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XIII Congresso Brasileiro de Sociologia

29 de maio a 1 de junho de 2007, UFPE, Recife (PE)


Grupo de Trabalho “Cidades e Processos Sociais”.

Reforma Urbana no Brasil: a intelligentzia e o Estatuto da Cidade.

Ana Paula Soares Carvalho


Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro
apcarvalho@iuperj.br
Introdução

O início desta década foi marcado por um importante acontecimento no que se refere ao
tratamento da questão urbana no Brasil. Em 2001 é promulgado o Estatuto da Cidade (Lei nº
10.257/2001), uma lei vista por muitos como instrumento fundamental à realização da reforma urbana
neste país. O Estatuto, como se sabe, é a regulamentação dos artigos 182 e 183 da Constituição de
1988 que tratam especificamente de política urbana.
A Lei nº 10.257/2001 consolida o preceito, já presente nos artigos constitucionais supracitados,
da função social do solo urbano. Ela obriga ainda as prefeituras de cidades com mais de vinte mil
habitantes ou que já tiveram planos aprovados há mais de dez anos a elaborarem um Plano Diretor
para a cidade, sob pena do prefeito ficar sujeito a improbidade administrativa.
Observando-se o texto do Estatuto, pode-se dizer que o Plano Diretor é concebido nele como
um instrumento da reforma urbana: a partir de uma espécie de mapeamento de problemas e
potencialidades da cidade ele vai definir como o poder público deverá agir no espaço da cidade de
modo que se garanta o bem-estar de todos os seus cidadãos. De acordo com a lei, o Plano deve ser
fruto de uma negociação entre diversos setores da sociedade, mediada e institucionalizada pelo
Poder Público municipal.
Esta lei, cujo projeto levou mais de dez anos para ser aprovado e que traz claramente em seu
texto a intenção de fortalecer entre nós a democracia participativa e conter a obtenção abusiva de
lucro através da posse do solo urbano, é tida por muitos como uma conquista de vários setores da
sociedade brasileira que há mais de três décadas vêm lutando de maneira relativamente coordenada
pela reforma urbana.
Segundo Ermínia Maricato (1997), o Movimento pela Reforma Urbana surgiu de iniciativas de
setores da Igreja Católica, como a CPT - Comissão Pastoral da Terra, que se dedicava à assessoria
da luta dos trabalhadores no campo e passou, a partir de uma primeira reunião realizada no Rio de
Janeiro, no final dos anos 1970, a promover encontros destinados a auxiliar na construção de uma
entidade que assessorasse os movimentos urbanos.
A estes setores da Igreja uniram-se intelectuais e pessoas vindas das comunidades faveladas
e periféricas. Houve assim uma articulação de várias entidades e associações que passaram a
reivindicar junto ao poder público um conjunto de mudanças no modo de se tratar o espaço urbano. É
possível dizer que a inclusão de um capítulo sobre reforma urbana na Carta de 1988 se deve em
grande medida à pressão que o Movimento conseguiu fazer sobre a Assembléia Constituinte.
A última grande conquista deste movimento parece ter sido a criação do Ministério das
Cidades em 2003. A instauração desta pasta fez com que a reforma urbana ganhasse uma posição
um pouco mais destacada na política nacional. Apesar disso, deve-se dizer que uma política nacional
que vise a diminuição massiva do déficit habitacional brasileiro – um ponto fulcral da reforma urbana
– ainda não foi colocada em prática.
É preciso destacar, entretanto, a importante atuação do Ministério das Cidades, desde a sua
criação, no que concerne à regularização fundiária e à elaboração de Planos Diretores. Este
ministério – em especial a Secretaria Nacional de Planejamento Urbano – parece estar se ocupando
largamente no presente momento com a questão da regularização fundiária. Entre os objetivos
declarados dessa secretaria estão a busca da remoção dos obstáculos da legislação federal
fundiária, cartorária, urbanística e ambiental e o incentivo de parcerias com a sociedade civil para que
se promova a participação popular em todas as etapas das intervenções de regularização fundiária.
Tendo esse universo de acontecimentos como base para a reflexão, a intenção neste artigo é
produzir uma pequena revisão da literatura sobre a história recente da luta pela reforma urbana no
Brasil. Tratar-se-á inicialmente da urbanização brasileira e do tipo de conflito que ela engendrou. Mais
adiante, faz-se uma reconstrução do movimento organizado por uma reforma urbana democrática,
tomando-se como ponto de partida o Seminário de Habitação e Reforma Urbana, realizado em 1963,
e como ponto de chegada a promulgação do Estatuto da Cidade em 2001. Realiza-se então uma
discussão acerca da nova organização da agenda da luta pelo direito à cidade, tendo-se em vista o
surgimento do Estatuto e do Ministério das Cidades. O texto se fecha com alguns questionamentos
inspirados na discussão feita ao longo do percurso, propondo uma pequena agenda de pesquisa a
ser desenvolvida em trabalhos futuros.

