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ISBN 978·85·7139-928-0

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 FUNDAÇÃO EDITORA DA UNESP
Presidente do Conselho Curodor
Herman Voorwald
Diretor-Presidente
José Castilho Marques Nefo
Editor-Executivo
Jézio Hernani Bornfirn Gulierre
Assessor Editorial
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Conselho Editorial Acadêmico
Clóudio Anfoniv Rabello Coelho
José Roberto Ernandes
. t Peter Burke e R. Po-chia Hs
Luiz Gonzaga Morchezon
Maria do Rosório Longo Mortatti
ia
Maria· Encarnação Beltrão Sposilo Organizadores
Maria Fernando Bolognesi
Paulo César Corrêa Borges
Roberto André Kroenkel
Sérgio Vicente Motta
Editares-Assistentes
Andersen Noboro
Arle!e Zebber
Chrisfione Grodvohl Colas

A tradução cultural
nos primórdios da Europa
Moderna

Tradução
Roger Maioli dos Santos
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© 2007 Ediloro UNESP

© 2007 Cambridge Universily Press
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© 2008 do tradução brasileiro
· Título origino!: Cultural Translation in Early Modem Europe

Direitos de publicação reservados à:

Fundoçõo Editoro do UNESP (FEU)
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Sumário

CIP - Brasil. Catalogação no lonle

Sindicolo Nocional dos Editores de Livros, RJ

T684

A tradução culturol nos primórdios do Europc;, Moderno/Peter Burke e R. Po-chio Hsio

(orgs.); tradução Reger Moioli dos Santos - São Paulo: Editoro UNESP, 2009.
291p.
Introdução 7
Tradução de: Cultural Tronslotion in Eorly Modérn Europe Peter Burke e R. Po-chia Hsia
Inclui bibliografia e índice
ISBN 978-85-7139-928-0 PARTE I TRADUÇÃO E LÍNGUA 11
1. Tradução e interpretação - Europa - Hist6rio - Século XVI. 2. Linguagem e
1 Culturas da tradução nos prim
órdios da Europa Moderna 13
cultura- Europa- Hisl6rio. 3. Comunicação intercultural- Europa. 4. Ciêncio - Tra­ Peter Burke
dução- História. 5. Comunicação na ciência -História. 1. Burke, Peler, 1937-. li. Hsio, 2 A missão católica e as traduções
R. Po-Chio, 1953-. na China, 1583-1700 47
R..Po-chia Hsia
09-2728. CDD: 418.0209409031 3 A língua como meio de transfe
rência de val�res culturais 61
CDU: 81'25{4)" 15" Eva Kowalská
4 Traduções para o latim na Euro
pa Moderna 75
Peter Burke

PARTE II TRADUÇÃO E CULTURA

93
5 A piedade católica moderna em
tradução 95
Carlos M. N. Eire
Editoro ofiliodo: 6 A tradução da teoria política na
Europa Moderna 115
Geoffrey P. Baldwin
7 Traduzindo histórias 143
Asoc1acfón de EdHor1ales Unlvcrslt.artas Associação Brasileira de
de América Lallna y el Cartbc Editoras UnlversllArtas Peter Burke
 Peler Burke e R. Po-chio Hsio (orgs.)

8 The Spectator, ou as metamorfos e s

do periódico: u m estudo em tradução cultural 163
Maria Lúcia Pallares-Burke

PARTE III TRADUÇÃO E CIÊNCIA 183

9 O papel das traduçõe s nos intercâmbios
científicos europeus nos séculos XVI e XVII 185
Isabelle Pantin
1O Intercâmbios científic'os entre o h elenismo
e a Europa: trad uções para o gre go, 1400-1700
203 Introdução
Efthym ios Nicolai'dis Peter Burke e R. Po-chia Hsia
11 Encont-ros otomanos com•a ciência européia:
traduções para o turco nos séculos XVI e XVII 217
Fez.o. Günergun
12 Traduções da literatura científica
na Rússia do século XV ao XVII 239
S. S. Demidov

Assim como a Torre de Babel veio abaixo porque seus construtores foram
Referências bibliográficas 245
dispersados pela diversidade d e línguas, a Câmara da Comunidade Européia
Índice remissivo 267
ce rtamente ruiria se privada de seu exército de intérpretes: afinal, q uem
Colaboradores 287
sab e ria a diferença entre cod, kabeljauw, morue e bacalhau (além dos mais
consumados gastrônomos) e conseguiria passar por cima de reivindicações
nacionalistas rivais d e direitos de pesca e prepares de molho, salvo os dedi­
cados tradutores e intérpretes da União Eu ropéia?
Se a comunicação entre línguas e culturas é um fato pressuposto e acei­
to em nosso mundo contemporâne o, de modo algu m ela era evid e �te no
passado. No entanto, todos os grandes intercâmbios culturais na História
envolveram tradução: fosse a versão dos textos bu distas do sânscrito e do
páli para o chinês durante o período medieval antigo; fosse; transmissão da
.·· .... Filosofia grega para o árabe nos séculos medievais antigos e a subseqüente
··,
tradução dos mesmos textos do árabe para o latim ao longo de toda a Idade
f Média; ou fossem as traduções mais recentes de textos ocidentais para o

.-f.,;: _?.';_-.· ;.:.(_.;'.,.;;.�;_ :

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japonês e o chinês, que marcaram a modernização dessas duas civilizações
do Leste Asiático no final do séc ulo XIX e início do século XX. .

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�Ainda assim, é a Europa que constituiu o cenário das mais sustentadas
intensas· transferências culturais por toda a su a longa história, em um
.
.;i."'l{: · . ,\__ processo marcado por um· ime nso e sforço de· tradução: d e obras re li giosas,
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6 , , ·.·: .·.
 Peler Burke e R. Po-chia Hsia (orgs.)
científicas, políticas e literárias, a partir de uma grande variedade de ver­
náculos para o latim e vice-versa, e de vernáculos que cruzavam frQnteiras
nacionais e lingüísticas.
Os ensaios deste livro, que se originaram de uma série de seminários de
intercâmbio cultural custeados pela European Science Foundation, tratam
do que se poderia chamar de História Cultural da tradução, especialmente
na Europa moderna, do Renascimento ao Iluminismo. A idéia de que a tra­
dução tem uma história é antiga, mas até muito recentemente essa história
vinha sendo uma atividade academicamente marginal, praticada nas bordas
da História Literária e Religiosa.
Estudos de Literatura Comparada, por exemplo, há muito vêm tratando
da recepção de autores famosos em outros países, como Ariosto na Fran­
ça, Cervantes na Inglaterra ou Richardson na Alemanha (Cioranescu, 1938;
Fitzmaurice-Kelly, 1906; Beebee, 1990). Estudos literários do Renascimento
enfocaram traduções dos clássicos para o vernáculo, como as versões de Plu­
tarco por Jacques Amyot ou Thomas Nonh, junto com umas poucas traduções
famosas de um vernáculo para outro, como a versão inglesa de Montaigne
por John Florio (Matthiessen, 1931; Highet, 1949, p.104-26). Estudos da
Reforma apontaram a importância das traduções da Bíblia por Lutero e seus
seguidores na Inglaterra, na Dinamarca, na Suécia e em outras partes (Stolt,
1983). Alternativamente, seguindo o modelo da Literatura Comparada, dis­
cutiram a influência de Lutero na França ou de Erasmo na Espanha (Moore,
1930; Bataillon, 1937).
Dar à tradução uma posição mais central na academia foi a meta do movi­
mento dos Estudos-da Tradução em fins dos anos 1970. Duas idéias discutidas
nessa época são particularmente im·ponantes para a História Cultural da tradu­
ção. Os livros anteriores sobre a arte da tradução eram geralmente normativos,
mas o foco dos Estudos da Tradução - como o da sociolingüística - era e é des­
critivo, enfatizando o que os tradutores realmente fazem, e não o que deviam
fazer. Em segundo lugar, enquanto os estudos anteriores haviam enfocado a
fonte, como Ariosto ou Calvino, os novos estudos - como a teoria da "recepção"
e a história da leitura -enfocavam o público, vendo as traduções como "fatos da
cultura que as hospeda" e como agentes da mudança naquela cultura (Holmes,
1972;Toury, 1995, p.7-19, 24, 27). O intercâmbio cultural foi visto sob uma nova
perspectiva, aquela do horizonte dos leitores e sua cultura, quer a chamemos
de "cultura hospedeira", quer de "cultura-alvo" (Liu; 1995, p.26-8).
Em um famoso mapa preliminar do novo campo, James Holmes distin­
guiu entre estudos teóricos e descritivos da tradução, mas reservou pouco ou
8 9
A lroduçõo culturai' nos prim 6rdios do Europa Moderno
_
nenhum espaço para sua história. Os primeiros anos poderiam ser descritos
como o "momento teórico" nos Estudos da Tradução, época de uma ênf as e
em sistemas as sociada a Itamar Even-Zohar e Gideon Toury (Basnett, 1980;
Munday, 2001).
Desde aquela época, porém, teve início o que se poderia chamar de uma
"virada histórica", uma crescente consciência da historicidade daquilo que
um estudo recente chamou de "equivalências lingüísticas construídas - e
amiúde contingentes" (Liu, 1999, p.5). Alguns estudiosos de destaque no
novo campo, panicularmente Antoine Berman, T heo Hermans, Lawrence
Venuti, Anthony Pym e membros da escola de Gõttingen, como Wilhelm
Graeber e Genevieve Roche, levam a História a sério (Berman, 1984; Her­
mans, 1985; Graeber; Roche, 1988; Venuti, 1995; Pym, 2000). A Fédération
Internationale des Traducteurs (FIT ) montou um Comitê para a História da
Tradução, e um Diretório de Historiadores da Tradução foi publicado (Delisle
e Woodswonh, 1995).
Mesmo hoje, contudo, os profissionais desse campo têm menos a dizer
sobre os contrastes entre culturas do que entre tradutores individuais, menos
sobre as tendências de longo prazo do que sobre processos de curto prazo, e
menos sobre a história da prática do que sobre a história da teoria. 1 Espera­
mos que os· ensaios desta obra (de dez colaboradores que falam ao todo nove
línguas nativas) ajudem a fechar essas brechas.
Em todo caso, a guinada em direção à História dentro dos Estudos da
Tradução ainda não foi acompanhada por um movimento em direção ao es­
tudo da tradução por pane dos historiadores, nem mesmo dos historiadores
culturais. Uma segunda meta deste liv:o é, portanto, estimular um diálogo
entre os profissionais dos Estudos da Tradução e da História Cultural. É
central para esse diálogo a noção da tradução entre culturas e també� entre
fínguas; em outras palavras, a adaptação de idéias e textos conforme eles
passam de uma cultura para outra. Essa noção está na base dos capítulos de
Burke, Hsia, Baldwin e Pallares-Burke em particular.
Uma terceira meta dô livro é complementar o trabalho existente sobre a
História da Tradução, compensando lacunas. Enquanto obras anteriores privi­
legiaram a tradução literária, este volume trata da não-ficção, da transmissão
de informações e conhecimentos de uma língua para outra. Um capítulo
enfoca textos políticos (Baldwin); outro, textos históricos (Burke); um tercei­
ro, periódicos (Pallares-Burke). Em comparação com obras anteriores sobre
1 Sobre a história da teoria, Kloepfer, 1967; Kelly, 1979; Ballard, 1992; Robinson,1997.
 Peter Burke e R. Po-chio Hsio (orgs.)

textos religiosos que se dedicaram a traduções da Bíblia e dos escritos dos

!.:.;.�,··
reformadores, neste livro Eire enfoca a difusão de obras de devoção (examina­
das sob um ponto de vista internacional), enquanto Kowalská analisa a Bíblia

ll(t
protestante tcheca sob uma perspectiva eslovaca. Quatro capítulos (Demidov,
Günergun, Nicolàidis e Pantin) discutem a tradução de obras de Ciência, ou
"Filosofia Natural", como ela era geralmente conhecida no período moderno, 1-..f./_,�.';·:�···-
1.·:.
contribuindo para a compreensão do papel da tradução entre línguas naquele

:;t_··
movime�to mais amplo da "formação do conhecimento natural", com a tra­ -� ....

1
dução do conhecimento local em ciência universal (Golinski, 1998).
No que diz. respeito a diferentes línguas, obras anteriores se concentraram PARTE 1
em traduções do latim e do grego para o vernáculo (Bolgar, 1954; Schweiger, Tradução e língua
1830-4). Este volume, no entanto, enfatiza traduçõés entre vernáculos e tam­
bém o negligenciado mas importante tópico da tradução dos vernáculos para
o latim (BÜrke). Algun� colaboradores (especialmente Demidov, Günergun
e Nicolai"dis) examinam tanto as periferias européias como os centros, e
estendem suas pesquisas sobre o mundo além da Europa (Hsia).
Estudos anteriores da tradução se concentraram em textos impressos, 1r
embora a História da Interpretação tenha sido estudada por alguns especia­ r
t
listas, inclusive uma das participantes de nossos seminários, Dejanirah Couto i
(Couto, 2001). Entretanto, três colaborações para este livro (uma vez. mais,
Demidov, Günergun e NicolaYdis) enfatizam a importância dos manuscritos
na assim chamada "era da imprensa", especialmente na metade oriental da
Europa.
Ainda resta muito trabalho a fazer sobre a História Cultural da tradução.
O propósito desta obra é tomar mais conhecido o que já foi feito, oferecendo
algumas contribuições a mais para estimular os leitores a adentrar neste
campo fascinante.

--- 10
 CAPÍTULO 1
Culturas da tradução
nos primórdios da Europa Moderna
Peter Burke"

A tradução i sempre uma transição,

não entre duas línguas, mas enm duas culturas.
(Umberto Eco)

Este �nsaio cem duas metas: apresentar uma visão geral da tradução nos
primórdios da Europa Moderna e discutir a tradução entre línguas no con­
texto da tradução entre culturas. Diferenças entre culturas, bem como entre
línguas, reduzem o que se chamou de "cradutibilidade" dos textos. Um gran­
de problema para qualquer pessoa que esteja traduzindo literatura cômica,
por exemplo, é que o senso de humor das várias culturas, suas "culturas do
riso", como foram chamadas, são muito diferences. Piadas não conseguem
cruzar fronteiras. De maneira similar, com freqüência elas estagnam ao longo
dos séculos ou se tornam ininteligíveis, como as referêncjas aos chifres dos
maridos em Shakespeare, que podem ter feito as platéias elisabetanas rolar
de rir pelos corredores do Globe, mas são saudadas com silêncio hoje em dia
(Unger, Schultze; Turk,_ 1995). ·

• Gostaria de agradecer a meus colegas no projeto de intercâmbio cultural da ESF, à Biblioteca

Real em Haia, ao Netherlands Institute for Advanced Study, a Mark Godie, do Churchill
College, e a Aleka Lianeri, do Darwin College, por me ajudarem de diferentes maneiras na
redação deste ensaio.

\

Peter Burke e R. Po-chio Hsio (orgs.)
Se o passado é um país estrangeiro, decorre que até mesmo o mais mo­
noglota dos historiadores é um tradutor (Cohen, 1997, p.297). Os histo­
riadores fazem a mediação entre o passado e o presente e enfrentam os
mesmos dilemas de outros tradutores, servindo a dois mestres e tentando
reconciliar a fidelidade ao original com a inteligibilidade para seus leitores
(Evans, 1994).
..
Por exemplo, deveríamos falar da "política" de um rei medieval? A pa­
lavra não ocorre em textos medievais. Ela não era necessária, já que um rei
medieval não precisava convencer eleitores a elegê-lo apresentando-lhes um
programa de ações futuras. Ele pode ter tido uma política no sentido de certos
princípios ou estratégias subjacentes a suas ações políticas cotidianas, desde
a promoção da justiça até a ampliação dos limites de seu reino, mas uma
política no moderno sentido de um programa é um conceito anacrônico.
Mais uma vez, pode um historiador falar de "propaganda" no caso de Luís
XIV? Em seu sentido político, o termo foi cunhado no final do século XVIII
com o objetivo de comparar técnicas de persuasão política com técnicas de
conversão religiosa, como a praticada pela Igreja Católica e suas instituições
"para a propagação da fé" (de propaganda fide). Por outro lado, escritores e
artistas a serviço de Luís XIV não apenas glorificavam o rei em geral como
justificavam ações particulares, tais como a expulsão dos protestantes da
França em 1685 (Burke, 1992). Eu diria, portanto, que falar de "propagan­
da" nesse caso é culturalmente apropriado, mesmo que seja tecnicamente
anacrônico. É uma tradução livre, mas não infiel.
A expressão "tradução cultural" foi originalmente cunhada por antropó­
logos do círculo de Edward Evans-Pritchard, para descrever o que ocorre em
encontros culturais quando cada lado tenta compreender as ações do outro
(Beidelman, 1971; cf. Pálsson, 1993, Kissel, 1999, Howland, 2001; Rubel;
Rosman, 2003). 1 Um claro exempl�, famoso entre os antropólogos, é o relato
de como Laura Bohannan contou a história de Hamlet a um grupo de tivs na
África Ocidental e ouviu a narrativa ser "corrigida" pelos anciãos até final­
mente se ajustar aos padrões da cultura local (Bohannan, 19_71).
Atuando, como freqüentemente fazem, em situações nas quais a distância
cultural entre eles próprios e seus informantes é insolitamente grande, os
antropólogos são muito cientes do problema dos termos intraduzíveis (al-
Uma crítica em Asad, 1986.
14
-�: ·• ..
A trodução cultural nos primórdios do Europo Moderno
guns dos quais, como "totem" el<tabu", introduziram nas línguas européias),
bem como do problema mais geral da comunicação entre nativos de culturas
diversas. Cada vez mais, estão se conscientizando tanto dos problemas lin­
'� �;;.�:.·· güísticos como dos problemas culturais mais amplos envolvidos na versão
. -�· :� . .
de conversas com informantes para sua própria prosa acadêmica (Sturge,
1997; T ihanyi, 2004).
O conceito de tradução cultural foi recentemente· ac:olhido por um grupo
de especialistas em literatura ocupados com a tradutibilidade dos textos (Bu­
dick; lser, 1996). Ele também pode ser usado para designar imagens visuais
(discutidas por Hsia no Capítulo 2) e a vida cotidiana. Tem sido freqüente­
mente sugerido, desde August.Schlegel, passando por Franz Rosenzweig, até
Benvenuto Terracini, Octavio Paz e George Steiner, que o entendimento em
si é uma espécie de tradução, convertendo os conceitos e as experiências de
outras pessoas em seus equivalentes no nosso próprio "vocabulário". ·como
diz Paz, "aprender a falar é aprender a traduzir" (aprender a hablar es aprender
a traducir) (Glatzer, 1953, p.255; Terracini, 1957, p.39; Paz, 1971, p.7; G.
Steiner, 1975, p.1-48).
Dentro da cultura ocidental contemporânea, por exemplo, a maioria das
pessoas não entende a linguagem técnica usada por advogados, médicos e
muitos outros tipos de cientistas. Isso já era um problema no século XVII,
quando o holandês Adriaan Koerbagh publicou um dicionário de termos legais
no vernáculo a fim de ajudar as pessoas comuns a evitar serem manipuladas
pelos advogados (Israel, 2001, p.187). A tarefa de traduzir a lei ou a mediei-.
na no sentido de levar idéias legais ou médicas a atravessar fronteiras tanto
lingüísticas como sociais é ainda mais dificil. 2 Assim também é a tradução
de deuses, a ser discutida adiante, no contexto das missões cristãs na Ásia e
nas Américas (Assmann, 1996).
Tradução implica "negociação", um conceito que expandiu seu domínio
na última geração, indo além dos mundos do comércio e da diplomacia para
referir-se ao intercâmbio de idéias e à conseqüente modificação de signifi­
cados (Pym, 1993; Eco, 2003). A moral é que qualquer tradução deve ser
considerada menos uma solução definitiva para um problema do que um
caótico meio-termo, envolvendo perdas ou renúncias e deixando o caminho
aberto para uma renegociação.
2 Sobre a lei, Llu, 1999, e Legrand, 2005; sobre a medicina, Chen, 1999; sobre ajustiça como
uma espécie d1.; tradução, White, 19�0.
�.... •. 15
 A tradução cultural nos primórdios da Europa Moderna
s.)
Peter Burke e R. Po-chio Hsio º(org

estudos focados no moviment o de idéias, como a liberdade, 0 individual is­

o egoci ada parece par­
e rno , a idéia da t raduçã n
No caso do perí odo mod ssionários
mo e a democracia do Ocidente p ara a China, o Japão, a Áfr ica O cid ental·
quando o assunto são missões . Mi
a
ticu larme nte apropriada e outras regi ões (Liu, 1995; Sakai, 1997; S chaffer, 1998; Howland, 2001).
s
p ( u, como se
cri�tãos t inham de
decidir quão longe poderiam ir ao ada
o
O foco desses estudos na tradução ent re co ntinentes não é ne nhum a ci­
tar
tavam
) a mensagem cristã à cult ura em qu es
diz ia na época, ao "acomodar"
e

, aso se de� te. Quanto maior a distância e ntre as línguas e as cult uras e nvo lvida s,
exemplo, Matteo Ricci descobriu q ue c
trabalhando. Na China, p or v tia como mais claramente aparecem os p roblemas da t radução. Mesm o assim, essa
o lev aria a sério, e por isso
vestisse como padre, ninguém
ele se es
abordagem pod e ser utilmente aplicada no contexto do intercâmbio cu ltu­
indo" a ssim su a posiçã soc
ial ra o chi ­
pa
um er udito confuciano, "trad uz ral dentro da Europa.
o
trais
que conv ertia reverenciassem seus ances
nês. Permitia que os chineses e mais social que
A tradução de text os foi central para os grandes movime ntos cultu ra is
o que esse era um cost um
à manei ra tradicional, afirmand zhu, literal ­
da Eur�pa m oderna: o Renascimento, a· Reforma, a Revo lução Científica e
_
r elig ioso . E le t raduziu
a palavra "Deus" pelo neologismo Tian o Il umm1 smo. No Renascimento, por e x emplo , a s t raduções dos clá ssicos
eses se re f erissem
ermitiu que os cris tãos chin
mente '.'Senhor dos Céus", e p do em mais
(inclus!ve t raduções do grego para o latim) ocupam o lugar d e ho nra,- mas
simplesme nte a Tian,
"Céus", como Confúcio havia feito (discuti traduçoes de grandes obras da literatu ra v ernácula, d e Orlando Furioso a Dom
detalh es a seguir, p.47-60). o à rel igião
Quixote, também foram influentes. Na Reforma e na Contra-Reforma, com o
sados de terem se c onvertid
Em Roma, os j esuítas foram acu veremos no capítu lo de Ei re (a seguir, p.95-113), t raduções de E rasmo L u­
erterem ao cristianismo. O
que em Pequim
dos chineses em vez de os conv um erro de tra­
tero, Cal ino, Luís d e G ranada, Roberto Bellarmino e outros desempe�ha­
:,r
ral, em Roma parecia ma is
parecia uma boa tradução cultu ram um importante pape l. A difu são da Revo lução Cie ntífi ca (di scu t ida nas
nários se negaram ir tão longe como
a
dução (Gernet, 1982). Outros missio p.183-246) pode a té certo ponto ser mensurada pelas traduções de Galileu e
hábitos negros e também a palav ra lati na
Ricci, mantendo seus trad icionais Newton, e a do Iluminism o, pelas de Montesqui eu e Locke.
z i-la (v er adiante, p.57). Esses confli tos
Deus, glosando -a em v ez de t radu Traduções dos clássicos, como traduções d e g randes ob ras da literat u ra
i dos e xemplos modernos
dos problemas da tradução
es tão entre os ma is vív vernácula, fora� freqüentemente estudadas. P or i sso este capítulo, com o
o entre cult uras .
tant o ent re líng uas com o restan e do li_vro, se concentra r á no q ue foi n eglige nciado : tr ad uções d e
:
o cultural é falar de um duplo
processo _
Outra maneira de discutir a traduçã nao -ficçao escnta ou nos ve rná culos da Eu ropa m od erna ou em neo latim
tualização, que primeiro busc
a se apropriar
de descontextualização e recontex íngu as pode ser (estudado em mais detalhes adiante, p.75-92). Um estudo de finitivo se isso
estica. A traduçã nt
de algo estranho e em seguida o dom
e re l
é possível, terá de aguardar até que se tenha feito um levantamento d e todas
o

desse processo, mas também como uma

vista não apenas como um exemjJlo as traduçõe: p rod�zidas na Europa m ode �na, uma tarefa acima das forças d e
na incomurneote visív el - o u· audível.
espécie de papel de girassol que a tor pectiva. uma pequena eqmpe, quanto mai s de um indivíduo .
esse processo de uma dupla pers
· Pode se r esclarecedor tentar observar hospe­ O que pode ser feito aqui é situar esses textos em seu contexto cultural
ganho, enriquece o nd a ultu a
Para o re ceptor, ele é uma forma de
c r
d ado r, incluindo os sistemas ou "regimes" de trad ução p revalente s n esse perío �
o háb il. Do po nto de v ista do o
deira em resultado de uma adaptaçã didos do - e1;1 _ out ras palavras, as regras, normas o u convenções q ue g ov ernavam
rma de perda, levando a mal-enten
por o utro lado, a tradução é uma fo sua pratica, tanto os fins ( ou "estr atég ias") como os m eios (as " tá ti cas" ou
e violen tando o orig inal. "poé:icas") (Pym, 1998, p.125-42). A visão geral desses regim es �sboçada a
segu1r - ou, c omo p refiro chamá-los, dessas " cultu ra s da tradução" na Eu ropa

moderna - o ferece respostas p rovisórias p ara seis g randes perguntas : q uem

li traduz? Com que intenção? O quê? Para quem? De que maneir a? Co m q ue

con seqüências? (Lambert, 1993).

ural , a tr adução entre línguas
Em qualquer história de intercâmbio cult
o entre a tradução li ngüí st ica
é obviamente de grande importância. A relaçã
e a t radução cultural foi recente
mente obj e to de uma série de perspicazes

17
16
 Peter Burke e R. Po-chio Hsio (orgs.)
Ili
Quem traduz? Os milhares de tradutores na Europa nesse período podem
ser classifi cados de v árias maneiras. Por exemplo, a maioria das traduções era
obra de um in div íduo, mas o trabalho em equipe também pode ser encon­
trado nessa época, como oco rria n� Idade Média (em Toledo, por exemplo, e
também no mostei ro sueco de Vadst ena). Assim, o editor alemão Zacharias
Palthen or ganizou uma equipe para traduzir as obras de Paracels o para o
latim (ve r p.196), enquanto o poeta Alexander Pope empregou uma equipe
de colaboradores para aj udá-lo a traduzir H omero (Pantin, adiante).
A tradução colaborativa era especialment e comum no caso da Bíblia, não
a penas porqu e o texto fosse tão longo, mas também em razão da responsa­
bilidade erivolvida em interp retar a palav ra de Deus. A Versão Autorizada
inglesa e a Bíblia de Kralice tcheca, bem como uma bíbl ia holandesa, uma
dinamarquesa, uma sueca e uma finlandesa, produzidas no período moder­
no, for am todas obras de comitês de eruditos ( no caso inglês, seis " compa­
nhias", du as baseadas em Oxford, duas em Camb ridg e e duas em Londres).
A formação desses grupos seguiu o modelo dos famosos Septuaginta, os 72
eruditos que se supõe te rem se reunido em A lexandri a a fim de t raduzir o
A ntigo Testamento para o grego.
Outra distinção útil entre tradutores divide os amadores dos profissionais.
A vasta maioria dos tradutores ;e envolvia nessa atividade apenas uma ou
duas vezes na vida . Os amadores incluem uma série de governantes ou futuros
governantes, entre os quais a rainha Elizabeth, Jaime I, Filipe IV e Filipe V
da Espanha e Ludwig, príncipe de Anhalt. Autores devotos com freqüência
traduzi am outros autores dev otos (tanto Lu ís de Granada como o j esuít a
Emmanuel Nieremberg, por exemp lo, tra duzir am Thomas Kemp is). Médicos
traduziam herbári os e obras de anatomia (Annibale Briganti, p or exemplo,
traduziu os herbár i os de García de Horta e de Monardes para o italiano)·
Hist or i ad ores traduziam outros historiadores, como Leonardo Bruni, que
traduziu ou adaptou Políbio e Procópio, enquanto Johann Sleidan traduziu
Commynes. Artistas e conhecedore s traduziam tratados sobre arte e arqui­
tetura (Richard Haydocke, um médico que também era gravador, traduziu
para o inglês o teórico da arte italiano Lomazzo).
As mulheres er am �elativarn ente proeminentes nesse campo, p rovavel­
mente porque a tradução era consider�da mais compatí vel com a modéstia
'
feminina do que a escr ita original. A tradição durou um longo tempo: na
Alemanha, no início do sécu lo XX, 40% das traduções liter ár ias a partir do
8 1
1
/ ·,.... . .... - .. 9
A tradução cultural nos primórdios do Europa Moderno
inglês eram obra de mulheres (Pym, 1998, p.144). No período modern o, as
tradutoras incluíam a italiana Giuseppa -Eleonora Barbapiccola, a polonesa
Maria Sipa y llówna, as a_l emãs E leonora von Sporck e Louise Gottsched, as
d in amarquesas Dorothea Biehl e Birgitte Thott, as suecas Catharin a Gy l ­
lengrip e Mari a Gy llenstierna, e as francesas Genevieve Chappelain, A nne
Dac ier, Susanne du Vergerre, Octavie Belot e Emilie, marquesa du Châtelet.
Na Inglaterra - para citar apenas os nomes mais co nhecidos - havia Margaret
Beaúfort, Aphra Behn, E l izabeth Cary, A nn Cook, Arin Lok, Jane Lumle y,
Margaret Roper, Mary Sidney e Margaret Tyler.
Em contraste com os muitos amadores, era relativamente pequeno o
i número de tradutores profissionais, pelo menos no sentido ger al de dedica­
i rem uma parte considerável de s4a vida a essa tarefa, em geral por di n heiro.
Os tradutmes de textos estiveram entre os primeiros autores a serem pagos
por seu trabalho, e a maioria dos escritores do período moderno que aspira­
vam a .vi ver da pena, de E rasmo ao doutor Johnson, realizava traduções em
meio a outras atividades l iter árias. Ao final do perí odo, uns poucos entre
eles consegui ram ganhar uma quanti a conside r ável de di n he iro. O gr up o
in cl uía uma mulher, E l izabeth Carter, que se dizia saber dez línguas e tra­
duzia em quatro delas - grego, latim, francês e italiano. Carter ganhou mil
guinéus com sua tradução de Epicteto , enquanto A lexander Pope recebeu
4.500 libras pel a Odisséia em inglês, repassando uma fração dessa s oma a
seus colaboradores.
E n tre esses profissionais havia um número substancial de tradutores
orais. I nté rpretes eram freqüen temente nomeados por governos e por vezes
treinados em escolas especiais, em Viena, por exemplo, Ven eza ou Paris,
o nde eram con hecidos como "les jeunes de langues" [ os j ovens de lí nguas]
(Dupont-Ferrier, 1923; Lewis, 1999). Sua posição podia ser hereditária, como
no caso dos intérpr etes russófonos na Suécia ou dos tsujis neerlandófonos
de Deshima, a ilha na qual os estrangeiros foram confinados pelo g overno
j aponês do início do sé culo XVII até a década de 1850 (Tarkia inen, 1972;
Goodman, 1967).
O recorde pelo número de textos t raduzidos nesse pe ríodo é do francês
Gabriel Chappuys, que traduziu cerca de oitenta textos do italiano ou espa­
nhol. O holandêsJan Hendriksz Glazemaker traduziu .mais de sessenta obras
do latim, francês; alemão e italiano. O alemão Christian We isse traduziu 48
ob ras do i nglês. O su eco Eric Schrod er traduziu mais d e quar enta ob ras,
s obr etudo. do latim, enquanto o holandês Vincenti us Meusevoet traduziu
mais de 35, sobretudo do inglês:··
•
' <t;:}}f.'
 .� .,. __ . .
A lroduçõo cultural nas primórdios da Europa Moderna
Peter Burke e R. Po-chia Hsia (orgs.)

", já era uma identidade híbrida - e Lodowick Bryskett, também conheádo como
exa to chamar esse grupo de "semiprofis: ional
M esmo assim, é mais o nsin o de Lodovico Bruschetto. P rotestantes italianos refugiados eram especialme nte
a com binar a car reira d e tr adut o r com e
ue era comum n essa époc de dicio ná­ famosos como tradutores em latim ( adiante, p.81).
ila_ção
a tuação como s ecretário, a co� p
�nguas, a int erpretação, a _ No século XVII foi a vez de os re fugiados protestantes franc eses entrar em
(me smo hoJ , apen a um a mmo na de tradutores
. rios ou a escrita por dinheiro
e s

2). A sim, Meusevoet era no campo da tradução, do inglês para o francês ou vic e-versa. Pierre Coste,
gral ) (Pym, 1998, p.16 s
trabalha em p eríodo int e tradutor de Locke e N ewton, er a um hugue note exilado em Amst erdã e
retário real e intérprete. Weisse
atuava como
pastor calvinista; e Chappuys, sec E ssex (Rumbold, 1991). J ean Baptiste de Ro semond tornou-s e um clérigo
tradutor
editor e escritor, além
de tradutor. Schroder ocupava a po sição de
anglicano e traduziu seu s novo s coleg as, como Gilb ert Burnet e Edw ard
provas da imprensa real em Estocolmo e, em
r eal, mas também era reviso r de Stillingfl eet. Por outro lado, Pierre Desmaiz eaux, tradutor de B ayle, Fén elon
sua própria casa de impressão.
certo momento, também d irigiu e Saint-Evr emond, e John D esaguli ers - outro nome híbrido-, tradutor de
ral,
es assalariados em tempo integ
Para algun s exemplo s raros de tradutor obras sobre fortificação e Filosofia N atural, preferiam verter t extos franc es es
do século XVIII, onde eles eram empre­
precis am os nos voltar para a Rússia para o inglês. Desmaiz eaux também atuou como tradutor cultural em um
ersbur go e faziam reuniões regul
ares p�r�
gados pela Acad emia de São Pet sentido mais amp lo ao trabalhar como o correspondente inglês do e rudito
st ra um discurso que fe em z 1735 , Vas1hJ
dis cutir seus problemas. Com o mo periódico Nouvelles de la république des lettres [Notícias da república das letras]
fo rte senso d a missão do tradutor,
T redi akov ski, em particu lar, tinha um
rker, e enviar informaçõ es sobre novas public açõ es (Almagor, 1984).
ropéia ocidental para a Rússia (Ma
nesse caso, tr an smitir a cultu ra eu No caso da Holanda, i mi grantes de regresso fo rmam uma categoria es­
1985, p.52-3). pecial, particularmente os que haviam fugido para a Inglaterra no s tempos
auxiliar os tradutores no período
A escassez de recursos di sponíveis para
1979, p.126-30). A falta de dicionários da perseguição empre endida pelo duque de Alba aos protestant es e re tor­
moderno merece ser enfatizada (Kelly, naram posteriormente a s eu país natal para se tornar ministros calvinistas.
ularmente notáv el. Tome -se , por
bilíngües dos vernáculos euro pe us é partic
lês , O prolífico tradutor Vinc entius Meusevoet, por exemplo, viveu por alguns
exemp lo, a situação do
tr adutor em inglês. Por um dicionário francês-ing
po um anos em Norwich. Micha el Pann eel viveu em Ipswich. Johann es Beverl and,
espanhol-ingl ês, até 1591; r
foi necessá rio esperar até 1580; por um em Yarmouth. Jan Lamoot freqüentou a esco la em Londres. Willem Tee linck
inglês, até 1598. No caso da Suécia,
francês-alemão, até 1596; por um italiano-
estudou em St. Andrews, viveu em Banbury e se casou com um a mulher de
dicionário francês-sueco, até 1734
foi nec essá rio esperar até 1694 por um
alemão- sueco. Antes dessas datas, Derby. Essas experiências pessoais na Grã-Bretanha certamente ajudaram os
por um inglês- sueco e até 1749 por um
uma língua específica tinham tradutores em sua tare fa de negoci ação cultural.
tradutores que encont rasse m p roblemas com
quem fos se naJivo no idioma. Um segundo- grupo que merece menção aqui, ao lado dos re fugiados, é
d e t rabalhar com -o latim ou pe dir ajuda a
do resto. d prime iro, previ ­ o da ordem co smopolita dos j esuít as. Eles, é cl aro, eram esp eciali sta s em
Dois grupos semiprofi ssionais se d estacam
m qualific ados tradução cultural, in struídos p elo fundador da O rdem, Inácio de Loyol a (nas
rados, "anfíbios" incomumente be
siv e lme nte, é o dos e mig
carreira da m ediação entre se us palavras de São Paulo), a s er "todas as coisas para todo s" (omnia omnibus).
para sua tarefa e que, com freqüência, faziam
os intérpretes profissionais da Nesse sentido, a estratégia de Ricci de se vestir como um erudito chin ês er a
dois países. E sses med iadores europeu s, como
o como seus equivalentes nas típica de sua ordem.
époc a , não foram estudados _de modo tão intens
ras partes. No Império Otomano, A tradução entre língu as fazia part e da estratégia j esuític a d e conv er são.
Améric as, no império portugu ês e em out
os" - em outras palavra s, Mais de 250 tradutores j esuítas estiveram ativos entre a fundação da Ordem,
por e xe mp lo, os intérprete s eram amiúde "renegad
r etes portugueses n a em 1540, e o fim do século XVIII, traduzindo sobretudo, embora não exclu­
con�ertidos do cristianismo ao islã, enquanto o intérp
s

de origem judaica (Karttu­ sivament e, do vernáculo par a o latim e concentr ando- se em textos d e outros
Índia eram amiúde "c ri stão s novos", geralmente
j esuítas. O núm ero máximo de textos traduzidos por um único ind ivíduo
nen, 1994; Acs, 2000; Couto, 2001).
sta s incluem dois lon­ é trinta (no caso do flame ngo Frans de Smidt), seguido de 23 do polonês
Quanto a tradutore s de t extos, exemplos quinhenti
o que provavelmente Simon Wysocki, dez enove do alemão Conrad Vetter, dezo ito do·ne erlandês
drinos de pais italianos, John Florio - nome híbrido para

21
 Peter Burke e R. Po-chio Hsia (orgs.)
setentrional Jan Buys e dezessete tanto do francês Jean Brignon como do
tcheco Jiri Ferus. A tradução jesuítica foi particularmente importante no
centro-leste europeu e em sua região oriental. Assim, Jacob Szafarzynski
traduziu seu colega Rivadeneira para o polonês; Balthasar Hostovinus tra­
duziu cartas das missões jesuíticas para o tcheco, e assim por diante (Burke,
2006). Tradutores jesuítas também estavam ativos na China, como mostra
Hsia (a seguir, p.52).
Além dos próprios tradutores, é necessário levar em conta os patronos,
no sentido dos "poderes (pessoas, instituições) que podem fomentar ou im­
pedir a leitura, a escrita e a reescrita da literatura» (Lefevere, 1992, p.11-25,
na 15). Alguns deles eram figuras destacadas na Igreja. O papa humanista
Nicolau V encomendou uma série de traduções �os clássicos gregos para o
latim. O cardeal Jiménez de Cisrieros foi patrono de uma edição poliglota da
Bíblia, bem como de uma série de obras de devoção (ver p.104-5), enquanto
o cardeal da Lorena estimulou a tradução de obras devocionais do espanhol
para o francês (Martin, 1969, p.12).
Outros patronos importantes foram governantes. Já no século XIII, o
rei Afonso X de Castela, conhecido como "o sábio" ou "o culto" (el sabia),
encomendara urna série de traduções, especialmente de textos árabes sobre
Astrologia, enquanto cerca de trinta textos foram vertidos pará o francês a
mando do rei Carlos V (Pym, 2000, p.56-79). Circulando em manuscrito, es­
ses textos atingiam um público limitado. Na era da imprensa, Gustavo Adolfo,
na Suécia, e Pedro e Catarina, os Grandes, na Rússia, iniciaram campanhas
similares de tradução que atingiram muito mais pessoas (ver p.25).
O exemplo de Catarina rios lembra que as mulheres eram proeminen­
tes como patronas, estimulando os homens a traduzir autores específicos
para línguas específicas. As versões espanhola e inglesa do Cortegiano [O
cortesão], de Castiglione, foram resultado de sugestões de duas nobres, Ge­
rónima Palova de Almogáver e Elizabeth, marquesa de Northampton. John
Floria dedicou as três partes dé sua tradução dos Ensaios, de Montaigne,
(1603) a seis mulheres da nobreza. A terceira tradução francesa da História
do Concílio de Trento, de Paolo Sarpi, foi feita a mando da rainha da Inglaterra
(adiante, p.156).
Havia também os empresários da tradução, os impressores - alguns dos
quais estavam particularmente interessados nesse tipo de livro. Por exemplo,
Gabriel Giolito, de Veneza. lançou uma série de traduções de obras históricas
clássicas (ver, p.144-5), além de empregar o espanhol Alfonso de Ulloa para
traduzir do espanhol. Theodor de Bry e seu filho Johann Theodor encomen-
22
1 .
A tradução cultural nos primórdios da Europa Moderna
daram traduções em alemão e latim de livros de viagens. Impressores que
também traduziam incluíam William Caxton, em Londres, Etienne Dolet,
em Lyon, e Barezzo Barezzi, em Veneza. Foi em grande medida graças aos
impressores que algumas grandes cidades tornaram-se centros de tradução,
em particular Veneza, Paris, Londres e Amsterdã.
IV
Com que intenções ou estratégias as traduções eram realizadas (Reiss;
Verrneer, 1984, p.95-104)? Os projetos mais óbvios e talvez mais importan­
tes eram religiosos. O paralelo, bem como a conexão, entre o trabalho dos
tradutores e o dõs missionários é digno de nota. Missionários como Ricci
traduziam textos religiosos como um meio de conversão, mas eles às vezes
se descobriam traduzindo sua religião também, no sentido de adaptá-la à
cultura local, e até mesmo convertendo sua língua, no sentido de introduzir
nela palavras e frases do tupi, do japonês e assim por diante.
Havia um nível con�iderável de atividade missionária na Europa, assim
como em outros continentes; e fambém ali a tradução desempenhava um
papel importante. No mundo da Contra-Reforma católica, havia o que se
poderia chamar de uma. "política da tradução", associada a tentativas de
converter adeptos do protestantismo ou da Igreja Ortodoxa. Tal política fica
particularmente clara no caso do catecismo escrito por Roberto Bellarmina.,
que foi traduzido para vinte línguas européias (ou 22, se o piemontês e o
siciliano, que agora são tratados como dialetos, forem incluídos) (Sommer­
vogel, 1890-1900).
Em Roma, uma série de traduções, inclusive uma versão árabe da his­
tória eclesiástica do cardeal Barônio, foram financiadas e produzidas pela
Congregação "para a Propagação da Fé" (de propaganda fide), e publicadas por
sua imprensa especial a partir de 1626.3 No caso dos jesuítas, eni particular,
é tentador falar de uma conspiração para a tradução, ou no mínimo de uma
política de tradução, de livros produzidos não apenas ad maiorem gloriam Dei
("para a maior glória de Deus", o lema jesuíta), más também para a maior
l glória da Ordem.
·�
· As muitas versões da Bíblia feitas por protestantes, de Lutero em diante,
1 : ?,�: '
oferecem outro caso óbvio de uma estratégia consciente. O mesmo faz a pro-
."!t•.'
3 Sobre a #política da tradúção", Toury, 1995, p.58; H�el, 1972. ·,-::·--
lji,. . -·_._---
. ., - 23.
.: ..._.•,...... > -,-· -�. • • ,..;.
-:: ;-:, }-�- "".
 . - . - •.··

Peter·Burke e R. Po-chia'Hsio (orgs.) A tradução rulturol nos primórdios d� Eur�pa Moderna

catec ismos. para mui tas línguas. exatamente o Colég io da Chancelaria ) que encomendou a tradução sueca
dução de textos luteranos, especialmente
, estoni ano (1535), do Segundo tratado sobre o governo, de Locke (Hansson, 1982, p.70; Hallberg, ·
os primeiros textos jamais impressos em letão (1525)
igo texto russo, impresso 2003, p.57n).
lituano (1547) e lapão (1649), bem como um ant
ar áfrases de obras ·de No caso da Rússia do século XVIII, é ainda mais apropriado falar de uma
em Estocolmo em 1625, foram todos traduções ou p
campanha de tradução. Tradutores trabalhavam para o Colégio de Questões
Lutero (Burke, 2004, p.78).
as do Exteriores, como já haviam feito antes (ver à p.150). Em 1698, Ilia Kopievich
Uma vez mais, quando constatamos que obras teológicas e devot
ês húngaro em fo i incumbido de traduzir nada menos de 2l títulos (Hughes, 1998, p.317).
puritano Wi lliam Perkins foram traduzid as para o holand e o
s por inglese s er m tr duz idos p ara As traduções na época de Pedro, o Grande, eram sobretudo militares, cientí­
uma época em que poucos l i vros escrito a a

to vem à mente é que os ficas e técnicas, refletindo os interesses e as políticas do czar. Incluíam obras
alguma língua estrangeira, a explicação que de imedi a
tradução. A de Anatomia (Vesálio), Cosmologia (H�yghens), Geografia (Varênio) e Ar­
calvinistas também devem ter tido uma política ou estratégia de
aolo Sarp i , quitetura (Vignola, supostamente traduzido pelo próprio Pedro). A História
velocidade com que a antipap ista História do Concílio de Trento, de P
, alemão , holand ês e latim (em estava representada pela vida de Alexandre, o Grande (escrita por Cúrcio),
apareceu em suas traduções em inglês, francês
uma vez sem dúvida um modelo para Pedro, e pela descriç ão geral dos Estados euro­
1620 e 1621, seguindo-se à edição original i taliana de 1619) sugere
peus de Pufendorf, um livro-texto nos cursos da Academia Naval (Marker,
mais uma ação coordenada no mundo protestante.
ser 1985, p.29, 248).
Estratégias ou políti cas seculares de um tipo s imilar também pode'?
Luis de A vil a, A escala dessa campanha aumentou depois da morte de Pedro, mas livros
encontradas nesse período. Por exemplo, a história oficial, por
em 1546- técnicos foram substituídos por obras de literatura, refletindo uma "tentativa
da guerra do imperador Carlos V contra os príncipes protestantes
s dos eventos n o pen s no orig i nal em autoconsc iente" de Catarina destinada a criar uma cultura vernácula laica
1547 foi publicada não muito depo i ã a a

it liano, fr ncês, fl mengo , na Rússia por meio de modelos estrangeiros, quer clássicos (Homero, Vir­
espanhol, mas também - no mesmo ano - em a a a

duç o se gílio), quer franceses (Boileau, Fénelon). A Rúss ia setecentista oferece um

latim e inglês. Essa coordenação sugere que_ a iniciati va para a tra
ã
vívido exemplo moderno da importância da tradução em casos em que uma
originou no círculo do imperador.
dada literatura é "jovem", fraca e periférica (Even-Zohar, 1979). Tradutores
N a Ingl aterra, na époc a de Henrique VIII, William M arshall traduziu
a fim passaram a trabalhar para a Academia Russa. Em 1768, a Sociedade para a
Lorenzo VaHa, Marsílio de Pádua, Martinho Lutero e Martinho Bucero
T homas Tradução de Livros Estrangeiros iniciou suas atividades, e 154 traduções fo­
de apoiar a Reforma, e foi ele próprio apoiado pelo ministro do rei,
o do ram publicadas nos doze anos seguintes. No período de 1756 <;!. 1775, foram
Cromwell, embora pareça que a iniciativa para a tradução tenha provind C/
·

2004). De maneir simil ar, publicadas 765 traduções. Os livros em francês respondiam por 402 destes;
próprio Marshall, e não do governo (Alec Ryrie,
4 a
)", .

·:-·
duções de
no reinado de Elizabeth, Richard Hakluyt parece ter estimulado tr a
livros de viagens, por exemplo, por seu assistente John Pory (que traduziu
o Africano) e também por Willi am
a descrição da África de a utoria de Leão,
Phillip.
· No caso da Suécia do século XVII, por outro lado, embora a iniciativ a
fosse de um particular, Schroder, que a presentou seu plano em um livro
dedicado a Carlos IX em 1606, não estaria longe da verdade falar de uma
"campanha de tradução" oficial n a era de Gustavo Adolfo, empreendida com
vistas a ajudar os suecos a se pôr em dia com os desenvolvimentos culturais
em outras partes da Europa. No século XVIII também foi o Estado (mais
4 "William Marshall (1540?)" no Oxford Dictionary of National Biography (Oxford).
os livros em alemão,_por 175; os em latim e italiano, por 54 cada, e os em
inglês, por 36, embora os textos nem sempre fossem traduzidos de sua língua
original (Marker, I 985, p.50-8, 88, 91).
Em suma, a Suécia e a Rússia exemplificam a importância das contri­
buições culturais da periferia. A Suécia adentrou efet i vamente ê: República
das Letras européia no século XVII, e a Rússia, no XVIII. As elites sentiam
que precisavam se atualizar em relação à Europa oci dental, e a tradução era
o meio para tanto. Por isso, a tradução era mais altamente organizada e tinha
um status mais elevado, e o Estado estava mais i ntimamente envolvido com
a iniciativa do que em outras partes.
Para outras regiões, o termo "campanha" parece menos apropr iado nesse
período, embora o ideal de di fundir conhecimentos por meio da tradução

24 25
 Peler Burke e R. Po-chio Hsio (orgs.)
estivesse por toda parte. Por um lado, traduções para o latim eram feitas
para dar à comunidade erudita acesso a obras escritas em vernáculos que ela
desconhecia, como no caso de traduções de obras antiquárias do italiano feitas
na República Holandesa por iniciativa de Johann Georg Grévio (ver p.79).
Por outro lado, traduções eram feitas para diferentes vernáculos a partir do
grego e do latim a fim de permitir que grupos excluídos de uma educação
· clássica tivessem acesso à sabedoria dos antigos. Motivos didáticos e econô­
micos sê entrelaçavam nos projetos de Giovam1i _B.attista Ramusio, Richard
Eden, Richard Hakluyt, T heodore de Bry e outros para dar aos europeus um
conhecimento melhor de outros continentes.
Outro importante motivo para traduções para os vernáculos foi o que se
descreveu como "nacionalismo cultural". Os tradutores amiúde usavam a lin­
guagem da rivalidade. Sir T homas Hoby, por exemplo, estava ciente de que o
Cortesão, de Castiglione, fora traduzido para o espanhol e o francês àntes que
ele começasse sua versão para o inglês (E bel, 1969). Gavin Douglas traduziu
a Eneida, de Virgílio, para o que chamava de "the langage of Scottis natioun" [a
língua da nação escocesa], contrastando-a com a tradução do poema para o
inglês feita por Caxton (Corbett, 1999, p.42).
As traduções de clássicos vemaculares, incluindo os poemas épicos de
Ariosto e Tasso, para dialetos como o bergamasco, o bolonhês e·o napolitano
podem ter sido feitas por razões similares às de Douglas: orgulho local. Elas
também podem representar uma forma de brincadeira erudita, o equivalente
no período moderno à versão em latim do Ursinho Pooh no século XX, produ­
zida por um húngaro residente no Brasil.
V não-ficção. A Gerusalemme Liberata [Jerusalém libertada], de Tasso, por exem­
O que era traduzido? Do ponto de vista de um antropólogo cultural
ou de um historiador cultural, á tradução revela com insólita clareza o que
uma cultura acha interessante em outra, ou mais exatamente o que grupos
de uma cultura (ou indivíduos como Pedro, o Grande) acham interessante
em outra. Poderíamos dizer que a escolha de itens para tradução reflete as
prioridades da cuitura hospedeira, embora a "refração" talvez constitua uma
metáfora mais apropriada (Lefevere, 1992). O poI_J.to é que obras parecem ser
escolhidas para tradução com base em dois princípios opo�tos. Em primeiro
lugar, o que não surpreende, para preencher laêunas na cultura hospedeira
(Toury, 1995, p.27). Por exemplo, ·em 1700 a Rússia carecia de livros sobre
26
A troduçõo cultural nos primórdios do Europa Moderno
Matemática, Ciência e Tecnologia, e por isso Pedro, o Grande, se propôs a
remediar essa deficiência.
O segundo princípio, entretanto, é o oposto do primeiro. Ele pode ser
chamado de princípio da confirmação, segundo o qual pessoas de uma dada
cultura traduzem obras que sustentam idéias, premissas ou preconceitos já
presentes nela. Caso não sustentem idéias _desse tipo, as traduções são mo­
dificadas, direta ou indiretamente (por meio de "paratextos" como prefácios
ou cartas ao ieiror), a fim de dar a impressão de que o fazem, como no caso
do que se poderia chamar de a "protestantização" dos historiadores italianos
Francesco Guicciardini e Paolo Sarpi (adiante, p.153ss.).
I
1
1
Na Europa Moderna, o texto mais traduzido era, naturalmente, a Bíblia.
Traduções das Escrituras foram publicadas em 51 língua:, entre 1456 e 1699,
inclusive· versões clássicas como a Bíblia· alemã de Lutero, a Bíblia de Kra­
'
lice tcheca, a Versão Autorizada inglesa e a Bíblia holandesa "dos Estados"
(Nida, 1939). Como seria de esperar durante o Renascimento, os clássicos
gregos e latinos eram traduzidos com freqüência. Entre 1450 e 1600, cerca
de mil traduções dos clássicos gregos e latinos foram publicadas somente
em cinco vernáculos (Bolgar, 1954, apêndice 2). Depois da Bíblia, a Imitatio
Christi [Imitação de Cristo](atribuída freqüentemente a T homas Kempis)
estava bem à frente, com no mínimo 52 traduções em doze línguas, incluindo
bretão, catalão, tcheco, húngaro, polonês e sueco, todas publicadas antes de
1700. Entre os autores modernos, Lutero e Erasmo estavam entre os mais
freqüentemente traduzidos (ver p.95).
Obras de literatura moderna eram amiúde vertidas para outras línguas. Elas
são tratadas rapidamente neste volume não porque não fossem importantes no
período, mas porque foram estudadas muito mais extensamente que obras de
plo, foi traduzida em latim, espanhol, inglês, francês, alemão e polonês. Dom
Quixote já aparecera em francês, italiano, inglês e alemão, em 1648. O Pastor
fido [O pastor fiel], de Guarini, havia aparecido em nove línguas estrangeiras
i-.
·'
em fins do século XVII: francês, espanhol, inglês, holandês, croata, grego, ale-
mão, polonês e sueco. As traduç�es do inglês para o latim feitas ness.e período
incluíam versões do Shepherd's Calendar [O calendário do pastor], de Paradise
Lost [Paraíso perdido], do Essay on Man (Ensaio sobre o homem] e da Elegy in
a Country Churchyard [Elegia em um cemitério no campo] (ver p.86).
. A tradução de obras de História, Política, devocionais e especialmente
t
. 9entíficas será discutida em capítulos posteriores d�ste volume. Viagens
< Geografia também eram temas populares em traduções. Por exemplo, as
�-;,t:...
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r ,â:;. 27

Peler Burke e R. Po-chiô-Hsio (orgs.)
viagens de Ludovico de Varthema, publicadas originalmente em italiano em
1510, haviam sido traduzidas para cinco línguas em 1600. As Relazioni [Re­
lações], ou descrições das diferentes panes do mundo, de Giovanni Botero,
foram traduzidas ao todo ou em parte para o alemão, o latim, o inglês, o
espanhol e o polonês. O interesse contemporâneo na China é revelado pelas
muitas traduções de Marco Polo, pela descrição da China feita pelo frade
agostiniano Juan González de Mendoza, e pela história da queda da dinastia
Ming escrita pelo jesuíta italiano Manino Martini (a seguir, p.148).5
VI
Para quem as traduções eram feitas? Eram claramente feitas para diferentes
públicos com diferentes níveis de instrução, como se pode ver pela coexistência
de duas tendências nesse período: A primeira é aquela das traduções do grego e
do latim para os vernáculos. A segunda, pouco estudada apesar da importância
do fenômeno, é o contrário, traduções para o latim, não apenas do grego, mas
também dos vernáculos. Mais de 1.100 traduções dos vernáculos para o latim
foram feitas entre a invenção da imprensa e 1799, com um pico de mais de
350 textos nos cinqüenta anos entre 1600 e 1649 (ver p.78-9).
As traduções em manuscrito não devem ser esquecidas, como a circulação
geral desses textos na Europa Moderna, enfatizada em alguns importantes
estudos recentes (Love, 1993; Souza, 2001). Essas traduções manuscritas
incluem versões espanholas da Utopia, de More, de The Defence of Poetry [A
defesa da poesia], de Sidney, dos Ensaios, de Montaigne, da história dos tur­
cos de Carnbini, do relato dos turcos de Spandugino, dos dois Guicciardinis,
Francesco e Ludovico (ambos traduzidos pelo rei Filipe IV), e da histó�ia das
Índias, de Maffei. 6 Além disso, uma tradução do historiador italiano Sabelli­
co (feita por Thomas Murner, mais famoso como crítico de Lutero), assim
como uma tradução inglesa da história da Inglaterra, do humanista italiano
Polidoro Virgílio, continuaram inéditas no período moderno. Na Rússia e no
Império Otomano, onde havia poucos livros impressos até os séculos XVIII
e XIX respectivamente, as traduções geralmente circulavam em manuscrito
(a seguir, p.2 l 9s., 241ss.).
5 De todos esses autores, Maquiavel foi o estudado com mais atenção: Gerber, 1911-1913.
6 Sobre More, Bouza, 2001, p.48; sobre Sidney, Buesa Gómez, 1989; sobre Momaigne, Ma­
richal, 1971; sobre os turcos, Lawrance, 2001, p.18•9.
28
A lroduçõo cultural nos primórdios do Europa Moderno
A pergunta "para quem?" exige uma resposta geográfica, além de social.
Traduções para o latim eram feitas primariamente para que homens instruí­
dos, cuja primeira língua era germânica ou eslava, pudessem ter acesso a obras
escritas em italiano, francês ou espanhol (ver p.80). Quanto a traduções de
um vernáculo europeu para outro, elas podem ser analisadas tanto de acordo
com sua língua original (um sinal de seu prestígio ou hegemonia cultural)
como com sua língua-alvo (um sinal de que aquela cultura estava aberta a
idéias de fora). Em outras palavras, a "economia política da tradução", tanto
as importações como as exportações, constitui um indicador cultural revela­
dor Oacquemond, 1992, p.139).
Poucas tentativas foram feitas de compilar listas completas das traduções
de um vernáculo para outro, por isso as conclusões a seguir são necessaria­
mente impressionistas e provisórias. 7 Traduções foram feitas para muitas
línguas nesse período, quer européias (basco, bretão, croata e assim por
diante), quer não européias (armênio, aimará, chinês etc.), mas apenas umas
poucas línguas foram veículo de muitas traduções.
Observando-se a "balança comercial" entre os vernáculos, não é surpresa
alguma encontrar um alto nível de exportações italianas, especialmente no
Renascimento. Menos previsivelmente, as importações italianas também
foram altas, especialmente no século XVI e a partir do espanhol, um sinal
da hegemonia cultural espanhola naquela época.
Na França, as importações do italiano e do espanhol foram altas no final
do século XVI e início do XVII (Balsamo, 1998). Na segunda metade do século
XVII, a cultura francesa se abriu gradualmente a traduções em inglês, cerca de
uma geração antes da "anglomania" do século XVIII. Hobbes, Locke, Richard
Baxter, Thomas Browne, Thomas Gage, Richard Allestree, William Temple
e Gilbert Burnet estiveram entre os autores traduzidos para o francês entre
l 650 e 1700. O crescente prestígio do francês é revelado por seu uso ·como
idioma intermediário para que livros ingleses fossem traduzidos em alemão,
por exemplo, e às vezes em espanhol, italiano ou russo (Blassneck, 1934).
No caso da Espanha, tanto as importações como as exportações parecem
ter sido mais baixas do que na Itália e na França, embora fossem mais altas do
que os estereótipos tradicionais de um "país fechado" podem sugerir. Erasmo
foi traduzido para o espanhol relativamente cedo, junto com italianos renascen­
tistas como Ariosto, Castiglione e mesmo Aretino e Maquiavel (embora não
O príncipe). Foi somente após 1550 que essa cultura começou a se fechar.
7 Os estudos existentes incluem Scott, 1916; Balsamo, 1992; Hausmann, 1992.
29
 -
Peler Burke e R. Po-chio Hsio (orgs.)
A lroduçõo cultural nos primórdios do Europa Moderno

Quanto à Inglaterra renascentista, importaçõe s do italiano, do espanhol

tores políticos Botero e Fadrique Furió Ceriol (ver p.128). No século XVII, as
e do francês foram bastante altaS (do período 1550-1660, foram identificadas
traduçõe s do latim para o russo eram feitas via polonês, indicando a impor­
cerca de 450 traduções pub licadas do italiano) (Scott, 1916). Por outro lado,
tância da Polônia para os russos daquela época, como intermediária cultural
as exportações foram extremamente baixas antes de 1660. Os poucos casos
com o Ocidente.
incluem as viagens de Francis Drake, Martin Frobis her e Walter Raleigh,
Na Escandinávia, as exportações eram virtualmente inexistentes , e as
bem como textos de Francis Bacon, Philip Sidney, Jaime I, William Perkins e
impo rtações foram baixas até a campanh_a do século XVII descrita acima.
Joseph Hall. Essas traduções eram freqüentemente feitas por ingle se s, já que
Das 335 traduções para o suec o impressas no decorrer desse século, 203 ( ou
a maioria dos europeus continentai s não sabia inglês (Burke, 2004, p.115-17)·
61 %) eram do alemão, catorze do francê s e onze do inglês (as traduções do
A partir da segunda metade do século XVll, pór outr o lado, as traduções a
latim respondiam pela maior parte das demais) (Hansson, 1982).
partir do inglês se tomaram cada vez mais comuns, de The Pilgrim's Progress
"Fluxos desiguais" desse_ tipo exigem uma explicação, que foi dada em
[O progresso do peregrino) e Paraíso Perdido a obras de Locke, Addison, Fiel­
relaçã o à posição dos diversos países no centro, na periferia ou na semipe­
ding e Richardson (sobre-Tke Spectator [O espectador), ver p.163 ss. adiante)
riferia de um sistema mundial (Heilbron, 1999; cf. Milo, 1984). O que era
(Price; Price, 1934;_ Graeber; Roche, 1988; Fabian, 1992).
traduzido de uma língua para outra em dado momento oferece uma pista
No século XV1, as importações para o alemão foram mais baixas do que
valiosa quanto ao modelo cultural dominante, quer fo sse italiano, espanhol
pMa o inglês, embora de fato incluíssem a peça espanhola La Celestina (1534),
ou francês , quer provies se de uma outra cultura. N o caso da Suécia, por
o Cortegiano, de Castiglione (traduzido duas vezes, em 1565 e 1593), Guicciar­
exemplo , as traduções sugerem que o model o era a Alemanha.
dini (1574) e Rabelais (1575). A s exportações alemãs eram m otivad as pelo
A hi stória do que nã o foi traduzido, como também outra s au sências,
interesse em Lutero, mas prejudicadas pelo fato de que pouc os estrangeiros
o ferece pistas vali osas das difer_e_nças. entre as diversas regiõe s da Europa
fora da Holanda e da Europa central conheciam a língua.
moderna. Por exemplo, traduções da Bíb lia para o espanhol foram publicadas
As importaçõe s holandesas eram muito mais altas que suas expo rtaçõe s,
nesse perío do, mas só fora da Espanha (em Antuérpia em 1543, em Ferrara
como seria de esperar de uma nação pequena e também mercante, com uma
em 1553 e na Ba si léia em 1569). Os Ensaios, de M ontaigne, não estavam
cultura relativamente aberta a influências estrangeiras . Os holandeses tradu­
pub licamente disponíveis em espanhol nesse período (embora tenham sobre-
ziram muito do francês, do alemão, do italiano, do espanh ol e até mesmo do
vivido duas traduções manuscritas), e nã o apareceram em forma impressa em
inglês. Um estudo desse tópico registra nã o menos de 641 traduções do inglês
alemã o senã o em 1797. Leitores e ouvintes tiveram de esperar por traduçõe s
para o h olandês (sobretudo obras devocionias) feitas entre 1600 e 1700, e é
de Shakespeare até meados do século XVlll, a única exceção a essa regra sendo
possível acrescentar mais alguns itens à lista (Schoneveld, 1983).
uma versã o holande sa seiscentista de A megera domada.
Na Europa oriental ou do centro-leste, as importações eram mais alta s
que as exportações - como seria de esperar em uma situação de desequilíbrio
de poder-, mas ambas eram relativamente baixas. As traduções costumavam Vil
ser feitas a partir de text os em latim moderno (por Eras mo, p or exemplo,
Calvino e Lípsio), mais que de textos em vernáculo. A traduçã o para o tcheco De que maneira as traduções eram feitas? Que te oria s, explícitas ou
'�.'·
foi importante no século XVI, incluindo obras de Petrarca, Erasmo e Lutero e implícitas, os t�adutores seguiam nesse período? Chegamos ao que se po-
ü.
refletindo o alto prestígio dessa língua em meio a suas vizinhas eslavas. Por deria chamar de "táticas" da tradução, em oposição à "estratégia" discutida
- � ·-1�\,<;;.:,·.:
4

o utrà lado , ela declinou rapidamente no século XVII, s eguindo- se à germa­

'.� _

anteri ormente '. 8 Essas táticas devem ser compreendidas não no sentido de
nização da Boêmia após a Batalha do Monte Branco. em 1620. ·; t�;.:/'. ' egras a serem seguida s mecanicamente, mas ante s como o que o teórico
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�- \ _:.t:·l:;�
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O lugar do tcheco foi assumido pelo polonês, que e stava em �scensão social francês Pierre B ourdieu
chamou de "habitus" - em outras pa lavr� s,
como língua literária na segunda metade do século XVI. O Cortegiano, de :}! • # .:.. ;_'. - -

·.·�:....: ._-.
Castiglione, foi vertido para o pol onês, )unto com Ario st o, Tasso e os e scri- \'.i 8 · Sobre "táticas de tradução", Lefevere, 1992, p.97-10
8.
:.:\<{
30
 Peter Burke e R. Po-chià. �sÍâ" (Ôrgs.)
um princípio subjacente à espontaneidade·e à_improvisação, controlando-as
(Bourdieu, 1972).
· A teoria da tradução não é nova, muito embora esteja passando atualmente
por um maciço renascimento. Nos idos de 1420, por exemplo, o humanista
italiano Leonardo Bnmi produziu o que se chamou de "o primeiro pronun­
ciamento teórico substancial a respeito de tradução desde a carta de São
Jerônimo a Pamáquio", um breve tratado intitulado De interpretatione recta,
[Da tradução correta] (Viti, 2004; Copenhaver, 1988, p.82). Depois de 1500,
tais pronunciamentos se multiplicaram, entre eles o Sendbrief vom Dolmetschen
[Carta aberta sobre a interpretação], de Martinho Lutero (1530); La maniere de
bien traduire [A maneira de bem traduzir], de Etienne Dolet (1540); e as Régles
de la traduction [Regras da tradução], de Gaspard de Tende (1660), bem como
prefácios gerais a traduções específicas, como o Tácito, de Nicolas d'Ablancourt
(1640), ou o Ovídio, de John Dryden (1680) (La.rwill, 1934).9
Havia debates em torno da distinção entre traduzir palavra por palavra -
amiúde denunciado como "escravidão", "servilismo" ou "superstição" - e
traduzir o sentido de um dado texto. Uma frase de Horácio sobre o "tradutor
fiel", fidus interpres, equivalente, para a teoria da tradução, de sua frase ut
pictura poesis [como na pintura, na poesia] na crítica da arte renascentista, foi
discutida vezes e vezes seguidas (Norton, 1984).
A idéia da intradutibilidade, resultado do gênio específico de cada língua,
também foi discutida nessa época, muito antes dos famosos pronunciamen­
tos de Benedetto Croce e José Ortega y Gasset (Stankiewicz, 1981; Trabant,
2000). Na Polônia, por exemplo, Jan Seklucjan argüiu que "em qualquer
língua há muitas propriedades difíceis de expressar em outra língua com
palavras igualmente importantes" (citado em Mayenowa, 19.84; p.345). Na·
França, ·o impressor e erudito Etienne Dolet e os poetas Joachim du Bellay e
Jacques Peletier du Mans fizeram observações similares: "chacune langue a ses
propriétés" [qualquer língua tem suas propriedades] (Dolet); "chaque langue a
je ne sçay quoy propre seulement à e/le" [cada língua tem um não-sei-quê próprio
tão-somente dela]; "les mots et manieres de parler sont particuliers aux nations"
[as palavras e as maneiras de falar são exclusivas de cada nação] (Peletier)
(Dolet, 1540, p.15; Du Bellay, 1549, Livro I, capítulo 5; Peletier, 1555, p.110).
Na Inglaterra, o prefácio de Florio a seu Montaigne lamentava que a "grandi­
loqüência toscana (... ), o caráter agudo do espanhol, a forte expressividade
9 S obre Luter o, Scolt, 1983: sobre Dolec, Worth, 1988; sobre Tende e D'Ablancourc, Zuber,
1968; sobre Dryden, T. Sceiner, 1975 e Kicagaki, 1981.
32
A trodução culfurol nos primórdios do Europa Moderno
/-'
·:,..
do holandês [referindo-se provavelmente ao alemão] não podem ser aqui
� ....
reproduzidos à risca".
A variedade de termos empregados em diferentes línguas no período mo­
derno para designar o ofício que conhecemos como tradução merece atenção
aqui porque proporciona pistas sobre como a prática era vista na época. Os
termos translate, traduire, tradurre, traducir, transferre (verbo latino irregular
com um particípio passado translatus), iibersetzen e assim por diante estavam
entrando em uso (o italiano tradurre foi registrado em 1420, por exemplo, e
o francês traduire, em 1480) (Folena, 1991). 1 º
Todavia, esses termos coexistiam com palavras que eram mais vagas e
pareciam autorizar uma abordagem livre ou domesticadora. Em alemão, por
exemplo, havia verdeutschen, "alemanizar", gedolmetschen, "interpretar", ver­
setzen e ümgesetzen, bem como circunlóquios tais como "ins Teutsche gebracht"
[trazido ao alemão]. Em latim, havia versio, "volta", convertere, "converter", e
interpretare (lembrando-nos dos elos entre intérp retes e interp retações). Em
inglês, havià done into English [tornado inglês], reduced into English [reduzido
ao inglês] (frase de Geoffrey Fenton para sua tradução de Guicciardini) ou
simplesmente englished [anglicizado]. Em italiano, havia volgarizzare, converter
no vernáculo (il volgare); em espanhol, vulgarizar ou romanzar, "converter em
língua românica".
Passando da teoria à prática, parece possível - pelo menos em uma pri­
meira aproximação - distinguir um regime ou cultura medieval de tradução
de seu equivalente pós-medieval. Embora especialistas tenham corretamente
apontado "a heterogeneidade e a complexidade da tradição medieval", pode­
se ainda assim sugerir que o regime medieval era dominado pela tradução
"palavra por palavra" (verbum pro verbo, na famosa frase de Cícero), embora
ele permitisse, sim, a incorporação de glosas ao texto sem assinalar que es­
tas eram adições do tradutor (Copeland, 1991, p.222; Pym, 2000, p.46-51,
72). Como diz Theo Hermans, o literalismo era o "núcleo rígido" do regime
medieval (Hermans, 1992, p.99).
Um resultado desse literalismo, fosse ou não deliberado, era o que teó­
ricos da tradução como Lawrence Venuti chamam de "estrangeiriz�ção" [fo­
reignizing]. O termo, ele próprio uma tradução do verbo alemão verfrernden,
refere-se à introdução de palavras da cultura doadora na cultura receptora,
produzindo no leitor uma sensação de distanciamento ou estranhamento.
10 Alguma crítica à base do material espanhol em Pyrn, 2000, p.109-31.
33
 Peler Burke e R.. Po-chio Hsio (orgs.)
Em contraste com a prática medieval, tradutores de Leonardo Bruni em
dianfe enfatizaram a necessidade de traduzir sentido por sentido (sensum de
sensu) (Viti, 2004; Folena, 1991, p.60-6). Apesar de referências freqüentes
às "leis" da tradução, a cultura moderna da tradução era de relativa liber­
dade. Os tradutores geralm�nte seguiam o que Venuti chama de "estratégia
fluente", aquela que "domestica o texto estrangeiro", oferecendo ao leitor
a "experiência narcisista de reconhecer sua cultura em um outro cultural"
(Veriuti, 1992, p.5). Se ainda usassem aquele_ termo outrora em voga, os
antropólogos poderiam descrever o que esses tradutores estavam fazendo
como uma forma de "aculturação".
Muitas vezes, as traduções eram feitas indiretamente, em segunda mão.
As desavergonhadas referências a esse processo nas páginas de rostõ indicam
uma culturã da tradução diferente da que se tomou dominante no século XIX
(Stackelberg, 1984). Na Inglaterra, por exemplo, textos gregos, italianos e
espanhóis eram freqüentemente traduzidos via francês. Os Ensaios, de Bacon,
foram traduzidos para o francês a partir do italiano, e suas Considerations Tou­
ching a War with Spain [Considerações tocantes a uma guerra com a Espanha]
(como o Tratado sobre o entendimento humano, de Locke), para o italiano a partir
do francês. O holandês foi o meio pelo qual algumas traduções de obras de­
vocionais de William Perl<lns e outros autores percorreram ·seu caminho do
inglês ao alemão. Nos séculos XVll e XVIII, muitas traduções de textos em
inglês para o alemão (entre elas The Characters [As personalidades], de Hall,
T he Praxis of Piety [A prática da piedade], de Bayly, e o Segundo tratado sobre
o governo, de Locke) foram feitas via francês (Blassneck, 1934; Stackelberg,
1984; Graeber; Roche, 1988).
Houve até mesmo traduções de terceira ou quarta mão. Uma versão do
Alcorão em alemão, publicada em 1688, anunciava que fora traduzida da
tradução holandesa da tradução francesa do árabe. No entanto, estava mais
próxima do original do que o Alcorão holandês de 1641, feito a partir da
tradução em alemão de uma-tradução em italiano da tradução em latim. n
Um exemplo ainda mais extremo é o das fábulas de Bidpai. Nesse caso, Sir
T homas North produziu o que se descreveu como "a versão em inglês de uma
adaptação italiana de uma tradução em espanhol de uma versão em latim
de uma tradução em hebraico de uma adaptação árabe da versão pálavi do
original hindu" (Matthiessen, 1931, p.63n).
11 u último exer:1.plo é citado por Pym, 2000, p.13; ·
. 34
A lroduçõo cultural nos primórdios do Europa Moderno
Mesmo assim, as práticas de tradução no período moderno variavam
consideravelmente mais do que as teorias sugerem. Como amiúde ocorre,
diferentes normas coexistiam e competiam, de modo que podemos falar de
culturas ou subculturas da tradução (Toury, 1995, p.53-69; Schãffner, 1999).
Os tradutores individuais não eram obrigados a ser livres. A variedade da
prática quinhentista pode ser ilustrada a partir de diferentes versões de uma
passagem do famoso livro de etiqueta italiano li galateo [Galateo, ou dos
costumes], em que o assunto é a própria língua. O texto afirmava que os
lombardos, por exemplo, deviam falar seu próprio dialeto, porque o falavam
melhor do que o toscano. As traduções inglesa e francesa retiveram o exem­
plo italiano, ao passo que o tradutor alemão substituiu-o por uma referência
ligeiramente equivalente ao alto alemão e ao saxão.
Um grande número de escritores distinguia �s abordagens aos diferentes
tipos de texto - religioso e secular, verso e prosa -, assim como o próprio Jerô­
. himo havia feito ao recomendar a tradução literal da Bíblia, mas uma tradução
mais livre de outros textos. Quanto mais elevado o status de um texto, maior
era a pressão sobre o tradutor para seguir de perto o fraseado original.
A admiração por Cícero durante o Renascimento estimulou alguns hu­
manistas a traduzir textos - inclusive a Bíblia - em uma prosa mais próxima
a Cícero do que o original havia sido. Entretanto, a tradução das Escrituras
por Sébastien Castellion em períodos ciceronianos foi geralmente condenada.
Seguindo uma estratégia de estrangeirização, algumas traduções do Antigo
Testamento para o inglês e o holandês (a Versão Autorizada e a Bíblia dos
Estados, por exemplo) procuraram imitar as fórmulas e a sintaxe hebraicas,
fazendo grande uso da conjunção "e", bem como de repetições como "to thee this
day, even to thee" [para ti este dia, mesmo para ti] (Hammond, 1982, p.210).
Diferenças em estilos de tradução expressavam visões diversas da Igreja.
Traduções do Novo Testamento foram criticadas por protestantes radicais por :Q
não serem literais o bastante; por exemplo, ao traduzir episkopos como "bispo" !SI
.:.
:•
em vez de "supervisor", ou ekklesia por "igreja" em vez de "congregação". No
caso do Antigo Testamento, Szymon Budny cunhou a palavra ofiarnik, "sacri- 1:
t
••
ficante", para substituir a tradução tradicional, kaplan, "capelão",«porque",
)
i' .. _,_ _ como ele disse, "certa gente simples e inculta pode entender que homens
·( :} ; , · santos como Samuel e Zacarias (...) eram iguais a nossos padres romanos de
i•
, _ J;
_ _ :_ :' �g
� -.:\;;,;:, �ra, e todavia os d_ois tipos são tão diferentes como o dia difere da noite"
li ::i�L (cuado em Borowski, 1999, p.29). !,!�
l ,;$V·- Situando Calvino no mesmo nível das Escrituras, o tradutor inglês T ho-
\ · mas Norton afirmou que iria "seguir as palavras tão de perto quanto o fra-
- � . . .
'� -' ..
35

