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Os destinos da pulsão:
sintoma e sublimação

KALIMEROS
Escola Brasileira de Psicanálise
Rio de Janeiro

Apresentarão:
Maria Anita Carneiro Ribeiro
Copyright © 1997, Kalimeros

Organização Geral
Maria Anita Carneiro Ribeiro
Manoel Barros da Motta

Conselho Editorial
Antonio Quine!
Eliane Schermann
Maria Elisa Monteiro

Projeto Gráfico e Preparação


Contra Capa

Os destinos da pulsão: sintoma e sublimação I Kalimeros - Escola Bra­


sileira de Psicanálise - Rio de Janeiro. Maria Anita Carneiro Ribeiro e
Manoel Barros da Motta (Orgs.) - Rio de Janeiro. Contra Capa Livraria,
1997.
364 p.; 14 x 21 cm

ISBN 85-86011-07-X

1. Psicanálise. 2. Sublimação. 3. Sintoma. 1. Carneiro Ribeiro, Maria


Anita, org. li. Motta, Manoel Barros da, org. Ili. Kalimeros. Escola Brasi­
leira de Psicanálise. IV. Título.
CDD 150.195

1997
Todos os direitos desta edição reservados à
Contra Capa Livraria Ltda.
<ccapa@easynet.com.br>
Rua Barata Ribeiro, 370 - Loja 208
22040-000 - Rio de Janeiro - RJ
Tel (55 21) 236-1999
Fax (55 21) 256-0526
SUMÁRIO

Apresentação 09
Maria Anita Carneiro Ribeiro

A pulsão e seus destinos - parte um

A transmissão na psicanálise e o saber na prática do tratamenw 19


franfoi.r Leguil
A pulsão e seus destinos 43
Maria Anita Carneiro Ribeiro
Um conceito arquimediano: a pulsão na orientação lacaniana 59
Manoel Barro.r da Motta
Zwang und Trieb - sintoma obsessivo, com-pulsão à repetição 67
Antonio Quine!
O poeta do ato 79
Eliane Schermann
Sintoma, fantasia e pulsão 89
Eli.ra Monteiro
Análise - um percurso 101
Elizabeth da Rocha Miranda
Do sintoma ao traço 105
Daniela S cheinkman
O sintoma como metáfora 111
S ilvia E/ena Tendlarz
Algumas considerações sobre o amor, a paixão e o afeto 131
Marcu.r André Vieira
Sintoma e sublimação - parte dois

Sublimação -sintoma? 145


]osephAttié
Percurso freudiano da sublimação 173
JosephAttié
Sublimação e sintoma 185
ste/la Jimenez
O filho necessário 191
C,'o/ette S oler
Do sintoma ao sinthoma: referências joyceanas de Lacan 207
Mirta Zbrun
Em Goethe 215
Sonia Alberti
Pessoa, a esfinge 227
C'olette S oler
Pulsão: amor e ódio 273
Heloisa Caldas
Sublimação e a poesia de Manuel Bandeira 285
Lucia Cipriano Baima
O olhar e a voz - parte três

Lembra-se do objeto que vimos, minha alma... 295


François Leguil
Sublimação e voz 315
Vera Pollo
Arte: da psicanálise a Walter Benjamin 323
Oswaldo franf'tl Neto
As figuras do vazio 333
Gleuza Mana Saiomon
Juan Miró - uma busca desesperada de apreender a pulsã.o 343
Ana Martha Wilson Mata
Da voz à música: o grão e o resto 3 53
Maria Lidia Arraes Alencar
Sintoma e sublimação 3 59
Rainer Meilo
APRESENTAÇÃO

A montagem da pulsão, nos diz Lacan, não tem nem pé


nem cabeça e nisto se assemelha a uma colagem surrealista. Seria
mais ou menos o equivalente a "um dínamo acoplado na tomada
de gás, de onde sai uma pena de pavão que vem fazer cócegas no
ventre de uma bela mulher que lá está incluída para a beleza da
coisa" (Lacan, 1979[1964], p. 161). O próprio Freud, aliás, já a com-
parava aos grandes seres míticos, sempre aberrantes e monstruo-
sos: ciclopes, sátiros, centauros e (por que não?) sereias, para incluir
a(1ui a bela mulher de Lacan.
Conceito mítico, híbrido e obscuro, a pulsão ganha da es-
crita de Freud um de seus textos mais importantes e seguramente
um dos de mais difícil leitura. Em contrapartida, são estas mesmas
razões que tornam a pulsão um dos temas mais instigantes e ricos
da psicanálise. Este livro é um prova disto, abordando, nos seus
vários artigos, a pulsão e seus destinos, num passeio que vai da
teoria pura à técnica e ao caso clínico, da filosofia à arte, desfilando
pintura, prosa, poesia e música. A montagem do livro não é, entre-
tanto, sem pé nem cabeça. No esforço de cingir o conceito freudiano
e suas vicissitudes, partimos dos artigos teóricos para a abordagem
específica dos dois destinos da pulsão destacados no título - sir:.-
toma e sublimação - , desembocando nos objetos pulsionais mais
evanescentes e por isto mesmo os mais inquietantes, o olhar e a voz,
os objetos causa de desejo.
Os Destinos da Pulsão

Neste percurso cabe um esclarecimento: Freud nos fala de quatro


destinos da pulsão e nós, aparentemente, privilegiamos apenas dois, um dos
quais - o sintoma - nem ao menos mencionado por ele como um
destino espeófico da pulsão. Como, então, entender o título escolhido?
Em seu texto clássico sobre o assunto, Freud (1995[1915])
nos diz que a pulsão sexual pode sofrer as seguintes vicissitudes: a
transformação em seu contrário, o retorno ao próprio eu, a re-
pressão e a sublimação.
Os dois primeiros destinos da pulsão se misturam, já no
próprio texto de Freud. A transformação em seu contrário se subdivide
em retorno da pulsão da atividade em passividade e na transforma-
ção do conteúdo. Os exemplos privilegiados do retorno da ativida-
de cm passividade vão ser exatamente os pares apresentados por
Freud como exemplo de retorno ao próprio eu: sadismo-masoquismo
e voyeurismo-cxibicionismo. Na sua releitura de Freud, Lacan
(1979(1964], p. 161) vai nos perguntar como entender estes pares
de oposição, aparentemente absurdos. De fato, se tomamos sadis-
mo e masoquismo, exibicionismo e voycurismo ao nível da estrutu-
ra perversa, temos que o masoquismo não é a transformação no
contrário do sadismo, e que tampouco se estabelece entre
voycurismo e exibicionismo esta relação de inversão.
"É fácil demonstrar que não é nada disso", nos diz Lacan
(idem, p. 161), porém Freud quer nos dizer algo de fundamental
com isto, algo que diz respeito à própria estrutura da pulsão, de seu
circuito. Em primeiro lugar, para Freud a pulsão, por acéfala e de-
moníaca que seja, está subordinada a uma gramática, que a declina
na voz ativa (chupar, cagar, ver, escutar), reflexiva (se chupar, se
cagar, se ver, se escutar) e passiva (ser chupado, cagado, visto ou
escutado). 1:'efll_os assim um circuito em que a transformafàO no contrá-
rio coincide com o retorno ao próprio eu, conforme a enigmática pas-
sagem do texto de Freud (1995(1915], p. 122). Este vai-e-vem
pulsional pode se resumir bem, como o faz Lacan, no se fazer. se
fazer chupar, cagar, ver, escutar (1979[1964], p. 184).

10
Maria Anita Carneiro Ribeiro

Assim sendo, os dois primeiros destinos da pulsão destaca-


dos por Freud correspondem à própria estrutura da pulsão, à arti-
culação de seus quatro termos (fonte, esforço, objeto e objetivo).
Saindo como uma flecha da zona erógena (sua fonte), a força
pulsional se dirige ao objeto e o contorna, desenhando o vazio de
sua ausência, e cumprindo o objetivo de sua satisfação: retornar
para insistir e recomeçar.
O terceiro destino da pulsão é a repressão ou o recalque,
quando "uma moção pulsional se choca com resistências que que-
rem torná-la inoperante" (Freud, 1995[1915b], p. 141). Para Freud,
esta vicissitude da pulsão não é evidente em si, pois para que uma
moção pulsional seja vítima de tão inexorável destino, seria necessá-
rio que sua satisfação entranhasse o desprazer, em vez do prazer. O
recalque vai incidir então sobre o que Freud chama de representafêio
intolerável, a representação da falta no Outro que escreve no sujeito a
inexistência da relação sexual. Este seria o recalque primário do qual
só temos evidência pelo recalque secundário, ao (1ue Freud chama
de recalque propriamente dito (Idem, p. 143), ou seja, as representações
que sofrem a ação da censura ou a força de atração do recalque
originário por manterem com o material recalcado uma relação de
aproximação perigosa. Mas mesmo a estas representações secun-
dárias só temos acesso pelo seu retorno nas formações do incons-
ciente. Assim, só podemos falar deste destino da pulsão - o recalque
- pelo retorno do recalcado nos sonhos, nos chistes, nos lapsos,
no sintoma.
O sintoma, entretanto, se destaca das outras formações do
inconsciente. Em seu artigo "I.(x)" Jacques-Alain Miller vai dizer
que enquanto um sonho tem a duração de seu relato, enquanto o
chiste acaba no riso que provoca, "o sintoma dura" (1988, p. 169).
E na duração do sintoma está a especificidade que nos faz escolhê-
lo para falar do recalque de modo privilegiado, pois a duração do
sintoma - sua resistência - revela que ele ao mesmo tempo ée não
é apenas uma formação do inconsciente.

11
Os Destinos da Pulsão

Como formação do inconsciente, o sintoma fala: é respos-


ta dada pelo sujeito ao enigma proposto por sua causalidade
significante, como o demonstra Lacan no grafo do desejo, no vetor

Nesta vertente, o sintoma se apresenta como um significa-


do (s) do sujeito ao Outro (A), de onde provém a sua determina-
ção significante. Assim sendo, o sintoma tem um endereçamento
(ao Outro) e contém uma mensagem a ser decifrada, como o de-
monstra Freud desde os "Estudos sobre a Histeria". O sintoma
tem, enfim, um sentido, já que é fruto da articulação significante. É
por este viés que o sintoma faz laço social, como é demonstrado no
numerador do discurso da histérica

/ ---t S1

Ou seja, o sujeito dividido por seu sintoma se dirige ao outro


na posição de mestre para que este produza um saber sobre aquilo que
causa sua divisão. Miller (1988, p. 169) chega mesmo a dizer que "o
sintoma é sempre social", e por isto podemos falar das novas formas
do sintoma e dos sintomas contemporâneos, como o fizemos no últi-
mo Encontro Brasileiro do Campo "Freudiano (São Paulo, 1997).
Entretanto a verdade do sujeito, que no discurso da histéri-
ca se esconde sob a barra e sustenta a divisão subjetiva, está no
objeto que causa o desejo, no objeto mais-de-gozar diante do qual
se detém, impotente, o saber do mestre.

a f- S2
impotência

12
Maria Anita Carneiro Ribeiro

Este objeto a, que está fora da cadeia significante e que


paradoxalmente a sustenta, vai se constituir, segundo Lacan (1968),
numa Bedeutungprimordial, significação primeira, significação de pura
ausência, gozo sem nome que será metaforizado pelo significante -
letra que fixa o gozo. Esta é a dimensão mais radical do sintoma, ali no
ponto exato em que o ser (l'être) é substituído pela letra (lettre) (Miller,
1988, p. 171). Estamos então diante do que Freud chamou de recalque
primário, o recalque que funda o inconsciente; aqui o sintoma não é
mais uma formação do inconsciente, mas sim uma função do in-
consciente: "função que transporta uma formação do inconsciente
ao real" (Idem, p. 170). Esta é a vertente irredutível do sintoma, o
sintoma-letra que fixa a pulsão, esvaziando-a de sua vertente mortí-
fera e domesticando o gozo como fálico. Porém, ao fixar a pulsão
domando-a, o sintoma retém cm si algo da pulsão de morte que nele
insiste e resiste (resistência do sintoma), domador domado pela fera,
exorcista tomado pelo demônio que extrai do corpo do sujeito, que se
torna deserto de gozo. É o incurável do sintoma (1:) que se evidencia
no final de uma análise, quando as significações, o sentido do sintoma
[s(A)], foram decantadas e o sintoma se reduz ao irredutível, ao ponto exato
que denuncia que o sujeito não se cura do inconsciente.
Em sua dimensão de sentido, o sintoma dá ao sujeito um
parceiro, o Outro, o Outro da significação, o tesouro dos significantes.
Na dimensão do não-sentido oferece ao sujeito como parceiro o
objeto a (ibid., p. 171). Assim o sintoma é o verdadeiro parceiro do
sujeito, oferecendo-lhe, qual o deus Jano da mitologia romana, ora
sua face simbólica, ora sua face real, sempre intermediada pela con-
sistência imaginária do rosto oferecido. R.S.I. - os três registros da
experiência do sujeito que ele, o Sintoma, amarra; no Édipo, em
que se constitui metáfora do gozo, na perversão, como
"saberificação" do gozo, e na psicose, "odioficáção do gozo" (ibid.,
p. 172). É justamente sobre o Parceiro-Sintoma que nos reuniremos
em julho próximo (1998) em Barcelona, para debater no decorrer
do X Encontro Internacional do Campo Freudiano.

13
Os Destinos da Pulsão

O derradeiro destino da pulsão, a sublimação, é o mais_


misterioso. Freud nos deixa dele justamente uma Carta Roubada: um
artigo específico que teria sido escrito em 1914-5, e que se perdeu
(ou foi destruído pelo próprio Freud), segundo a Introdução de
James Strachey aos trabalhos da ''Metapsicologia" (1998[1915], p. 101-2).
Em sua "Introdução ao Narcisismo" (1998[1914], p. 91) Freud
distingue com precisão sublimação e idealização. "O ideal do eu
reclama, certamente, esta sublimação, porém não pode forçá-la" (idem,
p. 91). Na verdade, o ideal é "o mais forte fornecedor do recalque"
(ibid., p. 92) uma vez que aumenta as exigências do eu, enquanto a
sublimação "constitui aquela via de escape" que permite cumprir a
exigência pulsional fazendo o curto-circuito do recalque. Se o sintoma
é o retorno, pela via da substituição significante "do que se encontra na
ponta da pulsão como seu alvo" (Lacan, 1988[1959-60), p. 139), a
sublimação é um paradoxo, pois permite à pulsão "encontrar seu alvo
em outro lugar que não seja naquilo que é seu alvo" (idem).
Em que outro lugar, senão no significante? No Seminário, livro 7: a
ética da psicanálise, Lacan nos exemplifica os ideais da sublimação através do
"amor cortês", dizendo que ele desempenha um papel de limite. ''Ele é
aquilo que não se pode transpor. E a organização da inacessibilidade do
objeto é justamente a única coisa da qual ele participa" (ibid., p. 188).
Pela via da sublimação o sujeito - o artista-, escapando
das exigências do supereu e do ideal do eu, cria A MULIIER - o
objeto inacessível - , que não existe, demarcando o lugar de sua
ausência, e fazendo-a presente na obra de arte. Música, artes plásti-
cas, prosa e poesia fazem borda à foraclusão universal do significante
d'A Mulher, fazendo-nos vislumbrar seu enigma por metáforas,
por enigmas, à deriva. Fazendo eqüivaler a pulsão à deriva, Lacan
ressalta o que nela há de insidioso, de mortífero, de enigmático, de
feminino. De mítico, nos diria Freud.

Rio de Janeiro, 28 de outubro de 1997.


Maria Anita Carneiro Ribeiro

14
Maria Anita Carneiro Ribeiro

Referências bibliográficas

1- FREUD, S. "Introducción dei narcisismo" (1914). Em: Obras Completas,


vol. IV. Buenos Aires, Amorrortu, 1993.
_ _ _ _ ."Pulsión y destinos de pulsión" (1915). Em: Obras Completas,
vol. XIV. Op. cit.
_ _ _ _.La represión" (1915). Em: Obras Completas, vol. XIV. Op. cit.
LACAN, J. O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise (1959-60). Rio de Janeiro,
Jorge Zahar Editor, 1988.
_ _ _ _ .O Seminário, livro 11: os quatro conceitos.fundamentais da psicanálise
(1964). Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1979.
_ _ _ _. O Seminário livro 14: a lájca da fantasia (1967-68). Inédito.
i\IILLER, J-A, "I: (x)". Em: Matemos II. Buenos Aires, Manancial, 1988.
A pulsão e seus destinos

parte um
A TRANSMISSÃO NA PSICANÁLISE E O
SABER NA PRÁTICA DO TRATAMENT0 1

François Leguil
Membro da École de la Cause Freudienne. Membro da Escola Brasileira de
Psicanálise.

Admitamos de imediato que o "saber analítico" é o saber


necessário para que se exerça a psicanálise, método inventado por
Freud para tratar, unicamente pela fala, mulheres, homens e às vezes
crianças, que puseram-se a conceber que "algo não vai bem", que
"algo não está certo" em suas vidas, tJUe isto é motivo para queixa
e ocasião de desejar conhecer sua causa exata, a fim de obter -
colocando-se em contato com este "algo" - uma mudança sufici-
entemente significativa para que o alívio do qual estas pessoas que-
rem se beneficiar não seja devido nem às virtudes banais da suges-
tão, nem às vertigens da sedução, nem aos efeitos da técnica médica
oriunda dos progressos da ciência. Com efeito, estas mulheres, estes
homens e por vezes estas crianças têm a idéia, por razões que
freqüentemente desconhecemos no início de sua busca, de que sua
infelicidade ou sua dificuldade de viver - sua insatisfação em todo
caso - não correspondem nem em suas origens, nem em seu cur-
so ao que os médicos denominam doença.
Que o saber analítico possa ser explorado com outros fins
que não aqueles procurados em uma tratamento analítico; que os
conceitos fundamentais da experiência possam ser exportados para
outras disciplinas mesmo percebendo-se claramente que a validade
destes conceitos sustenta-se em uma prática enquanto esta provê a
Os Destinos da Pulsão

si própria seus modos de verificação conceituai; que estes conceitos


possam ocasionalmente provocar torções no exercício das discipli-
nas para onde foram transportados; que eles possam afetar sensi-
velmente aquele que os utiliza, tudo isto é perfeitamente legítimo e,
de todo modo, atestado desde os primórdios da invenção freudiana.
Que os conceitos forjados em condições precisas, humil-
des e linútadas - as condições da cura analítica, laboriosa e prosai-
ca; que estes conceitos possam ser modificados por outros usuários
que não pratiquem esta cura; que o alcance destes conceitos seja
então calculado de maneira diferente em um caminho que chega até
a inverter o sentido deles, nada disto deve nos chocar. Estes usuári-
os cometem algo que denominamos "bricolagem"2 • Este termo
não deve ser entendido de maneira desagradável ou pejorativa, pois
o utilizamos com a dimensão que Claude Lévi-Strauss lhe confere
em O pensamento selvagem (1962). O etnólogo denomina bricolagem a
atividade que repousa sobre a utilização de instrumentos com fins
diversos dos que foram inicialmente previstos para seu uso. Do
mesmo modo que pregamos um prego com um alicate a partir de
um manuseio alternativo, o bricolador3 obtém de um instrumento a
criação de um novo uso. A bricolagem tem uma estrutura seme-
lhante à estrutura da metáfora explicada por Jacques Lacan, auxilia-
do por Roman Jakobson, em seu texto ''A instância da letra no
inconsciente" (1957), e aquela não fala a favor de uma frivolidade
de espírito mas de sua fecundidade.

.
Deste modo, consideremos bricoladores aqueles que se
apoderam dos conceitos fabricados "para" e "pela" justificação
dos riscos incorridos na ação psicanalítica, e deles se apoderam para
outros fins: o comentário literário, a análise política, a crítica de arte,
a avaliação dos modos e costumes etc. Ao evocarmos a bricolagem
de Lévi-Strauss estamos apenas homenageando estes bricoladores
por sua liberdade e por sua inventividade. Se utilizassem os concei-
tos analíticos como nós temos o dever de deles fazermos uso (dever

20
François Leguil

de explicá-los a todo instante para confessar a natureza do desejo


t1ue os motiva), bem, poderíamos apostar que não teríamos muito
a nos dizer! É justamente porque a psicanálise não é feita para ser
uma prolongação da literatura, que é fecundo, indispensável, ir além,
exportá-la para outro espaço e confrontar os resultados obtidos
pelos psicanalistas em sua prática com, por exemplo, as meditações
da crítica literária. Do mesmo modo, é justamente porque a psica-
nálise não é de modo algum uma Weltanschauung, que ela interroga a
filosofia e que um bom número de filósofos considera que esta
prática, apesar de estranha à sua ascese, modifica indiscutivelmente o
curso universal. Pensemos no tempo passado pelo infeliz e genial
Ludwig Wittgcnstein, um dos maiores heróis modernos; pensemos
no tempo que ele dedicou a debruçar-se sobre a obra de um outro
vienense, Sigmund Freud.
No fundo, o psicanalista é um estranho conquistador que
vê o quanto suas conquistas, assim como a lista de suas campanhas
bem sucedidas, são tanto mais vastas quanto ele se mantém obstina-
damente no interior de suas fronteiras. Ele é, mutatis mutandis, como
Felipe II, que, de sua mesa, administrava uma "extensão" sobre a
qual o sol não se punha jamais, ao passo que Carlos V, seu pai, tinha
sido retratado pelo artista no sopé dos muros de Túnis sitiada. O
psicanalista é um conquistador que não sai de casa, cuja atividade -
e isso não é muito - não fica devendo em nada às tradições herói-
cas. Observemos as vidas de um Freud, de um Lacan: vinte, trinta,
quarenta anos ou mais na mesma rua, no mesmo número, na mes-
ma morada, entre as mesmas quatro paredes. Nada em comum -
e nem imaginamos estar sendo inconvenientes ou blasfematórios
- com este ou aquele soberano pontífice, forçado, sem nenhuma
consideração para com o peso dos anos, a beijar o solo em uma
augusta prosternação, ou melhor, a pista de todos os aeroportos de
todos os continentes visitados, a fim de mostrar que está em casa
em todo e em nenhum lugar, inteiramente dedicado a uma propa-
gação valorosa mas vacilante daquilo em que ele quer que o mundo

21
O.r Desti11os da Pulsão

acredite. O psicanalista, por outro lado, é forçado a ficar em casa.


Quando viaja, ele o faz tendo em vista um ensino e Lacan sabe
lembrá-lo que se ele se coloca nesta posição, ele não é mais psicana-
lista mas sim, cm relação à causa freudiana, psicanalisantc.
Podemos ouvir claramente a objeção: Freud, Lacan, Mclanie
Klein,Joncs, Reik e muitos outros, e dos melhores, foram visitar os
homens de pena, de pincel, de cordas ou de vento, escrutando seus
procedimentos, livros, telas ou mises en scene, trazendo daí algumas
sementes e trazendo a eles suas próprias descobertas!

Mais do que isto. Não podemos objetar que Lacan, con-


formando-se detalhadamente com o ângulo de abordagem de
Fi-eud, tratou da psicose através do escrito e da letra - "a ferro e
fogo" tal como se diz nos textos sagrados. Tratando-se do Presi-
dente Schreber, esta aproximação se torna ainda mais permitida
pelo fato de que parece difícil dissertar sobre sua relação com a
letra e com o escrito sem submergir cm suas aventuras com Deus.
i'~ fato patente na psicose - mais secreto alhures, sendo porém
presente em qualquer campo clínico que reúna fenômenos relacio-
nados com a instância da letra - (JUe todo aquele (JUe escuta é
colocado contra o muro, devendo precisar sua concepção das rela-
ções entre a letra e a escrita (questão bastante antiga).

Considerando um aspecto singular e conhecido desde a


famosa frase de sua epístola aos Corin1ios - "a letra mata mas o
espírito vivifica" - , percebemos (JUe São Paulo, apóstolo dos Genti-
os, opõe a letra ao espírito, que, apenas es1c, daria vida ao texto porque
seria a verdade da intclectuação4 divina transmitida na linguagem.
O Deus de Daniel Paul Schrcbcr não é o mesmo de Saulo
de Tarso. Ele não vivifica nada, não entende nada; ele mortifica. O
Deus de Daniel Paul não entende nada do mundo dos vivos pois
ele só tem como inteligência a inteligência dos cadáveres. Que im-
porta que seu reino seja deste mundo ou de um outro qualquer,

22
François Leg11il

uma vez que ele não autoriza nenhuma articulação da vida concreta
do sujeito a uma ordem que permitisse acreditar que um sentido é
possível. A letra mata a vida em Schreber e seu espírito é assustado-
ramente mortificado pois, em sua relação com a divindade, ele não
encontra nenhuma maneira de recobrar as forças a não ser decre-
tando-se como origem de uma nova raça. Esta é a dedução, a "ele-
gante solução" (Lacan, 1996, p. 572) que o Presidente Schreber enun-
cia a propósito de sua relação tragicamente irônica com a
transcendência, que Freud, lendo aí um dos efeitos da palavra sobre
o sujeito do inconsciente, isola, dá forma, e que Lacan explora,
mostrando o quanto aí se demultiplicam as questões do ser e do
vir-a-ser. Ao preço de seu corpo o mártir de Denkwiirdigkeite11 eines
.Neme11kra11kl11it (Schreber, 1975[1903]) demonstra que nosso tem-
po não é mais o de São Paulo e que a relação entre a letra e o
espírito se estabelece em um outro front.
Distante, bem distante de São Paulo, Lacan não afirma c.1ue
o espírito seja a verdade oposta à letra, pois ele pensa que a verdade
só pode ser tomada literalmente. Neste sentido, ele intervém cm
uma longa tradição na c.1ual podemos observar que, da frase aos
Coríntios até o século XIII, foi necessário esperar um bom tempo
antes c.1ue se soubesse transmitir um estatuto da letra, funcionando
praticamente do mesmo modo que hoje opera.
Utilizada por um dos grandes padres da Igreja do Ociden-
te, Gregório o Grande, uma fórmula se coloca no centro da ques-
tão: "Script11ra c11m le~P,entib11s cresci!' (a escrita progride com aqueles
que a lêem)". Na tradição exegética, a afirmação necessita que seja
implicitamente admitida uma circularidade entre escrita e leitura
porque uma e outra compõem um conjunto, incluído em um pro-
cesso de comentário infinito supostamente relacionado com as vir-
tudes transcendentes da linguagem, virtudes confirmadas pela coisa
escrita. São Gregório é herdeiro da tradição agostiniana que, conti-
nuando a tradição de Orígenes, imagina a escrita como uma tenda

23
Os Destinos da Pulsão

estendida sobre o mundo em cuja superfície inscreve-se todo o


saber elaborado. Fazendo da letra um meio de aceder ao texto
sagrado, Gregório mistura o sentido literal e o sentido espiritual.
Considerando que há na escrita algo que a permite avançar por si
só, ao sabor do progresso realizado por cada leitor à sua maneira
particular e segundo sua relação com seu Deus, a tradição afirma
deste modo que a escrita aumenta a força e a extensão do que
graças a ela caminha, na proporção da glosa que se tece e enriquece
a seu respeito.
O que nos ensinam é que é preciso esperar o tomismo para
que o estatuto da escrita seja modificado, delimitado e estritamente
circunscrito, como também para que ele não traga mais consigo o
principal desta abordagem formal do Outro e do Um que é a
teologia. O estudo dos textos sagrados torna-se então apenas um
dos meios pelos quais são examinadas as vias da revelação. Este
resultado é obtido graças a uma distinção entre o sentido literal e o
sentido espiritual.
São Tomás introduz com a letra um princípio racional na
relação do livro com o leitor, princípio que situa-se em posição
oposta àquilo que dava a esta relação uma dimensão infinita. No
"scriptura cum legentibus crescif', quanto mais significações descobertas,
mais podemos considerar que o texto as continha e que elas são o
fruto da riqueza sem fim da letra concebido como a carne do texto.
Com São Tomás a letra não é mais aquilo que permite esta possibi-
lidade de uma interpretação infinita. Ela é, antes de tudo, o meio de
aceder, por intermédio da razão, ao que o autor quer dizer. Benefi-
ciando-se ainda daquilo que pode tirar dos estudos judeus - de
Maimônides, de Rashi - , o exegeta tem com a letra um cuidado
preciso, quase técnico. Este novo perfil possibilita que tenha a ambi-
ção de estabelecer uma relação justa e clara com o texto.
Este novo rigor, que estabelece uma distinção entre sentido
literal e sentido espiritual, faz do texto o documento de uma econo-

24
mia positiva, confrontando-se, entretanto, com uma certa dificulda-
de em manejar o lugar da polissemia no comentário, já que a
multiplicidade de interpretações possíveis não pode mais ser credi-
tada ao poder da letra. A ruptura da circularidade entre o leitor e o
texto, efetuada pelos escolásticos, permitiu, é verdade, tornar a no-
ção de letra mais estrita e unívoca, às custas, entretanto, de uma
relativa diminuição da riqueza da leitura. A filologia humanista bus-
cará reencontrar a dignidade desta letra, dignidade esta que era ante-
riormente equivalente à história (todos conhecem a importância
decisiva destes debates sobre a letra e a escrita na época da Reforma).
Uma tradição tão longa e decisiva quanto esta pode ser
lembrada quando nos debruçamos, graças a Lacan, sobre a "instân-
cia da letra"; sobre o lugar da coisa escrita na relação ao saber que a
prática inventada por Freud exige. Nesta tradição inscreve-se tam-
bém a afirmação de Sartre no célebre artigo intitulado "O que é a
literatura?" (1975). Um livro, afirma Sartre, só se "conclui" com sua
leitura. Isto corresponde a fazer do livro uma mensagem cujo esta-
tuto implica que ele só se complete através do ato realizado pelo
leitor. Esta não é a posição de Lacan. O posfácio (que é certamente
<le difícil compreensão) do Seminário, livro XI: os quatro conceitosfunda-
mentas da psicanálise intervém nesta questão de uma maneira singular
e até mesmo surpreendente: "um escrito, em meu entender, é feito
para nào ser lido" (1973, p. 251). Atribuindo a Joyce a criação de
um "escrito como algo a não ser lido", distingue formalmente a
escrita da leitura. ''A função do escrito - defende Lacan - é um
outro modo do falante na linguagem", um modo no qual o psica-
nalista tem a experiência da letra, ou seja, a experiência do que não
responde, diferentemente da fala em cujo campo o analista tem o
dever de interpretar. É no campo da fala que se deve ler o que a
letra diz, interpretá-la, mas é pela função do escrito que as relações
do sujeito com o gozo serão exploradas. Estas relações não se pres-
tam à interpretação, mas sim à construção de um andaime
fantasmático concebido, no final das contas, como uma moldura

25
Os Destinos da P11/são

que o sujeito pode atravessar para fazer a experiência do que lhe era
dissimulado.

