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revista

ESQUERDA
PETISTA
Foto: Ricardo Stuckert

LULA LIVRE,
LULA PRESIDENTE!
GARANTIR O
DIREITO DE LULA
SER CANDIDATO
PARA DERROTAR E
REVERTER O GOLPE

REVISTA ESQUERDA PETISTA A juventude e o Saúde, educação e Dossiê:


#9 2018-1 centenário de Córdoba questão agrária Marx 200 anos

ISSN 2358-2413 04 PÁGs. 7 a 12 PÁGs. 19 a 33 PÁGs. 50 a 79


25ANOS

1993-2018
AE ARTICULAÇÃO
DE ESQUERDA
revista SUMÁRIO
ESQUERDA
EDITORIAL

PETISTA As armas da crítica em tempos de


ESQUERDA

guerra p. 2 PCdoB - Socialismo ou nacionalismo? |


EXPEDIENTE Pedro Estevam da Rocha Pomar p. 34
ESQUERDA PETISTA é uma INTERNACIONAL Por uma superação conservadora: as
publicação da Editora Página 13, sob
responsabilidade da direção nacional da resoluções do VI Congresso do PSOL |
Articulação de Esquerda, tendência do Entrevista a Fernando Lugo, ex Eduardo Nunes Loureiro p. 40
Partido dos Trabalhadores. Presidente y actual Senador del
Direção Nacional da AE: Paraguay | María Lilia Macedo e Carlos Redobrando a aposta no
Francisco Bauer p. 4 republicanismo e na revolução
Adriano de Oliveira (RS), Ângela Melo (SE),
Bruno Elias (RS), Cândida Rosseto (RS), Da- democrática: análise das resoluções
marci Olivi (MS), Daniela Matos (DF), Eliane Políticas y procesos generacionales da XII Conferência Nacional da
Bandeira (RN), Elisa Guaraná (RJ), Gilberto en la América Latina actual: la Democracia Socialista |
Paixão (PI), Jandyra Uehara (SP), João Luís persistencia del protagonismo Adriano de Oliveira p. 45
Lemos (SP), Lício Lobo (SP), Lílian Macena juvenil a 100 años de la Reforma
(MG), Múcio Magalhães (PE), Natália Sena
(RN), Olavo Carneiro (RJ), Rafael Tomyama Universitaria de 1918 | Pablo Vommaro DOSSIÊ
(CE), Rodrigo Cesar (SP), Rosana Ramos
(SP), Tadeu Brito (SE) e Wilma dos Reis (DF)
p. 7
MARX200anos 1818
2018

NACIONAL
Comissão de ética nacional: Estratégia e lutas de classes no
Eduardo Loureiro (DF), Iriny Lopes (ES), A estrela de Lula | Licio Lobo p. 13 Manifesto do Partido Comunista |
Jonatas Moreth (DF) e Paty Affonso (RS). Bruno Elias p. 51
Suplentes: Cristiano Cabral (BA), Sophia
Mata (RN). SAÚDE
Sobre a teoria marxiana do Estado
Conselho Editorial da Editora Página 13: Reservas internacionais e burguês | Francisco Pereira de Farias
Elisa Guaraná, Francisco Xarão, Giovane programa mínimo | Carlos Octávio p. 58
Zuanazzi, Jandyra Uehara, Luiz Momes- Ocké-Reis p. 19
so, Marcos Piccin, Pamela Kenne, Paulo O nosso Gramsci | Luiza Dulci p. 63
Denisar, Pedro Pomar, Pere Petit, Rodrigo EDUCAÇÃO
César, Rosana Ramos, Rosângela Alves O marxismo no Brasil: Caio Prado
de Oliveira, Sonia Fardin, Suelen Aires
Gonçalves Um olhar sobre a evolução do Júnior e a economia política |
financiamento da educação nos Rodrigo Cesar p. 70
Editores: últimos anos | José Marcelino de
Rezende Pinto p. 23 FOTOGRAFIA
Elisa Guaraná (elisaguarana@gmail.com),
Rodrigo Cesar e Marcos Piccin
QUESTÃO AGRÁRIA
Diagramação:
Cláudio Gonzalez (MTb 28961-SP)

Secretaria Gráfica e Assinaturas:


Edma Walker (edmawalker@gmail.com)

Endereço para correspondência:


Nair Benedicto: “É tempo de ir além!” |
Sônia Fardin, com colaboração de Ana
R. Silveira Martins, 147 conj. 11 - Centro -
São Paulo - SP - CEP 01019-000 Lídia Aguiar p. 80

EDITORA HOMENAGEM
A agricultura familiar na berlinda |
Catia Grisa p. 27 Wagner Lino, presente! p. 87
EDITORIAL

As armas da crítica em
tempos de guerra
A
nona edição de Esquerda Petista é publicada quando o país senador do Paraguai, Fernando Lugo, e no artigo do argentino
encontra-se mergulhado em um quadro político, econô- Pablo Vommaro, que traz uma reflexão sobre as lutas da juven-
mico e social gravíssimo. tude no continente no momento em que se celebra o centenário
Completados dois anos de golpe, as condições de vida da da reforma universitária de Córdoba, em 1918. No sentido de
maioria do povo deterioram-se em ritmo acelerado. O aumen- contribuir para a integração cultural entre os povos latinoame-
to do desemprego, do subemprego, da informalidade, da preca- ricanos, optamos por não traduzir estes textos, que publicamos
rização, do trabalho infantil, da escravidão contemporânea, da em espanhol.
pobreza, da miséria, da fome e da desigualdade é acompanhado Os retrocessos e o cenário de luta em defesa das políticas
pela diminuição da renda média do trabalho e dos investimentos públicas, em especial o SUS, frente à aplicação da Emenda Cons-
sociais em saúde, educação, moradia, transporte público, assis- titucional 95 são abordados no artigo de Carlos Ocké. No tema
tência e previdência social. agrário e no educacional, mantido com regularidade na revista,
Para impedir que o golpe seja derrotado pela mobilização so- retomamos os debates sobre a agricultura familiar em artigo de
cial, amplia-se a repressão – haja vista a convocação das Forças Cátia Grisa e os desafios para o financiamento da educação no
Armadas para intervir em tudo e mais um pouco – e aprofunda-se texto de José Marcelino.
o ataque às liberdades democráticas e às lideranças e organiza- Comemoramos, ainda, os 200 anos do nascimento de Karl
ções populares e de esquerda. Prossegue a arbitrária prisão política Marx com um dossiê de artigos publicados nesta e na próxima
do companheiro Lula, que apesar de todos os ataques golpistas edição de Esquerda Petista.
mantém sua popularidade em alta e é favoritíssimo em todas as Por fim, elaborado por Sônia Fardim e Ana Lídia Aguiar a
pesquisas de intenção de voto nas eleições 2018. Por outro lado, partir de entrevista, apresentamos o perfil de uma das brasileiras
a resistência é persistente e perseverante, como se vê na incansá- mais premiadas e reconhecidas por seu trabalho e engajamento
vel campanha de militantes na vigília Lula Livre em Curitiba e de político: a fotógrafa e editora de imagens Nair Benedicto.
apoiadores nacionais e internacionais pela sua libertação. O deba- *
te esquenta diante dos diferentes projetos eleitorais em disputa Esquerda Petista foi criada pela tendência petista Articulação
e de inúmeras ofensivas do campo golpista, que vive um aguça- de Esquerda em maio de 2014 para ser um instrumento de luta
mento de suas divisões, contradições internas e dificuldades em política em tempos de guerra. Com esta nona edição, a revista
apresentar uma saída para o quadro de crise e instabilidade. entra em seu quarto ano de atuação ininterrupta.
Em seu 4º Congresso, realizado em Aracaju nos dias 4, 5 e Apesar de ser um percurso relativamente curto, o período
6 de maio, a tendência petista Articulação de Esquerda reafir- é marcado pelo acirramento da luta de classes, são tempos em
mou sua defesa de que o candidato do Partido dos Trabalhado- que a esquerda e o petismo vêm sendo sistematicamente ata-
res à presidência da República é Lula, único capaz de vencer as cados pelas publicações golpistas da classe capitalista. Por isso,
eleições e enfrentar os retrocessos recentes, tema abordado em é hora de fazer um balanço para melhor enfrentar os desafios
texto de Lício Lobo nesta edição. Outras correntes e forças polí- atuais de nossa tarefa histórica na construção do socialismo.
ticas também realizaram seus congressos e conferências – como Em seu primeiro número, o editorial proclamou que, dentre
é o caso do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), do Partido as publicações da editora Página 13, a revista foi criada com a
Comunista do Brasil (PCdoB) e da Democracia Socialista (DS), tarefa de realizar debate de maior fôlego ideológico, teórico, pro-
tendência do PT – e divulgaram suas resoluções, que são anali- gramático e estratégico. Afirma também que, para isso, surgiu
sadas em textos de Eduardo Loureiro, Pedro Pomar e Adriano de como publicação aberta a militantes de esquerda, não somen-
Oliveira, respectivamente. te integrantes da AE, para, assim, circular na intelectualidade de
A situação internacional, com foco na região latinoameri- esquerda em geral com o intuito de incidir de forma qualificada
cana, é debatida em uma entrevista com o ex-presidente e atual no debate político da esquerda brasileira.

2 ESQUERDA PETISTA #9 - 2018 - 1


EDITORIAL

A depender apenas dos dados quantitativos, essa tarefa públicas universais e reformas estruturais; educação, cultura e
vem sendo cumprida, pois as oito edições mantiveram uma pe- comunicação na luta por hegemonia; debates de fundo acerca
riodicidade semestral e somam  635 páginas, 134 artigos, 10 en- da conjuntura e tática;  balanço dos governos encabeçados pelo
trevistas, 12 documentos (manifestos, teses e resoluções), além PT, em âmbito nacional, estadual e municipal; as diferentes ma-
de fotografias, cartuns, charges, gráficos e ilustrações.  nifestações da luta de classes, incluindo eleições, movimentos
O projeto gráfico é um dos pontos fortes, a diagramação dos e lutas sociais; as questões de gênero, raça, orientação sexual e
artigos e especialmente as capas mantiveram uma estética edito- geracional;  acompanhamento do debate acerca do PT e do con-
rial de qualidade nas oito edições, o que consolidou a identidade junto da esquerda brasileira; e o acirramento da luta de classes
visual da Esquerda Petista. Porém, ainda não venceu totalmente o na América Latina, com destaque para o golpe impetrado pela
desafio  de encontrar soluções iconográficas para dar visualidade classe capitalista contra a classe trabalhadora no Brasil.
à complexidade dos conteúdos dos artigos. Como não poderia deixar de ser, a maioria desses temas está
Todavia, há que se destacar que com as obras de Sérgio Bas- atravessada pelas análises dos rumos do PT e do governo Dilma.
tos na edição nº 1, as fotos do Acervo João Zinclar na edição nº 2, Isso indica o quanto a Esquerda Petista tem sido um instrumento
as obras de Latuff na edição nº 4, a contribuição de Ane Cruz na importante na disputa de rumos do partido: sua estratégia, sua
edição nº 5, a curadoria de Renan Brandão na edição nº 6 e a en- tática, seu programa e sua organização e funcionamento.
trevista e a obra da Laerte na edição nº 8 a revista logrou grande Contudo, uma observação é necessária: embora debates so-
qualidade poética e política na conexão entre textos e imagens. bre feminismo e a participação de mulheres sejam significativos
As oito edições apresentam significativa produção intelec- no conjunto das edições, o tema da liberdade sexual e a expli-
tual militante nas análises, ideias e experiências de várias ten- citação da orientação sexual não binária se registra uma única
dências petistas, de integrantes de outros partidos de esquerda, vez, na oitava edição. Alem de debates sobre homossexualidade
assim como pesquisadores, artistas e ativistas culturais indepen- e liberdade sexual, também os movimentos negro e indígena es-
dentes. Essa pluralidade à esquerda se expressa na participação tão presentes ainda de forma desproporcional em relação à sua
de mais de 200 colaboradores, nacionais e internacionais, sendo relevância no debate de ideias e disputas postas hoje no cenário
oito contribuições assinadas por coletivos e instituições, 104 de político. Isso indica a necessidade de fomentar  uma participação
autoria masculina e 49 de autoria feminina,  sendo uma autode- mais ampla do conjunto de colaboradores e colaboradoras, assim
clarada transsexual. como maior diversidade nas pautas, mas sempre sob a centrali-
Respeitar a paridade entre gêneros é uma das diretrizes da dade da luta pelo socialismo como fundamento emancipatório
AE. Contudo, a revista expressa a desigualdade presente na so- crítico na teoria e na prática.
ciedade brasileira, pois é evidente o desequilíbrio numérico da Nesta caminhada, há muitas pessoas a agradecer. Nesses
presença de 49 autoras frente aos 104 autores. Ainda assim, quatro anos, muitos militantes vêm construindo a Esquerda Petis-
vale destacar que, entre os nomes femininos, a maioria (30) é ta e apostando em seu potencial como instrumento de luta polí-
de militantes da AE. Também é relevante a comparação entre as tica da classe trabalhadora. Devemos um agradecimento especial
autorias de integrantes da tendência: do total de 80 nomes, 30 a Claúdio Gonzalez, cujo trabalho, muito além da diagramação,
são femininos. Os dados relativos à paridade de gênero ainda são tem garantido a qualidade do projeto gráfico da revista, e a Edma
menores que o desejado, mas traduzem os esforços dos editores Walker, responsável pela sua distribuição, tornando-a accessível
em garantir espaço para mulheres e para as lutas feministas. aos que preferem um material no formato impresso. Queremos
Ainda sobre o perfil das participações, grande parte é de registrar o agradecimento ao companheiro Valter Pomar, ideali-
integrantes de organizações militantes com formação acadêmi- zador da revista, que realizou com o máximo empenho e compe-
ca e atuação em instituições de pesquisa, predominando entre tência a tarefa de editor da revista até seu oitavo número, função
os que assinam artigos a titulação de mestrado e doutorado.  que doravante estará em outras mãos.
As entrevistas, em grande maioria, cumpriram um papel de Em sua crítica a Hegel, Marx afirmava: “As armas da crítica
aprofundar a exposição de debates das disputas políticas, sociais não podem, de fato, substituir a crítica das armas; a força ma-
e eleitorais e a atuação sindical no contexto do acirramento da terial tem de ser deposta por força material, mas a teoria tam-
luta de classes que marca o período. bém se converte em força material uma vez que se apodera das
De modo geral, os temas  abordados em artigos e entre- massas”. Que esta publicação possa seguir contribuindo neste
vistas  têm a predominância do debate em torno da discussão sentido!
sobre programa e estratégia socialista, rumos do projeto políti-
co de desenvolvimento, em especial a questão agrária, políticas A editora e os editores

ESQUERDA PETISTA #9 - 2018 - 1 3


INTERNACIONAL

Entrevista a Fernando Lugo,


ex Presidente y actual
Senador del Paraguay
Por María Lilia Macedo* e Carlos Francisco Bauer**

Paraguay busca re-emerger desde una política social y comunitária

T
ras las crisis de Esquerda Petista: ¿Usted cómo ac- mes algunos. Un modelo diferente al
los gobiernos tual senador como ve al Paraguay nuestro. Nuestro modelo era un mode-
progresistas los en la actualidad y dentro del con- lo incluyente que tenía muy en cuenta
países latinoame- texto Latinoamericano? el eje soberanía, el eje del buen vivir,
el eje de las políticas sociales, como
ricanos vuelven a Fernando Lugo: Bueno, yo creo salud, educación, viviendas, infraes-
ser golpeados por que los países del continente han te- tructura.
diferentes estra- nido cambios rápidos. Cambios que
tegias imperialistas-neoliberales, pero se han dado en estos últimos cinco o ¿Cómo repiensa el tema de los De-
esta vez no sin elaborar importantes siete años de manera brusca. Cambios rechos Humanos relacionados a la
en los sistemas económicos, cambios dictadura paraguaya?
respuestas ante dichas embestidas. Es
en los sistemas políticos y cambios
por esto que nos encontramos en una también en los modos de vivir de la La cuestión de los derechos humanos
coyuntura muy particular y una mues- gente. En Paraguay, después del gol- es un eje trasversal en todo tipo de po-
tra de ello es la campaña encabezada pe parlamentario del 2012, se instala lítica de Estado, ahí tenemos que tener
por Fernando Lugo y el Frente Guazú un modelo de políticas económicas en cuenta que hay derechos humanos
que él fundó, como propuesta ante el neoliberales, un modelo para bene- de primera generación, segunda ge-
ficiar a pocas familias, excluyendo neración, tercera generación. Se ha
inminente crecimiento de la crisis que
aquellas personas y grupos sociales ampliado el espectro de los derechos
propone el neoliberalismo y el Partido humanos. La dictadura paraguaya
muy olvidados históricamente, pre-
Colorado en Paraguay. La siguiente en- valeciendo un modelo excluyente, un hizo tabla rasa de todos os derechos
trevista intenta focalizarse en algunos modelo que beneficia a poca gente, a humanos, y violó absolutamente to-
puntos centrales y exteriorizar la visión un grupo muy pequeño. Solemos ha- dos los derechos personales y sociales
social, económica, política, cultural y blar de cuatrocientas, quinientas fami- de la ciudadanía. Es un elemento que
la opción por los pobres en la concep- lias en Paraguay que viven muy pero nadie puede negar teniendo una visión
que muy bien y un millón de familias crítica de lo que fueron 35 años de la
ción y formación del ex Presidente y
que viven arañando el presupuesto, el dictadura de Stroessner, en referencia
actual Senador Fernando Lugo. a los derechos humanos de dimensión
salario, apenas alcanzando al fin de

4 ESQUERDA PETISTA #9 - 2018 - 1


INTERNACIONAL

Foto: GETTY IMAGES

social, sobre todo los derechos so-


ciales. Yo vengo de una tradición que
no es ideológico-política, incluso en la
Biblia nosotros hablamos de los dere-
chos del pobre, hablamos de los dere-
chos de los excluidos, de los sin voz,
el derecho a una vida digna, el dere-
cho a la salud, el derecho a una edu-
cación, el derecho a un buen vivir, que
son derechos nuevos que no los expli-
cita aquella declaración del 1948, pero
sí que están muy expuestos hoy en la
vida de todos los ciudadanos.
¿Cómo relaciona su formación reli-
giosa, teológica con su actividad po-
lítica?, ya que el oficialismo religio-
so dice: “la gente religiosa no debe
Fernando Lugo fue presidente de Paraguay entre 2008 y 2012
meterse en política”.
Primero, yo suelo considerar que po- “En mi formación filosófica–teológica, sin tener
lítica y religión son dos caras de una
misma moneda. Ahora me invitaron a una formación ideológica partidaria, simplemente
Azerbaijan − al Quinto Fórum Mun- yo hago la transposición de los valores religiosos
dial − y sobre la mesa uno de los temas
era que en nombre de la religión se han al ámbito político, en términos de que coincidan
provocado muchas guerras y muertes, estas direcciones y estas maneras de vivir la
y que es error de los políticos cuando
nuestras culturas y nuestras religiones caridad a través de la política”
nos dividen en el mundo moderno.
hacer efectiva esas políticas sociales. una carta a los obispos brasileños y les
Religión y política no son dos realida-
Son formas de caridad. En mi forma- decía que la Teología de la Liberación
des diversas, por lo menos nosotros,
ción filosófica–teológica, sin tener una − que muchos quieren satanizar − él
de tradición cristiana, consideramos
formación ideológica partidaria, sim- la reivindica, y también decía que ya
que uno de los elementos fundamenta-
plemente yo hago la transposición de forma parte del patrimonio teológico
les de nuestra fe es la caridad. El papá
los valores religiosos al ámbito políti- de la iglesia universal, entonces le da
Francisco repite lo que Pio XI decía:
co, en términos de que coincidan estas validez a la Teología de la Liberación.
la política es la expresión más subli-
direcciones y estas maneras de vivir la
me del amor. Yo creo que ahí hay un ¿Cómo piensa la integración, la
caridad a través de la política.
momento de conjunción entre política reintegración del Paraguay en el
y religión. Muchas veces la política ¿Tiene mayor familiaridad con la continente latinoamericano?
es la herramienta eficaz de realizar la teología de la liberación?
caridad. Nosotros, como obispos, mu- Yo creo que en Paraguay, como país
chas veces sentíamos impotencia de Sin ninguna duda, yo creo que la Teo- mediterráneo, no tenemos otra alterna-
no hacer esa caridad más efectiva, sin logía de la Liberación, ya lo decía Juan tiva que mirar más allá de las fronteras
embargo, la política es la herramienta Pablo II, es un gran aporte a la teolo- en una integración mucho más equita-
a través de la institución del Estado de gía universal. Juan Pablo II escribió tiva. Yo creo que los grandes intentos

ESQUERDA PETISTA #9 - 2018 - 1 5


INTERNACIONAL

de integración que hubo desde Uru-


guay, Paraguay − allá por la década de “En Paraguay, después del golpe parlamentario del
los 70 − y Bolivia, y después el Mer- 2012, se instala un modelo de políticas económicas
cosur del 91, después en el 2009-2010,
lo que fue UNASUR y la SELAC. A neoliberales, un modelo para beneficiar a pocas
nivel latinoamericano hubo grandes familias, excluyendo aquellas personas y grupos
intentos regionales de integración,
pero que fueron dados en el marco po- sociales muy olvidados históricamente...”
lítico y no tanto en el campo cultural y Foto: Difusión
el campo económico. Yo creo que eso
ha sido una lección aprendida, hoy es-
tamos nosotros desde nuestra bancada
[Senado], nuestra perspectiva política
en la Secretaria de Asuntos Interna-
cionales es de mirar para una integra-
ción mucho más estructurada, mucho
más eficaz, en la cual todos salgamos
beneficiados. Es el sueño de la Patria
Grande, sin límites, sin fronteras, que
marquen y diferencien las políticas
nacionales, yo creo que el futuro de
América Latina se ve expresado en la
integración continental.
¿Cuáles son sus propuestas frente
a la organización/movilización de
las mujeres, de la juventud y del
Seguidores de destituido presidente Fernando Lugo protestan en las calles de Asunción
campesinado en Paraguay? Habría
democracia sin estas tres catego-
rías en la construcción del poder Paraguay (Kuña’ŷre ndaikatúi oiko * MARÍA LILIA MACEDO es estudiante
político y de una ciudadanía parti- mba’eve)1, pues sin la participación de pos graduación en Políticas Públicas
cipativa? afectiva y efectiva de la mujeres no y Desenvolvimiento en la Universidade
se puede caminar ni hacer un país de Federal da Integração Latino-Americana
En el 2015 yo fui presidente de una verdad. Yo creo que la gente ha to-
(UNILA), participa del movimiento cam-
de las comisiones principales del Se- mado conciencia de eso, pues sin este
nado, que es la Comisión de Asuntos pesino e indígena de Santiago del Este-
estamento, que es el 50 por ciento de
Constitucionales. Nuestra comisión ro (Vía Campesina) y del Comité Muje-
la sociedad paraguaya, no se puede ni
fue la primera que dio su dictamen siquiera pensar en ningún tipo de res Auto-convocadas de Puerto Iguazú.
sobre la Ley de Paridad Democrá- participación paritaria y democrática.
**CARLOS FRANCISCO BAUER es
tica. Yo creo que en estos días − la Lo mismo el sector campesino. Pa-
primera semana de marzo − serán trabajador comunitario y doctor en Fi-
raguay es un país agrícola y seguirá
tratadas en el senado esta Ley de Pa- losofía (Universidad Nacional de Cór-
siendo agrícola. Pensamos en crear
ridad Democrática donde da igual- el Ministerio de Agricultura Familiar doba/Argentina). Profesor de Historia
dad de oportunidades a las mujeres Campesina como elemento indispen- en la UNILA, dicta aulas sobre la Pro-
y varones en todo los estamentos, no sable para ampliar la producción de blemática de la Filosofía Latinoameri-
solo en el ámbito político, sino, en alimentos en las pequeñas fincas pa- cana; Antropología Filosófica y Colo-
todos los estamentos, ya sea barrial, raguayas. nialismo; Ética y Ciencia; Introducción
organizacional, cooperativas, parti- al Pensamiento Científico). Es autor
dos políticos, estamentos del esta- 1 Dicha expresión significa “sin la mujer nada funciona”.
de varios libros, entre ellos uno sobre
Agradecemos a Fabián Franco por la colaboración en la
do. Hay una canción muy popular en transcripción y traducción de las expresiones en guaraní. Analéctica y otro sobre Anápolis.

6 ESQUERDA PETISTA #9 - 2018 - 1


INTERNACIONAL

Políticas y procesos generacionales


en la América Latina actual: la
persistencia del protagonismo
juvenil a 100 años de la
Reforma Universitaria de 1918
“La juventud ya no pide. Exige que se le reconozca el derecho a
exteriorizar su pensamiento propio en los cuerpos universitarios
por medio de sus representantes. […] Si ha sido capaz de realizar
una revolución en las conciencias, no puede desconocérsele la
capacidad de intervenir en el gobierno de su propia casa”
(Manifiesto Liminar – Cordoba, Argentina, 21 de junio de 1918).

Pablo Vommaro

Protagonismo juvenil en las movilizaciones y los conflictos sociales

L
as últimas dos décadas estuvieron signadas por el protago- Argentina, los del Si a la Paz y el Paz a la Calle en Colombia, los
nismo juvenil en las movilizaciones y los conflictos sociales jóvenes urbanos movilizados en Brasil desde las periferias a los
que se desplegaron en diversos países de América Latina. centros y las juventudes de Honduras y Guatemala que se ma-
A su vez, en el mismo período se han producido en otras regiones nifiestan contra gobiernos corruptos, fraudulentos y autoritarios
del mundo (África del Norte, Europa, América del Norte) pro- han sido los más visibles, pero no son los únicos.
cesos de movilización social que encuentran en los jóvenes sus Existen también agrupaciones de indígenas, de trabajadores
principales impulsores. Los movimientos de carácter más socio- precarizados, de diversidades sexuales, de migrantes, de cam-
político, como los de la denominada primavera árabe que contri- pesinos y diversos espacios culturales, entre muchos otros, que
buyeron a la caída de distintos gobiernos en África del Norte, los son activos protagonistas de los conflictos y movilizaciones en
múltiples colectivos que se agrupan bajo la denominación de in- sus territorios de acción específicos. Los jóvenes de los sectores
dignados en Europa (sobre todo en España) y Estados Unidos, las populares y las periferias de muchas grandes ciudades también
organizaciones estudiantiles que luchan por la democratización y han construido colectivos y asociaciones que expresan sus formas
la mejora de la calidad de una educación mercantilizada y degra- singulares de participación y compromiso con lo público y con la
dada en América Latina (Chile, Colombia, México), los colectivos transformación de la realidad en la que viven, a la vez que son
movilizados por el No a la Baja y las legislación de reconocimien- emergentes que expresan los conflictos urbanos de la actualidad.
to de derechos y eliminación de penalizaciones en Uruguay y la entes que expresan los conflictos urbanos de la actualidad.

ESQUERDA PETISTA #9 - 2018 - 1 7


INTERNACIONAL

Es esta acción contenciosa con


marcas generacionales en diversos
países latinoamericanos como
Argentina, Chile, Colombia y México,
la que marca las agendas públicas
y las dinámicas de movilización
y conflicto social, excediendo las
delimitaciones etarias y sectoriales
Derechos, diversidades y mandas, protestas y propuestas. Esto nos agenda urgente de políticas públicas para
desigualdades lleva a resaltar no sólo la característica revertir estos procesos.
etaria, sino a apostar por una lectura ge- A partir de lo dicho podemos desta-
Por otra parte, en las últimas décadas neracional de estos procesos. car dos rasgos característicos de este pro-
se produjo en América Latina un proce- Es esta acción contenciosa con mar- ceso de movilización juvenil analizado
so de ampliación de derechos y recono- cas generacionales en diversos países en la mediana duración. Se trata, por un
cimiento de las diversidades sociales de latinoamericanos como Argentina, Chi- lado, de movilizaciones que superan am-
carácter regional y transversal a diferentes le, Colombia y México, la que marca las pliamente los reclamos sectoriales para
gobiernos. En el caso de los jóvenes, esto agendas públicas y las dinámicas de mo- discutir cuestiones más amplias y cues-
posibilitó, entre otras cosas, la ampliación vilización y conflicto social, excediendo tionar la dinámica urbana del Brasil ac-
de la edad de habilitación para votar de los las delimitaciones etarias y sectoriales. tual. Sobre todo, en lo que hace al merca-
18 a los 16 años en países como Uruguay, Las respuestas estatales a esta mo- do inmobiliario, la vivienda y el derecho
Bolivia y Argentina, que se sumaron a vilización juvenil en las calles y los ter- a transitar libremente y sin restricciones
Cuba, Brasil, Ecuador y Nicaragua, donde ritorios es distinta según países y coyun- por la ciudad, rompiendo la segregación
esto ya sucedía. Asimismo, existieron in- turas, pero en muchos casos las y los espacial que limita las posibilidades de
tensos debates públicos para implementar jóvenes son reprimidos, criminalizados, apropiación de la ciudad por parte de am-
la medida en Colombia y México. Aunque perseguidos y asesinados. Algunos pen- plios sectores de la población, en especial
la participación electoral no es elevada en- sadores caracterizan esta situación de jóvenes de las periferias. Asimismo, los
tre los jóvenes en países como Chile y en negación y desacreditación simbólica y colectivos y organizaciones que impulsa-
otros se mantiene dentro la media gene- de eliminación física de las juventudes ron este proceso expresan otras formas
ral, si desagregamos el voto considerando (los 43 de Ayotzinapa y miles más en Mé- de habitar la ciudad y de uso, apropia-
la dimensión generacional vemos que en xico, los cientos de falsos positivos y los ción y producción de lo público, no sólo
muchos casos los resultados son distintos líderes sociales asesinados en Colombia a nivel espacial concreto, sino también
a los obtenidos en los escrutinios. Es cono- y en países de Centroamérica, las y los abarcando al transporte y las condiciones
cido que si hubiesen votado solo las per- jóvenes negros de las periferias urbanas que posibiliten la libre movilidad urbana,
sonas menores de 35 años y las mujeres en Brasil, entre tantos otros casos) como el derecho al ocio; y extendiéndose a for-
Trump no sería presidente de los Estados juvenicidio o genocidio juvenil por goteo. mas estéticas y artísticas de intervenir la
Unidos y en Inglaterra no hubiese gana- Así, a pesar del proceso de ampliación de ciudad con murales, grafitis o pixações1.
do el Brexit. Asimismo, el voto juvenil fue derechos y reconocimiento de las diver- De esta manera, aún en esta coyun-
abrumadoramente a favor del Sí a la Paz sidades que mencionamos, las desigual- tura que podría parecer adversa y regre-
en Colombia en 2016. dades persistentes que se expresan más siva, las juventudes continúan apostan-
Además, las juventudes continúan agudamente entre los jóvenes y negación do por la militancia, por lo colectivo, por
ocupando y disputando los espacios pú- simbólica y física de las juventudes que componerse con otros, por disputar lo pú-
blicos para visibilizar e instalar sus de- precariza y elimina vidas marcan una blico, por realizar sus propuestas, por con-

8 ESQUERDA PETISTA #9 - 2018 - 1


INTERNACIONAL

cretar sus sueños y por participar también El espíritu de las propuestas y de- discursos públicos producidos en ese mo-
en instancias electorales y partidarias. Es nuncias del movimiento reformista tam- mento en general no refieren al sujeto ju-
esta persistencia juvenil por participar de bién se expresa en el discurso pronun- venil como un actor social de relevancia.
lo común, por desafiar lo establecido y por ciado por Horacio Valdes al cierre de una Más bien los jóvenes aparecen solapados
construir otras maneras de estar juntos lo marcha estudiantil realizada el 10 de detrás de otras filiaciones que se consi-
que empuja un presente conflictivo y nu- marzo de 1918 por las calles de Córdoba: deraban más importantes y explicativas
tre nuestros anhelos de construir socieda- “El actual régimen universitario está pro- como la clase social o la condición de
des más justas y solidarias. fundamente viciado y en ruina y es deber estudiante5. También se vislumbran tras
ineludible de todos contribuir a su dislo- algunas producciones o discursos cultu-
Juventudes, estudiantes y camiento. El principio de autoridad está rales como el rock, movimientos como los
Reforma Universitaria: cambios y resentido no por el espíritu levantisco de hippies, ciertas vanguardias artísticas; o
persistencias los que lo soportan, sino por la insolven- asociados a la militancia política, en ge-
cia moral de los que lo ejercen”. neral partidaria, y también dentro de los
La vida en la Universidad y la cons- La Reforma se extendió rápidamen- grupos armados o guerrillas. Si bien es-
titución del movimiento estudiantil han te a otras regiones de la Argentina y a tos espacios estaban mayoritariamente
sido puntos de partida obligados para otros países de América Latina, teniendo conformados por jóvenes, lo juvenil no es
los estudios sobre jóvenes, juventudes y efectos políticos que excedieron amplia- problematizado como tal y la identificaci-
sus relaciones con la política. En América mente al movimiento estudiantil en pa- ón estudiantil prevalece.
Latina esto cobró una significación es- íses como Perú, Chile, Colombia, México Un recorrido panorámico por las
pecial a partir del movimiento conocido y Cuba (Tünnermann Bernheim, 2008)4. principales experiencias de politización6
como Reforma Universitaria, iniciado en En los movilizados años sesenta y se- estudiantil que se despliegan en América
Córdoba (Argentina) en 1918. Este movi- tenta del siglo XX, hablar de juventudes Latina en la actualidad nos muestra que
miento significó también la irrupción de y políticas también era hablar de movi- se trata de organizaciones que producen
las juventudes –que aparecieron bajo la miento estudiantil, sobre todo universi- movilizaciones que expresan posibilida-
nominación de estudiantes- en la diná- tario. Más aún, las obras académicas y los des políticas de establecimiento de rela-
mica política educativa y general a partir
de diversas movilizaciones, huelgas estu-
diantiles y ocupaciones de universidades
para lograr la democratización, la partici-
pación estudiantil en la toma de decisio-
nes y el cambio en las metodologías de
enseñanza y los currículos2.
Esta rebelión estudiantil cordobesa
tuvo su expresión en el célebre Manifies-
to Liminar de la Federación Universitaria
de Córdoba titulado La Juventud argentina
de Córdoba a los Hombres Libres de Sudamé-
rica. Este manifiesto finaliza diciendo:
“La juventud ya no pide. Exige que se
le reconozca el derecho a exteriorizar su
pensamiento propio en los cuerpos uni-
versitarios por medio de sus representan-
tes. […] Si ha sido capaz de realizar una
revolución en las conciencias, no puede Painéis expostos no campus da Universidade Nacional
desconocérsele la capacidad de intervenir de Córdoba; no detalhe, Monumento em homenagem
en el gobierno de su propia casa”3. ao centenário do manifesto na Universidade

ESQUERDA PETISTA #9 - 2018 - 1 9


INTERNACIONAL

ciones intergeneracionales, a la vez que La denominada tercera generación de


tienden puentes entre las movilizaciones
de los jóvenes y las de otros movimientos Derechos Humanos se profundizó y amplió
y expresiones sociales colectivas más o
menos organizadas. Así, vemos como es- en la región incorporando derechos de
tas movilizaciones superan ampliamente diversas minorías (étnicas y sexuales entre
los límites sectoriales (y aun los gene-
racionales) para convertirse en procesos las principales) e introduciendo nociones
que dinamizan diversas luchas sociales
más amplias y expresan impugnaciones
como “buen vivir”, soberanía alimentaria y
al sistema dominante que exceden las los derechos de la tierra...
cuestiones educativas.
Estas experiencias de politización y
radicalización juveniles, que desbordan latinoamericana. Los tiranos siguen en- Por un lado, estos movimientos se
los reclamos sectoriales, pueden ser ana- soberbecidos y muchas universidades, enmarcan en el proceso de paulatina
lizadas también desde los planteos de aisladas política, social y culturalmente, ampliación de derechos y de creciente
Badiou (2000) quien sostiene que no se asfixiadas económicamente o desconec- consideración de las diversidades socia-
puede “llamar movimiento a aquello que tadas de los procesos sociales en las que les que se produjo en América Latina
es una simple defensa de un interés”, “no se desenvuelven, constituyen un “reflejo en los últimos años y que involucró es-
hay movimiento si solo se trata de una de estas sociedades decadentes que se pecialmente a los jóvenes, que muchas
reivindicación particular o interesada”. Y empeñan en ofrecer el triste espectáculo veces fueron los principales beneficiarios
agrega que en un movimiento “siempre de una inmovilidad senil”. de estos nuevos derechos, y también los
hay demandas, hay reivindicaciones, hay Es necesario retomar muchos de los principales luchadores para lograrlos. La
pedidos”, pero el movimiento es “mucho desafíos de 1918, reconfigurados en los denominada tercera generación de Dere-
más que esos pedidos, que esas deman- años sesenta y setenta y actualizados al chos Humanos se profundizó y amplió en
das” (Badiou, 2000: 27). En esta clave, calor de la coyuntura presente. Porque a la región incorporando derechos de di-
un movimiento social se constituye como la luz de las realidades que viven Brasil y versas minorías (étnicas y sexuales entre
tal cuando es capaz de superar la dimen- diversas regiones de nuestro continente y las principales) e introduciendo nociones
sión sectorial y particular y expresar as- de los colectivos juveniles que despliegan como “buen vivir”, soberanía alimentaria
piraciones políticas más generales, que sus propuestas y alternativas, podemos y los derechos de la tierra en materia de
interpelan lo común. seguir sosteniendo lo expresado en el Ma- extractivismo y explotación de los recur-
Dentro de estas reflexiones, sostene- nifiesto Liminar: “La juventud ya no pide. sos naturales. Así, tanto las cuestiones
mos que los anhelos, principios y desafíos Exige que se le reconozca el derecho a ex- vinculadas a grandes colectivos sociales
que sustentaron al movimiento reformis- teriorizar su pensamiento propio... Está excluidos durante años, como las rela-
ta iniciado en 1918 continúan vigentes. cansada de soportar a los tiranos […] e cionadas con el medio ambiente y la tier-
También persisten, en una coyuntura incita a colaborar en la obra de libertad ra, se convirtieron en objeto de derecho
distinta, las búsquedas que se expresaron que inicia”. 7 y políticas públicas. La nueva agenda de
en los movimientos y rebeliones de fines derechos que se conformó la región se
de los años sesenta y comienzos de los Algunos puntos para nutrió también de las recientes discusio-
setenta, en América Latina y el mundo. seguir pensando nes acerca del derecho a la educación, es-
Sigue siendo necesario “llamar a todas pecialmente en lo referido a la educación
las cosas por el nombre que tienen” para A partir de nuestras reflexiones, po- superior. Así, las movilizaciones de estu-
lograr “una vergüenza menos y una liber- demos distinguir algunos rasgos de los diantes secundarios y universitarios en
tad más”. “Los dolores que nos quedan” procesos de politización generacionales los países seleccionados (y en menor me-
continúan siendo “las libertades que nos que se desplegaron en la región en los úl- dida en Brasil y Argentina) pusieron en
faltan” en una hora que es cada vez más timos años. evidencia las crecientes limitaciones y los

10 ESQUERDA PETISTA #9 - 2018 - 1


INTERNACIONAL

En los movilizados años sesenta y setenta del siglo XX, hablar de juventudes y políticas también era hablar de movimiento estudiantil

urgentes cambios que requieren los siste- ética conforman una trama que configu- que hemos denominado en otros traba-
mas educativos en América Latina. Esta ra muchos de los rasgos de las organiza- jos “política con el cuerpo” o “política de
situación se torna aún más significativa ciones que estudiamos. cuerpo presente” (Vommaro, 2010). Entre
si coincidimos con Tapia en que “el dere- Por el otro, las formas de expresión otras cosas, esta modalidad fue una expre-
cho a estudiar ha generado y genera ca- pública de las movilizaciones sociales en sión del carácter indelegable que adquirió
pacidades que producen, históricamente, América Latina experimentaron diversas la política. Es decir, del cuestionamiento a
una ampliación de los derechos por la vía transformaciones desde mediados de la la posibilidad de delegar la representación
del desarrollo de conocimientos y de ca- década del noventa. Entre los jóvenes es- del propio cuerpo y la propia voz. Así, la
pacidades, que permiten ir modificando tos cambios se expresaron en el crecimien- acción directa y la política con el cuerpo
formas más estrechas de pensar los dere- to de otros modos de escenificar la presen- se volvieron fundamentales ya que no sólo
chos de la igualdad, también capacidades cia colectiva en el espacio público, sobre permitieron enunciar necesidades o aspi-
para pensar las instituciones necesarias, todo a través de la acción directa (expre- raciones; sino que a la vez, instituyeron
las políticas y los modos de generar los sada por ejemplo en la toma de un liceo o formas de visibilidad social y de creación
recursos y producir los bienes públicos” una universidad, y también en los escraches de valores y símbolos colectivos. Por eso,
(Tapia, 2012). Entonces, ampliación de a políticos o instituciones). Estas formas no sólo fue relevante la visibilización de
derechos empujada por los movimientos, de acción directa están ligadas a las moda- los cuerpos sino además, y fundamental-
asunción de las diversidades como cons- lidades de democracia directa que caracte- mente, el proceso que podemos denomi-
titutivas de las juventudes contemporá- rizan la disposición interna de las organi- nar “carnavalización de la protesta, la dra-
neas y una política que se torna también zaciones e instituyeron una forma política matización de los referentes identitarios,

ESQUERDA PETISTA #9 - 2018 - 1 11


INTERNACIONAL

la imaginación para captar la atención de Las actuales formas y tecnologías de


los medios de comunicación, trastoca las
relaciones en el espacio público y señala la la comunicación y la información –en
transformación en los modos de hacer po-
lítica” (Reguillo 2000:148). Se constituye particular las redes sociales- no son solo
entonces una estética singular creada en un canal fundamental de expresión y
torno a las acciones colectivas juveniles
en la que lo político y lo artístico-cultural visibilidad de los movimientos,
se encuentran inevitablemente articula-
dos. A partir de lo dicho podemos pensar
sino que constituyen un
que las acciones directas que caracterizan componente relevante
muchos de los movimientos juveniles que
mencionamos implicaron también un pro- para comprender la
ceso de apropiación, uso y producción del
espacio público, instituyendo los espacios
constitución y
públicos no estatales –comunitarios- y ex- consolidación de
presando los desafíos a las formas estable-
cidas que encarnaron estas organizaciones estas organizaciones
junto a otros sectores sociales.
En tercer lugar, las actuales formas y
tecnologías de la comunicación y la infor- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
mación –en particular las redes sociales- AA.VV. (1918) La juventud argentina de Córdoba a los hombres libres de Sud América

no son solo un canal fundamental de ex- Manifiesto de la Federación Universitaria de Córdoba – 1918. Varias ediciones. Tomado de: https://www.unc.edu.ar/sobre-la-unc/manifiesto-liminar
presión y visibilidad de los movimientos, Badiou, Alain (2000). Movimiento social y representación política. Buenos Aires, Instituto de Estudios y Formación de la CTA.
sino que constituyen un componente re-
Reguillo, Rossana (2000). Emergencia de culturas juveniles. Estrategias del desencanto. Buenos Aires, Norma.
levante para comprender la constitución
Tapia, Luis (2012). “Universidad pública, posgrado y renovación del Conocimiento y las sociedades”, en Gentili, P. y Saforcada, F. (Coord). Ciencias Sociales,
y consolidación de estas organizaciones. producción de conocimiento y formación de posgrado. Debates y perspectivas críticas. Buenos Aires, CLACSO.