Peler Burke e R. Po-chio Hsib (orgs.)
seado da língua inglesa me permitisse" (citado em Kelly, 1979, p.208). Como
Hermans observou, a estratégia do literalismo muitas vezes expressa i,nferio­
ridade diante de um dado texto, autor ou língua (Hermans, 1992, p.108).
Mesmo assim, alguns tradutores da Bíblia, de Lutero a Castellion, esco­
lheram a estratégia fluente. Lutero, por exemplo, rejeitou a tradução literal
"a
de frases bíblicas como abundância do coração" ou "cheia de graçan. Um
reformador, Matias Flácio, em sua "Chave da Escritura" (Clavis scripturae,
1567), descreveu como uma espécie de "superstição" a adesão estrita às pala­
vras em detrimento de seu sentido. O proêmio da Versão Autorizada criticou
a "escrupulosidade dos puritanos", que "usavam 'lavagem' por 'batismo"'.
Frente ao problema de traduzir o cristianismo fora da Europa, diferentes
missionários fizeram variadas opções. No Japão, alguns trataram a palavra
Deus como intraduzível, deixando-a em latim (Elison, 1988). Nas Filipinas,
usaram as palavras espanholas Dios, Espíritu Santo e jesu-Cristo, quer para evitar
o.risco de serem mal-entendidos, quer porque acreditassem na superiorida­
de do espanhol. Também no México, os franciscanos usavam o termo Dios
(Rafael, 1993, p.20; Pym, 2000, p.148). No Brasil, o jesuíta José de Anchieta,
q�e escreveu hinos em tupi, introduziu nessa língua palavras portuguesas
para conceitos de que os índios aparentemente careciam, sobretudo "graça",
"virgem" e "pecado" (Anchieta, 1984, p.157, 171, 178).
Apenas uns poucos missionários mais ousados, em geral jesuítas, troca­
ram palavras-chave do cristianismo por aparentes equivalentes da cultura de
seu público, como "caminho celestial" (tento) em japonês e "céus" (tian) em
chinês (Elison, 1988; Higashibaba, 2001, p.39). 12 Talvez seja significativo que
essas exceções venham de lugares em que os missionários careciam do apoio
de uma potência colonizadora como Espanha ou Portugal, o que os tornava
dependentes da boa vontade de seus anfitriões.
A maioria dos exemplos apóia a generalização de que os Estados coloniza­
dores forçavam os colonizados a ver sua própria cultura através das lentes da
potência dominante (Rafael, 1993; Cheyfitz, 1991; Niranjana, 1992). Mesmo
assim, a força dos argumentos em favor dessa tática não deve ser esquecida.
Como outros tradutores, os missionários eram obrigados a fazer a sempre
difícil escolha entre estrangeirizar ou domesticar; sua situação era oposta
à usual �ntre os tradutores, já que a cultura doadora nesse caso era a sua
própria, e a cultura recipiente, a do "outro".
12 Sobre a China, ver o ensaio de Hsia nesta obra.
36
:, 1
..·,
A tradução cultural nos primórdios do Europo Moderno
Na escala de respeito, logo em seguida aos textos religiosos vinham os
clássicos gregos e latinos. Por exemplo, as traduções relativamente livres de
Aristóteles produzidas no Renascimento por Leonardo Bruni ejohannes Ar­
gyropulos foram criticadas por outros humanistas, como Alonso de Cartagena
(bispo de Burgos e tradutor de Cícero). Bruni era um purista que objetava
a termos latinos como democratia porque eram híbridos, ou, como ele dizia,
"metade gregos", enquanto Cartagena preferia o empréstimo de tais termos
técnicos a paráfrases (Pym, 2000, p.122-6). De maneira similar, a tradução
da Eneida por William Caxton foi criticada por sua liberdade pelo tradutor
escocês do início do século XVI, Gavin Dougias (Burrow, 1997, p.22-3).
Na França do século XVII, houve um famoso debate sobre as novas tra­
duções dos clássicos por Nicolas d'Ablancourt. Essas versões livres e fluentes
provocaram o crítico Gilles Ménage a se referir às belles infideles, comparando
as traduções às mulheres e sustentando que as belas não são fiéis, enquanto
as fiéis não são belas (Mounin, 1955; Zuber, 1968; Guillerm, 1996). Em res­
posta a seus críticos e secularizando uma frase tradicional de reformadores
religiosos como Flácio (acima, p.36), d'Ablancourt atacou o que chamava de
a "superstição judaica" de seguir o texto original palavra por palavra. "Eu
nem sempre me_ atenho às palavras do autor, ou mesmo a seus pensamentos", : 1
.,
ele declarou. "Tenho em mente o efeito que ele desejava produzir." O que
ele defendia era o que poderíamos chamar de uma tradução cultural, dando
à velha metáfora da língua, como uma forma de vestimenta, um novo viés,
argumentando que "diferentes tempos não apenas requerem diferentes pa-
. lavras, como também diferentes pensamentos, e embaixadores usualmente
se vestem à moda do país ao qual são enviados" (Zuber, 1968).
, i
A liberdade reclamada por d'Ablancourt foi criticada por escritores como
Gaspard de Tende, que frisãva afidélité (Mounin, 1955; Zuber, 1968, p.165-
279; Guilherm, 1996).13 Ménage levantou a questão do anacronismo, conde­
nando "traduções que modernizaram ultrajantemente seu texto" (citado em
Zuber, 1968, p.195). Entretanto, mesmo d'Ablancourt defendia a retenção de
alguns termos técnicos com·o "coorte" ou "centurião", ao traduzir escritores
antigos, já que seus exércitos eram muito diferentes dos "nossos". o motivo
para essa transição temporária para a estrangeirização, que levou d'Ablancourt
a dotar sua tradução de Apiano de um glossário, foi provavelmente o fato de
ele estar escrevendo para nobres que tinham um interesse considerável pelos
detalhes da organização militar (Zuber, 1968, p.122-3, 139, 175, 211).
13 Sobre Tende, Ballard, 1992, p.186-97.
37
\1l.
J Peler Bvrke e R. Po-chio Hsio (orgs.)
\'.
No que diz respeito a textos relativamente modernos, o regime de tra­
d ução moder:no caracterizava-se por uma liberdade ainda maior do que se
d escreveu até aqui, oferecendo bastante escopo à remod elação. Textos mo­
d ernos não raro eram consid erad os suscetíveis d e aprimoramento por seus
tradutores. Assim,Jean Martin, o tradutor para o francês da estória romanesca
italiana Polifilo, vangloriava-se - com alguma justiça, é verdade - que "de
uma.prolixid ade mais que asiática ele a red uzira a uma brevidade francesa"
(d'une prolixité plus que asiatique il l'a reduict aúne briev.eté françoise), enquanto
Pierre Boiastuau d eclarou as estórias de Matteo Bandello mieux poly ("mais
bem lustradas", ou "mais polidas"), em sua versão francesa que n o original
italiano.
A divisa entre a tradução e a imit�ção era traçada menos nitidamente do
que viria a ser no século XIX, embora fosse situada em diferentes pontos por
diferentes indivíduos. O que o poeta quinhentista francêsJoachim du Bellay
chamava de "imitação" foi designado como trad ução cem anos depois por
Nicolas d'Ablancoun e seus contemporâneos ingleses, como John Dry de n
(Hermans, 1992; Toury, 1995, p.132). A versão espanhola da Piazza universale
[Praça universal], de Garzoni, que relata todas as ocupações do mundo, foi
d escrita em sua página d e rosto como "em parte traduzid a d o toscan o e em
parte composta" (,parte traduzida dei toscano y parte compuesta).
O po n to crucial é que o que se descrevia na época como "traduções"
muitas vezes diferia dos originais em importantes sentidos, fosse por abre­
viar os textos, fosse por ampliá-los. Mudanças desse tipo eram amiú de feitas
sem que se alertasse o leitor, embora o crítico francêsJean Chapelain, tradu­
tor do romance espanhol Guzmán de Alfara.che, declarasse com certo orgulho
que havia cortado, ad icionado, movido, reforçad o e atenuado passagens d o
original, além de ter alterado metáforas e frases, produzindo um texto mais
longo que o original ("]'ay transposé, restably, retranché, adjousté, uny, separé,
affoibli le discours, changés les metaphores et les phrases ... et plustost augmenté que
diminué") [Transpus, restabeleci, removi, ajustei , uni , separei , atenuei o dis­
curso, mudei as metáforas e as frases (...) e antes aumentei do que diminuí].
i; ·:-•�,.tÁ:.�_·.- ·. -
O poeta Abraham Cowley foi ainda mais franco no prefácio a sua versão do
poeta grego Píndaro: "Nestas duas odes de Píndaro, ignorei e acrescentei o
que me aprouve".
A contração, a liberd ade de subtrair, assumia formas diferentes. Textos
longos podiam ser abreviados na tradução, reduzidos até a metade de sua
extensão original. Outras omissões eram uma forma de expurgo. Já se no­
tou, por exefuplo, que os humanistas italianos que traduziram a República,
"º
A tradução cullurol nos primórdios do Europa Moderna
de Platão, para o latim evitaram sua referên cia à comunidade d e mulheres.
O nde Platão escreveu sunoikein, "coabitar", os tradutores preferiram termos
mais vagos como habitare, "habitar", ou adherere, "ad erir" (Ha:nkins, 1990,
p.424·6). Novamente, a versão latin a de O príncipe, de Maquiavel, por Sil­
vestro Teglio, "omite sentenças-chave, como no �apítulo 18, sobre como os
príncipes devem manter a fé" (Anglo, 2005, p.441). Passagens podiam ser
omitidas - sem aviso aos leitores - por razões religiosas, morais ou políticas.
Assim, a tradução das viagens de Marco Polo pelo frade dominicano Francesco
Pipino remove uma passagem em louvor a Buda, além de eliminar parte d a
retórica cavalheiresca (Larner, 1999, p.76, 104, 107, 113).
O expurgo era igualmente comum em traduções para 6 vernáculo.Johann
Fischan, mais co nhecido por suas ampliações, omitiu algumas passagen � em
Rabelais que discutiam religião. A tradução alemã de Lazarillo de Tormes omi­
tiu algumas observações anticlericais (Brancafone, 1983, p.xv). A tradução
italiana dos Ensaios, de Bacon , deixou de fora todo um ensaio, que tratava
d e religião e superstição, en quanto a versão francesa - feita a partir do ita­
liano - suprimiu algumas referências d e Baco n à história francesa rece nte
(De Mas, 1975, p.160; Lawton, 1926). A tradução espanhola d e A riqueza
das nações removeu as referên cias aprovadoras d e Ad am Smith à tolerância
(Lai, 1999, p.xix).
i· A li berdade das traduções renascentistas também in cluía a liberd ade de
f·
t acrescentar material, ou, como os retóri cos diziam, de "ampliar". Não era
í in comum que os tradutores vertessem uma palavra d o original por duas,
talvez por in segurança, embora possivelmen te porque expressões compostas
agra davam aos ouvidos dos leitores do perío do. Vários tradutores do Corte·
giano produziram pares dessa n atureza, traduzindo o termo-ch:ive sprcz:=tura
(mais ou menos "n egligência") como mespris et nonchalance [men osprezo e
in diferença] ou Verachtung oder Una.chtsamkeit [d esprezo ou desatenção]. De
resto, Florio trad uziu o simptome d e Mo n taign e como "a Symthome or pas­
sion" [um si ntoma ou paixão], e seu siecle debordé [século extravasado] como
"an irregular and licentious age" [uma era irregular e licen ciosa] (Toury, 1995,
p.102-12). 14
ª i d n
: :
se u ;::;i;::��!: �:;/�::::: o
éxi � ::�! �;:; ��: :�:� �;::
1 _ d e nações d o islã. A tradução d os Discorsi [Discursos sobre a primeira d écada
d e T ito Lívio], de Maquiavel, porJacques Gohorry, anuncia na página d e rosto
· . 14 Sobre Castiglione, Burke, 1995, capítulo 4.
 9!!
. ;i .
•• Peler Burke e R. Po-chio Hsio (orgs.)
••
que os discursos foram "revisados e aumentados" (reueuz et augmentez). A
tradução do Enchiridion [Manual do soldado cristão], de Erasmo, por Alonso
••
F�mández se tomou tão notória por sua ampliação do texto original como por
suas omissões (Russell, 1985, p.52). Não era uma aberração, simplesmente
um exemplo extremo de uma tendência geral a ser encontrada na cultura
••
renascentista da tradução.
O mais famoso exemplo de ampliação é provavelmente a tradução de
Rabelais por Fischart, a Geschichtsklitter ung [Colagem da história] (1575).
•• Nesse caso, a rivalidade entre tradutor e autor fica particularmente clara.
Por exemplo, as já longas listas caras ao autor original, como os 200 e tantos
•••
jogos com que brincava o jovem gigante Gargântua, são expandidas ainda
mais na tradução. Fischart nunca usava uma palavra quando duas ou três
servissem a seu propósito, sobre-rabelaisiando Rabelais e inventando uma
grotesca linguagem polissilábica toda sua. Nesse sentido, ele foi imitado
•
•i · no século seguinte pelo tradutor escocês Sir Thomas Urquhart. O material
extra às vezes era derivado de outros textos que o "tradutor" juntava em
.;
uma espécie de colagem, prática que o tradutor alemão Egídio Albertino já
:1
designara como Colligiren.
Em alguns casos, a ação dos diálogos, das peças e histórias era transferida
' i de um local para outro, processo que pode ser descrito em termos musicais
i \ como "transposição", ou - seguindo a prática dos atuais tradutores de soft­
ware - como "localização" . 15 Peças traduzidas, por exemplo, eram situadas
em novos locais, mais familiares para os novos públicos. A versão húngara
de Electra por Péter Bornemisza situou a peça na Hungria, enquanto i.lma
tradução polonesa da peça Trinummus [As três moedast de Plauto, o Protrójny
(1597), de Cieklinski, deslocou a ação para Lwów. Fischart transferiu os
cenários de capítulos de Rabelais da França para Estrasburgo ou a Basiléia.
Abraham Fraunce foi ainda mais longe em uma tradução de Tasso em que
inseriu uma nova personagem, "Pembrokiana", em homenagem a sua pro­
tetora Mary Sidney.
Um procedimento similar era seguido no caso da não-ficção. Por exemplo,
o humanista espanhol Juan de Lucena adaptou um texto de Banolomeo Fazia
sobre a vida feliz, transferindo o diálogo de Ferrara para a corte de Castela.
A tradução da Arte della guerra, de Maquiavel, para o espanhol transferiu o
diálogo da Itália para a Espanha e converteu os falantes em dois espanhóis,
o grão-capitão Gonzalo Fernández de Córdoba e o duque de Najara, talvez
15 Sobre transposição,Jakobson, 1959, p.234; sobre localização, Pym, 2000, p.H 7.
:·:·.
40
A lroduçõo cultural nos primórdios do Europa Moderno
porque os leitores espanhóis do período não esperassem aprender coisa al­
guma sobre guerra com os italianos. A versão polonesa do Cortegiano, de
Castiglione, feita por Lukasz Gómicki deslocou o diálogo de Urbino para um
vilarejo peno de Cracóvia.
Uma vez mais, a tradução para o inglês por Ludovic Bryskett, em 1608,
de um diálogo sobre a vida civil do italiano Giambattista Cinthio Giraldi
transpôs o cenário da conversa da Itália para a Irlanda, e introduziu partici­
pantes ingleses, como o arcebispo de Armagh e o poeta Edmund Spenser.
Na verdade, o livro não foi apresentado somo tradução nem na página de
rosto nem na dedicatória. Somente ao fim o leitor fica sabendo que Bryskett
"anglicizou" a obra, "para meu exercício em ambas as línguas", e que omitiu
passagens e acrescentou outras porque "não quis atrelar-me às leis estritas
de um intérprete".
Ainda mais chocante para os leitores modernos, os tradutores de obras de
História ou Filosofia Natural por vezes se permitiam expressar opiniões que
o autor original teria repudiado. Quando T homas Dale traduziu u·m diálogo
sobre Física do cartesiano francês Noel Regnault, por exemplo, introduziu
as idéias de Newton nas notas. Com característica audácia, quando o cardeal
de Retz, qu_e fora ele próprio um rebelde, traduziu a história da conspiração
do conde Fieschi escrita por Agostino Mascardi, contradisse seu texto-fonte,
convertendo o protagonista de vilão em herói (Watts, 1980, p.134).
Essas traduções eram extremamente criativas. De fato, poderiam ser de­
signadas mais exatamente como "tradaptações", como diz Michel Garneau. 16
Caso contrário, como John Floria apontou no. prefácio a sua tradução dos
Ensaios de Montaigne, obras assim chamadas originais podiam ser designa­
das mais exatamente como traduções. "Se nada pode ser dito agora que não
tenha sido dito an�s_ ( ... ) o que fazem os melhores, então, senão servir-sê
da colheita alheia? Tomar-lhes as cores emprestadas, herdar suas posses? O
que fazem eles senão traduzir?"
Neste ponto pode s.er útil tomar distância dos exemplos por um mo­
mento a fim de considerar sua significância. A liberdade dos tradu�ores pode
ser comparada à liberdade dos escribas. Não era incomum que copistas de
poemas, por exemplo os de John Donne (que circularam em manuscrito no
início do século XVII), deixassem de fora estrofes ou até inserissem outras
novas. O manuscrito era o que poderíamos chamar de um meio "interativo"
16 Sobre a necessidade de relacionar concepções da tradução com concepções de propriedade
intelectual, Hermans, 1992; Garneau citado em Baker, 1998, p.98.
41
 Peter Burke e R. Po-c.hio Hsio (orgs.)
(Lave, 1993; Marotti, 1995). Como esses escribas, os primeiros tradutores
modernos de obras medievais ou modernas parecem ter-se considerado co­
autores, com o direito de modificar o texto original. Na Era Moderna, não
foi senão muito gradualmente que se impôs a idéia do texto como obra e
propriedade de um único indivíduo.
Esse regime livre ou aberto de tradução persistiu até o século XVIII
(Stackelberg, 1971). Assim, a versão de Lenglet du Fresnoy por Rawlinson,
publicaáa em 1 728, foi descrita na página de ros_t.o como "traduzida e me­
lhorada", bem como a versão de fins do século XVIII de Pamela, de Richard­
son. O máximo que se poderia dizer, em termos de uma tendência ao longo
do tempo, é que o debate seiscentista revela uma consciência mais aguda
dos dilemas que se impõem �os tradutores. A distinção de Dryden entre
"metáfrase" (a tradução literal), "paráfrase" (definida como "tradução com
latitl.!de")" e "imitação" é um famoso exemplo de tal consciência (G. Steiner,
1975, 253-6). A domesticação imperava.
É verdade que, como se observou anteriormente, podem ser encontrados
uns poucos exemplos de estrangeirização no donúnio religioso, como no caso
de textos sobre o Império Otomano (a seguir, p.81) (Burke, a ser publicado).
Alguns tradutores da Bíblia se negavam a cometer anacronismos, �orno tradu­
zir o termo grego presbyteros, do Novo Testamento, por "padre". Essa recusa,
geralmente motivada pela crença de que a Igreja de seu próprio tempo era
corrupta e de que era necessário um retorno à "igreja primitiva", também
revela a noção de uma distância entre o passado e o presente, em contraste
com o pressuposto medieval de que passado e presente eram próximos um
do outro (Burke, 1969).
Mesmo assim, foi só por volta de 1816, ano da publicação de importantes
pronunciamentos de Friedrich Schleierrnacher e Wilhelm Humboldt sobre
tradução, que a tentativa deliberada de transmitir aos leitores uma impressão
da natureza estrangeira do texto o_riginal tomou-se uma grande tendência na
história da tradução.
Como disse Scheleiennacher, a escolha do tradutor era entre levar o leitor
até o escritor ou levar o escritor até o leitor (entweder der Übersetzer lêi.sst den
Schriftsteller mõglichst in Ruhe, und bewegt den Leser ihm entgegen; od.er er lãsst den
Leser mõglichst in Ruhe und bewegt den Schriftsteller ihm entgegen) (ou o tradutor
deixa o escritor o mais possível em paz e move o leitor em sua direção, ou
deixa o leitor o mais possível em paz e move o escritor em sua direção]; Em
sua opinião, o tradutor deveria preferir a primeira alternativa. O novo ideal
era dar à tradução o que Wilhelm von Humboldt chamou de "um certo tom
42
A lroduçõo culturaJ nos primórdios da Europa Moderna
de estrangeiro" (eine gewisse Farbe der Fremdheit), traduzindo Homero ou Dante
em inglês ou francês medieval, ou imitando a sintaxe do grego antigo em
alemão (G. Steiner, 1975; Berman, 1984; Venuti, 1995). A hibridização da
língua condenada por Bruni tomou-se então uma virtude, pelo me�os para
uma minoria de tradutores.
Em outras palavras, as mudanças nas práticas dé tradução se ajustam ao
modelo proposto por Michel Foucault, em que 1800 assinala uma grande rup­
tura no que ele chama de "episteme" européia (Foucault, 1966). A ascensão
da estrangeirização é parte da ascensão do romantismo e do historicismo,
incluindo a idéia de que diferentes línguas expressam diferentes visões de
mundo, e que o passado é um país estrangeiro. A visão de Dryden, de que
Yi,rgílio de":'eria ser apresentado em tradução como se tivesse nascido "na era
presente", foi então rejeitada (citado em G. Steiner, 1975, p.256).
Os alemães.desempenh�ram um papel proeminente nessa tendência,
reagindo contra a hegemonia cultural francesa associada à ênfase em valores
universais com0 a clareza e a razão (Mannheim, 1927). Nesse sentido, o
comentário de Herder sobre as traduções de Homero é revelador. "Homero
precisa entrar na França como cativo, trajado à moda francesa, para não lhes
ofender o olhar ( . .. ) Nós, pobres alemães, por outro lado ( ... ) só queremos vê­
lo tal qual é." (Herder citado em Robinson, 1997, p.59) Em outras palavras,
no fim do século XVIII os alemães viam a domesticação como estrangeira!
VIII
Uma pergunta final: quais eram as conseqüências da tradução? Assim
como outras formas de fala e escrita, traduzir é um tipo de ação. Como vi­
mos, governantes e igrejas patrocinaram a tradução a fim de mudar o mundo,
converter os pagãos ou ajudar a Suécia ou a Rússia à se pôr em dia com a
Europa ocidental.
A contribuição da tradução para a difusão do conhecimento é óbvia o
bastante, mas algo também deve ser dito sobre os mal-entendidos, um tópi­
co que ainda não recebeu dos historiadores culturais a atenção que merece.
Umpequeno porém típico exemplo é aquele do artista quinhentista francês
Bernard Palissy, cuja crença de que os fósseis eram resultado do Dilúvio­
decorria de um mal-entendido quanto a uma passagem de um tratado do
filq_sofo natural italiano Girolamo Cardano, que Palissy lera em uma tradu­
:.\ ção em francês (Rudwick; 1972, p.41). Em maior escala, o tradutor inglês

Peter Burke e R. Po-chíó Hsio (orgs.)
da sátira Le philosophe de court [O filósofo da corte]. de Philibert de Vienne,
entendeu de forma literal o que o autor pretendia que fosse entendido como
Ironia, e com isso recomendou preásamente o que o autor original condenava
Oavitch, 1971).
No caso da Bíblia, a escolha de termos-chave por parte do tradutor podia
ter conseqüências de longo alcance, fosse no caso de episkopos (anteriormente,
p. 36), fosse no daquela passagem do Êxodo freqüentemente vertida como
"não permitirás que uma feiticeira viva" - embora Johan Weyer e Reginald
Scot afirmassem que "envenenadora" seria uma tradução melhor do que
"feiticeira" para o hebraico chasaf. De maneira ainda mais radical, o livre­
pensador holandês Adriaan Koerbagh afirmava que a palavra hebraica no
Antigo Testamento geralmente traduzida como "diabo" significava na verdade
"acusador" ou "difamador" (Israel, 2001, p.405)_
.f.
O movimento da tradução nesse período teve grandes conseqüências para
as línguas da Europa moderna. O teórico literário Mikhail Bakhtin chamou
atenção para "a imensa importância das traduções" no Renascimento naquilo
que ele chamava variadamente (em russo) de interação, "interorientação" e
"interanimação" das línguas (Bakhtin, 1965, p.470). A tradução da Bíblia e
dos clássicos para os vernáculos da Europa ajudou a elevar o status dessas lín­
guas. Também as enriqueceu graças aos neologismos cunhados por tradutores
que não encontravam termos apropriados para verter o vocabulário religioso
do Antigo Testamento, por exemplo, ou o vocabulário filosófico de Aristó­
teles (incluindo termos políticos como oligarchia e democratia). O período de
1570 a 1630, quando o vocabulário inglês se expandiu mais rapidamente, foi
também uma grande era da tradução.
Quando o tratado de Alberti sobre a arquitetura foi traduzido para o
francês, em 1553, a dedicatória ao rei chamou atenção para Ó enriquecimen­
to da língua pelo tradutor. Para traduzir Rabelais, Fischan inventou muitas
palavras em alemão. A versão de Homero pelo poeta George Chapman intro­
duziu muitas palavras novas no inglês. V árias dessas palavras não fincaram
raízes, de modo que os atuais editores de Chapman consideram necessário
oferecer um glossário. Por outro lado, muitos neologismos cunhados por
Florio em sua tradução de Montaine tomaram-se parte da língua, entre os
quais amusing [divertido]. conscientious [consciencioso], efface [apagar],, effort
[esforço], emotion [emoção], endear [tornar benquisto]. facilitate [facilitar] e
regret [lamentar]. De resto, a versão da história dos turcos, de Andrea Cam­
bini, por John Shute, introduziu no inglês termos otomanos como a-ga [agá],
cadi [cádi], seraglio [serralho], spahi [sip_ai] e vizier [vizir].
44
A troduçõo cultural nos primórdios do Europa Moderno
Que a maior acessibilidade a textos de outras culturas alargou os hori­
zontes dos leitores, parece bastante plausível, mesmo que esse alargamento
não possa ser medido. Neste ponto, podemos retornar à recepção do Renas­
cimento, da Reforma e do Iluminismo e à maneira como a tradução fez algo
acontecer, multiplicando o efeito de certos textos importantes à custa de
mudar seu significado.
No caso do Renascimento, já foram mencionadas as muitas traduções dos
clássicos para as línguas vernáculas. A tradução de tratados italianos sobre
as artes estimulou a adoção do novo estilo classicizante, e tanto as plantas
como os detalhes de uma série de edificios quinhentistas na Inglaterra, na
França e em outras regiões tiveram suas origens identificadas em ilustrações
no tratado de arquitetura de Sebastiano Serlio que, em 1611, havia aparecido
·-·· em holandês, alemão, francês, espanhol, latim e inglês, além de no original
em italiano. Voltando-nos ao pensamento político e social, constatamos que
a Utopia, de More, escrita em latim, estava disponível em seis traduções
impressas antes do fim do século XVI (uma em alemão, italiano, inglês e
holandês e duas em francês).
No caso da Reforma, a tradução foi ainda mais importante. Erasmo es­
crevia em latim para ser lido em toda a Europa, mas para atingir as pessoas
comuns precisou da ajuda de tradutores. Seu Enchiridion militis christiani apa­
receu em nove vernáculos no século XVI - em ordem cronológica, tcheco,
alemão, inglês, holandês, espanhol, francês, italiano, português e polonês
(Haeghen, 1897-1907). Obras de Lutero, em especial seus catecismos, foram
traduzidos para dez vernáculos entre 1517 e 1546. Em ordem de importância,
essas línguas eram o holandês, o dinamarquês, o francês, o tcheco, o inglês,
o italiano, o polonês, o espanhol, o sueco e o finlandês (Seidel Menchi, 1977;
Higman, 1984; Moeller, 1987). Quanto a Calvino, dezoito traduções de sua
obra para o holandês haviam sido publicadas até 1600, dezenÕvé para o ita­
liano, 32 para o alemão e 91 para o inglês (Higman, 1994).
Durante o Iluminismo, a tradução foi mais uma vez essencial para a
difusão de idéias. No século XVIII, I.:Esprit des /ois [O espírito das leis], de
Montesquieu, circulou em inglês, holandês e italiano, além de n·o original
em francês. O Segundo tratado sobre o governo, de Locke, circulou em francês,
alemão e sueco; seu Ensaio sobre o entendimento humano, em francês, latim e
alemão; e seus Thoughts on Education [Pensamentos sobre a educação], em ho­
landês, francês, alemão, italiano, sueco e russo. Embora tenha sido publicado
em 1776, A riqueza das nações, de Adam Smith, já circulava em alemão, francês,
dinamarquês, italiano, espanhol e holandês em fins do século XVII!.
45
 Peter Burke e R. Po-chio Hsio (orgs.)

Essas uaduções tinham seu preço. Tradutores têm seus próprios fins, que
podem diferir daqueles do escritor original, um ponto exemplificado adiante
(p.153ss) pela recepção no exterior dos historiadores italianos Guicciardini
e Sarpi. Mesmo quando os tradutores tentavam ser neutros, a língua que
utilizavam não o era. Veja-se o caso do Essay on the History of Civil Society
[Ensaio sobre a história da sociedade civil], de Adam Ferguson. Em alemão,
o conceito-chave foi vertido como bürgerliche Gesellschaft [sociedade burguesa],
assimilando-o à tradição legal alemã e elimin�do o "sentido original óvico
e ativista" do termo civil (Oz-Salzberger, 1995, p.142-8).
Independentemente de os tradutores seguirem a estratégia da domes­ CAP,ÍTULO 2
ticação ou da estrangeirização, e de entenderem bem ou mal o texto que A missão católica
estão venendo para outra língua, a atividade da tradução necessariamente. e as traduções na China, 1583- 1700
envolve tanto uma descontextualização como uma recontextualização. Algo
é sempre "perdido na tradução". Todavia, o exàme detido do que se perdeu R. Pó-chia Hsia
é uma das maneiras mais efetivas de identificar diferenças interculturais.
Por essa razão, o estudo da tradução é ou deveria ser central para a prática
da história cultural.

Entre o estabelecimento da missão católica na China pelos dois jesuítas

italianos Michele Ruggieri e Matteo Ricci, em 1583, e o ápice de seu sucesso,
por volta de 1700, missionários europeus compuseram· e publicaram cerca de
450 obras em chinês.1 Desse total, perto de 120 textos tratam da ciência, tec�
nologia e geografia européias; outros 330 são textos religiosos. Este capítulo
investigará o papel das traduções nesse intercâmbio cultural sino-europeu:
que textos foram traduzidos? Quem eram os tradutores? Quais eram os
diferentes processos de tradução? E que impacto as traduções exerceram na
recepção cultural da Europa na China moderna?
Nossa primeira tarefa, determinar o número exato de traduções, envolve
cena explicação. Pode-se afirmar que, dos 450 textos, pelo menos 50 são
traduções no sentido atual, ou seja, a adaptação de um texto na íntegra ou

Uma bibliografia completa das obras cristãs em chinês das dinastias Ming e Qjng está sendo
compilada sob a direção de Nicolas Standaert na Universidade de Leuven. Até a conclusão
.: deste trabalho, a obra de referência mais confiável e conveniente é Xu, 1949, que organizo_u
· a Coleção Jesuítica em Zi.kawei (Xangai) em 1940, de acordo com o tema. Todos os prefácios
.. de cada título são publicados junto com breves biografias dos autores jesuítas. Além da
seleção dos útulos mais signifü:ativ�s da Biblioteca de Xangai, Xu Zongze também incluiu
bibliografias parciais das coleções sino-cristãs na Bibliotheque Nationale de France em Paris
(atualmente Bibliotheque de France) e na Biblioteca do Vaticano, em.Roma. .... ·

46
..
I
 Peler Burke e R. Po-chio Hsiéi (orgs.)
em panes de uma língua para outra. Há, por exemplo, a tradução de 1607
dos Elementa [Elementos], de Euclides, empreendida em conjunto por Matteo
Ricci e Paul Xu Guangqi, ou a tradução parcial da Summa theologica, de Tomás
de Aquino, por Ludovico Buglio CJ ["da Companhia de Jesus"], concluída
entre 1654 e 1678.
Havia outros métodos de verter textos europeus para o chinês que não
seguiam traduções exatas. Missionários europeus apresentavam títulos que
parafraseavam, compilavam e resumiam os textos originais, e levá-los em
conta expandiria substancialmente o corpo de obras traduzidas. Em outras
palavras, além da tradução no sentido estrito, havia dois outros métodos
de transmissão textual. O segundo consistia na compilação de passagens
traduzidas ou parafraseadas de textos europeus em uma única obra chinesa,
um exemplo do que foi o altamente bem-sucedido Jiren shipian (1608), ou
Dez ensaios de um homem notável, de Ricci, com passagens traduzidas de Esopo
e Epicteto.
O terceiro método era a sinopse. O jesuíta italiano Giulio Aleni publicou
em 1635 o texto Tianzhu jiangsheng yanxing jilüe, ou O nascimento, a vida e os
ditos do Senhor dos Céus, que, como o título indica, constituía uma apresentação
sinóptica dos Evangelhos (Bibliotheque de France (BF), Chinois 6756). Mais
ambíguos são textos chineses de autoria de missionários europeus baseados
essencialmente em um ou mais originais europeus, tornando problemática
uma conceituação precisa de "tradução" se considerarmos o corpus da produ­
ção cultural européia na China moderna. Pode-se supor que todas as obras
científicas produzidas em chinês constituíam paráfrases ou adaptações de
textos europeus existentes, quando não traduções diretas.
Temas
Os livros traduzidos podem ser divididos em três grandes categorias
temáticas: religião, ciência e humanismo. As duas primeiras são de longe
as mais importantes e podem ser subdivididas em gêneros mais detalhados.
As traduções sobre religião, por exemplo, incluíam preces, textos litúrgicos
(missais, breviários), obras de Teologia, hagiografias, catecismos, regras de
confrarias e textos devocionais. As traduções científicas versavam sobre As­
tronomia, Geometria, Aritmética, Hidráulica, armamentos, Anatomia, Óptica,
falcoaria e Musicologia. Por fim, há um apanhado de textos que introduziam
fragmentos de obras greco-romanas aos leitores chin�ses do século XVII.
48
A lroduçáo cultural nos primórdios do Europo Moderno
Os textos religiosos incluíam traduções da liturgia romana para o uso da
Igreja Chinesa (uma liturgia especial em língua chinesa foi autorizada em
1615 pelo papado, mas rescindida em fins do século XVII). As obras traduzi­
das incluíam o Missale romanum [Missal romano] (1670), o Breviarium romanum
[Breviário romano) (1674) e o Manuale ad sacramenta ministranda.juxta ritum S.
Romae Ecclesiae [Manual dos sacramentos a serem administrados segundo o
rito da Santa Igreja Romana) (1675), todos traduzidos por Ludovico Buglio.
Traduções de preces e comentários concomitantes incluíam o Pai-Nosso, o
Rosário e o Credo. Uma compilação de_ preces cristãs, o Tianzhu shengjiao
nianjing zongdu, publicado pelos jesuítas em 1628, continha as usuais preces
diárias, além de muitos textos do autor devoto espanhol Luís de Granada
(Standaert, 2002, p.616).2 A mais importante obra teológica a ser traduzida
foram partes da Summa theologica, de Aquino, que discutiremos em detalhes
em uma seção posterior.
Além de obras que introduziam as vidas da Virgem Maria e de José (santo
padroeiro da China), os jesuítas também publicaram uma Vida. dos santos e
vidas separadas de São Josafá, São João Nepomuceno, São Francisco Bórgia,
São Francisco Xavier, Santo Estanislau Kostka e São Luís de Gonzaga. Ba­
seavam-se em originais europeus, embora os textos exatos ainda precisem
ser estabelecidos. Textos devocionais incluíam a Imitatio Christi [Imitação de
Cristo), traduzida pelo jesuíta português Manuel Dias em 1640, e aforismos
de Santa Teresa d'Ávila e São Bernardo.
Como o catolicismo tridentino na Europa, a missão chinesa não enfatizava
a transmissão da Bíblia. Uma tradução integral do Novo Testamento e partes
do Antigo Testamento foram pu_blicadas somente no fim do século XVIII pelo
_ex-jesuíta Louis de Poirot, que baseou na Vulgata sua tradução para o man­
darim coloquial (em oposição ao estilo escrito clássico). Antes dessa, a única
tradução bíblica parcial era o texto de Tobias (1730) em chinês, intitulado
Xunwei shenbian, concluído pelo jesuíta francês François-Xavier Dentrecolles
(BF Chinois 6750).
Na ausência de uma tradução integral da Bíblia, a história d� Paixão era
transmitida por outros métodos. A mais bem-sucedida introdução à Passio
Christi [Paixão de Cristo] foi representada por uma tradução pictórica: Tianzhu
jiangsheng chuxiang jingjie (1637), de Giuglio Aleni, baseada em 55 ilustrações
das Evangelicae historiae imagines [Imagens da história evangélica), de Jerónimo
Nadai, publicada originalmente em Antuérpia em 1595 (BF Chinois 6750).
2 Texto em BF Chinois 7345.
49
 Peter Burke e R. Po-chio Hsio (orgs.)
As gravações em cobre de Nadal foram copiadas por artesãos chineses, que
as reproduziram em xilogravuras mais baratas. Esse é o melhor exemplo
de tradução pictórica envolvendo uma reprodução técnica (da gravura para
a xilogravura) e uma interpretação estilística (de motivos europeus para
chineses).
Nas traduções de textos científicos, as obras mais importantes tratavam
de Astronomia e Matemática, todas concluídas antes de 1640, durante as
décadas iniciais da missão jesuítica. Uma lista _de textos europeus e suas
traduções chinesas são apresentadas a seguir (Standaert, 2002, p.739-40):
Cristóvão Clávio, Euclidis elementorum libri XV [Os quinze livros dos elementos de
Euclirles], 1574. Tradução chinesa de Matteo Ricci e Xu Guangqi: Jihe yuanben,
1607.
Cristóvão Clávio, Geometria practica [Geometria prática], 1604. Tradução chinesa
· de Matteo Ricci e Xu Guangqi: Celiangfayi, 1608.
Cristóvão Clávio, Epitome arithmeticae practicae [Resumo da prática aritmética],
1583. Tradução chinesa de Matteo Ricci e Li Zhi:z.ao: Tongwen suanzhi, 1614.
Cristóvão Clávio, ln sphaeram Ioannis de Sacro Bosco commentarius [Comentário sobre
a esfera deJoão de Sacro Bosco], 15 70. Tradução chinesa de Matteo Ricci e Li
Zhizao: Yuanrong jiaoyi, 1614.
John Napier (1550-1617), Rabdologiae, seu numerationis per virgula libri duo [Dois
livros sobre a rabdologia e a numeração por vírgula], 1617. Tradução chinesa
de Giacomo Rho e Adam Schall: Chousuan, 1628.
Galileu Galilei, Le operazioni dei compasso geometrico e militare [As operações do
compasso geométrico e militar], 1606. Tradução chinesa de Giacomo Rho e
Adam Schall: Biligui jie, 1630.
Bartomoleu Pitisco (1561-1613), Trigonometriae [Da uigonomeuia], 1612. Tra­
dução chinesa deJohann Terenz Schreck: Da ce, 1631.
Cristóvão Clávio, Geometria praciica, 1604. Tradução chinesa de Giacomo Rho:
Celiang quanyi, 1631.
-·
Sob o imperador Q.ing Kangxi (que reinou entre 1662 e 1722), vários
jesuítas serviram como tutores imperiais. Embora diversos textos matemáti­
cos europeus tenham sido traduzidos para instruir o imperador, nunca foram
publicados. O segundo período da missão jesuítica teve poucas traduções
científicas. Uma exceção foi a teoria da pintura: Giuseppe Castiglione, um
pintor jesuíta, colaborou com Nian Xiyao para traduzir Perspectiva pictorum
[Perspectiva dos pintores] (1706), do artista jesuíta Andrea Pozzo; à obra
chinesa Shixue [Ignorante], que apareceu em 1729, contribuiu para a recepção
da pintura em perspectiva na Chin.,_ do século XVIIL
·; 50
A 1roduçõo culturol nos primórdios do Europa Moderno
Apenas um fragmento muito breve do corpus textual greco-romano foi
traduzido para o chinês. Baseados no currículo humanista da Ratio studiorum
[Razão dos estudos], familiar a todos os missionários jesuítas, esses textos
poderiam ser divididos ainda entre retórica e Filosofia. O altame�te bem­
sucedido Jiaoyou lun (1595), ou De amicitia [Da amizade], de Ricci, baseava-se
em Sententiae et exempla [Sentenças e exemplos], de André de Évora, uma �
coleção de aforismos dos escritos de Cícero, Sêneca e vários autores clás­
sicos.3 Outro texto de Ricci, Ershiwu yan (1605), ou Os vinte e cinco ditados,
constituía-se da tradução de uma versão latina do Encheiridion [Manual]. de
Epicteto (Standaert, 2002, p.605).
Se aos leitores chineses se ofereciam apenas fatias de textos epicuristas e
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estóicos, era-lhes servjda uma porção muito maior de Aristóte�es. O jesuíta
português Francisco Furtado e os italianos Alfonso Vagnone, Aleni e Fran­
-�-�.:':�/:·; cesco Sambiasi traduziram vários textos e comentários aristotélicos. Dos que
eram usados no Colégio Jesuíta em Coimbra foram traduzidos: De coelo [Do
céu], Universa dialectica Aristotelis [Dialética universal de Aristóteles], Isagoge
Porphyrii [Introdução de Porfirio], Categoriae [Categorias], Analytica priora
[Analítica prévia]. Os três jesuítas italianos traduziram partes de De coelo et
mundo [Do céu e do mundo], Meteorologica [Meteorológica], De anima [Sobre
a alma], Parva naturalia [Pequenos tratados da natureza] e Ethica Nicomachea
[Ética de Nicômaco].
Todas as traduções foram realizadas em um período relativamente bre­
ve, entre 1623 e 1639. Literatos chineses convertidos colaboraram de perto
nesses textos como co-tradutores ou editores estilísticos: Xu Guangqi, Li
Zhizao (1565-1630), seu filho Li Cibin, Han Lin (1601-1644) e Duan Gun
· (m. 1641); dois outros, Wei Douxu e Zhu Sihan, não eram conhecidos como
convertidos.
Muitos desses textos não foram traduzidos na íntegra, e sim oferecidos
como sinopses parafraseadas ou traduções parciais. A tradução de Aristóteles
acompanhou a transmissão de textos científicos europeus, o que motivou Li
Zhizao, que a princípio se sentiu atraído pelo catolicismo dado seu interesse
pela ciência européia. Em seu prefácio a Ming/i tan (1631), o título chinês
. da primeira parte da Dialectica [Dialética], de Aristóteles, Li enfatizou que o
f;)ergadeiro conhecimento do mundo material dependia de classificações e con­
. · ceit�s apropriados. Por isso, termos como genus, species, differentia, proprium,
_
·_- 3 .c: Para referências clássicas completas no texto de Ricci, ver a edição crítica de Mignini,
)' 2005.
,;1
 · Peter Burke e R. Po-chio H·;;q (orgs.)
accidens e categoria ajudavam os literatos confucianos a praticar a Filosofia
Natural (literalmente, gewu qiongli zi dayuanbin, que significa as "o�gens de
medir as coisas e esgotar os princípios").4
· Por seu turno, conhecer o mundo natural conduz a formas superiores de
conhecimento, da metafisica e de Deus. No prefácio a Huanyou quan (1628),
a tradução chinesa de De coelo, Li Zhizao argumentou que um real conheci­
mento da natureza e da Metafísica era essencial para combater a fabricação
budista de uma miríade de cosmos. 5 Nessa importante tarefa, prosseguia Li
em seu prefácio, ele e Furtado haviam trabalhado durante cinco anos, dadas as
dificuldades conceituais e lingüísticas. A apresentação dos resultados iniciais
em 1628 serviu como uma primeira amostra do muito que estava por vir; os
textos chineses também desempenhavam a função de introdução à língua
para os missionários europeus.
Li Zhizao morreu dois anos depois, deixando apenas um fragmento da
tradução. Uma versão completa da Dialectica não foi realizada senão em 1684,
quando Ferdinand Verbiest apresentou uma cópia manuscrita ao imperador
Kangxi, que negou seu pedido de publicação, alegando a inutilidade do texto.
Assim teve fim a recepção de Aristóteles na China seiscentista.
Nenhum texto de Platão e nenhuma obra neoplacônica foram traduzidos
para o chinês. Diversamente do corpus aristotélico, Platão não era leitura
essencial no currículo humanista da Europa moderna. Além disso, a idéia
platônica da transmigração das almas era reminiscente das doucrinas budistas
do carma e da reencarnação, contra as quais os primeiros missionários jesuítas
e seus convertidos cravavam uma intensa e polêmica batalha.
Tradutores
Com poucas exceções, a missão jesuítica na China foi responsável pela
produção de traduções para o chinês em fins da era Ming e início da Qing.
Por essa razão, usarei o termo "jesuítas" para designar missionários europeus
nesta discussão. Para o período até l 720, a Companhia de Jesus proporcionou
mais de dois terços de todos Ós missionários europeus enviados à China.
Entre 1583 e 1723, um total de 563 jesuítas deixou a Europa rumo à China:
alguns pereceram a caminho e outros acabaram atuando na Índia, no sudes-
4 Prefáào impresso em Xu, 1949, p.194.
5 Ibidem, p. 199.
52
A troduçõo cultural nos primórdios do Europa M.oderno
te da Ásia ou no Japão, deixando um número mínimo final de 288 jesuítas
europeus ativos na missão clúnesa nesse período.6
Nem todos os jesuítas participavam da produção de livros. O impressio­
nante corpus jesuítico chinês foi na verdade obra de apenas 59 padres euro­
peus, dos quais dezoito estavam envolvidos em traduções. Por nacionalidade,
o grupo de autores jesuítas se divide em: italianos, dezoito; portugueses,
dezessete; franceses, quatorze; belgas, quatro; alemães, três; e um espanhol,
um polonês e um austríaco. Entre os dezoito tradutores jesuítas, oito eram
italianos, cinco portugueses, três franceses e dois belgas. 7
À primeira vista, a representação nacion.tl de autores/tradutores jesuítas
parece corresponder à força numérica total das nações na missão chinesa:
as três principais nacionalidades - portuguesa, francesa e italiana - têm a
presença mais proeminente. Mas quando comparamos de fato essas cifras
com o número preciso de missionários jesuítas acuando na China (números
totais de Dehergne, revisados por Girard; ver nota 6), deparamo-nos com
um retrato mais complexo.
No período de 1583 a 1723, um cocal de 129 jesuítas portugueses, de
longe a mais forte representação nacional, atuava na China e em Macau.
Desse total, apenas dezessete padres publicaram textos, dos quais cinco se
envolveram em traduções. Os jesuítas franceses, que eram relativos retar­
datários na Missão Chinesa, dominariam a presença missionária estrangeira
no decurso do século XVIII; ao codo, escavam numericamente em segundo
lugar. Nesse período inicial, houve 58 jesuítas franceses, dos quais quatorze
eram autores (quatro tradutores entre eles). Os jesuítas italianos ocupavam a
terceira posição, com 56 na missão, e o mais alto número de autores.- dez0ito.
ao todo, com oito tradutores entre eles.
Digna de nota foi a produção textual dos Jesuítas das duas províncias
belgas: cinco, de um total de quatorze nesse período, escreveram e/ou tradu­
ziram textos para o chinês. Como veremos mais adiante, eles também desem­
penharam um papel-chave na tradução de textos chineses para o latim. Outra
maneira de considerar essas' cifras é por meio das porcentagens de j�suítas
na China de qualquer nacionalidade específica que também se envolveram na
6 Números de Dehergne, 1973, conforme revisão de Girard, 1999, p.171-3. Este autor só
inclui as principais nacionalidades em seu cálculo revisado; um grupo pequeno de polone­
ses e jesuíta.s suíços não foi incluído em sua lista. O número real de jesuítas na China fica
ligeiramente maior quando eles e os jesuítas macaístas são incluídos.
7 Calculado a partir de Xu, 1949.
53
 Peler Burke e R. Po-chio Hsio [orgs.)
produção textual; as cinco primeiras posições são: belgas (35,7%}, alemães
(33%}, italianos (32%), franceses (24%}, portugueses (13%}.
Outro conjunto de estatísticas é interessante. Do número de textos chi­
neses que os missionários jesuítas produziram, os alemães perfizeram em
média 12,3 obras; os italianos, 9,26; os belgas, sete; os portugueses, três;
e os franceses, três. Dois diretores jesuítas do Observatório Imperial e do
Tribun� de Matemática estiveram entre os autores mais prolíficos: o alemão
Johann Adam Schall von Bell e seu sucessor, o belga Ferdinand Verbiest, foram
autores de 25 e 20 obras, respectivamente, a maioria delas textos científicos
(calendários, observações astronômicas, tabelas matemáticas etc.). Entre os
indivíduos, os jesuítas italianos foram os mais p�olíficos: Giuglio Aleni foi
autor de 26 textos, Ludovico Buglio e Giacomo Rho, de 21 textos cada, Ricci
respondeu por dezenove obras e Alfonso Vagnoni por quinze, superando o
mais prolífico jesuíta português, Manuel Dias, que tinha treze obras a seu
crédito.
Os jesuítas franceses fizeram uma contribuição modesta mas respeitável
para a produção da Jesuitica sinensis Uesuítica chinesa]; também desempe­
nharam o papel principal na introdução de textos e da cultura chinesa a um
público europeu setecentista, o que explica o enfoque de seu trabalho literário
e a produção relativamente modesta em chinês.
A relação entre a produção de livros chineses (originais, traduções ou
paráfrases) e a produção de Sinica [Escritos chineses] (traduções de textos
chineses para línguas européias e escritos sobre a China publicados na Eu­
ropa) é de fato uma questão altamente interessante. Em geral, o primeiro
período da missão jesuítica, de 1580 até cerca de 1680, testemunhou a mais
alta produção de escritos jesuíticos em chinês. Quase todos os textos e tradu­
ções importantes foram concluídos nesse período, indo de obras científicas ou
sobre Filosofia moral a textos litúrgicos padrão, como o Missa/e e o Breviarum
romanos, bem como traduções 9as obras de Aquino e Aristóteles.
O segundo período, de 1680 à dissolução da Companhia de Jesus, foi
caracterizado por uma queda significativa na produção de títulos chineses,
pelo estreitamento dos temas (concentrando-se em obras catequisadoras e
devoàonais}, por mais publicações na linguagem coloquial e pela tradução
de um pequeno corpo de textos cristãos para o manchu, a língua da dinastia
da conquista Qjng.
Também foi significativa nesse segundo período a transmissão de' textos
e da atltura chinesa para a Europa. Começando com a tradução dos Quatro
Livros Confucianos (O. grande ensinamento, A doutrina do meio, Os analectos e
54
A lroduçõo cullurol nos primórdios do Europa Moderna
Mêncio), sob a editoria do belga Philippe Couplet (Confucius, 1687}, jesuítas
franceses, alemães e austríacos continuaram a acrescer o corpus de Sinica ao
longo do século XVIII. Se 1580-1680 foi o século europeu para a China, os
cem anos seguintes representaram o século chinês para a Europa.
Processo e recepção
Algumas conclusões preliminares podem ser tiradas do que acabou de
ser apresentado. Embora a missão jesuítica na China estivesse sob a proteção
de Portugal, e levando-se em conta a predominância numérica de jesuítas
portugueses e o enclave português de Macau na costa· meridional da China,
esse país não desempenhou o p�pel crucial que seria de se esperar no in­
tercâmbio cultural sino-europeu. Em vez disso, jesuítas italianos e belgas
representaram a força motriz na transmissão de textos europeus para a China
até 1723. Depois disso, jesuítas franceses desempenharam um papel cada
vez mais predominante.
Isso não significa dizer, contudo, que os jesuítas podiam reivindicar toda
a glória. Colaboradores chineses, tanto convertidos como simpatizantes, de­
sempenharam com freqüência um papel importante, tanto em composições
como em traduções jesuíticas, tal como indicam os prefácios a muitos textos.
Para as traduções, havia três cenários possíveis. Primeiro, os próprios jesuí­
tas empreendiam a tradução dos textos europeus para o chinês. Segundo, o·
tradutor jesuíta explicava os textos europeus oralmente a seu colaborador
chinês, que redigia a versão chinesa; o material era subseqüentemente exa­
minado em conjunto, até que fosse acertado um texto final para a tradução.
Terceiro, um tradutor jesuíta compunha um esboço de tradução, que então
era revisado estilisticamente por um colaborador chinês.
Desses três cenários, o segundo - a tradução oral jesuítica e a composição
escrita chinesa - foi de longe o mais significativo, constituindo o método co­
f.. (-·::. mum de tradução nos primeiros cinqüenta anos da missão jesuítica na China,
por muito boas razões. Por um lado, era o meio mais eficiente, permitindo
que os relativamente poucos missionários jesuítas produzissem um grande
c·orpo de traduções em chinês. Por outro, a estreita colaboração com literatos
chineses oferecia uma oportunidade de fazer prosélitos ou de fortalecer os
._ vínculos �ntre missionário e convertido. Uma terceira razão era que esse
-método colaborativo permitia a mais alta precisão e elegância na tradução,
. aproveitando ao máximo a compreensão jesuítica dos textos europeus e o
.,e,·,,·-._.
, < 'i'i
 Peter Burke e R. Po-chia Hsia (orgs.)
domínio chinês da elegância estilística. O prefácio de Ricci à tradução àe
Euclides é instrutivo:
Desde minha chegada à China, vi que há muitos estudioso.s e obras de Geo­
metria, mas ainda não vi nenhuma obra teórica fundamental (... ) Concebi então
o desejo de traduzir este livro para o uso dos cavalheiros de nossos tempos, para
assim agradecer-lhes por sua confiança em um viajante. No entanto, sou de parcos
talentos. Ademais, a lógica e a retórica do Oriente e do Ocidente são sumamente
diversas. Na busca por sinônimos, muitas palavras ainda estão faltando. Mesmo
que eu consiga explicar as coisas oralmente com algum esforço, pô-las por escrito
é demasiado dificil. Desde essa época, encontrei colegas que me ajudaram de toda
maneira, mas sempre que há dificuldades eu me detenho, já tendo avançado e
parado por três vezes. (Xu, 1949, p.261-2)
Essa dificuldade só foi superada após um encontro com Xu Guangqi, ou­
trora o principal ministro da corte Ming, que se tornou um dos mais valiosos
conversos de Ricci e um líder no primitivo catolicismo chinês. Ao discutirem
o cristianismo e a ciência ocidental, Xu estimulou Ricci a concluir a tradução,
"pedindo-lhe que transmitisse (o texto) oralmente e recebesse (o texto) por
escrito, virando-o e revirando-o para refletir sobre seu sentido, o que resultou
em sua publicação somente após três versões" (ibidem, p.262).
Um exemplo de texto inteiramente realizado por jesuítas é a tradução par­
cial da Summa theologica, de São Tomás de Aquino. De longe o mais ambicioso
projeto da missão jesuítica, essa tradução ocupou o italiano Ludovico Buglio
durante mais de vinte anos, entre 1654 e 1678. Mesmo assim, apenas uma
pequena porção da Summa foi tradüzida. Buglio se concentrou na Pars prima.
Os primeiros dez juan 8 apareceram em 1654: tratam da natureza de Deus,
da Trindade e da Criação. Em 1676, outros seisjuan sobre anjos e a criação
foram finalizados. O terceiro fascículo apareceu em 1677/8 e consistiu em
outros dezjuan sobre o homem, a alma, o corpo e a soberania humana sobre
todas as coisas. Todos foram extraídos da Pars prima. Embora a Pars secunda
tenha ficado sem tradução, uma pequena porção da Pars tertia - seisjuan sobre
o nascimento de Cristo e Sua ressurreição (a última traduzida pelo jesuíta
português Gabriel de Magalhães) - foi concluída em 1677/8.
À parte o mero volume do texto, a Summa apresentava uma dificulda­
de particular por causa de sua linguagem teológica técnica, um obstáculo
mencionado de passagem no prefácio de Buglio à edição de 1654. Depois de
8 Juan era a unidade básica de um livro chinês e tinha entre vime e trinta folhas.
56
A tradução cultural nos primórdios da Europa Moderna
comentar a significância de Aquino para o saber cristão e de oferecer a obri­
gatória e polida autodepreciação, Buglio descreveu a dificuldade de verter a
Summa para o chinês: "As línguas diferem de terra a terra, e as palavras são
limitadas; depois de repetidos empenhos, novas palavras são acrescidas, e a
Pars prima está concluída, com grande esforço. Mas não ouso dizer que esgotei
o sentido do texto original" (ibidem, p.190).9
Esta passagem reflete um problema comum em todos os projetos de tra­
dução: verter ou não conceitos equivalentes por meio de neologismos. Quer
se opte por criar novas palavras na língua hospedeira, correndo-se o risco da
ininteligibilidade, quer por verter o conceito original em termos familiares
à cultura hospedeira, e com isso perder talvez o sentido original, trata-se de
uma tarefa intimidadora.
A última opção foi a adotada por Ricci. Ao traduzir a palavra latina Deus
para o chinês, Ricci evitou uma armadilha criando um novo termo, Tianzhu,
o Senhor dos Céus, combinando dois termos do antigo cânon confuciano
familiares aos literatos chineses. 10 Estilista gracioso, Ricci adotou a sintaxe e
expressões idiomáticas chinesas, tentando persuadir por meio de um discur­
so cristão decorado com floreios retóricos chineses. Por mais bem-sucedida
que tenha sido com os literatos chineses, essa tradução acomodatícia foi
duramente contestada por Niccolo Longobardo e outros jesuítas na China
e no Japão.
Suprimida em favor do método ricciano pelo bem da unidade interna,
essa controvérsia ressurgiria posteriormente e deixaria os jesuítas em difi­
culdades, já que missionários dominicanos rivais acusavam a Companhia
de misturar idolatria com a religião verdadeira por meio da acomodação
lingüística e cultural. A famosa Controvérsia dos Ritos Chineses foi essen­
cialmente uma questão de tradução: se termos chineses usados pelos jesuítas
(Tian significando os Céus e Shangdi significando Deus nas Alturas) poderiam
representar adequadamente a noção da divindade cristã, e se rituais ances­
trais dos chineses deveriam ser vistos como liturgia cívica ou religiosa, e por
conseguinte idólatra.
A tradução de Aquino por Buglio enfrentou o problema opósto: a inin­
teligibilidade. Intitulada em chinês Chaoxing xueyao, ou Sumário do saber que
ultrapassa a natureza, Buglio decidiu verter termos latinos por sons chineses
equivalentes. Assim, "Spiritus Sanctus" se tornou si-pi-le-do-san-du, "theolo-
9 Uma cópia da longa tradução de Buglio está disponível em BF Chinois 6907-9.
10 Para o trabalho mais recente, ver Kim, 2004.
57
 Peter Burke e R. Po-chia Hsia (orgs.)
gia", dou-lu-ri-jia, "philosophia",fei-lu-suo-fei-ya e assim por diante. Ao traduzir
textos religiosos, preservar a aura de autenticidade sacrificando a inteligibi­
lidade não era necessariamente uma falha.
Por outro lado, traduções por aproximação sonora de cantos e preces do
sânscrito dificilmente impediram a expansão generalizada do budismo na
China medieval. Além disso, muitos conceitos budistas centrais, como Buda,
boddhisattva e asura, foram vertidos por aproximação sonora e se tornaram
termos aceitos nos sutras budistas chineses. A ininteligibilidade, de fato, pode
muito bem ter contribuído para a aura c;ta recitação de sutras.
A tradução de Buglio sofria de algo mais sério: sintaxe e estilo ruins.
Traduzir o latim escolástico de Aquino para o chinês clássico era como tor­
nar Aquino inteligível para Cícero. A abundância de neologismos, orações
subordinadas e demonstrações dialéticas fizeram do Chaoxing xueyao um texto
muito dificil, senão ininteligível, para leitores chineses do século XVII. Não
há evidências de sua recepção, e ele não foi reimpresso senão em 1932.11
Conclusão
Terão as traduções de textos europeus exercido alguma influência cultural
na China moderna? Em caso positivo, que temas ou livros eram preferidos?
A resposta a estas perguntas depende da definição do público leitor. Dentro
de uma definição estreita da esfera de recepção, pode-se falar de um alto grau
de sucesso quando se tem em mente o uso de traduções dentro da Igreja
Católica chinesa. Por isso, livros de preces, obras devocionais, catecismos,
imagens visuais européias copiadas na China e obras teológicas serviram à
população convertida que atingiu um pico de 200 mil pessoas em 1700, antes
de adentrar um período de lento declínio. A existência de reimpressões e as
múltiplas cópias dessas obras em grandes bibliotecas chinesas e européias
dão testemunho de sua função e seu sucesso.
Fora dos círculos católicos chineses, a questão da recepção é mais dificil
de investigar. Há dois indícios da recepção geral de textos europeus (tan­
to compostos como traduzidos) que oferecem algumas respostas: coleções
particulares e a Enciclopédia Imperial, a Siku quanshu, compilada entre 1 772
e 1784.
11 Para edições existentes e a história das edições, ver Chan, 2002, p.284-7.
58
A tradução cultural nos p,im6rdios do Europa Moderno
No caso das coleções particulares, Nicolas Standaert examinou dez ca­
tálogos de grandes coleções do século XVII e do início do século XVIII. Um
total de 96 obras jesuíticas figurava nessas publicações, das quais cerca de
70% representam textos científicos. Textos religiosos e morais não eram
desconhecidos, embora se limitassem essencialmente aos escritos/traduções
de Matteo Ricci (Standaert, 1985).
Este resultado é corroborado por um exame da Tabela de Conteúdo da
Enciclopédia Imperial. Aproximadamente treze mil títulos foram recolhidos
nesse projeto oficial sob o regime do imperador Qianlong. 12 Uma seleção
foi feita para representar o "saber propriamente dito": 3.488 livros ao todo
foram recolhidos na íntegra, 6.783 foram registrados e comentados; outros
textos considerados política ou intelectualmente subversivos foram destruí­
dos ou ignorados. Trinta e seis textos católicos foram incluídos na Tabela
Abrangente de Conteúdo da Siku quanshu; uma vez mais, textos científicos
·constituíam a maioria, e textos de Ricci representavam a grande maioria de
textos filosóficos e religiosos.
Tomadas em conjunto, as evidências das coleções particulares e da Siku
quanshu indicam que a recepção de escritos europeus estava largamente re­
presentada por textos científicos, que obras publicadas no início do século
XVII estavam mais bem representadas, e que nada menos de sete textos de
Matteo Ricci receberam um comentário dos editores imperiais ou foram
reproduzidos na íntegra.
Quando refletimos sobre essa conclusão no contexto mais amplo deste
capítulo, vários pontos se tornam visíveis. A tradução de textos europeus para
o chinês envolveu um esforço sustentado e contínuo de jesuítas europeus e
seus colaboradores chineses. O sucesso desse projeto de tradução ficou muito
evidente pelo consumo textual interno da missão chinesa.
Fora das comunidades convertidas, os textos europeus causaram um
impacto considerável nas décadas iniciais do século XVII, especialmente na
reforma do calendário, na Astronomia, na Matemática e em outras ciências.
Além disso, vários textos de Matteo Ricci sobre temas tanto greco-romanos
como cristãos tiveram grande circulação entre os literatos das áreas urbana,
graças à sua reputação. Entretanto, ao longo da segunda metade do século
XVII e do século XVIII, o "mercado" para textos europeus se tomou cada vez
mais restrito a círculos cristãos.
12 Sobre o Projeto da Enciclopédia Imperial, ver Guy, 1987.
59
.,• . I'

IrI'

••
Peter Burke e R. Po-chio Hsio �rgs.) 1!
,j

jesuítas recorriam
Ao selecionar textos para tradução, os missionários

••
,,,,
familiar es em virtud e de sua educação e ,:/
àqueles títulos que lhes eram mais
e escrito res jesuítas em te­
seu meio: Aristóteles no currículo filosófico geral

••
e Pozzo sobre a perspec­
mas mais especializados (Clávio sobre a Matemática
ão de obras religiosas
tiva). Um esforço mais sistemático foi feito para a traduç
missão chines a. Chines es convenidos
para a vida litúrgica e dévocional da

••
cos, embora
tinham acesso a uma longa lista de livros de preces e textos litúrgi
os esforços dos
a Bíblia não tenha sido traduzida (em agudo contraste com

••
protestantes no século XIX).
o interesse por obras científicas e filosóficas concentrou-se na primeira CAPÍTULO 3
idade de conver­
metade do século XVII, tanto dentro como fora da comun A língua como meio

••
o com
tidos. O declínio do interesse por textos europeus seguiu em paralel de transferência de valores culturais
elites letrada s confuc ianas na se­
outros dois processos: o desencanto das
ão dos Ritos Eva Kowalská
gunda metade do século XVII, processo acentuado pela proibiç

••
ismo
Chineses pelo papado em 1704; e o status social declinante do cristian
depois da proibição imperial das conver sões em 1724 .

••
para o
Em comparação com a tradução concentrada de textos chineses
Leibniz
latim, que inspirou uma sustentada "onda chinesa" na Europa entre
maior de traduçõ es para o chinês colheu uma safra Como se sugeriu no Capítulo 1, do ponto de vista de um historiador
e Voltaire, o esforço muito

••
jesuítica. Os títulos e as coleçõe s cultural, aquilo que não é traduzido para uma determinada língua pode ser
cultural relativamente escassa para a missão
ento ao intercâm bio tão significativo e tão revelador como aquilo que é traduzido. No caso dos
existentes permanecem, ainda assim, como um monum
cultural cultivado por muitas gerações de pioneiros culturais. eslovacos do período moderno, as ausências significativas incluem o mais

•• traduzido de todos os textos, a Bíblia. Por que isso ocorreu será explicado
no decorrer do capítulo.

••
O uso do vernáculo na liturgia, e especialmente seu uso como meio.de
acesso à revelação divina- a Bíblia-, foi uma característica básica do pro­
testantismo dos tempos da Reforma em diante. Entretanto, uma intensa

••
discussão sobre a acessibilidade da Bíblia como fonte da verdadeira fé já
havia tido lugar na Idade Média, na qual autores ingleses e alemães foram os

••
primeiros a tomar parte (Mackenzie, 2002; Long, 2001, p.120-32, 204-11) .
Havia uma séria preocupaçio quanto a leigos ou padres ignorantes le.ndo as
Escrituras, ao mesmo tempo em que se temia que traduções para o verná­

••
culo pudessem mudar o sentido do texto, usando metáforas impróprias, por
exemplo (Marsden, 1996) .

ã
As traduções i_nglesas e alemãs da Bíblia não foram as únicas a ser ampla­
mente discutidas. A Boêmia foi outro importante centro dessas discussões,
de Jan Hus em diante (Kyas, 1997). Apesar disso, a região vizinha da Hun­
gria, incluindo a moderna Eslováquia, aceitou antes o movimento da Devotio

60

Pe1er Burke e R. Po-chio Hsio (orgs.)
moderna do que os ensinamentos do próprio Hus (Sopko, 1997). No Reino
�,.
da Hungria, as conseqüências sociais das atividades de Hus foram sobretudo
negativas. A população sofreu saques destrutivos dos hussitas em vez da
mensagem de fé e da palavra de Deus na língua do povo (Bartl, 1996). De­
.pois da Reforma, a população eslovaca viu-se na mesma posição que outros
grupos étnicos no reino.
O ponto de partida básico da Reforma era o acesso às Escrituras como
fonte.da verdadeira fé. Todavia, não era fácil enfrentar esse desafio. A língua
(
do luteranismo eslovaco foi afetada pela educação latina da elite, bem como
por problemas teológicos. As primeiras confissões de fé, datadas de meados
do século XVI, foram compiladas em latim, e passaram-se outras três déca­
das an,tes que textos religiosos de vários tipos aparecessem em uma lmgua
acessível ao povo (Bodnárová, 1998). 1
. Para· os eslovacos étnicos, a Reforma não estimulou o vernáculo de ma­
neira imediata e inequívoca, como fez no caso dos alemães e húngaros, e
não levou à identificação do grupo étnico com sua língua falada (Bitskey,
1999). Estes fatos são interessantes não apenas do ponto de vista da Histó­
ria da Religião, mas também do funcionamento da língua, da transmissão
de valores culturais e da formação das nações modernas, um processo que
começou nessa época.
Qualquer pessoa interessada nos primórdios da formação e do desenvolvi­
mento de grupos étnicos subordinados na Europa central no período moderno
encontra um fenômeno interessante no caso dos eslovacos. A despeito da
ausência de uma tradição histórica vívida, de uma base institucional para o
desenvolvimento de atividades culturais ou políticas, e até mesmo de uma
forma única de língua escrita, os eslovacos tinham uma identidade étnica
relativamente forte, e posteriormente motraram-se capazes de se desenvolver
como uma nação moderna.
Poderíamos supor que os iI'!'lpulsos para esse processo partiram da Igreja
como instituição e símbolo da unidade étnica. Todavia, a filiação religiosa não
teve como se tornar um fator de unificação. A Igreja Luterana mostrou-se domi­
nante após a Reforma, mas no decorrer do século XVII recuou sob a pressão do
movimento de recatolicização, que levou a uma mudança na composição con-
Entretanto, os primeiros textos originais, os hinos escritos por João Silvano, foram publi­
cados em Praga apenas em 1571. Os primeiros livros impressos em tcheco usados pelos
eslovacos foram as traduções do Catecismo, de Lutero, publicadas em Bardejov em 1581 e
provavelmente el)'l 1583 em Hlohovec: Óurovic, 1940, p.38-43.
62
,�·
A !redução cul1ural nos primórdios do Europo Moderna
..
fessional da população. No início do século XVII, os não-católicos, luteranos em
sua maioria, ainda form�vam cerca de 90% da população da Alta Hungria, mas
a situação foi revertida ao longo do século XVIII, e os não-católicos se tomaram
(na Eslováquia e no Reino da Hungria em geral) uma minoria marginalizada de
cerca de 20%. Os membros dessa minoria não tinham permis;ão para ocupar
cargos públicos (reais ou municipais), e seus direitos civis eram linútados.
Ao mesmo tempo, o alargamento, o reforço ou a defesa da identidade
confessional representava um valor básico e realmente uma missão para
os membros de uma determinada comunidade. A identificação com uma
confissão era extremamente importante, especialmente ao ser ameaçada,
1.
por exemplo quando a filiação .não podia ser sustentada por instituições
religiosas, i:nas somente por meio de sinais informais de identificação. Com
isso, a distinção entre os dois campos confessionais não se expressava apenas
no níve� da doutrina. As duas confissões também começaram a se distinguir
usando diferentes formas de língua escrita e a preferir diferentes tradições
históricas, além de desenvolver idéias opostas quanto ao caráter de seu pró-
t
:
t prio grupo étnico. Isso levou a uma acentuada diferenciação entre os dois
�· campos - luterano e católico - no quadro de uma única unidade étnica, cada
um deles mostrando forte identidade coletiva.
1 A aceitação do tcheco - uma língua compreensível, mas mesmo assim
t ·. .�·
de outro grupo étnico - como língua litúrgica dos eslovacos pode ser con-
[
1 . siderada um importante fator de diferenciação dentro do grupo étnico. Ela
foi tanto um resultado do desenvolvimento da confissão luterana entre os
eslovacos como um estímulo para seu desenvolvimento específico. O tcheco
t.. ·-'
. era não apenas a língua da Bíblia, dos catecismos e dos serviços religiosos,
f:
r como também se tornou gradualmente o símbolo da conexão e da relação
fI · lr�;>
f. · · de seus usuários eslovacos com o grupo étnico de cui·as tradições históricas
eles se apropriaram. Essas tradições não derivaram de uma experiência direta
ao ongo de gerações ou de tradições populares mencionadas em crônicas
�
me ievais, foram uma construção artificial dos intelectuais. 2
�· ·,t � .
f Um exemplo desse processo é a alegação de que o hussitismo foi o pre-
t_. /�,'.- decessor direto do luteranismo, que encontrou resposta na Eslováquia a
,. _,J;... despeito do fato de que não havia ali nenhuma continuidade direta entre os
��-.}. huss_itas e a Reforma. A língua também permitiu que a idéia de uma relação
··
direta entre os eslovacos e os tchecos penetrasse a consciência coletiva. O ·
conceito de µma tribo tchecoslov�ca unida dentro do quadro do grupo eslavo,
--.>.; ...
Sobre a construção da história na E·uropa modem.a, Bahlcke e Strohmeyer, iooi.
' p. . � .., .
,\, ,l.'l
 Peter Burke e R. Po-ch,a Hsio {orgs.)
ue mais tarde desempenhou um importante papel no processo de formação
�a nação moderna, já aparecia no início do período moderno como parte da
idéia do Eslavismo Barroco (Brtáií, 1939).
A ac eitação de uma língua estrangeira como meio de comunicação culta
não é de modo algum incomum. Basta mencionar o latim como a língua franca
de toda a Europa nos períodos medieval e moderno. Todavia, a identificação
de um grupo étnico ou de uma importante parte dele com a língua viva de
outro grupo étnico e a declaração de que essa forma de falar é a l!ngua ma­
terna representam um fenômeno diferente. Esse processo teve vánas causa�,
_
decorrentes de desenvolvimentos específicos em todo o Remo da Hungria
após a Reforma.
· No caso dos eslovacos, é especialmente necessário enfatizar que a Refor-
ma não significou um impulso automático para a produção ou tradução de
textos litúrgicos e outros textos literários em sua própria língua falada. Os
divulgadores das idéias da Reforma entre os eslovac os eram os burgueses
e a fidalguia rural, ou seja, grupos sociais cuja educação os º i ntava ara ª
:� � .
cultura latina humanista. O ensino nas escolas urbanas era ministrado intei­
ramente em latim. 3 Além disso, a maioria das cidades ainda tinha conexões
próximas e diretas com regiões alemãs, e o alemão era uma d�s lín�uas dos
conselhos municipais. 4 Graças a isso as idéias da Reforma se d1fund1ram em
sua forma original e os magistrados se correspondiam em matéria de religião
com O centro da Reforma Luterana em Wittenberg e com seus líderes, espe­
cialment e Filipe Melanchthon (Suda, 1996; Bodnárová, 1999).
Portanto, os ensinam entos da Reforma foram recebidos inicialmente em
alemão e latim. Por exemplo, as confissões de cada associação urbana costu­
màvam obter reconhecimento legal dos novos sínodos da igreja, e suas orgàni­
zações, junto com suas regras, eram escritas nessas línguas. Como resultado,
a insistência no caráter inalterado dos textos se tornou um importante fator
político na época da recat olicização forçosa e do cancelamento das garantias
de funcionamento das confissões não-católicas. Com isso, artigos de fé que
não tinham sido distorcidos pela traduçã o formaram a base sobre a qual os
luteranos foram aceitos pelo Estado (Daniel, 1980).5
3 o resultado foi que o latim continuou a ser falado e permaneceu uma das línguas oficiais
da Hungria até a segunda metade do século XVlll (Tóth, 1996, p.130-45).
4 As cidades na Alta Hungria/Eslováquia eram ilhas lingüísticas em que o alemão se desen-
volveu independentemente das regiões alemãs centrais.
s Sobre o discurso referente ao uso de diferentes línguas dentro do ambiente católico, Smo­
linsky, 1998; Kõster, 1995.
64
A troduçõo cuhurol nos primórdios do EurClpo Moderna
N o caso d os lut eranos eslovacos étnicos, a ênfase na ausência de mu­
dança significou a renúncia à tradução de seus textos básicos (a Confissão
de Augsburgo, a Fórmula ou Livro da Concó rdia) para sua própria língua até
o final d o século XVIII. A tradução dos textos "identificadores" básicos da
confi�são para a língua falada, mas ainda basicamente não codificada, qu e
carecia de uma terminologia religiosa e política precisa, poderia ter sido uma
fonte de mudanças significativas e com isso .uma am eaça ao status político
vulnerável da Igreja. Imprecisões na tradução teriam permitido a oponentes
p olíticos lançar dúvidas sobre a legalidade da comunidade confessional e
negar -lh e o direito de existir. No caso d o Reino da Hungria, isso significava
a p ossibilidade d e que leis que d ecretavam a liquidaçã o fisica dos adeptos da
Refo rma fossem aplicadas uma vez mais (Mrva, 1995).
A posterior aceitação do tcheco pel os eslovacos como a língua da litur­
gia, da Bíblia e da comunicação escrita não provocou nenhuma mudança na
noção da importância de se preservarem os textos confessionais básicos na
língua em que haviam sido concebidos e aceitos pelas autoridades do Estado.
Pelo contrário, essa ve rsão da Bíblia tomou-se obrigatória, especial� ente se
fosse usada como o argumento final e exclusivo em apoio da identidade dos
lut eranos nos primórdios da maciça recatolicização na Hungria (nas décadas
d e 1670 e ·1680) .6 Entretanto, nã o era apenas a política que influenciava a
possibilidade ou impossibilidade da tradução no final do século XVII e início
do século XVIII. A ortodoxia religiosa e o t radici onalismo também tinham
um papel na manut enção da situação existente.
De qualquer maneira, o uso da palavra impressa não foi um aspecto
principal da difusão da Reforma no Reino da Hungria. A ausência de pren­
sas de impressão ali até a segunda metade do século XVI era compensada
pela extensa importação de livros (Daniel, 1998), que incluíam não apenas
obras eruditas em latim, mas também livros em alemã o é tcheco, facilmente
inteligív eis no ambiente urbano : no primeiro caso, graças à coexistência d e
esl ovaco s e al emã es na mai oria das cidades; no segundo, g raças a o carát er
similar e à compreensibilidade do tcheco. Seu uso entre os eslovacos já estava
estab elecid o na Idade Média g raças ao uso de textos legais, por exe�plo. En­
tretanto, alguns termos legais mudavam de significado em comparação co m
6 Daniel Klesch (1679) disse ao laicado como usar a Bíblia em disputas com missionários
católicos. Os protestantes leigos deviam frisar que os luteranos não argüiam com base na
tradição, como os católicos, ou na razão, como os calvinistas. Embora as recomendações
de Klesch se referissem aos luteranos de fala alemã, foram aceitas de maneira geral.
65