Em suma, Lacan mostra que a letra, longe de reunir, separa


leitura e escrita. O analista deve ler onde ele tem o dever de inter-
pretar, lá onde isso responde. Este ponto está no centro de uma
preocupação clínica, uma vez que tentamos com a escrita examinar
as relaçôes do sujeito com um certo real, como demonstra o fato
de <-1ue o que deve ser lido na neurose vincula-se à lógica da fantasia
no inconsciente.
Em seu artigo dedicado ao "romance familiar", Freud
mostra que a fantasia é um cenário, ou seja, um texto, um relato que
articula o ser do sujeito, ou melhor, a questão que este se coloca
sobre o ser, como sujeito da falta a ser, com um gozo fora da lei,
tematizado por Freud sob a rubrica daquilo que escapa ao pai e que
se combina com a suposta infidelidade da mãe. Que o sujeito se
imagine proveniente de uma relação de sua mãe com um amante,
(JUC ele se imagine ser o fruto da infidelidade materna, é o que,

segundo Freud, dá estofo à sua certeza de que o resto de gozo, não


simbolizável pelo pai, cifra sua verdadeira condição. A opacidade
do sintoma e o sentido que se tenta construir com a fantasia permi-
tem distinguir, por um lado, a dimensào da letra e, por outro, aquilo
tJUC se lê; por uma lado a letra e por outro a leitura. Lacan mostra

que a dimensão clínica está entre a verdade e o real.

No que diz respeito à psicose, o laço entre a gramaticalidade


do texto a ser lido, a lógica do caso e a clínica dos sintomas não se
apresenta com a aparência de uma continuidade narrativa que ofe-
rece ao neurótico suas possibilidades imaginativas. O "texto" do
psicót:ico reduz-se freqüentemente a fragmentos, a pedaços de pa-
pel, algo esparso que manifesta, diante da relativa linearidade das
coisas escritas, um estado hachurado feito de descontinuidades. Os
fenômenos psicóticos e a alucinação ilustram bem que o registro
opaco e inarticulado da letra aparece mais à primeira vista no

26
François Leguil

psicótico que no neurótico, ·este mais fechado a essa dimensão da


letra graças a seu romance, a fantasia (ignorando o jogo e os objeti-
vos de seu sintoma, o neurótico se satisfaz com as condições in-
conscientes que equilibram seus prazeres com o gozo aceito; este é
o compromisso do qual nos fala Freud, impensável na psicose,
111na vez que ele repousa sobre o recalque).

Neste sentido compreendemos que, tanto para Freud quanto


para um grande número de seus alunos, assim como para Lacan,
11ào se trata de fazer do analista um literato, nem do literato um
analista que se desconhece como tal, mas de considerar que se "a
letra é o suporte material que o discurso concreto toma empresta-
do à linguagem" (Lacan, 1966, p. 495), o clínico é implicado como
clínico pela coisa escrita.
Escritores e professores sabem que existe uma clínica da
escrita porque neste âmbito não existe ninguém para nos dar a mão.
l•'.sta clínica, entretanto, é por demais própria ao sujeito do inconsci-
ente para que façamos nossa a certeza argumentada de Lacan quan-
do afirma que trata-se de "um domínio onde nenhuma leveza de
especialista nos intimida" (Idem, p. 665).

finalmente, o analista como teórico, mais que um conquis-


tador, trabalha cm um escritório de importação-exportação. Não
llue ele seja como Tercnce, para quem nada de humano é estranho,
mas porque o ato analítico que deve realizar é impossível de dizer,
de justificar nos termos da psicologia acadêmica. Isto explica que ele se
encontre em uma encruzilhada. Por um lado, manter o segredo de sua
ação no inefável é cometer a "traição máxima", dando-lhe deste modo
"a consistência de um impensável feito" (Idem, p. 665). Por outro
lado, ele só pode dar conta de sua questão através de palavras,
tiues tão que não é imaginária, mas sim real. Acontece que "tocando-se,
por pouco que seja, na relação do homem com o significante, no caso
conversão dos procedimentos da exegese, mudamos o curso de sua
história por modificarmos as amarras de seu ser" (Idem, p. 527).

27
Os Destinos da Pulsão

Com este "clínico vinculado ao terra-a-terra do sofrimen-


to" (Idem, p. 642), tal como Lacan descreve Freud, o analista sente
que não pode decepcionar e que só pode impor a si esta exigência,
se considera que sua ação opera uma mudança radical nos sujeitos
que vêm lhe procurar para falar. Lacan evoca esta mudança com
palavras de impacto pois ele utiliza, quando quer dar a medida dos
montantes em jogo no final de uma análise, as palavras de Claudel,
quando este evoca sua conversão religiosa: "segundo nascimento".
Sem dúvida, Lacan teria podido utilizar este mesmo Claudel e reto-
mar como "seu" passe, com a destituição subjetiva que este implica,
a fórmula forjada pelo poeta - não conseguimos nos lembrar se
esta se encontra em um dos numerosos comentários dedicados ao
Apocalipse de São João - para essas experiências que "nos reve-
lam a nós mesmos no momento exato em que elas nos destroem"
(citamos de memória).
O analista, tanto em sua ação (1uanto nos objetivos que esta
inclui, não pode contar com o "amor médico", com a boa vontade
assistencial, tanto mais evidente quanto menos útil àquilo que a me-
dicina se propõe a realizar. Há apenas alguns dias, uma amiga traba-
lhando no Quebec, mas que já havia praticado a medicina nas con-
dições mais rudimentares de um país pobre, contava diante de um
pec1ucno auditório como ela havia tido (1ue intervir cm uma família
que habitava um vilarejo miserável e isolado de uma montanha afri-
cana. Uma jovem estava morrendo e, apesar de ser evidente que
tinha chegado ao fim de suas forças, os seus familiares ocupavam-
se unicamente em realizar todos os ritos propícios a agradar o Eter-
no a fim de que ele acolhesse a pequena moribunda em seu seio.
Nossa amiga conseguiu fazer o diagnóstico de febre tifóide e con-
duzir ao hospital a jovem, cuja família pedia apenas que se resignas-
se corretamente à vontade divina. A enferma se recuperou com
uma prescrição de cloranfenicol e, uma vez curada, retornou ao seu
vilarejo. Não se trata de uma história edificante mas ela mostra como

28
François Legui/

a ciência atua: quem quer que você seja, Pedro, Paulo ou Jacqueline,
tJUe você seja poderoso ou miserável, a medicina moderna cura
melhor seus doentes quando nada sabe de sua história ou de suas
particularidades subjetivas. Deste modo, "o real da ciência que des-
1itui o sujeito de maneira bem diversa em nossa época" (Lacan,

1968, p. 23) explica o quanto a eficácia terapêutica cresce à medida


<JUe é menos ouvida a verdade de cada um. No caso presente,
dificilmente podemos deplorá-lo, pois foi a extração da doente
daquilo que constituía "sua história" que tornou possível seu salva-
mento. O efeito de "foraclusão do sujeito" do qual nos fala Lacan
e a ciência são a serem mais constatados que criticados, uma vez que
eles condicionam sua própria operacionalização. É bem verdade
<1ue é uma tentação legítima escarnecer das destruições da ciência;
mas se forçarmos demais o talento desta última não estamos cor-
rendo o risco de cair em seu viés especular, ridicularizado com
justeza por Léon Bloy em seu Exegese des lieux communs (Exegese dos
lugares comuns):
O burguês épor demais esclarecido para desconhecer oprogresso da ciência
da qual ele é o mecenas mais claramente designado. Ele sabe que a ciência
não pára, que ela não pararájamais e que amanhã talvez ela recolocará a
marmita reencontrada do velho Eson sobre ofogo (1983, p. 40) ?6

Um ponto importante, que concerne a solidariedade entre


a eficácia terapêutica e o recalque das verdades singulares, deve ser
lembrado. É incontestável que, desde sua origem, a psicanálise apre-
sentou-se também como um modo de tratamento do sofrimento.
Lacan leva isto em conta em 1964 no ato de fundação de sua Esco-
la, que precisa que se deve distinguir a psicanálise pura, didática, que
vai além da terapêutica, da psicanálise confrontada unicamente à
necessidade de "cuidar [denominada): psicanálise aplicada".
Precisar que a psicanálise sempre foi concebida como um
1ratamento do sofrimento corresponde a lembrar que a cura é uma

das noções que a preocupa. Todos sabem que trata-se da seguinte

29
Os Destinos da P11isão

dificuldade: a psicanálise é um método de tratamento que se dá a


cura como objetivo a si própria, desaparece como... psicanálise.
Deste modo, Freud coloca - no início, implicitamente, e mais tar-
de, de maneira clara - que os segredos da ação analítica e a virtude
de seu poder exigem que nos desvencilhemos da ambição terapêu-
tica como objetivo único e que não respondamos imediatamente a
uma demanda de cura.
Não é um truísmo lembrar que a medicina propaga-se
porque sabe curar, especialmente se pensamos o quanto o próprio
termo "cura" é fonte de conflitos e de uma certa desconfiança em
nosso meio. Consideramos comumente que não é nossa função
obter com todas as nossas forças o desaparecimento das anomalias
que motivam a queixa, pois isto corrompe a verdade do que está
para ser descoberto. Por outro lado, somos freqüentemente recri-
minados por não nos preocuparmos com a cura, de dela não fazer
uma diretriz ardente, um ideal, enfim, de nos mostrarmos imper-
meáveis às dores imediatas e mediocremente preocupados com as
conseqüências de nossa ação.
Mesmo sem cuidarmos demais da etimologia, é permitido
nos darmos brevemente os méritos de recorrermos à história das
palavras. Consultando obras ad hoc, descobrimos que curar (guérir)
vem do velho L~uarir, que caminha com este até o Grande Século;
que guarir parece provir do frâncico 1v,u:;an e provavelmente do alto
alemão 1veria11, de onde vem atualmente o termo wehren (defender,
proteger). Esta foi a significação inicial deguariraté que seu uso para
a cicatrização de uma ferida tenha se associado progressivamente, a
partir do século XII, às significações da restauração da saúde. O
mesmo ancestral léxico deu origem, em alemão, a Wahr e IV'ahrheit.
Uma origem aparentemente única dá lugar, com a palavra guarir,
tanto a se defender, quanto a proteger e a verificar. Não seria mais
do que pitoresco observar que cura e garantia vêm da mesma fôr-
ma? E não estaria nosso debate bem encaminhado ao encontrar-
mos, na história da língua, que estamos muito e bem situados entre

30
François Legu;/

a verdade e o real, verdade que se experimenta, e real da intrusão de


um elemento estranho do qual é preciso defender-se 7?

Vê-se que não estamos, neste ponto, em má companhia


lexical. Antes que seu ensino enfatizasse a noção de gozo, que exa-
mina precisamente a ligação entre verdade e real, Lacan adianta que
recalcamos a verdade ao mesmo tempo que nos habituamos com
o real. Recalque e hábito são duas maneiras de se comportar com o
insuportável, duas maneiras de "curar" comuns e espontâneas!
Recalque e hábito contribuem para explicar a dupla conotação pe-
jorativa da palavra cura. Por um lado, falta de determinação:
habituamo-nos em vez de pegar o touro pelos chifres, e "deixa-
mos" o sintoma ir mordiscando o eu; um eu confinado à inibição
consentida. O eu organiza-se em torno deste sintoma, como uma
peal( de cha._gri!I', como bem mostra Freud em 1926. Se por um lado
trata-se de uma falta de determinação, por outro, há falta de desejo
de saber, pois pretender nada descobrir da verdade do sintoma que
motiva a queixa corresponde a admitir que o alívio só pode vir de
outrem, e que ele não depende de uma posição subjetiva especificada
por um esforço de dizer o que existe para além das evidências. A
dimensão pejorativa, mesmo a nuança de desprezo, que acompa-
nha as expressões "medicalização" ou "psiquiatrização" de um qua-
dro clínico, associa-se ao sentimento de uma ofensa aos ideais de
caráter e, por que não, ao ideal da Aufk/iirung. Não devemos esque-
cer que Freud pensava nesta Aufk/iirung já em 1910, no Congresso
de Nuremberg, quando esperava atribuir uma missão civilizadora à
transmissão do saber analítico. Esquecemo-lo um pouco talvez, mas,
a partir de "Aufklarung der Masse", Freud esperava obter "a
profilaxia mais profunda das enfermidades neuróticas através da-
quilo que faz autoridade no plano social" (auf dem Umweg über die
gese//scheft/iche Autoritâi).
Tão seriamente fundado quanto os precedentes, um outro
motivo torna suspeita essa questão de cura. A psicanálise revelou
que é falso pensar que o sujeito não tem nada a ver com seu sofri-

31
Os Destinos da Pulsão

mento, o qual dissimula um gozo por vezes teimoso. A noção de


escolha do sujeito, de escolha da neurose e da estrutura têm seus
títulos de nobreza já no Freud dos primeiros escritos. Lacan sempre
assumiu esta posição última, ética se podemos dizer, evocando, desde
1946, o "inapreensível consentimento da liberdade" (1966, p. 187).
Um pouco mais tarde, seu texto sobre a agressividade precisará que
não se pode esperar nenhum progresso no campo da clínica, se não
confiamos na responsabilidade subjetiva.
E então? Devemos nos dividir entre os partidários do res-
peito à insondável posição subjetiva do paciente e os que defendem
que a cura da pessoa não deve ser perdida de vista? Certamente que
não, pois, assim apresentados, os termos da alternativa estão mal
situados. Apesar de aparentemente haver uma lógica na indicação
da distância entre a exigência de cura e a noção de escolha do sujei-
to, de posição subjetiva, não se nota suficientemente bem que, quando
Freud fala pela primeira vez na escolha da estrutura na segunda
metade dos anos 1890, ele trata da causalidade psíquica graças à sua
teoria do traumatismo. No mesmo movimento ele evoca tanto a
responsabilidade do sujeito, do qual se espera uma escolha, quanto
uma causalidade, na qual, em seu sofrimento, o sujeito não tem
nada a ver com isso (na hipótese do traumatismo a "efração" do
gozo vem do outro e não se deve a algo do sujeito). Lacan, desde
seus "Propos sur la causalité psychique" de 1946, segue o mesmo
caminho por um acesso diverso: existe uma "decisão do ser", mas
ela é "insondável".
Este debate apresenta o interesse de retomar aos primeiros
momentos da descoberta freudiana. Na época em que Freud en-
tende que a histérica "sofre de reminiscências", aquilo que é curado
na clínica encontra-se relacionado com o que se consegue rememorar.
Cura-se então uma vez que vencemos o "esquecimento" como
patogênico. Entretanto, na concepção que segue a linha dos "Estu-
dos sobre a histeria", ou seja, desde a teoria traumática, o que se

32
François Leguil

cura está na fronteira daquilo de que nos recordamos (on se souvienl')


e daquilo de que não podemos nos recordar, que é o próprio
traumatismo como tal. Isto porque este último só acede à consciên-
cia do sujeito pela ação explícita do desejo do analista, situado nesta
época nos confins da procura obstinada da confissão.
De uma etapa à outra a verdade mudou ligeiramente de
valência. Inicialmente a verdade é ligada às representações que o
aparelho psíquico recalca e em seguida marca o limite daquilo que
este aparelho é capaz de tolerar, uma vez que ela se encontra associ-
ada àquilo que se opõe à rememoração. Neste momento, cura-se
aquilo que pôde ser recordado graças à ação do analista sobre aqui~
lo que se recorda. Desde o ano de 1895, a fronteira do que é cura-
do ou não está nesta abordagem de uma verdade impossível de ser
integralmente formulada e que deve "secundar" (relqyer) a ação do
analista. Situar as coisas neste nível do verdadeiro tem fundamento,
já que a demanda de cura não é sobrecarregada por uma tara de
falsidade. O interesse não é de saber se o sujeito mente para si
próprio ou se ele fala a verdade quando diz que quer se curar, mas
sim, tanto aqui como alhures, que se ele mente, diz a verdade. É a
verdade da mentira que fixa nossa posição.
Na sessão de 21 de março de 1962 do Seminário, livro 9: a
identificação, Lacan precisa que, ao contrário do que se pensa, o neurótico
se compromete com sua queixa. Ele se coloca como real diante do
Outro, ou seja, como impossível. Ele escolhe a solução que consiste
em que o Outro saiba. "É absolutamente necessário que você sai-
ba", profere sua solicitação e é porque ele quer que o Outro saiba
que "é designado antes de mais nada como vítima". O gozo maso-
quista do sintoma deve ser localizado no efeito de retomo da louca
mensagem que o sujeito recebe do Outro: querer que o Outro saiba só
pode ser situado a partir daquilo que o Outro não sabe. Querer que o
Outro saiba toma apenas mais incandescente sua verdade como causa
e mais acentuada a infelicidade que transborda de sua consciência.

33
Os Destinos da Pulsão

Desde a invenção freudiana do supereu, querer que o Ou-


tro saiba é decorrente das questões que o sujeito se impõe e se
coloca quanto ao poder do Outro, do qual ele se põe a duvidar.
Esta questão do poder do Outro está bem no coração da noção de
cura. "O que pode o Outro?" inscreve-se concretamente entre ver-
dade e saber. Atualmente é impossível apreendê-lo sem dificuldade,
pois a medicina contemporânea, aproveitando-se do sucesso da
técnica, negligenciou as incidências da verdade do sujeito. Afora as
doenças vergonhosas, a doença não é mais um castigo dos céus.
Entretanto, esta laicização tem seu preço: o sentimento de culpa
(fautc) torna-se mais difuso. É difícil supor como este debate pode
ser novamente equilibrado de maneira convincente sem a psicanáli-
se, de tanto que os meios de cura abandonaram, ou quase, a esfera
propriamente "moral" (os comitês de ética não interromperão o
movimento de "dessubjetivação").
Ao longo dos séculos, associar o sofrimento ao testemu-
nho eventual de uma fúria celeste fazia da cura o sinal da misericór-
dia divina, assim como uma resposta congruente com a demanda
de amor do sujeito. O homem curava-se à medida do perdão de
Deus. Na cena do Evangelho segundo São Lucas, Jesus anuncia ao
paralítico, cujos parentes, apesar da multidão que o circundava, fize-
ram com que descesse pelo telhado a fim de tocar o Messias: "Teus
pecados estão perdoados". Grande escândalo para os doutores da
lei: "É uma blasfêmia, só o Mais-Alto pode fazer isto". Adivinhan-
do a recriminação hipócrita, Jesus proclama:
Por que estes pensamentos em seus corações? O que é mais fácil de dizer:
teus pecados estão perdoados ou levanta-te e anda? Pois bem, para que vocês
saibam que o Filho do homem sobre a letra tem o direito de absolver os
pecados, eu te ordeno, diz ele ao paralítico, levanta-te, toma tua muleta e
volta para casa 01, 17-26).

A subordinação do poder de curar ao poder de conhecer


os compromissos do sujeito com o gozo proibido e de perdoá-los

34
François Leguil

confirma que "o religioso instala a verdade em um estatuto de cul-


pa" (Lacan, 1966, p. 872), que é contemporâneo do movimento
que separa esta culpa da causa. Prevenidos por Lacan (e também
por Freud com seu "O futuro de uma ilusão") de que "enquanto
algo for dito, a hipótese Deus estará presente" (Lacan, 1975, p. 44),
temos que sustentar uma outra hipótese, a hipótese do inconsciente,
que não evacua esta vizinhança torpe entre a má saúde e as convic-
ções de indignidade da existência diante dos deveres. A nossa ambi-
ção de conduzir o sujeito ao lugar "onde todas as coisas são
convocadas para serem lavadas de sua culpa" (Lacan, 1966, p. 666)
corresponde precisamente a vontade de que aquilo que não tem
palavras para ser dito resolva-se logicamente e não mais se confun-
da com o inconfesso. É isto que Lacan reconhece desde o início,
desde o sonho (inaugural) da Traumdeutung da "injeção feita em Irma",
no desejo de Freud.
r'reud reconhece neste ato total de inocentar (innoccntcmcnt total) a
animação secreta deste sonho, o objetivo por ele buscado, pois o chama de
desqo estruturante. É o que nos conduz a questionarmos a jtmfão do
imaginário e do simbólico (Lacan, 1978, p. 201).

E por que não evocar neste mesmo nível de inspiração


aquilo que traz o melhor biógrafo de Wittgenstein? Este último teria
dito a Bertrand Russel (citado por Monk, 1993, p. 74-5) que refletir
sobre a lógica ou debruçar-se sobre seus pecados lhe pareciam tes-
temunhar níveis de preocupação equivalentes, assim como de uma
disposição comparável.
Dissipando o mistério que incluía o destino dado por Deus
à demanda de amor, a medicina "desmilagrizou" (démiraculise) a cura
muito mais do que a secularizou. Deste modo, a medicina separou
do desejo do Outro esta demanda e não permite mais que as ques-
tões do sujeito sobre a justificação da sua existência, sobre o seu
lugar e seu destino sejam respondidas pelo que a medicina fornece.
Estamos bem distantes do "Eu cuido, Deus cura" do pai da cirurgia.

35
Os Destinos da Pulsão

Consideramos habitualmente que esta mudança se efetuou porque


a ciência tornou a terapêutica eficaz. Não seria analisar as coisas
muito superficialmente, ignorando que a verdadeira modificação
precedeu a revolução biológica da última parte do século passado?
A mudança não se operou na realidade das práticas médicas, ma:,
sim e antes de mais nada na ordem do discurso, ou seja, em uma
nova divisão das atribuições e das responsabilidades entre verdade
e saber; como o demonstra soberbamente a magnífica e curta saga
epistemológica contada por Michel Foucault em seu Nascimento da
Clínica (1972). Queixar-se dos efeitos da ciência é gemer contra a razão
que segue seu ritmo próprio. A nova coerência clínica modificou a
noção de cura que, contrariamente às aparências, não foi perturbada
pelo aperfeiçoamento crescente das terapêuticas científicas.
Tomemos como prova o aparecimento do grito das Memó-
rias de além-túmulo que, vinte a trinta anos depois, parece retorquir o
"senhores abram alguns cadáveres" de Xavier Bichat (Foucault, 1972,
p. 125): "Poupem-me a meu corpo o sacrilégio da autópsia; a mor-
te não explica os segredos da vida". Chateubriand (citado aqui de
memória!) não é o único a se insurgir contra o novo primado do
rigor anátomo-fisiológico, que enterra nas profundezas do corpo (e
do CJUC se deve dele saber a partir de agora) a causa secreta e verda-
deira do desejo daqueles que se interessam pela clínica. Assim, Ulysse
Trélat, um dos pioneiros do alienismo francês, apesar de homem
de esquerda e militante revolucionário, pode escrever em 1939:
o mais experimentado olho e mão procuramfreqüentemente em vão alguma
luz sobre a pedra dos anfiteatros. Interroguemos também a vida, converse-
mos e vivamos com o alienado para tentar curá-lo em vez de nos limitarmos
a esperar sua morte para procurar a sua causa (1839, p. 130).

Quarenta an.os antes desta rebelião contra a destituição sub-


jetiva incluída na nova clínica, um outro visconde - certamente
menos legível que François René, na realidade um dos padrinhos
destes reacionários que afirmam que "lá onde se encanta a força é

36
François Leguil

onde está a razão" - Louis de Bonald escreveu em 1802 em sua


Ugislation primitive conszdérée par la raison: ''A arte de curar perecerá,
assim como a arte de viver ou a moral, sufocada por estas fantasias
metafísicas que acreditam que dissecar um cadáver é estudar o ho-
mem" (Bonald, 1988, p. 19, 89 e 101). (Precisemos que, em
contraponto a estas indignações obsoletas, observamos em Bonald
fortes páginas sobre a revelação da palavra e sobre uma teoria do
conhecimento marcada por uma presença verdadeira da heteronomia
do significante, que reencontraremos mais tarde, após um Auguste
Comte, em Durkheim, cuja obra Lacan cuidadosamente leu).
''A arte de curar". Esta fórmula pode ser preservada; ela
evoca um laço social comprometido com uma medicina que se
queixa daquilo que acredita dever nomear como "desumanização".
Bonald o anuncia porque ele não sofre com o fato de que a verda-
de não transcenda mais o saber, mas lhe revela sua finitude. Deste
modo, a técnica propriamente dita, ou melhor sua eficácia e seu
novo rigor, muito mais do que ter modificado o sentido da cura,
tornou-o um mistério inacessível às rezas e quase contingente em
relação às demandas que a reclamam. Se a técnica realizou uma
identificação entre a ação terapêutica e os cuidados, ela também
to.rnou esta esperada cura estranha às coisas do amor.
Neste nível intervém a psicanálise que - e isto é um para-
doxo - "remilagriza" (remiraculisc) a questão. Lacan ensina no início
de seu Seminário, livro 8: a transftre"nda que a "cura", como todos os
efeitos da ação analítica, participa do milagre, o milagre do amor;
miraculoso por operar como uma metáfora que parece fazer surgir
uma nova significação do nada a partir de um elemento reprimido.
Mas o milagre não tem mais nada de "sobrenatural" e mostra na
verdade um céu desabitado. E mais, este milagre mudou de "cam-
po" colocando aquele que "cuida" à mercê daquele que é cuidado
- "pela graça" do analisante, escreve Lacan nas primeiras páginas
de sua proposta sobre o passe (1968, p. 18). O milagre é a transfe-

37
Os Destinos da Pulsão

rência que convoca o analista não para o lugar do curandeiro, nem


para o lugar de onde seria necessário responder a uma demanda de
cura, mas sim para onde o interrogam as questões da verdade
insurrecional que os sintomas colocam ao saber através da própria
demanda de curar-se. O analista está nesta conjuntura que, no regis-
tro das representações, faz com que participe do trabalho do
memorialista de restituição dos significantes esquecidos, mas tam-
bém que, no registro do sofrimento, confere à sua operaçã~ uma
dimensão quase cirúrgica, uma vez que deve conduzir aquele que se
queixa por um trajeto que o leve à concepção vivida de que "a falta
é a perda" (Lacan, [s. d.]).

Para que o analista chegue lá, o laço do discurso analítico


não reside em uma montagem sutil entre aquele que acredita na cura
e aquele que nela não acredita. Admitindo-se que a divisão torna o
sujeito incurável, nós devemos saber que ele chegará a este ponto de
aceitação não na abjeção da resignação, mas sim porque acolhemos
sua crença na cura, porque nós a deixamos se desenvolver e consi-
deramos que ela fazia parte da verdade incluída no engano, que lhe
fazia amar o saber que nos supunha. Nós não combatemos sua crença
na cura, mas sim aquilo que contribuiu para fabricá-la, a sugestão.
O analista deve encontrar uma maneira de fazer com que o
analisante encontre-se "advertido de sua divisão", ensina Lacan em
seu Seminário, livro 15: o ato analítico. Isto implica não tanto um saber
novo mas sim uma nova relação do sujeito ao saber, relação esta
que permite assumir que aquilo que parece faltar é na verdade per-
dido. ''Aquilo" que tentamos apreender a cada vez que o envolve-
mos com nossos investimentos, sem nos acomodarmos - ao
menos para as pessoas do meu sexo - com a inacessibilidade do
ideal de Eclesiastes: "Goza da vida com a mulher que tu amas" (IX, 9).
Porque o real é o impossível a dizer, o analista pode fazer
seu um dever de aí confrontar o que há para saber. Deste modo, a
questão da sua formação não é "articulável", como se faz nas esco-

38
François Leg11il

las profissionais, ao binário clássico "aptidão-conhecimento". A este,


o analista responde com o binário de suas paixões e de seus deve-
res. Que fun levaram suas paixões na cura analítica? Em uma pala-
vra, será que ele consentiu em sobrepô-las à paixão da verdade
própria ao neurótico para dela fazer um dever? Ao "eu acaricio e
festejo a verdade em qualquer mão onde eu a encontre", de
Montaigne, ele prefere a modesta resolução de, por exemplo,
Melanie Klein no fim de seu último ensaio:
A experiência mostrou-me que a análise destas fantasias, destas emoções,
destas pulsõesfundamentais fracassa quando a dor e a angústia depressiva,
tornadas manijéstas, são vitoriosas, co1110 acontece com alguns pacientes
quanto a seu desejo de verdade e, 110 final das contas, quanto a seu desejo de
ser qjudado. A cooperaf-àO do paciente deve apoiar-se sobre sua determina-
ção em descobrira verdade sobre ele próprio... (1981, p. 89).

Forjado a partir de sua análise, o saber do psicanalista é, na sua


prática, um saber em reserva. Ele é um saber em reserva no momento
que lhe é necessário conduzir um outro a comprovar a castração que o
confronta ao objeto perdido ou, para dize-lo rigorosamente com Lacan,
a comprovar a "localização do sujeito com relação ao a" (1973, p. 245).
Como explicar que esta confrontação seja desejável, a fim de ser pro-
posta a um outro, a não ser pelo fato que verificar que "a falta é a
perda" dispensa de ter que recriminar o Outro e, para dize-lo de ma-
neira simples, alivia o analisante do peso do Outro, libera da fantasia
da consistência deste Outro, que alimentava a ilusão de que este
Outro encerrava aquilo que faltava ao sujeito? Responsabilização
última do sujeito, a transmissão desta nova relação com o saber na
psicanálise desemboca sobre a capacidade de "fazer um ateu viável"
(Lacan, 1976, p. 32), ou seja, alguém que, informado da falha do Ou-
tro, saiba suportar que este ateísmo tenha se tornado visceral, não sen-
do nada mais do que o sintoma de um deus que lhe é indiferente. Isto
porque ele está certo que nada mais sonda, nem os corações, nem os
quadris, quando se trata doravante de "viver a pulsão" (Lacan, 1973, p.
246) sem renunciar a ser "feliz por viver" (Lacan, 1976, p. 15).