Así, estas redes se convierten en un ter- Tünnermann Berheim, Carlos (2008). Noventa años de la Reforma Universitaria de Córdoba (1918-2008). Buenos Aires, CLACSO.
ritorio de acción política similar a otros, Vommaro, Pablo (2010). “Política, territorio y comunidad: las organizaciones sociales urbanas en la zona sur del Gran Buenos Aires (1970-2000)”. Tesis doctoral
en los que por un lado, se produce una defendida en la Facultad de Ciencias Sociales de la Universidad de Buenos Aires. Director: Federico Schuster. Co-director: Pablo Pozzi. Mimeo.

disputa por su control; y por otro se des- NOTAS


pliegan formas de comunicación interna 1 La pixação es una práctica similar al grafiti, en la cual los pixadores realizan inscripciones callejeras con tipografías singulares y distintivas, generalmente en
forma clandestina u oculta. En San Pablo existen decenas de colectivos juveniles de pixadores,que despliegan sus propuestas estéticas en las paredes de la
y de acercamiento de nuevos miembros y
ciudad.
adherentes.
2 El movimiento conocido como Reforma Universitaria de 1918 surgió en la Universidad de Córdoba, Argentina en junio de 1918 y tuvo rápidamente una
proyección latinoamericana. El motivo principal de la lucha estudiantil fue democratizar la universidad, transformar los currículos de estudio, reforzar el ca-
rácter laico y asegurar la participación estudiantil en el gobierno universitario. La fecha simbólica de inicio es el 15 de junio de 1918, momento en el cual los
PABLO VOMMARO es doctor en estudiantes irrumpieron en la Universidad para impedir que se consumara la elección del rector y declararon una huelga general. La movilización tuvo su
momento más álgido el 9 de septiembre cuando la Federación Universitaria de Córdoba asumió la dirección de la Universidad y el gobierno ordenó al Ejército
ciencias sociales e posdoctor en reprimir la ocupación. La lucha reformista mostró su éxito en las reformas de los estatutos de las principales universidades de la Argentina, aunque en 1922
y 1924 los estudiantes cordobeses tuvieron que recurrir nuevamente a la huelga debido a las demoras en implementar las reformas y la continuidad de los
ciencias sociales, niñez y juventud mismos problemas contra los que se habían levantado en 1918.

profesor de historia en la Universidad 3 Cita tomada del Manifiesto Liminar “La juventud argentina de Córdoba a los hombres libres de Sud América Manifiesto de la Federación Universitaria de
Córdoba – 1918”, del 21 de junio de 1918. Disponible en: https://www.unc.edu.ar/sobre-la-unc/manifiesto-liminar
de Buenos Aires (UBA), investigador 4 Es en esta época cuando se producen los primeros textos que abordan la juventud en tanto sujeto social y político desde la noción de generación, que será
asistente del Consejo Nacional de retomada en los últimos años. Para ampliar esto ver, por ejemplo, a Mannheim y Ortega y Gasset. También en la década de 1920 se producen textos de autores
como José Carlos Mariátegui (en Perú) y Julio Antonio Mella (Cuba), ambos influidos por el movimiento reformista de 1918.
Pesquisas Cientificas y Tecnicas 5 La confluencia entre organizaciones obreras y estudiantiles que se produjo en acontecimientos como el mayo francés de 1968 o el Cordobazo de 1969 (que
(CONICET) y Director de Grupos de pueden ser analizados desde la perspectiva generacional y juvenil) alimentó estas interpretaciones.

Trabajo y Promoción de la Investigación 6 Por politización entendemos el proceso por el cual las dimensiones personales, subjetivas y cotidianas de la vida individual y social devienen políticas, se
vuelven parte del espacio público y de las cuestiones comunes. Es decir, un proceso en el que ciertas prácticas devienen políticas al expresar antagonismos
del Consejo Latinoamericano de sociales situados en una coyuntura socio-histórico-cultural singular.

Ciencias Sociales (CLACSO) 7 Cita tomada del Manifiesto Liminar “La juventud argentina de Córdoba a los hombres libres de Sud América Manifiesto de la Federación Universitaria de
Córdoba – 1918”, del 21 de junio de 1918. Disponible en: https://www.unc.edu.ar/sobre-la-unc/manifiesto-liminar

12 ESQUERDA PETISTA #9 - 2018 - 1


NACIONAL

A estrela
de LULA
Licio Lobo

Lula tem mais de 30% nas pesquisas porque representa a vontade


de largas parcelas da classe trabalhadora de derrotar o golpe e
suas medidas. Há, portanto, uma enorme energia social que pode
ser mobilizada nos próximos meses

Q
ual o papel de
Lula na história recente do Brasil? Cer-
tamente a resposta demandará ainda
o trabalho árduo dos historiadores do
futuro e estará sujeita às contingências
dos embates de classes que virão.
Mas podemos intuir desde já que
as “chaves explicativas” para a respos-
ta a esta pergunta, sendo várias, certa-
mente serão desafiadas pelos aconteci-
mentos do dia 7 de abril de 2018, data
da sua prisão.
Acontecimento impensável para
muitos há poucos meses atrás, ainda
que previsível ou ao menos inscrito na
teia das possibilidades para outros, a
prisão de Lula expôs dramaticamente
as fraturas abertas na sociedade bra-
sileira.

ESQUERDA PETISTA #9 - 2018 - 1 13


NACIONAL

Para além das disjuntivas táticas


presentes numa conjuntura política ten-
sa e polarizada, do que se tratava ali era
um daqueles momentos em que se con-
densam tendências de longo prazo mais
profundas e enraizadas, que colocam a
céu aberto os impasses estratégicos
presentes na cena política e social e desa-
fiam a ação das diferentes classes sociais.
Bem vistas as coisas, a prisão foi, ao
mesmo tempo, uma aposta de risco e uma
consequência lógica da dinâmica impos-
ta ao país pelos sócios da empreitada gol-
pista em curso no Brasil desde 2016, a
começar pelo grande capital estrangeiro
presente no país, passando pelas diferen-
tes frações da burguesia brasileira, pela
grande mídia empresarial, pelo comando
das Forças Armadas e pelos setores hege-
mônicos do aparato judicial.
Da perspectiva de Lula, a prisão reco-
locou o aqui e agora, o tempo presente,
como o tempo que desafia o conjunto da
sua trajetória, ao colocar-lhe desafios ex- Na montagem, fotos de Lula
tremos que, sendo pessoais, transcendem líder sindical durante greve dos
esta dimensão, pelo caráter de disputa metalúrgicos em 1979, no ABC
aguda entre classes sociais que encerram. paulista, e no dia 7 de abril de 2018,
carregado por apoiadores em frente
Falamos acima das “chaves explica-
ao Sindicato dos Metalúrgicos do
tivas” para uma possível compreensão ABC, pouco antes da sua prisão
da trajetória de Lula. Dentre elas, aque-
la que constrói uma espécie de mitologia uma ideologia política que se apresenta não Destaca ainda que “é preciso definir a
em torno da sua figura histórica é sem como uma fria utopia nem como raciocínio vontade coletiva e a vontade política em geral
dúvida aquela mais potencializada pelos doutrinário, mas como uma criação da fanta- no sentido moderno, a vontade como consciên-
fatos recentes, não obstante suas limita- sia concreta que atua sobre um povo disperso cia operosa da necessidade histórica, como pro-
ções e problemas metodológicos e políti- e pulverizado para despertar e organizar sua tagonista de um drama histórico real e
cos derivados. A prisão como que reforça vontade coletiva”. efetivo”.
e renova o mito. Gramsci desenvolve sua análise si- Como compreender, com base nes-
Na tradição da esquerda socialista, a tuando a questão nas sociedades indus- te referencial teórico, a questão de Lula
questão do “mito” é estudada, dentre ou- triais das primeiras décadas do século como “figura mítica”, sua relação com as
tros, por Gramsci, teórico e dirigente do XX e conclui que nestas sociedades o massas e com o próprio PT? Incontorná-
Partido Comunista Italiano, que classifi- “moderno príncipe” não pode ser uma vel neste aspecto, não relembrar as pala-
ca O Principe de Maquiavel, como uma pessoa, mas se materializa no “partido vras de Lula no discurso feito no dia da
“exemplificação histórica do “mito”....isto é, de político”. prisão:

14 ESQUERDA PETISTA #9 - 2018 - 1


NACIONAL

Consciente do seu papel histórico e do “momento limite” em que


vive, Lula parece aqui cioso em mobilizar todos os recursos em
defesa de um legado que, longe de ser pessoal, é produto de toda
uma época histórica que viu nascer um protagonismo inédito das
“classes trabalhadoras” na arena política do país, desde o ascenso
do movimento operário no final dos anos 70, a criação do PT, a
eleição do primeiro presidente operário e os governos Lula e Dilma

Consciente do seu papel histórico e mente no fato de que é a partir do for-


do “momento limite” em que vive, Lula talecimento do PT que estabelece-se na
parece aqui cioso em mobilizar todos dinâmica política do pais uma polariza-
os recursos em defesa de um legado ção em que as classes trabalhadoras se
que, longe de ser pessoal, é produto de constituem num dos polos ativos da
toda uma época histórica que viu nascer disputa, superando seu papel anterior
um protagonismo inédito das “classes de caudatário coadjuvante nas disputas
trabalhadoras” na arena política do país, interburguesas.
com o ascenso do movimento operário No momento da prisão é a este
no final dos anos 70, a criação do PT, a “conjunto da obra” que a fala de Lula
eleição do primeiro presidente operário remete, sem prejuízo de que possa haver
do pais em 2002 e os governos Lula e Dil- (e haja de fato), considerações críticas
ma até 2016. de toda ordem ao seu papel (e ao papel
Parafraseando Gramsci, citado an- do PT) em pontos específicos ou no con-
teriormente, eis aí todo um “drama junto da trajetória.
histórico real e efetivo”, longamente Em especial, a eleição de Lula a pre-
maturado durante décadas de desenvol- sidente da República em 2002 remete a
vimento do capitalismo no país, respon- uma espécie de “revolução cultural”, em
sável pela concentração do jovem prole- que largos setores das massas populares
tariado nas grandes fábricas metalúrgi- até então presas dos preconceitos e me-
cas do ABC e pelo regime ditatorial que dos instilados pelos aparatos de domina-
fez emergir a fagulha da rebelião operá- ção das classes dominantes, resolveram
“Eles não sabem. Eles não sabem que o ria e tudo que se seguiu até 2016, quan- dar seu “voto de confiança” para um
problema deste país não chama-se Lula, o pro- do um novo golpe foi perpetrado contra “igual”. É como se o slogan “trabalha-
blema deste país chama-se vocês, a consciência a democracia no pais. dor vota em trabalhador” usado pelo PT
do povo, o Partido dos Trabalhadores, o PCdoB, Na conjuntura da década de 80 do nas eleições de 1982 se consumasse com
o MST, o MTST, eles sabem que tem muita gen- século passado, o ineditismo consistiu vinte anos de atraso.
te....Não adianta tentar acabar, sabe, com as não exatamente na presença ativa do O episódio da prisão de Lula encerra
minhas ideias, elas já estão pairando no ar e proletariado nas lutas sociais e embates ainda várias outras simbologias, desde
não tem como prendê-las......Não adianta eles políticos, pois esta existia já nas movi- a celebração da missa em memória da
acharem que vão fazer com que eu pare, eu não mentações dos anarquistas no início do companheira Marisa até o discurso re-
pararei porque eu não mais sou um ser século passado e no papel hegemônico pleto de imagens, metáforas e alusões às
humano, sou uma ideia, uma ideia mistu- exercido pelo PCB na esquerda brasileira lutas passadas e ao legado positivo dos
rada com a ideia de vocês...” até o golpe de 1964, mas fundamental- seus governos.

ESQUERDA PETISTA #9 - 2018 - 1 15


NACIONAL

Foto: Ricardo Stuckert


Mas há um núcleo central da sim-
bologia que salta aos olhos e ganha um
peso estrutural na construção toda: Lula
foi ao encontro dos companheiros de luta
e montou sua resistência à prisão arbitrá-
ria na sede do Sindicato dos Metalúrgicos
do ABC, em São Bernardo do Campo.
Negou a Moro, à Rede Globo e à
burguesia toda a foto de uma prisão hu-
milhante e construiu uma narrativa que
combinou habilmente uma mensagem
de resistência paciente, indignação e cha-
mado à luta para a massa reunida nas
ruas em frente ao sindicato naquela ma-
nhã do dia 7 de abril.
Neste momento limite, em que pre- fazer cem dias de greve, quatrocentos dias de a vida cotidiana da classe trabalhadora,
cisava “justificar” para a militância ali greve, que eles vão até o fim. Pois eu vou tes- ainda que mediada por vários filtros.
reunida, disposta a resistir, a sua decisão tá-los em 1980. E fizemos a maior greve da Mas há também ai uma limitação
de entregar-se, a referência de Lula foi a nossa história, a maior greve. Quarenta e um política implícita, no sentido de que as
greve metalúrgica de 1979, ocasião em dias de greve, com dezessete dias de greve eu fui tarefas de um partido (e de um líder po-
que teve que enfrentar-se também com preso e os trabalhadores começaram, depois de lítico da dimensão de Lula) que se vê na
uma contrariedade da massa. É como se alguns dias, a furar a greve e nós então. E eu contingência de enfrentar um ataque
tivesse aqui de lançar mão de toda sua dizia: eu não vou acabar com a greve, os tra- frontal de todo aparato do estado bur-
habilidade retórica e argumentativa para balhadores vão decidir por conta própria. Mas guês, como se trata no caso presente,
passar o recado de que a entrega à PF era é engraçado porque na derrota a gente necessariamente deve trabalhar no sen-
apenas o início de uma luta e não uma ganhou muito mais, sem ganhar econo- tido de contribuir para superar na clas-
derrota. Vale a pena acompanhar os prin- micamente, do que quando a gente ga- se operária uma consciência puramente
cipais trechos da longa argumentação: nhou economicamente. Significa que não é “trade-unionista”, sindicalista, de modo
..... eu es- dinheiro que resolve o problema de uma greve. a colocar a questão da elevação a uma
tou contando isso para tentar chegar ao que Não é 5%, não é 10%, é o que está embuti- consciência de classe, que se expressa
eu quero dizer para vocês. Em 1979, esse do     de teoria política, de conhecimento políti- necessariamente ao nível da totalidade e
sindicato fez uma das greves mais extraordi- co e de tese política numa greve.... Agora nós permite enfrentar diretamente a questão
nárias. Nós conseguimos fazer um acordo com estamos quase que na mesma situação, do poder, a questão do Estado, a questão
a indústria automobilística que foi, talvez, o quase que na mesma situação. Eu estou do caráter socialista do partido. Questões
melhor....Eu resolvi levar o acordo para a as- sendo processado e, eu tenho dito claramente, o que a radicalização da conjuntura volta a
sembleia.... Pois bem, nós começamos a co- processo do meu apartamento, eu sou o único colocar no cenário e que, cedo ou tarde,
locar o acordo em votação e cem mil pessoas, ser humano que sou processado por um apar- terão que ser enfrentadas.
no estádio da Vila Euclides, não aceitavam o tamento que não é meu.... Superar a política de conciliação de
acordo. Era o melhor possível.... Mas a peão- classes que levou o PT a uma situação
zada estava tão radicalizada que queria 83 ou A explicitação desta sequência nar- de extrema defensiva supõe enfrentar
nada.....E aí passamos um ano sendo chama- rativa acima é importante porque atesta estas questões fundamentais ao mesmo
dos de pelegos pelos trabalhadores…E eu ia na que há uma faceta positiva nesta ligação tempo que encaramos o desafio de rea-
porta de fábrica e ninguém parava...Nós leva- de Lula com o “modo sindical de fazer tar os laços com a classe trabalhadora
mos um ano para recuperar o nosso prestígio política” no sentido de que há uma preo- esgarçados nos últimos anos, tarefa em
na categoria. E eu fiquei pensando com ar de cupação de ligação permanente com as que felizmente vamos dando passos im-
vingança: os trabalhadores dizem que podem massas, com o mundo do trabalho, com portantes.

16 ESQUERDA PETISTA #9 - 2018 - 1


NACIONAL

De todo modo, estamos numa da- recurso a habeas-corpus ou uma solução De uma vez por
quelas situações em que o movimento por uma libertação próxima pelos tribu-
prático é fundamental e o instinto de clas- nais superiores, que alguns almejavam e todas é preciso
se aflora “naturalmente” frente aos ata- “previam” para dali alguns dias.
ques. E deste ponto de vista é importante A crença no “estado democrático
compreender que
frisar que foi a mobilização popular em de direito” foi maior que a compreensão não há garantias
São Bernardo do Campo e em todo o país de que o que há é um estado de exceção
que tornou possível transformar a prisão e um golpe em curso que não hesitará de liberdades
de Lula em um movimento que desmo- diante de qualquer obstáculo para impe- democráticas num
ronou parte das pretensões do golpismo. dir a candidatura de Lula.
Além disso, a resistência democrática no O fato é que passados mais de 120 “sistema de justiça”
Sindicato dos Metalúrgicos do ABC de- dias da prisão, Lula continua encarcera-
capturado pelos
monstrou que os principais fatores que do em Curitiba, sem perspectiva de liber-
podem pavimentar a derrota do golpismo tação próxima. Ao contrário, é patente interesses golpistas
são a mobilização popular, a organização a mobilização de todo aparato judiciário
da luta e a efetivação de medidas de de- para evitar sua libertação e sua partici-
e parte integrante da
sobediência civil contra o arbítrio. pação nas eleições, mesmo às custas da “lógica do golpe”
Desobediência civil que se manifes- subversão da própria lei.
tou, por exemplo, no simples fato de não Não obstante, apesar da campanha De uma vez por todas é preciso com-
entregar-se no prazo imposto por Moro midiática, do golpe, da condenação e da preender que não há garantias de liber-
(17 horas do dia 6 de abril), o que foi su- prisão, Lula segue liderando as pesquisas dades democráticas num “sistema de
ficiente para desencadear o nervosismo e de opinião e tem grandes chances de ven- justiça” capturado pelos interesses gol-
a histeria da mídia golpista e demonstrar cer as eleições de 2018. É por isso que os pistas e parte integrante da “lógica do
o potencial explosivo presente na situa- golpistas precisam impedir que Lula par- golpe”. Apenas uma mobilização popu-
ção, com a mobilização da tropa de cho- ticipe destas eleições. Não basta impedir lar de qualidade e intensidade superiores
que da PM paulista para as proximidades que Lula seja candidato; os golpistas pre- será capaz de furar este bloqueio.
do sindicato. cisam, também, impedir que ele participe Por enquanto, a tendência é que o
Potencial explosivo que voltou à tona da campanha eleitoral. Para isto, não é Tribunal Superior Eleitoral negue o regis-
na tarde do dia 7 de abril, em que cente- suficiente negar o registro da candidatu- tro da candidatura de Lula. Claro que se
nas de manifestantes, a maior parte deles ra. Os golpistas precisaram manter Lula fosse respeitada a legislação e a jurispru-
jovens, tentaram ainda impedir a entrega preso. Esta foi a decisão de Moro, do TRF- dência, Lula poderia disputar a eleição
de Lula, explicitando na prática os impas- 4, da turma de julgadores do STJ e do Su- e o deferimento ou indeferimento defi-
ses estratégicos envolvidos na situação. premo Tribunal Federal. nitivo do registro da candidatura ocor-
Impasse mais uma vez resolvido naque- As batalhas travadas nos tribunais reriam apenas no final da campanha ou
le momento pela ação do próprio Lula ao resultaram em vitórias do golpismo, a até mesmo depois do processo eleitoral.
romper o bloqueio com as próprias per- mais escandalosa delas sendo a deci- Mas nada indica que o TSE respeitará a
nas, num dos momentos mais dramáti- são relâmpago e completamente ilegal legalidade e a jurisprudência eleitoral lar-
cos do dia. Mas que continuam a pairar do presidente do TRF-4 que revogou a gamente aceita que concederia a Lula o
sobre o conjunto da situação. libertação de Lula, determinada pelo direito de concorrer.
A argumentação corrente no mo- desembargador Favreto em julgamen- Este conjunto de fatores demonstra
mento de maior tensão foi de que, além to de habeas corpus no dia 8 de julho, a justeza da linha política adotada pelo
de não haver correlação de forças para ocasião em que o juiz-tirano de Curiti- PT ao não aceitar a brutal violência da
um enfrentamento, era preciso evitar um ba se desmascarou irremediavelmente prisão de Lula, continuidade da violência
acirramento e um confronto porque isto e jogou às favas toda pretensão de, ao perpetrada pelo golpe de Estado de 2016,
implicaria numa decretação de prisão menos, “manter as aparências de im- cujo objetivo foi desencadear um ataque
preventiva de Lula, sem possibilidade de parcialidade”. sem precedentes nas últimas décadas aos

ESQUERDA PETISTA #9 - 2018 - 1 17


NACIONAL

direitos dos trabalhadores, às liberdades Sem Lula nas urnas, com a fraude A classe trabalhadora
democráticas e à soberania do país. consumada, o cenário mais provável é a
Mas as batalhas decisivas ainda eleição de um presidente golpista para sabe que Lula é
estão por vir, pois os golpistas seguem aprofundar o programa neoliberal. Por-
fortes e contam com poderosos instru- tanto, a melhor tática a adotar neste caso
a esperança para
mentos, inclusive a interferência direta é aquela que melhor nos posicione para derrotar o golpe
do imperialismo, para favorecer os seus fazer oposição, aquela que nos permita
intentos. Trata-se de manter e ampliar na deslegitimar desde antes e desde sempre e revogar suas
classe trabalhadora a força de nossa can- o governo resultante de uma fraude elei- medidas, a partir de
didatura para construir um ponto de não toral. Não se trata, portanto, de um “boi-
retorno e uma condição de vitória política cote às eleições”, mas sim de afirmar um um plano popular
e eleitoral. projeto e uma narrativa votando 13 para de emergência e
A classe trabalhadora sabe que presidente. Uma orientação tão extraor-
Lula é a esperança para derrotar o gol- dinária, quanto é extraordinária a situa- da convocação de
pe e revogar suas medidas, a partir de ção que estamos vivendo.
um plano popular de emergência e da Mas este cenário não é inevitável,
uma Assembleia
convocação de uma Assembleia Cons- nem tampouco está escrito de antemão. Constituinte. Lula é
tituinte. Lula é nosso candidato para Lula tem mais de 30% nas pesquisas de
valer e votaremos 13 no primeiro e no opinião porque representa a vontade de nosso candidato para
segundo turnos. largas parcelas da classe trabalhadora valer e votaremos
Nossos inimigos de classe sabem de derrotar o golpe e suas medidas. Há,
tanto quanto nós que somente com Lula portanto, uma enorme energia social que 13 no primeiro e no
temos condições de vencer e impor uma pode ser mobilizada nos próximos meses segundo turnos
derrota política e eleitoral ao golpe. com a classe trabalhadora se colocando
Por isso a grande burguesia brasilei- em movimento.
ra tentará, a todo custo, impedir a candi- Nesta hora o derrotismo e o fatalis-
daturade Lula. mo correspondem a uma capitulação sem
A eleição de 2018 será uma com Lula luta. Deixemos então o pessimismo no
e outra sem Lula. Com Lula livre e candi- mesmo lugar onde devem ficar as ilusões
dato, será uma eleição minimamente de- perdidas para quem as tinham e trave-
mocrática, uma disputa duríssima, mas mos o bom combate.
com chance de vitória para a esquerda.
Lula livre, Lula inocente, Lula presidente!
Sem Lula, a eleição será uma fraude e
uma afronta à democracia. LICIO LOBO – militante do PT de
Diadema, dirigente nacional da AE

18 ESQUERDA PETISTA #9 - 2018 - 1


SAÚDE

RESERVAS INTERNACIONAIS
e programa mínimo
Carlos Octávio Ocké-Reis

A utilização em caráter emergencial de parte das reservas


internacionais precisa ser debatida pelo PT com as frentes
populares, os partidos do campo democrático, popular e socialista,

N
os movimentos sociais e a juventude, buscando a
reconstrução de uma expressiva base de apoio social e
parlamentar em defesa da seguridade social.

a atual conjuntura
histórica, para acabar com o subfinancia-
mento do Sistema Único de Saúde, de-
vemos mobilizar os trabalhadores e seus
aliados para ganhar as eleições das for-
ças que sustentam o neoliberalismo com
mãos de ferro, cuja política econômica
acaba produzindo impactos negativos so-
bre o financiamento das políticas de saúde
e sobre as condições de vida da população.
Nesse sentido, é fundamental revogar a
Emenda Constitucional 95 – a qual, na
prática, reduz os investimentos públicos
e os gastos sociais, acentuando a privati-
zação do sistema de saúde e o quadro de
desigualdade da sociedade brasileira.
Em caráter emergencial, consideran-
do as elevadas reservas internacionais do
país e a estreita margem de manobra da
política econômica no curto prazo, o Par-
tido dos Trabalhadores precisa apresen-
tar em seu programa a possibilidade de
utilizar parte dessas reservas para forta-

ESQUERDA PETISTA #9 - 2018 - 1 19


SAÚDE

lecer o padrão de financiamento público prazo, as reservas internacionais podem para sairmos da estagnação e para revogar
e atender as demandas populares, pro- funcionar como mediação necessária en- a EC 95, a questão da reforma tributária
movendo, além dos gastos sociais, “[...] tre a economia (estagnação) e a política teria centralidade: ora, é preciso mudar a
investimentos em infraestrutura, que po- (fascismo) para barrar o avanço da direita composição da carga tributária, desone-
deriam movimentar a economia, gerando e do neoliberalismo. No ano passado, por rando as classes populares e médias, pena-
empregos, encomendas para a indústria exemplo, em audiência pública no con- lizadas por uma carga que incide sobre o
e [...] aumentar a produtividade” (Rodri- gresso nacional, os golpistas disseram que trabalho e sobre a produção, à medida que
gues, 2017). o SUS não precisava de recursos. Faltavam não se tributa a alta renda, especialmente
sim e boa parte de seus problemas de ges- a financeira, e o patrimônio.
Derrotar a austeridade fiscal tão decorriam exatamente dessa restrição No entanto, no curtíssimo prazo,
orçamentária, entre elas, aquela patroci- considerando uma vitória eleitoral, dado
A direita foi derrotada nas últimas nada nos municípios pela Lei de Respon- o grau de acirramento da luta de classes,
eleições presidenciais e a implantação sabilidade Fiscal. O nível de investimento existiriam provavelmente sérios obstá-
do seu projeto só foi possível fustigando era insuficiente, se comparado com outros culos no congresso nacional para: (i)
o estado democrático de direito e o orça- países, com o gasto privado per capita, ou aprovar reforma tributária progressiva;
mento da seguridade social. Depois do ainda, com a própria demanda por bens e (ii) renegociar a dívida pública a partir
golpe parlamentar em 2016, por meio da serviços públicos de saúde. de auditoria interna;; (iii) reverter as de-
aplicação da EC 95, as despesas primá- Como a economia brasileira continua sonerações fiscais – que chegaram a R$
rias foram congeladas por vinte anos, vi- patinando, o governo federal se encontra 277,1 bilhões em 2015; (iv) federalizar
sando garantir a apropriação de parcelas hoje com baixa capacidade de arrecada- a dívida de estados e municípios, dada a
crescentes do fundo público para fins de ção. Pior: se não bastasse a Desvinculação pressão do déficit primário; (v) recriar a
pagamento dos encargos financeiros da de Receitas da União – que teve ampliado Contribuição Provisória sobre Movimen-
dívida pública (juros e amortização). o percentual de 20% para 30% de todos os tação Financeira, que deveria incidir so-
A aplicação dessa política de auste- impostos e contribuições sociais federais bre depósitos ou movimentações bancá-
ridade fiscal assumiu contornos dramáti- até 2023, em vinte anos, a EC 95 retira do rias a partir de determinado valor, estabe-
cos (genocida), ameaçando a saúde como SUS mais de R$ 300 bilhões (Associação lecendo arrecadação compartilhada com
direito social: ao reduzir o tamanho do Brasileira de Economia da Saúde, 2017). estados e municípios, com a finalidade
Estado, ela acaba penalizando as classes Será necessário, portanto, elaborar um específica de financiar o SUS.
médias e populares, justamente os seto- programa mínimo, que defenda a sobera- Devem-se criar condições políticas, no
res sociais que mais precisam do SUS. nia nacional, o crescimento econômico, o médio prazo, que viabilizem tais medidas,
Nesse quadro, nossa tarefa será for- emprego e os direitos sociais. inclusive como engrenagem para a reto-
talecer o orçamento da seguridade social, mada do crescimento, uma vez que a não
ampliar o financiamento da saúde públi- Dilemas da política econômica tributação do patrimônio e da alta renda
ca e alargar a capacidade regulatória do acabam favorecendo o rentismo. Mas, sem
Estado sobre o mercado, nos comprome- Macroeconomistas de esquerda estão dúvida, as reservas internacionais estão ra-
tendo em nosso programa mínimo com a corretos ao serem cautelosos na aplicação pidamente ao alcance do presidente eleito,
consolidação dos pressupostos constitu- das reservas internacionais para alavanca- sem as chantagens do presidencialismo de
cionais do SUS (Ocké-Reis, 2017). gem do investimento público e dos gastos coalizão, atuando como instrumento obje-
sociais. Afinal, uma crise na balança de pa- tivo para alterar a correlação de forças em
Fortalecendo o estado brasileiro gamentos pode quebrar a economia brasi- favor das demandas populares, que repre-
leira, cada vez mais internacionalizada, em sentam a base social da futura hegemonia
O Brasil não retomará um novo ciclo cenário global instável e belicoso, que favo- – que será certamente fustigada pelas for-
de desenvolvimento, tampouco fortalece- rece a manipulação do câmbio por setores ças conservadoras e reacionárias dentro e
rá a industrialização e o mercado interno, do capital financeiro internacional e nacio- fora do país, a exemplo do que aconteceu
sem o apoio decisivo do Estado. No curto nal. Nesse contexto, reconhecemos que, depois da vitória da Dilma.

20 ESQUERDA PETISTA #9 - 2018 - 1


SAÚDE

Se não bastasse a
Desvinculação de
Receitas da União
– que ampliou de
20% para 30% de
todos os impostos
e contribuições
federais até 2023, em
vinte anos, a EC 95
retira do SUS mais de
R$ 300 bilhões

Reservas internacionais torno de US$ 30 bilhões (1,45% do PIB); Programa mínimo e seguridade social
e fundo público (ii) incluindo ou não as operações inter-
companhias, a dívida externa vencendo A direita já definiu sua agenda na
Segundo dados oficiais do Ban- em tese em 2018 varia, respectivamen- escalada golpista: “a segurança e o com-
co Central, o Brasil tem 380 bilhões de te, entre 103,1 bilhões a 145,8 bilhões de bate à corrupção”. A perseguição política
dólares em reservas (março de 2018). dólares, equivalente a aproximadamente e prisão de Lula são emblemáticas nesse
Com esse volume, em caso de vitória do 1/3 do valor total das reservas. sentido. Em contraposição, a seguridade
PT e das esquerdas, temos condições de Desse modo, considerando essas va- social deve ser escolhida como principal
suportar um ataque especulativo do im- riáveis econômicas e uma posição geopo- bandeira do PT e da esquerda, entre ou-
perialismo contra nossa economia e con- lítica relativamente favorável com o acú- tros, porque esse eixo de intervenção tem
tra nosso governo antes e depois das elei- mulo das reservas internacionais (Cf. o potencial de ampliar o grau de cons-
ções presidenciais. Frente Brasil Popular, 2017), a partir de ciência de classe da nossa base social e
Embora exista um alto grau de in- uma arquitetura institucional transpa- favorecer a ampliação do apoio das cama-
certeza na construção desse cenário, em rente e estatal, podemos aplicar parte das das médias da população.
especial os efeitos desse eventual ataque reservas nos bancos públicos, na Petrob- As pesquisas de opinião demons-
sobre a taxa de crescimento econômico, rás (Pré-Sal), na seguridade social e nas tram, há anos, que a saúde é um dos
a taxa de desemprego e a taxa de câm- políticas de saúde. Por que não aplicar principais problemas apontados pela
bio – efeitos, aliás, que reforçariam o ar- entre 10% das reservas (R$ 125 bilhões) sociedade brasileira. Priorizá-la nos for-
gumento em favor uso das reservas para em um fundo administrado pelo Tesouro talecerá na luta de massas e na disputa
estimular a atividade econômica – esta Nacional para patrocinar a infraestrutu- eleitoral contra os golpistas, os neolibe-
caracterização repousa em dois motivos ra, o emprego e os direitos sociais? As rais e os fascistas: o SUS lida com a vida
adicionais: (i) o Brasil fechou 2017 com reservas continuarão robustas e além e a morte, em um contexto de agrava-
um déficit em transações correntes de 9,7 do mais “reduz o custo de carregamen- mento das condições epidemiológicas;
bilhões de dólares, equivalente a 0,48% do to das reservas, não tem impacto sobre o reduz a desigualdade em contraponto à
Produto Interno Bruto e o Banco Central montante das dívidas bruta ou líquida, política de austeridade fiscal; a política de
espera um déficit maior nas contas exter- além de ajudar o crescimento” (Carneiro; saúde é intensiva em força de trabalho,
nas este ano, mas ainda com folga, em Mello, 2017). favorecendo a retomada do crescimento

ESQUERDA PETISTA #9 - 2018 - 1 21


SAÚDE

Sem derrotar a direita e o golpismo, a visão fiscalista, na qual


o fomento ao mercado de planos apareceu como solução
pragmática para desonerar as contas públicas, ampliará sua
hegemonia no Estado e na sociedade

econômico e a produtividade do trabalho social da propriedade, o planejamento e o


em novo ciclo de desenvolvimento. Essa mercado interno, desprivatizando o fun-
escolha nos permitirá acumular força do público e incorporando a sociedade ci-
para disputar hegemonia contra a direita, vil no processo decisório governamental.
mas será necessário organizar e mobili- Sem derrotar a direita e o golpismo,
zar a população, em conjuntura na qual a a visão fiscalista, na qual o fomento ao
esquerda se encontra em uma estratégia mercado de planos apareceu como solu-
defensiva, diante do golpe e da cruzada ção pragmática para desonerar as contas
moralista da operação Lava-Jato. públicas, ampliará sua hegemonia no Es-
tado e na sociedade. Não é à toa que há
Considerações finais consenso que os “maiores desafios (do
SUS) são políticos, pois supõem a garan-
Essa proposta, que preconiza a uti- tia do financiamento do subsistema pú-
lização em caráter emergencial de parte blico, a redefinição da articulação públi-
das reservas internacionais, precisa ser co-privada e a redução das desigualdades
debatida pelo PT com as frentes popula- de renda, poder e saúde” (Paim, 2013).
res, os partidos do campo democrático,
popular e socialista, os movimentos so- CARLOS OCTÁVIO OCKÉ-REIS é
ciais e a juventude, buscando a recons- economista e presidente da Associação
trução de uma expressiva base de apoio Brasileira de Economia da Saúde
social e parlamentar em defesa da segu- (ABrES).
ridade social. Deve-se lutar para ampliar
o financiamento, para melhorar a gestão
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
e para fortalecer a participação social do
SUS, mas, ao mesmo tempo, na crítica à ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ECONOMIA DA SAÚDE. Nota de Esclarecimento
à Sociedade Brasileira, 2017. Disponível em: <http://abresbrasil.org.br/no-
privatização, deve-se propor a criação de ta-de-esclarecimento-sociedade-brasileira.html>. Acesso em: 28 jul. 2017.
estruturas institucionais e mecanismos CARNEIRO, R.; MELLO, G. As reservas internacionais e os mitos da ortodoxia,
regulatórios que permitam atrair seg- 2017. Disponível em: <https://jornalggn.com.br/noticia/as-reservas-in-
ternacionais-e-os-mitos-da-ortodoxia-por-ricardo-carneiro-e-guilherme-
mentos da clientela da medicina privada -mello>. Acesso em: 10 abr. 2018.

para o SUS, bem como que permitam re- FRENTE BRASIL POPULAR. Plano popular de emergência, 2017. Disponível
em: <http://frentebrasilpopular.org.br/system/uploads/action_file_ver-
duzir o gasto dos trabalhadores, das fa- sion/b12a6f2a11ff2ece42ece882738bed2c/file/cartilh-corrigida-1.pdf>.
Acesso em: 1º ago. 2017.
mílias e dos idosos com planos de saúde,
OCKÉ-REIS, C. O. “Política social, desenvolvimento e cidadania: a história
serviços médico-hospitalares e remédios. também anda para trás”. In: RODRIGUES, P. H. de A.; SANTOS, I. S. (Org.). Polí-
ticas e riscos sociais no Brasil e na Europa: convergências e divergências. Rio de
A realização dessa tarefa extraordi- Janeiro: Cebes:Hucitec Editora, 2017.
nária tem um ponto de apoio importante RODRIGUES, P. H. A. Porque há um elevado custo de manutenção das reser-
na cultura socialista: o debate em torno vas internacionais brasileiras e o paradoxo da parcimônia de Keynes, 2017.
Disponível em: <http://cebes.org.br/2017/09/porque-ha-um-elevado-cus-
da transição passa pela aplicação de cer- to-de-manutencao-das-reservas-internacionais-brasileiras-e-o-paradoxo-
-da-parcimonia-de-keynes/>. Acesso em: 10 abr. 2018.
to capitalismo de Estado, que valorize a
PAIM, J. S. A Constituição cidadã e os 25 anos do Sistema Único de Saúde
solidariedade entre as nações, a função (SUS). Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 29, n. 10, 2013.

22 ESQUERDA PETISTA #9 - 2018 - 1


EDUCAÇÃO

Um olhar sobre a evolução


do FINANCIAMENTO DA
EDUCAÇÃO nos últimos anos
José Marcelino de Rezende Pinto

A viabilização do PNE 2014-2024 passa pela reversão das políticas


recessivas, pela revogação da EC 95/2016 e pela mudança do papel da
União no financiamento da educação básica, além de desmontar a política
de destinação de recursos públicos para o setor privado

E
mbora todos os governos reite-
rem a educação como prioridade,
o teste da verdade se dá por meio
da análise dos gastos educacio-
nais. Nesse breve artigo preten-
de-se analisar com mais detalhes
os gastos do governo federal, cujos dados são mais
acessíveis, mas também apresentar a evolução dos
recursos propiciados pela política de fundos (Fun-
def e Fundeb), principal fonte de financiamento
da educação básica de estados e municípios. Um
elemento importante também é ressaltar que os
gastos federais com educação correspondem a
apenas um quinto do total gasto com educação, o
que já é um problema, uma vez que mais da me-
tade da receita tributária líquida fica com a União.
Exatamente em função da baixa participação do
governo federal no financiamento da educação é
que, tanto no Plano Nacional de Educação (PNE)
2001-2011, com mais clareza, como no PNE 2014-
2024, com menor ênfase, é ressaltada a importân-
cia de se aumentar a participação da União no se-
tor para a viabilização das demais metas do plano.

