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Gláuks v. 7 n.

1 (2007) 36-52

POETA E ACROBATA – UM ARTISTA


MODERNO
CRUZ E SOUSA POR OCASIÃO DE SEUS 110
ANOS

Regina Zilberman*

RESUMO: A lírica de Cruz e Sousa desde a perspectiva da


representação da condição do poeta na modernidade.

PALAVRAS-CHAVE: lírica; modernidade; sujeito; Cruz e


Sousa.

Eu faço versos como os saltimbancos


Desconjuntam os ossos doloridos
Mário Quintana1

A o chegar ao Rio de Janeiro, em 1890, proveniente


de Nossa Senhora do Desterro, hoje, Florianópolis,
Cruz e Sousa encontrou a agora Capital Federal em um período
de grande efervescência cultural e política. A República acabava
de ser instalada e ainda vibravam no ar os ecos do movimento
pela libertação dos escravos, que provocara entusiasmo maior
que a mudança de regime de governo, ocorrida ao final de 1889.

*
Professora do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFRGS. Pesquisadora das
Faculdades Porto Alegrenses – FAPA. Pesquisadora do CNPq. Doutora em
Romanística pela Universidade de Heidelberg.
1
QUINTANA, Mário. A rua dos cataventos. In: ___. Poesias. 2. ed. Porto Alegre:
Globo; Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1972. p. 9.
Poeta e Acrobata - Um Artista Moderno 37

Coelho Neto e Machado de Assis, cada um à sua moda,


relatam as alterações do quadro político. Tanto Memorial de
Aires quanto Esaú e Jacó privilegiam a ótica da classe
proprietária: Aires, no memorial, acompanha as reações ao
movimento emancipatório por parte dos grandes latifundiários,
que se crêem prejudicados pelas medidas governamentais e,
sintetizados na figura do Barão de Santa Pia, pai de Fidélia,
heroína do romance, preferem alforriar os negros a se deixar
dominar pelos abolicionistas e sua causa. O mesmo Aires, em
Esaú e Jacó, assiste como a burguesia carioca alia-se
simultaneamente aos revolucionários – republicanos e anti-
escravocratas – e aos conservadores – monarquistas e adeptos da
emancipação “lenta e gradual” dos pretos –, corporificados os
dois partidos pelos gêmeos Paulo e Pedro, que protagonizam a
narrativa, como maneira de, pelo sim ou pelo não, manter-no no
poder e não perder o mando sobre os rumos da vida nacional.2
Coelho Neto, em A conquista, narra o que se passa no
andar de baixo: suas personagens pertencem à classe dos
intelectuais, brancos ou pretos, mas todos pobres e endividados,
que advogam a mudança. O fato de terem de lutar
permanentemente pela própria sobrevivência ameniza sua
capacidade de combate; mesmo assim, eles participam com
intensidade e, sob a lideração de José do Patrocínio, o Zé do
Pato, têm seu momento de glória, quando os escravos são
libertados pelo decreto da Princesa Isabel, rendida às pressões
populares.3
O universo de Cruz e Sousa deve ter sido o que Coelho
Neto retrata, pois, certamente, não teve acesso aos ambientes
requintados descritos por Machado de Assis e testemunhados
pelo fleumático Aires, que pode interpretar os fatos, mas não os

2
Cf. ASSIS, Machado de. Memorial de Aires. São Paulo: Mérito, 1959. E ASSIS,
Machado de. Esaú e Jacó. São Paulo: Mérito, 1959.
3
Cf. COELHO NETO. A conquista. 5. ed. Porto: Lello & Irmãos, s. d.
38 Gláuks