Peter Burke e R. Po-chio Hsio (orgs.)
o original alemão, em resultado de diferenças nas atitudes ou simplesmente
da incompetência lingüística de alguns tradutores ou usuários desses textos.
Um exemplo é a tradução imprecisa do alemão para o tcheco "eslovaquizado"
de algumas partes e termos da lei de Magdeburgo, que era um modelo para
as cidades reais livres na Hungria. Sua terminologia não era muito clara para
usuários leigos (Rysánek, 1954, p.15-25).
Por outro lado, a língua tcheca já tinha sido codificada (foi uma das
primeiras línguas européias a serem padronizadas dessa maneira) e por isso
podia ser usada como veículo de traduções (Vesely, 2002). Sua posição no
período da Reforma é revelada pela recepção da tradução do Programa de
Witten berg e pelo uso de hinários tchecos, quer produzidos pelos utraquistas
(1522, 1531), ou pelos irmãos tchecos (1541), que permitiam a identificação
da posição confessional de cada sínodo da igreja.
· A transformação dos serviços da Igreja foi ·a primeira manifestação visível
da Reforma; definições mais claras das crenças só viriam mais tarde. A Bíblia
já estava acessível em tcheco antes da Reforma, por exemplo, a assim chamada
Bíblia de Veneza de 1506. Desse modo, os mais antigos textos relacionados
à crença religiosa produzidos em "vernáculo" (de fato na língua tcheca) no
Reino da Hungria só apareceram na segunda metade do século XVI e surgi­
ram da necessidade de uma definição clara das posições luteranas ortodoxas
nas controvérsias com o criptocalvinismo. O tcheco foi usado como meio de
comunicação porque os eslovacos entendiam-no com facilidade e, ao mesmo
tempo, já havia desenvolvido uma terminologia religiosa precisa.
Esse fato é extraordinariamente importante, já que somente pelo uso de
termos inequívocos era possível evitar ser suspeito da "heresia calvinista"
ou incorrer realmente nela. Essa hipótese é confirmada pelo fato de que a
disputa quanto à orientação teológica das comunidades urbanas do leste da
Eslováquia, expressa em obras polêmicas escritas em latim, acompanhou a
publicação do Pequeno catecismo, de Martinho Lutero, o primeiro livro publica­
do em tcheco "eslovaquizado" nessa região (Bardejov, 1581). Por meio desse
livr�� os ensinamentos puros "codificados" de Martinho Lutero se tomaram
o padrão doutrinal para os luteranos eslovacos étnicos do período. A acei­
tação geral da Fórmula e do Livro da Concórdia como a doutrina básica do
t ,.-��
L.f,'.:;·
luteranismo só ocorreu três décadas mais tarde, no Sínodo de Zilina (1610),
após m uitos anos de debates (Daniel, 1979).7
t �l�{
,, 's:,,, ram personalidades apropriadas entre eles para levar a efeito um projeto de
1-t;_� i
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7 Sobre o sínido em Zilina (Silleín), ver Kvacala, 1935, p.293-303.
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-
A !redução cultural nos primórdios da Europa Moderna
Por meio do catecismo, os fiéis que de outro modo não tinham contato
com a palavra impressa travaram pela primeira vez conhecimento com ex­
pressões teológicas básicas em uma língua facilmente compreensíveÍ (Zach,
2002). Entretanto, a publicação do catecismo foi apenas um primeiro passo
rumo ao fortalecimento da identidade confessional dos crentes (Crãciun et
al., 2002, p.1-30). O texto da Bíblia como ponto de partida para o ensino era
um importante meio para a formação da vida e da identidade da comunidade
confessional.
Várias traduções foram usadas para tomar a Bíblia acessível às comu­
nidades protestantes dos diferentes grupos étnicos no Reino da Hungria. A
tradução da Bíblia p_ara o alemão esteve disponível para os luteranos alemães
imediatamente após sua publicação. Isso se refletiu, por exemplo, na maior
freqüência de bíblias em bibliotecas municipais nos séculos XVI e XVII (Cicaj,
1996). No caso dos húngaros (magiares), que eram o grupo étnico dominante,
houve uma situação favorável para a rápida tradução da Bíblia em sua própria
língua. As necessidades culturais da elite social húngara já haviam estimu­
lado o desenvolvimento das belas-letras, de modo que já existia uma língua
altamente culta que podia ser usada na tradução da Bíblia para o húngaro
(Kósa, 1999, p.249-56).
Em cidades com uma população etnicamente heterogênea, o domínio de
várias línguas era natural, e por isso não surpreende que por muitos anos os
líderes teológicos dos luteranos eslovacos travassem debates sobre o crip­
tocalvinismo e o problema das imagens em latim e alemão (Daniel. 1995).
Considerando-se a urgência de resolver esses problemas teológicos para o
caráter da confissão como um todo, é natural que o latim tenha permanecido
o meio de comunicação para os intelectuais de origem eslovaca.
Porém, onde foi necessário usar a língua falada, eles não escolheram a
"rota húngara" do cultivo da língua falada local, o que exigiria tempo e perícia.
A língua culta do grupo étnico mais próximo, os tchecos, estava disponível.
Ela atendia perfeitamente ao papel da comunicação, e mesmo no século XV
já era tradição usar. o tcheco em alguns escritórios municipais e nas cortes
de alguns nobres (Skladaná, 2002).
Como os eruditos eslovacos étnicos formavam apenas um grupo muito
pequ�no e totalmente envolvido em resolver disputas religiosas, não surgi­
tradução que teria sido extremamente exigente. Dadas as necessidades da
·,. comunidade luterana eslovaca no Reino da Hungria, era mais conveniente
l usar a Bíblia de Kralice já disponível, publicada na Boêmia em 1579-1594. Por·-·
. . � . , ..
 Peter Burke e R. Poichia Hsia (orgs.)
muito tempo ela foi simplesmente importada como produto finalizado para o
território da Eslováquia de hoje. Embora houvesse sido preparada por teólo­
gos da União dos Irmãos (Unitas fratrum), favoráveis ao calvinismo, isso não
era um problema no período, quando os luteranos na Hungria ainda estavam
buscando um padrão doutrinal. O que se considerava importante era tomar
disponível para o público geral um texto compreensível das Escrituras.
A suprema autoridade teológica, o Sínodo de Zilina de 161O, confirmou a
validade da Bíblia de Kralice para os luteranos eslovacos, e com isso também
confirmou o uso da forma de tcheco encontrada nela como língua litúrgica.
Na época do sínodo, a Igreja estava preocupada sobretudo com a estabilização
da doutrina com base nas possibilidades proporcionadas pela primeira lei
sobre a igualdade das confissões na Hungria (1608). 8 Por essa razão, além
de aceitar a Bíblia de Kralice, o sínodo também adotou a resolução de que a
Fórmula e o Livro da Concórdia eram obrigatórios.
N o período seguinte, a situação política se desenvolveu de maneira cada
vez mais desfavorável para os luteranos. As possibilidades materiais da Igreja
Luterana, que declinaram com a gradual recatolicização das ricas famílias no­
bres e ex-luteranas, nãó permitiam o preparo de uma Bíblia na língua falada
local ou em uma forma teologicamente revisada. A posição do tcheco também
foi fortalecida pela grande onda de emigração de protestantes da Boêmia e da
Morávia para a Alta Hungria após a Batalha do Monte Branco e a adoção de leis
de recatolicização na parte austríaca e tcheca da monarquia Habsburgo (Mrva,
1999). Pregadores tchecos produz.iram edições populares de textos religio?os.
. por exemplo o hinário Cithara sanctorum [A cítara dos santos], dejuraj Trano­
vsky, de 1636. Eles foram rapidamente integrados à comunidade e se tomaram
patriotas no país que lhes h�via dado novos lares (Franková, 1993).
Essas circunstâncias sociopolíticas foram mais importantes do que o de­
senvolvimento real da língua falada dos luteranos eslovacos, que ocorreu de
modo independente. A despeito da tendência de incluir elementos de sua
língua eslovaca falada em textos "não bíblicos", como peças da Paixão e a
formulação de programas, essa tendência não se tornou dominante e não se
aplicou à publicação de t�XtoS bíblicos. Pelo contrário, a língua da Bíblia, a
assim chamada Biblictina, começou a invadir todos os textos impressos e ad­
quiriu o status de língua literária. Os hinos eram a mais importante categoria
da literatura. Na coletânea Cithara sanctorum, formavam um resumo de idéias
teológicas destinado ao público geral e mais barato que outros textos.
8 Sobre essa importance lei, ver Pecer, 1991.
68
A tradução cultural nos primórdios da Europa Moderna
Esse meio também preservou a identidade confessional e cultural do
povo, que estava privado de contato direto com pregadores em virtude da
recatolicização. Em muitos condados, eles tinham poucas oportunidades de
freqüentar uma igreja própria. Publicações não católicas eram drasticamente
limitadas e chegaram mais ou menos ao fim por volta de 1730. Dessa forma,
o hinário e o catecismo se tornaram as fontes exclusivas de conhecimento
dos ensinamentos da Igreja Luterana. Seu valor simbólico aumentou porque
eles eram os únicos recursos aprovados para a assim chamada prática privada
da religião. Onde quer que os fiéis luter3.1:os tivessem acesso limitado a igre­
jas e escolas, o canto comunal de hinos, usualmente sem auxílio impresso,
substituía as outras cerimônias.
Por essas razões não era somente a Bíblia que simbolizava a união e a in­
tegridade dos luteranos. A língua em que ela era impressa adquiriu o mesmo
valor "canônico". Todavia, também é necessário notar que à altura do século
XVII essa forma de linguagem já não era a língua viva e falada no ambiente
étnico tcheco.9 Vinha ocorrendo um desenvolvimento que confirmava a exis­
tência de dois grupos étnicos diferentes - os tchecos e os eslovacos.
Por meio da língua tcheca, os protestantes eslovacos dos séculos XVI e
XVII se af)ropriaram não apenas de uma consciência de comunidade com o
grupo étnico tcheco, mas tambérri de uma conexão teológica e confessio­
nal com o hussitismo ou a "Reforma Tcheca". Seus adeptos, na realidade
meros remanescentes de forças armadas que serviam como mercenárias a
magnatas locais, encontraram refúgio na Eslováquia no decorrer do século
XV e supostamente difundiram as idéias do hussitismo. A linha direta de
desenvolvimento da_ Reforma de J an Hus a Martinho Lutero era enfatizada.
Ao longo do século XVIII, em particular, essa idéia de desenvolvimento foi
·usada como um argumento teológico, confirmando o caráter "excepcional"
do luteranismo eslovaco.
A identificação com essa tradição espúria mas teologicamente impres­
sionante trouxe a seus portadores, que tinham uma posição subordinada
na estrutura da população do Reino da Hungria, a possibilidade 9e alcançar
aceitação e reconhecimento dentro do quadro da comunidade multiétnica da
igreja. Por outro lado, essa tradição e o auto-estereótipo baseado nela, o dos
luteranos eslovacos como preservadores da tradição da Reforma Tcheca, foi
um instnimei:ito apologético e uma fonte de orgulho na maturidade de toda
9 Sobre o des envolvimento especial do tcheco usado pelos eslovacos, ver Ôurovic, 1998,
2004.
69
 Peler Burke e R. Po-chio Hsio (orgs.)
a "nação eslava", que havia panicipado na formação da vida espiritual da
Europa. Essa ficção foi criada precisamente nesse período em meio a diversos
grupos étnicos eslavos.
O elemento confessional, que ainda desempenhava um papel substancial
na cultura, contribuiu para a ênfase de outras tradições históricas. Os pro­
testantes eslovacos claramente não se sentiam atraídos pela combinação das
tradições da Grande Morávia e de Santo Estêvão, sobre a qual se construíra
a aprêsentação da Hungria como o Reino de Maria (Regnum Marianum). A
tradição inventada da influência hussita sobre a Eslováquia, conectando os
eslovacos com um movimento espiritual ao qual o próprio Martinho Lutero
recorrera, era naturalmente mais aceitável para eles.
_ O fato de que a Grande Morávia não estava dire.tainente associada ao
destino da nação tcheca, na qual os protestantes eslovacos viam uma aliada
e um suporte naturais em seu desenvolvimento cultural e nacional, graças
a elos lingüísticos e culturais, sem dúvida desempenhou um papel signifi­
cativo nessa aceitação. A atividade de Cirilo e Metódio como missionários
cristãos entre os eslavos recebeu atenção apenas com a aceitação do conceito
do Eslavismo Barroco, que enfatizava as importantes contribuições de cada
grupo eslavo étnico para o desenvolvimento da cultura e da civilização. Sua
"adoção" no ambiente não católico só veio no início do século XVIII, quando
o respeito pelos dois santos já podia ser justificado de maneira "acadêmica".
A publicação de documentos dos Arquivos do Vaticano referentes à história
primitiva da região central européia começou no final do século XVII.
Ao adotar o tcheco na forma bíblica como seu vernáculo e seguir cultivan­
do-o, com sua gramática fixada e impressa (por Tobias Masník ou Masnício,
por exemplo, em 1696), os luteranos eslovacos simbolicamente assumiram
a missão de preservar a consciência confessional dos protestantes tchecos,
que sobreviveu apenas no exílio ou na forma de pequenas comunidades de
protestantes secretos e perseguidos.
Todavia, as elites intelectuáis do luteranismo eslovaco (pastores e pro­
fessores) foram forçadas a deixar sua terra natal em 1674, encontrando seu
primeiro refúgio em comunidades eclesiásticas tchecas em várias partes da
Alemanha. Embora apenas uns poucos entre eles conseguissem obter o cargo
de pastor, muitos exilados da Hungria atuavam como pregadores convidados
ou publicavam sennões e literatura religiosa.10 Esses textos apareciam no
tcheco bíblico tradicional, e, graças a isso, a literatura religiosa das penas de
10 Uma visão geral em Õui-ovic, 1940, p.80-6.
70
A .tradução cultural nos primórdios do Europo Moderno
vários autores luteranos eslovacos também era aceitável no ambiente dos
exilados utraquistas e até mesmo irmãos tchecos, e ajudou a manter sua
identidade confessional.·
O uso consistente do tcheco bíblico em textos teológicos não bíblicos,
muitas vezes combinado com alguns elementos do eslovaco falado, foi for­
talecido após� estabelecimento do Instituto Bíblico em Halle. O Instituto
publicava sistematicamente obras destinadas a uma comunidade mais ampla
do que apenas os luteranos esiovacos (Rõsei, 1961). A Bíblia publicada para
os eslovacos em 1722 foi produzida em sintonia com o tcheco bíblico grama­
ticalmente codificado. Assim, um senso de comunidade com seus correligio­
nários tchecos e de responsabilidade por seu destino foi criado na consciência
dos eslovacos luteranos. Posteriormente, após a promulgação da Patente de
Tolerância (1781), esse- senso de comunidade foi expresso em uma �tensa
� atividade mjssionária (Kowalská, 20M, p.145-7).
A noção da língua como um símbolo de crença também foi reforçada no
decorrer da recatolicização. A imprensa universitária em Trnava (Tyrnau,
Nagyszombat), que se achava nas mãos dos jesuítas, estava especialmente
· preocupada com a disseminação do eslovaco nativo e falado. Os textos dos
livros e os sermões manuscritos remanescentes de franciscanos ou outros
pregadores revelam um uso consciente da língua como um sinal que distin­
guia os_católicos d?s "hereges".
Entretanto, a consciência étnica dos eslovacos católicos não estava as­
sociada a um meio inequívoco de declarar sua filiação confessional - a uma
tradução eslovaca da Bíblia. Os educados, que tinham o direito (de acordo
com os decretos do Concílio de Trento) de pedir permissão para ler a Bíblia,
se satisfaziam com o texto latino da Vulgata e não precisavam de tradução.
Não houve, portanto, nenhuma tentativa de traduzir a Bíblia inteira para o
eslovaco até a primeira metade do século XVlll, e mesmo então ela ficou
sem publicação.11
A literatura religiosa era impressa em grandes tiragens.12 Mesmo assim,
a ausência dos livros que tendiam a criar normas, ou seja, um hinário am-
11 Não está claro por que a primeira tradução da Bíblia para o eslovaco falado culto (a assim
· chamada Bíblia dos monges de Camaldul, preparada para impressão em 1758) teve sua
publicação proibida. Os arquivos da Igreja na Eslováquia ainda não estão bem organiz.ados
e abertos, e essá questão ainda não foi respondida por especialistas em história eclesiástica.·
A Bíblia fpi publicada pela primeira vez por Rothe, Scholz e Dorul' a, 2002.
12 Sobre os produtos da imprensa universitária em Tmava (lyrnau, Nagyszombat), ver
. Caplovic, 1972-1984; Mizianik, 1971.
71
 � : : · ·
fl·
••:-,··1
Pe\er Burke e R. Po-éhio �sio (orgs.)
!'•"­ !.
plamente aceito e especialmente de uma tradução católica da Bíblia para a
língua falada, sem dúvida influenciou a formação do tipo de língua usada no
ambiente dos intelectuais católicos. Seu uso da língua era mais variável do
••
que o dos intelectuais protestantes, e s6 gradualmente se tornou mais fixo.
Entretanto, ao ficar mais distante do tcheco, a língua' fortaleceu a cons­
ciência da distinção lingüística e étnica dos eslovacos e facilitou sua separação
••
do quadro amplo do eslavismo. A estabilização do eslovaco foi sustentada
pela publicação de vários textos legais ou políticos, que eram lançados por
instituições governamentais mais e mais ativas. Os livros-texto introduzidos
nas escolas durante o primeiro período das reformas escolares na Hungria
••
(1777-1790) também ajudaram a fixar a forma da língua (Keipert, 1993).
Todavia, a interligação entre o tipo de língua usada por um indivíduo e
sua confissão pode ser observada até mesmo ao longo da década de 1790,
no contexto dos livros-texto publicados e usados pelas escolas elementares
estatais, especialmente o Livro de Leitura (Lesebuch), que incluía os princípios
:_·
da ética e da religião cristã, bem como instruções sobre o comportamento
das crianças e especialmente dos coroinhas na igreja durante as cerimônias
religiosas. Um dos revisores desses livros-texto recomendou o uso de uma
�- forma de linguagem que não estimulasse dúvidas sobre a religião católica ao
�\
utilizar termos (tchecos) curiosos. Por outro lado, expressões acuradas do
vernáculo podiam trazer os "hereges" de volta à Igreja Católica.13
A formação da consciência histórica em meio aos católicos foi mais com­
plicada. Ela não contou com nenhuma tradição herdada ou adotada. As lendas
e crônicas que primeiro passaram para o conhecimento histórico no Reino
da Hungria não proporcionavam estímulo suficiente. Tinham sido escritas
por eruditos medievais do círculo dos reis da Casa de Arpád, e enfatizavam a
tradição da tomada de terras por meio da guerra. A mais importante crônica
-
medieval falava diretamente da desonra dos primeiros habitantes eslavos
nativos - os ancestrais dos eslovacos.
Até o início do século XVIll, os membros do Estado político húngaro
não se sentiam comprometidos com uma identidade étnica. A identificação
lingüística não desempenhava um papel muito importante. No século XVIII,
aqueles que aceitavam a importância da filiação étnica, bem como o conceito
de uma nação ou Estado político, descobriram a importância do Império da
13 Comentário do cônego Johann Ludwig Schwanz, de Niira (Nyitra), nos Arquivos Estatais
Húngaros em Budapeste, C 69, 1780, Scholae Nationales, Miscellanea, fons 3, pos. 54,
fol.97.
72
A \roduçõo cultural nos primórdios do Europa Moderno
Grande Morávia. Eles até combinaram o conceito do caráter estatal da Grande
Morávia com o da Hungria. A localização definitiva do "primeiro Estado dos
eslov.acos" no território da Panônia e da Alta Hungria, como também a ên­
fase na contribuição dos eslovacos para o processo civilizador nos primeiros
estágios do reino húngaro, proporcionaram as bases para argumentos sobre
a igualdade de todo o grupo étnico dentro da Hungria. 14
Os luteranos também concordavam com essa idéia. Eles aceitavam o Es­
tado da Grande Morávia como o ponto de partida da história dos eslovacos.
Entretanto, também enfatizavam o vínculo com as terras tchecas (especial­
mente com a Morávia) e a preservação da cultura eslava (ou grã-morávia)
na Boêmia.
Uma vez que os luteranos foram privados da possibilidade de declarar sua
filiação confessional pela participação ativa nos serviços da Igreja na maior
parte dos lugares na Hungria, os símbolos de sua identidade adquiriram maior
importância. A identificação dos luteranos eslovacos com uma língua que era de
fato estrangeira ou pelo menos compartilhada com um grupo étnico diferente,
e que funcionava em vários níveis de comunicação em paralelo com a língua
falada local. era tão forte que a assimilação maciça de migrantes eslovacos pelo
ambiente ao seu redor não ocorreu em regiões étnica e confessionalmente
mistas, como as Terras Baixas ao sul do Reino da Hungria.
Por outro lado, os católicos não precisavam se mostrar como nada mais
do que membros da Igreja dominante. Esse ato em si lhes assegurava a plena
participação na vida pública, por exemplo, os direitos de um burguês urbano,
a filiação a guildas ou o direito de ocupar cargos públicos. Manifestar sua
identidade em um programa ou em textos não tinha grande importância para
eles, e a forma da língua em tais textos era ainda menos importante.
_
As relações interconfessionais foram, portan10, um fator determinante
no processo de integração do grupo étnico eslovaco em seu desenvolvimento
como uma nação moderna. Decerto não foi por acidente que a codificação
de uma língua escrita comum só tenha ocorrido após um período de estabi­
lização das relações interconfessionais no decorrer da primeira metade do
século XIX. Todavia, a tradução da Bíblia para o tcheco arcaico não deixou de
ter um valor simbólico: ela continuou a ser usada na comunidade luterana
eslovaca até meados do século XX.
14 Esse conceito foi formulado como hipótese cientifica somente no século XVlll por Juraj
Papánek na Historia gentis Slavae: de regno, regibusque Slavorum [História dos povos eslavos:
sobre o reino e os reis dos eslavos] (Pécs, 1780). Ver Tibensky, 1992.
73
 CAPÍTULO 4
Traduções para o latim na Europa Moderna
Peter Burke 1

É bem sabido que o latim, tanto falado como escrito, era empregado re­
gularmente na Europa Moderna não apenas na Igreja Católica, mas também
no mundo da erudição, da diplomacia, do direito e alhures (Burke, 2004,
p.43-60). A importância de traduções modernas do latim para as línguas
vernáculas da Europa também já foi reconhecida, assim como o foi a impor:
tância das traduções do grego antigo para o latim.
Por outro lado, as traduções do vernáculo para o latim têm sido rela­
tivamente negligenciadas. 2 A razão para essa negligência talvez seja que o
fenômeno parece ilógico. Afinal de contas, por que alguém iria querer fazer
traduções na direção "errada", de uma língua moderna para uma antiga? Até
.._ onde chegaram a ser estudados, esses textos, em particular as traduções de
f · clássicos literários como Dante, Ariosto, Tasso, Cervantes, Camões ou Milton,
' foram tratados como curiosidades, simples exercícios de erudição.
No entanto, descobri não menos de 1.140 traduções publicadas de textos
substanciais de autores conhecidos entre a invenção da imprensa e o ano de

3:.� . -: · Ao longo desta investigação, iniciada em 1991, recebi estímulo e ajuda de muitas pesS0'.15,
1

;� '·· :_- mas agradecimentos especiais são devidos a Rino Avesani, Dietrich Brieserneister, Zweeder
f,·-\· von Santen e Thomas Worcester. _
;.�-- Os raros estudos gerais incluem. Grant, 1954, e Binns, 1990. Estudos mais especializados
"{::-�serão citados adiante, quando apropriado.

[ ._
 Peter Burke e R. Po-chia Hsia (orgs.)
especialmente de livros publi­
1799, e é bem possível haver muitas outras,
dispon íveis em bibliotecas no Ocidente. Um
cados na Europa central e não
de todas as publicações européias do
dia; quando houver um catálogo on-line
período moderno, essas omisspes virão à luz.
o número dessas traduções testemunha não apenas o conheci
mento ge­
mas também o fato de que muitas pessoas
neralizado do latim nessa época,
os vernácu los estrange iros
instruídas fora das regiões fronteiriças achavam
o que estava disponível
dificeis, senão impossíveis de ler. Em comparação com
, do espanhol e
para O ensino do latim, os recursos para o ensino do italiano
dades eram extrema mente limita­
do francês nas escolas, colégios e universi
. O inglês,
dos, e praticamente inexistentes para o ensino de outras línguas
2004,
por exemplo, foi raramente ensinado antes do século XVIll (Burke,
113-p.7).
A maioria dos textos traduzidos era o que os bibliotecários de hoje cha­
mam de "não-ficção", fazendo uma grande contribuição para a difusão de
informações nessa época. Um número tão grande de textos traduzidos suge­
re a importância de fazermos as perguntas a seguir, conforme o modelo do
Capítulo 1. O que foi traduzido para o latim nesse período? De que línguas?
Por quem, para quem, onde e quando? Quais eram os principais problemas
lingüísticos que os tradutores enfrentavam?
. Dada a falta de uma bibliografia das traduções para o latim, ou na verdade
de um catálogo completo das publicações em qualquer país europeu nesse
período (à part� Grã-Bretanha, Bélgica e Holanda), quaisquer generalizações
oferecidas aqui devem ser tidas como extremamente provisórias, e as cifras
citadas como não mais do que indicações da importância relativa. 3 Mesmo
assim, a cronologia e a geografia das traduções são extremamente notáveis
e sugerem que as conclusões principais deste capítulo sobreviverão à desco­
berta de mais material.
3 As principais fontes usadas para esta lista são os catálogos da British Library, de Londres;
da Bibliotheque Nationale, de Paris (hoje Bibliotheque de France); da Bodleian, em Oxford;
e da University Library, em Cambridge. Sempre que possível consultei as edições listadas.
No caso de livros espanhóis, também usei Palau y Dulcet, 1948-77, e, para livros holandeses
e alemães, os novos catálogos on-line, o Short Title Catalogue Netherlands e o www.vd.l 7de.
A tradução cultural nos primórdios do Europa Moderna
: 1
Os principais critérios para a inclusão na lista das 1. 140 traduções são � !
os seguintes:
1. O texto precisa ter um autor conhecido. Isso significa omitir discussões de
traduções da Bíblia, desde a versão de Sébastien Castellion (criticada na época
como rebuscada demais) até a de Arias Montano (criticada como literal demais).
É uma pena excluir obras como as traduções de Pathelin [A Farsa do Advogado
Pathelin), Lazarillo de Tormes, Reineke Fuchs [Reineke (ou Renard), a raposa]
e Till Eulenspiegel, ou de Eikon basilike [O retrato real], ou dos primeiros anos
das Transactions of the Royal Society of London [Transações da Real Sociedade de
Londres], ou da decisão do Parlamento de Toulouse no caso de Martin Guerre
(publicada em latim por Sureu em 1576), ou dos dois relatos anônimos da morte
do jesuíta Edmund Campion. Entretanto, a consistência exigiria a inclusão de
uma massa de escritos ocasionais (descrições de chegadas reais, coroações,
missões e julgamentos, textos de tratados, liturgias, instruções a oficiais e assim
por diante), e é ainda mais dificil fazer uma lista completa de tais textos do que
de obras de autores conhecidos.
2. O texto· deve ser uma tradução impressa de um texto previamente publicado
no vernáculo. Portanto, as cinco traduções manuscritas de Os lusíadas produzi­
das nesse período são omitidas. De maneira similar, excluem-se as traduções
manuscritas de poemas de Dante, Petrarca, Jorge Manrique, Spenser e Tasso,
do Alcorão (por Widmanstetter), de uma peça de Scipione Maffei, das Viagens,
de Mandeville, e de tratados como o de Filarete sobre arquitetura ou o Contrat
social, de Rousseau.4 Textos publicados primeiro em latim, que podem ter sido
traduções de um manuscrito no vernáculo, também são omitidos (por exem­
plo De Germanorum origine [Da origem dos germanos], de Huldreich Múcio,
De ins"titutione harmonica [Da instituição harmônica], de Pietro Aron, History of
Oxford [História de Oxford], de Anthony Wood, e Historia critica philosophiae
[História crítica da filosofia], de Johann Brucker).
Por outro lado, os raros casos de livros publicados no mesmo ano em latim e
no vernáculo (como o tratado de Scalvo sobre o rosário) estão incluídos, bem
como o caso incomum de uma tradução em latim da tradução holandesa de
um texto originalmente.em latim (feita por Scribanius). Diferentes traduções
da mesma obra (incluindo as quatro traduções da Semaine [Semana], de Du
Bartas, e as oito traduções dos quartetos morais de Pibrac) são contadas se­
paradamente.
3. Definir um "vernáculo" não é tão fácil como pode parecer. O número substan­
cial de traduções do grego antigo para o latim foi omitido, mas as traduções
muito mais ·raras do árabe, do grego bizantino, do chinês, do hebraico e do
4 Sobre Mandeville, Vogels, 1885.

76 77
 Peter Burke e R. Po-chia Hsia (orgs.)
persa foram incluídas (a vida de Cristo em persa, de Jerónimo Xavier, por
exemplo, ou a história do declínio de Bizâncio por Laonikos Chalkokondyles),
embora elas tenham sido feitas a panir de formas "clássicas" de linguagem
escrita.
4. É dificil ser específico quanto à extensão. Poemas muito breves e fragmen­
tos como a tradução por Sainte-Manhe de pane da Franciade [Francíada], de
Ronsard, não estão incluídos. Por outro lado, as três versões latinas da Elegy
tEiegia], de Gray, figuram na lista, junto com odes de Boileau e Dryden.
5. É ainda mais difícil ser específico quanto ao que exatamente constitui uma
"tradução" (conforme anteriormente, p.3 7). Os 1.140 itens incluem seleções
(entre elas os primeiros livros do Cortegiano [Cortesão], de Castiglione, e das
Istorie Fiorentine [História de Florença], de Maquiavel, e cinco histórias do
Decamerone [Dec<!ffierão]); abreviações (como a versão por Sleidan das Chro­
niques [Crônicas], de Froissart, a tradução anônima das Variatio·ns [Variações].
de Bossuet, e as obras históricas de Maimbourg); e paráfrases ou adaptações
(incluindo versões livres de Aretino, Della Porta e Milton).
6. Nem sempre está claro quando uma obra foi publicada pela primeira vez; se
foi traduzida do vernáculo para o latim, ou vice-versa; ou mesmo se certos
textos latinos realmente existem ou não. Entre os "fantasmas" (em outras
palavras, obras mencionadas na literatura secundária que até o momento
não consegui localizar nos catálogos das bibliotecas, embora possam, sim,
existir em algum lugar), estão versões latinas .das Cartas, de Aretino, da His­
toria Caesarea [História de César}, de Mexia, do Pastor fido [Pastor fiel], de
Guarini, da história romanesca pastoral L:Astrée, de d'Urfé, e de Dom Quixote
(do qual uma tradução em latim macarrônico feita por lgnacio Calvo foi pu­
blicada em 1905).
li
Para analisar a cronologia das traduções, é conveniente dividir o período
moderno em seções de cinqüenta anos. A distribuição dos textos parece ter
sido extremamente desigual. Apenas cinco textos foram publicados antes de
1500. O número sobe para 61 no período entre 1500 e 1549, aumentando
para 220 textos de 1550 a 1599. Continua a subir até um pico de 387 textos
entre 1600 e 1649 - em outras palavras mais de sete por ano, em média;
declina para 249 em 1650-1699, caindo para 157 textos em 1700-1749, e 50
em 1750-1799 (em um total de 1.127, sendo impossível datar precisamente
os textos restantes), Os números absolutos não devem ser levados muito a
78
A tradução cultural nos primórdios da Europa Moderna
sério, no sentido de que são necessariamente incompletos, mas a tendência
parece bastante clara.
Também cumpre notar que uma diferença considerável nos números de
1700-1749 é causada por um único projeto empreendido na Repúblíca Ho­
landesa, planejado origincllmente pelo erudito alemão Johann Georg Grévio,
professor em Utrecht, e levado a cabo por seu ex-aluno Peter Burmann, o
Velho, professor em Leiden. Graças a essa iniciativa, mais de trinta estudos
antiquários foram traduzidos do italiano e publicados em Leiden na década de
1720 como parte de uma série chamada "tesouro das antigüidades da Itália"
(Thesaurus an tiquitatum ltaliae).
As traduções do vernáculo para o .latim obviamente não desapareceram
depois de 1800. Hiawatha, Robinson Crusoé e obras de Goethe e Schiller, para
não falar de livros infantis como Max und Moritz Ouca e Chico], Pinóquio e O
ursinho Pooh, foram traduzidos desde essa época. A tradição ainda não mor­
reu, como testemunha a versão de Peter Needham para Harry Potter, Harrius
Potter et ;,hilosophi lapis [Harry Potter e a pedra filosofal] (1997). Entretanto,
, o período crucial foi entre 1550 e 1700.
'
-:J��·.:
.
Só podemos especular quanto às razões para essa distribuição ao lon-
. :?-·-.
,::.· �..... ' go do tempo. Duas explicações podem ser oferecidas, e, o que é bastante
curioso, são quase exatamente o inverso uma da outra. Em primeiro lugar,
a falta de traduções no início do século XVI pode ser explicada pela força do
preconceito de muitos eruditos contra as línguas vernáculas. Por outro lado,
o lento declínio das traduções a partir do final do século XVII corresponde
ao uso declinante do latim.
A cronologia dos textos originais também merece menção. Em vários
casos datam da Idade Média, enquanto alguns textos do século XVI não
foram traduzidos para o latim por cem anos ou mais. Na maioria dos ca­
sos, porém, o intervalo de tempo entre a publicação original do texto e a
publicação de sua tradução em latim era relativamente curto, de apenas um
ano no caso da Historia con cilii tridentini [História do Concílio de Trento], de
Paolo Sarpi, por exemplo, ou das Litterae provinciales [Cartas provinciais], de
Blaise Pascal.
Um terceiro ponto diz respeito aos vernáculos de que os textos foram
traduzidos para o latim, na ordem de sua importância relativa. O italiano (com
321 textos) e o francês (276) estavam à frente de todos os concorrentes, com.
o italiano q_ominando a parte inicial de nosso período; e o francês, á parte
seguinte (51 traduções do francês _foram publicadas entre 1650 e 1699, em
L �omparação com 42 do italiano); Em �eguida, vinham o inglês (159) e o espa­
�-
 Peler Burke e R. Po-chia _l'isia (orgs.} A tradução cultural nos primórdios do Europa Moderno

nhol (133).5 Outras línguas ficavam muito atrás: alemão (77, dominadas por senta. Os falantes de holandês e flamengo, nem sempre fáceis de identificar,
Lutero), holandês, português, árabe, persa, chinês, hebraico, polonês, catalão, contribuem com no mínimo 48, número alto dado o tamanho relativamente
sueco, grego bizantino, tcheco, dinamarquês, croata e turco (se traduções peqµeno dessa população.
· de obras anônimas fossem adicionadas, a lista também incluiria o etíope e Por outro lado, os italianos contribuem com apenas 46 tradutores, entre
0 islandês). Também devemos notar que - como não era infreqüente nesse os quais se devem notar protestantes como Celio Secundo Curione, Elio
período - várias traduções não foram feitas a partir da língua original. Diodati, Scipio G.entile, Francesco Negri, Silvestro Teglio e Giovanni Niccolà
Stoppani, todos exilados e mediadores entre suas duas culturas. Gentile vivia
na Alemanha, enquanto Curioni, Negri, Stoppani e Teglio eram todos refu­
giados na Suíça. Entre os textos seculares que traduziram estavam obras de
11,1
Maquiavel, Guicciardini e Tasso.7
as ou pseu­ Os espanhóis e os portugueses juntos contribuem com apenas dezessete
Por quem as traduções eram feitas? Umas poucas são anônim
exemp lo, ou "Philopo­ ou dezoito tradutores (incluindo os famosos humanistas Antonio Nebrija e
dônimas - "Wendrock", urh tradutor de Pascal, por
or de Huarte -, ou Benito Arias Montano), os poloneses com sete, os tchecos com quatro, os
nus", tradutor de Bodin, ou "Aeschacius Major", tradut
iu Addison, húngaros com três e os eslovenos, finlandeses e suecos com um cada. Deve­
vêm assinadas com iniciais misteriosas, como o T. G. que traduz
, o]. W. que traduz iu Boyle ou o P. I. L. M. se acrescentar que britânicos, franceses e italianos quase sempre traduziam
0 T. D. M. que traduziu Boileau
obras de suas próprias línguas, deixando aos alemães e neerlandeses traduzir
que traduziu Naudé.
vista socioló- os textos espanhóis e também muitos dos italianos.
Todavia, 557 tradutores foram identificados. Do ponto de
como não surpre ende, pelo clero,
gico, encontramos um grupo dominado,
s, que contrib uíram
especialmente o clero católico e acima de tudo os jesuíta
s protestantes, IV
com mais de oitenta traduções. Em seguida, vinham pastore
s. Os poucos
professores (em escolas e universidades), escritores e médico
p.20) incluía m Egídio Albertino Para quem as traduções eram feitas? Obviamente para a minoria de euro­
tradutores semiprofissionais (anteriormente,
André Escoro peus capaz de ler latim. O uso do latim assegurava uma distribuição geográfica
(um holandês que vivia em Munique), Caspar Barth, Caspar Ens,
alemão Kerbekius, ampla, ao custo de atrair uma minoria cultural. Esse custo era às vezes con­
e Adam Schirmbeck. Outros tradutores prolíficos foram o
6

professor de Teologia em Mogúncia, e os neerlandeses Anton Dulcken, Sigebert siderado aceitável: as autoridades da Igreja Católica permitirám que o livro
_
Martin ez Waucquier, que de Bodin sobre demônios aparecesse em latim, mas vetaram uma propost�
Havcrcamp, Michael Isselt, Teodoro Petreio e Mateo
lburg. Havercamp de tradução para o italiano (Tippelskirch, 2003, p.341).
vinha (ao contrário do.que seu nome talvez sugira) de Midde
Entretanto, as traduções para ô latim parecem ter sido feitas para uma
traduziu não menos de dezoito textos para o projeto do Thesaur
us antiquitatum
especia lizou em obras devocionais. minoria dentro da minoria dos latinófonos. Uma vez mais, uma análise geo­
já mencionado, e�quanto Waucquier se
uma sociológica. gráfica é reveladora. Uma maneira de abordar o problema do público é exa­
Uma análise geográfica oferece mais surpresas do que
Os falantes de alemão contribuem com no mínimo 164 tradutores conhe­ minar o local da publicação original das traduções, 121 cidades ao todo, de
de Altdorf a Zurique, das quais 120 ficavam na Europa (a tradução de ·uma obra
cidos. Os falantes de francês (incluindo habitantes dos Países Baixos,
enquan to os falantes de um missionário jesuíta foi publicada em Macau).
Luxemburgo e da Suíça francesa) contribuem com cem,
de inglês (incluindo irlandeses, escoceses e galeses) contribuem com ses- Houve 496 textos impressos pela primeira vez no mundo germanófono
(incluindo Basiléia, Danzig, Estrasburgo e Viena); 171 nos Países Baixos, nor­
te e sul; 112 no·mundo francófono (incluindo Genebra); 74 na Grã-Bretanha;
iscer, 1978.
5 Sobre o francês, Briesemeister, 1985; sobre o espanhol, Brieseme
1990; sobre
6 Sobre Albertino, Gemert, 1979; sobre Barth, Bataillon, 1957, e Briesemeister,
7 Sobre Negri, Zonta, 1916; cf. Kõmer, 1988.
Ens, Fitzmaurice-Kelly, 1906.

80 81
 Peter Burke e R. Po-chio Hsic (orgs.}
apenas 56 na Itália, apesar da importância de Veneza como centro de impres­
são; e meros nove na Espanha e em Portugal. O papel de cidades paniculares
talvez mereça menção. As cinco líderes são Colônia (115 textos), Leiden
(68), Londres (54), Amsterdã (52) e Antuérp ia (45). Quatro dessas cidades
são centros de publicação bem conhecidos (o total de Leiden foi aumentado
em 31 itens pelo empreendimento de Grévio anteriormente mencionado),
enquanto o caso especial de Colônia será discutido a seguir.
Ein suma, as evidências sugerem que a principal demanda de traduções
para o latim proveio da Europa setentrional (incluindo a Polônia), e mais
especialmente do mundo germanófono. O latim era talvez especialmente útil
em "popularizar" - se é que se pode usar tal palavra neste contexto - livros
escritos originalmente em línguas românicas, especialme�te obras devocio­
nais (Briesemeister, 1983). Sua imponância para a recepção da cultura inglesa
na Alemanha na segunda metade do século XVII também já foi apontada ·-�--.
(Fabian, 1992, p.181).
·;·-:_·
V com o que se tem chamado de "invasão místican da França pela Espanha no
Que tipos de livro eram traduzidos? Para responder a esta pergunta é
tentador usar as categorias dos bibliotecários dos séculos XVI e XVII (Teolo­
gia, Direito Canônico, Direito Civil, Filosofia Moral, Filosofia Natural etc.).
Entretanto, é provavelmente mais útil usar categorias modernas. As seis
maiores categorias são Religião, Ciência, ficção, História, Política e viagens,
· nessa ordem.
Em primeiro lugar, por uma diferença muito grande, vinha a Religião,
com 422 títulos, incluindo obras de Teologia, polêmica, devoção, profecias e
sermões (pelo menos 24 itens, de autores como Andrewes, Bullinger, Calvino,
Camus, Coton, Gerson, Luís de Granada, Panigarola, Richeome, Savonarola,
Segneri, Skarga e V ieira). O total de obras religiosas seria ainda maior (470)
se fossem incluídas aqui a história eclesiástica (15 textos, incluindo obras de
Banoli, Bossuet, Burnet, Florimond de Raemond, Maimbourg, Sarpi e Sforza
Pallaviàno) e as vidas de santos e outros líderes religiosos (33 textos, incluin­
do as vidas de Cristo, Lutero, Calvino, Inácio de Loyola, Francisco Xavier e
Teresa d'Ávila). Esses textos serão considerados a seguir como História.
Dos 422 textos religiosos, seis são judeus, um (Feofan) é onodoxo e 101,
ou menos de um quano, são protestantes, incluindo oito obras de Maninho
Lutero, quatro de João Calvino e seis do puritano inglês William;Perkins.
82
A tradução cultural nos primórdios do Europa Moderno
A tradução de teólogos anglicanos por alemães merece nota como evidência
do contato e da simpatia entre diferentes igrejas protestantes. Não obstante,
a fragmentação dos protestantes entre luteranos, calvinistas, zwinglianos
e assim por diante, junto com sua ênfase no vernáculo, deve ser suficiente
para explicar por que ficaram tão atrás dos católicos. Quanto a estes, os 314
textos incluem nada menos que cinco obras dedicadas à polêmica questão
da comunhão freqüente. Porém, obras devocionais, e não obras de polêmica,
respondem pelo grosso das traduções, incluindo o Combattimento Spirituale
[Combates espirituais], de Lorenzo Scupoli, que foi traduzido duas vezes, e
a Introduction à la vie dévote [Introdução à vida devota], de São Francisco de .
Sales (cf. o capítulo de Eire, adiante).
Escritores devotos espanhóis em particular eram fluentes em latim, in--
cluindo Pedro de Alcántara, Alfonso Rodriguez, Santa Teresa d'Ávila, San Juan
de la Cruz Ooão da Cruz), Juan de Jesús, Luís de la Puente e acima de tudo
Luís de Granada (com onze textos diferentes). A tradução latina desses textos
devocionais é um sinal, entre outros, da hegemonia cultural que a Espanha
exercia sobre grande parte da Europa por volta do ano 1600. Ela coincide
século XVII - em outras palavras, a tradução de escritores devotos espanhóis
para o francês (Bremond, 1916-1933).
Esses autores eram lidos fora da Espanha em traduções para o latim em
sua maior parte, produzidas e publicadas no mundo germanófono, em Mo­
gúncia, por exemplo (22 textos), Munique (24) e especialmente em Colônia
(104), onde certos editores, como Kinck, Mylius e Crithius, parecem ter se
especializado em obras de devoção. Elas se destinavam sem dúvida a leitores
na Europa central e leste-central em panicular (a versão de 1626-1627 dos
Opera [Obras], de Santa Teresa, foi dedicada pelo editor a um nobre polo­
nês, Stanislas Lubomirski, enquanto Bellarmino foi traduzido pelo príncipe
Wladislaw, ou Ladislau). Colônia era notória como falso local de publicação
nesse período, mas apenas uma das traduções latinas usando esse nome pare­
ce forjada, a tradução por Jouvancy de Cleandre et Eudoxus [Limpeza e êxodo],
de Daniel, " typis Petri Maneau" ["pela prensa de Perrus Marteau"].
Exceções interessantes à regra de católicos traduzindo católicos são a
tradução de Francisco Xavier pelo professor holandês Louis de Dieu e a de
Miguel de Molinos pelo destacado pietista August Herrnann Francke, publi­
cado na Halle protestante.
Em segu ndo lugar, muito atrás da Religião, encontramos obras de História:
152 ao todo, incluindo 21 de história eclesiástica. 33 biografias de líderes reli-
83
 Peter Burke e R. Po-çt,io _tlsio (orgs.)
gioscis,cinco biografias de líderes políticos e militares (duas de Filipe ll,junto
com Castruccio Castracani,Wallenstein e o duque de Newcastle) e 56 tratados
_ antiquários (31 deles do projeto de Grévio),incluindo o estudei do exército
romano por Guillaume du Choul e o estudo das moedas por Charles Patin.
As obras traduzidas também incluem as mais famosas histórias italianas
em vernáculo do período - Maquiavel, Guicciardini, Sarpi e Davila (mui­
to embora Davila tenha tido de esperar mais de um século para achar um
tradutor). Obras de italianos relativamente menores, como Pietro Bizzarri,
Pandolfo Collenuccio, Gianpietro Contarini, Pompeo Giustinian, Galeazzo
Gualdo Priorato e Giovanni Tommaso Minadoi também foram traduzidas,
um sinal do prestígio do modelo italiano de escrita histórica desde o Renas­
cimento até o Barroco.
Muito menos textos foram traduzidos do francês, notavelmente as Chro­
niques [Crônicas],de Froissart, e as memórias de Philippe de Commynes,
ambas traduzidas por iniciativa do humanista protestante Johann Sleidan,
ele próprio um historiador de não pouca monta.8 Commynes foi na verdade a
obra que melhor vendeu em latim (com duas traduções e no mínimo quinze
edições), como fizera em outras línguas (adiante, p.148). Textos ibéricos
também são poucos - Correa, Herrera, Mendoza, Pulgar,Sandoval - e textos
ingleses ainda menos: há apenas Henry VII, de Francis Bacon, e a história da
Reforma na Inglaterra pelo clérigo escocês Gilbert Burnet, traduzida para o
latim por um alemão em uma época em que o conhecimento do inglês estava
apenas começando a se difundir, e publicada em Genebra para assim atingir
um público protestante internacional.
Em terceiro lugar, a Filosofia Natural (da Matemática à Medicina, in­
cluindo a magia), com 13� itens (cf. Pantin, a seguir,p.185) '. A Revolução
Científica fôi um movimento internacional que chegou em uma época em
que os eruditos estavam começando a abandonar a linguagem tradicional da
República das Letras. O número de traduções aumentou durante o período
moderno, conforme um número crescente de filósofos naturais decidiu es­
crever em vernáculo.
Paracelso, que insistia em escrever e até mesmo em dar palestras uni­
versitárias em alemão, foi um pioneiro nesse sentido,e - já que o alemão
não era uma língua que muitos estrangeiros conheciam - deveu uma boa
parte de sua reputação internacional às várias traduções de sua obra para o
latim. Galileu começou escrevendo em latim,por exemplo,o Sidereus nuncius
8 Sobre Sleidan, Vekene, 1996.
B4
A tradução cultural nos primórdios do Europo Moderno _/
(Núncio estelar), mas mudou para o italiano para ampliar seu público do­
méstico, provocando protesto de um de seus amigos alemães, Mark Welsaer.
Foi necessário que Bemegger e Diodati o traduzissem para o latim antes que
suas idéias pudessem continuar circulando fora da Itália. Ao fim do século,
Newton - que leu Galileu em latim - tomou uma decisão similar,mudando
de Principia [Princípios] em latim para Optics [Óptica] em inglês, traduzida
por seu discípulo Samuel Clarke.9
O mais traduzido cientista europeu era Robert Boyle, com 26 obras dis­
tintas, graças não apenas a sua reputação como filósofo natural, mas tam­
bém a sua relutância em escrever em latim, junto com a ignorância geral do
inglês no mundo instruído (Fulton, 1961). O problema do inglês vêm à tona
na correspondência do secretário da Real Sociedade, Henry Oldenburg, que
recebeu cartas de Veneza e da República Holandesa esperando por uma tra­
dução em latim da história da Sociedade escrita por T homas Sprat. Embora
Louis de Moulin concordasse em fazer a tradução,ela nunca se materializou
e leitores sem inglês tiveram de recorrer a uma versão francesa (Oldenburg,
1965-1977, v. IV, p.69,255n, 281,326).
Outras figuras bem conhecidas no mundo da Filosofia Natural cujas obras
foram traduzidas incluíam Francesco Redi, Simon Stevin ejan Swammerdam.
O número de livros médicos e farmacológicos traduzidos, mesmo aqueles por
autores menos conhecidos, também merecem ênfase: Bauderon,por exem­
plo, Cheyne, Fizes, Freind, Gérin, Havers,Joubert, du Laurens,Manardes.
A existência dessas traduções sugere que havia uma demanda internacional
por guias práticos,assim como por obras teóricas.
Para atender a esse tipo de demanda,obras sobre tecnologia também eram
traduzidas ocasionajmente; tratados de Arquitetura (discutidos a seguir sob
"arte"); a Pyrotechnica [Pirotecnia],de Biringucé:io,sobre fogos de artifício; o
Theatrum machinarum [Teatro das máquinas], de Boeckler,sobre máquinas; o
Speculum nauticum [Espelho náutico], de Wagenaer, sobre navegação; ou De
arte vitraria [Da arte vitral], de Neri, sobre o fabrico de vidro. Mesmo assim,
a relativa raridade desse tipo de livro sugere uma: falta de sobreposição entre
os membros do público capazes de ler latim e aqueles que queriam (digamos)
aprender a fabricar vidro.
Em quarto lugar,84 livros tratavam de Geografia ou "viagens", assunto
que nem sempre é fácil de distinguir da História,como no caso dos relatos do
Novo Mundo, âe Benzoni e Herrera,que são portanto incluídos - como rela-
9 Pelo menos o que Newton possuía era Galileu em latim: Harrison, 1978.
..
85
 Peter Burke e R. Po-chio Hsio (orgs.)
tos de missões fora da Europa - em ambas as seções. Obras gerais incluíam
as Relazioni [Relações], de Botero, a cosmografia de Sebastian Münster e os
atlas de John Speed e Jan Blaeu.
A maioria dos relatos mais conhecidos de explorações e descobertas nas
Américas circularam em latim, a começar pelos de Colombo, Vespúcio e
Cortés. Os ingleses Francis Drake, T homas Hariot e Walter Raleigh também
apareceram em trajes latinos, junto com os franceses Léry e Laudonniere,
o e·spanhol Las Casas e o alemão Heinrich_ _von Staden, que afirmava ter
escapado por pouco de ser comido por canibais no Brasil. V árias traduções
desses relatos de terras exóticas parecem ter sido encomendadas por um
único editor, o gravador T heodor de Bry, no final do século XVI, para uma
série sobre a América.
A Ásia também recebeu bastante atenção. Os turcos em particular eram
. objeto de interesse, mas havia também os relatos da Índia por.Balbi, Perus­
chi, Pimenta, Pinner e Varthema; do Japão por Carvalho, Frois e Kaempfer; e
da China por Marco Polo (traduzido duas vezes), Mendoza e Pantoja, junto
com o relato da embaixada holandesa à China em 1655-1657, publicado pelo
secretário dos embaixadores, Jan Nieuhof. A África, por outro lado, estava
mal representada, com a exceção de Leão Africano, que escreveu sobre o
continente como um todo, de Cadamosto sobre a África oci.dental e de Lopes
sobre o Congo.
Em quinto lugar estava a ficção, com 72 obras em diferentes gêneros.
Havia peças, como I suppositi [Os impostores] e II negromante [O feiticeiro],
de Ariosto, a Celestina, de Fernando de Rojas, a Susanna, de Birk, a Aminta, de
Tasso, e oAstrologo, de Giambattista della Porta. Havia épicos, como Orlando
Furioso, Gerusalemme Liberata [Libertação de Jerusalém], Os lusíadas, O paraíso
perdido, a Semaine [Semana], de du Bartas, a Henriade [Henríada], de Voltaire,
e o Messiah [Messias], de Klopstock. Havia outros poemas longos, desde a
Divina Comédia, de Dante, e o Narrenschiff [A nau dos insensatos], de Brant,
até o Shepherd's Calendar [éalendário do pastor], de Spenser, Absalom and
Achitophel [Absalão e Aquitofel], de Dryden, e o Essay on Man [Ensaio sobre
o homem], de Pope. 10 Poemas mais breves incluíam as líricas do poeta persa
Saadi e do catalão Ausias March, obras de Ronsard, os versos moralizantes
de Pibrac, a ode de Boileau sobre a tomada de Namur, a de Comeille sobre
as vitórias de Luís XIV, The Cherry and the Plum [A cereja e a ameixa], de
1 O Sobre Os lusíadas, Fonda, 1979, e Briesemeister, 1984; sobre O paraíso perdido, Feder, 1955;
sobre Klôpstock, Wallner, 1982.
86
A troduçõo cultural nos primórdios do Europa Moderno
Montgomerie, as Fables [Fábulas], de La Fontaine (três traduções), e a Elegy
in a Country Churchyard [Elegia em um cemitério no campo], de Gray (que
também foi traduzida três vezes). 11
Em prosa, havia histórias tiradas de Boccaccio e Cervantes ("Homo vi­
treus" [O homem de vidro] - em outras palavras EI licenciado Vidriera [O
licenciado Vidriera]), bem como a estóri� romanesca pastoral Diana, de Gil
Polo, o romance picaresco Guzmán de Alfarache, de Mateo Alemán, e o romance
Télémaque [As aventuras de Telêmaco], de Fénelon (traduzido três vezes).12 É
provável que a história romanesca de Fénelon fosse lida como obra política,
assim como o épico de du Barcas era lido como.obra científica; raramente os
sistemas de classificação são estanques.
Em sexto lugar, 64 livros sobre Política, uma vez mais dominados pelos
italianos (cf. Capítulo 6). Não é uma supresa encontrar textos renascentistas
famosos como o Príncipe ou os Discursos, de Maquiavel, os diálogos de· Gian­
notti sobre Veneza, a Ragione di stato [Razão de Estado] e outras obras de
Botero, a Città dei sole [A cidade do sol], de Campanella, ou mesmo os Discorsi"
sopra Cornelio Tacito [Discursos sobre Cornélio Tácito], de Ammirato. 13 Guic­
ciardini deve seu lugar aqui às máximas políticas extraídas de sua história,
já que seus escritos políticos ainda não estavam impressos. A presença dos
escritores políticos seiscentistas Traiano Boccalini e Virgilio Malvezzi (dos
quais não menos de quatro obras apareceram em latim) merece ênfase, assim
como a de Raimondo Montecuccoli sobre a guerra. 14
Os textos franceses incluem a Comunidade francesa, de Seyssel, a República,
de Bodin, o ataque a Maquiavel de Gentillet, os discursos políticos e milita­
res de La Noue e o pioneiro estudo de relações internacionais de Rohan. Do
espanhol vem o muito reimpresso Reloj de príncipes [Relógio de príncipes], do
pregador cortesão espanhol Antonio Guevara, junto com Furió Ceriol sobre
os conselheiros, o Príncipe Cristão, de Rivadeneira, o comentário de Quevedo
sobre o Bruto, de Plutarco, e a Idéia de um príncipe, de Saavedra (que passou
por pelo menos onze edições em latim nó século XVII). Uma vez mais, a
importância da Espanha merece ser notada. Quanto ao inglês, ci Leviatã, de
Hobbes, foi traduzido logo após sua publicação, mas o igualmente famoso
, .$i;_, Tratado sobre o governo, de Locke, não foi. 15
. i�w�! --�- ·.,
\��ff
' · ·n-- So-br- e-R-onsard, McFarlane, 1978, e Smith, 1988; sobre La Fontaine, Desmed, 1964.
·12 Sobre Boccaccio, Toumay, 1981; sobre Cervantes, Fitzmaurice-Kelly, 1897 ..
13 Sobre Maquiavel, Gerber, 1911-1913, p.60-92; Anglo, 2005.
;�e H Sobre Boccalíni, Firpo, 1965, p.5·9-66.
�/ 15,_, Sobre Hobbes, Tricaud, 1969; Lõfstedt, 1989.
87
!l
•.•
i Peter Burke e R. Po-chio Hsl!] .(orgs.)
. A maioria desses livros pode ser descrita como "filosofia política", mas
uns poucos eram mais específicos. Alguns eram obras de propagan_da, como
••
os panfletos de La Chapelle, que defendeu Luís XIV durante a Guerra da
Sucessão Espanhola em suas Helvetii epistolae [Epístolas de Helvécio], oü o
ataque de Caramuel à legitimidade do rei João IV de Portugal. Na margem
••
entre a política e as viagens (e por isso arroladas nas duas seções), há algumas
análises do Império Otomano e de suas forças militares, cinco em particu­
•
lar - de Giovio, Geuffroy, Lucinge, Soranzo e Tarducci.
Umas poucas categorias menores merecem um breve comentário. Os
livros de conduta, por exemplo, que iam da Filosofia Moral a conselhos sobre
maneiras à mesa, incluem não apenas os três famosos tratados italianos de
••
Castiglione, della Casa e Guazzo, mas também as discussões da corte por
Guevara, Faret e du Réfuge, dois tratados de Gracián, o manual de civilidade
de Courtin e os ensaios de Francis Bacon, traduzidos sob o título "Sermones
•
fideles". Nesse campo, encontramos mais tradutores protestantes de textos
·de católicos, como Citreu que traduziu della Casa; Salmuth, que traduziu
••
Guazzo, ou Wanckel, que traduziu Guevara. Os ideais de boa conduta parecem
rer sido independentes da Teologia.
A Filosofia, em seu sentido moderno relativamente estrito, tem apenas
••
um pequeno lugar nessa lista: dezoito itens. Dada a importância do latim
como língua em que escrever sobre Filosofia, é talvez surpreendente constatar
que traduções para o latim fossem afinal necessárias. Mesmo assim, Descartes
••
sobre o método, Kant sobre a razão, Leibniz sobre a teodicéia, Malebranche
sobre a verdade, Les pensées [Os pensamentos], de Pascal, e Locke sobre o en­
••
tendimento humano foram todos vertidos para o latim nesse período (Hume
só está representado por sua autobiografia). A assim chamada "Lógica de
Port-_Royal", de Arnauld e outros, o True Intellectual System of the Universe [O
•• •
verdadeiro sistema intelectual do universo], de Cudworth, e as Cogitatio­
nes rationales [Cogitações racionais], de Wolff, também devem ser incluídas
••
aqui, junto com três obras de Bouhours, com os neoplatônicos Leone Ebreo
e Francesco Patrizzi e, é claro, com Confúcio, cujo nome latinizado ainda
testemunha a língua em que suas idéias chegaram ao Ocidente.
•
Apenas um punhado de livros há de ser encontrado em outras categorias.
A arte, por exemplo (Dürer, Sandrart, Serlio, Menestrier), ou a crítica literária
•. ;:
(Bartoli, Huet, Sforza Pallavicino, Tesauro); emblemas (Borja, Coornhert,
.
• _j Montenay); uma gramática espanhola (Oudin); e um estudo dos preços (Bo­
din). Mesmo o Direito está mal representado, em que pesem Azpilcueta,
Hotman, Sarpi e Selden; nesse período- fora da Inglaterra, que tinh� um
�hi
;��
7t,. 88
A lroduc;õo cultural nos prim6rdios do Europa Moderno
sistema de Direito Comum de pouco interesse no continente-, ainda era raro
escrever sobre as leis no vernáculo. Em uma classe à parte está o conselho de
1.
;
�
!t
Naudé sobre a formação de uma biblioteca (bastante apropriadamente, um
texto preocupado com o problema da classificação).
Em suma, os grandes movimentos intelectuais do período - até o Ilumi­
nismo - estão bem representados em traduções para o latim. O Renascimento
está representado por historiadores e escritores políticos italianos, além de
artistas. As grandes descobertas, a Reforma, a Contra-Reforma e a Revolu­
ção Científica também estão obviamente presentes nessa lista. Por outro
lado, a lista como um todo não é um simples· espelho do gosto da época. Ela
foi influenciada por uns poucos indivíduos em condições de converter seus
interesses pessoais em publicações. Sem T heodor de Bry, teriam aparecido
menos traduções de relatos sobre o Novo Mundo. Sem Samuel de Tournes,
o lugar de Genebra na história das publicações científicas teria sido muito
menor. Sem Grévio e Burmann, uma série de antiquários italianos não teria
sido conhecida no exterior.
VI
Traduzir obras modernas para o latim apresentava o problema de escre­
ver em um latim que os humanistas considerariam clássico a respeito de
fenômenos desconhecidos dos antigos romanos. Os próprios humanistas
estavam divididos quanto a essa questão, com os "ciceronianos" opondo-se
a neologismos enquanto Alberti, Valia, Erasmo e outros consideravam qüe
algumas novas palavras latinas eram necessárias. 16
Por um lado, alguns· tradutores de Maquiavel tentaram classicizar o texto.
A versão de Silvestro Teglio para II príncipe, por exemplo, se refere não aos
cardeais, mas ao "colégio de sacerdotes" (sacerdotum collegium). De maneira
similar, o tradutor anônimo da Arte della guerra chamou os piqueiros suíços
de "legio Helvetica" [legião helvécia] ou "hastatorum ordines" [ordens d.os ás­
tatos].
O destino de Guicciardini em latim foi similar ao de Maquiavel (Luciani,
I 936, p.27ss, 35ss). Em seu prefácio, o tradutor, Celio Secundo Curione,
explica a necessidade de usar palavras modernas para lugares, ofícios e equi­
pamentos modernos (locorum, officiorum, armorum et machinarum nova vocabula)
16 Sobre Alberú, Grafton, 2001, p.283ss .
89
 Peler Burke e R. Po-chio Hsio (orgs.)
[novas palavras de lugares, ofícios, armas e equipamentos]. em razão "do
grande contraste entre os mundos antigo e moderno" (tanta [ ...] veterum a
novis dissimilitu.do) [tamanha a diferença dos antigos para os novos], tornando
necessário escrever sobre Ammirallii [almirantes, emires]. Cardinales e assim
por diante.
Na prática, contudo, Curione fez de fato um grande esforço para encon­
trar equivalentes clássicos para muitos obj_etos ou organizações modernas.
Assim; antiguardia, "vanguarda", se tomaprimum agmen [primeiro agregado];
a artiglerie, "artilharia", carecendo de antiguidade, se torna tormenta, termo
que originalmente se referia às catapultas romanas; bastione, "bastião" (uma
nova invenção italiana), se torna valium, "fortificação", perdendo sua espe­
cificidade; ducati similarme�té se torna aureorum numum, "moedas de ouro";
lancie, "lanceiros", converte-se no clássico cataphracti; e trombetta, "trombeta",
em um antigo termo para arauto, praeco. Mesmo os stradiotti, uma forma
distintiva de cavalaria grega ou albanesa a serviço de Veneza, recebem o
nome mais vago de "cavaleiros ilírios", illyrici equites. No caso de arqueiros e
besteiros (arcieri, balestien), Curione adota um meio-termo, "aqueles a quem
eles chamam arcieri, e os romanos, sagittarii".
Por outro lado, poderíamos tomar o caso da História do Concílio de Trento,
de Paolo Sarpi, vertida do italiano para o latim por Adam Ne�on em 1620.
Newton ocasionalmente classicizava, referindo-se ao Conólio como conventus
e a universidades como academiae. Usualmente falando, contudo, ele preferia
manter os termos técnicos em seu latim medieval ou posterior de origem:
bulia, por exemplo, cardinales, curia romana, episcopi [bispos], jesuitae, indulgen­
tiae, nuncii [núncios], scholastici e assim por diante. De maneira similar, os
tradutores dos tratados de Sarpi sobre a Inquisição e o Interdito usavam os
termos não clássicos inquisitio e interdictus.
No caso das traduções do Cortegiano, de Castiglione, para o latim, das
quais houve três no período (por Bartholomew Clerke, Johannes Ricius e
Johannes Turler), problemas foram mais raros, mas ainda mais sérios. Os
tradutores em geral tentaram escrever em latim clássico. Por outro lado,
Castiglione estava discutindo o comportamento em um ambiente desconhe­
cido de Cícero, a corte. Inevitavelmente surgiram problemas lingüísticos,
notavelmente no caso das versões dos termos-chave cortegiania e sprezzatura
(Burke, 1995).
O primeiro termo, cortegiania, que o tradutor de Castiglione para o inglês
havia vertido como courtiership [cortesania], deu a Clerke tanto trabalho que
ele o discutiu em seu prefácio ao leitor. "Como então chan.arei o que os in-
90
A lroduçõo cultural nos primórdios do Europa Moderno
gleses chamam de courtiership, e os italianos, de cortegiania? Dizer Aulicalitas
[aulicismo] não agrada( ...) Sou obrigado a chamar-lhe curialitas, termo que,
· embora seja latim menos puro, aproxima-se mais da latinidade." (Quid enim
appellem id quod Angli Coutiership, Itali Cortegianiam nominant? Aulicalitatem
dicere non placet ( ... ) Curialitatem cogor appellare, quod verbum etsi minus pure
Latinum sit, latinitati tamen propius accedit.) Ricius evitou o problema omitindo
totalmente a frase que incluía cortegiania.
Sprezzatura também causou dificuldades. A solução de Clerke para o pro­
blema foi parafrasear Castiglione, referindo-se à necessidade de agir "negli­
gentemente e (como diz o vulgo) desleixadamente" (negligenter et (ut vulgo
dicitur) dissolute), o último termo sendo sua tentativa de verter o neologismo
de Castiglione. Ele também usou o termo incuria. Quanto a Ricius, ele verteu
a famosa frase "usare in ogni cosa una certa �prezzatura" como "usar em tudo
�;\,�- uma coisa assim como o desprezo" (inque omni re usurpetur certa quaedam veluti
:�::;;?/� contemptio). Este certa quaedam veluti [uma coisa assim como] seguramente
·...... -;.�.t=' denuncia certa hesitação ou um desconforto com o neologismo contemptio
.,\.-;- .
,.. :
do tradutor.
-- .. Uma ilustração ainda mais dramática do problema da escolha entre "es­
. _�:ti"
.· ;,,_""._
trangeirizar" (anteriormente, p.33) e classicizar é o caso de livros sobre o
Império Otomano, que era desconhecido dos antigos, além de organizado de
maneira diferente do Ocidente contemporâneo.17 Como deveriam ser vertidos
termos para itens culturalmente específicos?
Por um lado, a história de Veneza escrita pelo humanista ciceroniano
Pietro Bembo classicizou os turcos, abrindo mão da especificidade a fim de
ser elegante. Bembo chamou às galeras biremes [birremes]. aos sipais equites
[cavaleiros], ao almirante da frota turca prefectus classis Thraciae [prefeito da
esquadra da Trácia] e ao sultão, "o rei trácio", Regem Thracium. Além disso,
na história de seu próprio tempo, Paolo Giovio, outro humanista, chamou o
. ' sultão Selim de "Selyrnus Turcarum imperator" [Selim, imperador dos turcos],
-•.',;
ao passo que os janízaros, pelo menos ocasionalmente, se tornam "praetoriani
�l, milites" [soldados pretorianos].
::·-.:�{
Por outro lado, quando o humanista alemão Johannes Leunclavius tra­
•..
duziu os anais otomanos para o latim, decidiu ser antes útil que elegante, e
por isso adotou termos turcos como Bassa, Genizari, Sangiacus ou Vezir (paxá,
janízaros, sanjacos, vizir). Uma solução similar foi adotada por Jacob Geuder
quando traduziu a história da guerra entre os turcos e os persas de Minadoi.'
17. Esse era um problema também para escritores e tradutores vemaculares (Burke, 2007).
91
 l'e!er Burke e R. Po;çfi]�. tisi� (orgs.)

Depois de hesitar quanto a topônimos como "Babilonia (quae hodie Bagadat

dicitur)" ["a Babilônia (que é hoje chamada de Bagdá)"], optou por manter
termos técnicos como Caddi [cádi]. Calif, Deftadar [chefe das finanças] e as­
sim por diante. Ao traduzir o relato de Geuffroy sobre a corte turca, Geuder
seguiu um princípio similar, embora tenha usado flexões latinas em algumas
palavras turcas, como odabashi ou timariot - Odabasii, Tymariolzi etc.
Estamos acostumados a pensar que o conhecido dilema entre dois estilos
de tradução, a "domesticação" - em outras palavras, a tradução cultural -ver­
sus a "estrangeirização", remonta ao século XIX ou no máximo ao XVIII
(Venuti, 1995). Esses exemplos do Renascimento revelam uma consciência PARTE li
mais antiga do problema, complicada pela existência de uma terceira solução Tradução e cultura
possível, a classicização.
A opção classicizante poderia ser descrita como uma espécie de tradução
cultural às avessas. Conhecemos a tradução da língua do passado para a do
presente. Afinal de contas, essa é uma das principais funções dos historiado­
res. Aqui, contudo, encontramos o fenômeno oposto, a tradução da língua do
presente para a do passado, justificada pelo projeto renascentista de reavivar
a antiguidade.
A prática de classicizar, precisamente por ser estranha à nossa própria
cultura, proporciona um vívido lembrete do fato de que a língua não é neutra
nem flutua livremente. Ela é sempre onerada pela bagagem cultural. Aqui,
como em outras partes deste volume, as escolhas feitas por tradutores do
período moderno revelam muita coisa sobre sua cultura.

,. -
1.
92
1
 CAPÍTULO 5
A piedade católica moderna em tradução
Carlos M. N. Eire

As traduções são tão importantes na história do catolicismo moderno

que se poderia facilmente afirmar que, "sem traduções, nada de renovação
espiritual, e nada de Reforma Católica" - pelo menos não o tipo de Refor­
ma que os histori_adores parecem agora dar como certa. Um único exercício
contrafatual deve bastar para provar esse ponto. Imagine um Santo Inácio
de Loyola diferente: um nobre basco ferido chamado Ifiigo que permaneceu
intocado pelo fervor religioso após seu encontro com uma bala de canhão na
Batalha de Pamplona em 1521. E se esse Ifiigo atingido tivesse dedicado sua
vida a coordenar a fies ta local de San Fermín todo mês de julho? E se tivesse
aguardado com mais ansiedade a corrida dos touros do que as preces _e o
serviço de Deus e da Igreja Católica? Como o catolicismo teria evoluído nos
séculos XV I e XVII sem Santo Inácio e a Companhia de Jesus?
Todo mundo sabe que a História teria dado uma volta muito diferente se
o convalescente Ifiigo não tivesse sido confinado a um quarto sem nada mais
para ler além de dois textos devocionais em tradução: a Legenda áurea, de Jacob
Voragine [ou Jacoppo da Varazze], e a Vida de Cristo, de Ludolfo da Saxônia.
Mais tarde, quando Inácio e outros à sua volta reconstruíssem a seqüência de
eventos que levaram à sua conversão religiosa, essas duas traduções receberiam
o crédito - junto com o próprio Deus - por terem transformado o soldado ferido
. t!Il1 santo. Esses textos e muitos outros como eles (alguns escritos ou traduzidos

..
:.:·-1
·-:i�:
Peler Burke e R. Po:-�hio· Hsio (orgs.)
por jesuítas) também receberiam o crédito por inspirar uma renovação completa
da fé católica. Seria um exagero essa avaliação do poder de texto� traduzidos?
Poder-se-ia atribuir tamanha influência a um par de textos traduzidos?
Sim, sem dúvida, pode-se argüir que Ifiigo poderia ter se transformado em
Santo Inácio mesmo sem essas duas traduções, mas é dificll imaginar como,
exatamente. Sim, sem dúvida, também se pode argüir que o catolicismo teria
sido renovado sem Inácio e seus jesuítas, mas é dificil imaginar os contornos
dessa renovação sem eles. Da mesma maneira, é difícil imaginar o panorama
da piedade católica nesse período sem textos devocionais traduzidos.
As traduções com freqüência assumem uma posição central em muitas
descrições da vida espiritual católica porque a história da devoção, piedade
ou espiritualidade - ou como quer que decidamos chamar a vivência da reli­
gião - está inseparavelmente ligada a textos, especialmente após a invenção
da imprensa (Rennhofer, 1961, p.v). Textos desempenharam um papel-chave
na transmissão de idéias, atitudes e padrões de conduta entre os católicos
modernos, em dois níveis independentes: em meio ao clero que dava forma
à fé, e em meio ao laicato que aquele pastoreava. Os que escreviam textos
devocionais na cultura católica eram na maioria das vezes "peritos", profis­
sionais em piedade e no sobrenatural: homens e mulheres que dedicavam
suas vidas à busca da santidade.
Essa classe das elites religiosas não apenas compôs a vasta maioria dos
textos devocionais, como também constituiu um público crítico bem infor­
mado que controlava o fluxo de informações e dava forma à vida devocional
da Igreja como um todo. Esse público consumia textos em latim e também
no vernáculo. Era essa classe, especialmente os padres e frades envolvidos
no ministério público; que destilava e transmitia ao laica to alfabetizado e
analfabeto a piedade que os textos incorporavam. Os lei'gos, embora não
inteiramente passivos, tendiam a ser antes consumidores que produtores, e
também tendiam a ler textos em vernáculo em vez de em latim, muito embora
um bom número dos que eram alfabetizados soubesse ler latim.
Traduções eram essenciais para ambos os públicos. Textos escritos em
latim pelos "peritos" - se _considerados significativos o bastante - precisa­
vam ser traduzidos para o vernáculo para um público leigo mais amplo.
Textos significativos escritos no vernáculo, por seu turno, precisavam ser
traduzidos para o latim para distribuição internacional, já que o latim era a
••
língua comum da elite por toda a Europa, especialmente entre os "peritos"
em religião. Naturalmente, textos significativos escritos em um vernáculo
também precisavam ser traduzidos para outros vernáculos. O clero e o laicato,
• 96
A lroduçõo cullurol nos prim6rdios do Europa Moderno
portanto, tinham uma mesma necessidade de traduções. Em tudo isso, em
quase todos os níveis, salvo o do trabalho manual nas oficinas de impressão
e o ·da efetiva promoção e venda de livros, as elites clericais assumiam o
controle desse mercado, tanto na escrita e na tradução dos textos como no
julgamento do que era significativo. O fato de que alguns dos autores dos
principais textos devocionais também calham de ser tradutores de outros
títulos significativos não é nenhuma coincidência: isso se deve à liderança
desempenhada por clérigos em todo o processo.
O domínio clerical aqui é inegável. P�r exemplo, tomemos o caso de um
dos mais significativos de todos os textos, a Imitação de Cristo atribuída a
Thomas Kempis, um cônego agostiniano, e limitemos nosso escopo apenas
à Espanha. A primeira edição espanhola está em catalão, a Jmitacio de ]esu
Crist, publicada em Barcelona em 1482. O tradutor, um clérigo chamado
Miguel Perez, atribui o livro a Jean Gerson, um clérigo e teólogo muito pro­
eminente, além de chanceler da Universidade de Paris. Isso faz que edições
subseqüentes mencionem Gerson como o autor e dêem ao livro o nome de
el Gerçonzito ("o Gersonzinho"). Não sabemos quem fez a primeira tradução
,. para o castelhano (Zaragoza, 1490), mas as probabilidades sugerem que o
ij trabalho f<;>i feito por um clérigo. Essa tradução, que também presumiu a
1'
autoria de Gerson, foi publicada sete vezes entre 1493 e 1562. Então, em
1536, a Imitação foi traduzida para o castelhano novamente por ninguém me­
1-1.�.-
nos que Luís de Granada, um dos maiores autores espirituais da época, um
�
frade dominicano cujas próprias obras seriam traduzidas várias vezes para o
latim e outros vernáculos europeus. Depois de passar por no mínimo trinta
,
'
o
edições, sob o título de Conteniptus mundi o menosprecio dei mundo y imitacion de
.
Cristo, atribuído a Thomas Kempis, esse clássico devocional foi uma vez mais
·- '
traduzido no século XVII por Juan Eusebio Nieremberg, um padre jesuíta
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-•" 1 ,�_ cujas obras gozam de grande popularidade e também foram traduzidas para
�-.
diversos vernáculos europeus por outros clérigos.
Lidar com a história ?ºs textos devocionais implica lidar com um processo
estritamente controlado de transmissão cultural e com uma estruiura social
em que monges, freiras e padres desempenham um papel muito destacado.
Por conseguinte, uma boa parte da produção de textos devocionais se concen­
tra nessa classe elitista e se dedica a traçar as vidas desses autores clericais e
as rotas por meio das quais os textos foram abrindo caminho de uma pessoa
a outra. Muito da produção acadêmica também tende a ser altamente ge­
nealógica e obcecada por rastrear linhagens por meio dos textos e, portanto,
também pelas traduções. Isso significa que a maior parte dos conhecimentos
97
, ·1.
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\1: Peter Burke e R. Po-chio Hsio {orgs.)
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sobre o assunto até o presente tende a se encaixar na categoria de História
·: '.·
da Espiritualidade ou do Misticismo, e está esmagadoramente concentrada
em urna gama de textos e autores relativamente estreita - os "clássicos" ,
por assim dizer - aqueles textos que os próprios "peritos" da elite espiritual
consideraram os mais significativos.
1 Isso naturalmente nos leva à questão: "o que é um texto devocional?".
•;.,.:-::�::·:·...
,,---�--.
1 Neste ensaio, considerarei "devocional" uma gama bastante ampla de litera­
-
tura. Em essência, qualquer texto que possa ser visto ou usado como meio
1 ?:�-
para estimular o fervor religioso ou moldar a fé de seus leitores será consi­
derado "devocional". Isso significa incluir muitos tipos diferentes de texto:
livros de preces, manuais de instrução, sermões impressos, tratados místicos,
hagiografias, catecismos, tratados polêmicos, alguns tomos teológicos e, em
última instância, a própria Bíbliá.
Mesmo assim, embora seja absolutamente necessário ter em mente que
a gama de textos que podem ser chamados de "devocionais" é deveras ampla
e que muitos textos devocionais antigamente significativos caíram na obscu­
ridade - hagiografias como a Legenda aurea [A legenda áurea], de Jacobus de
Voragine, outrora a mais popular coletânea de vidas dos santos, com mais de
uma dúzia de edições e muitas traduções nos primórdios da era da imprensa,
ou o Sumário das virtudes de São José, de Gracián, e manuais como o Breve sumá­
rio da perfeição cristã, de Achille Gagliardi -, é igualmente necessário admitir
as limitações de uma descrição tão breve do assunto como esta. No máximo,
ela pode proporcionar apenas uma visão geral dos textos e traduções mais
significativos, e seu enfoque principal terá de ser mais narrativo do que analí­
tico. Sua estrutura seguirá o padrão estabelecido na maior pane da literatura
secundária, rastreando a circulação de textos e traduções em três centros de
origem do final do século XV ao final do século XVII - centros que tiveram
um domínio inegável sobre a cultura católica durante esse período, em ordem
cronológica: primeiro a Alemanha e os Países Baixos, em seguida a Espanha e,
finalmente, a França, com algumas inevitáveis olhadas de lado para a Itália ao
longo do caminho. Identificar lacunas, criticar a produção acadêmica e sugerir
novas vias de pesquisa terão de ser reservados para uma breve conclusão.
O epicentro setentrional
Praticamente toda descrição da literatura devocional moderna inicia sua
narrativa em uma região relativamente pequena da Europa setentrional, ao
'i' .
1111· 98
A tradução cultural nos primórdios do Europa Moderno
longo do baixo Reno. Duas grandes tradições espirituais se fundiram ali na
Baixa Idade Média; dando nascimento a correntes de devoção que domina­
riam os séculos XVI e XVII: a assim chamada tradição mística renano-fla­
menga, que remontava ao século XIV, com raízes em Mestre Eckhart e seus
discípulos, e a Devotio moderna [Devoção moderna], que derivava dela, mas
que também se radicava nos Irmãos da Vida Comum e nos Cônegos Regula­
res de Windesheim (Fuller,1995; Hyma, 1965; Cognet, 1968; Lücker, 1950).
Essa fusão produziu um grande número de textos, mas nenhum mais impor­
tante do que a Imitação de Cristo, atualmente atribuída a Thomas Kempis
(1380-1471), mas por um bom tempo creditada a Jean Gerson (1363-1429).
Seu enfoque é o desenvolvimento de uma rica vida interior do espírito, o
desprendimento do mundo, uma aguda consciência dos próprios estados
mentais e a completa imersão do eu em Cristo. Esse texto acabaria se tor­
nando um dos clássicos devocionais mais publicados e traduzidos (Iserloch,
1971).
A Imitação de Cristo foi apenas um de muitos textos influentes que brota­
ram das recém-concebidas prensas de impressão da Alemanha e dos Países
Baixos. Outro foi a Vida de Cristo, de Ludolfo da Saxônia, mais conhecido como
Ludolfo, o Canuxo (m. 1378). Inácio de Loyola foi apenas um dos leitores
desse texto (em tradução) que se viram profundamente afetados pelo que
ele tinha a dizer. As Meditationes vitae Christi [Meditações da vida de Cristo],
de Ludolfo, foram impressas pela primeira vez em 1474, em Estrasburgo ie
Colônia, em latim. Não se tratava de uma narrativa da vida de Jesus, tal como
encontrada nos Evangelhos, mas sim de uma longa meditação a respeito dela,
abundantemente adornada com citações patrísticas, lições morais e doutrinais
e muitas preces (García Mateo, 2002; Shore, 1998; Bodenstedt, 1955; Baier,
-·.�.
1977; Conway, 1976).
Textos dos discípulos de Mestre Eckhart (l 260-132 7) também se destaca­
ram nas primeiras décadas da imprensa:Johannes Tauler (1300-61), Heinrich
)'
' :,, Suso (1295-1366) eJan van Ruysbroeck (1293-1381). Seus textos estavam
todos ligados por um elo comum: a crença de que no cerne de cada criatu­
ra humana reside uma fagulha divina - um ponto de unidade ontológica
com Deus que só pode ser discernido e vivido mediante o desprendimento
• Adotamos a divisão da Idade Média utilizada pelos medievalistas franceses, entre os quais
· _: Jacques Le Goff e Georges Duby. Para esses especialistas, a Alta Idade Média correspon­
. . de a um perlodo que vai da queda do Império Romano do Ocidente, em 476, até o ano
.;·,: · 1000- ap6s o qual inicia a Idade.Média Clássica. A Baixa Idade Média corresponde ao século
e meio que antecede o Renascimento, ou seja, 1300 a 1450.
 Peler Burke e R. Po-chio l-Ísio (orgs.)
do mundo. Os ensinamentos desses três discípulos de Eckhart foram ainda
mais popularizados por um talentoso sintetizador, Hendrik Herp, <?U Hárpio
(m. 1477), cujas obras se tornaram imensamente populares tanto em vários
vernáculos europeus como em latim. Um grande reconhecimento também
recebeu Denis Rijckel (1394-1471), mais conhecido como Dênis, o Cartuxo,
por destilar e passar adiante essa tradição. Dênis foi um autor prolífico e
popular de textos devocionais, com não menos de sete grandes tratados a
seu crédito, incluindo um intitulado As quatro últimas coisas (Wassermann;
1996), que exerceu considerável influência sobre o popular gênero da arte
de morrer bein, comumente conhecida como ars moriendi.
Mas as raízes da literatura devocional da Baixa Idade Média alcançavam
muito mais longe que o século XIV, e tinham um alcance muito mais amplo
que o baixo Reno. A raiz-mestra em si, a mais profunda de todas, levava à
Bíblia. Por volta da época em que morreram Hárpio e Dênis, o Cartuxo, os
estudos bíblicos começavam a passar por um renascimento. Assim, não sur­
. preende que um aluno dos Irmãos da Vida Comum que fora profundamente
influenciado pela Devotio moderna emergiria como o maior erudito bíblico de
seu tempo: Erasmo de Roterdã (1469-1536).
Erasmo desbravou novas trilhas, contribuindo substancialmente para o
retorno ad fontes, às fontes originais da fé cristã. De longe, seu feito mais im­
pressionante foi sua edição em 1516 do Novo Testamento, baseada no estudo
de vários manuscritos antigos, contendo também anotações copiosas e uma
nova tradução em latim que procurava melhorar a Vulgata de São Jerônimo.
A nova tradução de Erasmo proporcionava leituras alternativas de alguns
textos-chave, lançando dúvida sobre a validade das inte�pretações medievais
dessas passagens, algum�s das quais serviam há muito tempo como textos
de prova para importantes doutrinas.
Um bom exemplo é o texto de Mateus 4:17 que, na Vulgata, diz "Fazei
penitência, pois que o Reino dos Céus está próximo" (Poenitentiam agite).
Durante séculos, essa passagem foi interpretada como prova do fato de que
o sacramento da penitência fora claramente instituído pelo próprio Cris­
to. Em 1516, Erasmo insistiu _em que a tradução correta do grego não era
"Fazei penitência", mas sim '½rrependei-vos" (poeniteat vos); em 1519, ele
insistiu, alternativamente, em "reformai-vos" (resipiscite) - duas diferenças
muito sutis mas significativas. Ao passo que Poenitentiam agite sustentava a
legitimidade do ato externo de confessar os próprios pecados a um padre,
poeniteat e resipiscite apontavam para um ato interior, talvez até mesmo para
uma disposição interior.
100
A tradução cullurol nos primórdios do Europa Moderno
Esse questionamento do texto da Vulgata, junto com suas constantes
críticas da Igreja da Baixa Idade Média e sua piedade, levou muitos a dizer
posteriormente que Erasmo havia botado o ovo chocado por Lutero. Eras­
mo rejeitou tais acusações, mas não há como negar que teve um impacto
duradouro sobre a piedade protestante com sua tradução de textos bíblicos.
Poucos anos após a publicação de seu Novo Testamento, teólogos protes­
tantes estariam centrando alguns aspectos-chave_ de sua teologia e piedade
nas traduções alternativas de Erasmo. De mais a mais, a segunda edição do
Novo Testamento (1519), de Erasmo, acabaria servindo como base para as
primeiras traduções para o alemão, o francês é o inglês - as traduções usadas
para estabelecer o cristianismo protestante na Europa setentrional.
Erasmo e vários colegas humanistas também recorreram a escritos dos
primeiros padres cristãos, com vistas à renovação da cristandade. Muitos
dos maiores eruditos da época, e alguns dos menores também, dedicaram ·'
muito tempo e esforço a coligir manuscritos gregos e traduzi-los para o latim. !
Por vezes, o espírito de colaboração transcendia a busca pessoal por fama.
Erasmo, por eYemplo, publicou a tradução do humanista alemão Wilibald
Pirckheimer das Orationes [Orações], de Gregório de Nazianzo, em 1531, com
um prefácio que elogiava a versão de Pirckheimer para o latim, afirmando ser
maravilhoso que não houvesse mais necessidade de se recorrer ao original
grego de novo. Estranho elogio, vindo de um humanista que dedicara sua
vida a retornar ad fontes, mas ainda assim muito revelador, pois capturar a
essência de um texto e disseminar sua tradução podia ser uma tarefa tão
importante para um humanista quanto chegar a uma versão definitiva do
texto original (Spitz, 1963).
Erasmo investiu grande parte de suas energias a editar e publicar textos
patrísticos, e a traduzir os padres gregos para o latim. No fundo, o que mais
importava para Erasmo e muitos outros editores e tradutores humanistas era
a recuperação da vida devocional da Igreja primitiva, não a busca pela precisão
teológica. Acima de tudo, o retorno aos padres era uma busca pela melhor
literatura devocional possível (Walter, 1991; Backus, 1995; Peters, 1967).
Os principais entre os que receberam atenção foram Orígenes, Jerônimo e
Agostinho.Junto com estes veio o padre pseudônimo do século VI, Dionísio,
o Areopagita. O fato de que Lorenzo Valia (1406-1457) houvesse convincen­
temente lançado dúvidas sobre a identidade de Dionísio - convertendo "o
Areopagita" em "o Pseudo-Areopagita" - pouco_fez para reduzir a influência
desse antigo autor. Os textos profundamente platônicos de Dionísio e sua
espiritualidade apofática, defendida por Marsilio Ficino (1433-1499) e pela
101
 Peter Burke e R. Po-chia Hsia (orgs.)
Academia Platônica Florentina, encontraram um grande defensor no huma­
nista francês Jacques Lefevre d'Étaples (1455-1536) que, em 1502, começou a
editar e publicar os textos de Dionísio, junto com outros documentos cristãos
primitivos. Disponibilizar Dionísio para um público leitor mais amplo foi um
passo crucial para forjar a espiritualidade moderna e imbuí-la de tendências
neoplatônicas em sua metafísica e epistemologia.
Lefevre também estava bastante interessado na Bíblia. Seus profundos
conhecimentos bíblicos tinham como meta principal a busca pelos textos "ver­
dadeiros" e o desenvoÍvimento de traduções fiéis, de modo que as Escrituras
pudessem se tornar mais acessíveis a todos. Em 1509, Lefevre publicou um
livro pioneiro, o Psalterium quintuplex [Saltério quintúplice], em que dispôs
lado a lado, para comparação, cinco diferentes versões em latim dos Salmos.
Por séculos, tudo o que estivera d·isponível havia sido a tradução latina da
Vulgata de São Jerônimo. Em 1512, Lefevre desbravou uma vez mais um
novo território ao publicar uma tradução em francês da Epístola aos romanos,
de Paulo, baseada no original em grego, com um comentário, também com
o texto da Vulgata em latim ao lado para comparação. No comentário, Le­
fevre questionava de várias maneiras o texto da Vulgata e outras autoridades
veneráveis, argumentando, entre outras coisas, que a Bíblia era a derradeira
autoridade na religião cristã - argumento que nunca se can·sou de defender
e que foi mais bem elaborado em 1522, quando publicou um comentário
sobre os quatro Evangelhos.
Embora atraísse adversários por suas opiniões e tivesse alguns escritos
condenados pelos teólogos da Sorbonne, Lefevre seguiu intrépido adiante,
com seus estudos bíblicos e traduções. Em pane, sua confiança decorria do
apoio que recebia do rei Francisco I e da innã deste, Margarida de Navarra,
os quais ficaram tão satisfeitos com seu trabalho que lhe pediram que tra­
duzisse a Bíblia inteira para o francês. A tradução de Lefevre apareceria em
partes: o Novo Testamento em 1523, os Salmos em 1525 e a Bíblia inteira
em 1530. Lefevre conquistaría a reputação de criptoprotestante e até mesmo
ideólogo protestante, mas também tinha um profundo interesse por autores
mais recentes e textos que os protestantes evitavam. O mesmíssimo Lefevre,
reputado padrinho do protestantismo francês, louvado por T heodore Beze
em seus Icones (livro que continha retratos e biografias concisas de todos os
homens que haviam liderado a Reforma Protestante), também tomou a peito
traduzir para o latim e publicar os Esposamentos espirituais, de Ruysbroeck, em
1512 - um texto que todos os maiores refonnadores protestantes rejeitariam
ou até desprezariam.
102
A tradução cultural nos primórdios da Europa Moderna
No que dizia respeito a certos místicos medievais, Lefevre não era ne­
nhum criptoprotestante, estando antes bastante alinhado com alguns de seus
irmãos devotamente católicos, e especialmente com alguns monges. A disse­
minação de textos místicos da Renânia por toda a Europa foi obra sobretudo
de uma única comunidade monástica alemã: os cartuxos de Colônia, mais
conhecidos em inglês como the Charterhouse of Cologne [a Cartuxa de Colônia]
(Chaix, 1981; Marks, 1974; Schafke, 1991). Foi lá que muitos dos grandes
textos dos místicos da Renânia foram traduzidos para o latim, a língua franca
das elites intelectuais e espirituais. E Ruysbroeck, Tauler e Suso não foram
os únicos a ser disponibilizados para toda a Europa letrada pelos canuxos
de Colônia. Eles também traduziram e ajudaram a publicar uma vasta gama
de textos devocionais, desde o relativamente recente Éspelho da perfeição, de
Hárpio (1474), até as canas de Catarina de Siena (1347-1380).
Embora os cartuxos se esquivassem de revelar sua identidade, sabemos
que um dos mais importantes tradutores em Colônia era Laurêncio Súrio
(1522-78), que traduziu Tauler, Ruysbroeck e Suso para o latim (Hebens- �
treit-Wilfert, 1975). Uma de suas traduções mais significativas para o latim
foi de um texto holandês anônimo, A pérola do Evangelho (1545). A Pérola era
um grande apanhado da mística r�nana e também uma antologia. Seções
inteiras das obras de outros autores, especialmente de Ruysbroeck e do mais
contemporâneo Hárpio, foram inseridas nela. O próprio Súrio adquiriu uma
reputação de sabedoria espiritual e chegou a ser reverenciado nos círculos
católicos instruídos por toda a Europa.
Os canuxos de Colônia fizeram mais do que traduzir: alguns escreveram
seus próprios tratados, que também foram posterionnente traduzidos. Entre
eles, um dos mais significativos é João Justo Lansperger (1489-1539), mais
conhecido como Lanspérgio, cujos escritos mostravam-se plenamente cientes
da ameaça representada pelo protestantismo. Seu Discurso de Jesus Cristo aos
fiéis e seu Manual do exército cristão (título que é uma alusão demasiado óbvia
ao mais famoso livro de Erasmo), muito publicados e traduzidos, procuravam
conscientemente defender a liberdade da vontade, a necessidade da abne­
gação e a possibilidade de união com Deus, em oposição aos ensinamentos
protestantes.
.t
-� � Outro autor devocional cujo trabalho foi promovido pelos cartuxos de Co­
lônia era ainda mais popular que Lanspérgio. Trata-se de Louis de Blois (1506-
;_: 66), abade de Lessies, mais conhecido como Blósio, um grande sintetizador
renascentista que não apenas assimilou os escritos dos místicos da Renânia,
., como também incorporou em si.tas próprias obras textos de grandes mestres
::--
103
 A lroduçõo culturol nos primórdios do Europo Moderno
Peter Burke e R. Po:chio Hsio (orgs.)