ESQUERDA PETISTA #9 - 2018 - 1 23


EDUCAÇÃO

Contudo, com a EC 95/2016 proposta e fixada em valores absolutos na proposta


aprovada pelo governo golpista Temer/ original, para um mínimo de 10% da A mobilização social
Meirelles, que congela os gastos primá- contribuição de estados e municípios, foi fundamental
rios da União por 20 anos, praticamente como ficou na redação final.
se inviabiliza o cumprimento das metas A mesma mobilização social foi para restringir o uso
do atual PNE. também fundamental para restringir o
de recursos que já
uso de recursos que já eram destinados
A evolução dos gastos federais com à educação na complementação a ser eram destinados
Manutenção e Desenvolvimento do feita pela União. Assim, vetou-se o
Ensino (MDE) uso do salário-educação, bem como
à educação na
limitou-se o uso dos recursos vinculados complementação a
Tomando como referência o período (previstos no art. 212 da CF) a 30% dessa
2000 a 2016, o que se constata em relação complementação. Medidas como essa ser feita pela União.
aos gastos federais com Manutenção e garantiram a entrada de dinheiro novo Assim, vetou-se
Desenvolvimento do Ensino (MDE)? da União no financiamento da educação
Entre 2000 e 2005, que abrange parte do básica. Não obstante esse crescimento o uso do salário-
governo FHC e início do governo Lula, de 28 vezes na complementação, cabe
comentar que ela corresponde apenas
educação, bem como
os gastos federais ficaram estabilizados
na faixa de R$ 20 bilhões, em valores de a 0,2% do Produto Interno Bruto (PIB), limitou-se o uso dos
2017, corrigidos pelo IPCA. Já a partir índice que deveria ser quintuplicado para
de 2006 inicia-se um forte crescimento garantir o CAQi (Custo Aluno Qualidade
recursos vinculados
na despesa, atingindo o patamar de inicial), instrumento elaborado pela (previstos no
R$ 78 bilhões, em 2012, ou seja: uma CNDE, aprovado pelo Conselho Nacional
ampliação de quase quatro vezes. A de Educação (Parecer CNE CEB 08/2010) art. 212 da CF)
partir de então inicia-se um movimento e inscrito no PNE 2014-2024 (meta a 30% dessa
de queda, atingindo-se R$ 61 bilhões, 20) e que tem por objetivo garantir
em 2015, com uma leve recuperação condições básicas de funcionamento complementação
para R$ 64 bilhões, em 2016. Foi essa
ampliação no gasto no período 2006-
2012 que viabilizou a expansão da rede
federal de ensino e vários programas
na educação básica, com destaque
para a mudança do papel da União no
complemento do Fundeb, que saiu
de um valor inferior a R$ 0,5 bilhão,
para mais de R$ 14 bilhões, em 2016.
É verdade que para essa ampliação foi
fundamental a mobilização social através
do movimento “Fundeb Pra Valer”
capitaneado pelas entidades articuladas
em torno da Campanha Nacional pelo
Direito à Educação (CNDE), mobilização
que assegurou a inclusão das creches
no novo fundo, o que não constava no
projeto original do Executivo, bem como
mudar a complementação da União, Ato do movimento “Fundeb pra valer”, em Brasília, agosto 2005

24 ESQUERDA PETISTA #9 - 2018 - 1


EDUCAÇÃO

(salários, alunos/turma, equipamentos, avaliar a evolução do gasto em relação Os recursos para a educação básica
infraestrutura) para todas as escolas ao PIB. Aqui, mais uma vez se constata propiciados pela política de fundos
públicas do país, nos termos do §1º do uma estabilização em torno de 0,5% do (Fundef/Fundeb)
art. 211 da Constituição Federal e do PIB de 2000 a 2005, iniciando-se a partir
inciso IX do art. 4º da Lei de Diretrizes e daí um crescimento até atingir o patamar Inicialmente, é importante dizer
Bases da Educação (LDB). de 1,16% do PIB em 2012, caindo que os recursos para a educação básica
Aspecto a se comentar sobre esse para 0,91% em 2015, com uma leve não são apenas aqueles propiciados
tempo de “fartura de recursos” foi recuperação para 0,98%, em 2016. Esse, pelos fundos contábeis. Essa política
que a opção se deu no lançamento de sem dúvida alguma, foi o grande legado foi implantada, em 1997, com a criação
programas com a marca de governo e não dos anos de crescimento dos governos do Fundef, extinto em 2006, quando
como políticas de Estado. Uma parte Lula/Dilma, dobrar o gasto federal com foi substituído pelo Fundeb, fundo
significativa do aumento de recursos ensino frente ao PIB, mesmo em um também provisório, com término
na educação básica se deu através momento de PIB em crescimento. E o previsto para 2020. Contudo, quando
de transferências voluntárias. Isso grande risco que o país vive é exatamente são analisados os gastos educacionais
facilitou muito para o governo golpista a destruição desse legado por meio da dos governos estaduais e de boa parte
extingui-los. Se os bilhões usados EC 95/2016. Simulações feitas pelo autor dos municípios brasileiros (excluídas as
como transferência voluntária tivessem apontam que, se nos próximos 20 anos capitais e alguns mais populosos) o que
sido incorporados ao Fundeb, como a economia crescer a uma taxa de 3% se constata, em especial com a entrada
aumento da complementação da União, ao ano, e as despesas permanecerem em vigor do Fundeb, em 2007, é que
a dupla Temer/Meirelles teria muito congeladas (elas podem cair!), o gasto boa parte do que gastam com educação
mais dificuldade em implementar suas com o setor tende a baixar para 0,6% básica advém basicamente do fundo,
maldades. do PIB, jogando fora todo o esforço da até porque, no caso dos estados, muitas
Outro ponto importante quando se última década. vezes os recursos da vinculação além
analisa a evolução dos gastos federais Não se pode, contudo, avaliar do Fundeb são destinados à educação
com educação é que, no período, o o gasto federal com educação, sem superior, ou mesmo para o pagamento
PIB também cresceu, e como a receita chamar atenção para o grande subsídio de pessoal aposentado, prática ilegal,
de impostos depende diretamente da que foi dado ao setor privado de ensino mas que espera uma decisão do Supremo
economia, particularmente do consumo superior, por intermédio do Prouni (com Tribunal Federal, sempre ele.
das famílias, uma parte significativa menor intensidade) e, principalmente, Também é importante comentar que
da ampliação das despesas com MDE do FIES. Para se ter uma dimensão dos na passagem do Fundef para o Fundeb
decorreu exatamente dessa melhoria recursos públicos mobilizados por esse houve uma ampliação dos recursos de
dos indicadores econômicos. Inclusive programa basta dizer que em 2016, estados e municípios subvinculados
porque algumas das medidas adotadas segundo estudo feito pelo Ministério ao fundo (oriundos da vinculação já
visavam exatamente melhorar o poder da Fazenda, eles corresponderam a R$ existente, ou seja, sem dinheiro novo),
de compra das famílias mais pobres. 32,3 bilhões, incluindo os subsídios bem como da complementação da
Quando as famílias mais pobres implícitos. Esse valor supera em R$ 5 União, mas também houve um aumento
melhoram sua renda, ampliam seu bilhões os gastos federais com educação no número de alunos abrangidos
consumo, com impacto imediato na superior (MDE) no mesmo ano, que pelo fundo, que envolvia apenas o
arrecadação. Já os ricos, que possuem foram de R$ 27,1 bilhões. (Em 2011, ensino fundamental (sem que fossem
quase tudo o que necessitam, tendem a o FIES havia mobilizado “apenas” R$ considerados os alunos de Educação de
entesourar, ou a gastar no exterior, onde 1,9 bilhão.) Em cinco anos, carrearam- Jovens e Adultos-EJA na contabilização,
geram empregos e receitas para o fundo se para o setor privado recursos anuais veto de FHC, sempre ele), no caso
público do país que visitam. superiores àqueles destinados a uma do Fundef; passando a atingir toda
Assim, para ver se houve de fato rede que tem mais de dois séculos de a educação básica com o Fundeb.
prioridade com a educação, é importante existência. Portanto, para analisar a evolução dos

ESQUERDA PETISTA #9 - 2018 - 1 25


EDUCAÇÃO

recursos o mais adequado é considerar e serviços. Portanto, políticas recessivas, educação frente ao PIB, o fato de a União
o recurso disponível por aluno. Quando que foram fortemente induzidas desde a ser responsável por apenas 20% do gasto
analisamos essa evolução, corrigindo gestão de Joaquim Levi e acentuadas com com educação é inaceitável.
os valores para 2017 (IPCA), constata- Meirelles, têm efeitos desastrosos para Finalmente, é preciso desmontar a
se um crescimento significativo, saindo estados e municípios, que são os principais política de destinação de recursos públicos
de R$ 1.416/aluno, em 1998, ano em responsáveis por manter financeiramente para o setor privado, particularmente
que o Fundef passou a valer para todo o a educação básica no Brasil. Ao longo de através do FIES e do Pronatec, que
Brasil, para R$ 3.695/aluno, em 2016, ou sua existência, o Fundef oscilou em torno transformou, em especial os alunos
seja: 2,6 vezes. Um dado preocupante, de 1,5% do PIB, enquanto o Fundeb situa- da educação superior, em vítimas de
contudo, é que se constata em plena se desde sua implantação plena (2010) na capital sanguessuga, especulador, que
vigência do PNE 2014-2024, quando se faixa de 2,2% do PIB. Em 2016, seu valor está destruindo inclusive as instituições
esperava uma ampliação das matrículas frente ao PIB cresceu para 2,3%, mas não privadas mais tradicionais e com algum
no Fundeb, uma queda nessas porque os recursos aumentaram e sim compromisso com o ensino, restando
matrículas. Observa-se que os fundos porque o PIB caiu. àqueles que continuam sendo atraídos
inicialmente estimulam uma ampliação, para essas arapucas, via farta e enganosa
mas depois a situação se inverte, como Breve comentário pensando na propaganda governamental, um diploma
mostra o gráfico abaixo. Conape que nada representa em termos de
A expansão no período de 2006 a A viabilização do PNE 2014-2024 passa formação ou inserção profissional.
2009 é explicada, como já comentado, pela reversão das políticas recessivas, pela E o mais grave de tudo é ver a
pela ampliação das matrículas abrangidas revogação da EC 95/2016 e pela mudança educação do país comandada por um
pelo Fundeb, frente ao Fundef. do papel da União no financiamento da partido, o PSDB da secretária-executiva
Ao se analisar os recursos totais educação básica, com a implementação do MEC, que sucateou a rede federal nos
do Fundeb verifica-se que houve um imediata do CAQi como instrumento anos FHC e que vem destruindo a rede
crescimento real até 2014, quando incorporado ao Fundeb, única forma de estadual paulista, que já foi exemplo para
também se iniciou uma queda provocada estimular os entes federados a ampliar o país, desde 1995.
pela já comentada recessão econômica. as matrículas na educação básica em Nesse ano de 2018 é fundamental
O efeito do ciclo econômico é mais forte consonância com as necessidades do fazer um balanço fundamentado e corajoso
no Fundeb, que depende basicamente país expressas no plano. Cabe também dos acertos e erros das últimas gestões do
do ICMS, um imposto cuja receita é dizer que, não obstante o grande esforço PT, identificando os verdadeiros aliados,
fortemente vinculada ao consumo de bens feito para aumentar o gasto federal com aprendendo a ouvir as críticas que vêm de
dentro do partido, assim como aquelas de
outros partidos e de setores da sociedade
historicamente compromissados com as
lutas por um país mais justo e igualitário.
Lembro-me, estudante da USP, em 1978,
coletando assinaturas para a fundação
do partido. Era grande o entusiasmo e
a motivação de todos. O que fazer para
resgatar aquele “espírito do tempo”?

JOSÉ MARCELINO DE REZENDE PINTO


é professor titular do Departamento de
Educação, Informação e Comunicação
da Faculdade de Filosofia, Ciências
e Letras de Ribeirão Preto, da
Fonte: INEP. Elaboração própria Universidade de São Paulo

26 ESQUERDA PETISTA #9 - 2018 - 1


QUESTÃO AGRÁRIA

A AGRICULTURA
FAMILIAR na berlinda
Catia Grisa

O fortalecimento econômico e político do agronegócio (muito superior


ao fortalecimento da própria agricultura familiar) se manifestou em
diversos territórios, e as disputas por terra (com repercussões no

A
preço da mesma) e pelos recursos naturais incrementam
os conflitos agrários e socioambientais, tornando mais
vulnerável a reprodução social de comunidades tradicionais

vançamos no reco- Sustentável dos Territórios Rurais (Pro- cidadania (a começar pelo acesso a do-
nhecimento político e institucional e na nat), o Programa de Agroindustrializa- cumentos pessoais básicos, como a docu-
melhoria das condições de vida da agri- ção da Agricultura Familiar e o Programa mentação da trabalhadora rural – isto no
cultura familiar brasileira nos últimos Arca das Letras são alguns exemplos de século XXI!); reconhecimento da diver-
15-20 anos, mas este processo foi extre- ações criadas ainda em 2003. Outros pro- sidade produtiva, socioeconômica e cul-
mamente frágil, seja em termos políti- gramas e instrumentos foram criados em tural da agricultura familiar (ainda que
cos, seja em termos socioeconômicos. É anos seguintes, com destaque para a Lei com limitações!); e de reconhecimento
sobre este tema e estas contradições que da Agricultura Familiar (Lei nº. 11.326) da desigualdade enfrentada por mulhe-
este texto procura discutir. instituída em 2006, que demarcou o lu- res e jovens e da necessidade de ações
A criação do Programa Nacional de gar da agricultura familiar na estrutura específicas.
Fortalecimento da Agricultura Familiar do Estado brasileiro e ofereceu oportu- Mas não houve mudanças apenas
(Pronaf), em 1996, abriu espaço para a nidades para avanços em diversas áreas nas ações do Estado. Houve mudanças
criação de um amplo conjunto de políti- (ainda que seu potencial não foi aprovei- também na forma de se fazer as políti-
cas públicas para a agricultura familiar, tado). cas para a agricultura familiar. O “trân-
o qual ganhou fôlego a partir de 2003, Ao longo desta trajetória foram sito institucional” de representantes
aproveitando um novo contexto político criadas e fortalecidas ações de apoio e dos movimentos sociais e sindicais da
(eleição de Lula). O Plano Safra da Agri- segurança à produção agrícola; apoio à agricultura familiar para dentro do Es-
cultura Familiar, o Programa de Aquisi- comercialização; reconhecimento das tado; os diálogos e negociações para a
ção de Alimentos (PAA), o Programa Um atividades não-agrícolas; melhorias na definição dos Planos Safra da Agricul-
Milhão de Cisternas (P1MC), o Programa infraestrutura dos estabelecimentos, dos tura Familiar; o fortalecimento do Con-
Nacional de Habitação Rural (PNHR), o domicílios e de projetos territoriais; me- selho Nacional de Segurança Alimentar
Programa Nacional de Desenvolvimento lhorias nas condições de vida; acesso à e Nutricional (CONSEA) e do Conselho

ESQUERDA PETISTA #9 - 2018 - 1 27


QUESTÃO AGRÁRIA

Um novo momento se
delineava para a agricultura
familiar e para o debate sobre
desenvolvimento rural no
Brasil. A agricultura familiar
ganhava espaço institucional
e o desenvolvimento rural,
entendido não como sinônimo
de agrícola mas em uma
perspectiva multidimensional,
ganhava reconhecimento
Redução da pobreza promoveu “movimentos” nas classes econômicas no meio rural

Nacional de Desenvolvimento Rural Sus- -se dizer que o rural como um “espaço e servaram que pobreza que atingia quase
tentável e Solidário (CONDRAF); a rea- modo de vida”, tal como afirma a soció- 50% dos estabelecimentos, em 2003, caiu
lização de diversas conferências (Confe- loga Maria de Nazareth Wanderley, aos para próximo a 25% em 2013. No Nordes-
rência Nacional de Segurança Alimentar poucos se manifestava nas ações do Esta- te, a pobreza entre as famílias agrícolas
e Nutricional, Conferência Nacional de do. A construção e reforma das casas (de caiu de 65% para 36%, e a extrema pobre-
Desenvolvimento Rural Sustentável e acordo com os diferentes modos de vida); za caiu de 30% para 8%.
Solidário, e Conferência Nacional de As- o reconhecimento do trabalho e dos pro- Respondendo à redução da pobreza,
sistência Técnica e Extensão Rural); e as dutos das quebradeiras de coco babaçu e observamos “movimentos” nas classes
parcerias entre Estado e sociedade civil das catadoras de mangaba; as políticas e econômicas no meio rural. De acordo com
na implementação das políticas públicas ações para quilombolas e indígenas (ain- estudo de Neri, Melo e Monte (2012), a
são alguns elementos que elucidam as da que com limitações!); e a promoção classe C (R$ 1.126,00-R$ 4.854,00) – co-
mudanças na forma de atuação do Esta- dos “talentos do Brasil Rural” na produ- nhecida como a classe média – passou de
do. Estes diferentes espaços permitiam a ção de artesanato e produtos de qualida- 20,6% da população em 2003 para 35,4%
emergência do diálogo, do conflito, das de diferenciada indicavam que o rural e as em 2009, um crescimento de 71,8%. A
desigualdades, das reivindicações, das contribuições da agricultura familiar não Classe D (R$ 750,00-R$1.126,00) cresceu
cobranças e contribuíam para que as po- podem ser expressas apenas em termos 13%, respondendo por 30,2% da popula-
líticas fossem sendo ajustadas de acordo de “saldo da balança comercial”. ção rural, e a classe E (R$ 0-R$ 750,00),
com as especificidades e diversidade da Este reconhecimento político da por sua vez, caiu 8,3% no mesmo período.
agricultura familiar (em um processo que agricultura familiar também foi se mani- Melhorias na renda tornavam-se visíveis.
é sempre desafiador e inacabado). festando em dados concretos, a começar Confluente com estas informações,
Um novo momento se delineava para pela redução da pobreza e da extrema observamos também que a segurança ali-
a agricultura familiar e para o debate so- pobreza. De acordo com informações da mentar e nutricional melhorou no meio
bre desenvolvimento rural no Brasil. A PNAD e MDS, a pobreza rural que esta- rural. Em 2004, 56,2% dos domicílios
agricultura familiar ganhava espaço ins- va presente em 49% dos estabelecimen- rurais encontravam-se com segurança
titucional e o desenvolvimento rural, en- tos em 2002 caiu para 20,2% em 2014, e alimentar e em 2013 este percentual ele-
tendido não como sinônimo de agrícola a extrema pobreza passou de 21,8% para vou-se para 64,7%. Neste mesmo perío-
mas em uma perspectiva multidimen- 7,6%. Ao analisar os estabelecimentos do, a insegurança alimentar moderada
sional, ganhava reconhecimento. Pode- agrícolas, Soares et al. (2016) também ob- reduziu-se de 14% para 8,4% e a insegu-

28 ESQUERDA PETISTA #9 - 2018 - 1


QUESTÃO AGRÁRIA

rança alimentar grave de 9,6% para 5,5%.


Relacionado a isto, não poderíamos dei-
xar de mencionar como extremamente
significativo o fato do Brasil ter saído do
Mapa da Fome elaborado pela FAO em
2014. Isto significa que o Brasil tinha me-
nos de 5% da sua população em situação
de subalimentação.
Conjuntamente com estes dados,
temos um conjunto de resultados intan-
gíveis. Diversos pesquisadores do mundo
rural mencionam que houve mudanças
na autoestima das famílias rurais. Outros
ilustram tais processos citando que, mes-
mo no período da maior seca vivenciada
por algumas regiões do nordeste brasi-
leiro, não houve a ocorrência de “saques
alimentares” e do flagelo da fome. Nes-
tes casos, não estamos falando de apenas
acesso à alimentação, mas de reconstru-
ção da cidadania.
No entanto, o cenário de avanços
vem se alterando nos últimos três anos,
demonstrando o quanto o reconhecimen- ria mesmo uma secretaria e a qual órgão Diante do novo
to político e institucional e a melhoria das estaria vinculada, sendo finalmente atre-
condições de vida da população rural são lada à Casa Civil da Presidência da Repú-
contexto político,
frágeis e vulneráveis. A crise político-eco- blica. De uma estrutura ministerial pas- que usa o discurso
nômica vivenciada pelo Brasil desde 2015 sa-se a uma secretaria, o que minimiza o
(extremamente
e o golpe de 2016 são elementos funda- poder político e institucional da agricul-
mentais para compreender este processo. tura familiar, e fragiliza a capacidade de controverso) da
A crise do contexto internacional (desde articulação política dos atores (políticos e necessidade de ajustes
2008) repercutida na crise econômica na- burocratas) vinculados a ela. Mais do que
cional que, por sua vez, foi reforçada pela uma simples mudança institucional, isto nas contas públicas,
crise política, já tinha ecoado nas políticas repercute no lugar da agricultura familiar diversas políticas para
para a agricultura familiar e de desenvol- na estratégia de desenvolvimento do país
vimento rural com a redução de recursos, e nas políticas públicas direcionadas para
a agricultura familiar
mas o Golpe de 2016 foi mais fundo na a categoria social. foram paralisadas,
desestruturação da arquitetura institu- Diante do novo contexto político,
minimizadas, colocadas
cional que sustentava estas políticas. que usa o discurso (extremamente con-
O símbolo maior destas mudanças troverso) da necessidade de ajustes nas em revisão ou
foi a extinção do Ministério do Desenvol- contas públicas para retomar a confiança modificadas
vimento Agrário e a criação, em seu lu- dos agentes econômicos e a capacidade
gar, da Secretaria Especial da Agricultura de investimento, diversas políticas para
Familiar, não sem um período de indefi- a agricultura familiar (e poderíamos falar
nições e incertezas institucionais. Por al- o mesmo para diversos outros setores!)
guns meses, ficamos sem saber se have- foram paralisadas, minimizadas, coloca-

ESQUERDA PETISTA #9 - 2018 - 1 29


QUESTÃO AGRÁRIA

das em revisão ou modificadas. Podemos as políticas. Para ilustrar, cita-se que, pela
citar: a) a paralisação das políticas territo- primeira vez desde o início da elaboração
riais; b) a redução expressiva em recursos dos Planos Safra da Agricultura Familiar
de políticas públicas, a exemplo do PAA, em 2003, a Confederação Nacional da
P1MC, Programa de ATES (Assessoria Agricultura (CNA) apresentou propostas
Técnica, Social e Ambiental à Reforma para o planejamento setorial 2017/2018,
Agrária) e Programa de Assistência Téc- enquanto houve pouco diálogo com mo-
nica e Extensão Rural (ATER), Programa vimentos sociais e sindicais da agricul-
Nacional de Educação na Reforma Agrá- tura familiar que historicamente partici-
ria (Pronera), Programa Bolsa Família, e param do processo. Ademais, não foram
Programa Nacional de Habitação Rural mais realizadas conferências, e a atuação
(PNHR), sendo que tais reduções não dos próprios conselhos foi enfraquecida.
são conjunturais, inserindo-se em uma Desde o afastamento da Presidente Dil-
perspectiva de longo prazo com a Emen- ma em maio 2016 até julho de 2018 fo-
da Constitucional nº 95 de dezembro de ram realizadas apenas duas reuniões do
2016, também conhecida como “PEC do Conselho Nacional de Desenvolvimento
teto dos gastos públicos”, ou simples- Rural Sustentável -CONDRAF (em com-
mente “PEC da morte”; c) as revisões e paração com uma média de 4,5 reuniões
perdas de direitos presentes em marcos ordinárias e extraordinárias anuais no pe-
regulatórios importantes, como a legisla- ríodo 2004/2015), e houve mudanças em
ção trabalhista, previdenciária, e de com- seus normativos. Por meio do Decreto nº
bate ao trabalho escravo contemporâneo; 9.186/2017 (sob contestação atualmente
d) as mudanças nas políticas de reforma na Câmara dos Deputados), foram mi-
agrária e regularização fundiária, visan- nimizadas as competências do Conselho
do colocar novas áreas à disposição do nos temas da pobreza rural, desigualda-
mercado e da iniciativa privada, ao mes- de de renda, gênero, geração, etnia, entre Após o golpe, houve
mo tempo em que minimizam a criação outros, e no acompanhamento e monito-
de assentamentos de reforma agrária e a ramento dos Planos e Políticas Nacionais pouco diálogo com
atuação dos movimentos sociais; e, e) o de Desenvolvimento Rural Sustentável e movimentos sociais
enfraquecimento político da própria no- Solidário e da Assistência Técnica e Ex-
ção de agricultura familiar, por meio do tensão Rural e Reforma Agrária; o Conse-
e sindicais da
Decreto nº 9.064/2017, que introduziu lho não ficará mais responsável por con- agricultura familiar
uma nova noção – Unidade Familiar de vocar e coordenar a Conferência Nacional que historicamente
Produção Agrária – em detrimento da no- de Desenvolvimento Rural Sustentável e
ção de agricultura familiar. Ademais, para Solidário; e a coordenação do mesmo será eram ouvidos na
além destas mudanças nas políticas para pelo Secretario Nacional da SEAD, o qual elaboração do Plano
a agricultura familiar, poderíamos citar selecionará e designará os representantes
modificações em outras políticas que afe- da sociedade civil.
Safra. Ademais, não
tam a sociedade brasileira como um todo, Refletindo a crise econômica e as mu- foram realizadas
impactando igualmente essa categoria so- danças no contexto político e institucio-
novas conferências
cial e o meio rural, como a redução nos nal (do rural e de outras áreas), os temas
investimentos em educação e em ciência da fome e da pobreza voltaram à pauta da e a atuação dos
e tecnologia, e a revisão de direitos e polí- sociedade brasileira e o retorno ao mapa conselhos setoriais
ticas para as mulheres. da fome da ONU ronda o país. Diversas
Acompanhando as mudanças nas po- reportagens de jornal e o próprio diretor
foi enfraquecida
líticas, também mudou a forma de se fazer geral da FAO explicitaram, recentemente,

30 ESQUERDA PETISTA #9 - 2018 - 1


QUESTÃO AGRÁRIA

tal preocupação. Dados recentes organi- mangaba, para a valorização da biodi- ternacional e que tiveram repercussões
zados por Francisco Menezes e Paulo Ja- versidade... para a compreensão do rural na economia nacional e na capacidade de
nuzzi também mostram o crescimento da como um espaço e modo vida. Prevalece intervenção do Estado, gostaria de men-
extrema pobreza no país em 2015 e 2016, a interpretação do rural enquanto um re- cionar alguns elementos políticos.
sendo que nestes dois anos regresssamos curso produtivo, e valores conservadores Primeiro, como já mencionado, são
ao percentual verificado em 2006. De e violentos ganham expansão territorial. opções políticas (não técnicas, de redu-
acordo com o estudo, entre 2014 e 2016, De acordo como o mapa “Massacres no ção de gastos públicos!) que levaram à
houve um aumento de 93% na pobreza Campo” da CPT, só em 2017 foram assas- extinção do MDA, à revisão de direitos e
extrema passando de 5,1 milhões para 10 sinados nove posseiros em Colniza (MT); a corte de recursos nas políticas públicas.
milhões de pessoas. Em relação à pobre- dois trabalhadores em Vilhena (RO); 10 Mas também há fatores que foram
za, em 2016 voltamos a ter 21 milhões de trabalhadores rurais sem terra em Pau gestados nos próprios governos Lula e
pessoas nesta condição, o mesmo equiva- D’Arco (PA); e oito quilombolas em Len- Dilma. Se a agricultura familiar ganhou
lente a 2008. Ainda não há dados para o çois (BA), totalizando 29 trabalhadores! reconhecimento político e institucio-
espaço rural, mas, pelos diversos elemen- Mas não caminhávamos no sentido nal ao longo destes governos e viu os
tos já citados aqui, provavelmente obser- do reconhecimento político e institucio- recursos aplicados na categoria social
varemos impactos similares. nal da agricultura familiar, dos direitos aumentarem, o mesmo pode ser dito
Acompanhando este cenário, temos dos povos e comunidades tradicionais com relação ao setor do agronegócio.
a incidência da violência e do incremento e da melhoria das condições de vida no O Estado retomou os investimentos no
de valores conservadores no meio rural, meio rural? Por que estes processos fo- agronegócio, dando-lhe a responsabili-
os quais resultam em processos bastan- ram extremamente frágeis? Por que as dade de contribuir com o crescimento
te articulados. O crescimento da deman- políticas e as institucionalidades para econômico, com a balança comercial e
da por commodities e pela exploração a agricultura familiar não tiveram sus- com a geração de divisas. Não são ra-
dos recursos naturais, desde o início dos tentação e se esvaeceram? Não tenho a ros os argumentos (questionáveis!), em
anos 2000, levou a um incremento da pretensão de responder todas estas ques- diversos espaços, de que o “agronegó-
demanda por terra, repercutindo (algo tões, mas gostaria de pontuar alguns cio sustenta a economia brasileira” e de
já observado há mais tempo) nas distin- elementos que são, na minha avaliação, que ele é “o celeiro do mundo”. Todo
tas formas de conflitos e violências. Para importantes. Para além de elementos que este crescimento e esta retórica enalte-
ilustrar citamos o caso da região da Ama- decorrem da conjuntura econômica in- ceu o agronegócio na sociedade brasi-
zônia Legal, responsável por 44% dos
conflitos pela posse na terra ocorridos no
Brasil entre 2000 e 2015. Nesta região, de
acordo com a Comissão Pastoral da Terra
(CPT), o percentual de conflitos agrários
cresceu 50% entre 2008 e 2015.
Por sua vez, a expansão do agrone-
gócio, a exacerbação de sua contribui-
ção na balança comercial brasileira, o
incremento da demanda pela terra e o
contexto de crise econômica desde 2015,
levam à valorização exclusiva dos agri-
cultores considerados “produtivos” (Sol-
dera, 2017) e à prevalência da dimensão
estritamente agrícola do rural. Neste
processo, não há espaço para a valoriza-
ção dos indígenas, dos quilombolas, das
quebradeiras de coco, das catadoras de Cresce a violência e o incremento de valores conservadores no meio rural

ESQUERDA PETISTA #9 - 2018 - 1 31


QUESTÃO AGRÁRIA

leira e no congresso nacional. Estudo


da Pública, em 2016, apontava 207 de-

Trabalhadores do Campo - Óleo s/Tela, 2014, de Flávio Scholles, Morro Reuter/RS//Brasil


putados vinculados à bancada ruralista,
uma das maiores da Câmara dos Depu-
tados, sendo reconhecida como um dos
“maiores partidos da Câmara”.
Este fortalecimento econômico e po-
lítico do agronegócio (muito superior ao
fortalecimento da própria agricultura fa-
miliar) se manifestou em diversos terri-
tórios, e as disputas por terra (com reper-
cussões no preço da mesma) e pelos re-
cursos naturais incrementam os conflitos
agrários e socioambientais, tornando mais
vulnerável a reprodução social de comu-
nidades tradicionais. Ou seja, ao mesmo
tempo em que avançamos nas políticas
para a agricultura familiar, segmentos
mais vulneráveis da categoria social foram da Agricultura Familiar e de avanços em papel do Estado no desenvolvimento. A
impactados pelo avanço do agronegócio. termos de infraestrutura e serviços, pes- construção de um sistema agroalimentar
Ademais, quando chegou a crise econô- quisa, educação, legislação sanitária etc. sustentável passa pela atuação do Estado
mica, as disputas por recursos públicos e Agora estamos diante de um contex- na construção de marcos regulatórios e
por legitimidade política (“quem susten- to de retrocessos políticos e socioeconômi- políticas públicas estruturantes (reforma
ta a economia do país?”) se acirraram e cos para a agricultura familiar. Ao menos agrária, educação, saúde, estradas etc.) e
passou-se a privilegiar os “produtivos” do duas estratégias me parecem necessárias. sociais importantes. É necessário conti-
meio rural. A agricultura familiar perdeu A primeira delas, coerente com os reper- nuar a disputa por elas.
importância política, passando a ser vista tórios de ação dos movimentos sociais, Mas estas reivindicações também já
mais do ponto de vista social. envolve reivindicar, contestar, protestar não podem mais ser apenas voltadas à
Outro elemento que contribuiu para e propor políticas públicas de desenvol- retomada ou reestruturação das políticas
a fragilidade das políticas para a agricul- vimento rural e marcos regulatórios na que tivemos nos últimos anos. Algumas
tura foram as oportunidades perdidas construção de sistemas agroalimentares políticas públicas vinham enfrentando li-
de fortalecimento institucional. Embora sustentáveis. O Estado foi fundamental mitações, seja em termos de dificuldade
aumentado ao longo dos anos, o quadro na construção do desenvolvimento rural de romper com o produtivismo agrícola,
burocrático do MDA ainda era pequeno nos últimos 20 anos. Neste período, o Es- seja para contemplar a diversidade da
(com forte presença de consultores e com tado foi, ainda que permeado por confli- agricultura familiar, ou ainda eram aca-
grande rotatividade entre eles); as políti- tos, parceiro das organizações da agricul- nhadas em termos de orçamentos e pú-
cas públicas das secretarias do MDA po- tura familiar na estruturação do desen- blico contemplado. É necessário rever al-
deriam ter apresentado maior articulação volvimento rural. Em muitas situações, guns instrumentos, potencializar aquelas
entre elas e, igualmente, com as políticas as próprias organizações sociais também políticas que contribuíam na construção
de outros ministérios, o que fortaleceria estruturaram-se, em cooperação confli- de sistemas agroalimentares sustentáveis,
seus resultados; e perdeu-se a oportuni- tuosa, com o Estado. Contestando pers- e resgatar a capacidade criativa e proposi-
dade de avançar na regulamentação de pectivas neoliberais, demanda-se (ainda tiva que permeou as organizações sociais
vários dispositivos presentes na Lei da que em um cenário adverso) a vigília dos da agricultura familiar, suas assessorias,
Agricultura Familiar, a exemplo da for- movimentos sociais, dos estudos rurais ONG’s, grupos políticos e acadêmicos nos
mulação efetiva de uma Política Nacional e da sociedade civil na reivindicação do anos 1990 e início dos anos 2000.

32 ESQUERDA PETISTA #9 - 2018 - 1


QUESTÃO AGRÁRIA

Houve avanços nesta articulação portante para, quando estruturada uma


com os consumidores a partir da experi- nova trajetória de fortalecimento das
ência das compras públicas da agricultu- políticas para a agricultura familiar (em
ra familiar, com o crescimento das feiras um novo contexto político), a mesma
e de estratégias de agroindustrialização encontrar amparo e suporte igualmente
ou de comercialização que fortaleceram nos atores sociais urbanos. Estas alian-
os circuitos curtos. Entidades socioas- ças auxiliarão a dar maior perenidade
sistenciais, consumidores urbanos em e estabilidade política e institucional às
situação de vulnerabilidade social, esco- políticas públicas para a agricultura fa-
lares, professores, universitários, nutri- miliar e à construção de sistemas agroa-
cionistas e gestores públicos são alguns limentares sustentáveis.
atores que passaram a conhecer o “gos-
to” e a qualidade alimentar oriunda da CÁTIA GRISA é professora da
comida da agricultura familiar a partir Universidade Federal do Rio Grande do
das compras públicas e, como indicam Sul, doutora em ciências sociais e pós-
algumas pesquisas, passaram a valorizar doutora em desenvolvimento rural
os produtos e a categoria social. As Fei-
ras Nacionais da Agricultura Familiar e
A segunda estratégia implica em REFERÊNCIAS
Reforma Agrária – Brasil Rural Contem-
construir alianças e estratégias de desen- porâneo, realizadas durante alguns anos NERI, M.C.; MELO, L.C.C.; MONTE, S.R.R. Superação da pobreza e a nova classe
média no campo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012.
volvimento rural com demais atores da no Rio de Janeiro e em Brasília tam-
SOLDERA, D. A instabilidade do referencial de políticas públicas para a agri-
sociedade brasileira, sendo um deles os bém foram emblemáticas neste sentido. cultura familiar no Brasil: uma análise das narrativas dualistas. Dissertação
(Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural – PGDR/UFRGS).
consumidores. A agricultura familiar pre- Eram espaços para fortalecer economi- Porto Alegre: UFRGS, 2017.

cisa ser mais reconhecida pela sociedade camente e politicamente a agricultura


brasileira, principalmente pela sociedade familiar na sociedade brasileira. NOTAS

urbana. A estruturação e o fortalecimento Em um contexto de avanço do neo­ 1 Disponível em: http://mds.gov.br/area-de-imprensa/noticias/2015/de-


zembro/extrema-pobreza-reduz-65-2-no-meio-rural
da agricultura familiar também pode vir liberalismo e de redução das políticas
2 Disponível: https://teoriaedebate.org.br/2018/03/07/com-o-aumento-
do aumento da demanda de alimentos, públicas, esta inserção e reconhecimen- -da-extrema-pobreza-brasil-retrocede-dez-anos-em-dois/

bens e serviços por consumidores e do es- to da agricultura familiar na sociedade 3 Disponível em: https://www.cptnacional.org.br/noticias/acervo/massa-
cres-no-campo
treitamento das relações sociais com este brasileira serve como uma estratégia
4 Disponível em: https://apublica.org/2016/02/truco-as-bancadas-da-ca-
público. Mas não estamos falando da agri- de reação. Contudo, ela também é im- mara/

cultura familiar fornecer qualquer produ-


to ou reproduzir o modelo de agricultura
do agronegócio e as relações econômicas
que permeiam grandes mercados. Cresce
na sociedade a demanda por alimentos
saudáveis, a valorização da origem (saber
de onde vêm os alimentos) e a preocupa-
ção com mudanças climáticas. A aliança A aliança com os
consumidores
com os consumidores passa, então, pela
passa pela oferta
oferta de produtos que justamente valo- de produtos
rizem características da agricultura fami- que justamente
liar, ou seja, os saberes e os sabores locais, valorizem
a diversidade produtiva, a artesanalidade, características da
a produção agroecológica etc. agricultura familiar

ESQUERDA PETISTA #9 - 2018 - 1 33


ESQUERDA

Socialismo ou nacionalismo?

A
Pedro Estevam da Rocha Pomar

resolução do 14º golpe de 2016, e aborda as questões re-


Congresso do Par- lacionadas à participação do PCdoB nas
Claramente, o arranjo tido Comunista do eleições gerais previstas para 2018, par-
tático esboçado Brasil (PCdoB), da- ticipação essa apresentada como parte
tada de 19 de novembro de 2017 e inti- dos esforços pela Frente Ampla. Declara
na resolução do tulada “Frente Ampla: novos rumos para prioritária a reeleição do governador Flá-
PCdoB empurra as o Brasil - Democracia, soberania, desen- vio Dino (MA) e referenda a escolha da
volvimento, progresso social”, retoma a deputada estadual do Rio Grande do Sul
tarefas socialistas tese da aliança com setores da burguesia, e ex-deputada federal Manuela D’Ávila
para um distante como saída possível para a crise brasilei- como candidata à Presidência da Repú-
horizonte, reduzindo ra. Grande parte da existência do antigo blica. (Tal decisão seria revista em agosto
PCB, nas décadas cruciais de 1940 a 1960, de 2018 pela direção nacional do partido,
o socialismo a uma foi marcada pela defesa de uma aliança com a indicação de Manuela para compor
dimensão retórica. da classe trabalhadora com a burguesia a chapa majoritária do PT na condição de
nacional, dita progressista, contra o im- vice-presidente).
Isso se evidencia perialismo e o latifúndio. A novidade da “A orientação política imediata do
quando o texto, ao tese atual é que ela se articula à propos- PCdoB é a oposição firme ao governo gol-
ta de um Novo Projeto Nacional de De- pista e à agenda que este impõe ilegiti-
discorrer sobre a senvolvimento (NPND), que por sua vez mamente ao país. Visa a acumular forças
agenda socialista integra o Programa Socialista do PCdoB para derrotar o curso antinacional e an-
(adotado em 2009), e o latifúndio sequer tipopular e criar condições para as forças
do partido, na é mencionado. patrióticas e populares reconquistarem o
verdade coloca em A resolução é um documento cauda- governo da República e, assim, assegurar
loso, de dezenas de páginas, dividido em a soberania do voto popular e retomar,
relevo bandeiras de cinco capítulos: I- “Conflitos e tensões no em novas condições, a rota de desenvol-
natureza nacionalista  Mundo, ofensiva imperialista e luta dos vimento soberano, democrático e com
povos”; II- “Balanço dos governos Lula inclusão social, ampliação dos direitos do
e Dilma e avaliação do desempenho do povo, a valorização do trabalho e da pro-
PCdoB”; III- “Governo ilegítimo contra o dução”.
Brasil e o Povo”; IV- “Saídas para a crise “A realização desses objetivos”, pros-
brasileira”; V- “Fortalecer o PCdoB e ele- segue, “só é possível com a união de vastas for-
var seu papel na resistência” (confira em: ças em Frente Ampla, para além da esquerda
https://goo.gl/B3EFNo). No capítulo IV, a política e social. O PCdoB tem empenhado
resolução defende a Frente Ampla como todos os esforços para isso, bem como
o melhor instrumento para enfrentar o para construir a unidade da esquerda

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ESQUERDA
Foto: Richard Silva/PCdoB

A análise da conjuntura
internacional, bem como
o diagnóstico da situação
nacional e o balanço dos
governos Lula e Dilma,
guardam semelhanças com
a avaliação feita por outros
setores da esquerda, como
algumas tendências internas
do PT, nisso incluída a
Articulação de Esquerda
Plenária do 14º Congresso Nacional do PCdoB. Brasília, novembro 2017

brasileira para que ela se constitua no nú- eleições, nas quais o partido propõe-se a visibilidade, graves tensões e ameaças à
cleo condutor da Frente Ampla”, a qual exercer um papel de destaque: “As eleições paz. O mundo vive uma crise civilizatória,
“reunirá os trabalhadores, a juventude presidenciais são palco das articulações decorrente das contradições do sistema
e as mulheres, com toda a diversidade de todas as forças políticas e terão papel capitalista”. As principais características
das organizações de luta para aglutinar decisivo para a luta dos brasileiros e bra- da transição em curso, agrega, são “o de-
extensas camadas populares; os setores sileiras. Os esforços da luta da Frente Ampla clínio relativo da superpotência estaduni-
progressistas e patrióticos, do universo devem convergir também para elas. O PCdoB dense” e a emergência de “novos polos de
jurídico constitucionalista, do mundo cul- buscará protagonismo nessa disputa. Nes- poder econômico, político, diplomático e
tural e da intelectualidade progressista; ta hora, o debate deve se centrar em uma militar”, destacando-se “o protagonismo
segmentos médios profissionais, entidades agenda para o país que possibilite a unidade da da China socialista como potência, e a re-
e movimentos do empresariado interessado no esquerda e das forças democráticas, populares cuperação do poder nacional da Rússia”,
progresso do país (destaques nossos)”. e patrióticas. O 14º Congresso saúda a de- bem como a existência do BRICS.
O PCdoB “tem claro o projeto de Bra- cisão do Comitê Central de apresentar ao Quanto ao impeachment da presiden-
sil pelo qual se bate, e se dispõe a discuti- povo e às forças políticas progressistas a ta Dilma Rousseff em 2016, considera
-lo com o povo brasileiro e os setores vitais pré-candidatura presidencial de Manuela que foi “um golpe de novo tipo contra a
da Nação”, prossegue o documento, “quer D’Ávila para contribuir com a concretiza- democracia, perpetrado pelo Parlamento,
interagir, com sua identidade programáti- ção desses objetivos” (destaques nossos). endossado pelo Judiciário e capitanea-
ca própria, com o povo e os setores vitais A análise da conjuntura internacio- do por um poderoso conjunto de forças
da Nação”. Não especifica, no entanto, nal, bem como o diagnóstico da situação políticas, judiciais, midiáticas e empre-
quais seriam esses “setores vitais”. Tal nacional e o balanço dos governos Lula e sariais, com ativa participação de setores
projeto, continua, “aponta o caminho da Dilma, guardam semelhanças com a ava- da Polícia Federal”, e no qual a mídia oli-
unidade como bandeira de esperança do liação feita por outros setores da esquerda, gopólica “teve papel de destaque na mo-
povo, em ampla frente de forças políticas como algumas tendências internas do PT, bilização de uma base social reacionária e
e sociais, para disputar os rumos do país”. nisso incluída a Articulação de Esquerda. intolerante”, contando ainda com “apoio
A resolução explicita o vínculo pre- Por exemplo: “A situação internacional é externo, como parte da ofensiva imperia-
tendido entre esse projeto e as próximas caracterizada por instabilidade, impre- lista na região”.