julga, porque não faz parte deles, ao contrário de seus amigos,


Fidélia e Tristão, ou pupilos, os jovens Pedro e Paulo. Mas, tal
como os protagonistas de A conquista¸ viveu nas redações de
jornais, teve dificuldades em receber os salários a que tinha
direito, escreveu artigos empenhados na luta anti-escravista e
pró-republicana, freqüentou rodas boêmias, envolveu-se com
mulheres de vida airada que não teve condições de sustentar.
O romance de Coelho Neto, protagonizado
ficcionalmente por Anselmo Ribas, Ruy Vaz, Paulo Neiva,
Arthur, Octavio Bivar, Pardal, Luís Moraes, nomes que
escondem, respectivamente, o próprio autor, Aluísio Azevedo,
Paula Nei, Artur Azevedo, Olavo Bilac, Pardal Mallet, Luís
Murat, desenha o mundo do intelectual brasileiro nas últimas
décadas do século XIX. Cruz e Sousa, curtido pelos dissabores –
profissionais, artísticos e étnicos – vivenciados no Sul,
deslocou-se para o Rio de Janeiro provavelmente na busca desse
mundo, a que ele se integrou e que o consumiu.
Com efeito, para o homem de letras parece que não havia
mais que duas alternativas, tanto de emprego e como de modo
de vida: ou a atividade profissional, que incluía as tarefas
diurnas nas redações de jornais e noturnas nas tascas, teatros e
cabarés, era levada às últimas conseqüências, e seus partidários
não resistiam fisicamente, como aconteceu a Pardal Mallet,
Paula Ney e Cruz e Sousa; ou, em um dado momento, a
conclusão de que era hora de parar, contribuindo para isso a
obtenção de um bom lugar no serviço público, a consolidação do
prestígio de escritor, o casamento e a integração aos bons
costumes burgueses. Coelho Neto, Olavo Bilac e Machado de
Assis pertencem ao segundo grupo que, como se vê, não
patrocinou distinções de classe ou cor: bastava aceitar a regra do
jogo, trocar o bar pela recém fundada Academia, palestrar para
Poeta e Acrobata - Um Artista Moderno 39

amáveis socialites cariocas, cumprir horário numa repartição


pública.4
Por temperamento, falta de tempo ou de oportunidade,
Cruz e Sousa não saiu do primeiro grupo: faleceu pobre e
doente, levado pela tuberculose, mal que, na mesma época,
também consumiu o irrequieto Pardal Mallet, companheiro de
Luís Murat, Raul Pompéia e Olavo Bilac nas lides ou
jornalísticas ou antiflorianistas da última década do século XIX.
O poeta originário de Nossa Senhora do Desterro estava
alinhado à sua geração, embora, ao contrário do que fez Coelho
Neto, não a tenha representado na literatura. A existência que
levou nos anos cariocas é que revelam o afinamento do escritor
a seu tempo, que deve ter experimentado com grande
intensidade.
Se se encontra em Coelho Neto a representação do
mundo vivido por Cruz e Sousa durante os últimos anos de vida,
quando publicou os livros mais conhecidos - Missal e Broquéis,
ambos de 1893 -, talvez sejam os versos de Olavo Bilac que
traduzam uma de suas atitudes ao escrever. Com efeito, o soneto
“A um poeta” resume na primeira estrofe o que talvez tenha
consistido o modus fasciendi do autor catarinense:

Longe do estéril turbilhão da rua,


Beneditino, escreve! No aconchego
Do claustro, na paciência e no sossego,
Trabalha, e teima, e lima, e sofre, e sua!5

4
Cf. a respeito LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. A formação da leitura no
Brasil. São Paulo: Ática, 1996. E LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. O
preço da leitura. Leis e números por detrás das letras. São Paulo: Ática, 2001.
5
BILAC, Olavo. A um poeta. In: CANDIDO, Antônio; CASTELLO, José Aderaldo.
Presença da literatura brasileira. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1964. V.
2, p. 256.
40 Gláuks

Nos versos de Cruz e Sousa, o “estéril turbilhão da rua”


está ausente; Broquéis, seu primeiro e mais prestigiado livro,
reúne entidades espirituais e materiais, alucinações e
sensualidade, símbolos e musicalidade, mas carece de referência
ao mundo exterior e histórico. O próprio sujeito é notável
lacuna, pois raros poemas usam a primeira pessoa e, quando esta
aparece, é para se dirigir a um “tu”, objeto de seu discurso.
Quem procurar o eu lírico, encontrará a Forma; quem desejar
definir esta entidade, deparar-se-á com um ente fugidio, quem
nem mesmo a palavra poética consegue expressar. Por outro
lado, observará que a obra obedece a um sólido esquema
estrutural.
Broquéis abre com a conhecida invocação às Formas,
poema que o autor denomina “Antífona”, alinhando, desde o
título e o verso de abertura, ao projeto metalingüístico que
caracteriza o conjunto. No mesmo sentido, encerra com “Tortura
eterna”, em que discute a capacidade de a palavra traduzir o
ilimitado da experiência e do sentimento, a que se deveria ter,
mas não consegue acesso verbal.
O poema “Antífona” é considerado, de certo modo, o
manifesto do Simbolismo, freqüentemente citado para se
comprovar as características do movimento e a afinação do
próprio Cruz e Sousa ao programa daquela escola. O título
remete para um conteúdo religioso, pois corresponde ao
“versículo recitado ou cantado pelo celebrante, antes e depois
de um salmo”;6 e associa-se à música medieval, que igualmente
denominou. Musicalidade e presença da religiosidade medieval
são traços peculiares dos poemas simbolistas e, mais que Cruz e
Sousa, foi seu parceiro intelectual, Alphonsus de Guimaraes,
que melhor os empregou.

