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2 FUNDAMENTAÇÃO
Os seguintes fatos que motivaram a presente ação são
incontroversos: (a) o autor é criador de pássaros silvestres; (b) após
fiscalização do IBAMA, sete pássaros foram apreendidos e, em seguida,
reintroduzidos em ambiente natural; (c) foi aplicada multa em razão das
irregularidades apontadas pelo IBAMA.
Diante desses fatos, o autor pede, em termos sintéticos, o
reconhecimento da nulidade da fiscalização do IBAMA, com a anulação da
multa aplicada e a consequente devolução dos pássaros.
Quanto ao pedido de anulação da multa, a razão está com o
autor. De fato, a multa foi aplicada antes mesmo de ter sido dada
oportunidade de o autor apresentar a documentação que justificaria a posse
das aves, o que representa uma clara violação do devido processo. Em outras
palavras: o IBAMA aplicou a multa e apenas depois analisou a documentação
do autor. Mesmo que várias inconsistências na documentação tenham sido
constatadas, o certo é que a punição somente pode ser aplicada após a
apreciação da defesa do eventual infrator.
Além disso, o próprio IBAMA reconheceu que uma boa parte da
documentação estava regular, ou seja, seis dos sete pássaros tinham origem
legal. As inconsistências apontadas pelo IBAMA em sua contestação somente
foram apontadas depois que a multa foi aplicada, indicando que o órgão
ambiental primeiro aplicou a sanção para somente depois encontrar a
infração. Em outras palavras: o órgão ambiental foi contaminado pelo
chamado viés da confirmação, tentando encontrar razões para justificar sua
atuação depois que a decisão de condenar já havia sido tomada.
Não é preciso nem mesmo adentrar no mérito sobre a
possibilidade de fiscalização in loco realizada pelo IBAMA. Basta reconhecer
que houve uma inversão processual em que o direito de defesa foi
prejudicado pelo desejo do órgão ambiental de justificar a sua atuação.
Diante disso, o auto de infração deve ser anulado, inclusive com a
suspensão da cobrança da multa aplicada.
Por outro lado, o pedido de devolução dos pássaros não pode ser
acolhido. Primeiro por uma impossibilidade fática: conforme informações do
IBAMA, os pássaros já foram reintroduzidos ao ambiente natural. Segundo
por uma impossibilidade jurídica: é questionável o direito do autor de
manter a posse dos pássaros.
Quanto a esse segundo ponto, há uma razão formal para negar o
pedido. Conforme apontado pelo IBAMA, a documentação apresentada pelo
autor possui diversas inconsistências que põem em dúvida a sua regularidade.
Além de ter contradição entre os números das anilhas e as espécies de
pássaros, também foram apontados problemas no nome dos proprietários,
bem como no local de criação desses pássaros.
Além disso, há um aspecto que, embora não seja decisivo para a
solução desse caso, é extremamente importante do ponto de vista da proteção
dos animais: é bastante questionável se é válida uma licença ambiental que dá
o direito de uma pessoa de criar um pássaro em cativeiro, sobretudo em
gaiolas.
Os pássaros são seres senscientes que possuem a capacidade de
voar. Nessa condição, qualquer medida que retire desses pássaros essa
capacidade fundamental deve ser vista, em linha de princípio, como uma
medida que submete os animais a crueldade e, nessa condição, viola o artigo
225, §1o, inc. VII, da Constituição Federal1.
O Supremo Tribunal Federal tem sistematicamente anulado
práticas que submetem os animais a crueldade, tal como ocorreu no
julgamento do caso da Farra do Boi2 e da Briga de Galo3. Mais recentemente,
1
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso
comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à
coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações. § 1º
Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: VII - proteger a
fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função
ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.
2
A ementa do acórdão é a seguinte: “COSTUME – MANIFESTAÇÃO CULTURAL –
ESTÍMULO – RAZOABILIDADE – PRESERVAÇÃO DA FAUNA E DA FLORA –
ANIMAIS – CRUELDADE. A obrigação de o Estado garantir a todos o pleno exercício
dos direitos culturais, incentivando a valorização e a difusão das manifestações, não
prescinde da observância da norma do inc. VII do art. 225 da Constituição Federal, no
que veda a prática que acabe por submeter os animais à crueldade. Procedimento
discrepante da norma constitucional denominado ‘farra do boi’ (STF, RE 153.541-1-SC,
rel. p/ acórdão Min. Marco Aurélio).” Veja-se trecho do voto do Min. Marco Aurélio,
relator para o acórdão, que sintetiza o argumento vencedor: “é justamente a crueldade o
que constatamos ano a ano, ao acontecer o que se aponta como folguedo sazonal. A
manifestação cultural deve ser estimulada, mas não a prática cruel. Admitida a chamada
‘farra do boi’, em que uma turba ensandecida vai atrás do animal para procedimentos que
estarrecem, como vimos, não há poder de polícia que consiga coibir esse procedimento.
