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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO


ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

EMILIANO PALMADA LIU

O CONCEITO DE SOBREDETERMINAÇÃO EM LOUIS ALTHUSSER:


análise crítica de uma abordagem sobre a questão do método no
marxismo

GUARULHOS
2016
2

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO


ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

EMILIANO PALMADA LIU

O CONCEITO DE SOBREDETERMINAÇÃO EM LOUIS ALTHUSSER:


análise crítica de uma abordagem sobre a questão do método no
marxismo

Dissertação apresentada à Universidade Federal


de São Paulo, campus Guarulhos, como requisito
para obtenção do grau de Mestre em “Ciências
Sociais”, sob Orientação do Prof. Dr. Davisson
Charles Cangussu de Souza

GUARULHOS
2016
3

Ficha Catalográfica
4

EMILIANO PALMADA LIU

O CONCEITO DE SOBREDETERMINAÇÃO EM LOUIS ALTHUSSER:


análise crítica de uma abordagem sobre a questão do método no
marxismo

Dissertação apresentada à Universidade Federal de São Paulo,


campus Guarulhos, como requisito para obtenção do grau de
Mestre em “Ciências Sociais”.
Orientador: Prof. Dr. Davisson Charles Cangussu de Souza

Aprovado em 29 de setembro de 2016.

__________________________________________________________
Prof. Dr. Davisson Charles Cangussu de Souza
PPGCS - UNIFESP

__________________________________________________________
Prof. Dr. Sávio Machado Cavalcanti
IFCH - UNICAMP

__________________________________________________________
Prof. Dr. Henrique José Domiciano Amorim
PPGCS - UNIFESP
5

RESUMO

A presente dissertação tem como objeto central o estudo do conceito althusseriano


de sobredeterminação, tal como é importado da psicanálise e incorporado
(ressignificando-se) ao marxismo por Louis Althusser, com a finalidade de se pensar
o corte epistemológico radical que o filósofo francês pretende construir entre a
dialética marxista e a hegeliana. Para tanto, fez-se também necessária a leitura de
textos teóricos marxianos que se expressam mais diretamente sobre questões
relacionadas ao método dialético (teoria do conhecimento) e à formulação mais geral
sobre a teoria da história, com o propósito de cotejar criticamente tais
argumentações marxianas com a lógica que rege o uso conceitual da
sobredeterminação em Althusser. Por fim, o presente trabalho também comporta
um conjunto de reflexões críticas sobre as dificuldades epistemológicas nas quais,
ao nosso ver, Althusser incorre em diversos momentos ao formular e fazer uso do
referido conceito, principalmente a falta de distinção entre os conceitos de
determinação e contradição na obra marxiana.
Palavras-chave: Althusser, Sobredeterminação, Dialética, Contradição, Psicanálise,
Epistemologia, Teoria marxista da história
6

ABSTRACT

This work has as its central objective the study of the concept Althusserian
overdetermination, as imported from psychoanalysis and incorporated (resignifying
up) Marxism by Louis Althusser, for the purpose of considering the epistemological
radical cut that the french philosopher intends to build between Marxist and Hegelian
dialectics. To do so, it was also necessary to read Marxist theoretical
texts expressing more directly on issues related to the dialectical method (theory of
knowledge) and the more general formulation of the theory of history, for the purpose
of collating critically such Marxian arguments with the logic that governs the use of
conceptual overdetermination in Althusser. Finally, this study also includes a set of
critical reflections on the epistemological difficulties in which, in our view, Althusser
incurs several times to formulate and make use of the concept, especially the lack of
distinction between the concepts of determination and contradiction in Marxian work.
Keywords: Althusser, Overdetermination, Dialectic, Contradiction, Psychoanalysis,
Epistemology, Marxist theory of history.
7

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO 08
2 QUESTÕES DO MÉTODO EM MARX 25
2.1 A sobredeterminação e a teoria do método 25
2.2 A sobredeterminação e a teoria da história 42
3 DO CONCEITO DE SOBREDETERMINAÇÃO EM ALTHUSSER:
DESDOBRAMENTOS TEÓRICOS 50
3.1 Escritos de Althusser: delimitação do campo de pesquisa 50
3.2 Psicanálise e marxismo. 56
3.3 A teoria do corte epistemológico 67
3.4 A forma da dialética marxista: seu conceito e suas categorias sob a
ótica de Althusser 78
4 LIMITAÇÕES E DIFICULDADES NO USO DO CONCEITO DE
SOBREDETERMINAÇÃO EM ALTHUSSER 92
4.1 Monismo x pluralismo: a dialética entre a ordem e o caos 92
4.2 O exílio interno provocado pelo fechar-se em um círculo hermenêutico,
ou o milagre da partenogênese 95
4.3 O lugar de uma ausência 103
5 CONCLUSÃO 117
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 121
8

1 INTRODUÇÃO

A questão do método para a produção do conhecimento científico é das

mais importantes e controvertidas na história das ciências sociais 1. Positivismo,

racionalismo, materialismo, teoria da ação social, funcionalismo, estruturalismo...são

apenas alguns exemplos de correntes que, em maior ou menor medida, remetem o

leitor a certas ideias sobre procedimentos teóricos e metodológicos presentes nessa

história. O grande peso que a questão do método possui dentro desse campo

reside, em grande parte, na ideia de que um objeto de conhecimento possui

basicamente uma única verdade fundamental, e de que, por conta disso, apenas o

método verdadeiro será capaz de apreender e evidenciar a verdade essencial do

objeto. Em consequência disso, se explicam as muitas e intermináveis batalhas

teóricas que continuam sendo geradas e alimentadas dentro do nosso campo de

pesquisa, em razão de que cada teoria metodológica, na medida em que recorta e

assedia um objeto que não é exclusivamente seu, acusa os adversários de

incorreção, distorção ou má fé, e alça-se a si mesma como a verdadeira (o que nos

faz lembrar a conhecida advertência de Marx: "Assim como não se julga um

indivíduo pela ideia que ele faz de si próprio, não se poderá julgar uma tal época de

1
Mesmo no campo das ciências naturais essa questão gera muita controvérsia. Por exemplo, Paul
Feyerabend, filósofo da ciência, no seu livro "Contra o método" defende a posição de que o melhor é
adotar uma postura de "anarquismo epistemológico", entendido por ele como ensinamento que se
extrai do estudo da história das práticas científicas, história essa onde não se observa a repetição de
um mesmo padrão de procedimentos metodológicos na formulação de novos conhecimentos, mas,
ao contrário, a diversidade de práticas que são adotadas, muitas vezes, contra o modelo que é aceito
como racional e científico numa determinada época e lugar da história: "Assim, tudo o que podemos
dizer é que os cientistas procedem de muitas maneiras diferentes, que regras de método, se
explicitamente mencionadas, ou não são obedecidas de modo algum ou funcionam na maior parte
dos casos como regras práticas de proceder, e resultados importantes surgem da confluência de
realizações produzidas por tendências separadas e frequentemente conflitantes. A ideia de que "o
conhecimento 'científico' é, de algum modo, peculiarmente positivo e isento de diferenças de opinião"
(Campbell, 1957, p.21) não passa de uma quimera." (FEYERABEND, Paul. Contra o método. editora
unesp. 2º edição. 2011. p. 307)
9

transformação pela mesma consciência de si;..."2). É a partir das acusações ou das

apropriações críticas de processos metodológicos que vão ser construídas as

possíveis relações de endosso, endosso parcial, rejeição produtiva 3 ou

desqualificação e proscrição 4que um teórico vai estabelecer na sua relação com um

conjunto variado de teorias. E se aquela advertência é legítima para indivíduos e

para épocas no seu conjunto, parece válido que possa também ser aplicada para o

teórico que discursa sobre o método que adotou.

É em função de questões como essas que Althusser vai elaborar alguns

importantes posicionamentos sobre a prática teórica, suas possibilidades,

características e limitações, ora pontuando ideias de natureza mais comum dentro

da história do marxismo, ora avançando em novas ideias, sendo um dos propósitos

mais importantes dessa dissertação oferecer algumas respostas à seguinte

pergunta: até que ponto essas novas ideias, se de fato novas, avançam em relação

ao que já estava postulado na obra marxiana? Pergunta simples e ambiciosa, sem

dúvida, mas que pode nos trazer alguma luz sobre os caminhos mais heterodoxos

que o marxismo pode percorrer. Para ilustrar essa ambivalência entre o ortodoxo e o

heterodoxo na pesquisa marxista, tomemos por exemplo as batalhas teóricas que se

2
MARX, Karl. Contribuição à crítica da Economia Política. wmfmartinsfontes. 2016. Prefácio, p. 5-
6)
3
Um exemplo daquilo que se imagina ser a rejeição produtiva de uma teoria nos é dado pelo
comentário de Weber sobre o "Manifesto Comunista", ao afirmar que o "erro espirituoso" de suas
teses foi muito mais frutífero para o desenvolvimento da ciência do que muita "correção sem
espirituosidade". (WEBER, Max. O Socialismo. Texto incluído na coletânea Max Weber e Karl Marx.
Org. René E. Gertz. Editora Hucitec. 2º Edição. 1997, p. 264)
4
Essa desqualificação e proscrição pode também funcionar como critério revestido de parecer
técnico para permitir ou recusar o financiamento de pesquisas. Assim, a síntese do parecer da
CAPES relativa ao projeto “Crise do Capital e Fundo Público: Implicações para o Trabalho, os Direitos
e as Políticas Sociais”, apresentado ao Edital Procad 071/2013, envolvendo doutorandos, mestrandos
e graduandos da UnB, UERJ e UFRN. Justificativa do parecerista: “Projeto afirma basear-se no
método marxista histórico-dialético. Julgo que a utilização deste método não garante os requisitos
necessários para que se alcance os objetivos do método científico (…) considerando a metodologia a
ser empregada – cujos requisitos científicos não tem unanimidade – a proposta pode ser considerada
pouco relevante (…) a formação proposta estaria no âmbito do método marxista histórico-dialético,
cuja contribuição à ciência brasileira parece duvidosa.”
10

processam no campo das ciências sociais. Não são nunca disputas que se definem

por critérios técnicos puramente epistemológicos. As divergências intermináveis

evidenciam, sempre, um posicionamento de classe, uma escolha política que se faz

no contexto da luta de classes, a favor ou contra cada uma delas. Esse

posicionamento é decisivo para se determinar o alcance que pode ser atingido pelo

lançamento do olhar crítico sobre o objeto. Daí, em "Marx e Freud", a analogia entre

Maquiavel e Marx:

No entanto, essa mesma condição se entrelaça com uma tradição diferente,


cujos traços podem encontrar-se em Maquiavel, por exemplo, quando este
escreveu 'para conhecer os príncipes, é preciso ser povo'. Marx disse a
mesma coisa, no fundo, em toda a sua obra...E se tomamos as palavras de
maquiavel em sentido forte e as aplicamos à história de Marx e de sua obra,
poderemos dizer com justiça: é preciso ser proletariado para conhecer O
Capital. (ALTHUSSER, 2000, p. 81)

Temos assim um critério marxista dos mais clássicos, de caráter histórico e

objetivo, que ajuda a explicar o motivo pelo qual há profundas divergências de teoria

e de método dentro da ciência. É o tipo de critério usado com muita frequência para

fazer a clivagem entre ciência burguesa e ciência revolucionária. Mas esse não é o

único fator operativo. O posicionamento político no contexto das lutas de classe (que

vai se expressar no posicionamento político que se faz no contexto das lutas

teóricas5) não é suficiente para produzir o conhecimento científico. Há também a

5
A propósito desse tema cumpre dizer que nos textos de Pour Marx, bem como na edição original de
"Ler o Capital", Althusser formulava um entendimento bem específico sobre o estatuto teórico da
filosofia, tal como ele a perseguia: ela era entendida como a "Teoria (com "T" maiúsculo) da prática
teórica", ou seja, a produção teórica do método, a formulação conceitual da dialética em sua forma
marxista. No entanto, com o passar dos anos, vai se consolidando um certo movimento de autocrítica
que vai se expressando de modo cada vez mais definitivo, no prefácio de 1967 à edição italiana de
"Ler o Capital", nos seus "Elementos de Autocrítica", e também na nota de advertência ao leitor da
edição francesa de "Ler o Capital" do ano de 1975, base da nossa primeira tradução brasileira:
"...temos agora razões de sobra para pensar que uma das teses que apresentei sobre a natureza da
filosofia exprime uma tendência 'teoricista' certa, apesar de todos os esclarecimentos feitos. Mais
precisamente, a definição (dada em Pour Marx e invocada no prefácio de Ler o Capital) da filosofia
como teoria da prática teórica é unilateral e portanto inexata. De fato, não se trata de simples
equívoco de terminologia, mas de erro na própria concepção. Definir a filosofia de modo unilateral
como teoria das práticas teóricas (e, por conseguinte, como teoria da diferença das práticas) não
passa de uma fórmula que só pode suscitar efeitos e ressonâncias teóricas e políticas ou
'especulativas' ou 'positivistas'. " A partir daí, a filosofia não será mais identificada com a
11

necessidade de armar-se e enriquecer-se com os conhecimentos científicos e

culturais acumulados ao longo da história, preservados e transmitidos por obras,

instituições e tradições encarregadas de formar a camada social dos intelectuais de

uma determinada época:

(...) o socialismo marxista, levando a cabo o gigantesco trabalho teórico de


instauração e de desenvolvimento de uma ciência e de uma filosofia sem
precedente, só poderia resultar do trabalho de homens possuidores de uma
profunda formação histórica, científica e filosófica, de intelectuais de grande
valor. (ALTHUSSER, 1979, p. 14)

Entramos, assim, ainda sem nenhuma apresentação teórica, em contato

com o objeto central da presente monografia: o conceito de sobredeterminação, que

vai implicar, como veremos, na ideia de campos da superestrutura regidos por uma

autonomia relativa. Esse é um tema que aparece em outros teóricos de peso no

marxismo, e até que ponto se trata, de fato, de um aporte heterodoxo ao corpo da

obra marxiana é, como já se disse, uma das questões de que vamos tratar.

Ainda tocando com a ponta dos dedos o objeto de estudo da presente

dissertação, um dos aspectos mais importantes e fecundos que está presente em

diversos pontos dos desenvolvimentos críticos da teoria marxista, é o das

formulações teóricas e metodológicas do tema que, em Althusser, aparece sob o

conceito de sobredeterminação. A questão que é proposta por esse conceito, da

autonomia relativa das estruturas que estão presentes na vida de uma sociedade,

com as diferentes respostas que engendrou, aparece também em outros

importantes escritores marxistas, tal como, por exemplo, em Lukács 6, que opera com

epistemologia da Ciência, ganhará uma formulação radicalmente distinta, qual seja, a de política - ou
luta de classes - dentro da teoria.
6
A presença de uma mesma questão representada como um problema que exige pesquisa teórica
pode indicar a filiação de dois pensadores a um mesmo mestre, muito embora entre os dois possa
haver diferenças radicais de identidade epistemológica. Esse é o caso entre Althusser e Lukács,
antípodas no mundo do marxismo, indicação dada pelo próprio Althusser que, ao se referir a Lukács,
diz que este, ao tratar do tema da autonomia relativa das esferas de superestruturas, praticou um
"hegelianismo vergonhoso" (Althusser, A favor de Marx, 1979, p. 100).
12

a noção de “complexos relativamente autônomos” no interior da “totalidade social”.

Veja-se a propósito a seguinte passagem:

(...) podemos antecipar, ao que de mais concreto diremos em seguida,


apenas indicações muito gerais, extremamente abstratas, sobre a
verdadeira conexão no interior da totalidade social. Tendo concebido a
sociedade como um complexo, vemos agora que ela é composta, por sua
vez, de uma intrincadíssima rede de complexos heterogêneos que, por isso,
agem de modo heterogêneo uns sobre os outros. Basta pensar, por um
lado, na diferenciação em classes que se movem em sentido antagônico e,
por outro, nos sistemas de mediação (direito, Estado, etc.) que se
desenvolvem em complexos relativamente autônomos. Nesse tocante,
jamais se deve esquecer que também esses complexos parciais são, por
sua vez, formados por complexos, por grupos humanos e por indivíduos
humanos, cuja reação ao próprio mundo circundante – que constitui a base
de todos os complexos de mediação e diferenciação – repousa
7
irrevogavelmente sobre decisões alternativas.” (LUKÁCS, 2011, p. 404)

Interessante também é notar a presença forte dessa questão nas obras de

Gramsci, considerado como um importante teórico marxista das superestruturas. Na

própria formulação de uma questão o problema já pode se evidenciar:

Os intelectuais constituem um grupo social autônomo e independente ou


cada grupo social possui sua própria categoria especializada de
intelectuais? O problema é complexo por causa das várias formas que, até
nossos dias, assumiu o processo histórico real de formação das diversas
categorias intelectuais. (GRAMSCI, 1982, p. 3)

Não se pretende nesse trabalho aprofundar o conhecimento desse tema em

Lukács e Gramsci, mas sim tão somente ilustrar a sua presença e pertinência como

problema teórico estratégico no campo do marxismo. O que se pretende é proceder

a uma investigação teórica que trate da fecundidade e potencialidade implicada nos

desenvolvimentos e usos do tema que, em Althusser, aparece sob o conceito teórico

e metodológico de sobredeterminação. Buscaremos caracterizar, também, de que

modo ele aparece e opera, de forma mais ou menos latente, em textos da própria

obra marxiana, condição indispensável para a sua legitimação enquanto coerente

com os postulados teóricos e metodológicos enunciados por Marx. É preciso

7
Em seu opúsculo sobre o estudo do método em Marx, José Paulo Netto vai defender a ideia de que
foi Lukács quem melhor definiu o conceito de totalidade presente na obra marxiana (NETTO. José
Paulo, Introdução ao estudo do método de Marx. 2011).
13

observar ainda que não há a pretensão de esgotar as possibilidades de exploração

da noção de sobredeterminação, nem de indicar as múltiplas formas em que ela

possa estar presente nas diversas correntes e autores do pensamento marxista. O

objetivo, muito mais modesto, é o de indicar uma linha de pesquisa que possa ter

essas finalidades, contribuindo para desbravar o campo de um programa de

pesquisa que já foi elaborado e explicitado por Althusser, como estratégico para o

desenvolvimento crítico da teoria marxista, especialmente da sua lógica dialética. As

questões importantes que ao final devemos estar em condições de responder são as

seguintes: de que forma o conceito de sobredeterminação em Althusser inova ou

avança em relação às formulações marxianas sobre o método? Quais são as

principais limitações e dificuldades que são desencadeadas no processo de

exploração teórica desse novo conceito no marxismo?

Entretanto, pode-se iniciar com a seguinte questão: por quais razões esse

tema da sobredeterminação surge e permanece na obra marxiana, supostamente,

de forma apenas embrionária e explicitado apenas em linhas gerais, ao menos no

que diz respeito à sua formulação em linguagem metodológica?

Já foi muitas vezes apontado que, ao observar o curso da sua trajetória

teórica e política, surgem diversos indícios de que Marx se sentia fortemente

pressionado por um sentido de urgência, para que, o quanto antes, pudesse

terminar a elaboração e exposição científica da sua obra sobre o modo de produção

capitalista e a sociedade burguesa. Ao que parece, ele nutria uma profunda

convicção a respeito do caráter iminente da revolução proletária, que já estaria

amadurecida, na segunda metade do século XIX, para eclodir na primeira

oportunidade. Isso pode ser observado em algumas passagens da sua obra, bem

como em trechos da sua correspondência e na sua biografia, dos quais extraímos as


14

seguintes ilustrações:

Na já mencionada carta a Engels de dezembro de 1857, Marx refere-se


justamente aos Grundrisse ao informar que 'trabalho como um louco […] na
síntese dos meus estudos econômicos' para ao menos ter claros os
'esboços antes do dilúvio'. Os seus estudos de economia política desde o
início tiveram o propósito de investigar a estrutura, a dinâmica e as
contradições da economia capitalista, pois as crises daí decorrentes
constituem, em sua opinião, aberturas para as práticas revolucionárias e
transformadoras. Compreende-se, portanto, que o prognóstico de uma crise
econômica iminente – o 'dilúvio' – forneceu a Marx estímulo para pôr no
papel as descobertas de longos anos de estudos de economia política e dar
uma primeira forma à sua crítica. (DUAYER apud MARX, 2011, p.16)

Também, um pequeno episódio da vida de Marx na Inglaterra, nação que ele

considerava seria a provável vanguarda da revolução proletária mundial, narrado por

Edmundo Wilson:

Em junho de 1855, foi aprovada uma lei que, para manter os trabalhadores
sóbrios, proibia a venda de cerveja aos domingos; e o povo londrino passou
a reunir-se todos os domingos no Hyde Park, formando multidões de 250 a
500 mil pessoas, gritando com rebeldia 'vão para a igreja!' para a gente
elegante que lá passava o dia. Marx foi logo achando que aquilo era 'o início
da revolução inglesa', e participou tão ativamente nas manifestações que
uma vez só não foi preso porque conseguiu confundir o policial com uma de
suas argumentações irrespondíveis. Mas o governo voltou atrás, liberando a
cerveja dominical e a agitação não deu em nada. (WILSON, 1986, p. 197)

A constatação e o reconhecimento desse possível sentido de iminência

histórica e urgência teórica, que pressionava Marx a avançar a construção da sua

obra sobre o capital, pode constituir uma importante hipótese explicativa (embora

não exclusiva), dos motivos pelos quais a sua escrita vai se concentrando, com

exclusividade crescente, na crítica da economia política clássica, empurrando para

as margens as preocupações de elaboração teórica dos problemas e questões

referentes à teoria da sua prática metodológica, que desponta eventualmente em

formulações intensamente condensadas Mas essa não é a única hipótese possível. 8

8
Em "Ler o Capital", Althusser relativiza essa ideia de "falta de tempo" para explicar o motivo pelo
qual Marx não nos deu, em forma acabada e definitiva, a sua dialética. Segundo nosso autor, a falta
desse desenvolvimento formal e conceitual pode evidenciar, antes, uma das dificuldades típicas que
uma ciência nova enfrenta no seu nascimento, de ter que lidar com referências e recursos teóricos
que configuram um contexto teórico objetivo muito inadequado e que vai se tornando cada vez mais
obsoleto, exigindo-se, historicamente, um certo tempo para a maturação: "Toda a história dos inícios
das ciências ou das grandes filosofias mostra, que o conjunto exato dos conceitos novos não desfila
em parada, na mesma linha; que, pelo contrário, alguns se fazem esperar por muito tempo, ou
15

Podemos também conjecturar com o fato de que Marx não era um teórico da

academia, e, por conta disso, não sofria as mesmas pressões institucionais que um

profissional da universidade eventualmente pode vir a sentir para formular de um

modo mais explícito os seus processos de trabalho9. Como teórico, Marx era um

intelectual organicamente vinculado às organizações de luta do proletariado, que,

em regra, tem um interesse muito mais "prático" nos ganhos que uma obra escrita

pode proporcionar. Diante disso, devem-se ressaltar ao menos duas consequências

de grande interesse para a perspectiva do nosso objeto de estudo:

1) Considerando sobretudo os textos da maturidade, embora as elaborações

da teoria do método não estejam explicitadas e manifestas numa forma completa,

detalhada e definitiva, as concepções e procedimentos metodológicos estão sendo

rigorosa e sistematicamente praticados. A partir desse reconhecimento, abre-se um

campo de possibilidades para a investigação marxista das questões do método,

constituindo um importante ramo do seu desenvolvimento histórico. Esse ponto foi

claramente evidenciado por Althusser:

O momento da Teoria da prática teórica, isto é, o momento em que uma


'teoria' sente a necessidade da Teoria da sua própria prática, - o momento
da Teoria do método em sentido geral – chega sempre demasiado tarde,
para ajudar a superar dificuldades práticas ou 'teóricas', a solucionar
problemas insolúveis pelo jogo da prática imersa nas suas obras, por

desfilam em vestimentas de empréstimo, antes de vestir sua roupa ajustada - pelo tempo que a
história não tenha fornecido nem o tecido nem o costureiro" (ALTHUSSER, Louis. Ler o Capital.
Zahar. 1979, p. 54). No caso do objeto da presente dissertação - o conceito de sobredeterminação -
pretende-se que seja uma roupa mais ajustada para o corpo da dialética marxista, e Althusser o seu
costureiro.
9
Em seu livro, Edmund Wilson conta que, por volta de 1837, quando Marx ainda trocava
intelectualmente com os jovens hegelianos, Bruno Bauer, professor na universidade de Bonn, havia
prometido um cargo para Marx, o que não foi possível pois, antes disso, o primeiro já havia perdido o
seu posto por conta das suas atividades anti-religiosas e pró-constitucionais: "Assim, a possibilidade
de que o mais talentoso filósofo da nova geração na Alemanha - a respeito do qual alguém já dissera
que, assim que pisasse numa sala de aula, todos os olhos da Alemanha estariam voltados para ele - ,
a possibilidade de que o jovem dr. Marx seguisse o exemplo de seus grandes predecessores, Kant,
Fichte e Hegel, e expusesse seu sistema de um púlpito acadêmico, foi destruída para sempre."
(Wilson, 1986. pág. 120). Quiçá, como professor universitário, a obra marxiana tivesse tomado outro
rumo, e tivéssemos hoje talvez uma parte mais desenvolvida de textos metodológicos. Mas sabe-se
lá com que prejuízos...
16

conseguinte, teoricamente cega, ou para enfrentar uma crise ainda mais


profunda. Mas a ciência pode realizar a sua tarefa, isto é, produzir
conhecimentos, por muito tempo, sem sentir a necessidade de construir a
Teoria daquilo que faz, a teoria da sua prática, do seu 'método'. Vejam
Marx. Escreveu dez obras e esse monumento que é O Capital se, jamais
escrever sobre 'Dialética'. Falou que iria escrever sobre isso, mas não o fez.
Jamais encontrou tempo para fazê-lo. O que quer dizer que não o encontrou
porque a Teoria da sua própria prática teórica não era, então, essencial ao
desenvolvimento da sua teoria, isto é, à fecundidade da sua própria prática
(ALTHUSSER, 1979, p. 151)

2) Apesar de não ter se dedicado diretamente à construção de uma obra

teórica que pudesse tratar centralmente e de um modo mais exaustivo sobre a teoria

do seu método, os textos marxianos nos legaram “produções marginais” de suma

importância para a indicação desse caminho, tais como o prefácio à “Contribuição à

Crítica da Economia Política”, “O Método da Economia Política”, nos “Grundrisse”, o

posfácio à segunda edição do Livro I de "O Capital", e também o prefácio ao Livro II

de "O Capital", escrito por Engels, este último uma indicação tardia em Althusser,

para a retificação da ideia (isso será abordado nesse trabalho) segundo a qual

Engels não entendia corretamente o tema da "inversão" da dialética hegeliana como

uma mudança de elemento ou de problemática. Esse conjunto disperso de textos

pequenos, mas por vezes extremamente concisos, complicados e de difícil leitura e

entendimento, abordando mais diretamente questões de metodologia, foram e

continuam sendo de suma importância para a fundação de um programa de

pesquisa sobre processos metodológicos do marxismo, indicando temas e caminhos

para a investigação de cunho mais epistemológico. São 4 textos que, formando um

quadrilátero, cercam o terreno de escritos metodológicos marxianos indicados

explicitamente por Althusser como a base sobre a qual se constituiu a sua teoria do

corte epistemológico e da sobredeterminação.

Vejamos isso, nesse momento, de um modo apenas panorâmico, como que

sobrevoando essa região e apontando alguns lugares mais importantes nessa

paisagem. Os comentários genéricos a seguir serão retomados com mais


17

aprofundamento ao longo dos capítulos da presente dissertação, sempre que isso se

revele indispensável para o entendimento do nosso tema.

No prefácio da "Contribuição à Crítica da Economia Política", além de

pontuar alguns dos mais importantes momentos do seu percurso teórico (o estudo

da legislação sobre o roubo de lenha e a situação dos camponeses da região do

Mosela, o encontro com a Economia Política clássica e o acerto de contas com a

ideologia alemã), Marx nos dá a formulação mais direta e concisa dos princípios,

conceitos e categorias da teoria que nos é conhecida como materialismo histórico.

Aqui temos as seguintes questões: a relação entre a estrutura e a superestrutura, o

modo de produção como forças produtivas e relações de produção, o princípio da

relação de determinação entre o ser e a consciência, a revolução social como

produto do que se convencionou chamar de determinação em última instância: a

contradição entre as forças produtivas e as relações de produção. Retomar de certa

forma as formulações contidas nesse texto, para nós, se faz uma tarefa

indispensável, na medida em que o conceito de sobredeterminação tem, como uma

de suas finalidades, explorar a ideia de que além da contradição atuante como

determinação em última instância, as esferas que se erguem na superestrutura

acabam por produzir uma lógica, um conjunto de instâncias e de contradições que

lhe são próprias, e que vão sustentar o efeito da sua autonomia relativa, que se

combina com todas as outras esferas para gerar o efeito da sobredeterminação.

Uma das consequências disso é o fato de que, como Althusser procura evidenciar

na leitura leninista da Revolução Russa, a revolução deixa de ser o resultado de

uma contradição simples, e passa a ser o resultado de um conjunto complexo e

sobredeterminado de múltiplas contradições.


18

Já no texto sobre o "Método da Economia Política"10, o mesmo tema é

abordado, mas com uma perspectiva diferente. A questão agora, abordada de forma

altamente concisa e abstrata, é o processo de produção do conhecimento científico

de uma determinada sociedade. Alguns dos temas mais importantes: o movimento

que é percorrido pelo pensamento e que vai do concreto imediato ou representado,

para conceitos e categorias de determinação cada vez mais simples e abstratas e

que, a partir daí, volta para o concreto, se elevando ao concreto pensado, concreto

como síntese de múltiplas determinações. É interessante notar que, aqui, a volta

para o concreto é postulada como um momento de elevação sobre a elevação, o

que pode ser entendido no sentido de que os princípios de física da primeira

natureza (orgânica e inorgânica) não são os mesmos e não se aplicam às imagens e

terminologias da física quando operam na segunda natureza (a sociedade histórica

como produto da determinação)11. Além desse tema, que constrói a diferença entre

o concreto imediato ou representado e o concreto de pensamento, também o tema

da diferença entre as categorias na sua função de determinação em uma formação

social específica e o momento do seu aparecimento histórico, ou seja: o processo de

gênese histórica das categorias, em ordem cronológica, não é o objeto principal de

conhecimento na crítica da economia política clássica. E, por fim, com base nessas

10
Esse texto pode ser encontrado em duas edições diferentes: na "Contribuição à Crítica da
Economia Política", na parte intitulada "Introdução à Crítica da Economia Política", tópico 3; e também
nos "Grundrisse", Introdução, tópico 3. Ambas as edições estão referenciadas na lista bibliográfica da
presente monografia.
11
Certas passagens desse texto é que podem dar ao entendimento a imagem de um movimento de
duas elevações, e, dentro dessa imagem, simultaneamente, a ideia de um movimento de ida e volta.
Assim, Marx primeiro diz: "...do concreto representado [chegaria] a conceitos abstratos [Abstrakta]
cada vez mais finos, até que tivesse chegado às determinações mais simples. Daí teria de dar início à
viagem de retorno...". Aqui, portanto, a ideia de ida e volta. Logo em seguida, Marx nos diz: "...o
método de ascender do abstrato ao concreto é somente o modo do pensamento de apropriar-se do
concreto...". Aqui, por sua vez, a ideia da elevação. Temos assim, portanto, o caminho do abstrato
para o concreto, que deve ser percorrido pelo pensamento científico, representado de modo
ambivalente pelas imagens de retorno e de elevação. O retorno ao concreto significando uma
elevação. Poderia ser mais um prato cheio para os exercícios althusserianos de Leitura Sintomal, que
será explicada em outro momento dessa dissertação.
19

considerações de método, a diferença que se estabelece também entre o método de

pesquisa e o método de exposição no marxismo. Todas essas questões são de

enorme importância na consideração do conceito de sobredeterminação, que

também é entendido por Althusser como resultado do processo de pensamento. Mas

aqui entram algumas dificuldades: ora Althusser trabalha a sobredeterminação

dentro da chave do prefácio referido no parágrafo anterior; ora o trabalha dentro da

chave do texto sobre o método referido por esse parágrafo. Há portanto, no nosso

entendimento, uma certa confusão entre os conceitos de contradição e de

determinação. Não são duas coisas separadas, mas são uma mesma coisa em dois

momentos distintos, e uma das metas ao final é detalhar na conclusão o significado

dessa dificuldade que agora só enunciamos.