Processo de urbanização no Brasil e as articulações dos atores sociais urbanos

Ao se analisar o modelo de urbanização brasileiro poucos discordam de que se trata de um


modelo produtor de fragmentação do espaço e de exclusão social e territorial. Pode-se dizer ainda
que ele é marcado por uma intensa concentração da população nas grandes metrópoles, as quais
cresceram assustadora e desordenadamente nos últimos cinqüenta anos. Uma marca importante de
nossas metrópoles é o seu incessante alargamento de fronteiras e uma profunda desigualdade entre
áreas pobres, desprovidas de toda a urbanidade, e áreas ricas, nas quais os equipamentos urbanos e
infra-estruturas se concentram.
Os assentamentos precários são comuns em quase todas as grandes cidades brasileiras, bem
como a existência nas mesmas, principalmente em suas áreas centrais, de uma grande quantidade
de imóveis que se encontra ociosa ou sub-utilizada. É verdade ainda que não só há imóveis ociosos,
bem como muitos terrenos na mesma condição, o que faz com que as cidades ganhem cada vez
mais extensão territorial.
Essa tendência à periferização, a um crescimento agigantado das fronteiras das cidades está
intimamente conectada a sérios problemas de infra-estrutura e transportes. Muitos autores, entre eles
Milton Santos (2005) e Luiz César de Queiroz Ribeiro (2003), apontam como uma das causas deste
estado de coisas a intensa especulação imobiliária e fundiária. Esta é fruto de uma urbanização que
respeita quase que exclusivamente a lógica do lucro privado.
Cabe aqui citar Santos quando ele trata do ciclo vicioso dos problemas das grandes cidades.
Segundo o autor, “as cidades são grandes porque há especulação e vice-versa; há especulação
porque há vazios e vice-versa; porque há vazios as cidades são grandes. O modelo rodoviário urbano
é fator de crescimento disperso e espraiamento da cidade. Havendo especulação, há criação
mercantil de escassez e acentua-se o problema do acesso à terra e à habitação. (...)”. E o ciclo
segue...
Milton Santos chama de “urbanização corporativa” aquela empreendida sob o comando dos
interesses das grandes firmas e mesmo das classes mais altas da sociedade. Esta “constitui um
receptáculo das conseqüências de uma expansão capitalista devorantes dos recursos públicos, uma
vez que esses são orientados para os investimentos econômicos, em detrimento dos gastos sociais”
(2005, p. 106)
O Estado tem certamente papel central nesse processo de especulação, notadamente na fase
do predomínio do capitalismo monopolista. Nessa fase, ele age sem pudor na produção do espaço
segundo as necessidades do grande capital. Nas palavras de Santos, “o capitalismo monopolista
agrava a diferenciação quanto à dotação de recursos, uma vez que parcelas cada vez maiores da
receita pública se dirigem à cidade econômica em detrimento da cidade social. A lei da escassez se
afirma, então, com mais força, e ampliam-se as diferenças já existentes entre lugares urbanos (...)”.
Mais adiante o autor afirma que a ideologia desenvolvimentista dos anos 1950 e a posterior ideologia
do Brasil potência legitimavam a orientação do gasto público em benefício de grandes empresas. A
justificativa era a de que somente assim o Brasil aumentaria suas exportações para poder se equipar
mais depressa e melhor. Tal raciocínio fez com que se desse prioridade aos investimentos em capital
geral do interesse de umas poucas empresas, em lugar de canalizar os recursos obtidos para dar
respostas aos reclamos sociais. Além disso, “o regime autoritário, mediante rígido controle das
manifestações de uma opinião pública já por si deformada, contribuiu, fortemente, para a manutenção
desse esquema.” (SANTOS, 2005, p. 113)
Essa urbanização corporativa leva à formação de cidades corporativas. Ele as chama assim
justamente porque são organizadas e geridas de modo a facilitar a operação das grandes empresas,
das corporações econômicas. Mas a extensão de interesses corporativos não se limita às empresas.
Diversos grupos atuam através de lobbies de modo a conseguir da administração pública o
atendimento de suas demandas, que em geral não beneficiam a sociedade como um todo, mas
somente aquele grupo. O autor afirma que a produção recente de uma classe média mais
preocupada com as práticas que com as finalidades é também um dos dados dessa mentalidade
corporativista.