39
Os Destinos da Pulsão

Esta ambição não corresponde então a obter, como na


experiência religiosa, um saber do além que forneceria uma inteli-
gência do ser. Ela não se situa tampouco na ciência de um além do
saber, apto a procrastinar a causa. É um "saber além" (savoir au-
delà), ''jenseits des Lustprinzipl', além da fantasia, além da "imagem
que sempre bloqueia a verdade" (Lacan, 1976, p. 22), além de todo
romance familiar; saber além do Édipo por conseguinte, saber que
faz do complexo um "sonho de Freud" (Lacan, 1991, p. 135), que
condensa e desloca a verdade do pai como efeito de linguagem.
Este saber além do Édipo, além do que é representável a
título do que a metáfora paterna estrutura, é portanto um saber
além do que afinal é o Édipo: uma tragédia. É um gaio saber. Este
saber autoriza, tal como escreve Lacan na metade dos anos 1950,
que a vida se torne amiga de um sujeito não porque ela não seria
trabalhada pela morte, mas sim porque tendo o sujeito aceitado
esta morte sem muitas considerações com a facticidade dos
existencialistas, o saber por ele adquirido após a cura analítica per-
mita prolongar seu laço com a causa de Freud, interessando-se pelo
que dizem os outros. Não é isto que chamamos de clínica, este
gosto surpreso pelas invenções dos "fala-seres" (.parlêtres) e dos meios
que estes se proporcionam para desconhecer o que a psicanálise
lhes ensinará, se eles o querem?
Deste saber, nunca fixado e do qual ele é responsável a
cada instante, o analista só pode avaliar a utilidade, se ele se mostrar
capaz de retê-lo a fün de ignorar o que sabe. Desejo do analista,
este desejo de saber é um desejo de não compreender e é
identificável, por um paradoxo singular, com a paixão da ignorân-
cia. Desta forma, a "douta ignorância" de Nicolau de Cusa, que
chega provavelmente até Lacan graças a Alexandre Koyré, pode ser
adivinhada na posição de Freud e na que ilustra em seu último "Aná-
lise com fim e análise sem fim" 9 quando cita o Fausto de Goethe: "É
preciso então que a feiticeira se intrometa" (1985, p. 240).

40
François Legui/

Não nos aproximamos de algo do gênero no belo exem-


plo evocado por Jean Pierre Vidal, o exemplo do pianista Alfred
Brendel esforçando-se em saber tudo da época e da vida do com-
positor cuja peça ele deve interpretar, para apreender talvez como
este "saber tudo" torna-se um "saber não-todo" no momento de
tocar? Guardadas as devidas proporções, o analista em seu desejo,
que de maneira alguma é tido por um virtuose, não está diante do
que ele deve saber como Brendel diante de seu piano?

NOTi\S

1- N. do T. Reservamos o termo "cura" em português à tradução de/!f7/érison


em francês, optando por verter cure por "cura analítica" ou "tratamento" por
razões que se tornarão evidentes no que se segue.
2- N. do T Termo largamente utilizado na França, cujo sentido comum é o de
atividade artesanal de construção ou de reparação amadora. Sobre este cristal
da língua apoia-se Lévi-Strauss para cunhar seu conceito.
3- N. do T. No original, /e b1icole111:
4- N. do T. No original, intellect11ation.
5- Devemos tudo, quanto às linhas que seguem, assim como àquelas que
precederam, ao livro de Pier Cesare Bori, professor da Universidade de Bolo-
nha, L'interprétatio11 i11Ji11ie. L'herméne11tiq11e chrétie11ne ancie11ne et ses
tra11sjormations (1991).
6- N. do T. Eson, rei mítico de Iolcos (Thesália), foi destronado e assassinado
pelo seu meio irmão Pélias. /\ referência leva provavelmente em conta a continu-
ação da histó1-ia: os filhos de Pélias foram enganados por Medéia, convencidos a
esquartejar seu pai e a ferver seus pedaços em um caldeirão para que ele rejuvenescesse.
7- N. do T. O termo parer, utilizado aqui pelo autor como transitivo direto,
envia a dois sentidos: defender e ornamentar com os quais o autor provavel-
mente contou, homonímia que é perdida na versão para o português.
8- N. do T. Expressão imortalizada por Balzac.•-\lusão ao mito criado em seu
romance La peau de chagrin, no qual um talismã de couro que tinha o poder de
realizar os pedidos de seu possuidor, encolhia a cada desejo realizado. O
significante chagrin envia ainda à perda, remorso, tristeza.
9- N. do E. - Trata-se aqui de FREUD, S. ''.Análise terminável e interminável"
(1937). Em: Obras completas, vol. XXIII . Rio de Janeiro, Imago, 1980.

41
Os Destinos da Pulsão

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TRÉLAT, U. Recherche historique sur la folie. Paris, Baillere, 1839.

Tradução do francês: Marcus André Vieira


Revisão da tradução: Vera Lúcia Avellar Ribeiro

42
A PULSÃO E SEUS DESTINOS 1

Maria Anita Carneiro Ribeiro


Membro da Escola Brasileira de Psicanálise

A doutrina das pulsões é nossa mitologia, por assim dizer. As


pulsões são seres míticos, grandiosos em sua indeterminação. Em
nosso trabalho não podemos prescindir nem um instante delas, e
no entanto nunr:a estamos seguros de vê-las com clareza.
(Freud, 1993(1932],p. 88)

Mitologia e doutrina

As palavras de Freud, extraídas da conferência 32, ''A an-


gústia e a vida pulsional", introduzem bem a complexidade do tema
que vamos abordar. Temos em primeiro lugar o binômio doutrina x
mitologia através do qual Freud aborda a teoria das pulsões.
Invertendo o binômio, abordemos antes a questão da mi-
tologia. A psicanálise fala através de mitos: Édipo, Narciso, e o pró-
prio mito freudiano de Totem e Tabu, seu "mito científico". É coe-
rente portanto que, ao alçar sua teoria das pulsões a uma questão de
doutrina, Freud descreva as pulsões como "seres míticos grandio-
sos". Em Televisão (1993(1973], p. 55), Lacan nos diz que "o mito, é
Os Destinos da Pulsão

isso, a tentativa de dar forma épica ao que se opera da estrutura".


Prossegue esclarecendo que "o impasse sexual secreta as ficções que
racionalizam o impossível de onde ele provém. Não digo que sejam
imaginadas, leio aí, como Freud, o convite ao real que responde por isso".
Assim, ao conceber as pulsões como seres míticos, Freud
nos alerta justamente para sua dimensão de conceito fundamental,
convidando-nos a vislumbrar o real que está em jogo na teoria.
Relendo as palavras de Freud a partir de Lacan, esclarece-se o para-
doxo das pulsões serem ao mesmo tempo imprescindíveis ao tra-
balho analítico - à clínica, portanto - e de difícil apreensão.
O significante doutrina é definido pelo dicionário, de forma
banal, como um conjunto de princípios básicos em que se funda-
menta um sistema filosófico, religioso ou político. A palavra doutri-
na tem uma origem remota, não cabalmente comprovável, na raiz
indo-européia dock ou deck, de onde teriam se derivado a palavra
latina docere e a palavra grega doxa (Ayto, 1991, p. 178). Assim sendo,
a própria raiz da palavra estaria ligada a uma significação de saber,
de dogma. Da mesma raiz temos as palavras paradoxo, ortodoxia
e, através do latim descere, decência, decoro, dignidade. É também a
mesma raiz de doutor, documento e didática. A palavra latina doctrina
tem o duplo sentido de ensinamento e aprendizagem. É somente
no latim vulgar da Idade Média que esta palavra ganha o sentido de
um pensamento oficial, um conjunto de princípios básicos, tal como
é definida atualmente nos dicionários.

Deste modo, ao afirmar que sua teoria das pulsões é uma


doutrina, é o próprio Freud que define a pulsão como um conceito
fundamental da psicanálise (gundebgri.ff;, tal como Lacan vai subli-
nhar 32 anos depois (1973(1964]). Já na "Introdução ao Narcisismo"
(1993(1914], p. 75), um ano antes da publicação dos textos da
Metapsicologia, entre os quais está seu texto princeps sobre as pulsões
(1993(1915]), Freud lamentava não contar ainda com "uma doutri-
na das pulsões que de algum modo nos oriente".

44
Maria Anita Carneiro Ribeiro

O aparente paradoxo da frase de Freud que abre nosso


texto ilustra muito bem o que Lacan vai formalizar como caracte-
rística do saber da psicanálise: um saber furado, marcado pela falta,
cm que nem tudo pode ser dito. A ênfase que damos a este ponto
se deve sobretudo aos desvios da psicanálise pós-freudiana, desvios
originados e originadores da tradução oficial feita por James Strachey
da trieb freudiana por instinct.
Lacan nos diz que "o termo trieb tem certamente uma lon-
ga história, não somente na psicologia, mas na própria fisica e, segu-
ramente não é por puro acaso que Freud escolheu este termo"
(1973(1964], p. 153-4). Em alemão trieb, substantivo masculino, quer
dizer broto, rebento, força de brotar, impulso, inclinação, vontade e
também instinto. É da mesma raiz do substantivo Treiben, atividade,
movimento, fobia, e do verbo treiben, deslizar, flutuar, tanger, acio-
nar, propulsionar (Tochtrop, 1987, p. 546-7). A tradução para o
inglês instinct acentua a significação de "impulso inato" (Ayto, 1991,
p. 301) para a qual o próprio Freud utiliza a palavra alemã Instinkt
que tem este sentido exato(Tochtrop, 1987, p. 275). Já a tradução
para o português puLrão, no que pese o fato desta não ser uma palavra
de uso corriqueiro como trieb o é na língua alemã, guarda a fidelidade
ao latim pu!.rare, pulsar, cuja origem se mescla com empurrar, impelir,
guardando portanto a força de movimento do alemão trieb.
O próprio Lacan ressalta que Freud deu a trieb um empre-
go tão específico, e o termo está tão integrado à prática da psicaná-
lise, que todo uso anterior da palavra se apaga à medida que ela é
alçada a conceito. O mesmo se deu· com o inconsdente, que ganhou
de Freud uma acepção tão precisa que o uso anterior da palavra
pela filosofia ou pela psicologia desapareceu sob o impacto da des-
coberta freudiana.
Na sua introdução ao texto de Freud de 1915, James
Strachey, ao discutir a complexidade (que chama de "ambiguidade")
do uso dos termos trieb e triebreprdsentan~ nos dá uma pista para

45
Os Destinos da Pulsão

uma possível razão de sua tradução que fixa o significante trieb a


uma significação biologizante (Freud, 1993[1915], p. 107-8). Cita nes-
te momento uma passagem do final da seção III do caso Schreber, em
que Freud define a pulsão como "o conceito fronteiriço do somático
com relação ao anímico(...) o representante psíquico dos poderes orgâ-
nicos". Em outras palavras, neste momento Freud define a pulsão
como um representante dos poderes orgânicos, o que pode permitir
uma interpretação biológica, se não se levar em conta o que o próprio
Freud acentua no artigo sobre "O Inconsciente", ou seja: "uma pulsão
nunca pode passar a ser objeto da consciência, só pode sê-lo a re-
presentação que é seu representante. Agora tampouco no interior
do inconsciente pode estar representada, se não for pela repre-
sentação" (1993[1915], p. 108). Esclarece então que toda vez
que se referir a uma moção pulsional inconsciente, na verdade
ek está se referindo ao seu agente representante representativo.

No desvio: Balint

A leitura de Strachey, acentuando a pulsão como biológica


ao traduzi-la por instinto, teve ampla repercussão nos autores pós-
freudianos. Tomemos como exemplo Michael Balint, autor muito
citado por Lacan por ser um dos poucos psicanalistas da IPA que
desenvolve uma teorização própria sobre o final da análise. Aliás,
um dos critérios que Balint usa para avaliar se um paciente está
próximo ao final de seu tratamento diz respeito justamente aos
of?jetivos da pulsão. Segundo ele, o que orienta o analista de que uma
análise se aproxima do fim é "uma primazia genital firmemente
estabelecida, a capacidade de se gozar uma satisfação genital total,
ou seja, uma genitalidade madura" (Balint, 1950, p. 196).
Esta visão ideal de uma sexualidade genital madura que tor-
naria a relação sexual possível conduz a um final de análise idílico:
"O paciente sente que está passando por um tipo de renascimento

46
Maria Anita Carneiro Ribeiro

para uma nova vida; que chegou ao fim de um túnel escuro; que vê
outra vez a luz após uma longa jornada; que lhe foi dada uma nova
vida" (idem, p. 197). Mais adiante acrescenta: "Normalmente o
paciente parte, após as últimas sessões, feliz mas com lágrimas nos
olhos e - creio poder admitir - o analista se encontra em um
estado de espírito muito semelhante" (ibid., p. 197). É este o final
de análise hipomaníaco criticado por Lacan na "Proposição de 9 de
outubro de 1967", denunciando-o como um exemplo da recusa
dos analistas a encarar "a destituição subjetiva inscrita no tíquete de
entrada" (Lacan, 1968, p. 25). Cinco anos depois no "L'Étourdit",
Lacan esclarece que o que Balint descreve é um momento de osci-
lação maníaco-depressiva que acompanha um final de análise. As-
sim sendo, o que diz Balint não é exatamente o final da experiência
analítica, mas momentos que antecedem este final, momentos em
que se detêm "algumas terapias ditas bem sucedidas" (1973, p. 44).
As razões que levam Balint a tomar o estado de exaltação
hipomaníaco como o próprio final de análise estão expressas na sua
teorização. Adepto de uma leitura que separa as questões do sujeito
em genitais (edipianas - passíveis de interpretação) e pré-._~enitais (pré-
edipianas -indizíveis), Balint concebe a pulsão como fora do campo
da linguagem. Tomando o conceito de pulsão por instinto, Balint
divide o campo teórico da psicanálise em uma tendência fisiológica 011
psicológica (a de Freud) à qual opõe a tendência mais moderna da relafàO
de objeto, na qual se inclui (Balint, 1950, p. 120). Assim, argumenta que
nos primórdios da psicanálise muita importância foi dada à fonte da
pulsão e a seu objetivo, fixando-a biologicamente. A tendência da relafàO
de oqeto viria ressaltar a importância do objeto da pulsão, "passível às
influências do meio ambiente" (idem, p. 121). Vangloria-se então de
que nos artigos psicanalíticos da época (década de 1950) os termos
técnicos freudianos relativos à pulsão (fonte, objetivo, impulso) es-
tavam em pleno desuso, restando apenas o objeto como elemento
fundamental da pulsão. Curiosamente é do objeto que no seu texto
de 1915 Freud dirá que é o mais variável na pulsão.

47
Os Destinos da Pulsão

Este raciocínio tortuoso leva o autor a dois resultados


diametralmente opostos. Por um lado preconiza que há um real
prévio ao significante, que não seria passível de ser recoberto por
este. Trata-se de um real cronológico, e não lógico, ou seja, não se
trata do real que se impõe no término de uma análise como resto
da operação analítica. Trata-se sim de um real concebido como
anterior no desenvolvimento do sujeito, que faz parte de suas expe-
riências pré-verbais, e que se não pode ser recoberto pela palavra,
pode sê-lo em contrapartida pela experiência emocional, que leva o
sujeito a superar a jàlta básica (falha nos cuidados maternos naturais).
O analista compartilha desta experiência emocional, numa relação dual
em (1uc os laços de identificação estão mais do que nunca estreita-
dos, como o indica o lacrimoso final de análise já descrito.
Por outro lado, o idílico amor genital que viria coroar o
final de uma análise "não é um processo natural e espontâneo, mas
um artefato - resultado da civilização (ou da educação)" (Balint,
19 50, p. 196). Assim a análise poderia atingir o real pulsional pela via
da experiência emocional compartilhada, acrescida das interpreta-
çôcs de transferência (onde o sujeito repetiria suas relações de obje-
to primitivas) e, por outro lado, serviria como uma pós-educação
que levaria a "um teste exato da realidade", o que permitiria a "mu-
dança de um objeto indiferente, ou mesmo relutante, em um par-
ceiro amoroso e cooperativo" (idem, p. 196).

De volta a Freud, com Lacan

O esforço dos analistas da tendência da relação de objeto em ir


contra a tendência fisiológica (biologizante) da psicanálise teria sido em
muito poupado se tivessem se detido na leitura dos textos de Freud,
como o fez Jacques Lacan. No entanto, este retorno a Freud não
foi carente de percalços e uma das críticas mais contundentes contra
a leitura lacaniana dos textos do mestre de Viena se concentrou

48
Maria Anita Carneiro Ribeiro

justamente em torno do conceito de pulsão. "Chega-se mesmo às


vezes a invocá-lo contra a doutrina que é a minha concernente ao
inconsciente, designando-se nela uma intelectualização [...] e não sei
que negligência daquilo que todo analista conhece por experiência,
isto é, o pulsional" (Lacan, 1979(1964], p. 154).

Lacan comenta, muito ironicamente, que se soubessem o


que ele pensa sobre a inteligência não o acusariam de intelectualização.
Na verdade este tipo de crítica provém de uma oposição ideológi-
ca entre experiência emocional versus intelectualização, e ignora a
própria formulação freudian~ de que às pulsões nós só temos aces-
so por seus representantes representativos, ou seja, pelos significantes
da demanda do sujeito.

Nos textos da Metapsicologia, Freud vai dizer que a represen-


tação de objeto (objekt VorstelluniJ compreende a representação de
coisa (Sache VorstelluniJ e a representação de palavra (Vorl VorstelluniJ.
No inconsciente estariam as representações de coisa, às quais só
teríamos acesso no pré-consciente e no consciente quando acopladas
às representações de palavras. No capítulo VII do seu artigo "O
inconsciente", no entanto, o próprio Freud vai nos revelar o que são
estas representações de coisa. A partir do exemplo de uma paci-
ente de Tausk, uma esquizofrênica com o inconsciente a céu
aberto, revela que no inconsciente as palavras são tomadas como
coisa, são reveladas na sua materialidade significante. Na verda-
de, trata-se de um segredo de Polichinelo, uma vez que o pró~
prio Freud já o havia revelado no deciframento do seu ato fa-
lho, ao se esquecer do nome próprio do pintor Signorelli, na
"Psicopatologia da vida cotidiana" (1993(1901]). No inconsci-
ente as palavras são partidas, reunidas, recompostas, passíveis
de trocadilhos, traduções, traições. São sílabas que sobram como
restos metonímicos do esquecido, pedaços de palavras perdidas,
coisas esquecidas, mas cuja força comanda (S J

49
Os Destinos da Pulsão

Quando Lacan preconiza que o inconsciente é estruturado


como uma linguagem, ele não diz que o inconsciente é estruturado
como nossa linguagem quotidiana. O inconsciente é estruturado
pelas leis da linguagem - metáfora e metonímia, substituição e
desl~camento - porém é sobretudo infantil e brincalhão. Os
significantes primordiais que fixam e determinam o sujeito, os
significantes aos quais estão fixadas as pulsões, os S,. são selvagens,
são, num trocadilho de Jacques-Alain Miller, um enxame de abelhas
- S1 (esse un) ou essain (enxame) - e precisam ser domesticados
pelos significantes da linguagem, precisam ser civilizados, como cri-
anças. Os S1, os significantes mestres nos quais estão fixadas as pulsões,
são domados e civilizados pelos significantes da linguagem, do sa-
ber estabelecido (S 2). É isso que Lacan escreve com o materna da
pulsão: S OD. O sujeito do inconsciente em todas as relações, as
mais complexas possíveis, com os significantes de sua demanda.
II

(...) quem não experimentou o que se ganha ao não traduzjr


trieb por instinto e cingir o máximo possível essa pulsão
chamando-a deriva, ao desmontar e em seguida remontar,
colando em Freud, sua bizarria?"
(Lacan, 1993[1973], p. 47)

Demanda e desejo

Freud inicia o seu texto de 1915 sobre ''As pulsões e os


destinos da pulsão" nos dizendo que para construirmos uma ciên-
cia devemos ter conceitos básicos claros e definidos. No entanto, a
pulsão como conceito básico da teoria psicanalítica está longe de
ser clara e definida; é um conceito obscuro. Uma das saídas possí-
veis para esta obscuridade conceituai seria definir a pulsão como
um estímulo (Reiz) para o psíquico. Freud entretanto vai ser enfático
ao distinguir trieb de Reiz, apontando sobretudo que, ao contrário
do estímulo, a pulsão não provém do exterior, exigindo maior tra-
balho para ser eliminada. Além do mais, a pulsão atua como uma
força constante (o estímulo seria um choque momentâneo) diante
da qual não há comportamento de fuga possível. A única forma de
cancelar o estímulo pulsional seria a satisfação da pulsão. Em que
consiste esta satisfação?

51
Os Destinos da Pulsão

Como já vimos, a pulsão é veiculada pelos significantes da


demanda - S OD - e resta-nos agora acrescentar que o desejo
- d - vai surgir nos intervalos da cadeia significante, ou seja, por
entre os significantes da demanda, não se confundindo com esta,
escapando sempre posto que não vai estar fixado no significante.
Em sua resenha do Seminário, livro 13: o objeto da psicanálise,
Lacan retoma sua crítica aos psicanalistas da relação de obJeto, mos-
trando como estes privilegiam os objetos oral e anal, justamente
porque são estes os objetos que "se apoiam diretam~nte na relação
da demanda, muito propícia à intervenção corretiva" (1984(1965-6),
p. 37). Os outros objetos, sobretudo a voz e o olhar, exigem uma
teorização mais complexa, uma vez que "não se pode desconhecer
neles uma divisão do sujeito, (...) a divisão que é o suporte do dese-
jo". Teríamos então assim distribuídos, na relação do sujeito ao
Outro, os objetos da demanda (D) e do desejo (d):

D d

ao
se10 olhar
Outro
do
fezes voz
Outro

Não é à toa que os analistas pós-freudianos tomam os ob-


jetos da demanda como objeto do desejo, pois estes - o seio, as
fezes - têm uma característica marcadamente imaginária, ao passo
que o olhar e a voz são objetos evanescentes, que exigem do analista
uma intervenção bem mais sutil. No entanto, ao maximizar a im-
portância dos objetos oral e anal no decorrer de uma análise, os
analistas da relação de obJeto não se limitam a imaginarizar a direção
do tratamento. Ao nosso ver, este tipo de abordagem terapêutica
reforça o engodo da neurose, que uma análise se propõe a tratar.

52
Maria Anita Carneiro Ribeiro

Histeria e obsessão

Freud nos diz no seu "Projeto" (1895) que o sujeito se de-


fende sobretudo do desejo. A partir daí, pensemos as neuroses como
estratégias específicas através dos quais o sujeito tenta se defender
do desejo, rebaixando-o à demanda.
No Seminário, livro 9: a identificação, Lacan vai trabalhar
topologicamente o entrelaçamento do toro do sujeito (constituído
pelos circuitos da demanda em tomo do vazio do desejo) ao toro
do Outro:

A forma topológica é exatamente a mesma na histeria e na


neurose obsessiva (afinal a estrutura é a neurose, e a topologia, a
estrutura), porém as estratégias dos tipos clínicos divergem sutil-
mente. Na histeria, o sujeito tenta escapar à questão inquietante do
desejo do Outro preenchendo o vazio deste desejo com suas de-
mandas, ou seja, rebaixando o enigma do desejo do Outro às de-
mandas queixosas do sujeito ao Outro. Em contrapartida, na neurose

53
Os Destinos da Pulsão

obsessiva a "estrutura de camuflagem" opera ao inverso: trata:..se aqui


de preencher o buraco, o vazio do próprio desejo com as demandas
do Outro, de onde provém a oblatividade deste tipo clínico.
Temos assim que a fixação da histeria à pulsão oral e da
neurose obsessiva à analidade fornecem recobrimentos imaginári-
os, que camuflam as questões do sujeito com relação ao desejo,
deixando-o insatisfeito (na histeria) ou mantendo-o como impossí-
vel (na neurose obsessiva), enquanto se debate às voltas com suas
demandas ao Outro ou com as demandas do Outro.
Ao rebaixar o desejo à demanda, o sujeito neurótico crê
que o desejo possa ser satisfeito e se mantém na insatisfação pulsional
para manter o desejo vivo. Na "Direção da Cura" Lacan, ao falar
da anorexia, vai dizer que é a criança mais cuidadosamente alimen-
tada que recusa o alimento pela manutenção do desejo. Pensamos
que, como a neurose é infantil, podemos definir o neurótico como
a criança que se nega à satisfação pulsional pelo temor de ver se
extinguir o desejo.
Deste modo, ao tomarem os objetos da demanda por
objetos do desejo, os analistas da relação de objeto não só imaginarizam
a direção de uma análise através de intervenções corretivas, como
cedem diante da estratégia da neurose, caindo no engodo que é a
raiz do sofrimento do sujeito.

O circuito da pulsão

Os termos que Freud utiliza com relação à pulsão, e que


Balint se vangloriava de estarem em desuso na década de 1950,
permanecem ativos e atuais, uma vez que a psicanálise continua com
Freud: fonte, esforço, objeto e objetivo. Retomemos estes termos a
partir do grafo proposto por Lacan no Seminário, livro 11: os quatro
conceitos fundamentais (1979(1964], p. 169):

54
Maria Anita Carneiro FJbeiro

.,, Objekt
a

Drang

Quelle

goal
Ziel

Na borda da zona erógena temos a fonte (Quelle) da pulsão.


Da fonte parte o Drang, o esforço ou a força, medida de exigência
de trabalho que ela representa. O objeto (Objek~ é o que Freud dirá
que é aquilo que há de mais variável e que só se liga à pulsão por sua
aptidão para possibilitar a satisfação. É no lugar do objeto que Lacan
escreve o a, objeto a, esclarecendo por que o objeto da pulsão é o
mais variável possível: qualquer que seja este objeto, não é o objeto
"adequado", é um mero substituto que está ali apenas para possibilitar
o objetivo da pulsão que, segundo Freud, é produzir a satisfação.
Voltamos assim a nossa questão inicial sobre a satisfação da
pulsão, que vai se centrar em torno deste quarto termo, o objetivo
(Zie~. Lacan dá duas traduções diferentes a este termo freudiano,
ambas em inglês: aim e goa/. "The aim, é o trajeto" (idem, p, 170).
Assim, nesta primeira acepção, o objetivo da pulsão é cumprir sua
própria trajetória. O goal é o alvo, porém Lacan nos diz que não é
um alvo qualquer: é o alvo que se atinge no lançamento de arco e
flecha, na arte do arqueiro zen. "É ter acertado o tiro e, assim, atin-
gido o alvo de vocês" (ibid., p. 170). Nesta sofisticada arte o arquei-
ro não mira o alvo; estende a corda do pesado arco que se coloca
acima de sua cabeça e, num esforço de concentração, ele é a própria
flecha que atinge o alvo. Ou seja, o goal é atingido quando o próprio
sujeito desiste de atingir o alvo a partir do controle da.mão ou da
visão e se torna, ele próprio, flecha.

55
Os Destinos da Pulsão

Lacan retoma a metáfora de Freud da boca que beija a si


própria, dizendo que esta "metáfora luminosa - resplandecente
mesmo" (ibid., p. 170) exige ser completada com uma questão:
"Será que na pulsão esta boca não seria o que se pode chamar uma
boca flechada?". Pois é nisto que a satisfação pulsional se distingue
do puro e simples auto-erotismo da zona erógena: é pela presença
do objeto ao qual a pulsão se dirige na busca da satisfação, e que ao
encontrá-lo desenha o contorno de um vazio, do oco do objeto a,
já que este objeto - o mais variável possível - não é o objeto a,
mas um substituto qualquer.
Temos então a força da pulsão emergindo de sua fonte na
borda da zona erógena, aspirando o encontro com o objeto. Se o
encontro com o objeto, que seria o objeto da·satisfação, é o encon-
tro com o oco, com o vazio do objeto, a satisfação da pulsão está
no retorno e no recomeço, na sua própria insistência, na compulsão
à repetição.

NOTAS

1- Texto elaborado a partir das aulas do Seminário: 01 destinos da pulsão, de 6 de


agosto e 3 de setembro de 1997, em Niterói. Transcrição de Lenita Pacheco
Lemos Duarte e Sílvia Mello de Freitas.

56
Referências bibliográficas

AYTO, J. Dictionary oj Word Origins. New York, Arcade Publishing, 1991.