ESQUERDA PETISTA #9 - 2018 - 1 35


ESQUERDA

Foto: Richard Silva/PCdoB


sista e democrático”, apresentada como
“indispensável e [que] carece do debate
crítico de desafiadoras questões, com mé-
todos justos em busca de convergência”,
a resolução elenca entre os temas a en-
frentar a “suplantação de pautas e inte-
resses corporativistas que confrontam os
interesses de toda a sociedade”. Não ra-
ramente, a alegação de “interesses corpo-
rativistas” é levantada (até por grupos ou
personalidades de esquerda) contra seto-
res do funcionalismo público em luta por
reajustes salariais e melhores condições
de trabalho, e às vezes até mesmo contra
categorias de trabalhadores da iniciativa
privada. Talvez o texto esteja se referindo
a grupos privilegiados, como a alta ma-
gistratura.
Para aglutinar a Frente Ampla, pro-
põe o PCdoB, “a pauta imediata é restau-
rar a democracia, o Estado Democrático
de Direito, as garantias constitucionais
Na resolução, as Porém, há diferenças relevantes que fundamentais no combate à corrupção;
devem ser registradas. Ainda que identi- assegurar a soberania nacional e retomar
referências ao fique a agenda do golpismo como “entre- o crescimento econômico, com o estímulo
socialismo e a medidas guista e neoliberal, expressão dos interes- à produção nacional; a defesa da Petrobras
ses das grandes potências e do capital fi- e do regime de partilha no pré-sal, contra
que apontem na sua nanceiro”, e reconheça, por exemplo, que as desnacionalizações, privatizações e de-
direção são escassas. a destruição da Consolidação das Leis do molição das empresas brasileiras de engenharia
Trabalho (CLT) “só favorece o capital”, o de grandes obras; a manutenção e ampliação
Uma delas aparece PCdoB não implica no golpe o conjunto dos direitos do povo, com a valorização do
quando se critica a da burguesia. “O setor hegemônico das clas- trabalho, empregos, distribuição de ren-
ses dominantes prega diuturnamente con- da e inclusão social” (destaques nossos).
estratégia política tra a capacidade de realização do povo e Assim, a resolução acena com a defesa de
“movimentista”, da Nação, promove descrença, desespe- grandes empreiteiras, como a Odebrecht
rança” e “exige adotar amargas antirre- e a Andrade Gutierrez, abaladas pelas in-
atribuída a um formas neoliberais, para reduzir o Estado vestidas da Operação Lava Jato. Em ou-
“multiculturalismo e os direitos que ‘não caberiam’ no PIB tro trecho, ao externar suas críticas a essa
e alinhar o Brasil de modo subordinado operação, assinala, após denunciar a liga-
que se quer
às grandes potências”, diz o documento ção entre seus responsáveis e o governo
‘progressista’, mas que (destaques nossos). dos EUA: “Aniquila empresas, extermina
resulta na postos de trabalho, dificulta a realização
“Estado de Direito” de acordos de leniência”.
fragmentação do A figura do Estado Democrático de
povo”. Note-se que ao abordar a questão Direito é designada como espinha dorsal
da “unidade do campo popular, progres- das propostas do PCdoB: “Condição in-

36 ESQUERDA PETISTA #9 - 2018 - 1


ESQUERDA

dispensável para desencadear o NPND é mente, a luta pelo fortalecimento da Nação, vultosas verbas publicitárias”, a resolu-
a defesa do Estado Democrático de Di- o Novo Projeto Nacional de Desenvolvimento ção limita-se a reivindicar que deveria ter
reito inscrito na Constituição Federal de como caminho brasileiro para o socialismo — sido realizada uma “regulamentação, em
1988. É o ponto de partida da Frente Am- foi o norte orientador da direção nacional alguma medida, dos artigos da Constitui-
pla”, afirma a resolução congressual, sem do PCdoB nos governos Lula e Dilma. ção que vedam o monopólio no setor”.
mediações. O texto abstém-se de oferecer Conteúdos, bandeiras, reformas do NPND Ao longo da resolução, as referências
uma definição desse conceito, deixan- foram elaborados, desenvolvidos, dando ao socialismo e a medidas que apontem
do de fazer, igualmente, uma avaliação clareza à centralidade da questão nacional na sua direção nas condições brasileiras
do sucesso ou insucesso da implantação como exigência da luta de classes na contem- são escassas. Uma delas aparece quando
dos princípios democráticos previstos na poraneidade, dialeticamente relacionada à luta se critica a estratégia política “movimen-
Constituição de 1988 e da manutenção pelo socialismo” (destaques nossos). tista”, atribuída a um “multiculturalismo
ou superação das estruturas perversas le- O documento lamenta que “apesar que se quer ‘progressista’, mas que resul-
gadas pela Ditadura Militar (1964-1985). dos esforços, o Programa [Socialista] ta na fragmentação do povo”. Tais forças,
Ainda a propósito da resistência ao não foi disseminado suficientemente na continua, “exploram a crise de represen-
golpismo, a resolução tece considerações sociedade, nem dele se extraíram todas tação política da sociedade — o que é
sobre a luta política na esfera institucio- as consequências para a orientação polí- mais propriamente uma crise da demo-
nal, “que requer firmeza de pertencimen- tica do Partido”, e que ainda não foi as- cracia, esvaziada sob a agenda neoliberal
to de campo político e sagacidade para similado pela maioria de suas direções — em contraponto à esquerda partidária
não isolar”, explorando “contradições e estaduais e municipais e por suas bases. e às grandes organizações do movimento
disputas do consórcio político dominan- “Obviamente, a marca ‘Nação forte. Rumo social brasileiro, consideradas ‘tradicio-
te”, levando em conta que parte desses socialista’ — que sintetiza o Programa — nais’ por afirmarem o papel central dos
segmentos, “tendo apoiado o impeach- não é suficientemente projetada e, além trabalhadores como sujeito na luta pelo
ment, busca se reposicionar”, caso do Par- disso, suas frentes de trabalho, seu cole- socialismo e por adotarem o caminho da
tido Socialista Brasileiro (PSB) e de par- tivo militante, passam a ser permeados disputa do Estado”. E conclui: “Embora
lamentares de vários partidos. “Deve-se de conteúdos e plataformas conflitantes críticas ao status quo, [as forças ‘movi-
disputar ativamente essas forças, presen- com a elaboração estratégica do Parti- mentistas’] reforçam pregações conser-
tes em instituições políticas e da socieda- do, fazendo prevalecer, por vezes, pautas vadoras já hegemônicas da negação da
de civil e em setores econômicos. O espectro segmentares e corporativas dissociadas de um política”.
centrista de forças sociais e políticas sempre foi projeto de nação” (destaques nossos). Cabe
fator destacado em todas as composições polí- indagar: não seria exatamente o núcleo Ausência da questão militar
ticas no Brasil e carece de um núcleo de contraditório do programa (nacionalismo
forças consequentes para galvanizá-lo versus socialismo) a causa de tal impasse? Grandes ausentes da resolução são
como alternativa factível de outro rumo Não há qualquer referência, no texto, as Forças Armadas e a Ditadura Militar.
democrático e progressista para o país”, à necessidade de estatização do sistema As únicas menções: nos capítulos III, ao
assevera o documento, na mesma linha financeiro, de qualquer setor dos meios tratar dos desdobramentos do golpe de
de composição com setores do empresa- de produção, ou mesmo de algum nível 2016: “De conjunto, a evolução dessa
riado (destaques nossos). de enfrentamento real dos oligopólios que conflagração institucional expressa agu-
Claramente, o arranjo tático esbo- controlam a economia brasileira. Embora do e grande impasse político, chegando
çado na resolução empurra as tarefas faça reiteradas críticas ao papel deletério a parcelas das Forças Armadas”; e V, ao
socialistas para um distante horizonte, da mídia hegemônica no golpe de 2016, avaliar a estrutura e o papel do partido:
reduzindo o socialismo a uma dimensão e aponte — com toda razão — que foram “O PCdoB saiu da ditadura militar (1964-
retórica. Isso se evidencia quando o texto, erros graves dos governos petistas “ter 1985) mais forte do que entrou — o que
ao discorrer sobre a agenda socialista do sido tratado como intocável o monopó- foi uma grande vitória dos comunistas”.
partido, na verdade coloca em relevo ban- lio dos meios de comunicação”, e (pior Diante disso, cabe questionar: as Forças
deiras de natureza nacionalista: “O Pro- ainda) o fato de que “os governos Lula e Armadas fariam parte dos aludidos “se-
grama Socialista do PCdoB — destacada- Dilma fortaleceram a grande mídia com tores vitais da Nação”?

ESQUERDA PETISTA #9 - 2018 - 1 37


ESQUERDA

Foto: Ricardo Stuckert/IL

Como se sabe, entre 1972 e 1975 o


partido perdeu 70 guerrilheiros na região
do Araguaia, muitos deles capturados
com vida e depois executados pelas For-
ças Armadas. Ao longo do regime mili-
tar vários dos dirigentes do PCdoB foram
torturados e assassinados pelos órgãos de
repressão. Além disso, dois meses antes
da realização do 14o Congresso, o gene-
ral de quatro estrelas Antonio Hamilton
Mourão, então na ativa, defendeu uma
possível “intervenção militar” no país,
em sintonia com a bandeira agitada pela
extrema-direita. E o PCdoB assumiu o
Ministério da Defesa entre outubro de
2015 e maio de 2016, quando a pasta es-
teve confiada a Aldo Rebelo. É intrigante,
Manuela d’Ávila visita acampamento pró-Lula em Curitiba
assim, que o partido evite pronunciar-
-se sobre a questão militar, sobre a ne- questão programática para o PCdoB a su- Rebelo, que voltou a repetir a alian-
cessidade de democratização das Forças peração progressiva das marcas da longa ça com o agronegócio ao relatar a refor-
Armadas e seu papel em sociedades em duração do escravismo que permanecem ma do Código Florestal, deixou o partido
transformação, sobre a impunidade dos no racismo e na condição de vida dos ne- em agosto de 2017, após décadas de fi-
torturadores, sobre o engavetamento do gros”, o partido “se empenha no comba- liação, e no mês seguinte ingressou no
relatório final da Comissão Nacional da te ao racismo e pela adoção de políticas PSB. Seis meses depois, abandonou o
Verdade (CNV). públicas de promoção da igualdade social PSB rumo ao Solidariedade do notório
Da mesma forma, é notável que não para os negros e as negras”, bem como deputado Paulo Pereira da Silva, o “Pau-
haja qualquer referência no documento à “pela crescente participação e pelo prota- linho da Força”.
proposta de extinção das Polícias Milita- gonismo dos negros em todos os âmbitos
res, bandeira que unifica amplos setores da vida do país” etc. Considerações finais
do movimento negro e da esquerda polí- Outra ausência é a dos povos indíge-
tica e social, consta das recomendações da nas, que recebem uma única e efêmera A finalidade deste artigo é examinar
CNV ao Estado brasileiro e é defendida, citação no capítulo IV: “Destacam-se, do concisamente a mais recente resolução
enfaticamente, até pela Comissão de Di- mesmo modo, as lutas contra o racismo congressual do PCdoB, não cabendo aqui
reitos Humanos da ONU. Essa constatação e por políticas de promoção da igualdade a pretensão de levar a cabo uma análise
é chocante, dado que a população negra, e social para os negros; proteção, efetivação completa desse partido, envolvendo pro-
particularmente a juventude negra, está e garantia dos direitos das etnias indíge- grama, estratégia, história etc. Por meio
entre as mais importantes bases sociais nas”. A propósito, ao realizar o balanço da análise deste e de outros documen-
do PCdoB. A resolução, aliás, não fala em dos governos Lula e Dilma e examinar tos, podemos por certo arriscar algumas
combate às políticas de extermínio, dei- sua própria participação (dele, PCdoB), extrapolações e conclusões provisórias.
xando de abordar o Terrorismo de Estado a resolução omite as disputas em torno Convém lembrar, porém, que a avaliação
praticado cotidianamente pelas PMs. da demarcação da Reserva Raposa-Serra da trajetória de um agrupamento políti-
Desse modo, as considerações de do Sol, medida à qual se opôs sua maior co nunca deve pautar-se exclusivamente
combate ao racismo presentes no capí- figura pública à época, o então deputado pela exegese da sua produção teórica e
tulo V da resolução soam tímidas frente federal Aldo Rebelo, que se alinhou com dos seus textos oficiais.
à dramática realidade enfrentada pela os ruralistas (“arrozeiros”) e os militares, São patentes os equívocos de alguns
juventude das periferias brasileiras: “é contra os povos indígenas. historiadores que, ao atribuir excessivo

38 ESQUERDA PETISTA #9 - 2018 - 1


ESQUERDA

No caso do PCdoB, será preciso acompanhar o pador do Planalto em agonia, o quadro


político apresenta-se fragmentado. Sem
comportamente efetivo dos seus militantes e governo forte, as forças golpistas estão
direções frente à palavra de ordem de “Frente divididas no curso de uma luta fratricida
entre diferentes bandos das classes domi-
Ampla” e ao seu conteúdo nantes.Privadas da presença de seu maior
líder em reuniões e comícios, as forças de
valor à letra fria dos documentos e decla- violados. Em face desta grave situação, o esquerda fragmentam-se entre projetos
rações oficiais do antigo Partido Comu- manifesto aborda genericamente o forta- que, ressalvadas as declarações retóricas,
nista do Brasil (sigla PCB), deixavam de lecimento da democracia [...] destacan- objetivamente aprofundam as divisões”.
perceber e apreender suas contradições do a necessidade de ‘tolerância entre os Parece sugerir uma autocrítica, afi-
internas, as posições em choque, as polí- brasileiros’. Na verdade, como superar a nal o PCdoB tinha, à época, sua própria
ticas realmente adotadas. Outro exemplo, polarização existente no país sem ultra- pré-candidata à Presidência. Todavia,
passando à atualidade, são determinadas passar as causas e as consequências do prosseguiu ele, há na esquerda “legítimas
interpretações do Partido dos Trabalhado- golpe institucional? E aí o manifesto não pré-candidaturas afirmando marcan-
res que padecem de enganos semelhantes. se refere ao golpe nem às forças que o fi- tes personalidades políticas, predicando
Evidentemente, a militância cumpre nanciaram e o apoiaram”. Ademais, pros- mensagens de esperança, elaborando jus-
um papel-chave nos rumos de um partido seguiu Arantes, “não se refere à reforma tas teses, propondo adequadas soluções
político. Assim, no caso do PCdoB, será trabalhista, já aprovada e no Congresso e aos graves problemas nacionais, arregi-
preciso acompanhar o comportamente sancionada com graves consequências na mentando forças”, em suma: “fazendo o
efetivo dos seus militantes e direções fren- vida dos mais de cem milhões de traba- que consideram ser seu dever em prol da
te à palavra de ordem de “Frente Ampla” lhadores brasileiros”, nem cita “a grave unidade das forças democráticas e pro-
e ao seu conteúdo (aliança com setores da ameaça da reforma previdenciária”. gressistas”. Dito isto, o dirigente comu-
burguesia), para saber-se do seu êxito ou Embora tenha considerado “adequa- nista condena “o açodamento e a pressão
fracasso numa conjuntura altamente po- do realçar o papel do empresariado e das para que todos resignem em nome de um
larizada e de acirramento da luta de clas- Forças Armadas”, Arantes rejeitou a ex- suposto segundo colocado, alçado extem-
ses, bem como de seus desdobramentos. clusão das camadas populares, fazendo poraneamente como o representante de
Importante saber como se situará, ainda outra distinção fundamental: “Ao uma coalizão entre o centro e a esquerda,
por exemplo, o aguerrido e relativamen- ressaltar a necessidade da reforma polí- fadada a ser a força progressista no se-
te jovem setor intelectual do partido, que tica o documento afirma que ela deve li- gundo turno”.
tem se destacado nos últimos anos. Vale bertar ‘nosso sistema político do controle Após descrever a candidatura de Ciro
notar que, ao debandar, Aldo Rebelo não de interesses corporativos oligárquicos’. sem citá-lo expressamente, José Reinal-
conseguiu arrastar consigo um grupo ex- Na verdade, uma reforma política demo- do arremata: “Nas circunstâncias atuais,
pressivo de militantes. Alguns meses an- crática deve libertar o sistema político do a unidade tem nome e sobrenome ainda
tes de sair, lançou um manifesto em favor poder econômico”. nitidamente definidos — Lula da Silva”
da “união de amplas forças políticas, eco- Outra manifestação relevante, esta (https://wp.me/pR5hQ-b9O). A declaração
nômicas e sociais, com destaque especial mais recente, foi do igualmente veterano teria destinatários específicos: setores do
aos empresários e às Forças Armadas”, jornalista José Reinaldo Carvalho, secretá- próprio PCdoB interessados em apoiar o
que foi contestado, ponto a ponto, pelo rio de Relações Internacionais do PCdoB. ex-ministro e ex-governador.
veterano Aldo Arantes, ex-deputado fe- Reagindo às pressões para que a esquer-
deral constituinte e membro do Comitê da sagrasse Ciro Gomes como “candidato PEDRO ESTEVAM DA ROCHA POMAR
Central, numa polêmica pública inédita de unidade”, precisamente em nome da é jornalista, doutor em ciências da
para os padrões do partido. “Frente Ampla”, José Reinaldo saiu em comunicação e autor dos livros A
“Vivemos num verdadeiro estado de defesa da candidatura de Lula: “Hoje, com Democracia Intolerante (Arquivo do
exceção em que a Constituição e o esta- o maior líder popular da história do país Estado de São Paulo, 2002) e Massacre
do democrático de direto estão sendo encarcerado e o governo golpista do usur- na Lapa (Perseu Abramo, 2006).

ESQUERDA PETISTA #9 - 2018 - 1 39


ESQUERDA

Por uma SUPERAÇÃO


CONSERVADORA: as resoluções
do VI Congresso do PSOL
Por Eduardo Nunes Loureiro

N
os dias 02 e 03 de uma resolução de conjuntura nacional,
É nítida a forma dezembro de 2017, outra de conjuntura internacional e uma
na cidade de Lu- sobre Eleições 2018. Não foram encontra-
como se evitam ziânia/GO, o Par- das resoluções específicas para os demais
questões polêmicas tido Socialismo e temas (Reorganização da esquerda e táti-
Liberdade (PSOL) ca para o período, Atualização programá-
nas resoluções, o que realizou seu VI tica e Adequações estatutárias e periodi-
Congresso Nacional. A convocatória do cidade do Congresso).
denota a busca por Congresso (https://goo.gl/aVFjtx)1 apon- O objetivo deste artigo é apresentar
uma ampla aliança – ta, em seu Art. 5º, a discussão e aprovação uma visão geral sobre as resoluções pu-
de resoluções para os seguintes temas: a) blicadas pelo partido. Desta forma, não
ainda que no campo da Conjuntura nacional e internacional; b) serão analisadas aqui aquelas que dizem
esquerda. Conclui-se Reorganização da esquerda e tática para respeito ao funcionamento interno do
o período; c) Atualização programática; PSOL ou à construção de seu programa,
destas resoluções que d) Eleições 2018; e) Balanço do PSOL; f) focalizando as resoluções de conjuntura
o PSOL amadureceu Adequações estatutárias e periodicidade (internacional e nacional) e a que versa
do congresso e da eleição de direção; g) sobre Eleições 2018.
no que diz respeito a Eleição da Direção Nacional, Conselho
polarizar com o PT, Fiscal, diretor presidente da Fundação Conjuntura internacional
Lauro Campos e Comissão de Ética.
tendo como inimigo a No site referente ao VI Congresso Na- Em quatro páginas, que podem ser
cional do PSOL (https://goo.gl/6kp5xh)2, acessadas no seguinte endereço (https://
direita podem ser encontradas a Direção goo.gl/WhH5W6)3, o PSOL começa sua
Nacional, Conselho Fiscal, Conselho de resolução apontando a crise do processo
Ética e o novo presidente da Fundação de acumulação capitalista, que tem como
Lauro Campos eleitos pelo Congresso, consequência a concentração de riqueza e
uma resolução sobre a entrada do Movi- da renda a nível mundial. Dá como exem-
mento por uma Alternativa Independen- plo de sua gravidade a leva de imigrantes
te e Socialista (MAIS), quatro resoluções que cruzam o Mar Mediterrâneo e as fron-
setoriais (Mulheres, Negras e Negros, teiras da Europa em busca de um porto se-
Ecossocialista e Pessoas com deficiência), guro contra a fome, a miséria e as guerras.

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ESQUERDA
Arquivo PSOL

O 6º Congresso
Nacional do PSOL,
realizado nos dias 2
e 3 de dezembro de
2017, em Luziânia/GO,
aprovou resolução que
reafirma a participação
do partido, com
candidatura própria, nas
eleições presidenciais

Ao explicar o processo de desindus- A resolução aponta baixos, isso significará, automaticamen-


trialização das economias capitalistas, a te, mais empregos? O único entrave agora
resolução dá como causa a incorporação que o forte apoio é a legislação ambiental? Não é possível
da Ásia ao Sistema Produtivo – em es- de Marine LePen, na identificar estas respostas no texto.
pecial o Sudeste Asiático e a China – e a Ainda no tema da industrialização/
transferência massiva das indústrias in- França, e as vitórias desindustrialização, a resolução aponta
tensivas em força de trabalho para estes de Donald Trump que o forte apoio de Marine LePen, na
locais. Isso levou países da periferia do ca- França, e as vitórias de Donald Trump nos
pitalismo a ter desindustrialização e au- nos EUA e do Brexit EUA e do Brexit (plebiscito de saída do
mento dos níveis de desemprego. (plebiscito de saída Reino Unido da União Européia) no Rei-
Por mais que esta conclusão esteja no Unido, quando mapeadas, mostram
correta em termos concretos, é contradi- do Reino Unido da que grande parte dos apoios a estas cau-
tório que as causas apontadas para este União Européia) no sas/candidaturas está nos lugares em que
deslocamento das indústrias (salários existiam parques industriais intensivos.
baixos, direitos trabalhistas precários, le-
Reino Unido, quando Fechando o tema, a resolução aponta
gislação ambiental falha) sejam também mapeadas, mostram também como causa do aumento do de-
observáveis em algumas das economias semprego a inovação tecnológica. Nova-
periféricas em processo de desindustriali-
que grande parte mente, não há uma consequência desta
zação, ao mesmo tempo em que se defen- dos apoios a estas afirmação, passando a impressão de que
de que estas devem reindustrializar-se. a inovação em si deve ser combatida. Não
Aparentemente, culpa-se a China e países
causas/candidaturas há uma contextualização sobre as ca-
do Sudeste Asiático por terem feito o que está nos lugares em racterísticas das evoluções tecnológicas,
deveríamos fazer. Além disso, abre-se um tampouco sobre o nível da capacitação
questionamento: se a legislação brasileira
que existiam parques dos trabalhadores. Por mais que seja pro-
tornou-se mais precária e os salários mais industriais intensivos vável a interpretação de que a inovação

ESQUERDA PETISTA #9 - 2018 - 1 41


ESQUERDA

nociva seja aquela feita com o objetivo de onde o governo progressista impede a re- Por mais que o fato relatado tenha
reduzir os custos de mão de obra, tam- tirada de mais direitos – Espanha, França realmente enfraquecido a resistência ao
bém é possível aquela em que não existe e Estados Unidos houve crescimento da golpe, explicá-lo desta forma é incomple-
qualquer inovação positiva. esquerda institucional. Fora dos partidos, to. Lido desta maneira, aparentemente o
O texto continua, indicando que o cita o movimento das mulheres polone- Brasil estava ótimo até que Dilma resol-
atual estágio do capitalismo provoca ins- sas que barrou lei antiaborto na Polônia, veu nomear Levy. Não há menção no tex-
tabilidade do clima e dos ecossistemas e as campanhas Black LivesMatter e Ni to à brutal ofensiva da direita organizada
terrestres. A seguir, aponta que os países Una a Menos, que extrapolaram seus via partidos e imprensa para derrubar
latino americanos se consolidaram como países de origem (respectivamente Esta- Dilma, iniciada antes das medidas im-
exportadores de commodities.Ressalta o dos Unidos e Argentina). Ressalta ainda populares tomadas pela presidenta eleita
processo de desindustrialização brasileiro a luta pela independência da Catalunha. após as eleições.
e a redução da participação da indústria Termina o texto reafirmando que o Na sequência, o texto diz que a opor-
na economia (de cerca de 25% em 1980 descontentamento com a democracia li- tunidade aberta para o golpe fez com que
para cerca de 12% em 2015), bem como beral leva à possibilidade de radicalização a burguesia visse a oportunidade de go-
o papel que a desindustrialização provoca tanto à direita quanto à esquerda. vernar sem mediações. Em defesa do go-
na geração de empregos mais precários e, verno, restaram somente os setores mais
consequentemente, de menor renda. Conjuntura nacional progressistas da classe média e os movi-
Ao mencionar a ofensiva das forças mentos sociais organizados.
reacionárias contra os governos progres- O texto sobre Conjuntura Nacional, Uma vez no poder, a elite retrocedeu
sistas da América Latina, o texto aponta (disponível em https://goo.gl/2QFfyS)4 as conquistas dos trabalhadores em mais
como um abalo nestes últimos a redu- inicia-se afirmando que a origem do gol- de 100 anos com a reforma trabalhista e
ção do preço do minério e dos produtos pe está em 2014, quando Dilma nomeia implementou o teto de gastos, que con-
agrícolas. Dá como exemplo os golpes Joaquim Levy que, com sua política or- gela os gastos primários do governo no
em Honduras, Paraguai e Brasil, a vitó- todoxa, transforma uma crise de curta mesmo patamar de 2016 (corrigido so-
ria eleitoral conquistada na Argentina e duração e baixo impacto em uma reces- mente pela inflação do ano anterior) por
a ofensiva contra Nicolas Maduro na Ve- são que eliminou 8% do PIB e duplicou 20 anos. Além disso, busca a aprovação
nezuela. Ressalta também o total alinha- o desemprego, levando à perda de cre- da reforma da previdência, de forma a
mento do governo de Michel Temer com dibilidade do governo e ao descolamen- viabilizar superávits primários para sus-
a linha política estadunidense. to deste de sua base social que, somada tentar as altas taxas de juro real do país.
Aponta que o panorama mundial à aposta no modelo de conciliação sem Afirma que o golpe destrava, também, as
está marcado pela disputa cada vez mais enfrentamento, desmobilizou os setores pautas conservadoras e de interesses eco-
acirrada entre EUA e China, pelo ressur- populares. nômicos paralisados durante os governos
gimento da Rússia e as consequências petistas, caracterizados como de concilia-
da erupção destas polarizações: o agra- ção de classes.
vamento das tensões regionais, que de- A resolução coloca a posição do PSOL
ságua em guerras localizadas como a da como sempre contrária ao golpe desde a
Síria. primeira hora, mesmo que demarcando
De acordo com a resolução do PSOL, as diferenças com o governo Dilma, por
a receita anticrise do capital (retirada de entender que os riscos de retrocesso ain-
direitos sociais e trabalhistas, rebaixa- da maior eram evidentes, como mostram
mento de salários, privatização de servi- as medidas do governo golpista. A nota
ços essenciais, legislação ambiental mais afirma ainda esta posição como correta.
frouxa e intensificação da exploração Ao citar a Operação Lava Jato, apesar
extrativista) gera resistência dos movi- de reconhecer que esta é instrumentali-
mentos sociais e dos partidos políticos zada para perseguir o PT, com a utiliza-
progressistas. Aponta que em Portugal – ção de instrumentos inaceitáveis para o

42 ESQUERDA PETISTA #9 - 2018 - 1


ESQUERDA

A resolução coloca a posição do PSOL como sempre


contrária ao golpe desde a primeira hora, mesmo que
demarcando as diferenças com o governo Dilma, por
entender que os riscos de retrocesso ainda maior eram
evidentes, como mostram as medidas do governo golpista

por suas medidas não se traduzem em


organização contra seu governo, que é
apoiado por fortes grupos econômicos,
conclamando todas e todos a lutarem
pelo “Fora Temer” e contra o retrocesso
de direitos.

Eleições 2018

O texto começa caracterizando, resu-


midamente, a conjuntura em que supos-
tamente ocorrerão as eleições de 2018,
em meio à maior crise política da história
do país, onde o governo vigente tende a
chegar desacreditado e repudiado pela
maioria da população.
Coloca que elas serão realizadas após
Bancada do PSOl protesta contra o rocesso de impeachment de Dilma na Câmara dos Deputados a reforma política feita em 2017, que ins-
titui a cláusula de barreira progressiva de
Estado Democrático de Direito, há uma O texto cita os movimentos de 28 de 1,5% dos votos. Estabelece que esta é uma
posição dúbia em relação à mesma. O abril e 30 de junho de 2017 como exem- das metas do partido para este pleito.
texto aponta que, mesmo que a Lava Jato plos de sucesso e fracasso, respectiva- Ainda sobre a reforma política, afir-
esteja totalmente a serviço dos golpistas, mente. Imputa o sucesso do primeiro à ma que, apesar de não ser permitido o fi-
ela não está sob controle, abrindo fissuras ampla unidade das forças organizadas e nanciamento empresarial, o Fundo Elei-
nas bases de sustentação do golpe, com à percepção da população de que as re- toral, como aprovado, mantém a disputa
o envolvimento das cúpulas de PMDB, formas, em particular a da Previdência, eleitoral extremamente desigual, privile-
PSDB e do próprio Temer. representam retirada de direitos. Já o giando os grandes partidos.
Da maneira em que está, não há fracasso é apontado como resultado da Terminando as colocações sobre a re-
contextualização sobre como é possível perda de densidade dos movimentos sin- forma política, cita a obrigatoriedade da
estar a serviço do golpe e, ao mesmo dicais para além da burocratização das participação do PSOL nos debates da TV
tempo, fissurando-o. Seria necessária direções. Aponta como causa a reestrutu- e rádio e a possibilidade de eleição par-
uma maior explanação sobre as forças em ração do trabalho, que dificulta a percep- lamentar no cálculo da quebra de votos
disputa no seio do golpe e porque, mesmo ção da letalidade da reforma trabalhista como pontos positivos.
estando a serviço da causa geral, ataca e, consequentemente, sua mobilização A partir daqui, vem o principal nú-
“aliados”. Passa a impressão de que existe para barra-la. cleo da resolução: a preparação para a
uma esperança de que o objetivo da Lava Termina apontando que a impopu- candidatura de Guilherme Boulos à pre-
Jato seja realmente jurídico e não político. laridade do governo Temer e a rejeição sidência.

ESQUERDA PETISTA #9 - 2018 - 1 43


ESQUERDA

Em primeiro lugar, critica-se o lulis-


mo devido ao aliancismo. Reafirma-se o
apoio ao direito de Lula ser candidato a
presidente, mas também a necessidade
de superação dos limites apresentados no
projeto defendido – segundo eles – por
sua candidatura.
Em seguida, afirmam que apresen-
tarão nome próprio à eleição presidencial
que amplie o debate de reorganização da
esquerda, tendo como lastro programáti-
co o processo construído pela plataforma
Vamos!, lançada pela Frente Povo Sem
Medo, que tem o Movimento dos Traba-
lhadores Sem Teto (MTST) como um de
seus protagonistas. O MTST é coordena-
do nacionalmente por Guilherme Boulos.
Cabe lembrar que esta resolução
é de dezembro de 2017 e Boulos só foi
escolhido candidato em março de 2018,
em conferência eleitoral, feita uma Guilherme Boulos é o candidato do PSOL à presidência da República. O líder do MTST filou-se ao
partido em março de 2018. Formará chapa com Sônia Guajajara, também do PSOL.
semana após a sua filiação ao PSOL.
Boulos derrotou na Conferência Eleito-
ral os candidatos Plínio de Arruda Sam- Se analisadas em conjunto, estas re- polarizar com o PT, tendo como inimigo a
paio Júnior, Nildo Ouriques e Hamilton soluções apontam para duas coisas: a pri- direita. Ao mesmo tempo, faz-se um Con-
Assis. Boulos teve quase 71% dos 126 meira, que o PSOL pretende superar o PT gresso com objetivo basicamente eleitoral.
votos. Formará chapa com Sônia Guaja- e desistiu de tê-lo como inimigo principal, Busca-se superar o PT, fazendo as críticas
jara, também do PSOL. como era em passado bem recente, bus- a este de maneira construtiva e sem cul-
Por fim, a resolução estabelece como cando postar-se como a nova referência da pa-lo por todos os males, mas utiliza-se
prioridade as eleições das bancadas de classe trabalhadora, ainda que reconheça de sua máxima instância para repetir um
deputados federais, estaduais e distritais, em suas próprias resoluções (em especial, dos principais defeitos que contamina-
bem como critérios democráticos para a a de conjuntura nacional) que não há ram o Partido dos Trabalhadores: o foco
escolha de candidatos e a distribuição dos mobilização social suficiente para isso. A quase exclusivo nos processos eleitorais.
recursos de acordo com estados, candida- segunda, que a função do Congresso foi
turas e cargos. preparar o conjunto da militância para o EDUARDO NUNES LOUREIRO é
acolhimento da candidatura Guilherme militante do Partido dos Trabalhadores
Conclusão Boulos. É nítida a forma como se evitam e da Articulação de Esquerda.
questões polêmicas nas resoluções, o que
Uma vez que o Congresso contava denota a busca por uma ampla aliança –
com doze teses inscritas, é interessante ainda que no campo da esquerda. Citar a URLS ENCURTADAS:
notar como as resoluções são sucintas. As plataforma Vamos! como guia três meses 1. http://psol50.org.br/congresso/wp-content/uploads/2017/08/
REGIMENTO-6-CONGRESSO-VERSAO-FINAL.pdf)
três resoluções aqui analisadas, juntas, antes da filiação de Boulos também foi
2. https://www.psol50.org.br/tag/6o-congresso-nacional-do-psol/
têm 10 páginas e apontam questões de um sinal muito forte de que prepararam
forma muito resumida, em alguns mo- o partido para sua entrada. 3. http://www.psol50.org.br/wp-content/uploads/2017/12/Reso-
lu%C3%A7%C3%A3o-Conjuntura-internacional.pdf
mentos, dando margem a múltiplas in- Conclui-se destas resoluções que o
4. http://www.psol50.org.br/wp-content/uploads/2017/12/Reso-
terpretações. PSOL amadureceu no que diz respeito a lu%C3%A7%C3%A3o-Conjuntura-Nacional.pdf

44 ESQUERDA PETISTA #9 - 2018 - 1


ESQUERDA

Redobrando a aposta no republicanismo


e na revolução democrática: análise das
resoluções da XII Conferência Nacional
da Democracia Socialista
Adriano de Oliveira

A DS fez um giro ao centro partidário, especialmente quando construiu


a chamada Mensagem ao Partido, e abriu mão de importantes temas
estratégicos, rebaixando seu programa e tendo como centro a
revolução democrática e a realização inconclusa, em sua opinião, de
um estado republicano no Brasil, o que aqui chamamos de revolução
democrática com republicanismo.

A
Ao longo da história dirigir – o PT em 1994, sobre a chapa e/ou
do PT, a Articulação campo Socialismo e Democracia e a Opção
de Esquerda (AE) de Esquerda e tantas outras movimenta-
e a Democracia So- ções comuns. Somos da e/ou estamos à
cialista (DS) já tive- esquerda do PT, temos muita identidade
ram muitos pontos em diversos temas, reivindicamos a tradi-
de convergência e ção marxista, socialista e revolucionária,
divergência. Já marchamos e golpeamos razão de sobra para um fraterno diálogo
juntos, bem como em separado, bem como e debate.
golpeamos juntos marchando em separa- Mais recentemente, nos afastamos
do e, por ironia da história, até vice-versa. (AE e DS) no debate estratégico e na táti-
Analiso aqui, especificamente, as re- ca da disputa interna de rumos do PT. Para
soluções da XII Conferência Nacional da nós, fundamentalmente, uma disputa so-
DS. O texto em análise encontra-se em: bre com qual estratégia faremos a luta
https://goo.gl/Ve5hxu (url encurtada)1 socialista no Brasil de hoje e com quais
Poucas considerações farei do passa- táticas buscaremos resistir e retomar a
do, como quando dirigimos – ou tentamos ofensiva contra as forças do condomínio

ESQUERDA PETISTA #9 - 2018 - 1 45


ESQUERDA

golpista. “Nossas opiniões a esse respeito A opinião, que afirmo sobre a estra- o regime político, os próprios fundamen-
podem ser encontradas no site do Página tégia da DS para a revolução no Brasil e tos constitucionais do Estado brasileiro,
13, tanto no link (url encurtada: https:// no continente, deve ser debatida em uma de sua soberania, destruindo décadas de
goo.gl/Kignhg)2 da resolução da 1ª etapa perspectiva de acúmulo de forças por conquistas democráticas e projetando
do 4º Congresso Nacional da Articulação dentro do Estado, democratizando-o, o para o futuro décadas de interdição dos
de Esquerda, realizado de 24 a 26 de no- que segundo seu entendimento resultaria direitos”.
vembro de 2017, quanto nos links (URLs em uma estratégia eleitoral de conquista Seguindo um diagnóstico muito se-
encurtadas) das resoluções da 2ª etapa de maiorias nacionais e sob o exercício de melhante ao nosso e de outras organi-
do 4º Congresso Nacional da AE: governos. Ocorre que, mesmo em conver- zações de esquerda do que eles chamam
- https://goo.gl/J5tS5S 3 gência com muitos pontos programáticos de “contrarrevolução neoliberal”, des-
- https://goo.gl/GzQ2JD 4 apresentados ao longo do documento, taca-se o seguinte, aparentemente em
- https://goo.gl/d5CyMd 5 esta janela institucional que “arrom- contradição a formulações anteriores da
- https://goo.gl/4iZZKX 6 bamos” com a constituição de 1988 e a própria DS:
Recomendamos, ainda, a leitura da campanha Lula presidente em 1989 pode
última resolução da Direção Nacional da estar sendo fechada, o que exigiria uma “Ao centrar o seu ataque ao pró-
AE: https://goo.gl/7d79yW 7 nova estratégia para a esquerda brasilei- prio princípio da soberania popular, a
Em síntese, a DS fez um giro ao ra e latino-americana que “reequilibre” a contrarrevolução neoliberal coloca em crise
centro partidário, especialmente quando luta institucional e social. todas as forças de esquerda ou vinculadas
construiu a chamada Mensagem ao Par- As resoluções da XII Conferência às classes trabalhadoras que centravam
tido, abrindo mão de importantes temas Nacional da DS dividem-se em seis capí- seu programa e sua estratégia na disputa
estratégicos e rebaixando seu programa, tulos e uma declaração final. de governos e na ampliação dos direi-
que passou a ter como centro a revolução Primeiramente, é enunciado os ob- tos na democracia liberal. Partidos de
democrática e a realização inconclusa, em jetivos: propõem-se contribuir com avan- centro-esquerda e social-democratas,
sua opinião, de um estado republicano no ços em seis direções fundamentais: 1) movimentos sociais corporativos ou
Brasil, o que aqui chamamos de revolução abordar a crise de identidade socialista e autolimitados a lutar por mudanças
democrática com republicanismo. programática do PT; 2) analisar o golpe dentro da ordem liberal, estratégias que
A estratégia da “Carta aos Brasilei- no contexto internacional; 3) analisar os se centravam ou dependiam de pactos com
ros” (Palocci) era uma estratégia de alian- limites do PT como saída possível para as forças centrais do capitalismo, perdem
ça com o capital financeiro, para falar em superá-lo; 4) analisar as lutas de resistên- o seu chão histórico. É por isso que a
português claro. Tentativa de mudanças cias apontando seus limites e a “...ausên- resposta histórica à contrarrevolução
ou de melhorar a vida do povo sem ne- cia de uma saída republicana (grifo nosso) neoliberal só se pode fazer a partir de
nhum tipo de ruptura com o padrão histó- e democrática, unitária e estratégica...”; uma identidade socialista democráti-
rico de acumulação capitalista brasileiro. 5) construir uma unidade estratégica do ca, que conjugue luta pela soberania
A estratégia que aqui identificamos PT com as demais forças da esquerda popular com programas que contra-
no recuo programático da DS tem relação brasileira para vencer a contrarrevolução riem estrategicamente a lógica do ca-
com um documento historicamente an- neoliberal e 6), por fim, considerando os pitalismo neoliberal. Não se vence uma
terior à “Carta aos Brasileiros”; referimo- desafios, “procura um caminho viável, no contrarrevolução neoliberal com meios pro-
-nos ao documento Uma ruptura necessá- horizonte da atual luta de classes, para gramas, meios valores, estratégias centra-
ria, coordenado pelo saudoso Celso Daniel vencer o golpe”. das na institucionalidade em crise ou em
e que previa uma aliança com os setores Posteriormente, quando debate o ilusões eleitorais. (grifo nosso)
“produtivos” da burguesia, simbolizados Socialismo Democrático e Crise do Ca-
pela presença de José Alencar na vice- pitalismo Mundial, começa explicando o Formulação contraditória de uma
-presidência da República. Entretanto, as conceito de contrarrevolução neoliberal, organização que até bem pouco tempo
resoluções desta XII Conferência Nacio- “porque [a gravidade da situação em cur- centrava toda sua estratégia na disputa e
nal da DS realizam reposicionamentos so] se trata de alterar, a partir de um pro- exercício de governos combinada com a
importantes de serem verificados. grama neoliberal, mais que o governo ou ampliação da participação popular.