Esse corporativismo não é apenas negativo pelo fato de produzir uma cidade para poucos. Ele
impede também que os atores vejam a cidade como um todo e que eles entrem em consenso sobre o
que é prioritário a todos. Impõe-se assim um obstáculo ao exercício da cidadania e da democracia na
medida em que “as lealdades coletivas se enfraquecem e o sentimento de comunidade não chega a
se afirmar.” (SANTOS, 2005, p. 121)
Santos afirma ainda que o poder público agiu – e persiste agindo – de forma de direta na
promoção de tal urbanismo corporativo e, por conseguinte, na geração de problemas urbanos, ainda
que prometendo resolvê-los. Um exemplo dessa ação direta é a atuação do Banco Nacional de
Habitação. O discurso da criação do BNH dava-o como instrumento de melhoria das condições de
moradia dos habitantes urbanos. Ele se tornou, entretanto, uma instituição financeira estatal
destinada a preparar as cidades para melhor exercer seu papel na fase do capital monopolista que se
estava implantando. Ele iria realizar essa tarefa mediante a utilização de recursos arrecadados junto
a todos os trabalhadores através de suas poupanças voluntárias e também de um Fundo, o Fundo de
Garantia por Tempo de Serviço (FGTS).
Assim, o FGTS dos trabalhadores foi utilizado tanto para melhorar a infra-estrutura de
determinadas partes da cidade quanto para o financiamento de apartamentos e casa sobretudo para
as classes médias. Além de desprivilegiar as classes mais baixas, o BNH, ao criar conjuntos
residenciais preferencialmente nas periferias, contribui para agravar a tendência ao espraiamento das
cidades e para estimular a especulação imobiliária. De acordo com Santos, “a construção de um
conjunto residencial, e a consecutiva dotação de infra-estruturas, valoriza os terrenos ao derredor,
estimulando os proprietários a uma espera especulativa. Produzem-se novos vazios urbanos, ao
passo que a população necessitada de habitação, mas sem poder pagar pelo seu preço nas áreas
mais equipadas, deve deslocar-se para mais longe, ampliando o processo de periferização.” (2005, p.
124)
A atuação do Estado também foi marcante no que se refere à planificação urbana
notadamente ao longo dos anos 1960 e 1970. Certamente a intenção primeira da grande parte dos
planos diretores que foram elaborados para inúmeras cidades brasileiras era resolver os problemas
mencionados anteriormente. A marca, entretanto, desses planos é a da tecnocracia. Tratava-se,
assim, de uma planificação sobretudo técnica, mais voltada para um determinado desenvolvimento
econômico. A distribuição de recursos sociais estava longe da pauta de prioridades.
Ribeiro (2003), ao refletir sobre o papel da cidade no processo de histórico de constituição do
capitalismo no Brasil, separa a nossa formação urbana em três etapas: o urbano na colônia como
locus do controle da acumulação do capital mercantil através da exploração do trabalho escravo; a
cidade como sede de parte da acumulação do capital mercantil, quando se desenvolve uma
economia urbana no interior da economia agrário-exportadora; e a cidade da indústria, com dois
subperíodos: o primeiro correspondendo à fase do populismo, em que a estrutura produtiva estava
orientada à produção dos bens salariais de consumo, e o segundo correspondente ao
desenvolvimento associado, onde a produção foi orientada para os bens de consumo de luxo.
Ao longo das últimas duas etapas supracitadas, o autor afirma que a urbanização combinou
dois movimentos: a concentração econômica, social e territorial e a fluidez da expansão das suas
fronteiras sociais e territoriais. Ele aponta ainda para três aspectos marcantes que estariam na raiz
dos nossos problemas urbanos: “(I) a industrialização com formação concomitante de uma 'massa
marginal' constituída por um excessivo exército industrial de reserva; (II) o bloqueio da formação da
moderna cidadania; e (III) a constituição de poderosos interesses mercantis ligados à acumulação
urbana.” (RIBEIRO, 2003, p. 21)
Vê-se aí bastante concordância entre os autores em questão, uma vez que ambos acreditam
que nosso processo de urbanização é marcado pelo favorecimento ao grande capital, por uma
espécie de estímulo estatal à especulação fundiária e imobiliária, bem como pela criação de inúmeros
bloqueios à elaboração democrática de consensos entre os diversos atores urbanos.