Por fim, para terminar esse sobrevoo que pretende apenas mostrar os

canais de comunicação entre o conceito de sobredeterminação e as formulações

metodológicas presentes no corpo da obra marxiana, temos o posfácio à segunda

edição do Livro I de "O Capital". Nesse texto, Marx expõe resumidamente a sua

análise de que a dialética, em Hegel, está de cabeça para baixo, e que o movimento

de invertê-la e a pôr sobre os pés torna possível extrair o cerne racional que se

esconde dentro do seu envoltório místico. Como veremos mais adiante, é por meio

da crítica dessa ideia de inversão e de extração de um conteúdo racional que já

existiria em Hegel, que Althusser vai fundamentar a sua tese de um corte

epistemológico, a separar radicalmente a dialética marxista de sua predecessora,

justificando, dentro da primeira, o seu conceito de sobredeterminação, estranha em

absoluto à segunda.

Sendo assim, querendo também trilhar o caminho que já foi aberto por

diversas correntes teóricas do marxismo que se ocuparam, ao longo do tempo, com


20

as questões da teoria e da prática do método em Marx, o que se propõe como objeto

aqui é abordar uma das suas problemáticas, que se prefere designar, junto com

Althusser, por toda fecundidade, riqueza e complexidade que ela carrega, como os

princípios e as formas da sobredeterminação.

Sabe-se aqui que a proposta de estudo que rege essa dissertação é por

demais ambiciosa. Pode acabar causando o desagradável sentimento de antipatia

por parte do leitor, pela impressão de arrogante presunção que pode provocar.

Certos temas que existem desde o princípio no marxismo - e que talvez, nos seus

começos, fossem debatidos com mais liberdade - hoje já se converteram em temas

clássicos, por vezes quase que sagrados, diante dos quais se é chamado a sentir

imediatamente os tremores de um contato temeroso. A dialética, sem dúvida,

pertence a essa categoria de temas. É claro que isso não acontece por acaso. Uma

grande massa de escritos teóricos, de inestimável valor e relevância, muitos deles

de produção acadêmica, vem sendo acumulada há mais de um século sobre uma

questão que sempre esteve muito longe de ser popular e facilmente acessível. É um

mar imenso que separa o discurso acadêmico da conversa do dia a dia. E falar

sobre a dialética nos dias de hoje significa, assim, o desejo e a competência para ao

menos conseguir enfrentar a corrente principal dessa massa de escritos de conteúdo

teórico altamente abstrato, o que, sem nenhuma dúvida, não é algo que dependa

apenas da boa vontade de alguém. Na presente dissertação, não se chega nem

perto de trazer e confrontar todas as obras importantes que falam sobre o tema que

foi escolhido, muito embora vão aparecer diversas referências bibliográficas que

também são úteis como elos que fazem a ligação com essas correntes caudalosas

que se somam nesse grande empreendimento que é falar sobre a dialética. Sendo

assim, por escrúpulos de honestidade, achamos por bem tentar justificar um trabalho
21

de pesquisa com as limitações que acabam de ser apontadas. Em primeiro lugar,

trata-se de uma dissertação e, como tal, pode ser entendida e acolhida stricto sensu:

como exercício para discorrer sobre um determinado tema, e, como tal, ser avaliado

pelo seu rigor teórico, científico e formal. Pensamos que todos esses critérios podem

ser atendidos mesmo quando o propósito é fazer, de alguma forma, a releitura de

um clássico, e desde que haja uma preocupação mínima para dialogar com um

conjunto de autores que são reconhecidos como relevantes no contexto acadêmico

de hoje. Em segundo lugar, para evitar que esses temas clássicos, quase sagrados,

que se colocaram em alturas quase que inacessíveis, e que, nessa condição,

despertam muitas vezes o interesse de quem ainda está muito embaixo, sejam o

motivo de um abandono pedagógico prematuro, pelo receio de pisar com pés

pequenos sobre as mesmas pegadas de outros pés, maiores, que já marcaram os

seus passos nas areias da história. Nesse sentido, o que diz o professor de filosofia

Serenus Zeitblom, personagem narrador do romance "Doutor Fausto", de Thomas

Mann:

Fugas, contraponto, Eroica, 'confusão causada por modulações


excessivamente coloridas' - no fundo tudo aquilo parecia-nos um sussurro
de fábulas, mas gostávamos tanto de ouvi-lo, com os olhos arregalados,
assim como crianças espiam coisas incompreensíveis, virtualmente
impróprias para elas. Isso nos divertia então muito mais do que assuntos
mais corriqueiros, mais adequados, mais correspondentes a nosso nível.
Acreditarão em mim se disser que essa é a maneira mais intensa, mais
soberba, quiçá mais propícia, de aprendermos algo - a aprendizagem
antecipadora, a que passa por cima de vastas áreas de ignorância? Na
minha função de pedagogo, eu não deveria recomendá-la, porém sei, afinal
de contas, que a juventude a prefere irrestritamente e tenho para mim que o
espaço saltado com o tempo se preencherá por si mesmo." (MANN, 2015,
p. 71)

Segue abaixo o plano geral de execução para cada capítulo:

No primeiro capítulo, vamos retomar principalmente dois dos textos de Marx

que se relacionam diretamente com o nosso objeto de estudo: o texto sobre "O

Método da Economia Política", e o prefácio da "Contribuição à Crítica da Economia

Política". Desses textos, serão destacados apenas os argumentos que nos ajudam a
22

problematizar a interrogação que nos pudemos para responder: até que ponto, ou

em que ponto, o conceito althusseriano de sobredeterminação avança ou elabora

um discurso diferente em relação às formulações teóricas que já foram explicitadas

ou indicadas por Marx? Ou será que não passa da reprodução de uma ideia já

estabelecida pela obra marxiana, vestida com de uma nova roupagem?

No segundo capítulo, vamos aprofundar e detalhar a formulação e o uso do

conceito de sobredeterminação em Althusser, tomando por base os seguintes dos

seus escritos: "A Favor de Marx"; "Freud e Lacan"; "Marx e Freud", e "Ler o Capital".

Veremos aqui de que modo a sobredeterminação é entendida como o produto de um

corte epistemológico operado por Marx, e que separou radicalmente a sua dialética

da hegeliana, exigindo, por isso, novos conceitos e categorias para o uso

epistemológico, que Althusser vai buscar em Mao Tsé-Tung e Lênin. Há uma outra

questão de grande interesse que vamos abordar nesse capítulo: a tomada de

empréstimo do conceito de sobredeterminação, que Althusser vai buscar na

psicanálise freudiana, e que se constitui, desse modo, em tema para a elaboração

de analogias entre o seu uso lógico em Freud e no marxismo.

Por fim, para o terceiro capítulo, faremos retomar e acrescentar as questões

que de alguma forma definem as dificuldades e limitações implicadas na formulação

e no uso do conceito de sobredeterminação em Althusser. Esses apontamentos

poderão servir de base para o esboço de um roteiro que indique alguns possíveis

caminhos para a pesquisa sobre questões de método no marxismo.

Para tentar desfazer uma falsa impressão que essa introdução já possa ter

causado, não se pode esquecer que esse tipo de pesquisa teórica, dedicada a

questões metodológicas com elevado grau de abstração, não significa um interesse

puramente contemplativo sobre o processo de elaboração teórica de um grande


23

pensador. Tal como indicado por Althusser na citação que foi transcrita mais acima,

a necessidade de desenvolvimento e atualização da teoria do método se faz sentir

diante de “dificuldades práticas ou 'teóricas'”, “problemas insolúveis”, “para enfrentar

uma crise ainda mais profunda...”. Se levarmos em conta, estritamente, o que diz o

texto marxiano sobre a estrutura e a dinâmica de evolução do modo de produção

capitalista, em sua forma mais lógica e pura, o seu movimento histórico já deveria ter

culminado numa crise tão aguda e violenta que já teria resultado, ou na sua

completa destruição sem nada para pôr no lugar, ou na emergência revolucionária

de uma nova forma de sociedade. Vejamos, para ilustrar esse ponto, a seguinte

passagem de Marx, onde se caracteriza a lógica do desenvolvimento do capital

como contradição em processo, e que se relaciona aos princípios do

desenvolvimento das forças produtivas, aumento progressivo da extração do mais

valor relativo e a queda tendencial da taxa de lucro:

Tão logo o trabalho na sua forma imediata deixa de ser a grande fonte da
riqueza, o tempo de trabalho deixa, e tem de deixar, de ser a sua medida e,
em consequência, o valor de troca deixa de ser [a medida] do valor de uso
(…) Com isso, desmorona a produção baseada no valor de troca, e o
próprio processo de produção material imediato é despido da forma da
precariedade e contradição. [Dá-se] o livre desenvolvimento das
individualidades e, em consequência, a redução do tempo de trabalho
necessário não para pôr trabalho excedente, mas para a redução do
trabalho necessário da sociedade como um todo a um mínimo, que
corresponde então à formação artística, científica, etc. dos indivíduos por
meio do tempo liberado e dos meios criados para todos eles. O próprio
capital é a contradição em processo, [pelo fato] de que procura reduzir o
tempo de trabalho a um mínimo, ao mesmo tempo que, por outro lado, põe
o tempo de trabalho como única medida e fonte da riqueza (…) As forças
produtivas e as relações sociais – ambas aspectos diferentes do
desenvolvimento do indivíduo social – aparecem somente como meios para
o capital, e para ele são exclusivamente meios para poder produzir a partir
de seu fundamento acanhado. De fato, porém, elas constituem as
condições materiais para fazê-lo voar pelos ares. (MARX, 2011, p. 587)

A forma específica e concreta do capitalismo, tal como existia e foi

observada por Marx na Europa do século XIX, e que serviu de objeto para a

construção do seu edifício teórico, não pode servir como modelo imediato para

interpretarmos o capitalismo dos nossos dias, nem os seus efeitos em termos de


24

prognósticos teóricos. Embora seja necessário reconhecer que a teoria marxiana

conquistou o mérito histórico de formular, em linhas definitivas e permanentes,

muitas das formas estruturais, categorias e a lógica de funcionamento que

continuam operando como espinha dorsal dos desenvolvimentos da sociedade

burguesa, as formas mais concretas e específicas desses desenvolvimentos, sua

carne, seus músculos, nervos periféricos, acúmulos adiposos e epiderme,

representam os modos historicamente diversificados da sua reprodução ampliada,

respondendo às crises e desafios impostos pelo mecanismo da contradição em

processo com soluções concretas e particulares de uma plasticidade provavelmente

inimaginável para o próprio Marx, exigindo, por conta disso, uma releitura crítica do

conjunto das previsões marxianas sobre o seu colapso, não pelo motivo leviano e

apressado de que estivessem simplesmente equivocadas, mas, sobretudo, porque

as formas do desenvolvimento histórico da sociedade burguesa foram se revelando,

cada vez mais, sob aquele caráter extremamente plástico, capaz de abrir um leque

de variadas possibilidades para dar conta de suas próprias crises. Essas reflexões,

já por si mesmas, apontam para a importância estratégica das pesquisas referentes

aos princípios e às formas da sobredeterminação na teoria marxista.

Continuar, portanto, com as pesquisas em teoria do método marxista, é

indispensável para atualizar permanentemente o conhecimento científico da

sociedade burguesa em toda a sua complexidade cambiante, resguardando, para

não perder o núcleo duro desse conhecimento, a referida espinha dorsal legada pela

obra teórica marxiana, bem como seguindo a trilha dos seus apontamentos

metodológicos, que permaneceram ainda embrionários ou muito condensados. O

contínuo movimento de releitura e atualização dos conhecimentos sobre as

modalidades de desenvolvimento da sociedade burguesa é condição sine qua non


25

para a revisão e atualização das estratégias de resistência e luta nos diferentes

campos sociais. O prognóstico, na teoria marxista, não pretende ser a afirmação de

um futuro teleologicamente inevitável; mas vai se constituindo, com força cada vez

maior, como horizonte de uma estratégia historicamente possível.

Assim se expressa Alain Badiou sobre a “hipótese comunista”:

Minha convicção se esclarece com uma comparação. Consideremos um


problema científico que, enquanto não é resolvido, pode assumir a forma de
uma hipótese. Por exemplo, o 'teorema de Fermat', do qual podemos dizer
que é uma hipótese, se formulado da seguinte maneira: 'Para n > 2,
suponho que a equação xn + yn = zn não tem solução inteira (solução em
que x, y e z são números inteiros)'. Entre Fermat, que formulou a hipótese
(ele afirmava que a havia demonstrado, mas isso é outra história), e Wiles,
o matemático inglês que realmente demonstrou o teorema alguns anos
atrás, houve inúmeras tentativas de justificação. Muitas serviram de ponto
de partida para desenvolvimentos matemáticos de longuíssimo alcance,
embora não tenham resolvido o problema em si. Mas foi fundamental que a
hipótese não tenha sido abandonada durante os três séculos em que foi
impossível demonstrá-la. A fecundidade desses fracassos, de sua análise,
de suas consequências, estimulou a vida matemática. Nesse sentido, o
fracasso, desde que não provoque o abandono da hipótese, é apenas a
história da justificação dessa hipótese. (BADIOU, 2012, p. 10)

Essa dissertação expressa, portanto, para concluir essa introdução, o desejo

de mergulhar nessa poderosa corrente histórica que é o marxismo desde o século

XIX, e que tem como um de seus afluentes mais importantes a pesquisa científica

em questões de teoria e de método.


26

2 QUESTÕES DO MÉTODO EM MARX

Se quisermos começar com um jogo de palavras podemos dizer que o

conceito de sobredeterminação, para ser entendido em toda sua complexidade, é

um conceito sobredeterminado. Principalmente por duas determinações

convergentes que, embora falem sobre a mesma questão, o fazem de um modo

diferente. Esses dois modos distintos de se falar sobre uma mesma questão, nesse

caso, são o que conhecemos pelos nomes de materialismo histórico e materialismo

dialético. O que se procura demonstrar no presente capítulo é o como que em

Althusser essas duas determinações (o materialismo histórico, tal como

sinteticamente formulado no texto do prefácio a "Contribuição à Crítica da Economia

Política; e o materialismo dialético, representado, principalmente, pelo texto sobre "O

Método da Economia Política") acabam por disputar o peso maior do significado e

efeito epistemológico que se produz com a definição e o uso do conceito de

sobredeterminação, como se esse estivesse amarrado pelos braços e pelas pernas

a dois cavalos que se esforçam por correr em disparada à força de chicotadas, em

direções opostas. E, sendo assim, ou o conceito de sobredeterminação se

despedaça, ou resiste na base de um alto grau de tensionamento.

2.1 A sobredeterminação e a teoria do método

Em "Ler o Capital", um dos pontos mais altos e interessantes da

argumentação desenvolvida por Althusser é quando se constrói a diferença entre o

objeto real e o objeto de conhecimento, o que, por implicação, serve de base para se

postular a diferença entre o processo de conhecimento do empirismo e o da

dialética. Althusser começa pela definição do esforço de conhecimento operado

pelos empiristas, e que se caracteriza pela diferença que se estabelece, dentro do

círculo do objeto real, entre a sua aparência e a essência real, o conteúdo


27

inessencial e o essencial, sendo que a essência verdadeira está escondida, velada,

por detrás da aparência ou conteúdo inessencial do objeto real. Diante de tal objeto

real, que mantém escondida a sua essência real (e a repetição reiterada do termo

"real" é um dos indicativos da identidade entre objeto real e objeto de

conhecimento), qual seria o trabalho de produção do conhecimento para os

empiristas? Seria um trabalho de abstração, abstrair a essência real separando-a do

objeto real, o conteúdo essencial e verdadeiro da casca inessencial e falsa, o

caminho que se percorre do concreto para o abstrato12. Esse trabalho

epistemológico de abstração é ilustrado por Althusser por meio de imagens de

extração que nos serão familiares:

Com efeito, todo o processo empirista do conhecimento reside na operação


do sujeito denominada abstração...Assim como o ouro antes de sua
extração existe como ouro não-separado de sua ganga em sua própria
ganga, também a essência do real existe como essência real no real que a
13
contém." (ALTHUSSER, 1979, P. 36)

E aqui uma dúvida já nos surpreende, pois essa imagem ilustrativa do

propósito de abstrair ou extrair a essência real de sua ganga ou invólucro aparente e

inessencial, é justamente a imagem e os termos empregados por Marx, no seu

posfácio à segunda edição do Livro I de "O Capital", referindo-se ali à necessidade

de se inverter a dialética de Hegel e colocá-la sobre pés materialistas. Pois, com

12
Que esse procedimento seja de fato o resumo epistemológico correto do empirismo é questionado
por E. P. Thompson, em uma nota na qual reproduz Kolakowski: "Ver Hans Kolakowski, "Althusser's
Marx", Socialist Register, 1971, pp. 124-125: "O leitor com um conhecimento elementar de história da
filosofia notará imediatamente que aquilo que Althusser entende por "empirismo" bem poderia ser
considerado como a teoria aristotélica ou tomista da abstração, mas que o empirismo moderno -
iniciado não por Locke, mas pelo menos com os nominalistas do séc. XIV - significa exatamente o
oposto dessa ideia." (Thompson. A miséria da teoria, p. 218)
13
O entendimento segundo o qual o processo empirista significa um movimento de abstrair a
essência real do objeto real dialoga diretamente com a crítica do método da economia política
clássica no séc. XVII feita por Marx: "Os economistas do séc. XVII, p.ex., começam sempre com o
todo vivente, a população, a nação, o Estado, muitos Estados, etc., mas sempre terminam com
algumas relações determinantes, abstratas e gerais, tais como divisão do trabalho, dinheiro, valor,
etc., que descobrem por meio da análise." (Marx. GRUNDRISSE, 2011. p. 54). É a essa crítica que
Gianotti chama de combate ao "método indutivo em economia política", feito por Marx. (Giannotti.
Exercícios de Filosofia, 1975. p.88).
28

esse movimento de inversão, se poderia descobrir "o cerne racional dentro do

invólucro místico" (Marx. 2013. pg.91). Althusser vai explicar o uso dessa linguagem

do empirismo por Marx fazendo uso da sua teoria da Leitura Sintomal (que será

melhor explicada no próximo capítulo), e afirmando que é outro, muito diverso, o

procedimento de trabalho que Marx na prática adota:

(...) Marx, por motivos que analisamos, teve de servir-se dela para pensar a
falta de um conceito do qual, no entanto, ele havia produzido os efeitos,
para formular a questão (ausente), isto é, esse conceito, ao qual, contudo,
deu a resposta em suas análises de O Capital; que essa problemática
sobreviveu ao uso pelo qual Marx a torceu, destorceu e transformou de fato,
ao mesmo tempo que recorrendo aos seus termos (aparência e essência,
exterior e interior, essência interna das coisas, movimento aparente e
14
movimento real, etc.)..." (ALTHUSSER, 1979, p. 39)

Enfim, o uso empirista de tal processo de produção do conhecimento, que

identifica o objeto real e o objeto de conhecimento, e que faz do segundo o resultado

de um trabalho de abstração sobre o primeiro, é atribuído por Althusser aos

empiristas ingleses do séc. XVIII ("Locke e Condillac"), e também, "por mais

paradoxal que isso possa parecer" (Althusser. 1979. pg. 39), a Hegel. Com Spinosa

e Marx, contudo, o entendimento sobre o processo de pensamento que produz

conhecimento muda radicalmente de figura. É aqui que Althusser passa a dialogar

diretamente com o texto sobre "O Método da Economia Política", de Marx. Nessa

nova chave, há uma diferença epistemológica entre o objeto real e o objeto de

conhecimento. O primeiro existe de um modo que independe em absoluto de

qualquer forma de pensamento, consciência ou percepção, sendo o resultado dos

processos materiais, objetivos, naturais e históricos. São esses processos que

determinam a sua gênese e conformação histórica.15 Já o objeto de conhecimento,

14
O curioso, nesse caso, é que o texto sobre "O método da Economia Política", que estamos
examinando, representa a elaboração mais racional e consciente do método dialético em oposição ao
método empírico, mesmo que de forma muito sintética, e serve de base para a formulação
althusseriana do conceito de "objeto de conhecimento".
15
Assim o diz Marx: "O sujeito real, como antes, continua a existir em sua autonomia fora da cabeça;
isso, é claro, enquanto a cabeça se comportar apenas de forma especulativa, apenas teoricamente.
29

por sua vez, tem como objetivo produzir o concreto como concreto pensado, síntese

de múltiplas determinações, o caminho indicado por Marx como sendo do abstrato

para o concreto16, o inverso do peso que é jogado aos procedimentos de abstração

dos empiristas:

(...) Marx defende a distinção entre o objeto real (o concreto-real, a


totalidade real que 'subsiste em sua independência no exterior da cabeça
(kopf) antes e depois' da produção do seu conhecimento) e o objeto do
conhecimento, produto do pensamento que o produz em si mesmo como
concreto-de-pensamento (Gedankenkonkretun) como totalidade-de-
pensamento (Gedankentotalitat) , isto é, como objeto-de-pensamento,
absolutamente distinto do objeto-real, do concreto-real, da totalidade-real,
cujo concreto-de-pensamento, a totalidade-de-pensamento, o conhecimento
proporciona." (ALTHUSSER, 1979, p. 42)

E, em sendo assim, como definir a base que serve para a elaboração das

abstrações das quais se parte para produzir o concreto de pensamento? Althusser

dá uma resposta na linha da formulação marxiana que identifica o ponto de partida

como sendo o "concreto caótico", "concreto representado", "o ponto de partida da

intuição e da representação"17 (Marx. Grundrisse. p. 54-55): matéria-prima, no

sentido rigoroso do conceito tal como nos é dado em "O Capital" ("matéria já

elaborada, já transformada), a base de representação subjetiva, ideológica, da qual

se parte no processo de pensamento:18

Por isso, também no método teórico o sujeito, a sociedade, tem de estar continuamente presente
como pressuposto da representação". (Marx. Grundrisse. p. 55).
16
Assim o define Marx: "O último é manifestamente o método cientificamente correto. O concreto é
concreto porque é a síntese de múltiplas determinações, portanto, unidade da diversidade. Por essa
razão, o concreto aparece no pensamento como processo da síntese, como resultado, não como
ponto de partida, não obstante seja o ponto de partida efetivo e, em consequência, também o ponto
de partida da intuição e da representação. Na primeira via, a representação plena foi volatilizada em
uma determinação abstrata; na segunda, as determinações abstratas levam à reprodução do
concreto por meio do pensamento." (Marx. Grundrisse. p. 54).
17
Nesse sentido, Marx: "Por isso, se eu começasse pela população, esta seria uma representação
caótica do todo e, por meio de uma determinação mais precisa, chegaria analiticamente a conceitos
cada vez mais simples; do concreto representado [chegaria] a conceitos abstratos [Abstrakta] cada
vez mais finos, até que tivesse chegado às determinações mais simples." (Marx. Grundrisse. p.54).
18
Essa formulação da questão é altamente significativa e impactante. Em sua base, o erro do
empirismo não se resume a encarar a abstração que se efetua sobre o objeto real como o ponto de
chegada do trabalho de conhecimento. Antes disso está o erro de imaginar a possibilidade de entrar
em contato diretamente com o objeto real, sem a mediação de sua representação subjetiva, intuitiva,
30

(...) que, portanto, jamais o conhecimento se acha, como o quereria


desesperadamente o empirismo, diante de um objeto puro, que fosse então
idêntico ao objeto real do qual o conhecimento visa justamente produzir...o
conhecimento. Trabalhando sobre seu 'objeto', o conhecimento não o faz
então com o objeto real, mas com sua própria matéria-prima, que constitui,
no sentido rigoroso do termo, o seu 'objeto' (de conhecimento) que é, desde
as formas mais rudimentares do conhecimento, distinto do objeto real..."
(ALTHUSSER, 1979, p.. 44)

De modo que já temos uma primeira corrente atrelando e disputando o

significado do conceito de sobredeterminação, nosso primeiro cavalo de tração: na

medida em que pretende significar múltiplas determinações que convergem para

produzir os fatos históricos, diz respeito à produção do concreto pensado pelo

conhecimento, e, como tal, é um conceito que tem função epistemológica,

identificando-se com a fórmula do concreto de pensamento como síntese de

múltiplas determinações. Não há, portanto, nessa sua primeira definição, nenhuma

novidade em relação ao que já estava evidenciado no texto da obra marxiana.

Ter-se-á notado, talvez, nesse texto de Marx sobre o método e na reflexão

althusseriana sobre o objeto de conhecimento, a ausência de uma questão que para

o nosso propósito de estudo do conceito de sobredeterminação é de suma

importância, e que, no último capítulo da presente dissertação, será retomada para o

comentário de uma dificuldade que se evidencia em Althusser: a confusão

perceptiva, ideológica. Este é um tema fecundo para explorar a possibilidade de uma problemática
kantiana nos textos do Marx da maturidade, problemática essa que Althusser localiza em uma das
fases do Marx da juventude. Mas está muito além da nossa competência nesse momento. Apenas
com o propósito de ilustrar o que isso poderia significar, vejamos a colocação de um problema similar
na obra de Simmel, tal como é indicada por Maurício Tragtenberg, na introdução à edição brasileira
da "Metodologia das Ciências Sociais", de Max Weber: "Simmel se coloca uma questão na forma de
Kant: É possível a sociedade? Para ele, a pergunta fundamental de Kant fora a seguinte: A natureza
é passível de ser objeto da ciência? Segundo Simmel, Kant poderia ter adiantado uma resposta, já
que a natureza era vista como representação da natureza. A natureza é a maneira com que nosso
intelecto recebe e ordena as percepções dos sentidos, é uma espécie de cognição...Diz Simmel: 'a
sociedade é minha representação no processo de atividade da consciência'. A resposta à pergunta -
como é possível a sociedade? - é fornecida por um a priori que está contido nos sujeitos sociais".
(Tragtenberg, apud Weber, Metodologia das Ciências Sociais, p. 19). Essa problematização
também é apontada por Marcos Muller, no seu artigo "Exposição e método dialético em "O Capital"":
"A ressonância kantiana da linguagem faz Colletti dizer que Marx retorna ao conceito gnosiológico, e
não ontológico, de 'conceito', e à afirmação do papel constitutivo e permanente da multiplicidade da
experiência para a elaboração do conceito." (Muller, Exposição e método dialético em “O Capital”,
p. 29)
31

provocada pela falta de distinção no uso dos conceitos de determinação e

contradição. Essa questão ausente à qual nos referimos diz respeito à falta de uma

declaração, ou mesmo da ideia operando na prática, de modo latente, da noção de

determinação em última instância. Assim, quando Marx fala do concreto de

pensamento como síntese de múltiplas determinações, não se estabelece nenhuma

regra nem critério que sirva para se organizar uma hierarquia que pudesse

estabelecer o grau de importância e a relação de causalidade entre as diferentes

determinações. Também, nesse texto, é importante notar que Marx nos fala de

determinações, e não de contradições; o concreto como síntese de múltiplas

determinações, não como síntese de múltiplas contradições. E quais são as

conclusões que podemos formular a esse respeito? Podemos então, para resumir o

resultado do nosso estudo sobre o método em Marx até o momento, dizer que,

nesse texto sobre "O Método da Economia Política", o tema é o do processo de

produção de conhecimento pelo pensamento, a produção do concreto pensado,

síntese de múltiplas determinações. Nesse contexto, as categorias determinantes

convergem para produzir o conhecimento da sociedade histórica de uma forma

radicalmente diferente de como convergem para produzir a sociedade histórica

como processo concreto, independente do pensamento19: O que temos aqui,

portanto, é a ordem lógica das categorias de determinação, e não a sua ordem

histórica. Ou, a coisa da lógica, e não a lógica da coisa. Nesse sentido, aqui não se

fala de diferentes esferas ou estruturas que existem e atuam em conjunto na vida

19
Marx expressa essa diferença, entre outras passagens, na que se segue: "Seria impraticável e
falso, portanto, deixar as categorias econômicas sucederem-se umas às outras na sequência em que
foram determinantes historicamente. A sua ordem é determinada, ao contrário, pela relação que tem
entre si na moderna sociedade burguesa, e que é exatamente o inverso do que aparece como sua
ordem natural ou da ordem que corresponde ao desenvolvimento histórico. Não se trata da relação
que as relações econômicas assumem historicamente na sucessão de diferentes formas de
sociedade...Trata-se, ao contrário, de sua estruturação no interior da moderna sociedade burguesa."
(Marx. Grundrisse, p. 60).
32

social, tais como a política, o jurídico, o religioso, o cultural, etc., mas sim das

diversas categorias determinantes que fazem a estruturação da economia no interior

da sociedade burguesa. A economia burguesa é, portanto, o concreto pensado

como síntese de múltiplas determinações, e as categorias econômicas (as referidas

por Marx no texto sobre "O Método..." são: posse, propriedade, cooperação, divisão

do trabalho, dinheiro e trabalho), os conceitos com maior ou menor grau de

simplicidade e abstração que, em seu conjunto, vão determinar o concreto da

economia na sociedade burguesa. Isso, naturalmente, não significa que essas

categorias não possuam aspectos antitéticos e contradições. Essas mesmas

categorias também podem ser o produto de sobredeterminações. Mas a forma como

essas contradições se resolvem, muitas vezes, são formas puramente lógicas e

impessoais. O dinheiro, p. ex. pode ser entendido como o resultado da

sobredeterminação de diversas funções, tais como apontadas em "O Capital":

medida dos valores, meio de circulação, signo de valor, meio de

pagamento...Também, como a forma que resolve logicamente a contradição entre o

valor e o valor de uso entendidos como dimensões antitéticas operantes no mundo

das mercadorias:

O cristal monetário [Geldkristall] é um produto necessário do processo de


troca, no qual diferentes produtos do trabalho são efetivamente equiparados
e, desse modo, transformados em mercadorias. A expansão e o
aprofundamento históricos da troca desenvolvem a oposição entre valor de
uso e valor que jaz latente na natureza das mercadorias. A necessidade de
expressar externamente essa oposição para o intercâmbio impele a uma
forma independente do valor da mercadoria e não descansa enquanto não
chega a seu objetivo final por meio da duplicação da mercadoria em
mercadoria e dinheiro. Portanto, na mesma medida em que se opera a
metamorfose dos produtos do trabalho em mercadorias, opera-se também a
metamorfose da mercadoria em dinheiro. (MARX, 2013, p. 161)

É em razão dessa diferença que se estabelece entre o concreto

caótico/representado, matéria-prima para o trabalho de abstração de conceitos e

categorias cada vez mais simples, e o concreto pensado, produto de múltiplas


33

determinações, que caminha na direção de uma crescente complexidade, é em

razão dessa diferença, dizíamos, que se pode entender os momentos distintos que

serão chamados de método de pesquisa e método de exposição pelo marxismo. O

método de pesquisa diz respeito, fundamentalmente, ao primeiro dos processos

indicados, ou seja, ao trabalho de abstração que produz conceitos e categorias na

base do material concreto denominado caótico ou representado. Podemos ver um

pouco desse método de pesquisa a partir de alguns indicativos presentes na obra

marxiana. O primeiro, uma declaração de Marx sobre o valor do trabalho de

abstração para a produção de conhecimento:

(...) na análise das formas econômicas não podemos nos servir de


microscópio nem de reagentes químicos. A força da abstração
[Abstraktionskraft] deve substituir-se a ambos. Para a sociedade burguesa,
porém, a forma-mercadoria do produto do trabalho, ou a forma de valor da
mercadoria, constitui a forma econômica celular. Para o leigo, a análise
desse objeto parece se perder em vãs sutilezas. Trata-se, com efeito, de
sutilezas, mas do mesmo tipo daquelas que interessam à anatomia
20
micrológica" (MARX, 2013, p. 78)

O segundo indicativo do método de pesquisa pode ser observado na

apresentação de Mario Duayer à edição brasileira do "Grundrisse", que estamos

utilizando nesse estudo. Nesse texto, Duayer mostra o que se pode chamar de

método extrativo de Marx, ou seja, o emprego sistemático que este realizava do

procedimento de reprodução por escrito de extratos de todos os autores e obras que

faziam parte do seu planejamento de estudo, e, junto a isso, a escrita de suas

próprias anotações21. O "Grundrisse", nesse sentido, apesar de sua relativa

20
Temos assim, portanto, uma analogia entre processos químicos de laboratório e processos
abstrativos de gabinete. A força da abstração equivalente ao reagente químico, e as formas mais
simples da sociedade burguesa - forma mercadoria, forma valor - como o seu produto. Daí é que se
pode inferir que Marx está a falar diretamente sobre o procedimento de pesquisa.
21
Assim, a seguinte passagem: "Já em novembro de 1837, aos dezenove anos, ele comenta em uma
carta ao seu pai que havia adotado o 'hábito de fazer extratos de todos os livros que leio [...] e,
incidentalmente, rabiscar minhas próprias reflexões'. O que significa dizer que os extratos redigidos
por ele no curso de sua extensa atividade intelectual documentam minuciosamente os temas e
autores que foram objeto de sua investigação, permitindo não só acompanhar a evolução de seus
estudos...mas, sobretudo, compreender o seu método de trabalho. Por esse motivo, costuma-se dizer
34

disformidade (sua forma vai sendo modelada na "Contribuição à Crítica da Economia

Política" e pelos livros de "O Capital"), é o melhor posto de observação para quem

deseja ver o método de pesquisa de Marx em andamento. Sua matéria-prima, os

livros. Seu ambiente de trabalho, o gabinete de estudo. Sua ferramenta de trabalho,

a força da abstração. Seu produto, conceitos e categorias com maior ou menor grau

de simplicidade.