6
DICIONÁRIO AURÉLIO ELETRÔNICO, verbete “Antífona”.
Poeta e Acrobata - Um Artista Moderno 41

O primeiro verso de “Antífona”, contudo, recorre ao


modelo clássico da invocação, valendo-se do vocativo:

Ó Formas alvas, brancas, Formas claras


De luares, de neves, de neblinas!...7

A invocação é fórmula própria à poesia épica, e o fato de


Cruz e Sousa apelar para essa estratégia revela seu objetivo: trata-
se de criar um novo modo de epopéia, a da própria Forma em
busca de expressão. A essa tarefa dedica-se o autor ao longo do
poema.
As três primeiras estrofes definem modalidades de
Formas a que ele se dirige na busca de elementos para a criação
poética: podem ser brancas, vagas e cristalinas, diáfanas como
incenso; ou as do Amor, desde que, puras e naturais, úmidas
como flores frescas; ou ainda sensoriais, apreensíveis pela
audição, como a música, pela visão ou pelo olfato, porque
revelam “harmonias da Cor e do Perfume”.
A quarta estrofe sumaria a tarefa dessas Formas:
aparentadas a “salmos e cânticos serenos”, anestesiam ou
adormentam “volúpicos venenos”. A esses “espíritos dispersos /
inefáveis, edênicos, aéreos” compete fecundar o “Mistério” dos
versos do poeta, este sendo o pedido confessado na quinta
estrofe. A seguir, a aspiração à espiritualidade toma conta do
desejo do eu lírico, que se derrama, satisfeito, em versos de
sílaba longa, como o que encerra a sétima estrofe:

Do Sonho as mais azuis diafaneidades


Que fuljam, que na Estrofe se levantem

7
SOUSA, João da Cruz e. Antífona. In: ___. Poesia completa. Organização,
introdução e bibliografia por Zahidê Lupinacci Muzart. Florianópolis: Fundação
Catarinense de Cultura, 1993. p. 31.
42 Gláuks

E as emoções, todas as castidades


Da alma do Verso, pelos versos cantem.
Que o pólen de ouro dos mais finos astros
Fecunde e inflame a rima clara e ardente...
Que brilhe a correção dos alabastros
Sonoramente, luminosamente.

A atmosfera etérea se espalha por mais quatro versos,


mas se rompe quando “clarões alacres” e “estranhos
estremecimentos” se introduzem no poema; emergem
Desejos, vibrações, ânsias, alentos,
cuja força fica explicitada pela alternância de sílabas longas e
curtas, fortes e fracas, numa espécie de galope ritmado que não
pode ser contido.
O resultado é o conteúdo da penúltima estrofe, que
substitui o clima espiritual, até então sustentado com cautela,
mas também com determinação, pelo ambiente mórbido da
doença e sordidez:

Flores negras do tédio e flores vagas


De amores vãos, tantálicos, doentios...
Fundas vermelhidões de velhas chagas
Em sangue, abertas, escorrendo em rios...

O fechamento de “Antífona” contradiz sua abertura: as


Formas diáfanas e apreensíveis unicamente pela apurada
sensibilidade do sujeito lírico são desalojadas, cedendo lugar a
uma procissão fantástica:

Tudo! vivo e nervoso e quente e forte,


Nos turbilhões quiméricos do Sonho,
Passe, cantando, ante o perfil medonho
E o tropel cabalístico da Morte...
Poeta e Acrobata - Um Artista Moderno 43