Reforma urbana no Brasil e Estatuto da Cidade

Antes de se tratar propriamente do Movimento pela Reforma Urbana no país, é preciso fazer
aqui um comentário inicial quanto ao conteúdo da bibliografia que se vai aqui mobilizar. Grande parte
daquilo que se encontrou sobre esse tema não se presta propriamente a uma abordagem analítica
dos eventos. Tem-se assim na maioria dos textos uma abordagem que se prende à narrativa dos
acontecimentos. Não se pode identificar interpretações muito discordantes acerca do tema, havendo
grande concordância entre os autores no que se refere ao ideário que informa o Movimento, aos
principais atores do processo, às pautas defendidas por tais atores, e às causas que os levaram a se
unir em torno de tais causas. Apresentar-se-á aqui, pois, muito mais uma história dos acontecimentos
do que propriamente diferentes abordagens teóricas a partir das quais seja possível abordá-los.
De acordo com grande parte da literatura aqui utilizada, o Movimento pela Reforma Urbana
nasce do consenso por parte de alguns setores progressistas da sociedade de que o processo de
urbanização no Brasil precisava sofrer uma séria inflexão: não pode a cidade seguir sendo ocupada e
gerida segundo uma lógica que não a do bem coletivo. Este Movimento se reúne, pois, em torno da
condenação da exclusão da maior parte dos habitantes da cidade “determinada pela lógica da
segregação espacial; pela mercantilização do solo urbano e valorização imobiliária; pela apropriação
privada dos investimentos públicos em moradia, em transportes públicos, em equipamentos urbanos
e em serviços públicos em geral.” (SAULE, 2006, p. 15)
Segundo De Grazia, “os movimentos sociais urbanos, que na década de 70 colocaram na
cena pública um quadro de profundas desigualdades sociais, degradação ambiental e das condições
de vida, comprometeram as lideranças políticas, na década seguinte, a implementar uma bandeira de
luta capaz de articular de maneira global as reivindicações expressas por grandes mobilizações
realizadas contra a política urbana e socioeconômica brasileira.” (2003, p. 53)
Apesar de os anos 1970 terem sido de fato a década em que os movimentos sociais urbanos
começaram a se organizar melhor e alcançar alguma visibilidade, o embrião do Movimento pela
Reforma Urbana pode ser encontrado já na década anterior. Mesmo a idéia da elaboração de uma
legislação específica para a questão urbana já começou a circular neste momento. Seguindo-se a
cronologia e a análise proposta pelo Instituto Pólis (SAULE, 2006), e também por Bassul (2002),
pode-se afirmar que a trajetória de luta pela reforma urbana inicia-se nos anos 1960, época em que
os segmentos progressistas da sociedade brasileira demandavam reformas estruturais na questão
fundiária. A principal bandeira na época, entretanto, era a realização da Reforma Agrária no campo.
O espaço urbano não figurava, assim, como centro das atenções.
Ainda assim, em 1963, realizou-se o Seminário de Habitação e Reforma Urbana, coordenado
pelo Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB). O relatório final desse encontro incluiu a seguinte
proposta: “que o poder executivo envie o projeto de lei ao Congresso Nacional corporificando os
princípios de Política Habitacional e de Reforma Urbana aprovados neste seminário.” (BASSUL,
2002,) Com o Golpe Militar de 1964, porém, qualquer articulação neste sentido ficou muito
prejudicada, de modo que apenas nos anos 1970 pôde-se de fato voltar a discutir um plano de
reforma urbana.
Deste modo, como se disse anteriormente, foi apenas a partir dessa década que os
movimentos sociais passaram a ganhar maior visibilidade e relevância política. Construiu-se aí um
discurso e uma prática social marcados pela autonomia. Passou-se a falar em direitos: a
desigualdade social deveria ser suplantada com base numa nova ética social. O surgimento desta