BALINT, M. "Changing therapeutical aims and techniques in psyco-analysis",
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ana!Jsis, 1950, p. 196.
FREUD, S. "Psicopatologia de la vida cotidiana" (1901). Em: Obras Comple-
tas, vol. VI. Buenos Aires, Amorrortu, 1993.
- - - - · "lntroducción del narcisismo" (1914). Em: Obras Completas,
vol. XIV. Op. cit.
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vol. XIV. Op. cit.
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LACAN, J. O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise
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Buenos Aires, Mananrial, 1984.
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- - - - ~ "L'étourdit" (1973). Em: Sei/icei, 4. Paris, Seuil,1973.
- - - - - · Televisão (1973). Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1993.
TOCHTROP, L. Dicionário de akmão. Rio de Janeiro, Editora Globo, 1987.
UM CONCEITO ARQUIMEDIANO:
A PULSÃO NA ORIENTAÇÃO LACANIANA

Manoel Barros da Motta


Membro da Escola Brasileira de Psicanálise

O nascimento de uma disciplina científica se dá em geral


pela formulação de um conceito, cuja estatuto pré-científico nocional
funciona como obstáculo à construção científica. O conceito
aristotélico de movimento, pensado a partir de uma tópica qualita-
tiva, foi assim substituído pela matematização gaWeana que deu nas-
cimento à ciência moderna, fundada no cálculo, na medida e na
construção de instrumentos - de dispositivos instrumentais que
vão além das modalidades do visível. Este conceito levou por fim à
construção de uma teoria geral, sistematizada por Newton. A refundição
einsteniana, que encerra a era clássica da tisica, teve como obstáculo a
superar o conceito de éter. Os conceitos de espaço e tempo foram
redefinidos conceitualmente e uma nova teoria geral se instaurou.
A redução das evidências visuais do campo da intuição
perceptiva: assim é a tese epistemológica que em termos lacanianos
considera o simbólico a verdade do registro imaginário. A este con-
ceito da produção da ciência moderna a partir de um hiper-
platonismo - tese de Koyré - Lacan acrescentou a proposição
de Kojeve de que o que se elaborou sob a forma do monoteísmo,
com sua marca fortemente criacionista, foi o que preparou a física-
matemática moderna.
Os Destinos da Pulsão

Mas a entrada em cena do problema da pulsão, a interroga-


ção sobre a libido, imporá uma mudança nesta problemática: a
entrada em cena do gozo ou do mais-de-gozar. Toda a interroga-
ção anterior sobre as artes, e não apenas sobre a ciência, estava
calcada numa concepção do recalcamento do desejo, da neurose e
da metáfora paterna. Nas telas de que fala, Lacan procura, observa
Jacques-Alain Miller, a articulação do desejo e da falta tornando
manifesta a instância da castração. É o caso de Os embaixadores de
Holbein, no qual a anamorfose é situada como equivalente ao -cp.
Existe assim uma extração da libido fora do campo visual, um
recalcamento do desejo. Ciência e arte eram lidos a partir de uma
concepção em que o suporte da realidade perceptível era o Nome-
do-Pai como operador da castração.
A refundição lacaniana da obra de Freud teve como fulcro
fundamental a tese de que o inconsciente é estruturado como uma
linguagem. Ela pode ser situada em paralelo com o axioma galileano
de que a natureza está escrita em linguagem matemática. Uma vez
promovido o significante como eixo fundamental de sua construção
teórica, do que Lacan chamou seu retomo a Freud, uma série de con-
ceitos novos irão surgir, inclusive sua primeira tripartição teórica do
simbólico, do imaginário e do real, a que mais adiante irá acrescentar o
sintoma como quarto elemento. Entre estes conceitos estão os de sujei-
to, pequeno e grande Outro, do objeto pequeno a e a promoção do
conceito de foraclusão. A leitura de Freud proposta por Lacan liga-se
inicialmente à tradição hermenêutica e seus conceitos-chave são os de
sentido e de história pensada em termos de continuidade. Lacan foi
progressivamente elaborando sua.teoria, mas esta parecia animada por
um problema que provavelmente a minava. Havia nesta construção
um obstáculo epistemológico. Tratava-se da concepção do gozo no registro ima-
ginário. Esta determinação que parecia uma evidência freudiana vai se
mostrar errada. Assim como em ''A coisa freudiana" Lacan refere-se a
um efeito de fase que marcara o eclipse do ensino de Freud, pode-se
dizer que há, como diz Miller, "um eclipse da pulsão em Lacan"1•

60
Manoel Barros da Moita

Este eclipse da pulsão se declina em Lacan segundo várias


modalidades. A primeira, presente no "Discurso de Roma", o pri-
mado da intersubjetividade. Em seguida, o conceito de desejo: a
promoção lacaniana do desejo supunha também um apagamento
ou uma absorção da pulsão. E em terceiro lugar, a promoção do
falo, que se ancorava na pulsão, constituía também uma retranscrição
significante do conceito de pulsão. Será apenas com a problemática
do último Lacan, na qual se dá uma confrontação do significante e
do gozo, do saber e do gozo, que, diz Jacques-Alain Miller, de fato
se afronta o conceito freudiano de pulsão. Não se trata apenas de
um afrontamento, mas de uma assunção. É deste ponto que se tem
uma perspectiva nova sobre o ensino de Lacan.
Obstáculo epistemológico fôra o próprio termo elabora-
do por Gaston Bachelard para dar conta da formação das teorias
científicas, através do que havia chamado uma psicanálise do co-
nhecimento. Althusser utilizara este conceito para dar conta do que
entendia serem os obstáculos da antropologia filosófica e da ciência
do capital. Miller encontra em Lacan um obstáculo epistemológico
também na herança hegeliana da totalização dialética da relação do
simbólico e do imaginário. Ao encontrar a pulsão na visão e na
palavra, seu caráter parcial se apresenta problemático. E havia tudo
o que de energético apresentava o conceito de pulsão e que fora
abandonado.
O conceito de pulsão será para J acques-Alain Miller o pon-
to arquimediano que permitirá levantar todo o ensino de Lacan. Irá
lhe fornecer um ponto estratégico, um ponto de mira exterior, uma
perspectiva que não estava inscrita no desenvolvimento de Lacan.
Este conceito que encontra em Freud permitirá realizar com Lacan
a operação que este realizara com Freud a partir do estado do
espelho. O estado do espelho permitiu a Lacan criticar toda a pro-
dução pós-freudiana que reinscrevera a teoria e a prática da psica-
nálise no eixo imaginário. Freud é então o ponto de interrogação da

61
Os Destinos da Pulsão

teoria lacaniaina, da refundação lacaniana da psicanálise e de seus


paradoxos. Esta perspectiva freudiana em que se coloca Miller leva-
o a se perguntar se, colocando-se nesta perspectiva, sai de Lacan. Sua
resposta é negativa, pois foi Lacan quem reestruturou o conjunto de
seu ensino a partir do gozo, a partir da questão freudiana da pulsão.
O conceito de pulsão promoverá uma modificação tão
radical que obscurecerá mesmo o papel do objeto pequeno a, que
Lacan considerara seu aporte pessoal à psicanálise.
O problema da pulsão permanece sob várias formas. As
construções e explicações de Lacan pareciam extraordinariamente
convincentes. Mas a multiplicação dos argumentos era em si pró-
pria inquietante. O lado real do gozo fora deixado de lado por
Lacan e este chegou a admiti-lo. É disto que ele vai dar conta no
Seminário, livro 20: mais, ainda.
A entrada em cena do gozo vai minorar o papel do objeto
a. Este, diante do gozo, toma a figura pálida de um aparente, de um
faz-de-conta. Há assim no conceito de pulsão dois aspectos, nota
Jacques-Alain Miller: em primeiro lugar sua potência de progresso e
em segundo sua impotência em estabilizar-se numa forma acabada,
definitiva. A pulsão é assim a mola que faz avançar este ensino.
Será necessário a Lacan, observa ainda Jacques-Alain Miller,
um trabalho teórico obstinado, "um longo labor" para superar este
obstáculo que se instalara no início de seu ensino. Miller chega a
chamar este obstáculo de jaula imaginária. Este axioma, que situava
o gozo na ordem imaginária, teve que ser substituído por um outro,
que formulava a articulação do gozo e da repetição, conjugando a
pulsão e o automatismo de repetição. Outras marcas do mesmo
problema apareciam no "Discurso de Roma", com a reinscrição
do conceito freudiano de inconsciente em termos de sentido, que
no pr<>prio ato de refundação lacaniana da psicanálise introduzia
11111a difirnldade que acompanhará longamente seu percurso. Com

cfrito, l .acan banira o conceito freudiano de pulsão.

62
Manoel BamJs da Motta

É no Seminário, livro 11: os quatro conceit~s fandamentais que ele


integra a pulsão como conceito fundamental da teoria analítica jun-
to ao inconsciente, à repetição e à transferência. Neste seminário o
conceito de desejo cede lugar à pulsão. Pôra o desejo, como obser-
va Miller, que determinara fundamentalmente a construção do grafo
de Lacan concebido em dois estágios, elaborada nos Seminán·os, livro
Vi asformações do inconsciente e livro 6: o desefo e sua interprelaf'àO. O con-
ceito de falo era o conceito pivô, o conceito chave em torno do
qual a elaboração de Lacan iria se centrar e marcar a importância
renovada do desejo na psicanálise. Mas Lacan não se detém aí. No
Seminário, livro 7: a ética da psicanálise, ele se propõe construir uma
genealogia das éticas do prazer até a concepção freudiana no que
esta tem de transgressivo e subversivo. Na inovação freudiana, no
para além do principio do prazer, o problema é o que o gozo tem
de não saturado, não absorvido pela instância significante do falo.
O desejo e o falo não são suficientes para dar conta da pulsão e sua
satisfação. O gozo aparece aí como transgressão, como excesso; o
significante tempera o gozo, domestica-o, regula-o. Mas, por outro
lado, o gozo não se deixa temperar, há um resto de gozo que escapa à
representação significante. A libido freudiana que desliza no jogo dos
significantes, é "subjugada pela estrutura do mundo dos signos"2•
É este problema, o da irredutibilidade das formas da libi-
do, que não se deixa substituir no jogo dos significantes, que se
condensa em resíduos, que concentrará o esforço de elaboração
teórica de Lacan. Era um conceito, nota Miller, diante do qual não
podemos deixar de ter a impressão de que embaraçava Lacan.
E Jacques-Alain situa as três etapas da formulação do gozo em
l ..acan. A primeira ligada à inércia no registro imaginário, a segunda, ao gozo
substitutivo e ao deslizamento e a terceira, à transgressão e o excesso de
ljUe já falamos. No início Lacan situa o gozo como imaginário e ele se
inscreve primeiro como inércia à vista da dinâmica simbólica. Há uma
t"stática do gozo, como se gozássemos sempre no mesmo lugar, enquanto
<, significante é objeto de deslocamentos cuja forma é uma metonímia.

63
Os Destinos da Pulsão

Em seguida, ·ao elaborar seu escrito ''A instância da letra",


surge o gozo como cúmplice do desejo, envolvido intimamente
com o desejo. Este gozo substitutivo, longe de estar caracterizado
pela inércia, está marcado por um deslizamento. Lacan segue aí o
que Freud desenvolve: uma pulsão que~ inibida encontra sua satis-
fação através de uma outra, ou mesmo pela substituição do objeto.
Um esforço fôra feito para reduzir a libido à significação
fálica, esforço de Lacan até o Seminário 7. Agora, trata-se de tratar
do resíduo libidinal, da modalidade sob a qual ele é irredutível.
Ao lançar-se num esforço de reconstrução da psicanálise a
partir de sua base freudiana, o conceito de desejo, como dissemos,
cede lugar à pulsão. O gozo é agora tratado a partir do conceito do
objeto da psicanálise, do objeto pequeno a; com isto, o significante
fálico é reduzido uma vez que o objeto toma a forma de um resíduo.
O objeto pequeno a consagra o fato de que o significante
não podia saturar o que concernia ao gozo. Esta concepção tem
efeitos clínicos, especialmente sobre o fim da análise já que esta vai
passar a ser pensada como estando articulada a este objeto irredutível.
Não se trata mais de um processo de desidentificação frente ao falo,
mas de um fim que concerne um irredutível, ao irredutível da libido
não significantizada. Miller nota que se trata mais de uma queda, do
que de uma resolução simbólica, de uma separação. A Proposição
para a organização psicanalítica de urna escola girava em tomo deste
ponto que parecia suficiente para resolver esta questão. O ponto
arquimediano necessário para uma nova perspectiva era a pulsão.
No Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise, e depois em
"Radiofonia", Lacan realiza um esforço que se estrutura em três
eixos. Primeiramente Lacan fixa o traço de excesso do gozo, que
abordara antes como transgressão: ele o fixa qualificando o objeto
pequeno a de "mais-de gozar". Trata-se de uma operação que anu-
la o gozo pelo significante e que tem como resto um excedente de
gozo, pequeno a. Há um excesso em relação ao gozo anulado pelo

64
Manoel Barros da Moita

significante. Em segundo lugar Lacan logifica o objeto pequeno a


incluindo-o numa combinatória, junto ao sujeito barrado e o par de
significantes S1-S 2 • Em terceiro lugar, e talvez o ponto mais impor-
tante, Lacan faz do gozo uma instância primária a partir da qual
podem ser situados tanto o significante quanto o sujeito.
Neste Seminário, que introduz esta nova estrutura algébrica,
assiste-se a esta confrontação, de certa forma direta, diz Jacques-
Alain Miller, entre o gozo e o significante. Era como que um eco
longínquo do que fora a proscrição da pulsão a partir da
intersubjetividade. Trata-se no fundo de "uma relação primitiva do
saber com o gozo"3. Relação primitiva que está feita para dar conta
do fato de que a articulação significante, a ordem simbólica, o
significante, surge no ponto de juntura do gozo. Do gozo surge o
significante, o que motiva a própria repetição do significante.
O próprio sujeito surge agora da relação na qual o significante
entra com o gozo. Este caráter primário do gozo põe em questão o
próprio significante e o saber que se articula a partir dele. Tudo o
que Lacan promovera a partir do "Discurso de Roma", e que se
relacionava à função da palavra e ao campo da linguagem, à
intersubjetividade, à palavra que reconhece o outro, tudo isto é re-
duzido à dimensão do faz-de-conta à vista do gozo. E o gozo
passa a ser afirmado em seu caráter real enquanto o significante se
reduz ao aparente, ao semblante, ao faz-de-conta. Basicamente é o
próprio estatuto do simbólico que muda, que sofre um desloca-
mento, uma mutação. Imperceptivelmente, por um deslocamento
moebiano, mais do que um corte ele é situado no mesmo nível que
o imaginário. Para além do imaginário, pode-se dizer que fôra com
esta bandeira que se iniciara o ensino de Lacan, a que distinguia
rigorosamente, de forma severa, o simbólico e o imaginário. Ago-
ra, quando se depreende o caráter primário do gozo, ambos os
registros parecem pertencer a mesma categoria do aparente, do
faz-de-conta, do semblante.

65
Os Destinos da PH/são

E quando toda a estrutura dos discursos se reduz ao faz-


de-conta, Miller chega a dizer que é todo o saber teórico da psica-
nálise que se decompõe. E Miller nos diz que o próprio Lacan não
recuará em afirmar no Seminário 20, ao tratar todas as categorias que
elaborou como feitas para tamponar o gozo. Constituem, no fim
de contas, elementos do simbólico, que não são mais do que sem-
blantes, faz-de-conta diante do real.
Nesta confrontação do simbólico e do real, a que se acres-
centa a dimensão do imaginário, é que Lacan propõe uma nova
estruturação mínima, a do nó. O nó borromeano em Lacan tem no
gozo uma instância primária na qual o próprio sujeito está sob o
império do gozo.
Esta problemática, como se sabe, transforma também o esta-
tuto das estruturas clínicas, a psicose aparecendo agora como a deter-
minação fundamental da estrutura e a metáfora paterna, o Nome-do-pai,
como uma modalidade de suplência frente ao real Se o gozo vinha para o
primeiro plano da experiência analítica, não se pode.ria pensar que a
categoria do sujeito tornasse ultrapassada a instância do ego.
Assim a promoção do gozo como conceito primário é
acompanhada por uma renovação da instância do ego. É o que
aparece no Seminário, livro 23: o sinthoma, no qual Lacan toma como
modelo o caso de Joyce, que chega a construir um ego de suplência.
A função da letra aqui aparece sob uma luz nova e Joyce, o artista a
partir do qual Lacan chega a elaborar uma nova forma de pensar o
final de análise pelo trabalho da letra, com o sujeito desabonado ao
inconsciente.

NOTAS

1- MILLER, J-A. "Silet". Inédito, aula de 8 de fevereiro 1995.


2- LACAN, J. Le Séminaire, Uvre VIL- L'étbiqHe de la psycbana!Jse. Paris, Seuil,
1986, p. 11 o.
3- MILLER, J-A. "Silet''. Op. cit, aula de 8 de fevereiro 1995.

66
ZWANG UND TRIEB
SINTOMA OBSESSIVO, COM-PULSÃO À REPETIÇÃO

Antonio Quinet
Membro da Escola Brasileira de Psicanálise

Em 1896 Freud elevou à dignidade da neurose uma carac-


terística de um tipo de representação. Trata-se de Zwang, generaliza-
da nos anos 1920 como manifestação da força do recalcado do
Inconscientc 1• Z1vangsvorstellung, Zwnagsneurose, Wiederholungszwang.
Nessas três expressões Zwang designa o que é obrigatório, imperati-
vo, como se pode encontrar em Zwangsarbeit (condenação a traba-
lhos forçados), cr tut es nur aus Zwang (ele só o fez por obrigação),
unter Zwang stehen (estar submetido a, sob o jugo de). Paralelamente
a essa característica de ordem e comando, Zwang significa força e
pressão, como nas expressões derZwang der Ereignisse (a pressão dos
acontecimentos) e der Zwang der Konvention (a força das circunstânci-
as). Esses dois aspectos fazem de tudo o que é Zwang uma exigência
coercitiva, eine dringende Forderung, em que encontramos a conjunção
de uma representação que faz função de mestre do comando e a
Drang da pulsão sexual que exige satisfação. Obsessão, neurose obsessiva,
compulsão à repetifão: em todos os três trata-se de uma articulação
entre o simbólico e o real que faz do significante não uma barreira
ao gozo mas seu porta-voz.
Os Destinos da P11/são

Zwang-L

O sintoma obsessivo contraria o compromisso que ele pro-


mete, pois longe de interditar, traz o gozo do qual o sujeito gostaria
de se separar. A cada remanejamento teórico que Freud faz da
etiologia da obsessão, longe de excluir a precedente, acrescenta a
esta uma característica que nos ajuda a melhor cingir a relação entre
o sintoma e a pulsão.
A primeira teoria se refere ao período que vai de sua cor-
respondência com Fliess até O homem dos ratos (1909). A etiologia
desta neurose de defesa está vinculada à conotação de prazer quan-
do do primeiro encontro com o sexo. Quando, mais tarde, sua
recordação é evocada, esta vem acompanhada de uma recrimina-
ção, e o que era prazer se torna desprazer. Em seguida, recordação
e recriminação são recalcados para dar origem ao sintoma primário
da neurose obsessiva: a escrupulosidade. No retorno do recalcado,
o afeto da recriminação se vincula a um conteúdo deformado: a
idéia obsessiva, que é o sintoma de compromisso. Dividido entre a
escrupulosidade que exige que nada seja desarrumado e a idéia ob-
sessiva que faz irrupção na consciência, o sujeito rejeita a crença na
obsessão e sua "luta" desemboca na formação de sintomas secun-
dários como a compulsão ao exame, a ruminação mental, cerimo-
niais, jõlie du doute etc. Daí Freud afirmar que os obsessivos "são
pessoas que correm o perigo de ver finalmente o conjunto da ten-
são sexual cotidianamente produzida se transformar cm recrimina-
ção e de lá em sintoma"2•
A recriminação que acompanha a recordação da experiên-
cia sexual de prazer lhe confere aposteriori a característica de experi-
ência proibida. Ela é a expressão da lei que marca o gozo como
proibido e seu retorno, mesmo disfarçado, é o memorial dessa
transgressão que faz um apelo a uma sanção. A obsessão traz ao
mesmo tempo a Lei e sua transgressão, o gozo e sua condenação.

68
Antonio Quinei

''As obsessões são invariavelmente recriminações transformadas, que


retornam fora do recalque e se referem sempre a uma ação sexual
da infância efetuada com prazer"3. A obsessão como sintoma faz,
portanto, função de Nome-do-Pai como portador da Lei simbóli-
ca que barra o gozo e simultaneamente expressa a maneira de um
sujeito gozar de seu Inconsciente. A obsessão nos mostra assim as
duas características do sintoma depreendidas por Lacan: como
Nome-do-Pai e como maneira de gozar do Inconsciente~.
A obsessão não é portanto um compromisso no qual o
sujeito possa ter confiança. Muito ao contrário, ela é uma defesa
fracassada e o sujeito é então obrigado a encontrar medidas de
proteção que também serão um fracasso. A formação perpétua e
contínua de sintomas é uma característica da neurose obsessiva.
Quanto ao Homem dos ratos, Freud remete sua origem ao
conflito entre o amor e o ódio no que diz respeito tanto a sua
amada quanto a seu próprio pai, os dois confundidos. O amor por
um é acompanhado do ódio pelo outro. Esse ódio, corresponden-
te ao componente sádico do amor, é recalcado mas força sua
irrupção trazendo a dúvida sobre o amor, a qual se estende, por
deslocamento, a toda atividade do sujeito, levando-o a uma incerte-
za generalizada. A repetição das obsessões e dos cerimoniais sur-
gem então para banir essa incerteza, a qual concerne, no fundo, ao
êxito da defesa contra o ódio do Outro 5• Para se defender do ódio
do Outro no sentido subjetivo (seu ódio contra o pai), o sujeito,
graças ao retorno da pulsão em direção a ele mesmo, é levado a ser
o objeto do Outro do ódio - o que será tematizado por Freud na
segunda tópica. O ódio do Outro é uma face do Wunsch inconsci-
ente de morte do Outro, desejo ligado à impossibilidade de passar
para a palavra e no entanto presente nos insultos infantis ("Sua lâm-
pada! Sua toalha! Seu prato!" - como xingava o Homem dos ratos a
seu pai) e nas blasfêmias que se introduzem como que sem querer
nas orações de louvor a Deus. A gentileza do obsessivo e seu com-

69
Os Destinos da Pulsão

portamento tudopara-o-outro constituem wna formação reativa contra


esse ódio, no fim do qual se encontra a morte que o mira. Esse ódio
é a expressão no nível do afeto da pulsão de. morte que visa a
destruição, o aniquilamento do Outro. O sujeito toma muito cuida-
do na sua relação com o outro como "se devesse prepará-lo para o
anúncio da morte de uma pessoa querida", dizia-me um paciente.
Seus depoimentos adquirem o aspecto de uma morte anunciada -
morte do Outro que ele deseja ao mesmo tempo em que a anula e
dela se recrimina.
Freud confere à pulsão escópica um papel essencial na cons-
tituição do sintoma da ruminação mental obsessiva: o recalque do
voyeurismo e da curiosidade sexual é o responsável pela sexualização
do pensamento que não é outra coisa senão a substituição do ato
pelo pensamento. A pulsão de saber derivada da pulsão escópica
(voyeurismo => curiosidade sexual) é "particularmente apta (...)
a atrair a energia, que se esforça em vão para se manifestar por
um ato, rumo ao pensamento que permite uma outra forma de
satisfação"6 .
Gozar do pensamento é a satisfação que está presente no
sintoma da ruminação: go:zo escópico que situa o sujeito em um
dar-a-ver. O sujeito dá a ver para o Outro seu desempenho sexual
sob a forma de cogitação. A copulação de significantes substitui o
ato sexual colocando à distância o parceiro que assim não é tocado
mas pode ocupar o lugar do espectador de seu desempenho inte-
Iectual,peiformance que é fonte freqüente de angústia.
Em 1913 Freud afirma que a organização sexual sádica-
anal é a dispostf"àO à neurose obsessiva7 e em 1917 o erotismo anal lhe
permite estabelecer a conexão entre pênis-bebê e presente-dinheiro
devida à "transposição" dessa pulsão8. Essa série de objetos entra
em jogo como objetos da demanda do Outro ao sujeito na qual
está suspenso o obsessivo. Nesse plano da demanda temos a
ablatividade: o sujeito dá presentes ao Outro ou se recusa a dar

70
Antonio Quinei

qualquer coisa refugiando-se na avareza ou na dívida. No plano do


gozo anal, o sujeito é levado à obscenidade, ao escatológico, à sujei-
ra própria desse objeto nada limpo que é o objeto a vertente anal,
que melhor o figura como dejeto do simbólico. O sujeito tenta
recobrir com os significantes da demanda todo vestígio de prazer
excedente que ele experimentou no sexo. Esse prazer excessivo,
modelado pelo registro anal da pulsão, toma o caráter de gozo
sórdido, "porco", "cagado", elevado à categoria de impossível de
ser suportado. O Zwang do próprio sintoma é portador da satisfa-
ção do Trieb que ele anula, daí a associação entre o sagrado e o
profano, o puro e o impuro, o Pai e o pior, Deus e a merda.
Se Lacan nos advertiu de não acreditar na oblatividade do
obsessivo é porque o sujeito tenta recobrir com os significantes da
demanda, sob a máscara da generosidade, o ódio pelo Outro do
amor, cujo caráter pulsional Freud atribuiu ao registro anal.
Nos anos 1920, a articulação entre o isso, reservatório das
pulsões, e o mandamento do supereu permite melhor cingir a con-
junção entre a pulsão e a representação obsedante, entre o objeto e
o significante mestre. Em "Inibição, sintoma e angústia" Freud situa
a constituição da obsessão a partir do complexo de Édipo e da
angústia de castração. O gozo em jogo é o da masturbação castiga-
da por um "supereu super-severo": a obsessão é seu compromisso.
Esse gozo auto-erótico, que faz a economia do Outro sexo, vem à
pauta graças à caraterística do sintoma obsessivo de "deixar cada
vez mais espaço para a satisfação substitutiva", e o resultado, que
vai em direção ao "fracasso completo da luta inicial", é "um eu
extremamente limitado, reduzido a buscar suas satisfações nos sin-
tomas". Nesse plano do gozo, a pulsão sádico-anal exige do sujeito
atos de crueldade que o supereu condena. "Todo excesso traz em si
o germe de sua própria supressão"9 • A obsessão comporta portan-
to esse traço do paradoxo do supereu que Lacan resume com o
imperativo do gozo e cuja fórmula podemos escrever[S/ a] 10 •

71
Os Destinos da Pulsão

Freud ressalta o que é o mais importante nos sintomas obsessivos:


o "valor de satisfação de moções pulsionais masoquistas"11 • Trata-se da
resistência do sintoma a curar pois ele satisfaz a pulsão de morte.
O supercu do obsessivo adquire o aspecto de um Outro
gozador, como o capitão cruel ou o Pai da horda primitiva de
"Totem e tabu", que trata sadicamente o sujeito que não pode to-
mar senão a posição masoquista em seu sintoma, mortificando-se.
Podemos desdobrar a pulsão masoquista que se satisfaz no
sintoma obsessivo segundo a declinação das pulsões em oral, anal,
escópica e invocante, cada uma apontando para um aspecto dife-
rente e para uma face particular do supereu. No nível oral o sujeito
é presa da gulodice do supereu, como transparece nos ditos de um
paciente - "Deixo sempre os outros me devorarem cruamente"
- que sustentavam seu sintoma de impotência diante do Outro da
autoridade. No nível anal o sujeito se faz expulsar como um objeto,
condenado por suas recriminações, reduzido a esse dejeto sórdido
cujo gozo da sujeira ele tenta limpar com os significantes de suas
representações obsedantes. Para-além do registro da demanda, tan-
to oral quanto anal, o sujeito se encontra confrontado com o desefo
para o Outro da pulsão escópica e o desefo do Outro da pulsão invocante 12 •
O olhar e a voz são os objetos que condensam o gozo do supereu
cujas funções de vigilância e de crítica foram depreendidas por Freud
a partir da clínica dos paranóicos desde 191413.
A pulsão cscópica se satisfaz no Zwang da mminação men-
tal que faz barreira ao saber. Ela se encontra também presente no
gozo do espetáculo "que oferece o sujeito na gaiola em que(...) ele
prossegue a proeza dos exercícios de Haute-école por meio dos quais
ele passa suas provas de ser vivo" 14 • Cuidando que o objeto não
apareça, o sujeito se encontra sob a vigilância constante do Outro
que paradoxalmente o leva a dar a ver o objeto que ele tenta escon-
der. O caráter cênico da obsessão é desvelado pela irrupção do
obsceno na cena de uma alta moralidade. Esta é abalada pela oh-

72
Antonio Quinei

sessão que dá a ver o abjeto objeto da amoralidade ob-cena. E o


sujeito é olhado como um dejeto da moral. Ele age seu desejo às
escondidas, em contrabando 15, para passá-lo sob os olhos cegos da
alfândega da Lei. O sintoma obsessivo desvela o laço entre o anal e
o escópico, entre a merda e o olhar. É o que mostra o sonho do
Homem dos ratos em que ele vê a filha de Freud com excrementos do
lugar dos olhos, interpretado por Freud no registro anal
(excremento=dinheiro) - ele queria casar com ela não por seus
belos olhos mas por seu dinheiro - , e por Lacan, no registro
escópico: "é a morte que o olha com seus olhos de asfalto" 1<•.
O sujeito se encontra no dar-a-ver para o mestre absoluto
que é a Morte, que pode ser um dos Nomes da Mulher17 , como
nos desvela um sujeito que em seu sonho vê o cadáver de sua mãe
com os olhos bem vivos, ou um outro cuja obsessão consistia em
imaginar-se visto pela mãe já falecida de um colega seu que constitui
para si o ideal feminino do mestre de saias. O Outro da Morte
pode também ser figurado pelo Pai, como aparece no episódio em
que o Homem dos ratos exibia para o olhar do espectro paterno sua
potência fálica de trabalhador: tarde da noite, quando se preparava
para uma prova, ele abria a porta para seu já falecido pai e "con-
templava seu pênis no espelho" 18•
A angústia ligada aos desempenhos é o indício da presença
do olhar mortífero que mede sem tréguas o sujeito com o ideal -
ideal de limpar o simbólico de todo e qualquer vestígio de gozo.
"Eu fico sempre me observando para avaliar meu desempenho"
- dizia-me um outro paciente. Aí entra em jogo a "voz da consci-
ência", presentificando a Drang da pulsão invocante por meio da
qual o sujeito se faz escutar as auto-recriminações. A crítica é feroz e
traz satisfação ao masoquismo do sujeito. Ele é o escravo do desejo
do Outro cuja voz imperativa comparece nos mandamentos
ritualizados que condensam simultaneamente a lei e sua anulação, o
gozo e sua impossibilidade. A obsessão é a via sintomática da satis-
fação pulsional da voz de um supereu que vê.

73
Os Destinos da P11/são

O Zwang do Inconsciente

O conceito de pulsão de morte obriga Freud a generalizar


o Zwang ao que se repete no Inconsciente. Zwang é o sinal da pulsão
de morte que força os significantes a se repetirem no pensamento e
por conseguinte no sintoma. O "Zwang, a coação, que Freud definiu
pela Wiederholung, comanda os próprios rodeios do processo pri-
mário"19. IPiederholungsZ}Vang, obsessão ou automatismo de repeti-
ção, não é outra coisa para Lacan senão a insistência da cadeia
significante correlativa à ex-sistência do sujeito 20 . A obsessão é como
The pHrloined !etter, uma letra colocada de lado, uma carta não retira-
da (en sotif[rance) mas que volta sempre ao mesmo lugar, pois ela
vem no lugar do real; daí sua característica de dejeto do simbólico:
a !etter, a liter 1• A repetição no Inconsciente é obsessiva - o funci-
onamento do pensamento exige que o significante se desloque, que
ele "deixe seu lugar, mesmo que ele retorne aí circularmente"22 •
A obsessão é articulada por Lacan ao signo que "produz
gozo pela cifra que os significantes permitem (...)". A obsessão que
cede, faz obcecção (escrita com e) "ao gozo que decide de uma práti-
ca"21. Lacan, portanto, faz da obsessão a própria característica do
signo como cifra de um gozo no Inconsciente. A obsessão como
sintoma é a maneira de gozar para um sujeito cuja dúvida e a falta
de certeza impedem seu ato, que é assim sempre adiado para mais
tarde (procrastinação). Daí a obsessão como pensamento se encon-
trar em oposição ao ato; onde o sujeito não pensa, tornando-o
portanto impraticável. Para que uma prática se torne possível é pre-
ciso o ato, que na neurose é impedido pela falta de decisão do
sujeito, pois seu gozo está condensado no pensamento que o
"obceda". Eis porque é preciso que a obsessão faça cessão, ceda o
gozo ao ato que então será decisivo para uma prática. Em outros
termos, é preciso que o gozo passe do pensamento para o ato,
invertendo assim o próprio movimento de formação da obsessão
(o ato substituído pelo pensamento).