-�•
espirituais como Agostinho, Gregório, o Grande, Matilde de Magdeburgo,
Tauler, Suso e Ruysbroeck (Blois, 1875). Blósio escrevera inicialmente para
os monges de Lessies, mas seus textos acabaram ultrapassando ãs paredes do
claustro e chegaram até um público leitor muito mais amplo, graças em grande
parte a traduções e aos cartuxos de Colônia que as publicaram e divulg.aram.
Jiménez. Os especialistas concordam que seu Livro de exercícios para a vida espi­
ritual, profundamente influenciado pela Devotio moderna, marca o início de um
sé�lo de predominância espanhola no campo da literatura devocional.
Na década de 1520, um bom número de textos devocionais começou a
aparecer na Espanha, todos eles influenciados pelas tradições espirituais do

.:••
•:: .

Seu Livro de instrução espiritual, em especial, vendeu durante várias gerações em norte: A arte de servir a Deus (1521), de Alonso de Madri; o Terceiro alfabeto

··•:,
muitas línguas (Vos, 992, esp. p.191-201). Suas obras completas, publicadas
pela primeira vez em Louvain em 1568, foram reimpressas e traduzidas se­
guidamente, e por muito tempo poucos rivalizaram com ele em popularidade.
Não se deve subestimar sua influência. Em 1598, o rei Filipe II - talvez o mais
poderoso monarca do mundo e o mais ardentemente dedicado a defender a
espiritual (1527), de Francisco de Osuna; a Subida do monte Sião (1535), de
Bernardino de Laredo; o Guia de pecadores (1542) e o Livro de oração e meditação,
de Luís de Granada; e o Audi filia [Ouvi, filha] (1556), de Juan d'Ávila. Por
sua vez, esses autores foram sucedidos pelos dois supremos gigantes da era
de ouro do misticismo espanhol, os carmelitas Teresa d'Ávila (1515-1582) e
João da Cruz (1542-1591) (Groult, 1927; Alventosa Sanchis, 1963). Há quase

•••
fé católica - pediria que Blósio lesse para ele continuamente enquanto jazia

.:.;•
moribundo no Escorial. Embora o rei Filipe pudesse ter compreendido Blósio
em latim, é muito provável que tenha ouvido a tradução em castelhano da
Instrução espiritual, de Juan Vázquez dei Mármol.
um século, os eruditos reconheceram que Santa Teresa e São João eram her­
deiros diretos das tradições do none (Hoornaert, 1922; Etchegoyen, 1923) .
Provavelmente, a maioria dos especialistas hoje também concordaria com essa
proposição: sem traduções, nada de Teresa, e nada de João da Cruz - pelo
menos não a Teresa e o João que escalaram as alturas místicas com tanta
graça e autoridade (Orcibal, 1966).

1
A era de ouro da Espanha

••
i
Mas parte da colheita dessa semente setentrional mostrou-se heterodoxa,
No século XVI, a Espanha assumiu gradualmente um papel ainda maior ou perto disso. Junto com os mestres espirituais aceitos também surgiu um
na publicação e disseminação de literatura devocional. Grande parte do cré­ exército de homens e mulheres que se desentenderam com as autoridades

.,.
dito é dada ao cardeal Francisco Jiménez (Ximenes) de Cisneros (1436-1510) da Igreja. A passividade ou desprendimento tão central para os místicos se­

·':-
; ;
tentrionais assumiu um sentido diferente na Espanha, dando origem a um

•. :
que, como arcebispo de Toledo e confessor da rainha Isabel, patrocinou a
tradução de numerosos textos devocionais para o castelhano, especialmente
João Clímaco (570-649), Ângela de Folinho (1248-1309), Catarina de Siena,
i.
· .......
.
movimento tido como herético: os alumbrados, ou "iluminados", que começa­
ram a ser perseguidos em 1525. Em parte, o infortúnio dos assim chamados
Girolamo Savonarola (1452-98) e Ludolfo, o Canuxo.Jiménez também patro­ alumbrados pode s�r atribuído à tradução de uma única palavra dos místicos
;
·,,
.
cinou a publicação de alg�ns textos devocionais latinos - mais �otãvelmente renanos, Inwerken [ação interior], que se referia à forma como o divino agia
internamente dentro de uma pessoa. As traduções em latim ineptamente
e}:
de Raimundo Lúlio (1232-1316) - e a tradução de alguns textos gregos para

··,�:
o latim, incluindo uma vez mais a Scala spiritualis [Escada espiritual], de João verteram lnwerken como inactio [inação], introduzindo no. conceito uma pas­
Clímaco (Toledo, 1505), e os Erotemata [Questões] (Alcalá, 1514), de Ma­ sividade ainda mais exacerbada. A tradução dessa palavra também causou
nuel Chrysoloras (1350-1415). A partir dessa "semeadura" mística, alguns impacto na espiritualidade francesa (Van Schoote, 1963, esp. p.334-5).

er
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. -�
.1
especialistas afinnam que Jiménez de Cisneros ajudou a produzir uma safra Mas isso não era tudo. Este assim chamado iluminismo também uniu

·;-t
forças com outra corrente poderosa que fluía do norte: a espiritualidade

•�
abundante uma geração mais tarde (Sainz Rodriguez, 1979).
Mais ou menos na mesma época, outros tradutores e editores espanhóis erasmiana (García Gutiérrez, 1999; Hamilton, 1992; Andrés Martin, 1975).
buscaram textos na tradição renana, e suas traduções estão diretamente ligadas Herdeiro ele próprio das tradições renanas e da Devotio moderna, Erasmo se

•}i à relativamente súbita efusão de fervor e textos místicos na Espanha. Entre os tornou imensamente popular em alguns círculos na Espanha antes mesmo

�w
primeiros a publicar na E_spanha um tratado influente esteve García de Cisneros de ser traduzido para o castelhano. Erasm� escreveu muitos tratados que
•'\C
.';-,;._ (1455-1510), abade �o mosteiro beneditino de Montserrat e primo do carde3.l poderiam ser chamados de "devocionais", e ganhou seguidores por toda a
.){i.
104 105
.fl;L
 Peter Burke e R. Po-chia Hsia (orgs.)
Europa graças mais a essas obras que a seus estudos bíblicos. De longe, o
mais significativo desses textos foi o Enchiridion, ou Manual do cavaleiro cristão
(1503), um manifesto da religiosidade íntima favorecida pela Devotio moderna
e pelo neoplatonismo de Ficino.
O Enchiridion foi um dos textos mais amplamente traduzidos do século
XVI, aparecendo em inglês (1518), tcheco (1519), alemão (1520), espanhol
(1524), francês (1529), holandês (1542), italiano (1542) e polonês (1585)
(Haegheil, 1897-1907). 1 A tradução do Enchiridion para o castelhano em 1524,
1528, 1541 e l 555 aumentou ainda mais sua popularidade, mais além dos
círculos instruídos espanhóis, mas o "erasmianismo" acabou se mostrando
tão inaceitável para as autoridades da Igreja como o iluminismo. Do mesmo
modo como os alumbrados, os erasmianos também foram esmagados. Depois
de 1559, quando as obras de Erasmo começaram a aparecer no Índice dos li­
vros proibidos da Igreja, muitos de seus textos se�iam difíceis de encontrar na
Espanha, embora alguns tivessem sido recentemente traduzidos e publicados
(Bataillon, 193 7; cf. Homza, 2000). Alguns erasmianos, como os irmãos Juan
e Alfonso de Valdés, acabariam sendo associados ao protestantismo fora
da península Ibérica. O Diálogo da doutrina cristã (1529), de Juan de Valdés,
profundamente influenciado por idéias erasmianas e pela espiritualidade
renano-flamenga, acabaria no infame Index librorum prohibitorum [Índice dos
livros proibidos], da Igreja Católica (Nieto, 1970; Bakhuizen, 1969).
Este não foi o único desdobramento da controvérsia engendrada pela
"invasão" mística vinda do norte. Entre os que permaneceram ortodoxos,
as tendências passivas da tradição renano-flamenga nunca desapareceram
completamente, e riunca deixaram de atrair críticas ou acusações de heresia.
Mesmo Teresa d'Ávila e João da Cruz tinham seus críticos, que os associavam
aos iluministas. No século XVII, dentro da própria Espanha e também na
França - onde traduções dos textos dos grandes místicos espanhóis tiveram
um profundo impacto - os mesmíssimos traços passivos dariam origem a
uma controvérsia ainda mais intensa e a outra heresia, o quietismo.
A Espanha do século XVI foi também a terra natal de outro grande gigante
na história da espirtualidade;
i
Inácio de Loyola (1491-1556), fundador dos
jesuítas. O próprio Loyola foi profundamente afetado pela literatura devocio­
nal traduzida e pelos esforços de publicação do cardeal Jiménez. Como já foi
Van der Haeghen não inclui todas as edições, contudo. Simplesmente ch ecan do o ban�o de
dados on-line Eureka (eurek.ulg.org), encontrou doze edições inglesas e quatro holandesas
não listadas nesta bibliografia.
106
A troduçõo culturol nos prim6rdios do Europa Moderno
_
mencionado, ele atribuiu sua conversão à vida religiosa no início da década de
1520 a dois textos medievais recém-publicados em traduções castelhanas, a
Vida de Cristo, de Ludolfo da Saxônia, e a Legenda aurea, de Jacobus de Voragine
(Dunn-Lardeau, 1986; Reames, 1985; Rhein, 1995). Inácio também aprendeu
muito com o manual devocional escrito pelo primo do cardeal Jiménez, o
Exercitorio de la vida espiritual (1500), de García de Cisneros, que influenciou
bastante os seus próprios e imensamente significativos Exercícios espirituais,
a pedra angular de toda a espiritualidade jesuítica - o manual devocional par
excellence, que não se destina tanto a ser lido como a ser vivido ao longo de um
período de várias semanas sob a orientação de um instrutor qualificado. Os
Exercícios, de Inácio, ainda são empregados, reexaminados e constantemente
. -..,.. ·:...
,'\�._,, retraduzidos nos círculos católicos (Palmer, 1996).
\ ,
. =--··· -
-"
Dentro da órbita da Espanha, mas decerto independentes dela - não im­
porta quanto de suas terras eram governadas dejure a partir.de Madri -, �guns
escritores espirituais italianos também deixaram sua marca no século XVI. Três
italianos em particular eram enormemente populares e influentes. Em sintonia
-·�.
......... com a predileção espanhola pelo recogimiento [recolhimento], ou oração interior,
o padre capuchinho Mattia Bellintani da Saio (l 535-1611) publicou sua Prática
da oração mental, em 1588. Também popular e influente foi o padre jesuíta Achille
Gagliardi (1537-1607), cujo Breve sumário da perfeição cristã acabou sendo tradu­
zido para o inglês, o francês, o holandês, o alemão e o latim. O padre teatino
Lorenzo Scupoli (1530-1610) era ainda mais popular e influente. Seu Combate
espiritual não apenas teve numerosas edições em italiano, mas também muitas
traduções, inclusive em inglês, latim, francês, castelhano e alemão.
O século francês
Assim como na história da espiritualidade o século XVI pertence em
grande medida à Espanha, o XVII pertence à França. A genealogia desta assim
chamada "invasão mística", laboriosamente documentada em três volumes
por Henri Bremond (Bremond, 1916-1933; Cognet, 1949), nos leva a fundo na
história das traduções. Primeiro, grande crédito é atribuído às traduções dos
carcuxos de Colônia que abriram caminho até a França, revelando os grandes
textos patrísticos e medievais, bem como os da tradição renano-flamenga.
Além disso, outras traduções começaram a aparecer, mesmo enquar1to a Fran­
1963). Em 1549, foi
. ça era assolada pelas Guerras de Religião (Van Schoote,
;� Hárpio; e, começando em 1553, vários textos de Blósio. Então viera.rp. alguns
,, .
-i,_'
,c,.'.(,.:107
 _ - · Peter Burke e R. Po:��io Hsio (orgs.)
_
textos espanhóis em tradução: Luís de Granada em 1572; Juan d'Ávila em
1586. Próximo ao fim das Guerras de Religião, surgiram os escritores italia­
nos: 0 Combate espiritual, de Lorenzo Scupoli, em 1595 e A vida é as obras, de
· Catarina de Gênova, em 1598.
Depois que o Edito de Nantes encerrou a carnificina em 1598, começou
a aumentar a tradução de textos da tradição renano-flamenga e dos mais re­
centes místicos espanhóis e escritores devocionais italianos. Do norte vieram
A péro_la do Evangelho, em 1602; os Esposamentos espirituais, de Ruysbroeck, em
1606; e tudo de Hárpio em 1607. Do sul vieram a Prática da oração mental, de
Mattia Bellintani da Salà, em 1600; Teresa d'Ávila em 1601; e João da Cruz
em 1621 (Dagens, 1952b). Além disso, as traduções de autores patrísticos
e medievais também começaram a aumentar: Gregório, o Taumaturgo, Am­
brósio de Milão, Boaventura, Catarina de Siena, Tomás de Aquino e Dionísio,
0 Areopagita, para citar apenas alguns. Esse dilúvio de traduções levou um
especialista a concluir que "entre 1550 e 161O a literatura espiritual na França
viveu de empréstimos" (Marocchi, 1988).
Na virada do século, conforme o fratricídio amainava, os peritos espiri­
tuais da França começaram a fazer suas próprias contribuições substanciais
para a literatura devocional. Primeiro veio o exilado inglês, o capuchinho
Benedito ou Benoit de Canfield (originalmente William Fitch), cujo Rule of
perfection [Regra da perfeição] foi traduzido para o francês em 1609. Apesar
de infelicidades de estilo, este texto logo se tornou imensamente popular e
influente. De acordo com Louis Cognet, "todo o misticismo da era se nutriu
dele". E acrescenta: "Embora fosse inglês, Canfield permanece um dos gran­
des nomes da história espiritual francesa, e é uma pena que não soubesse
escrever" (Cognet, 1958, p.60). Então veio o formidável Francisco_de Sales
(1567-1622), com seu livro extraordinário, Introdução·à vida devocional (1608),
· texto que procurava destilar a sabedoria dos grandes peritos espirituais para
o laicato católico e colocá-los em sua própria busca pela santidade. A história
da publicação desse tratado é notável: em 1620, haviam sido publicadas mais
de quarenta edições do texto em francês; em 1656, ele estava disponível em
dezessete traduções. A isso se seguiu em 1616 seu imensamente popular
Tratado sobre o amor de Deus.·
O próximo na fila era o cardeal Pierre de Bérulle (1575-1629), fundador
do Oratório, que não apenas levou a reforma dos carmelitas descalços à Fran­
ça, como também esteve à frente de uma renovação do clero francês e de um
estilo de devoção que se centrava na humanidade de Cristo, melhor resumida
em seu popularissimo Glcírias de Jesus (1626). Não é de todo insignificante
108
A tradução cultural nos primórdios do Europo Moderna
que aqueles que escrevem sobre Bérulle tentem com freqüência creditar sua
espiritualidade aos vários textos traduzidos (Dagens, 1952a). Um tratado
italiano em particular se destaca entre todos os esforços para discernir as
fontes da espiritualidade de Bérulle: o Breve sumário da perfeição cristã, de
Achille Gagliardi. Bérulle conquistou um grande número de seguidores e era
tão popular que, em 1644, apenas quinze anos após sua morte, a maioria de
suas obras já fora reunida em uma única edição. Seus discípulos produziram
muitos textos devocionais de sua própria lavra. Um dos mais influentes foi
Jean Duvergier de Hauranne, abade de Saint-Cyran, que teria um papel de
destaque no desenvolvimento do jansenlsmo (Orcibal, 1961, 1962).
A abundância de textos devocionais, contudo, não indica necessariamente
uma onda de religiosidade. Ela pode ser também um sintoma de tensões, ou
talvez até mesmo a causa delas. Por conseguinte, o dilúvio de textos devocionais
publicados na França do século XVII deve sempre ser situado no contexto das
grandes controvérsias religiosas do período, especialmente aquela entre os
jansenistas e seus oponentes, em sua maioria jesuítas, e aquela entre a escola
de Bérulle, com seu enfoque no Cristo encarnado, e a assim chamada escola
abstrata, com seu enfoque na natureza divina de Cristo, que acabou por eclodir
na crise quietista do final do século XVII e em suas subseqüentes condenações
(Orcibal, 1959). Tampouco se pode ignorar o conflito entre católicos e pro­
testantes, que continuou a grassar na imprensa por todo o século XVII. Até
mesmo tratados polêmicos podem contar às vezes como literatura devocional, e
o número de tais tratados publicados na França foi imenso (Desgraves, 1984).2
Por fim, cumpre também lembrar que no final da Guerra dos Trinta Anos, em
1648, outras poderosas correntes estavam jorrando no panorama espiritual da
Europa, e que entre as mais fortes havia a do ceticismo e da dúvida, levando
ao Iluminismõ, à Revolução Científica e à derrocada final da hegemonia cristã
na Europa. Uma boa parte do calor gerado por essas controvérsias se fez sentir
fora da França, graças em grande medida a traduções.
Isso basta como narrativa geral. Voltemo-nos agora para suas deficiências.
Olhando para a frente
Reduzidas a seus elementos mais básicos, quase ao ponto da caricatura,
as descrições da espiritualidade moderna no século XX adquirem feições
2 Só o volume 1 tem 3.595 verbetes.
109
 Peter Burke e R. Po-chio Hsio (orgs.)
similares, e a mais comum e saliente delas é sua obsessão genealógica com o
rastreamento de linhagens por meio de textos e traduções. A narrativa básica
é mais ou menos assim: no século XVI, a literatura devocional medieval da
tradição renano-flamenga causou um florescimento do misticismo e do fervor
religioso na Espanha, e a literatura hispano-renano-flamenga, por sua vez,
deu origem a uma efusão ainda mais dramática de fervor místico na França
seiscen_tista. Em seguida, esse fenômeno francês deu forma à moderna piedade
católica. Três asserções são assim tidas como certas pela maioria dessas des­
crições, asserções engendradas por um tipo idealista de histór ia intelectual.
Primeiro, presume-se que os próprios textos e os temas neles encontrados
são t_r�smitidos de uma cultura a outra e de uma geração a outra, a exemplo
de cromossomos em organismos vivos, com características distintas e pronta­
mente identificáveis que podem ser rastreadas com precisão conforme abrem
caminho por fronteiras nacionais e ao longo de décadas ou séculos. Além dis­
so, também se presume que esses textos abram caminho até seres humanos
específicos que em seguida interpretam e recombinam os elementos básicos
e passam adiante os "cromossomos" em novos arranjos, por assim dizer, por
meio de novos textos. Assim, por exemplo, torna-se possível nesse contexto
a,!,!:'l'lillr....
dizer que João da Cruz colheu um traço de Ruysbroeck, outro de Tauler e
ainda outro de Blósio, e que Bérulle, por seu turno, colheu este ou aquele
traço de João da Cruz, e outro diretamente de Tauler. Todo esse processo,
naturalmente, depende da tradução de textos. E muito raramente é analisado
o processo da tradução com todas as suas complexidades. Ele é sempre dado
como certo, tão invisível e descomplicado como as idéias desencarnadas que
essas descrições procuram rastrear.
Segundo, também se presume que a literatura devocional seja primaria­
mente literatura mística, ou seja, uma coleção de escritos de monásticos para
outros monásticos em busca de uma imperturbável contemplação de Deus.
Com grande freqüência, portan!o, as descrições da literatura devocional se
limitam a uma gama relativamente estreita de textos. Com grande freqüência,
também, é dificil ou impossível encontrar uma ligação entre a vida devocional
na clausura e a do laicato. Inúmeras questões saltam de imediato à mente,
como as seguintes: e quanto às hagiografias? A que custo ignoramos o fato
de que as hagiografias se tornaram cada vez mais populares após o Concílio
de Trento? Por exemplo, na Espanha encontramos apenas 23 hagiografias
publicadas em 1500-1559, mas em 1600-1630 o número sobe para 350,
com 124 apenas na.década 1620-1629 (Sanchez Lora, 1988, p.374, 448-50).
Muitos desses textos eram traduções.
110
A tradução cultural nos primórdios do Europa Moderno
E quanto a outros tipos de textos devocionais? As traduções de textos
polêmicos para minorias perseguidas, como os recusantes ingleses (Allison;
Rogers, 1989-1994)? E qu.anto às Bíblias, como a tradução de Douai em in­
. ·g1ês? E os manuais com instruções práticas que lidavam com questões ·éticas
' ·e assuntos do dia-a-dia, como La perfecta casada [A esposa perfeita] (1583), de
'. Luis de León? Esses são apenas uns poucos exemplos; a lista de títulos até
"t agora ignorados pelas descrições da espiritualidade e da literatura devocional
é tão longa que ainda está para ser compilada.
Terceiro, também se presume que a Espanha e a França merecem maior
atenção no período moderno porque essas duas nações produziram o maior
número de textos místicos e devocionais - estreitamente definidos - nos sé­
culos XVI e-XVII. Essa premissa, embora não de todo indefensável, tem uma.
perspectiva duplamente distorcida: ela não apenas faz pouco.caso de textos
publicados em outras partes da Europa, como também ignora o mais saliente
j
aspecto do mundo moderno, a ascensão das culturas protestantes. �
Muito trabalho ainda resta a fazer nessa área. A tradução é a transmissão
de cultura, a penetração de fronteiras, a erosão da complacência, a explosão
··
do Iocalismo. Ela envolve tradutores, editores, impressores, distribuidores,
viajantes. Envolve, acima de tudo, a comunicação. E no período moderno
envolve tecnologia e arte. É muito mais que genealogia, meros textos e idéias
desencarnadas.
Para encerrar, como meio de ao mesmo tempo resumir o assunto e fazer
sua crítica, gostaria de apontar seis lacunas bastante grandes na historiografia
dos textos devocionais e de sua tradução e distribuição - falhas em nosso co­
nhecimento que clamam por atenção e que sem dúvida levarão algum tempo
para serem preenchidas, se alguém decidir aceitar a tarefa.
1. Precisamos de uma definição mais clara de literatura devocional e de uma
classificação sistemática dos textos. Até agora, a maior parte do enfoque recaiu
sobre os "clássicos" da tradição monástica contemplativa, aqueles textos que
deram voz à busca mística ascética. Mais atenção precisa ser dada a hagiogra­
fias, livros de preces, catecismos, manuais práticos, à apologética e, em geral,
a textos destinados diretamente ao laicato.
.. 2". O impacto da discórdia religiosa precisa ser mais levado em conta, tanto em
terrrms de controvérsias internas e externas entre facções concorrentes dentro
de cada denominação como entre igrejas rivais. Este ensaio lidou apenas com.
textos católicos. Muito trabalho comparativo ainda precisa ser feito sobre o
período moderno, enquanto católicos e protestantes desenvolvem suas Re­
formas concorrentes. A vida devocional se desenvolve tanto a partir de des-
111
 Peler Burke e R. Po-é:hiq Hsia (orgs.} A lroduçõo cultural nos primórdios do Europa Moderna

continuidades como de continuidades, e id1:ntidades são forjadas tanto pelo no século XVI? Textos devocionais podem às vezes ser voláteis e altamente
antagonismo e pelo conflito como pela instrução axiomática. Deve-se fazer carregados de potencial para controvérsias. Por vezes as escolhas feitas por
mais para destrinçar as similaridades e diferenças entre as tradições religiosas tradutores fazem um mundo de diferença, tanto literal como figu rativamente.
Inclusive até o mero fato de um texto ser escolhido para tradução em uma
qu_e emergiram no período moderno, especialmente à luz do fato de que no
século XVIII toda crença religiosa tradicional passou a ser contestada cada vez determinada língua, seja pela primeira, seja pela quinta ou sexta vez, levanta
mais intensamente pelo ceticismo e pela ascensão das ciências naturais. todos os tipos de questões quanto à história de um conjunto específico de
circunstâncias. As traduções da Bíblia, em particular, descerram vias quase
3; A infra-estrutura e o pessoal responsáveis pelo real trabalho de tradução em ·1 inesgotáveis de pesquisa para muitos tipos diferentes de estudiosos.
si requerem mais atenção, especialmente do ponto de vista da história social.
Mais pesquisa poderia ser feita sobre a identidade dos tradutores e de seu lugar 6. Por fim, mas decerto não menos importante, ainda precisamos de mais pesquisa
no contexto mais amplo da vida religiosa. Centros como a Cartuxa de Colônia, bibliográfica. Chegar a uma bibliografia definitiva e exaustiva das traduções
corporações como a Companhia de Jesus ou indivíduos como Juan Eusebio nessa área é provavelmente impossível, em virtude da fluidez da expressão
Nieremberg precisam ser abordados como partes de um todo maior, em seu "literatura devocional". Não obstante, ainda precisamos de um escrutínio bi­
contexto social, político e econômico. Questões de sexo e gênero também bliográfico mais completo dos textos traduzidos -visando a uma inclusão mais
precisam ser levantadas, especialmente porque a vida devocional é uma das global de títulos e a um levantamento mais detalhado de edições, impressores,
pouquíssimas áreas em que as mulheres desempenham um papel destacado e tradutores, locais e datas de publicação. Ter uma bibliografia das traduções teria
altamente visível no período moderno, em especial como autoras e paradigmas facilitado enormemente a composição deste ensaio. Também teria permitido
certa quantificação altamente necessária. Analisar este assunto sem uma bi­
de santidade.
4. O espírito de proselitismo da era também deve ser ·considerado, pois esse é um bliografia abrangente é quase como tentar pintar de olhos vendados. Quanto
período culminante na cristianização tanto de europeus como de não-europeus. mais completa a bibliografia, mais sólidas serão as evidências que teremos, mais
Dentro da própria Europa, a literatura devocional tem de ser abordada como claros os padrões que emergirão e mais bem equipados estarão os estudiosos
parte do processo de confessionalização, não apenas como um elo na cadeia para compreender as maneiras como os europeus cruzaram fronteiras e esta­
do disciplinamento social e da formação do Estado, mas também como parte beleceram suas identidades, não apenas como alemães, espanhóis, italianos ou
integral da formação de identidades culturais e religiosas. Fora da Europa, qualquer outra nacionalidade que se queira listar, mas como cristãos - católicos
mas também inseparavelmente ligada a ela, a literatura devocional se torna ou protestantes ou não denominados - e, mais importante, como europeus e
parte do trabalho missionário nas Américas, na Ásia e na África. As missões como homens e mulheres cientes de que precisavam se adaptar a um mundo em
não são uma via de mão única: o encontro com outros não cristãos produz constante mudança, em constante encolhimento e assolado por conflitos.
talvez tantas mudanças dentro da Europa em si como entre os ·"outros" que
são expostos à cristianização, quer à força, quer por mera persuasão. Toda a
literatura relacionada à atividade missionária, dentro e fora da Europa, tem
uma dimensão devocional e umaÍigação íntima com a tradução. Ela também
aguarda mais pesquisa a partir de várias perspectivas.
5. As traduções em si e por si também aguardam novas análises de múltiplas
perspectivas: lingüística, epistemológica, teológica e social. A vida dos próprios
textos ao passarem pela tradução é uma área de pesquisa que requer mais
trabalho, tanto de estudiosos de literatura como de historiadores sociais, não
apenas como parte da história das idéias, mas também como parte da história
da interação e da transmissão de culturas. Textos que passam por múltiplas
traduções em uma única língua ou para várias línguas podem projetar todos
os tipos de luz sobre várias questões. Por exemplo, o que se deve concluir da
versão do termo germânico lnwerken pela palavra em latim inactio e das conse­
qüências dessa tradução para a história da sociedade e da cultura espanhola

112 113
 CAPÍTULO 6
A tradução da teoria política na Europa Moderna
Geoffrey P. Baldwin

Introdução

A imensa gama de idéias políticas que circulavam na Europa moderna

pode com freqüência parecer desconcertante, e trazer ordem e unidade a
-�;� esse quadro de diversidade pode ser difícil. Havia ideologias da monarquia,
oriundas tanto de uma tradição cristã como de uma ordem imperial roma­
l·\.�:
.r'":N.:_:

. na; teorias de resistência à tirania; idéias políticas republicanas vindas das

cidades-Estado italianas e da Holanda; teorias constitucionais; abordagens à
política decorrentes de um ceticismo epistemológico ou moral; idéias polí­
ticas baseadas na idéia do Estado; teorias do Direito Natural; e abordagens
científicas à organização política e à verdade moral. É extremamente difícil
dizer algo de inteligível a respeito de um sortimento tão complexo de idéias
políticas, não obstante sua importância para compreendermos o mundo po­
lítico moderno.
Metodologicamente, o estudo de tal gama de idéias políticas apresenta
uma· série de desafios. Uma abordagem recente tem sido a de ver os textos
· em questão não só em termos de seu conteúdo e de sua lógica, mas tam­
bém no contexto de sua criação. Isso pode ser concebido tanto em uma·
. situação política particular como dentro de uma tradição intelectual, ou,
mais frutiferarr:ente, como uma combinação de ambas. Tal abordagem nos_

--�:
 Peter Burke e R. Po-chia ··Hsia (�rgs.)
proporcionaria uma compreensão mais profunda da natureza e da vida des­
sas idéias políticas. 1
Com isso é possível chegar a uma compreensão mais próxima do que um
détermi�ado texto se destina a fazer, e de como ele se relaciona à cultura
política em questão. É possível discutir qual contexto em particular é mais
significativo, mas essa abordagem serve muito melhor aos historiadores do
que uma busca eclética pela sabedoria política nos resquícios do passado.
Todavia, enfocar esses textos no momento de sua criação não proporciona
necessariamente uma visão da vida subseqüente dos mesmos. Sem dúvida,
é possível rastrear a vida dos que são citados, criticados e mencionados no
trabalho de outros, e com isso acompanhar o desenvolvimento de uma idéia
ou linguagem política conforme evolui por meio de uma série de diferentes
textos e contextos.
Outra maneira pela qual os estudiosos têm tentado ver o destino das
idéias depois que um autor as confiou ao papel é considerando esses textos
como objetos físicos, e tentando rastrear como foram distribuídos, quem os
comprou e quem os leu. Robert Darnton procurou reconstruir os lineamentos
do comércio livreiro na França moderna (Darnton, 1982). Os estudiosos de
literatura dedicaram atenção ao que se chamou de "estética da recepção", e
se concentraram no ato da leitura, além de na natureza e na distribuição do
livro como objeto físico. Um famoso exemplo inicial é a obra de Jardine e
Grafton sobre como Gabriel Harvey leu o historiador romano Tito Lívio na
Cambridge do século XVI (Grafton; Jardine, 1990). Nesse exemplo, havia
informações detalhadas sobre as circunstâncias particulares de como esse
texto foi recebido e entendido, mas esse nem sempre é o caso.
Houve tentativas de examinar a margina/ia, de reconstruir o conteúdo de
bibliotecas e coleçõe�, e de examinar livros comuns para ver que ·passagens
interessavam especialmente aos leitores. Embora esse trabalho tenha pro­
porcionado alguns resultados interessantes, padece de um problema epis­
temológico histórico familiar: a informação que temos é superada de longe
pela que não temos. De uma tiragem de talvez três mil exemplares, podemos
conhecer cinco ou seis reações individuais a uma obra; podemos conhecer
o conteúdo de uma biblioteca em cada dez ou vinte. Embora isso talvez não
constitua um grande problema para um estudioso de literatura que queira
dizer certas coisas a respeito de certos textos, para o historiador isso levanta
questões tremendamente importantes. Predicar uma idéia geral de como um
Ver Richter, 1990; Tully, 1988; Mulligan et ai., 1979.
116
A tradução cultural nos primórdios do Europa Moderna
texto foi recebido com base nos vestígios fortuitos que chegaram até nós seria
irresponsável, por mais interessantes que sejam as reações individuais.
Isso significa que não existe uma maneira simples de fechar a brecha
entre uma história das idéias políticas e uma história da cultura política.
Uma noção de cultura política derivada de uma tradição de mentalité, ou que
decorra da idéia de decodificar o poder simbólico de ações na esfera pública,
permanece em muitos sentidos incompatível com um exame detalhado de
escritÔs literários e políticos, e, todavia, também parece perverso não tentar
de alguma maneira combinar os dois.
Considerar a tradução pode nos servir de oportunidade para resolver
essa lacuna e aumentar nosso entendimento da história das idéias na Europa
moderna. Quando estamos examinando um texto, um dos mais importantes
aspectos do contexto que devemos considerar é a tradição nacional dentro
da qual ele foi criado: isso vale tanto para um contexto intelectual como po­
lítico. Quando um texto é traduzido, ele é extraído da cultura que o criou e
posto em um lugar novo. Isso pode nos mostrar que tipo de textos e idéias
eram atraentes através de frontei;·as culturais, e o que as pessoas no período
moderno consideravam de valor em outras culturas. Podemos aprender algo
importante sobre preocupações e problemas comuns e como eles podiam
ser abordados:
Isso pode ser especialmente interessante quando lembramos que o perío­
do moderno testemunhou o crescimento da importância das idéias de nação
e de pátria: as tradições nacionais estavam se tornando mais significativas
para a cultura política. Essas tradições podem ser vistas como exclusivas em
alguns sentidos - definir uma tradição nacional de Literatura ou Direito era
necessariamente um ato exclusivo. Ao mesmo tempo, o século XVI foi uma
época em que muitos países estavam descobrindo um passado nacional e uma
constituição nacional fruto desse passado (Burgess, 1992, p.3-18).
A Europa, no período moderno, e especialmente depois da Reforma, era
um continente dividido. As guerras internacionais e civis eram comuns e havia
um extenso envolvimento internacional em conflitos civis. Essa foi taipbém
uma época de imensas mudanças sociais, políticas e constitucionais por todo
o continente. A conseqüência é que grande pane da literatura política é ex-
tremamente polêmica, e mesmo autores que consideraríamos representativos
da alta cultura muita vezes incorriam em ataques deveras virulentos. Mesmo
textos que não continham argumentos tão específicos sobre dada situação
podiam apresentar argumentos aceitáveis em uma cultura, mas não em ou­
tra� Quando a censura era comum e a autoria podia ser perigosa,-traduzir
117
 Pe1er Burke e R. Po-chia Hsia (orgs.)
uma obra que de algum modo criticasse aqueles no poder também podia ser
extremamente arriscado. Estar do lado errado de uma divisa confessional
podia levar alguém a ser queimado em uma estaca.
Por isso é importante considerar o que podia ser traduzido de uma cultu­
ra para outra, e como o que era traduzido podia ser adaptado e moldado de
maneira a se adequar a seu novo contexto, pois isso podia mudar a natureza
e o significado do texto. Também podia ocorrer pouca adaptação: muitas ve­
zes algo àe uma cuitura era simplesmente despejado em outra, com poucas
explicações. Muitos europeus modernos cruzav·am fronteiras culturais sem
o beneficio de tradutores. Viam e reportavam o que se passava em outros
países, e liam essa literatura tão bem como a sua própria.
Fronteiras culturais, e �esmo as fortes fronteiras religiosas existentes,
eram muitas·vezes cruzadas com impunidade. Por exemplo, era comum que
1
jovens aristocratas ingleses no século XVI"yisitassem a Itália e aprendessem
italiano: a existência do anticristo em Roma não os impedia. Philip Sidney,
o grande herói protestante, foi um dos que fizeram isso, aprendendo, absor­
vendo e adaptando a poética dessa cultura católica.
Eram as atividades desses indivíduos e as traduções que realizavam que
permitiam que existisse na Europa moderna uma cultura da tradução. Toda­
via, essa habilidade de traduzir significa que podemos nos eq�ivocar se pre­
sumirmos que um texto não traduzido não tinha nenhuma influência: não era
de modo algum necessário que algo fosse traduzido para ser poderosamente
influente em outro país, em outra época, em outro lugar. A rainha Elizabeth I
da Inglaterra não era de modo algum excepcional por ser fluente em francês,
italiano e latim: no século XVI, ser instruído significava justamente isso.
Um aspecto desse cruzamento automático de fronteiras culturais era a
existência de uma língua franca na Europa - o latim -, pelo menos na forma
escrita (acima, p. 7 5-92). Quando Hobbes encontrou Hugo Grócio na Holan­
da, consta que conversaram em latim - embora Grócio declarasse que não
entendera uma palavra! A existência de um texto em latim podia eliminar a
necessidade de ser traduzido, ou demonstrar que se destinava a um público
educado. Um aspecto do período moderno é a crescente importância das
línguas vernáculas da Europa: relativamente poucos tratados políticos foram
·r
escritos em língua vulgar antes de II príncipe, de Maquiavel, de 1513, mas em
1700 relativamente poucos eram escritos em latim.
A tradução para e do latim é, portanto, uma parte vital desta história, já
que o latim podia ser usado como língua européia em um debate que pre­
tendia ter um público internacional. Jaime I e Roberto Bellarmino puderam
?.:' ·
118
A 1roduçõo cul1ural nos primórdios da Europa Moderna
trocar tratados em latim, e a publicação em latim continuou forte na Hun­
gria e em outras partes durante os séculos XVI e XVII. Milton defendeu o
· povo inglês em latim para. um público europeu, enquanto em casa defendia
a república em inglês.
A tradição literária e política clássica tinha decerto imensa importância.
Era algo a que se recorria como um lugar-comum, em termos tanto de textos
como de histórias - Shakespeare, em Macbeth, pôde referir-se aos passos ar­
rastados de Tarquínio sem necessariamente ter lido Tito Lívio. Foge ao escopo
deste ensaio discutir o destino de textos políticos clássicos no Renascimento,
mas é importante lembrar sua presença e significância contínuas ao lado
das obras contemporâneas. Eles existiam tanto em seu original em latim ou
grego como cada vez mais em traduções, conforme crescia a demanda pela
sabedoria política antiga: Esses textos e suas várias. interpretações formam
· uma espécie de pano de fundo para os textos que estamos considerando. Os
atores políticos modernos podiam tirar e tiravam coisas diretamente da Grécia
ou de Roma sem a assistência de seus contemporâneos.
Ao tomar-se a tradução como evidência histórica, outra ressalva é neces­
sária. Um aspecto do passado com freqüência inacessível são os motivos dos
tradutores, alguns dos quais eram anônimos e muitas vezes obscuros. Textos
podiam ser traduzidos por serem interessantes ou atraentes, ou graças a sua
relevância para uma situação política em particular, ou em razão de uma
significância mais geral. Um texto podia ser traduzido por lucro - uma das
principais razões para a maior importância da escrita nas línguas vulgares
foi o desenvolvimento da imprensa no final do século XV. Havia um novo
público para textos de todas as espécies - religiosa, literária ou política - não
necessariamente versado em latim. Esse público cresceu com o tempo, como
também aquele segmento da população que podia ser considerada pane da
nação política, de modo que durante as grandes crises do século XVII, como
_ a Guerra Civil inglesa ou a Fronda, imensas quantidades de pessoas estavam
lendo literatura política e agindo com base nela. Os tradutores também po­
diam se enganar ao acharem que havia demanda para um texto em particular,
e com isso enganar-nos também.
Apesar de tudci, é permissível supor que um texto traduzido fosse con-
, ,sideràdo apropriado ou interessante por sua nova cultura política: é impro­
,
vável que o esforço de tradução fosse empreendido tão freqüentemente em
;;yão. Também podemos, talvez, deduzir alguma coisa daquilo que n_ão foi ·
aduzido e ·daquilo em que as pessoas não pareciam interessadas, para aju­
,,.}!
j. gar-nos a traçar os parâmetros de sua cultura política, embora .este seja um
;
 · Peter Burke e R. Po\li}9 .Hsio (orgs.)
empreendimento mais arriscado (anteriormente, p.31). Deve ser possível,
portanto, ver o que foi traduzido, de quê para quê, e quando, e assim esbo­
çar os lineamentos e contornos dessas relações. As transformações por que
0 texto passa no ato de tradução também podem ser vistas, incluindo que
tipo de adaptações precisam ser feitas para apresentá-lo em outra cultura.
Esse aspecto do problema fica mais interessante pelo fato de que, para um
tradutor moderno, a meta é reproduzir o mais próximo possível o original,
mesmo que estejamos cientes da impossibilidade de tal tarefa.
No estudo do período moderno, tais suposições não podem ser feitas.
Eram usados fragmentos de textos, não havia a menor noção de direitos au­
torais e os originais eram muitas vezes encadernados e vendidos com outros
textos, mesmo sem tradução, Por exemplo, em algumas edições holandesas
em latim e algumas outras línguas, II principe, de Maquiavel, era encadernado
junto com as Vindiciae contra tyrannos (Queixas contra os tiranos]. Será que
isso nos diz algo sobre como essas duas visões aparentemente opostas da
dominação real eram consideradas no período moderno? Em outros momen­
tos, o tradutor utiliza uma versão do texto traduzido ou de segunda mão, e
a nova versão se afasta ainda mais um passo do original.
Gênero 1 - A lei e as constituições
Com base nas traduções, muito se pode dizer quanto às preocupações
políticas da Europa moderna e quanto à linhagem intelectual de várias ma­
neiras de pensar sobre política. Há, no entanto, algumas dificuldades, por
exemplo, na área da jurisprudência e da jurisprudência natural. É um lugar­
comum que lJm dos mais importantes desenvolvimemos ·na teoria política
do período moderno ocorreu no campo da lei natural e dos direitos naturais.
Isso podia significar duas coisas: em primeiro lugar, a elucidação de um
conjunto de ordens morais ou direitos políticos, e, em segundo, a idéia de
basear a associação política em uma transferência de direitos que eram em
algum ponto inerentes aos indivíduos. Isso foi expresso pela primeira vez
pelos escritores da Segunda Escolástica em Salamanca, e posteriormente pelo
jurista holandês Hugo Grócio e por T homas Hobbes na Inglaterra (Brett,
1997;Tuck, 1979).
O problema é que grande parte dessa literatura foi escrita em latim para
um público de advogados que usava o latim todos os dias. Em sua maioria,
ela permaneceu nessa língua, pelo menos até o século XVIII, quando houve
120
.'
A tradução cultural nos primórdios do Europa Moderno
maior demanda por uma disseminação mais ampla de tais idéias. Por exem­
plo, o advogado civil Alberico Gentili, um fugitivo italiano da Inquí•lção que
acabou lecionando Direito em Oxford, teve grande influência na tradíção civil
inglesa e no Direito Internacional em geral. Todavia, nem seu De iure belli [Do
direito da guerra], nem seu texto absolutista Regales disputationes (Disputas
régias]. de 1605; foram traduzidos, embora houvesse uma edição fm latim
deste último em Londres, em 1644, durante a Guerra Civil ingle;a, saída
presumivelmente de uma prensa realista.
A tradição jurisprudencial natural espanhola do fim do século XVI tam­
bém tendeu a permanecer em latim. De rege et regis institutione libri li[ [Três
livros sobre o rei e a instituição do rei], de Juan de Mariana, De íustitia et
iure [Da justiça e do direito], de Luis de Molina, Libri decem de iustitía et iure
[Dez livros sobre a justiça e o direito], de Domingo de Soco, e o Trcv.tatus de
/egibus ac Deo legislatore [Tratado das leis e de Deus legislador], de Francisco
Suárez, ficaram todos sem tradução para qualquer língua vernác1;fa, Isso
talvez ocorresse por causa de sua natureza altamente técnica, e em ,�zão do
fato de que seu público-alvo seria treinado em uma tradição legal �ímilar.
Seriam necessários talvez alguns estágios intermediários para que ti-; idéias
abrissem caminho até a corrente principal.
Posteriormente, no século XVll e pelo século XVIII adentro, os �-�óricos
do Direito Natural conquistaram mais seguidores. Hugo Grócio é p:-,,vavel­
mente um dos mais famosos. Seu De iure belli et pacis [Do direito d;; guerra
e da paz]. em contraste com obras similares da Espanha, foi mui� vezes
traduzido, mas sobretudo após sua morte em 1645. Ele foi public.c-l..o pela
primeira vez em Paris em 1625, e depois disso houve oito ediçõesn<, século
XVII e três no XVlll. A primeira tradução foi, bastante previsivemente,
para o holandês em 1635, após o que se seguiram uma tradução in�esa de
Clement Barksdale em 1654 e outra, mais acurada, de W. Evats e11 _1682.
Houve uma tradução francesa em 1687 feita por de Courtin, e em :eguida
uma nova tradução em 1724 por Jean Barbeyrac, então professor de Bstória
e Direito Civil em Lausanrie.
Um padrão similar pode ser discernido nas edições de De iure run.irae et
gentium libri octo (Oito livros sobre o direito da natureza e dos pov;s], do
jurista alemão Samuel Pufendorf. Depois de passar por várias edi".1es em
latim, em 1703 foi traduzido para o inglês por Basil Kennett, presitbce do
Corpus Christi College em Oxford e autor de estudos sobre a poes�grega,
assunto sobre o qual freqüentemente discordava dos críticos frances�.Quan­
d0 apareceu a segunda edição dessa tradução, ela não apenas incorp1rou as
121
 Peter Burke e R. Po-chia Hsio (orgs.)
anotações da tradução francesa de Barbeyrac de 1710 como foi anunciada
como "corrigida e comparada com a tradução francesa do sr. Barbeyrac".
Uma tradução italiana de Giambattista Almici se seguiu em Veneza, em 1757
(Bazzoli, 1979).
Um texto mais breve de Pufendorf, De officio hominis et civis [Do oficio do
homem e do cidadão], que servia como um compêndio do algo desajeitado
De iure naturae, foi muito popular especialmente na Inglaterra, onde foi im­
presso muitas vezes em latim, em Londres e Cambridge. Parece ter servido
como cartilha acadêmica para o estudo do Direito Natural na Universidade
de Cambridge, e também como uma introdução geral. Gershom Carmichael,
regente e em seguida professor de Filosofia Moral na Universidade de Glas­
gow, provi�enciou notas e observações ao texto para uma edição de 1724
em Edimburgo, resultante de suas palestras sobre Ó assunto. Uma tradução
francesa de De offido hominis et civis apareceu em 1696, mas evidentemente
Barbeyrac considerou-a de qualidade insuficiente e produziu a sua própria,
com notas, em 1707.
A última obra traduzida por Barbeyrac foi De legibus naturae [Das leis da
natureza], de Richard Cumberland, uma vez mais com notas do tradutor, em
1744. O grande oponente de Cumberland, Hobbes, não recebeu o mesmo
grau de atenção. Seu amigo Sorbiere, que ele conhecera em Paris enquanto
estivera associado a Mersenne e seu círculo, uaduziu De cive [Do cidadão]
para o francês em 1649, e os Elements of the Law [Elementos da lei] em 1652.
Seu Leviatã conquistou um público internacional primariamente por meio da
edição em latim do próprio autor em 1668, embora houvesse uma tradução
para o holandês em 1667: o radicalismo desse texto talvez o tornasse impró­
prio para a p9lítica conservadora da França de Luís XIV.
Enquanto escritos sobre o Direito Natural tinham claramente grande
ressonânci,a entre fronteiras e culturas na Europa moderna, obras que se
ocupavam mais com as especi�cidades da lei tendiam a ficar sem tradução.
Uma notável exceção são os Six livres de la république [Seis livros da república),
de Jean Bodin, de 1576, que passaram por várias edições no original francês
e também foram traduzidos para o latim, pelo autor, dez anos mais tarde em
uma edição claramente destinada ao público internacional. Bodin era um
jurista e humanista francês que, mediante a análise do Direito, da História
e da Filologia, almejava ser capaz tanto de descrever os costumes políticos e
legais de uma grande variedade de culturas como de tirar conclusões sobre
questões tão diversas como soberania, tributação, mudança revolucionária
e caráter nacional.
122
A tradução cultural nos primórdios do Europa Moderna
Foi talvez a catolicidade das metas de Bodin que tornou esse texto tão
atraente em uma variedade tão grande de contextos: embora uma grande parte
do material fosse composta de especificidades legais, ele procurava oferecer
algumas definições políticas e legais mais gerais. Seguiram-se traduções para o
espanhol e o italiano, e em 1606 apareceu uma tradução composta em inglês a
partir das versões para o latim e o francês. Esse foi clatamente um texto muito
popular e importante, que se tornou aceito como a referência sobre a natureza
da lei e da soberania: no julgamento do dinheiro dos navios em 1637, os juízes
ingleses citaram Bodin ao definir a natureza da monarquia de Carlos I.
Obras mais específicas, contudo, tinham um apelo menos amplo. No final
do século XVI, o antiquariato legal defendia idéias de arranjos constitucionais
que deveriam ser concebidos como existentes ao longo de toda a história de
uma nação ou Estado. Essas idéias eram usadas amiúde para defender da
transgressão dos monarcas os direitos das cidades, das corporações ou até
mesmo dos povos. A despeito de sua relevância para conflitos políticos por ,
toda a Europa Moderna, esses textos muito raramente eram traduzidos para
. outras línguas.
De laudibus legum Angliae [Dos louvores das leis da Inglaterra], de For­
tescue, foi traduzido do latim para o inglês por Robert Mulcaster em 1567,
e permaneceu um texto-chave no contexto inglês ao deixar de ser um texto
puramente legal para adqurir um significado político mais amplo. Houve uma
nova tradução em 1616, dessa vez com notas adicionais do jurista e antiquário
John Selden, que passou por seis edições, a última em 1775. Em 1714, ano
em que jorge, eleitor de Hanôver, tornou-se rei, foi publicada uma edição em
inglês com o título The differrnce between an absolute and a limited monarchy, as it
more particularly regards the English Constitution [A diferença entre uma monarquia
absoluta e uma limitada, mais particularmente no que diz respeito à Constitui­
ção inglesa]. Com isso, um texto do século XV, escrito no exílio com o intuito
de persuadir Eduardo IV a governar de uma determinada maneira, tomou-se
parte central da interpretação whig [interpretação liberal] da história consti­
tucional inglesa como sendo uma monarquia limitada, governando um povo
'·
livre. Fortescue, entretanto, nunca apareceu em nenhuma outra língua.
Houve uma edição continental em latim, feita por John Budden em 1610,
·t' do
· texto de Sir Thomas Smith De republica Anglorum: The maner of Gouernment
·-� · or policie of the realme of England [Da república dos ingleses: a forma de governo .
::; ou política cio reino da Inglaterra], de 1576, que conheceu várias ediçõe�. Este
:
t_era menos um texto legal qu� umà descrição da Inglaterra e de como ela era
:.; governada, tal como um viajante informado poderia ter feito.
,
���;:-·., -
 º
Peter Burke e R. Po-chio Hsici (orgs.)
Obras similares de outros países tiveram destinos parecidos. A Grande
monarchie de France [A grande monarquia da França], de Claude Seyssel, .de
1519, teve várias edições em latim no século XVII, e foi às vezes encader­
nada com As leis, de Platão. Também foi traduzida para o alemão por Geor­
ge Lauterbeke com o título Vom Ampt der Kõnige und Regfrrung des gemeinen
Nutzes in d� loblichen Kron Frankreich [Do oficio do rei e do governo da co­
munidade no louvável reino da França], talvez por causa da relevância das
reivindicações francesas dentro do Sacro Império Romano contidas na obra
de Seyssel.
A posterior Francogallia, do protestante francês François Hotrnan, foi tra­
duzida do latim para o francês quase imediatamente após sua primeira pu­
blicação em 1574. Esse texto se destinava a demonstrar a independência da
França em relação ao Direito Romano e a existência e validade de instituições
que podiam agir como um freio ao poder real. As edições em francês e latim
�ram parte de uma campanha comum para descrever uma monarquia francesa
limitada durante as Guerras de Religião, mas os textos não foram traduzidos
para ne_nhuma outra língua. Apesar da possível relevância desse estudo para
os debates sobre a constituição inglesa, ele não chegou ao inglês senão em
1711, quando foi publicado com um título que mostra o preconceito whig
do tradutor - Franco-Gallia, or an Account of the ancient free state of France and
most other parts of Europe before the loss of their liberries, written originally in Latin
by the famous civilian Francis Hotman in the year I 574 [Franco-Gália, ou urna
descrição do antigo Estado livre da França e da maioria das demais partes
da Europa antes da perda de suas liberdades, escrito originalmente em latim
pelo famoso civil Francis Hotman no ano de 1574). Em sua maioria, contudo,
os textos que lidavam com questões constitucionais, fossem estas inglesas,
francesas, dinamarquesas ou alemãs, não encontravam público fora de seu
contexto original.
Gênero li - Monarcas e repúblicas
Um debate dentro da política do período moderno gira em torno de se
uma constituição monárquica seria melhor que a republicana. Na verdade,
essa questão era raramente debatida de forma explícita. Em vez disso, as
vantagens e o valor de uma forma de governo eram exaltadas às expensas da
outra: o verdadeiro debate tendia a ser sobre qual forma de república seria
melhor, ou sobre como um monarca deveria agir.
124
A tradução cultural nos prim6rdios do Europa Moderno
Desde a Segunda Guerra Mundial, muita atenção tem sido dedicada pela
produção acadêmica à tradição republicana no pensamento político europeu
e norte-americano. As idéias políticas das repúblicas citadinas italianas, es­
pecialmente Florença, foram extensamente examinadas por historiadores
corno Hans Baron, Quentin Sk.inner e recentemente James Hank.ins (Hank.ins,
2003-2004; Skinner; van Gelderen, 2002; Skinner, 19 78; Baron, 1955). Eles
enfatizaram a importância das idéias de governariça republicana surgidas na­
quele contexto, e sua longevidade nos contextos inglês e norte-americano.2
Dada a importância dessa tradição intelectual, menos textos do que ima­
ginaríamos foram traduzidos e circularam na Éuropa Moderna. O panegírico
de Leonardo Bruni à cidade de Florença não foi traduzido para nenhuma
língua vernácula, e o Dialogo dei reggimento dei Firenze (Diálogo sobre o regime
de Florença), de Guicciardini, permaneceu em italiano. Em termos de textos
em tradução, a tradição republicana não se mostra particularmente profunda.
O texto que Pocock identificou como central na transmissão dessa tradição,
apesar de sua natureza relativamente heterodoxa, foi Discursos, de Maquiavel.
Jacques Gohorry, cujo principal interesse eram a Medicina e os remédios,
traduziu-os para o francês em 1571, substituindo uma tradução anterior de
1544. O texto foi impresso várias vezes na França e com freqüência encader­
nado junto com a tradução de O príncipe, de Gaspard d'Auvergne. Houve urna
tradução posterior em 1664, e ainda outra em 1694. Em 1615 houve uma
tradução para o holandês, e em 1636 outra para o inglês por Edward Dacres,
que também traduziu O príncipe quatro anos depois. Os Discursos constituem
um bom exemplo de texto cuja disponibilidade não era necessariamente
definida por sua tradução: ele fora impresso em Londres para um público
inglês no original em italiano.
Outro texto importante é De magistratibus et republica Venetorum libri quin­
que (Cinco livros sobre os magistrados e a república de Veneza), de Gasparo
Contarini, concluído em 1534 e publicado em Paris em 1543, e depois disso
muitas vezes na própria Veneza. Contarini descrevia e elogiava a constituição
republicana de Veneza que, no século XVI, permanecia um exemplo vivo e
quase único na Itália de uma política republicana. A idéia de Veneza e da po­
lítica veneziana era importante em toda a Europa. Carlos I reagiu a propostas
constitucionais de seu parlamento dizendo que pretendiam reduzi-lo a um
"doge de Veneza". A tradução italiana, por Domenichi, do texto de Contarini
de 1544 foi publicada várias vezes em Veneza, onde seu apelo era óbvio. Mas
2 VerWootton, 1994; Pocock, 1975; Robbins, 1959.
125
 Peter Burke e R. Po-chio Hsio (orgs.)
ele também encontrou outros públicos: houve uma tradução em francês por
Jean Charrier, publicada por Galliot du Pré, e uma tradução em inglês por
Lewes Lewkenor em 1599.·
O exemplo do republicanismo veneziano foi disponibilizado em duas das
��--
maiores monarquias d a Europa, e possivelmente teve um impacto maior no
desenvolvimento do pensamento republicano do que textos mais explicita­
men te polêmicos que permaneceram sem tradução. Mais adiante no século
XVI; em 1582, o panegírico de Paolo Paruta a Veneza, De/la perfettione della vita
politica (Da perfeição da vida política), também foi traduzido para o francês,
e para o inglês durante o i nterregno por Henry Cary, conde de Mon mouth,
que traduziu os Discorsi politici (Discursos políticos), de Paruta, por volta da
mesma época.
. Apesar da importância de Veneza, era imenso o n úmero de textos tradu­
z_idos em circulação sobre monarquias, e não repúblicas. Um bom exemplo
é o Reloj de príncipes [Relógio de príncipes], de Antonio de Guevara, de 1529.
Guevara (1480-1545) era um franciscano espa nhol empregado n a casa do
príncipeJuan, filho de Fernando e Isabel da Espanha. Posteriormente, tornou­
se monge e inquisidor, e finalmente bispo de Guadix e Mondeí'íedo. Escreveu
um livro na tradição dos espelhos de príncipes, que se passava por conselhos
do célebre imperador romano e estóico Marco Aurélio. Depois que o Libro
áureo de Marco Aurelio foi publicado em 1528 em Sevilha, no que o autor
afirmava ser uma edição pirata, ele produziu uma segun da edição ampliada
com o título Reloj de príncipes, impressa em Valladolid no ano seguinte. Esse
segun do texto era bem maior, mais bem organizado e menos aforístico, em­
bora, assim como a primeira edição, muito do que continha fosse a sabedoria
conven cion al renascentista. Ele enumerava os valores que um prí n cipe deveria
exibir para governar bem, combin ando, como o título sugeria, virtudes pagãs
com cristãs e exortações à piedade.3
Ambas as versões do texto se mostraram instantânea e consiste ntemente
populares na Espanha e mais além. 4 Houve uma edição em francês quase
imediata à versão mais breve, feita por Berthault de la Grise em 1531, nas
prensas de Galliot de Pré, a qual passou por um grande n úmero de reedições.
O texto ampliado foi traduzido por Herberay des Essars (que também tradu­
ziu a imensamente popular história romanesca Amadis de Gau/a do espanhol)
como I.:orloge des princes em 1540 e também passou por um grande número
3 Sobre Guevera, ver Grey, 1973;Jones, 1975.
4 Para as edições ;:m espanhol, vu Foulché-Delbosc, 1915.
126
A trodu�õo culturol nos primórdios do Europa Moderno
de edições. A tradução do primeiro texto para o inglês, publicada em 1539
r por John Bourchier, foi tirada não do original em espanhol, mas do texto em
francês, junto com o prefácio nesse mesmo idioma. Isso era relativamente
··,· comum quando um texto transitava entre diferentes línguas; o francês seria
mais conhecido do que o espanhol na Inglaterra n o século XVII. Em 1557
houve uma tradução em in glês do texto mais c_ompleto, por Thomas North,
famoso sobretudo por sua tradução de Plutarco.
Mambrino Roseo da Fabriano traduziu a versão mais breve para o ita­
liano em 1543, encadernada com sua tradução de lnstitutio principis christiani
[A instituição do prín cipe cristão], de Erasmo, - formando uma espécie de
livro composto de aconselhamento humanista para príncipes. O te�to mais
completo foi_ traduzido por Sebastiano Fausto da Longiano em 1553: ambas
as versões tiveram um grande número de edições. Egídio Albertino traduziu
Guevara para o alemão em 1599, em uma versão que passou por numerosas
edições, e houve uma tradução para o latim deJohannes Wan ckel visando ao '
mercado alemão em 1601. No fim do século XVI, houve também uma edição
. em holandês do Libro áureo, e uma edição integral do Reloj de príncipes em
1617, na verdade tirada do alemão e traduzida do alto para o baixo alemão.
Quando chegamos ao século XVII, o texto de Guevara foi ainda mais longe.
Em 1610 houve uma tradução para o húngaro por János Draskovich, feita
a partir da edição em latim de Wanckel. Em 1616 houve uma tradução em
sueco por Eric Schroder, e em 1738 houve até mesmo uma tradução para o
armênio, por Gabriel Hamazaspean.
O que tornava esse texto tão popular? Parte da razão deve ser que, na
Itália e em outras regiões, a Europa era dominada por monarcas, de modo
que textos refere n tes a sua devida conduta tinham um apelo óbvio. Ape­
sar das difere n ças de cultura política entre as nações européias, em grande
medida elas compartilhavam a instituição da monarquia. A tradução desse
e de outros textos mostra que tinham em comum não apenas a instituição,
mas a compreensão e as visões dessa in stituição sugeridas por autores de
teoria política. O que a história dos textos de Guevara demonstra é que uma
através
.,.;; obra sobre a mo narquia podia ser interessante em toda a Europa,
"'f" de fronteiras geográficas e confession ais. Talvez a razão para que esse texto
;r;; �--·
r:ambém
-� conseguisse. atrair os protestantes é ser essencialmente um texto
· pré-Reforma.
'•:· A universalidade do apelo do texto de Guevara contrasta com a de àlguns
· ,·textos post�riores que têm um viés confessional mais definido. O Tratado de
'.h religión y virtuiies que debe tener d príncipe cristiano [O tratado da religião e
. :::\ ·:> 127
 Peter Burke e R. Po-�hici Hsio (orgs. }
das virtudes que deve ter um príncipe cristão], do jesuíta espanhol Pedro de
Rivadeneira, tinha em muitos sentidos uma moralidade da ação principesca
tão convencional como a de Guevara. Era, porém, mais claro em seus alvos -
não apenas os protestantes, mas todos aqueles que nas questões espanholas
adotassem uma estratégia politique [política] de temporizar com a Reforma.
Depois de ser publicado em Madri em 1595, foi traduzido para o italiano em
1599, para o latim em 1603 e pata o francês em 1610. No contexto de sua
criação foi um texto popular, mas era impróprio para a Inglaterra, a Holanda,
a Suécia ou os príncipes protestantes da Transilvânia.
Em tudo mais polêmica, apesar de ter entrado no Índice papal, a versão
de Nicolau Maquiavel no gênero dos espelhos de príncipes teve uma vívida
história de traduções, talvez como uma versão subversiva de um gênero que
estava em grande demanda, e que levantava questões morais mais comple­
xas do que textos como o de Guevara. II principe passou por várias edições
em italiano na primeira metade do século XV I e foi traduzido para o latim
em 1560; houve uma tradução em holandês em 1615, e uma em inglês em
1640 por Edward Dacres. Ganhou traduções simultâneas para o francês por
Guillaume Cappel e Gaspard d'Auvergne em 1553, e havia claramente gran­
de interesse por esse texto na França . Richard Tuck identificou um grupo
intelectual franco-italiano ativo na França nos anos de 1560 e 1570 que se
identificava de perto com as políticas de Maquiavel e Guicciardini (Tuck, 1993,
.p.40-5). O interesse francês em Maquiavel persistiu no século XVII: houve
uma nova tradução de suas obras completas por Briencour em 1664, e em
1683 apáreceu uma outra tradução de II principe, dessa vez com notas, da pena
e da prensa de Amelot de la Houssaye.5 Foi essa edição que proporcionou
o estímulo para que Frederico II da !?rússia compusesse seu Anti-Maquiavel,
com o qual ela foi freqüentemente encadernada em edições do século XVIII.
Quando este último foi traduzipo para o inglês em 1741, veio completo, com
uma tradução do prefácio de Houssaye a sua edição de Maquiavel.
Havia não apenas espelhos de príncipes no período moderno, mas tam­
bém e�pelhos para aqueles que os serviam como cortesãos e conselheiros.
Essa literatura ganhou importância no século XVI, conforme as cortes se
tornaram mais burocráticas e centralizadas: havia demanda por orientações
sobre como se comportar em tais posições. O destino do Cortegiano, de Bal­
dassare Castiglione, é bem conhecido: °instantaneamente, ele se tornou um
5 Sobre a importância desta ediçao, ver Soll, 2004.
128
A tradução cultural nos primórdios do Europa Moderno
texto popular em toda a Europa e, desde sua origem em Urbino, definiu e
criou a cultura das cortes no período moderno.6
Úm bom exemplo é E/ concejo y consejeros de/ príncipe [O conselho e os
conselheiros do príncipe], do espanhol Fadrique Furió Ceriol, de 1559: este
texto era em pane sobre a estrutura formal dos conselhos que formavam o
governo real na Espanha, e em parte sobre o caráter e as qualificações da­
·l queles conselheiros que ocupavam lugares nele. Apesar das especificidades
da política espanhola, esse texto teve um apelo mais amplo: no ano seguin.te,
uma edição italiana apareceu em Veneza, traduzida por Ludovico Dolce, um
homem mais conhecido hoje como teórico da ane e amigo de Ticiano, que
o apoiou em uma variedade de atividades literárias. Em 1563 apareceu uma
edição em latim, e em 1570 William Blundeville o traduziu para o inglês com
um título que implicava que a hierarquia dos conselhos espanhóis era algo a
ser imitado. Uma versão da tradução em latim foi publicada em Cracóvia, e
dois anos depois a obra de Ceriol foi traduzida para o polonês com o título
Rada paríska (O conselho do senhor). El consejo foi uma das primeiras obras
a considerar a questão do aconselhamento, e se mostrou popular do oeste
ao leste da Europa.
O reino polonês, com uma monarquia eletiva, obviamente dependia de
maneira ainda mais clara de bons conselhos, e por isso não surpreende que
esse texto espanhol tenha chegado tão longe. Um dos poucos trabalhos a se­
guir na outra direção, do leste para o oeste, foi De optimo senatore libri duo [Dois
livros sobre o ótimo senador], de Wawrzyniec Grzymala Góslicki, publicado
pela primeira vez em Veneza em 1568. Góslicki se tornou uma grande figura
política na Polônia ao retornar da Itália, onde De optimo senatore.fora escrito,
e tornou�se um conselheiro com as qualidades que procura descrever. As
edições em latim foram populares, e houve uma tradução para o inglês em
1598 - embora o tradutor tenha errado o nome, tendo uma cópia do texto,
mas não conhecendo o autor. Uma segunda tradução em inglês apareceu em
1660, o ano da Restauração, mas sem aqueles sentimentos que tendiam à
limitação da monarquia.
Outro aspecto dessa literatura que se mostrou popular foi o inspirado
pelo primeiro-ministro de Luís XIII, o cardeal Richelieu. Sua oposição à
expansão dos Habsburgos, e com isso a seu projeto da Contra-Reforma,
era imensamente polêmica, e por isso ele incentivou escritores a apoiar sua
visão de governo e o papel de conselheiro principal, que tornara seu. Duas
6 Ver Burke, 1995, esp. p.55-80.
. .-;J,_ 1
' '
129
 Peler Burke e R. Po-chia Hsio (orgs.)
dessas obras foram traduzidas para o inglês, apesar de não haver uma pessoa
equivalente na Inglaterra a quem tais sentimentos pudessem vincular-se. Le
conseiller d'estat, de Phillippe de Béthune, de 1633, foi traduzido para o inglês
no ano seguinte, e o Ministre d'état, de Jean de Silhon, fez a mesma jornada
em 1658.
Textos que tratassem de monarcas e os que tratavam de cortesãos, con­
selheiros e aqueles que serviam aos monarcas foram imensamente populares
em ·toda a Europa nos séculos XVI e XVII. A.. teoria política se concentrou,
ponanto, nas qualidades necessárias requeridas do monarca ou conselheiro, e
com isso as diferenças entre as situações políticas dos monarcas em diferentes
países europeus não tornavam as idéias de um incompatíveis com as de outro,
como fora o caso com argumentos especificamente constitucionais.
O predomínio da tradição monárquica também �ignifica que é possível
dizer algo sobre a tradição republicana na Europa moderna, cuja transmissão
tinha de ocorrer não por meio de uma tradição ampla, mas de um peque­
no número de textos contemporâneos essenciais. Isso mostra que textos e
exemplos clássicos, tanto da Grécia como de Roma, continuaram a ter uma
influência importante e direta nas idéias políticas. Cícero, Salústio, Plutarco
e Aristóteles foram a inspiração de boa parte do pensam�nto republicano
até o século XVII, e eram provavelmente mais significativos do que textos
vindos de centros do primitivo republicanismo moderno, como Florença ou
Veneza. Isso também pode ser uma indicação de que a prática e a experiência
de diferentes formas de autogoverno na Holanda e nas cidades da Europa,
mesmo naquelas em Estados monárquicos, eram tão importantes como qual­
quer tradição textual.
Gênero Ili - Razão de Estado
A razão de Estado é usualmente associada à monarquia, mas claro que
isso nem sempre foi necessariamente assim. Seus imperativos práticos e
morais giravam em torno do Estado como entidade abstrata e da necessidade
de mantê-lo vivo, e esse era um imperativo que os monarcas tentavam tornar
seu. As conseqüências morais da existência do aparato estatal eram muito
importantes para os europeus modernos, especialmente no século XVII, o que
fica claro quando é considerada a tradução de textos. Um dos mais famosos
estudos da tradição da razão de Estado foi o Politicorum sive civilis doctrinae
libri sex (Seis livros da doutrina do cidadão, ou da política), de Justo Lípsio,
130
A !redução cullural nos primórdios do Europo Moderno
de 1589. Esse texto não apenas passou por um grande número de edições
latinas, como também recebeu imediata atenção dos tradutores.
Como sucesso europeu, a Política foi traduzida por Charles le Ber para
o francês em 1590. No mesmo ano William Jones a traduziu para o inglês,
e Marten Everart para o holandês. Ela apareceu uma vez mais em francês,
traduzida por Simon Goulart em 1594; em p<?lonês em 1595; em alemão em
1599, traduzida por Melchior Hagenaeus; em espanhol e italiano em 1604,
em italiano de novo em 1618 e finalmente em húngaro em 1614.
O texto de Lípsio falava dos imperativos morais do Estado, mas embutida
nos seis livros de seu texto estava uma sabedoria política mais generalizada
que tinha claramente um vasto apelo. Como um texto composto de citações
reunidas em capítulos apropriados, ele era em c_ertos sentidos uma inovação
genérica não desligada do nascimento do ensaio, e isso contribuiu para sua
popularidade. Parte de seu apelo era também sua neutralidade· confessional,_
que provinha da do próprio Lípsio: ele tinha algo a oferecer tanto a católicos
como a protestantes. Em contrapartida, a Ragione di stato, de Giovanni Botero,
,
do mesmo ano, que tratava de um tema similar mas a partir de uma posição
mais contra-reformista, era mais católica, e por conseqüência menos católica.
Publicada em latim em 1590, foi rapidamente traduzida para o italiano, o
espanhol e o francês, e parece ter sido muito popular, mas nunca foi traduzida
para o inglês, o holandês ou o sueco.
As sátiras de Trajano Boccalini no gênero da arte do governo, os Ragguagli
di Pamaso [Notícias do Parnaso] e a Pietra dei paragone [A pedra de toque],·
foram ambas imensamente populares, bem possível por causa de seu tom
descontraído. Ambos os textos foram publicados durante a década de 161O em
Veneza, onde a censura era mais leve e sua indecência não tão inflamatória.
Consistiam em uma série de breves sátiras sobre a cultura política contem­
porânea, duzentas no caso dos Ragguali. Isso queria dizer que os tradutores
estavam livres para escolher a dedo o que traduzir e o que não, e assim para
deixar de escolher o que pudesse irritar as autoridades ou sensibilidades
políticas em casa, ao mesmo tempo em que traziam de fora um ar verdadei-
ramente cosmopolita.
. . Os Ragguali existiam em uma forma muito maleável - a edição em italiano
de 1624, depois da morte de Boccalini, teve algumas sátiras extras acrescen­
.: tadas por Girolamo Briani, e esse foi muitas vezes o caso quando o texto foi
'/ traduzido. A tradução em francês de 1615 era bastante fiel, mas acrescentava
..t': um texto supostamente atribuído a Lorenzo de Médicis. A nadução para o
:;espanhol de 1634, de Pérez de Sousa, selecionou apenas aquelas sátiras que
_131

Peler Eiurke e R. Po0çhi<;i: Hsio (o"rgs.)
não eram ofensivas para o império espanhol, e em edições posteriores outras
foram adicionadas. Uma edição em latim apareceu em 1640, seguida de uma
edição em alemão pouco depois e de uma tradução em holand.ês na década
de 1670. Em 1626 surgiu uma edição de seleções em inglês, em um projeto
colaborativo de John Florio, William Vaughn e Thomas Scott - embora não
seja realmente possível ver muita estratégia nas seleções, salvo o que lhes
caísse no agrado. Uma tradução em inglês quase completa foi produzida
por volta de 1650 por Henry Cary, conde de Monmouth, que deixou de fora
apenas duas das sátiras, as quais eram particularmente viciosas com relação
à rainha Elizabeth 1.
O apelo dessas sátiras em diferentes culcuras e até diferentes épocas
é instrutivo; eram atraentes por si sós, além de adaptáveis, o que mostra
quão importante era a razão de Estado. A discussão da razão de Estado por
Girolamo Frachetta foi traduzida para o francês e incluída na edição francesa
dos discursos de Ammirato sobre Tácito. Mesmo um texto publicado origi­
nalmente em segredo, as Considérations politiques sur les coups d'état [Consi­
derações políticas sobre os golpes de Estado], de Naudé, foi traduzido em
inglês e alemão.
Textos que se encaixam na categoria da "razão de Estado" parecem ter
sido muito interessantes do início do século XVII em diante, e todos, salvo
os mais religiosamente radicais, parecem ter sido capazes de cruzar fronteiras
confessionais. No século XVII, qualquer discussão do Estado e dos imperati­
vos morais de sua existência atraía leitores de um lado a outro da Europa. As
questões de que a razão de Estado tratava - como preservar um Estado em
perigo, como seria possível criar um corpo viável de conhecimentos referente
a assuntos políticos e estatais - eram comuns, e isso explica a popularidade
das traduções de tais t:xtos.
Gênero IV - A literatura da resistência
As teorias da resistência à autoridade estabelecida que emergiram na
segunda metade do século ·xv1 têm sido vistas como uma parte muito im­
portante da história das idéias, especialmente aquelas que exigiam ação em
nome de um povo que tinha se constituído antes da autoridade que sobre
eles imperava. Talvez a mais famosa manifestação dessas idéias fossem as
Vindiciae contra tyrannos [Queixas contra tiranos], escritas por um hugueno­
te durante a� Guerras de Religião francesas, mas destinadas a atrair, além
132
_,
A lroduçõo culturol nos primórdios do Europa Moderno
de um público confessional estreito, católicos moderados que também se
opunham à coroa. Este se tornou um texto popular e importante. Prova­
velmente escrito em laúm por Momay ou Languet, foi publicado em 1579
e muito rapidamente traduzido para o francês, talvez por instigação de seu
autor, em 1581, e substancialmente no mesmo contexto. Em 1588, ano da
Armada, apareceu uma tradução em inglês do Livro IY, sobre a importância
de defender a religião - apropriada para a Inglaterra protestante sob ameaça.
Uma tradução integral, por Wil!,iarn Walker, apareceu em 1648, às vésperas
do regicídio. Walker era um jornalista e panfletista que servia como capelão
a Oliver Cromwell, sendo tão íntimo deste que o chamavam de o "padre de
Oliver". É bastante significativo que tenha publicado um texto desses em tal
época: isso não poderia ter sido feito sem a aprovação de Cromwell. Houve
uma tradução em holandês em 1586, um ponto-chave nas guerras holandesas
contra os espanhóis para estabelecer uma república independente. Finalmen­
te, houve uma tradução para o sueco em 1639.
De iure regni apud $cotos [Do direito do reino entre os escoceses], de George
Buchanan, foi publicado pela primeira vez em 1579, também em latim; era
obviamente um tanto mais específico que as Vindiciae, sendo sobre a Escócia.
Passou por um bom número de edições em latim, e houve uma tradução ho­
landesa feita por Effert de Veer em 1598. Por uma tradução para o inglês ele
teve de esperar até 1680 - o auge da crise da Exclusão, e uma época de possí­
vel rebelião. Houve outra edição em 1689, depois de a Revolução Gloriosa ter
efetivamente ocorrido. Esses dois eventos foram importantes para estimular
a reflexão sobre a resistência. A crise de 1680 foi o motivo da publicação do
altamente conservador Patriarcha, de Sir Robert Filmer, que provocou uma
�érie de respostas enfocando as idéias de resistência e republicanism�. 7 O
radicalismo dos Discourses Conceming Goveinment [Discursos sobre o governo],
de Algernon Sidney, levou à sua execução, mas eles foram traduzidos para
o francês em 1702.
Mais famosos são os Dois tratados sobre o governo, de Locke. Houve uma
tradução em francês quase imediata em 1691 e um grande número de edições
depois disso. Tanto Sidney como Locke foram importantes para o d�senvolvi­
mento do republicanismo francês no século XVIII, e, claro, em suas versões
originais, para as idéias norte-americanas de independência. A resistência
continuou importante durante todo o período moderno, e uns poucos tex-
7 Sobre Filmer e as reações a ele, ver Daly, 1979.
133
 Peter Burke e R. Po-chio Hsio (orgs.)
tos-chave tiveram um alto grau de influência, especialmente no pensamento
político da França, da Grã-Bretanha e da Holanda.
Tradução e intenção 1 - Jaime I e o basilikon doron
Uma coisa que complica a história da tradução são os diferentes motivos
que podia...'TI haver para traduzir-se um texto, e é instrutivo considerar exem­
plos em que tais motivações possam ser deduzidas. Um texto em que isso
fica claro é o Basilikon doron, de Jaime VI e I, publicado pelo rei da Escócia às
vésperas de sua ascensão ao trono inglês. Ele constitui um exemplo interes­
sante por causa d� tentativa de Jaime de que seu texto cruzasse fronteiras cul­
turais e, o que é especialmente significativo no fim do século XVI, fronteiras
confi;ssionais também. O título grego Basilikon doron significa "a dádiva real",
e esse texto foi um exemplo da literatura principesca tão popular na Europa
por essa época. Foi escrito em I 598, e dirigido a seu filho Henrique por um
rei possivelmente preocupado com a própria morte e com a luta sucessória
pelo trono inglês. O manuscrito original foi escrito no dialeto escocês, e a
primeira edição impressa continha certa anglicização: foi de certo modo a
primeira tradução. Em segredo, William Waldergrave imprimiu sete cópias
em Edimburgo em 1599, que foram entregues a criados de confiança da coroa,
inclusive ao tutor do príncipe Henrique (Craigie, 1950, p.4-8).
Seguiu-se uma batalha com a Igreja escocesa quando o livro foi censurado,
sem que se mencionasse a identidade do autor, por opiniões erastianas sobre
o governo da Igreja. QuandoJaime se tornou rei da Inglaterra em 1603, o livro
se tornou parte de uma campanha publicitária para demonstrar suas capacida­
des como monarca e seu direito de governar o novo reino, o da Grã-Bretanha.
Jaime enfrentava o desafio de combinar seus dois reinos em um só e de forjar
uma identidade política que lhe per!]1itisse governar efetivamente em ambos.
Houve, portanto, uma edição nova e ampliada em 1603, com maior grau de
anglicização, de modo que os habitantes de seu novo reino pudessem ler o
livro. Em um novo prefácio ao leitor, Jaime asseverava sua ortodoxia religio­
sa e a probidade dos conselhos do livro, realçando a figura de rei sábio que
desejava assumir. Ele levava a sério seus conhecimentos, tendo sido educado
por George Buchanan, autor de De iure regni apud Scotos [Do Direito do re�no
entre os escoceses], e se orgulhava de sua habilidade de discutir em latim e
em outras línguas com seus oponentes políticos e religiosos, inclusive, famo­
sz.mente, co:n o cardeal Bellarmino quanto ao Voto de Fidelidade.
134
A tradução cultural nos primórdios do Europa Moderno
.. Houve tanta demanda pelo texto na Inglaterra que o trabalho de impres-
,d,· sáo teve de ser repartido emre várias oficinas para se manter em dia: os súdi­
,_. tos de Jaime estavam ansiosos para ler sobre seu novo rei. Houve até mésmo
•. · wna edição em versos de William Willymat, consistindo no texto vertido em
versos paralelos em inglês e latim. Contribuir para o gênero dos espelhos de
príncipes poderia mostrar suas habilidades não apenas a seus novos súditos,
mas ao mundo mais ampio da política européia. Em linha com suas idéias
irenistas, houve um interesse inicial por parte da Europa católica, além da
protestante. O jesuíta inglês Robert Parsons leu trechos do livro para o papa
Clemente VIII, e afirmou que o papa se comovera com a experiência; "e, a
bem da verdade, eu muito admirç, várias coisas nesse livro, e nunca poder.ia
ter imaginado o que nele veria. Que Jesus Cristo o faça católico, pois ele seria
um· espelho para todos os príncipes" (Calendar of State Papers Domestic,
1603-10, p.8; citado em Craigie, 1950, p.27).
Parsons em seguida providenciou para que uma tradução em latim fosse
feita para o exame do papa, afirmando na carta que a acompanhava que fora
encomendada e era uma tradução fiel.
f� Con questa vanno l'ultimi folii della traduttione dei libro de! Re d'lnglaterra,
commandatici da vostra Santità, il padre che l'ha tradotto e huomo dotto et
confidente et s'ha sfor zato d'esprimere la vera semenza dell'autore, et reddere
sensum sensui.8 (Fendo Borghese IV, 95, Biblioteca do Vaticano; citado em Crai­
gie, 1950, p.28)
O papa também recebeu uma cópia da versão em latim impressa em
Londres em 1604, na primeira parte de uma campanha européia. Apesar
desse interesse, os acontecimentos prevaleceram sobre o texto. Na esteira da
Conspiração da Pólvora, a imposição de um voto de fidelidade aos católicos
ingleses e a controvérsia pessoal de Jaime com Bellarmino sobre o assunto
levaram à inclusão da obra no Índice.
, Jaime ainda queria ser um espelho para todos os príncipes da Europa.
;;.,_ Jean Hotman, filho do jurista huguenote François Hotman, foi incumbido
_ por Thomas Parry, o embaixador inglês em Paris, de realizar uma tradução,
::.,_ que Jaime examinou antes de autorizar que a lançassem. Embora Hotrnan
i_. se queixasse de não ter sido pago, sua obra foi uma versão fiel, só tendo
�· ·.
it; -,-.---
[Com esta seguem-se as últimas folhas da tradução do livro do rei da Inglaterra, solicitado
por Vossa Santidade; o padre que o traduziu é homem douto e de confiança, e se esforçou
· por exprimir o real pensamento do autor, e reproduzir sentido por sentido].
 f'ee" Burke e R. p;'.ch_io Hsio (orgs.)
-.
expurgado aquelas passagens que seriam difíceis para os católicos engoli­
rem. Ela se mostrou r:nníto popular ria França após sua publicação em 1603,
passando por muitas edições em Paris e Lyon, inclusive edições piratas. No
· ano seguinte, saiu a t::ram1ç.âo oficial em latim, da qual há cópias em todas as
grandes bibliotecas da Europa. sendo que a encontrada em Uppsala pertenceu
a Sigismundo III, rei da Suécia e da Polônia.
A Europa meridional continuava problemática. Jaime fizera a paz com a
Espanha e queria que seu rexto continuasse essa reaproximação. Dois ingleses
foram incumbidos de uaduzi-lo: John Florio (autor do primeiro dicionário
inglês-italiano e tradutor de Montaigne) para o italiano e John Pemberton
para o espanhol. Essas duas edições, contudo, não chegaram a passar do
manuscrito para a impressão - o protestantismo de Jaime estava claramente
dificultando que ele fosse lido por grupos de outras denominações confes­
sionais, apesar da natureza convencional do texto. O Basilikon doron se saiu
melhor na Europa setentrional. Houve duas traduções para o holandês Jogo
de início, e em 1604 apareceu uma edição em galês, bem como outra em
alemão por Emmanuel Thompson, em 1604; Eric Schroder o traduziu para o
sueco em 1606, e houve uma versão em húngaro em 1612.9 Talvez fosse seu
fracasso na Europa meridional que o tornava um sucesso em outras partes,
já que esse texto era uma versão protestante de um gênero - os espelhos de
príncipes - antes dominado pelos católicos e que, como tal, proporcionava
conselhos apropriados para um príncipe e líder de uma Igreja Protestante
nacional. Os príncipes da Alemanha, da Suécia e da Transilvânia podiam
aprender a ser reformados sem levar a Reforma longe demais e se tornar
fantoches de uma Igreja radical.
. A rapidez com que as traduções apareceram por toda a Europa depois
que Jaime se tomou rei deve ter sido parte de uma campanha destinada a
estabelecer sua credibilidade real e intelectual. Apesar de seu protestantismo,
havia aspectos de seu texto que podiam atrair leitores através das fronteiras;
a crer em Parsons, até o papa achava que ele tinha seus pontos positivos.
O ímpeto para a tradução era o desejo de Jaime de ser um rex pacificus [rei
pacificador] em uma Europa dividida, e sua identidade sem dúvida ajudava
a vender a obra. A julgar pelo sucesso do texto, sua tentativa pode até ter
dado certo, pelo menos em algumas partes do continente, e mesmo entre
seus próprios súditos.
9 Craigie afirma (2) que houve também uma versão em dinamarquês, mas não há evidências
disso. Sobre a tradução para o holandês, Stilma (2005), p.159-237.
136
A tradução cultural nos primórdios do Europa Moderna
Tradução e intenção li - Jean Barbeyrac e o Direito Natural
Se, como autor, Jaimes VI e I podiam inspirar traduções, então, inversa­
mente, às vezes é um tradutor que estabelece um programa de tradução e
publicação de textos que os apresenta sob uma nova �uz.Já vimos que muitos
textos de Direito Natural foram traduzidos por Jean Barbeyrac na primeira
metade do século XVIII, mas deve-se enfatizar que essa foi uma tentativa
destinada a contribuir com algo que ele sentia estar faltando na vida intelec­
tual francesa. Com isso, ele apresentou um conjunto de idéias imensamente
importantes para o progresso do Iluminismo francês.
O que tornou essas traduções tão significativas foi a extensão em que
Barbeyrac as introduziu, anotou-as e procurou moldar a forma como eram
percebidas. Pará ele, elas eram parte de um projete, maior: a apresentação,
em francês, de uma filosofia moral sistemática que se ajustasse a suas idéias
religiosas e epistemológicas. O primeiro livro que produziu foi uma tradução
e anotação de De iure naturae et gentium [Do direito da natureza e dos povos],
de Samuel Pufendorf, uma obra imensamente popular desde sua publicação
em 1672, tendo passado por muitas edições em Londres e Amsterdã. Ele a
prefaciou com uma história da moralidade que procurava mostrar por que a
obra de Pufendorf em particular e os teóricos seiscentistas do Direito Natural
em geral eram tão importantes.
Foi a natureza sistemática de Pufendorf que atraiu Barbeyrac. Ela conseguia
seguir um curso entre o ceticismo completo - citando Montaigne como exem­
plo dessa posição -e uma posição ultramontana, incluindo a crença nas idéias
inatas e a observância servil da interpretação católica das Escrituras: a obra
contém um ataque de fôlego aos Pais da Igreja. Seu ímpeto para isso se devia
em parte a ele pertencer.à diáspora hug·uenote, os protestantes franceses que
tinham sido expulsos da França em 1685, e que estavam por trás de uma série
de diferentes críticas da doutrina moral e política dos católicos franceses. 10
Para justificar esse projeto, Barbeyrac apela para o Ensaio sobre o enten­
dimento humano, de Locke (ele elogia a tradução francesa de Coste): Locke
ataca as idéias inatas, e todavia também proporciona uma base para acredi­
tar-se na razão humana. Ele estava suficientemente investido nessa posição
para passar algum tempo atacando a crítica religiosa de Sherlock a Locke
e sua reafirmação da noção das idéias inatas. Um sistema moral racional e
empirista era o ideal. Pufendorf é elogiado como a culminação do projeto de
10 Hochstrasser, 1993, situou Barbeyrac nesse contexto religioso.
137

-� Peler Burke e R. Po-chia Hsia (orgs.)
Grócio, após a interrupção do equivocado Hobbes, que serve como antídoto
ao sacerdócio enganoso:
;'.- dissipava as fronteiras entre autor e editor. Ele inclui as idéias de outros:
Eles não nos deixaram um Sistema metódico, não definem exatamente todas as
!:! Virtudes, não entram em Detalhes, só dão, conforme a ocasião requeira. Preceitos
i gerais, dos quais devemos· extrair Conseqüências para aplicá-las ao Estado e às
·1
1 Circunstâncias de Pessoas específicas, como seria fácil demonstrar por muitos
! Exemplos, se a Coisa não estivesse evidente para todos os que leram, ainda que
com pouco Cuidado, as Sagradas Escrituras. E. aqui transparece, para mencio­
ná-lo apenas de Passagem, até onde devemos confiar nos Expedientes daqueles
que, depois de terem feito Questão de arruinar à Certeza da Luz da Razão, nos
remetem à Luz da Fé para a resolução de nossas Dúvidas: como se a luz da Fé
não supusesse necessariamente a da Razão. (Pufendorf, i 749, p.72)
Em contrapartida, para Barbeyrac, a filosofia sistemática de Pufendorf
demonstra a conformidade da razão e das Escrituras: para provar isso ele cita
Richard Cumberland, cujo De legibus naturae toas leis da natureza] ele pos­
teriormente traduziria. A apresentação do texto feita por Barbeyrac incluía a
feitura de alterações durante a tradução, para corrigir o que era, a seus olhos,
o barbarismo do latim de Pufendorf. Sua tradução deixou de fora algumas
passagens, especialmente aquelas de citação extensiva de outr�s autores como
prova, e acrescentou outras, muitas delas da obra mais breve de Pufendorf, De
officio hominis et civis [Do oficio do homem e do cidadão], que se tornara um
texto universitário popular. Se sentisse_que a explicação era insuficiente, ele
a expandia, segundo, a seu ver, os princípios de Pufendorf. Era um processo
geral de esclarecimento e apresentação que ele justificou fervorosamente (esta
passagem da introdução não foi incluída na versão inglesa, já que Kennet não
mudara o texto da mesma maneira):
Pous les autres, s'ils veulent admirer jusq'aux négligances, & aux beYÍles d'un
Auteur d'ailleurs tres-estimable, ce n'est past en leur faveur que j'ai soutenu un
si long & si pénible travai!: ils peuvem le mépriser, & s'en tenir au Latin; il n'est
point craindre que !'Original se perde.11 (Pufendorf, 1706, sig m, lv)
Suas notas completavam esse projeto, aiando um texto composto que era parte
Pufendorf e parte Barbeyrac. Nelas, ele defendia as idéias de Pufendorf e, oca-
11 [Quanto aos outros, se q uiserem admirar até as negligências e os enganos de um aut�r de resto
muito estimável, não é pelo bem deles que empreendi um trabalho tão longo e tão penoso:
eles podem menosprezá-lo e se ater ao latim; não há risco de que o original se perca.]
)
·-
:u1 .
138
A traduçõo culturol nos primórdios da Europa Moderna
sionalmente, as criticava, acrescentando passagens de outros autores e aquelas
. do próprio Pufendorf. Era um processo eclético, e que, como Barbeyrac sabia,
Transmiti muitas vezes apenas seu Sentido geral, à minha própria Maneira; de
modo que, a menos que eu cite suas próprias Palavras em Itálico, ou assinaladas
com Aspas invertidas, não se deve imputar tudo o que eu digo ao Autor de quem
tomo emprestada alguma Idéia. Usei o mesmo Método no tocante às Reflexões
perdidas do Autor, que removi para as Notas, pois nem sempre distingui exata­
mente as Coisas que intercalei ou adicionei. (Pufendorf, 1749, p. 74)
A apresentação de uma moralidade sistemática racionalista por Barbeyrac
mostrou-se imediatamente popular e famosa por toda a Europa. Ele domou
·'.. · a latinidade germânica de Pufendorf par� um público francês para o qual o
estilo literário era tão importante quanto a exatidão lógica, e ao fazer isso
deu-lhe uma vida nova.
Seu projeto não parou por aí: ele ainda traduziu De iure belli et pacis [Do
direito da guerra e da paz], de Grócio, e por fim o tratado sobre Direito
Natural, de Cumberland. A importância de seu trabalho ficou clara quando
apareceu a segunda edição da tradução em inglês de Basil Kennet, de 1703,
que Barbeyrac lamentou não ter visto antes de seu próprio trabalho. Não só
as notas de Barbeyrac, e mais tarde seu prefácio, foram incluídas, traduzidas
então para o inglês, como o próprio texto foi anunciado como comparado e
corrigido segundo o texto de Barbeyrac. O mesmo foi feito com a tradução·
de Grócio para o inglês.
A progr�ssiva importância do trabalho de Barbeyrac ficou clara durante o
conflito entre anglicanos da Baixa e da Alta Igreja na Inglaterra na década de
1720. O whig Thomas Gordon, que junto com John Trenchard escreveu Cato's
Letters [As cartas de Catão], as quais se tornaram uma expressão clássica da
ideologia whig e se mostraram imensamente influentes tanto na Grã-Bretanha
·.· como na América, usou Barbeyrac para seus próprios fins. Gordon tomou o
ataque aos Pais da Igreja da introdução recém-traduzida a Pufendorf e impri­
miu-o com uma introdução sua. Em uma época de grande crise no Estado e
na Igreja ingleses, essa foi uma tentativa de refutar à acusação de fanatismo
a que os dissidentes estavam amiúde sujeitos, apontando para a duvidosa
base filosófica da Alta Igreja em oposição à moralidade da Baixa Igreja, tend_o
Barbeyrac.
, sido assim. um projeto compatível com o de
.·
· ./: : . O exemplo de Barbeyrac ilustra tanto a importância da tradução para a
. ;�,. �smissão de idéias como a variedade de papéis envolvidos em tal transmis-
'\;t l'.-!Q
 Peter Burke e R. Po-chio Hsio (orgs.) A tradução cultural nos primórdios do Europa Moderno
:,

são. Suas traduções foram imensamente importantes para as idéias morais e
poÍíticas do século XVlll. Em sua escolha de textos, e em seu remodelamento
de peças por vezes obscuras, ele atingiu um nível de influência no mínimo
equivalente ao dos próprios autores. Assim, o prestígio de um tradutor de-
. dicado podia chegar longe tanto temporal como geograficamente.
censurados ou alterados para um dado público, por vezes a pedido do autor,
e por vezes por um tradutor ansioso por criar um mercado ou apresentar
novas idéias. A adaptação podia ser um processo positivo, permitindo que
um conjunto de idéias florescesse em um novo contexto e proporcionando
inspiração a uma geração nova e diferente. As id�ias políticas dos séculos
XV1Il e XIX deveram muito aos esforços dos autores do período moderno.