É preciso, portanto, uma apropriação crítica prévia dos resultados da


economia política como ciência social para que a sua reconstrução
categorial seja efetivamente uma exposição do "desenvolvimento
conceitual" do material pesquisado...É preciso, assim, que o "método de
pesquisa" assuma o ônus idealista da lógica especulativa apropriando-se
analítica e criticamente do conteúdo, antes que a exposição possa exprimir
seu "desenvolvimento conceitual"..." (MULLER, 1982, p. 32)

Já o método de exposição deve funcionar com base em uma outra lógica.

Aqui, a produção de conhecimento já não é para si próprio, é para o conhecimento

do leitor. E esse conhecimento deve ser apresentado de forma científica. O caráter

científico reside, portanto, na forma da exposição, e essa forma significa o esforço

teórico de produzir o concreto pensado, a caminhada que vai das categorias mais

simples e abstratas em direção ao concreto de pensamento, a totalidade como

síntese de múltiplas determinações. Nada ilustra melhor esse propósito do que os

planos de exposição pensados por Marx para a sua crítica da economia política

clássica. A seguir, o primeiro plano de exposição, pensado para a primeira edição da

sua "Contribuição à Crítica da Economia Política", em carta a Lassale:

O enunciado, quero dizer a forma, é absolutamente científico. Logo não


infringe os regulamentos policiais no sentido habitual. Dividi o conjunto em
seis livros: 1. Do capital (com alguns capítulos preliminares); 2. Da
propriedade fundiária; 3. Do regime de salário; 4. Do Estado; 5. O comércio
internacional; 6. O mercado mundial." (E. B. Nota da edição francesa apud
MARX, 2016, p. XIV)

De modo que, na "Contribuição à Crítica da Economia Política", e depois no

que examinar os Grundrisse (e, nesse sentido, os demais materiais inéditos) é como ter acesso ao
laboratório de estudos de Marx." (Marx. Grundrisse, p. 13)
35

plano dos Livros de "O Capital", temos uma parte do trabalho acumulado pelo

método de pesquisa posto em forma, expressando o movimento que vai das

categorias mais simples para o concreto pensado. É o trabalho de expressar a

síntese de múltiplas determinações, e que nos dá mais uma vez o lugar do conceito

de sobredeterminação: o método de exposição.

E, muito embora a ideia de contradição esteja presente no interior das

categorias e na relação que se estabelece entre elas, o modo da sua existência e

atividade se resolve logicamente, em desdobramentos formais, sem nenhuma

ligação necessária com o processo de luta de classes, fazendo com que, portanto,

nessa dimensão do método de conhecimento, predomine a função de determinação

formal e lógica das categorias22.

Que este seja de fato o sentido do método de exposição em Marx também é

entendido por Jorge Grespan, que o vai caracterizar como "caminho da concreção":

Apesar de dialeticamente a exposição ter uma forma recursivo-progressiva,


com o que vem depois sendo pressuposto do que vem antes, tanto quanto
este é daquele, há um domínio das formas mais ricas e complexas, nas
quais as mais abstratas e iniciais não são eliminadas, mas redefinidas em
seu papel. Daí que o caminho da exposição categorial seja o da
"concreção", no sentido do "concreto como síntese de múltiplas
determinações" contraditórias, como diz a Introdução de 1857. (GRESPAN,
2002, p. 44)

E, para ilustrar esse caminho de concreção, Grespan faz uso do seguinte

exemplo, relacionado à função categorial que a determinação da circulação simples

continua desempenhando na formação social capitalista:

As determinações já da circulação simples não são simplesmente anuladas


pelas da produção capitalista, mas também não são mantidas como se a
elas não se acrescentasse algo fundamental, isto é, que lhes dá um novo
fundamento. É superado justamente o conteúdo da circulação simples, o
objetivo de vender para comprar valores-de-uso, produtos que satisfaçam
necessidades de consumo. Mas a circulação simples existe dentro da
capitalista, quando o que circula são simples mercadorias e dinheiro, e não
capital-mercadoria e capital-dinheiro; quando não há investimento, mas

22
Relembramos, aqui, a seguinte fórmula de Marx: "...as categorias expressam formas de ser,
determinações da existência..." (Marx. Grundrisse, p. 59).
36

simples compra de bens de consumo pelos assalariados ou pelos


capitalistas que também usam assim parte da mais-valia. Não é que a
circulação simples seja mera hipótese irrealista, portanto mero pressuposto
lógico para desenvolver o conceito de capital; ela existe, embora de modo
subordinado à circulação e produção capitalista. Com sua transformação
em momento de um processo maior, é dado a ela agora o papel de executar
fases do movimento mais amplo." (GRESPAN, 2002, p. 45)

Mas é Marcos Muller, no seu artigo "Exposição e método dialético em "O

Capital"", quem mais centra o foco na argumentação que visa caracterizar o método

de exposição como o lugar por excelência de exercício da dialética como lógica da

produção do conhecimento científico sobre o objeto real. Assim:

Dialética significa n'O Capital primeiramente e, predominantemente, o


"método/modo de exposição" crítica das categorias da economia política, o
método de "desenvolvimento do conceito de capital" a partir do valor,
presente na mercadoria, enquanto ela é a categoria elementar da produção
capitalista que contém o "germe" das categorias mais complexas..."método
de exposição", que designa o modo como o objeto, suficientemente
apreendido e analisado, se desdobra em suas articulações próprias e como
o pensamento as desenvolve em suas determinações conceituais
correspondentes, organizando um discurso metódico." (MULLER, 1982, p.
19)

E aqui também devemos notar que, no uso do método de exposição

entendido dessa forma, não haveria nenhuma ruptura epistemológica, mas sim

continuidade metodológica e conceitual entre Hegel e Marx:

O que caracteriza o conhecimento dialético é, primeiramente, que o


verdadeiro (Hegel), o racional e o concreto (Hegel, Marx), não são de
acesso imediato a qualquer tipo de intuição intelectual ou experiência direta,
que intuiria ou tomaria o objeto no seu ser dado imediato, mas que eles são
o resultado de um movimento de pensamento, do que Hegel chama de
"trabalho do conceito", que expõe progressivamente, a partir das
determinações mais simples e abstratas do conteúdo, suas determinações
cada vez mais ricas, complexas e intensas, até o ponto de sua unidade, que
não é uma unidade formal, mas uma unidade sintética de múltiplas
determinações. Esta caracterização vale, em princípio, tanto para Hegel,
como para Marx." (MULLER, 1982, p. 22)

De que modo, e em que momentos, haveria uma ruptura entre a dialética

marxiana e a hegeliana, é um dos temas mais importantes que vamos abordar no

segundo capítulo, principalmente no tópico que se refere à teoria do corte

epistemológico de Althusser.

O tema epistemológico da diferença que se constrói entre o objeto real e o


37

objeto de conhecimento sempre alarga uma margem para dificuldades de

entendimento ou malentendidos. Isso porque tal diferença pode ser postulada e

servir com a mesma eficiência a dois senhores que são inimigos mortais e vivem em

pé de guerra: o materialismo e o idealismo23. Essa pode ser, inclusive, uma das

chaves para a elucidação da questão de fundo posta pela problematização

althusseriana: há ou não uma ruptura, no que diz respeito a essa diferença, entre a

filosofia de Hegel e a de Marx? Como será melhor detalhado no próximo capítulo,

veremos que Althusser responde afirmativamente por meio da sua teoria do corte

epistemológico, posicionando-se pela ruptura com radicalidade. E é nesse ponto que

J. A. Giannotti pretende pegá-lo no pulo24.

De acordo com Giannotti, Althusser comete o erro fundamental de operar

uma separação radical entre o objeto real e o objeto de conhecimento, radicalidade

de separação essa que seria estranha à teoria marxiana. Esse erro cometido por

Althusser, no seu afã de cortar toda a carne, nervos e músculos que fariam, de fato,

a ligação da filosofia de Marx com a de Hegel, acabaria por desprover o concreto de

todas as formas de universalidade (a universalidade deve ser entendida, nesse

texto, como sendo o concreto determinado por e determinante de categorias),

gerando-se, desse modo, dois mundos paralelos que se desenvolvem sem nunca se

encontrarem: o processo real do concreto e o processo de conhecimento:

De um lado teríamos, pois, a realidade, cuja existência é independente do


conhecimento, de outro, a produção do conhecimento que como tal se move
num universo autônomo, partindo de fatos teóricos e chegando a outras

23
Essa diferença é a base usada por Marx para explicar o erro cometido por Hegel: "Por isso, Hegel
caiu na ilusão de conceber o real como resultado do pensamento que sintetiza-se em si, aprofunda-
se em si e movimenta-se a partir de si mesmo, enquanto o método de ascender do abstrato ao
concreto é somente o modo do pensamento de apropriar-se do concreto, reproduzi-lo como um
concreto mental. Mas de forma alguma é a gênese do próprio concreto". (Marx. Grundrisse, p. 54-
55)
24
O debate que agora faremos com alguns dos tópicos de crítica de Giannotti contra Althusser faz
uso do artigo intitulado: "Contra Althusser", publicado em Seleções CEBRAP 2. Exercícios de
Filosofia. 1975.
38

teorias mais gerais, adequadas e percucientes." (GIANNOTTI, 1975, p. 88)

E. P. Thompson, no seu "A Miséria da Teoria", livro inteiramente dedicado à

crítica do programa teórico althusseriano, embora trabalhando numa linha de

argumentação muito diferente de Giannotti25, pois a sua problemática é a de um

historiador, postula e defende também a ideia de que Althusser, no desenvolvimento

da sua teoria da prática teórica, produz uma noção tal de objeto do conhecimento

que quebra qualquer possibilidade de ligação de correspondência com o objeto real,

ou seja, o processo histórico em sua complexidade empírica. Thompson vai afirmar

que, embora haja uma postulação de princípio dessa correspondência (ver, por

exemplo, a citação de Althusser que reproduzimos alguns parágrafos adiante), na

prática o que se faz é negar esse mesmo princípio, recusando-se toda e qualquer

possibilidade de conhecimento do objeto real, o que faz com que Thompson associe

esse posicionamento althusseriano com as recusas de Popper26 e do empirismo ao

"historicismo" (entendido como qualquer tentativa historiográfica de se produzir

conhecimento científico sobre o processo histórico), e veja o objeto real em

Althusser desempenhando o mesmo papel cenográfico que Deus na teoria de

Francis Bacon:

O certo é que Deus nada fez na natureza que não fosse por causas
segundas". O argumento não impediu que Francis Bacon fosse acusado de
ser ateu em segredo, e Althusser não se deve surpreender ao ser acusado
de dissolver a realidade numa ficção idealista. Pois, uma vez feito esse
gesto piedoso e necessário [de afirmar a existência do objeto real e sua
correspondência com o objeto de conhecimento] (como uma espécie de a
priori genético, uma cláusula "em última instância"), o "real" é rapidamente
arrastado para fora da cena." (THOMPSON, 1981, p. 31)

25
Dedicaremos um tópico no terceiro capítulo da presente dissertação para olhar com mais detalhes
esse ponto crítico na obra mencionada de E. P. Thompson.
26
Para Popper, "não há história da humanidade, há apenas um número indefinido de histórias de
todos os tipos de aspectos da vida humana". Essas histórias são criadas por historiadores a partir de
uma "matéria infinita" de acordo com preocupações contemporâneas. A ênfase recai, com a
monotonia de um martelo a vapor, sobre a incognoscibilidade de qualquer processo histórico objetivo
e sobre os perigos da atribuição "historicista"." (Thompson, A miséria da teoria ou um planetário de
erros (uma crítica ao pensamento de Althusser), p. 30-31)
39

Ao nosso ver, no entanto, Giannotti e Thompson, embora desenvolvendo

caminhos teóricos muito diferentes, se equivocam ao criticar uma suposta não

correspondência absoluta, em Althusser, entre o objeto real e o objeto de

conhecimento. Não se deve fazer a leitura dos textos althusserianos como se

estivessem no plano de um espaço regido pelas leis da física de Newton, no qual

duas linhas paralelas podem prosseguir em direção ao infinito sem nunca se

encontrarem. O espaço em questão seria mais o regido pelas leis de Einstein, em

que a curvatura faz com que, inevitavelmente, em um determinado ponto, as linhas

se encontrem. E não há ponto mais nitidamente expressivo desse momento de

encontro na curvatura do que o conceito de sobredeterminação. Retomaremos essa

questão no terceiro capítulo do presente trabalho. Veremos, assim, que a ideia de

representação do objeto real não é estranha ao pensamento de Althusser, muito

embora não seja a ideia dominante.

Giannotti elabora a sua argumentação postulando a diferença entre o

"universal-concreto" (o concreto tal como o seria entendido pela teoria marxiana,

criador e criatura de categorias de determinação), e o concreto "individual", dizendo

que, em Marx, "De modo nenhum é dito porém que o concreto é necessariamente

individual, como pressupõe tacitamente a interpretação de Althusser" (Giannotti,

1975, p. 89). É interessante notar também, para aproveitar o ensejo, que uma das

críticas mais ácidas de Giannotti contra Althusser se dá em relação a sua proposta

de uma Leitura Sintomal dos textos de Marx (comentaremos sobre essa proposta no

próximo capítulo), ou seja, a escolha por ler Marx nas entrelinhas e não nas linhas,

"como se sua prática teórica fosse inferior às suas descobertas" (Giannotti. 1975, p.

88-89). Mas aqui, fazendo jus não ao que preconiza mas sim ao que critica,

Giannotti pretende dialogar com o que está tacitamente pressuposto em Althusser,


40

como se suas descobertas fossem inferiores à sua prática teórica.

Para entendermos melhor esse ponto da crítica de Althusser, vejamos a

seguinte passagem:

(...) Marx contrapõe o caráter propriamente improdutivo do pensamento


teórico que apenas se apropria e reproduz (termo que Althusser deixa de
comentar) o concreto numa forma espiritual...Não há pois de se atribuir uma
excessiva importância à noção de produção teórica." (GIANNOTTI, 1975, p.
89)

Temos portanto, como divergência de posicionamento entre Giannotti e

Althusser, tal como a formula Giannotti, o peso maior ou menor que se joga no

entendimento do processo de produção do conhecimento científico, ou como

produção ou como reprodução do objeto real. E, diante disso, na leitura que aqui

fazemos dos textos de Althusser, o modo como o nosso autor valoriza e formula a

ideia de produção do objeto de conhecimento (para estudar o procedimento

metodológico), não é estranha à ideia dessa produção como, também, uma forma de

reproduzir o objeto real. Há, como já dissemos, um ponto de cruzamento entre as

duas paralelas, e esse ponto de cruzamento tem um significado muito específico, ou

seja, o da reprodução da ordem lógica das categorias na determinação daquilo que,

em Marx, é definido como síntese de múltiplas determinações, e que é diferente da

ordem lógica no processo da sua gênese histórica:

(...) o processo de produção do objeto do conhecimento se passa


inteiramente no conhecimento, e se efetua segundo uma outra ordem, em
que as categorias pensadas que "reproduzem" as categorias "reais" não
ocupam o mesmo lugar que ocupam na ordem da gênese histórica real,
mas lugares inteiramente diversos que lhes são atribuídos por sua função
no processo de produção do objeto do conhecimento. (ALTHUSSER, 1979,
p. 42)

Acontece que, em Giannotti, há uma interpretação muito peculiar sobre o

conceito de concreto pensado em Marx. Vejamos:

Quando Marx afirma: "O todo como aparece na cabeça, tal qual um todo-de-
pensar, é um produto da cabeça pensante" está obviamente se referindo às
ideias singulares que estão na cabeça de cada um, resultantes de um
complexo fisiológico. Para Marx nesse momento importa salientar a
subjetividade da ideia em face da objetividade, não tendo pois cabimento a
41

interpretação que faz desse produto o discurso científico objetivo,


independente do curso pessoal das representações." (GIANNOTTI, 1975, p.
89)

Giannotti pretende, a todo custo, defender a sua tese segundo a qual, na

teoria de Marx, a ideia de produção teórica do objeto de conhecimento é estranha, e

deve ser substituída pela ideia de reprodução teórica do objeto real, "espelhamento

teórico do concreto". Para tanto, acaba cometendo dois erros, que se evidenciam na

citação acima. Na primeira parte da sentença, o todo, como concreto pensado, é

entendido como "ideia singular", produzida pela cabeça de cada um de nós

individualmente, resultado de um "complexo fisiológico", assim como podemos

entender a produção do suor, da salivação e do bolo fecal. O desejo de evidenciar a

naturalidade e espontaneidade da produção de representações subjetivas da

realidade concreta pelo ser humano acaba, portanto, por rebaixar a condição de

determinação para o nível do biológico, jogando, assim, para debaixo do tapete

importantes postulados marxianos básicos tais como, por exemplo, o da 6º tese

sobre Feuerbach: "...a essência humana não é uma abstração intrínseca ao

indivíduo isolado. Em sua realidade, ela é o conjunto das relações sociais" (Marx.

Ideologia Alemã. p. 534). Ou seja, qualquer representação subjetiva, elaborada pela

cabeça humana, não pode se processar sem a mediação de uma realidade social,

de uma linguagem, uma ideologia, etc., muito embora haja sempre um suporte

biológico pressuposto. O desejo de banalizar ao extremo a ideia althusseriana de

produção do objeto de conhecimento como um empreendimento epistemológico

específico deve pagar o seu preço. Na segunda parte da sentença, o argumento se

dirige para a leitura de Marx, segundo a qual, quando este fala sobre o concreto de

pensamento, está a falar de qualquer forma de representação subjetiva do todo, e

não do processo de produção do conhecimento científico em particular. Ora, ao


42

nosso entender, essa leitura só é possível com o descolamento de algumas frases

do seu contexto, pois, no seu escrito sobre o método da economia política clássica,

o tema é justamente o da produção do conhecimento científico em sua

especificidade, diferenciando, muito claramente, de outras formas de representação

subjetiva que se constituem socialmente:

O todo como um todo de pensamentos, tal como aparece na cabeça, é um


produto da cabeça pensante que se apropria do mundo do único modo que
lhe é possível, um modo que é diferente de sua apropriação artística,
religiosa e prático-mental. (MARX, 2011, p. 55)

De modo que Giannotti, mesmo escrevendo contra Althusser, nos ajuda a

pensar nos termos da identidade conflitiva que existe entre a produção de um

conhecimento e a reprodução ou espelhamento da realidade concreta. "Para mim...o

ideal não é mais do que o material, transposto e traduzido na cabeça do homem"

(Marx. O Capital. Posfácio à 2º edição. p. 90). Ele erra, no entanto, ao nosso ver, em

afirmar que essa tese não está, pelo menos, "tacitamente pressuposta" no nosso

autor.

Vejamos agora como a coisa se passa no prefácio da "Contribuição à Crítica

da Economia Política", e quais as novas implicações que são trazidas para o nosso

conceito de sobredeterminação - o cavalo que vai puxar pela outra ponta. Nesse

texto, já não se trata mais da teoria do processo de pensamento como processo de

produção do conhecimento científico, mas sim de uma teoria do desenvolvimento

histórico das sociedades humanas, que é entendida como resultado e fio condutor

do trabalho de estudo e pesquisa27. Sendo assim, devemos notar que, nesse ponto

27
Assim o reconhece Marx: "A conclusão geral a que cheguei e que, uma vez adquirida, serviu de fio
condutor dos meus estudos..." (Marx. Contribuição à Crítica da Economia Política, p. 5). De que
modo poderíamos entender a função de uma "conclusão geral" e de um "fio condutor" no caso dos
textos marxianos que estamos estudando? 1) na escolha de objeto: a economia burguesa, estrutura
que compreende o estado histórico das forças produtivas e as relações de produção; 2) na matéria-
prima que serve de base para o estudo do objeto: a Economia Política Clássica; 3) nos conceitos e
nas categorias que são elaborados no processo de abstração do método de pesquisa: conceitos e
categorias econômicas; 4) na forma de abordar os temas da superestrutura: buscando evidenciar
sempre, em última instância, a relação de condicionamento e de determinação; 5) no objetivo do
43

da sua formulação teórica, estamos falando do quadro geral dentro do qual se

constitui o objeto e o sentido do método de pesquisa e do método de exposição, e

que esse quadro geral, que nos é dado de uma forma altamente sucinta - em um

único parágrafo! - , nos revela os principais conceitos do que vai ser chamado de

materialismo histórico, e que, a partir de agora, vai nos instruir sobre a lógica da

coisa, e não mais sobre a coisa da lógica28.

2. 2 A sobredeterminação e a teoria da história

Vamos apresentar a formulação marxiana da teoria geral do materialismo

histórico dividida em três momentos: o da estruturação de uma formação social; o do

princípio que rege o processo evolutivo das sociedades históricas; o do princípio que

rege os momentos de crise revolucionária de uma formação social. Nesse conjunto,

vão aparecer alguns dos conceitos mais familiares ao marxismo: estrutura,

superestrutura, relação de condicionamento/determinação, forças produtivas e

relações de produção. Vejamos, então, como Marx nos apresenta o princípio de

estruturação de uma formação social:

(...) na produção social da sua existência, os homens estabelecem relações


determinadas, necessárias, independentes da sua vontade, relações de
produção que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento
das forças produtivas materiais. O conjunto destas relações de produção
constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual
se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem
determinadas formas de consciência social. O modo de produção da vida
material condiciona o desenvolvimento da vida social, política e intelectual
em geral. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é o
seu ser social que, inversamente, determina a sua consciência." (MARX,

método de exposição: evidenciar a economia burguesa como síntese de múltiplas determinações


(determinações, como já vimos, representadas por categorias e conceitos essencialmente
econômicos).
28
Em linhas gerais, portanto, a coisa da lógica deve estar subordinada à lógica da coisa. E o inverso
disso pode ser caracterizado como o erro da metafísica e do idealismo: "Por isso, Hegel caiu na
ilusão de conceber o real como resultado do pensamento que sintetiza-se em si, aprofunda-se em si
e movimenta-se a partir de si mesmo, enquanto o método de ascender do abstrato ao concreto é
somente o modo do pensamento de apropriar-se do concreto, de reproduzi-lo como um concreto
mental. Mas de forma alguma é o processo de gênese do próprio concreto". (Marx. Grundrisse. p.
54).
44

29
2016, p. 5)

Temos aqui, portanto, o princípio da determinação em última instância30,

constituída pelas relações de produção que, por sua vez, se estruturam de uma

forma que independe de consciência ou vontade, em função de um certo estágio do

desenvolvimento das forças produtivas. E a esse argumento já podemos fazer a

ligação de um outro, que pode ser caracterizado, na forma em que está escrito,

como um princípio evolucionista:

Em um caráter amplo, os modos de produção asiático, antigo, feudal e


burguês moderno podem ser qualificados como épocas progressivas da
formação econômica da sociedade...Com esta organização social
[sociedade burguesa] termina, assim, a Pré-História da sociedade humana."
31
(MARX, 2016, p. 6)

29
É interessante notar o uso de dois conceitos aparentados mas distintos: "condicionamento" e
"determinação". Quando se fala de determinação, pura e simplesmente, pensamos em uma forma
direta de relação causal, sem mediações. O uso desse conceito por Marx, nessa passagem, se refere
à determinação mais geral da consciência pelo ser social. Ou, o ser social precede e determina a
consciência. Em uma dimensão mais próxima da experiência concreta, Marx fala que "o modo de
produção da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em
geral". O uso do conceito condicionar, aqui, pode significar que Marx não pensava em uma
modalidade de relação causal direta, sem mediações. E, quando pensamos em uma determinação
indireta, como mediações, pensamos logicamente a possibilidade dos conceitos de autonomia
relativa e sobredeterminação. Mas Marx não desenvolve formalmente essa possibilidade nesse texto.
Sobre o motivo pelo qual o conceito de determinação possa ter se evidenciado quase de modo
exclusivo, a seguinte passagem de Engels: "Marx e eu somos em parte responsáveis pelo fato de
que, de vez em quando, nossos discípulos dão maior peso ao fator econômico do que deveriam.
Fomos obrigados a enfatizar seu caráter central em oposição a nossos adversários, que o negavam,
e nem sempre havia tempo, espaço e oportunidade para fazer justiça aos outros fatores envolvidos
nas interações recíprocas do processo histórico." (citado por Edmund Wilson. Rumo à Estação
Finlândia. p. 176).
30
Note-se que falar da ideia de uma determinação em última instância no texto marxiano é, de certa
forma, uma concessão que se faz às leituras que já começam a relativizar a força da determinação
econômica, seguindo, nesse sentido, a linha que foi indicada por Engels na sua carta a Joseph Bloch,
lugar em que aparece a noção de determinação em última instância: "Segundo a concepção
materialista da história, o momento em última instância determinante, na história, é a produção e
reprodução da vida real. Nem Marx nem eu alguma vez afirmamos mais. Se agora alguém torce isso
[afirmando] que o momento econômico é o único determinante, transforma aquela proposição numa
frase que não diz nada, abstrata, absurda." (citado em MOTTA. A Favor de Marx. p. 52-53)
31
O gosto de Marx por certas ideias evolucionistas aparece mais de uma vez na sua obra da
maturidade. Outro exemplo é a famosa passagem do texto sobre o método em que diz: "A anatomia
do ser humano é uma chave para a anatomia do macaco. Por outro lado, os indícios de formas
superiores nas espécies animais inferiores só podem ser compreendidos quando a própria forma
superior já é conhecida" (Marx. Grundrisse, p. 58), ilustrando assim o motivo pelo qual na sociedade
burguesa certas categorias econômicas muito complexas ajudam a explicar as mesmas categorias
em fases anteriores da história humana, e que existiam em formas mais simplificadas.
45

Temos, assim, uma concepção que pode ser entendida como

desenvolvimento linear e progressivo das forças produtivas materiais, determinando,

diretamente, a estruturação das relações de produção e, em última instância, as

diferentes esferas da superestrutura. O último momento da argumentação que

queremos destacar é o do princípio da ruptura revolucionária. Aqui, a determinação

em última instância se converte em uma contradição lógica que opera de modo

implacável32:

Em certo estágio de desenvolvimento, as forças produtivas materiais da


sociedade entram em contradição com as relações de produção
existentes...De formas de desenvolvimento das forças produtivas, estas
relações transformam-se no seu entrave. Surge então uma época de
revolução social. A transformação da base econômica altera, mais ou
menos rapidamente, toda a imensa superestrutura. Ao considerar tais
alterações é necessário sempre distinguir entre a alteração material - que se
pode comprovar de maneira cientificamente rigorosa - das condições
econômicas de produção, e as formas jurídicas, políticas, religiosas,
artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas pelas quais os
homens tomam consciência deste conflito, levando-o às suas últimas
consequências." (MARX, 2016, p. 5)

E assim, terminando esse primeiro momento de reflexão, com base na

apresentação sintética dos princípios e dos conceitos fundamentais do materialismo

histórico, tais como aparecem no prefácio da "Contribuição à Crítica da Economia

Política", nos encontramos diante da possibilidade de enxergar um processo

histórico regido por uma contradição simples, determinando a estrutura,

32
Tal contradição lógica, operando de forma implacável, pode também ser observada no
"Grundrisse". Assim, a parte em que Marx discorre sobre a lei da diminuição progressiva da taxa de
lucro, lei interna do capital, executada pela concorrência: "A concorrência executa as leis internas do
capital; faz delas leis compulsórias para o capital singular, mas não as inventa" (Marx. Grundrisse,
p. 629). Sobre essa lei da queda da taxa de lucro: "Em todos os sentidos, essa é a lei mais importante
da economia política moderna e a mais essencial para compreender as relações mais complicadas.
Do ponto de vista histórico, é a lei mais importante" (Marx. Grundrisse, p. 626). De tal modo que, em
se tratando de uma lei, o momento da ruptura revolucionária acaba por ganhar um certo tom fatalista:
"Em consequência, o máximo desenvolvimento da força produtiva e a máxima expansão da riqueza
existente coincidirão com a depreciação do capital, a degradação do trabalhador e o mais estrito
esgotamento de suas capacidades vitais. Essas contradições levam a explosões, cataclismos, crises,
nas quais, pela suspensão momentânea do trabalho e a destruição de grande parte do capital, este
último é violentamente reduzido até o ponto em que pode seguir empregando plenamente suas
capacidades produtivas sem cometer suicídio. Contudo, essas catástrofes regularmente recorrentes
levam à sua repetição em uma escala mais elevada e finalmente à destruição violenta do capital."
(Marx. Grundrisse, p. 628).
46

superestrutura e ruptura revolucionária de todas as formações sociais que se

sucederam no tempo histórico da humanidade. E é interessante notar que, ao final

do seu artigo, Marcos Muller "brinca" com a ideia de que a teoria da história em

Marx, entendida na chave dessa possibilidade de leitura, representaria uma forma

de "inversão" da ontologia especulativa de Hegel:

Neste sentido pode-se dizer, provocativamente, que a subjetivação do valor


como capital e a sua expansão histórica e sistemática tornaram o realismo
ontológico de Hegel um sistema cifrado das relações sociais capitalistas,
permitindo a Marx "extrair" da metafísica do conceito hegeliana o "caroço
racional" de uma dialética materialista. "O idealismo de Hegel é a sociedade
burguesa enquanto ontologia." [Reichelt. H. citado por Muller]." (MULLER,
1982, p. 41)

Mas já ficou evidente que o marxismo cria margens e apontamentos na

direção de um outro tipo de complexidade para a relação de determinação. É uma

espécie de membro do corpo marxiano que nasceu mas permaneceu atrofiado. Já

ressaltamos a presença de dois desses indicativos, quais sejam, o conceito de

condicionamento que opera junto com o de determinação no prefácio da

"Contribuição...", o primeiro em um nível mais próximo do empírico, e a declaração

de Engels, segundo a qual a intenção quase que exclusiva que foi dedicada por

Marx e por ele à determinação econômica em detrimento de outras formas de

determinação se explicava por motivos de contexto histórico-teórico, ou seja, quando

a posição teórica hegemônica desconsiderava a importância de tal determinação

objetiva e material. E, para terminar de fechar com mais um ponto essa nossa

costura, uma das declarações de Engels mais explícitas a esse respeito, em uma

carta da década de 1890 a Bloch, citada por Althusser:

Escutemos o velho Engels colocar, em 90, as coisas nos eixos frente aos
jovens "economistas" que não compreenderam que se tratava antes de uma
nova relação. A produção é o fator determinante, mas somente "Em última
instância". "Nem Marx nem eu afirmamos mais além disso". Aquele que
"violentar o sentido dessa frase" para que ela passe a significar que o fator
econômico é o único determinante, "transformá-lo-á numa frase vazia,
abstrata, absurda". E explica que: "A situação econômica é a base, mas os
diversos elementos da superestrutura - as formas políticas da luta das
47

classes e os seus resultados - as constituições estabelecidas uma vez


ganha a batalha pela classe vitoriosa etc., as formas-jurídicas, e mesmos os
reflexos de todas essas lutas reais no cérebro dos participantes, teorias
políticas, jurídicas, filosóficas, conceitos religiosos e o seu desenvolvimento
posterior em sistemas dogmáticos, exercem igualmente a sua ação nas
lutas históricas, e, em muitos casos, determinam-lhes de modo
preponderante a forma (...)” (ALTHUSSER, 1979, p. 98)

Que essa passagem tenha sido reproduzida por Althusser, no contexto do

seu esforço para a formulação e justificação do conceito de sobredeterminação na

teoria marxista, não é uma coisa de pequena importância. Significa que, para ele, o

princípio lógico que rege esse conceito não é estranho ao pensamento marxiano e

marxista, mas está lá, presente, apontando um caminho, embora com uma grande

dificuldade, que se desdobra em duas dimensões: 1) em suas formas mais explícitas

e conscientes, existe de um modo ainda muito embrionário e atrofiado, sem

desenvolvimento nem detalhamento. ; 2) apesar disso, em determinadas obras e

passagens, está presente de um modo desenvolvido e operante, mas sem forma

teórica explícita. E é neste ponto que podemos pensar a possibilidade de um avanço

de Althusser em relação a Marx por meio do conceito de sobredeterminação, ou

seja, no seu desenvolvimento teórico formal, no seu detalhamento conceitual e

desdobramento categorial, fazendo do membro atrofiado e do princípio latente um

membro desenvolvido e uma forma consciente.