dependia, por sua vez, da politização da questão urbana, compreendida como elemento fundamental
para o processo de democratização da sociedade brasileira.
Houve então uma grande contribuição da Igreja Católica para o Movimento da Reforma
Urbana. Maricato (1997) chega mesmo a dizer que tal movimento surgiu de iniciativas de setores da
Igreja Católica, como a CPT – Comissão Pastoral da Terra, que se dedicava à assessoria da luta dos
trabalhadores no campo e passou, a partir de uma reunião no Rio de Janeiro, no final dos anos 1970,
a promover encontros destinados a auxiliar na construção de uma entidade que assessorasse os
movimentos urbanos. Por essa época, essa instituição lançou o documento “Ação Pastoral e o Solo
Urbano”, em que defendia a função social da propriedade urbana. Este certamente pode ser
identificado como o grande mote de todo o Movimento.
A década de 1980 é certamente aquela em que o Movimento ganhou mais organicidade. Há
que se lembrar que o processo de democratização do país estava em pleno curso, o que facilitou em
muito a organização e a interlocução entre as diversas entidades e movimentos ligados à questão
urbana. Vale mencionar aqui o surgimento, em janeiro de 1985, do Movimento Nacional pela Reforma
Urbana. “No princípio, a luta do Movimento tinha um caráter local, como a reivindicação por moradia.
Mas com o fim do regime militar, passou a incorporar a idéia de cidade (...).” (SAULE, 2006, p. 14)
A atuação do Movimento na Constituinte de 1988 é de grande importância. Através dele,
várias organizações da sociedade civil, movimentos, entidades profissionais, sindicatos, entre outros1,
articularam-se e mesmo assumiram a tarefa de elaborar uma proposta de lei a ser incorporada na
Carta de 1988, lei esta que deveria funcionar no sentido de modificar o perfil excludente das cidades
brasileiras. Cabe ressaltar que nessa fase a pauta de reivindicações já não se limitava à questão da
moradia. A bandeira do Movimento passa a ser o direito à cidade, que se caracteriza por quatro eixos
básicos: gestão democrática e participativa das cidades; garantia da justiça social e de condições
dignas a todos os habitantes das cidades; subordinação da propriedade à função social; e pelas
sanções aos proprietários nos casos de não cumprimento da função social.
A luta pela Reforma Urbana, como se pode observar, de certo modo ultrapassa a questão do
urbano. O que se propõe é uma nova ética social, ao passo que no seu ideário subordina a
propriedade à função social. Trata-se pois de uma luta mais geral por justiça social e igualdade, bem
como por uma ampliação da democracia.
A atuação do Movimento junto à Constituinte materializou-se numa emenda popular da
Reforma Urbana, assinada por mais de 160 mil pessoas. Ainda que ela não tenha sido inteiramente
incorporada no texto da Carta de 1988 – a questão urbana é tratada em apenas dois artigos – pode-
se dizer que o avanço foi grande, na medida em que pela primeira vez na história constitucional do
país a política urbana ganha destaque. O princípio da função social da propriedade passa a figurar no
texto da Constituição. “(...) O direito público brasileiro passou não somente a garantir a propriedade
privada e o interesse individual, mas a assegurar o interesse coletivo quanto aos usos individuais da
propriedade. Assim, a propriedade deixou de ser somente vinculada ao direito civil, matéria de caráter
privado, e passou a ser disciplinada pelo direito público. (...) Outros avanços conquistados (...) foram
a afirmação e o efetivo estabelecimento da autonomia municipal e a ampliação da participação da
população na gestão das cidades.” (SAULE, 2006, p. 17)
Mas a tarefa do Movimento estava longe de se completar. Havia um consenso de que era
preciso assegurar efeito aos dispositivos referentes à questão urbana. Forma-se pois o Fórum
Nacional de Reforma Urbana (FNRU)2, com o objetivo imediato de pressionar o Congresso Nacional

