é uma expressão provocativa. A alma constituída por um aparelho é uma
contradição em termos. Tal era, com efeito, o projeto dos fisicalistas amigos de Freud no início de sua obra.
De certo modo este projeto apareceria em suas primeiras elaborações sobre a histeria. Porém, que a polêmica
não nos faça perder o rumo. A linguagem do “Projeto para uma psicologia científica para neurólogos” não
contraria a das primeiras descobertas psíquicas de Freud. A histeria não está fora deste "Projeto": forma parte
dele. Certamente, não se reduz ao que o texto diz a seu respeito. Vai muito além, como mostra a obra ulterior
de Freud. A autonomia relativa do psiquismo o testemunha. A alma está "acima" do sistema nervoso, mas
não por isso deixa de estar ancorado nele. Não como uma localização cerebral, mas como este outro lado da
fronteira no qual a pulsão se sedia, na encruzilhada do corpo e da mente. Neste ponto o filósofo se detém. A
alma é pulsional: sublimação do movimento em curso no psiquismo, concepção em contraposição das
verdades admitidas?
Quantas vezes escutamos o coro dos filósofos deplorar e lamentar o biologismo de Freud! Que pena,
um homem tão inteligente! O por outro lado, outro coro simétrico, o dos partidários da biologia, que

!70
constituem o clã adversário. Que pena, um homem tão inteligente não ter seguido com a inspiração do
"Projeto"! Freud rechaçava tanto a uns como a outros. Pois, nenhum deles quis abrir seu raciocínio ao que
ele chama de monções pulsionais. Diferentemente de seus oponentes, Freud observou em si mesmo seus
efeitos, ao mesmo tempo em que observava-os nos outros - seus pacientes em primeiro lugar -. Não deixar-se
seduzir pelos hábitos do pensamento que enviesam nossa visão. É conhecido o caso de premiados com o
Nobel que seguiam proclamando publicamente: "Tudo isso não passa de charlatanismo; insisto e repito que
não tenho inconsciente!". Freud lutou durante toda sua vida por uma administração convincente da prova. É
o que dizer da sugestão pós-hipnótica? Vamos acreditar naquele que abre Seu guarda-chuva de improviso na
nossa frente, logo depois de uma sessão de hipnose na qual aquela sugestão lhe havia sido imposta, e que,
interrogado sobre as razões de seu ato, responde: "Era para ver se funcionava"?
Contudo, é certo que, por acaso, acabamos também nos topando com verdadeiras questões. Se nos
convida a voltar ao "demoníaco" e a levar em conta seus efeitos um a um. Em outras palavras, não há nada
de romântico neste projeto analítico que exige uma ampliação dos limites tradicionais da razão e de suas
formas de expressão, mais particularmente aquelas nas quais se detecta as marcas da sexualidade - em suma,
voltar a colocar o diabo ao lado do "bom" Deus -.
Laurence Khan nega-se a arrastar Freud para o lado da energética - cujo papel, todavia, é
constantemente ressaltado por este, sobretudo depois de 1923 - suspeitando sempre da possibilidade de estar
naturalizando seu pensamento. A autora escreve:

"A pulsão originária é o primeiro fundamento da representação, o que implica em que a pulsão, esta
pulsão da razão, não é engendrada por objetos, senão que engendra o seu próprio" (Khan, 2005, p. 52).

Deste modo justifica-se a distinção que a autora propõe entre presentação e representação, ou seja, o
efeito de uma pulsão da razão. Esta observação é menos filosófica e mais "freudiana" do que parece, porque
a presentação é presentação dos sentidos, ao passo que representação é representação da pulsão. Dai a
referência à estética e remição ao Witz, o "chiste" [mot d'eprit"]. É a "palavra do ingênuo" [mot né d'eprit].
Recordemos que Freud nesta obra [O chiste e sua relação com o inconsciente] insiste na diferença entre a
ingenuidade da tendência (futura pulsão, a nosso ver) e a ingenuidade das palavras (as palavras da pulsão,
sempre em nossa opinião). Poderíamos dizer também que a pulsão de morte é a ingenuidade da morte. Kahn
se ocupa de assinalar a ruptura que o proceder de Freud marca com o romantismo. Surpreende apenas que
seja assim, tendo em vista que Freud não perde a oportunidade de recordar a sua adesão ao ponto de vista
científico. O único que desilude? Com a condição de que a ciência não ceda ao poder da ilusão, gerada nesse
sentido pela desilusão.
"Como pode a linguagem dar acesso à linguagem de mais além da linguagem?" Para responder
teremos somente razões? Segundo Wittgenstein "Do que não se pode falar, devemos calar". Adotar esta
atitude é fácil, diante da qual Charcot já dizia: "Isso não impede de existir".
Tomemos um exemplo: Escutemos um discurso psicótico. E logo o comparemos com todos os
diversos discursos não psicóticos que se lhe opõe, para captar seu sentido. Ao menos que decretemos que o
primeiro não tem qualquer sentido, os outros discursos são incapazes de oferecer uma tradução aceitável do
que diz o psicótico. Nem o psiquiatra, nem o fenomenólogo, nem o cognitivo-comportamentalista nos darão

!71
uma ideia do que fala esse paciente, cuja gramática ignoramos. Alinharemos-nos, contudo com os
organicistas? Encurralados na necessidade de falar das estruturas cerebrais, entenderemos ainda menos do
que se trata este discurso.
Admitamos que a pulsão de morte é destino. Pois, neste caso, o que é destino para a pulsão de morte?
E, antes de mais nada, tomemos consciência de que a renegação desta pulsão - a renegação à que submete
Freud, em primeiro lugar - durou muito mais do que a da sexualidade de Eros, sobre a qual acabou acabou se
pensando que era por si só a chave da vida pulsional. A ilusão havia se infiltrado na teoria. Isto não fez mais
do que atrasar a desilusão, mas não a impediu. A barbárie, ou seja, a guerra regressou e obrigou a pensar o
impensável. O mal-estar na civilização nos forçaria a isso. A tendência ao deslocamento se impõe a seus
obstáculos. A violência: a respeito deste ponto, Freud corrige Eistein, por que é dela que se trata e não de
poder (Macht), como sugere o físico, quando opõe Recht (o direito) e Macht. A Ilustração não teria sido
senão uma utopia, mas o próprio Freud a subscreveu. Acerta Laurence Khan ao advertir, em sua justa
medida, a mutação interna que acompanhou, em 1923, a recusa freudiana do inconsciente e a opção a favor
das monções pulsionais contra as representações inconscientes, da qual resulta o triunfo do conceito de força,
sem o qual o pensamento de Freud fica mutilado?
Pulsão de morte, última expressão do ódio a si mesmo. No final das contas a pulsão de morte é
suicida. O que temos de admitir é o par construção-desconstrução e amor-ódio em antagonismo e agonismo,
porque somos feitos dele e tudo o que fazemos não é outra coisa que a consideração de sua intrincação e
desintrincação.
Kahn (ibid. p.250) sustenta a hipótese - que ela reconhece como tal - de que "a nova cultura dos casos
limite, a nova odisseia da coragem analítica, se confundem com o heroísmo promovido por qualquer relato
épico". Mas a psicanálise, arauta de Eros, tem outra opção uma vez que a destrutividade se instaure sobre o
terreno? Para Kahn trataria-se de um desconhecimento, a menos que se pense que o ocultamento que serve
de base à sua própria posição é o verdadeiro desconhecimento de uma psicanálise nostálgica. Kahn recorre
ao auxílio da linguagem em perigo, afinal: não foram os psicanalistas que a colocaram nesta situação, ao
querer ignorar o "outro da linguagem"? Ignorar o impacto dos casos limite e fazer da loucura e da psicose
"enfermidades" da linguagem, algo que, temo, não são nem nunca foram. Casos limite ou transtornos limite
da personalidade são figuras clínicas nascidas da patologia contemporânea - que o analista deve levar
bastante em conta em sua prática, sem fingir ignorá-las -, e não invenções produzidas pela imaginação de
alguns analistas. Ah, como era charmoso o tempo da neurose em comparação ao dos casos limite! No que se
pensa? Nos pacientes de Estudos sobre a histeria? No "Homem dos lobos"?
Aqui, uma linha divisória. Talvez não seja indistinto ter sido ou não psiquiatra. Ter se deparado com o
inegável horror da enfermidade mental e seus presentes asilos. Um psiquiatra jamais o esquece, porém, quem
não o conheceu não pode recordá-lo. Não pode, com efeito, quem não viu um doente mental encarcerado os
doze meses do ano em uma cela - assim se chamavam seus dormitórios - completamente desprovida de
móveis, pois do contrário seria feitos em pedaços, e cuja cama não é mais que uma armação metálica
indestrutível, dando voltas neste espaço como um leão enjaulado, caia a neve ou sopre o vento, uivando
durante dias e dias, recebendo sua comida por uma portinhola, e a quem nenhum membro do pessoal poderia
se permitir se aproximar ou falar, porque sofreria uma agressão antes mesmo de poder dizer está boca é
minha. É por experiência. Quem não sabe o que é ser louco, no sentido de uma psicose destrutiva, deveria

!72
dar sete voltas na língua dentro da boca antes de emitir o mínimo juízo. Contudo, definitivamente, o que isto
tem em comum com meus pacientes em análise? Nada e tudo. Isso não impede a análise sobre os trágicos.
Terrorismo psiquiátrico ou terrorismo cultural? Terrorismo da destrutividade em ato.

Anexo: retorno à biologia


A apoptosis, a morte natural autoprogramada.