Não vejo como chegar-se à posição intermediária. A distorção alcançou tal ponto que
no julgamento da ADI 4.983/CE, o Supremo Tribunal Federal, conforme
voto do Min. Luís Roberto Barroso, assinalou:
"A Constituição veda expressamente práticas que submetam animais a
crueldade. O avanço do processo civilizatório e da ética animal elevou o
resguardo dos seres sencientes (i.e. , capazes de sentir dor) contra atos
cruéis a um valor constitucional autônomo, a ser tutelado
independentemente de haver consequências para o meio - ambiente, para
a função ecológica da fauna ou para a preservação das espécies" (STF,
ADI 4.983/CE, voto do min. Luís Roberto Barroso).
Com relação à criação de pássaros em gaiola, embora não exista
nenhuma decisão do Supremo Tribunal Federal sobre o tema, a matéria não
é nova na jurisprudência global. De fato, no Caso "People For Animals vs Md
Mohazzim & Anr", a Alta Corte de Delhi, na Índia, reconheceu expressamente
que os pássaros possuem o direito de serem livres e que o seu aprisionamento
em gaiolas viola esse direito4.
somente uma medida que obstaculize terminantemente a prática pode evitar o que
verificamos neste ano de 1997. O Jornal da Globo mostrou um animal ensanguentado e
cortado invadindo uma residência e provocando ferimento em quem se encontrava no
interior. Entendo que a prática chegou a um ponto a atrair, realmente, a incidência do
disposto no inciso VII do artigo 225 da Constituição Federal. Não se trata, no caso, de
uma manifestação cultural que mereça o agasalho da Carta da República. Como disse no
início de meu voto, cuida-se de uma prática cuja crueldade é ímpar e decorre das
circunstâncias de pessoas envolvidas por paixões condenáveis buscarem, a todo custo, o
próprio sacrifício do animal”.
3
“CONSTITUCIONAL. MEIO AMBIENTE. ANIMAIS: PROTEÇÃO:
CRUELDADE. ‘BRIGA DE GALOS’. I. – A Lei 2.895, de 20.03.98, do Estado do Rio de
Janeiro, ao autorizar e disciplinar a realização de competições entre ‘galos combatentes’,
autoriza e disciplina a submissão desses animais a tratamento cruel, o que a Constituição
Federal não permite: C.F., art. 225, § 1o, VII. II. – Cautelar deferida, suspendendo-se a
eficácia da Lei 2.895, de 20.03.98, do Estado do Rio de Janeiro.” (STF, ADI no
1.856/MC, rel. Min. Carlos Velloso, DJ de 22/9/2000).
4
Eis, no original, o trecho relevante do julgamento: "after hearing both sides, this Court is of
the view that running the trade of birds is in violation of the rights of the birds. They deserve
sympathy. Nobody is caring as to whether they have been inflicting cruelty or not despite of settled
law that birds have a fundamental right to fly and cannot be caged and will have to be set free in the
sky. Actually, they are meant for the same. But on the other hand, they are exported illegally in
foreign countries without availability of proper food, water, medical aid and other basic amenities
required as per law. Birds have fundamental rights including the right to live with dignity and they
cannot be subjected to cruelty by anyone including claim made by the respondent. Therefore, I am
clear in mind that all the birds have fundamental rights to fly in the sky and all human beings have
Veja-se que, no presente caso, há várias outras razões, além do
direito dos pássaros à liberdade, para se negar ao autor o seu pedido. De
qualquer modo, é importante trazer esse tema ao debate até para que a
sociedade possa refletir até que ponto criar pássaros em gaiolas é uma medida
civilizatória ou não. De qualquer modo, seja por razões práticas, seja por
razões jurídicas, os pássaros apreendidos não podem ser mais devolvidos ao
autor.
3 DISPOSITIVO
no right to keep them in small cages for the purposes of their business or otherwise" (Disponível on-
line: http://tinyurl.com/y8l97aox).