46 ESQUERDA PETISTA #9 - 2018 - 1


ESQUERDA

Formulação também contraditória lução democrática (porque não socialista?).


com as movimentações internas ao PT, A segunda divergência é contraditória com a
antes e depois (hoje) do fim da chamada formulação do próprio texto que, pouco aci-
Mensagem ao Partido. ma, reexamina o papel da luta institucional.
Temos uma caracterização semelhan- Vejamos, é uma espécie de celeuma.
te sobre o “capitalismo do século XXI” e a
instabilidade e caos sistêmico reinantes. “A segunda grande diretriz deste
No entanto, mesmo quando é reivindica- novo ciclo do socialismo democrático é a
da a perspectiva socialista, são utilizados reconstrução do programa histórico dos
tantos adjetivos que acabam ofuscando o socialistas democráticos. A lógica de cons-
substantivo do proclamado objetivo so- tituir programas de governo realizáveis
cialista e, principalmente, como chegare- em ordens democráticas estreitadas pelas
mos a ele: “democrático”, “eco”, “femi- regressões neoliberais deve ser substituí-
nista”, “antirracista”, “anticolonialista”, da pela lógica de refundar repúblicas de-
“utópico”, “internacionalista” e, mesmo mocráticas, através de processos consti-
“republicano”. Tirando o último termo, tuintes de novos poderes, democráticos e
todas as demais afirmações dão conteúdo populares, que abram espaço para defesa
substantivo a um projeto socialista e es- de programas de orientação estrategica-
panta quando, em determinadas passa- mente anticapitalistas. Chamamos a esta
gens, todos estes adjetivos são lembrados refundação programática das esquerdas, Capa da revista da DS que traz a proposta
sem também estarem articulados com a constituição de programas históricos, de resolução aprovada no XII Conferência
o conteúdo fundamental: o socialismo, ao mesmo tempo clássicos e atualizados
entendido aqui como a propriedade so- para combater e derrotar o capitalismo Mesmo quando
cial (pública, cooperativada, estatal) dos neoliberal do século XXI. Programas de é reivindicada a
meios de produção pelos autoprodutores governo de esquerda ou de coalizões lide-
associados. Em vários momentos, não se radas pela esquerda devem se referenciar, perspectiva socialista,
articulam as lutas feminista, antirracista, promovendo a mudança na correlação são utilizados
ecologista, da juventude, dos migrantes, de forças, nestes programas históricos. tantos adjetivos que
indígena e LGTBI com uma orientação O centro destes programas é exatamente
socialista e revolucionária. vincular o desenvolvimento de formas de acabam ofuscando
Sobre o republicanismo, nossa mais ativação da soberania popular à formação o substantivo
veemente divergência: republicanismo é de economias do setor público (no campo
do proclamado
a ilusão quanto ao caráter de classe do da propriedade dos meios de produção, do
estado, ou a ilusão da ilusão de que isso sistema financeiro, das políticas públicas, objetivo socialista
pode ser mudado “por dentro”. Tem es- da tributação, de reformas agrárias, das e, principalmente,
treita ligação com a estratégia da conci- políticas de planejamento e regulação, de
liação de classes que hegemonizou o PT novas relações com a natureza) e à for-
como chegaremos a
de 1995 até os dias de hoje. mação de culturas feministas e libertárias ele: “democrático”,
Seguimos um diagnóstico seme- que construam alternativas, de sociabili- “eco”, “feminista”,
lhante sobre importantes experiências de dade e de amor, às sociedades da família
resistência para um novo ciclo histórico patriarcal, de ruptura com a divisão se-
“antirracista”,
para derrotar o capitalismo neoliberal. Aí xual do trabalho e formas de sustentabili- “anticolonialista”,
começam novas polêmicas: primeiro, se- dade do cotidiano e da vida humana sem “utópico”,
ria a disputa pública e permanente con- o sobretrabalho das mulheres, de novos
tra os valores do neoliberalismo. O centro paradigmas de civilização ecologicamente “internacionalista” e,
desta disputa seria a estratégia da revo- sustentáveis.” mesmo ”republicano”.

ESQUERDA PETISTA #9 - 2018 - 1 47


ESQUERDA

temas da revolução democrática e do re-


Chama atenção a importância e centralidade
publicanismo têm na atual formulação
que os temas da revolução democrática e do da DS, ou ainda persistem. Em mais de
republicanismo têm na atual formulação da DS, 20 passagens as resoluções da XII Confe-
rência Nacional da Democracia Socialista
ou ainda persistem. Em mais de 20 passagens, fazem referência à importância da “luta
as resoluções da XII Conferência Nacional republicana”.
da Democracia Socialista fazem referência à Como somos organizações que rei-
vindicamos a tradição marxista, socia-
importância da “luta republicana” lista e revolucionária no PT, resolvi então
buscar convergências:
O texto prossegue criticando o exces- política da esquerda brasileira neste próximo - Luta pela constituinte.
so de institucionalização, enfatizando a período.” Nós disputamos uma estratégia
auto-organização e destacando o interna- socialista para o Brasil com um programa - Plebiscito revogatório: unificar a diver-
cionalismo: “É fundamental construir di- de reformas estruturais. sidade dos movimentos sociais, setoriais
retrizes de um programa internacionalista Total acordo que “a maioria do PT e o e populares.
dos socialistas democráticos que unifique segundo governo Dilma continuaram até - Programa social de emergência.
ações dos partidos, dos movimentos so- o final apostando na possibilidade de de-
- Riscos de dispersão em razão de forte
ciais e de governos em uma mesma dinâ- ter o golpe através centralmente da ado-
acomodação institucional, por um lado, e
mica de luta contra a ordem neoliberal”. ção de um programa neoliberal na eco-
movimentos setorizados sem articulação
No terceiro capítulo da resolução, nomia, de uma política de diálogo e am-
com qualquer estratégia de acúmulo de
novamente acordos e desacordos. Com- bígua legitimação da Operação Lava-Jato
forças para disputar o poder.
partilhamos um balanço similar das ra- e de uma repactuação com setores das
zões que levaram ao golpe, exceto pela in- correntes de centro-direita no Congresso - Acusar os acusadores de Lula e denun-
sistência em afirmar que o mesmo tam- Nacional”. Minha opinião é que muitos ciar a Lava Jato.
bém se deu pela “ausência de um programa quadros da própria DS foram coniventes
- Exemplo da Venezuela: Constituinte.
e uma dinâmica de revolução democrática”? com isso, como por exemplo, no debate
Nós disputamos uma estratégia so- sobre a reforma da previdência. - A cultura como um como uma das di-
cialista para o Brasil com um programa Temos acordo sobre necessidade de mensões essenciais ao desenvolvimento
de reformas estruturais. Temos acordo convocação de um plebiscito revogatório da sociedade, em conjunto com dimen-
com a análise de que a elevação do pa- das leis e medidas tomadas pelos golpis- sões econômicas, políticas e ambientais. A
drão de vida não foi acompanhada de um tas e a democratização dos meios de co- cultura como um componente fundamen-
processo de conscientização e elevação municação. tal do processo de luta político-ideológica
cultural, mas desacordo com a seguinte Um parêntese: já manifestei aqui pela transformação da sociedade brasilei-
passagem: “Esta disputa classista, de dimen- minha divergência com a reivindicação ra, pois, sem cultura não há desenvolvi-
sões históricas, se estabelece fundamentalmente do “republicanismo” e expliquei o por- mento, nem transformação social.
sobre o terreno democrático republicano: o Bra- quê. É mais ou menos como a divergên- - Crítica à regressão brutal as conquistas
sil se tornará um país dominado por um Esta- cia da construção de um país de “classe das lutas das mulheres contra o patriar-
do neoliberal, antidemocrático, violentamente média”, dito por outrem, então não vou cado.
patriarcal, barbaramente predatório dos pobres mais tocar neste assunto depois deste pa-
- Crítica à violência e barbárie contra os
e oprimidos, neocolonizado e antirrepublicano, rágrafo, mas quero lembrar que, quando
povos indígenas, sem-terra, comunida-
ou será refundada uma república democrática as resoluções da XII Conferência Nacio-
des tradicionais e quilombolas.
e popular, sob a liderança dos socialistas de- nal da Democracia Socialista debatem
mocráticos? É para esta consciência e para a “Os socialistas e a refundação da Repúbli- - Crítica à predação da natureza brasilei-
resposta a esta disputa que devem se organizar ca Democrática no Brasil”, dei-me conta ra, em todos os seus aspectos e em todo
e convergir todo o programa, a estratégia e a da importância e da centralidade que os o território (destaque para a Amazônia).

48 ESQUERDA PETISTA #9 - 2018 - 1


ESQUERDA

As/os companheiros(as) da
DS afirmam a necessidade
de uma futura plataforma
da esquerda socialista
do próximo período e
a luta decisiva por uma
hegemonia de esquerda no
PT. Fica a pergunta: - Com
qual estratégia?
- Crítica à violência contra os marginaliza- - Os companheiros e as companheiras aviões; a adoção de Imposto sobre Gran-
dos, especialmente os afrodescendentes. afirmam a necessidade de uma futura des Fortunas (IGF); a revisão da tabela
plataforma da esquerda socialista do pró- do imposto de renda sobre pessoas físi-
- Os erros, ilusões e impasses, grosso
ximo período e a luta decisiva por uma cas, com aumento do piso de isenção e
modo, são: a) a ilusão em um “compro-
hegemonia de esquerda no PT. Fica a per- ampliação progressiva das faixas de con-
misso democrático da burguesia brasilei-
gunta: - Com qual estratégia? tribuição; o aumento do imposto sobre
ra”; b) alianças com partidos tradicionais;
doações e grandes heranças, com repac-
c) acomodação ao limite da governabili- - Nos “Pontos Para Um Programa de
tuação do valor arrecadado entre União,
dade burguesa; d) cópia (e não combate) Transição” temos ampla convergência:
estados e município; e, de maneira geral,
aos padrões burgueses de financiamento a) uma política de alianças classista e
medidas progressivas sobre a renda, no
(e de corrupção); e) e conciliação com o anticapitalista; b) aprofundar a participa-
sentido oposto à regressividade do ICMS
neoliberalismo, com a guinada conserva- ção popular; c) lutar por uma profunda
e tributos sobre o consumo” (Resolução
dora e renúncia programática de 2015. reforma política; d) combate ao elitismo,
da 1ª etapa do 4° Congresso da AE), só
à burocratização e aos privilégios do Ju-
- Importância da unidade de ação entre para ficar em um exemplo de como o de-
diciário; e) defesa do Estado democrati-
Frente Brasil Popular e Frente Povo Sem bate precisa avançar entre todos e todas
zado como instrumento de regulação do
Medo. da tradição socialista do PT.
desenvolvimento; f) pela nacionalização
- Há uma disputa sobre qual e quem será e controle público do capital financeiro;
a esquerda no próximo período. ADRIANO DE OLIVEIRA é membro do
g) uma reforma tributária progressiva e
Diretório Nacional do PT
- Não há mais ilusões em compromissos direta; h) defesa das empresas públicas,
democráticos da burguesia brasileira, nem economia solidária, cooperativas e auto- URLS ENCURTADAS:
em alianças com partidos tradicionais. gestão; i) democratização e a luta ideo-
1. https://democraciasocialista.org.br/resolucoes-da-xii-da-confe-
lógica; j) por uma ética e valores compa- rencia-nacional-da-democracia-socialista/
- Houve um processo de acomodação tíveis com uma sociedade socialista etc. 2. https://www.pagina13.org.br/download/resolucoes-do-4-con-
aos limites da governabilidade burgue- gresso-da-articulacao-de-esquerda/
sa, com cópia e não combate aos padrões Acrescentaríamos – embora conste 3. https://www.pagina13.org.br/34902-2/
burgueses de financiamentos e – conse- no programa imediato – revogação da 4. https://www.pagina13.org.br/resolucoes-da-plenaria-sindical-da-
quente – corrupção. EC 95 e no item “g”, propomos medidas -tendencia-petista-articulacao-de-esquerda/

- Conciliação com o neoliberalismo, com como: “a tributação de juros sobre capi- 5. https://www.pagina13.org.br/resolucoes-da-5a-conferencia-de-
-mulheres-da-tendencia-petista-articulacao-de-esquerda/
a guinada conservadora e renúncia pro- tal próprio; a tributação sobre lucros e
6. https://www.pagina13.org.br/a-juventude-trabalhadora-em-tem-
gramática em 2015. (embora a autocríti- dividendos; a taxação sobre remessa de pos-de-guerra-resolucoes-da-xi-conferencia-nacional-de-juven-
tude-da-tendencia-petista-articulacao-de-esquerda/
ca desta questão deve ser bem mais am- lucros e dividendos ao exterior; a exten-
pla do que está na resolução) são do Imposto sobre Propriedade de Veí- 7. https://www.pagina13.org.br/contra-o-golpismo-a-luta-da-clas-
se-trabalhadora/
culos Automotores (IPVA) para barcos e

ESQUERDA PETISTA #9 - 2018 - 1 49


DOSSIÊ

MARX200anos 1818
2018

E
m homenagem aos 200 anos do nascimento de festo do Partido Comunista, no qual afirma que, neste do-
Karl Marx, a revista Esquerda Petista lançou, em cumento, a contribuição de Marx e Engels “se destaca
sua oitava edição, um edital para envio de arti- pela capacidade de sintetizar alguns dos elementos fun-
gos a serem publicados em um dossiê especial. damentais da estratégia socialista e revolucionária da
classe trabalhadora”.
Neste edital, manifestamos nossos objetivos: “além
de celebrar os 200 anos do nascimento de Marx, a re- Em seguida, temos o artigo Sobre a teoria marxiana do
vista  Esquerda Petista pretende contribuir para que sua Estado burguês, de Francisco Pereira de Farias, no qual
obra seja analisada à luz dos desafios estratégicos da busca analisar as formulações de Marx no momento em
luta pelo socialismo hoje. Não se trata, portanto, de que, segundo o autor, este transita de uma concepção
apenas revigorar o potencial analítico e interpretativo filosófica para uma concepção científica do Estado bur-
da teoria marxista. Como nosso objetivo é transformar guês. Assim, são analisadas as relações entre relações de
o mundo, é necessário que a teoria revolucionária sirva produção, luta de classes, frações de classe, poder políti-
de base para a prática revolucionária, que só terá êxito co, governo e forma de Estado.
se orientada por uma estratégia de luta pelo socialismo
O dossiê segue com texto de Luiza Dulci, O nosso Grams-
adequada para enfrentar o capitalismo do século XXI”.
ci, que se dedica a reconstituir os principais aspectos da
Foram sugeridos diversos temas a serem desenvolvidos: situação histórica na qual o italiano produziu sua obra,
a) A teoria de Marx e os marxismos; b) Marx e as ten- debater os principais conceitos e formulações do mar-
tativas de construção do socialismo; c) A crítica da eco- xismo gramsciano e apresentar uma proposta de uso das
nomia política em perspectiva: 150 anos de O Capital; d) “lentes gramscianas” para a análise do Brasil de hoje.
Marx, o marxismo e a história: teoria e historiografia; e) Encerra esta primeira parte do dossiê o artigo de Ro-
Marx, a América Latina e o Brasil; f) Marx, as lutas dos drigo Cesar intitulado O marxismo no Brasil: Caio Prado
trabalhadores e o movimento sindical; g) Marx, as mar- Júnior e a economia política. Neste texto, é feita a análise
xistas e a luta das mulheres; h) Arte e estética em Marx; dos debates travados por intérpretes da obra do autor
i) Marx e o movimento socialista hoje; j) Friedrich En- sobre o lugar do marxismo e de Caio Prado Júnior no
gels: contribuições a Marx e ao marxismo; k) Resenhas pensamento econômico brasileiro, bem como sobre os
de obras de Marx e Engels. usos que o autor faz de alguns conceitos da economia
política.
Como inicialmente previsto, os artigos recebidos e apro-
vados pelo Conselho Editorial serão publicados em mais Boa leitura!
de uma edição. Nesta, o dossiê inicia com um texto de
Bruno Elias intitulado Estratégia e luta de classes no Mani- A editora e os editores

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MARX200anos DOSSIÊ

Estratégia e lutas de
classes no Manifesto A origem militar do conceito de estra-
tégia remete ao planejamento geral da campanha e
das operações necessárias para vencer uma guer-

do Partido Comunista ra. Para alcançar este objetivo, a estratégia supõe


uma visão de conjunto que seja capaz de analisar
o terreno em que se darão os combates decisivos, a
correlação das forças em conflito e os movimentos
Por Bruno Elias e cenários futuros.
Na política, a estratégia dos comunistas se re-
fere ao caminho planejado pela classe trabalhado-
A síntese política e teórica da estratégia ra para conquistar o poder político e iniciar uma
dos comunistas contida no Manifesto se transição capaz de superar o capitalismo e cons-
truir uma sociedade sem classes e sem exploração,
espraia até hoje pelo mundo. A perspectiva uma sociedade comunista. Em estudo sobre as con-
cepções de Marx, Engels e Lenin sobre estratégia
que situa o capitalismo como um modo de e tática, Vania Bambirra e Theotonio dos Santos
produção historicamente determinado, que apontam que a estratégia da revolução socialista
exige uma escrupulosa análise do capitalismo, das
teve um início e se modificou ao longo do classes sociais em luta e de suas tendências de de-
tempo, também nos permite concluir que senvolvimento em âmbito nacional e internacional.
“A estratégia dependerá, portanto, do nível de
ele pode ser superado historicamente. desenvolvimento da sociedade em que atua o pro-
letariado. Dependerá do grau de desenvolvimento
do capitalismo e, consequentemente, do proletaria-
do como força organizada e consciente de seu po-
der relativo na sociedade e dependerá, também, do
peso, desenvolvimento, organização e consciência
das outras classes e grupos. Assim, a estratégia do
movimento revolucionário socialista deve mudar
e adaptar-se às condições concretas – econômicas,
históricas, sociais e políticas – em que atuam os par-
tidos marxistas. Entre essas condições se incluem as
de carater internacional, que determinam a orien-
tação de conjunto do movimento; mas há que con-
siderar, também, as diversidades regionais e nacio-
nais, dentro das condições históricas internacionais
existentes.” (BAMBIRRA e DOS SANTOS, 1979, p.7,
tradução nossa)
Dentre as significativas contribuições de Marx
e Engels a este debate, o Manifesto do Partido Co-
munista se destaca pela capacidade de sintetizar
alguns dos elementos fundamentais de uma es-
tratégia socialista e revolucionária da classe tra-
balhadora. Enviado para publicação em Londres

ESQUERDA PETISTA #9 - 2018 - 1 51


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nas vésperas da “revolução de fevereiro” de existência de outras correntes socialistas no classes está vinculada meramente a deter-
1848 que derrubou a monarquia francesa, o movimento operário, Marx e Engels procla- minadas fases históricas de desenvolvimento
Manifesto encomendado pela Liga dos Co- maram no texto a perspectiva anticapitalis- da produção ; 2. que a luta de classes conduz
munistas captava o sentimento revolucioná- ta e o compromisso do partido comunista necessariamente à ditadura do proletariado;
rio da época. As mudanças sem precedentes com os objetivos imediatos e estratégicos da 3. que essa ditadura mesma constitui apenas
no campo econômico, social e técnico-cien- classe trabalhadora. a transição rumo à abolição de todas as clas-
tífico desencadeadas nas décadas anterio- ses e a uma sociedade sem classes.” (MARX,
res pelas revoluções francesa e industrial O desenvolvimento do capitalismo 2007)
coexistiam com as formações políticas do e das classes em luta Entranhadas nas condições materiais
Antigo Regime. A agitação política dos seto- de existência de cada sociedade, as lutas de
res progressistas da burguesia e da pequena O manifesto comunista é dividido em classes são motores das mudanças históri-
burguesia alcançava os trabalhadores, que quatro capítulos. No primeiro e mais exten- cas. Esta perspectiva de totalidade do méto-
começavam a se constituir como força po- so deles, “Burgueses e proletários”, Marx do materialista e dialético desenvolvido por
litica independente na luta democrática e e Engels expõe aspectos fundamentais da Marx se constituiu como um poderoso ins-
contra a exploração de sua força de trabalho. estratégia revolucionária dos comunistas, trumento de análise da vida social. Em pre-
ao analisar as classes sociais e as lutas de fácio de 1885 a um dos artigos de Marx em
“O Manifesto encomendado classes na sociedade burguesa a partir do que esse método é aplicado com maestria, O
pela Liga dos Comunistas captava desenvolvimento histórico do capitalismo. 18 Brumário de Luís Bonaparte, Engels rei-
o sentimento revolucionário da época.” A conhecida passagem com a qual é aberto tera a importância das lutas de classes na
o capítulo - “A história de todas as socieda- formulação marxiana:
A deterioração das condições de vida des até hoje existentes é a história da luta “Marx foi o primeiro a descobrir a gran-
das massas populares seria um dos detona- de classes” (p. 40) – é o fio condutor de uma de lei do movimento da história, a lei segun-
dores das revoluções de 1848, a chamada narrativa histórica que entrelaça o confron- do a qual todas as lutas históricas travadas
“Primavera dos Povos”. Ao longo da década to entre a burguesia e o proletariado aos no âmbito político, religioso, filosófico ou em
de 1840, o descontentamento com a ordem antagonismos de classes que lhes antece- qualquer outro campo ideológico são de fato
antiga convergiu, de forma singular em cada deram. Em outras palavras, as lutas de clas- apenas a expressão mais ou menos nítida de
país, com a revolta contra os efeitos sociais ses, travadas entre burgueses e proletários, lutas entre classes sociais, a lei segundo a
devastadores da crise econômica na Europa: também estavam presentes na opressão dos qual a existência e, portanto, também as co-
“Como as outras crises na política da homens livres e patrícios sobre os escravos lisões entre essas classes são condicionadas,
classe governante europeia, coincidiu com e a plebe da antiguidade e nas lutas de clas- por sua vez, pelo grau de desenvolvimento da
uma catástrofe social: a grande depressão ses que permeavam as relações de servidão sua condição econômica, pelo modo de pro-
que varreu o continente a partir da metade e corporações medievais. dução.” (ENGELS, 2011, p. 22)
da década de 1840. As colheitas – e em espe- A este respeito, antes de adentrar na Retomando a exposição do Manifesto,
cial a safra de batatas – fracassaram. Popu- exposição propriamente dita do Manifesto Marx e Engels afirmam que no capitalismo
lações inteiras como as da Irlanda, e até certo sobre as classes sociais em luta na socie- os antagonismos de classes foram simpli-
ponto também as da Silésia e Flanders, mor- dade burguesa, convém destacar a impor- ficados e a sociedade se tornou cada vez
riam de fome. Os preços dos gêneros alimentí- tância dada por Marx e Engels à análise das mais polarizada pelas lutas entre a bur-
cios subiam. A depressão industrial multipli- lutas de classes na construção da estratégia guesia e o proletariado. Em favor de uma
cava o desemprego, e as massas urbanas de do proletariado. Em carta a Joseph Weyde- caracterização inicial das duas classes
trabalhadores pobres eram privadas de seus meyer, de 5 de março de 1852, Marx desta- fundamentais que dão nome ao capítulo,
modestos rendimentos no exato momento em caria alguns desses aspectos: Engels agregou à edição inglesa de 1888
que o custo de vida atingia proporções gigan- “[…] no que me diz respeito, não me cabe do Manifesto uma definição da burguesia
tescas.” (HOBSBAWM, 2011, p. 480) o mérito de ter descoberto nem a existência como “a classe dos capitalistas modernos,
das classes na sociedade moderna nem a luta proprietários dos meios de produção social
Diante de uma revolução social imi- travada entre estas. Historiadores burgueses que empregam o trabalho assalariado” (p.
nente, o Manifesto Comunista tinha como já haviam, muito antes de mim, apresentado 40). O proletariado, por sua vez, conforma-
objetivo apresentar ao proletariado de todo o desenvolvimento histórico dessa luta de va “a classe dos assalariados modernos que,
o mundo o programa teórico e de ação dos classes e os economistas burgueses, a ana- não tendo meios próprios de produção, são
comunistas. Em oposição ao que se dizia do tomia econômica das classes. O que fiz de obrigados a vender sua força de trabalho
“espectro do comunismo” e considerando a novo foi : 1. demonstrar que a existência das para sobreviver” (idem).

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A burguesia, surgida dentre os mora- Crises comerciais e de superprodução cada trabalho aumentar o capital. Este trabalha-
dores dos antigos burgos da Idade Média, vez mais extensas exigiam a destruição pe- dor, obrigado a vender sua força de trabalho
emergiu com a expansão das navegações, riódica das forças produtivas e a exploração como uma mercadoria qualquer, torna-se
do comércio e dos mercados coloniais. O mais intensa de novos e antigos mercados. um “apêndice da máquina” e está completa-
impulso das novas forças de produção a ela Algumas das condições necessárias para a mente subjugado às incertezas do mercado.
associadas substituiu as corporações me- superação da ordem burguesa estavam sen- A incorporação da maquinaria e a divisão de
dievais pelas manufaturas que, por sua vez, do engendradas pelas próprias crises ine- trabalho da grande indústria implicaram no
seriam superadas pela grande indústria mo- rentes ao capitalismo. aumento da quantidade de trabalho, no re-
derna. Essas monumentais transformações baixamento dos salários e na redução ao mí-
no modo de produção e circulação trans- “A perspectiva de totalidade do método nimo dos meios de subsistência necessários
correram por um largo período histórico e materialista e dialético desenvolvido por para a reprodução dos trabalhadores. Nos
o caminho trilhado pela burguesia incluiu Marx se constituiu como um poderoso locais de trabalho, os operários eram con-
momentos de conciliação e conflito com a instrumento de análise da vida social.” centrados sob um forte controle nas fábricas
ordem feudal. e as condições aviltantes de trabalho foram
“Classe oprimida pelo despotismo feu- Neste processo de desenvolvimento estendidas de forma indiscriminada, quan-
dal, associação armada e autônoma na co- capitalista se formou também o proleta- do não preferencial, às crianças e mulheres.
muna, aqui república urbana independente, riado, a classe dos operários modernos, os Neste contexto de brutal exploração
ali terceiro estado tributário da monarquia; quais dependem do trabalho para viver e da classe trabalhadora, o Manifesto destaca
depois, durante o período manufatureiro, assim o conseguem, na medida em que seu o processo de constituição do proletariado
contrapeso da nobreza na monarquia feu-
dal ou absoluta, base principal das grandes
monarquias, a burguesia, com o estabele-
cimento da grande indústria e do mercado
mundial, conquistou, finalmente, a sobera-
nia política exclusiva no Estado represen-
tativo moderno. O executivo no Estado mo-
derno não é senão um comitê para gerir os
negócios comuns de toda a classe burguesa.”
(MARX; ENGELS, p. 42)
Marx e Engels reconheceram o papel
revolucionário da burguesia na dissolução
do feudalismo. As contínuas transformações
da produção, das relações sociais e a expan-
são sem precedentes dos mercados foram
sentidas em todas as regiões do mundo. O
desenvolvimento capitalista liderado pela
burguesia submeteu o campo à cidade, pos-
sibilitou o crescimento da população urba-
na, concentrou a propriedade e desvaneceu
antigas fronteiras nacionais. Quando se tor-
naram incompatíveis com as novas forças
produtivas, as antigas relações de produção Marx e Engels reconheceram o papel
e de organização da propriedade feudal fo-
ram suplantadas pela livre concorrência na
revolucionário da burguesia na dissolução do
ordem econômica e pelas formas políticas feudalismo. As contínuas transformações da
da supremacia burguesa.
Essas mesmas contradições entre as produção, das relações sociais e a expansão sem
relações de produção e o regime de proprie- precedentes dos mercados foram sentidas em
dade com as forças produtivas passaram a
recair também sobre a sociedade burguesa. todas as regiões do mundo.

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como classe, como sujeito político indepen- primeiras associações e motins contra os
dente em luta contra burguesia. Num pri- burgueses.
meiro momento, a indignação isolada dos Destacando-se de outras correntes de-
operários se voltava contra o burguês que mocrático-radicais e socialistas da época,
lhes explorava diretamente e se manifesta- Marx e Engels identificaram no Manifesto
va na destruição de mercadorias, máquinas Comunista o proletariado como a “classe
e fábricas. Essa atuação dispersa da classe verdadeiramente revolucionária”. Foi nesse
trabalhadora ainda não tinha como centro diapasão que analisaram a estrutura de clas-
as relações sociais capitalistas, o que a dei- ses da sociedade burguesa ao longo do texto.
xou submetida à direção política da burgue- Aos tratar das camadas médias, considera-
sia contra “os restos da monarquia absoluta, vam-nas conservadoras, quando confronta-
os proprietários de terras, os burgueses não vam a burguesia para manter sua posição
industriais, os pequenos burgueses” (p. 47). na sociedade, ou revolucionárias, quando a
A expansão industrial e o crescimento proletarização iminente de sua condição as
do contingente de operários são acompa- empurravam para as posições da classe tra-
nhados de uma maior conscientização da balhadora. O lúmpen-proletariado, por sua
classe trabalhadora. Da aliança inicial com vez, é descrito como “putrefação passiva das
a burguesia contra a aristocracia e outras camadas mais baixas da velha sociedade”
frações das classes dominantes, o proleta- que “pode, às vezes, ser arrastado ao movi-
riado absorverá elementos decisivos de or- mento por uma revolução proletária”, mas
ganização e formação política para as lutas cujas condições de vida não raro “o predis-
vindouras contra a própria burguesia. Este põem mais a vender-se à reação”. (p. 49)
aprendizado político permitiu também que O acirramento das lutas de classes e e reitera o compromisso do partido com os
a classe trabalhadora se aproveitasse das di- as crescentes contradições entre o colossal interesses do proletariado em todas as suas
visões internas das classes dominantes para desenvolvimento das forças produtivas e a fases de luta contra a burguesia.
avançar suas conquistas. Um dos exemplos ordem social burguesa colocavam a revolu- Esquadrinhando a estratégia dos co-
mais notáveis de tais deslocamentos políti- ção social e a derrubada da supremacia bur- munistas, o Manifesto enuncia que o objeti-
cos foi a aprovação da lei da jornada de dez guesa na ordem do dia. No seio dessas con- vo imediato do partido comunista não é ou-
horas de trabalho na Inglaterra, que contou tradições, o proletariado se constituía como tro senão o da “constituição do proletariado
com o apoio circunstancial dos conserva- uma classe que não poderia emancipar a si em classe, derrubada da supremacia bur-
dores (“tories”) e foi narrada por Marx com própria sem emancipar o conjunto da socie- guesa, conquista do poder político pelo pro-
impressionante riqueza de informações his- dade. A burguesia, como conclui a conhecida letariado” (p.51). Como elemento central de
tóricas no capitulo oitavo de O Capital. passagem do Manifesto Comunista, “produz, sua teoria, os comunistas defendem a su-
Nesta fase do “desenvolvimento do sobretudo, seus próprios coveiros”. (p. 51) pressão da propriedade privada burguesa,
proletariado”, as crises comerciais decor- tida como expressão maior dos antagonis-
rentes da crescente concorrência burguesa Objetivos estratégicos e programáticos mos de classe e da exploração do trabalho
e o aperfeiçoamento da maquinaria geraram dos comunistas assalariado pelo capital. Respondendo às
instabilidade dos salários, proletarização de acusações dirigidas aos comunistas, Marx e
parte das camadas médias e precarização Depois de analisar o desenvolvimento Engels asseveram que é a forma burguesa
ainda maior das condições de vida da clas- histórico do capitalismo e das classes em luta de propriedade que subjuga o trabalho as-
se trabalhadora. Ao tempo em que os con- na sociedade burguesa, o segundo capítulo salariado que deve ser abolida, não o fruto
flitos com a burguesia se agravavam, o de- do Manifesto - “Proletários e comunistas” - do trabalho dos indivíduos ou sua parte dos
senvolvimento dos meios de comunicação e delineia alguns dos objetivos estratégicos e produtos sociais:
transporte possibilitava uma maior unidade programáticos do partido comunista. De par- “Não pretendemos de modo algum abo-
da classe e diminuição das distâncias en- tida, enfatiza a dimensão internacionalista lir essa apropriação pessoal dos produtos
tre os trabalhadores das várias localidades da estratégia ao afirmar que os comunistas do trabalho, indispensável à manutenção e
e nacionalidades. A partir de uma situação nas “diversas lutas nacionais dos proletários, à reprodução da vida humana – uma apro-
comum de exploração, o proletariado co- destacam e fazem prevalecer os interesses priação que não deixa nenhum lucro líquido
meçou a se constituir como “classe para si”, comuns do proletariado, independente da que confira poder sobre o trabalho alheio.
com força social própria para organizar suas nacionalidade” (MARX; ENGELS, 2010, p. 51) Queremos apenas suprimir o caráter mise-

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Depois de rebater outras acusações da das é útil para uma melhor caracterização
burguesia contra as posições dos comunis- do programa defendido por Marx e Engels
tas em temas como a família burguesa, a para a primeira fase da revolução socialista:
educação doméstica, a exploração das mu- 1. Expropriação da propriedade lati-
lheres, a questão nacional e as ideias domi- fundiária e emprego da renda da terra para
nantes, o Manifesto descreve a estratégia de despesas do Estado;
conquista do poder pelo proletariado, por 2. Imposto fortemente progressivo;
meio de uma revolução, como uma fase de 3. Abolição do direito de herança;
“elevação do proletariado a classe dominan- 4. Confisco da propriedade de todos os
te” e “conquista da democracia”. emigrados e rebeldes;
Nesta fase, a revolução operária desen- 5. Centralização do crédito nas mãos
cadearia um processo de transição socia- do Estado por meio de um banco nacional
lista que incluiria medidas que incidissem com capital do Estado e com o monopólio ex-
contra a propriedade privada burguesa e as clusivo;
relações de produção capitalistas. O proleta- 6. Centralização de todos os meios de
riado utilizaria sua supremacia política para comunicação e transporte nas mãos do Es-
“arrancar pouco e pouco todo o capital da tado;
burguesia, para centralizar todos os instru- 7. Multiplicação das fábricas nacio-
mentos de produção na mão do Estado, isto nais e dos instrumentos de produção, arro-
é, do proletariado organizado como classe teamento das terras incultas e melhoramen-
dominante, e para aumentar o mais rapida- to das terras cultivadas, segundo um plano
mente possível o total das forças produtivas”. geral;
rável desta apropriação, que faz com que o (MARX; ENGELS, 2010, p. 58) 8. Unificação do trabalho obrigatório
operário só viva para aumentar o capital e só para todos, organização de exércitos indus-
viva na medida em que o exigem os interes- “É exatamente contra a injustiça da pro- triais, particularmente para a agricultura;
ses da classe dominante. “ (MARX; ENGELS, priedade privada burguesa que se vol- 9. Unificação dos trabalhos agrícola
2010, p.53) tam os comunistas.” e industrial; abolição gradual da distinção
É exatamente contra a injustiça da pro- entre a cidade e o campo por meio de uma
priedade privada burguesa que se voltam Ao final do segundo capítulo do Mani- distribuição mais igualitária da população
os comunistas. Ciosa de seus privilégios e festo, Marx e Engels listaram um conjunto de pelo país;
interesses de classe, a burguesia tenta im- medidas programáticas que poderiam ser 10. Educação pública e gratuita a todas
por aos que querem superar esta situação adotadas, considerando as condições histó- as crianças, abolição do trabalho das crian-
a pecha de inimigos da individualidade e da ricas e a diversidade de cada país. Os pró- ças nas fábricas, tal como é praticado hoje.
liberdade. Nada mais revelador: liberdade prios autores, em prefácio à edição alemã Combinação da educação com a produção
para a burguesia é, centralmente, a liberda- de 1872 do Manifesto, solicitavam que tais material, etc. (MARX; ENGELS, 2010, p. 58).
de de comércio e a liberdade de dispor de medidas revolucionárias fossem relativi- Estas medidas programáticas da transi-
bens e da propriedade negados às maiorias. zadas historicamente, dadas as enormes ção socialista deveriam ser orientadas para
“Horrorizai-vos porque queremos su- transformações ocorridas no capitalismo, a ampliação das forças produtivas e para a
primir a propriedade privada. Mas em vossa na organização da classe trabalhadora des- socialização dos meios de produção, da pro-
sociedade a propriedade privada está supri- de 1848 e “a experiência prática adquirida, priedade e do poder político. A destruição
mida para nove décimos de seus membros. E primeiramente na revolução de fevereiro e, das antigas relações de produção e seus anta-
é precisamente porque não existe para estes mais ainda, na Comuna de Paris, onde coube gonismos de classes minaria a existência das
nove décimos que ela existe para vós. Censu- ao proletariado, pela primeira vez, a posse classes sociais em geral e da própria domina-
rai-nos, portanto, por querermos abolir uma do poder político, durante quase dois meses”. ção de classe do proletariado. Esta transição
forma de propriedade que pressupõe como Esta última experiência, em especial, de- compreenderia um período histórico ao final
condição necessária que a imensa maioria monstrou ao movimento operário que “não do qual ingressaríamos em uma etapa supe-
da sociedade não possua propriedade. (...) basta que a classe trabalhadora se apodere rior da história da humanidade, com o surgi-
Numa palavra, censurai-nos por querermos da máquina estatal para fazê-la servir a seus mento de uma “associação na qual o livre de-
abolir vossa propriedade. De fato, é isso que próprios fins” (p. 72). Não obstante esta ad- senvolvimento de cada um é a condição para o
queremos.” (MARX; ENGELS, 2010, p. 54) vertência geral, a transcrição destas medi- livre desenvolvimento de todos” (p. 59)

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Socialistas e comunistas Segundo o Manifesto, o socialismo rea- O socialismo conservador ou burguês


cionário englobava a) o socialismo feudal; b) reunia as tentativas de remediar as mazelas
Nos idos da década de 1840, a audiência o socialismo pequeno-burguês; e c) o socia- sociais do capitalismo sem tocar nas rela-
da concepção científica de socialismo em de- lismo alemão ou “verdadeiro” socialismo. O ções de produção e propriedade burguesas.
senvolvimento por Marx e Engels ainda não socialismo feudal expressava as posições de Incluía uma variedade de reformismos me-
era expressiva e os comunistas disputavam a setores da aristocracia feudal e do clero que, lhoristas de caráter burguês e supostamen-
direção do movimento operário com outras dissimulando seus interesses de classe, fin- te preocupados com a classe trabalhadora.
tendências democrático-radicais e socialis- giam combater a burguesia em favor dos tra- Dentre essas propostas, por vezes comple-
tas. Nesse sentido, o Manifesto cumpriu tanto balhadores explorados. O socialismo peque- xas, Marx e Engels citam como exemplo a
o papel de expressar o estado da arte das des- no burguês compreendia posições oriundas Filosofia da Miséria, de Pierre-Joseph Prou-
cobertas teóricas de Marx e Engels quanto o da pequena burguesia e do campesinato que dhon (1809-1865).
de apresentar a linha política que diferencia- decaíra com a ascensão da burguesia. Esta O socialismo e o comunismo crítico-u-
va os comunistas dos demais partidos operá- literatura, da qual se destacava o nome do tópicos remetem à tradição das modernas
rios. No prefácio à edição alemã de 1883, pu- economista Jean de Sismondi (1773-1842), revoluções burguesas e das primeiras rei-
blicado após a morte de Marx, Engels situaria denunciava alguns males do capitalismo, vindicações do proletariado no processo de
historicamente essa posição: mas defendia soluções baseadas nas antigas dissolução da ordem feudal. Seus represen-
“Em 1847, consideravam-se socialistas relações de produção e propriedade, como tantes pregavam noções rudimentares de
dois tipos diversos de pessoas. De um lado, ha- as corporações na manufatura e a economia ascetismo e igualitarismo que expressavam
via os adeptos dos vários sistemas utópicos, patriarcal camponesa. O “verdadeiro” socia- a incipiente organização da classe traba-
principalmente os owenistas, na Inglaterra, lismo alemão, por sua vez, era uma adapta- lhadora de então e o desenvolvimento ma-
e os fourieristas, na França, ambos já redu- ção rebaixada das ideias socialistas pela pe- terial limitado das sociedades que lhe ser-
zidos a meras seitas agonizantes. De outro, quena burguesia alemã, eivada de palavrea- viram de palco. As concepções socialistas
os vários gêneros de curandeiros sociais, que do filosófico e descolada do proletariado e e comunistas deste tipo tiveram o mérito
queriam eliminar, por meio de suas várias pa- da crítica anticapitalista. de denunciar aspectos da sociedade capi-
naceias e com todas as espécies de cataplas-
ma, as misérias sociais, sem tocar no capital Com o objetivo de contribuir com a unidade dos
e no lucro. Nos dois casos, eram pessoas que
não pertenciam ao movimento dos traba- comunistas e um melhor entendimento sobre
lhadores, preferindo apoiar-se nas classes
“cultas”. Em contrapartida, o setor da classe
as diferentes concepções teóricas e políticas em
trabalhadora que exigia uma transformação disputa, a terceira seção do Manifesto revisou
radical da sociedade, convencido de que revo-
luções meramente políticas eram insuficien- parte da literatura socialista e comunista até 1847
tes, denominava-se então comunista. (...) Em
1847, o socialismo significava um movimento
burguês, e o comunismo, um movimento da
classe trabalhadora.“ (ENGELS, 2010, p.77)
Com o objetivo de contribuir com a
unidade dos comunistas e um melhor en-
tendimento sobre as diferentes concepções
teóricas e políticas em disputa, a terceira se-
ção do Manifesto revisou parte da literatura
socialista e comunista até 1847. Tratava-se
de fazer a disputa ideológica contra as ideias
conservadoras e utópicas que eram difundi-
das junto à classe trabalhadora. A literatura
criticada por Marx e Engels foi dividida em
três grupos: 1) o socialismo reacionário; 2)
o socialismo conservador ou burguês e 3) o
socialismo e o comunismo crítico-utópicos.