Digamos já: o acréscimo de um capítulo de biologia a este livro dedicado à pulsão de morte daria
vazão a um erro de interpretação, se com isso se quisesse supor a intenção do autor de apoiar-se na ciência
para sustentar uma hipótese que está longe de ser deduzida diretamente dela. De qualquer forma, recordemos
que os detratores da pulsão de morte, durante muito tempo, não deixaram de se embasar na ciência para
defender sua impossibilidade. Neste sentido, vislumbramos nas teses da biologia moderna uma novidade
que, pelo menos, não diz nada que a contradiga expressamente. Em 1999, Jean Claude Ameisen publicou um
livro, La Sculpture du vivant: le suicide cellulaire e la mort créatrice , que abriu novas avenidas ao
pensamento biológico. Teremos lido bem: o suicídio celular, o qual nos obriga a pensar a morte que se dá a
célula, ou seja, por outro lado, o que pode ser considerado uma ordem de se autodestruir.
Os trabalhos anteriores datam de 1855 ("cromatoses" de Walther Fleming). Os segue em 1951 a
"morte celular" de Alfred Glucksmann. Estes trabalhos não foram apreciados em seu justo valor. Seria
preciso esperar até o final da década de 1960 para que fossem apreciados os conceitos de morte programada
e suicidio celular. Chega um momento em que a morte celular está programada até as modalidades mais
precisas de sua realização.

"Pelo fato de ser um suicídio - um fenômeno ativo de autodestruição -, e não o resultado de um


assassinato brutal ou uma paralisia, a morte celular pode ser acompanhada de um discurso, a emissão precisa
de sinais e mensagens, e não se desenvolve em um silêncio total ou uma gritaria, um estampido" (Ameisen,
1999, p.65).

Sem retroceder frente à metáfora, Ameisen fala de ritos funerários completos durante a morte celular
programada:

"O mundo vivo elimina aos mortos. O mundo vivo nutre-se dos mortos" (ibid.p.66).

A apoptose é um processo de "autosupressão ordenada" (ibid. p.67).


Assim, os processos de autodestruição obedecem a sinais, tal qual o processo de criação. No que diz
respeito a este último, os trofoblastos contituem uma ponte entre a mãe e o filho, antes de converter-se em
algo completamente distinto. Sucessivamente, a divisão que engendra a multiplicidade e a diferenciação da
qual surge a diversidade e a migração (o deslocamento das células através do corpo) escondem as etapas.

!73
Paralelamente, produzem-se desaparições "naturais". Descoberta desconcertante que supõe uma causalidade
misteriosa. Porque estes mortos? Resposta:

"a desconstrução do corpo, na medida em que este se constrói, é um dos componentes essenciais da
elaboração da complexidade" (ibid. p.30).

Em cada etapa do desenvolvimento a morte esculpe a forma do embrião. Esse processo permite a
criação de um espaço interno. O cérebro e o sistema imunológico são as estruturas mais complexas de nosso
organismo. Compartilham uma propriedade que assegura a perenidade de nossa identidade singular, e a
construção de uma história. E se não tivermos certo temor aos sorrisos de nossos leitores, diríamos: "sim, o
narcisismo e a última teoria das pulsões”.
É assustadora a importância das conexões entre a célula e seu entorno. Ameisen escreve:

"um receptor (do sistema imunológico) totalmente incapaz de interatuar com ele próprio não poderá
transmitir durante três dias nenhum sinal ao linfócito que o contém. E a ausência de todo sinal desencadeará
por si só, a morte do linfócito que deu provas de sua incapacidade de interagir com as células sentinelas:
prova de sua provável inutilidade futura” (ibid. p. 47).

Passemos agora ao cérebro: surpreendente paralelismo. Nas regiões e nos nervos em processo de
construção, a metade dos neurônios que parte na busca de companheiras irá morrer no período de
constituição das sinapses. Às vezes 85%, às vezes somente entre 10% e 20%. Todos os neurônios estão
programandos para morrer. A aposta é o estabelecimento de um contato estreito com uma companheira. A
"relação" triunfa sobre o isolamento individual. São igualmente passíveis de sanção mortal às que
estabeleceram conexões aberrantes. Formas do corpo esculpidas, cérebros também esculpidos.
Ameisen escreve:

“Os grandes mestres do xadrez constroem suas partidas sobre a base de grandes esquemas, posições
dominantes sobre o tabuleiro: sua mente traça um repertório preciso das aberturas. Limitadas em número,
assim como dos finais. Não obstante, o mínimo desenvolvimento da partida está aberto e se renova a cada
movimento" (ibid., p.54).

Por acaso Ameisen sabe que Freud fez a mesma observação no que se atém ao tratamento analítico?
Papel fundamental do jogo, que procede mediante a criação das condições de autoorganização evolutiva.

"O destino de cada uma das células depende da causalidade dos vínculos provisórios que tiveram com
seu entorno" (ibid. p.55).

Em suma, poderíamos pensar que a intenção de definir os processos que caracterizam a vida consiste
em conceber uma criação contínua, sem destruição. A complexidade nos obriga a rever esse esquema e a
compreender que ela mesma inclui a construção e a desconstrução.

!74
Estamos tão longe de Freud e de sua última teoria das pulsões? Creio que não.

"Cada uma de nossas células tem, ao longo de sua existência, e a todo momento, o poder de se
autodestruir em algumas horas. E a sobrevivência do conjunto de células que nos compõem - nossa própria
sobrevivência - depende de sua capacidade de encontrar, no meio ambiente de nosso corpo, os sinais que lhes
permitam reprimir, dia após dia, o desencadeamento de seu suicidio" (ibid, p.13).

Consequentemente, todos nós temos os dias contados: a vida não é mais do que a neutralização dos
poderes autodestrutivos.

"um acontecimento positivo - a vida - nasce da negação de um acontecimento negativo: a


autodestruição" (ibid).

Resumindo, a questão estava em olhar a morte cara a cara, em uma perspectiva que renuncia a toda
intencionalidade:

"A evolução do vivente desvela também o preço de sua esplêndida eficácia: uma indiferença cega e
absoluta ao devir, à liberdade e ao sofrimento de cada um de seus componentes” (ibid. p.17).

Da descrição das fases de uma morte celular programada é impressionante. Uma quinzena de proteínas
permite que se recortem em pedaços as indispensáveis para a sobrevivência de uma célula. Esta ação
provoca a condensação e a fragmentação da célula em um transe de morrer sob a influência de mutantes
genéticos. A célula se divide em um executor é um protetor.
As esporas apresentam uma forma de vida intermediária. São as representações de uma forma de
existência lentificada, entre a vida e a morte, capazes potencialmente de voltar a viver plenamente.
O bloqueio da morte celular nem sempre é uma vantagem: é a sorte dos cânceres. Por isso convém
desbloquear esse processo autodestrutivo para ativá-lo. "Apoptoses" é o nome que John Kir,
anatomopatologista, e Andrew Miller propuseram em 1972. Baseada na comparação com as “necroses”, a
apoptosis apresenta características singulares:

"enquanto a necrose da à imagem de um fenômeno de explosão, a apoptose se assemelha a um


fenômeno de implosão. A célula que coloca em curso seu suicídio começa, antes de qualquer coisa,
interrompendo todo o seu contato com o seu entorno. Como um animal que está morrendo, se separa e se
aparta de suas vizinhas. Logo se despedaça de modo ordenado: condensa e logo fragmenta seu núcleo,
cortando em pequenos pedaços o conjunto da biblioteca de seus genes. Ao mesmo tempo, o corpo celular
também se condensa e depois se fragmenta em pequenos globinhos, os "corpos apoptóticos". A membrana
externa da célula se modifica e adota um aspecto borbulhante, mas se mantém intacta e impede assim a
liberação ao exterior das enzimas que contém e evita toda destruição do entorno. Esta morte, rápida, solitária
e sem ruído não costuma causar nenhuma lesão, nem inflamação, nem cicatrização. As células próximas

!75
tomam o espaço que as mortas haviam deixado livre. Pronto, não resta qualquer marca do trabalho rápido e
discreto da autodestruição” (ibid. pp. 62-63).

"Baixadas às cortinas, a farsa termina”.

Temos que nos acostumar com a banalidade da morte. Uma cifra que nos é imposta: mas de 99% das
espécies que surgiram nos últimos quatro milhões de anos que estão provavelmente extintas para sempre.
Isto não impede que a morte siga sendo fonte de angústia para a espécie humana no geral, e para todo ser
humano em particular.

Atualização em forma de despedida.

Fazem mais de oitenta e cinco anos que foi proposta à ideia de pulsão de morte, é mais de sessenta e
cinco que Freud já não pode mais defendê-la contra seus detratores. Vimos que, desde 1920 até sua morte em
1939, acreditou cada vez com maior firmeza nela. Todavia, não chegou a conhecer:
- a destruição dos judeus da Europa nos campos nazistas de extermínio
- Os campos de "reeducação" soviéticos
- Os danos causados pela bomba atômica na Ásia, e
- O destino dado aos opositores do regime de Pol Pot em Camboja.

Tristes confirmações de uma ideia nascida de seu pressentimento. Não há nada nele que nos permita
abrigar a esperança de conjurar o perigo: somente fatos que, ao contrário, confirmaram as piores apreensões
de Freud. E isso porque nos limitamos a mencionar apenas os fatos principais.
No que diz respeito à clínica, seja qual for à teoria que aderimos ou que tenhamos elaborado, sempre
se trata - na psicanalise contemporânea - de ir até o fundo da destrutividade, última a chegar entre as formas
clínicas de que se ocupam os psicanalistas. Freud havia assinalado, pois, três casos ilustrativos da pulsão de
morte: a consciência de culpa, o masoquismo e a reação terapêutica negativa. Apesar deste enunciado ser
quase indiscutível, a clínica moderna lhe agrega muitos outros quadros.
Não é simples fazer uma atualização do conceito de pulsão de morte. Principalmente, por causa da
massa de dados que é preciso integrar. Com efeito: não se trata somente de questionar as interpretações de
Freud para levar em consideração outras menos especulativas, mas também de questionar tudo o que
corresponde à literatura pós-freudiana, cuja diversidade de posições é muito difícil de reduzir a um conceito
integrador. Ademais, encontra-se tudo o que a clínica contemporânea nos ensinou é que não foi contemplado
por Freud, com o que isso introduz em matéria de variações da técnica ou adoção de novos parâmetros.
Na cabeça, uma questão, ao mesmo tempo terminológica e conceitual. A designação da sexualidade
como manifestação das pulsões sexuais nunca foi chocante para ninguém, aparentemente, e a substituição
destas pulsões por Eros, tampouco despertou objeções. Todavia, quando se fala de pulsão de morte gera-se
muito outra sorte de reações.