“Antífona” sinaliza a poética de Cruz e Sousa: aspiração


à Beleza e à eternidade, por um lado, consciência da finitude e a
corrupção, por outro. Em outra formulação: vontade de alcançar
pela linguagem um mundo ideal, dominado pelo som e pela luz,
em que se cultua a pureza e a bondade, como queriam os
simbolistas em seus sonhos virginais; mas, ao mesmo tempo,
impossibilidade de negar o conflito, presenciar a falência do
corpo, revelar a podridão e a decadência, em uma espécie de
prévia do que será, em termos radicais, a poesia de Augusto dos
Anjos, vinte anos mais tarde.
Se “Tortura eterna”, que encerra Broquéis, fosse colocado
logo após “Antífona”, pareceria sua continuação lógica. Fechando
o poema, constitui a moldura que confere unidade ao livro. O
primeiro quarteto começa igualmente com uma invocação, que,
contudo, se dirige não às Formas, mas à “Força”, “inútil“,
sinônimo da “impotência cruel” do primeiro verso:

Impotência cruel, ó vã tortura!


Ó Força inútil, ansiedade humana!
Ó círculos dantescos da loucura!
Ó luta, ó luta secular, insana!8

Feita a invocação, seguem-se as inversões: o poeta não


mais solicita a colaboração de entidades formais, mas,
paradoxalmente, pede para não ser bem sucedido; em cada uma das
estrofes ele expressa um voto de “não poder”, colocado nos
primeiros versos do segundo quarteto e do primeiro terceto e no
segundo verso do terceiro terceto, na transcrição destacado em
itálico:

8
SOUSA, João da Cruz e. Tortura eterna. In: ___. Poesia completa. Organização,
introdução e bibliografia por Zahidê Lupinacci Muzart. Florianópolis: Fundação
Catarinense de Cultura, 1993. p. 62.
44 Gláuks

Que tu não possas, Alma soberana,


Perpetuamente refulgir na Altura,
Na Aleluia da Luz, na clara Hosana
Do Sol, cantar, imortalmente pura.
Que tu não possas, Sentimento ardente,
Viver, vibrar nos brilhos do ar fremente,
Por entre as chamas, os clarões supernos.
Ó Sons intraduzíveis, Formas, Cores!...
Ah! que eu não possa eternizar as dores
Nos bronzes e nos mármores eternos!

Este soneto parece contrariar o ideal colocado em


“Antífona”, manifestando votos de irrealização. É certo que se
podem entender as negativas como maneiras de o sujeito lírico
evitar o mau olhado: dizendo o que não quer, estaria
exorcizando seu desejo mais íntimo, na esperança de obter o que
aparenta rejeitar.
De um modo ou de outro, fica evidente que “Antífona” e
“Tortura eterna”, até pela posição que ocupam no conjunto dos
textos colocados em Broquéis, constituem o direito e o avesso
de sua poética. Por um lado, ele visa alcançar o mundo das
formas, tão perfeito e acabado que pode mesmo prescindir da
expressão em primeira pessoa; por outro, ele admite que essa
meta não será efetivada, pois o eu torna a se imiscuir no poema,
derrubando a convicção de neutralidade. “Tortura eterna” é
igualmente exemplo dessa falência: iniciado em terceira pessoa,
em decorrência do uso do vocativo, escorrega para a segunda,
no segundo quarteto e primeiro terceto; mas, no terceto final, o
eu se revela, em radical e intransponível distância de seu ideal,
os “Sons intraduzíveis, Formas, Cores” de que deveriam se
revestir os versos.
Broquéis se arma de uma estrutura bem articulada: a
invocação tem o papel de manifesto poético, possibilitando ao
Poeta e Acrobata - Um Artista Moderno 45

autor esclarecer sua filiação literária e estética. Como a forma


escolhida é peculiar à poesia épica, fica implícita a noção de que
se trata de um novo tipo de epopéia, centralizada nas peripécias
da(s) Forma(s) em busca de expressão. O teor religioso dos
primeiros versos, a espiritualidade evocada, a noção de uma
trajetória a percorrer colocam o conjunto na esteira do poema de
Dante, a A divina comédia, autor a que o sujeito lírico não se
refere, mas que aparecerá transformado em adjetivo, nas alusões
aos “círculos dantescos” de, por exemplo, “Tortura eterna”. A
escolha do título do livro, de natureza militar e associado a
heróis da epopéia clássica, como Aquiles, dono de famoso
escudo, reforça a sugestão de que Cruz e Sousa está procurando
acompanhar, de modo sutil e sem fugir aos pressupostos
simbolistas, o modelo da poesia épica, representada por
Homero, Virgílio e Alighieri.
“Antífona”, contudo, não pode ser dissociada de seu par,
o soneto final, “Tortura eterna”, que marca o limite do projeto.
A primeira pessoa acaba se revelando pelas fímbrias do
discurso, colocado no penúltimo verso do livro inteiro. Ele
aparece para revelar um tipo de impotência, a de eternizar
“dores” tão-somente por meio de sons, formas e cores, vale
dizer, restringindo-se aos termos do programa simbolista.
O sujeito irrompe, pois, para contradizer uma estética
idealista, para a qual contava a anulação da subjetividade,
substituída por conceitos genéricos e abstratos. O eu, por sua
vez, aparece sob o prisma do fracasso, nesse caso por não
realizar o que seu programa literário propõe; em outros poemas,
as razões do fracasso são de ordem distinta.
“Post Mortem” é um desses poemas em que outra vez se
elide o sujeito, que, ao invés de falar de si, cita uma segunda
pessoa, matéria do texto:
46 Gláuks