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talista e conscientizar os operários de seu dora: “Que as classes dominantes tremam à a história da luta de classes, da luta entre ex-
tempo. No entanto, privilegiaram um cha- ideia de uma revolução comunista! Nela os plorados e exploradores, entre as classes do-
mado utópico da sociedade futura dirigido proletários nada têm a perder a não ser os minadas e dominantes nos vários estágios da
a todas as classes em detrimento das lutas seus grilhões. Têm um mundo a ganhar. Pro- evolução social; que essa luta, porém, atingiu
da classe trabalhadora e da ação política e letários de todos os países, uni-vos!” (MARX; um ponto em que a classe oprimida e explora-
revolucionária. São citados como expoen- ENGELS, 2010, p. 69) da (o proletariado) não pode mais libertar-se
tes desta corrente o conde de Saint-Simon No entanto, as expectativas de Marx e da classe que a explora e oprime (a burgue-
(1760-1825), Charles Fourier (1772-1837) Engels com o curso da revolução proletária sia) sem que, ao mesmo tempo, liberte para
e Robert Owen (1771-1858) não se concretizariam naquele momento. As sempre toda a sociedade da exploração e da
lutas populares que desembocaram nas revo- luta de classes – este pensamento fundamen-
Alianças e internacionalismo proletário luções de 1848 foram duramente reprimidas tal pertence única e exclusivamente a Marx.”
pelas classes dominantes e a reação burgue- (ENGELS, 2010, p. 74)
A despeito da contundência da crítica sa pavimentou a expansão capitalista que se A síntese política e teórica da estraté-
que Marx e Engels submeteram as demais seguiu. Apenas anos depois, com as lutas em gia dos comunistas contida no Manifesto se
classes sociais e correntes políticas, os co- diversos países pela redução da jornada de espraia até hoje pelo mundo. A perspecti-
munistas adotavam no tema estratégico das trabalho e com a criação da Associação Inter- va que situa o capitalismo como um modo
alianças a flexibilidade necessária aos pro- nacional dos Trabalhadores, em 1864, a clas- de produção historicamente determinado,
cessos revolucionários dos países em que se trabalhadora retomaria a ofensiva política. que teve um início e se modificou ao lon-
atuavam. No quarto e último capítulo do Ma- Ao formular o programa da primeira Interna- go do tempo, também nos permite concluir
nifesto, “Posição dos comunistas diante dos cional, Marx contribuiria mais uma vez para a que ele pode ser superado historicamente.
diversos partidos de oposição”, são prescri- unidade internacional do proletariado. A compreensão de que esta tarefa histórica
tas alianças que incluíam partidos díspares cabe às classes trabalhadoras exploradas,
como os socialistas democráticos franceses, “Os comunistas deveriam pautar como oprimidas e despossuídas de todo o mun-
os burgueses radicais suíços, os democratas fundamental a questão da propriedade do nos convoca aos estudos, à organização
revolucionários poloneses e mesmo a bur- e trabalhar pela unidade dos partidos e à luta.
guesia alemã, se esta última atuasse pela democráticos.”
revolução. Os comunistas, mesmo quando BRUNO ELIAS é assistente social e
se aliavam a outras classes e partidos em lu- Nos marcos do bicentenário do nas- militante do Partido dos Trabalhadores
tas democráticas, populares e de libertação cimento de Marx e passados 170 anos da
nacional, não descuidavam de sua missão de publicação do Manifesto Comunista, o de-
lutar pelos interesses e objetivos da classe senvolvimento do capitalismo, das lutas REFERÊNCIAS
trabalhadora nem da consciência do seu an- de classes e as próprias experiências re-
tagonismo de classe com a burguesia. Em to- volucionárias da classe trabalhadora cer- BAMBIRRA, Vania; DOS SANTOS, Theotonio. La estra-
dos estes processos revolucionários, os co- tamente impuseram novas leituras deste tegia y la táctica socialistas de Marx y Engels a Lenin.
Tomo 1. México, DF: Ediciones Era, 1980.
munistas deveriam pautar como fundamen- documento histórico. É compreensível,
tal a questão da propriedade e trabalhar inclusive, que seu caráter panfletário não ENGELS, Friedrich. Prefácio à edição alemã de 1883.
pela unidade dos partidos democráticos. tenha permitido o detalhamento dos vários In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunis-
No caso específico da revolução alemã, temas que ele contempla. A despeito dessas ta. 1ª ed. rev. São Paulo: Boitempo, 2010.
as alianças pontuais necessárias para der- retificações, algumas das quais apontadas ENGELS, Friedrich. Prefácio à 3ª edição de 1885 In:
rubar a monarquia absolutista e a ordem pelos próprios autores, o resumo de Engels MARX, Karl. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. São
feudal não deveriam desviar os comunistas sobre uma das contribuições fundamentais Paulo: Boitempo, 2011.
da tarefa de “converter as condições sociais de Marx ao Manifesto persiste atual:
HOBSBAWM, Eric J. A era das revoluções. 25ª ed. rev.
e políticas, criadas pelo regime burguês, em “A ideia fundamental que percorre todo São Paulo: Paz e Terra, 2011.
outras tantas armas contra a burguesia, para o Manifesto é a de que, em cada época históri-
que logo após terem sido destruídas as clas- ca, a produção econômica e a estrutura social MARX, Karl. Carta de Karl Marx a Joseph Weyde-
ses reacionárias da Alemanha possa ser tra- que dela necessariamente decorre, consti- meyer (5 de março de 1852). Marxists, 2007. Dispo-
nível em: https://www.marxists.org/portugues/
vada a luta contra a própria burguesia”. Em tuem a base da história política e intelectual
marx/1852/03/05.htm. Acessado em: 12 abr. 2018.
seguida, o Manifesto Comunista é concluído dessa época; que consequentemente (desde a
com um aviso aos exploradores e um apelo dissolução do regime primitivo da proprieda- MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista.
internacionalista à luta da classe trabalha- de comum da terra) toda a História tem sido 1ª ed. rev. São Paulo: Boitempo, 2010.

ESQUERDA PETISTA #9 - 2018 - 1 57


DOSSIÊ MARX200anos

Sobre a teoria marxiana


do Estado burguês O pensamento político de
Karl Marx passou por desenvolvimentos,
até constituir o núcleo de elementos de
Por Francisco Pereira de Farias sua teoria do Estado burguês. O texto de
referência na transição de sua concepção
filosófica do Estado burguês (assentada
A formulação de Marx sintetiza um na tradição das teorias axiomáticas e pre-
sente no Manifesto comunista) para visão
elemento central em sua teoria do Estado científica (que rompe com o discurso do
sistema de crenças ou axiomas e cuja for-
burguês, o sentido da dominação de ma de construção teórica vem inaugurada
em O capital) é O 18 Brumário de Luís Bo-
classe. Mas a classe dominante passa naparte. Neste último, Marx combina uma
por diferenciações internas, as frações teoria sincrônica sobre o Estado, teoria
ainda em gestação em termos do ceticismo
de classe, que suscitam uma competição metodológico, com a teoria diacrônica da
luta de classes, já desenvolvida pelos his-
política pelo controle dos benefícios das toriadores da vida das nações modernas,
produzindo uma análise concreta do pro-
medidas estatais sobre a rentabilidade da cesso histórico-político. Por isso dedicare-
mos este artigo à tentativa de comentários
economia capitalista no seu todo e de suas a formulações ou indicações presentes em
frações em particular. O 18 Brumário e em O capital.

I
1) “A república burguesa representa-
va o despotismo irrestrito de uma classe
sobre outras classes” (Marx, 2011, p. 36).
A formulação de Marx sintetiza um
elemento central em sua teoria do Estado
burguês, o sentido da dominação de clas-
se. Aparentemente a República significa-
va o exercício da soberania popular pelos
representantes diretos do povo, o Parla-
mento. No entanto, a organização institu-
cional desta forma de Estado e os valores
a ela subjacentes – o direito na forma
sujeito (livre-arbítrio) e na forma iguali-
tária (o tratamento igual aos desiguais);
as regras administrativas ou burocráticas
com base nos critérios de competência e
mérito – produzem efeitos discursivos (o
contrato da compra e venda de trabalho;

58 ESQUERDA PETISTA #9 - 2018 - 1


MARX200anos DOSSIÊ

A desigualdade de
recursos econômicos
entre a classe do capital
e a classe assalariada
implica uma desigualdade
de recursos políticos
(informação, organização
etc.), ensejando à
classe capitalista maior
capacidade de influenciar
os membros do aparelho
de Estado

o coletivo povo-nação) favoráveis à reprodu- dirigentes partidários e estatais, uma vez minante passa por diferenciações internas,
ção das relações de produção capitalistas, que tais dirigentes tendem a frequentar os as frações de classe, que suscitam uma com-
à medida que individualizam (pessoas) os espaços sociais comuns a tais grupos. Assim, petição política pelo controle dos benefícios
membros da classe assalariada, distancian- como indicou Ralph Miliband, em O Estado das medidas estatais sobre a rentabilidade
do-os do sentimento de classe social, e os na sociedade capitalista, as predisposições da economia capitalista no seu todo e de
propõem à fidelidade a um agrupamento al- valorativas da burocracia do Estado tendem suas frações em particular. A tendência é
ternativo, o povo-nação, ao qual a burocra- a concretizar-se na identificação dos inte- que uma das frações do capital – indústria,
cia do Estado, movida pelo sentimento da resses nacionais com os interesses da eco- comércio, banco – venha a ter preponde-
racionalidade, se apresenta como a defenso- nomia capitalista. rância no atendimento de interesses pelas
ra dos interesses em comum. políticas governamentais. Porque, dadas a
Além disso, a desigualdade de recursos “A organização institucional desta forma tendência à concentração e à centralização
econômicos entre a classe do capital e a clas- de Estado (República) e os valores a ela do capital, estabelece-se uma desigualdade
se assalariada implica uma desigualdade de subjacentes produzem efeitos discursi- entre os capitais não apenas pelos setores
recursos políticos (informação, organização vos favoráveis à reprodução das relações de atividade (produção, circulação), como
etc.), ensejando à classe capitalista maior de produção capitalistas.” também pela distribuição territorial (cen-
capacidade de influenciar os membros do tro, periferia), pela escala de investimentos
aparelho de Estado, pela pressão de seus re- 2) “À monarquia burguesa de Luís Fili- (grande capital, médio capital), pela forma
presentantes diretos (líderes de associações pe só poderia seguir a república burguesa, de lucratividade almejada (capital privado,
patronais, notáveis). Essa influência se faz isto é, ao passo que, em nome do rei, o go- capital estatal). Assim, em cada fase de de-
também por meios indiretos, como a socia- verno foi exercido por uma parcela restrita senvolvimento capitalista, um anel de fra-
lização educacional e política dos dirigentes da burguesia, em nome do povo, a totalida- ções detém as melhores condições (econô-
estatais. Geralmente, os membros da classe de da burguesia passaria a governar” (Idem, micas, políticas) para exercer a hegemonia
superior têm acesso aos principais centros ibidem, p. 34). no seio da classe dominante.
universitários de economia e de administra- Marx introduz aqui outro elemento de Entretanto, em determinadas situações
ção pública, cujas doutrinas são seleciona- sua teoria do Estado burguês, que foi desen- históricas, especialmente nos processos de
das pelos valores institucionais difundidos volvido por Nicos Poulantzas, em O poder transição de um tipo de formação social a
pelo funcionamento do tipo de Estado. Os político e classes sociais. Trata-se do tema da outro, tende ocorrer um equilíbrio político
grupos empresariais dispõem também de hegemonia no interior do bloco de classes no interior da classe proprietária dos meios
mais facilidade de acesso e contatos com dominantes ou bloco no poder. A classe do- de produção; é o caso em que nenhuma

ESQUERDA PETISTA #9 - 2018 - 1 59


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2018 DOSSIÊ

das suas frações é capaz de apresentar o


seu interesse como representativo do con-
junto dessa classe. A burocracia do Estado
vem adquirir um máximo de independên-
cia frente às frações dominantes, passando
a pautar a política econômica por medidas
que exigem sacrifícios de interesses estra-
tégicos de cada fração, impactando então os
interesses institucionais globais da classe
dominante. É neste sentido que Poulantzas
ressalta um dos significados do bonapartis-
mo no texto de Marx: o padrão de política
estatal no qual a totalidade dos interesses
da classe burguesa passa a prevalecer, seja
através de uma coalisão político-eleitoral (a
República parlamentar), seja por meio de
um Executivo quase onipresente, a ditadura
de Luís Bonaparte.

II
1) “A circulação de mercadorias é o produtores, envolvidos em relações de troca cia dos trabalhadores assalariados); vem
ponto de partida do capital. Produção de regidas pela lei de equivalência. O governo acarretada a prática repressiva do Estado
mercadorias e circulação desenvolvida de institui a lei (igualitária); surge a possibi- burguês (preservação da violência inicial).
mercadorias, comércio, são os pressupos- lidade de sua transgressão (dado que nem O movimento intermediário entre o
tos históricos sob os quais ele surge” (Marx, todos os membros da coletividade têm uma governo originário e o Estado burguês é
1983, p. 125). socialização adequada na interiorização dos o Estado: um misto de governo (real) vol-
De modo homólogo, dizemos por conta valores comunitários); decorre a prática ju- tado à satisfação dos interesses de toda a
própria, o exercício do governo é o ponto de diciária do governo (contraviolência). coletividade e governo (aparente) a ser-
partida do Estado burguês. A formulação da viço dos interesses da classe capitalista. A
lei e a sua aplicação, o governo, bem como a “Em determinadas situações históricas, sociedade originária ou primitiva torna-se
especialização nestas funções governativas, especialmente nos processos de transi- mais complexa, pelas inovações técnicas
o Estado, são os pressupostos históricos sob ção de um tipo de formação social a ou- nas relações de trabalho e pela diferen-
os quais surge este tipo de Estado, o Estado tro, tende ocorrer um equilíbrio político ciação das atividades econômicas, ligadas
burguês. no interior da classe proprietária dos ambas ao aumento de produtividade e ao
Temos a evidência do programa de go- meios de produção”. crescimento populacional. Paralelamente,
verno na sociedade contemporânea, na qual tem-se a especialização das funções gover-
prevalece o modo de produção capitalista, O ponto de chegada do desenvolvi- nativas e a necessidade de torna-las mais
como um conjunto de medidas trabalhistas, mento histórico será o governo especiali- permanentes pela profissionalização dos
familiares, judiciárias, monetárias, fiscais zado ou o Estado que produz uma lei inter- membros dos aparelhos governativos (mi-
etc. Se abstrairmos de cada serviço o seu vertida em falsa lei (o falso contrato entre litar, fiscal etc.).
conteúdo concreto, ficamos, de um lado, a compra e a venda da força de trabalho, Na sociedade primitiva, o tipo de re-
com a lei que o regulamenta e, de outro, com que oculta o tempo de trabalho não pago lações de produção é comunitário, ou seja,
a aplicação dessa lei na satisfação de neces- no uso das capacidades do trabalhador na vigora a propriedade coletiva dos meios de
sidade de membros da coletividade. esfera de produção), o Estado burguês. Na produção. Pois, se na sociedade capitalista
O ponto de partida do movimento his- sociedade capitalista, o Estado burguês de- a propriedade é privada, a abstração des-
tórico do Estado burguês é, pois, o gover- creta a lei aparente (uma violência simbó- sa característica se detém em produtores
no, em suas funções legislativa e executiva. lica, pois centrada na falsidade do contrato engajados em trocas igualitárias. Assim, vi-
Na origem (lógica e histórica), o governo de trabalho, a troca desigual entre o uso da gência deste estado originário é mais com-
produz uma lei que visará os objetivos e os força de trabalho e o salário); surge a pos- patível historicamente com a propriedade
interesses em comum da comunidade de sibilidade de transgressão (a contraviolên- coletiva dos meios de produção.

60 ESQUERDA PETISTA #9 - 2018 - 1


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Tendo a sociedade atingido um deter- “[...] como o Estado nasceu da necessi- Poulantzas explorou, como contribuição
minado grau de desenvolvimento econômico dade de conter o antagonismo das classes, e própria, este outro elemento da teoria sobre
e político, nascem as pressões pelo acúmulo como, ao mesmo tempo, nasceu em meio ao o Estado burguês, qual seja, a capacidade que
privado familiar de privilégios, em função de conflito delas, é, por regra geral, o Estado da toda burocracia deste tipo de Estado possui
estabelecimento de produtividades diferen- classe mais poderosa, da classe economica- em impor à fração hegemônica da classe do-
ciadas por ramos e esferas econômicas, nos mente dominante, classe que, por intermé- minante ou ao conjunto das frações coligadas
quais é possível, por exemplo, o emprego dio dele, se converte em classe politicamente do bloco no poder certas concessões aos in-
de mão de obra escrava. Se antes os gover- dominante e adquire novos meios para a re- teresses das classes dominadas, em função
nos propiciavam a participação de todos nas pressão e exploração da classe oprimida. As- mesmo de preservar a estabilidade política
decisões, agora a presença de especialistas sim, o Estado antigo foi, sobretudo, o Estado dos interesses dominantes. Essas conces-
limita a participação ampla em determina- dos senhores de escravos para manter os es- sões são ora mais restritas, pois limitadas a
dos assuntos e aos poucos converte a demo- cravos subjugados; o Estado feudal foi o ór- assegurar a reprodução normal da força de
cracia primitiva para objetivos guerreiros e gão de que se valeu a nobreza para manter trabalho, ora mais amplas, ligadas à repro-
de acúmulo de riquezas. O grupo dirigente a sujeição dos servos e camponeses depen- dução ampliada da força de trabalho. Para a
torna-se receptivo à reivindicação das famí- dentes; e o moderno Estado representativo é consecução destas políticas de compromis-
lias mais poderosas em estabelecer o direito o instrumento de que se serve o capital para so – política de apoio ao bloco no poder, no
à propriedade privada como norma geral. explorar o trabalho assalariado .” (ENGELS, primeiro caso; política de aliança ao bloco no
Surge o direito escravista e com este a buro- 1982, p. 193). poder, no segundo – não é conveniente que
cracia defensora dos interesses da classe dos a força prevalecente exerça diretamente as
senhores de escravo. Em poucas palavras, te- 2) “Essas leis refreiam o impulso do funções estatais. Pois, do contrário, os seus
mos o Estado escravista. capital por sucção desmesurada da força de representantes diretos (líderes de associa-
Friedrich Engels, em A origem da fa- trabalho, por meio da limitação da jornada ções patronais, notáveis) serão persuadidos a
mília, da propriedade privada e do Estado, de trabalho pelo Estado e na verdade por adotar medidas que visam muito mais aos in-
desenvolveu em termos pioneiros a análise um Estado que capitalista e Landlord domi- teresses imediatos desta força dominante do
deste processo de construção do Estado em nam” (Marx, 1983, p. 193). que aos interesses de médio e longo prazos.
geral e do Estado escravista em particular:
“O chefe militar do povo – rex, basileu,
thiudans – veio a tornar-se um funcionário
permanente e indispensável. A assembleia
do povo foi criada onde ainda não existia. O
chefe militar, o conselho e a assembleia do
povo constituíam os órgãos da democracia
militar egressa da sociedade gentílica. E essa
democracia era militar porque a guerra e a
organização para a guerra eram, agora, fun-
ções regulares na vida do povo. As riquezas
dos vizinhos excitavam a ambição dos povos,
que já começavam a encarar a aquisição de
riquezas como uma das finalidades precípuas
da vida.” (ENGELS, 1982, p. 184).
Após esta transformação estrutural
da função governativa, os seus desenvolvi-
mentos seguirão em correspondência com o
estabelecimento de novos tipos de relações
de produção: a servidão e o assalariamento.
Temos então o aperfeiçoamento histórico
da organização estatal em Estado feudal e,
finalmente, em Estado burguês. Nos termos
ainda de Engels:

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K. Marx e F.
Engels abrem
o Manifesto
comunista com
a proposição:
“Até hoje, a
história de
toda sociedade
é a história
das lutas de
classes”

“Os líderes de associações patronais vada dos meios de produção, mas também REFERÊNCIAS
e de partidos políticos conservadores de aboli-la enquanto tal. Pois a atribuição
tendem a distorcer a percepção dos con- de proprietário da força de trabalho, mar- ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade
flitos de interesses dominantes e classes ca ausente ao escravo e ao servo, dispõe o privada e do Estado. Rio de Janeiro: Civilização Brasi-
dominadas” proletário a inclinar-se pela reapropriação leira, 1982.
dos meios de produção, tendo a memória da MARX, Karl. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. São Pau-
Por esta mesma razão, há também a propriedade coletiva primitiva como o hori- lo: Boitempo, 2011.
tendência de a fração hegemônica entrar em zonte desta aspiração.
________. O capital. 3v. São Paulo: Abril cultural, 1983.
conflito com a burocracia do Estado burguês. Ora, a aspiração desta transformação
Pois enquanto os membros dirigentes desta econômica, o controle coletivo dos meios de MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto comunista.
última estão mais aparelhados a visualizar os produção, vem aliada à perspectiva da trans- São Paulo: Boitempo, 2010.
interesses estratégicos da fração hegemôni- formação política correspondente, ou seja, o
ca, os representantes diretos (associações fim do Estado enquanto tal. Entre a socieda-
patronais, partidos políticos) dessa fração de comunista do futuro – sem Estado e sem
inclinam-se para defesa de objetivos imedia- classes sociais – e a atual sociedade capita-
tos. Além disso, os líderes de associações pa- lista, interpor-se-á uma sociedade de tran-
tronais e de partidos políticos conservadores sição, o socialismo. Na sociedade socialista,
tendem a distorcer a percepção dos conflitos os produtores diretos, por um lado, ainda
de interesses dominantes e classes domina- terão práticas de classe dominante sobre os
das, em função do medo latente destes repre- grupos herdados da sociedade anterior ou
sentantes de que essas classes venham extra- mesmo conflitos com a própria burocracia
polar os limites do tipo de ordem social. do Estado em transição ou Estado socialista,
que representa os interesses desses produ-
III tores; mas, por outro lado, eles difundirão
K. Marx e F. Engels abrem o Manifesto práticas políticas (democracia delegativa,
comunista com a proposição: “Até hoje, a his- conselhos populares etc.) de desestatização
tória de toda sociedade é a história das lutas das funções governativas.
de classes” (Marx& Engels, 2010, p. 44). A
filosofia materialista da história surge com
a sociedade capitalista, que desenvolve aos FRANCISCO PEREIRA DE FARIAS
seus termos últimos o antagonismo de clas- é professor de ciências sociais na
ses. A perspectiva da classe dos trabalhado- Universidade Federal do Paiuí (UFPI) e
res assalariados ou o proletariado é de não pós-doutorando em sociologia política
apenas mudar o tipo de propriedade pri- na Universidade de São Paulo (USP).

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O nosso Gramsci
Por Luiza Dulci

E
Agradeço a interlocução de Otavio Dulci

A novidade de Gramsci é m 1918 Antonio Gramsci publicou artigo intitulado O nos-


defender que a superação do so Marx, em comemoração ao centenário de nascimento de Karl
Marx. Passados cem anos, aqui estamos, celebrando o bicentenário
capitalismo pelo socialismo, do autor de O Capital, O Manifesto do Partido Comunista, Contribui-
especialmente nas sociedades ção à Crítica da Economia Política, para citar somente alguns de seus
textos mais conhecidos.
ocidentais, mais desenvolvidas, Muitos textos, seminários, encontros e discussões têm sido
depende de uma ação estratégica organizados e produzidos em função desta efeméride secular.
Homenagens tão justas quanto necessárias. Nesse sentido, é com
e específica de luta política que muita satisfação que saúdo a edição deste dossiê “Karl Marx: 200
passa, necessariamente, pela anos”, da revista Esquerda Petista. Para usar uma expressão de
Gramsci, os partidos são intelectuais coletivos, e têm como uma
consideração da cultura e das de suas funções vitais a formação e o desenvolvimento da cultura
subjetividades. política no seio da sociedade.
A presente contribuição se volta a alguns dos aspectos e con-
ceitos da obra de um dos mais proeminentes autores marxistas
da primeira metade do século XX, Antonio Gramsci. Assim, peço
licença para tomar emprestado o título do artigo de Gramsci sobre
Marx, para intitular este texto sobre o marxismo gramsciano. Antes
de mais nada, alerto aos leitores que trata-se de um ensaio des-
pretensioso, escrito por uma jovem leitora de Gramsci. Conforme
exposto nas páginas que seguem, penso que Gramsci – e, portanto,
também Marx – nos apresentam chaves de leitura, reflexões e in-
terpretações para a compreensão do Brasil dos dias de hoje. Mais
do que isso, nos fornecem ferramentas muito úteis e promissoras
para a definição das estratégias de luta política e de transformação
da realidade com vistas a construção do socialismo.

Gramsci e a Itália de seu tempo

Antonio Gramsci nasceu na ilha da Sardenha, ao sul da Itália,


em 1891. Quando jovem mudou-se para Turim, onde iniciou os
estudos na Faculdade de Letras. O contexto efervescente da épo-
ca o atraiu para a política, de maneira que aos 22 anos, em 1913,
filiou-se ao Partido Socialista Italiano (PSI). Em seguida, vieram
os tempos da Grande Guerra, da Revolução Russa, dos Conselhos
de Fábrica em Turim, da emergência dos movimentos fascistas,
do acirramento das tensões sociais na Itália e em toda a Europa.
Gramsci exercia sua militância, sobretudo, por meio do jornalismo,
tendo criado, em 1919, juntamente com outros companheiros o se-
manário L’Ordine Nuovo (A nova ordem), do qual foi editor-chefe.

ESQUERDA PETISTA #9 - 2018 - 1 63


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Conhecedor da obra de Marx, o jovem Desacreditado da possibilidade de renovação do


Gramsci escreveu, em 1917, um de seus
artigos mais citados, A revolução contra O PSI, Gramsci adere à ideia da fundação de um novo
Capital, no qual celebra a vitória dos bol- partido e, em 1921, é criado do PCI, integrando o
cheviques na Rússia, a despeito das previ-
sões marxistas de que o socialismo seria contexto mais amplo que em 1919 levou à fundação
construído primeiramente nas sociedades da III Internacional
avançadas. Já nesse momento começam a
aparecer os desenvolvimentos daquelas seu conhecimento sobre o pensamento de No que tange à estrutura do Estado e sua
que seriam as inovações do pensamento Lenin, do qual era grande admirador. relação com a sociedade, vivia-se um perío-
gramsciano em relação à tradição marxista A prisão de Gramsci em 1926 não foi do de crescente complexidade em relação
de até então, em especial suas formulações um fato isolado. Tendo sido eleito depu- às décadas anteriores. Fatores como o su-
sobre as particularidades da revolução no tado pelo Vêneto nas eleições de 1924, foi frágio universal, a criação de grandes parti-
Oriente e no Ocidente. preso juntamente com outros companhei- dos políticos de massas e o fortalecimento
Em 1920, outro acontecimento mar- ros do PCI. Inicialmente recluso na ilha de dos sindicatos operários tornavam aquele
cante para o desenvolvimento de seu pen- Ústica, na Sicília, permaneceu a maior par- contexto muito distinto do período retrata-
samento: a ocupação de fábricas turinen- te de seu período no cárcere na prisão de do por Marx até o início dos anos 1880, um
ses pelos Conselhos de Fábrica e a hostili- Turi, próximo à cidade de Bari, na Apúlia. novo contexto que Engels abordou apenas
dade das direções do PSI e dos sindicatos Lá escreveu sua obra mais conhecida e ex- de modo introdutório em escritos da pri-
em relação a esta via de luta operária. Os tensa, Os cadernos do cárcere, que reúnem meira metade dos anos 1890. A complexi-
caminhos das reflexões gramscianas sobre um conjunto de anotações que ele preten- dade do tecido social no tempo de Gramsci
a derrota das ocupações o levam à reavalia- dia transformar em livros e que hoje cons- já não mais restringia a luta política a uma
ção da aposta na fábrica como única forma tituem volumes em si mesmos, conhecidos burguesia que tomava conta do Estado
e lugar da política da classe operária. Cada em todo o mundo. Trata-se de mais de 2500 e às vanguardas dos movimentos operá-
vez mais, Gramsci considera que o caminho páginas escritas a mão, distribuídas em 29 rios. O crescimento das camadas médias,
revolucionário não poderia ser trilhado so- cadernos. Vale ressaltar que nos três pri- a maior diversificação das frações da pró-
mente pela via da fábrica. Esta era condição meiros anos de reclusão, não lhe foi dada a pria burguesia, o fortalecimento e o desen-
necessária, mas não suficiente, e o partido permissão para escrever e a primeira data volvimento da sociedade civil provocavam
revolucionário deveria estar atento ao con- registrada em seus cadernos é do dia 8 de transformações na arena política da época,
junto das relações e forças sociais. fevereiro de 1929. Vítima direta do fascis- impondo a necessidade de correspondente
As discordâncias em relação à linha mo italiano, Gramsci permaneceu na prisão complexificação analítica e estratégica.
política do PSI nasciam, portanto, de situa- até quase sua morte, em 1937, quando já se É sobre este contexto que Gramsci
ções concretas, e logo se desdobraram em encontrava muito doente. Mais do que uma propõe uma nova leitura da teoria revolu­
concepções teóricas distintas. Desacredi- contribuição à descoberta das razões da cionária marxiana, que parte, fundamen-
tado da possibilidade de renovação do PSI, derrota histórica de então, os escritos dos talmente, da seguinte questão: por que as
Gramsci adere à ideia da fundação de um Cadernos são também o esboço das novas conjunturas eminentemente revolucioná-
novo partido e, em 1921, é criado o Parti- formas e estratégias de luta política e ideo- rias da época fracassaram, não foram ca-
do Comunista Italiano (PCI). As razões da lógica para os períodos seguintes. Gramsci pazes de repetir a experiência vitoriosa da
criação do PCI integram o contexto mais nos apresenta uma nova visão marxista da Rússia e desembocaram no caminho oposto
amplo que, dois anos antes, em 1919, levou história. do fascismo? Envolto neste cenário e toma-
à fundação da III Internacional, fruto do do desta preocupação, Gramsci formula a
rompimento dos bolcheviques com a II In- O marxismo gramsciano nova teoria marxista do Estado e da revo-
ternacional, hegemonizada pelos socialde- lução (grifos do autor), a qual, para Carlos
mocratas alemães. Como membro do Comi- O desenvolvimento do pensamento Nelson Coutinho, um dos maiores estudio-
tê Central do PCI, passa uma temporada na gramsciano foi fruto da conjuntura históri- sos de Gramsci no Brasil “é certamente sua
URSS (1922-1923) como representante da ca que seguiu a Revolução Russa de 1917 maior contribuição ao desenvolvimento da
seção italiana da Internacional Comunista. e o fracasso das revoluções socialistas no teoria social histórico-materialista” (Couti-
Lá conhece Julia Schucht, sua companheira ocidente, em especial nos contextos revo- nho, 2011, p. 20). Para Coutinho, a amplia-
e mãe de seus dois filhos, Delio e Giuliano. lucionários mais proeminentes de países ção gramsciana da teoria do Estado de Marx
É também neste período que aprofunda como Alemanha, Hungria e mesmo a Itália. é propriamente uma ampliação dialética,

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em que “os elementos novos aduzidos por muitas das batalhas são travadas no âmbito
Gramsci não eliminam o núcleo duro da da sociedade civil, em um processo de dis-
teoria de Marx e Engels (ou seja, o caráter puta por consenso e hegemonia, visando a
de classe e o momento repressivo de todo conquista da direção político-ideológica da
poder estatal), mas o desenvolvem no senti- sociedade. Muda-se a estratégia, que passa
do de acrescentar-lhe novas determinações” a ser a guerra de posições, com vistas à con-
(Coutinho, 2011, p. 25) (grifos do autor). quista paulatina de espaços pela via da so-
Assim, sem negar a centralidade vital, ciedade civil e dentro dela. Importante no-
ontológica, das relações sociais de produ- tar que o emprego da violência pelo Estado
ção, a grande contribuição dos Cadernos não está descartado na guerra de posições,
foi dar ênfase aos aspectos da política e da a coerção permanece latente, possível de
ideologia na explicação da vida social e da ser empregada a qualquer momento. Para
dinâmica do desenvolvimento do capitalis- ilustrar a ideia, Gramsci recorre à metáfora
Por que as conjunturas
mo. É com base nessa chave de leitura que do Centauro, de Maquiavel, na qual o Esta- eminentemente
Gramsci desenvolve a nova teoria marxis- do é visto como um Centauro, pois tem ros-
ta, formulada a partir da distinção históri- to humano e corpo de animal. A estratégia revolucionárias da
ca entre Oriente e Ocidente e de conceitos que caracteriza a guerra de posições prevê época fracassaram,
como hegemonia; bloco histórico; catarse; o momento crítico da tomada revolucioná-
Estado ampliado; sociedade civil; revolução ria do poder de Estado como resultado do não foram capazes de
passiva; guerra de movimento e guerra de processo de disputa de hegemonia, o qual é repetir a experiência
posição. descartado pelos reformistas da II Interna-
Proponho aqui uma breve visita aos cional. Assim, para Gramsci, onde a socie- vitoriosa da Rússia
conceitos e à estratégia revolucionária do dade civil é rica e pluralista, a conquista da e desembocaram no
Ocidente para em seguida refletirmos sobre hegemonia deve preceder a tomada do po-
o Brasil de hoje. Afinal, Marx e Gramsci são der e a classe revolucionária deve possuir caminho oposto do
clássicos. E voltamos aos clássicos porque papel dirigente antes de ser dominante.
fascismo?”
são atuais, porque nos ajudam a interpre- A constatação das distinções entre so-
tar nossas realidades. Porém, mais do que
isso, Marx e Gramsci não apenas iluminam
a compreensão do presente, como também
nos municiam tática e estrategicamente.
Ficou famosa a observação de Lenin
de que, na Rússia, seria mais fácil tomar
o poder e mais difícil construir o socialis-
mo; enquanto nos países de capitalismo
desenvolvido ocorria o contrário, ou seja,
era mais difícil tomar o poder do que cons-
truir o socialismo. Gramsci utiliza as cate-
gorias de ocidente e oriente e caracteriza
como orientais aquelas formações sociais
que não desenvolveram uma sociedade civil
forte e articulada, em que a ideologia se vê
muito atrelada aos aparelhos burocráticos
e nas quais a luta de classes ocorre em tor-
no da conquista e da manutenção do Esta-
do. A estratégia revolucionária para o caso
russo – caso oriental exemplar – é do tipo
guerra de movimento: envolve choques e
disputas frontais para a conquista do Esta-
do. Nas sociedades ocidentais, por sua vez,

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ciedades orientais e ocidentais não é uma Gramsci não identifica a sociedade civil como uma
singularidade do pensamento gramsciano.
Outras leituras da época enxergavam as zona neutra em relação ao Estado ou ao mercado.
particularidades, mas contrapunham o caso Ao invés, a considera como parte do Estado e espaço
russo (oriental) à teoria de Marx apresenta-
da na famosa seção IV do livro I de O Capital, fundamental da luta de classes e da disputa por
que apontavam a inexorabilidade das crises
hegemonia
capitalistas decorrentes da tendência à que-
da da taxa de lucro. Outro contraponto em
questão tem a ver com a visão do modelo
inglês e as características do capitalismo na
Inglaterra como paradigma para o processo
histórico. Teóricos do século XX desenvolve-
ram análises de trajetórias históricas apon-
tando a diversidade de caminhos percorri-
dos por distintas formações econômico-so-
ciais capitalistas. A novidade de Gramsci é
defender que a superação do capitalismo
pelo socialismo, especialmente nas socie-
dades ocidentais, mais desenvolvidas, de-
pende de uma ação estratégica e específica
de luta política que passa, necessariamente,
pela consideração da cultura e das subjeti-
vidades. A questão da religião na Itália tam-
bém era objeto de suas preocupações e uma
pergunta presente em suas reflexões era:
como viabilizar o socialismo em um país tão
fortemente dominado pela Igreja Católica?
Nesse sentido, Gramsci avançou nas preocu- as igrejas, os partidos políticos, as organi- formas e ferramentas de dominação, mais
pações sobre a teoria da práxis anunciadas zações profissionais, os sindicatos, os meios atreladas ao exercício da coerção, seja pelo
por Marx, e promoveu o que seria uma com- de comunicação, as instituições de pesquisa uso da violência física, seja pela imposição
binação do “‘lado altivo’ marxiano das Teses e de produção e difusão das artes, etc. Im- ao cumprimento de regras, normas e leis.
de Feuerbach com o tema da superestrutu- portante notar que Gramsci não identifica a Com isto, o Estado para Gramsci é um Esta-
ra, extraído de uma reflexão sobre o Prefácio sociedade civil como uma zona neutra em do ampliado, não mais restrito aos aparatos
de 1859”1 (Baldadoni, 1987, p. 59). relação ao Estado ou ao mercado. Ao invés, burocráticos e coercitivos da sociedade polí-
Cabe precisar melhor o conceito de a considera como parte do Estado e espaço tica, também engloba a sociedade civil.
sociedade civil. Marx, assim como Hegel, fundamental da luta de classes e da dispu- Nota-se que é, portanto, no âmbito da
considerava a sociedade civil como o lugar ta por hegemonia. A sociedade civil “indica superestrutura que ocorre a batalha políti-
de produção do conjunto das condições ma- a nova esfera do ser social que surge com co-ideológica entre as classes sociais. “É lá
teriais de vida no capitalismo, motivo pelo os processos de socialização da política” que os conflitos econômicos encontram os
qual a tradução literal do termo em alemão (Coutinho, 2011, p. 25) e compõe junto com modos de sua resolução” (Coutinho, 2011,
seria “sociedade burguesa”. Gramsci, por a sociedade política, o que Marx chama de p. 22). Gramsci dá o nome de catarse a esta
sua vez, teve papel fundamental no desen- superestrutura. Ambas as dimensões da su- transformação dos interesses econômicos
volvimento deste conceito. Para ele, a socie- perestrutura atuam no sentido de conservar em disputa político-ideológica. Próxima à
dade civil compreende o conjunto dos orga- ou promover seus interesses, o que varia é o formulação marxiana da passagem da “clas-
nismos comumente chamados de privados, modo adotado por cada uma delas. No âm- se em si” para a “classe para si”, a catarse
constituído também pelas organizações bito da sociedade civil, a disputa é por hege- equivale à tentativa de conversão ou de ele-
responsáveis pela elaboração e/ou difusão monia e trava-se por meio de lutas político- vação dos interesse corporativos das classes
das ideologias, tais quais: o sistema escolar, -ideológicas com vistas à construção do con- em interesses gerais, hegemônicos entre a
senso. A sociedade política conta com outras sociedade.
1 O autor se refere ao prefácio à Contribuição à Crítica da Economia Política.