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Caso eu tenha de ser claro e explicar que a morte e a pulsão de morte são coisas diferentes. A morte é
um fato, um fato cientificamente verificável. Pode ser definida por signos objetivos (eletroencefalograma
plano durante certo tempo, etc.), fazer com que qualquer filho de vizinho a constate. E bem se sabe que
quando a sobrevivência de uma pessoa, que é um verdadeiro morto vivo, se prolonga - mesmo que seja
durante vários anos -, somente trata-se de um artifício. Uma simples desconexão dissipa a ilusão de vida
artificial que, todavia subsistia. Contudo, uma pulsão que impulsiona a morrer é um assunto que não cai por
seu próprio peso. O que queremos dizer com isso? Se evitarmos a polêmica expressão "pulsão de morte" e se
recorda, sobretudo, que é a questão da destruição (de si mesmo e dos outros), às outras resultam mais claras.
Destruição de que? Destruição da vida está claro; ou seja, do corpo físico animado que vive e respira -
porque, para a vida e a alma, a morte se identifica de imediato pela detenção de hábito (pneuma) -. Mas
destruição, também, da alma e do psiquismo, já mais difícil de apreciar, dado que sempre se suspeitou que a
vida estivesse mascarada pelas aparências. A destruição da alma é o que busca todo empreendimento de
subjugação e domínio na guerra que lhe opõe o outro: o estrangeiro, o mau, o abominado. Não há triunfo
sobre o outro para quem não deixa a este a liberdade de pensar e, dependendo do caso, depreciar o
adversário. O que se busca é o abandono de tudo o que aparenta ser mostra de uma voluntariedade individual
e dotada do direito a expressar sua diferença, seu rechaço ou sua oposição ao outro.
Talvez seja preciso distinguir, como já buscamos fazê-lo, um masoquismo paterno (sofrer pelo pai), e
um masoquismo materno, no qual a mãe tudo sacrifica para evitar o sofrimento do filho (espírito de
sacrifício da mãe). De fato, ambos coincidem: trata-se de chegar até o esquecimento da autoconservação para
servir a uma imagem posta a cima de tudo (Deus, o filho). Interrogar-se sobre a validade da apelativa
"pulsão" se justifica menos que recordar que tudo se iniciou com a compulsão à repetição, além do princípio
do prazer. Aqui, portanto, pulsão quer dizer organização primitiva sobre a qual o Eu não tem influência. E
que tende a se reproduzir sem estar, no que pese a isso, ligada à busca repetitiva do prazer: antes, segundo
Freud, sua meta era restabelecer um estado anterior.
Existe pulsão (de morte) porque Freud precisava dela para integrá-la a seu sistema teórico. A
verdadeira pergunta passa a ser: A pulsão ajuda a pensar? Levando em conta que o conteúdo de seu conceito
reforçe a coerência de sua teoria, o resto passa ao segundo plano. O importante é que o par construção-
desconstrução, com seu correlato intrincação-desintrincação. Há, com efeito, duas maneiras de conceber a
pulsão de morte. Quando está concerne aos casos que dão testemunho de uma aspiração incoercível ao
fracasso, ao desprazer, ao sofrimento, estamos diante uma aplicação limitada que encontra sua justificativa
sem demasiadas dificuldades. E estão, por outro lado, as metas do par pulsional Eros-destruição, de
aplicação muito mais estendida é que propõe uma nova visão da vida psíquica.
Quando em análise me vejo frente a certas formas de sentimento de culpa inconsciente, de
masoquismo ou de reação terapêutica negativa extrema, busco o que possa explicá-las; porém quando,
saindo deste quadro, reflito sobre o sentido do sentimento de culpa inconsciente, do masoquismo, e de outras
formas de negatividade no tratamento, me digo que em última instância todos eles se associam a
manifestações da pulsão de morte. E se chego a esta conclusão não é em relação com uma realidade qualquer
que capture em minhas redes, mas porque reconheço a natureza especialmente especulativa deste conceito
"supremo", como o chama Freud. Este reivindicava para os conceitos supremos o direito de não ter de prová-

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los. Trata-se de um "biologismo" imaginário, ou de uma metabiologia que não se apresentou? Melhor, da
busca de uma coerência conceitual constitutiva do psiquismo.
Um questionamento, não obstante. Não saberia dizer se a natureza essencial da pulsão de morte é de
origem interna, apontada à morte do sujeito, ou se prevalece sua orientação externa, apontada à morte do
outro. Parece-me que a experiência não é de muita ajuda para chegar a uma conclusão. O importante, ao meu
ver, é a referência a uma destrutividade originária de dupla orientação, que a maior parte do tempo é
inconsciente. Inclusive, precisou-se em outra parte (Green, 2000, p.166) que durante a criação do pequeno é
preciso assegurar-se que a pulsão de morte, a causa de maus-tratos, não faça estragos na experiência de viver.
Para prolongar esta tese, diria que quando as experiências dolorosas invadem o psiquismo e colocam
em xeque o princípio do prazer, dão lugar a experiências de destrutividade irrepresentáveis em face ao seu
poder devastador em todas as direções, ou seja, tanto no externo como no interno. Angústia mortal e
destruição ilimitada ocupam todo o psiquismo. Seu ressurgimento no adulto costuma ser de difícil
interpretação. O daimónico torna-se o demoníaco. Entende-se que, nestes casos, não se possa falar de
regressão a um estágio libidinal anterior: trata-se de uma regressão global na qual a destrutividade não sabe
como fazer frente à dor psíquica, nem detê-la.
Em suma, estaríamos mais próximo do que Pierre Marty prefere chamar de "desorganização" à de uma
regressão em sentido estrito. Da mesma forma, o prazer já não teria mais o que fazer aqui, onde,
paradoxalmente, somente reina o gozo. Este é ininterpretável, ou seja, que as interpretações não surtem
efeito nele. De qualquer forma, me sinto obrigado a me referir à ideia de força pulsional, no sentido de um
ciclo que nada pode deter. Sem dúvida, ocasiona o sentimento de um Eu reduzido à impotência, como o
analista quando se torna o objeto de tais reações tempestuosas, sem ter a impressão de tê-las provocado. Não
esqueçamos o papel, nas formas menos extremas, da coexitação libidinal.
Faltam discutirmos alguns pontos que derivam do precedente. Um deles é o fato de que se toma de
modo escasso a participação do objeto na criação desta situação, o que chegou a ser uma verdade admitida.
Winnicott procurou lhe remediar. Não esqueçamos, portanto,
O papel essencial da intrincação em que se sinaliza sua fraqueza.
Para finalizar, ressaltaremos alguns aspectos:

1. Ao contrário do que Freud costuma nos fazer pensar, a pulsão de morte não implica nem em
supremacia em relação à pulsão de vida, nem em irreversibilidade definitiva quando lhe toca prevalecer.
2. No estado normal, a intrincação, favorecida pelo objeto, é a forma sob a qual há que se
observá-la. Creio, contudo, que pode haver situações em que possamos observá-la em um estado quase
integralmente desintrincado (anorexia).
3. A pulsão de morte deve levar em consideração seu polo complementar: a relação de objeto,
da qual depende em grande parte.
4. A experiência da transferência pode voltar a ligar o que se desligou sob a influência da
pulsão de morte. Consequentemente, não é possível minimizar o papel do analista na transferência. Que
depende de seu modelo originário: o objeto.
5. O campo da pulsão de morte é interior ou exterior. Estende-se a psicopatologia
criminológica e as psicossomatoses.

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Sejam quais formem as opções eleitas por um ou por outro - dado que nenhum argumento decisivo
vem a encerrar o debate - será sempre necessário para nós - e isso é o que resulta essencial reconhecer -
admitir hoje a centralidade do conceito de destruição. É possível interpretá-lo de várias formas, certamente,
mas o fundamental é não ocultá-lo.
A reflexão a respeito do campo sociocultural e a psicocriminalidade está aqui para nos recordar.
Procurou-se descrever uma função objetalizante, cuja meta seria transformar as funções em objetos - outra
maneira de caracterizar o trabalho de Eros -, e, em correlação, uma função desobjetalizante, cujo papel
consistiria em fazer que os objetos sejam indiferentes à sua utilização em termos de gozo e destrutividade.
Também pulsão e objeto formam um par indissociável.