Quando do amor das Formas inefáveis


No teu sangue apagar-se a imensa chama,
Quando os brilhos estranhos e variáveis
Esmorecerem nos troféus da Fama
Quando as níveas Estrelas invioláveis,
Doce velário que um luar derrama,
Nas clareiras azuis ilimitáveis
Clamarem tudo o que o teu Verso clama
Já terás para os báratros descido,
Nos cilícios da Morte revestido,
Pés e faces e mãos e olhos gelados...
Mas os teus Sonhos e Visões e Poemas
Pelo alto ficarão de eras supremas
Nos relevos do Sol eternizados!9

Não é difícil afirmar que, sim, Cruz e Sousa estava certo


em sua previsão: só depois de morto, aos “báratros descido”,
eternizaram-se seus poemas. Se é assim, então o poeta referia-se
a si mesmo, escondendo-se por trás de uma segunda pessoa que
incorpora todos os atavios do próprio autor: de um lado, amor às
“Formas inefáveis”, Verso que “clama”, “Sonhos e Visões”; de
outro, o desejo de notoriedade, que veio tarde, mas com grande
vigor, a se crer na notável recepção de que o escritor foi objeto
nas primeiras décadas do século XX.10
Falando de si mesmo, ele revela o idealismo que o move,
voltado para o alto, pois todas as imagens utilizadas no poemas
9
SOUSA, João da Cruz e. Post Mortem. In: ___. Poesia completa. Organização,
introdução e bibliografia por Zahidê Lupinacci Muzart. Florianópolis: Fundação
Catarinense de Cultura, 1993. p. 56.
10
O Simbolismo no Rio Grande do Sul está banhado de Cruz e Sousa; Alceu
Wamosy, por exemplo, dedica-lhe Na terra virgem, seu segundo livro, afirmando
tratar-se o autor catarinense do “mais extraordinário temperamento estético da
Poesia finisecular, na América”. WAMOSY, Alceu. Poesias. Porto Alegre:
Livraria do Globo, 1925. p. 21. A divina quimera, de Eduardo Guimaraens, segue
a distância o exemplo de Dante Alighieri e de perto o modelo dos Broquéis.
Poeta e Acrobata - Um Artista Moderno 47

são celestes: “níveas Estrelas”, “velário que um luar derrama”,


“Sonhos e Visões e Poemas [que] pelo alto ficarão”, “nos
relevos do Sol eternizados”. Imagens como essas reforçam o
Ego do sujeito lírico, que, embora tardiamente apreciado, sai
favorecido enquanto identidade forte e coesa.
O soneto “Sonhador” vale-se de imagens similares para
chegar a produto equivalente: dirigido a uma segunda pessoa,
desenha um indivíduo poderoso, guerreiro capaz de enfrentar
atrocidades e elevar-se aos ideais, que o consagram:

Por sóis, por belos sóis alvissareiros,


Nos troféus do teu Sonho irás cantando,
As púrpuras romanas arrastando,
Engrinaldado de imortais loureiros.
Nobre guerreiro audaz entre guerreiros,
Das Idéias as lanças sopesando,
Verás, a pouco e pouco, desfilando
Todos os teus desejos condoreiros...
Imaculado, sobre o lodo imundo,
Hás de subir, com as vivas castidades,
Das tuas glórias o clarão profundo.
Hás de subir, além de eternidades,
Diante do torvo crocitar do mundo,
Para o branco Sacrário das Saudades!11