Conclusão - Fronteiras da diferença

A tradução revela muito sobre as fronteiras intelectuais e morais na Eu­

ropa moderna e sobre quão porosas elas eram. Houve relativamente poucas
idéias políticas traduzidas entre a Europa oriental e a ocidental, embora isso
talvez não reflita uma incompatibilidade entre as duas, mas sim a contínua
importância do latim no Leste, onde havia maior densidade de línguas ver­
náculas dentro dos mesmos Estados e impérios. Havia também um grau
maior de censura dentro do Império Habsburgo no leste, que afetava centros
como Praga e Graz. As fronteiras confessionais também pesavam muito, e
se tornaram cada vez mais importantes após o Concílio de Trento e o enri­
jecimento das diferenças religiosas entre protestantes e católicos. Enquanto
alguns textos, como Guevara, conseguiram passar, outros, como o Basilikon
doron, de Jaime VI e I, não o fizeram. Isso continuou a afetar escritos de mui­
tos tipos até o século XVIII: as obras francesas da diáspora protestante, que
tanto fizeram para estimular o Iluminismo francês, eram publicadas antes em
Amsterdã do que em Paris: os livros podiam evadir as fronteiras mediante o
movimento físico, tão bem como pela tradução.
O que foi traduzido rev.ela a importância do monarca na Europa moderna,
e o fato de que as idéias políticas com freqüência se centravam nessa figura
ou naqueles que a serviam. A monarquia e o Estado eram grandes temas
que tinham certa universalidade, o que permitia que textos que tratassem
deles transitassem entre o Ocidente e o Oriente, entre católicos e protes­
tantes. Esse predomínio, contudo, não conta toda a história em razão da
persistência de textos republicanos clássicos e sua adaptação e importância
dentro dessas monarquias. O exemplo de Roma e a prática do autogoverno
nas cidades podiam tomar alternativas à monarquia prontamente disponíveis
para a mente moderna.
Tradução também significa adaptação, e a atitude eclética e por vezes
mercenária dos tradutores modernos significavà que havia sempre um fluxo
e refluxo de idéias políticas através da Europa moderna. Textos podiam ser

140 141
 CAPÍTULO 7
Traduzindo histórias
Peter Bu.rke

Seguindo o modelo antropológico sugerido na introdução, este capítulo

examinará traduções de obras históricas como evidência do que os leitores
em diferentes países achavam particularmente interessante ou estranho em
outras culturas no período moderno. Uma descrição das tendências gerais será
seguida por estudos de caso das traduções da História da Itália, de Francesco
Guicciardini, e da História do Concílio de Trento, de Paolo Sarpi.

. O que exatamente conta como uma obra de história não é tão fácil de de-

"<
5,/ cidir como se pode pensar. O próprio termo "história" em diferentes línguas,
do grego antigo historia em diante, constitui um desafio para os tradutores
':. (Lianeri, 2006) . 1 A fronteira entre a história e a ficção era porosa, e alguns
;}' estudiosos podem objetar a inclusão, aqui, de traduções das obras quase his­
� tóricas de Eustache le Noble. A fronteira entre a história e a biografia sempre
·ifoi aberta. No que se segue, biografias são geralmente omitidas, ma� foram
:'tncluídas nos casos de Alexandre,
'
o Grande, Carlos 11 da Inglaterra, o impe-
�'�\-:-.
··1).. � •

�·):,, Meiy; agradecimentos ao autor por mostrar-me esse capítulo antes da publicação.

Peter Burke e R. Po-chia Hsia (args.)
rador Carlos V, Carlos IX da Suécia, Colombo, Cromwell, Gustavo Adolfo,
Henrique IV da França, Henrique VII da Inglaterra, o imperador Leopoldo,
Luís XI, Olivares, Filipe da Espanha, Richelieu, Sebastião de Portugal, o papa
Sisto V e Wallenstein.
o que conta como tradução é igualmente dificil de dizer com precisão.
Por exemplo, um livro do humanista toscano Leonardo Bruni sobre os godos
é por vezes descrito como uma tradução livre de Procópio, mas também como
uma obra original (embora derivada - "roubada", de acordo com Gibbon),
que foi ela própria traduzida em italiano, francês, alemão e inglês. Aqui o
texto será tratado como original, seguindo-se a descrição que o autor fez da
obra como "não uma tradução, mas um livro escrito por mim" (non translatio
sed opus a me compositum). Um problema similar ocorre no caso da história da
Guerra Púnica de Bruni, nesse caso baseada em Políbio - ou traduzindo-o
livremente. 2 Ademais, o humanista francês Blaise de Vigenere produziu uma
edição do cronista medieval Villehardouin à qual acrescentou urna versão do
texto que descrevia como "mais moderna e inteligível". Embora tenha sido
feita do francês para o francês, essa versão será contada como tradução.
Diversamente de outros capítulos no volume, este se ocupará apenas de
traduções publicadas. Algumas traduções circularam, sim, em manuscrito
no período, incluindo uma tradução medieval em russo de Josefo, tradu­
ções em alemão e espanhol da história das Índias pelo jesuíta Maffei, uma
tradução em espanhol da história dos turcos feita por Cambini, traduções
em alemão e inglês da obra dos humanistas italianos Sabellico e Polidoro
Virgílio, e uma tradução em italiano e outra em russo do estudo do Impé­
rio Otomano pelo romeno Dimitrie Cantemir. Mesmo assim, o volume de
traduções publicadas em comparação com as poucas que permaneceram em
manuscrito é tão avassalador que pouco se perderá com a omissão das últi­
mas nesta visão geral.
A importância de traduções modernas dos historiadores antigos seria
de esperar. Em primeiro lugar, traduções do grego para o latim. No Renasci­
mento, algumas foram empreendidas por humanistas famosos como Lorenzo ··
Valia (que traduziu Heródoto e Tucídides), Poggio Bracciolini (Diodoro e
Xenofonte) e Angelo Poliziano (Herodiano). Nos vernáculos, pelo menos 274
traduções de 25 historiadores antigos foram publicadas nos 350 anos entre a ····
invenção da imprensa e o final do século XVIII, mais exatamente entre 1476
entre ,.
2 Bruni citado em Totley, 2004, p.36-7. Sobre a relação com Políbio, Botley hesita
"tradução" (26) e "remodelamento".
144
A tradução cultural nos primórdios da Europa Moderna
e 1792. A tradução dos clássicos atingiu seu pico no século XVI. o lento
declínio d �pois_ di�so pode significar uma perda de interesse pelos clássicos,
ma� pode indicar simplesmente o reconhecimento de que a tarefa já fora con­
clui da. Alguns desses textos foram comercialmente bem-sucedidos durante
um longo período. A versão italiana de César por Baldelli, por exemplo, 0
Josefo em alemão de Lauterbach e o Tácito em holandês de Hooft passaram
todos por muitas edições. O tradutor francês Nicolas Perrot d'Ablancourt
notório por sua liberdade (anteriormente, p.37), traduziu Arriano' Césa/'
Tácito, Tucídides e Xenofonte.
Os "dez mais" entre os autores antigos foram os seguintes: T ácito (28
traduções dos Anais, das Histórias ou de ambos); Josefo (26 traduções das
Antigüidades, da Guerra judaica ou de ambas); Salústio (21 traduções de Cati­
/ina,Jugu rta ou de ambos); César (18); Cúrcio (IS); Xenofonte (14 traduções
da Anábase, da Ciropédia ou de ambas); Justino (12); Tucídides (I l); Políbio
(l l); Diodoro Sículo (11).
Esses não são exatamente os autores que poderíamos esperar. Tomem-se
os trinta primeiros anos de traduções impressas, 1476-1505. As dezessete
traduções publicadas nesse período não incluem nada de Heródoto, Tucídides
ou T ácito. E r:1 :ez disso, encontramos quatro traduções de Cúrcio, quatro
_ _
de Valeno Max1mo, duas de César, de Josefo, de T ito Lívio e de Plutarco, e
uma de Justino.
Oitenta traduções de 27 textos "medievais" foram publicadas, desde a
história da Igreja por Eusébio (traduzida oito vezes) e de outros escritores
cristãos até Froissart (traduzido duas vezes). Incluíam a História eclesiástica
do povo inglês, de Beda (traduzida duas vezes para o inglês), e a crônica de
sax � Gr �ático em dinamarquês (traduzida duas vezes para esse idioma),
_
sinais de Interesse pela história nacional. A inclusão de quatro cronistas das
cruzadas (Benedetto Accolti, Roberto, o Monge, Geoffroi de Villehardoin e
Guilherme de T iro) é um lembrete de que os historiadores medievais não
foram necessariamente desprezados na era do Renascimento.
Treze traduções de sete historiadores do mundo muçulmano, que escre­
.
VIam em árabe, turco OU persa, apareceram impressas nessa época, entre elas
uma crônica otomana anônima e os anais escritos por Sa'duddin bin Hasan
Can (também conhecido como Khojah Efendi), tutor do sultão Murad III,
p ublicados em latim, alemão, tcheco, italiano e inglês. Por outro lado, não
incluíam Ibn Khaldun, cuja fama no Ocidente só veio mais tarde. Além disso,
h �uve uma única tradução do chinês, uma versão para o francês da obra de
Sima Guang pelo jesuíta). A. M. de Moyriac de Mailla (1777-85). O interesse
145
 Peter Burke e R. Po-chia Hsia (orgs.)
pela história do Islã era um sinal da inquietação ocidental quanto à expansão
do Império Otomano.
,,.. A história da Reforma do luterano Johann Sleidan apareceu em italiano-em
li
No que segue, daremos mais ênfase ao que foi menos estudado até agora,
a obra de historiadores ocidentais "modernos", de Leonardo Bruni a William
Roscoe, o historiador de Lorenzo de Médicis. É difi�il pensar em uma maneira
de compilar uma lista completa desses historiadores, mas, como no caso da
tradução para o latim (acima, p.75), acho possível afirmar que examinei uma
grande amostra. foram de_scobertas até agora 553 traduções publicadas de
340 textos escritos por 263 historiadores modernos.
(;orno a introdução deste volume sugeriu, podemos aprender alguma coisa
tanto com a "exportação" como com a "imponação" de textos - em outras pa­
lavras, com as línguas das quais e para as quais os textos foram traduzidos.
O italiano (com 93 textos) liderou a lista de línguas a panir das quais os
historiadores foram traduzidos, seguido pelo francês (noventa), o latim (sen­
tenta), o inglês (36, sobretudo para o holandês até o século XVIII), o espanhol
(25), o alemão (dez), o português (cinco), o holandês (três), o gr�go (dois), o
tcheco (dois) e catalão, hebraico, polonês e sueco, com uma tradução cada.
O inglês liderou as línguas para as quais os textos foram traduzidos, com
140 itens, sendo seguido pelo latim (121), o francês (102), o holandês (88), o
alemão (oitenta), o italiano (59) e o espanhol (trinta). As demais línguas tive­
ram uma contagem baixa: sueco (oito), polonês e russo (sete cada), português
(quatro), dinamarquês e grego (dois cada) e árabe, húngaro e remanche (um
cada). A inesperada importância do inglês e o baixo desempenho da Espanha
devem ser notados. Como no caso da tradução em geral (acima, p.24-25), a
Suécia entrou no ci�cuito no século XVIl e a Rússia, no XVIII.
A maioria das traduções tratava da história da Europa ou de países espe­
cíficos dentro dela nos períodos medieval e moderno. Por volta de 64 textos
tratavam de antigüidades. Cerca de cinqüenta lidavam com o mundo fora da
Europa, quer assumissem a forma de histórias universais, quer enfocassem
regiões como o Império Otomano, a China ou a América espanhola. Cerca de
quarenta textos tratavam de religião, fosse em história eclesiástica, heresias
ou missões.
Vale notar, como de costume (anteriormente, p.31), o que não foi traduzi­
do e por que razões. A presença de Maquiavel no Índice, por exemplo, explica
146
A tradução cultural nos primórdios da Europa Moderna
como sua História de Florença deixou de ser traduzida para o espanhol. Não
é nenhuma surpresa saber que historiadores protestantes eram raramente
traduzidos no mundo católico - as exceções à regra é que são interessantes.
1557, pouco antes de o Índice de Livros Proibidos ser imposto a toda a Igre­
ja, enquanto a Crônica, do humanista alemão Jo�ann Carion, apesar de ter
sido editada por Filipe Melanchthon, apareceu em espanhol em 1553, antes
de ser incluída no Índice em 1559. No mundo protestante, por outro lado,
vários livros de padres católicos como Paolo Sarpi, Famiano Strada e Louis
Maimbourg foram publicados em tradução, mas às vezes disfarçados como
protestantes, como veremos.
O mais interessante, ou pelo menos o máis bem documentado, exem­
plo de uma não-tradução, ou, mais exatamente, da não-publicação de uma
tradução, se refere a uma versão em espanhol da History of América [História
da América], de William Robertson. Proposta pela Academia de História,
apoiada pelo conde de Campomanes e traduzida por Guevara y Vasconcelos,
esse texto teve sua publicação proibida por decreto real (Cafiizares-Esguerra,
2001, p.171-82).
Quanto a problemas lingüísticos, os historiadores britânicos padeceram
pelo fato de o inglês não ser bem conhecido no continente antes do fim do
século XVII. Costantino Belli, que traduziu a descrição do Império Otomano
por Paul Rycaut a partir do francês, se desculpou no prefácio com a obser­
vação de que "esta história foi escrita em inglês, talvez a língua mais difícil
da Europa". Que a história de Henrique VII por Francis Bacon tenha apare­
cido em duas traduções, em francês e latim, em 1627 e 1640, foi bastante
incomum para a época. Todavia, a situação estava gradualmente mudando.
A história da Reforma por Gilbert Burnet foi traduzida para o holandês em
1686, para o francês em 1687 e para o latim em 1689, enquantçi a história da
"grande rebelião" de Lorde Clarendon apareceu em francês em 1704-1709, e
a história de Burnet sobre sua própria época, em alemão, holandês e francês
entre 1724 e 1735.
111
Os historiadores mais bem-sucedidos podem merecer um exame mais
cuidadoso: os.dezesseis autores cujos dezoito textos foram traduzidos cinco
�:; vezes ou mais cada, perfazendo 120 traduções ao todo (\er Apêndice 1),
 . . Peter Burke e R. Po-chia H_sio (orgs.)
. Um texto traduzido onze vezes foram as memórias de Carlos, o Temerário,
e de Luís XI, por Philippe de Comrnynes. Como vimos (anteriormente, p.84),
só as traduções para o latim tiveram no mínimo quinze edições. Outro relato
em primeira mão, a história da queda da dinastia Ming na China pelo jesuíta
italiano M.artino Martini, foi traduzida nove vezes. Graças a suas traduções
para O holandês e o inglês, a obra de Martini foi usada como inspiração para
obras de dramaturgia por Joost van Vondel (Zungchin, 1667) e Elkanah Settle
(A conquista da China, 1676) (Hsia, 2000). A História da Itália, de Francesco
Guicciardini, também foi traduzida nove vezes.
Dois textos foram traduzidos oito vezes cada: os Comentários, de Sleidan,
um estudo que pode ser descrito como uma história política da Reforma, e
a História do Condlio de Trento, de Sarpi. Duas foram traduzidas sete vezes: a
História dos inventores, do humanista italiano Polidoro Virgílio, e a Introdução
à história internacional, do teórico político Samuel Pufendorf, que era pro­
vavelmente usada como livro-texto nos colégios.
Cinco textos foram traduzidos seis vezes cada: a História de seu próprio
tempo, do bispo italiano Paolo Giovio, a História de Florença, de Maquiavel, os
Quatro impérios do mundo, de Sleidan, a Guerra neerlandesa, do jesuíta Strada
(uma história da revolta contra a Espanha) e a História das cruzadas, do ex-je­
suíta Maimbourg. Como as traduções das crônicas de Villehardouin e outros
mencionados, o sucesso desta obra específica do prolífico Maimbourg é um
testemunho do contínuo interesse europeu pelas cruzadas, um movimento
que em certo sentido não se encerrou senão ao final do século XVII, quando
se fez a paz entre os impérios Otomano e Habsburgo.
Seis textos foram traduzidos cinco vezes cada: a História natural e moral das
Índias, do jesuíta José de Acosta, o relato das guerras de Carlos V, de Luís de
Ávila a História da descoberta do Novo Mu;do, de Fernão Lopes de Castanheda,
as Guerras civis da França, de Enrico Caterina Davila, a História dos benefícios, de
Paolo Sarpi, e a História da conquista do México, do espanhol Antonio de Solís,
que era mais conhecido como dramaturgo e hoje está quase esquecido.
Os dezoito textos incluem vários clássicos, notavelmente as obras de
Commynes e Guicciardini, mas há também surpresas para os leitores mo­
dernos, em especial a presença de Solís, Martini e Ávila. O lugar de Ávila
na li�ta se deve provavelmente a uma tentativa deliberada de propaganda
(anteriormente, p.24). Quanto a Martini, ele tinha, como Strada, Acosta e
(por algum tempo) Maimbourg. a vantagem de ser um jesuíta, já que, como
vimos (anteriormente, p.21), essa Ordem estava profundamente envolvida no
ofício de traduzir. Historiadores de ponta do Iluminismo, como Gibbon e Ro-
148
A troduçõo cultural nos primórdios da Europa Moderna
bertson, também teriam aparecido na lista se as datas deste estudo tivessem
sido estendidas por mais alguns anos (duas obras d e Robertson apareceram
em qu.atro línguas cada antes de 1800 e em outras línguas no século XIX).
A história política assume o primeiro lugar nesta lista, com onze textos.
Pode ser significativo que três deles lidem com guerras civis, na China, na
Holanda e na França. A história religiosa é representada pela história da
Reforma, de Sleidan, e pelo relato do Concílio_ de Trento e a história dos
benefícios, de Sarpi, mas as histórias das cruzadas, das Índias, da revolta da
Holanda e das guerras civis na França tinham todas muita coisa a dizer sobre
a religião. Dos dezesseis autores, seis eram clérigos.
Os dezoito textos foram traduzidos de seis línguas: latim (seis), italiano
(cinco), espanhol (três), francês (dois), português (um) e alemão (um), e
para onze línguas: inglês (22), francês (21), holandês (quinze), alemão (ca­
torze), italiano (onze), latim (dez), espanhol (sete), sueco (cinco), polonês
(três), dinamarquês (dois) e português (um). Em outras palavras, eles mais
ou menos seguem o padrão das traduções da história moderna em geral.
IV
Quem lia todas essas traduções? Os números para diferentes línguas,
listados anteriormente, nos dizem algo de importante, muito embora seja
necessário lembrar que uma tradução para uma determinada língua pode
circular fora da área em que ela é a língua materna. No século XVIII, por
exemplo, alguns brasileiros leram a história da América, de Robenson, em
francês.3
O patronato oferece pistas adicionais sobre o público leitor das traduções,
sugerindo a importância da história para as classes governantes. Antoine
Macault traduziu Diodoro para o francês para o rei Francisco I (sobrevive um
retrato seu que o mostra apresentando seu livro ao rei), enquanto o tradutor
de Guicciardini para o latim dedicou o livro ao rei Carlos IX. Na Saxônia,
Georg Forberger dedicou sua tradução de Guicciardini ao eleitor, que ihe deu
uma pensão para que ele traduzisse mais obras de história.
Na Inglaterra, o duque de Norfolk pediu a Barday que traduzisse Salús­
tio. William Ceei!, ministro da rainha Elizabeth, pediu que Arthur Golding
finalizasse a tradução de Cúrcio iniciada por Brend. Christopher Hatton, uma
3 Sobre o cónego Luís Vieira, Maxwell, 2003, p.114.
149
 Peter Burke e R. Po-chio Hsia (orgs.)
figura de destaque na corte de Elizabeth, foi objeto da dedicatória da versão
de B edingfield para a história de Florença por Maquiavel. Três tradutores
eram próximos ao rei Carlos I. O próprio rei estimulou William Aylesbury a
traduzir Davila. Aylesbury foi auxiliado em sua tarefa por Charles Cotterell,
mestre-de-cerimônias da corte. Sir Robert Stapleton ou Stapylton, que tra­
duziu Strada, era outro cortesão, além de ex-monge beneditino, convertido
ao_protestantismo. O último tradutor francês de Sarpi, Pierre-François le
Courayer, dedicou seu trabalho à rainha Carolina da Inglaterra, que lhe pedira
que realizasse a tarefa e lhe concedera uma pensão. No caso de Le Courayer,
a tradução foi publicada por subscrição, de modo que sabemos que o livro
foi comprado - se não lido - pelos grandes e pelos bons, como bispos, pares
do reino e diretores de colégios em Oxford e Cambridge.
As bibliotecas e seus inventários também têm muito a nos dizer sobre o
. público leitor de obras históricas em tradução, bem como na língua original.
Por exemplo, William Ceei! possuía uma cópia de Guicciardini na tradução em
latim, como também ocorreu com Philip Marnix, conselheiro de Guilherme,
o Silencioso, os reis Jaimes VI e I e Andrew Perne, o diretor de Peterhouse.
Sete colégios de Cambridge ainda possuem cópias de Guicciardini em latim,
provavelmente adquiridas nessa época. Além disso, William Camden e An­
drew Perne possuíam Commynes traduzido para o latim, assim como seis
bibliotecas colegiais de Cambridge, enquanto Lancelot Andrewes possuía
Sarpi em latim.
Voltando-nos para as versões em inglês, Andrewes possuía Commynes e
a Histón"a de Florença, de Maquiavel; T homas Baker possuía Bentivoglio; Lady
Anne Clifford, Commynes; Sir Christopher Hatton, Maquiavel; e Sir Edward
Coke, tanto Maquiavel como Guicciardini. A História do Concílio de Trento, de
Sarpi, em inglês, podia ser encontrada nas bibliotecas de Sir Edward Dering,
um destacado membro do Parlamento; do funcionário público Samuel Pepys
(célebre por seu diário); e _de William Byrd, dono de uma plantação na Vir­
gínia, que também tinha Guicciardini e Davila em inglês.
Uns poucos estudos de caso dos 500 tradutores modernos de obras his­
tóricas podem ser esclarecedores neste ponto, já que tradutores podem ser
vistos como leitores particularmente bem documentados.
Quatorze indivíduos publicaram cinco ou mais traduções cada, ou 89
textos ao todo. Alguns deles podem ser descritos como "humanistas", e se
especializaram em traduzir história antiga: o alemão Hieronyrnus Boner, por
exemplo, o mestre-escola inglês Philemon Holland, e Claude de Seyssei, bispo
que também era conselheiro de Luís XII da França.
150
A tradução cultural nos primórdios do Europa Moderna
Outros eram escritores profissionais, como os poligrafi venezianos (Bareggi,
1988). Quatro dos quatorze indivíduos recém-mencionados trabalhavam para
um único editor, Gabriel Giolito, que tivera a idéia de lançar uma série ou um
"colar" (collana) de textos clássicos em tradução junto com "jóias históricas"
(gioie historiche) mais recentes. Tommaso Porcacchi editou a série para Giolito
de 1550 em diante, traduzindo ele próprio cinco textos. Ludovico Domenichi
também traduziu cinco, enquanto o poeta Francesco Baldelli traduziu oito
textos, de modo que Giolito deve ter achado que traduzir história era um bom
negócio. 4 O exilado espanhol Alfonso Ulloa também trabalhou para Giolito,
traduzindo, entre outras obras, a história dos portugueses na Ásia, de João de
Barros, Zárate sobre a conquista do Peru, Lopes de Castanheda sobre as Índias
e uma história das viagens_ de Colombo (Cochrane, 1981, p.317-19; Binotti,
1996). Giollto não era o único a crer que história venderia, pois pelo menos
oito obras históricas foram traduzidas po'r_ outro poligrafo, Pietro Lauro, que
trabalhava para vários editores venezianos.
A maioria dos textos traduzidos pelos poligrafi era obra de historiadores
antigos, mas os modernos incluíam a crônica de Carion, a história de seu
, tempo, de Paolo Giovio, Olao Magno sobre a história do norte da Europa e a
história das invenções, de Polidora Virgílio (Bareggi, 1988). Em outros países,
uns poucos escritores profissionais, como o holandês Lambert van den Bos e
o capitão inglês aposentado John Stevens, se especializaram em traduzir obras
de história moderna. O mesmo fez o nobre e amador conde de Monmouth,
que se concentrou em textos italianos recentes como o de Guida Bentivoglio
sobre a revolta da Holanda e o de Paolo Paruta sobre Veneza.
V
Algumas traduções eram anunciadas em sua página de rosto como par­
ticularmente fiéis. A História do Concílio de Trento, de Paolo Sarpi, foi assim
descrita na página de rosto da edição alemã de 1621 como "cuidadosa e fiel­
mente traduzida" (Jleissig und trewlich versetzt), enquanto a versão da História
dos beneficios, de Sarpi, publicada por Cario Caffa em 1681, foi descrita como
"vertida do italiano para o latim, segundo a letra e o estilo do autor" (ex italico
in latinum versus, iuxta Literam Stylumque Authoris).
Sobre a collana; Grendler; 196�, p.158; cf. Cochrane, 1981, p.383, 388, 420, 487.
' . 151
 PeterBurke e R. ·p�si:hi� Hsio (orgs.)
Apesar de tais declarações, a traduçãó irite.rlingüística de historiadores era
ao mesmo tempo uma forma de tradução cultural, ou seja, uma.adaptação às
necessidades, aos interesses, aos preconceitos e às maneiras de ler da cultura- ;,
alvo, ou pelo menos de alguns grupos dentro dela. Tome-se o caso da tradução
em inglês de Pedro Mexia por William Traheron, que continuou a história
dos imperadores até sua própria época e também, "por alguma razão", como
John Pocock recentemente observou, omitiu "um eloqüente relato do valor e
da antigüidade dos nobres e reis da Espanha" (Pocock, 2003, p.251).
Obras de história, antigas e modernas, eram geralmente lidas no período
moderno como exemplos de conduta a imitar ou a evitar. Como um tradu­
tor de Guicciardini para o latim observou em 1597 (bastante ironicamente,
na· dedicatória de uma coletânea de máximas do autor, Hypomneses politicae
[Memorandos políticos]), a história ensina "não por meio de preceitos nus
e frígidos, mas com exemplos ilustres e vívidos" (non nudis ac frigidis praecep­
tis, sed illustribus et vivis exemplis). A importância da exemplaridade pode ser •
ilustrada pela atenção dada a discursos e aforismos.
Hoje, os leitores podem muito bem se sentir tentados a pular os discursos
que encontram em histórias antigas ou modernas, discursos que sabem ter
sido inventados pelos historiadores, e não proferidos pelos agentes históri­
cos. No período moderno, em contraste, os discursos eram tratados como as
árias de uma ópera - em outras palavras, como a melhor parte. Antologias
de discursos foram produzidas e traduzidas. Por exemplo, os discursos de
Tito Lívio apareceram em francês em 1554. Antologias gerais de discursos de _.
historiadores antigos e modernos apareceram em italiano (em dois volumes _..:.
editados por Remigio Nannini, em 1557 e 1561), francês (editada por Fran- �
çois de Belleforest, 1572, uma versão ampliada de Nannini) e latim (�ditada
por Justus Ge-senius, 1674, e Christoph Keller ou Cellarius, 1699).
A organização dessas antologias dá alguma idéia de como eram usadas. :;
Nannini e Belleforest produziram um volume de discursos militares cada.:
,..
um, enquanto Nannini também editou um volume de orações "civis e cri- C
minais". Os prefácios sugerem que o público-alvo era o dos conselheiros,· ,.
embaixadores e capitães ..
Quanto aos aforismos, a referência desdenhosa a "preceitos nus e frí- -:
gidos" não deve ser entendida muito seriamente como evidência de uma··.
atitude geral, já que algumas edições de Guicciardini (a edição de Veneza em'
1574, por exemplo) dotaram o texto de uma gnomologia, ou índice de aferis�;
mos, permitindo que os leitores os encontrassem sem ler o livro inteiro (cj!;
aforismos também eram assinalados nas margens). Guicciardini constitui
152
A troduçõo cultural nos prim6rdios do Europa Moderno
um exemplo paradoxal nesse contexto, pois, diversamente de seu amigo
Maquiavel, desconfiava de regras gerais que não dessem suficiente atenção
ao que nós chamamos de "contexto" e ele, de "circunstâncias".
Mesmo assim, as observações gerais sobre eventos particulares feitas
por Guicciardini em sua história receberam ênfase especial e algumas vezes
foram tiradas do contexto por seus editores, tradutores, impressores e leito­
res. Antologias desses aforismos foram publicadas separadamente e também
traduzidas para o latim. De maneira similar, uma gnomologia foi adicionada à
edição de Procópio de 1594 em Genebra, ei:iquanto os volumes editados por
Nannini e Belleforest já mencionados também foram dotados de índices de
"aforismos dignos de nota".
A tradução cultural de histórias será agora explorada um pouco mais a
fundo por meio de estudos de caso ou de micro-histórias da recepção euro­
péia de Guicciardini e Sarpi, e em particular da acomodação de sua obra ao
mundo protestante.
VI
Nunca houve uma comparação realmente completa das traduções mo­
dernas da Storia d'Italia, de Guicciardini (nove traduções de um longo texto
para seis línguas),5 mas seria provavelmente reveladora, dada a liberdade
normalmente exercida pelos tradutores nesse período para tanto ampliar
como abreviar o texto original (anteriormente, p.38). Para um brevíssimo
exemplo do processo de ampliação, pode-se tomar a versão em 11lemão; por
Georg Forberger, do famoso retrato _a pena de Alexandre VI, onde a "crueldade
mais que bárbara" (crudeltà piu che barbara)" do autor se torna a "tirania e a
crueldade mais que turcas" (mehr denn Türckische tyranny und grausamkeit).
Para um exemplo ligeiramente mais extenso de tradução cultural, podemos
nos voltar à relativamente pouco conhecida versão em holandês do livro de
Guicciardini, publicada em Dordrecht em 1599 como De oorlogen van lt{llien [As
guerras da Itália], título que foi presumivelmente escolhido porque uma ênfase
em guerras de que a Espanha tomou parte atrairia os leitores da Holanda na
época. O nome do tradutor não é conhecido; mas há indícios de sua filiação
religiosa. A longa cana introdutória ao leitor descreve Guicciardini como um
bom católico, m�s ciente das malfeitorias do papado, e interpreta as guerras
5 Algumas edições e traduções são discutidas em Luciani, 1936.
153
 Peler Burlce e R. Po-chia Hsia (orgs.)
italianas como exemplos dos "justos julgamentos de Deus" (Godes rechtveerdige
oordeelen). Marginalia impressos reforçam a mensagem religiosa, introduzindo
referências a Deus onde o texto não o faz. O notório esboço do caráter de Ale­
xandre VI aparece com uma glosa marginal, notando que o comportamento
do papa estava longe da perfeição que São Paulo desejara ver em um bispo,
enquanto no livro quatro, em que Guicciardini discute os Estados Pontificios,
os ma:ginalia se tornam ensaios em miniatura sobre a Igreja primitiva, algo
que interessaria aos leitores calvinistas holandeses da época.
O destino das passagens censuradas na história de Guiciardini constitui
outra ilustração vívida da tradução cultural. A edição original - póstuma - da
Storia d'Italia, publicada em Florença (1561-1564), não era um texto comple­
to. Certos cortes foram feitos por Bartolomeo Concini, secretário do duque
da Toscana. Como resultado, o livro fez sua primeira aparição destituído de
uma importante "digressão" sobre as origens do poder temporal dos papas,
bem como de certas observações críticas sobre os conclaves papais e de um
retrato nada lisonjeiro de Leão X. Por outro lado, o retrato ainda mais pun­
gente de Alexandre VI foi mantido na primeira edição, embora desaparecesse
da tradução de Florez de Benavides para o espanhol (1581), quer por razões
religiosas, quer "nacionais" Gá que Alexandre, originalmente Rodrigo Borja,
era espanhol).
Os primeiros tradutores, incluindo alguns protestantes, aparentemente
não sabiam que o texto a partir do qual estavam trabalhando tinha sido
cortado. Por isso as primeiras edições da versão em latim por Celio Secundo
Curione, um protestante piemontês refugiado na Suíça (1566), a versão em
francês de Jérôme de Chomedey, consei/ler no Parlamento de Paris (1568), e a
versão em inglês feita - a panir do francês - por Sir Geoffrey Fenton (1579)
careciam todas das passagens censuradas.
Fenton estava um pouco atrás de seu tempo, uma vez que em 1579 já
era de conhecimento público que o texto da primeira edição italiana estava
incompleto, e que pelo menos uma cópia do manuscrito original estava em
circulação (a versão em latim publicada em Frankfurt em 1609 se diz tirada
"ex autographo florentino" [do original florentino]). A passagem ofensiva sobre
o poder temporal foi publicada separadamente (em latim e em francês, bem
como no italiano original) na Basiléia, em 1569, por Pietro Perna, o refugiado
protestante italiano que publicara a tradução de Curione, e uma vez mais
em Londres (dessa vez com a adição de uma versão em inglês) em 1595. Ela
foi restaurada em edições posteriores das traduções em francês e em inglês
(nesta, a panir da terceira, de 1595), na tradução em holandês de 1599 (com
154
A tradução cul!ural nos primórdios da Europa Moderna
uma nota dizendo que a passagem fora omitida da edição italiana) e também
em uma edição em italiano publicada em Genebra em 1621. Entre 1602 e
1739, o texto foi reimpresso separadamente pelo menos onze vezes em uma
ou mais das quatro línguas mencionadas. Raras vezes um texto censurado
atingiu tão ampla circulação, especialmente traduzido.·
Embora Guiccíardini tenha de fato escrito essas passagens, podemos
dizer ainda assim que o fato de ter aparecido impresso revela uma leitura
protestante de sua obra. Ele escreveu por volta de 1530 e morreu em 1540,
em uma época em que ainda parecia que a cisão entre católicos e protestan­
tes poderia ser reparada. Aparecendo uma geração mais tarde, com a ênfase
especial proporcionada pela publicação à parte, a crítica do poder papal foi
vista como muito mais radical. Pode-se dizer que os leitores protestantes
éomeçaram a ver Guicciardini como um aliado.
Foi isso também o que aconteceu no caso de Paolo Sarpi, notoriamente
descrito por Bossuet em sua Histoire des variations des Églises protestantes [His­
tória das variedades de Igrejas protestantes] (1688) como um "Protestant
habillé en moine" [protestante trajado de monge] com "un coeur calviniste" '[um
coração calvinista]. Mesmo a primeira edição italiana da Historia dei Concilio
Tridentino (1619), de Sarpi, foi "traduzida" no sentido de publicada no exterior,
em Londres, depois de o manuscrito ser contrabandeado de Veneza por meio
da embaixada britânica (uma história insolitamente dramática para um livro)
(Yates, 1944; Burke, 1967). Nos paratextos da primeira edição, a Historia foi
reenquadrada como obra protestante, ou pelo menos como uma obra mais
violenta e abertamente antipapal do que o próprio texto.
Por exemplo, a página de rosto chamava atenção para "os artifícios da
corte de Roma para impedir que a verdade dos dogmas se revelasse e que
se tratasse da reforma do papado e da Igreja" (1 'artifici de/1a corte di Roma
per impedire che né la verità de dogmi se palesasse, né la riforma dei Papato e de/la
Chiesa si trattasse). Também houve uma dedicatória a Jaime I por ainda ou­
tro refugiado italiano, Marco Antonio de Dominis, ex-arcebispo de Split,
mas por essa época deão de Windsor. A dedicatória se referia a "espíritos
livres" que tinham ciência das "fraudes e enganos" (le frodi et inganni) d.a
· corte de Roma e de suas "invenções e estratagemas diabólicos" (inventioni e
stratagemi diabolici).
155
 · Peter Burke e R. P�-chio Hsio (orgs.)
Alguns verbetes do índice sustentavam esta mensagem. Winston Chur­
chUI não foi a primeira pessoa a usar o índice de um livro - em seu caso,
a história da Segunda Guerra Mundial - como arma polêmica ("Baldwin,
Stanley, confessa ter posto o panido acima do país"). A tradução holandesa
de Guicciardini, já discutida, inclui um verbete sob o P, "Papa arranca um
bocado de dinheiro do Jubileu" (Paus vischt groot ghelt uit de Jubelee), e outro
sob o G, apontando a discussão crítica de Guicciardini sobre a ascensão dos
Estados Pontifícios.
No caso de Sarpi, essa idéia foi levada ainda mais longe. Por exemplo, o
índice da primeira tradução em francês inclui verbetes sobre a "Reformation
frivole de Pie IV " [Frívola reforma de Pio IV ], a "Servitude du concile par les
commandements de Rome" e a "Usurpation et artífice notable de Rome.
A tradução em latim inclui verbetes como "Paulus III se Concilii cupientis­
simum simulate" [Paulo III pretensamente animadíssimo com o Concílio],
"Translationi Concilii color queritus" [Um pretexto é buscado para mover o
conselho] e "Valdenses per multa secula soli pontificiae tyrannidi contrarii"
[Os valdenses, por muitos séculos os únicos oponentes da tirania papal]. A
tradução em inglês é fria em comparação, embora de fato encontremos um
verbete sob "Paulo III", "Sua principal virtude era a dissimulação". O índice
para a tradução em alemão de meados do século XVIII é também moderado,
exceto no que diz respeito ao cardeal Sforza Pallavicino, que escreveu contra
Sarpi.
O próprio Sarpi preferia a linguagem da ironia e da insinuação à decla­
ração direta, e o debate sobre suas atitudes religiosas ainda continua, mas é .
particularmente interessante nesse contexto notar que o autor ficou emba­
raçado pela maneira como seu livro foi reenquadrado na primeira edição a
fim de atrair leitores protestantes. O secretário de Sarpi, Micanzio, escreveu
para de Domirtis se queixando " [d]aquele título tão impróprio e [d]aquela
dedicatória terrível e escandalosa" (que/ tito/o impropriissimo e quella dedica
terrible escandalosa) (Bianchi-Giovini, 1836, v.II, p.308).
O próprio Sarpi, ouvindo que Jean Diodati, um calvinista de origem ita­
liana que morava e lecionava em Genebra, estava planejando publicar uma
segunda edição da história, escreveu para pedir-lhe que omitisse a dedicatória,
que também está ausente da tradução da história em inglês, publicada em
1620 (Makolm, 1984, p.57, 126). Vale notar que o subtítulo desta tradução
é mais brando do que o da primeira edição em italiano, referindo-se simples­
mente às "práticas da cone de Roma, para impedir a reforma de seus erros e
manter sua grandeza" (Viallon e Dompnier, 2002, p.xliv-li).
156
A tradução cultural nos prim6rdios do Europa Moderno /
A tradução em alemão de 1620, por outro lado, incluiu a "escandalosa"
dedicatória, e no mínimo afiou a linguagem da página de rosto:
Darinn alie Rancke un(d) Practicken entdecht warden/mit welchem der Bapst
and der Rõmische Hoff den Keyser und die Stande des Reichs wegen dess Begenen
Concilii eine lange Zeit geãffet.6
Outros dentre os primeiros leitores reagiram de maneira similar. O erudi­
to francês Pierre Dupuy, por exemplo, escreveu a seu amigo William Camden
que o livro teria ficado melhor sem a dedÍcatória e o subtítulo (Utinam abesset
praefatio et etiam pars ultima tituli) [Quisera lhe faltasse o prefácio e também a
última pane do título]. Outro erudito francês, Nicolas Claude Peiresc, tam­
bém escrevendo a Camden, concordou, dizendo ser uma pena que o editor
não fosse tão moderado como o autor, tendo sido incapaz de "s'abstenir non
seulement de l'arraisonement qu'il a ajouté au titre, et des mots piquants et
paniaux qu'il a entrelacé en l'indice des matieres, mais aussi de son éphre
liminaire" [se abster não apenas do arrazoado que ajumou ao título e dos
termos mordazes e parciais que intercalou no índice dos assuntos, como
também de sua epístola preliminar]. 7
As intenções de de Dominis (como as do próprio Sarpi) podem ter sido
mais ecumênicas do que protestantes, mas foram entendidas como protes­
tantes pelos ingleses mais envolvidos na publicação da história, o arcebispo
George Abbot, o diplomata Sir Dudley Carleton e o advogado Sir Nathaniel
·il" Brent (um cliente de Abbot).
A mensagem paratextual foi frisada nas traduções da Historia que apare­
ceram no mundo protestante.no século XVII, incluindo a tradução em inglês
(1620) de Brent, a anônima tradução em alemão de 1620, a tradução erri latim
anônima (também de 1620), feita na verdade por Sir Adam Newton, deão de
Durham, a tradução em francês de Diodati (1621) e a tradução em holandês
de 1621, de certo Marcus de Rogeau.
Esta última, que se limita aos primeiros cinco livros da história, inclui
uma longa cana prefacia] aos Estados-Gerais comentando a perseguição de
protestantes nos Países Baixos na época de Carlos V e criticando o papa, ou
6 [Em que se revelam todas as intrigas e práticas com que o papa e a corte romana, por conta
de seu desejado conálio, há muito macaqueiam o imperador e os grandes do império] (a
referência à "macaqueação" dos Estados do Sacro Império Romano é interessante como
tentativa de demonstrar a relevância do livro para o público alemão).
7 13 de julho de 1619; citado em Vivanti (1974), p.xci.
157
 Peter Burke e R. Po-chic Hsic (orgs.)
mais exatamente o que o autor chama de os dois papas (o segundo sendo
o general dos jesuítas). Não há índice, mas a linguagem pesada da página
de rosto é mantida, assim como a dedicatória de de Dominis em inglês é
traduzida. De modo geral, a tradução em si é fiel: foram; por outro lado, os
margina/ia que deram a Sarpi um sabor protestante, pois enfatizam os engodas
papais e menos sumariam do que moralizam, com um uso regular de pontos
de exclamação, em particular ao comentar a hipocrisia papal.
Uma tradução católica precisa ser mencionada aqui, pois se trata de uma
tradução antipapal (embora o autor acrescentasse ao texto uma declaração de
seu catolicismo). A versão de Sarpi por Amelot de la Houssaye foi publicada
na França em 1683, logo depois da famosa asserção de independência da Igreja
Francesa ("Galicana") nos Quai:ró Artigos de 1682. O livro contém verbetes an­
tipapais e anticlericais, além de margina/ia, às vezes tão longos que contornam a
p�gina. Sob o verbete "Moines" [monges], por exemplo, encontramos "envieux
les uns des autres" [invejosos uns dos outros] e "comment ils s'enrichissent"
[como eles se enriquecem], enquanto uma nota marginal comp ara um papa
com Tibério (Houssaye era grande admirador de Tácito) dada sua habilidade
de dissimulaçfo: "Plus ce pape tenoit le concile en brassiere, plus iI affectoit
de paroitre populaire dans son discours" [Quanto mais esse papa mantinha o
concílio em rédea curta, mais tentava parecer popular em seu discurso].
A tradição de publicar a História em países protestantes continuou pelo
século XVIII. A tradução de Sarpi em francês, publicada em 1736, apareceu
em Londres, obra_de Pierre-François le Courayer, um padre que deixara a
França após sua defesa da validade das ordens anglicanas e recebera uma
pensão do governo britânico. Essa edição também é digna de nota por seus
paratextos virtuais, um frontispício alegórico incluindo um velho com uma
lan terna e uma vinheta da tentativa da corte de Roma de assassinar Sarpi em
Veneza. Outras obras de Sarpi sobre o interdito veneziano, sobre a história
dos beneficias e sobre a Inquisição foram apresentadas de maneira similar
em suas várias traduções.
Como no caso de Guicciardini, essas muitas versões de Sarpi nunca foram
examinadas tão detalhadamente como merecem, embora as controvérsias a
seu respeito (especialmente a respeito das três traduções em fr an cês) sugiram
o interesse potencial de tal estudo.8 Em seu prefácio, Ho�ssaye, por exemplo,
acusou Diodati de não entender nem italiano nem francês, e declarou que
. "ceux qui confronteront nos deux traductions croiront quasi que nous avons
f1·•
h!. ,
�..;,1
8 . Um começo já foi feito per ViaJlon; Dompnier, 2002.
. 1
.l ' , 158
• 1:
A lrcduçõo culturol nos primórdios do Europa Moderno
traduit deux different auteurs" [os que confrontarem nossas duas traduções
quase crerão que traduzimos dois autores diferentes]. Le Courayer repete esta
crítica a Diodati e acrescenta a sua própria a Houssaye. Essas controvérsias
deixam muito claro como pequenos detalhes podem fazer uma grand� con­
tribuição para o efeito de um livro. Detalhes que, como vimos, nem sempre
foram fornecidos pelo autor.
· Apêndice 1: Os historiadores mais traduzidos
l. José de Acosta, Historia natural y moral, italiano (Galucci) 1591; holandês
(Linschoten) 1598; alemão 1598; francês (Regnault) 1598; inglês (E.
Grimestone) 1604.
2. Luis de Ávila, Commentario, italiano, francês, flamengo, latim, inglês (Wilkin­
son), todas de 1555.
3. Philippe de Commynes, Memoires, italiano (Raince) 1544, (Conti) 1612;
latim (Sleidan) 1545-8, (Barthius) 1629; inglês (Danett) 1596, (Uvedale)
1712; holandês (Kiel) 1612, (Haes) 1757; alemão (Klosemann) 1643;
espan hol (Rizo) 1625; sueco (Schroder) 1624.
4. Enrico Caterina Davila, Guerre, francês (Baudoin) 1644; inglês (Cotterell
e Aylesbury) 1647; espanhol (Varen de Soto) 1651; latim (Cornazanus)
1735; inglês (Farnesworth) 1758.
5. Paolo Giovio, Historia sui temporis, francês (Sauvage) 1550, (Parq-Cham­
penois) 1555; italiano (Domenichi) 1555; espanhol (Villafranca) 1562;
alemão (Forberger e Haluerius) 1570; holandês (Heyns) 1604.
6. Francesco Guicciardini, Storia d'Italia, latim (Curione) 1566; francês Q.
Chomedey) 1568; alemão (Forberger) 1574; inglês (G. Fenton) 1579;
espanhol (Florez de Benavides) 1581; holandês 1599; espanhol (epítome,
Nato) 1683; inglês (Goddard) 1735; francês (Favre) 1738.
7. Fernão Lopes de Castanheda, Descobrimento, francês (Grouchy) 1553; es­
panhol 1554; italiano (Ulloa) 1577; inglês (N. Lichefield) 1582; holandês
(Hoogstraten) 1670.
8. Niccolô Machiavelli, Historia Fiorentina, francês (Brinon) 1577; inglês (Be­
dingfield) 1595; latim (Turler) 1610; inglês (M. K.) 1674; francês 1694;
· holandês (Ghys) 1703.
9. · Louis Maimbourg, Croisades, holandês (Broeckhuizen) 1683; italiano
(Emiliano) 1684; inglês (Nalson) 1685; polonês (Andrzej) 1707; latim
(Wietrowski) 1723; alemão 1776.
. -· .
159
':.
L ·,
;
 . Peter Burke e R. Po-cliio Hsio (orgs.)
1o. Martino Martini, De bello tartarico, aleinão (Paullinus) 1654; francês (Gi­
rault) 1654; holandês (GLS) 1655; inglês 1654; italiano (Latini) 1654;
espanhol (Aguilar y Zufüga) 1665; po rtuguês (Goméz Carneiro) 1657;
dinamarquês, sueco (Nidelberg) 1674.
11. H. Samuel Pufendorf, Einleitung, sueco (P. Brask) 1680; alemão 1682; ho­
landês (V ries) 1684; francês (Rouxel) 1685; latim 1687; inglês (Bohun)
1695; ílJ.SSO.
12. Paolo Sarpi, Historia dei Concilio di Trento, inglês (Brent) 1620; latim (Newton)
1620; holandês (Rogeau) 1621; francês (Diodati) 1621; francês (Houssaie)
1683; francês (Le Courayer) 1736; alemão 1620? (Rambach) 1761.
13. Paolo Sarpi, Beneficii, inglês (Denton) 1681; latim (Caffa) 1681; francês
(Houssaie) 1685; alemão 1688; inglês Oenkyns) 172 7.
14. Johann Sleidan, Quatuor imperia, alemão (Koch) 155 7; inglês (Wythers)
1563, (Darcie) 1627; francês (Le Prevost) 1557; holandês 1583; sueco
1610.
15. Johann Sleidan, Commentaria, holandês (Deleen) 1558; inglês (Daus)
1560, (Bohun) 1689; francês (Le Prévost) 1557, (Le Courayer) 1767;
alemão (Pantaleon) 1557; italiano 1557; sueéo (E. Schroder) 1675.
16. Antonio do Solís, Conquista, francês (S. de Broe) 1691; italiano 1699;
inglês (Townsend) 1724; dinamarquês (Lang) 1747; alemão 1750.
17. Famiano Strada, De bel/o belgico, italiano (Papini e Segneri) 1638-; flamen­
go (van Aelst) 1645; francês (Ou Ryer) 1644; inglês (Stapylton) 1650-,
(Lancaster) 1656; espanhol (Novar) 1681; polonês (Poszakowski).
18. Polydore Vergil, Inventores, francês (Michel) 1521, (Belleforest) 1582;
italiano (Lauro) 1543, (Baldelli) 1587; alemão (Tatius) 1544; inglês (Lan­
gley) 1546; polonês 1608?
Apêndice 2: Edições de Guicciardini sobre as origens dos
estados pontifícios
1569 Loci duo ... quae ex ipsius historiarum libris iii et iv non leguntur, Basiléia
(latim, italiano, francês).
1595 Two discourses of Master Frances Guicciardin, which are wanting in the thirde
and fourth bookes of his Historie, Londres (inglês, latim, italiano, fran­
cês).
1602 Francisci Guicciardini loci duo, s.l. (talvez Genebra) (latim, italiano,
francês).
160
A tradução cultural nos prim6rdios do Europa Moderno
1609 "Discursus de ortu pontifici imperii", in Monita política, Frankfu rt
(latim, italiano, francês).
1609 Paralipomena quae ex ipsius Historiarum libris iii, iv et x in exemplaríbus
hactenus impressis non leguntur, Frankfurt (latim).
1618 Guicdardini, History of Italy, Londres, "with restitution of a dí t,es­
sion towad the end of the 4th booke, effaced out of ali the lt;jlian
and Latine copies in ali the late editions" ["com a restituição de uma
digressão próximo ao fim do 4o livro, apagada de todas as cf;pias
italianas e latinas em todas as edições recentes").
1629 "A part of the Historie of Francis Guicciardine, stolen out of his
third Booke concerning Pope Alexander the sixt", "A second J;l,ace
conteining a large discourse by what meanes the Popes of R-.>me
attained to that greatnesse which they now enjoy" e "A part of che
histoire ofFrancis Guicciardine stolen out of his tenth Booke" [�1.:ma
parte da história deFrancesco Guicciardini, roubada de seu tert..eiro
livro, relativa ao papa Alexandre VI", "Um segundo local cont';";'Jdo
um longo discurso sobre por que meios os papas de Roma ating::.-am
a grandeza de que agora usufruem" e "Uma parte da histór� de
Fr�ncesco Guicciardini, roubada de seu décimo livro") (inglê�1.
c. 1650 "De origine secularis potestatis in romana ecclesia", in H. Con::ng,
De imperio romano, Lyon (latim).
1663 "Paralipomena", reimp. A. Wicquefort (ed.), Thuanus restit.1tus,
Amsterdã (latim, italiano, francês).
1684 "F. G. Historia Papatus_", inJ. H. Heidegger, Historia Papatus, Am�>!rdã
(latim).
1705 "Guicciardini's account by what means the popes usurped -::1eir
temporal power", in The Present State of Europe, Londres (ingl�).
1712 The History of the Papacy wrote by Francesco Guicciardini ... whici. "Nas
fraudulently left out of the 4th book of his history, Londres (inglês,.
1739 Deux passages tres importants clans l'histoire de François Guicciardini, :1aia
(italiano).
161
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CAPÍTULO 8
The Spedotor, ou as metamorfoses do periódico:
um estudo em tradução cultural
Maria Lúcia Pallares-Burke

Pode-se dizer que os destinos de The Spectator [O espectador] inglês

(1711-1714) e de seus seguidores, na Europa e em outras panes, represen­
tam um dos mais bem-sucedidos empreendimentos de tradução tanto literal
como cultural na história da comunicação impressa. Seu estudo proporciona
uma vívida ilustração dos problemas e dilemas do que era conhecido no século
XVIII como a boa e a má imitação, embora hoje a designemos como tradução
cultural - em outras palavras, a adaptação de um texto a novos contextos.
Jornal diário publicado intermitentemente entre 1711 e 1714, o Spectator não
foi o primeiro periódico a ser editado pelos homens de letras ingleses Joseph
Addison e Richard Steele. Eles já haviam colaborado no Tatler, que saía três
vezes por semana entre 1709 e 1711. Seu nome significa "fofoqueiro", e indica
o tom coloquial e também a atualidade temática do jornal.
Todavia, foi no Spectator que encontraram a fórmula para o sucesso tanto
nacional como internacional. Mesmo o início dessa tendência testemunha
que o Spectator, o assim chamado modelo original do gênero Spectator de jor­
nalismo, não envolveu uma completa ruptura com tendências mais antigas,
como usualmente se diz; ele envolveu, na verdade, um trabalho de tradução
cultural, e é mais bem descrito como a culminação de tendências na história
, .. da imprensa seiscentista. Assim sendo, este ensaio começará recuando até
)· as tradições periódicas que o modelo do espectador adotava e, em seguida,
·.. ;·.
 . -�- ::-
Peter Burke e R. Po-chio Hsio (orgs.)
mostrará como o jornal em si foi uma adaptação criativa de tradições perió­
dicas anteriores, políticas, cultas e da moda - a Gazette, o Meréure galante o
Joumal des savants.
A segunda parte, sobre as imitações do Spectator, se concentrará em um
estudo de caso do gênero Spectator de jornalismo, o trabalho de Jacques-Vin­
cent Delacroix. Como Delacroix foi um dos ou mesmo o mais incansável
convicto e persistente dos seguidores do modelo inglês de jornalismo, seu
trabalho não apenas ilumina a história do gênero Spectator, como também
proporciona alguns insights sobre o debate acerca da tradução cultural que
ele provocou.
A ascensão do periódico, 1450- 1700
Uma breve descrição do desenvolvimento da imprensa periódica européia
dá testemunho do importante papel que ela desempenhou no processo de
intercâmbio cultural e das traduções culturais e literais que envolveu. Entre
c.1450 e c.1600, as notícias entravam no prelo de forma antes "ocasional"
que periódica, em proclamações e panfletos de vários tipos, tratassem eles
de batalhas, desastres naturais ou mudanças religiosas como a Reforma Pro­
testante (Seguin, 1964).
Então, na primeira década do século XVII, na Alemanha, vemos O que
pode ser chamado de invenção da folha de notícias, do livro de notícias ou do
periódico, no sentido de uma série de textos publicados a intervalos regula­
res, fosse anual, trimestral, mensal, semanal, quinzenal oú até diariamente,
a fim de oferecer novas infonnações aos leitores (daí o termo "news" [nov�s,
notícias)). As edições eram geralmente numeradas, para que os leitores sou­
bessem se tinham ou não perdido alguma. A tiragem das folhas de notícias
do século XVII girava em torno de 1.500 cópias, e uma prensa podia produzir
600 por dia (Schrõder, 1995, p.5; cf. Raymond, 1996).
As guerras do período - a guerra holandesa pela independência da Espa­
nha (1568-1648), a Guerra dos Trinta Anos na Europa central (1618-1648),
as Guerras Civis inglesas (1642-1651) e assim por diante - sem dúvida impul­
sionaram as vendas dessa nova forma de literatura. Ela normalmente assumia
a forma de uma série de relatos provindos de diferentes cidades - Veneza
Roma, Paris, Viena, Londres e outras, situadas ·nas principais rotas postais'.
Em meados de 1660, havia cerca de cinqüenta jornais europeus, publicados
em latim, italiano, francês, inglês, alemão, holandês e dinamar�uês. Em sua
164
A tradução cultural nos.prim6rdios da Europa Moderno
maioria eram monolíngües, mas em 1660 Georg Greflingen de Hamburgo
publicava notícias em alemão, francês, italiano e inglês. Um dos mais famosos
periódicos do século XVIII, mais conheàdo como a Gazette de Leyde, publicado
em francês na República Holandesa de 1677 a 1811, intitulou-se original.­
mente Traduction libre des gazettesflamandes et autres [Tradução livre de gazetas
flamengas e outras], disponibilizando para os leitores franceses notícias que
normalmente não seriam publicadas na própria França.
Um jornal muitas vezes se apropriava de material de outro. Por exemplo,
um estudo sobre a transmissão de notícias dos eventos de 1669 mostra que
certo jornal, publicado em Copenhague, fazia regularmente empréstimos de
outros publicados em Hamburgo poucos dias antes (Ries, 1977). Todavia, o
editor selecionava informações que poderiam atrair seu público-alvo dina­
marquês, além de traduzir do alemão para o dinamarquês. Nesse sentido,
podemos falar de uma tradução tanto cultural como literal das notícias.
A ascensão do periódico e do mercado para periódicos levou a uma cres­
cente especialização de funções. Desenvolveram-se três tipos de periódico,
especializados em diferentes tipos de informação: políticas, sociais e cultas
(Sgard, 199 I).
Tome-se o caso da França. As informações políticas eram encontradas na
Gazette, fundada em 163 l por Théophraste Renaudot. Publicado com ajuda
do governo e segundo seus requisitos, esse jornal saía duas vezes por semana
e trazia relatos breves e impessoais de grandes eventos políticos, nacionais e
internacionais. Era editado em Paris, mas publicado também nas províncias.
Havia jornais rivais, como as semanais Nouvel/es ordinaires, mas o apoio do
governo assegurava o sucesso da Gazette (Feyel, 2000).
Em segundo lugar, informações sociais podiam ser encontradas no Mer­
cure galant, fundado em 1672, que saía todo.s os meses e oferecia notícias da
corte e do mundo da moda (sobre decoração de interiores e roupas), além de
histórias e concursos (para resolver enigmas, por exemplo, ou para escrever
versos sobre um tema específico), a um público l_eitor mais amplo e especial­
mente feminino. Também esse jornal era financiado pelo governo francês,
mas, diferentemente da Gazette, não dava a impressão de ser oficial, o que
tornava seus elogios regulares ao rei Luís XIV mais convincentes (Dotoli,
1983; Vincent, 1979).
Em terceiro lugar, informações cultas eram proporcionadas pelo]ournal des
savants. A primeira edição, publicada na segunda-feira de 5 de janeiro de 1665,
continha uma nota do impressor sobre a política do jornal: "Le dessein de ce
journal estant de faire savoir ce qui se passe de nouveu dans la République
165