74
Antonio Quine!

O Zwang como sintoma permite cingir o trabalho de


ciframento do Inconsciente pelo deslocamento que o caracteriza
(tanto a obsessão-sintoma quanto o Inconsciente). A "metonímia é
justamente o que determina como operação de crédito (Verschiebung
quer dizer: transporte, transferência, traspasse, depósito) o próprio
mecanismo inconsciente em que é no caixa-de-gozo, no entanto,
que se aperta o botão 2·1• E Lacan acrescenta em seguida: "Fazer
passar o gozo para o Inconsciente, isto é, à contabilidade é,
com efeito, um deslocamento danado". O deslocamento do
significante não se dá portanto sem o ciframento do gozo. Essa
operação evoca a própria formação do sintoma obsessivo na
base do qual se encontra o verter do real no simbólico, o depó-
sito de gozo na rede de significantes - o que leva o sujeito à
contagem, à numeração dos lances dos dados de gozo. O Zwang
é a "carta forçada" 2s que nos mostra o pouco de liberdade do jogo
de associação livre.
A obsessão como sintoma pode advir em todos os ti-
pos clínicos da neurose - as obsessões histéricas são também
cifras de gozo. Mas o pensar é, propriamente falando, o que
define o obsessivo, que é, diz Lacan, "muito essencialmente al-
guém que pensa. Ele é pensa avaramente. Ele é pensa em circuito
fechado. Ele é pensa para ele sozinho" 26 • O obsessivo em seu
pensamento faz um curto-circuito para anular o Outro do de-
sejo e o que pensa se fecha no circuito pulsional no qual ele
mesmo é o objeto. Trata-se do gozo onanista, como Freud o
pontuara. O sujeito histérico é o Inconsciente em exercício e o
obsessivo, o Inconsciente em cogitação; o Zwang do Inconscien-
te de um cisalha o corpo e o do outro cisalha a alma 27 • Se o
histérico com seu agir faz o Outro pensar, é graças ao obsessivo
que sabemos o que pensar quer dizer: ele dá-a-ver o modo de
funcionamento do próprio Inconsciente.

75
Os Destinos da Pulsão

NOTAS

1- FREUD, S. "Au-delà du príncipe du plaisir". Em: Essais de prychana!Jse.


Paris, Payot, 1981, p. 59.
2- FREUD, S. "Manuscrit K". Em: La naissance de la prychana/yse. Paris, PUF,
1979, p. 132-5.
3- FREUD, S. "Nouvelles remarques sur les psychonévroses de défense".
Em: Névrose, prychose et perversion. Paris, PUF, 1981, p. 67.
4- LACAN,]. "Le complexe d'Oedipe est comme tel un symptôme". Em: Le
Sémit/(/ire, Livre XXIIL· Jqyce le sinthome. 8 de novembro de 1975 (cf. Ornicar?,
n. 6, p. 9) e "]e définis le symptôme par la façon dont chacun jouit de
l'inconscient en tant que l'inconscient le détermine". Em: Le Sémi11aire, Livre
XXTI.· R.S.L 18 de fevereiro de 1975 (cf Ornicar?, n. 4, p. 106).
5- FREUD, S. "Remarques sur un cas de névrose obsessionnelle (L'homme
aux rats)". Em: Les cinq psychana!Jses. Paris, PUF, 1979, p. 258.
6- Idem, p. 259.
7- !iREUD, S. "La disposition à la névrose obsessionnelle"(l 913). Em: Névro.re,
ps_vcho.re et perversion. Op. cit.
8- FREUD, S. "Sur les transpositions de pulsions plus particulierement dans
l'érotisme anal" (1917). Em: La vie sex11elle. Paris, PUF, 1977.
9- FREUD, S. Inhibition, symptôme et cmgoi.rse. Paris, PUF, 1981, p. 35.
10- cf o relatório de S. COTTET, G. CLi\STRES et alli, "Demande, désir,
jouissance dans la névrose obsessionnellc". Em: Hystérie et obses.rion. Paris,
Fondation du Champ Freudien, 1986.
11- fillEUD, S., Inhibition, symptôme et ª'(~Oisse. Op. cit, p. 39.
12-Cf. LAC\N,]. Le Sémináire, Livre XIII: L'oijet de la psychana!Jse. Inédito.
13- cf. FREUD, S. "Pour introuduire !e narcissisme". Em: La vie sexm/le. Op.
cit., p. 99-100.
14- L-\CAN, J. Écrits. Paris, Seuil, 1966, p. 453.
15- Idem, p. 633.
16- Idem, p. 303.
17- Fazemos aqui referência ao texto de Freud "Les trois coffrets" ("Os três
escrínios").
18- FREUD, S. "Remarques sur un cas de névrose obsessionnelle (L'homme
aux rats)". Op. cit., p. 232.
19- LACAN,]. Le Séminaire, Livre XI: Les quatre concepts fondamentaux de la
psycha/yse. Paris, Seuil, 1990, p. 66.

76
Antonio Quine!

20- LACAN,J. "Le séminaire sur 'La lettre volée'". Em: Ecrits. Op. cit., p. 11.
21- Idem, p. 25.
22- Idem, p. 29.
23- LACAN, J. "... Ou pire". Em: Scilicet 5. Paris, Seuil, 1975, p. 10.
24- LACAN, J. "Radiophonie". Em: Scilicet 2/ 3. Paris, Seuil, 1970, p. 71- 72.
25- LACAN, J. Le Séminaire, Uvre XI- Les q11atre concepts fondamentaux de la
p.rychajyse. Op. cit., p. 79.
26- LACAN, J. "Conference à Géneve sur !e symptôme". Em: Le bloc-note de
la prychallafyse, nº 5, 1985.
27- LAC.\.N, J. Télévisio11. Paris, Seuil, 1974, p. 17.
O POETA DO ATO

Eliane Schermann
Membro da Escola Brasileira de Psicanálise

Múltiplas são as acepções do termo esquecimento na obra


tanto de Freud como de Lacan. Por que abordar o esquecimento
para falar da pulsão? O esquecimento é o índice privilegiado da
defesa do sujeito. Mas também é testemunha do desejo indestrutível;
é signo do gozo que emerge subitamente do irredutível vazio da
enunciação. Na via do esquecimento Freud elabora o inconsciente
como um ato que ao falhar tem sucesso. Ao trabalhar o que resta da
cadeia significante no seu exemplo paradigmático - o esqueci-
mento do nome próprio Signorelli- Freud faz avançar a psicaná-
lise ao elaborar sua doutrina sobre o recalque originário e sobre o
mecanismo da formação do sintoma. Lacan retoma esse aspecto
no Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, afir-
mando que o significante é esquecido. Dito de outro modo, ao
ponto de suspensão da metáfora, no silêncio do Outro, responde a
dramatização do mito, pois algo da pulsão faz rastro, pedindo pas-
sagem e insuflando o "entre-significantes". Em lugar de lembranças
que o conduziriam à sexualidade e à morte, enigmas perdidos na
sombra do significante, Freud localiza o que está dissimulado, es-
condido mas ocupado pelas letras Bo, de Boticelli, Boltrafio, e Herr,
senhor. Lá onde o sujeito evoca a estranheza do desejo, Lacan pro-
põe a incidência da pulsão.
Os Destinos da P11lsão

"Recordar é viver!", diz a canção popular, pois quando o


sujeito diz "Eu não me lembro" é porque com o significante há
sempre algo perdido. O sujeito faz um apelo a um significante que
deveria vir a representá-lo e do qual poderia se lembrar. Na
rememoração o Outro está presente, nem que seja como falta. Lem-
brar-se é vir sob um significante, sob a barra, a ser representado
por um significante para outro significante.
O inconsciente faz com que esqueçamos ou nos lembre-
mos. A amnésia histérica ou sua variante obsessiva, o isolamento,
revelam que algo escapa e faz borda na sutura da memória com as
palavras, fixando no limite da representação o signo de uma remi-
niscência do real traumático.
Podemos dizer que a falta de esquecimento faz sintoma. Se a
repetição significante continua sendo a marca indispensável do retorno
do recalcado, e que abre as portas à significação, a interpretação de
sentido não esgota e não se reduz aos obstáculos que dão permanência
ao lugar da verdade. O sintoma composto de sua materialidade
significante e de seu núcleo de gozo deixa um resto não interpretável,
não dialetizável, que somente pode ser lido na letra que fixa o gozo. O
âmago do ser é o pulsional. O sintoma o cifra, substituindo-o na letra
"como símbolo escrito na areia da carne" (Lacan, 1985[1960]). Além
disso, é a letra que do simbólico vem cingir o real, cujo deciframento se
desfaz. Aquilo que se inscreveu no tempo de vida de um sujeito no
nível inconsciente apresentar-se-á como coexistência atual. O
deslizamento metonímico deixa escapar nas entrelinhas o lugar da letra
que circu~screve o gozo destacado do Outro e funciona como ausên-
cia de significação. O inesqueóvel que escapa ao automatismo de repe-
tição equivale àquilo que sustenta a insistência da cadeia, revelando o
mesmo. Comandado pela pulsão de morte, o mesmo indica o gozo
que só quer morrer. Então o esquecido e o inesqueóvel, sempre busca-
do e nunca encontrado pois é sempre outra coisa, coexistem como
desejo indestrutível, precisando os contornos do que sempre volta
ao mesmo lugar, ao real que faz a cadeia se mover.

80
Eliane S chermann

Em "Um distúrbio de memória na Acrópole" (1936), Freud


aborda algo próximo ao que Lacan desenvolve como a recupera-
ção do objeto que denota o sujeito desalojado de si, na extimidade,
enquanto se esforça para se defender desse ponto indelével de au-
.sência. Desse lugar de onde o pai não responde, o sujeito pode ser
surpreendido pela emergência da cifra de gozo cujo nome para
Freud é piedade. "Que diria nosso pai se pudesse estar presente!",
frase de Napoleão citada neste texto por Freud.
Freud se interroga se a análise interminável estaria calcada
nos edificios das construções sobre o esquecido como retorno do
recalcado. Mas, avançando um pouco mais, coloca o acento da
verdade no saber inconsciente, tão penoso de se restaurar, quedes-
vela e arrebata o sujeito, conduzindo-o ao lugar das reminiscências
das quais todos nós sofremos sob a marca do objeto como falta.
Se no início era o buraco, como exemplo, podemos afirmar que
toda arte se caracterizaria por certo modo de se organizar cm torno
desse vazio, enquanto a religião consistiria num dos modos de evitá-lo.
O mundo freudiano, o de nossa experiência, insiste que esse
objeto da extimidade é o que tratamos de reencontrar, paradoxal-
mente nunca perdido. Admitamos que essa experiência é inaugural
no campo freudiano. Dito de outro modo, falamos através das
demandas que se articulam carregando na torrente das palavras a
exigência pulsional até o ponto de desconhecimento que chama-
mos de gozo e do qual o Outro já não pode responder dando
sentido. Embora o objeto nunca tenha sido perdido ou tido,
embora se trate de reencontrá-lo, deslizando e dialetizando as
palavras e as coisas, na ilusão desmedida e desmentida sem ces-
sar do mal-entendido, a verdade eclode com sua estrutura de
ficção. A mentira do sintoma que se sustentou na verdade ins-
crita na fantasia responde ao impossível localizável na falha do
Outro. Esse processo permite à verdade retornar como real, que
não cessa de não se inscrever.

81
Os Deslino1 da Pulsão

Ao recordar a miséria comum abordada por Freud cm


"Mal-estar na civilizaçào", Lacan elabora uma clínica que chama de
sacrifício do ser falante, referindo-se ao sacrifício que todo falante
faz do gozo. Dessa miséria depreende-se a neurose que invoca as
fontes dos enigmas sobre o gozo, que do corpo surge e a ele retorna
nas bordas, evocando ao sujeito suas demandas, sua deriva e o
retorno como questão. A paixào da ignorância, que é própria da
estrutura do inconsciente, sofre a pressào da exigência pulsional. O
convite feito ao sujeito para o livre exercício da palavra, da associa-
ção livre, instaura a fala endereçada a um destinatário, o Outro ao
qual, ansiando por garantias, o neurótico se prende pelas <lemandas
num tempo de espera. Se a pulsão reproduz a relação das deman-
das com o objeto perdido, destacado do campo do Outro, ela
também divide e separa o sujeito e o desejo. Evidencia na história
do sujeito os buracos que o gozo introduz no simbólico. No traça-
do da demanda, o sujeito guarda as cicatrizes da pulsão como últi-
ma lembrança do significante.

Suspenso à hora do Outro, o neurótico encalha com seu


"erro", sua falha. (observaçào feita por Lacan no seu texto sobre
Hamlet a respeito da homofonia entre leurre, engano, e l'heure, hora).
Se a pulsão tem um tempo para se realizar, há pressa e urgência
pulsional para atingir o tempo de concluir numa temporalidade
pontual e nào contínua, formulada como instante da fantasia. No
traço resta o rastro da extração do objeto do campo do Outro. En-
quanto o traço é diferença pura, o pulsional promove a repetição do
mesmo como real. Se o sintoma fi.xa o tempo, o ato precipita a disjunçào
entre os traços dos ideais e a memória do objeto inexistente no qual o
neurótico se prendia na fantasia como resposta à hora-erro do Outro.
Nào há objeto algum que satisfaça à pulsào. A pulsào é o que resta
da demanda quando já nào há mais nada a demandar. É pulsào
uma vez que a demanda se reduz ao corte. A pulsão deixa um resto
que não satisfaz nunca mas que impulsiona pelas beiradas, pois não
há nada além das bordas onde a borda se satisfaz em si própria.

82
Eliane Schermann

Desse processo resulta um sujeito redobrado em sua hiância:


a da sua própria divisão e a que se refere àquilo do que dele é
ejetado e escapa, o objeto a, que indica a inconsistência do Outro.
Então duas falhas se recobrem e se excluem evidenciando o que
resta da memória.

Esse momento em que a memória irrompe no presente


com sua conotação de verdade não acontecerá sem a dimensão do
ato analítico. Através do ato, algo se desmonta da história do sujeito.
Lá onde o significante agia na sua vertente de fazer cessar um dizer
ao se instalar como SI' emerge a pulsão, que na letra circunscreve o
gozo:j'ouis sens (Lacan, 1993). O sentido se fixa onde o sujeito falha.
O ato somente lá está como atividade para desobstruir a verdade
do sujeito na hiância, mas à medida que nela não se pensa. Sacrificar
o gozo à letra ilustra-se no "eu não penso". O ato desvela o desvio
de sentido na leitura que dele o sujeito faz no a posteriori. Desse
modo o sentido é abalado, pois o significante, na sua função de
equívoco, sugere que a significação foi capturada no 11011-sm.re. Lacan
ao longo de seu trabalho sobre o ato abandona o campo da metá-
fora para alcançar o que de real ex-siste ao sujeito.
O ato analítico vai agir reportando-se à transferência. O
analista nele está incluído como presença. Então há um elo entre o
ato do analista e o ato relativo à compulsão à repetição do analisante.
"O inconsciente é esse algo que falta ao discurso, que é preciso de
algum modo suprir, completar na história, para que a história ao se
restabelecer... suspenda o sintoma", diz Lacan em "Função e Cam-
po da Palavra e da Linguagem". O discurso em função da história
se articula a partir do que constrói o historiador. r-.fas Lacan não
pára aí. No Seminário, livro 23: o sinthoma. Lacan nos remete à passa-
gem do significante à escrita. Envia-nos do significante que "se
modula na voz" à escrita que margeia o real, o impossível de dizer.

O psicanalista ao operar como semblante de objeto a com


seu ato, nele está implicado e dele não se pode dizer mestre. Se o

83
Os Destinos da Pulsão

analista tem horror ao ato é porque ao pagar com sua falta-a-ser


deixa nele ecoar o que ressoa da pulsão. Se a pulsão é de morte,
enfocá-la como enigma, fonte de equívoco ou "babaquice", con-
voca-nos a pensar a verdade que se desvela ao sujeito, efeito do ato
analítico, como um saber novo.

Sempre nos deparamos com a falta constitutiva daquele


que fala. O ato designa esta falha entre o sujeito do enunciado e o
sujeito da enunciação, lugar de onde emerge o vazio de significaçào.
Neste lugar de diferença pura ressoa o vazio acéfalo da pulsão que
escondia num tempo de silêncio e descontinuidade a história libidinal
da relação do significante com o gozo. O neurótico é aquele que crê
no seu sintoma porque considera que quer dizer algo. Acredita que
ao se desvelar o seu sentido, seu padecimento cessará. O neurótico
crê no seu sintoma ao dirigi-lo ao Outro pedindo-lhe interpretação.
A ruptura de sentido traz no seu bojo a verdade pela via do que
resta da memória ao ser subtraída de seus traços.
Quando Lacan nos fala de Joyce, o sintoma perde sua
conotação de metáfora para nos conduzir ao gozo. O ponto fun-
damental em Joyce é o de conseguir trabalhar com seu gozo pró-
prio, unido à convicção sobre a excepcionalidade de sua obra, o
que levaria "os estudiosos a procurarem seu deciframento por tre-
zentos anos". Apesar desse aparente desafio ao Outro, este aparece
esvaziado de sentido em sua obra. Joyce cria com seu gozo uma
escrita na qual o Outro é suportado pelo leitor no sem-sentido.
Joyce é o que podemos chamar de um autor, aquele que é causa de
algo, logrando com sua escrita contornar o real através do saber-fazer.
Forja enigmas nos quais o decifrador perde o rumo. Fornece com sua
escrita a marca da rejeição do simbólico dando-lhe a conotaçào de um
desvario de memória. Sua escrita não comporta um mero escrever,
mas um saber-fazer com seus restos de memória.
Com a palavra dita, enunciada, mentimos apesar da boa fé
com a qual procuramos impedir que isso aconteça. A palavra men-

84
Eliane Schennann

te por sua dimensão de artifício e equívoco. A linguagem como


furo instaura o real e indica que algo sempre escapa ao instalar uma
falta. A linguagem ao dar lugar à fala provoca um oco subtrativo
do gozo. A escrita circunscreve o real, que tem a dimensão da ver-
dade e que privilegia na letra o mistério do gozo. Um belo exemplo
disso são os efeitos enigmáticos da escrita de Joyce que se estendem
de forma linguajeira aprisionados à pulsão de morte. O significante
exilado do sentido, cultivando o sem-sentido, consagra-se ao resto
de gozo opaco da alíngua.
Esse irredutível do tempo pulsional, nominável como "a
impossibilidade de tudo saber" sobre o sintoma, desvela e desmas-
cara o sujeito na sua verdade: a marca da sua divisão e de sua singu-
laridade, com a qual tece como Mnemósine seu saber-fazer. Essa
deusa titã, irmã de Cronos e de Oceano, mãe das Musas, preside a
função poética. Entre os gregos a poesia que Mnemósine consagra
aos heróis exige uma intervenção "sobrenatural", pois esta seria
para eles uma forma de possessão e estado de "entusiasmo". O
saber ou sabedoria, a sophia, que Mnemósine dispensa aos seus elei-
tos, seria uma forma de "onisciência" de tipo divinatório. A
sacralização de Mnemósine entre os gregos descreve seu poder atra-
vés do atributo de alcançar alguns traços da memória arcaica e re-
conhecer certos aspectos de seu funcionamento. Em Hesíodo,
Mnemósine sabe e canta em versos "tudo o que foi, tudo o que é,
tudo o que será". Não se refere ao passado individual, mas ao
"tempo antigo", o tempo original. Na poesia, essa deusa dá ao
poeta uma experiência imediata dessas épocas passadas. Ao poeta
ela delega o conhecimento súbito do passado porque tem o poder
de nele estar presente, embora não tenha uma preocupação históri-
ca. Ela é "recordação viva" que, visando ordenar o mundo dos
heróis e dos deuses, permite ao poeta nomeá-los, determinando e
fixando suas origens. É evocação do "passado" que faz reviver o
que não mais existe e que dá uma ilusão de existência. A História
(1ue canta Mnemósine é uma eclosão do invisível, "uma geografia

85
Os Destinos da P11/sào

do sobrenatural" (Vernant, 1990). Em Hesíodo, a pesquisa das ori-


gens toma um sentido ~digioso e confere à obra do poeta o caráter
de uma mensagem sagrada. As filhas de Mnemósine - as i\.lusas
- , ao oferecerem ao poeta o bastão da sabedoria, o sképtron, ensi-
naram-lhe a "Verdade". ''As nove musas que bailam e cantam no
Olimpo inspiram o poeta ... Junto a elas as Graças e o Desejo têm
morada ... ", escreve 1-Icsíodo na Teogonia. O passado é efeito de uma
revelação e ao mesmo tempo a fonte desta revelação. A
rememoração não procura situar os acontecimentos numa pcn,-
pectiva de temporalidade, mas "atingir o fundo do ser, descobrin-
do o original, a realidade primordial que permite apreender o devir
cm seu conjunto". Mnemósine não reconstrói o tempo nem o anu-
la. Realiza para o passado uma "evocação" comparável ao <.JUC efe-
tua para os mortos o ritual homérico do apelo entre os vivos e a
vinda de um clarão, por um breve momento. Comparável também,
segundo Vernant, à descida de um ser vivo ao país dos mortos para
daí apreender o que quer saber. Aquele que no Hades, reino das som-
bras, guarda a memória, ressurge como fonte da imortalidade. O con-
tato com o mundo dos mortos traz a revelação do passado e do
futuro. Ocupando-se da inspiração poética, a mãe das Musas,
Mnemósine, canta o passado primordial e o segredo da origem.
Em Píndaro e Empédocles, a Memória aborda as "faltas
antigas, do mal que a alma pôde cometer em outros tempos" e
também "paga com o resgate de uma antiga mancha".
Mnemósine, a memória que insufla a inspiração poética,
essa deusa feminina descrita como impessoal, não concerne ao pas-
sado mas corresponde à necessidade do despertar do conhecimen-
to que transfigura o sujeito e o "eleva ao nível dos deuses" e deus é
do registro do real. Se a memória não é pensamento do tempo,
mas evasão para fora dele; se não visa elaborar uma história mas
age como daimon, esse princípio divino cuja função seria ligar direta-
mente o destino ao que escapa da temporalidade, poderia

86
Eliane S che,mann

Mnemósine nos evocar a escrita do ato? Então, se a memória só per-


tence à faculdade de pensar "por acidente", será que poderíamos apro-
ximar Mnemósine ao que ressoa da pulsão na vertente da verdade?

Ao romper a história familiar do neurótico, o ato analítico


faz emergir a dimensão de verdade que contém a memória. Se o
neurótico é escravo do sentido e dos fatos, escravo dos S 1 que
comandavam sua história, poderíamos pensar o sujeito no final da
análise como tendo adquirido a posição do poeta inspirado por
Mncmósinc. No final, encontra-se tomado por um estado de entu-
siasmo referido não ao passado que o dominou, mas a um tempo
original que se cria a partir das quedas dos S1 que o aprisionavam
cm seu romance particular. Neste momento, ao ter substituído um
gozo proibido por um permitido, o poeta ultrapassa as determina-
ções do sujeito cm seu pensar para ser insuflado por Mnemósine
cm direção a um saber novo, a um desejo inédito que emerge de
sua causa. No passe, consentindo no ecoar da pulsão, o sujeito trans-
forma o que era repetição cm criação. Assim como nos diz 1'reud
cm "Moisés e o Monoteísmo": "Quase se poderia dizer que quanto
mais vaga se torna a tradição, mais utilizável será para o poeta" e
Lacan acrescenta, o analista é o poata, o poeta do ato.

Referências bibliográficas

FREUD, S. "Moisés e o monoteísmo". Em: Obras Completas, vol. XIV. Buenos


.\ires, .-\morrortu, 1978.
I-IESÍODO. Teogonia. São Paulo, Iluminuras, 1995, p. 109.
L\C.\N, J. "Função e campo da palavra e da linguagem em psicanálise"
(1960). Em: "Emitas 1. Buenos .\ires, Siglo X.XI, 1985.
____ O 5 emi11átio, livro 11: os quatro conceitos ji111dame11tais da Psica11âlise.
Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1979.
_ _ _ _ O Seminário, livro 14: a lógica da fantasia. Inédito.
____ O Semi11átio, livro 15: o ato analítico. Inédito.
_ _ _ _ O Seminário, livro 23: o sintoma. Inédito.

87
Os Destinos da Pulsão

LAC\N, J. "Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente


freudiano". Em: Escritos 2. Buenos Aires, Siglo XXI, 1985.
____. Televisão. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1993.
VERNANT, J-P. Miro e pensamento entre os gregos. Rio de Janeiro, Paz e Terra,
1990.
SINTOMA, FANTASIA E PULSÃO

Elisa Monteiro
Membro aderente da Escola Brasileira de Psicanálise

''.íe a transferência é o que, da pulsão, desvia a demanda, o desejo


do analista é aquilo que a traz ali de volta. E, por esta via, ele
isola o a, opõe à maior distância possíwl do I que ele, o analista,
é chamado pelo sJ!ieito a encarnar. É dessa idealização que o
analista tem que cair para ser o suporte do a separador, na medida
em que seu desejo lhe permite, numa hipótese às awssas, encarnar,
ele, o hipnotizado. Essa travessia do plano da identificafão é
possível( ...). É para além da funfàO do a que a curva se fecha, lá
ondejamais ela é dita, concernente à saída da análise. A saber,
depois da distinção do sujeito em relação ao a, a experi-
ência da fantasia fundamental se torna a pulsão''.
Jacques Lacan 1

A articulação entre sintoma, fantasia e pulsão é uma questão


crucial tanto na direção do tratamento como na teoria psicanalítica.
Duas perguntas norteiam este trabalho: que relações mantêm entre
si sintoma, fantasia e pulsão no início do tratamento e que modifi-
cações aí opera uma psicanálise quando· levada até seu ponto de
conclusão? A partir da teorização de Lacan do final de análise como
travessia da fantasia, como entender o termo sintoma na expressão
"identificação ao sintoma"2, referida à passagem do analisante a
analista?
Os Destinos da P11/.rào

Pelo sofrimento que implica, o sintoma é o que mo-


tiva a busca de uma análise. Em suas "Conferências norte-
americanas"(l 976)\ Lacan define o sintoma como "curável".
Considera como única demanda que justifica a continuação
<las entrevistas preliminares a de querer se desvencilhar de
um sintoma. Demanda paradoxal, já que o neurótico quer se
livrar do sofrimento nele implícito, sem pagar o preço de
seu saber, saber vinculado à castração - daí Lacan falar de
"horror ao saber".
Se este sofrimento é condição necessária, não é sufi-
ciente para o início de uma análise, pois a queixa precisa
passar <lo estatuto de resposta ao de enigma para o próprio
sujeito. No primeiro patamar do grafo do desejo, o sintoma
aparece como um significado do Outro, ou seja, uma men-
sagem invertida que o sujeito recebe do Outro. Em "O sin-
toma e o cometa", Miller diz:

Lacan, de início, tomou uma perspectiva unilateral para o sintoma,


onde este seria unicamente simbólico, e se esvaece quando IJ Stf/eito
admite uma verdade interpretativa. Essa perspectiva coloca o sintoma
110 nível da interpretação, que o leva a desaparecer. Assim, o sintoma
é um di::;:_er, um dizer do Outro i11consâente, incitado por um querer
dizer, resultando num efeito de .r~gn[ficaçào que se escreve, .r(A),
sign{/icado do Outro. Logo depois, situou a incidência da.fantasia 11a
mmsa,gem do Outro: ('Í Oa) ~ s(A)~.

A fantasia, interpretação construída pelo sujeito frente ao


enigma do desejo do Outro, aparece no grafo do desejo logo aci-
ma do sintoma. Lacan evidencia seu papel fundamental na forma-
ção dos sintomas e sua função de tampão da falta, inerente ao dese-
jo do Outro: S(./.).

90
Elisa Monteiro

I(A)
nota 5

Ao analista cabe transformar a queixa em sintoma analítico,


ou seja, introduzir a dimensão do desejo do Outro - Che Vuoi?-
fazendo com que o sujeito se coloque na via de seu deciframento.
Momento que corresponde à instituição, pelo analisando, daquele
analista como sujeito suposto saber, pivô da transferência. Como
dizia Lacan, "o analista completa o sintoma". Opera-se desta for-
ma a histerização do sujeito, já que "o histérico é o nome do sujeito
dividido, ou seja, o próprio inconsciente em exercício" 6•

91
Os Destinos da Pulsão

Em "Inibição, sintoma e angústia"(l 925), Freud afirma que


o sintoma pode aparecer, em relação ao eu, como um corpo estra-
nho ou como incluído na satisfação narcísica. No primeiro caso, do
sintoma o eu padece; no segundo, sintoma e eu se confundem, e ele
acaba fazendo parte do eu. Lacan enfatizará o estatuto sintomático
do próprio eu. José Monseny7 acentua a necessária desestabilização
da identificação do sujeito a seu sintoma que precede a demanda de
uma análise. Uma primeira pergunta se coloca para o analista: quan-
do e o que provocou este abalo na relação do sujeito com seu
sintoma, tornando-se este - como dizia Freud - um "hóspede
indesejável"? Podemos afirmar que o sintoma emerge frente a um
encontro com o real, com o impossível de suportar, que faz a fan-
tasia vacilar, ameaçando deixar entrever aquilo que ela tem por fun-
ção velar: a castração do Outro, a não existência da relação sexual.
A fantasia, dizia Lacan, é um real que esconde a verdade. A irrupção
do real implica um fracasso dos mecanismos do eu para manter a
homcostase, ou seja, o princípio do prazer. Supõe então, por um
lado, uma crise nas identificações ou um irreconciliável entre a iden-
tificação e o real emergente e, por outro, um fracasso da fantasia
cm sua função de "máquina de transformar gozo em prazer", como
a definiu J acques-Alain Miller em 19838• Não é de estranhar que as
identificações ideais e a fantasia formem o duplo eixo nos quais se
apresenta o fracasso para frear o gozo, já que é delas que o eu tenta
extrair a sua homeostase e o desconhecimento de sua relação com
o real (ou seja, o eu é simplesmente uma imagem que recobre a).
Vejamos o que nos ensina o Homem dos rato/ sobre a articu-
lação entre sintoma, fantasia e pulsão. Seu sintoma obsessivo, a ques-
tão da dívida e da impossibilidade de pagá-la, o leva à análise com
Freud. Ao longo da mesma, o significante rato se apresenta como
enigmático para o sujeito. É a partir do trabalho em torno deste
significante e da polissemia que ele põe em jogo que se construirá
seu romance familiar e surgirão em sua história as marcas da dívida
não paga pelo pai e de seu casamento por conveniência, assim como

92
Elisa Monteiro

o desígnio: "Serás um grande homem ou um grande criminoso".


O significante rato acaba levando a uma lembrança infantil: o relato
do suplício dos ratos pelo cruel capitão que despertara horror e ira
no sujeito, revelando um gozo, como nos diz Freud, "do qual ele
não tinha a menor consciência". É patente o aspecto traumático da
irrupção deste gozo num sujeito que tem ideais militares e que, como
enfatiza Colette Soler, "vê com maus olhos suas próprias pulsões
agressivas não muito limpas" 1º. Freud fará eqüivaler este gozo ao
benefício primário da doença. No final da exposição do caso, arti-
culando o significante rato à pulsão, dirá: "Rato, imagem viva de si
mesmo". Com Laca'7 lemos aqui o significante assemântico, S1 iso-
lado, letra 11 de Alíngua que, em lugar de seu nome-próprio, é o
nome de seu gozo.