Conclusão provisória

Este livro não contém observações. Todavia, minha experiência psicanalítica o nutre. Se me dispensei
daquelas foi porque o volume da obra teria sido duplicado, caso me tivesse válido de todas as observações
que anotei durante anos. Faz falta esclarecer que toda a minha gratidão vai para os pacientes que me
ensinaram o meu ofício, me fizeram tomar consciência de meus erros (graves, às vezes) e me introduziram
no labirinto das interpretações destas estruturas? Se aqui os reduzi ao silêncio, não foi unicamente por
discrição (porém, teria eu podido dizer tudo aquilo que pensei a seu respeito?), mas também porque preferi
deixar trabalhar a recordação de minha experiência com eles, ou, em certos casos, com aqueles que ainda
continuam sua experiência comigo, em busca da Durcharbeitung.
Foi preciso à resolução, custe o que custasse, de colocar um termo no foco de minha reflexão. Busquei
esclarecer, na medida do possível, a evolução do pensamento de Freud, que o levou a concluir do modo que
o fez. Tratei de logo de voltar a colocar sobre o tapete o que foi feito disso posteriormente, trazendo à baila
as óticas distintas através das quais se expressaram sobre o assunto desde Melanie Klein até Winnicott. Os
autores franceses também aportaram pontos de vista originais sobre o papel do significante na teoria, e
abriram os caminhos da psicossomática e da psicocriminologia, sem contar os trabalhos inspirados mais
diretamente na clínica psicanalítica "clássica".
Finalizando, considero este ensaio uma ampliação de O trabalho do negativo (Green, 1993). Como um
deslocamento, a partir de uma questão que tem feito correr muita tinta desde 1920 e que sem dúvida o
permanecerá fazendo. Nada é mais difícil do que fazer um paciente admitir a existência de um prazer
inconsciente na dor. E, se a escrita deste livro acabou me resultando muito laboriosa, me proporcionou
também muito prazer, graças aqueles que me prodigalizaram seu apoio para que eu seguisse adiante com
minha reflexão. Talvez digam, como Freud o fez, que essas ideias se devem ao desgaste da idade. Que seja.

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Anexo 1 - A morte em vida: Algumas referências para a pulsão de morte 10

André Green

Em psicanálise, os grandes temas que concernem ao psiquismo são objetos de descobertas nas quais é
difícil distinguir o seu valor intrínseco do que, no contexto de sua formulação e em razão de sua inserção no
conjunto da teoria da qual formam parte, possam ter de deformador ou obscurecedor, bem como, de que
maneira a terminologia que serve para designá-los pode modificar o sentido que contém. Em minha opinião,
este é especialmente o caso da pulsão de morte. Estou entre aqueles que nunca duvidaram da utilidade e da
verdade deste conceito. Todavia, ao ler hoje as concepções de Freud, ou ao tomar conhecimento das
formulações pós-freudianas apresentadas para refutá-las, poucas vezes aderi a uma delas sem reservas.

Dado que este trabalho se limita a um estudo circunscrito do problema, não incluíí em minhas reflexões o
exame das diversas expressões mitológicas e religiosas concernentes à morte (Parat, 1998). Tampouco
analiso a questão das manifestações psíquicas dos doentes que estão à beira da morte (o “trabalho de
falecimento”, segundo M.Uzan, 1968). Finalmente, deixei de lado a problemática das angústias de morte, ou
angústias de aniquilamento, do mesmo modo que não considerei as elaborações conscientes e pré-
conscientes sobre o tema da morte (Rosolato, 1996). Tampouco retive as opiniões que buscaram explicar a
gênese do conceito por razões subjetivas que possam ter afetado Freud. Neste sentido, me centrei nas
grandes hipóteses especulativas de Freud e busquei enxergar de que outra maneira poderíamos compreender
aquilo que ele coloca em primeiro plano. Creio que um analista, atualmente, não tem escolha a não ser se
submeter diante da realidade imperativa das forças de destruição (dirigidas para o exterior, ou para o interior
do sujeito). Resta a ele, então, eleger dentre as teorias existentes ou construir uma que o satisfaça. Em suma,
a morte é certa, porém a explicação das manifestações da morte em vida é incerta.

O predomínio especulativo na argumentação de Freud

Há aqui muitos fios entrelaçados. Ao examinarmos em profundidade a argumentação de Freud, o fator


dominante é, sob todas as luzes, especulativo, porém, seria completamente equivocado considerar que as
comprovações de ordem clínica são ali contingentes. Certamente, reconheço que os fatos clínicos por si
mesmos são suscetíveis de múltiplas interpretações e não impõe à força a adoção do conceito de pulsão de

10Tradução do original La muerte en la vida: Algunos referentes para pulsión de muerte. – El pensamiento clínico – 1ª
ed. – Buenos Aires: Amorrortu, 2010.
Tradução: Felipe Ferreira De Nichile: psicólogo clínico, docente e supervisor clínico do curso de Formação em
Psicanálise no Centro de Estudos Psicanalíticos, mestre em psicologia clínica pelo núcleo Formações da Cultura e
Subjetividade pela PUC-SP e membro filiado ao instituto Durval Marcondes da SBPSP.
Rua São Carlos do Pinhal, nº124, Bela Vista, São Paulo, CEP 01333-000 fone (11) 99915 8400
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morte. O próprio Freud o reconhecia, mesmo que estivesse convencido da correção de suas posições, esta
convicção veio a se reafirmar com o tempo.

Esta especulação é o nível mais elevado de generalização que Freud conseguiu alcançar. Busca-se
demonstrar, não sem razão, que esta evolução teórica era intrínseca ao seu pensamento, o que, Todavia, é
correto. Com efeito, ainda que a aspiração das pulsões de morte seja tender a uma redução completa das
tensões, é impossível alcançar este resultado, senão com a cessação da vida. O caráter radical destas ideias é
o que justifica as formulações extremas de Freud, como: a aspiração de toda vida é a morte. Assinala-se aqui
que Freud fala de meta no sentido de uma aspiração biológica, ou seja, faz referência a uma orientação quase
programada e não ao esgotamento de um potencial que mantém a vida. Esta ideia de meta é a que abarca, por
sua vez, o princípio especulativo da redução completa das tensões, e os fatores clínicos relacionados à
autodestruição. De qualquer forma, para Freud, a última consequência é a tendência a um retorno a um
estado inorgânico; em outras palavras, a refazer em sentido inverso o caminho que vai da “não vida” para a
vida. Todos os desenvolvimentos posteriores nascidos desta petição de princípios lhes estão subordinados.
No que me diz respeito, não adiro a esta visão. Não consigo dizer se é verdadeira ou falsa e, por outro lado,
estamos aqui imersos em uma obscuridade que, de modo algum, pode ser eliminada, posto que Freud, com
toda razão, nos lembra de que da morte nada sabemos. Este retorno à matéria inanimada só concerne ao que
podemos comprovar objetivamente diante de um corpo morto em decomposição: “Ao pó voltarás”.

Somos obrigados a concluir que, neste nível de discussão, que o que domina por completo esta
argumentação é o biologismo mítico de Freud. As ilustrações extraídas da investigação psicanalítica não
podem, aos seus olhos, corresponder às causas que se bastem a elas mesmas, tiradas unicamente do registro
do psiquismo. Ainda que sigamos tendo presente à situação epistemológica da pulsão, conceito situado no
limite entre o somático e o psíquico vemos que aqui este último recai para o lado do somático, condenado a
morrer. Todavia, certos dados clínicos nos dão testemunho da hipótese da obra da pulsão de morte e de seus
efeitos na organização psíquica antes que esta tenha cumprido seu trabalho até o final.

Distancio-me deste radicalismo biológico, não porque creio que seja falso, mas, sobretudo, porque não
disponho de uma forma de me pronunciar. De qualquer forma, esta questão que remete as relações entre o
biológico e o psíquico, demanda desenvolvimentos detalhados. Antes de rechaçar de plano este gênero de
reflexões declarando-as fora de tema, recordaremos, não obstante, que autores relevantes da psicossomática
não puderam se subtrair a esta interrogação, inclusive, quando propuseram pontos de vista diferentes dos
sugeridos por Freud. P. Marty propõe substituir o conceito de pulsão de morte pelo de desorganização contra-
evolutiva. Vê ativada a pulsão de morte nos estados em que as excitações persistem em quantidade
excessiva, “ Quando as excitações persistem em quantidade excessiva, a função ou os sistemas funcionais
demasiadamente excitados se desorganizam (isolamento e anarquização funcionais). Enxergamos aqui a
marca dos instintos e das pulsões de morte.

Argumentos vinculados à experiência psicanalítica.

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Examinemos agora os argumentos mais especificamente relacionados à experiência psicanalítica. Hoje,
todo psicanalista se vê obrigado a reconhecer o papel capital da destrutividade. Tem-se sustentado que Freud
diferencia as pulsões de morte, as quais atribui uma orientação interna – e, portanto, com intenção
autodestrutiva – das pulsões de destruição, cujo campo se distinguiria do anterior por sua orientação para o
exterior. Pulsão de destruição e pulsão de agressão seriam sinônimos. Proporei uma solução diferente, que
coloca de lado as ressonâncias demasiadamente especulativas da expressão “pulsão de morte”. Sugiro a
substituir, pois, por sua expressão correspondente “pulsão de destruição”, e reservar “pulsão de agressão”
para a manifestação da destruição dirigida para o exterior. Dito de outro modo, a destruição ou a
destrutividade seriam ou de orientação interna ou externa, para dar um nome diferente a cada uma delas.
Porém, quanto a qual das duas é primária, não posso me pronunciar. Parece razoável pensar que a orientação
da destruição para o exterior tem um efeito de alívio sobre as tensões internas. Porém, gera um sentimento de
culpa, frequentemente inconsciente, que torna muito ilusório este dito efeito de alívio, ainda que a
intensidade deste seja muito variável. Neste sentido, se me atenho à descrição de Freud no Mal estar na
civilização, acredito compreender que a orientação interna não é inicial, mas resultado de um pulsar que
renuncia à sua exteriorização contra o agente que o originou e retroage para atacar o núcleo do qual partiu.
Nesta passagem de sua obra, Freud se questiona sobre o papel do Supereu nesta evolução. Ao propor uma
hipótese genética, considera o efeito “desta primeira dotação agressiva do Supereu”. Mais precisamente, o
faz cumprir o papel da ameaça da retirada do amor que provém da autoridade quando esta se opõe as
“satisfações primárias, mas que são, também, as mais substanciais”. É sob o efeito desta ameaça,
identificando-se com esta autoridade externa “inviolável”, o modo como o Supereu se constitui. Freud
continua: “A relação entre o Eu e o Supereu é a reprodução (...) das relações que de fato existiram entre um
Eu ainda indiviso e um objeto externo” (1929, p.87). Se é assim, ou seja, se o Supereu ainda não está
individualizado, Como é possível que possa exercer-se a ameaça de retirada do amor?