Peter Burke e R. Po-chia Hsia (orgs.)
des Lettres" [J..:neta deste jornal é a de comunicar o que se passa de novo na
República das�as]. Ele conteria quatro tipos de artigos: resumos de novos
livros, obituár� de eruditos, relatos de experiências e decisões de tribunais
leg�s. A úl � seção pode parecer estranha hoje, mas reflete o fat o de que
m uitos erudit-c.ç franceses da época eram advogados ou tinh am estudado
Direito. O plar,i era qu e o jornal saísse seman almente, antes que as notícias
fi c�ss_em desati.:.!izadas ("parce que les choses vieill iroient trop") [porque as
coisas envelht--.�am demais]. Na prá tica, contudo, o Journal des savants s aiu
uma vez por 91.lnzena. Os assuntos discutidos incluíam l itera tura história
ec l esiástica, ll'Was e medalhas, e Filosofia Natural (Morgan, 192;).
Todos os tr!::; mod elos foram imitados fora da Franç a, i lustrando assim o
pro cesso de im<.:;-clmbio cultural. Por exemplo, o mocrelo da Gazette foi ado ­
ta do na lnglatt:::� de Carlos II e na Rús�ia de Pedro, o Grande, bem como na
Espanha.�� L"..rldres, ela saía duas vezes por semana e era ed itada por um
subse cretano dt Estado. Um a edição francesa da London Gazette foi publicada
de 1666 a l 70�. a o passo que em mea do s do sécu lo XVIII a Gazeta de São
Petersburgo saiu� francês e alemão, além de em russo .
O Mercure �f11nt poderia ser descrito como a primeira revista feminina,
mesm o qu e tac.t>ém fosse lido por homens. O primeiro volume apareceu
_ de extenso s resumos em outra, pr op orci onando um subs t it uto t empo rário
em raduçao a.-� o ing l ês, como The Mercury-Gallant, em 1673. Esse empre ­
� �
endu ento na !-',í leva do adian te, mas várias das principais seções do jornal
� �
frances_ foram JJ:,í tadas por concorrentes ingleses como o Athenian Mercury,
produzido pel o t-neiro inglês John Dunton e voltado tanto a mulheres como
a homens, com �lgumas edições especiais "para as damas" e um efêmero
j ornal irmão, Tr,.s; Ladies' Mercury. A lgumas seções especiais sobrevivem em
revistas f em inin:,_; até os dias de hoje, em especial históri as de amor, notícias
sobre a última rr)(',da, concursos e cartas das leitoras, por vez es levando seus
P_ro �lem as à "coluna d a agonia" (McEwen, 1972; Berry, 2003). J ornais espe­
cializados em m,/Ja apareceram algum tempo depois, entre eles o Courrier de
la mode (1768-) 1; o Cabinet des modes (1785-) (Roche, 1989).
Qu to ao mr>delo do ]ourna/ des savants, foi seguido em uma longa série
. �
d e J o rnais cultos c.-uropeus. Entre os mais importantes de les es tavam o Phi­
losophica/ Trans"'tÍ.ons of the Royal Society of London, que entrou em publicação
em 1665, dando mais atenção à Filosofia Na tural que o j ornal fr ancês. Outro
gr �de perió �ico foi a Acta eruditorum [Os atos dos eruditos] (1682-), pro ­
duzida em laum c.-m Leipzig para um público culto internacional e incluindo
mais material sobre humanidad es rio que seu concorrente londrino e menos
material sobre as b elles-lettres do que seu rival em Paris (Ldeven, 1986).
, ,.,.
A tradução cultural nos primórdios da Europa Moderna
O mais fam oso de todos foi o Nouvelles de la république des lettres (1684-),
editado pelo crí tico franc�s Pierre B ay l e de seu local de exílio em Roterd ã e
vol tado tanto aos leitores gerais como aos eru ditos. 1 Seu rival era a Bi�liothe­
que universe/le et historique, editada em Amst erd ã a partir de 1686 pelo exilado
protestante suíço J ean Lecle rc, que justifico u sua existência ao sustent ar
que editores rivais não sabiam línguas estrang eiras o suficiente, e prometeu
relatos de " descobertas" nas humanida de s, bem como na Matemática e na
M edicina. Em 1687 e 1688, a lgumas resenhas de l ivros que saíram na Bib/io­
theque foram escritas por John Locke.
Nesses dois jornais cultos, uma das seções mais importantes era um novo
gênero literário, aesenha de livros, um auxílio inestimável para a se leção e
a discriminação em uma época em que o s le itores corriam o risco de afundar
no " dilúvio" de novas publicações (essa vívida imagem vem da pena de um
bib l iotecário seiscentista). Enquanto o início do sécu lo XVII foi o momento
crucial para o desenvolvimento da folha de notícias, o fina l desse século foi o
período de formação de jornais mensais ou trimestrais ma is substandoso s.
Ambos os periódicos recorriam ao processo de c olaboração internacio nal
e co ntribuíram para tanto . Os ed itores d ependiam de informantes cu ltos de
d iferentes países. Livros publicados em uma língua eram com freqüência alv o
para a tradução . Havia planos de traduzir a l guns dos p�óprios jornais, e por
vários anos as 'Iransactions of the Royal Society of London foram publica das em
latim para os muitos l eitores instruído s d a época que não sabiam inglês.
A carreira de Bay le é um bom exemplo da importância da gran de diásp ora
hugu enote para a ascensão tanto do jornalismo como da tra dução, no final
do sécul o XVII. Dep ois da Revogação do E di to de Nante s em 1685, do is
milhões de protestantes fran ceses enfren taram as alternativas da conversão
a o ca tolicismo ou da expulsão da França. Entre o s 200 mi l que optaram
pel a expulsão, havia muitos ministreis c alvinistas, que migraram em geral
para cidad es protestantes como Amsterdã, Londres ou Ber lim. A o ferta de
ministros nesses lugares exced ia em mui to a demanda, e foi nec essário que
a maioria dos recém-chegados enco ntrasse uma ocupação alternat iva. Al ta­
mente instruídos como muitos eram, uma carreira l iterária era uma e scolha
óbvia, fosse como autores, editores ou tra dutores, ou na nova profissão de
"j ornalista" (palavra que acabava de entrar em uso por essa época, em francês
e inglês) (Yardeni, 1985, p.201-7).
1 Sobre Bayle, Labrousse, 1963-1964.
, , -,
 Peler Burke e R. Po:chio Hsio (orgs.)
A tradução era outra de suas principais atividades; a cultura francesa foi
difundida na República Holandesa, na Grã-Bretanha e na Prússia, e a cultura
inglesa na França, graças aos esforços de huguenotes como Abel Boyer, tra­
dutor de Racine para o inglês; Pierre Coste, mais famoso por sua tradução de
Locke para o francês; Pierre des Maizeaux, que traduziu Bayle para o inglês;
e David Mazel, que traduziu Gilbert Burnet e John Tillotson para o francês.
As fortunas do Spectator,
ou um estudo de caso em tradução cultural
Muitas seções dos periódicos mencionados anteriormente podiam ser
encontradas no efêmero mas extremamente influente jornal The Spectator, que
se destaca como uma criativa adaptação de tradições de periódicos anteriores,
políticos, cultos e sobre moda. Pode-se dizer que esse periódico de princí­
pios do século XVIII fundou efetivamente um novo gênero de jornalismo ao
recorrer aos três modelos já existentes, combinando a:-sim elementos que
costumavam ficar separados, além de acrescentar-lhes algo próprio.
Para começar, Joseph Addison e Richard Steele, os principais autores,
estavam ambos envolvidos na política de seu tempo, e seu jornal fazia co­
mentários sobre política, declarando, como o nome "espectador" implicava,
estar acima dos partidos e apresentar uma visão "imparcial" na era do grande
conflito entre os whigs [liberais] e os tories [conservadores]. Como o Mercure
galante outros jornais sociais, o Spectator também oferecia informações sobre
as últimas modas e tendências, embora escrevesse de um ponto de vista mais
desinteressado e crítico do qu_e seus predecessores, como no famoso exemplo
do artigo sobre o uso do leque (n.102), que atraiu tantos escritores fora da
Grã-Bretanha, inclusive no distante Brasil. 2 Como o Athenian Mercury, ele deu
seguimento às tradições de estimular e discutir as cartas de seus leitores.
Finalmente, como alguns dos periódicos cultos, o Spectator freqüentemente
discutia Literatura, Ciência e Filosofia, embora - como a declaração de in­
tuito publicada na primeira edição deixava muito claro - a meta dos editores
fosse trazer a Filosofia "dos céus à terra" e atrair um público não acaclêmico,
feminino além de masculino. Também aqui ele oferecia tanto informação
como comentários críticos.
2 The Specraror, 1711, n.102; sobre as adaptações feitas pelo seguidor brasileiro o carapuceiro
(1837), Pallares-Burke, 1994a.
168
A lraduçõo cultural nos primórdios da Europa Moderna
Esta síntese criativa poderia ser vista, portanto, corno urna tradução cul­
tural de tradições e gêneros anteriores para uma forma apropriada a certo
tipo_ de leitor inglês, no início do século XVIII. Foi um sucesso instantâneo,
vendendo cerca de quatro mil cópias por dia; sua transformação em livro
ocorreu em uma época em que as edições diárias ainda estavam saindo.
Todavia, o que é realmente notável nesse jornal é que, embora fosse es­
crito dia após dia e se voltasse às preocupações de pessoas que viviam em um
determinado local em uma determinada época, seu apelo tenha se mostrado
muito mais amplo, cruzando fronteiras e até mesmo séculos, como testemu­
nha o grande número de traduções e imitações. O jornalismo de Addison e
Steele também foi traduzido, por assim dizer, para outros gêneros, já que o
Spectator é ampl�ente reconhecido como tendo feito uma importante con­
tribuição para o que os críticos literários descrevem em retrospecto como a
tradição do ensaio inglês. Esses dois jornalistas se converteram, portanto, em
"clássicos". Pode-se até dizer que a posteridade os "traduziu" em clássicos.
Independentemente de se ele iria ou não apreciar esse destino, a reputação
literária de Addison há muito repousa em seus artigos para o Spectator, mais
do que em obras mais ambiciosas como sua tragédia Cato [Catão].
A história de sucesso do Spectator no continente começa com as traduções
literais - nunca completas, apenas parciais. 3 Foram inauguradas pelos france­
ses em 1714, seguidos pelos alemães, os holandeses, os suecos, os italianos,
os portugueses e os russos.4 O jornal teve nada menos que dezoito edições
na Holanda, quatorze na França e quatro na Alemanha, e tornou-se objeto do
que os próprios contemporâneos descreveram como um "culto".
A razão para esse imenso apelo é claramente exposta pelo primeiro tra­
dutor, que levantou a questão: por que traduzir? Explicando-o no prefácio a
"Le spectateur ou le Socrate moderne, ou l'on voit un ponrait naff des moeurs
de ce siecle" [O espectador, ou o Sócrates moderno, onde se vê um retrato
singelo dos costumes deste século] (1714), ele orgulhosamente se colocou
3 As traduções parciais vão desde volumes de seleções, sob o título de Zuschauer, Le speccareur
ou le Socrate moderne etc. - como no caso das traduções para o francês, o holandês, o alemão
ou o italiano-, em que se reconhece claramente a fonte, até a publicação de artigos indi­
viduais do Spectator em vários jornais sem explicitar a fonte, como nos casos do sueco, do
ponuguês, do espanhol e do russo.
4 Sobre os seguidores e as traduções em alemão, Martens, 1968; sobre os holandeses, Van
Boheemen-Saaf, 1984, e Schoneveld, 1984; sobre os franceses, Gilot, 1975, e Gilot e Sgard,
1981; sobre os suecos, Gustafson, 1933; sobre os ponugueses, Picwnik, 1979; sobre os
italianos, Anon, 1753, Scelta delle piu belle et utili speculazioni dello Spettatore (Llvorno); sobre
os russos, McKenna, 1977.
169
 Peter Burke e R. Po-chio Hsio (orgs.)
na posição de mediador entre a Grã-Bretanha e os "países estrangeiros", e
argume ntou que a obra era digna de tradução porque podia ser rel evante
para outros leito res além dos originalmente tencionad os. Ele c onfessava ter
sido movido pela ambição de que a uadução pudesse ser ·seguida em o utras
partes pel os mesmos "bons efeitos" que na Grã-Bretanha, e sustentad o "pela
espe rança d e resgatar os h omens de seus descaminh os e inspirá-l os c om os
p rincípios da Honra e da Virtude".
Como a introdução a este livro sugere, a traduçã o entre línguas é uma
for ma d e tradução entre culturas, e as modificações pelas quais um texto
passa na tradução não resultam apenas de fatores lingüísticos. Assim, nós
vemos, por exemplo, a Catedral de São Paulo se tomando o Paláci o do Kremlin
na tradução russa, escravos e. sucos de frutas tropicais sendo acresc entados
à versão brasileira dos ensai os inglese�, e assim por diante.
. Co m·o mode lo para a imitação mais ou menos livre ou criativa do que se
tornou co nhecido como os "semanários morais", o Spectat or foi novamente
um s u cesso instantâneo. Mas, ao contrário do que se p od eria esperar, as
imitações locais não tomaram o lugar das traduções do original em inglês na
preferência do público . Na verdade, a traduçã o do Spectat or original continuou
a co ncorrer com suas numerosas imitações ao long o de t od o o_ sécul o, apesar
dos esforços de alguns descendentes locais para se alçarem a o seu nível.
As cartas de Goeth e a sua amada irmã C ornélia oferecem um testemu­
nho revelado r do duradouro apelo do Spectator. Insatisfeito com as imitações
alemãs, que eram ruins por copiarem a aparência externa, mas não a "ver­
dadeira essência d o original", G oethe estimulou C ornélia, então com quinze
anos, a iniciar o "aprimoramento" de seu "entendiment o e vontade", lendo
cuidadosamente o Zuschauer em inglês. Seu conselho era categórico: "Tome
u m número após o outro, na o rdem, leia- os atentament e, e, quando algum
nã o lhe agradar, leia-o de novo ( ...) Eles são melhores e mais úteis d o que
se você lesse vinte romances" (G oethe, 1951, p.26-8).
Testemunhos mais impressionantes da r eputação d o Spectat or ao longo do
século vêm das desco bertas de Daniel M ornet, cuja análise de 500 catál ogos
de bibliotecas particulares francesas de 1750 a 1780 revelou que o Spectator
ocupava uma posição de frente, aparecend o com mais freqü_ência do que obras
de Vo ltaire, L ocke ou Rousseau (Momet, 1910).
A lista d os s eguidores do j ornal começa já em 1711 com um jornal h o­
landês publicado em francês, Le misanthrope, de J ustus van Effen.5 NaH olan-
5 Sobre a história internacional do gêneroSpecraror, Rau, 1980, e Pallares-Burke, 1996.
170
A lroduçõo cultural nos primórdios do Europa Moderno
'da, houve cerca de setenta seguidores d o tipo, publicados em holandês ou
;; em francês. Na Inglaterra, as imitações foram descritas como "inúmeras"
:: (Stephen, 1910). Na França, pelo menos cem imitações do Spectator foram
publicadas antes da Revolução, e, como um resenhista francês do século XVIII
� testemunhou no Journal étranger em junho de 1757, a excelência dessa obra
�· estimulava a imitação: "O destino dos bons originais é ( ... ) p roduzir uma
Y infinidade de CO!=)istas, e o Spectat or inglês é pai de uma prole numerosa". No
.f mundo g ermanófono, o número de descendentes foi tão grande que já em
·�,- 1739 L ouise Gottsched, a segunda tradutora do Spectator, declarou em seu
· prefácio que havia tal "multidão de imitações que era dificil listá-Ias".
Seguidores famosos do jornal incluem Der Patriot (Hamburgo, 1724), Der
.. Frepnaurer [O franco -maç om] (Leipzig, 1738), o Patriotiske tilskuer [O espec­
:: tado r patriot.a] (Copenhague, 1761), El pensad or (Madri, 1762). E, saltando
;_ para o século XlX, o bem-sucedido O ca rapuceiro, d o Brasil, proporciona, ainda
nas décadas de 1830 e 1840, evidência adicional do apelo duradouro e vast o
do gênero Spectato r (Pallares-Burke, 1994a).
Uma importante forma de adaptação era a tradução de um gênero para
outro, como n o caso do Female Spectato r (Eliza Hayw ood, Londres, 1744), La
spectatrice (1728), La spectatrice dano is� [A espectadora dinamarquesa] (17 48),
Die vemünftigen Tadlerinnen [As censoras sensatas] (Halle, 1725) e La pensadora
gaditana [A pensadora de Cádiz] (Cádiz, 1763-4) (Pallares-Burke, 1994b).6
Algu mas dessas adaptações for am elas próp rias traduzidas. La spectatrice da­
noise, por exemplo, que era na verdade escrita p or um homem, Laurent de
la B eaumelle, foi traduzida para o alemão em 1756 como Des Herr n de La
Beaumelle Gedanken [Pensamentos do senho r de la Beaumelle].
O grande número de seguidores que s e espalharam pela Europa co mo
uma "to rrente" ou brotaram c omo "cogumelos" (para usar descrições con­
tempo râneas c_omuns desse fenômeno literário) proporciona uma ilustração
muito vívida dos problemas e dilemas da tradução cultural. Um desses pro ­
blemas, como Peter Burke sugeriu, é que o tradutor de um texto e o tradutor
cultural enfrentam o mesmo dilema e ntre a inteligibilidade e a fidelidade. 7
Ess e foi, com efeito, o pr oblema que Borges tentou soluci onar com o
conceito de "infidelidade criativa" que começou a usar na década de 1930. De
acordb com o escritor argentino, o que deve ser elogiado em uma tradução
lares­
6. Para uma comparação entre os Spectators femininos em francês, inglês e esp anhol , ·Pal
Burke, 1993.
.. 7· Entrevista com Peter Burke em Pallares-Burke, 2002, p.141.
 Peler Burke e R. Po -'c�io Hsia (orgs.)
não é tanto sua fidelidade ao texto original, mas sim a audácia com que o ··
tradutor mente, ou, em outras palavras, sua "infidelidade criativa". A tradução
das Mil e uma noites por Mardrus, segundo Borges, mostra que, quanto mais
um tradutor se atreve a mentir, mais valioso ele é, já que seus acréscimos,
inovações e retoques permitem que tenha lugar um enriquecedor diálogo
entre culturas (Borges, 1936). É, de fato, extremamente interessante notar
que houve verdadeiras controvérsias no século XVIII sobre o que era ou não
era uma imitação real e fiel do Spectator, revelando que havia uma consciência
contemporânea do processo que hoje chamamos de "tradução cultural".
É nesse ponto que o trabalho deJacques-Vincent Delacroix (1743-1831)
se torna extremamente relevante. Na história internacional do gênero Specta­
tor, esse homem de muitos dons - jornalista, advogado, historiador, professor
e tradutor - se destaca como o mais convicto e persistente dos seguidores
franceses do modelo inglês, e sua longa carreira proporciona um maravilhoso
ponto de vista a partir do qual se observa o desenvolvimento do gênero e o
debate sobre a tradução cultural que ele provocou. 8
Começando ern 1767 com seu Spectateur en Prusse [O espectador na Prús­
sia] e se encerrando em 1830 com as Nouvelles étrennes du spectateur [rançais
[Notícias inéditas do espectador francês], nada menos que quinze das obras
de Delacroix levam o título de Spectateur. Destas, pelo menos três, e prova­
velmente mais, são periódicos - Le spectateur en Prusse (1768), Le spectateur
françois, pour servir de suite a ce/ui de Marivaux [O espectador francês, para servir
de seqüência ao de Marivaux] (1771-3), Le spectateur [rançais, ou le nouveau
Socrate moderne [O espectador francês ou o novo Sócrates moderno] (1791) -,
enquanto as outras empregam a perso_na do filósofo-jornalista Spectateur como
figura de autoridade, como, por exemplo, em Opinion du spectateur[rançais sur
la proposition de supprimer la peine de mort [Opinião do ·espectador francês sobre
a proposta de suprimir a pena de morte]. ou Le captif littéraire, ou le danger de
la censure, par l'auteur du spectateur [rançais [O cativo literário, ou o perigo da
censura, pelo autor do espectador francês].
Na maioria dessas obras, Delacroix faz referências ao Spectator de Addison
e Steele, um modelo ou tradição de que ele parece indesejoso ou incapaz de
se afastar. Em 1823, por exemplo, ele se despede do gênero, escrevendo Les
8 Para sua biagrafia, ver o verbete de M. Gilot sobre Delacroix em Sgard, 1976, p.109-12;
sobre seu Le spectateur franfais, ver o verbete de Sgard em Sgard, 1991, p.1218-21; sobre
Delacroix como seguidor do Spectator, ver Pallares-Burke, 2004, que dá referências exatas
para as citações dele nos próximos parágrafos.
172
A tradução cultural nos prim6rdios da Europa Moderna
adieux du spectateur du monde politique et littéraire [O adeus do espectador do
mundo político e literário]. Não obstante, um ano depois retorna com seu ·
último adeus em Les demiers adieux du spectateur français [As últimas despedidas
do espectador francês], que seriam novamente seguidas, três anos mais tarde,
por uma carta que o Spectateur[rançais endereça aos parisienses. Finalmente,
em 1829, Delacroix anuncia seu despertar, publicando Le réveil du spectateur
[rançais [O despertar do espectador francês], a ser seguido, um ano antes de
sua morte, por alguns "brindes" para o público, com suas Nouvel/es étrennes
du spectateur [rançais (1830).
Delacroix compartilhava certos traços comuns e importantes com outros
seguidores do Spectator. Em primeiro lugar, como a maioria dos imitadores,
ele freqüentemente se refere ao Spectator inglês como uma obra imortal cuja
perfeição não podia ser igualada. As palavras do primeiro deles, o holandês
Justus van Effen, que escrevia o Misanthrope, havia dado o tom dessa admira­
ção com grande eloqüência: "O que é bom nos bons Spectators é tão excelente
que não vejo como a mente humana possa realizar algo além disso" (La ba­
gatelle, 21 de novembro de 1718).
Como se não est.ivessem se colocando na posição de concorrentes, a
grande maioria dos seguidores parece não ter sentido nenhuma "angústia
da influência". Pelo contrário, parecem extremamente orgulhosos de estar
seguindo os passos do modelo inglês, chegando até a competir uns com os
outros quanto à fidelidade de sua imitação (Pallares-Burke, 1996). Seguindo
o padrão comum, Delacroix admite que "há livros originais que são inimitá­
veis. Foi esse o caso do Spectateur anglois que surgiu no início deste século"
(Le spectateur [rançais, l 791).
Em segundo lugar, os seguidores pareciam estar unidos _nas críticas que
faziam a outros produtos da imprensa. Diziam que havia periódicos demais
preocupados com a própria fama e que, para alcançá-la, só pensavam em
lisonjear e entreter os leitores em vez de ensinar-lhes algo de valor; alterna­
tivamente, não ofereciam senão notícias e opiniões parciais. Diferentemente
de todos esses jornais, os discípulos do Spectator declaravam seguir o modelo
original, inaugurando em seu ambiente local um novo tipo de jornalismo que
se concentrava na educação de seus leitores e se dedicava a unir os homens,
em vez de estimular sua divisão em partidos.
Os imitadores geralmente concordavam que seu interesse pelo bem co­
mum era a principal razão que os levara a trilhar o mesmo cam.inho que o
Spectator original. A leitura do periódico inglês e de seus seguidores era re­
presentada muitas vezes como uma atividade tão boa para a saúde da mente
173
 Peter Burke e R. Po-chio Hsio (orgs.)
como a ingestão de um bom remédio. Van Effen, por exemplo, chegou a de­
finir o Spectator ideal como "um médico dos costumes" (médecin des moeurs),
enquanto houve correspondentes que se referiam às diferentes edições do
Spectator original como "doses" regulares de um "remédio eficaz", ou como
"excelentes limpadores do cérebro".
Um terceiro ponto que unia a família inteira dos Spectators era sua nec�s­
sidade de adotar a persona de um observador olímpico da condição humana,
segun'do o modelo do Sr, Spectator original, um silencioso e atento observador
dos homens que desenvolvera "uma penetração mais do que ordinária para
ver" (S de março de 1711). Seguindo essa tradição, o Misanthrope de Amsterdã,
o Patriot de Hamburgo, a Spectatrice de Paris, a Female Spectator de Londres e a
Pensadora gaditana de Cádiz, em meio a numerosos outros, se apresentavam
como observadores privilegiados que assumem.o papel de guias morais em
nome dó interesse público. O mundo é para eles um teatro que afirmam
observar com a imparcialidade e o desprendimento de um espectador. "Nada
que interesse aos homens e diga respeito a sua felicidade me é indiferen­
te", afirma Delacroix seguindo a mesma tradição (Le spectateur [rançais, n. 4
(1791), discurso 4). O palco de sua silenciosa observação é Paris, e ele vaga
pelos Jardins do Luxemburgo, pela Ópera etc. - como Marivaux e Madame
Spectatrice haviam feito antes dele-, a.firmando-se capaz de enxergar, através
das aparências sociais, a realidade subjacente.9
Um último ponto que unia a família inteira dos Spectators é a necessidade
de colaboradores. A despeito de suas pretensões a uma visão ampla e privile­
giada, as personae editoriais também tendem a se apresentar como incapazes
de abraçar sozinhas todo o espectro da experiência humana. O constante
refrão dos seguidores de Sr. Spectator é a necessidade de repartir sua missão
pública com outras pessoas que também desempenhem o papel de especta­
doras. Essa colaboração podia ser o trabalho ou de amigos específicos que
proporcionavam ao jornal uma grande variedade de informações e pontos de
vista, ou de qualquer leitor que tivesse informações a oferecer, questões a
levantar, críticas a fazer, favores a pedir etc.
The Female Spectator (1744-6), por exemplo, contava com a ajuda de uma
educada senhora casada com "idéias cintilantes", de uma bela jovem e de
uma "viúva de Qualidade", sem contar as "amistosas espiãs" que enviavam
informações de lugares tão distantes como "França, Roma, Alemanha" etc.
Mais audacioso, o dinamarquês Patriotisk.e Tilskuer (1761-3) chega a i�cluir
9 Sobre o Spectateur français, Gilot, 197 5; sobre La spectatrice, Pallares-Burke, 1994b.
17.d.
A troduçóo cultural �os primórdios do Europa Moderno
,•
-�; um camponês na "congregação" que ajudava na organização do periódico (ver
.,' a tradução alemã, Der patriotische Zuschauer, 1769, n. 3).
•. Quanto à participação dos leitores por meio da correspondência; os se-
CJ
�- guidores do Spectator inglês pareciam estar cientes da imponância das cartas
; dos leitores, reais ou fictícias, como estratégia para envolver o público e fazer
·�� dele um cúmplice no projeto iluminista do periódico. Seguindo a mesma
: tendência, Delacroix declara-se feliz por ter, como Sócrates, estimulado os
:� homens a dar nascimento a suas próprias idéias, e por ter publicado as cartas
de leitores que, em seu dizer, "suplementam o conhecimento que me falta"
(Le spectateur [rançais avant la Révolution, discurso 25).
O suíço Bodmer, outro membro da f�mília do Spectator e autor de Die
Discourse der Mahlern [O discurso dos pintores] (1721-3), _fez um comentário
'
bastante revelador ao dizer que o papel das cartas do público no Spectator era
tão grande que a autoria do jornal deveria ser atribuída antes a "toda a cidade
de Londres" do que ao "sr. Richard Steele e seu clube" (v.lll, n.24).
A "questão do Spectator"
e o debate sobre a tradução cultural
O fenômeno das "inúmeras" imitações do Spectator chegou a levantar
na República das Letras um debate acerca do que se poderia chamar de a
"Questão do Spectator", abordando muitos dos problemas discutidos hoje
sob o tópico da "tradução cultural" (Pallares-Burke, 1996).
O periódico parisiense Le joumal étranger (l 754-62), jornal dedicado a
discutir a República das Letras e seus vícios, dá testemunho de um contexto
geral em que tais preocupações cresceram no século XVlll. Com a meta de
enfatizar tanto o valor de diferentes culturas como sua interdependência,
um de seus temas centrais era a imitação literária; como deixavam claro,
procurar por "nós" nos "outros" e pelos "outros" em "nós" era uma maneira
de demonstrar que empréstimos eram relativamente inevitáveis e construti­
vos. Assim, a edição de fevereiro de 1755 sustenta que à comédia Pamela, de
Goldoni, superou o romance original de Richardson. A imitação de Horácio
por Pope e a de Juvenal pelo dr. Johnson também são descritas como "prefe-
. ríveis aos originais". Em setembro de 1755, houve uma longa di_scussão de
. uma imitação inglesa de uma imitação francesa de uma tragédia chinesa, o
'· - Orphan of China [Órfão da China], de Anhur Murphy, derivado do Orphelin
-•
; . de la Chine, de Voltaire, que por seu turno seguia uma tradução francesa de·
. _.;, . "'
:-;,··?·.·
 Peter Burke e R. Po-�hi� .Hsi_o (orgs.) ..
uma peça chinesa, cujo título fora transliterado como Tchao Chi Cou EII (idem,
1994-5, esp. p.192-3).
Mas o que conta como uma imitação boa ou fiel? Essa pergunta se tomou
ser
tema de uma polêmica internacional em tomo do verdadeiro sentido de
um Spectato r.
um Spectator, de escrever como um Spectator, de persuadir como
de
Como se o texto inglês tivesse se tornado sagrado ou canônico, o valor
de sua fidelidade ao que se acredicava ser
seus seguidores era medido a partir
sua forma original de ensinar, e até mesmo ao título original.
Três centros podem ser considerados os cenários dos principais debates
sobre boas e más imitações, ou, como poderíamos dizer, traduções culturais
bem ou malsucedidas, usos legítimos ou ilegítimos do modelo do Spectator:
Zurique, Copenhague e Paris. 10
Em Zurique, Bodmer e Breitinger, autores da primeira imitação em língua
alemã do Spectator, lideraram uma espécie de campanha contra a infidelida­
de do Der Patriot, de Hamburgo, e de Die vemünftigen Taddlerinnen, de Halle,
alegando que não eram leais à "natureza de um texto espectatorial" e não
obedeciam à,s regras da verossimilhança, da imparcialidade e da personifica­
ção dos persoliàgens por meio dos quais escreviam. Era, por exemplo, muito
implausível que o periódico de Halle fosse obra de três amigas. Bodmer dizia
que as personae de Gottsched deveriam primeiro ter sido legitimadas antes de
receber "argumentos masculinos" (Bodmer, 1728, p.41).
Na Dinamarca, os escritores Holberg e Schlegel se referiram a uma ver­
dadeira guerra interna entre os Spectators, que, em meados do século, con­
corriam uns com os outros pelo legítimo papel de professores de moral. Seus
testemunhos revelam algumas das principais questões desse debat·e. A ocasião
da polêmica fora a publicação em Copenhague de alguns peri<:>dicos bastan­
te incisivos e impudentes que, autogenominando-se Spectators, declararam
guerra aos vícios públicos e privados. Seus autores foram criticados por sua
rispidez, por se pronunciarem "donos da verdade" e por presumirem que a
"conversão" das pessoas à moral poderia ser "trabalho de uma semana". Em
vez disso, os críticos sustentavam que um jornalista devia ser mais como um
"professor gentil" que, co� "brandura e graça", trabalhasse pela erradicação
dos vícios e faltas. Mesmo assim, os críticos não aprovavam a maneira terna e
alegre dos escritores franceses, que tampouco consideravamverdadeiram·ente
"espectatorials", já que deixavam de analisar a fundo os vícios humanos e se
10 Cf. Pal�es-Burke, 1996, p.7-8.
176
A troduçõo cultural nos primórdios do Europa Moderno
mantinham no nível de triviais lapsos de etiqueta (Holberg, 1754; 1748-9;
Schlegel, 1745-6, n.1).
Em Paris, o debate francês parecia corroborar tais pontos, e há bastante
evidências dos termos do debate em resenhas e comentários, desde a Bibliothe­
quefrançaise (1724) e o Joumal encyclopédique (1759) até a Année littéraire (1777,
1784) que, no correr dos anos, fizeram comparações entre os novos Spectators
e o modelo que deviam seguir. Intitular-se Spectateur (ou Censeur, Observateur,
Menteur etc., todos eles títulos que aludiam à tradição do Spectator), implicava
um compromisso com uma maneira de escrever que, se não fosse observada,
constituiria uma falta a ser denunciada na ·República das Letras.
A importância de Delacroix nesse debate se deve em particular a sua obra
ter sido um objeto de discussão entre os críticos que o viam através das lentes
desse debate. É interessante notar que a recepção de sua obra na República
das Letras foi, embora nem sempre calorosa, pelo menos encorajadora pela
reação que provocava em pessoas tão diferentes como Fréron, Voltaire, Grimm
e os jornalistas do Journal encyclopédique. Voltaire ficou impressionado com
seu Spectateur de 1771 e o saudou em uma carta do mesmo ano como um
legítimo herdeiro de Addison e Steele, elogio que o barão Grimm considerou
absolutamente indevido e nocivo para a tradição do Spectator, especialmente
considerando-se que esse elogio estimulava assinaturas imerecidas do tra­
balho de Delacroix.
É um "elogio sacrílego" chamar esse Delacroix de verdadeiro descen­
dente de Addison e Steele e somente a "clemência divina" pode perdoar essa
"blasfêmia", diz Grimm, à sua maneira bombástica. Ele associava Delacroix
a "uma tropa de irascíveis profetas" e declarava que era impossível ter um
Spectateur na Frapça com esse tipo de jornalista pretensioso. Segundo Grimm,
ô que tornava Delacroix não espectatorial era sua falta de modéstia (Barão
Grimm, 1830, p.406-7).
Notavelmente similar à opinião de Grimm foi a de Fréron na Année Lit­
téraire poucos anos depois, ao resenhar uma nova edição do Le spectateur de
_ 1770-1772, em que o elogio de Voltaire é uma vez mais atacado. O estilo de
Delacroix é por demais "pretensioso" e "pomposo", com imagens· demais,
estando tudo "estranhamente fora de lugar" em um Spectator que almeja "es­
boçar as maneiras de seu século". Seguindo as mesmas linhas está sua crítica
da maneira imodesta como o Spectateur elogia os philosophes como "homens
celestiais" por meio dos quais a humanidade pode ser libertada das trevas em
que permanece; igualmente antiespectatorial é a maneira como o Spectateur
desempenha seu papel educacional. A primeira meta do Spectator, diz ele, é
177
 Peter Burke e R. Po-chio Hsio (orgs.)
seguramente instruir, mas nunca deve fazê-lo como um "novo Prometeu" que
entrega "luz" à humanidade; pelo contrário (e exatamente como os comen­
taristas dinamarqueses já haviam dito), deve fazê-lo gentil e discretamente,
como Sócrates, "esse antigo Spectator", havia feito (I:année littéraire, 1777).
Entusiástfco quanto a um periódico que tinha o mérito de tanto agradar
ao público como instruí-lo ao mesmo tempo, o Journal encyclopédique (1777)
lamenta, contµdo, que apesar de seu talento Delacroix não tenha atuado
como um verdadeiro Spectator, e isso por uma das razões também apontadas
pela Année /ittéraire: sua indisposição de deixar seu "gabinete", onde estuda
sobretudo livros e a si mesmo, em vez de a homens de verdade. É impossível
ser um "pintor" fiel de "nossos ridículos, de nossos defeitos, de nossos vícios,
da natureza hÚmana", sem exercitar o talento da observação.
Fréron também observou em sua resenha da nova edição de Declacroix
para o.Spectateur [rançais que Steele e Addison não se anunciavam como ho­
mens solitários, mas, pelo contrário, como "voyeurs" que observavam os ho­
mens em praças públicas, assembléias, teatros, alcovas e ateliês, na "ruidosa
liberdade das orgias burguesas", de onde recolhiam material para a "magis­
tratura moral" que haviam assumido - e que aqueles que os seguiam, verdade
fosse dita, deveriam igualmente assumir.
Em suma, alguns pontos bastante interessantes se destacam nas com­
parações feitas pela República das Letras francesa entre os novos membros
da "família" do Spectator e seu modelo. Um Spectator não devia ser tristonho,
solitário ou contemplativo, mas um alegre e ativo espião que, em vários
lugares, reúne material para sua "magistratura moral", ou seja, para corrigir
a moral e as maneiras e atacar os vícios. Seu espírito deveria· ser similar ao
que prevalece em um "teatro cômico", onde a cena é marcada pelo "deleite"
e pela "animação" enquanto a crítica social está sendo feita.
Esse tipo de trabalho chegou a ser descrito por um resenhista como o
"suplemento da comédia" que faria o tempo todo o que o teatro só faz nas
apresentações, ou seja, "aplicar um pronto remédio" aos tolos atos que "se
sucedem uns aos outros no palco do mundo". Mas, acima de tudo, esse
"remédio" devia ser prescrito com graça e tato de modo a ser engolido pelo
"paciente" quase que sem notar (Z.:année littéraire (1771), VII, _124-7).
Nesse debate sobre o Spectator, um segundo ponto imponante a notar é a
reflexividade de Delacroix, ou seja, seu papel como espectador dos Spectators,
sua repetida reflexão sobre o papel espectatorial que ele havia desempenhado
na França durante tantas décadas, do final de 1760 até 1830, tendo sobrevi-
. vido aos regimes de Luís X:V e Luís XVI, à Revolução, à primeira República,
178
A tradução cultural nos primórdios do Europa Moderno
a Napoleão, Luís XVIII, Carlos X e Luís Filipe. Conforme ouvimos suas
repetidas reflexões sobre o papel do espectador e suas réplicas aos críticos,
vislumbramos algumas das maneiras como esse atraente gênero setecentista
foi adotado e traduzido, ou seja, adaptado às diferentes circunstâncias que
encontrou ao longo de sua duradoura carreira.
O próprio Delacroix faz comparações entre a_s circunstâncias em que o
Spectator diário original fora publicado e sua própria iniciativa. Delacroix
lembra a seus leitores em 1770 que o inglês estava dirigindo suas páginas a
uma sociedade que já havia passado por uma grande revolução e os editores
estavam simplesmente tentando consolidá-la, convertendo a nação inteira à
nova maneira de pensar e agir associada com o novo regime. E, como Addison
e Steele tinham de lutar ape�as com o gosto de seu público, e não com a fúria
dos censores, só precisavam ter talento suficiente para disfarçar seüs ensi­
namentos como diversão de modo a atrair o público. Eles podiam, contudo,
atrever-se a esclarecer seu público com "grandes verdades", e podiam falar
de tudo: "política, legislação, governo, ministérios"; enquanto ele, Delacroix,
tinha de se manter afastado desses "grandes assuntos" e, contentando-se com
"uma gama muito mais estreita de coisas", simplesmente observar os homens
como eles são, "sem atrever-me a dizer como deviam ser".
Assim, as críticas a suas observações como frívolas e rasteiras eram in­
justas, ele argumentava, e não lhe davam crédito pela coragem necessária a
desempenhar o papel de espectador em uma época em que havia preconceito
contra esse "mero título". Anos mais tarde, após a Revolução, ele achou que
a aclamada liberdade de expressão lhe havia concedido o direito de não falar
de bagatelas e de poder repetir o que seu modelo inglês havia feito, ou seja,
falar às claras e sem muitas indiretas sobre o que até então fora forçado a
disfarçar inteiramente. Em 1791 ele se equivocou a ponto de acreditar que
o novo regime político lhe permitiria imitar Addison e Steele, transmitindo
nas páginas periódicas o mais útil curso de "moralidade prática". "Os vícios
e as faltas dos grandes, que haviam estado ocultos por trás de seus títulos, de
seu grau e de suas distinções, apareceram em plena luz do dia" no Spectator
inglês, disse Delacroix em 1791. "Aqueles que se julgavam acima das críticas,
graças a sua riqueza ou status, foram desmascarados."
Nenhuma mudança real havia ocorrido, contudo, e quando em 1793-1794 -
gentilmente e com cuidado - ousou criticar os revolucionários no poder e
sugerir o que eles deviam fazer, quase perdeu sua cabeça. Foi preso e conde­
nado como reàlista e "inimigo público" da Revolução por ousar aconselhar a
Convenção a ouvir o público e não julgar o rei.
•:179
 Peter Burke e R. Po-chia Hsio (orgs.) A tradução cuhural nos primórdios da Europa Moderno

Conforme o tempo passava e Delacroix continuava a agir como espectador t

. o;;
xado para que a posteridade a completasse, levando em conta as diferenças
· e a refletir sobre o papel com que se identificara tão completamente, fica claro :;·· de geração, as nacionais e as históricas.
o que ele entende como seu real significado: ser um espectador é, antes de ·;�
0

Como que corroborando a idéia de Borges da "criatividade infiel" como

tudo, não ser nem realista nem republicano, mas um moralista que acredita·f regra para uma tradução de sucesso, Delacroix diz que "seria contra as re­
que a felicidade do Estado depende do respeito pelos modos (moeurs); e que,'-� gras artísticas empregar a mesma cor para pintar duas nações diferentes",
por amor à humanidade, tenta intervir até onde pode nos assuntos humanos sugerindo que estava claramente ciente de que, para continuar fiel à tradição
a fim de minimizar os sofrimentos e a dor que vê e prevê. do Spectator e para seguir corrigindo a moral e as maneiras, ele precisava ser
O que Delacroix tomou, então, do texto original inglês foi por assim diferente - em outras palavras, precisava continuar mudando para assim
dizer a inspiração para um tipo de escrita que correspondia a suas crenças ,. permanecer o mesmo, isto é, um verdadeiro, alegre e ativo Spectator.
humanitárias e lhe oferecia uma estratégia essencial para o sucesso no papel Delacroix não tinha o talento de Addison e Steele (como, aliás, ninguém
de um moralista cuja meta é, como ele insistia, produzir "le bien géneral". mais parece ter tido), mas tinha de fato uma contribuição individual a fazer
Tratava-se fundamentalmente da estratégia de se disfarçar como um como o mais sistemático espectador do gênero Spectator em si, e talvez como
observador imparcial e apol(tico, de fingir não pertencer a nenhuma sei­ um dos mais insistentes seguidores de Addison e Steele, tendo feito várias
ta, partido ou classe, e com isso não ter nenhum interesse pessoal para tentativas sucessivas de traduzir um conjunto de idéias e práticas (original­
tapar-lhe os olhos. O Spectator original (16 de outubro de 1711) havia de­ mente destinadas à Inglaterra do início do século XVIII) para os novos e
fendido o que ele chamava de "a maneira socrática de raciocinar", ou seja, sempre cambiantes contextos da cultura francesa.
a estratégia de não permitir que o antagonista percebesse que você tinha
uma opinião "firmemente estabelecida" e estava "se empenhando em con­
verter alguém mais a ela" - estratégia completamente oposta às ações e aos
escritos políticos dos censores e do governo franceses, que achavam que
podiam converter os outros a suas opiniões com "insultos", "ameaças" e
"denúncias". Somente aqueles que nunca refletiram sobre a história huma­
na podem achar possível produzir "uma revolução" na mente e nas afeições
. das pessoas por meio do "terror", argumentava Delacroix, de maneira real­
mente espectatorial.
Seguindo essa estratégia, a obra de Delacroix seguiria a "forma" do Spec- ,:
tator inglês, incluindo "vários discursos sem um elo real, muitas cartas.rea1s · ·'.
'�
ou fictícias, confidências que talvez nunca tivessem sido realmente genuínas,
projetos que podiam ter vindo de minha própria imaginação etc.". Se a meta
era melhorar as maneiras e a moral, Delacroix argumentava, "não importa
sob qual véu a razão e a v�rdade estão ocultas, desde que se possa reconhecer
sua linguagem".
Se ele varia tanto de tom - indo do grave e sério ao frívolo e mundano - e
introduz "personagens diferentes" em suas "conversas", é para melhor cativar
o público, como explica em 1824. Em suma. aos olhos desse "espectador
dos espectadores", para que uma tradução cultural do modelo do Spectator
fosse eficiente, o modelo deveria ser considerado uma "tela"; nos termos de
Delacroíx, o Spectator era uma "bela tela" que Addison e Steele haviam dei-

180 181
 PARTE Ili
Tradução e ciência
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 CAPÍTULO 9
O papel das traduções nos intercâmbios científicos
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europeus nos séculos XVI e XVII
Isabelle Pantin

Definição do corpus: um processo de redução

O objetivo deste capítU'lo é escudar o papel das traduções na difusão de

textos científicos do século XVI até o final do século XVII (Waquet, 1_998;
Grane, 1954; Chanier; Corsi, 1996; Burke, 20.04). Meus interesses pessoais,
minha formação e a falta de pesquisa primária no campo influenciaram em
conjunto o método seguido aqu� J:?iferentemente do que ocorre a respeito do
século XX, faltam-nos para esse período os meios necessários para se estudar
as traduções como um processo geral passível de ser quantificado ou mesmo
mapeado. 1 Em todo o caso, livros científicos representam apenas uma peque­
i:ª parte da massa de traduções feitas durante o período considerado, e não
estou convencida de que uma abordagem quantitativa seria panicularmente
esclarecedora. Este estudo examina em que medida as traduções revelam não
tanto as transformações da obra dos cientistas, mas as transformações de seu
contexto cultural. Estando interessada sobretudo nos motivos e nas metas
das traduções, recorri, na maioria das vezes, a estudos de caso.

1 Milo (1984) aplicou métodos quamimivos a um corpus do século XX.

;;
 Peter Burke e R. Po-chia Hsia (orgs.)
Essa orientação geral também justifica a decisão de deixar de lado o corpus
mais óbvio e maior, ou seja, as traduções de obras do passado (essencialmente
da Antigüidade, mas também da Idade Média), e de me concentrar em obras
modernas. Essa escolha pode parecer discutível em um programa de pesquisa
do qual quase a metade diz respeito ao Renascimento, uma vez que na época
os próprios cientistas atribuíam máxima importância ao legado do passado.
Isso f}ca muito evidente no movimento intelectual do Humanismo: citações,
edições e comentários de textos antigos eram com freqüência um meio de
transmitir novas idéias.
Mesmo assim, o corpus de traduções "modernas" pode ser justificavel­
mente posto à parte por apresentar problemas especiais. Considerado em si
mesmo, projeta uma luz útil-sobre a forma como as informações científicas
recentes eram trocadas. Além isso, requer urria análise bastante complexa, ao
passo que as traduções de obras antigas são mais diretas. No que diz respeito
à ciência, em última análise o propósito das mesmas é sempre o domínio
de um ramo do conhecimento. A tradução de obras modernas, é claro, tam­
bém almeja isso, mas atende ademais a outras necessidades. Este estudo é
essencialmente um levantamento dessas necessidades, baseado na análise
de exemplos diversos que de maneira ideal devem representar o conjunto.
Entretanto, não há a menor pretensão de que se abrangeu todo o campo da
tradução científica.
Como mencionamos antes, não existe um inventário exaustivo nesse
campo. Por isso, em vez de tentar retratar o mundo das traduções cientí­
ficas em toda a sua extensão, riqueza e variedade, resignei-me a salientar
seus traços mais notórios. Considerei apenas traduções impressas, embora
a circulação de manuscritos estivesse longe de ser insignificante no período
moderno. Isso fica óbvio, por exemplo, no caso de Paracelso, cuja influên­
cia se difundiu lentamente pela Alemanha e pela Suíça antes de suas obras
principais serem impressas. Mesmo depois que seus discípulos as editaram
e traduziram (neste capítulo, mais adiante), textos e fragmentos paracelsia­
nos continuaram a circular em manuscrito, em especial. na Inglaterra, como
Charles Webster (1979) convincentemente demonstrou. A impressão de
um texto sugere simplesmente que seus editores e divulgadores achavam
que ele poderia atrair um número razoável de interessados (a tiragem usual
era de 600 exemplares). No caso das traduções (especialmente em latim),
uma parte desses possíveis leitores era composta por estrangeiros; portanto,
atribuí particular importância ao comércio internacional de livros que estava
concentrado em uma área definida.
·i
;,
,;( ' 186
A 1roduçõo cul!urol nos primórdios da Europa Moderna
Conforme Henri-Jean Martin (1969, p.303-1 I), as principais cidades en­
volvidas nesse comérci<?, antes da Guerra dos Trinta Anos, eram Frankfu
rt
(sede da maior e mais internacional de todas as feiras de livros), .Leipzig,
Colônia, Basiléia, Genebra, Veneza, Paris, Lyon, Estrasburgo, Amsterdã, An­
tuérpia e Leiden. A partir do início do século XVII, Londres se tornou cada
vez mais ativa, ao passo que bibliotecários espanhóis estavam virtualmente
ausentes. Durante e depois da guerra contra a Espanha, cidades dos Países
Baixos (especialmente Amsterdã) ganharam importância. Por exemplo, se­
gundo um catálogo publicado em 1634, a Elsevier tinha no estoque mais de
três mil livros em latim (433 de Paris, 23 I de Lyon, 932 de Frankfurt, 201
de Leipzig, 286 de Colônia, 169 da Basiléia, 456 de Genebra, 164 de Veneza,
.
34 de Londres etc.); mais de quinhentos em francês. (322 de Paris, I03 de
Genebra, 27 de Lyon etc.); 307 em italiano; 32 em espanhol e apenas sete
em inglês (Martin, 1969, p.311).
Por essas razões, o mundo hispânico, o Novo Mundo e a Europa oriental
foram em geral omitidas deste estudo. Para compensar essa lacuna óbvia,
- mais atenção foi dada a países que, por diferentes razões, tinham uma expe­
riência complexa dos problemas da língua e da transmissão de conhecimento:
a Inglaterra, por sua insularidade, e os Países Baixos, que tinham de se avir
com o multilingüismo.
Um levantamento puramente descritivo teria sido insatisfatório, já que a
descrição não teria sido fiel nem confiável, pelas razões já mencionadas. Por
isso o que se segue enfocará, principal embora não exclusivamente, obras
que passaram por processos de tradução que se poderiam chamar de "maci­
ços" (ou pelo menos significativos). Os heróis deste capítulo são Paracelso,
Ambroise Paré, Simon Stevin, Galileu e William Boyle, e não os modestos
mestres-escolas e cirurgiões cujos manuais pódem ter sido publicados em
mais de uma língua. Esta escolha é certamente discutível; talvez até mesmo
elitista. Ainda assim, não é arbitrária.
De um vernáculo para outros
Ao longo do período considerado, não era comum - mas tampouco excep­
-'\ dona! - que obras recentes fossem traduzidas pouco depois de sua publicação·
·t original. Em sua maioria, eram traduções feitas do latim para o vernáculo e do
·'(yernáculo para o latim, revelando assim a essência basicamente bilíngüe da
cultura européia até o final do século XVIII. Em comparação, traduções de um
�
 Peter Burke e R. Po-chiq Hsia (orgs.)
.\
vernáculo para outro eram muito mais raras, em especial no campo da ciência :-;:
(quanto aos romances ou à propaganda, a situação era bem dif�rente).
As traduções que evitavam passar pelo latim podem ser encontradas
sobretudo em assuntos marginais, especialmente livros utilitários: manuais
práticos, panfletos astrológicos ou prognósticos sobre os efeitos dos cometas,
farmacopéias populares e livros de segredos. Por exemplo, os livros italia­
nos de Leonardo Fioravanti (Secreti medicinali [Segredos medicinais], 1561;
Compendio di tutta la cirurgia [Compêndio de toda a cirurgia], 1561; Capricci
medicinali [Caprichos medicinais], 1564; Specchio di scientia uniuersale [Espelho
da ciência universal], 1564; Regimento della peste [Regimento da peste], (1565)
foram traduzidos para o francês e o inglês.
Nos Países Baixos, os impressores ou livreiros muitas vezes conseguiam
publicar o mesmo texto em diferentes línguas: Jan van Waesberge, de Roter­
dã, por exemplo, imprimiu as versões em holandês e em francês do livro de
Simon Stevin sobre fortificações. Isso era particularmente fácil em uma época
em que os impressores se especializavam em cartografia e em livros sobre
instrumentos e navegação, dos quais a maior parte consistia em gravuras.
Willem e J an Blaeu adotaram essa prática para sua coleção de mapas e guias
de navegação (que por vezes envolvia pouco mais que mudar o título). A
Licht der zeewaert [Luz da náutica] (1608), de Willem, tornou-se assim The
Light of Navigation [A luz da navegação] (1612) e Leflambeau de la navigation
[A tocha da navegação], também chamado Le Phalot de la mer [O farol do
mar] (1619).2
Entretanto, outras obras além de manuais populares e livros técnicos
ilustrados estavam envolvidas. O inovador livro-texto cosmológico de Ales­
sandro Piccolomini, De la sphera dei mondo [Sobre a esfera do mundo] (Veneza,
1540), foi traduzido para o francês por Jacques Goupyl. Nessas dua:s versões,
a escolha do vernáculo foi feita não apenas em razão do público-alvo, mas
também a fim de "ilustrar" ou elevar o status das línguas italiana e francesa,
respectivamente (esse tópico será discutido a seguir). Mutatis mutandis, as
traduções em francês dos livros de Galileu - completas ou apenas planeja­
das - feitas por Mersenne e Carcavy (Les mécaniques [As mecânicas], em 1634,
Les nouvelles pensées [Novas idéias], uma adaptação dos Discorsi [Discursos],
em 1639, e o projetado Dialogue [Diálogo]) são exceções de um tipo similar:
eram espécimes prestigiosos mostrando que as línguas modernas eram apro­
priadas para transmitir uma nova filosofia.
2 Para outros exemplos, Keuning,1973.
188
A troduçõo cultural nos primórdios da Europa Moderna
Todavia, o número crescente de publicações científicas em inglês após
a fundação da Real Sociedade (quando a língua inglesa ainda era pouco co­
nhecida fora da Grã-Bretanha) ocasionou algumas traduções para o francês,
embora notavelmente poucas: eram obras que careciam de uma justificativa
suficiente, fosse comercial ou científica. Enquanto a obra integral de Boyle foi
traduzida para o latim (ver p.194, 196, 200-1), apenas uns poucos tratados
dispersos circularam em francês Oones, 1953).
Paracelso metece uma menção especial. 3 Seus tratados médicos mais
difundidos, escritos originalmente em alemão, foram logo traduzidos para
o holandês ou o francês (as traduções impressas em inglês foram mais nu­
merosas, mas não apareceram antes da segunda metade do século XVII, e a
paracelsica italiana foi escassa e tardia). Todos foram publicados em Antuérpia,
onde Philip Herrnann fez compilações em holandês: Dat secreet der philosophizen
[Os segredos da filosofia], Die peerle der chirurgijen [As pérolas da cirurgia] (de
Die grosse Wundartzney [O grande livro da cirurgia], impresso originalmente
em 1536) e Een excellent tracktaet (de tratados sobre a sífilis e sua cura; Vom
Holtz Guaiaco... [Sobre a madeira do guaiacol] e Von derfranzi5sischen Kranckheit
[Sobre o mal francês], impressos originalmente em 1529 e 1530). Pieter Volck
Holst, um cirurgião, traduziu Die grosse Wundartzney (Die groote chirurgie [As
grandes cirurgias], 1555), e Martin Everart o Labyrinthus [Labirinto] (1563).
Everart traduziu posteriormente os outros livros cirúrgicos: De Cleyne Chi­
rurgie ende Tgasthuys Boeck vanden seer Vermaerden [O breve livro da cirurgia e
do hospital do mui famoso ...] (1568). Em seguida saiu La grande, vraye, et
parfaicte chirurgie [A grande, verdadeira e perfeita cirurgia] (1567), baseada na
edição melhorada de Die grosse Wundartzney por Adam von Bodenstein (1564).
Pierre Hassard também produziu De la peste, de ses causes et accidents [Sobre
a peste, suas causas e acidentes] (1570), reunindo vários tratados sob!e a
peste a partir de duas coleções diferentes em alemão.
O propósito dessas traduções estava claro: foram feitas por praticantes
para praticantes, com a idéia de que poderiam difundir informações novas e
úteis sobre as enfermidades e doenças mais freqüentes ou perigosa�, pres­
tando cada vez mais atenção à exaustividade e à clareza. A próxima tradução
francesa da Chirurgie a aparecer, em 1589, foi feita por Oaude Dariot, baseada
na versão em latim de Josquin Dalhem (1573). A dedicatória deste último
texto a Pierre de Grantrye, assinada por Pietro Perna, o editor, menciona
que Dalhem substituiu termos inventados por Paracelso pelo vocabulário
3 Para detalhes bibliográficos, Sudhoff, 1894.
189
 Peter Burke e R. Po-chio Hsio (orgs.)
médico normal, e cita uma carta em que o tradutor afirma que parafraseou
as passagens obscuras.
Nesse caso, encontramos uma vez mais o proces�o comum em que o
latim intervém, como no caso das Memórias matemáticas, de Simon Stevin, em
holandês (Wisconstighe ghedacht�issen), traduzidas para o latim por Willebrord
Snellius e para o francês por Jan Tuning. O manual de instruções de Willem
Blaeu para os usuários de seus globos terrestres e celestiais, "um de acordo
com a opinião de Ptolomeu ( ... ), o outro segiindo a posição natural de Co­
pérnico'', passaram por um processo similar. Escrito em holandês, logo foi
traduzido para o latim por Martinho Honênsio, e em seguida para o francês e
o inglês. O caráter técnico do livro justificava essa série de traduções. O mais
sjgnifkati�o eram suas claras simpatias copemicanas. Mesmo os cas_os aparen­
temente simples revelam a possível complexidade tlos fatores envolvidos.
t Latim versus vernáculo: remodelando por meio da tradução
A tradução de uma obra moderna podia servir a diferentes propósitos.
Sua língua original, fosse o latim ou o vernáculo, era esco!hida segundo os
i:.. · requisitos do contexto. Via de regra, a decisão de traduzi-la não significava
,, que esse contexto tivesse mudado, mas que o papel atribuído à obra e à
i' maneira como sua recepção era concebida tinham se alterado. Dois fatores
.1:
principais entravam em jogo: o novo público e o prestígio associado a uma
mudança no status da obra.
Um dos sinais desses fatores é que mudar a língua com freqüência pro­
porcionava uma oportunidade de alterar o texto. Um exemplo são os Opera,
de Ambroise Paré, publicados em 1582 sob a supervisão de Jacques Guil­
lemeau, um dos discípulos de Paré. Esse texto em latim não é uma pura e
·iI' simples tradução das CEuvres, mas quase uma nova versão, na qual detalhes
que poderiam ser irrelevantes ou ininteligíveis para leitores estrangeiros
i
foram cortados, e em que foram aprimorados os "auxílios para o leitor" (um
i.. sistema de títulos, notas marginais etc.) (Pantin, 2003).
r Há outros exemplos, às vezes na outra direção: Lau�ent Joubert escreveu
·t
' 'l "'
primeiramente seus Paradoxa [Paradoxos] em latim e mais tarde seus Erreurspo­
pulaires [Erros populares] em francês, os quais eram mais longos e mais vívidos
1 ,..
e pitorescos que a versão original. Em casos extremos, a adaptação resultava
�ij
>� 1
na composição de um livro completamente diferente. Assim, o Advancement of
leaming [A promoção do saber], de Francis Bacon, foi consideravelmente am-
i" �!
rl ! l .,
I!
190
A lroduçõo cultural nos primórdios do Europa Moderno
p!iado e transformado quando se tomou De augmentis scientiarum [Do crescimen­
to das dências] em 1623. Esses dois livros se dirigiam a públicos diferentes:
no primeiro caso, o rei e sua corte; no segundo, filósofos profissionais.
Via de regra, as traduções em latim tendiam a prolongar os textos, e as
vernáculas, a diminuí-los. Em 1542, Leonard Fuchs publicou na Basiléia, com
Isengrin, seu De historia stirpium commentarii,[Comentários sobre a história
das plantas], que já possuía elementos de multilingüismo: as plantas eram
examinadas na ordem alfabética de seus nomes gregos, mas listadas em um
índice quádruplo que apresentava seus nomes em grego, latim clássico, latim
medieval e alemão. A obra foi abreviada, adaptada e traduzida para o alemão
de modo a se tornar acessível a boticários e jardineiros. No New Kreuterbuch
[Novo herbário], também publicado por Isengrin, a ordem alfabética é a
dos nomes em alemão, que também constituem a primeira seção do índice
multilíngüe (onde os nomes gregos foram transliterados). Essa versão abre­
viada foi traduzida para o holandês (Nieuwe herbarius, 1549), uma vez mais
publicada por Isengrin.
Todavia, esse esquema simples é ligeiramente complicado pela carreira
do livro na França. Uma tradução em francês foi feita por Eloi Maignan dire­
tamente da versão em latim (Commentaires tres excellens de l'hystoire desplantes
[Comentários muito excelentes sobre a história das plantas]) e publicada em
Paris e Lyon, e uma nova epítome foi preparada, com um título em latim e em
francês, e os nomes das plantas em latim, grego, francês, italiano e alemão.
Esses poucos exemplos sugerem que as traduções para o vernáculo não eram
todas do mesmo nível. Tampouco o eram as em latim.
O status cultural das línguas
Conforme o Renascimento ia chegando ao fim, o latim era ainda a prin­
cipal língua para a atividade erudita em toda a Europa, mas mudanças de­
cisivas haviam ocorrido, prenunciando seu lento declínio. Essas mudanças
envolveram as línguas vernáculas que, uma após a outra, se afirmaram como
. línguas de cultura, transformando a vida científica; bem como os hábitos
q e·requisitos dos cientistas, sem esquecer certos aspectos políticos. Dante
!( h�via i·ntroduzido a noção do vulgare illustre (ilustre vernáculo), e a partir
� do século XVI os íntimos elos entre o orgulho nacional e a defesa da língua
Ç pátria eram reconhecidos por toda parte (Scaglione, 1984; Chiappelli, 1985;
i.�í;'·�urke; 2004, p.61-88). - ·-·�·:· .,
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191
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.· Peter Burke e R. Po-'chia .Hsio (orgs.)

Os dois campos considerados essenciais para apreciar-se o valor de uma

A tradução cultural nos primórdios da Europa Moderna

nessa língua, mas nenhuma série significativa de traduções. Poderíamos fazer

e, língua eram, por um lado, a poesia e, por outro, a "filosofia", que._ na acepção
. tradicional, englobava o que hoje chamamos de "ciência", já que desde o início
1
.,
do século XVI a separação aristotélica entre Filosofia Natural e Matemática
tem sido contestada. A Teologia, que os teóricos defensores das línguas amiú­
de preferiam deixar fora da discussão, será omitida também aqui.
Sperone Speroni, em seu Dialogo delle lingue [Diálogo das línguas] (Veneza,
1542), e Joachim du Bellay, em La défence et illustration de la langue française [De­
fesa e ilustração da língua francesa] (Paris, 1549), afirmaram que as línguas
vernáculas eram capazes de expressar as mais elevadas concepções filosóficas.
Jacques Peletier du Mans, poeta e matemático, justificou o uso do francês
em ambos os domínios. Simon Stevin foi profundamente influenciado pelas
idéias do círculo humanista de Hugo Grócio, e defendeu repetidas vezes a
tese de que o holandês era provavelmente a mais antiga língua do mundo, em
•
particular apta a expressar idéias científicas (Wal, 2004, p.l 71-7). A posição
.) defendida pela Real Sociedade com respeito às línguas é bem conhecida. John
./_·
Wallis, professor de Geometria em Oxford, escreveu a primeira "gramática
1 ·, filosófica" do inglês Oones, 1953, p.252).
Assim, pôr uma obra em uma língua vernácula não implicava apenas
(nem tampouco sempre) o desejo de popularizá-la. A mais completa versão
da Sphcera mundi [Esfera dos mundos], de Oronce Finé, foi a francesa de
1551. Finé foi o primeiro detentor de uma cátedra real de Matemática no
College Royal (onde as palestras eram dadas em latim), e elevar o prestígio
observações similares a respeito do inglês científico fomentado pela Real So­
ciedade. O volume de traduções - e esta é uma idéia de passagem - poderia
assim proporcionar um critério que nos permitisse diferenciar uma língua
da elite de uma língua capaz de se impor em todos os setores·da atividade
científica.
Todavia, próximo ao fim do Humanismo, o latim ainda era muito mais do
que um meio fácil para a comunicação internacional, e pôr uma obra nessa
língua nem sempre implicava o desejo de difundi-la através de fronteiras na­
cionais. Quando Jacques Peletier du Mans tr�nsformou sua Algebre [Álgebra]
(1554) em De occulta parte numerorum [Da parte oculta dos números] (1560),
suas razões foram complexas. O desejo de elevar o prestígio do francês usan­
do-o para difundir as ciências já não era tão importante como fora uns pou­
cos anos antes.4 Pelo contrário, o uso do latim parecia apropriado pa_i:-a dar
à álgebra uma dignidade igual à das disciplinas matemáticas tradicionais. O
fato de Peletier haver se tornado recentemente um matemático de renome
internacional, graças à publicação de seu comentário sobre Euclides em latim
(1557), constitui apenas uma razão em meio a outras.
Na Matemática, era difícil ser plenamente reconhecido e consagrado sem
o latim; mas esse era também o caso de disciplinas que haviam cedido mui­
to mais espaço ao uso do vernáculo, como a Medicina. Ambroise Paré, que
havia sofrido a persistente hostilidade dos doctores parisienses em razão de
sua insuficiente formação humanística, obteve uma relativa vingança quando

•
da língua francesa por meio da publicação de obras científicas de qualidade suas CEuvres saíram como Opera (acima, p.190) .
• :.< era no momento um dos deveres dos palestrantes reais. Além disso, tanto

.
para o pensamento como para a comunicação entre os erudito�, as vantagens .
essenciais de uma língua materna eram facilmente discerníveis. Em cada país, O latim, edições de referência e obras reunidas
cada vez mais pessoas trabalhavam, correspondiam-se e publicavam no seu
.) vernáculo (Pantin, 1998). Em todo o caso, quando um livro circulava em duas versões, a em latim
,,1.\,
\. Por outro lado, quando se tratava da comunicação no âmbito da Europa era com freqüência a mais "viva", a que recebia comentários ou novos mate­
como um todo, o latim não tinha nenhum rival sério. Os grandes centros riais. Isso é ilustrado pela Géometrie [Geometria], de· Descartes; as edições do
internacionais do comércio livreiro estavam situados em sua maioria nas texto original em francês permaneceram praticamente inalteradas de 1637 até
áreas germânicas da Europà (com as feiras de livro de Leipzig e Frankfurt),

'.
o início do século XVIII, enquanto a versão em latim recebeu acréscimos de
onde o latim mantivera seu papel. O próprio Galileu não conseguiu fazer do Franz van Schooten, Johann de Witt e outros, provando assim a fecundidade
italiano uma língua científica européia (nem é provável que tenha realmente do texto. O mesmo se poderia dizer da Algebra, de Wallis. Sua edição em
tentado: os leitores que desejava convencer eram essencialmente italianos), e latim incluiu a primeira série completa de apêndices, e com isso constituiu a
,,r., , .:,,..
'._
a difusão do francês, durante seu glorioso auge (próximo ao fim do período
,, -�
-; clássico), produziu um grande número de publicações científicas originais 4 Sobre o "retorno ao latim" na França desse período, Faisant, 1979.
.&::Ji'"'·
�- :.-.
192 193
 Peler Burke e R. Po-chia Hsia {orgs.)
versão "clássica" padrão do livro. De maneira mais ge ral, a noção de " edição
de referência" (a edição que recebe sucessivas melhorias, tornando- se assim
a definitiva), ·a exemplo da noção de "corpus" - no sentido de "obras reuni­
das" -, estava muitas vezes intimamente associada ao uso do latim. Claro que
havia exceções: a edição reunida definitiva da obra de Stevin foi Les a-uvres
mathématiques [A s o bras matemáticas], preparada e parcialmente traduzida
por Albert Girard (1634).
O latim desempenhou seu esperado papel na difusão dos livros de Boyle.
Eles foram amplamente lidos em inglês, mas sua primeira edição reunida foi
publicada em 1677 por Samuel de Tournes , que as editou em latim (usando
as traduções s up e rvisionadas pelo próprio Boyle e impressas pela primei ra
vez na Inglaterra, quando disponíveis, ou então obtendo edições "continen­
tais "). Esse fato perl!lanece significativo, mesmo que os motivos comerciais
.prevalece ssem. O livreiro genebrino era um negociante internacional, um
freqüentador assíduo da feira de livros de Frankfurt, e já havia publicado
obras reunidas científicas, em e special a s de Paracelso (1658) (Bonnant,
1978, esp. 98, p.147-8).
'
r Em todo caso , a coletânea não fora autorizada: Boyle era avesso a qualquer
H
t:
forma de sistematização, e à primeira notícia do lançamento fez publicar uma
h1 resenha bastante negativa na s Philosophical Transactions [Atas fil osóficas] (14
l; 1 de dezembro de 1676), deixando claro que essa edição "fora lançada sem o
� !
c onsentimento e o conhecimento do autor". Também criticava o arranjo en­
ganoso dos tratados (que ignorava s ua cronologia) e lamentava que "não se
l '
fizesse menção no Título Geral, nem em nenhum Anúncio, que esse s Livros
r. eram todos Traduções do Inglês ". Além disso, Form and Qualities [Forma e
qualidades]. um tratado filosófico e ssencial, fora omitido (mas acrescentado
à coletânea em 1687) Oohns, 1998, p.508-10).s
De sua parte, Samuel de Toumes estava provavelmente convencido de
e star fazendo uma contribu!ção vali osa para a República das Letras. Ele se
esforçou para reunir todo o material disponív el, encomendou algumas tra­
duções novas e organizou os inúmeros tratados de acordo com uma ordem
temática. Sua carta prefacial ao leit or sobre o valor científico da edição era
mais do que propaganda c omercial.
O longo processo de publicação, tradução para o latim e reunião das obras
de Paracelso deixa uma impressão um tanto dife rente. A fronteira entre as
5 Johns considera de Toumes pura e simplesmente um pirata, ao passo que o julgamento de
Hunter é-mais equânime (Hunter e Davis, 1999, p.l.x.xx-lxxx.i).
--1�··
A !redução cultural nos primórdios da Europo Moderna
vers ões em vernáculo e em latim não é tão claramente marcada nesse caso .
Os editores dos texto s em alemão tinham mai s ou menos a mesma formação
que os tradutores para. o latim e, em certas ocasiões , trocavam de domínio.
Gerard Dom permaneceu constantemente "latino", mas Georg Forbérger tan­
to editou textos alemães como traduziu outros para o latim (Sudhoff, 1894;
Zaunick, 1977, p.37-9). Adam von Bodenstein e Michael Toxites, que esta­
vam claramente situados no "lado alemão", por vezes editavam e anotavam
tratados que estavam disponíveis apenas em remotas versões em latim (Sud­
hoff, 1894, n.98, 126, 144, 160, 162). Além disso, suas produções parecem
muitas vezes ter sido compradas e lidas pelas mesmas pessoas. Mesmo que
as edições em latim se destinassem especialmente ao m ercado não alemão e
desempenhassem um papel essencial em difundir o paracelsismo na França,
Bélgica, Inglaterra e talvez Itália, tinham ampla circulação na Suíça, Alemanha
e Escandinávia, como é sugerido pelo número de exemplares existentes em
bibliotecas nesses países.
Por outro lado, as edições em aiemão não se destinavam e xclusivamente
a clientes alemães. O catálogo que John Dee, preparado em 1583, atesta que
ele p ossuía então 41 livros de Paracelso e m ale mão (além de dezenove e m
latim e dois e m flamengo) (Webster, 1979, p.331-2). A ob ra de Paracel so
estava perfeitamente "alinhada ao novo espírito de auto-afirmação cultural
das nações da Eur opa ·set entrional" (nas palavras_ de Webster), e foi reconhe­
cida c omo a prim eira obra-prima científica em língua alemã (a ssim como a
de Lutero o foi como a primeira teológica) (ibidem, p.316). Portanto, umá
tradução em latim não poderia acrescentar prestígio algum; o fato de algumas
obras ser em co nhecida s apenas p or meio de traduções rem ota s em latim era
geralmente lamentado como uma perda irrecuperável. A coletânea alemã de
Huser (publicada na Basiléia, p or Waldkirch, em 1589-91) foi considerada a
definitiva. Nenhum adepto verdadeiro poderia esquecer que Paracel so havia
expressado veementemente sua aver são ao latim.
Des de o início , os paracelsistas foram inspirados por uma espécie de zelo
filológico (claro , eles eram mais ou menos bem- suce dido s, dependendo do
traquejo, do talento e da sort e). Procuravam manuscritos em sua busca por
textos originais autênticos, e, como tinham de lidar com material disp erso
e muitas vezes fragme ntário, t entavam reunir diferentes tratados a fim de
publicar livros suficientemente substanciais. Entretanto, o "espírito coletor "
estava mais presente pelo lado latino. Pietro Perna, que lidava com três tra­
dut ores, Gerard Dorn, J osquin Dalhei_m e Georg Forberger, havia concebido
•. o pr. ojeto de uma coletânea. completa . em latim (Hieronymus, 1995). Os do is
·, .
�-- · - ,nc
 · Peter Burke e R. Po::_chi�, Hsi·o (órgs.)
volumes Operum latiné redditarum [Das obras recolhidas em latim], preparadÕs ·'.�
por Geoi-g Forberger em 1575, foram apenas Uma realização parcial (Sudhoff, · · '.�
1894, n.165-6; Zaunick, 1977, p.39-43). Não se comparavam ·aos dez maci-
ços volumes de Huser (onze com os Chirurgischer Bücher [Livros cirúrgicos))
(Sudhoff, 1894, n.216-25). Assim que apareceu a monumental edição alemã,
contudo, Zacharias Palthen, um importante livreiro de Frankfurt, confiou-a a
uma equipe de tradutores que produziu onze volumes (1603-1605).
Em 1658,Jean Antoine e Samuel de Tournes publicaram uma nova edição
in-fólio, Opera omnia medico-chemico-chirurgica, tribus voluminibus comprehensa
[Todas as obras médico-químico-cirúrgicas, compreendidas em três volumes],
preparada por Fridericus Bitiskius, que se gabava de que sua tradução era mais
completa e mais fiel aos originais, embora tivesse uma grande dívida para
com a equipe de Palthen. Todavia, o importante é que uma nova coletânea
completa em latim ainda pudesse ser planejada depois de tantas edições, e
em uma época em que os elementos essenciais da doutrina paracelsista já
tinham sido integrados às obras de discípulos e epígonos prestigiosos, de
Pedro Severino aJan van Helmont.
Interesses comerciais versus motivos ideológicos
Esses diferences exemplos mostram que dois fatores principais estiveram
envolvidos (e muitas vezes misturados) no processo de tradução: para dizer
cruamente, motivos ideológicos e interesses comerciais. Se os últimos eram
relativamente constantes, os primeiros eram mais variados:" prestígio, o de­
sejo de difundir conhecimento, de afirmar uma identidade (o. que requeria
as marcas da distinção lingüística), de defender as idéias de um grupo de
indivíduos, ou mesmo de asseverar e proteger a propriedade intelectual,
como no caso de Boyle, que desejava se proteger contra o plágio. Em uma
carta de 6 de agosto de 1665 ele confessou seu "desestímulo à publicação"
de Forms and Qualities,
que, caso venha a público em inglês um tempo considerável antes de est� pronto
para ser publicado em latim, Vários dos Experimentos, que possivelmente pa­
recerão novos & um tanto Curiosos, podem, com ou sem variações miúdas, ser
adotados & divulgados por outrem. (Hieronyrnus, 1995)
"Fatores ideológicos" eram muitas vezes prevalentes quando as tradu­
ções eram feitas pelos próprios autores ou por pessoas próximas a eles, por
196
A tradução cultvrol nos primórdios do Europa Moderna
iniciativa própria ou das pessoas ao seu redor. As traduções por vezes provo­
cavam polêmicas internacionais. Philip Lansbergen, por exemplo, um pastor
calvinista destituído de seu ministério em 1613 em razão de sua impossí­
vel rigidez, dedicou-se à sua segunda paixão, a Astronomia (Vermij, 2002,
p.73-90). Ele considerava que sua vocação especial era recuperar o perfeito
conhecimento dos movimentos celestiais outrora possuído pelos hebreus,
e, depois de laboriosas observações, cálculos e comparações entre sistemas,
decidiu-se a favor do heliocentrismo. Martinho Hortênsio, um ex-aluno de
Isaac Beeckman e Willebrord Snellius, foi para ele o que Rético fora para Co­
pérnico. Estimulado por esse jovem entusiasta, publicou em 1629 um tratado
singular: a primeira defesa da cosmologia copemicana, escrita em holandês e
destinada a um grande público inculco, Bedenckingen op den dagelyckschen, ende
iaerlijckschen loop van den aerdt-kloot [Reflexões sobre o curso diário e anual
do globo terrestre. O mesmo quanto à verdadeira imagem do céu visível, em
que as maravilhosas obras de Deus são reveladas].
Passado menos de um ano de sua publicação, Hortênsio produziu uma
tradução em latim que foi lida por toda a Europa e foi alvo de ataques de
Alexander Ross,Jean Baptiste Morin e Libert Froidmont, os quais por sua vez
foram respondidos por Hortênsio e pelo filho de Lansbergen, Jacob (Philip
morrera em.1632). Essa controvérsia teve seu papel nos apuros de Galileu:
Froidmont, um teólogo de Louvain, publicou em sua segunda resposta (Vesta,
1634) a carta endereçada aJansênio pelo núncio de Bruxelas, que anunciava
a condenação e a abjuração do filósofo.
Essa condenação (e a vergonhosa publicidade que lhe deram) foi preci­
samente a mácula que Galileu e seus discípulos quiseram lavar ao permitir
que sua ogra sobrevivesse e fosse lida por leitores livres de preconceitos
(Garcia, 2004; Pantin, 1999; Pantin, 20006). Nesse ponto sentiu-S<:, mais
do que antes, que a circulação de seus livros em países estrangeiros era da
máxima importância, e vários projetos de edição foram fomentados. Em 1633,
um amigo parisiense de Galileu, Elie Diodati, enviou uma cópia do Dialogo a
Matthias Bemegger (em Estrasburgo), para que este pudesse traduzi-lo para
o latim, e, alguns anos mais tarde, ele próprio assumiu a mesma tarefa no
caso da Carta à Grã-Duquesa Cristina. Como vimos, também foram empreen­
didas algumas traduções para o francês. O próprio Galileu, que a princípio
se mostrara relutante, decidiu ter sua obra completamente traduzida para o
latim sob sua própria supervisão.
Vários projetos para a publicação completa das obras de Galileu em la­
tifr! foram concebidos simultaneamente na França, n0 império alemão e na
197
 Peter Burke e R. Po-chio Hsio (orgs.)
Holanda, sob a supervisão de Carcavy, Giovanni Pieroni e dos Elseviers,
respecúvamente. Por essa época, os Elseviers tinham filiais em Leiden, Haia
e Copenhague, e escritórios ou contatos em Veneza, Frankfurt, Londres,
Paris e Florença. Seus planos resultaram em apenas três edições da Elsevier,
o Systema cosmicum [Sistemas cósmicos] (tradução em latim do Dialogo) em
1635, uma edição bilíngüe da Carta a Cristina em 1636 e os Discorsi (na versão
original) no in.ício de 1638 (Willems, 1880; Westman, 1984).
A "latinização" de Paracelso por Gerard Dome outros não tinha urgência
tão dramática, e dependeu mais de motivos de interesse. A partir de meados
do século XVI, a fama de Paracelso havia se estendido por uma grande área,
de modo que seus livros tinham potencial de venda. Entretanto, Pietro Perna,
que publicou uma série de novas traduções em lati_m na Basiléia, também foi
influenciado por motivos filosóficos e religiosos. Ele apoiava a alquimia e a
medicina química, e era um protestante com certas tendências heterodoxas,
traço amiúde associado ao paracelsismo (Perini, 2002, p.61-111, 149-60).
Além disso, seus tradutores, exceto por Josquin Dalhem, eram adeptos da
nova doutrina.
Havia duas razões principais para editar e traduzir Paracelso: atender
às necessidades profissionais de praticantes ansiosos· por conhecer novos
remédios e tratamentos, e promover uma nova filosofia radicalmente oposta
às concepções aristotélicas de ciência, do homem e da natureza. A limitada
coletânea em latim publicada por Perna de 1568 a 1575 sugere que ele tinha
ambas em vista. Além disso, suas traduções prepararam ou acompanharam a
aparição progressiva de um novo tipo de paracelsismo, menos idiossincrático
e mais bem adaptado a u m público culto (Schott; Zinguer, 1998; Grell, 1998;
Kahn, 1998; Webster, 1975; Shackelford, 2004).
Havia outro tipo de "ideologia" envolvido nas traduções destinadas a
acom?dar as necessidades e requisitos de um grupo ou, possivelmente, ins­
tituição profissional. Por exemplo; os médicos investiam grandes esforços na
tradução, defendendo por um lado o latim, em sinal de competência profis­
sional, e por outro as línguas vernáculas, para permitir a distribuição de co­
nhecimento útil e salutar. A Mediána era um dos campos em que a circulação
simultânea do mesmo texto em duas línguas (o latim e o vernáculo) não era
excepcional, em especial no caso de tratados sobre a peste.
Quanto às instituições, as universidades de Oxford e Cambridge apoia­
vam o latim. Daí, por exemplo, a tradução de A Treatise of Algebra Both Histo­
rical and Practical [Tratado de álgebra, tanto histórico como prático], de John
Wallis, que se tornou De algebra tractatus historicus et practicus (1693). A Real
A troduçõo cultural nos primórdios do Europa Moderno
� Sociedade, por outro lado, usava sua influência para favorecer o inglês. Nesse
· cóntexto, alguns livreiros ingleses, muitas vezes associados com a Sociedade
'.: (Barnard; McKenzie, 2002, p.302), se empenharam em formar para si mes­
:: mos um rico estoque de obras científicas em inglês, cuja lista completa era
�-·"freqüentemente impressa em cada livro, à guisa de publicidade.
Na verdade, esse tipo de competição lingüística tinha lugar em ambiente
' de harmonia e compreensão mútua: o mesmo autor podia ser professor em
=�
: Oxford ou Cambridge e membro da Real Sociedade (esse era o caso de Wallis
,: e muitos outros). Ela tampouco impedia interesses conjuntos: os impresso­
= res universitários em Cambridge e Oxford estavam freqüentemente associa­
dos - ou pelo menos ligados - a livreiros em Londres que eodiam oferecer
. as versões em latim e vernáculo dos mesmos- textos ao comércio interior e
�: exterior (McKitterick, 2002).
·, A Óptica, de Newton, e sua tradução por Samuel Clarke, prior da igreja de
-; São Tiago (1675-1729), foram ambos publicados por Samuel Smith e Benja­
:� min Walford (e depois por William e John Innys). Walford havia formado uma
�- parceria com Samuel Smith, que era editor da Real Sociedade; ele o sucedeu
:;'- nesse cargo após a morte de Smith, e William Innys o sucedeu (a partir de
�- 1711) (Plomer, 1922, p.167-8, 298-9).
r ·; No negócio da tradução, o desejo de facilitar a comunicação entre cien­
tistas não era o único e nem mesmo o principal fator. Os livreiros preferiam
incluir em seus catálogos tanto a versão em latim como em vernáculo de uma
mesma obra. Os livreiros ingleses em grande parte importavam livros cultos
em latim: assim, a exportação das publicações científicas da Real Sociedade em
tradução era uma forma de compensação. Era um começo bastante modesto, e
·
sem reais perspectivas: o grande obstáculo à penetração dos mercados estran­
geiros por parte dos livros ingleses era seu custo de produção proibitivo. 6
Os empreendimentos de tradução mais "ideológicos" tinham de satisfazer
a requisitos comerciais, como é óbvio até mesmo no caso das traduções de
Galileu. Quando quis publicar seus livros no exterior, Galileu foi informado
de que o uso do italiano desanimaria muitos leitores. Seu discípulo Pieroni,
em Viena, argumentou em 1635 que ele tinha numerosos adeptos por toda
;: a Europa ansiosos por ler seus livros, sem serem capazes disso: "Se os Diálo­
:· gos estivessem em latim, acho que já teriam sido reimpressos na França, na
Bélgica e na Alemanha e em outros lugares, pois os interessados são muito
�". · 6 · Ver a cana de Jan van Waesberthe, Um livreiro holandês, a Samuel Smith (janeiro de 1685),
'" . · citada em Johns, 1998, p.507.
 • :! ·;:
Peter Burke e R. Po-·chio Hsio (orgs.)
numerosos". Outros correspondentes escreviam que os livreiros objetavam
. veementemente a publicar livros em línguas estrangeiras, temendo não en­
contrar compradores.
Todavia, o projeto de uma tradução completa fracassou, como vimos,
por razões óbvias: dificilmente seria possível imprimir livros condenados em
países católicos, mesmo na França, que se orgulhava de não seguir nenhuma
injunção e édito promulgados em Roma, e os livreiros obviamente achavam
que os livros não seriam facilmente vendidos. A Elsevier só publicou obras
que tinham um público leitor potencial - mesmo que não grande: o livro ain­
da inédito sobre as "novas ciências" do movimento, que constituiu o legado
galileano à Física, e os textos altamente polêmicos em que o filósofo atacara
de frente dois problemas cruciais: a reforma cosmológica (no Diálogo) e a
reforma exegética necessária para harmonizar as Escrituras com o heliocen­
trismo (na Carta a Cristinà).
As observações dos discípulos de Galileu são interessantes: eles leva­
vam fatores comerciais_ em conta, mas não para auferir lucro. Ao contrário
de autores como Boyle, não temiam o plágio e a pirataria: Pieroni sonhava
com reimpressões "na França, nos Países Baixos Espanhóis e na Alemanha,
além de outros lugares", embora, se ocorressem, ele dificilmente pudesse
ter controle sobre elas (econômico ou científico). Essa confiança idealista
na capacidade da boa filosofia de se difundir ad maiorem veri gloriam [para a
maior glória da verdade] é típica de um determinado meio (Garcia, 2004).
Não obstante, não era uma atitude representativa.
Outro sinal da importância dos fatores comerciais era que, no caso das
traduções, .uma proporção maior dos privilégios era concedida aos livreiros.
Seria mais exato dizer que os livreiros envolvidos no "comércio da tradução"
eram os que obtinham privilégios gerais. Por exemplo, Ambroise Paré, de
1549 em diante, ·sempre se empenhou em obter privilégios pessoais; mas
os dois privilégios para os seus Opera (o de Rodolfo II, por seis anos, e o de
Henrique III, por dez anos) foram concedidos ao livreiro, e o privilégio im­
perial também contemplou uma tradução, a versão em latim da República, de
Bodin (Charon, 1991, p.23"1). Maximiliano II concedeu um privilégio geral a
Pietro Perna em 1567, um ano antes da publicação da Pyrophilia, a primeira
das traduções de Dom. Ele era válido para "todos os livros médicos, filosófi­
cos, históricos, matemáticos e poéticos, e aqueles que auxiliem o estudo do
hebraico, do grego ou do latim" (Perini, 2002, p.380).
As traduções dos livros de Boyle parecem, sim, ser um caso de uma ver­
dadeira diIJâmica cortiercial: os tratados de Boyle eram quase sempre escritos
200
A lroduçõo cultural nos primórdios do Europa Moderno
e publicados em inglês, mas "o filósofo inglês" encomendava traduções em
latim que eram freqüentemente impressas em Oxford ou Londres, embora
sobretudo para o mercado estrangeiro. Essas primeiras versões em latim, bem
como algumas mais novas, foram posteriormente impressas em Amsterdã e
Roterdã, a despeito da oposição de Boyle; e finalmente, como vimos, Samuel
de Tournes, em ·Genebra, reuniu todas as traduções existentes, mandou tra­
duzir as obras que ainda só estavam disponíveis em inglês e publicou uma
coletânea completa em latim. Porém, em sua nota "Lectori benevolo", o
livreiro frisava sua motivação ideológica.
Em todo o caso, a carreira editorial dé Boyle em latim permanece uma
exceção. Nos séculos XVI e XVII, a tradução de livros científicos modernos
era apenas um fenômeno marginal, mesmo no caso da Inglaterra - eu deveria
antes dizer de Londres -, onde havia um confronto verdadeiramente dinâmico
entre o latim e o vernáculo. É significativo que o capítulo intitulado "A ciência
e o livro" na Cambridge History of the Book in Britain [História cambridgiana
do livro na Grã-Bretanha] não discuta o problema das traduções, e que, por
outro lado, a parte relativa às "tradições vernáculas" nã-:> lide com a literatu­
ra científica, exceto por via da "imprensa periódica" Oohns, 2002; Nelson;
Seccombe, ?002).
Conclusão: a caminho da constituição
de uma bibliotheca philosophorum universal?
Assim, não havi_a um grande fluxo de traduções científicas, e o corolário
era que as obras raramente eram traduzidas apenas para abastecer o mercado.
A grande maioria das traduções era do vernáculo para o latim, e tinha mo­
tivos especiais. Acima de tudo, eram um sinal de valor. Nos prefácios, eram
freqüentemente apresentadas como prova da importância internacional da
obra, com o chavão do público estrangeiro em ansiosa expectativa. Jacques
Guillemeau, na dedicatória a Marc Miron dos Opera, de Paré (1582), afirmou
que todos os cirurgiões que havia encontrado em suas viagens, ·italianos,
alemães ou espanhóis, ansiavam pela tradução, e por isso o livro teria uma
grande carteira internacional. Encontramos o mesmo chavão nas edições de
Paracelso em latim.
Franz van Schooten expressa uma idéia similar com mais sobriedade, ao
apresentar a Geometria, de Descartes: a obra, publicada em francês doze anos
antes, conquistara a admiração dos literati et ingenios_i [letrados e engenhosos];
201
 Pe!er Burke e R. Po-chia Hsia (orgs.)

por isso uma tradução, com notas explicativas, parecia necessária para ampliar
seu público leitor, e Jean Maire, o livreiro, conseguiu providenciá-la. Uma vez
mais, o editor da versão autorizada em latim de The Spring of the Air [A mola
do ar], de Boyle, alude a pedidos prementes de celebridades.
As tra'duções para o latim eram, para os escritores, um meio de se esta­
belecerem na dignificada República das Letras, e eram muito mais signifi­
cativas qu!1f1do se tratava de livros que haviam sido escritos primeiramente
no vernáculo por razões especiais e importantes, como o Dialogo, de Galileu,
ou o tratado de Lansbergen sobre o movimento.da Terra. Por outro lado,
elas muitas vezes reduziam o controle dos autores sobre sua própria obra. CAPÍTULO 1 O
Vários fatores contribuíam para esse efeito, desde as iniciativas tomadas por Intercâmbios científicos entre o helenismo
discípulos ou seguidores diS"tantes (e as liberdades tomadas pelos tradutores) e a Europa: traduções para o grego, 1400-1700
até as estratégias dos livreiros. Robert Boyle tinha uma visão muito aguça­
da d_os aspectos desagradáveis do processo, ao passo que Galileu acabou Efthymios Nicolai"dis
se resignando a tolerá-los, vendo que com isso assegurava a sobrevivência
de sua obra. Todavia, o mais importante era provavelmente o fato de que
o público dos livros havia mudado: ele se tornara maior, mais estrangeiro,
muitas vezes ignorante das circunstâncias da publicação original, e mais
livre em suas interpretações. Doravante, a obra seria .uma espécie de bem
público (bonum publicum), e pertenceria a toda a comunidade dos filósofos e
das pessoas letradas. As últimas décadas bizantinas

O século XV é o século da transição de poder nos Bálcãs e na Ásia Me­

nor, do declinante Império Bizantino para o ascendente Império Otomano.
Conforme Bizâncio perdia terras e poder, seus imperadores ansiavam mais
e mais por ajuda da Europa ocidental contra a conquista militar otomana.
A fim de motivar a Europa católica a auxiliar os "hereges" ortodoxos, foi
proposto um plano para a união das duas principais igrejas cristãs euro­
péias, e foram organizados debates entre elas. Um efeito colateral desses
-. contatos foi um intercâmbio cultural intenso entre os dois lados, e, no que
··
diz respeito à Ciência, a troca de manuscritos e, em alguns casos, tradu­
ções também.
Durante a última dinastia bizantina, a dos Paleólogos, os funcionários do
Estado e os eruditos pertenciam ao mesmo meio. Para ascender na hierarquia
estatal, os estudos eram praticamente obrigatórios. Os funcionários públicos
faziam usualmente cursos de alto nível, estudando o trivium (Gramática, Lógi-.
ca e Retórica) e o quadrivium (Música, Aritmética, Geometria e Astronomia).
A form ação desses funcionários e a importante posição que o que chamamos