Outra vez a segunda pessoa faz as vezes da primeira,


camuflando o desejo do eu lírico de assistir à sua consagração.
Outra vez o objetivo é ascender às alturas e chegar à esfera dos
Sonhos, lugar que então abrigará tanto o sujeito – o próprio

11
SOUSA, João da Cruz e. Sonhador. In: ___. Poesia completa. Organização,
introdução e bibliografia por Zahidê Lupinacci Muzart. Florianópolis: Fundação
Catarinense de Cultura, 1993. p. 56.
48 Gláuks

poeta – quanto o objeto – as Idéias pelas quais combate. Nova é


a caracterização do poeta, laureado e puro, enquanto guerreiro,
que terça armas pelos seus valores e alça-se acima da imundície
do mundo.
Encarar o poeta como combatente, quase um militar, não
é noção nova no horizonte da poesia da segunda metade do
século XIX. Castro Alves desempenhou esse papel no Brasil da
década de 60, seguindo os passos do francês Victor Hugo e
gerando o Condoreirismo a que Cruz e Sousa faz referência no
verso 8, a propósito do “Sonhador” de seu poema. Baudelaire
igualmente enfatizou essa perspectiva, que Walter Benjamin
associou a figuras marginais, como o lutador e o operário no
presente ou o gladiador no passado, nos estudos dedicados
àquele autor.12
Em Cruz e Sousa, contudo, a associação entre o poeta e o
guerreiro tem um significado a mais: representa a consolidação
do propósito épico do livro inteiro. O guerreiro “sonhador” é o
mesmo que invoca, como numes tutelares, as Formas, portando
o broquel que o defende perante a sociedade e protege-o do
“lodo imundo” e dos corvos que crocitam contra ele.
Outras figuras masculina povoam o imaginário de s o
“Cristo de bronze” refere-se a um

Cristo humano, estético, bizarro


Amortalhado nas fatais injúrias...13

12
Cf. BENJAMIN, Walter. A Paris do Segundo Império em Baudelaire. In: KOTHE,
Flávio R. Walter Benjamin. São Paulo: Ática, 1985. E BENJAMIN, Walter.
Sobre alguns motivos em Baudelaire. In: BENJAMIN, Walter e outros. Os
pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1975.
13
SOUSA, João da Cruz e. Cristo de bronze. In: ___. Poesia completa. Organização,
introdução e bibliografia por Zahidê Lupinacci Muzart. Florianópolis: Fundação
Catarinense de Cultura, 1993. p. 35.
Poeta e Acrobata - Um Artista Moderno 49

“Satã”, a uma entidade dúbia, lúbrico e pagão, mas também


“arcangélico e audaz”, possuído pelo “Sonho” que “agita-lhe a
imortal cabeça”.14 Por fim, “Acrobata da dor” cede a
autocomiseração: enunciado em segunda pessoa, apresenta o
sujeito, representado metonimicamente pelo coração, submetido
aos desejos de uma platéia cruel, impiedosa e insaciável:

Gargalha, ri, num riso de tormenta,


Como um palhaço, que desengonçado,
Nervoso, ri, num riso absurdo, inflado,
De uma ironia e de uma dor violenta.
Da gargalhada atroz, sanguinolenta,
Agita os guizos, e convulcionado
Salta, gavroche, salta clown, varado
Pelo estertor dessa agonia lenta...
Pedem-te bis e um bis não se despreza!
Vamos! retesa os músculos, retesa
Nessas macabras piruetas d’aço...
E embora caias sobre o chão, fremente,
Afogado em teu sangue estuoso e quente,
Ri! Coração, tristíssimo palhaço.15

Não é difícil entender o “acrobata da dor” como alegoria


da condição do artista. Afinal, Cruz e Sousa já antecipara em
outros textos, como os citados “Post Mortem” e “Sonhador”, a
incompatibilidade e a incomunicabilidade entre o escritor e seu
público, que, no primeiro caso, reconhece tardiamente o valor