A questão que nos importa ressaltar a essa altura, no estudo sobre o

conceito de sobredeterminação em Althusser, é que esse esforço para desenvolver

teoricamente o conceito não se dá sem um forte tensionamento, tal como o

referimos no início do capítulo. O conceito acaba sendo torturado e o seu discurso

acaba produzindo algumas confusões de entendimento. Sendo assim, temos as

formulações sobre a teoria do conhecimento em Marx, tal como nos dá no texto

sobre o método da economia política clássica. Essas formulações vão puxar o

conceito de sobredeterminação por um dos seus lados, fazendo uso da seguinte


48

corrente: o princípio que rege a lógica do conceito é o mesmo que opera no campo

da produção epistemológica, qual seja, o princípio do concreto como síntese de

múltiplas determinações. A questão é que, em Marx, esse concreto é o concreto de

pensamento, coisa da lógica, e, de modo a garantir a coerência operacional desse

princípio, não se estabelece nenhum critério teórico à priori para a hierarquização e

evidencia da relação causal entre as diferentes categorias que convergem para a

múltipla determinação. Apenas a ideia de que alguns conceitos e categorias são

mais simples do que outros, e de que a sua ordem lógica na produção do concreto

pensado não tem nenhuma relação com a sua ordem histórica de aparecimento e

operação. Há, no entanto, um outro cavalo de tração, puxando pelo outro lado o

conceito de sobredeterminação, o das formulações metodológicas da teoria do

materialismo histórico, tal como nos é dada pelo prefácio da "Contribuição...". Aqui,

para Marx, o concreto já não é mais uma coisa da lógica, mas sim a lógica da coisa,

e, como tal, já não é mais a síntese de múltiplas determinações, e sim a

determinação do todo pela estrutura econômica com as seguintes características:

uma ideia de determinação simples; uma ideia geral de condicionamento; um

princípio de hierarquização que estabelece a relação de causa e efeito entre as

coisas; e um princípio de contradição que anima o movimento do concreto. E é no

meio desse tensionamento que se situa o conceito althusseriano de

sobredeterminação. Entre o concreto como síntese de múltiplas determinações, e o

concreto com determinação econômica (no texto de Marx não aparece a noção de

"determinação em última instância"). Duas ideias que em Marx estão separadas,

uma no campo da epistemologia, outra no campo da teoria da história, sendo que,

em suma, Althusser acaba por fazer, com o conceito de sobredeterminação, um

transplante do princípio lógico que rege a epistemologia marxiana, para o terreno da


49

teoria marxista da história, regida em Marx pelo princípio da determinação

econômica. A teoria da história animada agora por dois princípios lógicos

divergentes, como um corpo com dois corações. Nada mais sintomático das

dificuldades implicadas por essa tentativa de fundir as duas ideias do que o tópico 5

do artigo "Sobre a Dialética Materialista", que compõe o livro "A Favor de Marx".

Esse tópico se intitula: "Estrutura com Dominante: Contradição e

Sobredeterminação"33, e diz entre outras coisas:

(...) essa proposição implica que as contradições 'secundárias' não sejam o


puro fenômeno da contradição 'principal', em que a principal não seja a
essência de que as secundárias seriam os fenômenos, seriam de tal modo
fenômenos que, praticamente, a contradição principal poderia existir sem as
secundárias, ou sem tal ou qual dentre elas, ou poderia existir antes delas,
ou após. Ao contrário, implica que as contradições secundárias sejam tão
essenciais à existência da contradição principal, que realmente constituem a
condição de existência desta última, do mesmo modo que a contradição
principal constitui a condição de existência delas." (ALTHUSSER, 1979, p.
180)

Daí que Althusser nos proporciona o exercício de pensar mais a fundo uma

problemática que, como dissemos na introdução, é fundamental na história do

marxismo: qual é a possibilidade da convivência entre essas duas ideias, do

concreto como síntese de múltiplas determinações e do concreto com determinação

econômica, dentro de um mesmo terreno: a teoria do materialismo histórico? Essa

convivência pode levar a um impasse insolúvel, ou a que uma das ideias murche

debaixo da sombra da outra. Essa segunda possibilidade foi um dos motivos mais

fortes da crítica marxista contra Althusser, como se verá no terceiro capítulo. Aqui,

33
Nos próprios conceitos se pode enxergar a evidência da dificuldade: o conceito de
sobredeterminação fala de determinações. E Althusser fala, principalmente, de contradições. Haveria
mais coerência em se pensar um conceito tal como sobrecontradição. Giannotti aponta, sem se
aprofundar, essa confusão em Althusser: "Ora, a nosso ver, esta homogeneidade é problemática
[referindo-se ao conceito de contradição sobredeterminada], já que devemos distinguir a contradição
enquanto categoria, condição abstrata-real da existência, da determinação histórica propriamente
dita. Assim sendo, a sobredeterminação advém da imbricação do plano sistemático no plano
histórico, as tendências que provém do sistema como um todo juntando-se às forças originárias da
conjuntura". (Giannotti. Exercícios de Filosofia. p. 100).
50

podemos caracterizá-la fazendo uso de uma passagem de Weber em que define o

papel de Deus na teoria da história de Roscher:

Se a comparação fosse permitida, se fosse oportuna e válida, poderíamos


comparar o papel desempenhado por Deus nos escritos científico de Ranke
e Roscher - por analogia, obviamente - com o papel de um monarca num
Estado organizado rigorosamente sob os princípios do sistema parlamentar.
No que diz respeito a esta forma de Estado, podemos afirmar que o lugar
mais elevado é ocupado por alguém que, na realidade, não possui quase
nenhuma influência (...) (WEBER, 2016, p. 84)

Deus e a determinação econômica, portanto, correndo o risco de fazerem o

papel de uma rainha da Inglaterra dentro da teoria da história. Voltaremos a essa

questão no terceiro capítulo.


51

3 O CONCEITO DE SOBREDETERMINAÇÃO EM ALTHUSSER:

DESDOBRAMENTOS TEÓRICOS

O objetivo do presente capítulo é o de contextualizar teoricamente a adoção

e o uso do conceito de sobredeterminação por Althusser. Como veremos a seguir,

essa apropriação crítica por parte do nosso autor se faz no contexto de um diálogo

que é estabelecido por ele com Marx e Freud. Tal diálogo é pautado por algumas

indagações centrais: o que é a dialética marxista? Essa dialética se diferencia da

hegeliana? Até que ponto ela está formalmente desenvolvida no corpo da obra

marxiana? É no processo de construção dessas respostas que vai surgir o sentido e

a justificativa da adoção, por empréstimo, do conceito de sobredeterminação.

Veremos também de que forma esse conceito aparece em um dos textos mais

importantes de Freud: "A Interpretação dos Sonhos". Também devemos caracterizar,

de modo geral, os conceitos e as categorias da forma da dialética em Hegel e em

Marx, para construir as diferenças que justificam, em Althusser, a teoria do corte

epistemológico entre os dois pensadores alemães. Além disso, deve-se caracterizar

também a forma da dialética marxista, tal como entendida por Althusser, para a

definição do conceito de sobredeterminação, e a função teórica que desempenha

dentro dessa dialética.

3.1 Os escritos de Althusser: delimitação do campo de pesquisa

Para apresentar e elaborar críticamente o conceito althusseriano de

sobredeterminação, vamos fazer uso de uma limitada e seleta bibliografia. A

primeira e mais importante das obras de Althusser (em relação ao tema que estamos

tratando, naturalmente), é o livro que foi publicado em 1965, com o sugestivo título

de Pour Marx, traduzido no Brasil como "A Favor de Marx". Esse livro, na verdade,

consiste em uma coletânea de artigos escritos no período entre 1960 e 1964, e


52

publicados nas revistas do Partido Comunista Francês, como é esclarecido pelo

próprio autor em seu prefácio aos leitores brasileiros34. Embora esses artigos não

tenham sido concebidos originalmente com o propósito de formar um livro, não há

nenhuma dúvida - para quem os estudar - de que há uma mesma lógica de fundo

regendo a produção teórica de cada um deles: o desejo de estudar, explicitar e fazer

avançar o conhecimento e o uso da dialética marxista, em sua forma filosófica e

científica. Foi uma intervenção no contexto do debate político e teórico daquele

momento, de um impasse prático e programático, no qual Althusser assumia a

defesa daquilo que ele considerava como a obra marxiana em seu caráter e valor

científico, o fruto da maturidade de Marx, contra todas as tentativas de resgate e de

elevação do Marx da juventude, tentativas essas empreendidas no contexto da crise

do stalinismo e que, do modo como via Althusser, representavam o risco de que, ao

livrar-se das duras amarras do dogmatismo sectário, o marxismo acabasse por cair

diretamente nos braços de sereia da velha ideologia alemã, afogando-se em todos

os erros que confundiam o marxismo com o humanismo que estava em moda:

A crítica do 'dogmatismo' stalinista foi 'vivida', sobretudo pelos intelectuais


comunistas, como uma 'libertação': essa 'libertação' deu origem a uma
reação ideológica de tendência 'liberal', a qual reencontrou
espontaneamente os velhos temas filosóficos da 'liberdade', de 'o homem',
da 'pessoa humana' e da 'alienação'. Essa tendência ideológica procurou
seus títulos teóricos nas obras de juventude de Marx, que contém, de fato,
todos os argumentos de uma filosofia do homem, de sua alienação e sua
libertação...O tema do 'humanismo marxista', a interpretação 'humanista' da
obra de Marx, impuseram-se, progressiva e irresistivelmente, na mais
recente filosofia marxista, no próprio seio dos partidos comunistas soviético
e ocidentais. (ALTHUSSER, 1979, p. 6)

É nessa importante obra, que ajuda Althusser a ficar cada vez mais

conhecido e debatido no cenário do marxismo francês e internacional, que vai

aparecer expressamente formulada a sua leitura sobre o "corte epistemológico" em

Marx (e que será apresentada e debatida mais adiante), assim como, em relação a

um livro com textos como esses, é que se vão tecendo os apontamentos críticos e
34
ALTHUSSER, Louis. A Favor de Marx. ZAHAR Editores. 1979, p. 5
53

acusatórios da filiação estruturalista do pensamento de Althusser. Walter J.

Evangelista, estudioso de Althusser entre nós, cita uma das expressões satíricas

nacionais dessa nova linguagem explorada por Althusser, e que também evidencia o

quanto já estava em evidência:

Os 'conceitos fundamentais' do althusserianismo - problemática, corte


epistemológico, leitura sintomal, Ideologia x Ciência - começam a ganhar as
ruas. Millor Fernandes, sempre sensível às peripécias da inteligentsia
brasileira, expressá-lo-á, um pouco mais tarde, com um cartoon inteligente e
picante: um estudante da PUC do Rio é assaltado, na rua, por um marginal
da favela próxima, que lhe aponta o revólver. O estudante, perplexo,
pergunta ao marginal se se tratava ou não de um corte epistemológico.
Millor parecia sentir, no ar, alguns dos impasses do 'teoricismo.
(EVANGELISTA apud ALTHUSSER, 2000, p.25)

Não é uma das pretensões dessa dissertação debater e elaborar um parecer

sobre se Althusser, nesses escritos, se comporta teoricamente, de fato, como um

estruturalista, até que medida fez uso do estruturalismo dentro do marxismo, ou se

tal apontamento sempre consistiu mais em equívoco difamatório do que em correção

de leitura. Indicaremos apenas o fato bastante conhecido de que Althusser escreveu

um texto crítico sobre o estruturalismo representado por Lévi-Strauss, em que faz

alguns apontamentos sobre as divergências fundamentais que ele via entre tal

modelo e o do marxismo, e que impediriam o reconhecimento dessa identidade nos

seus próprios escritos35. O que também não pode deixar de ser dito é que, apesar

desse esforço formal empreendido por Althusser, de bater estacas e cavar os fossos

que separariam o estruturalismo do marxismo, nos seus movimentos de autocrítica,

que serão referidos com mais precisão adiante, o nosso autor reconhece que uma

certa confusão foi causada pela aproximação de terminologia entre as duas escolas,

muito embora tenha mantido o entendimento de que são dois paradigmas distintos e

inconciliáveis, principalmente por alguns desencontros conceituais de suma

importância:
35
ALTHUSSER, Louis. Sobre Lévi-Strauss. CAMPOS - Revista de Antropologia Social. Vol. 6, 2005,
p. 197.
54

Não obstante as cautelas tomadas para nos distinguirmos da ideologia


'estruturalista' (dissemos muito claramente que a 'combinação' que
verificamos em Marx nada tem a ver com uma 'combinatória'), e apesar da
ocorrência decisiva de categorias estranhas ao 'estruturalismo'
(determinação em última instância, dominação, sobredeterminação,
processo de produção, etc.), a terminologia que antes utilizáramos estava,
sob vários aspectos, demasiado próxima da terminologia 'estruturalista'; isso
sem dúvida levou a equívocos. (ALTHUSSER, 1979, p. 7)

De qualquer forma, com relação ao livro "A Favor de Marx", o que nos

interessa mais diretamente são os capítulos dedicados à definição e discussão do

conceito de sobredeterminação, bem como as questões que configuram o contexto

teórico que ajudam a dar sentido e função a esse conceito, principalmente os

elementos básicos que compõem a tese da cesura epistemológica, por indicarem a

ruptura com a forma hegeliana da dialética (e o conceito de sobredeterminação é a

expressão mais sintética e significativa dessa ruptura).

Articulando-se diretamente com essas questões que configuram o contexto

teórico do conceito de sobredeterminação, temos também a perspectiva daquilo que

Althusser vai chamar, em outra de suas obras mais importantes - "Ler o Capital" - de

leitura sintomal. Os princípios básicos do procedimento de estudo proposto pela

leitura sintomal são de grande valor para o entendimento crítico dos processos de

uso, apropriação e reelaboração de conceitos que vão sendo assimilados no corpo

de uma teoria (no caso da leitura de Althusser, no corpo da obra marxiana), e que

são os sinais indicativos da construção de uma nova identidade (o Marx maduro),

em oposição - corte epistemológico - a uma identidade que inicialmente é tomada de

empréstimo (o Marx jovem)36. Daí a importância estratégica do Marx da maturação,

em processo de mutação, quando velhos conceitos, tomados de empréstimo, vão

assumindo estruturalmente novas funções, valores e significados, tal como uma

36
Althusser caracteriza o jovem Marx em dois momentos: o momento racionalista-liberal e o momento
racionalista-comunitário (ALTHUSSER, L. A Favor de Marx. 1979, p. 25-26). O primeiro momento é
inserido dentro de uma problemática kantiana-fichtiana. O segundo, por sua vez, na problemática
antropológica de Feuerbach.
55

pessoa dos dias de hoje vestindo as roupas da moda de uma época antiga e já

ultrapassada. Essa leitura crítica do processo de mudança dos padrões conceituais

já existia nos textos de Pour Marx, mas ainda sem os contornos definitivos e

magistrais, e sem o seu nome definitivo - leitura sintomal - que só vai ganhar três

anos depois, com a publicação de "Ler o Capital".

A teoria da leitura sintomal é uma das contribuições mais originais e

importantes de Althusser para a história do marxismo e a leitura de Marx37. Os

temas relacionados a esse movimento de tomar de empréstimo a outras áreas do

conhecimento (é o caso do próprio conceito de sobredeterminação, extraído da

psicanálise freudiana), ou de outras "problemáticas" dentro de uma mesma área de

conhecimento, e todas as complexidades que se ligam a isso, são, na visão de

Althusser, temas fundamentais para a produção e reflexão crítica de uma teoria do

conhecimento, o próprio objeto de estudo que temos aqui em mira, ou seja, a teoria

do método, ou, melhor dizendo, a história viva que produz o procedimento

37
A teoria da Leitura Sintomal, que Althusser vai formular em seu "Ler o Capital", é demasiado
complexa e cheia de facetas para desejarmos apresentá-la aqui, além desse modo muito resumido
que foi adotado. Mas não podemos deixar de apontar, como reforço a um dos argumentos mais
importantes que se pretende defender nessa dissertação, que aqui podemos encontrar, mais uma
vez, o desejo althusseriano de construir pontes e apropriações críticas (ao contrário da produção em
massa dos anátemas que constituem um procedimento padrão vinculado ao sectarismo dogmático)
com outras produções teóricas e científicas, tal como se evidencia nos casos de Freud e Lacan. No
caso da Leitura Sintomal, Althusser vai se referir, em um de seus aspectos, ao prefácio de Foucaul à
sua "História da Loucura", onde o nosso autor enxerga uma ilustração equivalente da sua noção de
campo teórico, definido e estruturado por uma determinada problemática, como um espaço
estruturado que dá as condições de possibilidade do que é visível e invisível, em termos de
problemas que são colocados e respostas que visam às suas soluções - espaço com outro espaço no
seu interior, dentro do qual se manifestam questões e respostas latentes, ainda não evidenciadas,
"invisíveis" (e que só se tornam "visíveis" com uma mudança de problemática), mas que se fazem
sentir por meio de sintomas, naquilo que é designado como "lacunas", "erros", "cegueiras" do teórico
que opera dentro de uma problemática (evocando-se, aqui, a leitura crítica, sintomal, de Marx em
relação à Adam Smith). Ver, a esse respeito, o prefácio de "Ler o Capital", p. 25-26. No prefácio de
Foucault referido por Althusser encontramos a seguinte passagem: "Um livro é produzido, evento
minúsculo, pequeno objeto manejável. A partir daí, é aprisionado num jogo contínuo de repetições;
seus duplos, a sua volta e bem longe dele, formigam; cada leitura atribui-lhe, por um momento, um
corpo impalpável e único; fragmentos de si próprio circulam como sendo sua totalidade, passando por
contê-lo quase todo e nos quais acontece-lhe, finalmente, encontrar abrigo; os comentários
desdobram-no, outros discursos no qual enfim ele mesmo deve aparecer, confessar o que se
recusou a dizer, libertar-se daquilo que, ruidosamente, fingia ser." (FOUCAULT, Michel. História
da Loucura. Prefácio. PERSPECTIVA. 2012. Negrito nosso)
56

metodológico e a possibilidade de uma teoria do método. Essa própria condição de

tomar de empréstimo, reelaborar, e fazer com que seja "seu" - no caso, marxista - o

que antes era estranho e emprestado, até que possa surgir a forma adequada da

coisa nova: o novo conceito, é a condição de alguns dos termos mais importantes de

Althusser: da sobredeterminação, como já foi dito, assim como das noções de

"problemática" e "cesura epistemológica", que não são conceitos inventados por ele,

nem por ele extraídos, diretamente, da obra marxiana. O próprio Althusser aponta as

suas origens:

(...) tomei de Jacques Martin o conceito de problemática para designar a


unidade específica de uma formação teórica, e, por conseguinte, o lugar
assinalado dessa diferença específica, e de G. Bachelard o conceito de
"cesura epistemológica" para assim pensar a mutação da problemática
teórica contemporânea da fundação de uma disciplina científica. que se fez
necessário construir um conceito e tomar outro emprestado em nada
importa que ambos os conceitos fossem arbitrários e exteriores a Marx.
Mas, ao contrário, poder-se-á mostrar que estão presentes e em ação no
pensamento científico de Marx, ainda mesmo quando sua presença
permanece, na maior parte do tempo, em estado prático. (ALTHUSSER,
1979, p. 23)

O fato de existir em estado prático, sem ainda emergir plenamente à

consciência, sem ainda possuir um nome de batismo e uma vida teórica

independente, esse é justamente o objeto procurado pela leitura sintomal, o sintoma

de um conceito ainda em estado latente e indefinido, de uma coisa que existe, opera

praticamente, mas que ainda não foi reconhecida e identificada38.

Resta, por fim, uma última referência bibliográfica fundamental, os textos de

Althusser que tratam da relação entre o marxismo e a psicanálise, relação da qual

38
A validade da proposta althusseriana de uma leitura sintomal dos textos de Marx deu pano para a
manga da crítica contra uma suposta aproximação de Althusser do pensamento positivista da antiga
escola francesa. É nesse sentido que é questionada pelo senhor J.A. Giannotti, no artigo que
escreveu contra Althusser. Segundo o filósofo brasileiro, a leitura sintomal pressupõe,
equivocadamente, uma "incompetência vocabular" em Marx (Giannotti defende a ideia de que não há
descontinuidade epistemológica entre Hegel e Marx), exigindo, arbitrariamente, uma leitura
privilegiada das entrelinhas em detrimento das linhas, e que, por fim, acaba por sustentar um
entendimento sobre as verdadeiras descobertas de Marx, que, em última análise, se torna
inverificável (GIANNOTTI. J. A. Exercícios de Filosofia. Seleções CEBRAP 2. CEBRAP/Brasiliense.
1975. p. 87-88).
57

resulta o próprio conceito de sobredeterminação: "Freud e Lacan" (1964), e "Marx e

Freud" (1976). Mais de uma década, portanto, separando a publicação desses dois

textos.

Com isso, terminamos o delineamento mais geral da bibliografia que vamos

utilizar para apresentar e discutir o conceito althusseriano de sobredeterminação,

que é o que de fato mais nos interessa. O importante até aqui foi pontuar alguns dos

tópicos teóricos críticos que eventualmente serão retomados e aprofundados ao

longo do presente trabalho, sempre que pertinentes ao nosso tema, e que

caracterizam os principais marcos do contexto teórico ao qual está ligado o conceito

de sobredeterminação.

3.2. Psicanálise e marxismo

Em uma de suas conhecidas expressões metafóricas, Althusser nos diz que

Marx foi o responsável por abrir um novo "continente" ao conhecimento científico - o

continente da História, ao fundar uma nova ciência: a ciência das formações sociais

(o materialismo histórico), e uma nova filosofia (a dialética materialista), assim como

haviam feito antes Tales de Mileto e Galileu, ao abrirem ao conhecimento científico,

respectivamente, os "continentes" da matemática e da natureza.39 Poderíamos fazer

uso do mesmo princípio de analogia para dizer que Freud, tal como o entende

Althusser, também abriu um novo "continente" ao conhecimento científico: o

continente da subjetividade humana e a nova ciência que a ele corresponde: a

psicanálise40.

39
ALTHUSSER, Louis. A Favor de Marx. ZAHAR Editores. 1979. p. 8.
40
Que a Psicanálise seja uma ciência, é um tema dos mais controvertidos entre os psicanalistas.
Não desejamos entrar no mérito desse debate, seja pelo fato de que não é necessário ao propósito
dessa dissertação, seja porque nos faltaria a competência para tanto. Apesar disso, fazemos a
afirmação acima dentro da lógica da argumentação de Althusser, que faz uso dos seus próprios
critérios para definir uma disciplina científica, ao mesmo tempo que julga apoiar-se em Lacan para
legitimar tal afirmação: "A primeira palavra de Lacan é para dizer: em princípio, Freud fundou uma
ciência. Uma ciência nova, que é a ciência de um objeto novo: o inconsciente." (ALTHUSSER, Freud
58

À primeira pergunta que vem a mente - porque Althusser se interessou tanto

pela psicanálise? - poderíamos confrontar com uma outra, com o propósito de

inverter o sentido da reflexão: como poderia ele não ter se interessado por ela? A

psicanálise, no seu tempo, já havia se consolidado como uma poderosa corrente de

pensamento, militância e atuação profissional que versava sobre o homem e a sua

relação com a sociedade. Em 1949, a revista teórica oficial do PCF publicou um

artigo crítico de acusação e de recusa da psicanálise, apontando nela um "princípio

mistificador" e uma condição natural de "ideologia reacionária"41 Essa posição em

relação ao problema da psicanálise acabou ganhando um certo status de posição

oficial dos comunistas franceses e, como lembra Althusser, era ainda a ideia

hegemônica quando escreveu o seu texto de 1964.

“Freud e Lacan" é a aparição teórica de Althusser no cenário desse debate.

Nesse artigo, publicado na mesma revista já referida, outrora o palco da execração

pública, Althusser vai defender a tese de que Freud foi o responsável por uma nova

"descoberta revolucionária", que foi o fundador da ciência de um novo objeto - o

inconsciente - e de que no contexto dessa fundação, no desenvolvimento e na

consolidação dos seus marcos teóricos e metodológicos, existem valiosas

descobertas e criações sobre a dialética crítica (e o conceito de sobredeterminação

é um desses desenvolvimentos inovadores).

Nesse sentido, Althusser questiona e critica os marxistas que condenaram

em definitivo a psicanálise, por se terem deixado cegar em relação a esse seu

caráter científico e dialético. Construindo uma analogia e um paralelo muito

e Lacan, Marx e Freud, 2000, p. 55)


41
Veja-se, a esse propósito, o comentário de Walter José Evangelista, na sua introdução crítico-
histórica à edição brasileira dos textos "Freud e Lacan", "Marx e Freud", que já foi indicada,
principalmente p. 11.
59

expressivos entre Marx e Freud, e entre Lacan e ele mesmo, Althusser vai dizer que

as leituras, apropriações e deformações ideológicas da obra freudiana (assim como

foi com a obra marxiana), bem como o revisionismo oportunista e ideologicamente

burguês empreendido por diversos psicanalistas sobre a obra de Freud (assim como

foi feito por diversos marxistas em relação à obra de Marx) criaram uma gorda e

espessa camada de preconceitos e de leituras ideológicas envolvendo o corpo dos

textos freudianos, confundindo-os, portanto, com essas suas versões ideológicas e

revisionistas, e que se expressam, segundo Althusser, em diversas modalidades de

biologismo, psicologismo, sociologismo, etc. distorcendo a verdadeira natureza da

ciência psicanalítica. Os marxistas de 49 e os seus seguidores são, nesse texto,

duramente criticados principalmente pelo fato de que um dos maiores

empreendimentos e legados da obra marxiana reside, justamente, na elaboração de

todo um aparato crítico, teórico e metodológico, que serve para identificar, criticar e

fazer desmoronar todas as construções ideológicas que deformam um objeto.

O motivo pelo qual isso acontece nos interessa na medida em que se trata

de mais um ponto de identidade entre as teorias marxiana e freudiana. Althusser, em

"Marx e Freud", vai qualificar ambas as teorias como "ciências cisionistas", ou seja,

condenadas por natureza a um processo histórico-dialético de sucessivas e sempre

renovadas tentativas de "resistência-crítica-revisão", pelo fato de que carregam em

si, por serem "descobertas revolucionárias", cada uma à sua maneira, de acordo

com a especificidade irredutível do seu objeto de conhecimento, uma verdade não

apenas inconveniente, mas com potenciais destrutivos em relação à ordem social

burguesa e às estruturas das suas construções ideológicas (no caso de Freud, a

demolição da ideologia do homem como sujeito, unificado pela consciência, cujo


60

tema não podemos desenvolver aqui)42:

O mais importante nessa dialética resistência-crítica-revisão é que esse


fenômeno, que começa sempre fora da teoria freudiana (em seus
adversários) acaba sempre dentro da teoria freudiana. É, então, a partir de
seu próprio interior que a teoria freudiana se vê obrigada a defender-se
contra as tentativas de anexação e de revisão: o adversário acaba sempre
por "infiltrar-se" - o revisionismo - provocando contra-ataques internos que
acabam em cisões. Ciência conflituosa, a teoria freudiana é uma ciência
cisionista, cuja história vem marcada por cisões incessantemente
renovadas. (ALTHUSSER, 2000, p. 79)

Um retorno a Freud, portanto, faz-se necessário. Um retorno ao

conhecimento da sua "descoberta revolucionária", assim como Althusser estava

propondo um retorno ao conhecimento verdadeiro de Marx, contra todas as

distorções dogmáticas e sectárias do stalinismo, e contra as distorções ideológicas

do humanismo então em voga. Esse retorno pressupões, naturalmente, a

construção de uma ponte, que consiga passar por cima dessa grossa camada de

gordura ideológica que se formou, ou então, em outra imagem talvez mais sugestiva,

que se corte na carne essa grossa camada, e que se possa chegar por dentro,

construindo um túnel, até o objeto que está escondido atrás. Ora, o que são os

textos de Althusser, principalmente Pour Marx e "Ler o Capital", senão o esforço em

construir esse caminho de retorno? E o que são os Seminários de Lacan - o mesmo

desejo - mas em direção a Freud? A esse propósito, cumpre dizer que esse tema do

recuo, da "volta para trás", como processo crítico que visa a libertação das formas

ideológicas e o reencontro com a história em suas formas concretas (ou, no caso

presente, o reencontro com a verdade de uma teoria), é indicado por Althusser como

um dos procedimentos básicos de demolição crítica das construções ideológicas, e

que pode ser demonstrado pela própria elaboração da obra marxiana no seu período

de maturação, especialmente na crítica que empreendeu da ideologia alemã:

42
Veja-se, sobre esse tópico: ALTHUSSER, Louis. Freud e Lacan, Marx e Freud. graal. Rio de
Janeiro. 4º edição. 2000. p. 84.
61

Pode-se, então, conceber o que podia e o que devia ser a condição


fundamental da liberação de um jovem intelectual alemão que começava a
pensar, entre os anos 30 e 40, na Alemanha. Essa condição era a
redescoberta da história real, a redescoberta dos objetos reais para além da
enorme camada ideológica que os revestia, e não os tinha somente
convertidos em sombras, mas deformados. Donde essa consequência
paradoxal: para se libertar dessa ideologia Marx deveria inevitavelmente
tomar consciência de que o superdesenvolvimento ideológico da Alemanha
era na verdade, e ao mesmo tempo, a expressão do seu
subdesenvolvimento histórico, e que é preciso, portanto, retornar para
aquém dessa fuga para diante ideológica, para atingir as próprias coisas,
para se poder tocar a história real, e, afinal, ver frente a frente os seres que
povoavam as brumas da consciência alemã. (ALTHUSSER, 1979, p. 64)

A volta para trás significando, portanto, o reencontro com a história concreta,

ou o reencontro com a verdade crítica de um pensamento. Althusser a favor de

Marx. Lacan a favor de Freud. A auto identificação com Lacan construída por

Althusser é tão forte que, em um momento de muita dificuldade, o marxista acolhe o

psicanalista e o abriga em sua própria casa:

Com efeito, no fim de 1963, Lacan é excomungado da Sociedade Francesa


de Psicanálise, uma vez que esta desejava filiar-se à International Psyco-
Analytic Association, a qual, por sua vez, exigia, como condição, a cabeça
de Lacan. Imediatamente após, o professor Delay, que acolhia seus
seminários em Sainte-Anne, aproveita-se das circunstâncias para
desembaraçar-se de tão tumultuosa personagem. Lacan está, a partir de
então, sem a SFP e sem o apoio logístico de um centro da importância que
tem o Sainte-Anne, no poderoso mundo da aristocracia médica francesa.
Nessa conjuntura, a intervenção de Althusser é dupla: ao mesmo tempo em
que redige "Freud e Lacan" (janeiro de 1964), na qualidade de Secretário da
prestigiosa Ecole Normale Supérieure da rue d'Ulm, convida Lacan para ali
continuar seus seminários, que são retomados a partir de 15 de Janeiro de
1964.(ALTHUSSER, 2000, p. 17)

O que nos interessa dessa relação entre o marxismo e a psicanálise, dos

textos de Althusser que refletem sobre esse tema, é apenas o que diz respeito ao

conceito de sobredeterminação, o objeto que fizemos nosso no presente trabalho. Já

pontuamos os delineamentos mais gerais dos tópicos que falam a esse respeito.