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A disputa pela hegemonia se organiza ses dos mais diversos campos de estudo, sua constituição, estratégia e repertório de
por meio da formação dos blocos históricos, dentre as quais se destacam política, socio- atuação. De fato, não é mesmo trivial deco-
caracterizados como um conjunto comple- logia, história, filosofia, educação, estudos dificar um segmento que reúne interesses
xo e heterogêneo de setores e interesses culturais e comunicação. diversos e mobiliza discursos variados e
sociais e decorrência dos condicionamen- contraditórios para públicos também varia-
tos do conjunto das relações sociais de pro- Lentes gramscianas sobre o Brasil de hoje dos. O ideário mobilizado se dirige a públi-
dução no âmbito das superestruturas. cos muito distintos, como o grande capital
Os partidos políticos são potenciais Nesta terceira e última seção do ensaio internacional, as burguesias nacionais, os
integrantes dos blocos históricos. Especi- proponho uma apropriação do pensamen- médios e pequenos empresários da cidade e
ficamente em relação aos partidos políti- to de Gramsci para a análise concreta de do campo, as camadas médias e até mesmo
cos revolucionários, Gramsci aponta o pa- situações concretas. O ponto de partida é o a classe trabalhadora e os pobres.
pel de formação e disputa das direções da artigo Gramsci and us, publicado em 1987 Enquanto a esquerda subestima o al-
luta político-ideológica. Atribui-lhes papel pelo antropólogo Stuart Hall. Na ocasião, cance de uma ideologia que julga incoeren-
chave e insubstituível na formação de seus Stuart Hall se volta ao pensamento grams- te, a direita sai na frente e mobiliza discur-
membros no sentido de transformá-los em ciano, sobretudo às perguntas levantadas sos fáceis, que falam aos ouvidos das pes-
intelectuais2 políticos qualificados, dirigen- por Gramsci, para pensar a Inglaterra de soas. É o que Gramsci chama de ideologia
tes, organizadores de todas as atividades Thatcher; as razões da vitória eleitoral do orgânica, que articula diferentes sujeitos,
e funções inerentes ao desenvolvimento projeto neoliberal e da derrota do Partido identidades, projetos e aspirações. Ao invés
orgânico da sociedade, com a ampliação da Trabalhista, bem como para compreender de refletir a unidade na diferença, a ideolo-
sociedade civil e com a criação de formas as mudanças ideológicas em curso naquele gia orgânica constrói a unidade na diferen-
democráticas de direção estatal. momento histórico. Partindo de questiona- ça – daí sua enorme potência.
Gramsci analisa que os blocos históri- mentos como: “Quem são os movimentos Resgato este texto de Stuart Hall por-
cos podem se articular para promover mo- de direita?”, “Quais interesses eles represen- que sua análise gramsciana das razões da
vimentos revolucionários de vários tipos e tam?”, Hall notou que a esquerda costuma popularidade do governo Thatcher nos aju-
propósitos. O conceito de revolução passiva, se equivocar ao se deparar com estas per- da a pensar o Brasil de hoje. Com semelhan-
por exemplo, retrata formas típicas de mu- guntas. Julga saber, de antemão, quem são ças em relação à Itália dos anos 1920, os
dança social conservadora, para as quais eles, quando, na verdade, não o sabe. Encara dois contextos suscitam a pergunta: Como
a obra Il Gattopardo, do italiano Giuseppe a direita como uma caixinha homogênea, um projeto que visa desmontar direitos e
Tomasi de Lampedusa é tida como um clás- deixando assim de captar aspectos chave de reverter conquistas sociais históricas se
sico. No famoso diálogo do jovem Tancredi
de Falconeri com o tio aristocrata Dom Fa-
brizio, Príncipe de Salina, o jovem justifica Enquanto a esquerda
sua adesão ao então recém formado exérci- subestima o alcance de
to de Garibaldi com o argumento de que “Se
quisermos que tudo continue como está, é uma ideologia que julga
preciso que tudo mude”. As revoluções pas- incoerente, a direita sai
sivas são, portanto, formas de reação das
classes dominantes às pressões populares. na frente e mobiliza
As reivindicações podem ser acolhidas em discursos fáceis, que
maior ou menor grau, mas sempre com a
finalidade de manter os privilégios e conter falam aos ouvidos das
revoltas populares iminentes.
pessoas. É o que Gramsci
Estes conceitos formam o núcleo do
pensamento gramsciano, o qual é tão mais chama de ideologia
extenso quanto complexo. Eles suscitam
reflexões e abrem caminho para diversas
orgânica, que articula
áreas da vida social. Por isso mesmo, têm diferentes sujeitos,
sido apropriados e mobilizados em análi-
2 Cabe ressaltar que Gramsci tem um entendimento estendido a respeito
identidades, projetos e
dos intelectuais. Tanto é assim que considera que “todos os homens são
intelectuais” ainda que “nem todos os homens tenham na sociedade a função
de intelectuais”
aspirações

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Gramsci aponta que as respostas de-


vem ser buscadas na ideologia mobilizada
pela direita, que visa tanto construir uma
unidade alternativa aos projetos progres-
sistas, quanto atingir seus núcleos de resis-
tência.
Um dos aspectos-chave da teoria
gramsciana do Estado tem a ver com o ca-
ráter dinâmico dos processos e das trans-
formações sociais. De fato, é bastante dis-
tinta a realidade da Inglaterra dos anos
1980 e do Brasil de hoje. O que mudou de
lá para cá? Quais os efeitos da distopia pro-
duzida e difundida pelo neoliberalismo so-
bre a aposta popular na democracia e sobre
seu potencial transformador?
A esperança de que a crise de 2007-8
pudesse solapar ou ao menos enfraquecer
a hegemonia neoliberal não se concretizou.
Ao contrário, vimos o aprofundamento da
lógica rentista sobre as diversas dimensões
viabiliza politicamente? As explicações po- extinção de diversas políticas públicas, a da vida humana e a guinada política conser-
dem ser tão variadas quanto controversas, reversão de legislações e normas ambien- vadora em boa parte do mundo, em muitos
menos ou mais economicistas, menos ou tais, educacionais e trabalhistas, alterações casos apoiando-se em candidaturas de “fora
mais culturalistas. Hall observa que o apoio constitucionais drásticas e a entrega do da política” em países como os Estados Uni-
popular ao governo Thatcher não tinha a patrimônio público – empresas públicas dos, a França, a Itália e tantos outros. O caso
ver com suas ações no plano das políticas e riquezas naturais – à iniciativa privada do Brasil integra esse quadro global.
públicas e com a materialidade da vida co- e do patrimônio nacional ao capital inter- Ainda que a (in)compatibilidade en-
tidiana. Ao contrário, sua fortaleza estava nacional. O conflito de classe se aprofunda tre capitalismo e democracia não seja uma
na promoção da agenda liberalizante e na a cada dia e é visível a ascensão de grupos discussão recente, o cenário atual é consi-
construção de um ideal modernizador, que de direita, muitos dos quais de ideologia e derado dramático. À medida que a racio-
se dirigia aos temores, às ansiedades e às repertório propriamente fascista. nalidade neoliberal se estende do mercado
identidades perdidas da população inglesa. Se a percepção do golpe – não necessa- para o Estado e para a sociedade, governos
Enquanto seu governo empregava a gramá- riamente em relação à tramitação formal, e pessoas são estimulados a pensar e a agir
tica do imaginário coletivo e das fantasias mas em relação à agenda – já é sentida pela como empresas, buscando maximizar seus
inglesas, a esquerda se via apegada aos ar- maior parte da população, como explicar interesses em todos os lugares e a todo
gumentos das políticas públicas e das con- a sustentação ou a sobrevida do atual go- tempo. Valores como a igualdade e a ga-
dições da reprodução social do dia a dia. verno Temer? Como explicar a eleição de rantia dos direitos das minorias perdem o
Esse ponto é chave para o argumen- sujeitos que não possuem pudor para aflo- sentido e a própria crença no ideal demo-
to aqui pretendido. A realidade brasileira rar suas posições antipovo? E mais, como crático é fragilizada. São duas as reações
atual é a de um país dividido. O projeto da explicar a adesão popular à candidaturas mais comuns diante deste cenário: o deses-
esquerda venceu as últimas quatro elei- que encampam projetos conservadores e pero por conta do que seria um apocalipse
ções e foi tirado do governo em um golpe mesmo fascistas ao Executivo e ao Legis- político; e o desligamento e a descrença na
de Estado que depôs a Presidenta Dilma, lativo? Como isso é possível considerando política. O que vem a seguir? Escancaram-
que levou a uma guinada na agenda à di- o cenário de aumento da pobreza e da de- -se os espaços para reivindicações e clamo-
reita. (Não desconsideramos, portanto, a sigualdade, do desemprego e da informali- res populares via outras formas de orga-
diferença radical entre Inglaterra e Brasil, dade, de redução dos salários e do crédito, nização política que vocalizam promessas
uma vez que Thatcher venceu as eleições do corte de direitos sociais, do aumento da radicais mais assertivas, quase sempre de
e Temer não). Desde maio de 2016 vive- violência no campo e na cidade e da repres- ordem autoritária – que, diga-se de passa-
mos: o desmonte do Estado brasileiro, a são aos movimentos sociais? gem, são recorrentes na história brasileira.

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Tendo em vista esta complexidade trar que ela é fundamentalmente uma are- REFERÊNCIAS E INDICAÇÕES DE LEITURA
de relações e o agravamento das tensões na dinâmica, de construção dos interesses,
BADALONI, Nicola. “Gramsci: a filosofia da práxis
sociais, se faz necessária uma guinada na de formação da consciência de classe e de
como revisão”. In: HOBSBAWM, Eric. História do Mar-
luta política no Brasil. O tema das políticas disputa de hegemonia. O resultado das lu- xismo; v.10. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
públicas, das condições materiais e econô- tas políticas está em aberto e nos convida à
mico-corporativas, deve seguir sendo mo- luta. Conforme orientou o Presidente Lula, COUTINHO, Carlos Nelson. O leitor de Gramsci - Escri-
bilizado. No entanto, ele tem se mostrado nossa tarefa é construir a primavera. tos escolhidos: 1916-1935. Rio de Janeiro: Civilização
insuficiente para atrair parcelas expressi- Brasileira, 2011.

vas da sociedade civil, boa parte das quais LUIZA DULCI é economista (UFMG), GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Rio de Janei-
pertencente à classe trabalhadora. Gramsci mestre em sociologia (UFRJ) e ro: Civilização Brasileira, v. 1-6; 2017.
nos mostrou a importância da cultura e das doutoranda em Ciências Sociais,
subjetividades na luta política, especial- HALL, Stuart. “Gramsci and us”. In: HALL, Stuart. The
Desenvolvimento e Agricultura (UFRRJ), hard road to renewal: Thatcherism and the Crisis of the
mente nos períodos de crise, em que os tra-
é colunista da revista Teoria e Debate e Left. Nova York: Verso, 1988.
balhadores são submetidos à condições de
mais exploração e pobreza. Uma mirada so-
integra o Coletivo da Secretaria Agrária
Nacional do PT e o Conselho Curador da LIGUORI, Guido et al (Orgs.). Dicionário Gramsciano
bre a luta política em curso no Brasil indica
(1936-1937). São Paulo: Boitempo, 2016.
que a direita está empenhada em acionar Fundação Perseu Abramo
e manipular as subjetividades. A esquerda
parece não mobilizá-las bem. Para retomar
um tema caro à Gramsci, merece destaque
a negligência da esquerda brasileira na sua
relação com setores das igrejas – da Igre-
ja Católica, mas principalmente das igre-
jas evangélicas. É ínfimo o empenho dos
partidos de esquerda em tentar dialogar
e criar pontes com as dezenas de milhões
de brasileiros que compõem este universo
religioso em transformação no país. Assim,
de modo geral, vê-se que a esquerda não
tem sido capaz de construir uma agenda e
um discurso que desperte as pessoas para
um projeto político maior, ideologicamente
definido, onde caibam sonhos e utopias.
Ainda nos marcos do pensamento
gramsciano, vale resgatar aqui um dos an-
seios que motivou a criação do PT: trans-
formar a forma e o conteúdo da política
– considerando ainda que forma também
é conteúdo e vice-versa, conforme já apon-
tava a dialética hegeliana.
Não se trata de tarefa fácil, pois o avan-
ço do neoliberalismo leva ao esvaziamento
dos espaços de debate e do exercício do
contraditório que são próprios da demo-
cracia e mina a própria crença das pessoas Gramsci mostra que a política é fundamentalmente
na política. A boa notícia é que o processo
não está dado. Ao contrário do que preconi- uma arena dinâmica, de construção dos interesses,
zam análises marxistas mais esquemáticas,
de formação da consciência de classe e de disputa de
onde a política é uma arena que apenas re-
flete interesses já dados, Gramsci vem mos- hegemonia

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DOSSIÊ MARX 200 ANOS

O marxismo no Brasil:
Caio Prado Júnior e a C aio Prado Júnior tornou-se um
clássico e gerou muitas discussões. Seus

economia política debatedores se depararam com uma pro-


dução intelectual inovadora. De início, não
sabiam que sua obra viria a influenciar tan-
to e tão decisivamente sucessivas gerações
Por Rodrigo Cesar no Brasil. Porém, a própria atenção que de-
ram aos seus principais textos, quando pu-
blicados, foi um fator para sua difusão. As
polêmicas travadas contribuíram para que
Apesar de suas ideias não terem se limitado à suas ideias fossem conhecidas. Como toda
narrativa histórica, foi nesta em particular que obra que promove rupturas, encontrou re-
sistências diversas para se afirmar. Apesar
Caio Prado Júnior teve maior reconhecimento. disso, foi capaz de produzir uma matriz
A ideia de que foi pioneiro na introdução do interpretativa da realidade brasileira, pois
também encontrou calorosa acolhida, por
marxismo na historiografia brasileira ganhou outro lado. Nesta tensão, a obra de Caio
força decisiva. Entretanto, o que podemos Prado Júnior sobressaiu principalmente
pela força de suas teses.
dizer sobre a contribuição de sua obra para o Em sua vasta e diversificada produção,
pensamento econômico brasileiro? foram principalmente os textos de história
que conferiram ao conjunto da obra a posi-
ção de referência. Não por acaso, é comum
que Caio Prado Júnior seja considerado um
historiador. Apesar de suas ideias não terem
se limitado à narrativa histórica, foi nesta
em particular que teve maior reconhecimen-
to. Sua interpretação da história brasileira
tornou-se um paradigma, a partir do qual
novos estudos se desenvolveram, seja para
aprofundá-lo, contestá-lo ou simplesmente
compreendê-lo melhor. A ideia de que Caio
Prado Júnior foi pioneiro na introdução do
marxismo na historiografia brasileira não é
recente e tem trajetória conturbada, mas nos
últimos quarenta anos, aproximadamente,
ganhou força decisiva a tese do pioneirismo
bem sucedido de Caio Prado na interpreta-
ção marxista da história do Brasil.
Entretanto, o que podemos dizer sobre
a contribuição de sua obra para o pensa-
mento econômico brasileiro? No presente
texto, analisaremos os debates em torno do

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CULTURA
Em sua vasta
e diversificada
produção, foram
principalmente os
textos de história
que conferiram ao
conjunto da obra a
posição de referência.
Não por acaso, é
comum que Caio
Prado Júnior seja
considerado um
historiador. Apesar de
suas ideias não terem
se limitado à narrativa
histórica, foi nesta em
particular que teve
maior reconhecimento.

O historiador paulista, que morreu aos 83 anos em 23 de novembro de 1990 nunca ocupou
cargos importantes no PCB, ao qual era filiado, devido a dissonâncias teóricas

lugar do marxismo e de Caio Prado Júnior haveria distinção marcante entre os autores
no pensamento econômico brasileiro, bem marxistas e os demais. Segundo o autor, pelo
como sobre os usos que o autor faz de al- fato do marxismo ser uma doutrina orienta-
guns conceitos da economia política. da para a ação e caracterizada, sobretudo,
pela “existência de uma moldura partidária”,
I seus adeptos não se desvencilhariam das
Maurício Chalfin Coutinho (2001, p. contingências da luta política e das propos-
35-6) afirma ser “possível sustentar que a tas de transformação social, mantendo-se
economia política marxista não exerceu um pautados pelas vicissitudes do movimento
impacto decisivo no pensamento econômico comunista e disputas internas na esquerda.
brasileiro”, uma vez que, “com raras exce- Em certa medida, isso os aproximaria dos
ções, a obra dos economistas assumidamen- “mais proeminentes economistas brasilei-
te marxistas permaneceu imersa no caudal ros”, cujas principais características seriam a
do desenvolvimentismo, raramente se dis- atenção dada aos problemas do desenvolvi-
tinguindo e/ou estabelecendo argumentos mento nacional e um certo pragmatismo na
originais”. O principal argumento mobiliza- reflexão, ou seja, pela importância dada às
do para justificar tal afirmação é de que não circunstâncias políticas.

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Porém, com isso ainda não está eluci- cutida e definida pelo Partido Comunista em ao menos um aspecto: tal ecletismo
dada a declarada imersão dos marxistas no Brasileiro [...], toda a reflexão econômica decorre não de uma inadequação da teoria
interior do pensamento desenvolvimentis- da corrente socialista está subordinada e marxista para analisar realidades diferen-
ta. Basta dizer que os chamados moneta- mesmo sobredeterminada pela discussão tes daquelas para as quais Marx olhava,
ristas eram tão ou mais pragmáticos que os interna no partido a respeito de sua tática mas era produto de certas leituras dessa
desenvolvimentistas, mas nem por isso po- revolucionária e de sua plataforma de lutas teoria que tentavam dela extrair modelos,
demos considerar que se assemelhassem. sociais” (grifos nossos). ao invés de assimilar seu método de inves-
A explicação deve se deslocar, portanto, ao A princípio, Bielschowsky parece não tigação, indissociável da prática e, portan-
conteúdo das propostas. abrir margem nem para a existência de to, da própria realidade que se pretende
Neste quesito, o autor afirma que, com exceções no período de 1930 e 1964, em compreender e transformar.
poucas exceções, tanto os economistas de que estudou o chamado ciclo ideológico do Ainda assim, porém, Guido Man-
esquerda quanto os desenvolvimentistas desenvolvimentismo. Na verdade, porém, tega (2002, p. 147) é quem afirma
assumiam o programa de “reformas es- reconhece que as obras História Econômica categoricamente que a “economia política
truturais” e as explicações estruturalistas do Brasil (1945), de Caio Prado Jr., Capitais marxista exerceu uma influência decisiva
da inflação. Ademais, marxistas e socialis- estrangeiros no Brasil (1959), de Aristóte- na constituição do pensamento econômico
tas também teriam adotado “sem maiores les Moura, e Inflação e monopólio no Brasil brasileiro”, uma vez que entre “os
problemas” as análises da CEPAL por con- (1963), de Alberto Passos Guimarães, sig- pensadores que mais contribuíram para a
siderarem que estas trariam substância a nificaram momentos de destaque do pen- formação de uma economia política crítica
um programa de esquerda por defenderem samento econômico dos marxistas brasi- no Brasil destacam-se os representantes
os capitais nacionais e lutarem contra um leiros (Ibidem, p. 185-200). Portanto, seria da esquerda marxista brasileira”. Destaque
arcaísmo no meio rural. Contudo, estas mais correto dizer que ele as reconhece, especial é dado a Caio Prado Júnior, consi-
são características peculiares do marxis- mas as subestima. derado “um marco inicial para assinalar o
mo brasileiro predominante entre os anos Essa tendência a diminuir a contribui- advento da análise marxista da economia
1930 e meados dos anos 1960. Nas déca- ção do marxismo no pensamento econômi- brasileira”, sendo que seus três livros publi-
das seguintes, entre as principais críticas co brasileiro talvez decorra de uma hipóte- cados entre 1933 e 1945 “representaram a
ao pensamento desenvolvimentista e cepa- se levantada por Guido Mantega (2002, p. primeira tentativa bem sucedida de aplica-
lino estariam aquelas formuladas por mar- 147-8), para quem “o marxismo nunca foi ção do materialismo histórico ao caso bra-
xistas, mas para Chalfin Coutinho elas não aplicado de forma pura, mas mesclou-se sileiro”. (MANTEGA, 1984, p. 134)
passam de “raras exceções relevantes”. com outras doutrinas e correntes de inter- Para este autor, das “três principais
Há uma evidente aproximação entre pretação mais próximas, para dar conta de correntes do pensamento econômico brasi-
Mauricio Chalfin Coutinho e Ricardo Biels- um objeto de análise – a realidade brasilei- leiro em sua primeira fase”, que compreen-
chowsky. Enquanto o primeiro afirma que a ra – que não se enquadrava imediatamente deria o período entre os anos 1950 e início
participação do marxismo no pensamento no figurino dessa teoria, formulada para da década de 1970, duas são de inspiração
social brasileiro “não chegou a se estender analisar o capitalismo pioneiro da Inglater- marxista: o Modelo Democrático-Burguês,
ao território da Economia” e pouco teria ra, Franca e Alemanha”. Somadas às lacunas representado principalmente pelas opi-
penetrado nos ramos da Economia Geral e deixadas pelos fundadores e os primeiros niões do PCB e seus intelectuais, e o Mode-
Aplicada, o segundo considera que até mes- adeptos do materialismo histórico dialéti- lo do Subdesenvolvimento Capitalista, na
mo entre os membros da corrente de pen- co, esta suposta inadequação teria obriga- qual estariam inseridos Rui Mauro Marini,
samento que ele denominou como socialis- do os marxistas brasileiros e latino-ameri- André Gunder Frank e Caio Prado Jr. A ter-
ta, “o uso da própria economia marxista foi canos a “recorrer a autores como Keynes, ceira corrente é a que Mantega denominou
limitado”. Para Bielschowsky (2000, p. 182- Schumpeter, Kalecki e outros expoentes da como representante do Modelo de Substi-
3), mesmo quando faziam uso de conceitos Economia política para esmiuçar a dinâmi- tuição de Importações, na qual se inserem
marxistas, “o contexto em que são usados ca dos países de capitalismo retardatário.” Celso Furtado, Ignácio Rangel e seus “her-
tinha, porém, uma remota relação com o Assim, o pensamento materialista da es- deiros” (Maria da Conceição Tavares, Paul
âmbito analítico próprio da teoria econô- querda brasileira teria sido forjado em um Singer e Luiz Carlos Bresser Pereira), que
mica marxista”. Aliás, a rigor, seria mesmo contexto de assimilação recíproca, abran- estariam sob influência direta das ideias da
“difícil, no caso dos socialistas, falar em gendo o marxismo, o keynesianismo, pas- CEPAL. (MANTEGA, 1984, p. 20)
teoria econômica subjacente às análises”, sando pela CEPAL e por vários autores não Apesar de também relacionar o pensa-
uma vez que “toda sua reflexão se fazia a alinhados com a ortodoxia liberal. Hipótese mento de marxistas com sua filiação à cor-
partir da perspectiva revolucionária dis- aparentemente plausível, mas equivocada rentes políticas e suas respectivas organiza-

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ções – a III Internacional, vinculada ao pen- (2000, p. 10), é com o marxismo uspiano Assim, apesar de Mantega e Biel-
samento de Lênin, e a IV Internacional, as- que passa a existir um marxismo brasilei- choswky sugerirem que o agrupamento
sociada à Trotsky –, Mantega dá destaque ao ro, pois os intelectuais marxistas vincula- dos marxistas em correntes de pensamen-
que existe de original nas formulações que dos a esta universidade seriam capazes de to econômico está vinculado à filiação de
os afastam tanto do desenvolvimentismo formular, nas décadas de 1950 e 1960, uma cada autor às correntes políticas do mar-
de inspiração cepalina quanto da orienta- explicação do Brasil. Já Fernando Novais xismo, extraem daí conclusões diferentes
ção difundida pelo PCB. Não por acaso, na (2005, p. 293) sugere que o pensamento em relação à posição ocupada por Prado Jr.
análise deste autor e de Maria Moraes (s/d), da CEPAL se situava frente ao marxismo Enquanto Bielschowsky o inclui na corren-
pensadores marxistas aparecem como pro- latinoamericano assim como a economia te que denominou de socialista, junto com
tagonistas de uma discussão realizada en- política clássica estava para a gênese do os pensadores alinhados com a política ofi-
tre 1964 e 1975, na qual se buscava novas marxismo, pois a “discussão e a crítica das cial do PCB, Mantega o afastará do corres-
interpretações para explicar a realidade formulações da CEPAL parecem ter levado pondente Modelo Democrático-Burguês,
econômica em rápida transformação e, por- a uma revitalização do marxismo, passan- inserindo-o, como já foi dito, entre os par-
tanto, travavam-se duras polêmicas entre os do-se de uma concepção um tanto tosca tidários do Modelo de Subdesenvolvimento
representantes de diferentes correntes do para uma visão mais aberta e refinada”. Capitalista, que teria operado uma ruptura
pensamento econômico. O terceiro fator é o lugar ocupado por com a interpretação pecebista.
Trabalhamos aqui com a hipótese de Caio Prado nas análises que estes autores Chalfim Coutinho (2001, p. 37-45), por
que as conclusões distintas sobre a contri- empreendem sobre o assunto. Como Prado sua vez, apesar de inserir Caio Prado Júnior
buição do marxismo no pensamento eco- Júnior tem expressiva produção intelectual entre as “raras exceções” de pensamento
nômico brasileiro se relacionam com três anterior ao período de concentração de tra- original no marxismo, considerando sua
fatores. O primeiro deles é a falta de parâ- balhos marxistas mais significativos e como iniciativa como “exemplar”, afirma que “os
metros precisos e compartilhados entre os se trata de uma importante referência para estudos marxistas sobre o desenvolvimen-
autores para definir o grau da influência aqueles que, entre os marxistas, reformula- to econômico sofreram pouca influência da
exercida pela economia política marxista ram as problemáticas, análises e propostas pesquisa histórica inspirada no marxismo”.
no Brasil. Para uns, o critério mais ade- para a realidade econômica e social do país, Para ele, teria sido “somente ao final da dé-
quado é a contribuição dada em termos a posição que Prado Jr. ocupa no pensamen- cada de 70, e por meio de uma nova onda
de ciência econômica. Para outros, trata-se to econômico brasileiro segundo cada autor de estudos sobre a escravidão, que houve
de saber a influência concreta que o pen- pode indicar a maior ou menor importância uma penetração marcante da perspectiva
samento econômico exercera na economia. que atribuem ao marxismo. marxista na investigação histórica”, refe-
O segundo diz respeito ao recorte tem-
poral adotado, uma vez que a presença de
marxistas com contribuições marcantes A posição que
se concentra, sobretudo, a partir dos anos
1960. Assim, quando a ênfase é dada ao pe- Caio Prado
ríodo entre 1930 e 1964, em geral predo- Jr. ocupa no
minam as avaliações sobre o pequeno peso
do marxismo no pensamento econômico pensamento
brasileiro. Quando, porém, a ênfase recai econômico
no período iniciado nos anos 1960, as aná-
lises ressaltam maior participação do mar- brasileiro segundo
xismo na economia política. cada autor pode
Note-se, ademais, que para Guido
Mantega (2000, p. 160), a organização do indicar a maior
atualmente famoso grupo de intelectuais
ou menor
em São Paulo, em 1958, para o estudo sis-
temático de O Capital e obras correlatas, importância
constitui um passo decisivo para a conso-
lidação do marxismo no Brasil em direção
que atribuem ao
a uma análise materialista e dialética da marxismo.
sociedade brasileira. Segundo Ricupero

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circulação, produção, modo de produção,


consumo, demanda e mercado interno.
As interpretações mais recorrentes e in-
fluentes são aquelas que conferem à esfera
da circulação a principal chave explicati-
va para a formação histórica do Brasil na
obra de Caio Prado Jr., sendo praticamen-
te inexistentes as teses que defendem que
na produção se encontraria o dinamismo
que condiciona os processos econômicos.
Afinal, em diferentes momentos, o próprio
autor deixou explícita sua compreensão so-
bre o assunto, sem ambiguidades, deixando
pouca ou nenhuma margem para interpre-
tações distintas. Por isso, é também muito
recorrente a citação de outra passagem de
Formação do Brasil contemporâneo (1942)
quando se debate criticamente a aborda-
gem caiopradiana a respeito da prioridade
rindo-se aos trabalhos de C. F. Cardoso, A. a geração posterior de marxistas que assi- dada à esfera da circulação: “A análise da
B. Castro, F. Novais, J. Gorender, e, mais tar- milou e promoveu a superação dialética de estrutura comercial de um país revela sem-
de, J. Fragoso e M. Florentino. Ademais, os suas teses sobre a relação entre as particu- pre, melhor que a de qualquer um dos seto-
“estudos que abordam o desenvolvimento laridades da formação histórica brasileira res particulares da produção, o caráter de
econômico brasileiro a partir de uma pers- com o tipo de desenvolvimento capitalista uma economia, sua natureza e organização.
pectiva marxista surgiram, rigorosamente, que aqui se processou. Encontramos aí uma síntese que a resume
em contraposição ao modelo estruturalis- Não corroboramos com a inserção de e explica”. (PRADO JÚNIOR, 2011, p. 241,
ta de desenvolvimento econômico”. Esta Prado Jr. no chamado Modelo do Subde‑­ grifo nosso)
consideração o leva a afirmar que o livro senvolvimento Capitalista por considerar Esta compreensão, como muitas outras
Formação Econômica do Brasil (1959), de que as diferenças que o próprio Mantega do autor, perduram ao longo de sua obra,
Celso Furtado, influenciou “decisivamente (1984, p. 236) ressaltou serem suficientes que atravessa um período de mais de cinco
a reflexão marxista dos anos 70”, enquan- para afastá-lo do grupo: “embora crítico ar- décadas. Como indica Florestan Fernandes
to silencia a respeito da influência de Caio doroso da tese feudal e pioneiro na caracte- (1999, p. 7), escrevendo em 1988, Caio Pra-
Prado Júnior no florescimento da crítica rização de um Brasil mercantil e capitalista do Júnior “não se impôs uma revisão crítica”,
ao estruturalismo cepalino e ao modelo desde os tempo de colônia, discordava de uma vez que “estava convicto da veracidade
de substituição de importações, além de que o próximo passo da sociedade brasileira de suas descobertas e do seu retrato da evo-
negligenciar a presença de sua obra na fosse uma revolução socialista, como supu- lução histórica do Brasil e de outras socieda-
formação dos pensadores que ele mesmo nham Frank e Marini”. É justo registrar, po- des periféricas e marginais”. Apesar de levar
considera como responsáveis pelos novos rém, que tal procedimento, se não permitiu em conta as condições em que a produção
“estudos de desenvolvimento econômico destacar o pensamento caiopradiano como se organiza e as relações de produção se es-
influenciados pelo marxismo”: Sérgio Sil- dotado de uma particularidade e especifici- tabelecem, Caio Prado considera o mercado
va, João Manuel Cardoso de Mello, Chico de dade próprias, pelo menos contribuiu para – esfera da circulação e realização de capi-
Oliveira, Paul Singer, entre outros. Quando evitar que ele fosse imerso acriticamente tal – como fator determinante do desenvol-
dá algum destaque a Caio Prado Jr., Couti- seja no desenvolvimentismo, seja na matriz vimento econômico. Para ele, o que impul-
nho limita-se ao tema da questão agrária. clássica do PCB. siona o crescimento “é o que se encontra na
Visto isso, consideramos que Mantega base e por detrás das inversões”, a saber: “as
é quem dá mais ênfase à contribuição do II circunstâncias gerais e os fatores originários
marxismo à economia política brasileira, Inúmeros autores realizaram ricos que condicionam, promovem e impulsio-
justamente por ter visualizado exatamente e interessantes debates em torno do uso nam a produção”, “a conjuntura mercantil”,
o que existe de original no pensamento de que Caio Prado Júnior fazia de conceitos “as características da demanda”. (PRADO
Caio Prado Jr., bem como seus vínculos com formulados pela economia política, como JÚNIOR, 1999, p. 26).

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Reconhecendo as posições de Prado Jr. mundial”. Nesta interpretação, o autor não


a respeito da preponderância no momento teria uma visão unilateral das influências
da circulação e do capital mercantil, Marcia do mercado externo e da esfera da circula-
R. Victoriano (2001, p. 34) afirma que esta ção no direcionamento da formação econô-
ênfase analítica “pode ser compreendida mica brasileira.
no âmbito de uma tendência que ocupou Não se encontra com facilidade defi-
o pensamento marxista não só nacional, nições categóricas a respeito da economia
mas principalmente internacional, sobre a brasileira na obra de Caio Prado Jr. Ele não
questão do subdesenvolvimento e da de- se preocupava em desenvolver conceitual-
pendência externa”. Situando o importante mente sua matéria ou classificar a realidade
papel atribuído por Caio Prado Jr. ao capi- histórica, sua teoria estava entranhada na
tal mercantil metropolitano no sentido da narrativa histórica, o que justificaria o uso
colonização, boa parte de seus intérpretes escasso de categorias marxistas (Cf. SEC-
concluiu que o autor pensa o Brasil como CO, 2008, p. 176; 2010, p. 11). Isso levou
uma formação social altamente determina- Carlos Nelson Coutinho (1989, p. 116-7) a
da pela dinâmica externa. Escrevendo nos considerar que a “prioridade metodológica
anos 1960 e 1970, os formuladores da teo- que ele conscientemente atribui à esfera
ria da dependência (André Gunder Frank, da circulação em detrimento da esfera da
Ruy Mauro Marini, Theotônio dos Santos, produção” o leva a conferir pouco peso ao
Octavio Ianni, Fernando Henrique Cardoso, conceito de modo de produção em seus tra-
Enzo Faletto etc.), foram aqueles que mais balhos de história e, portanto, a “confundir,
se valeram deste pensamento caiopradea- na análise da Colônia e do Império, o pre-
no para fundamentar sua interpretação da domínio inequívoco de relações mercantis
realidade brasileira. com a existência de um sistema capitalista
Por outro lado, alguns autores não (ainda que ‘incompleto’)”. Isso não impede
deixam de registrar que Caio Prado Jr. não Coutinho de reconhecer que “a prioridade
pensa unilateralmente a presença marcan- atribuída à esfera da circulação não o im-
te da esfera da circulação e do mercado pediu de definir de modo substancialmente Apesar de levar em conta
externo no desenvolvimento histórico bra- adequado a formação econômico-social da
as condições em que a
sileiro. Para Pedro Cezar Dutra da Fonseca era colonial, identificada por ele como um
(1990, p. 151-5, grifo nosso), Caio Prado escravismo mercantil fundado na grande produção se organiza e as
Jr. teria sido “precursor da Teoria da De- exploração rural, produtora de valores de
pendência ao afirmar que são os proces- troca para o mercado internacional.” Con-
relações de produção se
sos sociais internos os responsáveis pela tudo, Mazzeo (2003, p. 163-4) polemiza estabelecem, Caio Prado
dinâmica histórica, e que, primordialmen- direta e abertamente com Coutinho: “longe
te, configuram seu sentido”. De modo aná- de “confundir” o capital comercial com o
considera o mercado –
logo, para Antonio Carlos Mazzeo (2003, capitalismo complexo resultante da era in- esfera da circulação e
p. 164), reconhecer a presença “de certo dustrial, Prado Jr. evidencia explicitamen-
superdimensionamento do papel da es- te que o caráter capitalista da colonização realização de capital –
fera da circulação” em sua obra não deve desde sua origem insere-se no amplo pro- como fator determinante
nos fazer esquecer que “o fundamental cesso que irá desaguar no imperialismo”.
da análise caiopradeana não é apresentar Mas o objeto desta polêmica entre do desenvolvimento
a esfera da circulação desconectada da Coutinho e Mazzeo já havia sido abordado econômico.
esfera produtiva”. Em sentido semelhante, por Florestan Fernandes (1999, p. 9-10),
Leandro Konder (1998, p. 136) considera que identificou o grande peso do capital
que, para Caio Prado, a situação do merca- mercantil na obra do autor e teceu críti-
do mundial deveria ser avaliada em função cas que, em linhas gerais, são pertinentes.
de nossa situação interna: “Nossos proble- Para ele, “Caio Prado Jr. se prende demais
mas eram os problemas da nossa socieda- ao conceitual, à lógica dos conceitos que
de e da nossa articulação com o mercado são essenciais em seu esquema descritivo

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e interpretativo”, fazendo-o focalizar de


modo insuficiente “as relações do capital
mercantil com o capital industrial, e, após Em função da referida
a II Grande Guerra e a ditadura militar, com
preponderância à estrutura
o capital financeiro típico do capitalismo
monopolista e da espécie de imperialismo comercial, aos mercados e ao
que ele engendra, em nossos dias”. Com os
deslocamentos na economia, o capital mer-
capital mercantil, cunhou-se
cantil não desaparece, mas perde sua fun- o epíteto de circulacionismo,
ção hegemônica e determinante: “O circulo
vicioso persiste, mas não por sua conta. A
conferido a Caio Prado Jr.
investigação histórica deverá ir mais longe e demais autores que se
e aprofundar-se para explicá-lo”. Portanto,
Caio Prado Jr. consegue captar muito bem apoiaram na perspectiva por
as continuidades históricas do sentido da ele desenvolvida
colonização, a ausência de momentos de
profunda ruptura na história brasileira e
a capacidade de incidência das oscilações
conjunturais dos mercados externos e do
capital mercantil na dinâmica interna da
economia brasileira. Por isso mesmo, po-
rém, parece subestimar as mudanças no
desenvolvimento do capitalismo em esca-
la mundial e seus impactos nacionais, que por diversos críticos, sendo Jacob Goren- e é este que dita a lógica de reprodução
não se deram de modo abrupto. der (2010) o mais proeminente, sobretudo global sistêmica”. Neste sentido o autor
A subestimação encontra-se no fato de a partir do clássico O escravismo colonial não poderia nem deveria “dar atenção às
não ter precisamente reconhecido as con- (1978), onde afirma que tal “vinculação do formas de produção escravistas como se
sequências do engendramento, interna- escravismo colonial ao mercado mundial elas fossem o alfa e o ômega do processo
mente à sociedade brasileira, do processo fez nascer as chamadas teorias circulacio- de acumulação, pois esse processo se dá
endógeno de acumulação de capital que, nistas, cuja análise se concentra no modo em escala mundial, e não nacional ou local”.
assentado historicamente no dinamismo de circulação e por meio deste pretende
do complexo agroexportador cafeeiro, ins- explicar o modo de produção (quando sim- III
taurou um novo padrão à conformação do plesmente não o omite)” (p. 201-2). Des- O conceito de sentido da colonização
capitalismo brasileiro. Por outro lado, tam- considera-se que, “em última análise não é exerceu forte influência no pensamento so-
bém no fato de não ter inteiramente supe- a circulação que desvenda a organização da cial brasileiro. É amplamente reconhecido
rado a compreensão de que a força da ação produção, mas o contrário” (p. 542). Jacob o mérito de Caio Prado Jr. em inserir o
imperialista do capitalismo internaciona- Gorender propõe, assim, “a inversão radi- moderno processo de colonização nos
lizado impunha uma absoluta impossibili- cal do enfoque: as relações de produção da quadros da expansão marítima e comercial
dade de autodefinição dos rumos de nosso economia colonial precisam ser estudadas europeia. Ele teria inovado a abordagem
desenvolvimento. Em ambos os aspectos, é de dentro para fora, ao contrário do que da realidade brasileira porque primeiro a
como não se desse conta de todos os con- tem sido feito, isto é, de fora para dentro” situou no quadro mais geral do comércio
tornos e implicações dos novos momentos (p. 54). europeu. Com tamanha repercussão, para
da acumulação capitalista no Brasil. (RÊGO, Em defesa de Caio Prado Jr., ao lado o leitor contemporâneo, a noção de sentido
2000, p. 223-4) de Bernardo Ricupero, também se levan- da colonização soa hoje como uma obvie-
Em função da referida preponderância ta Lincoln Secco (2008, p. 177-8), para dade, parece mesmo o ar que respiramos:
à estrutura comercial, aos mercados e ao quem seus críticos “não atentaram para o imprescindível, mas nem o notamos, já que
capital mercantil, cunhou-se o epíteto de fato de que, na periferia, o estudo da esfe- se tornou senso comum (Cf. SECCO, 2008,
circulacionismo, conferido a Caio Prado Jr. ra da distribuição é que conduz à totalida- p. 178-81). Não por acaso, é amplamente
e demais autores que se apoiaram na pers- de”, uma vez que “o dinamismo do modo citada a seguinte passagem de Formação
pectiva por ele desenvolvida. Foi utilizado de produção está no centro do sistema do Brasil contemporâneo:

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Se vamos à essência de nossa forma- Entretanto, conforme Bernardo Ricu- vidades que vivem em regime capitalista.
ção, veremos que na realidade nos consti- pero (2000), se no sistema colonial brasi- Para Prado Jr., o consumo produtivo estatal
tuímos para fornecer açúcar, tabaco, alguns leiro há uma articulação entre seus elemen- não seria capaz de compatibilizar de forma
outros gêneros; mais tarde ouro e diaman- tos constitutivos, que cria um todo social duradoura e equilibrada a potencialidade
tes; depois algodão, e em seguida café, para orgânico, existe também uma desarticula- da produção moderna com o consumo, pois
o comércio europeu. Nada mais que isso. É ção entre a produção, voltada para fora, e o subconsumo das massas trabalhadoras é
com tal objetivo, objetivo exterior, voltado o consumo da maior parte da população, que estaria na raiz da desarticulação entre
para fora do país e sem atenção a conside- elemento inorgânico do sistema. Em con- produção e consumo.
rações que não fossem o interesse daquele traste com os países capitalistas centrais, Todavia, nota João Antônio de Paula
comércio, que se organizarão a sociedade onde a produção, de forma geral, criou (2006, p. 6-7), o marxismo de Caio Prado
e a economia brasileiras. Tudo se disporá o consumo, no Brasil e em países como o tem uma explícita vocação eclética, pois
naquele sentido: a estrutura bem como as nosso, havia uma desarticulação entre pro- não hesitava em reconhecer certa validade
atividades do país. (PRADO JÚNIOR, 2011, dução e mercado interno, por ter sido o – limitada, é certo – às teses keynesianas e
p. 29) externo o mercado principal. Para ele, Caio estaria adotando o ponto de vista da cen-
Dada a grande influência do autor na Prado Júnior pensa a relação entre colônia tralidade do mercado interno no processo
historiografia brasileira, por certo período, e nação em uma perspectiva dialética, ou de desenvolvimento econômico. Isso teria
predominaram os estudos que analisavam seja, não apenas de oposição. Reconhece, significado inserir certas teses keynesianas
a realidade do país a partir de suas relações portanto, que apesar de todos os seus pro- na interpretação marxista da realidade eco-
de subordinação e dependência no con- blemas e gostando disso ou não, foi no pas- nômica brasileira, como a do predomínio da
texto atlântico e mundial. José Roberto do sado colonial brasileiro que se inscreveram categoria da demanda. Por sua vez, Cesar
Amaral Lapa (1982) apontava que somente os fundamentos da nacionalidade e seria a Mangolim de Barros (2007), apesar de não
no último quartel do século XX a questão do partir dele que se poderia seguir em dire- traçar a mesma identificação de Prado Jr.
mercado interno colonial passa a ganhar a ção contrária. Lincoln Secco (2010, p. 20) com algumas teses keynesianas, considera
devida atenção dos estudiosos: “Antes, pre- não apenas corrobora com essa leitura em que ele teria uma “fixação mercadocêntri-
feria-se cientificamente não o considerar. suas linhas gerais como considera que “a ca”. Isto o impediria de perceber que não é
Era como se não existisse. Como se tivés- aporia do inorgânico que precisa fazer-se a demanda do consumidor que impulsiona
semos apenas uma economia de autocon- portador de uma nova economia (voltada o desenvolvimento do capitalismo. O au-
sumo, desvaliosa sequer como objeto de ao interior e não ao exterior)” é um dos tor não teria se dado conta de que mesmo
estudo” (p. 8). Fazia-se necessário “rever principais problemas legados pela obra de mantendo vastas parcelas da população em
a visão unívoca que o nosso conhecimen- Caio Prado. gritantes níveis de pobreza e miséria, o ca-
to produziu até época recente”, segundo a Sendo assim, podemos supor que a pitalismo no Brasil desenvolve-se criando
qual, o antigo sistema colonial “compor- importância dada ao setor inorgânico na tanto um mercado interno para as cama-
tava um núcleo nervoso que chamava a si construção da nação no processo histórico das altas e médias da população como um
todo o poder de decisão”, de onde “partiam corresponde, em grande medida, à impor- mercado intercapital que propiciavam as
as irradiações de imposição ou estímulo, tância dada ao mercado no desenvolvimen- condições para a acumulação e reprodução
às quais competia às colônias apenas res- to econômico. De acordo com Marcia R. Vic- de capital. Com isso, Barros parece suge-
ponder como se fossem uma massa amorfa, toriano (2001, p. 29-30), Caio Prado Júnior rir que Caio Prado Jr. era adepto das teses
sem qualquer sentido próprio, uma vez que considera que a imobilização do capital na estagnacionistas, muito em voga no pen-
o sentido só lhe era conferido pelo núcleo sua forma-mercadoria quando não é ven- samento econômico brasileiro a partir da
do qual e para qual viviam” (p. 39). O au- dida compromete a inversão do ciclo pro- crise monetário-financeira em 1961-1962 e
tor não cita Caio Prado Jr. mas é evidente dutivo do capitalismo, o que se explica pelo da recessão iniciada em 1963, que conside-
que dialoga criticamente com a matriz his- subconsumo latente no funcionamento do ravam o Brasil condenado a permanecer em
toriográfica que ele fundou e já tinha forte sistema capitalista. A autora considera que, um longo período de estagnação econômica
projeção à época, inclusive porque havia ao inserir a questão do subconsumo das caso não resolvesse seus problemas de ele-
recebido há pouco tempo um de seus apor- massas trabalhadoras como principal en- vada concentração de renda que restringia o
tes mais significativos com a publicação em trave para o desenvolvimento, o autor pole- mercado interno de massas, o que exigiria a
1979 do livro Portugal e Brasil na Crise do miza com os economistas keynesianos, que realização das aclamadas reformas de base,
Antigo Sistema Colonial (1977-1808), de propugnam a transformação do Estado no com destaque para a reforma agrária.
Fernando Novais.1 grande consumidor capaz de compensar Guido Mantega e Maria Moraes consi-
1 Com revisões, trata-se de sua tese de doutoramento, defendida na USP com seus gastos o subconsumo das coleti- deram que a quase unanimidade entre os se-
em 1973.