14
SOUSA, João da Cruz e. Satã. In: ___. Poesia completa. Organização,
introdução e bibliografia por Zahidê Lupinacci Muzart. Florianópolis: Fundação
Catarinense de Cultura, 1993. p. 43 - 44.
15
SOUSA, João da Cruz e. Acrobata da dor. In: ___. Poesia completa.
Organização, introdução e bibliografia por Zahidê Lupinacci Muzart. Florianópolis:
Fundação Catarinense de Cultura, 1993. p. 57.
50 Gláuks

do poeta, e, no segundo, dirige a ele manifestações


decodificadas como “torvo crocitar”, próprias às aves
catartidiformes, que sobrevivem alimentando-se de carnes em
decomposição.
“Acrobata da dor” radicaliza a representação, porque
para ele não existe alternativa: o sujeito lírico precisa acolher a
recepção da audiência e seguir desempenhando seu papel, sem
chances de elevação ou sublimação espiritual. É sob esse
aspecto que Cruz e Sousa alegoriza a condição do artista na
sociedade moderna, espécie de pivete ou clown que vive de
agradar as multidões, mesmo que à custa da idoneidade de seu
sentimento ou moral.
Reunidas, as figuras masculinas a quem o sujeito lírico
se dirige, nos poemas de Broquéis, compõem um estranho
amálgama. De um lado, manifesta-se o “eu ideal”, o
“Sonhador”, poeta laureado que se eleva acima da plebe rude
incapaz tanto de entendê-lo, mas incompetente para prejudicá-
lo; de outro, o moleque, gavroche, que se submete aos estímulos
de uma audiência insensível à sua dor particular. No meio, a
oscilação entre o Cristo humano, injuriado, e o Satã, anjo
decaído, mas senhor de majestade inerente e capaz de enunciar
Sonhos invejáveis. Em todos os casos, a indefinição entre a
onipotência e a autocomiseração, transposição ao nível da
composição da subjetividade da contradição estabelecida entre
os poemas de abertura, “Antífona”, e fechamento, “Tortura
eterna”, do livro inteiro.
Broquéis começa e termina discutindo, por meio de
poemas metalingüísticos, seu projeto poético: deseja e não
deseja expressar as Formas eternas, a hesitação devendo-se ao
fato de que, se chegar a realizar essa meta, o sujeito lírico
apagar-se-á como identidade. O ponto de partida é a proposta de
produzir uma epopéia moderna, capaz de dar conta de
sensorialidades e de idealidades, deixando de lado a
Poeta e Acrobata - Um Artista Moderno 51

materialidade do indivíduo; o de chegada é a confissão do


fracasso, não por falha do poeta, mas porque ele não pôde evitar
a emergência do “eu”, que, escondido, usa de um artifício para
se mostrar, nos versos derradeiros do livro.
O sujeito, porém, esteve sempre presente, embora não
fale de si em todas as circunstâncias. Os poemas em que o faz
não lidam, porém, com a primeira pessoa: tomam como
referência uma figura masculina que, pelo artifício da segunda
voz, identificam-se ao sujeito lírico. Permitem a constituição de
um ego, que formula suas aspirações idealistas, à primeira vista
descomprometidas e desinteressadas, mas, no fundo,
compensatórias da frustração e do fracasso pessoal e social.
É do malogro do projeto idealista que nasce a
modernidade da poética de Cruz e Sousa. Expondo a condição
marginal do artista submetido às pressões do público, de que
pode fugir tão-somente pelo alheamento, expressa o lado
sombrio em oposição à euforia de sua geração, que Coelho Neto
chamou de “A conquista” e que em pouco melhorou o status do
intelectual e do criador no Brasil daquele e deste tempo.
O catarinense seguiu o conselho de Bilac e escreveu seus
versos “longe do estéril turbilhão da rua”, depois de conhecer
bem os meandros urbanos do Rio de Janeiro de sua época. Mas
foi capaz de medir o que significou esse afastamento, refletindo
sobre o papel que ele e os companheiros desempenhavam.
Chegou a um resultado desalentador, síntese de sua poesia e
metáfora de sua existência. O triunfo veio depois; mas,
correspondendo aos desejos de “Post Mortem”, não apagou
“Sonhos e Visões e Poemas” em que traduziu a sociedade em
que viveu e que, por vias tortuosas, simbólicas e visuais, como a
poesia demandava, soube interpretar melhor que ninguém.
Tanto que Mário Quintana, educado dentro do
Simbolismo, mas moderno como ninguém, soube se apropriar
52 Gláuks

da imagem circense e escrever um de seus primeiros sonetos


sobre si mesmo, artista a quem cabe agradar os outros, não
importando se a dor enunciada é verdadeira ou não.

ABSTRACT: The poems of Cruz e Sousa as representation of


the poet’s condition in the modernity.

KEY-WORDS: poetry; modernity; subjectivity; Cruz e Sousa.

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