Algumas pontuações sobre a articulação dos conceitos


de sintoma, fantasia e pulsão em Freud e em Lacan

Para Freud e para Lacan o sintoma apresenta duas facetas:


sua dimensão de linguagem, pois é uma mensagem do inconsciente
a ser lida - um "símbolo mnêmico", dizia Freud; uma "metáfo-
ra", definiu Lacan. É a vertente dominante no início da obra de
ambos, pois Freud descobre o inconsciente por suas "formações"
- os sonhos, atos falhas, chistes e sintomas - e Lacan, em seu
retorno a Freud, precisa insistir que o "inconsciente é estruturado
como uma linguagem". No final da obra, a atenção de ambos se
concentra sobre a vertente pulsional do sintoma.
Freud associa, logo de início, o sintoma à sexualidade,
enfatizando que ele permite uma satisfação sexual substitutiva, ou
seja, uma satisfação pulsional. "É a prática sexual dos neuróticos",
diz no Caso Dora. A correlação do sintoma com a fantasia logo se
torna evidente para Freud, o que o faz abandonar sua "primeira
neurótica". Em sua tentativa de cura dos sintomas, Freud logo se

93
Os Destinos da Pulsão

confronta com a compulsão à repetição e a reação terapêutica ne-


gativa, ou seja, com sintomas que resistem ao dizer; não cedem e se
repetem. Como lembra Miller 12, trata-se aqui dos sintomas obsessi-
vos, onde a repetição é o próprio fundamento do sintoma, modelo
do sintoma que será privilegiado por Lacan no final de seu ensino,
já que nele o sintoma aparece como real.
Em 1920 Freud será levado a propor um para-além do
princípio do prazer, referindo-o à pulsão de morte, ao masoquis-
mo primordial e à compulsão à repetição. Proposta revolucionária
que provoca dissensões no seio da comunidade analítica, pois ques-
tiona uma concepção hedonista do homem, defendida em todos
os tratados de moral, na qual se confunde o bom com o Bem,
como se o que é bom para o homem, o que lhe desse prazer, fosse
fazer o bem. Freud mostra que é justo o contrário. Daí Miller ter
proposto este materna do gozo: "ft.
Assim, se o eu visa o prazer, o
sujeito do inconsciente visa apenas o desprazer, já que o masoquis-
mo é primário. É o que revela o segundo tempo da fantasia (in-
consciente) de "Bate-se numa criança"(l 919): "Eu sou espancado
por meu pai", ou seja, a posição primitiva de gozo do sujeito é
masoquista.
Gostaria de retomar uma passagem que me parece impor-
tante de um texto bem mais antigo de Freud: "As fantasias histéricas
e sua relação com a bissexualidade"(l 908):
A fantasia inconsciente tem relação muito importante com a vida sexual
da pessoa; é com efeito idêntica àfantasia da qual ele se seroiu durante um
período de masturbação para obter satisfação sexuaL O ato masturbatório
(...) se compunha nesta época de doisfragmentos: a evocação da fantasia e
no ponto culminante desta, o comportamento ativo visando à auto-satiifa-
fão. Como se sabe, este compósito é o resultado de uma soldagem (...)
entre o que era originalmente uma prática puramente auto-erótica, destina-
da à obtenção de prazer de uma determinada parte do corpo, que chamamos
erógena. Mais tarde esta ação fusionou-se com uma representação de desdo
proveniente do domínio do amor oijetal". 13

94
Elisa Monteiro

Freud acentua esta "soldagem" entre fantasia e prática


masturbatória, e entre desejo e gozo. Lacan, ao trabalhar a questão
da fantasia, não apenas discrimina claramente as fantasias imaginárias
(selva fantasmática) da fantasia fundamental (inconsciente), como
depreende também sua gramática, propõe sua lógica e seu
atravessamento no final de análise. No Seminário, livro 14: a lógica da
fantasia(l 966-7) enfatiza que a função da fantasia é articular dois
t
elementos heterogêneos: um, simbólico, e outro, real: Oa. De um
lado, temos a versão do Outro, do desejo e da representação do
sujeito e, de outro, a versão da satisfação pulsional, do gozo (a). No
escrito "Sobre o Trieb de Freud e o desejo do psicanalista", Lacan
menciona esta "soldagem" entre "um desejo que vem do Outro"
com "o gozo que vem da Coisa"H. Podemos acrescentar que a
fantasia é a resposta do sujeito frente à irrupção de um gozo
correlativo à diferença dos sexos. Resposta que tem por finalidade
nomear o gozo, fazer existir a relação sexual lá onde ela não existe.
Aqui se esclarece a ligação estabelecida de início por Freud entre a
produção fantasmática e a atividade masturbatória. O sujeito não
pode fabricar esta resposta com os significantes, já que não há ins-
crição do significante da Mulher no inconsciente, pois a libido é
masculina, como dizia Freud. O sujeito irá então construí-la com o
gozo "a-sexual", como diz Lacan, ligado às pulsões parciais. Em
"Bate-se numa criança", a fantasia torna-se o lugar tenente do gozo
sexual, fixando as pulsões parciais. Tem dupla função portanto: a de
fixar as condições de gozo de um sujeito e de assegurar o desejo,
funcionando como uma espécie de garante do desejo. Ora, o dese-
jo não é garantido pelo Outro. O desejo surge porque há falta,
porque a castração existe. Como diz François Léguil, "a fantasia é
aonde o neurótico, que é falta-a-ser, encontra o seu ser (a); no final
da análise não o buscará nela, não mais pendurará seu destino na
fantasia. Ele o encontrará naquilo que lhe revela sua divisão no sin-
toma"15. A função da fantasia é permitir que a pulsão - sempre
parcial, sempre em seu fundo pulsão de morte - entre nas redes

95
Os Destinos da Pulsão

do princípio do prazer, com a condição de não ser realizada. A


fantasia "Bate-se numa criança" não se destina a ser realizada. A
satisfação buscada pela fantasia é a representação, construir um
mundo em torno deste nó pulsional, de gozo. Ele mesmo não deve
ser atingido pois há uma barreira que impede o acesso do sujeito ao
gozo. Pela fantasia, então, a pulsão entra nas trilhas da lei e de seu
interdito. Lacan restaura a pulsão como conceito fundamental no
Seminário, livro 11: os quatro conceitosfundamentais da psicanálise, elaboran-
do mais tarde o conceito de gozo, que faz eqüivaler ao para-além
do princípio do prazer freudiano. No Seminário, livro20: mais,ainda
formula sua teoria dos gozos: o gozo fálico e o gozo a-mais.
Do sintoma como metáfora (como em ''A instância da le-
tra no inconsciente", por exemplo) ao sintoma como letra (Seminá-
rio, livro 22: RS.I) há uma decisiva virada no ensino de Lacan em
direção ao real, com enormes conseqüências clínicas. Como metá-
fora, o sintoma continha em si mesmo sua possibilidade de cura,
pois uma metáfora "como se fez, pode desfazer-se" 16, bastando
para isso que o significante da metáfora seja desprendido. Lacan
cita o exemplo de Dora. O surgimento da palavra-chave
"unvermogend' (na qual a impotência do pai faz equívoco com sua
fortuna) faz ceder seu sintoma: a afonia. A prevalência do simbóli-
co sobre o imaginário do sentido explicaria, segundo Lacan, por
que o engano de Freud não chegou a impedir que o sintoma cedes-
se. Freud em suas interpretações colocava Dora no lugar da mulher
na relação sexual que seu sintoma efetua entre seu pai e a Sra. K, em
vez de reconhecer aí, como Lacan, sua identificação com o pai
impotente. Mas o real do sintoma insiste e Dora abandona seu trata-
mento com Freud. Assim, em RSI Lacan define o sintoma como
"signo daquilo que não anda no real". Não se pode mais reduzir o
sintoma de Dora à sua afonia, pois há vários sinais "daquilo que para
ela não anda no real". Eles serão agrupados por Lacan num "com-
plexo histérico" não resolvido, que vem à luz quando da enunciação
do unvermogend, claramente perceptíveis no relato de Freud.

96
Elisa Monteiro

Como Jacques-Alain Miller vem insistindo, no final de seu


ensino Lacan faz eqüivaler o simbólico ao gozo, introduzindo uma
cunha entre S1 e S2 • Esthela Solano em seu último seminário na
EBP-Rio, A adolescência: o despertar 7 fez um comentário interessante
sobre isso:
No Aturdito, Lacan diz que 'é uma preciptação pensar que afinalidade
da linguagem seria a de comunicar' - ou sda, que a principalfunção da
linguagem seria a metafarica, a de engendrar a significação. Afirma neste
texto que o que domina na linguagem é o mal-entendido e seus efeitos de
gozo. Falar égozar, esse gozo que se satisfaz no nível do b/á-blá-b/á.

Podemos confirmar isso por esta definição que ele dá em


''A Terceira", sua conferência de 1975 em Roma: "Chamo sintoma
ao que vem do real. Isso significa que se apresenta como um peixinho,
cuja boca voraz só se fecha se lhe dão para comer sentido" 18, que
ele escrevejouis-sens (gozo do sentido) em Televisão.
A Terceira - comenta Eric Laurent - me parece ser um dos textos onde
Lacanfala com mais precisão sobre ofuturo da psicanálise, dando-lhe como
única oportunidade a possibilidade que tenha o analista de levar o trata-
mento até o ponto onde possa domesticar este gozo, até o ponto onde a
linguagem possa fazer equívoco(...). Condição a partir da qual o terreno
que separa o sintoma do gozo está ganho, sem que o sintoma se reduza ao
gozo fálico. 19
Em RSI (1974-5) passará a ser "a maneira como cada um
goza de seu inconsciente, conforme seu inconsciente o determi-
na"2º, e uma fmição: "J(x), onde fé a função de gozo do sintoma,
real portanto(... ) ex, aquilo que do inconsciente pode traduzir-se
como letra" 21 , ou seja, a letra como um S1 isolado de qualquer Sz,
argumento da função de gozo do sintoma. Este é o efeito de deter-
minação deste x sobre o inconsciente, simbólicb então, sobre o real
do gozo, que se encontra por ele singularizado. Daí Miller escrever
como materna do sintoma: 1: (S O R), onde estão as suas duas
vertentes: a de mensagem, simbólica portanto, e a real, de gozo -
o significante envolvendo a matéria gozante.

97
Os Destinos da Pulsão

Podemos concluir que o sintoma na expressão "identifica-


ção ao sintoma" do final de análise se refere ao sintoma em sua
faceta real, letra de gozo.

Final de análise: "a experiência da travessia da fantasia


fundamental se torna pulsão".
Tomarei aqui alguns depoimentos dos A.Es sobre seu pas-
se e algumas referências sobre a teoria de Lacan do final de análise,
tentando cernir este momento da travessia da fantasia. Como nos
diz Gcnevieve Morel, dentro da orientação de uma clínica voltada
para o real, tenta-se
através da interpretação como equívoco combater o equívoco do sintoma
onde permanece fixado o gozo do sujeito, produzindo efeitos de sentido.
Operar não é suprimir - vemos aqui a diferença com o sintoma como
metáfora, e se o sintoma não é mais comovido pela interpretação no final de
análise, nem por isso permanece menos, pois é a partir de então armadura
inamovível e real do sujeito. 22

Trata-se então numa análise de construir a novela familiar,


a fantasia, quando são trazidos todos os significantes mestres que
marcaram a vida daquele sujeito. Estes vão aparecendo pouco a
pouco até que o sujeito, nestas mil voltas que implicam o processo
analítico, vai se aproximando do "núcleo patógeno", como Lacan
diz no Seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud. Neste momento
final, surge o ato de consentir em dar um passo além e confrontar-
se com o que se foi e o que se é estruturalmente para o Outro: o
objeto a: "Sou essa voz da garganta afônica do Outro; essa merda
ejetada por seu furo; esse objeto a devorar por sua boca; esse olhar
penetrante a me fuzilar" 23. Bernardino Horne diz: ''A experiência é a
própria revelação. Revelação de um saber verdadeiro oculto até
então para o sujeito. Como entender o gozo do sujeito enquanto
objcto?" 24. Desprender o mais real que o sintoma tem, a letra de
gozo, e desvelar, por meio da desmontagem da pulsão, nestas vol-

98
E/ira Monteiro

tas e novas voltas de uma análise, a cena fantasmática em cada um.


Diz Monseny: ''A incidência da letra M, que se depositou como resul-
tado do percurso pelo significante, foi fundamental para conduzir este
sujeito a este estampido sintomático que lhe permitiu desprender-se do
lugar de gozo fundamental em sua fantasia" 25 •
"Eu sou no lugar de onde se vocifera que o universo é um
defeito na pureza do Não-ser. Este lugar faz esmorecer o próprio
ser" 26 , diz Lacan em "Subversão do sujeito e dialética do desejo"
- "assunção ao ser", ao ser como objeto, momento da destituição
subjetiva por excelência. Momento em que "nada se espera do Outro,
já que nele não há nenhuma resposta sobre a nossa existência e
nenhum uso legítimo deste gozo. Este é simplesmente incurável,
podendo-se simplesmente domesticá-lo" 27 • Diz François Leguil:
[quando) a experiência da fantasia se toma pulsão, momento de revela-
ção, é o silêncio, o silêncio dos espaço infinitos que assustava Pascal. Após
este momento de travessia da fantasia, o sujeito deve fazer um aprendizado
daquilo em que ele se tra11ifórmou. Lacan evoca que este é um momento no
qual não podemospermanecer. Creio que podemos chamar esta aprendiza-
gem de identificação ao sintoma. Cabe a cada um os meios eperceber quanto
tempo precisa para voltar a organizar-se de novo. 28

NOTAS

1- L\CAN, J. O S emi11ário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise


(1964). Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1985, p. 258, grifo nosso.
2- . O Seminário, livro 23: l'i11su que sai! de /'une bévue s'aife à moum
(1976). Inédito.
3- -------- "Conferénces et entretiens dans les universités nord-
américanes". Em: Scificet, nº 6/7. Paris, 1976, p. 32. Na p. 33, Lacan diz
"despachar" quem o procure pedindo análise "para se conhecer melhor",
pois para ele tal demanda não merece resposta.
4- MILLER, J-A. "O sintoma e o cometa". Em: Opção Lacaniana, n. 19. São
Paulo, Ed. Eolia, agosto de 97, p. 8.' Este artigo baseia-se na primeira das
conferências de Miller em seu seminário do VII Enrontro do Campo Freudiano em
São Paulo, abril de 1997, que teve como tema '~s novas formas do sintoma".

99
Os Destinos da Pulsão

5- LACAN, J. Em: Écrits. Paris, Seuil, p. 817.


6- . "Radiophonie". Em Scilicet, 2/3. Paris, Seuil, 1970, p. 89.
7- MONSENY,J. "Três conferências sobre o passe e o sintoma". Em: Agente.
Salvador, EBP-Bahia, agosto de 1997, p. 3-16.
8- MILLER, J-A. Dos dimensiones clinicas: sintoma y fantasma. Buenos 1\ires,
Manancial, 1983, p. 20.
9- FREUD, S. "A propósito de un caso de neurosis obsesiva - E! hombrc de las
ratas" (1909). Em: Obras completas, vai. VII. Buenos Aires, 1\morrortu, 1950.
10- SOLER, C. "E! síntoma en la civilización (E! psicoanalista y las latosas)".
Em: Diversidad dei .ríntoma. Buenos Aires, EOL, 1996, p. 97.
11- L\CAN, J. Omicar 5?. Paris, s/ d. Lacan define na p. 66 o sintoma como
"aquilo que do inconsciente pode traduzir-se como letra".
12- MILLER, J-A. "O sintoma e o cometa". Op. cit., p. 8-9.
13- FJU,:UD, S. ''As fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade"
(1908). Em: Obras Completas, vol. IX. Op. cit., p. 142-3.
14- Li\C:AN,J. "Du Trieb de Freud et du désir du psychanalyste" (1964). Em:
/{1,1il.r. <)p. cit., p. 853.
15- LÚGUIL, F. ''.A entrada em análise e sua articulação com a saída". Em:
Ftín1111 llliciativa Escola-Bahia. Salvador, 1993, p. 34.
16 J .ACAN, J. "Radiophonie". Op. cit.
17- S< >Lt\NO, E. ''.Adolescência: o despertar". Em: Arquivos da biblioteca, n. 1.
Rio de Janeiro, EBP-Rio, novembro de 1997.
18- L\CAN, J. ''.A Tercera" (1974). Em Intervenciones y textos 2. Buenos Aires,
Manantial, 1988, p. 84.
19- Lt\URENT, E. "Uso y goce dei síntoma". Em: Diversidad del.ríntoma. Op. cit.,
p. 143.
20- L1\Ci\N,J. O SetJ1it1áno, livro 22: RSI. Inédito, aula de 18 de fevereiro de 1975.
21- Idem, aula de 21 de janeiro de 1975.
22- MOREL, G. "Síntoma y nombre dei padre". Em: Diversidad dei síntoma.
Op.cit., p. 168.
23- LEGUIL, F. "La question de la fin de la cure". Conferência pronunciada
em Rennes em 16 de maio de 1987. Inédito.
24- HORNE, B. "O encontro com o objeto". Em: Agente. Op. cit., p. 17.
25-MONSENY, J. "Três conferências sobre o passe e o sintoma". Op.cit., p. 16.
26- LAC-\N, J. "Subversion du sujet er dialetique du désir" (1960). Em:
Écrits. Op. cit., p. 819.
27- LAURENT, E. "Uso y goce dei síntoma". Op. cit., p. 143.
28 -LEGUIL, F. ''.A entrada em análise e sua articulação com a saída". Op. cit.

100
ANÁLISE - UM PERCURSO

Elizabeth da Rocha Miranda


Membro aderente da Escola Brasileira de Psicanálise

Um sujeito chega à análise quando o seu sintoma, produto


do efeito do recalque sobre a pulsão, o incomoda; dito de outra
maneira, quando o gozo pulsional implicado no sintoma já não dá
conta do desprazer que este causa.
Inicialmente o sujeito quer se ver livre do sintoma como
algo que não é mais seu e de certa forma se apresenta agora como
estranho; deste sofrer mas paradoxalmente agarra-se ao gozo nele
implicado.
Se um sujeito leva seu sintoma a um psicanalista, supõe a
este um saber que reconhece nele próprio um "saber não sabido",
este último um saber que o Outro pode levá-lo a extrair. Para que a
queixa se torne um sintoma analítico que permitirá a entrada em
análise, é preciso que o sujeito se implique em seu sintoma e inclua aí
o analista. Que o "ser de verdade" se complete com o "ser de
saber", o que advém da instituição' do sujeito suposto saber.
A partir daí se pode entrever a relação da fantasia com o
sintoma, sendo este a resposta possível do sujeito àquela que aí re-
vela sua posição frente ao Outro; o que está em questão é o gozo
pulsional, de onde o sujeito responde à demanda do Outro.
O sintoma comporta uma vertente significante, seu envelo-
pe formal, e uma vertente real/pulsional de um gozo que esse en-
velope tenta recobrir com a certeza neurótica assegurada pela fantasia.
Os Destinos da Pulsão

A vertente significante aponta para as identificações imagmárias do su-


jeito, para o seu romance familiar, para os significantes-mestres.
No início suas queixas, seu sintoma - aí do ponto de vista
médico - transmutado em sintoma analítico revelam que o que está
em questão é a impossibilidade de se deparar com a castração do
Outro, o que é sempre interpretado pela castração do próprio sujeito.
O sujeito neurótico apela para um Outro com suas deman-
das incessantes, pois crê que esse Outro tem mas não lhe dá, ou
atende às demandas do Outro numa tentativa também de mantê-lo
"todo". Nesse jogo de enganos o sujeito se coloca como um nada,
um merda e se queixa da falta de um pai, de um homem, de uma
mulher, da mãe, do marido e até do analista que não o entende. Na
busca desse ideal imaginário i(a) o sujeito sofre, a ele sempre falta.
Dessa forma o neurótico oferece sua castração para garan-
tir que o Outro detenha as significações. Responde ao desejo do
Outro com o seu ser, sacrifica-se para em última instância salvar o
Pai. "O sintoma é a maneira pela qual cada um goza do inconscien-
te enquanto que o inconsciente o determina" 1•
O inconsciente é estruturado como linguagem e o sintoma é lin-
guagem, mas o significante não recobre tudo, e dessa substituição, metáfora
significante que o constitui, sobra um resto, seu núcleo de real irredutível,
mais além do envelope formal que mantém sua irredutibilidade no final de
análise. A estrutura do sintoma é sua repetição, é a articulação com a pulsão
de morte e o gozo atrelado a ela. Gozo imperativo que retoma, repete e
fracassa - "real que não cessa de não se inscrever''.
A interpretação que opera com o equívoco significante desmonta
a história do sujeito e o sintoma neurótico cai. Mas é o ato analítico que vai
apontar o gozo aí existente, o que é inanalisável no sintoma, impedindo que
osujeitosemantenhanumdeciframentointerminávelgozandodosignificante
O ato analítico, intervenção do analista, vai em direção à
pulsão, acéfala, irredutível, sem sentido nem endereçamento, pois
em seu circuito, seu ir e vir, se satisfaz na borda. Utilizando-se da

102
Elizabeth da &icha Miranda

natureza do sintoma para alcançar o real, o ato do analista promove


no mais além da interpretação significante a separação do objeto a.
O ato analítico não é uma ação, é oferecer-se do lugar de
semblant, faz-de-conta, ou seja, semblant de objeto a, de sujeito supos-
to saber e mesmo, inicialmente, de S1, mestre animado pelo desejo
de saber. O analista como semblant gira nesses três lugares que se
permutam: semblant de S1 (que é uma das faces do objeto) para
promover a instauração do sujeito suposto saber, semblant de objeto
a, causa de desejo. No início da análise, temos o semblant de S1 que
vai sustentar o sujeito suposto saber. Cito Lacan:
o sujeito, por meio da transferência, é suposto ao saber pelo qual ele consiste
como sujeito do inconsciente e é isso que é transferido ao analista, ou sda,
esse saber dado que não pensa, nem calcula, nem julga, não deixando por
isso de produzir efeito de trabalho.2

Um dos efeitos desse trabalho seria produzir o giro que o analisante


deve fazer do discurso da histérica para o discurso do analista. No discurso
da histérica o sujeito dividido, em sofrimento, se dirige ao Outro no lugar do
mestre na tentativa de produzir um saber sobre o que vale e pensando que
dá as cartas, esconde a verdade de seu gozo.

DISCURSO DAI JISTÚRICA DISCURSO DO ANALISTA

Esta virada na posição do sujeito se dá pela produção dos


significantes mestres.
Lacan nos aponta que o efeito principal da linguagem é o
objeto a, que é ao mesmo tempo causa e corte. O Outro só é
atingido pelo objeto a, o gozo só pode ser tocado, elaborado a
partir de um semblant. O analista é sempre semblant, do sujeito supos-
to saber ao objeto que suporta o ser. Onde o analisante pensa que
há, só há semblant de objeto, isto é, lugar onde não há nada.

103
Os Destinos da Pulsão

Durante uma análise o sujeito se despe dos revestimentos


imaginários e vai do simbólico ao real, deparando-se com o furo,
falta radical do sujeito, com o vazio que comporta a pulsão. Com a
constatação da incompletude e da inconsistência do Outro produz-
se uma resposta no Real. O objeto esvaziado de gozo pela queda
dos significantes mestres, produzida pela repetição, adquire uma
consistência lógica. A fantasia, que determina a relação do sujeito
com o Outro (S O a), uma vez atravessada toma-se cômica no que
o cômico tem de ridículo.
A castração não é eliminável, é real e impossível de ser evi-
tada; ao aceder a isso o sujeito passa da impotência à impossibilida-
de. A construção da fantasia leva o sujeito a perceber sua versão
particular para o objeto, que no entanto é um vazio, causa de "hor-
ror". A relação do sujeito com a pulsão não passa mais pela solução
de compromisso - sintoma - e o sujeito teria uma nova forma
de gozar, uma mudança radical na demanda.
Do .rymptóme ao sinthome, da perda das identificações à iden-
tidade de sua marca de gozo, o sujeito faz seu trajeto numa análise.
Neste percurso o sujeito estabelece uma relação entre sua própria
existência e a prática, entre esta e a teoria. Se nos avatares das aven-
turas do sujeito, nos encontros com o real, tiquê, algo é apontado,
fixado em marca que porta o desejo do analista, após a constatação
do seu des-ser, resta ao sujeito oferecer-se desse lugar de dejeto
fazendo semblant para um outro sujeito. Para isto, não basta ter leva-
do uma análise às suas últimas conseqüências; é necessário que de
alguma forma o sujeito tenha sido marcado como excluído, à mar-
gem de, dejetado, caído nos seus encontros com o real da castração.

NOTAS

1. LACAN, J. O Seminário, livro 22: RSI. Inédito, aula de 18 de fevereiro de


1975.
2. Televisão. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1993, p. 54.

104
DO SINTOMA AO TRAÇO

Daniela Scheinkman

Do sintoma

Tempo é preciso: fórmula de que podemos nos servir para


descrever o que está em questão num percurso que vai da constru-
ção de um sintoma à sua dissolução, ou ainda em sua metamorfose,
que, após um sólido caminho psicanalítico, pode permanecer como
um traço do sujeito. Se é preciso tempo, "é porque a análise aconte-
ce [anive] por uma suposição, ela [anive] consegue desfazer pela
palavra o que se fez pela palavra", como enuncia sabiamente Jacques
Lacan 1•
Retornemos a Sigmund Freud: o que ele nos ensina sobre a
formação do sintoma no início de sua obra? Em sua carta de 25 de
maio de 1897 a Wilhelm Fliess, ele já faz referência a seu "Manuscri-
to M": ''.As fantasias se produzem por uma combinação inconsci-
ente de coisas vividas e coisas ouvidas, segundo certas tendências.
Essas tendências visam tornar inacessíveis as lembranças que pude-
ram ou poderiam fazer com que nascessem os sintomas"2• O sinto-
ma, neste momento, tem o porte de uma formação de compro-
misso, de uma formação substitutiva. Essa substituição está ligada à
cena primitiva, cena diante da qual o sujeito se apresenta como puro
olhar oferecendo-se como objeto de gozo do Outro. Freud afirma
ainda que as fantasias se constituem por processos de fusão e de-
formação comparáveis às decomposições de processos químicos.
Os Destinos da Pulsão

Como primeira metamorfose, Freud assinala uma "falsificação das


lembranças por fragmentação", o que reduz consiq.eravelmente a
importância das relações cronológicas. Cenas, fragmentos de coisas
vistas ou ouvidas ligam-se para constituir uma fantasia. Uma das
maneiras através das quais.'.~ sintoma pode tomar forma é a
"retrogradação da idéia fantasmática rumo às lembranças que a
constituem"3..Assim começa a ser elaborada a noção freudiana de
sobredeterminação dos sintomas e de sua origem derivada de ce-

\
\
nas fantasmáticas. Entretanto, Freud modificará sua escuta à luz de
sua prática clínica, menos interessada pdo5- fatos da realidade exte-
rior que por aqueles da realidade psíquica: O sintoma é o efeito dos
/ encontros traumáticos com a realidade sexual que, com Lacan, po-
deríamos doravante chamar de troumatismt.
O sintoma é assim sobredeterminado por sua fixação em
ficção num tempo que fica por ser historicizado no dispositivo
analítico: escansões, pontuações, jogos de palavras, homofonias se-
rão necessários para dar um outro tom, um outro modo sincrônico
à diacronia narrativa do sujeito. É exatamente esse outro tom que, a
partir do sintoma, poderá tornar-se seu traço. Em outros termos,
trata-se de transformar o primeiro tempo do sintoma seguindo e
respeitando o tempo lógico de cada sujeito, este tempo em que o
analista está incluído,~an_g.9_.as.~~!~l!-..Q.~_P-1J:ta.quei-
xa num sintoma analítico, do qual o sujeito devt!_i;á)gualmente de-
serrilJaraçár~sêi ·Segúri'dô 'P"ieud," ~ .primcirÔ-;~po d~-s1rifomá foi
sôld-;dô;r~ndido à fantasia: vindo, de fato, como resposta ao
traumatismo sexual e aos primeiros roteiros fantasmáticos, o sinto-
ma se estabelece como uma coalescência às cenas primitivas e
fantasmáticas segundo as quais o sujeito modelou e fixou seu modo
de gozo e enquadrou sua fantasia 5• É o resultado que vai do
traumatismo sexual à fantasia que veste o sujeito, lhe dá seu estofo e
se metamorfoseia em sintoma. Seguindo essa linha de raciocínio, é a
partir do caso Emma, analisado em 1895, que Freud descreve o
que está em questão na primeira mentira histérica, expressão que

106
Daniela S cheinkman

tomou por empréstimo ao grego proton pseudos, com o intuito inicial


de dar conta do sintoma como deciframento e de, em seguida,
explicar como as formações do sintoma tomam lugar ali onde não
há senão um espaço vazio no qual vêm alojar-se o objeto e a rela-
ção do sujeito com seus objetos, fundada na realidade fantasmática
a partir da qual o sintoma se determina como "fixção de gozo" 6• O
sintoma e suas formações decifram o que o Um do inconsciente
apresenta como cifra. O sintoma é então uma metáfora, uma fun-
ção, uma formação de compromisso que, "casado" com a fantasia,
ordena, orienta e comanda a posição do sujeito e sua relação com o
objeto.J

Da posição subjetiva

Esta mudança de papéis e do gozo entre o sujeito e seus


objetos diante de certos acontecimentos já está esboçada na inter-
pretação dada por Freud no artigo "Mais além do princípio do
prazer" (1920), em que ele descreve o trabalho do aparelho psíqui-
co na famosa brincadeira infantil (r'ort-Da) que representa o desapa-
recimento e o retorno, o movimento pulsional de ida e volta e,
segundo Lacan, a ausência e a presença do objeto extraído do Ou-
tro num primeiro giro pulsional e, particularmente, neste caso, do
Outro materno. Nosso interesse aqui é ressaltar o que Freud já ante-
cipa a respeito da posição ativa e passiva, da qual faz um uso gra-
matical ao inverter os papéis, e à qual Lacan dá, através de um novo
movimento, uma dimensão topológica entre sujeito e objeto. Freud
evoca neste texto a passagem da infância - da visão e da percep-
ção das primeiras cenas através do lúdico - para a idade adulta
seja diante de acontecimentos da vida quotidiana, seja através da
relação transferencia,l no dispositivo da análise. Essas experiências
vêm com uma carga de ganho de prazer na economia libidinal do
sujeito e operam mais além do princípio do prazer ou, mais preci-
samente, dominadas por "tendências mais originárias" e "indepen-

107
Os Destinos da Pulsão

dentes" do princípio do prazer6. Essa experiência permanecerá como


um traço na memória psíquica do sujeito e no apostetioti [apres-coup],
em outras situações de sua vida, o sujeito tenderá a repetir esse
ganho de prazer por uma compulsão à repetição, chamada mais
tarde de pulsão de morte e masoquismo primário. ''A criança, diz
Freud, transformou sua experiência em brincadeira... Ela era passi-
va, à mercê do acontecimento, mas eis que, ao repetir [a experiên-
cia], por mais desagradável que fosse, como brincadeira, assumiu
um papel ativo" 7 • Já podemos constatar a linha de avanço da modi-
ficação do gozo pulsional renovado a partir do masoquismo pri-
mordial.