Resta apenas, para terminar esse capítulo, consolidar a afinidade filosófica de fundo

que Althusser enxerga em Marx e Freud.

Freud, tanto quanto Marx, é, segundo define o nosso autor, um pensador


62

materialista e dialético43:

Se a tese mínima que define o materialismo é a existência da realidade fora


do pensamento ou da consciência, Freud é, desde o início, materialista, já
que nega a primazia da consciência, não só no conhecimento, mas também
na própria consciência, e nega, além disso, a primazia da consciência na
Psicologia, para pensar o aparelho psíquico como um todo, em que o ego,
ou o consciente, nada mais é senão uma instância, parte ou efeito.
(ALTHUSSER, 2000, p. 77)

Quanto ao caráter dialético de Freud, Althusser o representa por meio de

algumas de suas categorias, tais como "transferência", "condensação" e a própria

sobredeterminação. E redige a esse respeito o seguinte parágrafo, que pode

surpreender muito à primeira vista:

Marx e Freud se aproximariam, portanto, um do outro através do


materialismo e da dialética, com a surpreendente vantagem, da parte de
Freud, de haver explorado figuras dialéticas muito parecidas com as de
Marx, mas, às vezes, inclusive, mais ricas que estas e como que esperadas
pela própria teoria de Marx. Se posso citar-me, num outro momento já dei
um exemplo dessa surpreendente afinidade, ao fazer ver que a categoria de
superdeterminação (tirada de Freud) era alguma coisa necessária e
esperada pelas análises de Marx e de Lênin, aos quais convinha
exatamente, tendo, além disso, a vantagem de destacar o que separava
Marx e Lênin de Hegel, no qual, precisamente, a contradição não está
superdeterminada. (ALTHUSSER, 2000, p. 78)

Essa leitura surpreende não pela afirmação sobre o caráter dialético de

certas categorias freudianas, mas por dizer que algumas delas são mais ricas do

que as utilizadas por Marx, e como que realizando teoricamente, explicitando e

pondo em forma, princípios e tópicos da dialética que eram antecipados pelo

marxismo, mas que se encontravam ainda em estado apenas prático e latente. E,

43 Que Freud seja considerado como um teórico científico e dialético é um tema muito controverso
dentro do marxismo. No capítulo 3 da presente dissertação vamos fazer algumas indicações sobre os
marxistas franceses com os quais Althusser debateu mais diretamente a esse respeito, e que
criticavam a psicanálise pelo seu conteúdo ideológico burguês e conservador. Além dessas
referências, há também um importante texto de Mikhail Bakhtin, intitulado "O Freudismo", que
representa um outro ponto de vista marxista crítico à teoria freudiana, elaborado na Rússia Soviética
na década de 1920. Nesse texto, em que Bakhtin acusa a psicanálise de ser uma modalidade da
filosofia burguesa decadente e subjetivista, e que tem um capítulo dedicado à crítica da apologia da
psicanálise que diversos psicólogos marxistas soviéticos faziam naquele momento, há a seguinte
passagem em que o autor fala sobre o caráter dialético do pensamento de Freud: "É dialético todo
pensamento do homem, é dialético o psiquismo subjetivo do homem que acredita nos discursos
interior e exterior, é dialético o mito, o delírio do louco. Ademais, é dialética toda tolice, é dialética a
mentira...O que há de surpreendente se o quadro da dinâmica ideológica cotidiana que Freud
desenvolve vem a ser interiormente dialético?" (BAKHTIN, O Freudismo, 2014. p. 98)
63

nesse conjunto, sem dúvida nenhuma a categoria que mais se destaca é a da

sobredeterminação, que não só é a que Althusser quase que exclusivamente

desenvolve teoricamente e põe em ação na sua prática teórica, como também é a

que ocupa o lugar estratégico do corte epistemológico que separa a dialética

marxista da hegeliana. O modo como isso se dá, e que já desponta na citação acima

- a contradição, em Hegel, não está sobredeterminada - bem como as implicações

diretas que esse corte acarreta em dupla direção: no trabalho de produção de

conhecimento do marxismo, e na elaboração de estratégias para a atuação política,

será o tema central do próximo capítulo.

Resta-nos, por fim, uma definição mais direta sobre o uso do conceito de

sobredeterminação em Freud. A princípio, é importante que se diga que muitas das

análises de Freud, pensando-se, por exemplo, em uma obra como "A Interpretação

dos Sonhos", e que se expressam sinteticamente em diversas categorias, algumas

das quais já foram indicadas acima, são análises e categorias que expressam

diversas modalidades de relações contraditórias e antitéticas regendo a lógica de

funcionamento do aparelho psíquico, e que foram qualificadas como dialéticas pelos

apontamentos feitos por Althusser. Essas análises e categorias, no seu conjunto,

poderiam se prestar a um trabalho teórico de estudo e sistematização crítica em um

corpo de tópicos articulados, e que poderia ser denominado "estudo sobre a dialética

em Freud", não apenas com o propósito de aprofundar o conhecimento do

pensamento freudiano, que, dentro dessa delimitação específica, serviria mais

diretamente à comunidade dos pesquisadores em psicanálise, mas, para nós,

sobretudo, pelo interesse em cotejar criticamente os tópicos da "dialética em Freud",

com os tópicos da dialética em Marx, na trilha do caminho que foi aberto pelo próprio

Althusser. A impressão que se tem, observando minimamente o funcionamento da


64

categoria de sobredeterminação em Freud, é a de que essa comparação crítica seria

altamente produtiva para o desenvolvimento teórico e metodológico do marxismo.

Sem nenhuma pretensão de querer esgotar o tema, ou enunciar a palavra

definitiva sobre esse assunto, vejamos agora de que forma se coloca o uso do

conceito de sobredeterminação em um dos mais importantes textos freudianos: "A

Interpretação dos Sonhos". Do ponto de vista da localização dentro da estrutura

narrativa dessa obra, o conceito aparece no capítulo VI, intitulado "O Trabalho do

Sonho", e, dentro desse capítulo, está diretamente relacionado com a elaboração de

algumas das categorias mais importantes desse tema: A) "O trabalho de

condensação"; B) "O trabalho de deslocamento"; C) "Os meios de representação

nos sonhos"; e D) "Consideração à representabilidade. Não se consegue aqui

retomar todas as ideias mais importantes sobre a teoria dos sonhos em Freud antes

de se chegar a esse Capítulo VI, pois isso demandaria muito tempo e muito trabalho

de escrita, desviando o propósito do presente trabalho. Retomaremos, portanto, de

um modo muito sumário e pontual, algumas dessas ideias, e apenas na medida em

que se façam imprescindíveis para o esclarecimento da lógica que rege a

construção dessas categorias, dentro das quais opera o nosso conceito de

sobredeterminação.

Vejamos então, principalmente, o que Freud vai nos dizer sobre a categoria

de "condensação", e que se revela para nós a mais importante de todas:

A primeira coisa que se torna clara para quem quer que compare o
conteúdo do sonho com os pensamentos oníricos é que ali se efetuou um
trabalho de condensação em larga escala. Os sonhos são curtos,
insuficientes e lacônicos em comparação com a gama e riqueza dos
pensamentos oníricos. Se um sonho for escrito, talvez ocupe meia página.
A análise que expõe os pensamentos oníricos subjacentes a ele poderá
ocupar seis, oito ou doze vezes mais espaço. Essa relação varia com os
diferentes sonhos, mas, até onde vai minha experiência, sua direção nunca
muda...Já tive ocasião de assinalar que, de fato, nunca é possível ter
certeza de que um sonho foi completamente interpretado. Mesmo que a
solução pareça satisfatória e sem lacunas, resta sempre a possibilidade de
que o sonho tenha ainda outro sentido. Rigorosamente falando, portanto, é
65

impossível determinar o volume de condensação. (FREUD, 2001, p. 248)

Um sonho, segundo Freud, possui um conteúdo manifesto e um conteúdo

latente. O conteúdo manifesto é aqui designado como "o conteúdo do sonho", ao

passo que o conteúdo latente é definido como sendo os "pensamentos oníricos".

Com base nessa definição inicial, temos a importante ideia de que o conteúdo

manifesto de um sonho é, via de regra, muito "menor" ou mais "curto" do que o seu

conteúdo latente, e que nunca será possível estabelecer com precisão até que ponto

foi atingido o "volume de condensação".

Em seguida, após relatar os principais elementos de um de seus sonhos, ("O

Sonho da Monografia de Botânica"), Freud estabelece a seguinte formulação teórica:

Essa primeira investigação leva-nos a concluir que os elementos 'botânica' e


'monografia' penetraram no conteúdo do sonho porque possuíam inúmeros
contatos com a maioria dos pensamentos oníricos, ou seja, porque
constituíam 'pontos nodais' para os quais convergia um grande número de
pensamentos oníricos, porque tinham vários sentidos ligados à
interpretação do sonho. A explicação desse fato fundamental também pode
ser formulada de outra maneira: cada um dos elementos do conteúdo do
sonho revelou ter sido 'sobredeterminado' - ter sido representado muitas
vezes nos pensamentos oníricos. (FREUD, 2001, p. 248)

Aqui, pela primeira vez, aparece o nosso conceito de sobredeterminação, e

já com a função que o vai caracterizar não só no pensamento freudiano, mas

também no marxista. De acordo com a passagem citada, cada um dos elementos do

sonho se liga a um grande número de pensamentos oníricos latentes, e essa ligação

significa que cada um desses elementos - "pontos nodais" - é determinado em

conjunto por todos os pensamentos oníricos aos quais está ligado. Temos, assim, o

efeito da sobredeterminação: sobredeterminação do conteúdo do sonho, e de cada

um dos seus elementos, por um vasto conjunto de pensamentos oníricos latentes.

Essa primeira aparição do conceito na "Interpretação dos Sonhos", como já foi dito,

anuncia de imediato a função que é chamado a cumprir: a sobredeterminação não é

um resultado que se evidencia por si mesmo, nem prática nem teoricamente; não é
66

uma categoria que se estabelece entre os resultados visados pelo "trabalho do

sonho" como o é, por exemplo, a "condensação". É, na verdade, um princípio ou

uma lógica de funcionamento da coisa, e, como tal, tem um valor eminentemente

epistemológico, tal como o encara Althusser, funcionando muito mais como um

conceito do que como uma categoria, em sentido marxista pelo menos.

Guardemos para nós, nesse momento, para depois retomar e cotejar

criticamente com os tópicos da dialética marxista, a seguinte formulação sintética,

extraída das reflexões acima:

1) O conteúdo manifesto de um sonho, bem como cada um dos elementos

que o compõe, como elementos da percepção consciente, é sobredeterminado por

um conjunto muito maior de pensamentos oníricos latentes (que, como tal, existem e

atuam inconscientemente). Esse processo de sobredeterminação resulta no

fenômeno de "condensação" dos sonhos, uma das funções do "trabalho do sonho".

A psicanálise, diante disso, ganha como meta analítica a tarefa de desvelar as

múltiplas ligações que sobredeterminam o conteúdo do sonho, e cada desvelamento

que faz nesse sentido, cada análise de sonho, pressupõe a confirmação da tese

fundamental defendida por Freud, e que caracteriza a natureza de todos os sonhos:

todo sonho é a realização de um desejo.

Freud, por fim, termina a sua caracterização da "condensação" do sonho

com mais uma observação importante para nós:

A natureza da relação entre o conteúdo do sonho e os pensamentos


oníricos torna-se assim visível. Não só os elementos de um sonho são
repetidamente determinados pelos pensamentos oníricos como também
cada pensamento do sonho é representado neste último por vários
elementos. As vias associativas levam de um elemento do sonho para
vários pensamentos oníricos e de um pensamento onírico para vários
elementos do sonho...os elementos oníricos são construídos a partir de toda
a massa de pensamentos oníricos e cada um desses elementos mostra ter
sido multiplamente determinado em relação aos pensamentos oníricos.
(FREUD, 2001, p. 248)

Dessa última definição, devemos resguardar mais uma ideia importante para
67

o posterior cotejamento crítico:

2) Não só o conteúdo do sonho, e cada um dos seus elementos, é o

resultado da sobredeterminação de múltiplos pensamentos oníricos latentes, mas

também, cada pensamento onírico latente em particular, determina um conjunto de

diversos elementos do conteúdo do sonho, é representado por todos esses diversos

elementos44.

O esforço despendido por Althusser e também por essa dissertação deve ter

despertado, em algum momento, uma dúvida legítima: até que ponto é válida uma

analogia entre os processos de pensamento da psicanálise e da dialética marxista?

Em Althusser, considerando o nosso objeto, a exploração dessa identidade de lógica

se faz principalmente em dois momentos. O primeiro momento, explicitado no

esforço de cotejamento que foi feito acima, visa explicitar a analogia em relação à

definição e funcionamento metodológico do conceito de sobredeterminação em

Freud e Althusser, para explicar a lógica de fundo que rege a construção de um

sonho, no caso do primeiro, e a construção de uma sociedade histórica, no segundo.

O outro momento no qual se efetua uma analogia desse tipo virá a seguir, no

contexto teórico de definição das novas categorias exigidas para a dialética

marxista. Nesse caso, a analogia remete ao uso de categorias que pertencem à

análise dos sonhos, e Althusser o faz sem nenhuma explicação sobre até que ponto

se trata, efetivamente, de uma identidade de lógica com os processos de

pensamento da psicanálise. Com o conceito de sobredeterminação o caso é

44
No "Vocabulário da Psicanálise" o conceito de Superdeterminação, Sobredeterminação ou
Determinação Múltipla, está assim definido: "O fato de uma formação do inconsciente - sintoma,
sonho, etc. - remeter para uma pluralidade de fatores determinantes. Isto pode ser tomado em dois
sentidos bastante diferentes: a) A formação considerada é resultante de diversas causas, pois que
uma só não basta para a explicar; b) A formação remete para elementos inconscientes múltiplos, que
podem organizar-se em sequências significativas diferentes, cada uma das quais, a um certo nível de
interpretação, possui a sua coerência própria. Este segundo sentido é o mais geralmente admitido."
(LAPLANCHE e PONTALIS, Vocabulário da psicanálise, 1970. p. 641)
68

diferente. Nosso autor pontua aqui a existência do parentesco lógico, que torna

legítimo o efeito de importação do conceito, e enxerga a coerência lógica existente

entre a forma dada pela conceituação e o conteúdo do objeto designado: a dialética

marxista45.

3.3. A teoria do corte epistemológico

O conceito de sobredeterminação em Althusser é a chave epistemológica

mais estratégica para a construção da diferença de essência, ou de estrutura, entre

a dialética em sua forma marxista e em sua forma hegeliana. Do ponto de vista da

leitura feita pelo nosso autor, há uma diferença radical entre essas duas formas de

dialética, as quais, se forem confundidas, mal separadas ou identificadas, acabariam

por acarretar inevitavelmente em algum tipo de mistificação do marxismo. Por aí se

explica a ambição maior que rege os escritos de Pour Marx, ou seja, o desejo de

estabelecer, em bases mínimas e sólidas, os tópicos da estrutura básica que

diferencia e caracteriza a dialética marxista: "...estou convencido de que o

desenvolvimento filosófico do marxismo está dependendo dessa tarefa"

(ALTHUSSER, 1979, p. 80).

Esse posicionamento que Althusser adota, de construir a diferença radical

que separa a dialética de Hegel da de Marx, é a base da argumentação teórica que

ele desenvolve sobre a teoria do corte epistemológico, que tem como função separar

dois mundos teóricos distintos dentro do próprio Marx. Vejamos agora a


45
Reproduzimos aqui a nota de rodapé da pág. 182 de "A Favor de Marx", obra já citada: "Não forjei
esse conceito. Conforme indiquei, tomei-o emprestado a duas disciplinas existentes: no caso, a
Linguística e a Psicanálise. Aí possui ele uma 'conotação' objetiva dialética, e - em particular, na
Psicanálise - bastante aparentado, formalmente, ao conteúdo que ele aqui designa, para que esse
empréstimo não seja arbitrário. É preciso, necessariamente, uma palavra nova para designar uma
precisão nova. Podemos, decerto, forjar um neologismo. Pode-se, também, 'importar' (como diz Kant)
um conceito bastante aparentado para que a sua domesticação (Kant) seja fácil. Esse 'parentesco'
poderia, aliás, permitir, em troca, um acesso à realidade psicanalítica". E aqui vemos justificado o
pequeno esforço de cotejamento crítico que acabamos de fazer: evidenciar a identidade de lógica
entre dois processos de pensamento diferentes e permitir ver uma possível via de acesso à dialética
em sua forma psicanalítica. O aprofundamento dessa linha de investigação, no entanto, é matéria
para um trabalho específico.
69

caracterização básica dessa teoria em Althusser.

Como já foi dito no capítulo anterior, Althusser, por meio de uma metáfora

topográfica, afirma que Marx abriu um novo continente para o conhecimento

científico - o continente da história - designando, dentro desse novo espaço

desbravado, como objeto de conhecimento as formações sociais e as lutas de

classe. Marx é o fundador, portanto, de uma nova disciplina científica: o materialismo

histórico. Essa nova teoria científica da história vai se formando, explicitando-se por

meio dos seus conceitos e categorias, até ganhar a sua forma definitiva e acabada

nas obras da maturidade de Marx, pensando-se principalmente no conjunto

conhecido como "crítica da economia política". Acontece que, nesse mesmo ato de

fundação do materialismo histórico, cria-se também, segundo Althusser, uma nova

disciplina filosófica, designada como "materialismo dialético". No entanto,

diferentemente do modo como se deu no ato da primeira fundação, essa nova

filosofia que nasce vai permanecer em grande medida em estado prático,

subdesenvolvida do ponto de vista da sua elaboração estrutural, sem um conjunto

adequado e completo de conceitos e categorias adequadamente forjados, o que

dará margem a muitos erros de entendimento.

O corte epistemológico pretende, portanto, separar o Marx da juventude46,

que pensava e produzia dentro do universo da problemática ideológica alemã, do

Marx da maturidade, fundador de uma nova teoria científica e de uma nova filosofia

(o materialismo histórico e o materialismo dialético). Essa metamorfose,

naturalmente, não poderia se produzir com um único salto. Como uma lagarta que

se envolve no seu casulo, antes de sair de lá como uma borboleta a teoria marxiana

46
Essa é a contingência do começo de Marx, referida por Althusser: "Nesse mundo foi que nasceu
Marx, e foi nele que começou a pensar. A contingência do começo de Marx é essa enorme camada
ideológica sob a qual nasceu, essa camada esmagante, de que soube livrar-se." (ALTHUSSER, A
Favor de Marx,1979, p. 62)
70

teve que se desenvolver e se constituir enfrentando uma série de dificuldades,

processo de transmutação esse que Althusser vai chamar de "período de

maturação", o lugar por excelência das ambiguidades e ambivalências presentes na

escolha e no uso dos seus conceitos e categorias:

Não se rompe de vez com um passado teórico, porque em todo o caso


precisa-se de palavras e conceitos para se romper com palavras e
conceitos, e amiúde são as antigas palavras que estão encarregadas do
protocolo da ruptura, enquanto dura a pesquisa das novas. A Ideologia
Alemã dá-nos, assim, o espetáculo de conceitos reformados, mas que
foram reconvocados, para ocuparem o lugar dos conceitos novos ainda em
instrução...e como é normal julgar esses conceitos antigos pela sua
aparência, tomá-los literalmente, pode-se fácilmente desgarrar-se para uma
concepção, ora positivista (fim de toda filosofia), ora individualista-
humanista do marxismo (os sujeitos da história são 'os homens concretos,
reais')...Por todas essas razões, que estão em função da proximidade
imediata da cesura, a Ideologia Alemã, somente ela, exige todo um trabalho
crítico para poder-se então distinguir a função teórica supletiva de
determinados conceitos, desses próprios conceitos. (ALTHUSSER, 1979, p.
27)

Como síntese dessas reflexões, Althusser chega ao seguinte esquema

classificatório das obras de Marx:

1840-1844: Obras da Juventude


1845: Obras da Cesura
1845-1857: Obras da Maturação
47
1857-1883: Obras da Maturidade"

Dessa teoria do corte epistemológico em Marx, o que mais nos interessa,

visando ao conceito de sobredeterminação, é a seguinte primeira conclusão parcial:

Marx fundou uma nova disciplina científica - o materialismo histórico - explicitando a

sua estrutura teórica, os seus conceitos e categorias. Nesse mesmo ato de

fundação, Marx criou uma nova disciplina filosófica - o materialismo dialético - que

permaneceu, no entanto, no corpo da obra marxiana, em grande medida em estado

prático, sem desenvolvimento de estrutura, conceitos e categorias. Nesse sentido, o

conceito de sobredeterminação é, para Althusser, uma importante construção teórica

para fazer avançar a explicitação formal da dialética marxista, entendida aqui como

Teoria da prática teórica, epistemologia da produção marxista de conhecimento.


47
ALTHUSSER, Louis. A Favor de Marx. ZAHAR Editores. 1979, p. 25.
71

Uma das maiores dificuldades para se conseguir enxergar esse corte

epistemológico no próprio Marx, segundo Althusser, reside no fato de que, nos

poucos momentos em que fala, sempre de um modo muito resumido, sobre o tema

da sua relação com a dialética de Hegel, Marx o faz por meio de termos e imagens

equívocas, que se prestam a significados e sentidos ambivalentes, e que mais

ajudam a confundir do que a esclarecer tal questão. Junto a isso, também

contribuíram algumas elaborações teóricas posteriores de Engels, tentativas de

produção de entendimento sobre a relação de Marx com a dialética hegeliana, e que

acabaram servindo para reforçar um dos principais preconceitos que Althusser

pretende desconstruir48. Esse preconceito, de acordo com os apontamentos do

nosso autor, vai buscar a sua justificação em uma famosa passagem de Marx:

Meu método dialético, em seus fundamentos, não é apenas diferente do


método hegeliano, mas exatamente seu oposto. Para Hegel, o processo de
pensamento, que ele, sob o nome de Ideia, chega mesmo a transformar
num sujeito autônomo, é o demiurgo do processo efetivo, o qual constitui
apenas a manifestação externa do primeiro. Para mim, ao contrário, o ideal
não é mais do que o material, transposto e traduzido na cabeça do homem.
Critiquei o lado mistificador da dialética hegeliana há quase 30 anos,
quando ela ainda estava na moda...A mistificação que a dialética sofre nas
mãos de Hegel não impede em absoluto que ele tenha sido o primeiro a
expor, de modo amplo e consciente, suas formas gerais de movimento.
Nele, ela se encontra de cabeça para baixo. É preciso desvirá-la, a fim de
descobrir o cerne racional dentro do invólucro místico. (MARX, 2013, p.91)

48
Em relação ao entendimento produzido por Engels, que Althusser vai dizer ter enveredado no
caminho equivocado sobre o tema da inversão de Hegel em Marx (o sintoma de uma ruptura
epistemológica que não se evidencia pelo seu conceito), nosso autor faz uma revisão crítica no seu
prefácio a "Ler o Capital", e diz que o entendimento correto da inversão como mudança de
problemática, ao qual diz ter chegado, em "A Favor de Marx", com grandes dificuldades, já estava
explicitado em outros lugares de Engels e Marx; no prefácio ao Livro II de "O Capital", no caso de
Engels: nesse prefácio, Engels promove uma analogia entre o campo da química, explicando o modo
como, no final do século XVIII, a teoria do flogístico foi derrubada pela descoberta do oxigênio (e a
essa mudança, protagonizada por Lavoisier, assim ele se refere: "...desse modo, pôs de pé a química
inteira, que, em sua forma flogística, estava de cabeça para baixo"), caracterizando esse processo
como descoberta de um novo problema, que impõe a revisão e investigação de todas as categorias
da teoria anterior. Retomando: analogia dessa mudança no campo da química com a mudança
operada por Marx campo da Economia Política, no conhecimento do objeto chamado "mais-valor": "E
então Marx entrou em cena. E em direta oposição a todos os seus predecessores. Onde estes
haviam visto uma solução, Marx viu somente um problema" (MARX, Karl. O Capital Livro II.
Boitempo. 2014. p. 95-96.), E na seção sobre o salário de "O Capital", na qual Althusser diz que Marx
faz uso da expressão "mudança de terreno" para caracterizar a sua revolução teórica. Ver Althusser,
A favor de Marx, 1979, p. 28.
72

Essa passagem será problematizada por Althusser como indicativa de duas

pistas que apontam para direções opostas. Podemos observar em primeiro lugar o

funcionamento das seguintes imagens e ideias: os dois métodos dialéticos, um o

"oposto" do outro; a dialética em Hegel em posição invertida "se encontra de cabeça

para baixo"; "é preciso desvirá-la, a fim de descobrir o cerne racional dentro do

invólucro místico". Seguindo por esses passos, enveredamos pelo caminho que

pode levar à conclusão de que a dialética, como método racional, já existe pronta no

próprio Hegel, "o primeiro a expor, de modo amplo e consciente, suas formas gerais

de movimento", mas que acaba por atuar de um modo invertido na medida em que,

como "cerne racional", é atrapalhada pelo "invólucro místico", ou seja, a filosofia

idealista de Hegel. Assim sendo, a dialética, como método racional, está guardada e

escondida dentro das roupagens da filosofia especulativa, como uma noz dentro de

sua casca, e bastaria, portanto, para extraí-la em sua forma pura e racional, quebrar

essa casca, rasgar toda a roupagem da filosofia hegeliana, seu "invólucro místico".

Nesse caso, embora haja uma ruptura com o modelo filosófico anterior, não haveria

nenhum corte epistemológico pois o método dialético permaneceria basicamente o

mesmo, apenas dando um giro de 180º para se apoiar sobre os próprios pés49.

Essa mesma passagem de Marx, no entanto, lança luz sobre um outro

caminho possível para o entendimento dessa questão. Nessa outra direção, uma

ideia fundamental ganha força e se destaca de todas as demais: a dialética

hegeliana possui um "lado mistificador". No paragrafo seguinte aos dois que acima

foram transcritos, Marx afirma, sobre a dialética em Hegel, que ela tinha uma "forma

mistificada". Esse é o entendimento que também se expressa em uma das cartas de

49
Essa leitura crítica feita por Althusser sobre a imagem marxiana da inversão da dialética hegeliana,
é a que ele vai apontar como presente em algumas interpretações feitas por Engels, cujas
passagens, transcritas por Althusser, podem ser consultadas na página 78 da edição já referida de "A
Favor de Marx".
73

Marx a Kugelmann, datada de 6 de Maio de 1868:

(...) meu método de desenvolvimento não é hegeliano, uma vez que sou
materialista e Hegel é idealista. A dialética de Hegel é a forma básica de
toda dialética, mas somente depois que ela foi extirpada de sua forma
mística, e isto é precisamente o que distingue meu método. (MARX, 2013,
p. 90)

A mesma ideia, portanto, de que em Hegel a dialética possui uma forma

mistificada-mistificadora. É com base nisso que Althusser vai defender a tese de

que, na relação crítica que se estabelece entre Marx e Hegel, no que diz respeito ao

entendimento e ao uso da dialética, o processo de elaboração da dialética marxista

não se resume a uma simples extração e inversão do "cerne racional", pois em

Hegel a dialética, na sua estrutura, seus conceitos e categorias, está desde o

princípio e inevitavelmente "contaminada" pela filosofia idealista. Desses

apontamentos podemos formular uma segunda importante conclusão parcial: a

fundação, por Marx, de uma nova disciplina filosófica - o materialismo dialético -

significa a elaboração de uma nova estrutura, um novo conceito e novas categorias,

que implicam no corte epistemológico que separa organicamente a produção teórica

de Marx da de Hegel.

Uma última questão chama a atenção ao lermos as passagens de Marx

acima citadas. No caso do texto do Posfácio à 2º edição de "O Capital", a afirmação

de que Hegel foi o primeiro a expor "de modo amplo e consciente", as "formas gerais

de movimento" da dialética. Depois, na carta a Kugelmann, a mesma afirmação, qual

seja, de que "a dialética de Hegel é a forma básica de toda dialética". O que seria,

portanto, essa forma geral ou básica da dialética, que estaria presente tanto em

Marx quanto em Hegel (justificando, inclusive, o uso do mesmo nome para teorias e

procedimentos epistemológicos distintos) mas que, para a sustentação da tese do

corte epistemológico de Althusser, teria que ser diferente da estrutura, do conceito e

das categorias que caracterizam distintamente cada um dos métodos dialéticos - e,


74

nesse sentido, aquilo que Althusser vai chamar de "forma" do método? Marx nos dá

essa resposta, no parágrafo seguinte aos dois transcritos do referido Posfácio, e que

podemos denominar, contra a ideia de que se trata da forma do método, como

princípio axiomático das duas dialéticas:

Em sua forma mistificada, a dialética esteve em moda na Alemanha porque


parecia glorificar o existente. Em sua configuração racional, ela constitui um
escândalo e um horror para a burguesia e seus porta-vozes doutrinários,
uma vez que, na intelecção positiva do existente, inclui, ao mesmo tempo, a
intelecção de sua negação, de seu necessário perecimento. Além disso,
apreende toda forma desenvolvida no fluxo do movimento, portanto,
incluindo o seu lado transitório; porque não se deixa intimidar por nada e é,
por essência, crítica e revolucionária. (MARX, 2013, p.91)

A afirmação desse princípio caberia, de fato, para a definição da dialética

nos dois grandes pensadores alemães, mas, justamente pelo fato de que se trata de

uma base mínima de identidade, de caráter altamente geral e abstrato, é que se

prefere definir aqui como axioma e não como forma, mais no sentido do

entendimento de Althusser do que no de Marx50, pois que, apenas com essa

definição, não se evidencia absolutamente nada sobre os recursos e procedimentos

teóricos para a produção de conhecimento (que em Marx é científico, e em Hegel

idealista). Portanto, não há corpo, não há forma, há apenas um princípio. Os

recursos e os procedimentos só nos podem ser dados quando passamos a

considerar o conceito e as categorias que constroem a estrutura de cada um dos

dois métodos.