1
Cabe aqui citar alguma das principais entidades que participaram e participam do movimento, tal como a
Federação Nacional dos Arquitetos, a Federação Nacional dos Engenheiros, a Federação de órgãos para
Assistência Social e Educacional (FASE), Articulação Nacional do Solo Urbano (ANSUR), Movimento dos
Favelados, Associação dos Mutuários, Instituto dos Arquitetos, Federação das Associações dos Moradores
do Rio de Janeiro (FAMERJ), pastorais e movimentos sociais de luta pela moradia.
2
É importante mencionar a importância da atuação local de entidades e movimentos ligados ao FNRU
quando do processo de elaboração das Constituições Municipais [as Leis Orgânicas dos Municípios]. Além
disso, pode-se dizer que até hoje o FNRU trabalha junto à sociedade civil para que a reforma urbana se
concretize no Brasil. Os princípios fundamentais que orientam a sua ação são: - o direito à cidade e à
cidadania, que inclui o direito à terra, aos meios de subsistência, à moradia, ao saneamento ambiental, à
saúde, à educação, ao transporte público, à alimentação, ao trabalho, ao lazer e à informação; - a gestão
para regulamentar o Capítulo da política urbana da Constituição Federal de 1988.
Ao todo foram dezessete os projetos de parlamentares apresentados no sentido de
regulamentar os artigos 182 e 183 da Constituição. “Com maior ou menor abrangência (apenas cinco
abordaram a questão como lei de caráter geral), as propostas tinham razoável campo de
convergência e denotavam a importância social que a temática urbana passou a ensejar. No
processo legislativo, ganhou evidência o projeto de lei do Senado no. 181, de 1989, autodenominado
'Estatuto da Cidade', de autoria do senador Pompeu de Sousa, falecido em 1991. Após doze anos de
tramitação (...) a lei proposta foi aprovada por unanimidade.” (BASSUL, 2002)
O Estatuto da Cidade consiste em uma lei que define as diretrizes gerais que devem ser
observadas pelos governos federal, estadual e municipal para a promoção da política urbana, voltada
a garantir o pleno desenvolvimento das funções sociais da propriedade urbana e da cidade, o direito
a cidades sustentáveis e o desenvolvimento de gestões democráticas nas cidades. Pautada no
princípio da função social da propriedade e gestão democrática da cidade, a lei contém normas de
ordem pública e interesse social regulando o uso da propriedade urbana de modo a garantir o bem
coletivo, a segurança e o bem-estar dos cidadãos.
De modo mais específico, o Estatuto trata: - dos instrumentos voltados a garantir o
cumprimento da função social da propriedade (imposto progressivo no tempo sobre a propriedade
urbana e a desapropriação para fins de reforma urbana); - dos critérios para a elaboração e execução
do Plano Diretor pelos municípios; - dos instrumentos de regularização fundiária das áreas urbanas
ocupadas por população de baixa renda; dos instrumentos de gestão democrática da cidade
(audiências públicas, conselhos e conferências das cidades nas esferas nacional, estadual e
municipal). (SAULE, 2006, p. 24)
Quanto à tramitação do projeto do Estatuto da Cidade na Câmara e no Senado, até a sua
aprovação em 2001, cabe dizer que houve embates difíceis com partidos conservadores, grupos
econômicos que atuam no mercado imobiliário e na construção civil e com os tradicionais tecnocratas
do planejamento e da gestão urbana. Segundo Bassul, grande parte do empresariado conservador
considerava o Estatuto um texto de esquerda, estatizante e burocrático.
O mesmo autor ressalta, entretanto, que mesmo o segmento político mais conservador passou
a olhar o Estatuto com mais ânimo. Para além de uma proposta “socializante”, ele passou a ver nele
uma lei útil ao capitalismo desenvolvido. “Afinal, o combate à retenção ociosa de terrenos urbanos,
por exemplo, serve ao interesse público, mas igualmente atente a um dos princípios da iniciativa
privada: maior oferta de 'matéria prima' (...).” (BASSUL, 2002)