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tores de oposição ao “estabilishment” quan- Se no sistema colonial brasileiro há uma articulação


to às graves consequências econômicas que
trariam o permanente estrangulamento do
entre seus elementos constitutivos, que cria um todo
mercado interno deixa entrever a aceitação social orgânico, existe também uma desarticulação entre
geral das teses subconsumistas, desenvolvi-
a produção, voltada para fora, e o consumo da maior
das na virada do século por Rosa Luxembur-
go e por vários reformistas que, de ângulos parte da população, elemento inorgânico do sistema
variados, procuraram fazer a crítica aos es-
quemas marxistas de reprodução do capital.
No caso brasileiro, porém os adeptos das
teses subconsumistas baseavam-se “na falsa
premissa de que as classes populares cons-
tituíam o grosso do mercado consumidor”,
sendo que este era formado principalmente
“pela própria classe capitalista (seja sob a
forma de demanda de bens de capital, seja
sob a forma de demanda de consumo durá-
veis) e pela parcela mais abastada da classe
média” (MANTEGA; MORAES, s/d, p. 16).
Expressão do antagonismo entre capi-
tal e trabalho, a contradição entre a anar-
quia da produção e a apropriação capitalista
redundaria na “tendência permanente para
o desequilíbrio entre a produção e o consu-
mo”, tendência que “se observa facilmente
neste fato conhecido e sempre recorrente
no curso de toda a história do capitalismo,
e que é a superprodução” (PRADO JÚNIOR, que se passa a refletir a respeito da predo- econômicas de que alimentar-se; que, ten-
1957, p. 92). Apesar de Caio Prado ser adep- minância, nesta contradição, de um polo dendo a impor-se como forma universal, su-
to da análise de Marx sobre esta contradição sobre o outro. A este respeito, seu alinha- cumbe por sua própria incapacidade intrínse-
do capitalismo, é preciso reconhecer que mento às teses de Rosa Luxemburgo sobre ca de existir como forma de produção univer-
oscila entre a superprodução e o subcon- a expansão do capitalismo é evidente. Para sal. O capitalismo é, em si, uma contradição
sumo: em outra passagem, ele afirma que esta marxista, nas condições históricas de histórica viva; seu movimento de acumulação
o subconsumo seria o “verdadeiro mal que acumulação de capital ao longo da formação expressa a contínua resolução e, simultanea-
aflige o capitalismo”, pois a demanda, “por do capitalismo, a relação do capital com seu mente, a potencialização dessa contradição”.
força do próprio funcionamento normal do entorno não capitalista não se limitaria às (LUXEMBURGO, 1988, t. II, p. 98)
sistema, não acompanha o desenvolvimento relações comerciais, mas à expansão contí- Caio Prado Júnior (1957, p. 105-6), por
da produção, resultando daí um desequilí- nua e acelerada do seu modo de produção a sua vez, considera que na fase inicial de ex-
brio latente que se resolve periodicamente, estas áreas, destruindo as formações econô- pansão do sistema capitalista, a produção
e cada vez com mais gravidade, em crises de micas previamente existentes, até que todo que não era absorvida pelo consumo final,
superprodução e prolongados períodos de o mundo se tornasse capitalista, situação na o era pelo consumo de bens de produção in-
recessão” (Ibidem, p. 131, grifo nosso). qual o capitalismo encontraria seu ponto de duzido pelas inversões. Portanto, se de um
É justo dizer que produção e consumo, saturação. Nas palavras da própria autora: lado o subconsumo inerente ao funciona-
o excesso de um e a insuficiência de outro, “O capitalismo é a primeira forma econô- mento do capitalismo proporciona seu de-
constituem a dialética unidade dos contrá- mica capaz de propagar-se vigorosamente: é sequilíbrio, por outro “aquele desequilíbrio
rios no capitalismo. Toda e qualquer ava- uma forma que tende a estender-se por todo se corrige pela ação de fatores gerais e exte-
liação de um desenvolvimento econômico o globo terrestre e a eliminar todas as demais riores que, assegurando um fluxo crescente
onde prevalece o modo de produção capi- formas econômicas, não tolerando nenhuma de inversões, restabelecem o equilíbrio en-
talista deve considerar esta peculiaridade. outra a seu lado. Mas é também a primeira tre a capacidade de produção e a de consu-
Mas o problema se prolonga na medida em que não pode existir só, sem outras formas mo”. Neste sentido:

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“Pode-se dizer que o capitalismo se de- caso do Brasil, “entre os dois polos do meca- TTI, Paulo Teixeira; SEABRA, Manoel; HEIDEMANN,
senvolveu a custa do não-capitalismo. O que nismo econômico, a produção e o consumo, Heinz Dieter (orgs.) Caio Prado Jr. e a Associação dos
Geógrafos Brasileiros. São Paulo: AGB; IEB; Edusp,
assegurou a estabilidade a longo prazo, e o a oferta e a procura, escolheria o segundo
2008.
desenvolvimento do sistema foi originaria- como ponto de partida e baliza do assunto”.
mente a instituição de relações capitalistas Daí seu elogio parcial à “essência do keyne- KONDER, Leandro. “A façanha de uma estreia”, Revis-
ta USP, São Paulo, n. 38, jun.-ago. 1998.
de produção em substituição a outro tipo sianismo”, que seria “provocar o que pela lei
de relações que as precedeu; e em seguida de Say deveria resultar automaticamente da LAPA, José Roberto do Amaral. O antigo sistema co-
a extensão e aprofundamento das mesmas. produção, isto é, o mercado para ela”. Assim, lonial. São Paulo: Brasiliense, 1982.

As forças propulsoras essenciais do capita- no Brasil a chamada “revolução keynesiana” LUXEMBURGO, Rosa. A acumulação do Capital: con-
lismo não se encontram no interior do siste- poderia cumprir uma tarefa particularmen- tribuição ao estudo econômico do imperialismo.
São Paulo: Nova Cultural, 1988.
ma, mas fora dele, no seu exterior e terreno te importante: facilitar “o deslocamento
circundante em meio do qual e a custa de do ponto de vista de muitos economistas e MANTEGA, Guido. A economia política brasileira, Pe-
que o sistema se desenvolveu.” (PRADO JÚ- orientadores da política econômica do país, trópolis: Vozes, 1984.
NIOR, 1957, p. 106) da questão da produção para a do consumo; ________. “Marxismo na economia brasileira”. In:
A semelhança é evidente, mas não ca- o que no Brasil, e nas condições atuais é par- SZMRECSÁNYI, Tamás; SUZIGAN, Wilson (orgs.). His-
sual: Caio leu Rosa. Apesar do livro da au- ticularmente importante”. tória econômica do Brasil contemporâneo. São Paulo:
Hucitec, Associação Brasileira de Pesquisadores em
tora não constar no acervo da biblioteca do Marx para a crítica da economia polí-
História Econômica, Editora da USP, Imprensa Ofi-
autor, encontra-se em seu arquivo pessoal tica, Keynes para diretrizes de política eco- cial, 2002.
– ambos sob a custódia do Instituto de Es- nômica. Seria esta uma ambiguidade que
MANTEGA, Guido; MORAES, Maria. A economia po-
tudos Brasileiros – uma anotação que ele fez acompanha grande parte da esquerda bra-
lítica brasileira em questão. (1964-1975). São Paulo:
da referida obra (Cf. IUMATTI, 2008, p. 138). sileira até hoje? Editora Aparte, s/d.
Assim, privilegiando a observação des-
MAZZEO, Antonio Carlos. “O Partido Comunista na
ta contradição do capitalismo pela perspec- RODRIGO CESAR é historiador e raiz da teoria da Via Colonial do desenvolvimento do
tiva do subconsumo, na tese Diretrizes para militante do Partido dos Trabalhadores capitalismo”. In: MAZZEO, Antonio Carlos; LAGOA,
uma política econômica brasileira (1954), Maria Izabel (orgs.). Corações Vermelhos: os comunis-
que apresentou ao concurso para a cadeira REFERÊNCIAS tas brasileiros no século XX. São Paulo: Cortez, 2003.
de economia política da Faculdade de Direi- NOVAIS, Fernando. Sobre Caio Prado Júnior. In: NO-
to da USP, Caio Prado Jr. (p. 192-7) conclui BIELSCHOWSKY, Ricardo. Pensamento econômico
VAIS, Fernando. Aproximações: estudos de história e
brasileiro: o ciclo ideológico do desenvolvimentis-
que o problema a ser resolvido é justamente mo, Rio de Janeiro: Contraponto, 2000.
historiografia. São Paulo: Cosac Naify, 2005.
o do consumo. Assim, na polêmica a respei- PRADO JÚNIOR. Caio. Esboço dos fundamentos da
COUTINHO, Carlos Nelson. Uma via “não-classica”
to do desenvolvimento econômico brasilei- teoria econômica. São Paulo: Brasiliense, 1957.
para o capitalismo. In: D’INCAO, Maria Angela (org.).
ro do pós-guerra que colocava de um lado História e Ideal: ensaios sobre Caio Prado Júnior. São ________. História e desenvolvimento. São Paulo:
aqueles que punham ênfase no aparelha- Paulo: Editora Unesp; Brasiliense; Secretaria de Esta- Brasiliense, 1999,
mento material das atividades produtivas do da Cultura, 1989.
________. Formação do Brasil contemporâneo. São
e no planejamento da economia brasileira COUTINHO, Maurício Chalfin. Incursões marxistas. Paulo: Companhia das Letras, 2011.
para alcançar este fim, e de outro lado os de- Estudos Avançados, São Paulo, v. 15, n. 41, jan.-abr.
RÊGO, Rubem Murilo Leão. Sentimento do Brasil: Caio
fensores de medidas para promover o pro- 2001.
Prado Júnior – continuidades e mudanças no desen-
cesso de capitalização, em função da carên- DE PAULA, João Antônio. Caio Prado Júnior e o de- volvimento da sociedade brasileira. Campinas: Edi-
cia de capitais; nesta polêmica, o autor con- senvolvimento econômico brasileiro. In: Pesquisa & tora da Unicamp, 2000.
siderava que apesar da existência de uma Debate, São Paulo, v. 17, n. 1 (29), 2006.
RICUPERO, Bernardo. Caio Prado Jr. e a nacionaliza-
divergência de fundo ambas as tendências FERNANDES, Florestan. Os enigmas do círculo vi- ção do marxismo no Brasil. São Paulo: Departamento
davam prioridade “ao aspecto particular cioso. In: PRADO JÚNIOR. Caio. História e desenvolvi- de Ciência Política da USP. Fapesp, Editora 34, 2000.
da produção e da produtividade”. Apesar de mento. São Paulo: Brasiliense, 1999.
SECCO, Lincoln. Caio Prado Júnior: o sentido da revo-
afirmar que “essas questões não podem ser FONSECA, Pedro Cezar Dutra. Homenagem a Caio lução. São Paulo: Boitempo, 2008.
excluídas de qualquer solução a ser dada, Prado Jr. Análise Econômica, ano 8, n. 4, nov. 1990.
________. Tradução do marxismo no Brasil: Caio
no momento atual, aos problemas brasilei- GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. São Paulo: Prado Júnior. Mouro: Revista Marxista – Núcleo de
ros”, ele tinha reservas em relação ao pouco Editora Fundação Perseu Abramo, 2010. Estudos d’O Capital. São Paulo, ano 1, n. 2, jan. 2010.
ou nenhum destaque que nesta discussão é
IUMATTI, Paulo Teixeira. “O percurso para o ‘sentido VICTORIANO, Marcia R. A questão nacional em Caio
dado à “questão do consumo e do mercado”. da colonização’ e a dinâmica da historiografia brasi- Prado Jr.: uma interpretação original do Brasil. São
Neste sentido, Caio Prado afirma que, no leira nas primeiras décadas do século XX”. In: IUMA- Paulo: Pulsar, 2001.

ESQUERDA PETISTA #9 - 2018 - 1 79


FOTOGRAFIA
Foto: Robson B. Sampaio

Nair Benedicto em ação,


Lavagem das Escadarias
da Catedral de Campinas.
31/03/2018

NAIR BENEDICTO:
“É tempo de ir além!”
Sônia Fardin, com colaboração de Ana Lídia Aguiar

Imagens e palavras chavões estão desgastadas, mas, quando se


conta histórias, os conteúdos delas ganham sentido. É preciso
fugir do jargão, mas guardar a raiz, tornar tudo o mais didático
possível. Nessa empreitada, as imagens são instrumentos da ação
política, por isso dependem do peso que se dá a elas.

80 ESQUERDA PETISTA #9 - 2018 - 1


FOTOGRAFIA

N
air Benedicto é fo- Foto: Nair Benedicto / N Imagens

tógrafa e editora de
imagens, uma das
brasileiras mais pre-
miadas e reconheci-
das pelo trabalho e
engajamento políti-
co. Nascida em 1940, no bairro da Liber-
dade, em São Paulo, desde 1968 está en-
volvida na luta pela comunicação popular,
em especial com a produção de imagens
comprometidas com causas sociais. É uma
das responsáveis pela produção da visuali-
dade da combatividade da classe trabalha-
dora brasileira das décadas de 1970 e 1980.
Em 1979, com Juca Martins e ou­
tros, criou a Agência F4 de Fotojornal-
ismo, tendo como inspiração a francesa
Magnun Photos, fundada por Henri Car­
tier-Bresson e Robert Capa, entre outros,
com o objetivo de realizar fotojornalismo
comprometido com pautas sociais e hu- Encontro de Altamira, em Altamira - PA 1989 Interferência na foto feita pela autora em 2013
manitárias, em atitude de denúncia, e Série Índios Molhados
também reivindicando o fazer fotográfico
como produto de um trabalho, portanto, Há 50 anos em atuação ininter­rupta, lhar esse conhecimento sob a forma de
o fotógrafo como autor e detentor dos di- criando imagens e contando histórias, exposições, livros e palestras.
reitos de seu ofício. Mas, principalmente, Nair é hoje uma Griô da fotografia e Parte dessas muitas histórias foi apre-
visando possibilitar à fotografia militante do audiovisual militante que enfatiza senta à Esquerda Petista em uma conver-
vencer os limites impostos pela comu- a “urgência e a necessidade de contar sa com Clóves de Castro, amigo desde os
nicação industrial, hegemonizada pelo histórias de lutas, resistências e espe­ tempos de enfrentamento à ditadura; Ana
capital, assim, cavar brechas nas con- ranças, afirmando as potências políticas e Lídia Aguiar, socióloga, antropóloga e lide­
tradições da mídia. poéticas da classe trabalhadora”. rança do movimento de mulheres; Marta
Desde a década de 1980, tem obras Contar história é um aprendizado Oliveira Jungmann, artista e ativistas cul-
no acervo do Museu de Arte Moderna de que traz do tempo em que atuou como tural; e Sônia Fardin, historiadora e mili-
Nova Iorque (Museum of Modern Art – professora de Historia em cursos no- tante da comunicação e direitos humanos.
Moma), entre outros museus, e publica- turnos usando como ferramenta o Teatro Este texto não pretende dar conta de toda
das em revistas internacionais. Em 1991, do Oprimido. Também em seu processo a trajetória e produção de Nair Benedicto,
junto com Rubens Fernandes Júnior, de trabalho como fotógrafa, elabora e ar- tenta apenas apresentar uma síntese do
Roseli Nakagawa, Fausto Chermont, mazena em seu arquivo breves histórias que trocamos com uma mulher que é uma
Iza­bel Amado e Juvenal Pereira, criou o sobre como se aproximou de cada tema das principais referências da fotografia
movi­mento NAFOTO, que por vinte anos e as trocas que vivenciou com as pessoas brasileira, uma militante que, resistindo
fez o Mês Internacional da fotografia em e situações que fotografou. Assim, busca desde o Golpe de 1964, produziu mais de
São Paulo e colocou a fotografia brasileira guardar o aprendizado das relações que 300 mil imagens e que continua nas ruas
em patamar internacional. estabeleceu para, depois, recriar e parti­ enfrentando os golpes de hoje.

ESQUERDA PETISTA #9 - 2018 - 1 81


FOTOGRAFIA

Da Liberdade ao Presídio Tiradentes cursos para ir ao cinema, sua paixão Flusser e Alexandre Barbosa. Mas, en-
precoce, recorda que “trabalhar com im- trar para a USP era um desejo de grande
O nome original da família era Bene- agens era um desejo desde a adolescên- parte dos jovens, fez então um segundo
detti, de origem italiana, mas em função cia quando estudava em escolas públi- vestibular e entrou na segunda turma de
dos conflitos que a ascensão do fascismo cas, que na época eram as melhores, pois comunicação da Escola de Comunicações
e do nazismo aportavam nos anos 1930, estimulavam a imaginação e a criativi­ e Artes da Universidade de São Paulo
quando se estabeleceram na região ru- dade; uma das práticas era a troca de (ECA/USP). Contudo, relembra que “as
ral de Jarinu (SP), foi naturalizado para correspondências com jovens do mundo aulas eram decepcionantes, não corres­
Benedicto. No final da década de 1930, inteiro. Fui assim definindo meus so­ pondiam à fama da universidade. Essa
os Benedicto migram para São Paulo, nhos, desejos e objetivos de viajar para decepção levou um grupo de alunos a
passaram a viver em uma vila operária conhecer outras culturas”. reclamar e organizar em 1968, no auge
onde nasceu Nair, a caçula de um gru- Como muitas jovens de sua época, no do Golpe Militar, uma Semana Interna-
po de sete mulheres e um homem, que início da década de 1960 após um curso cional de debates sobre o que deveria ser
cresceram convivendo com a pluralidade técnico foi trabalhar como secretária per- uma universidade de comunicação, com
de culturas, línguas, saberes e sabores da to da Faculdade de Filosofia, da Rua Maria a presença de Roberto Rosselini, Edgar
periferia paulistana. O pai, João, morreu Antônia, onde aconteciam debates políti- Morin, Décio Pignatári, os irmãos Cam-
quando ela tinha três anos, em sua edu- cos; e também próximo ao Teatro de Arena pos, entre outros. Estava em pleno acir-
cação a mãe, Maria, foi a figura mais pre- onde assistiu Vianinha, Guarnieri, Boal e ramento do Golpe e a gente discutindo
sente, é dela a frase que Nair lembra ter toda a trupe do teatro militante que faziam comunicação”.
defino sua formação “se você quer brigar ensaios abertos na hora do almoço. Nesse mesmo período, junto com
por alguma coisa, aprenda a argumentar”. Em 1965, grávida de sua segunda fi­ Jacques Breyton, seu companheiro e pai
Por volta dos 10 anos, prestava lha, persistindo no objetivo de trabalhar de seus três filhos, integrou a base de
pequenas ajudas às mulheres que tra- com imagens, entrou na FAAP, para fa­ apoio de organizações que combatiam a
balhavam no bairro, para conseguir re- zer rádio e televisão, foi aluna de Vilem ditadura, aproximou-se em especial da
ALN – Ação Libertadora Nacional. Em
função disso, em primeiro de outubro de
Foto: Nair Benedicto / N Imagens 1969 foi presa pelo aparato repressivo do
Estado ditatorial em uma embosca na
porta da escola das filhas, o Liceu Pasteur.
Sua mãe e seu filho de três anos foram
presos primeiro, depois Nair e Jacques
foram levados para o Dops; relembra que
“colocaram um em cada sala, eu ouvia
meu filho fazendo ruídos na outra sala,
eles falavam que minha mãe já estava no
pau-de-arara e seu eu não falasse meu
filho também iria. A primeira tortura foi
essa, mas meu raciocínio foi para outro
lado, eu pensei, se eles vão fazer tudo
isso eu preciso estar bem, pois quem vai
cuidar dessas crianças, fiquei forte de re-
pente, fui para o pau-de-arara no dia se-
guinte. Minha principal lembrança é que
a prisão te coloca diante de você mesma e
das suas escolhas. Nesse momento exato
Pintura corporal kaiapó, Aldeia Aukre, Pará, 1986 você está sozinho.”

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FOTOGRAFIA

Essa exigência de Foto: Nair Benedicto / N Imagens

qualidade política e
estética vem desde
sua atuação com
movimentos de
comunicação popu­lar
nas décadas de 1970
e 1980, cuja meta era
desvelar as opressões
capitalistas em tempo
de ditadura. Com esse
mesmo princípio,
fotografou as
grandes mobilizações
operárias Operários, greves. Assembleia fim da greve - Vila Euclides. 27/03/1979

Mas, depois de quatro horas de tor- Enfrentando o medo, fazendo com slides e tri­lha sonora, audiovisuais
tura no pau de arara, recorda que viveu o que se é capaz dedicados às questões feministas, amal-
seu mais intenso aprendizado, “quando gamou suas atua­ ções como fotógrafa,
fui para cela, estropiada, começou a che- Ao sair da prisão, em julho de 1970, editora e educadora social. Os audiovi-
gar até a mim, na minha cela, pequenos Nair retomou a vida e concluiu a gra­ suais eram a ino­vação do momento, com
agrados: meio biscoito, um pedacinho de duação em 1972, passando a atuar como temáticas que questionavam as opressões
chocolate, um gomo de laranja. Emocio- fotógrafa e criadora de audiovisuais em e em especial o patriarcado, Nair destaca
nada percebi que os companheiros me di- movimentos da imprensa militante, con- “O Prazer é nosso”, “Não Quero ser a pró­
ziam ‘você não está sozinha’. Foi uma das comitante com trabalhos para meios de xima”, “E agora Maria?”, “Qualidade do
mais fortalecedoras experiências da vida comunicação como o Nós Mulheres, Movi- ambiente-Qualidade da Vida” e “Amazo-
no cárcere”. mento, entre outros. nas”, desse último foram feitas 500 cópias
Durante os nove meses em que es- No final da década de 1970 integrou para o programa da igreja católica sobre
teve detida no Presídio Tiradentes conhe- o movimento de comunicação e educação luta pela terra. Ressalta também que “os
ceu a solidariedade das partilhas mate- popular que forjava a resistência à ditadu- que mais causaram discussão, avançando
riais e das trocas afetivas com mulheres ra organizando o Jornal da Vila, distribuído no debate feminista, foram ‘Não quero ser
que ela define como a “fina-flor da re- na entrada das fábricas do Jardim Mirim, a próxima’, focado na violência domésti-
sistência da esquerda brasileira” [com as Vila Livieiro, Vila Moraes, entre outros ca, e ‘O prazer é nosso’, uma discussão
quais] “coletivamente foi possível lidar bairros. Relembra que “a pauta, a edição sobre o corpo e o direito ao prazer”.
com o medo. Por isso, quando você sai de imagens e a diagramação do jornal Esses “curtas” – montados com slides
daquele lugar viva, você tem uma dívi- eram elaborados com rigor na qualidade e trilha sonora de qualidade – circularam
da com quem fica. Isso te impulsiona a do conteúdo político e na criatividade es- em centenas de periferias brasileiras,
realizar o que você já se sente capaz de tética”. Dar aulas de história utilizando problematizando a tomada de consciên-
fazer, e descobre que pode ir além”. as técnicas do Teatro do Oprimido e criar, cia dos direitos políticos da mulher na

ESQUERDA PETISTA #9 - 2018 - 1 83


FOTOGRAFIA

vida pessoal e na vida social, de forma es- No final da década de 1970, Nair integrou classe trabalhadora, ação imprescindível
pecial o direito as escolhas sobre o próprio o movimento de comunicação e educação à luta política contra as opressões. Nessa
corpo como princípio básico da consciên- popular que forjava a resistência à ditadura em­preitada, recorda que “tudo era plane-
organizando o Jornal da Vila, distribuído na
cia política. Para Nair ainda hoje essa é jado e articulado: dar aulas de história
entrada das fábricas do Jardim Mirim, Vila
uma questão central, afirma: “ser dona do Livieiro, Vila Moraes, entre outros bairros. política usando técnicas do Teatro do
próprio corpo é uma coisa fundamental, Foto: Reprodução Jornal da Vila, Junho/1978 Oprimido, documentar manifestações
quem é dona do corpo é dona de muita culturais dos imigrantes nordestinos, pro-
coisa, é dona da cabeça também”. Por isso duzir audiovisuais feministas e registrar e
critica a escassez em toda sociedade, prin- distribuir imagens dos grandes atos das
cipalmente na esquerda, de debate sobre organizações sindicais e culturais”.
sexualidade, para ela “essa situação é ina­ As séries fotográficas produzidas por
ceitável especialmente em organizações ela, desde esse período, situam no mes-
que se propõem a construção de políticas mo patamar de importância os alegres
libertadoras da exploração, para homens corpos de um casal em chamegos fogosos
e mulheres. Tratar o corpo e a liberdade dançando forró, e os de milhares de rostos
sexual como temas menores e secundá­ cheios de angustia e altivez nas assem-
rios é um dos grandes erros históricos bleias e greves operárias do movimento
de partidos de esquerda, em sua maioria sindical que alçou a liderança de Lula.
ainda estão sob um moralismo cristão que Suas lentes percorreram os movimentos
limita o debate e o exercício da sexua­ culturais de libertação dos sentidos, as-
lidade sem tabus e sem culpas. Destacan- sim como os momentos de luta por direi­
do-se, atualmente, o atraso no debate so- tos trabalhistas; como ela mesma afirma,
bre o conceito de gênero”. “é necessário ir além do que a cultura he-
Desde os anos 1970 Nair pauta es­ses gemônica pauta como realidade”. Assim,
temas em cada possibilidade, advoga que seu olhar insubmisso, regis­trou gente tra-
“nenhuma dimensão da vida deve ser ne-
gada, na luta em que nós estamos, nada Foto: Nair Benedicto / N Imagens
é pequeno, tudo é grande, façam aquilo
que der, nas suas famílias, na escola, na
padaria, se a gente acredita que é impor-
tante, essa política tem que ser exercida
na vida cotidiana, e não precisa ser cha-
ta, pode ser com humor para atingir a um
público amplo”. Mas, sobretudo, afirma
que “tudo que é feito para os(as) operári-
os(as), os pobres, tem que ser feito com a
máxima qualidade”.
Essa exigência de qualidade políti-
ca e estética vem desde sua atuação com
mo­vi­mentos de comunicação popu­lar
nas décadas de 1970 e 1980, cuja meta
era desvelar as opressões capitalistas em
tempo de ditadura. Com esse mesmo
princípio, fotografou as grandes mobi-
lizações operárias e ocupou papel deter-
minante na produção da visualidade da Trabalhadoras no Sisal, Bahia, 1985

84 ESQUERDA PETISTA #9 - 2018 - 1


FOTOGRAFIA

Foto: Nair Benedicto / N Imagens

Menores - Febem
Tatuapé São Paulo-SP,
2000

balhadora insurgindo aos ditames do que do crianças em situação desumana e ilegal Em nossa conversa, contou algumas
a moral patriarcal e a lógica capitalista de cárcere, primeiro trabalho fotográfico a histórias para dar a conhecer como en-
lhes impunham. desnudar a brutal realidade de falsas casas tende o alcance das imagens quando lhe
Seu trabalho fez adentrar as pautas de de apoio de recuperação de menores. é dado o devido peso. Uma das mais el-
jornais de esquerda, revistas comer­ciais, oquentes é a história sobre “As mulheres
livros de arte e acervos de museus, ima- Fugir do jargão, mas guardar a raiz, do sisal”, título de uma matéria sobre
gens do operariado urbano, camponeses tornar tudo o mais didático possível operárias do interior da Bahia. Nair con-
sem terra, indígenas, negros quilombolas, ta que “essa foi uma pauta vendida para
mulheres e adolescentes em situação de Educadora social praticante do Tea­ uma revista alemã, sobre uma cidade em
risco. Como ela afirma, “o desafio sempre tro de Augusto Boal, Nair apregoa a ne- que o número de trabalhadoras mutila-
foi fazer denúncias e críticas ao sistema e cessidade de contar histórias com formas das pela máquina de triturar a fibra era
inserir essas imagens onde fosse possível, simples, pois “imagens e palavras chavões muito grande, devido a inadequação dos
tal como fez agora no Rio a Escola de Sam- estão desgastadas, mas, quando se con- equipamentos. Eu ousei sugerir ao editor
ba Tuiuti, tem que fazer isso, aproveitar ta histórias, os conteúdos delas ganham que utilizasse como abertura da matéria
brechas e enfiar goela abaixo” . sentido. É preciso fugir do jargão, mas as fotos de trabalhadoras que causavam
Na década de 1980, em uma dessas guardar a raiz, tornar tudo o mais didáti- emoções pela beleza plástica e as fotos de
brechas, foi contratada pela Unicef para co possível. Nessa empreitada, as imagens mutilação fossem usadas como comple-
registrar a situação de mulheres e crianças são instrumentos da ação política, por mento de informação. Mas, isso mexeu
na América Latina. Outro exemplo que isso dependem do peso que se dá a elas”. tanto comigo que fui procurar uma en-
cita, em uma época em que não havia fo- Assim, Nair exerce a fotografia sem ne­ genheira do trabalho para buscar uma
tos da Febem, apenas relatos escritos da nhuma pretensa ilusão de neutralidade, solução para aquele sofrimento. Mostrei
situação dos internos, conseguiu entrar envolvida eticamente com os sujeitos que as imagens do motor que causava as mu-
como psicóloga e assim fazer fotos que es- registra em imagens, afirma que “todo ato tilações, e ela percebeu que havia uma
candalizaram a opinião pública mostran- fotográfico deve ser um ato consequente”. fácil solução técnica com a simples colo-

ESQUERDA PETISTA #9 - 2018 - 1 85


FOTOGRAFIA

cação de placa de ferro para proteger as


mãos, deixando somente espaço para pas-
sar a fibra.” Essa intervenção foi realizada

Foto: Nair Benedicto / N Imagens


e os acidentes reduziram.
Outra história eloquente é a da mon-
tagem que produziu para a Casa da Ima­
gem, em 2015, com fotos de uma das
maiores barbáries da ditadura civil mili­
tar. Criou uma instalação com sobre-
posição de fotos de Aurora Maria Nasci-
mento Furtado, militante barbaramente
Noiva com Troglodita - Fotomontagem - Foto base: Noiva, Viaduto do Chá, São Paulo, SP, e
torturada e assassinada pelos carrascos
Grafite: autoria de Alex Orset e Pato, Vila Mariana, São Paulo, SP
da ditadura. Conta Nair que um jovem de
cerca de trinta anos ao visitar a exposição
telefonou a ela e insistiu em vê-la pessoal- militante envolvida com as pessoas e suas carar essa hipocrisia que está presente
mente no mesmo espaço da exposição. condições reais de existência, não tratan- dentro das famílias, das igrejas e na mídia
“A insistência do jovem me fez atender do ninguém como mero público partici- em geral.”
ao chamado e ir ao encontro dele, pois se pante, e em especial porque todos fazem Contudo, reconhece que muito foi
dizia uma pessoa que se negava a acredi­ o enfrentamento à polícia, merecem ser feito nos governos Lula e Dilma, e que
tar que tais imagens fossem reais e que divulgados ao máximo, pois enfrentam “Lula fez coisas que dificilmente vão
até mesmo eu Nair era real. Ao me ver ele um dos os grandes embates atuais que é sumir, uma enorme quantidade de jo-
dizia: ‘Então é verdade! Então é verdade!’, a disputa pelo tecido urbano em uma ci- vens com acesso às 16 universidades
foi um dos momentos em que mais per- dade como São Paulo”. criadas em seus governos, a política de
cebi a extensão de nosso problema, como Para ela a eleição de Dória é exemplo cotas e a valorização do salário-mínimo.
grande parte de nossa juventude não sabe máximo da farsesca superioridade técni- Isso não foi pouca coisa, porém é preciso
e até mesmo tem resistência em enfrentar ca da figura do gestor; de forma enfática reco­nhecer que há muito por fazer”. Ela
essa faceta de nossa história. Isso nos dá ela define tais políticos como, “essa gente relembra uma frase que marca esse mo-
a dimensão do quanto hoje, mais do que acha que povo não tem direitos […] con- mento, que ouviu de uma liderança femi­
nunca, ainda é necessário avançar.” ciliar com essa gente não dá, no ponto nina dos favelados de Campinas: “nesse
em que chegamos não existe conciliação. período todo da nossa luta, descobri que
No ponto em que chegamos não Existem questões que não podem deixar sou gente, e isso não tem volta”.
existe conciliação de ser enfrentadas, se queremos mesmo Por isso, nesse tempo de golpe em
chegar a uma democracia de verdade, que nossa gente está sendo violentada,
Sobre os desafios do momento atual, em especial a reparação da escravidão, Nair repete enfaticamente: “É tempo de
pós golpe de 2016, afirma que “é preciso a reforma agrária e a democratização da ir além!”.
ainda mais contar história e dialogar com comunicação. O principal desafio para
todos e em todos os momentos possíveis, quem milita com comunicação no campo SÔNIA FARDIN é historiadora e
pois temos uma falha na formação e di- social e direitos humanos, de esquerda, doutora em artes visuais; ANA LÍDIA
fusão de conhecimento”. Nesse território continua sendo o mesmo, porque não foi AGUIAR é socióloga, antropóloga e
da inscrição militante faz questão de citar enfrentada a batalha pela democratização liderança do movimento de mulheres
como exemplo de trabalhos políticos que a da mídia; se a gente tivesse o mínimo de
inspiram no momento crítico atual, o Tea­ imprensa do nosso campo, estaria em le­
Ver também:
tro do Contêiner e o Teatro do Faroeste, in- tras garrafais a explicação sobre quais são
N-Imagens: http://www.n-imagens.com.br/index2.php
stalados na região da cracolândia. Segun- os reais interesses que a Lava Jato atende.
do ela, os valoriza por serem “territórios O que mais temo hoje é a ignorância e a Teatro do Faroeste: https://www.pessoaldofaroeste.com.br/

de resistência pautados pela ação cultural hipo­crisia. Nosso desafio hoje é desmas- Teatro Contêiner: http://www.ciamungunza.com.br/

86 ESQUERDA PETISTA #9 - 2018 - 1


HOMENAGEM

Wagner Lino, presente!


Faleceuo dia 2 de julho de 2018, aos 71 anos, o
líder petista Wagner Lino, vítima de câncer nos
rins. Confira a seguir as notas de pesar divulgadas
pelas direções do PT, da Articulação de Esquerda,
da CUT e do ex-presidente Lula

Nota da CEN sobre falecimento Wagner queria. Ele respondeu: um Brasil


de Wagner Lino melhor. Este é o Wagner Lino que vamos
recordar sempre e a quem vamos honrar,
A literatura de esquerda tem seus perso- prosseguindo sua luta, nossa luta, pelo
nagens típicos: o trabalhador consciente, socialismo.
o operário comunista, o militante revolu-
cionário, o intelectual orgânico da classe. Wagner Lino, presente, agora e sempre!
Na vida real, infelizmente, nem sempre
esses personagens comparecem na fre- Comissão Executiva Nacional do PT
quência e no número necessário. Mas eles
existem e Wagner Lino é a prova disto.
Nota de Lula pelo falecimento
Wagner nasceu em 1947. Participou do do companheiro Wagner Lino
Wagner Lino nasceu em 19-03-1947 movimento estudantil. Metalúrgico e
em São Paulo. Começou sua militância sindicalista, contribuiu ativamente para Meu companheiro e amigo de muitas lu-
em 1967, no movimento estudantil de tas, fico muito triste de saber que perde­
as grandes mobilizações do final dos anos
Santos, combatendo a ditadura militar.
Advogado e pós-graduado em Gestão 1970 e início dos anos 1980. Militante e mos Wagner Lino. Por décadas, no Sindi-
Ambiental e em Políticas Públicas, Wag- dirigente do Partido dos Trabalhadores, cato dos Metalúrgicos e no Partido dos
ner Lino teve atuação no movimento deputado estadual em São Paulo, vereador Trabalhadores, Wagner foi um daqueles
sindical nas décadas de 1970 e 1980. e candidato a prefeito de São Bernardo do lutadores para todos os momentos. No
Foi eleito vereador em 1982, em 1988, Campo, entre muitas outras tarefas. período mais difícil das greves do ABC,
em 1992, em 2004 e em 2008. Entre quando a direção do sindicato foi presa,
1995 e 2002, exerceu função de depu- A certa altura, decidiu cursar direito e Lino foi um dos companheiros funda-
tado estadual. Em 1996, concorreu à tornou-se advogado. Sempre estudou e
Prefeitura de São Bernardo, ficando em mentais que manteve o sindicato atuan-
estimulou os outros a estudarem. Casado do. Fará muita falta. Meu abraço solidário
segundo lugar. Foi subprefeito de Ria-
cho Grande, na gestão do prefeito Luiz desde o milênio passado, falava com or- para os fami­liares e amigos do Wagner
Marinho (PT). Atualmente, integrava a gulho e alegria de sua companheira Creu­ e minha indigna­ção por não poder estar
Articulação de Esquerda, tendência do sa, de seus filhos Thiago e Rafael. com vocês nessa última despedida.
petismo. Deixa dois filhos (Thiago e Ra-
fael), sua companheira Creusa Trevisan e No dia 2 de julho de 2018, um amigo
um grande legado de luta! Lula
ouviu uma enfermeira perguntar o que

ESQUERDA PETISTA #9 - 2018 - 1 87


HOMENAGEM

Wagner Lino, homenagem a um


lutador

Muito difícil mesmo esta quadra da história que


estamos vivendo. O companheiro Wagner Lino,
militante da AE de São Bernardo do Campo, par-
tiu na noite do dia 2 de julho, mas deixou aqui
um enorme legado. Partiu com muita vontade
de lutar. E lutou até o fim, com a serenidade dos
velhos comunistas que se alimentam da certeza
de estarem do lado certo e justo da história.

Estava lá firme no dia da prisão do Lula, apontan-


do que teríamos um longo caminho de resistên-
cia pela frente e que era preciso nos preparar
mais e melhor.

Participou ativamente do último congresso mu-


nicipal da AE, já com a saúde debilitada, mas Nota da CUT
com a lucidez e a energia do pensamento de  
sempre. Falou muito do discurso do Lula no dia A Central Única dos Tra-
da prisão e da greve de 1979 em que ele, Wagner, balhadores (CUT) lamenta
teve um papel importante. Falou da importân- profundamente a morte do
cia da AE se preparar para os desafios futuros companheiro metalúrgi-
e do quanto nossa luta no PT é importante. Fa- co Wagner Lino, nesta segunda-feira (2).
lou com o coração, com a emotividade que quem  
o conheceu sabe que ele era capaz, por baixo A história do companheiro Wagner Lino confunde-se com as lutas
daquele jeito durão. dos trabalhadores e trabalhadoras e do povo brasilei­ro, em especial
do ABC paulista.
Wagner Lino foi homenageado no último Con-  
gresso Nacional da AE, que realizamos em Ara- Ele foi diretor do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, fundador CUT,
caju. Não pôde ir, mas mandou um vídeo que diretor regional e estadual da CUT-SP, fundador do PT, vereador em
revela o seu enorme compromisso militante com São Bernardo do Campo e deputado estadual pelo PT. Em todos os
a construção de um mundo novo, no qual tenha espaços políticos em que ele atuou, destacou-se pela combatividade
lugar um Brasil socialista. com que defendia suas propostas e os interesses dos trabalhadores.
 
Wagner se foi e deixa um vazio muito grande. A trajetória do companheiro Wagner Lino sempre se pautou pela
Mas maior que este vazio é a certeza de que ele incansável militância, profunda solidariedade, sentimento de classe
foi em paz, certo de que fez o seu melhor e que a e defensor de uma sociedade com justiça social, igualdade e dis-
vida segue com a luta dos seus companheiros e tribuição de renda.
companheiras.  
A CUT se solidariza com seus familiares e todos os companheiros do
Wagner Lino presente, agora e sempre! ABC que o acompanharam nessa trajetória de luta.
 
Direção nacional da tendência petista Vagner Freitas
Articulação de Esquerda Presidente

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Theotônio dos Santos
1936-2018

Ana Maria Fonseca


1950-2018

Marielle Franco
1979-2018

Anderson Gomes
1978-2018

Hélio Bombardi
1948-2018

Wagner Lino
1947-2018

Paul Singer
1932-2018
Já está em produção a agenda da
Associação de Estudos do Página
13, que terá como tema em 2019 a
vida e obra de Rosa Luxemburgo;
militante comunista, escritora de
diversas obras referenciais para o
movimento operário, tais como
Reforma social ou revolução?, A crise da
socialdemocracia (1916) e A Revolução
Russa, foi uma das fundadoras do
Partido Comunista Alemão (KPD).
Falece em 1919, assassinada por
tropas do governo alemão.

Aguarde, em breve à venda


pelo portal Página 13
www.pagina13.org.br

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