Observa-se-a que Freud aqui utiliza o mesmo argumento que ele invoca em Luto e melancolia (1917),
deste modo, ou faz-se intervir um fator diferente da ameaça de perda de amor, ou postula-se que esta ameaça
preexiste à constituição do Supereu. Seguindo sua reflexão em Análise terminável e interminável (1937),
proporá a ideia de uma destrutividade flutuante distribuída pelo conjunto do aparato psíquico e que o ataca a
partir do interior. Opõe esta agressividade livre a agressividade ligada pelo Supereu. Esta especulação
explicaria certas formações que mantem o paciente prisioneiro de sua doença.

Da minha parte, sem que esteja em condições de julgá-lo, creio que, mesmo quando se supõe que a
ameaça de retirada do amor é anterior a formação do Supereu, a partir do momento em que observamos
relações mãe-bebê demasiadamente despojadas de uma capacidade de tolerância por parte da criança, esta se
torna objeto de reações destrutivas importantes, passando a desconsiderar a perda de amor. Estas reações
destrutivas representam uma tentativa desesperada de dar fim a uma situação intolerável. Defendo, também,
que a destrutividade que aqui se opera, na medida em que a separação entre sujeito e objeto ainda não está
assegurada neste período, é vivenciada, por sua vez, como orientada, ao mesmo tempo para exterior e para o
interior. O que se dirige ao exterior representa a tentativa de expulsar angústias e tensões internas. A parte
interna de destruição e angústia fusionadas é considerável. Não obstante, em razão da indistinção entre
sujeito e objeto, é necessário que insistamos na vetorização bidirecional da energia destrutiva. É, também,
!82
evidente que se torna quase impossível diferenciar tais estados em afeto e representações, e, na maioria das
vezes eles dão lugar a estados psíquicos irrepresentáveis que anteriormente tendiam a repetição, tomando, às
vezes, a forma de acidente somático ou uma compulsão à atuar. Estes estados representam situações
extremas, frequentemente, de difícil compreensão quando ressurgem no adulto. O analista se surpreende pela
desproporção entre as aparentes causas de tais reações e sua intensidade. De qualquer modo, a questão que
se coloca consiste em saber qual é a relação entre os estados que acabamos de descrever e as ilustrações
clínicas nas quais Freud se apoia para defender sua teoria.

Concordo com as reflexões de Freud quando evocam a ampla frequência do masoquismo, a importância
e a extensão do sentimento de culpa (inconsciente) e o aparecimento demasiadamente frequente da reação
terapêutica negativa . Acredito que, se quisermos invocar a necessidade de Freud de levar seus axiomas
teóricos até as suas últimas consequências, não se pode negar que, se algo o obrigou a confrontar-se com
estes três aspectos clínicos que acabamos de citar, foi, claramente, a experiência analítica. Certamente, não
havia previsto encontrá-los no início de sua prática analítica, e que foi preciso reconhecer, com grande
esforço, que estava se deparando com um adversário tenaz. Ainda que estivesse consciente de sua presença e
de sua ação, foi preciso curvar-se diante deles com mais frequência do que desejava. Talvez ali estivesse o
verdadeiro eixo da discussão atual: Que outra hipótese, senão a de uma pulsão de destruição
predominantemente autodestrutiva, poderia explicar estas configurações clínicas?

Entre os fenômenos clínicos que acabamos de mencionar e a teoria predominantemente especulativa há


certos aspectos intermediários. Tudo surgiu, e isto se remonta a 1914, ao comprovar-se a importância da
repetição. Com o tempo, esta se tornou compulsão, coerção quase automática, demoníaca, que submete o
princípio do prazer a sua lei. A partir do momento em que Freud comprovou a possibilidade de uma
repetição que não obedecia ao princípio do prazer, admitiu que, de fato, a libido tinha de reconhecer a
existência de outra força pulsional, considerada primeiramente independente dela e que iria revelar-se
posteriormente como sua antagonista. A ideia do caráter regressivo da pulsão, presente já desde o começo da
psicanálise, teria que ser levada mais além, tendo em vista que a regressão não se limitava ao retorno a
fixações instaladas no transcurso do desenvolvimento libidinal, mas sim a alcançar um âmbito recentemente
descoberto – aquele no qual o princípio do prazer já não tinha força de lei – exercia a sua ação fora do campo
da libido e contra ela. Aqui descobre-se uma ideia próxima as concepções de P. Martin. Partindo do ponto de
vista de Freud, a pulsão de morte representa um exemplo do conceito de pulsão como restabelecimento de
um estado anterior, em sua forma mais radical. Todavia, é difícil de imaginar o que pode ser este estado
anterior, dado que se situa fora do campo das fixações da libido, ou seja, que já não busca reencontrar formas
passadas de prazer. Talvez aqui devêssemos ser mais precisos e distinguir mais claramente libido de objeto e
libido narcísica. O que se descreve sob o nome de “fixações libidinais” concerne, de fato, às fixações ao
estágio de desenvolvimento da libido, inclusive, aí, a da libido objetal. Ainda que Freud tenha separado a
libido do Eu da libido do objeto, devemos reconhecer que em psicanálise é difícil nos apoiarmos em uma
concepção de desenvolvimento do Eu, quase ausente na obra freudiana. Ferenczi, buscou fazê-lo, porém, é
evidente a falta tal concepção no arsenal analítico. Todavia, podemos recordar aqui que em As pulsões e o
destino das pulsões (1915), Freud sustenta que o ódio seria mais facilmente atribuível ao Eu e a sua

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necessidade de afirmação. Contudo, isto não é suficiente para responder nossa pergunta no que concerne a
existência de uma compulsão à repetição, mais além do princípio do prazer.

A co-excitação libidinal buscará uma resposta para explicar a gênese do masoquismo erógeno (o
problema econômico do masoquismo).

Sigo acreditando que a compulsão à repetição, mais além do princípio do prazer é um dado conceitual
confirmado pela experiência clínica. Por outro lado, também é possível frequentemente encontra-la fora do
campo da neurose. Esta talvez seja uma questão que Freud não levou em consideração. A partir do momento
em que se descobre a compulsão à repetição, não há uma mudança na estrutura do campo psicanalítico? A
relativa frequência da reação terapêutica negativa, a comprovação dos efeitos devastadores do sentimento
inconsciente de culpa e do masoquismo, não são atribuídas à estruturas que dificilmente se incluem nas
psiconeuroses de transferência? A partir de 1924, foi proposta a hipótese de que a problemática central da
teoria e da clínica foi modificada em Freud. Até este ano, o que dominava era a relação perversão-neurose (a
neurose é o negativo da perversão). A partir dai, ou seja, na realidade, desde O Eu e o Isso, e também, mais
tarde, em Além do princípio do prazer, é possível sustentar que a preocupação de Freud se volta para a
comparação entre neurose e psicose. É uma outra maneira de dizer que as vicissitudes da libido são
substituídas pelo interesse em relação às relações entre pulsões eróticas e pulsões destrutivas. Paralelamente,
sabe-se que o Eu será agora objeto de uma atenção mais específica.

Um ponto frágil da teoria freudiana: a insuficiente elaboração frente ao papel do objeto

Existe uma explicação melhor do que a que Freud nos propõe? Sem o seguir até os extremos ao quais nos
leva a sua reflexão, proporei uma visão parcialmente distinta. Não posso aqui me estender demasiadamente
sobre o que mereceria um desenvolvimento pormenorizado. Com o tempo, nos demos conta de que o ponto
fraco da teoria freudiana provém, sobretudo, de sua insuficiente elaboração sobre o papel do objeto. Ainda
que se considere próprio da ordem das coisas o fato de que as relações de objeto sejam necessariamente
ambivalentes e que nelas se conjuguem os efeitos da libido e da destrutividade, do amor e do ódio, é
inevitável interrogar-se sobre o lugar do objeto na metapsicologia. Não compartilho das opiniões daqueles
que postulam a existência de um objeto diferenciado no começo da vida. Reconheço os fatos que
demonstram as reações do bebê no que diz respeito a mãe enquanto um outro objeto. Admito que estas
reações são a expressão de estruturas inatas. O que proponho é uma perspectiva menos adultomórfica que a
recorrentemente apresentada, ou seja: que seria totalmente admissível pensar que no começo da vida o bebê
oscilaria entre tempos de fusão-indistinção e tempos de separação-distinção, e que passa, de modo alternado,
de um para o outro. Neste intróito, enquanto a observação nos permite localizar os fenômenos inerentes a
distinção, a fusão, por outro lado, não é acessível àquela. Algo parece seguro: a natureza da resposta da mãe
aos movimentos da criança incidirá na cadeia de acontecimentos psíquicos que se seguirão. Neste sentido, há
aqui também um intrincação entre sujeito e objeto. Se trata de um ponto importante. Por um lado, como já
dissemos, a participação do objeto no estabelecimento da relação é capital, por outro, proponho considerar
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que sua função é favorecer o intrincação entre libido e destrutividade. Portanto, não se pode descartar
totalmente que numerosos desintrinçoess estejam ligados às consequências da resposta do objeto. Isto vem
sendo tratado na psicanálise comtemporânea e de diferentes formas por Winnicott e Bion. É possível
observarmos, portanto, através desta rápida revisão, os pontos de contato entre as teorias de Freud e as ideias
que defendo, e, melhor ainda, as distância entre seu pensamento e as minhas opiniões. Cito, portanto, a título
indicativo, os pontos de coincidência e as dúvidas e desacordos.

Pontos de coincidência:

- Reconhecimento da validade do último par antagônico de pulsões.