democrática da cidade, entendida a forma de planejar, produzir, operar e governar as cidades, submetida ao
controle social e à participação da sociedade civil; - a função social da cidade e da propriedade, como
prevalência do interesse comum sobre o direito individual de propriedade. (SAULE, 2006, p. 22)
Pode-se dizer que Bassul, numa apreensão interessante e pouco comum – pelo menos tendo-
se em vista a bibliografia encontrada até aqui –, entende esse tardio apoio das camadas políticas
conservadoras, ligadas a determinados grupos econômicos, como uma espécie de compreensão por
parte destas de que esta lei poderia funcionar como uma que protege o capitalismo dele mesmo.
Portanto, numa época em que as atividades capitalistas se pautam pela competição global e em que
a cidade é investida da qualidade de produto a ser oferecido no mercado mundial da atração de
investimentos, “a expressão urbana das políticas de exclusão promovidas pela avidez do próprio
capital torna-se para o empresariado urbano (...) um fator de 'desvantagem competitiva'. Assim, ainda
que distante dos aspectos que movem a atitude política pautada pelo ideário da justiça social, os
representantes do grande capital, urbano e privado, passaram a interessar-se por cidades menos
fragmentadas socialmente, ambientalmente sustentáveis e mais eficazes na universalização dos
serviços públicos essenciais.” (2002)

Potencialidades do Estatuto e desafios que surgem após a sua promulgação

Como se pode observar, um dos anseios do Movimento pela Reforma Urbana e, por
conseguinte, uma das principais bandeiras do FNRU é a disseminação no país de uma cultura de
gestão democrática da cidade. O fato do Estatuto da Cidade trazer no seu corpo de normas a
obrigatoriedade da elaboração, por parte dos municípios, de Planos Diretores que contem com a
participação popular dá certamente um grande impulso para o desenvolvimento entre nós de tal
cultura.
De Grazia afirma que no Estatuto, o planejamento aparece como instrumento importante para
aproximar a população dos governantes no intuito de realizar uma gestão que modifique o nível e
qualidade de vida urbana para o conjunto da população. Trata-se, assim, da apropriação de uma
prática que em outras épocas representava a racionalidade tecnocrata ou o desejo de alcançar a
beleza do padrão europeu de cidades é recuperado no Estatuto. (DE GRAZIA, 2003, p. 65)
Os teóricos defensores do Estatuto da Cidade certamente não são ingênuos de supor que a
mera existência da lei tenha a capacidade de fazer espraiar-se a cultura de gestão democrática. De
acordo com De Grazia, “as barreiras [para a realização da gestão democrática] têm suas raízes
plantadas nas práticas históricas de corrupção, clientelismo, disputa de interesses particulares,
fragmentação das políticas, máquina pública despreparada para servir a população, pressão por
projetos que se adaptem à disputa de recursos no mercado internacional, (...), 'guerra fiscal', entre
outros.” (2003, p. 66)
Apesar das dificuldades, não se pode negar, contudo, que a promulgação do Estatuto abriu
um importante espaço de debate nos municípios no que diz respeito à participação popular. Desde
2003 assiste-se à realização de conferências, audiências públicas, etc., voltadas à discussão dos
mais variados problemas urbanos. É ainda cedo, porém, para medir os efeitos dessa mobilização.
Já é possível observar na atualidade a potencialidade no Estatuto quanto ao processo de
regularização fundiária. De acordo com o Ministério das Cidades, há vários focos de mobilização em
todo o país com vistas a regularizar a posse de terras por parte de cidadãos que há anos – e mesmo
décadas – viviam na irregularidade e, por conseguinte, ameaçados constantemente de despejo.
Nesse processo, vêm se envolvendo diversas entidades, movimentos de sem-teto, movimentos de
moradores de favelas, Ministério Público, Defensoria Pública, entre outros.
Janaína Santin acredita que a teoria do discurso habermasiana, ao tratar da importância da
sociedade civil como esfera pertencente ao mundo da vida capaz de introduzir a racionalidade
comunicativa nas esferas sistêmicas do Estado e do mercado, pode ser uma chave teórica
interessante para se refletir sobre as diretrizes de gestão democráticas dispostas no Estatuto da
Cidade, “podendo-se desenvolver a teoria do discurso a partir da realização de audiências públicas
para a aprovação do Plano Diretor municipal e peças orçamentárias, procedimento obrigatório para a
sua aprovação.” (2005, p. 128)
Partindo do que dizem Werneck Vianna e Burgos (2005), pode-se mesmo afirmar que o
Estatuto da Cidade, ao condicionar o direito à propriedade ao princípio da sua função social, acaba
por valorizar a esfera pública em detrimento da esfera privada. Reforça-se, assim, nossa tradição
republicana, reinterpretada agora sob uma chave democrática.
De fato, poucos se arriscam a afirmar com convicção que o Estatuto vai melhorar as condições
de vida nas cidades brasileiras. Mas há certa concordância de que este instrumento jurídico era
indispensável para que se pudesse alcançar as mudanças necessárias. Parece também ser
consenso que é só a partir de uma intensa mobilização da sociedade civil que será possível fazer
com que os mecanismos presentes no Estatuto sejam usados da maneira apropriada.
De acordo com Ribeiro, esta lei surge num momento em que as condições estruturais não lhe
parecem favoráveis. O ideário neoliberal, ainda que alvo de inúmeras críticas, parece gozar de muito
prestígio entre classes políticas e grupos empresariais. O Estatuto emerge assim em um momento
“em que vem ocorrendo nos países centrais um conjunto de transformações na direção da
desconstrução do estatuto de antimercadoria do trabalho, instituído com a criação e universalização
do sistema de proteção social encarnado pelo Estado do Bem-Estar Social. O resultado dessas
transformações é o surgimento da mercantilizações das condições de reprodução e da cidade (...).
Todos os elementos que foram parcialmente desmercantilizados na fase anterior são agora
progressivamente incorporados à órbita de acumulação do capital.” (2003, p. 23)
Estranha também aos princípios democráticos e de justiça social presentes no Estatuto é a
tendência à auto-segregação das camadas superiores. Tal tendência vem afirmando um novo modelo
de organização sócio-espacial que incentiva a desresponsabilização no que diz respeito à busca de
saídas coletivas para os problemas.
Para Ribeiro, a única maneira de frear este processo é o avanço da luta pela democracia.
Numa aproximação com a teoria marxista clássica, o autor acredita que caberá às classes
trabalhadoras a função de produzir um projeto de cidade capaz de produzir um modelo de
desenvolvimento justo e sustentável, econômico, social e ambientalmente.