Antes de prosseguirmos, contudo, é importante que se fale um pouco sobre

a natureza controvertida do tema da "inversão" da dialética hegeliana em Marx. Para

tanto, recorreremos aqui, mais uma vez, ao artigo de Jorge Grespan, que, já no seu

50
Em Marx, a esse propósito, pode-se notar que o termo "forma", nesse caso específico, é um servo
que se sujeita a dois senhores: é empregado para designar o ganho positivo, em Hegel, da "forma
geral e básica da dialética", e, também, para acusar a "forma mistificada" dessa dialética, ou seja, o
que deve ser jogado fora. Este seria mais um caso de uso ambivalente de termos em Marx,
apontados por Althusser como "sintomas" de uma disciplina teórica experimentada praticamente mas
ainda pouco desenvolvida teoricamente.
75

título - "A dialética do avesso" - está a nos indicar ser este o tema principal da sua

problematização. A sua argumentação é construída, como ele próprio nos indica,

principalmente com base em dois textos publicados em 1974, de H. F. Fulda e M.

Theunissen51, e tem como seu ponto central um questionamento sobre a

interpretação tradicional e inevitavelmente limitada que se constituiu historicamente

no marxismo, sobre a relação da dialética marxiana com a hegeliana, que se

processou em função da tradução que produziu a ideia de uma "inversão" do

segundo pelo primeiro. Ou seja, na análise de Grespan, a ideia de uma "inversão"

leva a se produzir o entendimento segundo o qual a mudança que se opera, entre as

duas formas da dialética, é a da direção de determinação entre a materialidade e o

pensamento, sendo que, em Hegel, o pensamento está a determinar a

materialidade, e, em Marx, o inverso disso. Mas, há um problema que é apontado

nessa leitura:

O problema é que, nesta interpretação, o que se "inverte" é apenas a ordem


do real sobre o qual opera a dialética, é seu conteúdo ou substrato
efetivo..."Inverte-se" a ordem do real, mas a forma de dialética seria a
mesma: seria o método de descoberta das contradições e de sua
apresentação categorial. Deste modo, porém, conteúdo e forma são
separados e concebidos numa dicotomia não-dialética, em que a "inversão"
do conteúdo não implica a da forma, como se ambos fossem aspectos
indiferentes um ao outro, não relacionados. (GRESPAN, 2002, p. 30)

Para dar conta de se desfazer da velha imagem da "inversão" e, desse

modo, dar conta de ilustrar a produção de um outro entendimento, que seja o

indicativo de um outro tipo de mutação epistemológica entre as duas dialéticas,

Grespan, seguindo o texto de Fulda, vai destacar a compreensão do verbo

umstulpen, traduzido normalmente pelo seu significado de "inversão", pelo seu outro

significado possível, qual seja, o de "virar do avesso":

De fato, o verbo umstulpen, empregado no texto do posfácio, pode querer

51
Esses textos tem a mesma importância e peso teórico no artigo de Marcos Muller: "Exposição e
método dialético em "O Capital"". Para a referência bibliográfica em detalhe, ver: Grespan. A
dialética do avesso, 2002, p.. 27
76

dizer "entornar" um vasilhame, virá-lo para baixo e derramar o que contém -


significado adequado ao ato de colocar de cabeça para cima o que estava
de "cabeça para baixo", conforme a interpretação tradicional. No entanto, o
verbo se refere muito mais frequentemente ao gesto de arregaçar a manga
de uma camisa ou a boca de uma calça, pois vem do substantivo Stulpe,
que designa justamente estas partes do vestuário, bem como o cano de
uma bota ou de uma luva comprida. Assim, a "inversão" proposta por Marx
pode ser entendida como o ato de virar do avesso, ou melhor, desvirar do
avesso algo que estava nesta posição trocada. Fulda propõe a elegante
metáfora de uma luva que, ao ser descalçada, fica do avesso, e umstulpen
52
quer dizer colocá-la do lado certo." (GRESPAN, 2002, p. 31)

E, nesse novo entendimento, segundo o qual a relação da dialética marxiana

com a hegeliana é a de aquela desvirar esta do seu avesso, o que deve ser pensado

como mudado não é apenas o sentido da relação de determinação entre a

materialidade e o pensamento, a ordem do real, mas também, ao mesmo tempo e

no mesmo processo, a forma lógica da dialética. O modo como se dá essa mudança

de forma é descrito por Grespan no segundo tópico do seu artigo, intitulado "A

contradição, fonte de toda dialética". Retomar e reproduzir passo a passo essa

argumentação seria fugir muito dos propósitos da presente dissertação,

principalmente em razão de que, nesse ponto, a análise se produz em um

procedimento de cotejamento crítico da lógica da dialética em Marx com a lógica da

dialética em Hegel, por meio dos conceitos dialéticos hegelianos, o que exigiria, de

algum modo, uma exposição mais sistemática da dialética em Hegel53. Mas

podemos deixar um apontamento tópico sobre alguns aspectos da referida

argumentação.

Na análise de Fulda, que Grespan vai pontualmente questionar e tentar fazer

52
Marcos Muller, também fortemente influenciado no seu texto citado por Fulda, trabalha com as
duas noções ao mesmo tempo, de "inversão" e "virar do avesso", sem que o detalhamento do
significado desses dois conceitos seja feito com a mesma explicitação que o faz Grespan: "O que
significa que a dialética hegeliana está de ponta-cabeça e como entender adequadamente o
programa marxiano do "umstulpen" (inverter e virar do avesso) da dialética especulativa?" (Muller.
Exposição e método dialético em "O Capital". 1982, p. 25.
53
Para o estudo da lógica e da dialética em Hegel, indicamos dois textos: HEGEL. G. W. F. Ciência
da Lógica (excertos). Barcarolla. 2011. E também: Kojève. Alexandre. Introdução à leitura de
Hegel. ed uerj e Contraponto. 2002.
77

avançar em um sentido muito específico, virar pelo avesso não significa fazer a troca

entre aquilo que é entendido como aparência ou como essência em cada uma das

duas formas da dialética, ou seja, entre a contradição - que para Hegel, segundo

Fulda, reside na aparência fenomenológica das coisas, e, em Marx, na essência do

real - , e a unidade - que, em Hegel, reside na essência do real, enquanto que, para

Marx, é uma construção fenomenológica das aparências.54 A diferença fundamental

deve ser apreendida, segundo Grespan, em um outro sentido: o processo dialético

se caracteriza por um movimento contraditório de identidade e diferença, afirmação

e negação. Cada uma das partes que fazem parte do todo se afirma positivamente

como realidade por meio de um processo de autoafirmação e também de negação

do outro.

(...) se, para o lado positivo, o negativo é apenas um momento a que ele
tem de se referir, este negativo não poderia ser, portanto, ele mesmo, uma
totalidade da qual o próprio positivo seria só simples parte componente.
Para definir-se como algo - necessariamente algo inteiro - , o positivo não
pode se deixar reduzir a "momento" da definição de seu oposto. Daí que
recuse a ele o estatuto de totalidade que reivindica para si próprio. E o
mesmo vale, inversamente, para o outro. (GRESPAN, 2002, p.37)

Em Hegel, de acordo com Grespan, esse processo ocorre sempre de um

modo equilibrado, conduzindo a contradição em si até o ponto em que ela se

converte em contradição para si, tornando-se autoconsciência ou o absoluto. No

caso de Marx, não será esse o desenvolvimento formal da dialética, não por conta

de nenhuma mudança a priori que se deva operar na lógica, mas em função da

especificidade do objeto de conhecimento, que impõe a sua forma lógica na leitura

54
Marcos Muller, no seu já citado artigo, "Exposição e método dialético em "O Capital"", vai concordar
com a interpretação de Fulda sem nenhum questionamento: "É preciso, além de invertê-la, virá-la ao
avesso, como exige a outra significação presente na palavra alemã 'umstulpen', mostrando que as
contradições presentes nos fenômenos não são a aparência de uma unidade essencial, mas a
essência verdadeira de uma 'objetividade alienada' (e não da 'objetividade enquanto tal'), e que a sua
resolução especulativa na unidade do conceito é que representa o lado aparente, mistificador, de
uma realidade contraditória." (Muller. 1982, p.26)
78

dialética que demanda.55 No estudo desse objeto - a estrutura econômica da

sociedade burguesa, o Capital como processo de autovalorização - , uma das partes

da contradição fundamental que o rege, o Capital em relação ao trabalho, no seu

processo de afirmação de si e negação de outro, de constituir-se em totalidade

dominadora que faz do outro um momento de si, o faz com base em uma tal

materialidade histórica que, na relação que estabelece com o trabalho, "suga como

um vampiro" a sua substância vital, desapossa-o das condições objetivas e

concretas que lhe permitiriam o exercício do seu ser como sujeito que também se

afirma negando o outro, de tal modo que, na dialética materialista, ao contrário do

que ocorre com a especulativa, a contradição não se torna capaz de evoluir da

contradição em si à contradição para si.

Na imagem do "vampiro", a vida do capital não vem originalmente de si


mesmo, mas da força de trabalho, cuja objetivação constitui a substância do
valor das mercadorias, pois apenas "sugando trabalho vivo" o "morto"
retorna à vida e nela permanece. Ao fazê-lo, porém, ele lhe retira a vida da
qual, por outro lado, depende. (GRESPAN, 2002, p.40)

O que mais nos interessa disso, no contexto do nosso tema, é ver que,

nessa linha de interpretação do tema da "inversão" da dialética hegeliana, como

"desvirar do avesso", não há nada que possa sustentar uma ideia althusseriana tal

como a de um corte epistemológico, separando radicalmente as duas dialéticas. Ao

invés disso, o que podemos notar é a presença de pontos fundamentais de

identidade, principalmente o uso de uma mesma linguagem para a definição dos

conceitos e das categorias da lógica. Como última observação nesse momento,

seria interessante também pensar que, do ponto de vista da crítica althusseriana da

imagem evocada pelo conceito de "inversão", ou seja, a de que virar um objeto em

180º não muda em nada a sua estrutura, não haveria nenhuma mudança de
55
"...Marx resgata o lado "racional" da dialética de Hegel. Mas assim como foi seu objeto de estudo, e
não uma preferência filosófica objetiva, que lhe impôs tal resgate, é esse mesmo objeto que o leva a
criticar o lado errôneo daquele método." (Grespan. A dialética do avesso, 2002, p. 29)
79

evocação imagética ao adotarmos a ideia de "desvirar do avesso", pois, do ponto de

vista da forma, continuaria sendo uma luva, com cinco dedos e uma palma. A

metáfora, portanto, continuaria sendo insuficiente para expressar simbolicamente a

mudança formal.

3.4. A forma da dialética marxista: seu conceito e suas categorias sob a ótica
de Althusser
O primeiro passo a ser dado para o propósito desse tópico é o de

caracterizar, tal como o faz Althusser, a dialética hegeliana. Essa caracterização tem

por base a ideia de que, em Hegel, a dialética é regida por um princípio de

contradição simples. A história como um todo de cada um dos povos que habitam

esse mundo, e a história de cada acontecimento, entidade e instituição que faz parte

da vida desses povos, se reduz, em última análise, à história da "Astúcia da Razão",

da Ideia Absoluta que, no seu processo de "exteriorização-alienação", vai efetivando

o domínio soberano e cada vez mais absoluto da vida ideal (política-ideológica,

encarnada na Filosofia e no Estado) sobre a vida material, a "sociedade civil" na

denominação hegeliana. Esse auto-movimento da Razão, que deve terminar pela

tomada de autoconsciência sobre si mesma, fazendo-se sujeito consciente e

absoluto de si mesma, vai engendrando como seu fenômeno todas as contradições

que se chocam e produzem o progresso histórico dos povos, tanto no campo da vida

material quanto da espiritual, funcionando como princípio de contradição simples

que estabelece a relação de determinação entre a essência e os seus fenômenos:

Essa própria redução...a redução de todos os elementos que fazem a vida


concreta de um mundo histórico (instituições econômicas, sociais, políticas,
jurídicas, costumes, moral, arte, religião, filosofia, e até os acontecimentos
históricos: guerras, batalhas, derrotas, etc...) a um princípio de unidade
interna, essa redução não é ela mesma possível a não ser na condição
absoluta de aprender toda a vida concreta de um povo pela exteriorização-
alienação de um princípio espiritual interno, que, em definitivo, nada mais é
do que a forma mais abstrata da consciência de si desse mundo: a sua
consciência religiosa ou filosófica, isto é, a sua própria ideologia...Daí
porque, aliás, Hegel pode-nos representar como 'dialética', isto é, movida
pelo jogo simples de um princípio de contradição simples, a História
80

Universal desde o longínquo Oriente até os nossos dias. (ALTHUSSER,


1979, p. 89)

Assim, podemos caracterizar a estrutura da dialética hegeliana

compreendendo o seu conceito e as suas categorias. O seu conceito: o princípio da

contradição simples. As suas categorias: negação, negação da negação,

contradição, identidade dos contrários, superação, transformação da quantidade em

qualidade. As categorias se apresentam, portanto, como recursos epistemológicos

que permitem operar praticamente o conceito da contradição simples que move o

uso da dialética em Hegel. E, por isso, Althusser vai nos dizer que, quando Marx

retoma alguma dessas categorias presentes em Hegel, o que nem sempre acontece,

é para utilizá-la de uma forma muito diferente pois, como veremos, o princípio que

move a dialética marxista é outro. Mais uma vez, quando isso acontece, tratar-se-ia

de uma velha e conhecida roupagem a encobrir um conteúdo radicalmente novo.

Nessa estrutura da dialética em Hegel, para Althusser, é onde reside o

grande perigo da leitura equivocada que se pode fazer sobre a imagem marxiana da

"inversão" de Hegel, da inversão da dialética hegeliana como forma de extrair e fazer

uso do seu "cerne racional". Essa leitura equivocada significaria que a dialética,

operando dentro da chave da filosofia idealista em Hegel (o "invólucro místico"),

precisaria tão somente começar a operar dentro da chave do materialismo histórico,

sem nenhuma necessidade de mudança dos seus conceitos e das suas categorias.

Esse entendimento, quando colocado em prática, é o que acaba por levar o

marxismo a desembocar, inevitavelmente, no erro do economicismo:

Assim substituir-se-ia o princípio 'puro' da consciência (de si de um templo),


princípio interno simples que, em Hegel, é princípio de inteligibilidade de
todas as determinações de um povo histórico, por outro princípio simples,
seu contrário: a vida material, a economia, - princípio simples que se torna,
por sua vez, no único princípio de inteligibilidade universal de todas as
determinações de um povo histórico...Essa tentativa termina pela redução
radical da dialética da história à dialética geradora dos modos de produção
sucessivos, isto é, ao extremo das diferenças técnicas da produção. Essas
tentações trazem, na história do marxismo, nomes próprios: o economismo,
81

e mesmo o tecnologismo. (ALTHUSSER, 1979, p. 94)

Para ilustrar o modo como enxerga a operação da dialética nos processos

históricos concretos, a base de onde a sua lógica de funcionamento deve ser

extraída, Althusser vai recorrer a um dos acontecimentos mais paradoxais da história

do socialismo: a Revolução Russa de 1917, e o modo como Lênin o interpretou.

Essa revolução foi um grande paradoxo do ponto de vista das previsões que se

faziam com base nos postulados do materialismo histórico vigentes até então.

Apenas para pontuar em linhas bem gerais, o princípio básico que inspirava as

previsões sobre as possibilidades de revolução era o de que o desenvolvimento do

modo de produção capitalista conduziria à agudização da luta, cada vez mais

antagônica e explosiva, entre a burguesia e o proletariado, tendo como uma de suas

manifestações a redução quantitativa da primeira e o crescimento do segundo, até

que se produzisse a explosão revolucionária. Esperava-se, portanto, que a

revolução acontecesse inicialmente em algum dos países mais adiantados da

Europa Ocidental: na Inglaterra, onde o capitalismo industrial atingia o seu

desenvolvimento mais adiantado; na França, país onde as revoluções e as formas

da política assumiam sempre os padrões mais puros e paradigmáticos; ou na

Alemanha, na qual os socialistas haviam se organizado como partido político (o

social-democrata), que se tornou um modelo de organização política para a classe

trabalhadora no mundo inteiro já no final do Séc. XIX. A Rússia, por sua vez, não

dava motivos para entrar no horizonte de tais previsões (lá a perspectiva era antes,

normalmente, da necessidade histórica de uma revolução burguesa, e não

proletária).

Desse modo é que se coloca a seguinte questão paradoxal: por que a

revolução socialista foi possível na Rússia em primeiro lugar? A resposta elaborada


82

por Lênin e retomada por Althusser se resume na ideia de que, na cadeia formada

pelo sistema mundial de Estados Imperialistas, a Rússia era o elo mais fraco. E por

qual motivo o era? Entre o final do séc. XIX e o começo do XX, a Rússia

experimentou "a acumulação e a exasperação de todas as contradições históricas

então possíveis em um único Estado"56: contradições do regime de exploração

feudal que, em certa medida, ainda regia a produção e as relações sociais no

campo; contradições da produção industrial e das relações capitalistas que se

desenvolviam nas grandes cidades; contradição entre as diversas frações da classe

dominante ligadas a essas diferentes formas de produção. A essas contradições se

somou o acúmulo de uma série de outras circunstâncias: o caráter avançado da

vanguarda revolucionária, que se cultivou na Europa mais moderna por conta do

exílio forçado; a guerra imperialista que estourou em 1914, etc. Tais contradições e

circunstâncias, que vão produzir a Revolução Russa de 1917, caracterizam, por fim,

o processo que vai ser definido como desenvolvimento desigual do capitalismo, um

dos conceitos importantes da nova dialética marxista:

A desigualdade de desenvolvimento do capitalismo leva, através da guerra


de 1914, à Revolução Russa, porque a Rússia era, ao mesmo tempo, a
nação mais atrasada e a mais avançada, contradição gigantesca que as
suas classes dominantes, divididas entre si, não podiam elucidar e muito
menos resolver. Por outras palavras, a Rússia se encontrava em atraso com
uma revolução burguesa às vésperas de uma revolução proletária, prenha,
portanto, de duas revoluções, incapaz, mesmo adiando uma, de conter a
outra. (ALTHUSSER, 1979, p. 83)

Com base em tal leitura crítica da experiência revolucionária russa, Althusser

sintetiza uma primeira conclusão sobre as condições objetivas e subjetivas que se

fazem necessárias para se pensar a possibilidade de uma ruptura histórica

revolucionária: o acúmulo e a exasperação de uma variedade de contradições e

circunstâncias precipitadoras. Isso significa uma complexificação da ideia inicial

56
ALTHUSSER, Louis. A Favor de Marx. ZAHAR Editores. 1979. p. 81.
83

simples, segundo a qual o desenvolvimento das forças produtivas reina absoluto na

determinação das revoluções históricas.

Chegamos agora, portanto, ao ponto em que se começa a caracterizar a

dialética marxista, tal como a entende Althusser. Assim, temos um primeiro

postulado: a contradição provocada pelo desenvolvimento das forças produtivas - ou

seja, a determinação em última instância do desenvolvimento histórico de uma

sociedade, é uma condição necessária mas não suficiente para produzir uma ruptura

revolucionária da formação social. Havendo a necessidade do acúmulo e da ação de

uma série de outras contradições e circunstâncias, podemos afirmar que a revolução

só pode ser o produto de múltiplas determinações. Até aqui, ainda não atingimos

nenhuma novidade em relação ao que já foi dito pelos textos marxianos. Vejamos o

que nos diz Marx em um dos seus mais importantes comentários sobre a questão do

método científico:

(...) se começássemos pela população teríamos uma visão caótica do todo,


e através de uma determinação mais precisa, através de uma análise,
chegaríamos a conceitos cada vez mais simples; do concreto figurado
passaríamos a abstrações cada vez mais delicadas até atingirmos as
determinações mais simples. Partindo daqui, seria necessário caminhar em
sentido contrário até chegar finalmente de novo à população, que não seria,
desta vez, a representação caótica de um todo, mas uma rica totalidade de
determinações e de relações numerosas...O concreto é concreto por ser a
síntese de múltiplas determinações, logo, unidade da diversidade. (MARX,
2016, p. 248)

A questão é que o reconhecimento do fato de que existem diversas

contradições e circunstâncias (representadas por diversas categorias e conceitos)

operando na produção da vida de uma sociedade, esse reconhecimento, por si

mesmo, não tem ainda o poder de negar a ideia de que todas elas sejam o produto

da determinação em última instância. Que assim o seja na formulação marxiana do

materialismo histórico pode ser evidenciado por outra famosa passagem teórica de

Marx sobre o método:

(...) na produção social da sua existência, os homens estabelecem relações


84

determinadas, necessárias, independentes da sua vontade, relações de


produção que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento
das forças produtivas materiais. O conjunto destas relações de produção
constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual
se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem
determinadas formas de consciência social. O modo de produção da vida
material condiciona o desenvolvimento da vida social, política e intelectual
em geral.(MARX, 2016, p. 5)

Temos com isso, portanto, a determinação em última instância (o

desenvolvimento das forças produtivas), a produção, na base dessa estrutura, de

uma série de formas, modalidades e circunstâncias de superestrutura, e a realidade

concreta como a síntese de múltiplas determinações, as quais são representadas

por diferentes conceitos e categorias. Dentro dessa chave interpretativa, ainda

estamos no terreno da leitura marxiana, e o conceito althusseriano de

sobredeterminação não seria mais do que a síntese teórica dessa interpretação.

Esse conteúdo ainda pode ser caracterizado por uma contradição simples, que

constrói a diferença radical entre a determinação em última instância e os

fenômenos dessa determinação. As múltiplas determinações que vão sintetizar o

concreto possuem todas a mesma lógica de fundo, a mesma causa operante: o atual

estágio do desenvolvimento das forças produtivas e das relações de produção: a

estrutura econômica.

Na conclusão do seu argumento sobre o motivo pelo qual a revolução foi

possível na Rússia antes do que em qualquer outra parte, Althusser vai consolidar

sua ideia segundo a qual, apesar de existir uma contradição fundamental, que é

onipresente na formação social burguesa - a determinação em última instância das

formas, relações e movimentos da vida social - essa não é a única contradição

existente e operante, mas antes, ao contrário, deve conviver e convergir com uma

variedade de muitas outras contradições, que produzem, todas juntas, "o concreto

como síntese de múltiplas determinações" (no caso que serviu de ilustração para

essa argumentação, a Revolução Russa como o resultado da sobredeterminação de


85

múltiplas contradições que se acumularam e exasperaram em altíssimo grau). Mas,

a essa altura, se produz uma mudança qualitativa na elaboração do argumento,

pois, segundo o nosso autor, essas outras contradições que convivem com a

principal nunca se resumem a ser o seu puro fenômeno, como se fossem

epifenômenos unilateralmente determinados de modo direto pela contradição entre

as forças produtivas e as relações de produção. Outras instâncias, circunstâncias e

lógicas fazem agora a sua entrada em cena: a conjuntura nacional e internacional,

as formas desenvolvidas na superestrutura, as instâncias que se derivam

diretamente dessas formas e de cada uma das contradições.

Decerto, a contradição fundamental que domina esse tempo...é ativa em


todas essas 'contradições' e até na sua 'fusão'. Mas não se pode,
entretanto, pretender, com todo o rigor, que essas 'contradições' e a sua
'fusão' não sejam mais do que o puro fenômeno dela. Pois, as
'circunstâncias' ou as 'correntes' que a executam são mais do que o seu
puro e simples fenômeno. Originam-se das relações de produção, que são,
com efeito, um dos termos da contradição, mas ao mesmo tempo sua
condição de existência; superestruturas, instâncias que dela derivam, mas
que tem consistência e eficácia próprias; a própria conjuntura internacional,
que intervém como determinante que desempenha o seu papel específico.
(ALTHUSSER, 1979, p. 86)

De tal modo portanto que, a forma como as diferentes contradições se

encontram, articulam, e se influenciam reciprocamente no tempo e no espaço

(conjuntura), as formas concretas e específicas que desenvolvem, bem como a

derivação de instâncias diretamente determinadas, e que só se explicam pela lógica

particular de cada contradição, representam a condição de possibilidade e

efetividade da autonomia relativa de cada uma delas. Não se trata mais de

epifenômenos; além de possuírem suas formas próprias, possuem também uma

lógica específica de funcionamento e um conjunto de instâncias diretamente

derivadas, suportes da sua relativa autonomia (relativa em função da determinação

em última instância):

Essa sobredeterminação torna-se inevitável e pensável, desde que se


reconheça a existência real, em grande parte específica e autônoma,
irredutível pois a um puro fenômeno, das formas da superestrutura e da
86

conjuntura nacional e internacional...que jamais a dialética econômica age


em estado puro, que jamais na história se vê essas instâncias que são as
superestruturas etc. afastar-se respeitosamente quando elas realizaram a
sua obra ou dissipar-se como o seu puro fenômeno para deixar avançar no
caminho real da dialética Sua Majestade a Economia porque os Tempos
teriam chegado. Nem no primeiro nem no último instante, a hora solitária da
'última instância' jamais soa. ALTHUSSER, 1979, p. 99)

Podemos, então, resumir e sistematizar a estrutura da dialética marxista, tal

como a entende Althusser, do seguinte modo: a dialética marxista não é regida pela

lógica de uma contradição simples, que produz os seus fenômenos de afirmação,

negação e negação da negação. De forma radicalmente distinta, a nova dialética é

regida pela ideia de que a história - o concreto - é o resultado de múltiplas

contradições, sendo que nenhuma delas é o puro fenômeno de uma contradição

principal, mas sim que desenvolvem uma lógica própria e se desdobram em diversas

instâncias que são determinadas por essas especificidades irredutíveis a um mesmo

denominador comum. É a esse princípio que Althusser vai conceituar como

sobredeterminação: o conceito da contradição sobredeterminada. Esse novo

conceito, por sua vez, vai demandar a existência e operação de novas categorias

para a análise metodológica, que o nosso autor vai buscar principalmente em um

texto de Mao Tsé-tung - "Sobre a Contradição"57, e também das análises de Lênin já

referidas: contradição principal; contradição secundária; aspecto principal da

contradição; aspecto secundário da contradição; contradição antagônica;


57
Em Mao, segundo Althusser, essas categorias, embora corretamente enunciadas, permanecem
com um caráter demasiado descritivo ("os seus conceitos correspondem a experiências concretas";
ALTHUSSER, A favor de Marx, 1979, p. 80) ou demasiado abstrato ("esses conceitos, novos e
fecundos, são antes apresentados como especificações da dialética em geral do que como
implicações necessárias da concepção marxista da sociedade e da história"; (ALTHUSSER, A favor
de Marx, 1979, p. 80). Em relação à recusa que se faz do caráter parcialmente abstrato dessas
categorias em Mao, podemos ver a rejeição de Althusser quanto ao projeto de querer encontrar a
dialética marxista, que deve se ater ao campo da análise histórica e sociológica, na chamada dialética
da natureza, ou seja, como estrutura universal que está presente em todas as dimensões da vida
material, orgânica e inorgânica. Nesse sentido, para exemplo, podemos citar a seguinte passagem de
Mao: "Com efeito, mesmo o movimento mecânico, provocado por uma impulsão exterior, realiza-se
por intermédio das contradições internas dos fenômenos. No mundo vegetal e animal, o simples
crescimento, o desenvolvimento quantitativo, são também provocados fundamentalmente pelas
contradições internas. Do mesmo modo, o desenvolvimento da sociedade é devido, sobretudo, a
causas internas, e não externas". (Mao, Sobre a prática e sobre a contradição, 2001, p. 42). Mao,
portanto, dá o nome das categorias, mas elas ainda estão muito vazias do seu autêntico conteúdo
conceitual
87

contradição não-antagônica; e, por fim, a lei da desigualdade do desenvolvimento

das contradições, que podemos classificar como mais um conceito da dialética

marxista58.

A apropriação e o uso dessas categorias e conceitos, formulados por Mao e

Lênin, merecem algumas palavras de esclarecimento. A princípio, Althusser nos diz

que elas foram forjadas e aplicadas na análise crítica de processos históricos sem

que tenham sido fundamentadas teoricamente pelos seus criadores:

Dão-nos esses conceitos na forma do 'é assim'. Dizem-no que são


essenciais à dialética marxista, porque são o específico dela. Nós é que
devemos procurar a razão teórica profunda dessas afirmações.
( ALTHUSSER, 1979, p. 170)

Por conta disso, temos inicialmente apenas alguns apontamentos muito

resumidos e gerais sobre o significado dessas categorias, como, por exemplo, a

lição refletida por Mao segundo a qual a contradição, embora exista universalmente,

existe sempre de alguma forma específica, ou então a afirmação de que as

contradições antagônicas são as que provocam um efeito explosivo, revolucionário.

Depois de tais comentários sucintos, começam a aparecer novas interpretações e

aportes de Althusser, que vai desenvolver o significado conceitual dessas

categorias, sem longo alcance, com pouco fôlego, mas de um modo altamente

significativo para nós. Nosso autor começa definindo a diferença de função operativa

dos dois pares de categorias que ele define como categorias de distinção entre as

contradições:

1) contradição principal x contradições secundárias: categorias

encarregadas de estabelecer a relação de hierarquia e subordinação entre as

58
Embora muito de passagem e apenas para fazer uma referência, sem desenvolver em nenhum
momento nem aprofundar, Althusser cita Gramsci como um teórico marxista de grande importância
para o estudo do problema das superestruturas, fazendo descobertas novas e fecundas e que levam,
também, à formulação de novos conceitos de análise metodológica, tal como o de hegemonia:
"Infelizmente quem retomou e prolongou, pelo menos na França, o esforço teórico de Gramsci?"
(ALTHUSSER, A Favor de Marx, p. 100).
88

diversas contradições presentes e atuantes em um determinado momento histórico.

Na linha de Mao, Althusser nos diz que em cada momento histórico determinado há

sempre uma única contradição principal, regente do processo de articulação e

desenvolvimento das contradições. Além dessas relações de hierarquia e

subordinação entre as diferentes contradições, Luiz Eduardo Motta ressalta ainda,

na leitura dos textos sobre a contradição em Mao Tsé-tung59, o princípio dinâmico da

interdependência, que processa a dança das posições que cada contradição ocupa

em um determinado momento:

Ademais, todas as contradições são interdependentes. Essa


interdependência decorre do fato de que a contradição fundamental
influencia e determina as contradições principais e secundárias, tornando-as
ou agudizadas, ou resolvidas, ou atenuadas parcialmente/temporariamente,
enquanto outras vão nascendo. Por isso, de acordo com Mao, haveria
distintas etapas do processo revolucionário, haja vista que haveria a
formação de uma nova contradição principal em relação às secundárias.
(MOTTA, 2014, p. 46)

2) aspecto principal x aspecto secundário da contradição: categorias com a

função metodológica de determinar a relação de hierarquia e subordinação que se

estabelece entre as questões internas de cada uma das contradições envolvidas em

um momento histórico;

3) Por fim, a lei do desenvolvimento desigual das contradições, que opera

mais com a função de um conceito do que de uma categoria, na medida em que se

encarrega de postular o princípio epistemológico segundo o qual cada uma das

contradições presentes e atuantes em um determinado momento histórico se

desenvolve desigualmente, e disso o que podemos inferir é a desigualdade em

relação à velocidade do desenvolvimento, grau de amadurecimento, maior ou menor

grau de identidade lógica com os fundamentos da sociedade burguesa e o grau de

59
Não se pretende, no contexto da presente dissertação, aprofundar o detalhamento sobre a leitura
de Mao em relação à dialética marxista. Para tanto, pode-se recorrer ao livro de L.E. Motta, já
referido, principalmente o tópico do capítulo 2, intitulado: "A influência do pensamento de Mao Tsé-
tung no marxismo althusseriano".
89

sua generalização.