Do traço

Mas por que quisemos evocar essa mudança de posição


subjetiva e de modo de gozo? Adiantaremos que o que está em
jogo, a própria aposta da psicanálise, é justamente a rotação de
discurso e de perspectiva: partindo do ponto de onde o sujeito,
através de sua janela fantasmática, olha um mundo que lhe parece
trágico, essa rotação, ao longo do avanço de seu trajeto analítico,
torna esse mundo mais cômico e mais vasto, com o analista como
parceiro posto em cena na transferência sob a forma de um novo
amor que é um logro. Em outros termos, numa psicanálise, passa-
se de um processo em que o sujeito revive na transferência a dimen-
são da dualidade de sua posição diante de seu gozo a um processo
em que, pelo viés do desfile dos significantes que marcaram sua
história e seus achados, o sujeito desloca o ponto de vista de onde
olhava, que o tornava prisioneiro de sua fantasia, passivo face a sua
realidade fantasmática, ainda que ativo em sua busca de gozo, para
passar para um outro ponto de vista que concerne finalmente à sua
posição diante do gozo e, conseqüentemente, à sua relação com o
objeto e com o Outro.

108
Daniela Scheinkman

Para concluir, pode-se considerar que é sob a condição de,


por um lado, aceitar um novo olhar que implica um novo amor e,
por outro, renunciar a seu modo de gozar, que o sujeito poderá
largar a fixção de gozo em que habitava seu sintoma. O sujeito tem,
desde então, a possibilidade de desenhar no horizonte um traço que
poderá ser, segundo o caso de cada um, ou um sinthoma ou um
novo saber-fazer com seu sintoma. Mas o primeiro exige do sujeito
uma criação, um saber novo criado a partir de sua fixrão fittícia,
enquanto o segundo não passa de um saber-fazer com o que já está
aí. No entanto, o sujeito precisaria ainda de um passo suplementar
para largar seu sintoma, segundo sua escolha, e deixar um traço
como puro estilo. É o traço, segundo nossa hipótese, a que Lacan faz
referência na abertura de seus Escritos, ao retomar a célebre frase de
Buffon - "O estilo é o próprio homem" - para transformá-la:
"O estilo é o objeto d', isto é, aquele que ora divide o sujeito e o faz
desejar, ora o leva "a uma conseqüência em que precisa dar algo de
si"8 • Desde então, o objeto a não é mais extraído do Outro, de seu
desejo ao qual o sujeito se ofereceu e cujo objeto do desejo ele teria
sido - ao menos do Outro primordial, uma vez que o Outro
social continua, apesar desse novo saber, a existir-; trata-se muito
mais de um objeto extraído de um desejo que deve ser sustentado
pelo sujeito, constituindo assim seu traço ou, em uma palavra, seu
estilo.

NOTAS

1- LACAN,J. Le Semináire, Livre 25: /e moment de conc/ure. Inédito, aula de 16 de


novembro de 1977.
2- FREUD, S. La naissance de la prychana!Jse. Paris, PUF, 1991, p.180.
3- Idem, p. 181.
4-- N. do T. Termo difícil de traduzir, cunhado a partir do substantivo francês
trou, habitualmente traduzido por "furo".

109
Os Destinos da Pulsão

5- A propósito disso, remeto ao texto de S. FREUD. "Les fantasmes


hystériques et leur rapport à la bissexualité" (1908). ln: Névrose, Psychose et
PerPCrsion. Paris, PUF, p. 151. Este texto me foi lembrado na aula de Colette
Soler de 05 de fevereiro de 1996, intitulada "La malédiction sur le sexe",
Seminário inédito da Seção clinica da Universidade Paris VIII.
6- N. do E. cf. neste volume p. 205 nota 10.
7- FREUD, S. ''.Au-delà du Príncipe du plaisir". ln: Essais de Psychana!Jse.
Paris, Payot, 1981, p.56.
8- LACAN,]. "Ouverture de ce recuei!". ln: Écrits. Paris, Seuil, 1966.

Tradução do francês: Marcelo Jacques de Moraes


O SINTOMA COMO METÁFORA.1

Silvia Elena Tendlarz


Membro de la Escuela de Orientación Lacaniana

Em ''A instância da letra" Lacan define, recuperando a in-


dicação de "Função e campo da fala e da linguagem em psicanáli-
se", o sintoma como metáfora. A vertente de gozo enlaçada ao
sintoma não desfaz seu funcionamento metafórico, sua articulação
significante, mas acentua o que há de metonímia no sintoma. Se
nesta época afirma que o desejo é metonímia, existem relações par-
ticulares entre as duas figuras retóricas.
O ponto de partida é o binário significante-significado es-
tabelecido por Saussure2• Porém a posição de Lacan é diferente:
por um lado, inverte o esquema saussuriano e dá preeminência ao
significante; por outro, critica sua concepção da arbitrariedade do
significante, já que este participa na produção do significado e aponta
que uma tal afirmação de arbitrariedade pertence ao discurso do
senhor. Da mesma maneira, Roland Barthes assinala em seu artigo
"Saussure, o signo, a democracia" a liberdade dos signos de se com-
binarem entre si: indica que a formulação de Saussure mantém como
base ideológica a democracia3• Dizer que não é arbitrária é afirmar
que está aberta a todos os sentidos. Lacan, ao contrário, acentua a
determinação significante. Em ''Radiofonia" propõe que se trata
de um "lapso" cometido por Saussure4. No Seminário, livro 20: mais,
ainda diz que falar de arbitrário
Os Destinos da PHlsão

É escorregar, escorregar para outro difcurso, o do senhor, para chamá-lo


por seu nome. Arbitrário não é o que cabe aqui5. E depois: ''Dizer que
o significante é arbitrário não tem o mesmo alcance que dizer simplesmente
que não tem relação com seu efeito de significado, pois é escorregar para
outra referéncia. 6

O binário significante-significado foi substituído por Lacan


no final de seu ensino pelo binário signo-sentido7 • O primeiro tem
como efeito a significação; o segundo está vinculado ao gozo. É
necessário analisar as conseqüências teóricas que se depreendem das
duas formulações.

A teoria dos signos

A semiótica é a ciência dos signos. Muitas vezes é considerada


um sinônimo da semiologia. Existem duas escolas fundamentais e
opostas dentro do campo dos estudos do signo. Em linhas gerais
se pode dizer que a corrente anglo-americana, que segue os funda-
mentos semióticos estabelecidos pelo filósofo pragmatista Charles
Pcirce (1839-1914), se opõe à escola francesa, que deu continuidade
aos princípios semiológicos formulados por Saussure. Por isto se
costuma chamar de semiótica a escola americana, e de semiologia o
estruturalismo francês.
Charles Morris, seguidor de Peirce, em seu livro Fundamen-
tos da teoria dos signos8 indica que algo é um signo somente se um
intérprete o considera como signo de algo. Podemos ver aqui a
diferença fundamental entre a semiótica e a semiologia: naquela tudo
se funda sobre relações triádicas, enquanto para o estruturalismo as
relações fundamentais são sempre binárias.
O signo e o intérprete se implicam mutuamente. Um signo
deve ter um designa/um, mas nem todo signo se refere a um objeto
existente real. Isto inclui o caso do gesto de assinalar: alguém pode
assinalar com um propósito determinado, sem que assinale nada

112
Si/via E/ena Tendlorz.

concreto. Quando aquilo a que se alude existe realmente como algo


referido ao objeto de referência, falamos de denota/um.
A definição de signo de Peirce é: "O signo é o que repre-
senta algo para alguém". Segundo Jacques-Alain Miller9, Lacan re-
toma esta definição para contrapô-la à de signifiêante: "O significante
é o que representa algo para outro significante". Embora conserve
a estrutura da representação, o alguém não é o destinatário desta
última, mas é o sujeito veiculado pela cadeia de significantes, que
não é uma consciência de representação mas um conjunto significante.
Esta oposição entre signo e significante coloca em primeiro
plano a articulação significante. Miller indica: "Os significantes fa-
lam aos significantes e falam do sujeito. Enquanto os signos falam
às consciências" 10•
Para a semiótica existem distintos níveis de semiosis. Pode-se
estudar as relações dos signos com os objetos aos quais são aplicá-
veis: a dimensão semântica. A dimensão pragmática corresponde à
relação dos signos com os intérpretes. A relação dos signos entre si
pertence à dimensão sintática. Estas dimensões possuem termoses-
peciais para designar certas relações: "implica" para a relação de
signos entre signos; "designa" e "denota" para a relação dos signos
com os objetos; e "expressa" para a relação de signos com intér-
pretes.
Por exemplo, a palavra "mesa" implica "um móvel com uma
superfície horizontal na qual se pode colocar objetos"; designa certo
tipo de objeto (um móvel com uma superfície horizontal na qual se
pode colocar objetos); denota os objetos aos quais pode aplicar-se e
expressa seu intérprete.
A sintaxe é o ramo mais desenvolvido da semiótica. Aqui
se agrupam, dentre outros, os trabalhos de Leibniz, Boole, Frege,
Peano, Peirce, Russell, Whitehead e Carnap. Nesta perspectiva po-
demos estabelecer três tipos de signos: indéxicos (denotam um úni-

113
Os Destinos da Pulsão

co objeto); caracterizadores (denotam uma pluralidade de coisas) e


universais (têm uma implicação universal).
A semântica se ocupa da relação dos signos com seus designata,
com os objetos que designam. Aqui se situam as polêmicas em
torno da verdade. Por outro lado, encontramos a diferença entre
ícone e símbolo. O ícone mostra as características que o objeto deve ter
para ser denotado por ele - por exemplo, uma fotografia, um
mapa estelar, um diagrama químico. O símbolo é o signo caracterizador
contrário ao ícone - por exemplo, a palavra "fotografia", os no-
mes das estrelas, os elementos químicos. Um conceito é uma regra
semântica c.1ue determina o uso dos signos caracterizadores.
A pragmática é a ciência da relação dos signos com seus in-
térpretes. O interpretante de um signo é o hábito em virtude do
qual se pode dizer que o veículo sígnico designa certos tipos de
objetos ou situações. As regras pragmáticas expressam as condições
sob as quais um veículo sígnico é um signo. Isto difere radicalmente
da interpretação em psicanálise.
Lacan se contrapõe à semiótica, usando o signo de uma
maneira particular. Diz em "Radiofonia" (1969):

Se tivesse que violentar certas conotações da palavra, chamaria semiótica a


toda disciplina que parte do signo tomado como objeto, porém para destacar
que precisamente aí se faz obstáculo à apreensão do significante como tal
O signo supõe um alguém a quem faz signo de alguma coisa. É o alguém
cuja sombra ocultava a entrada na linguística. 11

Sua crítica aponta para o fato de que a semiótica toma a


linguagem como 'urna mera ferramenta de comunicação; Lacan
enfatiza a primazia do significante.
Logo acrescenta que o que denunciou da semiótica nao
impede que seja necessário refazê-la.

114
Si/via E/ena Tendlarz.

Se o significante representa um s~eito, [segundo Lacan (não um


significado)], e para outro significante [o que quer dizer: não para
outro sujeito], então como épossível, esse significante sucumbir ao signo
que de memória de lógico, representa alguma coisa para alguém? 12

Isso o leva a concluir que, como psicanalista, deve utilizar a


lógica do significante para romper a armadilha do signo, já que é da
divisão do sujeito que deve se ocupar.
Para exemplificar esta afirmação toma o clássico signo: "não
há fumaça sem fogo", para se perguntar sobre o produtor do fogo.
A resposta põe em movimento toda a cadeia significante.
Seu distanciamento crítico da lingüística o leva a formular
no Seminário 20 que ele de fato se ocupa da "lingüisteria".

Significante, significado, significação

Se a primazia do simbólico foi estabelecida por Lacan no


começo de seu ensino (1953), ''A instância da letra" (1957) é um
artigo em que esta questão está amplamente desenvolvida dada sua
proximidade com a lingüística. O ponto de partida é a formulação
de que o inconsciente está estruturado como uma linguagem. Reto-
ma a noção de signo de Saussure, cuja definição é negativa e
relacional. Cada signo obtém seu valor de acordo com a sua posi-
ção no conjunto e por sua característica de ser diferencial. Eles se
definem de modo negativo: por ser o que os outros não são. O
elemento mínimo é o fonema, que faz parte do conjunto sincrônico
do significante composto segundo as leis de uma ordem fechada. A
sincronia é quando todos os elementos pertencem a um só mo-
mento de uma mesma língua. Deve ser diferenciada da diacronia,
que reúne elementos que pertencem a estados de desenvolvimento
da mesma língua.

115
Os Destinos da Pulsão

O substrato topológico do significante é tomado como um colar


de anéis denominado "cadeia significante".
O algoritmo saussuriano, ao ser reformulado por Lacan,
sofre desde o início uma transformação. Em Saussure o significante
é colocado sob a barra e o significado acima. Lacan o inverte, mos-
trando a função ativa do significante na determinação do significa-
do. Escreve sua função: f SJ s. A barra se torna uma "barreira
resistente à significação" , onde se situa o recalque freudiano: o
13

recalcado são significantes; não, significados.


Para exemplificar, toma o desenho de duas portas debaixo
da barra, e acima dela as escritas: Cavalheiros e Damas. O significante
determina o significado da "cabine oferecida ao homem ocidental
para satisfazer suas necessidades naturais fora de casa... e que sub-
mete sua vida pública às leis da segregação urinária" 14 • O significante
(]UC introduz a diferença entre os sexos - que Lacan retoma no
apólogo dos irmãos sentados no trem que vêem respectivamente,
de acordo com sua posição na janela, os letreiros Damas e Cavalheiros
- exila os seres falantes numa "guerra ideológica" entre os sexos.
A "intenção de significação" está marcada por uma
temporalidade. O ponto de basta produz o efeito de significação
retroativo. No Seminário, livro 3: as psicoses, Lacan situa o Nome-do-
pai como ponto de basta que permite a constituição da significação
fálica. O paradigma desta formulação é o exemplo das "frases in-
terrompidas" retomada por Lacan na análise das alucinações do
Presidente Schreber, que mostra o que acontece quando falta esse
ponto de basta. A significação fica suspensa e se produz uma vaci-
lação atributiva.
A temporalidade retroativa difere da saussuriana. As duas
curvas do esquema de Saussure 15 , a do significante e a do significa-
do, não fluem; entre ambas se produz uma amarração que Lacan
denominou "ponto de estofo".

116
Si/via E/ena Tendlarz.

Lacan indica que "é na cadeia significante onde o sentido


insiste, mas nenhum dos elementos da cadeia consiste na significa-
ção da qual é capaz no próprio momento" 16 • O sentido insiste pela
ação do automatismo significante, porém não pode consistir em si
próprio já que depende da articulação da cadeia. Isso não impede
que o significado deslize sob o significante, antecipação do
deslizamento metonímico do gozo.

Metáfora e metonímia (anos 1950}

Segundo Lacan, as leis da linguagem são a metáfora e a


metonímia. Ele introduz em sua teorização estas figuras retóricas
no Seminário 3 a partir dos trabalhos de Jakobson sobre as afasias 17 •
A metáfora supõe similitude, similaridade e funciona por subs-
tituição de posição 18• Corresponde à afasia motora, na qual se produ-
zem falhas na contigüidade: os pacientes são incapazes de articular uma
frase composta que, não obstante, podem nomear corretamente.
Toma como exemplo um verso de Victor Hugo: "Sua gabe/a
não era avara nem odiosd' 19 , que se refere a Booz. Victor Hugo retoma
em seu poema "Booz adormecido" a história bíblica de Ruth.
N oemi parte com seu esposo e seus dois filhos para a terra
de Moab e ali os três morrem, deixando viúvas suas respectivas
esposas. Na religião judaica apresentada na Bíblia existe o direito
levítico: morrendo o esposo, a mulher deve se casar com o irmão
deste. Noemi diz a suas noras já não ter mais filhos para se casarem
com elas, deixando-as livres para retornarem a seus lares. Uma das
noras parte, porém Ruth decide ficar e acompanhar sua sogra. Che-
gam a Belém, onde vive Booz. Outra das leis sociais que figuram na
Bíblia é não recolher o trigo caído durante a colheita para que as viúvas
e os órfãos tenham do que se alimentar. Ruth procura esses restos
para comer. Booz a vê e diz: "Deixe-a brotar também entre as
hastes sem molestá-la, tirem vocês mesmos algumas espigas das gabelas

117
ÜJ DCJtú10J da P11/Jão

e as joguem para que ela as recolha sem dizer-lhe nada". A metáfora de


Victor Hugo faz alusão à generosidade de Booz. Finalmente ele a toma
como esposa e de sua estirpe nasce David, rei da Judéia.
Qual é a metáfora do poema? Por que não se pode consi-
derar este exemplo como uma metonímia, dada a relação de conti-
güidade que se estabelece entre gabe/a e Booz? Lacan responde no
Seminário 3: "A gabela é literalmente idêntica ao sujeito Booz por sua
similitude de posição" 211 • E também: ainda que a conotação fálica
- através do "pênis régio de Booz", diz Lacan - esteja presente
na frase, "isto não dá à gabela sua virtude metafórica, mas sua colo-
cação na posição de sujeito na proposição, no lugar de Booz. Trata-
se de um fenômeno de significantes" 21 • O resultado desta substitui-
ção é: gabela/Booz.
Lacan usa novamente este exemplo em três outras oportu-
nidades. Em ''A instância da letra" diz: "Mas uma vez que sua gabcla
assim usurpou seu lugar, Booz não poderia retomá-lo, o tênue fio
de sua pequena palavra que o une a ele constitui um obstáculo a
mais para ligar esse retorno a um título de posse que o reteria no
seio da avareza e do ódio" 12 . A significação do poema é o anúncio
da paternidade como promessa para um homem envelhecido. Diz:
Como dormia Jacob, como dormia Judith,
Booz1 os olhosfechados, estava deitado sobre a relva.
A porta do cé11 estava entreaberta
Sobre sua cabera, um sonho desceu.
E esse sonho era tal, que Bo.oz viu um carvalho
que, saindo de seu ventre chegava até o céu ªZfi/,·
Um rei cantava abaixo, acima morria um Deus.
Booz murmurava com a voz da alma:
Como pode ser que isso proceda de mim?
a cifra de meus anos passou dos oitenta....

Lacan comenta a si próprio, e em ''A metáfora do sujeito"


indica que "a substituição do sujeito por 'sua gabela' ... [faz] surgir o
único objeto do qual o tê-lo necessita a carência de sê-lo: o falo, em

118
Si/via E/ena Tend!arz

torno do qual gira todo o poema até a sua última imagem" 23 . O


"título de posse" é a palavra chave que dá a significação fálica. A
metonímia do desejo se sustenta pela ação da metáfora.
No Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais, Lacan
retoma este exemplo e acentua a significação do caráter
transbiológico da paternidade, introduzida pela tradição do destino
do povo eleito, que possui algo originalmente recalcado 24.
Outro exemplo da metáfora moderna proposta por Lacan
é: "O amor é um seixo rindo ao sol", onde indica que a metáfora
"se situa no ponto preciso em que o sentido se produz no sem-
sentido"25.

A metonímia se inscreve na ordem das relações de


contiguidade, de alinhamento, de articulação significante, de coor-
denação sintática. Por exemplo, trinta velas no lugar da palavra "bar-
co", onde se toma a parte pelo todo. A conexão entre o barco e a
vela está apenas no significante. A afasia que funciona desta maneira
é a de \Vernicke: o paciente encadeia uma série de frases de caráter
gramatical extraordinariamente desenvolvido, mas permanece sempre
à margem do que quer dizer.
A metáfora é a substituição de uma palavra por outra, a
metonímia é a conexão de uma palavra com uma outra. Ambas impli-
cam a impossibilidade da existência de um significante isolado. Re-
metem à cadeia significante em seus eixos horizontal (sintagmático)
e vertical (paradigmático). Por outro lado, Lacan, diferenciando-se
de Jakobson, equipara respectivamente a metáfora e a metonímia
aos mecanismos freudianos de condensação e deslocamento.
As fórmulas que propõe são as seguintes:

Para a metáfora éf(S'/S)S = S(+)s


Para a metonímia,! (S... S')S = S(-)s

119
Os Destinos da Pulsão

O S' designa a significância ou o termo produtivo do efeito


significante, latente na metonímina, patente na metáfora26 • Todorov
define a significância como "o aspecto do signo que lhe permite
entrar no discurso e combinar-se com outros signos"27; e depois, "é
um sem-fim de operações possíveis num campo dado da lingua"28•
No Seminário 20 Lacan o define como "o que produz efeito de
significado" 29 • É a condição de possibilidade, porém não se con-
funde com o significado.
Na primeira fórmula há atravessamento da barra. A metá-
fora se funda na substituição significante que tem como efeito uma
criação de significação. Esta estrutura de substituição é a do sinto-
ma. Na segunda, há manutenção da barra pela conexão entre os
significantes que permitem a elisão pela qual o significante instala a
falta-a-ser. Esta formulação lhe permite afirmar que o desejo é
metonímia. A metáfora se liga ao ser, a metonímia, à sua falta.
Que relação existe entre essas duas operações? Se a
metonímia é inicial, e continua funcionando, como se diferencia ver-
dadeiramente da metáfora?30•
Há certa relação entre a metáfora e a metonímia. Lacan
assinala no Seminário 3 que "a metonímia é inicial e torna possível a
metáfora. Mas a metáfora é de grau distinto da metonímia" 31 • Em
"A instância da letra" define a metáfora: ''Brota entre dois significantes
dos quais um se substituiu ao outro tomando seu lugar na cadeia
significante, enquanto o significante oculto continua presente por
sua conexão (metonímica) com o resto da cadeia"32• O inicial da
metonímia expressa a relação de contigüidade da cadeia significante
que permite que se produzam substituições metafóricas que conti-
nuarão vinculadas ao resto da cadeia.
No Seminário 3 Lacan retoma o sonho infantil de Anna Freud
como exemplo do deslizamento metonímico: "Grandes moran ..
gos, framboesas, pudins, papinhas". Todos estes objetos lhe foram

120
Si/via E/ena Tendlarz.

proibidos durante a sua dieta, e à noite sonha com eles. Mas este
deslizamento metonímico dos objetos de desejo tem como ponto
de partida seu próprio nome. A nominação produz o efeito de
"transferência de significação". No Seminário 11 Lacan acrescenta
que neste banquete está incluído o nome de seu próprio pai, Freud,
o que indica um ponto de identificação.
Em ''A metáfora do sujeito" (1961) Lacan pega um exem-
plo de metáfora no caso de outra criança. O Homem dos ratos, em
certa ocasião durante sua infância, interpela enfurecido seu pai e lhe
diz: "Seu lâmpada, guardanapo, prato... ". Nesta "metáfora radical"
(as palavras funcionam como insulto), o paciente atua estabelecen-
do uma série metonímica de objetos em sua intenção de significa-
ção agressiva. Diferentemente do exemplo anterior, estes objetos
funcionam como substituição não do sujeito (como no caso de
Booz), mas do insulto, e dão como resultado um efeito de criação
pela produção de uma nova significação.
Neste artigo retoma a estrutura que havia utilizado para es-
tabelecer a metáfora paterna como fórmula da metáfora em geral:

S/S' 1 . S' 2/x = S (1/s")

pelo que é "o efeito da substituição de um significante por


outro dentro de uma cadeia, sem que nada natural o predestine"33 •
A substituição do sujeito por sua gabela não é só posicional,
mas funciona como tal porque, como já o assinalamos, faz surgir o
falo. Produz-se assim um deslocamento da ênfase posta sobre o
falo entre o Seminário 3 e seu artigo de 1961. A metáfora paterna
introduz a significação fálica no imaginário.
Desta maneira, toda metáfora inclui um efeito metonímico,
uma vez que seu efeito não depende apenas da relação que mantém
com o significante elidido, mas com todos os outros significantes

121
Os Destinos da P11l.rão

da cadeia com os quais .está ligado por contigüidade. A metáfora


traduz a própria divisão_ do sujeito - a barra da metáfora é a
mesma que barra o sujeito e que assinala a ação do recalque - e
sob a barra o objeto causa do desejo desliza metonimicamente. O
impossível de dizer sustenta o dito.

O sintoma como metáfora

Lacan assinala no Seminário, livro 5: as formafÕes do inconsáente


que o sintoma tem a mesma estrutura que qualquer formação do
inconsciente. Consideremos o clássico exemplo freudiano do es-
quecimento do nome de Signorelli que se encontra em
"Psicopatologia da vida cotidiana"34, no capítulo "O esquecimento
dos nomes próprios", para estudar a modalidade de substituição
metafórica. Em ''A psicanálise e seu ensino" Lacan o estabelece
como paradigma do sintoma em sua relação ao significante35 •
Durante uma viagem de trem, Freud pergunta a seu com-
panheiro se visitou a catedral de Orvieto e se viu os afrescos sobre
as "últimas coisas de ... ". Diante do esquecimento do nome do pin-
tor- Signorelli- surgem outros em seu lugar: Botticelli e Boltraffio,
mas Freud sabe que são incorretos. É um esquecimento parcial, que
não chegará a se constituir plenamente como uma metáfora, já que
depois recordará o nome em questão. Este esquecimento
corresponde ao tema da conversa que se desenvolvia nesse mo-
mento: o costume dos turcos que vivem na Bósnia e na Herzegovina
de total confiança no médico e franca resignação diante do destino.
Frente ao anúncio de uma enfermidade incurável respondem: "Se-
nhor (Herr), não há mais nada a dizer. Eu sei que se o pudesse
salvar, o teria feito" 36 • Restitui assim a cadeia metonímica associativa
que precede o esquecimento e a ulterior substituição metafórica. Na
cadeia associativa Signorelli-Botticelli-Boltraffio se intercala outra
série constituída por Bosnia-Herzegovina-Herr.

122
Si/via E/ena Tendlarz

A segui:ida anedota elidida é uma conversa com seu com-


panheiro de viagem sobre a atitude dos turcos ante a sexualidade.
Estes turcos valorizam sobretudo ogozo sexual, e em caso de enfermidades
sexuais caem 11um estado de desespero que eferece um estranho contraste
com sua resig11ada atitude ante a proximidade da morte. Um dos paâentes
de meu colega havia lhe dito: Saiba, Hen; quando issojá não existir, a vida
perderá todo o valor. 37

Esta reflexão fica associada em Freud ao suicídio de um de


seus pacientes por causa de um transtorno sexual do qual não podia
curar-se. Recebeu a notícia quando estava em Trafoi, no norte da
Itália. Enlaça-se dessa forma o tema da sexualidade com a morte.
Freud propõe o seguinte esquema de seu esquecimento:

Signorelli------- Bottice//i Boltraj]io

Herlgovina Bo,snia

Herr.lwas ist da Trafoi


(S mhor,I q11c coisa é essa)

sexualidade e morte
~pensamentos recalcados

O esquecimento do Signorelli não é um esquecimento ab-


soluto, já que em seu lugar aparecem outros nomes que funcionam
como as "ruínas metonímicas do objeto do qual se trata e que está
por trás dos diversos elementos particulares em jogo, ou seja, o
Herrm 8• O "Herr" é recalcado e em seu lugar aparecem as ruínas
do objeto metonímico que é o "Bo" - Botticelli, Boltraffio - que
se compõe com outra ruína do nome recalcado "elli" - Boticelli,
Signorelli. Por sua vez, Boltraffio fica ligado a Trafoi, lugar onde

123
Os Destinos da Pulsão

aconteceu o suicídio que Freud queria esquecer. O "Signor", que


muda de idioma, é o mesmo que "Herr", mediatizado por
Herzegovina.
A substituição Signor/Herr é metafórica? Lacan indica que
a pura substituição não é uma metáfora, mas introduz um efeito
metafórico. ''A substituição é uma possibilidade de articulação do
significante, e a metáfora exerce sua função de criação de significa-
do neste lugar onde a substituição pode produzir-se"39 • O efeito
metafórico é perceptível na falha da metáfora já que nenhum
significante consegue ocupar o lugar de Signorelli.
O Herr desliza como símbolo da impotência do médico
frente à morte e no seu lugar aparecem os nomes evocados em
relação aos afrescos de Orvieto. O Herr representa a morte como
Senhor absoluto, o impossível de dizer; sobre ele se produz o efeito
do recalque, e daí o esquecimento. Signorelli permanece esquecido,
mas o recalcado é o Herr, como o impossível de dizer.
Em ''A psicanálise e seu ensino", Lacan conclui a partirdes-
se exemplo:
É que signor, com o Herr, o Mestre absoluto, é aspirado e recalcado pelo
sopro do Apocalipse - é a imagem do efresco - que se alça no inconsci-
ente de Freud ante os ecos da conversa que está sustentando( ... ) Quer dizer
que vohamos a encontrar aqui a rondição constituinte que Freud impõe ao
sintoma para que mereça esse nome no sentido analítico, é que um elemento
mnémico de uma situação anterior privilegiada volte a ser retomado para
articular a situação atual, ou sefa, que ele nela sefa empregado inconscien-
temente como elemento rignificante com o efeito de modelar a indeterminação
do vivido em uma significação tendenciosa. 40

A significação tendenciosa fica ligada à metonímia da ca-


deia associativa, permitindo o efeito de substituição metafórica.
No Seminário, livro 12:problemas cruciaispara apsicanális/1, Lacan
retoma este exemplo para indicar que Freud se desvanece como
sujeito frente ao objeto olhar que se apresenta através do afresco do

124
Si/via E/ena Tendlarz

Apocalipse, cujo sobrenome do autor coincide com a primeira síla-


ba do nome Sigmund42 • O Senhor está alí - II Signor e li - e não
encontra outros nomes para representar-se, por isso recalca Signorelli.
Aqui inclui o real que está em jogo no sintoma, por isso não é uma
pura combinatória significante.
Em "A instância da letra" encontramos um antecedente deste real
O mecanismo de duplo gatilho da metáfora é o mesmo pelo qual se determi-
na o sintoma no sentido analítico. Entre o significante enigmático do
trauma sexual e o termo que vem substitui-lo em uma cadeia significante
atual, passa a centelha, quefixa em um sintoma... a significação inacessí-
vel para o stgeito consciente na qual se pode resol11erY

O significante enigmático ~o trauma sexual permanece


como o Herr irredutível sobre o qual se constitui o recalque que dá
lugar ao sintoma. Se a barra funciona como o recalque que atua
sobre o significante, o elidido é o objeto causa de desejo, real, que
não pode ser nomeado. O que vem em seu lugar já é o retorno do
recalcado, equivalente ao próprio recalque.
Ainda que nesta época do ensino de Lacan trate-se de en-
contrar o significante recalcado que - no melhor estilo freudiano
- expressa a verdade do sujeito, posto que a verdade é incomen-
surável com o real, há algo que desliza metonímicamente nessa subs-
tituição significante. Neste artigo Lacan diz: "É a verdade do que
esse desejo foi em sua história o que o sujeito grita por meio de seu
sintoma"44 . Não está incluído o real. Mas se seguimos a mesma
orientação de Signorelli podemos ver que a verdade grita sem po-
der dizer-se toda, deixa deslizar nas entrelinhas o objeto de desejo.
O sintoma como metáfora se torna a envoltura formal onde
se aloja o gozo.
O mecanismo da recordação remete infinitamente, como
uma espécie de labirinto, a um real inacessível à recordação, e que
vai se modificando para frente e para trás pelo efeito da retroação

125
Os Destinos da Pulsão

significante. O passado é o resultado do futuro por vir que possibi-


lita as ressubjetivações sucessivas em função da articulação significante.
O limite a este caleidoscópio significante se encontra, para Lacan, no
conceito de verdade (nos anos 1950) porque "permite reordenar as
contigências passadas dando-lhes o sentido das necessidades porvir"45.
Inicialmente Lacan postula o sintoma como metáfora, mas
o faz de forma diferente nos anos 1950 e 1960. Em "Função e
campo da fala e da linguagem em psicanálise" diz que: "opera no
domínio próprio da metáfora que não é senão o sinônimo do des-
locamento simbólico, posto em jogo no sintoma"46 • Uma vez que
este artigo é anterior à publicação do estudo de Jakobson de 1957
sobre a distinção entre a metáfora e a metonímia - logo utilizado
por Lacan - , o sintoma como metáfora é o resultado do desloca-
mento simbólico. Mais adiante dirá que a metáfora corresponde ao
procedimento freudiano da condensação, e a metonímia, ao desloca-
mento. O deslocamento simbólico em jogo é o resultado da relação
metonímica que o sintoma mantém com o resto da cadeia significante.
Em relação a questão do sintoma, podemos distinguir três
dimensões enfatizadas por Lacan ao longo de seu ensino: como
mensagem ("Função e campo da fala e da linguagem em psicanáli-
se") - uma vez que se constitui no campo do Outro; como metá-
fora ("A instância da letra'') -pela substituição significante; e como
gozo (Seminário RS.I.) - que põe em jogo a vertente pulsional.
Colette Soler47 destacou a maneira como se apresentam os
três níveis do sintoma no caso Dora. Como mensagem, sua identi-
ficação com a tosse do pai traduz um "Tu és meu pai". Como
metáfora, o sintoma vem no lugar do nome do próprio sujeito.
Nesse sentido, Dora se representa pelo sintoma. O ponto de gozo
se inclui na pulsão oral em jogo no sintoma. Diferentemente de
Dora, o sintoma do Pequeno Hans produz uma substituição do pai
pelo cavalo. Nesse sentido, a fobia é um caso particular porque o
que está em jogo é a metáfora paterna.