- admissão das noções de intrincação e desintrincação.

- validade das referências ao masoquismo, ao sentimento de culpa e a reação terapêutica negativa.

- predomínio da compulsão à repetição independente do princípio do prazer.

Dúvidas e desacordos:

- retificação terminológica: supressão da expressão “pulsão de morte” e substituição pelo termo genérico
“pulsão de destruição” com orientação interna ou externa.

- não admissão da ideia de pulsão de morte como tendência a uma redução completa até culminar em um
retorno a um estado inorgânico.

- dúvida sobre o caráter originário da orientação interna. Neste ponto, a análise do interno aparece como
resultado de um movimento fracassado rumo ao exterior e que se volta sobre si mesmo.

- interrogação sobre o caráter regressivo (espontâneo) da pulsão nos campos independentes do princípio
do prazer.

Este balanço detalhado é um convite para refletirmos mais. Agreguemos, Todavia, que a complexidade
dos problemas clínicos e teóricos nos leva a questionar as hipóteses de Freud, ao mesmo tempo em que nos
permite afirmar que obtivemos um esclarecimento satisfatório sobre o problema. Todavia, antes de avançar
ainda mais, e para evitar mal entendidos, precisarei certos pontos que podem nos servir de referências.

Do que supostamente dá conta a pulsão de morte?

O problema não pode ser reduzido simplesmente sobre a existência ou não da dita pulsão de morte. Se
não existe; como explicar aquilo de que ela supostamente dá conta? Propondo uma teoria melhor que cubra
este mesmo campo? Se existe; De que modo podemos identifica-la e pensá-la?

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- A pulsão de morte não existe sempre no estado ativo, porém, tal estado pode vir a tona como
consequência de uma ativação. Esta é uma outra maneira de retomar a já conhecida noção de seu silêncio,
concepção que, mais de uma vez, foi refutada, particularmente pelos especialistas em psicossomática, os
quais defendem a hipótese de que a pulsão de morte pode também expressar-se de modo ruidoso nas
síndromes relativas a desorganização progressiva. De minha parte, o que busco defender é a ideia de que
certas organizações altamente conflitivas podem ter momentos de exacerbação, frequentemente
relacionados com as circunstâncias externas aptas a despertar um conflito que, até este momento, pode
encontrar soluções de compromisso, às vezes, graças ao reforço de certas defesas, deslocamentos e vias
para obtenção de prazeres capazes de aliviar as feridas do passado. Trata-se, em suma, do aumento da
expressividade das forças destrutivas, ativadas circunstancialmente e que não encontram outra solução.

Agregarei uma hipótese. Acredito que o conjunto das atividades que regem a criação das crianças - sejam
quais forem as diferenças culturais - e que giram em torno da sua dependência em relação àqueles que
tem o encargo de criá-los, tem como objetivo previnir um excesso de frustração e, portanto, de angústia,
dor, raiva e outros efeitos negativos; ou seja, evitam provocar uma ativação incontrolável das forças
destrutivas. Nos demais casos, as observações realizadas sobre os agentes de comportamentos violentos,
que vão desde o abuso pedofílico até o assassinato de vítimas, crianças ou adultos, demonstram que estes,
em sua infância, foram vítimas de abusos por obra de adultos em posição parental. E se, depois, certos
adultos impõe a outros adultos tratamentos desumanos, os mal-tratados também podem contrapor a estes
abusos aquilo que, desde a infância, adquiriu de valioso e que constitui uma reserva de esperança, como
barreira à vontade do outro de destruí-lo. Há, portanto, uma prevenção natural dos riscos de desencadear
forças excessivamente destrutivas em crianças tão pequenas, ainda que, às vezes, esta se perca pelo
caminho.

- A pulsão de morte não implica, no que diz respeito ao seu oposto, nem na supremacia, nem na
subordinação, nem na irreversibilidade. Neste sentido, quando a análise consegue trabalhar o conflito por
meio da transferência e da interpretação, a tendência até então dominante, a que colocava a destrutividade
em primeiro plano, pode se inverter a favor de Eros. Supostamente, apesar de assombroso, é difícil dizer
em que proporção e até que ponto, é possível observar, por exemplo, que certos pacientes, empurrados por
uma compulsão à tentativas de suicídio, ao longo dos anos do trabalho analítico, e sem que tenha se
produzido ainda uma verdadeira cura, comprovem que o desejo de morrer já não exerce sobre eles a
menor atração. Em outras palavras, já não mais se sentem impelidos a se matarem. Portanto, nada autoriza
a ideia de uma fatalidade, é mais legítimo considerar um equilíbrio permanente que necessita de uma
avaliação permanente a respeito das forças libidinais e das forças destrutivas no inconsciente e no
consciente. Do mesmo modo, é possível sustentar que jamais se ganha definitivamente a batalha a favor
das forças libidinais, pois uma nova exacerbação conflitiva pode voltar a a por em questão aquilo que se
considerava adquirido. Neste aspecto, nos aproximamos de certas posições freudianas expressadas em
Análise terminável e interminável .

- Freud apresenta a pulsão de morte em um estado de intrincação com Eros, todavia, em certas
passagens, na verdade escassas, é possível descobrir sob sua pena alusões que nos fazem pensar que ela

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pode se apresentar em um estado desintrincado. Aqui também privilegiarei a ideia de um estado dinâmico
de equilíbrio instável. Na maioria das vezes, certamente, comprovamos sua existência em forma de
intrincação, contudo, em outros momentos, podemos inferir a hipótese de uma desintrincação, na qual a
pulsão de destruição pareçe carecer da contrapartida libidinal. Creio que as ideias que aqui defendendo se
aproximam bastante das de P. Marty. É significativo que os quadros clínicos que evoco se manifestem em
forma de desorganização progressiva do funcionamento somático. Segundo P. Marty, o psiquismo se
mostra incapaz de transformar as excitações lhes dando uma forma representável. A passagem para o
registro somático, produto da desorganização, seria assim a consequência deste trabalho de não ligação e
de desligamento e em minha terminologia - a qual eu retornarei - de desobjetalização.

- A pulsão de morte depende em alto grau da relação de objeto. A psicanálise comtemporânea


absurdamente contrapõe a teoria das pulsões a das relações de objeto, quando parece evidente que
devemos repensar o funcionamento psíquico tanto em relação a pulsão como em relação ao objeto. Sem
aprofundar a questão, sublinhamos que a pulsão pode se vincular com a dimensão dinâmica da psique,
com seu núcleo essencial, o que implica em dois aspectos complementares referentes à força e ao sentido.
Segundo Freud, e estou de acordo com ele neste ponto, é, portanto, uma "exigência de trabalho". A relação
de objeto leva em conta o conjunto dos processos psíquicos e suas relações mútuas. Por esta razão, para
avaliar o impacto dos efeitos destrutivos não podemos ignorar o papel das pulsões, nem tampouco, nos
limitarmos ao seu simples exame. Há que se evitar aqui o duplo inconveniente que consistiria em
minimizar o papel do objeto. No que diz respeito ao que dizia a pouco, sobre os estados de intrincação ou
desintrincação pulsional, é essencial compreender que, justamente, contribuir para o intrincação faz parte
das relações de objeto. Um bom exemplo disso é a capacidade de ensonhamento da mãe (reverie),
sustentada por Bion. É possível, também, vincular a isso as facilitações do ambiente para a criação de um
espaço intermediário, onde, segundo Winnicott, tem lugar os fenômenos transicionais. Freud, que desejou
dar uma forma mais "laica" aos conceitos de pulsão de vida e pulsões de morte, propôs concebê-las a
partir do ângulo da ligação e do desligamento. Neste sentido, se a ligação concerne a atividade psíquica e
procede a agrupar elementos de modo unificador, isto também concerne à ligação com o objeto. Não é
surpreendente, portanto, que Freud designe Eros como pulsão de vida ou pulsão de amor. Isto não
implicaria em dizer, resumidamente, que, quando se trata do humano, a vida depende do amor? Sugere-
se, assim, que a perda do amor, o que inclui a ameaça de retirada do amor, pode desempenhar um papel
mortífero, se as condições forem favoráveis. Por outro lado, o contrário do amor, em certas formas -
precisamente, as que se apresentam de modo desintrincado -, se aproximam perigosamente dos efeitos da
pulsão de destruição.

- À pulsão de morte pode ser ligada pela experiência da transferência, capaz de fazer evoluir a situação
de modo favorável e, graças a transferência da transferência, deslocar o laço de amor para outros objetos.
Lamentavelmente, é preciso apontar também o caso da reação terapêutica negativa e aqueles casos no qual
a transferência não consegue instalar-se, que acabam ficando mais expostos à supremacia da pulsão de
destruição.

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- Em análise, os efeitos da pulsão de morte se modificam de maneira favorável ou desfavorável de
acordo com o ser e o fazer do analista. Todavia, é difícil precisar a sensibilidade do analisando à análise, e
portanto ao analista e seus limites, isso sem mencionar situações em que a mobilização do analisando pela
transferência se mostra muito limitada. Não obstante, é totalmente injustificável atribuir a
responsabilidade de todos os fracassos da análise à pulsão de morte; esta não é uma explicação
autossuficiente, nem uma desculpa para eximir o analista de responsabilidade. Aqui, também, uma
avaliação retrospectiva deverá esforçar-se no estudo das posições dinâmicas que são produto da
transferência, do que o analista faz para provocá-las e das respostas que este último lhes conferiu. Não
obstante, é necessário admitir que a análise tem limites.

- A pulsão de morte pode se expressar em diversas manifestações, psíquicas ou somáticas. É possível


discutir largamente sobre o papel que exerce nas desorganizações somáticas fatais. Todavia, seu modo
ainda mais enigmático de agir, diz respeito aos seus efeitos na esfera mental. Aqui se abrem obscuras
problemáticas referentes ao masoquismo e ao narcisismo, no contexto do que é chamado "trabalho do
negativo".