Luiz Eduardo Motta, no seu "A favor de Althusser", vai denominar a dialética

marxista, tal como a entende definida por Althusser no exercício do corte

epistemológico, como uma dialética destruidora, de natureza histórica, ao contrário

da dialética hegeliana, definida como dialética conciliadora, de natureza lógica. Para

operar com o princípio lógico da destruição, a dialética marxista assume uma forma

diádica, que Motta entende ser a forma percebida não apenas por Althusser, mas

também por Mao e Lênin:

(...) a dialética defendida por Althusser no marxismo contém a negação por


meio das rupturas, o que o aproxima das posições do maoísmo no campo
teórico político. Como afirma Mao, partindo de Lênin, "um divide-se em dois
- esse é um fenômeno universal e isso é a dialética". De acordo com
Riccardo Guastini, tanto Marx, Engels e Lênin não operavam com a dialética
triádica, mas com a diádica, já que a dialética sempre traz dois elementos:
relações de produção e forças produtivas, classe dominante e classe
dominada, poder proletário e estado burguês, marxismo e revisionismo, etc.
(MOTTA, 2014, p. 29)

Já a dialética hegeliana, por sua vez, faz uso da forma triádica e dos

conceitos de superação e negação da negação, que implicam na operação de um

outro tipo de princípio lógico regendo a dialética, o da conciliação:

A tríade hegeliana implica necessariamente na superação, mas não na


ruptura, i.e, na destruição do modo de produção capitalista. A superação
significa a supressão da independência recíproca que os momentos
anteriores contêm a conservação dos elementos próprios, irredutíveis, de
cada um, e a resolução da contradição por meio da conciliação dos
contrários. Conforme destaca Naves, a "negação da negação" implica,
portanto, num procedimento pelo qual se nega a negação conservando o
que fora negado. Isso implica na permanência e na continuidade do
elemento inicialmente negado: ele não é extinto nesse processo de
superação, mas elevado a um nível superior. (MOTTA, 2014, p. 30)

Achamos válida a crítica de Motta à forma lógica triádica da dialética

hegeliana, bem como aos conceitos de superação60 e negação da negação. Mas

60
Muito embora o uso conceitual de tais termos possa ser mais complicado do que se supõe. Há uma
nota da tradução brasileira de "A Ideologia Alemã", onde se definem os diferentes significados e a
escolha do contexto de uso de dois conceitos dialéticos: superação e suprassunção: "O verbo
aufheben possui três sentidos principais: 1) levantar, sustentar, erguer; 2) anular, abolir, destruir,
revogar, cancelar, suspender, superar; 3) conservar, poupar, preservar (cf. Michael Inwood,
"Suprassunção", em Dicionário Hegel, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1997, p. 302). Marx, do mesmo
modo que Hegel (e Shiller), emprega comumente a palavra nas acepções 2 e 3 combinadas, mas
90

querer, com base nisso, colocar a dialética marxista dentro de uma forma diádica, de

contradições antagônicas nas quais um dos polos deve destruir o outro, para

caracterizar o princípio destruidor que diferencia a dialética no marxismo, é correr

um risco muito alto, para dizer o mínimo, de empobrecer a dialética no sentido

inverso ao pretendido pelo conceito althusseriano de sobredeterminação. De tornar

a dialética mecanicista e fatalista. É jogar um peso excessivo nas formulações

maoístas sobre a dialética e esquecer que, na conjuntura dos seus escritos (de

Mao), haviam muitas limitações que exigiam uma apresentação talvez

excessivamente didática sobre o tema. Uma dialética para camponeses.

Nessa altura, Althusser retoma, sem explicitar nominalmente, a analogia

metodológica com conceitos e procedimentos retirados da psicanálise, fazendo uso

de noções tais como "deslocamento", "condensação", e "ponto nodal". Esses usos

se fazem para a fundamentação da ideia de que, dentro de um todo complexo

entendido como uma estrutura com dominante (a determinação em última instância.

Essa noção de estrutura com dominante será explicada no tópico seguinte), o que

se observa no processo histórico é um movimento de mudança de lugar entre as

contradições secundárias e a contradição principal - princípio do deslocamento -,

assim como momentos nos quais a contradição principal absorve uma quantidade

maior de efeitos das contradições secundárias, levando-a à beira do colapso e da

explosão revolucionária - princípio da condensação:

(...) se essa distinção é essencial à prática e à teoria marxista - é que,


observa Mao, ela é necessária para fazer face à realidade concreta, à
realidade da história que vivem os homens para tomar conhecimento de
uma realidade onde reina a identidade dos contrários, isto é: 1) a

também a emprega, muitas vezes, simplesmente na segunda acepção, dando ênfase ao aspecto
negativo da "superação". Traduzimos aufheben, aufgehoben, Aufhebung por "superar, superado,
superação" quando se trata da segunda acepção, e por "suprassumir, suprassumido, suprassunção"
quando é evidente se tratar de uma combinação da segunda com a terceira acepção. (N.T.)" (Marx. A
Ideologia Alemã. nota 10. p. 548). A ambivalência no uso do conceito de superação na Ideologia
Alemã, que na tradução brasileira se desdobrou em dois, poderia ser um dos temas para a Leitura
Sintomal, como vimos.
91

passagem, em condições determinadas, de um contrário para o lugar de


outro, a troca de papéis entre as contradições e seus aspectos (chamamos
a esse fenômeno de substituição de deslocamento); 2) a 'identidade dos
contrários' em uma unidade real (chamaremos a esse fenômeno de 'fusão' a
condensação). De fato, a grande lição da prática é que, se a estrutura com
dominante permanece constante, o emprego dos papéis muda: a
contradição principal torna-se secundária, uma contradição secundária toma
o seu lugar, o aspecto principal torna-se secundário, o aspecto secundário
torna-se principal. Há sempre uma contradição principal e contradições
secundárias, contudo trocam de papel na estrutura com dominante que
permanece estável.(ALTHUSSER, 1979, p. 186)

Dessa passagem decisiva e impactante podemos sistematizar a seguinte

conclusão: a sociedade histórica, em um determinado tempo e lugar, é um todo

complexo, uma estrutura com dominante estável, e essa é a reafirmação do axioma

marxiano da determinação em última instância. Dentro dessa estrutura, contudo,

existem múltiplas contradições, que atuam, permanecem em estado passivo ou

latente, desempenhando papéis formalmente distintos: como contradição principal

ou contradições secundárias, sendo que pode haver mudança na incorporação

desses papéis. O que equivale a dizer, portanto, que a contradição principal não se

resume a ser o equivalente da determinação em última instância (a contradição

entre as forças produtivas e as relações de produção). O impacto potencialmente

explosivo dessa conclusão em relação aos postulados mais convencionais da

metodologia marxista será explicitado no primeiro tópico do próximo capítulo.

Resta ainda, para terminar a caracterização das categorias da dialética

marxista, uma última palavra que vai nos permitir definir a função das noções de

contradição antagônica e não antagônica:

(...).essa contradição principal produzida por deslocamento só se torna


'decisiva', explosiva, por condensação (por 'fusão'). Ela é que constitui esse
'elo decisivo', que é preciso apreender e trazer para o nosso lado na luta
política, como diz Lênin (ou na prática teórica...) para que toda a cadeia
venha, ou empregando uma imagem menos linear, é ela que ocupa a
posição nodal estratégica, que é preciso atacar para 'desmembrar a
unidade' existente. (ALTHUSSER, 1979, p. 186)

A contradição principal, portanto, pode ou não se tornar explosiva do ponto

de vista revolucionário, dependendo do acúmulo de efeitos de condensação.


92

Quando isso acontece, temos diante de nós a categoria da contradição antagônica.

Além disso, a contradição principal assume o significado de "ponto nodal

estratégico", base metodológica para o desdobramento das contradições

secundárias, assim como, no sonho, para Freud, cada um dos seus elementos é um

ponto nodal, resultado da fusão de múltiplos pensamentos oníricos.


93

4 Limitações e dificuldades no uso do conceito de


sobredeterminação em Althusser

4.1. Monismo x pluralismo: a dialética entre a ordem e o caos


Como foi pontuado na explicação acima, Althusser postula uma

descontinuidade radical - o corte epistemológico - entre a dialética hegeliana e a

marxista. Esse corte epistemológico é representado principalmente pelo nosso

conceito de sobredeterminação, epistemologicamente encarregado de recusar a

ideia de uma contradição simples operando todo o conjunto de fenômenos históricos

que estão presentes na vida de um povo, e de afirmar, em oposição, a autonomia

relativa, a lógica própria e a derivação de instâncias específicas para as diferentes

formas e contradições que fazem parte da estrutura e da superestrutura de uma

sociedade.

Ora, é evidente que essa mudança de conceituação sobre a contradição e a

determinação na dialética deve acarretar um profundo dilema para a instância

designada como contradição fundamental ou determinação em última instância. De

acordo com a contextualização feita por Walter J. Evangelista, no seu estudo

histórico-crítico já referido (Althusser; 2000), o questionamento a esse dilema foi um

dos principais motivos de contestação dos textos de Althusser por intelectuais

comunistas ligados ao PCF. No entendimento convencional que havia sobre essa

matéria, as formas da superestrutura eram reconhecidas e admitidas como tendo

uma eficácia própria, em que a contradição fundamental fazia o papel de determinar

diretamente as suas formas e a sua lógica de funcionamento, e, indiretamente, as

suas instâncias concretas de existência. A dialética marxista, nessa modalidade, tal

como a dialética hegeliana, faziam parte de uma filosofia que se pode designar

como monista. Pelo entendimento de Althusser, no entanto, a eficácia própria é


94

substituída pela ideia de autonomia relativa, ou seja, as formas e contradições da

superestrutura existem em razão de outras determinações além da contradição

fundamental, e são, portanto, regidas por outras lógicas além daquela determinada

pela contradição fundamental. A dialética, nesse caso, deixa de ser uma filosofia

monista e passa a ser uma filosofia pluralista61.

Luiz Eduardo Motta, no seu livro já indicado "A Favor de Althusser", é um

dos que se posicionam no sentido de afirmar o valor da formulação althusseriana em

quebrar com o monismo, identificado com as formas mais reducionistas do

determinismo. Assim, por exemplo, a seguinte passagem:

A introdução desses conceitos servia para a compreensão da Revolução


Russa...e rompia com o viés reducionista econômico, ou concepção
monista, haja vista que essa concepção opera exclusivamente com a
contradição entre as relações de produção e forças produtivas, como a
única determinante às demais instâncias do modo de produção. Ao incluir a
teoria de Mao sobre o conceito de contradição, Althusser rompe
criticamente com a concepção monista/redutora ao definir a existência de
uma multiplicidade de contradições, e que a partir da fusão delas, numa
dada conjuntura de uma formação social, possibilitaria a explosão
revolucionária. (MOTTA, 2014, p. 52)

Essa mudança implica como resultado, no mínimo, uma perda de

importância epistemológica relativa do papel operativo atribuído à contradição

fundamental, muito embora, de alguma forma, esse papel continue existindo (de que

forma é o dilema que temos presente). O fato é que ele deixa de existir como o

operador exclusivo, ou o único que importa desvelar, na análise dos acontecimentos

históricos, tendo de conviver, nessa função operativa, com outras determinações.

Nesse sentido, Althusser aponta mais o caminho de uma pesquisa em aberto do que

uma resposta que pretenda fazer sumir esse dilema:

Não há dúvida de que essas relações específicas entre a estrutura e a


superestrutura ainda merecem uma elaboração e pesquisas teóricas. No
entanto, Marx nos dá muito bem as 'duas pontas da cadeia', e nos diz que

61
Para um maior detalhamento dos termos usados nesse debate em torno dos textos de Althusser,
ver o estudo de Walter J. Evangelista no livro citado (Althusser; Freud e Lacan, Marx e Freud, 2000,
pág. 24-25).
95

entre elas é que é preciso buscar...: de um lado a determinação em última


instância pelo modo de produção (econômica); do outro, a autonomia
relativa das superestruturas e a sua eficácia específica. (ALTHUSSER,
1979, p. 97)

O artigo de Althusser intitulado "Sobre a Dialética Materialista", publicado em

"A Favor de Marx", se explica em linhas gerais como uma resposta de Althusser

para reafirmar as teses do seu artigo anterior ("Contradição e Sobredeterminação"),

e também para refutar as críticas que lhe foram dirigidas às ideias que se vinculam
62
ao conceito de sobredeterminação. Essas críticas são explicitadas na reação de

Althusser às acusações de "pluralismo", "hiperempirismo", "teoria dos fatores", nos

quais, segundo seus críticos marxistas, Althusser teria incorrido ao elevar,

equivocadamente, a análise histórica empreendida por Lênin sobre o acontecimento

da Revolução Russa, ao status de formulação teórica de categorias e procedimentos

metodológicos da dialética. Althusser recusa essa crítica:

Esses textos de Lênin não tem, de fato, o sentido de uma simples descrição
de uma situação dada, de uma enumeração empírica de elementos
diversos, paradoxais ou excepcionais: tem, ao contrário, o sentido de uma
análise de alcance teórico. (ALTHUSSER, 1979, p. 154)

Para além dessa reafirmação de suas teses anteriores, Althusser também

procede a um reforço que muda um pouco os termos utilizados para a sua

argumentação sobre a sobredeterminação. Afirma, nesse novo momento, que a

unidade estruturada de uma sociedade histórica, embora carregada de múltiplas

contradições e determinações divergentes e convergentes, é uma estrutura que

possui um fator dominante, uma contradição principal que domina e subordina todas

as outras (a mudança de terminologia reside principalmente aqui: na ideia de uma

estrutura com dominante):

A dominação não é um simples fato indiferente, é um fato essencial à


própria complexidade. É por isso que a complexidade implica a dominação
como essencial a si: faz parte da sua estrutura...É afirmar que o todo

62
Althusser cita como seus críticos, no início desse artigo: Guy Besse, em La Pensée, Fevereiro de
1963; R. Garaudy, em Cahiers du communisme, Março de 1963; e G. Mury, em La Pensée, Abril de
1963.
96

complexo possui a unidade de uma estrutura articulada com dominante.


(ALTHUSSER, 1979, p. 177)

O problema é que, como foi visto no tópico acima, o tiro acaba saindo pela

culatra: na hora de definir uma estrutura com dominante, ao desenvolver o

significado das novas categorias da dialética marxista, Althusser acaba postulando

uma divergência de identidade entre a contradição principal e a determinação em

última instância, o que mantém em aberto a possibilidade de uma forte limitação

epistemológica dessa última.

Sendo assim, podemos chegar à seguinte conclusão provisória: nomear a

contradição fundamental, ou a determinação em última instância, significa dizer,

aqui, que ela está presente e operante em todas as formas e contradições que

fazem parte da estrutura e superestrutura de uma sociedade. No entanto, ainda não

é o suficiente para o trabalho metodológico. Quando dizemos que essas outras

formas e contradições possuem autonomia relativa, uma lógica própria e instâncias

derivadas que não são redutíveis à contradição fundamental de uma formação

social, indicamos que, para cada uma delas, deve-se descobrir e fixar as outras

determinações que estão operando. Até que ponto a contradição fundamental

predomina ou está subordinada em uma forma ou contradição da superestrutura, é

um dado que deve ser produzido pela análise crítica de cada acontecimento

histórico.

4.2. O exílio interno provocado pelo fechar-se em um círculo hermenêutico, ou


o milagre da partenogênese
Já nos referimos ao livro de E. P. Thompson, "A miséria da teoria", que

empreende uma crítica muito contundente a diversos dos temas elaborados por

Althusser e seus discípulos. É uma crítica carregada de ressentimento, indignação e

revolta pois o autor, classificando-se dentro da categoria dos historiadores

marxistas, se sente, como tal, diretamente atacado por determinados postulados


97

althusserianos, contra os quais o seu livro é, ao mesmo tempo, uma defesa do

estatuto científico da historiografia e da pesquisa empírica e, também, um ataque ao

que define como investida imperialista de um certo tipo de filosofia que não sabe se

conter dentro dos seus limites. É esse sentimento de sentir-se agredido e querer

revidar que explica, em boa medida, o modo como Thompsom chama o

"estruturalismo althusseriano", ou seja, uma "aparição fantasmagórica", um "monstro

intelectual", que não desaparecerá, como poderiam acreditar certos historiadores

marxistas, com um simples fechar de olhos, ao modo de crianças pequenas

obrigadas a dormir num quarto escuro, ou então com um negligente dar de ombros

(THOMPSON, 1981, p. 10). Também ajuda a explicar a completa falta de interesse

do crítico em querer reconhecer méritos e virtudes nos escritos de Althusser, "Pois

Althusser nunca se dispôs a qualquer tipo de compromisso e certamente não com o

"historicismo", o "humanismo" e o "empirismo."" (THOMPSON, 1981, p. 11). Essa

postura é interessante por aquilo que faz representar, uma guerra de vida ou de

morte entre, de um lado, a historiografia, que se alimenta de métodos de pesquisa

empírica, e, do outro, a modalidade de filosofia que produz teoricamente com base

em outras produções teóricas. Na leitura de Thompson, vemos a primeira sendo

assediada e dominada pela segunda, a pretensão imperialista de subordinação

sendo executada pela filosofia sobre a historiografia, e esta, por sua vez, recusando

aceitar esse papel servil. Dessa disputa resultou, no livro de Thompson, entre as

suas diversas batalhas conflitivas, uma crítica de Althusser que nos parece das mais

pertinentes.

Essa crítica diz respeito ao que já foi exposto no primeiro capítulo da

presente dissertação, sobre a diferença construída por Althusser, com base nos

textos metodológicos de Marx, entre o objeto real e o objeto de conhecimento. Já


98

mostramos como essa diferença, tal como a formula Althusser, serviu de ponto de

apoio para a crítica, ao nosso ver parcialmente equivocada, que enxergou um

suposto descolamento radical entre os dois objetos, correndo como duas paralelas

em um espaço plano, sem nenhum ponto de correspondência. Thompson vai se

servir dessa crítica também para jogar luz em uma grave limitação e dificuldade

epistemológica que está presente em um dos desdobramentos mais importantes da

teoria da diferença dos objetos: a teoria da prática teórica.

Em seu artigo já citado "Sobre a dialética materialista", presente em "A favor

de Marx", Althusser faz um esforço para sintetizar a sua teoria da prática teórica

formulando uma concepção dessa prática que compreende uma hierarquia

composta por três momentos ou instâncias: Generalidades I (G I), Generalidades II

(G II), e Generalidades III (G III).

As G I63 representam aquilo que, em Marx, vai ser chamado de concreto

representado, e que Althusser vai definir fazendo uso do conceito econômico de

matéria-prima da produção teórica, ou seja, o concreto ou o real já elaborados

conceitualmente, mas ainda num nível muito primário, por meio de procedimentos de

abstração que Althusser vai definir como empiristas, e que estão em maior ou menor

medida ainda carregados de formas e conteúdos ideológicos. É aí que se encontra,

por exemplo, a Economia Política clássica, bem como o que vai ser chamado em

Althusser por historicismo (e que Thompson entende como sendo todo o campo da

pesquisa histórica baseada em métodos de pesquisa empírica, incluindo aí toda a

tradição da historiografia que até então tem se orientado pelos postulados do

materialismo histórico). Entende-se o motivo da irritação e da revolta de Thompson,

63
"Os efeitos de conhecimento chegam, na forma de "matérias-primas" (Generalidades I, que já são
artefatos da cultura, com maior ou menor impureza ideológica), obedientemente como "o discurso
científico da prova" exige." (Thompson, A miséria da teoria ou um planetário de erros (uma crítica
ao pensamento de Althusser), 1981, p. 14)
99

que, como historiador, se vê jogado ao nível de G I, de produção conceitual do

concreto contaminada por impurezas ideológicas.

As G II representam, por sua vez, o que em Marx vai ser definido como

método de pesquisa, e em Althusser como trabalho ou produção teórica, o processo

epistemológico de depuração ideológica e de apuração conceitual dos materiais

recebidos em G I. Aqui entraria, por exemplo, o método de leitura extrativa de Marx

para a crítica da economia política e os procedimentos de Leitura Sintomal, tal como

definidos por Althusser, muito embora, como é lembrado por Thompson, as

dificuldades acarretadas pela reflexão sobre os procedimentos metodológicos em G

II ficam sem exame mais detalhado em Althusser, que se contenta com as

indicações apenas "esquemáticas" (Thompson. 1981, p. 19). A própria obra de Marx

não escapa a esse esquema, entrando, também, em certa medida pelo menos,

como objeto nas G I, o que faz com que Thompson lance sobre Althusser a

condenação de querer ser mais marxista do que o próprio Marx:

É tarefa de Althusser realçar o conhecimento que ele tem de si mesmo, bem


como rejeitar várias impurezas ideológicas que cresceram nos silêncios de
seus interstícios. Assim, um conhecimento dado (a obra de Marx) conforma
os procedimentos de Althusser em cada um dos três níveis de sua
hierarquia: a obra de Marx chega como "matéria-prima" - por mais
elaborada que seja - em G I; é interrogada e processada (G II) de acordo
com princípios de "ciência" derivados de seus aperçus maduros, suposições
tácitas, metodologias implícitas, etc.; e o resultado é confirmar e reforçar o
conhecimento concreto (G III) que as partes aprovadas da obra de Marx já
anunciam. (THOMPSON, 1981, p. 21)

G III, por fim, o concreto pensado, o conhecimento científico depurado de

conteúdos e formas ideológicas, o fim ao qual se chega por meio da prática teórica.

O que Thompson vai criticar nesse esquema hierárquico de três momentos

ou instâncias é o erro de pretender identificar, de forma exclusiva, um determinado

procedimento específico de pesquisa acadêmica em filosofia - a exegese de textos

teóricos - com o método de produção do conhecimento científico em geral.

Thompson vai dizer que Althusser comete a impostura de alavancar o seu método
100

específico de trabalho acadêmico ao nível de forma universal do processo de

produção do conhecimento científico:

(...) está agora nos limites da École Normale Supérieure. Os dados


chegaram, obedientemente processados por graduados e por assistentes
de pesquisa, num nível bastante inferior de desenvolvimento conceitual (G
I), foram interrogados e separados em categorias por um rigoroso seminário
de professores aspirantes (G II), e os G III estão na iminência de subir à
tribuna e propor as conclusões do conhecimento concreto. (THOMPSON.
1981, p. 16)

Mas essa suposta impostura, de querer universalizar e tornar exclusiva uma

forma muito particular do método de trabalho científico, não é ainda, por si mesma, o

erro mais grave cometido por Althusser. O problema maior, derivado desse erro, é o

de excluir dos procedimentos metodológicos implicados na produção de

conhecimento científico, dos modos da pesquisa e da demonstração, as formas da

pesquisa empírica, os dados do conhecimento histórico empírico. Thompson nos diz

que, por conta disso, Althusser confunde as formas de pesquisa empírica com a

corrente ideológica e equivocada do empirismo:

(...) .mesmo um espírito destituído de rigor filosófico não deixará de


perceber que Althusser continuamente confunde e combina o modo (ou
técnicas) empírico de investigação com a formação ideológica, inteiramente
diferente, o empirismo, e, além do mais, simplifica suas próprias polêmicas
caricaturando até mesmo esse "empirismo" e atribuindo-lhe, indiscriminada
e erroneamente, processos "essencialistas" de abstração. (THOMPSON,
1981, p. 14)

Por esse motivo, segundo Thompson, Althusser, ao excluir as formas da

pesquisa e da comprovação empírica dos processos de demonstração e validação

do conhecimento científico, que ficam relegadas a G I, onde permanecem

contaminadas de formas e conteúdos ideológicos, produz uma forma de círculo

hermenêutico que o prende em um tipo de exílio interno,64 ou seja, os procedimentos

teóricos e formais rigorosos da leitura exegética em filosofia se convertem em

suficientes e exclusivos para fazer a prova e a demonstração do conhecimento

64
Sobre o exílio interno, ver: Thompson. Miséria da Teoria, 1981, p. 4.
101

científico verdadeiro, depurado de ideologia. Os critérios de validação teórica da

teoria que operam internamente estão dados, por sua vez, pelos conceitos e

categorias do método marxiano, depois de terem sido depurados e formalizados em

G II. A partir daí, a teoria postula critérios exclusivamente teóricos de validação do

conhecimento científico, que é Teoria (G III) produzida sobre teoria (G I), por meio

da teoria (G II):

Não parece necessário insistir em que esse procedimento é totalmente


autoconfirmador. Ele se movimenta dentro do círculo não só de sua própria
problemática, mas também de procedimentos autoperpetuadores e auto-
elaboradores. Esta é (aos olhos de Althusser e seus seguidores)
exatamente a virtude dessa prática teórica. É um sistema fechado dentro do
qual os conceitos circulam interminavelmente, reconhecem-se e interrogam-
se mutuamente, e a intensidade de sua repetitiva vida introversiva é
erroneamente tomada por uma "ciência"." (THOMPSON, 1981, p. 21)

É desse modo que Thompson faz a sua crítica em relação à condenação

althusseriana da historiografia e de todas as modalidades de pesquisa empírica a G

I, mera matéria-prima para o trabalho filosófico, sem valor científico próprio. Essa

crítica é também o apontamento da ausência de um procedimento metodológico de

controle, validação e demonstração das teorias sobre o real produzidas pelo

processo de pensamento, do objeto de conhecimento, que deveriam cuidar de

certas modalidades de estudo empírico sobre o objeto real, tal como o pretende a

historiografia marxista que, segundo Thompson, cumpre um papel fundamental não

só para a validação e demonstração de teses teóricas, mas também para a

produção de conhecimentos científicos depurados de ideologia. E, nessa linha, se

justifica a falta indicada por Thompson, na epistemologia althusseriana, da categoria

de "experiência", que seria capaz de construir essa ponte entre a pesquisa empírica

e a elaboração teórica do objeto de conhecimento.

Consideramos essa crítica de Thompson contra Althusser de grande valor e

importância epistemológica. Sem dúvida, ele consegue identificar, com muita clareza
102

e argúcia, uma tendência lógica possível e nefasta dentro da proposta

epistemológica do marxismo althusseriano, ou seja, a possível tendência a reduzir

stricto sensu a posição que, no texto marxiano, é formulada como "concreto de

pensamento", "síntese de múltiplas determinações" - movimento do abstrato para o

concreto - , em suma, a ordem lógica das categorias determinantes de uma

formação social (o objeto do conhecimento) em uma coisa radicalmente distinta do

objeto real - a ordem histórica de constituição, organização e operação das

categorias de determinação65. Althusser, de fato, caminha muitas vezes no sentido

de um reducionismo que, em última instância, acabaria por jogar o objeto real em

um plano metafísico do incognoscível66, fazendo do processo de conhecimento

científico um processo puramente teórico, de Teoria trabalhando sobre teoria

(representações ideológicas)67. Essa tendência pode ser caracterizada como uma

forma de reducionismo pois, ao nosso ver, embora esteja fundamentada na

exploração de uma das possibilidades lógicas de entendimento de certas

formulações em Marx, também nos deparamos, nos escritos marxianos, em diversos

momentos, com ocasiões nas quais Marx nos deixa ver que sempre admitiu a

possibilidade de um conhecimento historiográfico e empírico com validade científica.

65
Como dissemos no primeiro capítulo, essa é também a crítica de Giannotti, do ponto de vista
formal. Em relação ao conteúdo, porém, Thompson nos parece muito mais pertinente e justificado,
pois não deseja, como o filósofo brasileiro, produzir uma identidade absoluta do objeto real com o
objeto do conhecimento por meio do conceito de ontologia, mas sim garantir e legitimar a pesquisa
empírica como uma instância de controle, teste e demonstração do objeto do conhecimento (a teoria)
pelo objeto real (a experiência).
66
"A "cesura epistemológica", com Althusser, é uma cesura com o autoconhecimento disciplinado e
um salto na autogeração do "conhecimento", de acordo com seus próprios procedimentos teóricos,
isto é, um salto para fora do conhecimento e para dentro da teologia." (Tompson. A miséria da teoria
ou um planetário de erros (uma crítica ao pensamento de Althusser), 1981, p. 43)
67
Como também o vimos já no primeiro capítulo, a possibilidade dessa tendência reducionista do
conhecimento a procedimentos puramente teóricos, é dada pelo próprio texto marxiano, na medida
em que afirma o conhecimento científico como o resultado do caminho que vai do abstrato para o
concreto pensado, e que faz do concreto representado o ponto de partida do processo de
pensamento. É aí que se insere a possibilidade da problemática kantiana, à qual também nos
referimos.
103

Basta citar, como exemplos, obras de conteúdo principalmente historiográfico tais

como "O 18 de Brumário de Luis Bonaparte" e "Guerra Civil em França", assim

como, dentro da própria crítica da economia política clássica, obra teórica da

maturidade por excelência, capítulos tais como "A Jornada de Trabalho", ou "A

Acumulação |Primitiva", do Livro I de "O Capital".

A crítica de Thompson pode nos servir portanto, nesse ponto em particular,

como um dispositivo de controle epistemológico, que impediria de cair no risco de

levar às últimas consequências determinados desdobramentos althusserianos

decorrentes da diferença que se deve construir entre o objeto real e o objeto do

conhecimento. O que não precisamos, no entanto, é fazer como ele e querer jogar

na lata de lixo da história do marxismo a teoria de Althusser por inteiro68. Inclusive

pelo motivo de que, justamente no meio do caminho que conduz o althusserianismo

na direção daquele reducionismo epistemológico, eis que surge o nosso conceito de

sobredeterminação, o elemento que faz do espaço plano a teoria um espaço curvo,

e que representa um dos momentos possíveis de encontro entre as duas paralelas,

a do objeto real e do objeto de conhecimento. E quando isso acontece o que se

descortina é todo um conjunto de sinais e evidências de mudança qualitativa na

produção do discurso teórico e metodológico. O texto de Althusser, normalmente tão

rigoroso em se manter apegado às regiões mais elevadas e áridas da formulação de

conceitos e categorias, tão distante das formas mais empíricas do discurso, quando

vai justificar o conceito que, do seu ponto de vista, é o maior responsável por

produzir o corte epistemológico da dialética de Marx em relação à de Hegel, desce

do seu voo nas alturas, por assim dizer, e passa a caminhar pelo chão da história,

68
"Vimos que a rachadura central, que percorre todo o pensamento de Althusser é uma confusão
entre os procedimentos empíricos, controles empíricos, e algo que ele chama de "empirismo". Essa
rachadura invalida não uma ou outra parte de seu pensamento, mas o pensamento como um todo."
(Tompson. A miséria da teoria ou um planetário de erros (uma crítica ao pensamento de
Althusser), 1981, p. 42)
104

fazendo uso da leitura leninista das diversas contradições que estiveram implicadas

no acontecimento da revolução russa de 1917, e jogando um peso epistemológico

muito grande nas análises de conjuntura nacional e internacional, e em todas as

novas categorias que devem conformar a novidade da dialética marxista,

demandantes de preenchimento por conteúdo histórico concreto para poderem agir

como formas lógicas operativas - contradição principal e contradições secundárias,

aspecto principal e aspectos secundários de cada contradição, desenvolvimento

desigual das contradições, etc... - formas essas que, por si mesmas, sem nenhum

conteúdo histórico concreto (ou sem conteúdo empírico, para falar com Thompson),

de nada serviriam. A própria necessidade de falar de contradições, e não de

determinações, como já indicamos no primeiro capítulo, evidencia que, aqui, ao se

falar do conceito de sobredeterminação, estamos falando de processos históricos

concretos, e não de funcionamentos lógicos de categorias pura e exclusivamente.

O conceito de sobredeterminação promove, portanto, o inusitado encontro

de Althusser com a história concreta, com o objeto real, e evita, pelo menos aqui, a

última consequência do reducionismo teórico da epistemologia da partenogênese,

que é a da produção teórica (método de pesquisa) sobre produção teórica (concreto

representado, ideologicamente contaminado) que produz Teoria (concreto

pensado)...O conceito de sobredeterminação salva Althusser desse impasse.

4.3. O lugar de uma ausência

Em Marx, dificilmente encontramos em alguma passagem da sua vasta

produção teórica uma situação que poderia, de alguma forma, problematizar a teoria

interpretativa do materialismo histórico ou da dialética, seja no sentido de evidenciar

algum modo de contradição entre o objeto real e as proposições teóricas, seja no

sentido de indicar alguma insuficiência da teoria diante de determinadas


105

contradições e aspectos do objeto de conhecimento. Há entretanto, em Marx, uma

dessas raras ocasiões em que se reconhece a dificuldade explicativa posta para a

sua teoria interpretativa, e é muito interessante para nós, nesse momento, ver de

que modo Marx aponta um caminho para a resolução de tal dificuldade.