202
 .... ....
.. ..
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.� :
Peter Burke e R. Po-chio Hsio (orgs.)
de "ciência" conquistou durante essa derradeira dinastia bizantina levavam-
. nos a discutir antes Filosofia Natural que Política.
Com efeito, debates políticos e religiosos entre rivais que tentavam obter
0 mesmo alto cargo estatal por vezes se convertiam em discussões científicas.
De resto, nomeações para alguns cargos políticos importantes eram feitas
depois de debates científicos, como no caso de Metochites e Choumnos, que
disputaram o cargo de primeiro-ministro (logothetis tou genik ou) debatendo
sobre Astronomia, e não sobre Política ou Religião (Sevcenco, 1962). Me­
tochites obteve o cargo após demonstrar que era um astrônomo e filósofo
natural mais hábil do que Choumnos.
Esse ambiente, junto com um genuíno entusiasmo pela Astronomia e
em especial pelo cálculo dos eclipses solares, é a razão para que tantos fun­
cionários bizantinos do Estado e da Igreja que entraram em contato com a
Europa ocidental estivessem envolvidos com a Ciência. Cumpre notar que
o interesse especial pela Astronomia estava intimamente ligado ao cálculo
dos horóscopos, já que a astrologia ficava cada vez mais em voga em uma
civilização que vinha sendo derrotada no âmbito militar.
Durante o período bizantino, três tipos de texto científico foram traduzi­
dos para o grego, um do Oriente e dois do Ocidente: os textos da escola astro­
nômica de Tabriz e Maragha na Pérsia, os da escola astronômica dos judeus
caraítas na Provença, e os da escola astronômica ibérica. As traduções dos
textos persas para o grego seriam de interesse na Europa um século depois,
já que astrônomos da Europa ocidental e central (Copérnico, por exemplo)
os estudariam a partir dos manuscritos bizantinos.
O primeiro grupo de traduções, do persa para o grego, foi feito na verda­
de durante o século XIV, mas tornou-se muito popular durante o século xv,·
quando elas foram copiadas vezes e vezes seguidas. Durante o século XV esses
textos chegaram à Itália levados por eruditos gregos que fugiam da conquista
otomana. No contexto da retomada da língua grega pelos eruditos europeus,
esse material se tornou importante, já que introduzia novos conhecimentos
na Itália. Incluem o corpus astronômico de Gregório Chionades, que viajou
para Tabriz no início do século XIV.
O mais importante texto desse corpus - e o mais copiado - foi editado em
1347 por Jorge Chrysokokkes, e é intitulado A sintaxe persa na astronomia. Essa
Sintaxe é baseada no Zij-i Ikhâní, de Nasir al-Din al-Túsi (1201-71), o funda­
dor do observatório de Maragha e seu mais importante astrônomo. O livro
de Chrysokokkes é citado pelo erudito francês lsmale Boulliau (Astronomia
philolaica, 1645); mais de cinqüenta manuscritos foram preservados.
A tradução cultural nos primórdios do Europa Moderno
A história das traduções para o grego do corpus astronômico persa remonta
bem �o início do século XIY, quando Jorge Chionades (cujo nome monástico
era Gregório), após seus estudos de Medicina em Constantinopla, foi a Trebi­
zonda obter auxílio do imperador Aleixo II Comneno (que reinou de 1297 a
1330) para viajar a Tabriz. Naquele período, Tabriz era um renomado centro
científico, onde a astronomia era ensinada por Shams al-Din al-Bukhari,
entre outros. Seguindo essa primeira visita, Chioniades retornou a Tabriz
como bispo do povo onodoxo da cidade, enviado pelo imperador bizantino
Andrônico II (que reinou de 1282 a 1328).. De Tabriz, Chioniades levou de
volta a Bizâncio um corpus astronômico que compreendia os seguintes textos
árabes ou persas:
a) O Zij al:tilâ'i, de Al-Fahhâd (c. 1176), segundo ensinado por Shams Bukhari
(Pingree, 1985-1986).1
b) O Zij al-Sanjari, de al-Khâzini (c. 1135) (Inédito, Biblioteca do Vaticano, Vat.
gr. 1058 e Vat. gr. 211, Laur. gr. 28/17).
c) Tabelas ainda não identificadas, que começav,am em 1093.
d) As tabelas do Zij-i lkhâni, de al-Tusi, que inspiraram a Sintaxe persa, de Chry­
sokokkes.
e) Vários ·textos breves e figuras, como as famosas Figuras dos corpos celestes, que
aparecem no manuscrito do Vaticano Vat. gr. 211, fols.115-21, inspirado pelo
Tadhkira, de Nasir al-Din al-Tusi (Paschos e Sotiroudis, 1998).2
f) Um tratado sobre o astrolábio, provavelmente de Shams al-Bukhari.
Como já mencionado, esses textos circularam na Itália depois de
1400. Entre eles, o mais discutido pelos historiadores é o escrito por Chionia­
des, intitulado Figuras dos corpos celestes. Baseado no Tadhkira, de Nasir al-Din
al-Tusi, ele pode ter desempenhado um papel importante no desenvolvimento
da astronomia copemicana, já que apresenta a "cópula matemática al-Tusi",
uma ferramenta geométrica que transforma movimentos circulares em linea­
res. Esse teorema é considerado complementar ao de Proclo, que transforma
movimentos lineares em circulares.
Em De revolutionibus [As revoluções dos orbes celestes], Copé�nico usa o
teorema de al-Túsi na teoria do movimento de Mercúrio. 3 O astrônomo polo-
1 Ver também Mercier, 1988.
2 Os autores argumentam que Chioniades não apenas transmitiu o conhecimento do Tadkhi­
ra, mas também modificou e aprimorou esse conhecimento (a teoria de Mercúrio sem o
equante, mas com uma trajetória elíptica para o centro do epiciclo).
3 Observado porHanner, 1971,p.616.
205
 Peter Burke e R. Po-chio Hsia (orgs.)
nês, que sabia ler grego, provavelmente achou essa informação, durante sua
estada na Itália, no manuscrito Vaticanus graecus 211.4 De maneira mais geral,
a astronomia persa da escola de Maragha se tomou conhecida na Europa após
o século XV por meio das traduçõe s gregas anteriormente mencionadas, já
que a língua grega tornou-se acessível aos eruditos durante o Renascimento
e muitos manuscritos bizantinos foram exportados para a Itália na época da
queda de Bizâncio. 5
O segundo grupo de traduções científicas para o grego durante o último
período bizantino é a obra dos caraítas, fund��ntalistas jude us que rej ei­
tavam a tradição rabínica e estavam instalados no sul da França. Durante os
séculos XIII e XIV, na Provença e no Languedoc, os caraítas, esses "judeus
protestantes", foram conh ecidos como os cientistas da diáspo�a. Os astrô­
nomos e matemáticos caraítas foram influenciados pelos árabes e fizeram
importantes contribuições para a difusão da Ciência na Europa. A comuni­
dade caraíta da Provença estava em permane nte contato com as comunidades
caraítas de todo o Mediterrâneo, entre elas as de Salônica e Constantinopla.
Os caraítas eram tradutores em várias línguas, como o hebraico, o latim, o
árabe e o grego. No final do século XV, vivia em Constantinopla um dos mais
importantes eruditos caraítas, Kaleb Afentopoulo (Elijah), que e�creveu livros
sobre Matemática e Astronomia.
O matemático Immanuel be n Jacob Bonfils de Tarascon escreveu muitos
livros, um dos quais foi o Kanfe nesharim [Asas de á guia), conhecido como
Sepher shesh kenafayim [Livro das seis asas], por causa da divisão das tabelas
astronômicas em seis grupos, em refe rência a Isaías. Essas tabelas foram um
sucesso na Europa, e em razão disso Bonfils foi alcunhado o "mestre das asas"
[Ba'al kenafayim]. Seu livro inclui uma introdução que come nta as tabe las, e
foi escrito em hebraico por volta de 1365 (alguns manuscritos estenderam
as tabelas até 1490). A obra foi traduzida para o latim em 1406 por Johan­
nes Lucae e Camerino e usada por Pico della Mirandela. Post eriorment e, foi
4 O primeiro a notar isso foi Neugebauer, 1975, p.1035. C( Swerdlow; Neugebauer, J 984, v.I,
p.47-8 e v.ll, p.567-8. Mesmo assim, Copérnico nunca menciona al-Tüsi, embora mencione
Prodo. Alguns historiadores concluíram que ·ele foi inspirado pelo teorema complementar
de Proclo e redescobriu o mesmo teorema que al-TOsi.
5 Note-se que, no que diz respeito a esse período, existe uma bibliografia que estuda as fon­
tes das traduções gregas. Alguns textos gregos foram editados com comentários extensos,
sobretudo na série "Corpus des astTOnomes byz.anrins [Corpus dos astrônomos bizantinos]"
(Université de Louvain-la-Neuve), dirigida por Anne Tihon. Mas ainda há muito a fazer
nesse campo, já que o texto principal, o de Chrysokokkes, continua inédito.
206
A tradução cultural nos primórdios do Europa Moderno
;_, traduzida para o grego e também, com o título Shestokryl [Seis asas], para o
•· . russo. A tradução para o gr ego foi feita por Miguel Chrysokokkes e m 1435.
\' Esse texto traduzido se difundiu amplamente no mundo grego, e mais de
-·· um século depois, em 1574, Damaskinos Stoudites, bispo de Lepanto e Arta,
atualizou as tabelas traduzidas. 6
A tradução dess e texto para o gr ego se deveu provavelmente à rede de
comunidade s cara!tas e aos contatos entr e os Bálcãs e o sul da França por via
dessas comunidades. Conh ecemos vários comentários sobre o Kanfe nesha­
rim, de Bonfils, escritos por caraítas e que explica como adaptar as tabe las
(originalmente calculadas para a latitude de Tarascon, 33.30°) à latitude de
Constantinopla e da Criméia.
Como foi que Miguel Chrysokokke s e ncontrou e traduziu o texto? Já se­
sugeriu que.colaborou com Ioannes Kavouues. em Focéia (Diller, 1972). Em
todo o caso, as informações sobre Chrysokokkes são escassas. Sabe mos que
foi notarios da "Grande Igreja", em outras palavras do Patriarcado de Constan­
tinopla, durant e o segundo quartel do século XV. Sugeriu-se que é a mesma
. pessoa que Manu e l Chrysokokkes, diácono e Megas sakelarios do Patriarc ado,
que esteve presente no Concílio de Fe rrara e assinou a União das Igre jas
(Lampsides, 1937, p.313). Ness e caso, ele se tomou diácono após 1435, e
então mudou s e u nome para Manuel.
As Asas tiveram uma importante difusão durante o período bizantino e
pós-bizantino. Pe lo menos quinze manuscritos sobreviveram, junto com co­
mentários e acrésc imos como os de Oamaskinos Stoudites. Já se de monstrou
que o principal propósito das Asas era o cálculo dos eclipses solares e lunares;
esse cálculo tinha sido a moda entre os eruditos bizantinos dos séculos XIV e
XV, o qu e poderia explicar o sucesso das tabelas de Bonfils (Sólon, 1968).7
Jacob ben David Yom-tob, ou Bong'oron, ou Bonjom, ou Yom Tov Poel
(e há ainda outras versões de seu nome ), foi astrônomo do rei Pedro IV de
Aragão, o Cerimonioso (qu e reinou de 1336 a 1387). Seu pai era fabricante
de instrume ntos em P erpignan; s eu filho, também astrônomo, converteu-se
ao cristianismo no fim do século XIV. As tabe las astronômicas de Jacob b en
David, iniciadas em 1361 para uso na latitude de P erpignan, almejam especi ­
ficamente, assim como as de Bonfils, o cálculo dos eclips es lunares e solares.
Escritas em h ebraico, foram traduzidas para o latim e o catalão, tornaram-se
ado
6 Tiapt1CTacru; ,cou l8' CTTJpi6cov Mriaf\À. ,:ou XpucroKót..,cou, Biblioteca do Anexo do Patriarc
de Jerusalém em Constantinopla, MS 317.
7 Ver também Sólon, 1970, com bibliografia.
· ?07
 Peter Burlce e R. Po:chi_a Hsia (orgs.)
populares e foram usadas ou comentadas por astrônomos posteriores como
Abraão Zacuto, de Salamanca.
A tradução grega das tabelas de Yom-tob ocorreu graças· aos contatos
feitos na época da União das Igrejas. Marcos Eugenikos (e. 1394-1445), bispo
de Éfeso, foi enviado à Itália para participar dos debates. Foi ele o repre­
sentante ortodoxo que se negou a assinar o decreto da União em 1439. Na
Itália, descobriu a versão em latim do texto judaico de Yom-tob e a traduziu
e adaptou para o grego.
O terceiro grupo de traduções vem das regiões governadas pelos des­
cendentes dos cruzados, e datam do século XIV. Essas traduções provinham
da tradição astronômica ibérica, em que árabes e europeus se encontravam.
Elas não tiveram nenhuma influência significativa e não apa,recem muito em
manuscritos depois disso.
Para mencioná-las de maneira breve, havia as Tabelas toledanas, de origem
árabe, adaptadas do latim; alguns tratados em latim sobre o astrolábio basea­
dos em fontes árabes (os tratados de Messahalla e Maslama); e finalmente as
famosas Tabelas afonsinas, encomendadas por Afonso X, o Sábio, futuro rei de
· Castela e Leão (calculadas para 30 de maio de 1252), que foram um grande
sucesso europeu durante mais de dois séculos. Todos esses textos foram tra­
duzidos e adaptados para o grego por volta de 1340 pelo nobre cipriota Jorge
Lapithe e seu círculo. As Tabelas afonsinas circularam em Constantinopla no
início do século XV, adaptadas para essa cidade por Demetrius Chrysoloras (e.
1360-1416), um funcionário de alto escalão, partidário dos antiunionistas.
As comunidades gregas do Império Otomano
Diversos historiadores já apontaram a influência sobre a Ciência européia
dos mànüscritos científicos bizantinos levados à Europa ocidental poucos
anos antes, ao longo e depois da queda de Bizâncio. Muitas edições européias
de antigos textos científicos gregos publicados nos séculos XV, XVI e XVII se
baseavam no corpus de manuscritos científicos pertencentes ao cardeal Bes­
sarion e a outros eruditos gregos que fugiram para o Ocidente. É a tendência
oposta complementar que será discutida aqui: as traduções para o grego de
textos científicos contemporâneos, escrito sobretudo em línguas latinas.
Durante os séculos XVI e XVII, floresceu em Veneza uma importante
comunidade grega que, no fim do século XVI, estabeleceu um Colégio grego · :.•
a fim de preparar os estudantes gregos para ingressar na Universidade de Pá- �,._;
208
A tradução culfurol nos primórdios do Europa Moderna ,/
<lua. Em 1632, um colégio similar foi estabelecido na própria Pádua. Quanto
a Roma, um Colégio para Católicos Gregos fora fundado no século XVI.
. O fato de o Império Otomano não ter um sistema de educação superior - à
parte as medreses [madraçais] ou escolas das mesquistas (discutidas a seguir,
p.220) - estimulou os gregos do Império Otomano a estudar no extertor du­
rante os séculos XVI e XVII. Pádua era a universidade favorita desses alunos
visitantes, alguns dos quais posteriormente lecionariam Ciência nos colégios
das comunidades gregas do Império Otomano. Os manuais que escreveram
para uso em suas aulas eram sobretudo compilações baseadas em livros que
leram durante seus estudos em Pádua.
As fontes das traduções e compilações em grego nos séculos XVI e XVII
ainda não foram determinadas. A situação é muito diferente tanto para o
período bizantino como para o século XVIII, quando muitos livros gregos
sobre Ciência, incluindo traduções, foram impressos; além disso, para esse
período a rnaioria das fontes é bem conhecida.8
Durante os séculos XVI e XVII, há poucas traduções de livros inteiros,
e essas traduções datam principalmente do final do século XVII. Anastasios
Papavasilopoulos, um padre-professor de Janenna, escreveu dois tratados
manuscritos no final do século XVII: uma Introdução à Matemática9 e uma
Filosofia Física, 10 ambas traduzidas do latim. As fontes dessas duas traduções
ainda não foram descobertas.
Os livros são manuais escolares de Aritmética, Geometria e Física (de
"fontes antigas e modernas") a serem ensinados a seus pupilos na cidade de
Tyrnavo, na Tessália. A Introdução à Matemática foi traduzida em 1695; é um
livro educativo do nível secundário (para o período), que apresenta definições
de figuras geométricas, Aritmética básica e o cálculo de superficies e volu­
mes. A Filosofia fisica foi traduzida em 1701 e apresenta um conhecimento
de Filosofia Natural do mesmo nível que teria sido lecionado nos colégios
de preparação ao ingresso na Universidade de Pádua.
8 Uma bibliografia da história da ciência do período pós-bizantino (cerca de dois mil títulos)
de autores gregos está disponível on-line em http://www.eie.gr/institutes/kne/ife/index.
htm.
9 Eloay<iYyTJ µa8TJµcmlCT)ç ac tl]Ç J\anvwu <púlVT)Ç µemx1:teo6eíoa ... (Introdução à matemática
traduzida do latim...), Biblioteca Nacional da Grécia, MS 2139, século XVlll, fols.38a-66a.
Karas, 1992, encontrou seis manuscritos desse texto, todos do século XVIll.
lO Ene1píõ1ov tl]Ç avaL;11oacrriç (j)OO\ICT)Ç q,IÀ.oooq,1aç... (Manual da filosofia fisica revivida... ),
Biblioteca Nacional da Grécia, MS 1331, fols.la-98a. Karas, 1992, enconcrou dois manus­
critos desse rexto, ambos datados de 1701 (o ano da composição).
209
 Peler Burke e R. Po-chia Hsia (orgs.)
O primeiro livro impresso que pode ser considerado uma tradução versa
sobre Matemática prática - em outras palavras, Aritmética para mercadores e
também alunos do que se poderia considerar um nível primário da educação.
Essa obra foi impressa em \'.'eneza em 1568 e reeditada dezenove vezes até
1818! O autor, Emanuel Glyzounis (1530-96), vinha da ilha de Quios, foi
para a Itália estudar e se instalou em Veneza, onde se tornou impressor. Sua
Aritmética prática é uma tradução de um ou de muitos livros italianos chama­
dos Abaéci, muito comuns_ naqueles tempos. Eram obras que apresentavam a
Aritmética básica (adição, subtração, multiplicação e divisão) e também mé­
todos para resolver problemas com uma incógnita. Glyzounis acrescentou um
método para calcular a data da Páscoa, já que o livro se destinava aos gregos
ortodoxos. Essa foi a obra mais popular de aritmética prática nos Bákãs até
o século XIX; foi inclusive traduzida para o romeno em 1793. 11
Conhecemos pelo menos dois outros Abacci italianos traduzidos anoni­
mamente por volta do século XVIII. Essas traduções nunca foram impressas,
e acabaram obscurecidas pelo sucesso do livro de Glyzounis. 12
Entre Glyzounis, que traduziu do italiano um livro de aritmética prática
para a vida cotidiana em meados do século XVI, e Papavasilopoulos, que
traduziu do latim livros de nível secundário para o ensino no .final do sé­
culo XVII, a educação foi reorganizada nas comunidades gregas do Império
Otomano. De fato, após a queda de Bizâncio, em que havia um sistema edu­
cacional de três níveis, algumas comunidades gregas no Império Otomano
organizaram gradualmente um sistema local de dois níveis: hier� grammata
(sobretudo leitura, usando textos eclesiásticos) e em algumas comunidades
um "colégio" onde era oferecida educação secundária, geralmente por gregos
que haviam estudado em Pádua. Até o início do século XVII, era raro que a
Ciência fosse ensinada nessas escolas.
Em 1620, contudo, Cyril Lukaris se tornou patriarca de Constantinopla.
Ele foi o primeiro patriarca a ter estudado na Itália. Lukaris pediu a seu amigo
T heophylos Corydaleus, que também tinha sido estudante na Itália, que diri­
gisse a Escola Patriarcal de Constantinopla. Corydaleus, que havia estudado
Teologia, Filosofia e Medicina em Pádua, introduziu o ensino de Ciência na
11 B1�À.lov ltpO):Elpov TOIÇ TaCll 7tEpi.EXOV Tl)V TE itpmrnKl]V ap18µTjTIK1]V ... (Livro fáál para todos,
compreendendo a aritmética prática ... ), Veneza, 1569. Todas as edições até 1818 foram
publicadas em Veneza. Sobre a história e o conteúdo desse livro, Kastanis, 1998, p.3}-58;
Kastanís, 2004, capítulo 2.
12 Ver Karas, 1992, v.I, p.157 e ss. !) Biblioteca Nacional da Grécia MS 1107, século XVI,
fols.42a-76b; ll) Vaticanus graecus, MS 1699, século XVIl.
210
A traduçõo cullurol no_s prim6rdios do Europo Moderna
Escola Patriarcal, e continuou a ensiná-la depois que se instalou em Atenas
em 1640. Suas aulas de Fí_sica aristotélica (seguindo o curso da Universidade
de Pádua) tiveram grande influência sobre toda região dos Bálcãs até a in­
trodução da nova Filosofia Natural em meados do século XVIII. Corydaleus
havia estudado Física com Cesare Cremonini, o afamado erudito aristotélico
(que copiou alguns livros de Cremonini enquanto foi estudante em Pádua).
Os dois principais manuscritos redigidos por Corydaleus, Geografia (1626)
e A Física de Aristóteles (1634), não são traduções literais de livros italianos,
mas foram fortemente influenciados pelos livros que viu, possuiu ou copiou
em Pádua. A Física de Aristóteles se tornou um dos livros de Física mais am­
plamen-te usados nos Bálcãs: ainda existem mais de 143 manuscritos, e uma
versão impressa foi publicada em Veneza em I 779.
Junto com Corydaleus, vários eruditos constituíram uma "Escola de Pá­
dua" grega no século XVIl, lecionando Filosofia e Ciência aristotélica a co­
munidades gregas: Georgios Korressios (1570-1660), Nikolaos (Nicéforo)
Klarontzanos (m. 1645), Meletios Syrigos (1586-1664), Nicolaos Koursoulas
(1602-52), Nicolaos Kerameus (m. 1663), Gerasimos V lahos (1605/7-1685),
Mathaios (Meletios) Typaldos (1648-1713) e Georgios Sougdouris (1645/7-
1725) (Petsios, 2004). Gerasimos V lahos escreveu um livro em 1661 para
suas aulas no Colégio Grego em Veneza intitulado Harmonia definitiva entium 13
[Harmonia definitiva dos seres] e baseado em várias fontes italianas e gre­
gas. Ele consiste em uma espécie de léxico escrito em duas línguas, latim e
grego antigo, com definições para seres materiais e não materiais por autores
antigos e por vezes bizantinos.
Em 1680, Ioannis Skylitzes escreveu uma Introd ução às ciências cosmográfi­
cas.14 Nesse manuscrito, o sistema copernicano foi pela primeira vez apresen­
tado em detalhes na língua grega. Até o momento não sabemos nem as fontes
que Skylitzes utilizou, nem as da Epítome da Astronomia, de Meletios Mitros,
bispo de Atenas, escrita em 1700 (ou poucos anos antes). 15 Na primeira
13 O órulo grego é Apµo111a opiçnKl] TOlV oVToov, MS, coleção do Instituto de Esrudos Bizantinos
e pós-Bizantinos em Venez.a. Uma breve descrição é feita em Tatakis, J 97 3.
14 ElOCI"fcoyl] ElÇ TCIÇ 1<ooµo-ypaqmcaç l((I\ TEXVCIÇ (Introdução às ciências e às artes cosmográfi­
cas ...), Biblioteca Paoiarcal de Jerusalém, MS 267, fols.9b-47a. Karas, 1992, encontrou dez
manuscritos desse texto: dois do século XVII (um datado de 1680) e os outros do XVlll.
15 B\�À.!OV CIOTp0TJOµll,OV, l((I\ 1U:p!EICTll<OV, aµa TE l<Cil O.ltOSE!Knl<OV, �(!)V TE ltCIÂ.CI!CllV KCil VWJV (oov
tq>EUpoov) MO Aooµ µqp1 ITTOÀ.Eµmou l<llt 1<01U:pTJ11<0u ... (Livro astronômico compreendendo
e por vezes demonstrando a partir de antigos e modernos (tendo eles feito descobertas),
desde Adam até Ptolomeu e Copérnico; d_eixando claro desde quando e com quém apren­
demos a ciência e a sabedoria dessa arte _as;ronômica.) Biblioteca do Anexo do Paoiarcado .•
,:',•·-· .... '.
 Peter Burke e R. Po-c hio .l:lsio (orgs.)
; ·.:
_ A tradução cultural nos primórdios da Europa Moderno
parte de seu livro, Skylitzes discute as constelações de ambos os hemisférios
e apresenta elementos de cosmologia geométrica (divisões da esfera cosmo­
lógica) e do movimento diurno da Terra e dos equinócios, além dos métodos
para determinar a latitude no mar. Na segunda parte, apresenta os planetas
e as três teorias do sistema do universo: a geocêntrica ("a dos pitagóricos"),
a copernicana e a tychoniana. Dá certas informações sobre o tamanho e o
movimento do Sol, o tamanho da esfera solar (o "céu solar") e o calendário
baseado nos movimentos do Sol. O mais provável é que esse livro tenha se
baseado em várias fontes; existiam muitos livros de "cosmografia" desse tipo
na Europa naqueles tempos.
O livro de Meletios Mitras é muito mais importante (320 páginas manus­
crit_as) e pode ser considerado um manual simplificado de Astronomia em
que o leitor encontra uma extensa introdução à cosmologia geométrica, um
método para computar tabelas para os movimentos dos planetas, o tamanho,
a distância e os movimentos do Sol, da Lua e dos cinco "planetas menores",
e uma apresentação extensa das constelações, incluindo as ''.desconhecidas
dos antigos". Meletios Mitras apresenta em nove páginas as três principais
teorias do sistema cosmológico (a ptolemaica, a copernicana e a tychoniana).
A observação sobre as fontes de Skylitzes é válida também para Micros.
Uma das traduções raras é aquela de certos textos astronômicos otomanos
por Chrysanthos Notaras (m. 1731), que teve sua educação secundária em
Constantinopla antes de partir para estudar em Pádua em 1697 e em Paris
em 1700. Em 1680, antes de suas viagens, traduziu três textos astronômi­
cos do árabe. Na verdade, eram textos da astronomia otomana, descrições
de problemas resolvidos pelo quadrante astrolábio, um astrolábio popular
entre os turcos (Tsakoumis, 1990). O primeiro texto, intitulado Explicação e
descrição do quarto da esfera, chamado em árabe iup-dagire, consiste na descrição
do quadrante astrolábio (ou "quadrante de Prefácio", em homenagem ao
astrônomo judeu também conhecido como Jacob ben Madir ibn Tibbon; que
primeiro o descreveu na Europa).
O segundo texto, intitulado Explicação do instrumento chamado tjeip, des­
creve um astrolábio análogo projetado para todas as latitudes (o rup-dagire é
concebido para uma latitude específica). Este segundo instrumento é mais
versátil, mas menos preciso. O terceiro texto, Problemas do astrolábio, apre­
senta a solução de problemas clássicos, como calcular a hora do pôr-do-sol,
de Jerusalém em Constantinopla, MS 420 (vinte fólios mais 320 páginas). Karas, 1992,
encontrou nove manuscritos desse texto, todos do século XVIII.
212
a direção do poente, a hora durante a noite, a latitude, a longitude, os pontos
cardeais, as horas do surgimento e do ocaso da lua, o horóscopo, a direção
de M_eca, e assim por diante. Para resolver esses problemas são necessárias
algumas tabelas, não indicadas no texto. Chrysanthos acrescenta um método
para a multiplicação dos graus, outro para traçar um horóscopo e um glossário
árabe-grego de termos relativos ao astrolábio. Esse tipo de tradução científica,
do árabe ou do turco otomano para o grego, é único.
Embora fossem súditos do Império Otomano, os gregos tinham um siste­
ma educacional à parte. O patriarca era responsável pela educação dos cristãos
ortodoxos, e as próprias comunidades gregas organizavam suas escolas. Por­
tanto, os contatos com a Ciência otomana eram muito menos importantes que
contatos com a Ciência italiana, em virtude da rede de comunidades gregas e
da crença de que a Ciência fora levada à Europa pelos gregos antigos.
Chrysanthos Notaras desempenhou um papel ativo em uma escola fun­
dado para fornecer tradutores ao império russo. A in.stituição, chamada Aca­
demia Eslavo-Helênico-Latina, foi fundada em Moscou em 1686 e financiada
pelo príncipe Galitzin e pelo grego Meletios Domestikos (ver p.244). Essa foi
a primeira instituição educacional russa de alto nível. Os primeiros professo­
res, os irmãos Ioannikios e Sofronios Leichoudis, foram enviados de Pádua
por Dositheos Notaras, patriarca de Jerusalém e tio de Chrysanthos, que foi
enviado por seu tio a Moscou em 1692 a fim de contatar o czar e também
supervisionar as aulas dos irmãos Leichoudis na Academia, já que Dositheos
considerava tais aulas pró-latinas demais.
Por essa época, Chrysanthos copiou - mas não traduziu - um manuscrito
muito raro sobre Astronomia e Mecânica enviado pelo líder da missão jesuí­
tica na China, Ferdinand Verbiest, ao c:zar Alexei Mikhailovich (Nicolai'dis,
1995). Esse foi o primeiro contato importante de Chrysanthos com a nova
Ciência européia, já que Verbiest apresentava as realizações da Ciência e da
tecnologia ao czar, com vistas a introduzir as missões jesuíticas como úteis
para a modernização do país. Depois desse contato, Chrysanthos visitaria
Paris, passaria alguns dias no Observatório com Jean Dominique Cassini
_
e escreveria um livro baseado em fontes francesas, a Introdução à geog rafia e
às esferas. Esse livro foi impresso em Paris em 1716, depois de o autor ter
sucedido a seu tio como patriarca de Jerusalém (idem, 2003).
Para encerrar a apresentação das traduções daquele período precisamos
mencionar também dois livros médicos. O primeiro, escrito por Gerasimos
Vlahos (um dos mais importantes professores do Colégio Grego em Veneza),
é, bastante estranhamente, uma tradução de Hipócrates do latim para o grego
213
 Peter Burke e R. Po-chio Hsio (orgs.) A tradução cultural n_os primórdios do Europa Moderno

moderno. Deve-se notar que depois da queda do Império Bizantino e da fuga nou um símbolo de um ressurgimento do helenismo, há muito desejado.
para a Europa ocidental de eruditos bizantinos com um grande número de Voltando os olhos ao glorioso passado da Grécia, esses eruditos buscaram
manuscritos científicos, a redescobena da anúga Ciência grega pelos eruditos a anúga Ciência grega e descobriram a nova Ciência na Itália. As traduções
gregos modernos era muitas vezes o resultado de sua passagem por Pádua. desse período procuravam difundir o conhecimento da antiga Ciência grega
Por isso não era incomum que um texto grego fosse lido em latim por alguns conforme era ensinada na Itália, e ao mesmo tempo tomar conhecidos novos
desses eruditos. 16 O segundo tratado, escrito no final do século XVII pelo desenvolvimentos científicos. Os eruditos gregos já não tomavam parte na
médico Nicolaos Agrafioús, é um livro de medicamentos traduzido de fonte produção de Ciência, mas apenas na difusão da Ciência européia em direção
italian� desconhecida. 17 _ à "periferia científica". Mais do que tudo, o ensino da Ciência integraria as
Para concluir: no que diz respeito a este segundo período, 1500-1700, comunidades gregas à cultura européia no século XVIII.
algumas traduções de obras científicas italianas apareceram em comunidades
gregas nos impérios otomano e veneziano, principalmente em forma manus­
crita. Essas traduções havi.am sido preparadas por gregos que tinh.µn estu­
dado na Universidade de Pádua. Os livros eram especialmente livros-textos;
nas comunidades gregas dessa época, é difici! separar a hist6ria da Ciência
d a história da educação. O número dessas traduções era limitado, como o
número de livros sobre Ciência e o número de eruditos nesse período. Trata­
dos científicos, bem como traduções, se tornariam um fenômeno importante
nos Bálcãs depois da metade do século XVIII, quando a "nova Ciência" seria
introduzida nos Colégios Gregos, após a reforma da Universidade de Pádua
em 1739 por Giovanni Poleni. 18
Durante a primeira metade do século XV, quando Bizâncio ainda existia
como um Estado fraco, mas organizado com um grupo de nobres eruditos,
as traduções para o grego visavam introduzir novos conhecimentos nesse
meio. Os eruditos debatiam qual astronomia podia descrever o movimento
dos céus com maior precisão, se a européia ocidental ou a persa. O grego era
a língua em que se encontravam a Ciência oriental e a ocidental. Bizâncio
era ainda uma encruzilhada cultural, e a Ciência se difundia da Pérsia para a
Europa por meio de traduções bizantinas.
Durante o período otomano, deixou de existir nas comun-idades gregas
um círculo erudito que participasse do desenvolvimento da Ciência. Havia
eruditos que ensinavam Ciência nessas comunidades, e esse ensino se tor-

16 Nenhum manuscrito dessa tradução é conheádo. A informação sobre â tradução de Vlahos é

dada em um dicionário médico manuscrito, escrito por Alexander Konstantinou Oikonomou
em 1812: Karas, 1992, v.III, p.41 e 78.
17 Avnõomp1ov EÇl]Y']µEVOV an6 TIJV m1À.11C!]V y).wooav... (Livro dos antídotos traduzido do
italiano ...), Biblioteca do Mosteiro de Sina, MS 1848. Karas, 1992, encontrou cinco ma­
nuscritos desse texto, quatro do século XVIlI.
18 _ Um artigo conciso sobre a reforma: Talas, 2004.

214
 CAPÍTULO 11
Encontros otomanos com a ciência européia:
traduções para o turco nos séculos XVI e XVII
Feza Günergun

Uma comunidade erudita parece ter gradualmente surgido na Anatólia

conforme os turcomanos se assentaram na região do século XI em diante. As
medreses [madraçais], escolas (que ensinavam sobretudo teologia islâmica e
jurisprudência muçulmana) estabelecidas entre os séculos XII e XIV pelos
seljúcidas, introduziram a cultura religiosa e científica islâmica às cidades
da Anatólia. Essas instituições educacionais, criadas segundo o_ modeló das
Nizamiye medreses, assim chamad� em homenagem a seu fundador, o vizir
seljúcida Nizamulmulk (que reinou de 1063 a 1092), estavam presentes em
muitas localidades da pane oriental do mundo islâmico.
Os governantes dos principados turcos que vieram à tona depois que o Es­
tado seljúcida fraquejou e ruiu levariam adiante a tradição de fundar medreses
onde a cultura científica islâmica florescesse. O Estado otomano q1.1e surgiu
na virada do século XIV era um desses principados, e acolheu e defendeu a
cultura científica islâmica até o século XIX, quando a ciênàa e o conhecimen­
to técnico transferidos da Europa ocidental foram finalmente ensinados em
instituições educacionais otomanas. As traduções desempenharam u m papel
significativo não apenas na introdução do conhecimento científico islâmico
que se desenvolvera entre os séculos IX e XIV, mas também na transmissão
da ciência procedente da Europa ocidemal.
 Peter Burke e R. Po-chio Hsio (orgs.)
A vida erudita otomana evoluiria assim sob a influência de duas culturas
distintas. Enquanto a cultura científica muçulmana predominou até o fim do
século XVIII, o conhecimento científico e técnico da Europa ocidental pene­
trou o espaço otomano mediante traduções e outros meios do século XVI em
diante. O novo conhecimento do Ocidente ficou gradualmente estabelecido
no sécul9 XIX, quando administradores otomanos empreenderam a moder­
nizaçã? do exército e das instituições governamentais segundo o modelo
europeu e fundaram instituições educacionais m_odernas que transmitiam o
conhecimento científico e técnico europeu.
As principais instituições otomanas onde a cultura científica islâmica flo­
resceu foram as medreses. Criadas por indivíduos abastados como fundações
pias, as medreses otomanas ensinavam a jurisprudência muçulm�a junto com
árabe, Lógica, a interpretação doAl_corão, o hadith (os ditos do profeta Maomé),
Teologia, sufismo e as ciências matemáticas, incluindoAritmética,Astronomia
e ocasionalmente Física. Embora o currículo não incluísse as ciências matemá­
ticas em todas as medreses, eruditos dessas instituições contribuíam para co­
mentar e propagar textos científicos islâmicos dentro do Império Otomano.
Eruditos que saíam de Bagdá, Cairo, Damasco, Herat, Samarcanda e Ta­
briz para lecionar em medreses otomanas levavam consigo não apenas seu
conhecimento, mas também textos científicos islâmicos. Esses eruditos iam
às terras otomanas procurar patrocínio e ganhar a vida, ou então eram convi­
dados por governantes otomanos. O matemático e astrônomoAli Qushji (m.
1474) veio de Samarcanda lecionar em Istambul a convite do sultão Maomé
II (cujo reinado durou de 145 I a 1481).
Durante a inquietação socioeconômica que se seguiu à morte de Ulugh
Beg em 1449, um grande número de eruditos iranianos, bem como de erudi­
tos da Corásmia e da Transoxiana, emigrou para a Anatólia, buscando refúgio
em terras otomanas. Conquistaram posições como conselheiros e médicos
dos sultões otomanos ou com� juízes ou professores nas medreses. Jovens
graduados das medreses, desejosos de aprimorar seus conhecimentos, com
freqüência deixavam a Anatólia para unir-se ao círculo de eruditos famosos
vivendo nos centros mencionados.
Textos científicos em árabe e suas traduções turcas
A língua de ensino nas medreses anatólias era o árabe, a língua da ciência
no mundo islâmico. Por essa razão, as obras de muitos matemáticos e as-
218
A lroduçõo cultural nos primórdios do Europa Moderno
trônomos islâmicos, tais como al-Cagmini (m. 1221), Nasir al-rnn al-T usi
(m. 1274), al-Samarkandi (ativo c. 1284), Ali Qushji (d. 1474) e Kadizâde-i
Rumi (m. 1412), eram emsua maioria estudadas diretamente em árabe. Seus
comentários e as novas obras compiladas depois delas também foram escritas
em árabe. O turco e o persa eram também usados na compilação de textos
científicos, mas em menor medida. Embora o árabe fosse onipresente no
ensino das medreses até o século XIX, textos científicos árabes e persas foram
vertidos para o turco, a língua falada na Anatólia e a língua administrativa
do Estado otomano, do século XIV em diante.
,
Na farmacologia, a Kitâbu'l-câmf' müfredâti'l-edviye [Matéria médica], de
�,
Ibn Beithar (m. 1248), esteve entre as primeiras obras traduzidas para o .)
turco. A tradução, Tercümetü'l-müfredât, logo se tomou popular. Cerca de 35
exemplares ·de várias traduções feitas nos séculos seguintes estão mantidas
em várias bibliotecas na Turquia, junto com as trinta cópias da obra original ()
de lbn Beithar em árabe. 1
"}
l
O médico turco do século XV Celalüddin Hizir (conhecido como Haci
\)
Pasha, m. 1413), que escreveu a maioria de seus livros médicos em árabe,
compilou a Müntahab üs-sifa [Seleção de conhecimentos médicos] em turco (�
,·,
no intuito de introduzir seus conhecimentos médicos a um público leitor .)
mais amplo. 2 Muhammed b. Mahmud-i Sirvâni, um médico de Shirvan que
clinicou naAnatólia na primeira metade do século XV, escreveu em árabe dois
()
�-.
livros sobre saúde e produtos farmacêuticos (ungüentos, óleos, pílulas, pós,
perfumes): o Yakúbiyye [Formulário de Yakub] e o Ravzatü'l-itr [O jardim das ()
fragrâncias].Além disso, tam bém fez traduções do árabe para o turco. Primeiro
traduziu seu próprio livro médico Ilyâsiyye do árabe para o turco, por ordem
de Seljukid beg llyas, a quem fora dedicada a cópia original em árabe. ll
,
Segundo seu próprio relato, Mahmud-i Sirvâni aprendeu sobre as pro­ :-)
priedades de pedras enquanto praticava medicina na Anatólia, e planejou
escrever um livro com a meta de proteger os muçulmanos de falsários. Assim,
em 1427 traduziu o Cevâhirnâme [Livro das pedras preciosas], do médico e
(J
mineralogista islâmico Ahmad ibn Yusuf al-Tifashi (m. 1253), por ordem
de Umur Beg (m. 1461), um chefe militar turco. Os dois outros livros de
Mahmud-i Sirvâni parecem ter sido escritos originalmente em turco: o Sul-
Uma cópia dessa primeira tradução anônima pode ser encontrada na BibÚoteca da Uni­
versidade de Istambul. A Biblioteca Süleymaniye (Istambul) contém um bom número de
cópias tanto da obra original em árabe como de suas traduções (Sesen, 1984).
2 Há uma cópia registrada na BibUotheque Nationale, Paris (Man. Turcs A. F. 170).
.. : 219
 Peter Burke e R. Po:chi Hsio (orgs.)
':'
tâniyye [O códice do sultão], sobre saúde (apresentado ao sultão otomano ·
Celebi Mehrned, que reinou de 1413 a 1421), e o Mürsid [O guia], uma obra
abrangente sobre doenças oftálmicas (Mahmíid-i Sirvâni, 2004). Esses pou­
cos exemplos ilustram tanto o uso concomitante do árabe e do turco entre
os eruditos como o patronato de obras científicas por parte de príncipes
anatólios do século XV.
Na prática cirúrgica, uma tradução feita por Sabuncuoglu Sherefeddin (n.
1385), do darüssifa [hospital] em Amasya, uma cidadezinha na Ásia Menor,
merece menção porque exemplifica a transmissão de técnicas cirúrgicas do
século VII ao XV por meio de sucessivas traduções em várias línguas. Dado
o título Cerrâhiyet'ül-Hâniyye [Cirurgia para os cãs], deve ser uma tradução
turca de al-Tasrif[A coletânea], o renomado livro de cirurgia em árabe de Abu)
Qasim al-Zahravi (936-1013). Partes do último foram tomadas emprestadas
da Epitome [Sinopse de Medicina em sete livros], do médico grego bizantino
do século VII Paulo Aeginata.
Em Astronomia, somente umas poucas traduções foram feitas para o tur­
co entre os séculos XIV e XVI. Isso sugere que traduzir livros de Astronomia
do árabe não era tido como necessário, já que eles podiam ser consultados
diretamente pelos eruditos otomanos. Uns poucos livros sobre a medição
do tempo foram traduzidos do árabe para o turco para o uso de alunos das
mcdreses menos versados em árabe do ·que seus mestres.
O tratado persa de Astrologia e elaboração de calendários, de Nasir al-Din
al-Tíisi, o principal astrônomo do Observatório de Maragha, foi vertido para
o turco duas vezes, no fim do século XIV e no início do XV. Conhecido como
Sf fasl der marifet-i takvim [Os trinta capítulos da elaboração de calendários],
deve ter sido usado freqüentemente por astrônomos otomanos, já que mais
de 25 exemplares, cobrindo do século XIV até o XVIII, perma:necem em bi­
bliotecas na Turquia. Em meados do século XVI, o almiránte otomano Seydi
Ali Reis (m. 1563) traduziu o livro de Astronomia er-Risaletü'/-fethiyye fi'l-hey 'e
[Tratado astronômico glorificando o triunfo], 3 de Ali Qushji (m. 1474), do
árabe para o turco. A tradução abreviada contendo informações adicionais de
outros livros de Astronomia foi intitulada Hulâsatu'l-hey'e [Uma breve expo­
sição da Astronomia]. Embora o número de traduções turcas fosse aumentar
regularmente nos séculos seguintes, a maioria dos livros sobre Astronomia e
Matemática continuou sendo escrita em árabe até o século XVIII.
3 Ali Qushji apresentou o tratado ao sultão Maomé II, o Conquistador, após sua vitória contra
o Estado Akkoyunlu em 1473 em Otlukbeli, no leste da Anatólia.
220
A tradução cultural nos primórdios do Europa Moderno
No campo da medicina veterinária, tratados sobre moléstias de cavalos
(baytamames) foram traduzidos do árabe para o turco a panir do século XVI,
se nãç, antes. Um baytarname padrão do século XVI enumerava as proprieda­
des dos cavalos (características, cores do pêlo, como determinar sua idade)
e descrevia órgãos, reprodução, treinamento, doenças e terapias. Assim, os
primeiros baytarnames otomanos usualmente combinavam informações so­
bre hipologia e hipiatria, enquanto os dos séculos XVII e XVIII meramen­
te lidavam com doenças eqüestres e suas curas. Informações sobre outros
animais além dos cavalos, como camelos, gado e ovelhas, eram oferecidas
ocasionalmente.
Livros compilados pelos baitars (ferradores ou veterinários) das cortes
abássida e mameluca eram tidos em alta estima pelos otomanos do século
XVI. O Kitâb al-hail wal-baitara [Livro sobre cavalos e hipiatria], de Muham­
med bin Ya'kíib b. Ahi Huzzâm al-Huttali (m. 865). veterinário da corte
abássida, foi traduzido para o turco no início do século XVI. Um exemplar da
tradução turca, anônima e sem título, é datado de 1536. Aproximadamente
trinta ?nos depois, em 1 562, o Kâmil al-sinâ'atayn ai baytara [O livro perfeito
sobre as duas artes veterinárias], de Abu Bakr bin al-Badr bin al-Mundir Badr
ad-Din al-Baitar, veterinário na corte do sultão mameluco al-Nasir Muham­
mad Ibn Qalawun (reinado 1293-1340), foi vertido para o turco por Hüseyin
bin Abdullah. Outra tradução turca, feita mais de um século depois, em 1679,
por Muhammed b. Cerkes, indica sua influência contínua.
O Kitâb-i makbü.l der hâl-i huyúl [O estimado livro sobre as várias condições
dos cavalos], compilado em turco pelo xeque Mehmed bin Mustafa (m. 1635),
parece ter sido um baytarname popular no século XVII, já que cerca de vinte
exemplares existem atualmente. Conhecido como Kadizâde, o autor relata
que esteve envolvido-com a ciência da criação de cavalos desde a infância e ·
examinara um grande número de baytarnames. Tendo ouvido dizer que o sultão
Osmã II (reinado 1617-21) era um cavaleiro ímpar, compôs o Kitâb-i makbul
como oferenda ao sultão. Kadizâde provavelmente se baseou em baytarnames
árabes, turcos ou persas, já que não se sabe de nenhuma obra européia sobre
cavalos que tenha sido traduzida até a segunda metade do século Xix, após
a criação de aulas de veterinária em 1849 na Escola Militar em Istambul. O
fato de que Tayyarzade Mehmed Ataullah (!Tl- 1879), contador do exército
otomano e autor de uma obra em cinco volumes sobre o Império Otomano
(Tarih-i ata, 1876), tenha traduzido um baytarname do árabe mostra como
sobreviveu a devoção à literatura clássica islâmica sobre hipiatria.
221
 Peter Burke e R. Po-chio Hsia (orgs.) A tradução cultural nos primórdios da Europa Moderna

Século XVI: marinheiros e médicos transmitem eram enfatizados. Tanto o esboço (1521) como a versão revisada (1526) do
o conhecimento cartográfico e médico europeu ·,: Kitab-i bahriye estão em tur_co. Ao mesmo tempo em que faz uma descrição
completa do litoral, dos portos marítimos e dos ancoradouros mediterrâneos,
Obras otomanas baseadas em fontes da Europa ocidental começaram a ' oferece informações técnicas de que os marinheiros precisariam ao navegar
aparecer do século XVI em diante, embora a introdução do conhecimento Mediterrâneo adentro. Em suma, é um guia para marinheiros.
da Europa ocidental não tenha significado o abandono da cultura científica A versão de 1526 foi escrita tanto em prosa·como em verso, e inclui 92
islâmica, que continuou a predominar, especialmente nas medreses, até o sé­ portulanos. Na parte introdutória (972 dísticos), Piri Reis descreve as marés,
culo XIX. A política expansionista do século XVI levou ao uso generalizado a bússola magnética, os ventos e os sete mares, discute como os portulanos
da cartografia marítima do Mediterrâneo ocidental por parte dos marujos devem ser usados e dá instruções e conselhos adicionais aos marinheiros. Nos
otomanos, enquanto a chegada de médicos judeus permitiu aos otomanos dísticos a seguir ele narra a descoberta das Antilhas por Cristóvão Colombo:
descobrir as práticas médicas européias do Renascimento. Entretanto, a di­
fusão do conhecimento teve lugar não apenas por meio de traduções, mas
Nâm ile Antilye dinür bil ana Eles chamam àquele país Antilhas
também por via do contato direto entre marinheiros e médicos otomanos e
Dinler isen dahisinin diyem sana Se me ouvirem, cu lhes falarei dele
oci.dentais.
As campanhas promovidas no Mediterrâneo por Piri Reis (1470-1554), Hem ni�e bulundu isit oi diyar Ouçam também como essa terra foi descobena
comandante da frota otomana, e seus contatos com marinheiros italianos e Serh edryim t4 ola ásikâr Deixem-me explicar para 9.ue fique claro
catalães levaram-no a compilar um mapa-múndi do qual só possuímos um Ceneviz'de bir müneccim var imis Em Gênova havia um astrólogo
fragmento retratando o litoral do noroeste da África, a península Ibérica e o Nâm ile Kolon ana dirler imis cujo nome era Colombo
litoral leste das Américas Central e do Sul. Esse fragmento é hoje conhecido Anun eline girer bír hos kitâb Um curioso livro foi parar em suas mãos
como a Carta do Oceano Atlântico de Piri Reis (1513). Uma nota no can­ Kalmis lsktnder'den oi da irtiyâb que sem dúvida era do tempo de Alexandre
to sudoeste do mapa explica que ele usou aproximadamente vinte grandes
Cümle deryâ ilmini bir bir tamâm Naquele livro eles haviam reunido e
mapas, entre os quais um alexandrino, oito árabes, quatro portugueses, um
Cem'idüb yazmislar imis iy hümâm escrito tudo o que se sabia sobre navegação
indo-chinês e um chinês, junto com um mapa desenhado por Colombo.
A segunda carta marítima de Piri Reis, a Carta do Atlântico Norte (1528), OI kitab gelmis bu Efren, iline O livro acabou chegando à terra dos Francos
que também se acredita ser um fragmento de um mapa-múndi maior, retrata Bilmemisler líkin anun hãline mas eles não sabiam o que havia nele

a ponta sul da Groenlândia e o litoral leste da Terra Nova, o litoral da Flórida, Bulur okur bu Kolon ani iy yâr Colombo encontrou esse livro e o leu
algumas ilhas do Caribe, incluindo Antilhas, Cuba e o Haiti, e o litoral norte Varur Ispanya begine ani sunar depois disso o levou ao rei da Espanha
da América do Sul. Takrir ider cümle ahvâli ana E quando disse ao rei tudo o que estava ali escrito
O Kitab-i bahriye (Livro da n�vegação), de Piri Reis, junto com seus dois OI dahi gemi viriir sonra buna o rei lhe deu navios
portulanos fragmentários que retratam parcialmente o oceano Atlântico,
OI kitâb ile amei ider iy yâr Caro amigo, empregando esse livro
são bons exemplos da circulação de informações cartográficas e náuticas na Colombo navegou e chegou às Antilhas
Varub Antilye'yi ider asikâr
região mediterrânea no início do século XVl.4 Todavia, a troca de informa­
Dahi sonra dunnaz açar oi ili Depois disso não parou, mas ·explorou aquelas terras
ções deve ter começado antes disso. O Kitab-i bahriye, um atlas portulano,
Simdi meshúr eylemisdür oi yolu Assim a rota se tomou conhecida de todos
também possui as características do gênero isolario, em que o assunto era
dividido em capítulos incluindo mapas, e os aspectos históricos dos lugares Hartisi tâkim anun geldi bize Seu mapa também chegou até nós. Essa é a situação
Isbudur hal kim �_idim ciimle sizt e eu já lhes contei tudo

4 Quarenta e duas cópias do Kitab-i bahriye existem em bibliotecas pelo mundo. Algumas estão Likin bunda bír rnahal geldi bana Chegamos agora ao ponto em que devo.
sem as cartas, outras incluem até duzentas (Ozen, Piri Reis and his Charts, 1998, p.20-2). Bu da tezkire ola girii ana resumir o restante . ,,:

222
 Peter Burke e R. Poc�hio Hsio (orgs.)
As obras de Piri Reis dominam esse período, mas três outros atlas
de portulanos do tipo padrão mediterrâneo sobreviveram: o.Atlas, de Ali
Macàr Reis (Biblioteca do Palácio de Topkapi); o anônimo Atlas-i humayün
[Atlas imperial] preservado no Museu Arqueológico de Istambul; e o Deniz
atlasi [Atlas marítimo]. na Walters Art Gallery, em Baltimore. Todos eles
pertencem à segunda metade do século XVI, e, junto com as cópias mais
refinadas do Kitab-i bahriye, refletem a fama que esse gênero deve ter tido
em meio aos otomanos mais sofisticados. Os atlas ou as cartas marítimas
funcionais e mais simples que sem dúvida existiam não sobreviveram, ex­
ceto por exemplos isolados corno a carta marítima egéia de Mehmed Reis
ibn Menemenli.
O conhecimento médico do Renascimento foi levado ao Império Oto­
mano no século XVI sobretudo por médicos judeus expulsos da península
Ibérica pelos reis da Espanha e de Portugal. Alguns desses médicos tinham
sido educados em universidades européias. Durante esse período, contudo, o
acesso de judeus a universidades européias era restrito, e mesmo aqueles que
eram afortunados o bastante para ser admitidos por uma dessas instituições
não recebiam um diploma ao fim dos estudos. Uma exceção a essa situação
era a Universidade de Pádua, que permitia que alunos judeus estudassem e
lhes concedia diplomas. Os sultões otomanos permitiam-lhes professar sua
. -� �
religião e tratar de pacientes não judeus.
Um dos mais renomados médicos judeus da corte otomana no início do
século XVI foi Moses Hamon (m. 1554), o médico particular de Solimão,
o Magnífico, também conhecido como "o Legislador" (que reinou de 1520
a 1566). Seu pai, José Hamon, havia emigrado da Espanha e ingressado na
corte do sultão Beyazit II (cujo rei"nado durou de 1481 a 1512). A literatura
.·rf
médica levada por esses médicos provavelmente permitiu a Shemseddin Itaqi
compilar seu tratado de anatomia, o Risâle-i tesrih-i ebdân [Tratado sobre a
..:.�·:
anatomia do corpo humano] no início do século XVII.
Viajantes quinhentistas europeus na Ásia Menor e no Oriente Médio
observaram médicos não apenas judeus e turcos, mas também espanhóis e
italianos, praticando em terras otomanas. Despachado por Fernando I (1503-
1564) para Istambul em 1554 como embaixador na corte do sultão Solimão
I, o flamengo Ogier Ghislain de Busbecq (1522-92) relatou em suas Cartas
turcas que, antes de deixar Istambul em 1562, havia enviado um médico
espanhol chamado Albacare à ilha de Lemnos: Ele havia pedido ao médico
que comparecesse à cerimônia anual organizada para a abertura dos leitos
de argila:
224
A troduçõo c:uhurol nos primórdios do Europa Moderno
Antes de deixar Constantinopla, mandei a Lemnos um médico espanhol cha­
mado Albacare, para que possa estar presente à costumeira cerimônia do dia 6
. de agosto, quando eles abrirem aquela terra maravilhosa. Eu lhe pedi que escreva
uma descrição exata do que ocorrer, e que se informe precisamente quanto a.o local
e sobre se a terra precisa de cuidados para que seu poder especial se preserve: não
tenho dúvida de que cumprirá essa missão, a menos que haja algum obstáculo
insuperável; os turcos nem sempre permitem que todos vão ao local, e eu mesmo
teria ido há muito tempo se me tivessem permÍtido. (Busbecq, 1581)
-
De acordo com o viajante francês Pierre Belon (1517-1564), as pequenas
pelotas de argila eram estampadas com o selo do administrador otomano
(subasi) da ilha. Eles levavam, portanto, a inscrição tin-i mahtum em caracteres
arábicos, significando literalmente "terra selada", ou terra sigillata. Também
conhecida como Terra Lemnia (de Lemnos), esse medicamento era extrema­
mente popular por suas várias propriedades medicinais. Em virtude de seus
efeitos adstringentes e sicativos, era usado para prevenir hemorragias, curar
feridas e tratar de úlceras e gonorréia. Também era recomendado como antí­
doto contra intoxicação alimentar, em virtude cfe suas qualidades eméticas.
-'�:·
�·- Em seu. retorno a Viena em 1562, Busbec:q foi acompanhado por Don
Álvaro de Sandé, o comandante espanhol que havia lutado contra os otoma­
. ·.
nos na Batalha de Djerba (1560). Capturado pebs turcos, Sandé foi libertado
•.,";>
:j.1.�·­
J:l�,.
··t-;: .. graças a Busbecq. Sandé tinha um médico esparbol que havia "comprado". O
'fil\·' último era possivelmente um dos cativos trazidcs de Djerba e posteriormente
1..,.\: vendidos em Istambul. Busbecq não citou seu rume, mas relatou a luta entre
.•-·i,.'-"'
. ::_·.:,
J,t,: esse médico e um janízaro enquanto procuràvan:acomodações em Tolna; uma
':l'"�:"._.
cidadezinha ao sul de Buda, em 1562.
·--�:-
_ E.m 1553, um ano antes de Busbecq, o seDgenário Hãns Dernschwam
., (1494-1586), um viajante boêmio, havia deixad0Viena a caminho de Istambul
� ...
em companhia de uma delegação que Fernando t enviara a Solimão 1. Graças à
seus serviços para a Companhia Fugger, Demsch,;am havia feito uma pequena
fortuna e podia viajar à própria custa, com seu "criado, coche, três _cavalos e
uma bolsa cheia de moedas de ouro". Ele anotoi:em seu diário que tinha visto
muitos médicos judeus e italianos, mas não ch!gou a citar seus nomes:
Os turcos usam as receitas que herdaram é:e seus ancestrais, bem como as
que obtêm de droguistas italianos. Um médicritaliano costumava fazer visitas
freqüentes a nosso embaixador [Busbecq?]. E� sabia latim muito bem e havia
tratado de várias pessoas, (Dernschwam, 1923.
225
 Peter Burke e R. Po-chia Hsio (args.)
Século XVII: traduções de cartógrafos, anatomistas e
iatroquímicos europeus
Suas campanhas militares na Europa central no século XVII deram aos
otomanos a oportunidade de se familiarizar com obras científicas ocidentais
famosas. É in teressante notar, primeiro, que a maioria da s traduções ou
compilações de livros europeus foram feitas para o turco, e n ão para o árabe,
a língua da principal instituição cien tífica da época, a medrese. Segundo, as
traduções eram geralmente feitas por tradutores profissionais ou funcionários
do go vern o familiarizados com línguas européias.
A razão para qu e os profes�ores das medreses estivessem pouco envolvidos
na tradução de livros europeus n o século XVII e ra que o s tratados cien tífic os
europeus dificilmente poderiam ser usados em medreses, já que a meta primária
d�ssa s instituições era ensinar a religião islâmica, o direito islâmico, a lí ngua
árabe· e, em m enor medida, as ciências matemáticas (cálculo, medição do
t empo, uso de astrolábios etc.). Essas matérias eram ensin adas com base n as
obras mat emáticas islâmicas, abundantemente disponíveis . Outra razão para
sua falta de envolvimento era a pouca familiaridade dos eruditos das medreses
com línguas européias. Seu conhecimento do árabe, do persa e do turco, além
da disponibilidade de livros-textos islâmicos, pode ter levado esses eruditos
a depositar uma confiança excessiva em autores islâmicos. Alguns membros
de medreses faziam traduções parciais, cont udo, ou então consultavam ou es­
tudavam obras européias com a ajuda de um tradu tor, que era ou um europeu
com algum conhecimento de turco ou um convertido ao Islã.
Muitos tradutores seiscentistas de textos científicos europeus para o turco
eram funcionários públicos ( secretários e tradutores em serviço) nos vários
es critórios civi s e militares do Estado. Eram muçulmanos d e na sc en ça ou
convertidos ao Islã. Um jovem escriturário (kâtib) que conseguisse emprego
em um escritório es tatal seria treinad o por fu ncion ários superi ore s , mas
também poderia instruir-se le ndo livros de Gramática, Re tórica, História,
G eografia, Dire ito e diplomacia, bem como composições literárias . Naquela
época, os escritórios do Estado fu ncionavam como instituições educacion ais.
Burocratas trein ados nesses escritórios, embora não fossem tão respeitados e
in fluent es como os membros das medreses (a classe dos ulemás), produziram
valiosas obras literárias, históricas e, em menor medida, científicas.
Falando de modo geral, os burocratas e eruditos turcos dos século� XVII
e XVIII eram versados em turco, árabe e persa e não sentiam a necessidade de
aprender línguas européias porqôe havia intérpretes empregados nas Relações
226
--------·
A lroduçõo culturol �os primórdios da Europa Moderna
c[t
. '- ,_·,.-.....!;
-
Exteriores. Na tradução de livros científicos, eruditos ou burocratas tinham
de cooperar com um intérprete. As traduções turcas dos atlas de Mercator e
Ortélio resultaram de tal colaboração.
Cihannümâ, de Kâtib Çelebi: traduções de Gerardo
Mercator, Abraão Ortélio e outros cartógrafos europeus
Mais conhecido n a Europa como Hadji Khalifa; KâtibÇelebi (1609-57) foi
o "erudito-burocrata" por excelê ncia que in troduziu o conhecimento carto­
gráfico e geográfico europeu dos séculos XVI e X.VII no Império Otomano. O
Cihannüma [Cosmorama], a abrangente obra que compilou em turco com base
em atlas e livros de ge ografia tanto islâmicos como europeus foi substancial
para moldar a noção otomana de Geografia.
Destacado polígrafo e bibliófilo, Kâtib Çelebi era fascinado por Geografia
porque e la proporcion ava a opo rtunidade de, estando-se confortavelmente
sentado e m casa, viajar ao redor do mu n do e adquirir mais in formação do
que pess oas que viajavam a vida inteira. Para el e, a Geografia era uma parte
da A stronomia, e ele acr editava que esta era necess ária para compreender o
universo e Deus . Além disso, estadis tas deviam estar familiarizados com a "arte
da geografia", já que um conhecimento do assunto era necessário ao sucesso
em campanhas militares e a fim de controlar as fronteiras. Kâtib Çelebi frisou a
importância da Ge ografia dando um exemplo do mundo cristão: "Os europeus
'infiéis ' que consideravam a ciência da Geografia importante foram capazes de
descobrir a América e cons eguiram navegar até a Índia. Veneza, um pequeno
ducado cristão, cons eguiu adentrar um mar (o Egeu) que está sob controle
otomano e desafiar um império que rege o Ocidente e o Ori ente". 5
Kâtib Çelebi, como outros jovens otomanos que aspiravam a se torn ar
burocratas foi admitido corno assistente aos 14 anos por um dos es critórios
de contabiÍidade do Cons elho de Es tado, onde aprendeu cálculo e o siyakat, o
estilo de escrita usado n as contas do Tesouro. Transferido para um escritório
militar, participou por cerca de dez anos das campanhas militares otomanas
contra os safávidas no Iraque e no Irã. De r etorno a Istambul, gastou a maior
pane de sua fortuna comprando livros. Enquanto continuava a trabalhar �o
escritório, passou a visitar professores das medreses para aprender Astronomia,
has navais, l 645),_ de
5 De Tuhfetü'l-kibar fi esfari'l-bihâr (Figuras proeminentes de campan · · ·
Kâtib Çelebi, citado em Gõkyay (1982), p.12, 129.
 Peter Burke e R. Po-chio Hsio (orgs.)
Matemática, ciências religiosas e Lógica. Era um ávido leitor de biografias,
. bibliografias e livros de História.
As campanhas otomanas em Creta contra Veneza (1645-59) despertaram
a atenção de Kâtib Çelebi para a história naval e a Geografia. Ele primeiro
escreveu Tuhfetü'l-kibâr fi esfâri'l-bihar [Dádiva à nobreza: uma crônica das
campanhas navais, 1645), em que analisou antigas vitórias e derrotas da
marinha otomana, discutiu as medidas que poderiam ser tomadas para sua
melhoria e descreveu os territórios vizinhos governados pelos venezianos,
albaneses e peloponésios. Em seguida, decidiu compilar um abrangente livro
sobre a geografia do mundo, e pôs mãos à obra em 1645. Começou a compor
seu livro com base em textos geográficos islâmicos como al-Muhft [O oceano),
Tarih-i hind-i garbi [A história da descoberta da América], Taqwim al-buldan
[Geografia de países], Menâzirül-avâlim [Panorama do mundo) e Kitab-i bahriye
[Livro da navegação].
Conforme trabalhava, deu-se conta de que as fontes islâmicas não eram
suficientes para seu projeto. Parou de escrever e procurou obter livros de
Geografia europeus e aprender seu conteúdo. Conseguiu o Atlas minar, que
era amplamente conhecido no mercado europeu. Tratava-se da versão po­
pular do atlas de Gerardo Mercator (1512-94), impressa por Josse Hondius
(1546-1611).
Kâtib Çelebi também tentou conseguir o T heatrum arbis terrarum (1570),
de Abraão Ortélio (1527-98), mas aparentemente só teve acesso, em um
estágio posterior, ao catálogo de geógrafos anexado a ele. A tradução do Atlas
minar do latim para o turco foi feita oralmente pelo xeque Mehmed Ihlasi,
um convertido francês ao Islã. Kâtib Çelebi pôs por escrito· o texto turco,
editou-o e chamou a tradução ele Levâmi'al-núr fi zulmat-i atlas minar [Luzes
bruxuleando nas trevas: Atlas minor, 1654]. Anexou-lhe uma bibliografia de
cartógrafos e geógrafos que compilara do texto de Ortélio.
Kâtib Çelebi começou então a reescrever o Cihannüma. Na segunda ver­
são (1654), fez uso da literatura geográfica européià já citada, e é também
provável que tenha obtido novas informações de outros mapas e livros de
Geografia do século XVI. ·o Cihannümâ estimulou outros otomanos a escre­
ver sobre Geografia; sua versão impressa (1732), enriquecida por lbrahim
Müteferrika, despertou considerável interesse no século XVIII.
A Geografia não era o único interesse de Kâtib Çelebi. Ele escreveu sobre
história islâmica, otomana e européia, e compilou uma enciclopédia biblio­
gráfica, a Kesfü'z-zunún an-esâmi'l-kütüb vel'l-fünun [A eliminação de dúvidas
sobre títulos de livros e ciências], incluindo cerca de 14.500 verbetes sobre
22B
A tradução cultural nos primórdios do Europa Modemo
livros e dez mil biografias (Celebi, 1835-1838). As dificuldades financeiras
que o Estado otomano enfrentou em meados do século XVI estimularam­
no a· pensar em medidas que poderiam ser tomadas a fim de assegurar a
prosperidade do Estado e da sociedade. Comparando a sociedade ao corpo
humano, recorreu à doutrina hipocrática dos quatro humores para explicar
o "mal" da sociedade e a forma de recuperar sua "saúde". Em Düsturü'l-amel
li islâhi'l-halel _[Princípios de ação para a reforma, 1653], lê-se:
O corpo humano é uma combinação de quatro humores, e funciona em virrude
de seus sentidos e de suas capacidades naturais, que são confiados às mãos com­
petentes da alma humana. Outrossim, a estrutura de uma sociedade é composta
de quatro elementos, e sua regulação e administração por meio de estadistas (os
sentidos e as capacidades) são deixadas às mãos compecentes do glorioso sultão (a
alma humana). Os quacro elementos da sociedade são os erudicos, os soldados, os
comerciantes e o populacho. Os eruditos, formando uma dasse eminente, podem
ser comparados ao sangue, o mais valioso humor do corpo; como o coração é a
fonte da alma animal, que é imaterial em essência, tão tênue e fina e incapaz de
fluir, ela é levada pelos vasos sangüíneos às extremidades mais discantes do corpo,
a codos os órgãos e aos braços e pernas. Sem dúvida, assim como o corpo encontra
vida no sangue e se beneficia dele, os eruditos que primam no conhecimento das
leis divinas e da crença em Deus recebem a santa ciência (a alma) diretamente de
Alá e de seu mediador, e a comunicam ao público inculco (os braços e as pernas).
Assim, o corpo é alimentado pela alma, e o povo aprende com os erudicos. A alma
proporciona a força e a perseverança do corpo; a ciência decermina o vigor e a re­
sistência da sociedade. (...) Os soldados representam a fleuma, e os comerciantes
são como a bílis amarela. o povo é similar à bílis negra; sua natureza é a da terra,
e é vulgar. ( ... ) Os quacro humores aumentam e diminuem para se influenciarem
uns aos outros a fim de preservar a saúde do corpo. Da mesma maneira, quando
as quatro classes da sociedade, civilizadas peÍa criação, recebem sustento urnas
das oueras, a ordem da sociedade e a saúde do Estado são escabelecidas. Os quatro
humores precisam escar em equilíbrio para garantir uma disposição saudável ao
corpo. Caso um dos humores aumente ou mude em substância, será necessário
remediar isso diminuindo ou suprimindo esse humor.
O populacho corresponde à bílis negra. Foi escabelecido pela medicina e pela
anatomia que, durante a digestão de uma refeição, quan_do o alimento é introdu­
zido no estômago, o baço segrega a bílis negra, para que aquele não fique vazio
e não haja danos. Se compararmos o estômago ao Tesouro imperial, quando o
cofre fica vazio, os pobres devem estar prontos para pagar e abastecê-lo. Todavia,
se o povo for oprimido e não tiver trabalho e renda, não terá como fazer isso. Por
essa razão, os sultões do passado davam muita atenção a proteger o povo dos
229
 Peter Burke e R. Po-chio Hsio (orgs.)
impiedosos, tratando-o com justiça e ze.lando por ele. ( ...) A fleuma (os guerrei­
ros) é necessária e prestativa, e todavia seu excesso e sua mudança de caráter são
nocivos, o que demonstra que a ordem da sociedade depende do equihôrio dessas
classes. ( ...) O número de cavaleiros e janízaros deve ser mantido entre vinte e
trinta mil, e às outras ordens deve-se permitir que cresçam. O aumento no número.
total de guerreiros não constituirá um fardo, que pode ser aliviado reduzindo-se
seus salários segundo a lei antiga e mediante precauções aceitáveis ( ...)
· Como conclusão: a solução para os problemas da deficiência do Tesouro, do
tamanho do exército e dos gastos, bem como dafraqueza do povo (levando-se
em conta que nada mais se pode arrecadar deste), está em o sultão- que Deus
o proteja-, como refúgio do povo, providenciar, por quaisquer meios disponí­
veis, um ano inteiro de receita para saldar a dívida do Tesouro, e incumbir um
de seus confiáveis súditos de quitar os empréstimos. ( ...) Depois disso, o fardo
de um exército numeroso pÇ)de ser administrado por meio de reduções e outras
medidas cabíveis. ( ...) Pessoas pias e experientes, que evitem o pecado, devem
ser nomeadas para cargos estatais, a fundação do Tesouro. A cura para a fraqueza
do povo é abaixar os impostos, evitar a redução dos serviços estatais e colocar
pessoas justas e experientes em posições para desafiar os impiedosos, de modo
que o povo possa se recuperar em poucos anos e o Estado otomano possa usufruir
a prosperidade que merece. (Citado em Gõkyay, 1982, p.233-48)
A tradução do Atlas ma;or, de Blaeu
Quando Justinus Colyer, embaixador holandês em Istambul, apresentou
o Atlas major ao sultão Maomé IV (que reino u de 1648 a 1687) em 1668, os
otomanos travaram conhecimento com o ma is caro e espetacular atl as da
Europa seiscentista. Esse atlas em onze volumes foi originalmente publicado
em latim entre 1662 e 1672 pelo cartógrafo e impressor holandês Jan Blaeu
(1596-1673).
Em 1675, ce rca de sete anos depois de o atl as ter sido apresentado ao
sultão, Ebubekir b. Behram üd-Dimashqi (m. 1691), um erudito de medrese
no séquito de Kõprülü Fazil Ahmed Pasha (grão -vizir de 1661 a 1676), foi
incumbido de supervisionar a tradução dessa volumos a obra de três mil
páginas e seiscentos mapas.
Nas.cicl o em Damasco, Ebubekir chegou a Istambul em 1661 e � ornou
parte na campanha militar contr a o imperador (1663-1664). De retorno a
Istambul, lecionou em uma medrese por mais de vinte anos.. Era versado em
Geografia, Astronomia, Matemática e História. Além de seu trabalho no Atlas
. ')')/'\
A 1roduçõo cul1urol 'nos primórdios do Europa Moderna
major, acrescentou um suplemento a o Cihannümâ, de Kâtib Çelebi, e compilou
· o Risãle fi'l-cografya [Tra tado de Geografia] em árabe e um ensaio em turco,
tr at an do c;l a história e da org anização administrativa e militar do Estado
otomano.
A tradução do Atlas major do latim para o turco levou dez anos. Um tradu -
tor ou uma.equipe de tradutores e cartógrafos p-rovavelmente ajudou Ebubekir
Effen di. O tra balho em equ ipe resultou em uma versão a breviada em nove
volumes, conhecida popularmente como Tercüme-i Atlas major [A tradução do
Atlas major]. O significado do título integral Nusret el-Islâm ve'l-surúr fi tahriri
Atlas major [O júbilo dos muçulmanos pelo sucesso da tradução do Atlas major]
retrata não apenas o prazer e a honra dos tradutores em finalizar a tradução,
mas também a importância de se introduzir o Atlas maj? r no mu� do islâmico.
Foram introduzidas no texto informações geográficas sobre a Asia Menor e
o Oriente Méd io baseadas em obras geográficas islâmicas.
As traduções de tabelas astr�nômicas européias
Os otomanos demonstraram gran de interesse pelas tabelas astronômicas
européias no século XVII. No início da década de 1660, eles conseguiram as
tabelas calculadas por Nathalis Durret (1590-1650), um cosmógrafo da corte
francesa. Dedicadas ao cardeal R ichelieu, essas ta belas foram publicadas ori­
ginalmente em 1635, e uma sér ie de edições apareceu depo is disso. Tezkireci
Kõse Ibrahim Effen di, urri funcionário otomano que atuava no exército e tinha
interesse por Astronomia, traduziu as tabelas astronômicas de Durret para
o ára be. Depois de comparar essas tabelas com a s preparadas por lbn Yunus
em 1004 para a longitu de do Cairo, consta tou que estas haviam sido a fonte
de Durre�. Ele conclui u a tr ad ução em 1663 em Belgrado, sede do exército
otomano d urante a campanha .
Mais adiante, c ompilou uma versão tu rca e chamou-a de Secencel a.l-ajlâk
qu ssim:s
fi gâyet al-idrâk (Espelho dos céus e ápice da percepção]. As pou í
os nao
cópias existentes n as biblioteca s mostram que os astrônomos oto man
1692), uiz de
o j
aprovaram a s tabelas de Durret. E mbora Cezmi Effendi (m.
s, os :ro_no-.
Belgrado, tenha acrescentado materiais supl ementares às tabela
metr istas e astrólogos otomanos continuaram a usar
tabelas astronomicas
ta ela
base adas nãs de Ulugh Beg até meados do século XVIll, quando � � :
por Halifez e Cman
asu:onômic as de Cassini foram traduz idas para o turco
ad
nstruiu enquan�
Ismail Effendi, também lembrado pelos relógios de sol que co
·- � ·.. "-1
 Peter Burke e R. Po,chio Hsio (orgs.}
to serviu como cronometrista (muwaqqit) da Mesquita Laleli em Istambul e
por sua tradução das tabelas astronômicas de Alexis Clairaut (1713-1765).
Traduções de textos médicos europeus
sobre doenças e terapias
A imagem da comunidade médica otomana do século XVH é um tanto
complexa, considerando-se a diversidade dos praticantes. A autoridade do
legado islâmico é bem exemplificada por Seyyid Muhammed et-Tabib, co­
nhecido como Emir Celebi (m. 1638), enquanto Salih b. Nasrullah b. Sallum
(m. 1669) se mostrou influente na introdução de terapias iatroquímicas,
populares na Europa no século XVII. Ambos ocuparam o posto de médico­
chefe do sultão.
Nascido na Trácia, Emir Celebi estudou Medicina no Cairo e foi médi­
co-chefe do hospital de Qalawun por vários anos. Levado a Istambul pelo
almirante da frota otoman�. dur.ante a campanha mediterrânea de 1622, ficou
conhecido pelas curas notáveis que realizava em sua "loja" em Unkapani,
um distrito de Istambul perto do Chifre de Ouro. As trinta cópias de seu
Enmílzecü't-tibb [O livro de referência da medicina, 1624] existentes em bi­
bliotecas na Turquia testemunham que este foi amplamente consultado até
o século XIX.
Uma grande parte do livro consiste em informações sobre doenças e ma­
teria medica. É con_siderado o segundo livro de medicina mais popular entre
os otomanos, depois do Müntcihab üs-sifa, de Haci Pasha, o médico do século
XV mencionado anteriormente. Emir Celebi aconselhava os médicos a acres_. •
centar suas experiências terapêuticas quandõ escrevessem seus livros e a
não se contentar em repetir relatos dos mais velhos, a aprender anatomia e
a dissecar cadáveres de soldados, macacos ou porcos. Compilou o Neticetü't­
tibb [A sinopse da medicina], uma versão mais breve do Enmílzecü't-tibb, como
guia para seu assistente que, em sua ausência, receitava medicamentos aos
pacientes que visitavam sua loja.
Enquanto prosseguiam a compilação e a cópia de guias sobre doenças
e remédios baseados no conhecimento tradicional e na experiência pessoal,
a crescente popularidade da iastroquímica na Europa do século XVII levou
alguns médicos otomanos a se interessar pela maneira paracelsista de tratar
doenças com drogas minerais. A fama da Basifica chymica - com dez edições
entre 1609 e 1658 -, de Oswald Croll (1580-1609), o maior divulgador do
232
A lrodução cultural nos primórdios da Europa Moderno
movimento iatroquímico, e a reputação de Daniel Sennen (1572-1611), mé­
dico particular do príncipe da Saxônia, alcançaram Istambul em meados do
século XVII.
Médicos otomanos, baseando-se em tratados europeus ou consultando
colegas europeus que clinicavam em Istambul, escreveram livros sobre ias­
troquímica, chamando-a de tibb-i cedfd [nova Medicina]. O interesse pela ias­
troquímica persistiu até o século XVIII. A obra Tibb al-cedfd al-kimyãt [A nova
Medicina química], de Salih bin Nasrullah bin Sellum, não era uma tradução
direta de Paracelso, mas uma compilação de obras paracelsistas enriquecida
pelas experiências do próprio Sellum e por suas concepções sobre o trata­
mento de doenças. O livro explica as _teorias da tria prima e das assinaturas, e
oferece várias receitas paracelsistas.
Médicos otomanos, particularmente os da corte, traduziram para o árabe
e o turco textos médicos sobre doenças e seu tratamento. Salih b. Nasrullah
bin Sellum (m. 1670), médico particular do sultão Maomé IV (que reinou
entre 1648 e 1687) e médico-chefe do hospital Fatih (darüssifa), descreveu em
sua obra Gayet ül-beyan fi tedbir beden il-insan [A suma perfeição no tratamento
do corpo humano, 1655] doenças desconhecidas para os otomanos até essa
época: chlorose [clorose], skorbut [escorbuto] e plica polonica [compactação
aguda dos ·cabelos]. Na seção sobre terapêutica, mencionou Nicolas Myrepsos
e pode ter usado seu Dynameron (1280).
Em sua obra Hamse-i Hayâti (Cinco livros de Hayâti) sobre doenças e seus
tratamentos, o médico-chefe Hayâtizâde Mustafa Feyzi (m. 1692), conhecido
como Moché ben Raphael Abranavel antes de sua conversão do judaísmo ao
Islã, mencionou Daniel Sennert, Jean Fernel (1497-1558) e o médico francês
de la Riviere. Ele descreveu a sífilis segundo as obras de Girolamo Fracastoro
(1483-1553) e de.outros médicos europeus. Falou das pesquisas de Nicolas
Monardes (1493-1588) sobre as plantas medicinais que este importava do
Novo Mundo e descreveu a plica polonica e uma febre freqüentemente vista na
Alemanha. Suas informações eram tiradas do médico espanhol Luis Mercado
(1520-1606) e de Rodrigo Fonseca (1452-1530).
Os livros de Ibn Sellum e Hayâtizâde sobre doenças e a nova terapêutica
européia indicam o interesse dos médicos otomanos pelo conhecimento práti­
co, uma tendência similar ao interesse nas tabelas astronômicas européias por
parte dos astrônomos otomanos. Os médicos da cone no século XVII podiam
ter acesso ao conhecimento médico europeu por vários meios, mas médicos
europeus clinicando em cidades otomanas e otomanos estudando em escolas
de medicina européias parecem ter sido os principais transmissores.
233
�- .·
Pe1er Burke e R. Po-chio Hsio (orgs.)
í
J;
Embora as fontes otomanas do século XVII se refiram a médicos frenk
/,
(europeus) trabalhando em várias partes do Império, costumam faltar detalhes
sobre seus nomes, origem, educação, prática e designação, bem como sobre
as cidades em que clinicavam. As informações disponíveis dizem respeito em
geral àqueles que atuavam no palácio imperial ou na comitiva de altos funcio­
nários otomanos ou de legações estrangeiras. Um destes era Israel Conegliano
(Coni an o) (n. 1650, Pádua). Ele tinha se instalado em Istambul em 1675 e se
tomara médico do poderoso Merzifonlu Kaqunustafa Pasha (1634-83), que
comandou o exército otom an o nas campanhas polonesa e austríaca e sitiou
Viena em 1683. Conegliano também serviu como médico da legação venezian a
em Istambul. Tobia Cohen (n. 1652, Metz), depois de estudar Medicina em
Pádua, assentou-se em Istambul e tornou-se m_édico particular de Mehmed
Rami Pasha (1654-1706), grão-vizir e ministro das Relações Exteriores. Polí­
tico astuto e negociador ferrenho, Rami Pasha foi o representant�otomano no.
Tratado de Karlowitz, que encerrou a guerra de 1683-1697 entre os otomanos
e a Liga San ta (Áustria, Polônia, Veneza, Rússia). Quan to a Daniel Fonseca (n.
1668, Porto, Portugal - m. 1736, Izmir, Turquia), ele chegou a Istambul em
1680 depois de ter estudado Medicina em Paris. Primeiro tomou-se médico da
embaixada francesa, serviu em Bucareste entre 1710-1714 e depois ingressou
no séquito do sultão Ahrned III (que reinou de 1703 a 1730).
Médicos europeus sem dúvida trabalhavam em outras cidades além de
Istambul. Sir George Wheler (1650-1724) mencionou em sua VU1 gem à Grécia
(1682) que havia encontrado um dr. Pickering em 1675, durante sua visita ao
noroeste da Anatólia, e que conversaram sobre a Tuttie (Tuitia), uma erva que
crescia no Uludag (o monte Olimpo). Infelizmente, Wheler não deu outras
informações sobre ele, exceto que era médico em Bursa.
Um exemplo seiscentista bem conhecido da transferência de conheci­
mentos médicos por via de otomanos estudando no exterior é o de Alexandre
Mavrocordato (1641-1709), que preparou uma tese sobre a circulação do
sangue (Pneumaticon instrumentum circulandi sanguinis) em Bolonha em 1664.
Infelizmente, essa obra teve pouco efeito sobre a medicina otomana por não
ter sido traduzida para o turco, já que Mavrocordato preferiu trabalhar de
man eira subseqüente como tradutor no Conselho de Estado.
A referência seguinte à explicação de William Harvey sobre a circulação
do sangue seria feita em 1771, na tradução turca dos Aphorismi, de Herman n
Boerhaave. A tradução, intitulada Kitaat-i nekave fi terceme-i kelimâtci Boerhaa­
ve [As mais belas partes da tradução dos aforismos de Boerhaave], foi feita
a mando do sultão Mustafa UI pelo médico da corte Suphizâde Abdülaziz
234
A tradução cultural nos primórdios do Europa Moderno
Effendi (m. 1782) e uma equipe versada em latim, incluindo o intérprete da
embaixada imperial em Istambul. Para superar as dificuldades encontradas na
tradução, foram consultados os Commentaria in Hermanni Boerhaave aphorismos
[Comentários aos aforismos de Hermann Boerhaave] (1742-72), de Gerard
van Swieten. A tradução turca dos Aphorismi não foi publicada, e existem
apenas três cópias em bibliotecas em Ist�bul.
Embora o conhecimento médico da Europa tenha sido introduzido e
aplicado em certa medida no século XVII, comentários sobre o Kânun fi't­
tibb [Cânon da Medicina], de Ibn Sina (Avicena), e outras obras medievais
de medicina islâmica continuaram sendo os textos de referência para os
médicos otomanos.
O Tesrih-i ebdân, de Shemseddin ltaqi:
à introdução do conhecimento anatômico
europeu do século XVI na literatura médica turca
No que diz respeito à introdução de conhecimentos anatômicos, um exem­
plo notável que combina o conhecimento tradicional islâmico e o quinhentista
europeu é o texto turco do século XV II intitulado Risâle-i tesrih-i ebdân [Tratado
sobre a anatomia do corpo hum an o, 1632], de Shemseddin Itaqi (nascido em
Shirvan, c. 1570). Depois de ter estudado várias ciências no Irã duran te vinte
anos, Itaqi teve de fugir de seu país após as sublevações que se seguiram à
morre do xá Tahmasp em 1576. Ele chegou a Istambul durante o reinado de
Murad IV (1623-1632) e foi apresentado ao grão-vizir Topai Recep Pasha (m.
1632), que o protegeu. O círculo do vizir lhe pediu que compilasse um livro
turco de Anatomia, enfatizando que tal obra seria muito útil. Essa declaração
mostra que seu livro foi o primeiro tratado turco jamais escrito sobre Anatomia.
Entre os médicos otomanos, os mais estimados textos sobre o assunto eram
a primeira seção da enciclopédia médica de Ibn Sina, a KânO.n fi't-tibb, e seu
respectivo comentário por lbn Nefis. Ambos eram textos em árabe.
O livro de Itaqi incluía figuras esquemáticas tiradas da Tesrih-i MansO.r
[Anatomia de Mansur], do médico persa do século XIV Mansur ibn Muham­
mad ibn Ahmad, e gravuras inspiradas naAnatomía dei cuerpo humano, do ana­
tomista espanhol Juan Valverde de Hamusco (1520-88). É muito provável que
ele tenha consultado os livros de Medicina do século XVI levados à Turquia
pelos �édicos judeus mencionados anteriormente. Entre eles havia médicos
formados em Pádua; destacada pelo ensino da an atomia "moderna".
··· ·. 235
 Peter Burke e R. Po-chio Hsio (orgs.) A tradução cultural nos primórdios do Europa Moderno

Conclusão prova da imensa atração que o Império Otomano exerceu sobre o mundo culto
francês durante o século XVII. Em 1629-1630, ele próprio, junto com seu amigo
O acesso a textos científicos árabes e persas do Islã medieval, assim François Luillier, ·começou a estudar árabe na esperança de ter acesso a textos que
comei a dependência deles, não impediu os eruditos otomanos de introduzir seu mentor e amigo Nicolas Fabri de Peiresc havia adquirido no Cairo, em Alepo,
informações de fontes européias durante os séculos XVI e XVII. A maioria Sídon e outras cidades otomanas. Outros amigos, alunos ou contemporâneos
das traduções de textos científicos europeus parece ter sido feita nos cam­ de Gassendi (... ) aprenderam (um pouco de) árabe, persa ou turco para estudar
pos da Medicina, Geografia e cartografia, e se destinava a divulgar novas textos de vários gêneros, viajavam para países muçulmanos ou procuravam obter
de lá manuscritos e outros materiais tidos como necessários para suas próprias
terapias e medicamentos, países recém-descobertos e os aspectos de áreas
pesquisas. (Brentjes, 2001, p.123-5)
geográficas até então desconhecidas dos otomanos. Kâtib Çelebi estudava
obras européias para ter acesso a conhecimentos indisponíveis em geografias Seu interesse mútuo pelo conhecimento científico· produzido em suas
medievais islâmicas. respectivas áreas culturais deve ter levado europeus e otomanos a trocar
Essas iniciativas para adquirir e traduzir textos científicos europeus não informações científicas e técnicas, bem como livros sobre assuntos relacio­
eram.exclusivas de otomanos ansiosos por apresentar novidades da Europa. nados. O fato de que o número de traduções para o turco não foi grande se
Um núrnero substancial de eruditos europeus estava interessado em exami­ deveu em parte à satisfatoriedade das obras islâmicas medievais e de seus
nar textos científicos islâmicos de meados do século XVI em diante. Como comentários para a comunidade científica otomana. O conhecimento que
escreve Sonja Brentjes: essas obras incorporavam aparentemente podia atender às necessidades dos
Desde meados do século XVI foram feitos esforços para p ublicar, traduzir e
eruditos e do governo nos séculos XVI e XVII. A tradução de obras de ciência
explorar manuscritos geográficos árabes e persas. Por essa época, uma cópia do européia aumentou gradualmente no decorrer do século XVIII e atingiu um
Taqwim al-buldan, de Abu'l-Fida, foi levada à Europa ocidental por Guillaume Pos­ pico no século XIX, quando as versões do latim e do italiano foram substi­
tei. Lá foi guardada inicialmente pela Biblioteca Palatina, em Heidelberg. Outras tuídas pelas do francês.
cópias foram levadas durante os séculos XVI e XVII para a Itália, a Áustria, a Fran­
ça e a Grã-Bretanha. No final do século XVI, uma cópia incompleta da Geografia,
de al-ldrisi (1099-1166], chegou à Itália, onde se tornou pane da biblioteca dos
Médici. Ambos os textos foram repetidamente consultados por eruditos maro­
ni tas e do oeste europeu, do século XVI até o fim do XVlll, para a utilização de
suas informações na cartografia, em dicionários geográficos, na historiografia e
na revisão dos valores de latitude e longitude. (...)
As coordenadas geográficas dadas por Nasir al-Din al-Tusi, Ulugh Beg e Ali
Qushji, bem como por textos anônimos, foram utilizadas por Jacob Golius, Adrien
Reland, Gilberc Gaulmyn, Antoine Galland, John Greaves e Thomas Hyde. Várias
obras históricas árabes, persas e sírias foram traduzidas - pelo menos em excer­
tos - durante os séculos XVII e XVIII; e esmiuçadas por cartógrafos em busca de
suas informações geográficas. ( ...)
Entre os eruditos que imprimiram completamente um ou outro desses textos
em árabe ou na tradução em latim, ou que produziram traduções manuscritas,
encontramos durante os séculos XVI e XVII Bernardino Baldi, Wilhelm Schickard,
John Greaves, Thomas Hyde, Laurent d'Arvieux em cooperação com M. de la
Roque e Melchisédech Thévenot, além dos maronitas Johannes Hesronita, Ga­
briel Sionita e Abraham Ecchellensis. (...) [Pierre] Gassendi pode ser tido como

237
 CAPÍTULO 12
Traduções da.líteratura científica
na Rússia dos séculos XV ao XVll 1
S. S. Demídov

No início do século XV, a Rússia não tinha lugar no mapa da Europa.