Considerações finais

O que se disse até aqui não apresenta grande novidade no que tange à produção teórica
referente ao fenômeno em questão. A intenção aqui foi de alguma maneira apresentar um histórico
dos fatos e expor algumas das visões correntes sobre o tema. Construído este modesto panorama,
crê-se ser possível refletir sobre algumas questões que surgem a partir da observação desse
fenômeno e que não parecem ter sido ainda colocadas em pauta.
Como se pode observar, apesar de o movimento pela reforma urbana ter surgido no seio da
sociedade civil, desde o Seminário de Habitação e Reforma Urbana percebe-se uma clara intenção
por parte dos atores sociais envolvidos em estabelecer um contato próximo com o Estado. Este
parece ter sido sempre visto como o agente privilegiado na realização da reforma urbana. Além disso,
parece muito claro que uma lei específica foi sempre tida pelo movimento como um instrumento
fundamental para a efetivação das demandas. Uma questão que se coloca, então, é sobre a relação
que esses atores sociais estabelecem com o Estado. De modo mais geral, pode-se ainda perguntar
sobre a tradição político-ideológica em que eles se inscrevem.
Uma forma de organizar essas questões talvez seria construir a pergunta fundamental da
seguinte forma: o que levou setores da intelligentzia envolvidos no movimento pela reforma urbana no
Brasil a construir teórica e praticamente as suas reivindicações no sentido da construção de
instituições dentro do aparelho estatal e instrumentos legais para organizar e atender suas
demandas. Uma hipótese a ser trabalhada é que os intelectuais brasileiros envolvidos no movimento
que é tema deste trabalho, entendendo a nossa sociedade civil como algo ainda pouco organizado,
pouco vertebrado, considerou desde cedo que somente através do aparelho estatal e do direito seria
possível fortalecer a esfera pública e discutir os problemas urbanos de maneira democrática.
Tal abordagem, cremos, pode permitir que, a partir do estudo do caso específico da luta pela
reforma urbana no Brasil, seja plausível fazer inferências mais gerais sobre o modo como se estrutura
e organiza nossa sociedade civil, bem como sobre a constituição específica de nossa esfera pública.
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