Estes sete pontos deveriam bastar para diferenciar-me suficientemente da especulação freudiana, sem
com isto deixar de acentuar uma destrutividade fundamental que entra em conflito com sua polaridade
antagonista às pulsões de vida ou de morte.

Não se deixou de ressaltar que o modelo da pulsão sexual, tal como está exposto, e inclusive retomado
nas Novas conferências introdutórias à psicanálise (1932), torna-se dificilmente aplicável às pulsões de
destruição. Com efeito, neste último caso não estão dadas as condições para especificar o que constitui a
fonte, o alvo, a meta e o objeto destas pulsões. Todavia, se prestarmos atenção a última teoria das pulsões e à
reformulação a que dá margem, desde seu nascimento, claramente se trata, em verdade, de uma visão
especulativa e de uma organização muito genérica. Em outras palavras, o método que sempre guiou Freud e
que consistiu em não permitir que a atividade pulsional se dispersasse em um grande número de pulsões, mas
sim de reagrupá-las sob grandes temas gerais, aqui, é levado até às últimas consequências. Reunir as ações
do ser humano sob os grandes temas da vida e do amor, por um lado, e da destruição e da morte, por outro,
responde, como se sabe, a mesma exigência por uma intuição que antecede à Freud. E mesmo quando
encontramos justificativas para conceber que estas duas entidades podem se considerar legítimas, a ideia de
uma pulsão de morte, tal como Freud a definiu, seguirá sendo dificilmente aceita. Conserva seu valor, sim,
em sua forma conceitual, se a compreendermos como "aquilo que empurra ao morrer".

Retornemos a problemática de outro modo, levando em conta a experiência psicanalítica. Esta somente
concerne, de fato, a um número limitado de estruturas que se prestam a esse trabalho. Ainda que
consideremos a advertência que impõe um limite a generalização, a história do pensamento freudiano e da
prática psicanalítica pode nos ensinar algo. Há que se levar em conta o que esta prática pode revelar sobre as
causas que se opõe ao tratamento. Este foi o motivo da redação de Análise terminável e interminável. Mesmo
quando não se está de acordo com o conteúdo do texto, é difícil impugnar a legitimidade da reflexão que o
inspira. Sabe-se que a publicação deste trabalho abalou profundamente a moral dos analistas, a tal ponto que,
muitos deles, pensaram que se Freud tivesse razão eles deveriam encerrar suas atividades. Mais tarde, depois
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da morte de Freud, sucederam-se diversas teorizações propostas pelos grandes autores da psicanálise pós-
freudiana. Não se trataria, em muitos casos, de enfrentar aqueles argumentos de Freud nos quais ele
assinalava quais eram, na sua visão, as causas dos obstáculos para o tratamento, propondo concepções
alternativas que não levassem ao mesmo pessimismo?

A centralidade do conceito de pulsão de destruição

De minha parte, decidi levar seriamente em conta a argumentação teórica freudiana e colocá-la a prova. O
estudo dos casos limite, ao qual consagrei a maior parte de meu trabalho, me conduziu as observações que
expus aqui anteriormente, por meio das quais a centralidade do conceito de pulsão de destruição a mim se
impôs, como insubstituível, ao mesmo tempo em que concebia de forma diferente as manifestações da
pulsão de morte.

O campo de reflexão coberto por Freud é extremamente amplo. Enquanto no centro se localizam os fatos
que a experiência psicanalítica observa, a teoria geral se estende a âmbitos que escapam a esta mesma
investigação. A própria formulação das hipóteses de Freud mostra claramente que o campo biológico é
prioritário em sua especulação. Neste sentido, é possível afirmar que Freud teve a intuição do que mais tarde
seria descrito como o âmbito do campo psicossomático. Por um lado, no Mal-estar na civilização, no qual
expressa suas opiniões a respeito da observação dos fenômenos socioculturais, é considerável o lugar que é
dado às pulsões de destruição. Com o tempo, acaba por se produzir um hiato. Por outro lado, a biologia, de
modo radical, invalida as especulações de Freud. Naquilo que a ciência pôde descobrir, não há nada que
corresponda, nem remotamente, ao que foi proposto por Freud. Pelo menos esta é a posição oficial, apesar de
que, frente à luz de descobertas recentes, esta ficar debilitada. Sem buscar tomar partido neste terreno, que se
encontra fora do âmbito nossa competência, assinalarei, Todavia, o descobrimento recente do estranho
fenômeno chamado Apoptosis. Sob este nome, descreve-se um processo de autolisis: morte programada das
células, que não é resultado de um processo patológico, nem tampouco de envelhelimento. Certamente, há
uma grande distância entre uma singularidade biológica e a ideia de uma pulsão cuja meta seria a destruição
da vida, visando restabelecer um estado anterior de não vida, contudo, definitivamente, nos encontramos
diante de um fenômeno no qual observamos que as estruturas vivas morrem de modo espontâneo, sem que
isto se explique por um processo de agressão, nem tampouco pelo desgaste da idade. A investigação em
biologia descobrirá outros aspectos autodestrutivos? Não se sabe. Todavia, há uma grande distância entre
este fenômeno particular e as organizações psíquicas em que a pulsão de destruição está ativa.

Poderíamos sustentar que, do mesmo modo que a psicossexualidade se apoia na sexualidade biológica,
dando-lhe complexidade, a pulsão de morte se apoia, por sua vez, sobre a morte celular e a submete a uma
correspondente complexidade, dando-lhe a face dos aspectos psíquicos descritos sob seu nome.

O campo sociocultural nos permite livrar-nos de reflexões de outra natureza. Aqui, tampouco, as teorias
vigentes tiram seu proveito da especulação freudiana, mas trata-se aqui de um caso diferente. Neste último,

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não é possível falar de um saber que se considere científico; as disciplinas tributárias da sociologia, da
antropologia e inclusive da história desenvolvem um saber de natureza diferente do adquirido através dos
métodos das ciências exatas. Neste sentido, a perspectiva de O mal-estar na civilização recebe amplos
escoamentos da observação de fenômenos sociais. Desde 1930, o desenvolvimento de meios destinados ao
estudo da agressão cresceram em grande medida. Não é útil aqui entrar em detalhes, e não teremos muitas
dificuldades para encontrar exemplos que corroborem com esta observação, mesmo que seja preferível
esxplicar os fatos de outra maneira. Em suma, diante do problema da pulsão de destruição, ao mesmo tempo
em que utiliza a biologia para invalidar as ideias de Freud (pudemos observar acima que são menos
improváveis do que se pensava), a antropologia e a sociologia, ainda que suas explicações difiram das que
são oferecidas pela psicanálise, não podem negar que são abundantes os fatos neste sentido. Todavia, nosso
interesse não reside em desenvolver uma teoria que abarque o campo da biologia e das ciências sociais, mas
sim em privilegiar primeiramente, na escala humana, uma hipótese que explique a massividade destrutiva.

Me pareceu que seria possível sustentar um hipótese que pudesse clarificar as situações observadas a
partir de um ponto de vista psicanalítico. Para isto, ainda que os fenômenos relacionados com a
autodestruição sejam o mais importante e misterioso ponto de partida, talvez convenha começar pelas
manifestações mais acessíveis, ou seja, aquelas que podem ser atribuídas a uma agressão orientada para o
exterior. Eu pensava que o mais surpreendente nas manifestações de agressão nas quais esta não se encontra
a serviço das pulsões sexuais - ou seja, ali onde a manifestação da pulsão de agressão não parece vir
acompanhada do gozo, na qual aparece como uma agressão pura, por assim dizer - era o desinvestimento
libidinal do objeto sobre o qual a pulsão recaía. Em outras palavras, isto corresponde ao que se pode observar
da falta de reação de identificação com o objeto da agressão, por quem a exerce. Em suma, o que está em
primeiro plano é, mais do que o gozo, a indiferença para o que sente o objeto agredido. A consequência deste
desinvestimento é que o outro já não é concebido como um semelhante e, portanto, pode ser considerado
com indiferença e facilmente tornar-se objeto de qualquer tipo de destruição, parcial ou total, sem culpa e às
vezes sem prazer.

Na base de tal atitude se comprova uma racionalização: o outro, enquanto absolutamente outro - ou seja,
aquele a quem toda humanidade é negada - é considerado a causa de minha desgraça e, portanto, deve
desaparecer a qualquer preço, ou, em todo caso, sair do âmbito de meu espaço vital. Que morra, que libere o
espaço no qual eu existo. O que quero é que este desapareça ou já não mais esteja ali, eu tenho o direito de
estar sozinho. Esta hipótese pode despertar objeções. Será tentador, então, postular a existência de um prazer,
e até mesmo se conformar com a explicação de um contra-investimento tão simples. Não obstante, quando
esta destruição é praticada qem grande escala, o desinvestimento facilmente se comprova; pode-se dizer,
inclusive, que, quando é de se quantidade que se trata, o desinvestimento é o único meio para prosseguir com
a ação, sem se deixar impedir, nem vencer, pela culpa. Despojando o objeto de suas qualidades de outro
semelhante, não se outorga à vítima da agressão o direito a uma alteridade que reconheça seus direitos.
Portanto, este tipo de agressão ou destruição concebe seu objeto como uma coisa. Designei esta operação de
"desobjetalização" e postulei a existência de uma função desobjetalizante.