Vamos voltar agora os nossos olhos para o último tópico da "Introdução à

Crítica da Economia Política", que é o que vem na sequência do que fala sobre "O

método da economia política", e que se intitula como: "4) Produção. Meios de

produção e relações de produção. Relações de produção e relações de intercâmbio.

Formas de Estado e de consciência em relação às relações de produção e de

intercâmbio. Relações jurídicas. Relações familiares" (Marx, 2011, p. 61). Esse

tópico vai tratar, de um modo muito indicativo e sumário, de algumas importantes

dificuldades que se colocam para o estudo da história e das formações sociais do

ponto de vista da formulação marxiana do materialismo histórico, que, como vimos

no primeiro capítulo, é regido pela lógica da determinação econômica. Assim, por

exemplo, a relação de desigualdade no desenvolvimento entre determinados

momentos das forças produtivas e determinadas formas jurídicas (o caso do direito

privado romano em relação à sociedade burguesa). Também, alguns comentários

um pouco mais elaborados sobre a relação de desigualdade no desenvolvimento

entre o nível de desenvolvimento das forças produtivas de uma determinada

sociedade e o desenvolvimento de certas formas de produção artística. São esses

comentários que se fazem interessantes para nós.

Tais comentários se desdobram em dois momentos. No primeiro, reflete-se

sobre o fato de que determinadas formas artísticas, como a epopeia na antiguidade

clássica, que é utilizada como exemplo, só são capazes de surgir, se desenvolver e

alcançar pleno vigor no contexto de uma formação social que, de modo geral, ainda
106

está pouco desenvolvida do ponto de vista das suas forças produtivas materiais.

Isso pode significar a aparente contradição que se pode estabelecer entre uma

forma artística altamente desenvolvida sobre uma base material e produtiva ainda

muito pobre. Mas, como diz Marx em relação à esse aspecto da questão, "A

dificuldade consiste simplesmente na compreensão geral dessas contradições. Tão

logo são especificadas, são explicadas." (Marx. 2011, p.63). Ou seja, a teoria do

materialismo histórico não enfrenta nenhum grande problema para produzir a

explicação:

Sabe-se que a mitologia grega foi não apenas o arsenal da arte grega, mas
seu solo. A concepção da natureza e das relações sociais, que é a base da
imaginação grega e, por isso, da [mitologia] grega, é possível com
máquinas de fiar automáticas, ferrovias, locomotivas e telégrafos elétricos?
Como fica Vulcano diante de Roberts et Co., Júpiter diante do para-raios e
Hermes diante do Crédit Mobilier? Toda mitologia supera, domina e plasma
as forças da natureza na imaginação e pela imaginação; desaparece, por
conseguinte, com o domínio efetivo daquelas forças. (MARX, 2001 p. 63)

Mas há ainda um segundo momento na argumentação da dificuldade que

referimos. Aqui se coloca a seguinte questão: por qual motivo tais formas de arte,

que com o fim da hegemonia cultural orgânica da mitologia se tornaram impossíveis,

que não mais correspondem ao estágio atual do desenvolvimento das forças

produtivas, ainda são capazes de proporcionar prazer artístico, e de serem

representadas e admitidas como "norma e modelo inalcançável"? Vejamos a

explicação esboçada por Marx:

Um homem não pode voltar a ser criança sem tornar-se infantil. Mas não o
deleita a ingenuidade da criança, e não tem ele próprio novamente que
aspirar a reproduzir a sua verdade em um nível superior? Não revive cada
época, na natureza infantil, o seu próprio caráter em sua verdade natural?
Por que a infância histórica da humanidade, ali onde revela-se de modo
mais belo, não deveria exercer um eterno encanto como um estágio que
não volta jamais? Há crianças mal-educadas e crianças precoces. Muitos
dos povos antigos pertencem a esta categoria. Os gregos foram crianças
normais. O encanto de sua arte, para nós, não está em contradição com o
estágio social não desenvolvido em que cresceu. Ao contrário, é seu
resultado e está indissoluvelmente ligado ao fato de que as condições
sociais imaturas sob as quais nasceu, e somente das quais poderia nascer,
não podem retornar jamais." (MARX, 2001 p. 63)

Ao nosso ver, essa passagem é extraordinariamente significativa pois


107

evidencia, no texto de Marx, uma possibilidade única para o reconhecimento de uma

insuficiência teórica que está presente na forma original da sua teoria da história,

regida pela lógica da determinação econômica. E se esta teoria, em relação a essa

questão, não dá conta de produzir uma explicação satisfatória, qual é, então, a

indicação que Marx faz de um outro modelo teórico que ajudaria a nos dar uma

resposta? É a indicação de um modelo explicativo de conteúdo psicológico! Aqui se

procede a uma analogia entre a relação de uma sociedade moderna com uma

sociedade antiga, de um lado, e a relação de um homem adulto com sua infância,

por outro. É o encanto, o prazer e a satisfação de se recordar e reviver a infância

nas suas formas mais belas, nos seus melhores momentos; é a nostalgia de se

reviver, mais uma vez, um tempo que está condenado a nunca mais voltar, um

tempo perdido para todo o sempre. O extraordinário nisso é também, entre outras

coisas, que, olhando para a história da pesquisa e da produção teórica de Marx, não

há nada que nos possa indicar que ele tenha se dedicado em alguma profundidade

ao estudo da psicologia, que pudesse, de alguma forma, justificar e fundamentar o

uso de explicações psicológicas para a resolução de dificuldades enfrentadas pela

teoria do materialismo histórico. Essa explicação psicológica utilizada por Marx pode

ser, portanto, caracterizada como intuitiva e diletante69, efeito que causa um

contraste radical com a sua forma normal de proceder em relação ao seu objeto de

conhecimento.

69
A qualidade de "diletante" à qual nos referimos aqui se orienta pelo significado sociológico dado por
Weber a esse conceito, e que o diferencia do "especialista": "Cientificamente, a ideia de um diletante
pode ter a mesma influência, ou ainda maior, para a ciência que a ideia de um especialista. Muitas de
nossas melhores hipóteses e visões são devidas, precisamente, a diletantes. O diletante difere do
perito...apenas porque lhe falta um processo de trabalho firme e digno de confiança.
Consequentemente, ele habitualmente não está em posição de controlar, estimar ou explorar a ideia
em seus aspectos fundamentais." (Weber. A ciência como vocação. In Ensaios de Sociologia. p.
161). O "diletantismo" em Marx, como deve ficar evidente, se refere exclusivamente ao que
caracterizamos aqui como "explicação psicológica" do problema que está em foco. O contraste reside
justamente no fato de que, via de regra, Marx deve ser caracterizado como um "especialista", e se
preocupa muito com tal.
108

É claro que não podemos exagerar no uso dessas explicações dadas por

Marx. Sabemos que o texto da "Introdução à crítica da economia política" foi

suprimido do plano de publicação ao qual se destinava originalmente, da

"Contribuição à crítica da economia política". E que muitas de suas notas não

passam de indicativos e apontamentos de questões que ficaram por ser resolvidas

teoricamente, com mais aprofundamento. Mas é justamente no indicativo e no

apontamento dessas questões, dessas dificuldades epistemológicas para a teoria da

história de Marx, daquilo que a poderia complementar como teoria explicativa, que

reside o nosso interesse, não tanto pelo que diz, mas, sobretudo, pelo que deixa de

dizer. Pois pensamos que, nesse ponto onde aparece uma explicação psicológica

para dar conta de uma dificuldade teórica relacionada com o uso da teoria da

determinação econômica, poderia ter surgido o uso de alguma ideia, de alguma

forma daquilo que hoje designamos como sendo a sobredeterminação ou a

autonomia relativa das estruturas que fazem parte da superestrutura. Que essas

ideias estivessem presentes e acessíveis no horizonte teórico e epistemológico de

Marx já nos foi devidamente evidenciado por diversos pronunciamentos de Engels,

que já reproduzimos na presente dissertação, e que se referem a noções tais como

"determinação em última instância" e autonomia relativa das estruturas (a carta de

Engels a Bloch. Ver a esse respeito, como já indicamos: Althusser, 1979, p. 103-

104). Que problema colocado como tal pelo próprio Marx, o da contradição entre a

formação social moderna com o prazer artístico que ainda se pode sentir com

formas artísticas determinadas pela formação social da antiguidade, poderia ser

mais pertinente e adequado para se pensar a questão fundamental da autonomia

relativa? Não poderia ter sido este o apontamento para um estudo mais aprofundado

em uma outra oportunidade? O indicativo de uma possível solução que desse conta
109

de uma limitação evidenciada pela teoria da determinação econômica?

Podemos pensar que sim, pelas evidências e conhecimentos que hoje

possuímos, sobre a experiência de vida e o horizonte intelectual-cultural dentro do

qual Marx se encontrava. Já mencionamos a evidência fundamental dessa

possibilidade em Engels, que anunciou explicitamente noções tais como as de

determinação em última instância e autonomia relativa das estruturas que se

influenciam reciprocamente. E, para além disso, imaginamos que seria uma coisa

relativamente simples para Marx, no contexto da Europa Ocidental do séc. XIX,

interrogar em uma outra direção a contradição que ele mesmo se encarregou de

problematizar. Faremos nesse momento apenas um ligeiro exercício de raciocinar

nessa outra direção, não pelo gosto particular de especular sobre como alguma

coisa poderia ter sido mas não foi, e sim por outros dois motivos que julgamos

importantes: 1) que Marx não tenha esboçado ou apontado uma resposta na direção

de se pensar os limites da determinação econômica e a autonomia relativa de outras

estruturas, pode significar, ao nosso ver, o esforço de concentração que era por ele

despendido desde que iniciou os seus trabalhos de crítica da economia política

clássica, ou seja, o esforço concentrado para fundamentar cientificamente as formas

da determinação econômica, que eram ou deixadas de lado ou ideologicamente

distorcidas70. E, diante disso, considerando que tal esforço atingiu sua meta, e que

as formas da determinação econômica já estão estabelecidas em uma sólida base


70
É nesse sentido que Edmund Wilson procura explicar certas características da personalidade
desenvolvida por Marx: "É bem verdade que tinha um caráter dominador, uma personalidade
arrogante, anormalmente desconfiada e ciumenta; é bem verdade que era vingativo e tinha uma
malignidade que nos parece gratuita. Mas, se essas características de Marx nos repelem, devemos
lembrar que dificilmente uma pessoa polida e simpática poderia ter realizado a tarefa que Marx
estava destinado a cumprir: uma tarefa que exigia a fortitude necessária para repelir ou romper todos
aqueles vínculos que, por nos envolverem na vida geral da sociedade, limitam nossa visão e nos
desviam de nossos objetivos." (Wilson. Rumo à Estação Finlândia. p. 148). Ou seja, naquele
momento, relativizar a teoria com as ideias de "determinação em última instância" e "autonomia
relativa da superestrutura" poderia significar, de alguma forma, enfraquecer o empreendimento
teórico de criticar todas as formas do idealismo e da metafísica que dominavam o cenário das teorias
sobre o processo histórico.
110

científica, já não se faz mais tão perigoso e arriscado ampliar as margens do objeto

de conhecimento para as formas da autonomia relativa de outras estruturas; 2) Com

as breves indicações que faremos a seguir, teremos uma base mínima para

fundamentar um último comentário crítico sobre Althusser, e que pode ser

caracterizado como uma limitação grave que afetou o desenvolvimento da teoria que

se liga diretamente ao conceito de sobredeterminação.

Façamos, portanto, um exercício de imaginação sociológica. Imaginemos

que Marx poderia ter se perguntado sobre o motivo pelo qual uma das formas da

arte grega da antiguidade - a epopeia - e Shakespeare, foram os exemplos

pensados por ele para indicar a dificuldade que reside em um homem da

modernidade ainda sentir prazer artístico com o seu consumo, e os tomar por

modelo e ideal inatingíveis. Perguntar-se-ia, então: por quais motivos não outras

formas artísticas que recuariam ainda mais no tempo - a pintura rupestre, por

exemplo - ou que se derramariam mais no espaço geográfico - como, por exemplo,

algumas das formas da arte antiga chinesa ou da arte indígena americana pré-

colombiana? Essa pergunta poderia remeter ao problema da referência cultural

etnocêntrica, tão poderosa e determinante quando pensamos na história da Europa

Ocidental, e permitiria problematizar a razão pela qual sentimos prazer estético e

prestigiamos como modelos determinadas formas artísticas em detrimento de outras.

Com essa problematização posta, encontraríamos imediatamente uma outra

questão fundamental: por meio de quais formas históricas e sociológicas se dá o

processo de preservação e reprodução do gosto e do ideal de determinadas formas

artísticas e culturais? Tal questão poderia conduzir a uma reflexão sobre a função da

escola, da universidade, da família, da mídia e de outras instituições71. Por exemplo,

71
Nada disso é novidade. Sabemos que, de uma forma ou de outra, esse caminho já foi muitas vezes
percorrido (por Gramsci e Bourdieu, apenas para citar alguns exemplos). O que nos interessa nesse
111

para dialogar com o último ítem que aparece no título do último tópico do texto de

Marx para a "Introdução à Crítica da Economia Política" - "Relações familiares" -

imaginemos que Marx, que podemos caracterizar como oriundo de uma família de

classe média ascendente, esforçando-se por prosperar social e economicamente72,

também teve a oportunidade de conhecer a experiência de família proletária e

aristocrática, seja diretamente ou também por meio da história e da literatura.

Poderia, pois, ter problematizado no sentido de pensar a desigualdade na relação

que se estabelece entre determinados tipos de família e determinadas formas

artísticas e culturais numa mesma época e lugar histórico - a formação social

burguesa na europa do séc. XIX - , como formas diversas de relação com a cultura e

de acumulação de capital simbólico distintivo, mediadas pela acumulação histórica

familiar e pelo acesso e vivência de outras experiência de vida tais como a escola, a

universidade, os museus, etc., e de como esse processo de preservação e

reprodução cultural se associa ao processo de reprodução da estrutura de classes

na sociedade burguesa.

Podemos citar dois exemplos dessa desigualdade de relação, relacionados

diretamente com a experiência ou o conhecimento de Marx. Mais uma vez, em

Edmund Wilson:

Os vizinhos da família Marx em Trier eram a família Von Westphalen. O


barão Von Westphalen, embora fosse um funcionário prussiano, era
também um produto da civilização do séc. XVIII: seu pai fora secretário e
homem de confiança do Duque Ferdinand de Brunswick, homem liberal,

momento é que ele não foi indicado diretamente por Marx, nem desenvolvido por Althusser, no
contexto da teorização do conceito de sobredeterminação
72
"Hirschel Marx era um livre-pensador kantiano, que deixara para trás o judaísmo e os judeus.
Morando em Trier, na fronteita entre a Alemanha e a França, em sua formação entrara tanto a
filosofia germânica quanto Rousseau e Voltaire. Sob a influência da Revolução Francesa, algumas
das restrições impostas aos judeus haviam sido atenuadas; assim, Hirschel pôde estudar direito e ter
uma carreira de sucesso. Quando os prussianos expulsaram Napoleão e mais uma vez tornou-se
ilegal um judeu ocupar um cargo público, ele mudou o nome para Heinrich, batizou toda a família e
subiu até a posição de Justizrat, tornando-se chefe do tribunal de Trier." (Wilson. Rumo à Estação
Finlândia, 1986, p. 110-111)
112

amigo de Winckelmann e Voltaire, que lhe concedera um título de nobreza.


Ludwig von Westphalen lia sete línguas, amava Shakespeare e conhecia
Homero de cor. Costumava levar o jovem Karl Marx para passear com ele
pelos vinhedos das encostas das margens do rio Mosela, e falar-lhe sobre
Saint-Simon(...) (WILSON, 1986 p. 111)

E, no capítulo sobre a "Jornada de Trabalho", em uma nota de rodapé:

O grau de instrução dessas "forças de trabalho" deve ser naturalmente tal


como se revela nos seguintes diálogos com um dos comissários de
inquérito. Jeremiah Haynes, de 12 anos de idade: "[...] quatro vezes quatro
são oito, quatro quartos...são 16 [...]. Um rei é aquele que tem todo o
dinheiro e ouro...Temos um rei, dizem que ele é uma rainha, chamam-na
princesa Alexandra. Dizem que ela se casou com o filho da rainha. Uma
princesa é um homem". William Turner, 12 anos: "Não moro na Inglaterra.
Acho que é um país, mas não sabia disso". John Morris, 14 anos: "Ouvi
dizer que Deus fez o mundo e que todo mundo se afogou, menos um; ouvi
dizer que foi um passarinho". William Smith, 15 anos: "Deus fez o homem; o
homem fez a mulher"(...) (MARX, 2013, p. 332)

Experiências distintas que estavam, de forma direta ou indireta, ao alcance

de Marx, e que faziam com que, para a maior parte das crianças e adolescentes que

estavam sendo engolidos pela gigantesca máquina de produção fabril no séc. XIX, a

epopéia grega e Shakespeare, se lhes fossem algum dia apresentados, apenas

inusitadamente seriam capazes de provocar prazer artístico e reconhecimento como

formas ideais e inalcançáveis. Não havia ensino e direção para tanto, como no caso

do jovem Marx.

Eis, portanto, aquilo que pensamos ser o lugar de uma ausência em Marx, a

falta de um apontamento no sentido de se pensar noções de autonomia relativa das

superestruturas e da determinação econômica em última instância, com mediação.

E, mais uma vez, para retomar a ideia fundamental que está regendo esse nosso

raciocínio, e que está muito bem fundamentada em Althusser, embora tais noções

não estejam explicitadas formalmente nos textos sobre o método e a teoria da

história, podem ser inteligidas como existindo e operando praticamente em diversos

momentos da obra marxiana, principalmente os textos de narrativa histórica aos

quais já nos referimos. Mas, de um certo modo, por não estar explicitada e
113

elaborada conceitualmente, essa dificuldade pode ser entendida como uma limitação

no texto marxiano, a qual Althusser, com o seu conceito de sobredeterminação,

poderia ter ajudado a resolver, mas não o fez.

A limitação epistemológica que ora temos em mente se refere a uma

dificuldade presente na teoria althusseriana que já foi pontuada no primeiro capítulo,

ou seja, a confusão no uso, por inexistência de uma diferenciação sistemática, de

dois conceitos distintos que carregam em si a sua especificidade, quais sejam, a

determinação e a contradição. Essa é, sem nenhuma dúvida, uma questão

demasiado espinhosa e complexa para o estudo da dialética, inclusive pelo motivo

de que, se nosso objetivo nesse momento é pensar a diferença que delimita o

significado de ambos os conceitos, não podemos nunca perder de vista que entre

ambos existe também uma identidade fundamental. Caso contrário, não se estaria

falando da dialética. Sendo assim, não se pretende aqui aprofundar as

possibilidades de desenvolvimento teórico sobre a relação entre esses dois

conceitos no que eles carregam de valor metodológico, mas tão somente delinear a

forma básica de uma diferença que é de suma importância para que se possa

pensar em uma questão teórica chave que o conceito de sobredeterminação não

nos ajuda a avançar.

Coloquemo-nos, portanto, diante da seguinte questão: de que modo é

possível pensar a diferença epistemológica existente entre os conceitos de

determinação e contradição? O que muito nos ajuda a pensar essa diferença é a

função epistemológica que cada um deles é chamado a desempenhar dentro do

contexto teórico dos textos marxianos sobre o método e sobre a teoria da história,

assim como os textos que usamos como referencias para fundamentar o

entendimento sobre a dialética em Marx, todos eles já indicados no primeiro


114

capítulo. Sendo assim, podemos dizer que o conceito de contradição surge e opera,

nesses textos, como um princípio ou uma forma de relação que se estabelece e se

processa entre diferentes categorias da determinação. Por exemplo, a contradição

que se processa entre as forças produtivas e as relações de produção, o capital em

geral que é entendido como autocontradição em processo, a contradição que se

opera entre o capital constante e o capital variável, pela forma do aumento da

composição orgânica do capital, etc. O que temos aqui, portanto, é a inteligência da

relação de contradição que se dá entre diferentes categorias, cuja existência e

entendimento estão pressupostos.

O que seria, então, pensado na sua diferença, o conceito de determinação?

Ao nosso ver, seria o conceito que implica na investigação e na exposição das

formas da positividade das categorias, ou, nas palavras já citadas de Marx, "as

formas do ser, determinações da existência". São as categorias que operam a

determinação das formas no real, construídas pelo processo do pensamento

científico, e apresentadas pelo método da exposição, entendido tal qual está

formulado no primeiro capítulo. Por exemplo, se na análise da contradição está

presente o conceito de relações de produção, este pressupões, por sua vez,

categorias de determinação, tais como as classes sociais e todas as outras que

estão pressupostas para fazer a determinação da existência das classes sociais, tais

como mercadoria, valor, dinheiro, mais valor, etc. E achamos válido supor que,

quanto mais simples e abstrata a categoria de determinação, menor a possibilidade

de encontrar uma relação interna de contradição. O conceito de valor, por exemplo,

considerado de modo isolado, de forma simples e abstrata, não carrega em si

mesmo nenhuma contradição. A quantidade e a gravidade das formas da

contradição estão, portanto, diretamente relacionadas ao processo de caminhar no


115

sentido do abstrato para o concreto, no processo de produzir o concreto de

pensamento, ou o concreto como síntese de múltiplas determinações. Se relaciona,

portanto, ao método da exposição, a construção da forma científica por excelência,

como já vimos, e que pressupõe, portanto, o momento de elaboração das categorias

da determinação, e o momento de elaboração das relações entre essas diferentes

categorias da determinação.

De modo que, para tentar sintetizar o que foi dito, a determinação trata das

formas, dos processos e da lógica interna das categorias da determinação do ser, e

a contradição, por sua vez, da relação externa que se processa entre as diferentes

categorias como determinações do ser. A contradição pressupõe a existência das

categorias como determinações do ser, mas estas, por sua vez, não implicam

necessariamente em relações internas de contradição. Implicam sempre em se

pensar as formas da sua positividade. E, se o conceito althusseriano de

sobredeterminação nos fala, essencialmente, sobre os conceitos e as categorias da

dialética entendida como ciência das contradições, não nos ajuda, por sua vez, a

falar sobre essa mesma dialética como ciência das determinações. Caminhando na

direção de se pensar isso de um modo mais concreto, embora o conceito de

sobredeterminação trabalhe com a ideia de autonomia relativa das estruturas, bem

como com a ideia de mudança na posição de cada uma das relações de contradição

que se processam entre as diferentes estruturas em uma dada conjuntura nacional e

internacional, não pensa, por sua vez, nas categorias que operam internamente para

determinar a autonomia relativa que se desenvolve dentro de cada uma das

estruturas que entram no jogo das contradições. É a mesma falta que quisemos

indicar no caso específico da contradição formulada por Marx em relação ao fato de

que ainda sentimos prazer estético com uma forma de arte antiga, que hoje já não é
116

mais possível.

Vejamos um exemplo. Althusser, com o seu conceito de sobredeterminação,

nos ajudaria a pensar, entre outras possibilidades, na autonomia relativa que a

estrutura jurídica pode chegar a desenvolver em uma determinada sociedade.

Também nos ajudaria a pensar como, em determinado contexto, a contradição que

se processa entre a estrutura jurídica e, por exemplo, a estrutura política, pode

chegar a ocupar a posição de contradição principal. E poderia, até mesmo, nos

ajudar também a pensar no aspecto principal da contradição que se processa, num

determinado momento, dentro da própria estrutura jurídica, pensando, por exemplo,

nos interesses e nas formas da luta de classes que aí se desenrolam. Mas nada

disso significaria ainda a produção de um conhecimento sobre "as formas de ser,

determinações da existência" da autonomia relativa dessa estrutura jurídica, as

formas por meio das quais ela chegou a desenvolver essa autonomia relativa, a

determinação da sua positividade, a exposição das determinações mais simples e

abstratas na direção da autonomia relativa entendida como uma das formas do

concreto pensado, síntese de múltiplas determinações, do modo como o fez Marx

em relação à economia da sociedade burguesa:

O diagnóstico histórico do capitalismo enquanto sistema total (na sua


pretensão) de apropriação da natureza e de dominação social pela lógica de
valorização, possibilita uma reconstrução categorial de uma ciência social, a
economia política, que preenche, metodicamente, a exigência de considerar
apenas (exclusivamente e integralmente) "o desenvolvimento do conceito
de capital", isto é, de organizar sistematicamente, sem hipóteses exteriores
a ele, todas as categorias da economia política enquanto "determinidades
formais econômicas", do capital e do seu movimento de autovalorização."
(MULLER, 1982 p. 37)

No caso da estrutura jurídica, portanto, a tarefa epistemológica seria o

pensar as "determinidades formais jurídicas", as hipóteses interiores a essa

estrutura, as categorias que devem produzir o concreto pensado de sua estrutura

como síntese de múltiplas determinações, tal como o fez Marx com o estudo da
117

economia política clássica burguesa. Só assim, ao nosso ver, teríamos a produção

de um conhecimento científico sobre as bases lógicas que determinam a autonomia

relativa que pode ser pensada para cada estrutura que é indicada como parte

relativa na cadeia da superestrutura.


118

5 Conclusão

Na introdução a este trabalho, foi proposta a seguinte questão orientadora

das nossas reflexões: de que forma, e em que pontos, Althusser, com o seu conceito

de sobredeterminação, avança em relação a Marx? Essa questão foi sendo

retomada e respondida ao longo de toda a argumentação que elaboramos nesse

estudo, mas não deixa de ter importância retomar aqui, topicamente, algumas de

suas mais importantes conclusões. A mais ampla de todas talvez possa ser

formulada como sendo a experiência teórica que sentimos, ao tentar aprofundar nas

características mais importantes do referido conceito, de que ele é sempre, de algum

modo, fugidio. É fugidio quando pretende demarcar o ponto mais alto de um corte

epistemológico que Althusser enxerga entre a dialética de Marx e a de Hegel, pois,

no processo de desempenhar essa função, o que vai nos aparecendo, na verdade, é

um conceito que está muito mais relacionado com o pensar de uma teoria do

processo de desenvolvimento histórico concreto, e não com a lógica de produção de

um conhecimento científico. Neste último caso, que é o tema por excelência da

epistemologia, o conceito de sobredeterminação não faria muito mais do que dar um

novo nome a uma coisa já existente, ou seja, ao que Marx chama de "concreto

pensado", "síntese de múltiplas determinações". Não haveria aí, portanto, nenhuma

novidade. É fugidio também ao se esforçar por caracterizar a lógica operante dentro

da teoria marxista da história, pois quando pretendemos nos aprofundar no

conhecimento dos critérios e fundamentos específicos de uma filosofia ou sociologia

que produz o conhecimento das bases estruturantes de uma autonomia relativa de

outras estruturas que não a econômica, o que acontece é que caímos no vazio de

uma não problematização de tal questão. O processo de estruturação das

autonomias relativas é um pressuposto que não se evidencia nem como tal.


119

Mas, é em relação a essa última questão que podemos notar uma diferença

em comparação com Marx. E, sendo diferença, pode ser caracterizada ou não como

um avanço, do ponto de vista de quem olha, daquilo que se espera ou se deseja de

uma teoria. Nessa linha, Althusser quebra a ideia de uma determinação simples pela

estrutura econômica como princípio operante da lógica do desenvolvimento dos

processos históricos, ideia que nos pareceu ser a espinha dorsal da teoria da

história em Marx, e que, ele mesmo, jamais chegou a relativizar por meio de noções

tais como "determinação em última instância" (Engels) ou "autonomia relativa das

superestruturas", como se procurou demonstrar no nosso trabalho. Mas é verdade

também que, como também já ficou dito, a problematização de uma determinação

econômica simples pode ser apreendida, principalmente, nos textos de Marx com

função mais historiográfica, nos quais, em diversas passagens, pode-se enxergar a

operação de uma complexidade na relação entre diferentes estruturas, lógicas e

valores, que se poderia caracterizar como processo de complexificação das relações

de determinação na teoria da história, ou aquilo que Althusser procurou evidenciar e

sistematizar por meio do conceito de sobredeterminação. A formulação de um

conceito para evidenciar essa lógica, contudo, vai acarretar no expressivo ganho de

força epistemológica para uma categoria e um princípio de conhecimento, que, em

Marx, existem, no máximo, de modo embrionário ou latente: a categoria "análise de

conjuntura", ou o exercício epistemológico de mapear e trazer à luz as múltiplas

contradições e o modo como se relacionam em um determinando momento e lugar

histórico. Esse é um conhecimento do tipo que em pouco tempo decai, pois as

mudanças de conjuntura tendem a ocorrer com relativa rapidez; e o princípio da

"impreditividade", que não é explicitado por Althusser, mas pode ser deduzido

logicamente, pois acaba por se tornar virtualmente impossível prever onde, em que
120

momento, por meio de qual tipo de processo as contradições vão se condensar ao

ponto tal que chegue a provocar uma explosão revolucionária. O próprio exemplo

utilizado por Althusser para importar o conceito de sobredeterminação, a experiência

histórica da revolução russa, acaba por se converter em um modelo de análise à

posteriori, que difere do caráter de certas formulações preditivas que estão

presentes e podem ser deduzidas da teoria da história tal como se apresenta no

texto marxiano. Enfim, o possível avanço que podemos enxergar com o conceito de

sobredeterminação operando no campo da teoria da história faz pagar o seu preço,

exigindo o esforço de uma leitura mais empírica e de "superfície" (conjuntura),

condenada a um rápido decaimento no seu valor epistemológico, que não se

sustenta por muito tempo, e com uma drástica redução de seu poder preditivo, no

que tange às expectativas de uma teoria da revolução.

Há ainda um outro valor na teoria althusseriana, o último que desejamos

ressaltar e sobre o qual ainda não foi dita nenhuma palavra, muito embora já tenha

sido pressuposto e talvez, quem sabe, subentendido. Althusser não é um marxista

que reduz e fecha a possibilidade do conhecimento científico - considerando o

campo das ciências humanas - exclusivamente dentro da corrente teórica do

marxismo. Althusser reconhece a possibilidade de outros objetos de conhecimento e

de outras disciplinas teóricas que podem ter o mesmo valor do ponto de vista da

produção de conhecimento científico. O lugar em que tal reconhecimento se

evidencia com mais nitidez é nas suas considerações teóricas sobre o estatuto

científico da psicanálise73, e é demasiado sintomática a importação que faz, para

dentro do marxismo, do conceito freudiano de sobredeterminação, sintomática das

possibilidades de troca teórica que podem existir entre disciplinas profundamente

73
Aqui não nos interessa saber se Althusser estava certo ou errado em atribuir tal estatuto à
psicanálise. O que importa é a postura aberta e a troca que se proporciona entre dois mundos
teóricos profundamente divergentes.
121

divergentes no recorte do seu objeto e na forma da sua abordagem epistemológica.

E é quase incrível ver como Althusser se esforça, inclusive, para demonstrar a

operação do princípio lógico da sobredeterminação em um lugar tão inusitado como

a "História da Loucura", de Foucault:

(...) Foucault ao estudar o transformar-se desconcertante dessa formação


cultural complexa que reúne em torno de um termo sobredeterminado -
"loucura" - nos séculos XVII e XVIII, um sem-número de práticas e
ideologias médicas, jurídicas, religiosas, morais e políticas numa
combinação, cujas disposições internas e sentido variam em função da
mudança de lugar e do papel desses termos, no contexto mais geral das
estruturas econômicas, políticas, jurídicas e ideológicas da época..."
(ALTHUSSER, 1979, p. 47)

Em suma, terminamos com esse apontamento dado por Althusser,

construído de um modo tão sólido principalmente pela sua relação com a

psicanálise, e que indica o caminho da busca e do reconhecimento de outros

conceitos e valores teóricos e epistemológicos, que estão fora do marxismo, forjados

em outros contextos teóricos, mas que podem ser importados e fundidos, de alguma

forma, dentro do corpo orgânico da teoria marxista, sem comprometer o fundamental

da sua identidade. É um outro tipo de relação com as teorias que estão "de fora",

não só de combater e questionar, mas também de aprender e incorporar, sem medo

de "macular" o corpo que deveria permanecer "purificado".


122

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