Naquele período, os mais importantes Estados russos eram o Ducado de
Moscou (Moskovskoe Kníajestvo) e a República de Novgorod (Gospodín Velíkíí
Novgorod). Apenas em 1380, depois da Batalha de Kulikovo, é que o solo
russo começou a ser libertado do jugo dos tártaros. O Estado russo foi es­
tabelecido durante o reinado de Ivã III (1462-1505). As ambições do cz.ar
foram reveladas pela adoção de um novo emblema estatal: a águia biz.antina
de duas cabeças. Dessa maneira o grão-duque declarava que a Rússia era a
herdeira do Império Bizantino, o centro do mundo ortodoxo. No século XVI,
o monge Filotei desenvolveu a teoria de que Moscou era a terceira Roma ("e
uma quarta não há de haver").
De um ponto de vista cultural, a Rússia em 1400 era uma província em
ativo desenvolvimento e bastante distante do Império Bizantino, cujo poder
vinha minguando nessa época. País ortodoxo, a Rússia era hostil a qualquer
idéia vinda do Ocidente, especialmente se a idéia estivesse ligada ao catoli-

'•]
As principais fontes secundárias �obre este tópic� são (em ordem cronológica): Rainov,
1940; Yushkevich, 1968; Kusãiov/1976; Kosheleva; Simonov, 1981; Likhachev, 1987-98;
Kuzakov, 1991; Fonkich, 1999; Simonov, 2000.
,.,•.
��·
 Peter Burke e R. Po-chici Hsia (orgs.)
cismo. Essa hostilidade aumentou depois das tentativas de Roma de estender
sua influência a leste. É nesse contexto que devemos examinar o. problema
das traduções de literatura científica ocidental nos séculos XV e XVI.
Traduções na Rússia nos séculos XV e XVI
Depois que São Vladimir, grão-duque de Kiev (que reinou de 978 a
1015), se tornou cristão, a Rússia foi introduzida ao mundo cristão e atraí­
da para a cultura européia. Durante a era de São Vladimir, foi organizada
uma escola em Kiev segundo_ o modelo das escolas bizantinas. Na época de
laroslav, o Sábio (que reinou de 1019 a 1054), foram feitas muitas cópias
de manuscritos e montadas bibliotecas nas cortes dos príncipes, em mos­
teiros e igrejas.
Naquela época, a literatura russa era composta de traduções ou paráfrases
de obras bizantinas ou de obras dos eslavos balcânicos ortodoxos, embora
obras originais russas surgissem muito rapidamente, incluindo o famoso
tratado cronológico de Kirik de Novgorod. Entre esses textos hão podemos
encontrar nenhum dedicado à Matemática ou a questões que possamos con­
siderar científicas, embora os textos religiosos se referissem a certos tópicos
que podem ser considerados do âmbito científico.
O período dos séculos XV e XVI é uma continuação da era anterior. Nela
podem ser encontradas novas cópias e às vezes novas traduções das obras
mais populares da era pregressa, incluindo um texto do século XIII: O livro
dos segredos-de Enoque (tradução de um original perdido em grego que consistia
em uma revisão de cer_tos· textos antigos em língua semítica compilados na
Palestina no século I ou II d.C.); as obras de um erudito eclesiástico do século
IV, Epifânio de Chipre, As perguntas de Basílio e as respostas de Gregório e O lapi­
dário, que continha a descrição das maravilhosas propriedades de doze pedras
preciosas; A topografia cristã, de Kosmas Indikoplov, um monge do século XV,
de Alexandria; a Teologia, de 1. Damaskin; Os seis dias (da criação), de Basílio,
o Grande; e a Crônica, do monge grego do século IX Georgii Amartol. ·
Nessas obras, eram representadas (às vezes de forma fantástica) as idéias
do mundo ortodoxo oriental sobre a construção do cosmos, a Geografia, os
animais e as plantas e os fenômenos meteorológicos. Por vezes é possível en­
contrar informações sobre as obras dos antigos filósofos gregos. Por exemplo,
nas obras de Amartol, o leitor russo podia observar as primeiras informações
sobre a teoria democrítica dos átomos.
240
A tradução cvllurol nos primórdios do Europa '-"oderna
A essas obras podemos acrescentar o Comentário_ sobre o Gênesis, do sécu­
lo IV, de João Crisóstomo (a tradução para o sérvio foi feita no monte Atos
em 1426); Os seis dias, do bispo sírio do século IV Severiano de Gavala; e A
discussão de Panaghiostos e Azimyth (uma tradução para o sérvio do original em
grego). O ortodoxo Panaghiostos e o herege Azimyth discutiam questões refe­
rentes à construção do mundo em panicular. Os autores dividiam as estrelas
em boas e más, de acordo com suas propriedades astrológicas.
Tópicos astrológicos eram populares na antiga Rússia. Era possível encon­
trar alguma informação em Os seis dias, de Joan Exarch, que surgiu na Rússia
no século X, e na história romanesca Alexandria, de Pseudo-Kallisphenos, que
foi traduzida para o russo no século XI. No final do século XV, esse interesse
aumentou. Informações astrológicas podiam ser encontradas em O mistério
dos mistérios, traduzido para o russo lituano no final do século XV ou início
do XVI (a tradução foi feita a partir do hebraico, enquanto o texto original
do século XI estava em árabe). Especialistas associam o surgimento dessa
obra na Rússia com a "heresia judaica" (jidovstvuiushchikh).
No início do século XVI, a astrologia ocidental começou a penetrar a
Rússia. O médico e astrólogo dos grão-duques lvã III e Basílio III, Nikolai
Nemchin (nascido em Lübeck como Nikolaus Bülow), fez a tradução - ou
paráfrase - do Almanach editado na Alemanha no primeiro quartel do século
XVI por Schõffier. Era um calendário com previsões astrológicas, horóscopos
e conselhos médicos associados a fenômenos celestiais.
A Igreja Ortodoxa se opunha à Astrologia e considerava tais livros "errô­
neos" ou "proibidos". O século XIV foi o início da compilação dos índices de
tais livros proibidos.' Esses índices perduraram até o século XVII.
Entretanto, de um ponto de vista cultural, o século XVI _foi mais do
que uma "continuação" do século anterior. Dur"ante esse período é possí­
vel traçar a ascensão da atividade intelectual. O número de manuscritos
do século XVI que existem hoje é quase igual ao número de manuscritos
de todos os séculos precedentes. Discussões teológicas se tornaram mais
ativas e numerosas.
As mudanças que podem ser observadas na vida econômica, política e
social da Rússia (o início da formação de um mercado geral russo, a orga­
nização de um sistema monetário, o desenvolvimento do aparato estatal, a
evolução da estrutura social e assim por diante) exigiram a modernização
da sociedade e a elevação de seu nível educacional. Também observamos
a gradual ascensão do interesse russo pela Europa ocidental, sua ciência e
cultura.
241

Pefer Burke e R. Po-chia Hsia (orgs.)
No final do século XVI, houve um discreto aumento no número de tra­
duções (do latim, do alemão e, em menor extensão, do polonês) de livros
ocidentais que continham informações de ordem científica. Nos séculos XV
e XVI, a maioria dos tradutores eram monges. No século XVU, em contraste,
eram nativos da Ucrânia (quase sempre clérigos) ou tradutores oficiais do
Escritório das Relações Exteriores. No século XVI, um livro sobre cosmografia
foi traduzido por esse Escritório. Por ordem do czar, várias coleções médicas
também foram traduzidas. -·
As obras traduzidas não eram usualmente as mais importantes em seus
campos. Normalmente representavam a atividade intelectual passada do Oci­
dente, mas de uma maneira ou outra correspondiam à consciência essencial­
mente medieval dos leitores russos contemporâneos.
Às vésperas das reformas de Pedro, o grande
O início do século XVII foi uma era turbulenta, finalizada pela ascensão
da Casa dos Romanov. O século se encerrou com as primeiras reformas de
Pedro, o Grande, que transformou a Rússia no Império Russ<;> (1721).
Esse resultado só foi possível após um século de desenvolvimentos in­
tensos. Durante esse século (especialmente em sua segunda metade), pode
ser visto um aumento enorme nos esforços educaciomtis do governo. Foram
organizadas escolas em diferentes níveis, incluindo instituições para quadros
qualificados para a administração. Como podemos ver pelas pesquisas recen­
tes de Boris L. Fonkich, na segunda metade do século o nível dessas escolas
e o número de seus alunos subiram imensamente.
Em 1667, dois eruditos gregos, Ioannikios e Sofronios Leichoudis, esta­
beleceram a primeira instituição superior russa, a Academia Eslavo-Helêni­
co-Latina. Deve-se enfatizar que seu nome representa os dois eixos de sua
orientação. O eslavo e o grego frisam o viés ortodoxo, enquanto o latino frisa
o viés da Europa ocidental. Entre os alunos dessa academia cumpre citar a
mais importante figura na história intelectual russa do século XVllI, Mikhail
Lomonosov ( 1711-17 65), que ingressou em 1736, vindo a pé de uma distan­
te aldeia de pescadores na costa do mar Branco. O que se desenvolveria no
século XVIII está claro, mas para esse desenvolvimento foram indispensáveis
as condições criadas no século anterior.
A parte mais importante desse enorme trabalho intelectual foi a intensa
atividade de tradução de livros. Antes desse século, informações científicas
242
1•
1:
A fraduçõo culfurol nos primórdios do Europa Moderno
e técnicas só tinham sido incluídas na literatura ortodoxa incidentalmente, ; '
e por vezes de forma fantástica (com animais imaginários em meio a verda­
deiros, e assim por diante), mas nesse momento - e gradualmente - essas
informações chegaram para expor o espírito do Renascimento europeu.
Em 1625, apareceu em russo o primeiro manuscrito teórico sobre Geo­
metria. Seu autor, o príncipe Albert Dolmat�kii, era um grego que nascera
em Patras, vivera na Inglaterra e posteriormente fora a Moscou e iniciara sua
carreira na corte do czar. No prefácio de seu tratado, ele esclareceu que havia
utilizado muitas fontes para esse trabalho. As principais eram a Gcometrical
()
Extraction [Origem da Geometria] (1616), de John Speidell, e os Geometriae li­
bri XXVII [Vinte e sete livros de Geometria] (1569), de Pedro Ramo. Podemos ·.)
presumir que o tratado de Dolmatsk..ii foi incluído no currículo educacional
do grão-duque Alekse1 Mikhailovich (futuro czar e pai de Pedro, o Grande).
Infelizmente, o autor esperava em vão que seu manuscrito fosse _publicado.
"A primeira edição sobre Geometria", escreveu A. P. Yushkevich com respeito
a esse manuscrito, "apareceu na Rússia mais de oitenta anos depois, mas
um manual do mesmo nível foi publicado mais tarde, após a fundação da
Academia de Ciências."
Para compreender o espírito do século XVII e as aspirações do governo
russo por volta de 1600, é extremamente útil travar conhecimento com as
Regras dos assuntos militares, de artilharia e outros, publicadas em dois volumes
em 1777-1781. Essas Regras foram compiladas no reinado de Basílio Shuiskii
em 1606 e no de Miguel Feodorovich em 1620. O texto das Regras começa·
com a observação de que o czar Basílio Shuiskii "ordenou que esse livro, em
1
alemão e latim, fosse traduzido para o russo". A principal fonte das Regras
era uma edição em três volumes (Frankfurt, 1566-73) do Kriegsbuch [Livro
, da guerra], de Leonard Fronsperger. O trabalho foi feito por dois tradutores
do Escritório das Relações Exteriores, M. Iuriev e I. Fomin. Essa obra, so­
bre fortificações, a organização dos assuntos militares, as armas e a arte da
. ,.
artilharia, e sobre o método de preparar a pólvora revela o nível científico e
�
técnico da Rússia no final do século XVI. Ela exige uma boa base de Mate­
mática e inclui conhecimentos científicos importantes sobre balística (a obra
de Niccolo Tanaglia), Física e Química.
As necessidades militares e práticas do país cobravam informàções geo­
gráficas. É por isso que, em meados desse século, os tradutores do Escritório
das Relações Exteriores, B. Likov e I. Dom, traduziram o Atlas (1590-6), de G.
Mercator:-em 230 capítulos. Em 1670, tam!:-ém apareceu a tradução de uma iiit
compilação desconhecida das obras de Mercator, de origem alemã; o original I•
-·-. .... 1•
;: . -.. • . ")A">
'a
 Peter Burke e R. Po-c:bia ·H_sia (orgs.)

continha 76 capítulos e fora produzido em torno de 1611. Também se sabe

que um livro chamado Cosmografia foi traduzido no século XVII a partir do
Theatrum orbis terrarum (1571), de Ortélio.
Tudo parece indicar que o patriarca Nikon (nomeado chefe da Igreja Russa
em 1652) queria estender sua autoridade com o preparo de traduções não
apenas de obras clericais, mas também científicas. Na década de 1650, os
tradutores de seu círculo, os monges Epiphanii Slavenetskii, Arnsenii e lsaia,
começaram a traduzir do latim o famoso Atlas publicado em Amsterdã por
Blaeu (1646-65). Eles traduziram os primeiros quatro volumes. Na segunda
metade do século XVII, De groote nieuwe vermeerderde zee-atlas [O grande e novo
atlas marítimo ampliado] (1688), de Hendrick Doncker, também foi tradu­ Reférências bibliográficas
zido; assim como a Descriptio orbis et omnium eius rerum publicarum [Descrição
do mundo e de todas as suas repúblicas] (1668), de Zuca Delind.
Também merecem menção um livro sobre animais, de Ulisse Androvandi
(De quadrupedibus digitatis viviparis libri tres [Três livros sobre os quadrúpedes
vivíparos com dedos] (1637), e a mais importante obra anatômica da época
renascentista, De humani corporis fabrica [Da constituição do corpo humano]
(1543), de Andreas Vesalius, em uma tradução feita por Epiphanii Slaventskii.
Também foram traduzidos vários livros de Medicina, incluindo - e isto é o
Esta bibliografia se limita a obras de literatura secundária citadas no
mais interessante - obras de autores antigos, como Aristóteles. Foi dessa
texto.
maneira que o espírito do Renascimento apareceu na distante Moscou.
Apenas um aspecto da vida cultural dessa época foi discutido, mas é
o que basta para avaliarmos a concentração sem precedentes de recursos ÁCS, P. Austrian and Hungarian Renegades as Sultan's lnterpreters
intelectuais do século XVII e o alto nível da vida intelectual por volta de . ln: GUT HMUL­
LER, B., KUHLMANN, W. (eds.) Europa und die Türken in der Rt
1700. No início do século XVIII, a Rússia estava madura o bastante para naissan,e. Tübin-
gen: 2000. p.307-16.
muitas mudanças em sua vida intelectual e culturai. ALLISO�, A. F., ROGERS, D. M. (eds.). The Contemporary Prin�
Literature of the ·
Entretanto, para �ma transformação realmente radical, para a adesão do Eng lish Counrer-Reformation berween 1558-1640: An Annotated
- Catal ogue. Brook·
país ao processo de desenvolvimento da Europa ocidental, era necessária uma field, Vf: 1989-94.
revolução na mentalidade dominante. A Rússia continuava apegada a sua cul­ ALMAGOR, J. P. D. M. The Role of Periodi,als in the Eighteenth Centsay
. Leiden: 1984.
tura medieval.Esse apego era ativamente apoiado pela Igreja Ortodoxa Russa, p.41-7.
que considerava a influência européia ocidental um risco para a ortodoxia, ALVEN�OSA SA �CHIS, J. Los escritores nordicos y los espiritua!e
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da qual Moscou, a "terceira Roma", era a guardiã vigilante. Para derrubar p.527-42 ..
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264
265
 Índice remissivo

Abbot, George, arcebispo 157 Alberti, Alberto di Giovanni 44, 89

Abdülaziz, Suphizãde, Effendi 235 al-Cagmini 221
Ablancourt, Nicolas Perrot d' 32, 37-8, 145 Alcorão, traduções do 34, 77
Tácito 32 Aleixo II Cómneno, imperador (bizantino)
Abu Bakr bin al-Badr bin al-Mundir Badr 205
ad-Din al-Baitar 221 Alemán, Mateo, Guzmán de Alfarache 38, 87
Abu'l-Fida 236 alemão/Alemanha
Acosta, José de, História natural e moral das Ín­ movimentos teóricos 42-3
dias 148, 159 traduções do/para o 29-30, 65-6
Acta eruditorum 166 usos religiosos do 64-6
Addison, Joseph 30, 80, 163, 168-9, 172, Aleni, Giulio 48-9, 51, 54
177-81 Alexandre, o Grande 25, 143
Cato 169 Alexei Mikhailovich, czar 213, 243
Afentopoulo, Kaleb 206 al-ldrisi 238
Afonso X, "o Sábio", de Castela 22, 208 Ali Qushji 220-2, 238
aforismos 152-3 Alighieri, Dante 43, 75, 77, 86, 191-
África, descrições da 86 A divina comédia 86
Agostinho, Santo 101, 104 Allesrree, Richard 29
Agrafiotis, Nicolaos 2 l 4 Almici, Giarnbattista 122
Ahmad ibn Yusuf al-Tifashi 219. Almogáver, Ger6nima Palova de 22 ·
Ahmed Ili, sultão 236 (aparece o Ahmed lll, Alonso de Madri 105
também está assim no original) al-Samarkandi 221. ·, ...: ·-.r
Alba, duque de 21 al-Tüsi, Nasir al-Din 2_ 04-6, 221-2, 236 ·.. - ,

; :. ,
 Peter llurke e K. l'o-chia Hsia {args.) A lraduçô o culturol nos prim6rdi� da Europa Medema

al-Zahravi,Abu! Qasirn 220 Bacon,Francis 30 _ Beyazit li, sultão 224 Bong'oron/Bonjom ver Yom-tob
Amanol, Georgii 240 · Advancement of Learning 190 Beze,Theodore 102 Borges.Jorge Luís 171-2, 181
Ammirato, Scipiane, Discorsi sopra Cornelio Consideralions Touching a War with Spain 34 Bíblia de l<ralice 18,27,67-8 Bomemisza, Péter 40
Tacito 87 Ensaios 34, 39, 88 Bíblia, traduções da 8, 10,27, 31, 44, 67-71, Bossuet, Jacques-Bénigne 82, 155
"ampliação", prática da 39-40,153-5 Henry VJI 84, 147 77-8, 102,111,113 Variations 78
Amyot,Jacques 8 Baker,Thomas 150 acessibilidade,debates sobre 61-2 Batera, Giovanni 31
Anchieta,José de 36 B�tin,Mikhail 44 checa/eslovaca 61,63,65-8,71, 73 Ragione di stato 8 7,131
Andrewes,Lancelot 82, 150 Baldelli, Francesco 145,151 em chinês,falta de 49,60 Relazioni 28,86
Andrônico li,imperador (bizantino) 205 Bandello, Mamo 38 escolha das palavras 42,44 Bouhours,Dominique 88
Androvandi, Ulisse 244 Barbapiccola, Giuseppa-Eleonora 19 literalidade versus liberdade,debate sobre Boulliau,lsmale 204
Ângela de Falinha 104 Barbeyrac,Jean 121-2, 137-40 35-6 Bourchier,John 127
Antoine,Jean 196 impacto das obras 139-40 bibliotecas,conteúdo de 150, 170 Boyer. Abel 168
Antropologia 14-5,143 justificativa do métcxlo de tradução 137-8 Biblioth�que universelle et hiscorique 167 Boyle, Robert 80, 85, 189, 194-6, 200-2
Apiano 37 Barclay, Alexander 149 Bidpai, fábulas de 34 Spring of the Air 202
aproximação sonora, como técnica de tradu­ Barezzi, Barezzo 23 Biehl, Dorothea 19 Bracciolini,Poggio 144
ção 57-8 Barksdale,Clement 121 biografia 14 3 Bram, Sebastian,Narrenschiff 86
Aquino, São Tomás de 58,108 Baron,Hans 125 Biringuccio, Vannoccio, Pyrotechnica 85 Breitinger,Johann Jakob 176
Summa cheologica 48-9,56-7 Barônio, cardeal 23 Birk,Sixt, Susanna 86 Bremond,Henri 107
árabe,obras em/traduções do 218-21 Barth, Caspar 80 Bitiskius,Fridericus 196 Brem, Sir Nathaniel 157,160
Aretino, Pietro 29, ??- Basílio Shuiskii, czar 243 Bizantino, Império Bremjes, Sonja 238
Cartas 78 Basílio,o Grande 240 declínio político 203,208, 214 Briani, Girolamo 131
Argyropulos, Johannes 37 Baxter, Richard 29 influência sobre a Ciência Ocidental 204, Briencour,Seigneur de 128
Ariosto, Ludovico 8, 26, 29-30, 75, 86 Bayle, Pierre 21, 167-8 206 Briganti, Annibale 18
I suppositi 86 Bayly,Lewis,Pra.xis of Piety 34 Blaeu, Jan 86, 188,232 Brignon, Jean 22
Ncgromante 86 Beaufort,Margaret 19 .,,e,.
··. Blaeu, Willem 188,190,232,244 Bravme, Thomas 29
Orlando furioso 17, 86 Bcda, São, Hisc6ria eclesiástica do povo inglês 145 Aclas major 232-3 Bruder, Johann, Historia critica philosophiae
�jé.
Aristóteles 37, 44, 130,211,244 Bedingfield, Thomas 150, 159 ,. .. '. Biais,Louis de (Blósio) 103-4,107,110 í7
Blósio ver Biais
.;.��
traduções para o chinês 51-4, 60 Behn,Aphra 19 �
t.·.
Bruni, Leonardo 18, 32,34,37,43,125,_144,
,:;:-.o·
Arnauld, Antoine 88 Bellarmino,Roberto,cardeal 17, 23, 83, 118, ' _-._F·,�/ • Blundeville,William 129 146
,!":'!._'

Aron, Pietro, De institutione harmonica 77 134-5 Boccaccio,Giovanni, Decamerão 78 BrysQtt, Lodowick (Lodovico Bruschetto)
ane,,obras sobre 88-9 Bell�forest,François de 152-3, 160 Boccalini,Traiano 87, 13 l 21,41
Astrologia 241 Belli, Costantino 147 Bodenstein, Adam von 189,195 Bucero, Martinho 24.
Astronomia 203-8, 211-4, 218-20, 227, Bellintani da Saio, Mattia 107-8 ·:::i·· Bcxlin, Jean 80-1,87-8, 122-3 Buchman, George 134
231-2
Athenian Mercury 166,168
Belon, Pierre 227
Belot,Octavie 19
>;/
-�. --�� A república 87, 122, 200
Bodmer, Johann Jakob 175-6
� iure regni apud Scotos 133-4
Budd!n, John 123
atlas ver canografia Bembo, Pietro 91 Boeckler, Georg Andreas,Theatrum machina- budis:no 58
Auvergne, Gaspard d' 125, 128 Benavides,F lorez de 154, 159 rum 85 Budoy, Szymon 35
Avicena ver lbn Sina Berman, Antoine 9 Boerhaave, H ermann,Aphon·smi 237 Bugli� Ludovico,CJ 48-9,54, 56-8
Ávila,Juan d' 108 Bernegger,Matthias 85, 197 Bohannan, Laura 14 Bunya,., John,The Pilgrim's Progms 30
Audi filia 105 Bérulle, Pierre de, cardeal 108-10 Boiastuau,Pierre 38 Burke. Peter 171
Ávila,Luís de 24 Bessarion,Basílio Oohannes), cardeal 208 Boileau,Nicolas 25,78, 80, 86 Burmmn,Peter, o Velho 79, 89
Commentario 148,159 Béthune, Philippe de, Lt conseiller d'estat 130 Boner,Hieronymus 150 Bumez, Gilbert 21, 29,82, 84,147, 168
Aylesbury, William 150,159 Beverland,Johannes 21 Bonfils de Tarascon, Jacob 106-7 Busbe;q,Ogier Ghislain de 224-5

268 269 1;
 Pefer Burke e R. Po-chio Hsio (orgs.) A tradução cultur_ol nos primórdios do Europa Moderno

Busch, Wtlhelm, Max und Morirz 79 Castiglione, Giuseppe 50 Choumnos (funcionário bizantino) 204 Conegliano, Israel 234
Buys,Jan 22 Castracani, Castruccio 82 Chrysokokkes, Jorge 204-6 Confúcio 16, 88
Byrd, William 150 Catarina de Gênova 108 Chrysokokkes, Miguel/Manuel 206-7 constituição, estudos teóricos da 120-4
Catarina de Siena 103-4, 108 Chrysoloras, Demetrius 208 Contarini, Gasparo, De magisrraribus et republica
Caffa, Cario 151, 160 Catarina li (a Grande) da Rússia 22, 25 Chrysoloras, Manuel. Erotrnuita 104 Venetorum 125
calvinistaS 24 catolicismo Churchill, Winston 156 contração (de textos traduzidos) 38-9
Calvino, João 8, 17, 30, 35, 45, 82 abordagem/tradições húngaras 67, 72-3 Cícero, M. Túlio 33, 35, 37, 51, 58, 90, 130 Contra-Reforma 17, 23, 89, 129
Calvo, Ignacio 78 papel da tradução no desenvolvimento 95-8 Cieklinski, Piotr, Prorrójny 40 Cook, Ann 19
Cambini, Andrea 28, 44, 144 traduções_latinas de textos 83-4 Ciência Copérnico, Nicolau 205
História dos t�rcos 28, 44, 144 ver também clero transmissão de informações 185-7 desenvolvimentos da teoria por escritores pos-
Camden, William 150, 157 cavalos, criação de ver Veterinária, Ciência científicas, obras I O, 185, 203-15 teriores 190, 197, 211-2
Camões, Luís Vaz de 75 Caxton, William 23, 26, 37 mais traduzidas 187 influência de cientistas orientais 204-5
Oslllsíadas 77;86- Ceei!, William 149-50 tradução para o chinês 47-8, 50-1, Corneille, Pierre 86
Campanella, Tommaso, Città dei Sole 87 Celestina (peça) 30, 86 59-60. Corydaleus, T heophylos 210-1
Campion, Edmund 77 censura 117-8, 131, 140-1 tradução para o latim 84-5 Coste, Pierre 21, 137, 168
Campomanes, conde de 147 ver também expurgo; fndice de Livros Proi­ Cirilo, São, arcebispo da Grande Morávia 70 Couerell, Charles 150, 159
Canfield, Benedito de (William Fitch) 108 bidos Cisneros, Garda de 22, 104, 107 Couplet, Philippe 55
Cappel. Guillaume 128 Ceriol, Fadrique Furió 31, 87, 129 Clairaut, Alexis 234 Counin, Antoine de 88, 121
caraítas (seita judaica) 204-7 Cervantes, Miguel de 8, 75, 87 Clarendon, Lorde 147 Cowley, Abraham 38
Caramuel y Lobkowicz,Juan 88 Dom Quixote 17, 27, 78 Clarke, Samuel 85, 199 Cremonini, Cesare 211
Carcavy, Pierre de I 88, 198 César, C. Júlio 145 �classicização" 45, 89-92 crítica literária 88
Cardano, Girolamo 43 Cezmi Effendi 231 Clávio, Cristóvão 50, 60 Croce, Benedetto 32
Carion,Johann 147, 151 Chapelain, Jean 38 Clemente V lll, papa 135 Croll, Oswald 235
Carleton, Sir Dudley 15 7 Chapman, George 44 Clerke, Banholomew 90-1 Cromwell,_ Oliver 133
Carlos Ida Inglaterra 123, 125, 150 Chappelain, Genevieve 19 clero Cromwell, Thomas 24
Carlos IX da França 24, 149 Chappuys, Gabriel 19-20 como foco da erudição 97-8 cruzadas
Carlos IX da Suécia 24, 144, 149 Charrier, Jean 126 papel central na produção/tradução de literatura de terras conquistadas 207-8
Carlos V da França 22 Châtelet, Emilie, marquesa du i 9 textos 79-80, 95-8 obras sobre/interesse nas 145, 148-9
Carlos V. santo imperador romano 24, 143-4, checo (língua) Clifford, Lady Anne 150 Cudworth, Ralph, True /nrellecrual System of the
148, 157 traduções para o 29-31, 65-7 Clímaco, João 104 Universe 88
Carrnichael, Gershom 122 uso (religioso) na Eslováquia 63- 73 Cognet, Louis 108 Cumberland, Richard I 22, 138-9
Carolina, rainha da Inglaterra 150 China/língua chinesa 47-60 Cohen, Tobia 234 cunhagens ver neologismos
Canagena, Alonso de 3 7 declínio do interesse em textos europeus Coke, Sir Edward 150 Cúrcio Rufo, Q 145
Caner, Elizabeth 19 59-60 Collodi, Cario, Pinóquio 79 Cúrcio, Quinto 25
cartografia 188, 226-8, 230-1, 236-7 influência cultural das traduções 58-60 Colombo, Cristóvão 86, 144, 151, 222-3 Curione, Celio Secundo 81, 89-90
maríóma 222-5 interesse europeu na 28, 60 Colônia ver canuxos de Colônia
cartwcos de Colônia _103-4, 107 métodos de tradução para 47-8, 55-7 Colyer, Justinus 232 d'Urfé, Honoré, CAsrrée 78
Cary, Elizabeth 1 9 missões na 15-6 comédia, problemas de traduzir 13 Dacier, Anne 19
Cary, Henry ver Monmouth relatos de visitas 86 comercialismo, como motivo para a tradução/ Dacres, Edward 125, 128
Cassini,Jean Dorninique 213,232 traduções da 54-5 publicação 196, 199-201 Dale, Thomas 41
Castellion, Sébastien 35-6, 77 unidades da produção de livros 53-4 Commynes, Philippe de 18, 84, 148-50, 159 Dalhem,Josquin 189, 198
Castiglione, Baldassare, li cortegiano 22, 30, 39, Chionades, Gregório Oorge) 204-5 Concini, Banolomeo 154 Damaskin, 1. 242
41, 78, 90, 128 Chomedey, Jérôme de 154, 159 conduta, livros de 88 Daniel, Fr., Cleandre et Eudoxus 83

?71
270
 A troduçõo cultural nos primórdios do Europa Moderno
..
Peter Burke e R. Po-chio Hsio (orgs.)
.,·

Dias, Manuel 49, 54 Eden, Richard 26 situação políôca 117-8

· Dariot, Claude 189
Darnton, Robert 116 dicionários bilíngües 20 Eduardo IV da Inglaterra 123 transferências culturais na l-2, 16-7,
Davila, Enrico Caterina, Guerras civis da França Dieu, Louis de 83 Effen, Jusrus van 170, 173-4 140-1
148 Diodati, Elio 81, 85, 197 EgídioAlbertino 40, 80, 127 European Sàence Foundation 8
de Bry, Theodor/johann T heodor 22-3, 26, Diodaú, Jean 156-60 elices religiosas ver clero Européia, Comunidade 7
86, 89 Diodoro S{culo 144-5, 149 Elizabeth I da Inglaterra 18-9, 22, 24, 118, Eusébio de Cesaréia 145
De Dominis, MarcoAntonio, dedicatória da Dionísio, oAreopagita 101-2, 108 132, 149-50 Evans-Pritchard, Edward 14
História do Condlio de Trento 155-8 direito, obras sobre 88-9, 120-4 Elsevier (editora) 187, 198, 200 Evats, W. 121
de Rogeau, Marcus 157, 160 discursos, coletâneas de 152 emigrados, papel na tradução 20 Even-Zohar, Itamar 9
de Tournes, Samuel 89, 194-6, 201 A discussão de Pnnaghiostos e Azimyth 241 Emir Celebi (Seyyid Muhammed et-Tabib) Everart, Marôn 131, 189
de Veer, Effert 133 Dolce, Ludovico 129 232 Éyora, André de 51
de Witt,Johann 193 Dolet, Etienne 23, 32 Enciclopédia Imperial (Siku quanshu) 58-9 Exarch, Ioan, Os seis dias 240-1
Dee, John 195 La manitre de bien traduire 3 2 Ens, Caspar 80 expurgo 38-9
Defoe, Daniel, Robinson Crusoé 79 Dolmatskii, Albert, príncipe 243 Epicteto 19, 48, 51
Dehergne,Joseph, CJ 53 Domenichi, Ludovico 125, 151, 159 Epifànio de Chipre 242 Fausto da Longiano, Scbastiano 127
-·�-�-
Delacroix, Jacques-Vincent 164, 172-3, "domesticação" 42-3, 46 Erasmo, Desidério 17, 19, 27, 29-30, 45, Fazio, Banolomeo 40
177-81 ver também "estrangeirização" 100-3, 105-6 Fénelon, François 21, 25, 87
comentários sobre o próprio trabalho Domestikos, Meletios 213 Enchiridion militis christiani 40, 45, 106 Télémaque 87
174-5, 178-81 Doncker, Hendrick 244 impacto no desenvolvimento do protestantis­ Fencon, Sir Geoffrey 33, 154, 159
hostilidade do governo a 180-1 Donne, John 41 mo 100-1 Feofan Prokopovich 82
pmona autoral/editorial 180-1 Dom, Gerard 195, 198, 200 Institutio principis christiani 127 Ferguson, Adam, Essay on the History of Civil
Delind, Zuca 246 Douglas, Gavin 26, 37 Escandinávia ver também Suécia 31, 195 Society 46
della Casa, Giovanni, /1 galateo 35 Drake, Francis 30, 86 Escoto, André 80 Fernández, Alonso 40
della Porta, Giarnbanista 78 Draskovich, János 127 escribas, responsabilidades/liberdades dos Fernando I. santo imperador romano 224-5
II astrologo 8 6 Dryden, John 38, 42-3, 78 41-2 Fernel, Jean 235
Denis, o Cartuxo (Denis Rijckel) 100 Absalom and Achitophel 86 Eslováquia/povo eslovaco Ferus, Jiti 22
Dentrccolles, François-Xavier 49 Ovídio 32 exilados da 70 ficção, traduções de 86-7
Dering, Sir Edw_ard ISO du Barcas, Guillaume de Salluste, La semaine identidade étnica 61-2, 69-73 Ficino, Marsilio 101, 106
Dernschwam, Hans 225 77, 86 identidade/divis ões religiosas 62-4, Fielding, Henry 30
_
des Essars, Herberay 126 du Bellay, Joachim 32, 38, 192_ 68-70, 73 Fieschi, conde 41
Desaguliers, John 21 du Vcrgerre, Susanne 19 língua(s) 62-73 (ver também checo) Filipe li da Espanha 84, JÓ4
Descartes, René 88 Duan Gun 51 "primeiro Estado da" 72-3 Filipe lV da Espanha 18, 28
Géometrie 193, 201 Dulcken, Anton 80 Esopo 48 Filipe V da Espanha 18
descontextualização ver recontextualização Dunton,John 166 Espanha Filmer, Sir Robert, Pntriarcha 133
Desmaizeaux, Pierre 21 Dupuy, Pierre 157 ...�
··-.4.·..
.
como centro de devoção 104-7, 110-1 filosofia natural ver Ciência
Deus, versões do nome de 16, 36, 57 Durret, Nathalis 231 ...,�.�­
:,�ik­
hegemonia cultural na Europa 83, 121 Filosofia, obras sobre 88
·;;�::,;:;. . espanhol, traduções do/para o 29-30
devotos, textos Duvergier de Hauranne, Jean 109 Filotei (monge) 241
:

centros de origem 98 "estrangeirizaçãow 33, 35, 3 7, 42-3 Finé, Oronce 192

contexto cultural l ll-12 Ebreo, Leone 88 versus "domesúcação" 92 Fioravanti, Leonardo 188
definição/gama 97-8, 109-12 Ebubekir b. Behrarn üd-Dimashqi 230-1 Estudos da Tradução 8-9 Fischan, Johann 39-40, 44
estudos modernos 109-13 Eckhart, Johannes, Mestre 99-100 Euclides, Elementa 48 FlT (Fédéraúon lntemationale des Traduc­
meios de transmissão 109-10 Eco, Umberto 13 Eugenikos, Marcos 208 . teurs) 9
papel na História religiosa 96-7 "economia política da tradução" 29 Europa Fitch, William ver Canfield, Benedito de

272 273
 Peler Burke e R. Po-chio H�io (orgs.) A lroduçõo cul!urol nos primórdios do Europo Moderno

Flácio,Matias 36-7 Gentile, Scipio 81 grego Harvey, William 235

Florença (ádade-Estado) 125, 130, 154, 198 Gentili, Alberico 121 traduções do ver Literatura/era clássica Hassard, Pierre 189
Florio,John 8,20, 32, 39, 132, 136 Gentillet, lnnocent 87 traduções para o 204-215 Hatton, Christopher 149-50
uaduções de Montaigne 8, 22, 39, 41, 44 Gerson, Jean 82, 97,99 Gregório de Nazianzo 101 Havercamp, Sigebert 80
Fonkich, Boris L. 24 Gesenius,Justus 152 Grévio, Johann Georg 26, 79, 82, 84,89 Hayâtizãde Mustafa Feyzi 233
Fonseca, Daniel 234 Geuder,Jacob 91-2 Grimm, Friedrich Melchior, barão 177 Haydocke, Richard 18
Fonseca, Rodrigo 233 Geuffroy, Antoine 88-92 Grócio (de Groot), Hugo 118, 120-1,137-9, hebraico, traduções do 206-8
Forberger, Georg 149,153, 159, 195-6 Giannorti, Donato 87 192 Helmont, Jan van 196
Fortescue, :John, De laudibus ltgum An gliae Gibbon, Eàward 144,148 De iure belli et pacis 12 l, 139 Henrique llJ da França 200
123 Giolito, Gabriel 22,151 Guarini, Giovanni Battisra, li pastor fido 27, Henrique V lll da Inglaterra 24
Foucault, Michel 43 Giovio, Paolo 88, 91,159 78 Henrique, principe de Gales (filho de Jaime 1)
Fracastoro, Girolamo 235 História de seu próprio tempo 91,14 8, 151 guerra(s) 134
Frachetta, Girolamo 132 Giraldi, Giambattista CinJhio 41 noticias 164-5 Herder, Johann Gottfried 43
Fran\a Girard, Albert 194 ver também nomes dos conflitos Hermann, Philip 189
como cenuo de devoção 107-11 Girard, Pascale 53 Guerre, Manin· 77, 159 Hermans, Theo 9, 33, 36
pe�iódicos 165-7,176-7 Glazemaker, Jan Hendriksz 19 Guevara y Vasconcelos,Manuel de 147 1-lerp,Hendrik ver Hárpio
francês,traduções do/pa;a o 29-30 Glyzounis, Emanuel 210 Guevara, Antonio de, Reloj de príncipes 87, hinos 68-9
Francisco de Sales,São 83, l 08 Goethe,Comelia 170 126-7 História, a "tradução" pela 13-6
Francisco l da França l 02, 149 Goethe, Johann Wolfgang von 79, 170 Guicciardini, Francesco 27-30,33, 46, 81, 84, Hobbes, Thomas 29, 87, 118, 120, 122,138
Francisco Xavier, São 49, 82-3 Gohorry,Jacques 39,125 87,89, 125,128, 143,148-61 Ltviatã 87
Francke, August Hermann 83 Golding. Anhur 149 Dialogo dei reggimento dei Firrnu 125 Hoby, Sir Thomas 26
Fraunce, Abraham 40 Goldoni, Cario,Pamtla 42, 175 Storia d'ltalia 143,148, 153-4,159 Holanda
Frederico li da Prússia 128 Gordon, Thomas 139 Guicciardini,Ludovico 28 importância cultural/científica 186-7
Fréron, Élie-Catherine 177-8 Gómicki, Lukasz 41 Guillemeau,Jacques 190, 201 retorno dos exilados 20-2
Frobisher, Martin 30 Góslicki, Wawrzyniec Grzymala, De optimo Gustavo Adolfo da Suécia 22,24, 144 holandês, uaduções do/para o 30-1
Froidmom, Libert 197 senatore 129 Gyllengrip, Catharina Holberg, Ludvig 176
Froissart, Jean,Chroniques 7 8, 84 Gottsched,Louise 19,171,176 Gyllenstiema, Catharina/Maria 19 Holland, Philemon 150
Fronsperger,Leonard 245 Goulart,Simon 13 l habilidade lingüística, papel na educação eu- Holmes, James 8
Fuchs, Leonard 191 Goupyl,Jacques 188 ropéia 118 Holst, Pieter Volck 189
Furtado, Francisco 51-2 Gracián, Jeronomo, Sumário das virtudes de São Haci Pasha (Celalüddin Hizir) 221,232 Homero, traduções de 18-9, 25, 43-4
José 98 Hagenaeus, Melchior 131 Hondius,Josse 230
Gage, Thomas 29 Graeber,Wílhelm 9. hagiografias ver santos, vidas dos Hooft, Pieter 145
Gagliardi, Achille,Breve sumário da perfeição Grafton,Anthony 116 Hakluyt, Richard 24,26 Horácio (Q Horácio Flaco) 32,175
cristã 98, 107,109 Granada, Luís de 17-8, 49, 82-3, 97, 105, Hall, Joseph 30 Horta,Carda de 18
Galilei, Galileu 17, 50, 84-5, 187-8, 192, 108 Characters 34 Hortênsio, Martinho 190,197
197-202 Granuye, Pierre de 189 Hamazaspean, Gabriel 127 Hostovinus, Balthasar 22
Galitzin, principe 2 l3 Gray, Thomas, Elegy in a Counrry Churchyard Hamon, Joseph 226 Hounan, François, Francogallia 124
Garneau,Michel 41 27, 78, 87 Hamon, Moses 226 Hounan, Jean 135
Garzoni,Tomaso,La piazza univtrsale 38 Gréáa Han Lln 51 Huarte de San Juan,Juan 80
Gassendi, Pierre 237 aspirações científicas 214-5 Hankins, James 125 huguenotes 21, 132, 137, 167-8
Gazette 164-5 condições políticas/sociais sob os otoma­ Hárpio (Hendrik Herp) 100,103,107-8 Huldreich Múcio, De Germanorum origine 77
imitações estrangeiras 166 nos 212-3 O espelho da perfeição I 03 Humboldt, W ilhelm 42
Gazette dt Leydt 165 Greflingen,Georg J 65 Harvey,Gabriel 116 Hume, David 88

274 275
 -. .
::•,, .'. ,J . Peter Burke e R. Po-chio· t:Jsio (;,rgs.) A tradução cultural nos primórdios do Europa Moderno

lndikoplov, Kosmas 242 Jones, William 131 Lansperger, João Justo 103
Hungria • J .

condições políticas 68-9 "infidelidade criativa" 171-2 Jorge 1 da Inglaterra 123 Lapithe, Jorge 208
divisões étnicas/lingüísticas 64-70 Inglaterra, importãncia cultural/científica jornais ver periódicos Laredo, Bernardino de 105
divisões religiosas 61-2 187 Josefa, Flávio 144-5 latim
elite civil/social (magiares) 67, 72-3 inglês, traduções do/para o 28-31 Joubert, Laurent 85, 190 como língua da lei 120-1
importações literárias 65-6 Innys, William/John 199 Le joumal encyclopédiqut 177-8 como língua da Religião 64-6, 96-7
legislação 64-6, 71-2 Instituto Bíblico (Halle) 70-1 Le joumal étranger 171, 175 como língua franca cultural 64, 103,
ver também Eslováquia integridade textual, importância religiosa da ]oumal des savants 164-6 118-20, 191-3
Hus, Jan/hussitas 61-3, 69-70 64-67 imitações 166-7 "co n c o r r ê n c i a" c o m o v e r n á c u l o
Huser, Johannes 195-6 intenção, importância da 23 Jouvancy, José de 83 190-201
Hüseyin bin Abdullah 221 intérpretes 19-20 Juan, príncipe da Espanha 126 latim, traduções do ver Literatura/era clássica
Huyghens, Christiaan 25 hereditários 19 judeus latim, traduções para o 10, 26-9, 75-92, 96-7,
"intradutibilidade" 32-3 conhecimentos médicos/textos 224-5 197-8, 202
laroslav, o Sábio 242 lnwerken, tradução do termo 1OS, 112-3 Justino 145 cronologia 78-9
iatroquímica 232-3 Irmãos Checos 66 escolha do material 76-8
lbn Beithar 219 Isabel, rainha da Espanha l 04, 126 Kadizâde-i Rumi (xeque Mehmed bin Musta- línguas-fonte 79-80
lbn Khaldun 145 Isengrin (editor) 191 fa) 219, 221 métodos de tradução 89-92
Ibn Sina (Avicena) 235 Islã ver muçulmanos, textos/Ciência Kangxi, imperador (chinês) 50, 52 quantidade 75-6
lbn Yunus 233 Ismail, Halifez.ãde Cinari, Effendi 232 Kant, Immanuel 88 seleção do material 82,-9
Idade Média 61, 98-101 Isselt, Michael 80 Kâtib Çelebi 227-28, 231, 236 tradutores 80-1
métodos de tradução 33-5 Itália, visitas à 118 Kavoutzes, Ioannes 207 ver também "classicização"
tradução de textos da 145 italiano, traduções do/para o 29-31, 84 Keller, Christoph I 52 Lauro, Pietro 151, 160
identidade confessional, importância da 63 lvã Ili, czar 239, 241 Kempis, Thomas I 8, 27, 97, 99 Lauterbeke, George 124
Iluminismo [espanhol] 105-6 lmitatio Christi (atrib.) 27. 49 Lauterbach, Conrad 145
Iluminismo 8, 17, 45, 89, 109, 137, 140, 148 Jaime I da Inglaterra/VI da Escócia 18, 30, 118, Kennet, Basil 121, 138-9 Lazaril/o de Tormes (anôn.) 39, 77
.. imitação", teoria/prática da 37-9 134-7, 140,150,155 Kerbekius, Antonius 80 Le Ber, Charles 131
debates sobre 175-81 Basilikon doron 134-6, 140 Kirik de Novgorod 240 Le Courayer, Pierre-François 150, 158-60
Império Otomano Japão, descrições do 86 Klesch, Daniel 65 Le Noble, Eustache 143
ascensão do poder 203-4 Jardine, Lisa 116 Klopstock,Friedrich Gottlieb, Messiah 86 Leão Africano 24, 86
descrições ocidentais do 86-8, 90-2 Jerônimo, São 32, 35, 100-2 Koerbagh, Adriaan 15, 44 Leclerc, Jean 167
influência ocidental na Ciência/cultura jesuítas 16,21-3,36, 49-60, 71, 80, 95-6, 106 Kopievich, Ilia 25 Lefevre d'Étaples, Jacques 102-3
212-3, 222-37 escala do tempo da produção de traduções Leibniz, Gottfried Wilhelm 60, 88
médicos ocidentais nó 233-5 53-5 La Beaumelle, Laurent de 171 Leichoudis, loannikos/Sofronios 213, 242
realizações cientificas 212-3 números/nacionalidades 52-5 La Chapelle, Seigneur de 88 Lenglet du Fresnoy, Nicolas 42
sistema educacional 208-13, 217-18 (ver tam­ papel nas missões chinesas/traduções La Fontaine, Jean de, Fables 87 León, Luis de, La perfecta casada (A esposa
bém medreses) 52-3 La Grise, Berthault de 126 perfeita) 111
impressores 22-3 seleção de textos 59-60 La Houssaye, Arnelot de 128, 158-9 Leunclavius, Johannes 91
ausência (em certas áreas) 65-6 J iménez (Ximenes) de Cisneros, Francisco, La Riviere, Étienne de 233 Lewkenor, Lewes 126
Índia, descrições da 86 cardeal 22, 104-7 La Noue, François de 87 Li Cibin 5 1
Índice de Livros Proibidos 106, 128, 135, 146-7 João Crisóstomo, São 241 Lamoot, J an 21 L i Zhizao 50·2
impacto sobre projetos de tradução/pu­ João da Cruz, São 83, 105-8, 110 Languet, Hubert 133 língua(s) estrangeira(s), adoção de 63-4
blicação 199-200 João IV de Portugal 88 Lansbergen, Jacob 197 ver também checo (língua)
versão ortodoxa russa 241 Johnson, Samuel, dr. 19, 175 Lansbergen, Philip 197,202 linguagem técnica, tradução da 15

276 277
 Peler Burke e R. Po-chia Hsia (args.) A lraduçõo cultural nas primórdios da Europa Moderna

línguas do leste europeu, traduções de/para Lutero, Martinho, 8, 17, 23-4, 27-8, 30, 32,36, Martin, Henri-Jean 187 missionários 16, 23,36,47-8, 51-5,57, 60, 112
29-31 45, 62,66,69-70,80,82,101, 195 Martin, Jean 38 Mitros, Meleúos,bispo,Epitome do AstTonomia
Lipsio,Justo 30, 130-1 como tradutor da Bíblia 23, 36 Martini,Martino 28, 148, 160 211
Politicorum sive civilis doctrinae 130 Pequeno ct1Ucismo 62, 6 6 De bel/o tartarico 160 moda, cobenura em revistas da 166
literalidade versus liberdade 32-8, 151-2 Sendbrief vom Dolmetschen (Carta aberta Mascardi,Agostino 41 Molina,Luis de 121
Literatura/era clássica
tradições culturais 118-20, 130
sobre a interpretação) 32
,. Masnfk (Masnício),Tobias 70 Molinos, Miguel de 83
traduções de 8,24,26-7,30, 45, 82-3 matemática 209-10 Monardes, Nicolas 18, 85, 235
traduções 26, 36-8, 48-53, 75-6, 144-5, Mavrocordato, Alexandre 234 moriarquia, teorias da 124-30, 140
185-6 Macault,Antoine 149 Maximiliano 11, santo imperador romano Monmouth, Heriry Cary, conde de 126, 132,
liturgia ver preces Maffei,Giovanni Pietro 28,144 200 151
Uvio, Tito 39-40,116, ll9, 145, 152 Magalhães, Gabriel de 56 Mazel, David 168 Montaigne, Michel de 8, 39,136-7
livros-texto escolares 72, 148,214 Magno, Olao 151 medicina, obras sobre 213-4, 219-21, 224-5, Ensaios 22,.28, 31, 41
localização ver transposição Maignan, Eloi 191 232-6 Montano, Benito Arias 77,81
Locke,John 17, 21,29-30, 87-8,167-70 _Maimbourg, Louis 78, 82, 147, 159 analogia com a teoria política 229-30 Monte Branco, Batalha do 30, 68
Dois t ratados sobre o governo 25, 34, 45, 87, Hist6ria das Cruzados 148, 159 ver tainblm Veterinária, Ciência Montecuccoli, Raimondo .de 87
133 Maire,Jean 202 Médicis,Lorenzo de 131, 146 Montesquieu,Charles-Louis de Secondat,ba•
Sobre o entendimento humano 34, 45, 88, Malebranche, Nicolas 88 medreses (escolas otomanas) 209, 217-22, rão de 17
137 mal-entendidos, papel nas (más) traduções 226-7,230-1 O espírito das leis 45
Lok, Ann 19 43-4 Mehmed Ataullah,Tayyarzade 221 Montgomerie,Tht Cherry and the Plum 86
Lomazzo, Giovanni Paolo 18 Malvezzi, Virgilio 87 Mehmed, Celebi sultão 220 Morávia, Grande 70-3
Lomonosov, Mikhail 242 Mansur ibn Muhammad ibn Ahmad 237-8 Mehmed lhlasi, xeque 228 More, Thomas, Utopia 28, 45
Longfellow, Henry Wadsworth, Hiawatha 79 manuscritos 10, 22, 28, 41:2, 71, 77, 100-1, Mehmed Rami Pasha 234 Morin,Jean-Baptiste 197
Longobardo, Niccolo 57 134,136, 144, 154-5, 186, 195, 203-14, Mehmed Reis ibn Menemenli 224 Momay, Philippe du Plessis 133
Lopes de Castanheda, Fernão, Hist6ria do des- 236-7,240-3 Melanchthon,Filipe 64,147 Momet, Daniel 170
coberta do Novo Mundo 148 Maomé li, sultão 218 Ménage, Gílles 37 Moulin, Louis de 85
Lorena,cardeal da 22 Maomé IV, sultão 230, 233 Mendoza, Juan González de 28,84, 86 Moyriac de Mailla,j. A. M. de 145
Loyola, Inácio de, Santo 21, 82,95, 99, 106 Maomé,o Profeta 218 Mercado,Luis 233 muçulmanos, textos/Ciência
Lubomirski,Stanislas 83 Maquiavel, Nicolau 28-9, 39-40, 78, 81, 84, Mercator, Gerardo 227-8, 243 papel no pensamento/educação otomana
Lucae e Carnerino, Johannes 206 87-9,118,120,125,128, 146-53, 159 Lt memm galant 164-8 217-19, 221, 226-7, 23S-6
Lucena,Juan de 40 Arte della guerra 40, 89 Mersenne, Malin 122, 188 traduções ocidentais 145-6
Ludolfo da Saxônia, Vida de Cristo 95, 99,107 Discorsi 87, 125 Merzifonlu Kararnustafa Pasha 234 ver também Império Otomano
Ludwig, príncipe de Anhalt 18 Isturie Fiorentine 78, 147-50 Metochites (funcionário bizanúno) 204 Muharnmed b. Mahmüd-i Sirvânl 219-20
Luillier, François 237 II princi� 29, 39, 87, 89, 118, 120, 125, Met6dio, São 70 Muharnmed bin Cerkes 221
Luís XIII da França 129 128 Meusevoet, Vincentius 19-21 Muharnmed bin Ya'küb b. Ahi Huzzârn al-Hut­
Luís XIV da França 14, 86, 88, 122,165 March, Ausias 86 Mexia,Pedro, Historia Caesarea 7 8 tali 221
Lukaris, Cyril,patriarca 21 O Marco Aurélio,ímperador (romano) 126 Micanzio, Fulgencio 156 Mulcaster, Robert 123
Lúlio, Raimundo 104 Mardrus, Joseph Charles,As 1001 noites 172 Miguel Feodorovich, czar 243 mulheres
Lumley, Jane 19 Margarida de Navarra 102 Mílne, A. A., O ursinho Pooh, versão latina 26, como patronas da tradução 22
Luterana, Igreja 62-6 Mariana, Juan de 121 79 como tradutoras 18-9
conflitos com o calvinismo 66-8 Marivaux, Pierre de 172-4 Milton, John 75, 78, 119 papel na vida devota 112
elos (supostos) com o hussitismo 63-4, Mamix, Philip 150 Paraíso hrdido 27, 30, 86 ver também periódicos
69-70 Marshall,William 24 Minado!,Giovanni 84,91-2 Murad IV, sultão 235
presença na Hungria/Eslováquia 68-73 Marsílio de Pádua 24 Mirando!a, Pico della 206 Mumer, Thomas 28

278 279.
 Peter Burke e R. Po-chio 't--isio (orgs.) A lroduçõo cultural nos primórdios do Europa Moderno

Murphy,Anhur, Tht Orphan of China 175 obras históricas (em tradução) 83-4, 143-7 Pedro I (o Grande), czar 25-7,166, 242-4 Poirot, Louis de 49
Mustafa 111, sultão 235 áreas de interesse 146-7 Pedro IV de Aragão 207 polêmica 117-8
Müteferrika, lbrahim 228 definidas 143-4 Peiresc, Nicolas Claude 157 Poleni, Giovanni 214
Myrepsos, Nicolas 233 línguas "exportadoras•/ "importadoras• PeletÍer du Mans, Jacques 32,192 Políbio 18,144-5
146-9 AlgMm/De occulca parte numerorum 193 "política", tradutibilidade do termo 14
nacionalismo tradutores 150-2 Pemberton,John 136 Poliziano,Angelo 144
crescimento do 117 Oldenburg, Henry 85 Pepys,Samuel 150 Polo,Gil,Diana 87
cultural 26, 191-3 Origenes, Santo 101 Perez, Miguel 97 Polo,Marco 28, 39, 86
Nadai,Jerónimo 49-50 Ortega y Gasset, José 32 periódicos polonês,traduções para o 30-1
Nannini, Remigio 152-3 Ortélio,Abraão 227-29, 244 críticas a outros 173-4 Polônia, sistema político 129-30
não-ficçã.o, tradução da 9-1 O, 17, 76-8 Osmã II, sultão 221 desenvolvimento 164-8 Pope, Alexander 18-9, 175
Napier,John 50 Osuna, Francisco de 105 empréstimos de outros 164-6 Essay on M�n 27, 86
Naudé, Gabriel 80, 89 especialização 165-7 Porcacchi, Tommaso 15 l
Co�idérations politiques SUT les coups d'état Pádua (Universidade de) 208-14,224,234,236 papel no intercâmbio cultural 165-8 Postei, Guillaume 236
132 "escola de" 211 para mulheres 166,171,174-5 Pozzo, Andrea 50,60
Nebrija, Antonio 81 Pais cristãos,traduções dos 100-2,107-8 patrocínio do governo 165 preces,traduções de 49
Needham, Peter 79 palavra por palavra ver literalidade resenhas de livros 167 Proclo 205-6
· negociação, papel na tradução l 5-6 Palissy, Bernard 43 ver também Tht Sptctator Procópio 18,144, 153
Negri, Francesco 8 l Pallavicino,Sforza, cardeal 82,88,156 Perkins,William 24, 30, 34, 82 propaganda
Nemchin, Nikolai 241 Palthen, Zacharias 18, 196 Perna, Pietro 154, 189,195,198,200 obras de 88
neologismos 16, 44, 57-8, 89, 91 Panneel, Michael 21 Peme, Andrew 150 tradutibilidade do termo 15-6
Neri, Antonio, Dt arte vitraria 85 Papãnek, Juraj 73 A Pérola do Ev�ngelho (anõn.) 103, 108 propriedade intelectual 41-2,196
Newcastle, duque de 84 Papavasilopoulos, Anastasios 209-10 persa, traduções do 204-6,214 protestantes/protestantismo
,
Ne�!pn,Adam 90,157,160 manuscritos de textos 209 Petrarca 30,77 apropriação de textos católicos 154-5,
Newt.on, Isaac 17, 21, 41, 85 Patacelso (Theophrastus von Hohenheim) 84, Petreio,Teodoro 80 157-9
Óptica 85, 199 186-7,189, 194-5 Phillip, William 24 textos traduzidos para o latim 83
Nian Xiyao 50 influência no Oriente 235 Philosophical Transaccions of che Royal Society of traduções de textos católicos por 82-4,
Nicolau V. papa 22 traduções latinas 18,194-5, 198,201 London 77,166-7 88
Nieremberg, Emmanuel 18 Paré, Ambroise 187,190,193, 200-1 Pibrac, Guy du Four,Seigneur de 77,86 ver também calvinistas; Luterana: Igreja;
Nieremberg, Juan Eusebio 97, 112 Parry, Thomas 135 Piccolomini, Alessandro 188 Reforma
Nieuhof, Jan 86 Parsons, Robert 135-6 _ Pieroni,Giovanni 198:200 Pseudo-Ka.llisphenos, Alexandria 241
Nikon, patriarca 246 Paruta,Paolo, Dei/a perfmiont delta vita política Píndaro 38 publicação, centros de 81-4, 186-7
Nizamulmulk, vizir 219 126 Pipino, Francesco 39 Pufendorf, Samuel 25,121,137-9
Norfolk, duque de 149 Pascal, Blaise 79-80 Pirckheimer,Wilibald 101 De iurt naturat et gentium 121-2, 137
North, Sir Thomas 8, 34, 127 Penséts 88 Piri Reis 222-4 De officio hominis et civis 122,138
Northampton, Elizabeth, marquesa de 22 Prmiotiske Tilskuer 171, 174 Pitisco,Bartolomeu 50 lnrroduction (Einlticung) 148, ·160
Norton, Thomas 35 Patrizzi,Francesco 88 Platão 52 Pym,Anthony 9
Notaras, Chrysanthos 212-3 patronato 22,149-50,220 As leis 124
Notaras, Dositheos, patriarca 213 Paulo Aeginata 220 A república 38-9 Quevedo, Francisco de 87
Nouvelles âe la républiqut des lnrres 21, 16 7 Paulo Ili,papa 156 Plauto, T. Mácio, Trinummus 40
Paulo, São, Epístola aos romanos 102 Plutarco 8, 87,127, 130, 145 Rabelais,François 30,39-40, 44
O livro dos segredos de Enoque (anôn.) 240 Paz, Octavio 15 Pocock,John 125, 152 Raleigh, Walter 30, 86
O mistério dos mistérios (anõn.) 241 peças, traduções de 40, 86 poesia,traduções de 86 Ramo, Pedro,Geommiae libri XXVII 243

280 281
 Peter Burke e R. Po-chic Hsic (orgs.) A tradução cultural nos primórdios de Europa Moderna

Ramusio, Giovanni Batista 26 Richardson, Samuel 8, 30 Sales, Francisco de, São ver Francisco de Severiano de Gavala, bispo 241
R.awlinson,Richard 42 Aimela 42, 175 Sales Severino,Pedro 196
"razão de Estado",obras teóricas sobre a 130-2 Richelieu, Armand Jean Duplessis, cardeal Salih bin Nasrullah bin Sallum ;232-3 Seydi Ali Reis 220
Real Sociedade 189, 192-3,199 129,144,231 Salústio (C. Salústio Crispo) 130,145, 149 Seyssel, Claude de 150
ver também Philosophical Transacrions... Ricius, Johannes 90-1 Sambiasi,Francesco 51 A comunidadefranctsa 87
realeza Rijckel, Denis ver Dênis,o Canuxo Sandé, Don Alvaro de 225 La grande monarchie de Fr!1,nce 124
como patrona de traduções 22-3 Rivadeneira, Pedro de 22 santos, vidas dos 48-9, 82, 98, I 10-1 Shakespeare, William 13,31,119
como tradutora 18-9 O príncipe cristão (II-atado de la religi6ny virtudes que São Petcrsbwgo Hamltt 14
recatolicização, programa húngaro de 62-5, debe tener e/ príncipe crisriano) 87,127-8 Academia 20, 25, 244 Macberh 119
68-7] Roberuon, Wiiliam 147-9 Gtueca 166 A megtra domada 31
recontextualização, processos de 16-7, 46 History of America 147, 149 Sarpi, Paolo 27, 46, 82, 84, 88, 147-51, 153, Shams al-Din al-Bukhari 205
Reforma 17,45 Roche, Genevieve 9 155-60 Shemseddin Itaqi 226,235-6
atitudes quanto às Escrituras 61-2 Rodolfo li, santo imperador romano 200 História do Concilio de 1rento 22,24,79,90,143, Sherlock, William 137
llnguas litúrgicas 64-6 Rohan, Henri de 87 148,150-1 Shute, John 44
refugiados vtr emigrados Rojas, Fernando de, Ctlestina 3o", 86 História dos beneftcios 148-9,151, 158 Sidney, Algernon,Discourses Conctrning Govcm­
regime .colonial, tradução sob o 36 Ronsard, Pierre 86-7 Savonarola. Girolamo 82, 104 men1133
Regnault, Noel 41, 159 Franciade 78 Saxo Gramático 145 Sidney, Mary 19,40
Regras dos assuntos militares, de artilharia e ou­ Roper,Margaret 19 Saxônia, eleitor da 149 Sidney,Philip 30, 118
tros 243 Rosemond,Jean-Baptiste de 21 va tambbn Jorge I da Inglaterra A Defmce of Poetry 28
Religião Rosenzweig, Franz 15 Scalvo, Marco de 77 Sigismundo lll da Suécia/Polônia 136
controvérsias 109, 111-3,140 Roseo da Fabriano, Mambrino 127 Schall von Bcll,Adam 50, 54 Siku quanshu va Enciclopédia Imperial
Guerras de 107-8, 124 Ross,Alexander 197 Schiller, Johann Christoph Friedrich von 79 Silhon, Jean de,Ministre d'état 130
histórias 148-9 Rowling. J. K., Harry Potter e a Pedra Filosofal, Schirmbeck, Adam 80 Silvano,João 62
textos (e traduções) 9-10, 23-4, 48-50, versão latina 79 Schlegel, August Wilhelm 15,176 sinopse, tradução por 48
70-2, 81-4 Ruggieri,Michele 47 Schleiermacher, Friedrich 42 sintaxe original, reprodução da 42-3
ver também Bíblia; catolicismo; devotos, Rússia Schooten, Franz van 193, 201 Sipay116wna,Maria 19
textos; Deus; missionários; preces; pro­ desenvolvimento social/cultural 241-4 Schrcck,Johann Terenz 50 Skinner, Quentin 125
testantes; santos, vidas dos História política 239,242 Schroder,Eric 19-20,24,127,136,159-60 Skylitzes, loannis, Introdução à.s Ciências Cos­
Renânia,tradições religiosas 98-104 Literatura 240-2 Schwanz,Johann Ludwig 72 mográficas 211
elos/conflitos com o catolicismo 102-4 programas de tradução 25-7, 213, Scot, Reginald 44 Sleidan, Johann 18, 78,84, 147, 149, 159
Renascimento 17, 44-5,186 241-4 Scon, T homas 132 Commtários 148, 160
Renaudot, Théophraste 165 projetos educacionais 242 Scribanius, Carolus 77 Quatro impérios d� mundo 148,160
republicanismo, teorias do 125-6, 130 Ruysbroeck,Jan van 99, 103-4, 110 Scupoli, Lorcnzo, li combatrimento spirituale 83 Smidt, Frans de 21
resenhas ver periódicos Esposamentos espiricuais 102, 108 século XIX, movimentos/teorias da tradução Smith, Adam, A riqueza das nações 39, 45
resistência, teoria política da 132-4 42-3 Smith,Samuel 199
Retz,Jean François Paul de Gondi de, _cardeal Sa'duddin bin Hasan Can 145 Segunda Escolástica 120 Smith, Sir Thomas, De republica Anglorum
41 Sa.adi 86 Seklucjan, Jan 32 123
revistas ver periódicos Sa.avedra,Diego de 87 Selden, John 88, 123 Snellius,Willebrord 190,197
Rho, Giacomo 50,54 Sabellico,Marco Antonio 28,144 Seljukid beg Ilyas 221 Sófocles, Electra 40
Ricci,Matteo 16, 21, 23, 47-51, 54, 56-9 Sabuncuoglu Sherefeddin 220 Sêneca, L. Aneu 51 Solimão I, "o Magnífico•, sultão 226-7
]iaoyou lun (De amiciria) 51 Sainte-Marthe, Scévole de 78 Sennert,Daniel 233 Solis, Antonio de, História da conquista do Mé­
Jiren shipian (Dez ensaios de um homem no­ Saint-Evremond, Charles de Marquetel de Serlio, Scbastiano 45, 88 xico 148
tável) 48 21 Settle,Elkanah, A conquista da China 148 Sorbiere, Samuel de 122

282 283
 Peter Burke e R. Po-cliià-:Hsio. (orgs.) :-.. · A lroduçõo cultural nos primórdios do Europa Moderno

Soto, Domingo de 121 ·• gama de idéias 115-6 teorias/métodos 17, 30-43, 119-20, Umur Beg 219
·orientais 227-29 140-1, 171-2 União dos Irmãos 68

. :f.
sousa, Perez de 131
Spandugino, T heodoro 28 traduções para o latim 87 terminologia 31-4 universidades
Speidell,John, Geomerrical Extraction 243 transmissão de idéias 116-7 "tradução cultural" 14-7, 151-2 política de admissão 224-5
Spenser, Edmund 41, 77 ver também direito; monarquia; "razão de Esta- científica 185-6 preferências lingüísticas 198-9
The Shepherd's Calendar 27, 86 do"; republicanismo; resistência disponibilidade 117-8 Urquhart, Sir ThÓmas 40
Speroni, Sperone 192 Teresa d'Ávila, Santa 49, 82-3, 105-8 relação com a Lingüística 16-7 utraguistas 66, 71
Sporck, Eleonora von 19 Terracini, Benvenuto 15 . -._:_\;�:;: "tradutibilidade" 13
Spm, T homas 85 Tezkireci Kõse lbrahim Effendi 231 tradutores Vagnoni, Alfonso 54
Staden, Heinrich von 86 The Spectator 163 amadores 18-9 Valdés,Juan/Alfonso de 106
Standaert, Nicolas 47, 59 apelo para os leitores 168-72 anônimos/pseudônimos 80 Valia, Lorenzo 24, 89, 101, 144
Stapleton, Sir Robert 150 correspondência 174-5 categorias 18-23 Valverde de Hamusco, Juan 236
Steele, Richard 163, 168-9, 172, 175-81 dependência de colaboradores 174-5 equipes ver tradução(ões): colaborativa van den Bos, Lambert 151
Steiner, George 15 imitações 163-4, 168-81 (ver também clero; realeza; mulheres) Varênio, Bernardo 25
Stevens, John, capitão 151 influência de tendências anteriores 163-4, erros ver mal-entendidos; tradução(ões): Varthema, Ludovico de 28, 86
Stevin, Simon 85, 187-8, 190, 192, 194 168-9 imprecisas Vaughn, William 132
Stillingtleet, Edward 21 persona autoral/editorial174 melhorias no original 37-8 V ázquez dei Mármol, Juan 104
Stoppani, Giovanni Niccolo 81 traduções 169-70 motivos 119, 134, 137, 140-1, 169-70 (ver Veneza (cidade-Estado) 22 7
·stoudites, Damaskinos, bispo 207 T hompson, Emmanuel 136 tambtm comercialismo; tradução(ões): comunidade grega 208-9
Suada, Famiano 147-8, 150 T hott, Birgitte 19 motivos ideológicos para) tratados politicos de/sobre I 25-6
De bello belgico 160 Topai Recep Pasha 235 nacionalidades 80-1 Venuti, Lawrence 9, 33-4
Suárez, Francisco 121 Pory, John 24 omissões ver expurgo; contração verbetes de índices I 56-8
Suécia, campanha de tradução 24-5 Toury, Gideon 9 orais ver i�térpretes Verbiest, Ferdinand 52, 54, 213
Súrio, Laurêncio 103 Toxites, Michael 195 profissionais 19-20, 150-1, 225-7 vernáculos
Suso, Heinrich 99, 103-4 tradução(ões) reversão do intuito autoral 40-1, 45-6 aumento no uso/prestígio I 90-3
Swieten, Gerard van 235 áreas de estudo (propostas) 111-3 Traheron, William 152 definidos 77-8
Szafarzynski, Jacob 22 bibliografia 113 Tranovsky,Juraj 68 (estudos de) traduções entre 10, 28-3 I,
colaborativa 18-9, 55-6, 231 transposição (de ação/cenários) 39-4 I . 96-7, 187-90
Tabelas afonsinos 208 definida 77-8 Trediakovski, Vasilij 20 -vtr também latim
Tácito, P. Cornélio 87, 132, 145, I 58 de segunda mão 34-5 Trenchard, John 139 Vesálio, André 25
Tàsso, Torquato 26, 30, 40, 75, 77, 8 I escolha do material 26-8 Trento, Concílio de 71, 110, 140, 149 � humani corporis fabrica 244
Aminta 86 impacto cultural 43-6, 111-3, 196-8, Tu�ídídes 144-5 Veterinária, Ciência 223
Gerusalemme liberata 27, 86 217-8 Tuck, Richard 128 Vetter, Conrad 21
Tauler, Johannes 99, 103-4, 110 imprecisas 65-6, 105-6 (ver tambtm Tuning, Jan 190 viagem
tecnologia 85 mal-entendidos) turco livros de 27-8, 85-6
Teelinck, Willem 21 motivos ideológicos para 196-202 (ver obras originais em 222-4, 235-6 papel na educação européia 1 I 7-8
Teglio, Silvestre 39, 81, 89 também tradutores: motivos) traduções para o 218-21, 227-35 Vienne, Philibert de, Le philosophe de court 44
Temple, William 29 papel histórico 7-10 turcos/furquia ver Império Otomano V igenére, Blaise de 144
Tende, Gaspard de 37 papel no intercâmbio cultural 16-7, Turler,Johannes 90, 159 Vignola, Giacomo Barozzi da 25
R�les de la rraduction 32 109-11, 116-8 Tyler, Margaret I 9 Villehardouin, Geoffroy de I 44, 148
teoria política, obras de programas 23-6, 135-6 Vindiciat concra tyrannos (anõn.) I 20, 132-3
contexto da criação 115-7 público-alvo 28-9, 81-3, 96-7, 116-7, Ulloa, Alfonso de 22, I 5 I, I 59 Virgílio (P. Virgi1io Marão) 25, 43
distribuição 116 120-1; 149-51, 186-7 :,.,:-- Ulugh Beg 219,232,236 Eneida 26, 37
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 Peter Burke e R. Po-chia Hsic (args.)

Virgi1io, Polidoro 28, 144 Webster, Charles 186, 195

História dos inventores 148, 151, 160
Wei Douxu 51
Vladimir, São 240 Weisse, Christian 19-20
Vlahos, Gerasimos Welsaer, Mark 85
Harmonia definitiva entium 211 Weyer, Johan 44
tradução de Hipócrates 213 Wheler, Sir George 234
Voltaire (François-Marie Arouet) 60, 170, Willymat, William 135
177 Wladislaw (Ladislau), príncipe 83
Henriade 86
Wolff, Christian, Cogitationes rationaus 88
I.:orphelin de la Chine 175
Wood, Anihony, History of Oxford 77
Vendei, Joost van, Zungchin 148 Wysocki, Simon 21
Voragine, Jacob, Legmda aurta 95, 98, 107 Colaboradores
Xenofonte 144-5
Waesberge, Jan van 188
Ximenes, cardeal ver Jiménez (Ximenes) de
Wagenaer, Luc.as Ja:nsz, Sptculum nauticum 85
Cisneros
Waldergrave, William 134 Xu Guangqi , Paul 48, 50-1, 56
Walford, Benjamin 199
Xu Zongze 47
Walker, William 133
Wallenstein, Albrecht von 84, 144 Yom-Tob, Jacob ben David 207-8
Wallis , John 192, 199 Yushkevich, A. P. 245
Algebra 193, 198
Wanckel , Johannes 88, 127 Zhu Sihan 51
Waucquier, Mateo Martinez 80
GEOFFREY BALDWIN estudou em Cambridge, foi Lloyd Fellow do Christ's
Zilina, Sínodo de 66, 68
College e lecionou em Cambridge e Yale ames de ser designado Palestran­
te convidado do Departamento de História do King's College London.
Tem publicações sobre a História Intelectual e o pensamento político
moderno.

PET ER BURKE estudou em Oxford e lecionou na Universidade de Sussex

antes de se mudar para Cambridge, onde foi professor de História Cul­
tural até sua recente aposentadoria. É membro vitalício do Emnianuel
College, membro da British Academy e da Academia Europea. Estudou a
transmissão de conhecimento na Europa, do Renascimento ao Iluminis­
mo, e publicou Uma história social do conhecimento (2000). Vem trabalh ando
com a história social das línguas há aproximadamente trinta an os, e suas
publicações sobre o assunto incluem Languages and Communitíes in Etuly
Modem Europe (2004).

SERGEI SERGEEV ICH DEMIDOV estudou na Universidade M. V. Lomono,

sov, em Moscou. É diretor do Departamento de História da Matemática no
Instituto S. I. Vavilov para a História da Ciência e da Tecnologia da Aca­
. demia Russa de Ciências, � é titular da cátedra de História da Matemática

286
 Pe!er Burke e R. Po-chio Hsio (orgs.)
e da Mecânica da Faculdade de Matemática e Mecânica da Universidade ·
M. V. Lomonosov. Foi vice-presidente da Intemational Academy of the
History of Sciences (1997-2005). É autor de mais de 200 estudos sobre
a História da Ciência.
CARLOS M. N. EIRE é titular da cátedra Professor T. Lawrason Riggs de
História e Estudos Religiosos na Universidade Yale. Antes de ingressar
no corpo docente de Yale em 1996, lecionou na St. John's University e
na Universidade da Virgínia.. É autor de War Against the Idols (1986), From
Madrid to Purgatory (1995) e Reformations: Early Modern Europe 1400-1700
(publicado em 2007). Seu memorial da Revolução Cubana, À espera da
neve em Havana (2003), ganhou o National Book Award de não-ficção.
FEZA GÜNERGUN (nascida Baytop) é professora de História da Ciência
na Universidade de Istambul. Graduou-se na Faculdade de Engenharia
Química (da Universidade de Istambul) em 1980 e começou a pesquisar
as drogas inorgânicas usadas na medicina otomana do século XIV ao XVII
para sua tese de doutorado. Suas pesquisas atuais enfocam a História da
Ciência na Turquia durante o período de modernização (séculos XVIII a
XX) do Império Otomano, com especial ênfase na introdução das ciências
modernas na Turquia. Também publicou artigos sobre a História da Quí­
mica e da Medicina na Turquia. É fundadora e editora do periódico acadê­
mico turco Osmanli bilimi arastirmalari [Estudos de ciência otomana].
R. PO-CHIA HSIA é titular da cátedra Professor Edwin Erle Sparks de His­
tória na Universidade Estadual da Pensilvânia. Publicou·extensivamente
a respeito da história da Reforma, .das relações judaico-cristãs e do en­
contro cultural entre a Europa moderna e a China. Suas publicações mais
recentes incluem'jesuit Missionaries in China and Víetnam (2006) e o volume
editado Cambridge History of Christianity, v. VI: Reform and Expansion, 1500-
1660. É membro eleito da Academia Sinica, em Taipé.
EVA KOWALSKÁ, pesquisadora sênior do Instituto de História da Academia
Eslovaca de Ciências em Bratislava, estudou História e Filosofia na Uni­
versidade Comenius, na mesma cidade. É especializada em História Reli­
giosa e Cultural na Hungria moderna, tendo se c_oncentrado recentemente
no exílio confessional na Europa central no século XVII. Escreveu duas
monografias, uma sobre as reformas da escola pública de Maria Teresa e
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. ; ·:r:' A !roduçõo cultural nos prim6;dios do Europa Moderno
.
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José II (1987) e a segunda sobre a comunidade luterana na Eslováquia no
século XVIII (2001). Também publicou mais de noventa anigos e capítu­
lç,s de livros (mais recentemente na Concise History of Slovakia, 2001).
'EFrHYMIOS NlCOLAIDIS nasceu em Atenas, estudou na França e fez seu
doutorado na École des Hautes Érudes en Sciences Social.es. Depois de
trabalhar no Observatório Nacional de Atenas (1979-84), ingressou no
programa de História da Ciência da National Hellenic Research Founda­
tion em 1984, tornando-se diretor em 2003. É secretário geral da União
Internacional de História e Filosofia da Ciência/Divisão de História da
Ciência e da Tecnologia. Suas principais publicações tratam da Histó­
ria da Ciência durante os períodos bizantino e grego moderno (período
otomano e Estado grego) e da difusão da ciência (clássica) européia em
direção à periferia.
MARIA LÚCIA PALLARES-BURKE estudou e lecionou na Faculdade de
Educação da Universidade de São Paulo antes de se mudar para a Ingla­
terra, onde é associada do Centro para Estudos Latino-Americanos da
Universidade de Cambridge. Sua tese de doutorado, publicada em 1995,
foi um estudo do periódico inglês The Spectator. Desde então publicou
Nísia Floresta, O carapuceiro e outros ensaios de tradução dtltural (1996); uma
coletânea de nove entrevistas com historiadores: As muitas faces da história
(2000); e uma biografia intelectual do jovem Freyre, Gilberto Freyre: um
vitoriano dos trópicos (2005).
ISABELLE PANT IN é professora de Literatura Renascentista da Universidade
de Paris X Nanterre e participa do programa de pesquisa do Observatoire
de Paris (CNRS, SYRT E) na seção dedicada à História da Astronomia
e campos relacionados. Além de edições críticas de obras de Galileu e
Kepler, publicou La poésie du ciel en France (1995) e Les Fréart de Chantelou:
une familie d'amateurs au XVIIe siecle (1999). Seu projeto atual é um estudo
.
do pensamento cosmológico na Europa setentrfonal renascentista, de
Regiomontano a Tycho Brahe.
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SOBRE O LIVRO
Formato: 16 x 23 cm
Mancha: 27,9 x 44 paicas
Tipologia: lowan Old Style 10/14
Papel: Pólen Soft 80 g/m' (miolo)
Cartão Supremo 250 g/m' (capo)
l P edição: 2009

EQUIPE DE REALIZAÇÃO
Ediçõo ·de Texto
Morio Sílvio Mourão Neto (copidesque)
Tatiana Povanelli Valsi (preparação de original)
Alexandre Agnolon e Jean Xavier (revisão)
...
Editoração Eletrônico
Estúdio Bagori (Diagramaç6o)