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Em consequência, considero que um dos traços mais importantes do funcionamento psíquico libidinal é
que este transforma as funções e as estruturas em objetos. Em outras ocasiões, o próprio Freud dá o exemplo
de um Eu que pode se transformar em objeto (para substituir um objeto perdido ou para fazer-se amar em seu
lugar). Simplificando muito, direi que é difícil de imaginar que alguém se apegue a uma função dos
processos ou a instâncias ou goste dela. Se, na verdade, isto acaba acontecendo, é porque, previamente, estes
processos psíquicos sofreram transformação em objetos da psique. Uma vez realizada esta transformação,
torna-se fácil postular que tal objeto possa ser investido pelo ódio e pelo amor. Atualmente, bem sabemos
que amor e ódio não se contrapõe entre si, mas sim que ambos se contrapõe à indiferença. Chamo de "função
objetalizante" a que determina a transformação de funções e processos em objeto.

Compreende-se, em virtude do que o ocorre, que pulsão e objeto formam uma dupla na qual um já não
pode ser concebido sem o outro. A particularidade do objeto na teoria freudiana consiste em que esta o
concebe, por sua vez, como interior a montagem pulsional e, Todavia, exterior, e independente dela. Seja
como for, segundo o que sustentamos, o objeto é o revelador das pulsões, seja porque manifesta sua
existência quando falta, seja por que é o meio graças ao qual pode ser alcançada a meta da pulsão: a
satisfação. O objeto é, pois, investido pela pulsão, sem contar que é necessário recordar que ele mesmo é
investido por suas próprias pulsões. Enquanto houver investimento, forçosamente a libido predominará,
erótica ou agressiva. A destruição oferece um leque de situações observáveis: pode estar presente no estado
intrincado ou não intrincado, submetida à pulsão sexual ou sem relação com ela. Não obstante, no caso da
destruição, que poderíamos chamar de "pura", esta, na minha opinião, não é possível, senão com a condição
de que um desinvestimento afetivo sua ação e no entorpecimento de seu curso.

Orientação interna da destrutividade

Vejamos o caso mais problemático da orientação interna da destrutividade. Nas situações que acabamos
de considerar, é possível vincular as manifestações de desinvestimento objetal a uma regressão narcísica na
qual a relação com o objeto está, por assim dizer, avariada pelo desinvestimento. Em todos os casos pouco
antes citados, reina somente o Eu, ou melhor, um Eu complementado por suas relações com os Eus de outros
aos quais considera como semelhantes. Temos proposto definir esta forma de narcisismo como narcisismo
positivo, narcisismo de vida, narcisismo que tende à unidade. Ainda assim, temos sublinhado que Freud,
depois de introduzir a pulsão de morte, havia descartado dizer que esta tomava o lugar do narcisismo na
teoria. Nos pareceu que deveríamos completar a teoria do narcisismo de Freud defendendo, junto ao
narcisismo unitário ou de vida, a existência de um narcisismo de morte que tenderia ao zero, ou seja, ao auto-
aniquilamento do sujeito. Isto se observa em casos nos quais dominam as forças destrutivas dirigidas não
para o outro, ou para o objeto, mas sim para o próprio Eu. Deste modo, explicamos as manifestações
autodestrutivas. Embora os exemplos ressaltados por Freud (masoquismo, sentimento de culpa inconsciente,
e reação terapêutica negativa) mostrem com clareza o predomínio autodestrutivo, só podemos considerar este
predomínio no âmbito de um antagonismo que enfrentasse aos dois grupos de pulsão e no qual triunfam

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aquelass que se relacionam com a destruição dirigida para o interior. Poderia se dizer que, em última
instância, este movimento tende a bloquear o desenvolvimento do sujeito, a restringir sua implantação, a dar
preferência para sua involução ao invés de sua evolução. Ao fim das contas, o sujeito aspira deixar de ser. Na
raiz de tal estado, mantido por um sofrimento permanente que fez com que Freud afirmasse que o sujeito
ressexualiza a moral, estaria o fato de que este último buscaria, contraditoriamente, terminar com este estado
de sofrimento deixando de ser ele mesmo, dado que sua existência e sua dor são a mesma coisa. Por isso,
podemos falar de redução das tensões ao nível zero. Podemos aqui evocar a tese de Bion que afirma que o
dilema fundamental é, para o sujeito humano, elaborar a frustração ou evadir-se dela. A evasão mais radical
se realiza pela aspiração de deixar de ser. Se pensarmos bem, outros exemplos vêm à mente. É talvez o caso,
como Freud assina-la, da melancolia, considerada, no fim das contas, "pura cultura" das pulsões de morte.
Isto é aplicável também a alguns casos de suicídio. Por outro lado, também na anorexia, e em um grande
número de afeções psicossomáticas domina o desejo obsessivo de autodestruição, com frequência de modo
inconsciente.

Como sabemos, Freud propôs esclarecer o mecanismo essencial das duas variedades de pulsões mediante
a ligação e o desligamento. Evidentemente o investimento implica em ligação e o desinvestimento, em
desligamento. Temos que compreender que ligação e desligamento se aplicam simultaneamente aos
fenômenos que tem lugar no interior da psique e também há aqueles que ligam a atividade psíquica com o
objeto que se encontra fora dela. A forma reflexiva, "se ligar", pode ser compreendida, quer como ligação
que se produz em si mesmo, quer como ligação com um objeto. Seria muito simples identificar Eros com a
ligação e postular que as pulsões de destruição são ilustradas pelo desligamento. Na realidade, penso que
seria mais lógico considerar que Eros provém de uma combinação que inclui ligações e desligamentos, ou
seja, intrincação e desintrincação podem se sudecer no âmbito de um psiquismo animado a partir de um
ponto de vista dinâmico. De modo que as operações se combinam e se sucedem, o conjunto permanece sob o
primado do intrincação, pois os desintrincaçãos são parciais, limitados, e temporários, seguidos
imediatamente pelo religamento, que faz prevalecer o intrincação. Quando se está ante o predomínio das
pulsões destrutivas, o que melhor se observa é o predomínio único do desligamento. Aqui, o jogo parece se
desenvolver oscilando entre desinvestimento do objeto, em benefício de um narcisismo positivo, e
desinvestimento do Eu, que favorece a tendência à autodestruição, mais além dos gozos buscados pelo
masoquismo. Trata-se de uma situação extrema.

Como vemos, esta concepção que reconhece a importância e a realidade das forças destrutivas, não
obstante, se separa da especulação freudiana.

O que pensar da redução das tensões? Se excluirmos a hipótese do retorno à matéria inanimada, é
possível manter esta hipótese a reinterpretando? De certa forma, aparece ilustrado nos primórdios da
psicanálise, não por ação de um grupo de pulsões, mas sim apartir da própria repressão. Se a ação da
repressão puder ser resumida em afastamento da consciência, é evidente que se trata de afastar da
consciência o que estaria lhe causando desprazer, ou seja, introduzir no âmbito da consciência tensões
desprazerosa. Posteriormente, Freud não deixou de enriquecer o campo do qual a repressão continuou a ser o
protótipo, descrevendo a foraclusão, a cisão, a renegação e a negação. A princípio, todos estes mecanismos,

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voltando ao trabalho do negativo, tem o objetivo evitar a consciência tensões desprazerosa ou dolorosas.
Supostamente, trata-se de ações em curto prazo, pois se, o reprimido e seus homólogos buscam triunfar, será
ao preço de uma mutilação da integridade psíquica e, por outro lado, isto está longe de evitar o constante
retorno do reprimido, do foracluído, do renegado e do negado. Aqui é possível recordar as conclusões gerais
às quais Freud chega ao final de seu artigo A negação (1925), que relacionam as origens destas com a
manifestação da pulsão de morte.

O trabalho do negativo não pode ser concebido fora de sua relação com a pulsão de destruição. Isto não
quer dizer que seus campos se confundam, pois sabemos que os efeitos mais gerais da repressão fazem parte
do campo da pulsão de destruição. Todavia, creio que os elementos que Freud coloca em questão -
masoquismo, sentimentos inconscientes de culpa, e reação terapêutica negativa - se observam precisamente
no estudo dos casos limite, e, ao mesmo tempo, é possível evidenciar uma verdadeira ação mutiladora no que
diz respeito ao trabalho do pensamento. Lembremos novamente que o "prazer da dor", a necessidade de
castigo, não explica tudo quando o sujeito não extrai nenhum prazer na autodestruição, mas sim parece
conduzido para o desinvestimento desobjetalizante que, em casos extremos, empurra para o nada, ao deixar
de ser. Não retornarei sobre o que já foi amplamente descrito, mas gostaria de assinalar outra vez a
importância dos fenômenos da alucinação negativa do pensamento, nos quais o sujeito logrou cindir, logo
deinvestir, as relações das palavras com sua interpretação a partir da ótica dos conceitos psicanalíticos.
Quando recordamos aquilo que acabamos de mencionar (argumento clínico e hipóteses sobre a
autodestruição do pensamento) vem geralmente acompanhado de compulsões à repetição de caráter
indubitavelmente esterilizante, senão mortífero, alcança-se certa coerência que permite fazer figurar no
mesmo quadro masoquismo, necessidade de auto-punição e reação terapêutica negativa, pois o conjunto
reflete os efeitos do trabalho do negativo e da repetição para além do princípio do prazer.

Estas são as conclusões a que cheguei ao final de uma larga experiência psicanalítica, me coloco diante da
obrigação de reconhecer a legitimidade da última teoria das pulsões de Freud, ao mesmo tempo em que me
afasto do conjunto teórico que ele criou. Com isto, busquei demonstrar que esta descoberta autêntica passou
a ser, na forma que Freud lhe deu, e na medida em que se desenrolou, inaceitável. Talvez, se Freud tivesse
tido uma confirmação maior por parte da prática clínica, não teria necessitado levar sua especulação a tais
extremos e tivesse trazido à luz outros aspectos clínicos que apenas tocou, ou que escaparam à sua
teorização. Mas a psicanálise, por mais que deva a Freud, não se limita a ele. Outros que o sucederam
também me ajudaram a alcançar as conclusões que apresentei aqui, consciente sempre de sua imperfeição.

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Referencias Bibliográficas (verificar obra original)

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