126
Si/via E/ena Tendlarz

Em "Inibição, sintoma e angústia" Freud propõe que a an-


gústia frente ao cavalo não basta para constituir uma fobia. "O que
a converte em neurose é, única e exclusivamente, outro traço: a
substituição do pai pelo cavalo. Este deslocamento é, portanto, o
que se faz merecedor do nome de sintoma"48 • Assim, "ser mordi-
do pelo cavalo" substitui "ser castrado pelo pai".
O cavalo é um objeto com um valor significante que se
desloca com distintas significações e cristaliza o sintoma fóbico 49 •
Suas características são "morder" e "cair".
Sua escolha não é por acaso: o pai brincava de cavalinho
com Hans, o que estabelece uma relação metonímica entre ambos.
Em suas permutações o cavalo representa a mãe (fantasia de
devoração), o pai (castrar-morder), Hans (brinca de ser um cavalo e
sai à galope), e o pênis (que não pode ser tocado por ele). Logo os
"meios de transportes" se acrescentam ao significante cavalo por
um efeito de deslocamento significante: ao brincar com outros
meninos, um deles caiu; a frase "por causa (wegen) do cavalo", por
seu efeito homofônico com Wagen (carruagem), permite a ligação
metonímica. As carruagens carregadas representam a mãe grávida,
e carga e descarga convertem-se em construções míticas em torno
da pergunta: de onde vem os bebês? Lacan assinala, por outro lado,
que as carruagens associadas aos cavalos podem se separar, tornan-
do-se assim a representação da separação da mãe. Os circuitos do
cavalo e dos trens expressam uma geografia imaginária na qual a
criança pode se deslocar: é a distância simbólica necessária da mãe.
Finalmente, a "queda" associada ao cavalo está vinculada ao pai,
aos excrementos e a sua irmãzinha Ana (como representação de seu
nascimento e também de seu desejo de dela livrar-se).
O sintoma fóbico - através de seu trabalho de elaboração
significante - supre a falha simbólica da metáfora paterna (o pai
seria o agente da castração) e sustenta a separação da mãe.

127
Os Destinos da Pulsão

NOTAS

1- Do original: O síntoma como metáfora, segundo capítulo do livro Est"dios


sobre ef síntoma. Buenos Aires, Signo, 1996.
2- cf. SA USSURE, F. C,,rso de ling11ística general Buenos Aires, Los ada, 1980.
3- cf. BARTHES, R. "Saussure, le signe, la démocratie". Em: L'aventure
sémiologjq11e. Paris: Seuil, 1985.
4- L\CAN, ]. "Radiofonia" (1979). Em: Radiofonia y Televisión. Barcelona,
Anagrnma, 1978, p. 21.
5- LACAN,]. E/ Seminário, libro XX: A1í11 (1972-3). Buenos Aires: Paidós,
1981, p. 41.
6- Idem.
7- Cf. MILLER,]. A. "Sobre a fuga de sentido", Uno por Uno, n. 42, 1995.
8- MORRIS, Fundamentos da teoria dos signos (1974). Barcelona: Paidós, 1994.
9- MILLER, J.A. "Sobre la insígnia" (1986-7), Estudios Psicoanafítico, 1, 1993.
10- Idem, p. 38
11- LACAN,J. "Radiofonia". Op. cit., p. 11.
12- Idem, p. 24.
13- Li\CAN,]. "La instancia de la letra" (1957). Em: Escritos, 2, p. 477.
14- Idem, p. 479.
15- LACAN,]. Et Seminario, Libro III: Las psicosis (1955-6). Buenos Aires,
Paidós, 1984. Lacan acrescenta o esquema saussureano das duas curvas da
seguinte maneira: "No nível superior, Saussure situa a seqüência do que ele
nomeia pensamentos - sem a menor convicção, pois sua teoria consiste
precisamente em reduzir esse termo para conduzi-lo ao de significado, uma
vez que este se diferencia do significante e da coisa - e insiste sobretudo em
seu aspecto de· massa amorfa. É o que, no que nos concerne, chamaremos
provisoriamente a massa sentimental da corrente do discurso, massa confusa
em que as unidades aparecem, ilhotas, uma imagem, um objeto, um senti-
mcn to, um grito, um apelo. É um contínuo, enquanto embaixo o significante
está ali como pura cadeia do discurso, sucessão de vocábulos, na qual nada é
isolável"(p. 373).
16- LJ\CAN,J. "La instancia de la letra". Op. cit., p. 482.
17- Ver JAKOBSON, R. Lenguaje infantil)' afasia. Madrid, Ayuso, s/d.
18- LACAN, J. Ef Seminario, Libro III· las psicosis. Op. cit., p. 314.
19- Ver uma tt"adução espanhola do poema anexo ao livro de Ruth do Antiguo
Testamento, onde pode ser encontrada a história que está na base do texto de
Victor Hugo.

128
Si/via E/ena Tendlarz.

20- Idem, p. 314.


21- lbid., p. 324.
22- LACAN,J. "La instancia de la letra". Op. cit., p. 487.
23- LACAN,J. "La metáfora dei sujeito" (1961). Em: Escritos. Op. cit., p. 870.
24- LACAN, J. E/ Seminario, Libro XI: Los cuatro conceptos fundamentales dei
psicoanálisis (1964). Buenos Aires, Paidós, 1993, p. 255-6.
25- LACAN,J. "La instancia de la letra". Op. cit., p. 488.
26- Idem, p. 496, nota 27
27- DUCROT, O. e TODOROV, T. Diccionario enciclopédico de las ciencias dei
lengmye (1972). Buenos Aires, Siglo Veintiuno, 1983, p. 127.
28- Idem, p. 399.
29- LACAN, J. E/ Seminario, Libro XX. Op. cit., p. 28.
30- cf. GRIGG, R. ''.Jakobson et Lacan, sur métaphore et métonymie", Ornicar?,
n. 35, 1985-6.
31- LACAN,J. E! Seminario, Libro III. Op. cit., p. 327.
32- Idem, p. 487.
33- LACAN, J. "La metáfora del sujeito". Op. cit., p. 868.
34- FREUD, S. "Psicopatología de la vida cotidiana" (1901). Em: Obras com-
pletas, vol. VI. Buenos Aires, Amorrortu, 1976.
35- LACAN, J. "El psicoanálisis y su enseiianza" (1957). Em: Escritos II. Op.
cit., 428-9.
36- FREUD, S. "Psicopatologia de la vida cotidiana". Op. cit., p. 11.
37- Idem.
38- LACAN, J. Seminario, Libro V Formaciones dei inconsciente (1957-8). Inédito,
aula de 13 de novembro de 1957.
39- Idem.
40- LACAN, J. "EI psicoanálisis y su enseiianza". Op. cit., p. 429.
41- LACAN, J. S eminario, Libro XII: Problemas cruciales para el psicoaná!isis. Iné-
dito, aula de 16 de dezembro de 1964.
42- Ver a análise de Y. DEPELSENAIRE, "Che cosa ha visto Freud a
Orvieto?", La psicoana!isi 9, 1991.
43- LACAN, J. "La instancia de la letra". Op. cit., p. 498.
44- Idem, p.499
45- LACAN, J. "Función y campo". Op. cit, p. 246.
46- Idem, p. 250.
47 SOLER, C. "El síntoma", Descarles, n. 14, 1996.
48- FREUD, S. "Inhibición, síntoma y angustia" (1925). Em: Obras completas,
vol. XX. Op. cit., p. 99.

129
Os Destinos da Pulsão

49- c( FREUD, S. ''.Análisis de la fobia de un nino de cinco anos" (1909). Em:


Obras completas, vol. X. Op. cit.; e J. LACAN, E/ Seminario, I.ibro IV: La;
reladones de objeto (1956-7). Buenos Aires, Paidós, 1994.

Tradução do espanhol: Sílvia Mello de Freitas.


Revisão da tradução: Elisa Monteiro.
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE
O AMOR, A PAIXÃO E O AFETO

Marcus André Vieira


Membro da Escola Européia de Psicanálise. Membro da Escola Brasileira
de Psicanálise.

"O amor é apaixonante" 1• Com esta fórmula Lacan em-


preende em 1974 um deslocamento. q amor passa de pr,edicado .a
sujeito. Ele não é mais a paixão, ele a desp~;tà. Gostaria de exami-
;;;_;---à relação do amor com a paixão, por um lado, e com o afeto,
por outro, para demonstrar que esta fórmula traduz, um ano após
o Seminário, livro 20: mais, ainda, ..a..gta..Q<:/:C:!,,~evolução,.}C:!C?.i:i<:~, J:l.~S~e
_ ocorrida com relação ao amor. Este pass~~~ s~~'tomado menos
pel;~ua verten.te'Clê.fà~d~~ção imaginária e mais pelo que introduz
de um certo real. Acredito que poderemos, a partir daí, reunir ele-
mentos necessários para situar a pulsão com relação ao amor, o que
não é explicitamente realizado por Lacan n~ste Seminário, e que nos
permitirá interrogar a sublimação.
Antes de entrarmos na questão, situemos o problema ao
qual a abordagem do amor pelo prisma do real vem responder.
Tf~ta~.s.r de uma dific:ul~ade ~staurada a partir da relativa dissociação,
empree~?tdà·e~;.!:t~s!:,_.~n!s~.i!.YLq,~-,~·~~~al e a .vida .amo.ios.~~. gµe
etlW!çia~~-~ -~~ st!guinte maneira. A partir da. cliv.,agem -do ah~tQ.,f!-!1_
~t9._~tj..Q,_t! _o_bjtte> d_e amor - impasse do homem perdido
········· ····'•i'·"·· ..., ·,.. . .
Os Destinos da Pulsão

~~E!ostituta ~-~-~anta, não conseguindo desejar a mulher que


~wh~r_~c::j~=·~j_uesião·seco1oca: estâcTivage;
não implica dissociar o amor do circuiroâa-pul-sio-e-ào.-objeto? A
independência do amor da esfera pulsional é algo dificilmente sus-
tentável, mas temos aí ~·-qt;na.~parente
....
oposição entre o amor, sem-
P.t~·--totalizante,
......_____ _
e a pulsão, sempre parcial.
Freud respondeu· a esta questão com o narcisismo. Em "Para
introduzir o narcisismo" ele situa, primeiramente, que ama-se a si
nos outros e, em seguida, que o eu é um objeto como os outros -
por isto ele está também implicado no circuito pulsional. Lacan
situou-o detalhadamente a partir de seus desenvolvimentos sobre o
eu como imagem especular de unidade. Mas é justamente graças à
leitura de Lacan que percebemos com clareza que o amor, no nível
do narcisi~mo, não é a swpféi;: fàsdn~ç:io imaginária, pois est~ ~ii.~ é
suficiente para dar conta daquilo que no amor visa um mais-além
do espelho.
Desde o Seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud, Lacan
teoriza este "mais-além", cunhando a expressão paixão do ser para
situá-lo. Neste universo fascinante do amor, Lacan insiste na subor-
dinação da captação imaginária, da Verliebheit, ao saber, afirmando
que a paixão de Werther, mesmo se seu desencadeamento é estrei-
tamente associado à visão de Lotte com uma criança nos braços,
sustenta-se em uma trama significante. Os efeitos desta paixão rece-
bem suas coordenadas desta trama e ganham sentido a partir dela
(''Aprendam a distinguir o amor como paixão imaginária do dom
ativo no qual ele se constitui no plano simbólico"3).

Com a teorizaç~..:.~~~--~~.~?-~?•...ªJ?..~rtir do Seminá-


rio, livro 7: a ética da psicanálise, ..e._çR~.-~~!2~~~~- ~a e~~~?, a pariii· ····'"
do Seminário, livro 11: os quatro conceitosfundamentais da psicanálise, Lacan
· constitui os instrumentos necessários para realizar o aparelhamento
--~~-. . . •. .. . ~ •·.e.. .,-,.,...._...., ....

·da-,~·ãõ.iéa1;··gue·seraTormalizado de maneira conclusiva em


Mais, ainJZEn.trê'fanto, o termo pulsão encontra-se praticamente

132
Marcus André Vieira

ausente deste seminário e é preciso um esforço suplementar para


situar a sublimação, que faz par com a pulsão, neste contexto. Como
retomar a teorização da sublimação empreendida no Seminário 7
assim como a pulsão tal como Lacan a teoriza no Seminário 11 a
partir de suas considerações sobre o amor em Mais, ainda?
Torna-se evidente que só poderemos, dentro dos limites
deste trabalho, interrogar alguns pontos desta vasta questão, vis-
lumbrando algumas de suas vias de acesso, que são, por si só, de
uma abordagem difícil devido à complexidade e à magnitude do
tema. Utilizaremos então uma chave de leitura: _a_oposição paix~.?{
versus afet~~.~_.,!1!;_ºr,º ta1.1to,para Lacan quanto f)ar~ ~~:~d, é·.
uma paixão e não um afeto. Retomemos então a paixão amórôsa
_n_o_q_u_e_el,..a_s_e_dí.,.s""'t1.--rlgliê'"~..,.afeto para esboçar, dentro dos limites
impostos por esta chave, alguns elementos com relação aos pontos
de contato e de separação entre o amor, a pulsão, o gozo e a subli-
mação.

O afeto, pulsão e gozo

Podemos afirmar, como primeira aproximação, que o afe-


to é associado por Freud à pulsão e podemos mesmo supor que o
afeto para o Freud dos primeiros escritos seria o nome do real, do
trauma de uma energia não descarregável, do qual se destacará mais
tarde a pulsão. Deixemos de lado, entretanto, esta primeira concep-
ção do afeto em Freud e examinemos dois momentos nos quais
freud define o a,feto com relação à pulsão. O primeiro consiste em
seus té~Í:os metapsicológicos de 1915. Freud nos fornece aí a defi-
nição de afeto mais difundida na literatura psicanalítica, encontrada,
por exemplo, no dicionário de Laplanche e Pontalis\.O afetQ. é
a,pr~endido de um ponto de vts~ª e_cqnômico, definindo-se como o
carit~t;~bj~tivo d~- d~~~~fii. . .
~~ 1111!ª q~!ntidad~· d~t~r'minãcla·ae
energia pulsionaC~~;;;:~Í~da. Ele ficará as~~dãêlõ~à riõçãô "'dê~~âê's~
-----· .....

133
Os Destinos da Pulsão

carga, de movimento e de energia acumulada, sendo tido como um


fenômeno da esfera psicofisiológica, que nasce e se realiza no real
do corpo tendo a consciência como centro.
O segundo momento é "Inibição, sintoma e angústia". Neste
/texto, a angústia como afeto básico não terá mais a noção de des-
carga como traço constitutivo fundamental, mas sim a de sinal do
eu com relação a um perigo interno que se liga a uma perda associ-
ada à castração. A angústia-sinal é agora a recriação de uma situação
traumática mítica, definida como afluxo de "estímulos" e de idéias
insuportavelmente desagradáveis porque não podem ser "domina-
das psiquicamente" 5• A relação do afeto com a pulsão deixa de ser
decisiva.:. O fato que ~~~dõls pó'ssam ser dM~rltõs 'COimrmetáfui:.as
energéticas passa para um segundtt pl:Mt&-pois·· o- que interessa é a
~ 2~~;;;;:· f~mo,, ~:-criaçao êio "ttauma 'lündameh faf;°'"iiislãürã~d~ a
. castração como c~diçã~ ~turãtp:tr:r tJTã'.tã-ser'"{pm'l!-tre):-·-----·
.••~.,.•H..................... •"~.,...,,...·,.""'!-,,,i,>.:!'"., ·• :·•·~1''1""~~--• ..,.-.,.-.........~ .. ~ · - • • • ... ..

Resumindo as duas concepções de afeto em suas relações


com a pulsão, temos então: 1) Um processo psicofisiológico de
descarga, um extra energético que tem sua origem no corpo, conce-
bido como um corpo real, biológico, de onde se origina a pulsão.
2) Uma reação do sujeito à castração, um processo simbólico exte-
rior ao campo biológico-corporal, que só se inscreve em uma cau-
salidade fisiológica às custas de modificações redutoras, pois defi-
ne-se aqui a partir da relação do sujeito com uma perda.
O percurso de Freud indica que a concepção explícita em
(1) deve ser lida a partir de (2). Ao procedermos deste modo des-
vela-se a noção de um extra energético que é também uma perda,
ou que está articulado a uma perda fundamental.~2.-2..~
~ ã o ser ~om~-~=~~~dos _co~ .r~l-~~-~~,.!;st: C;~S~~o
~ como vimos;· tt:16' ~fl:i nenhuma .sonotaçao ., fis10!ggi91 _ou
·'eQe~?ca e que as~~i!:,.~.~ ~. ~Jun~ntal. Um dos esforços
maioresde~oi traduziN:aoceima]mente esta noção de"~
cesso de uma falta" através do conceito de gozo. Este traduz o que
,·,· .. ,. . . . . ...,..._,..,..P"_ ................. ~,·-· ·.·---..ri_, ...__., .• .,....,~..----····
.. ,,. ,, ... '. ,.. .. .~

134
Mam,s André Vieira

da negatividade fundamental do homem aparece (porque coberto


pelo simbólico) como um excesso, um "em demasia". Ele di~ti~~.
~e-s~. do e:azer, e sua definição só pode ser negativa: ele é aquilo_
~;não ser:;~·p'ãr~~O.i:'.:~.SY.~:~i~::fe'!nêxi;f~Oõã'nõ'müncÍod~
significante, pois foi expulso quando da 'instâura~õ"do··sifl."'.rb'ê1iêõ'.
~ J _ !,.·,,. \, ,
_ _ . . . .... "!",1 .............. ,1'fl~.i,- . . . . . . . . .- . . . . ·······--.-··~;... , •. ,. .• ,',•,·,-,1-~ ·"'' ~ .-., ........... 'l>';t'•,ftí~.

lese situa antes da ins"taúração do simbólico, que constitui a distin-


ção entre corpo e alma
Em (1) inscreve-se a concepção platônica, evidente em São
Tomás de Aquino assim como em Descartes. Ela comporta um
conflito entre corpo e alma, ou seja, entre um sujeito não dividido
(que constituirá o sujeito da ciência) e seu corpo - fonte de todas
as paixões - que deve ser colocado sob o domínio da razão. Para
Freud não há uma oposição entre afetos e razão, ou entre pulsão e
razão. A indicação freudiana de que a pulsão está entre somático e
psíquico sugere que ela se situa além da oposição corpo verms alma
e não em uma posição híbrida no interior desta.

O gozo e a ética do Bem-dizer

Compreende-se então a aparente contradição do texto


freudiano à medida que se observa que Freud, movendo-se dentro
de um paradigma "cartesiano", claramente reivindicado em (1) -
em sua Metapsicologia-, tentava dar conta de uma realidade clínica
que explora os próprios limites deste paradigma. Desta forma, ele
o transcende ao menos em parte, ao instituir a noção de uma situa-
ção traumática mítica na origem da angústia e ao mesmo tempo na
origem do sujeito. Es.t~...1!~~.matismo fundamental constitui-se, se-
gundo Lacan, C.,Q.D!.~....i!?:~!~ur;·çio 'da orde'm···s·ignificante,
alt:reseondendo ao _Il1~ment~··q~~'precede'fogícai:ne~t~ a entrada
•,a, .._._-.#f··fl" ""··"'··=··~,--. ,· ,.. ,.. , ..••• ,..
,J-.Y.•..:r-........ , .............. ,. , ..,.,.,._..

,.Q.Q &yjeito no simbólico~~tia_i:;erá então, dentre todos, o afétü


,l?Jlroot:di~l, eor ser3~e!~"qt1~-~~~~~:~i~~~:~~~~~~;,.~rsfçã'Oe:Oeiini~ ..
paro, de ~º~.º·

135
Os Destinos da Pulsão

Entramos então em uma área bastante semelhante à da an-


gústia heideggeriana como manifestação da verdade do ser-para-a-
morte. Mas, para Lacan, o que se coloca diante da angústia, descrito
por Heidegger7 como o ser-no-mundo como tal e que deve ser
considerado como um ente não intrínseco ao mundo, será nomea-
do: trata-se do objeto a. A angústia, deste modo, revive o horror
do i:.~.i!l. §inalizan4.o a aprciximá~ô-aê''~ntêtêrriêfuh>
Ü~~~~ ~~~-;··É~lt~, cc'.impletado por êstê'"obJ~t~. . lst~ ~clttre-
~-dessubje.ti,y~fc;. ~";;~stactÓra~jãqUe~ra·o desejo ·du_:Qytrõ:~:"·
~~~Y.a..!t.SJJjcJ.t~il:··otõutrÕ's'âfêfos express~~ ·;;diferentes
modos dessa posição do sujeito no campo do Outro, entretanto o
sujeito será nestes casos sempre menos evanescente e o Real menos
presente. A noção da angústia como ação do ego, tão realçada pela
escola americana, é relida assim como efeito no eu da relação do
sujeito ao significante. É este efeito que constituirá o afeto.
Temos então que as diferentes formas deste retorno, deste
gozo, se farão na dependência das diferentes faces do Outro e do
objeto. Com estas três noções -gozo, Outro e objeto a-pode-
mos tentar distinguir - um pouco esquematicamente é verdade,
pois estamos nos referindo ao ponto de fundação do sujeito a par-
tir da separação entre o Outro e o objeto - o campo pulsional, a
esfera do amor e o afeto.
Falta-nos entretanto uma última noção fundamental, a éti-
ca. Há em Freud uma exigência ética, situada por Lacan, que se
transporta, assim como em Spinoza, para a esfera dos sentimentos.
Implica-se, desta forma, o sujeito naquilo que ele experimenta como
vindo (aparentemente) do corpo. Podemos melhor situar esta ética
cotejando afeto e pulsão. O afeto compreende-se a partir de uma
certa ética, a pulsão demonstra aquilo que funda a obrigação desta
ética. É porque somos seres sexuados que devemos nos colocar
com relação a isso (e ao isso) e tentar, com o significante, dar conta
do impossível da sexualidade humana. A existência da pulsão de-
monstra que é no real do sexual que se funda a tentativa do bem

136
Marcus André Vieira

dizer, obrigatória para o ser humano. É porque a sexualidade humana


é falha que se introduz o simbólico, mas (invertendo-se os fatores da
equação) o simbólico não é completo - ele é falho - porque o real
do sexual ex-siste, insistindo exterior ao campo da linguagem.
Para o sujeito a-sexuado, tentar dizer o real do ser, integran-
do o impossível ao saber, é buscar reunir as pulsões parciais num
feixe mais ou menos organizado. Isto só é conseguido a partir do
simbólico e da objetivação da pulsão nos orifícios do corpo, per-
dendo-se ao mesmo tempo a possibilidade de se recuperar uma
pulsão una e totalizante equivalente ao instinto. Paga-se assim o pre-
ço de se ter perdido o real do sexo, sendo obrigado a tentar eterna-
mente preencher este furo, sem perceber que é esta operação que o
constitui como furo. Das possíveis variações deste procedimento
surgem os diversos afetos.
Podemos situar agora, ainda que toscamente, a ética do Bem-
dizer, pois compreendemos que ela exige que a condição falha do
homem seja a medida de sua ação. Em outras palavras, deve-se
inscrever o Real a partir do Simbólico, numa tentativa (e apenas
tentativa) de dizer o impossível, dizer a falta essencial, de circunscrevê-
la sem velá-la. Trata-se, por exemplo, de "harmonizar o significante
e o gozo e colocá-los em ressonância" 9 • É a partir desta exortação
que compreendemos a concepção lacaniana da tristeza como um
erro moral, um pecado. O pecado corresponde a afastar o real,
buscando tirá-lo da partida. Paga-se com a tristeza o preço de se
inscrever no Outro a partir de uma ilusão de onipotência do saber,
onde supõe-se o apagamento da carência original1°.

O amor e o pecado

Vejamos agora como o amor insere-se nesta ética. Formu-


lemos inicialmente esta exortação ética da psicanálise de outra ma-
neira. Circunscrever esta impossibilidade do significante em dizer o

137
Os Destinos da P11/.rão

real implica abrir-se à contingência radical deste último, sempre fora


da previsibilidade das determinações simbólicas. Isto equivale a li-
bertar-se dos grilhões da imaginarização do saber e a deslocar-se
no regime do encontro, do contingente. A partir destas balizas per-
cebemos que o amor trilha o caminho do pecado, pois, como mito
platônico do Um, ele visa negar a falta estrutural através do reen-
contro definitivo da cara metade.
Até aqui nenhuma novidade. Entretanto, a partir de Mais,
ainda, Lacan indica que o amor não é somente fuga do real, situan-
do-o da seguinte maneira: "o deslocamento da negação do cessa de
não se escrever ao não cessa de se escrever, da contingência à necessidade, é
o ponto de suspensão ao qual se vincula todo amor" 11 •
Uma oscilação análoga ao balanço entre a ética da psicaná-
lise e a pulsão será aqui instituída. O amor é a miragem de uma
- .... ·. ·-.,.··;· ........ ,.,.:.,.,,.. .•.-t.,:t·.-~ ~~~

rc.lação sex~.~!J?,.~~!íve~-~~t~?e~~ci~a a partir de um enêôritr~..~?º.U.n-


g~p~c. Ele tenta faz~deste corÍ'tingéiitê.'tim"ii.eêéss'ãriõ:·Não é nada
além de um sonho acreditar que neste encontro exista a mínima
permanência, mas neste sonho funda-se o amor que, por sua vez,
garante ao sonho sua perenidade por criar condições propícias ao
encontro 12•

Podemos distinguir então paixões do ser e afeto porque


e~J~,últim~ç_sar de tambêm ~~;~~Tum·c:eifo gozo7'na.o. e'.----.

-
~-~
• • 'IHJt•o,•'l'"'I' .. • .....l""l'!l""'., ... ~,.,e,.·"<~~~..~ - - ...... ~:1,iT. • ,. ·•.. .. . . . •.. - ~ - - - - · -

encontro. As passagens de Lacan quanto à 'ti:isfozã"ê a cólera são


bastante claras a este respeito 13• O amor funda o mito do Um po!"
~duzir, ainda que acidentalme~·te, ~~ encontro. E o que vem Tri"éli-
car Lacan quanctõãm'mãqueO~ámÕr ~''á:paíxõnante. Ele é CJ!.Pta,íie, -
ima~ri~ lpJ-S é ~tambêm'"reâliz'ãçã~ ·p~f~;;,fiâ["Oãfeto:-por sua vez,
1

- é apenas pecado p~;;f;i~;.iTar-se a um Lf~-tro consistente. No afeto


há apenas evitação do real, pois ele articula-se menos ao corpo do
Outro, e ao objeto que lhe falta, que ao sentimento de um Outro
tido como capaz de tudo situar.

138
Marc11s André Vieira

A tristeza, como afeto paradigmático, é pecado porque afasta


o encontro. Para o deprimido, nenhum sentido e nenhum objeto pare-
cem compensar a certeza imaginária da falta de sentido na vida, mas se
nada me satisfaz é porque já me satisfiz com um sentido maior que
completa o Outro: a vida não tem sentido. A tristeza vem ao corpo
como efeito deste des-encontro e o mesmo é válido para a alegria.
Nesta, a vida é cheia de sentido e o Outro tem todas as respostas.
Resumindo: o pecado, "original como todos sabem" 1\ for-
mula-se como 'o Outro é Um'. O amor está no ponto do narcisismo
no qual 'o Outro é Um' enuncia-se como 'o Outro é eu' (onde este
eu é um objeto). Desta forma, levando à copulação, o amor dá
existência ao pecado porque é também encontro com o corpo do
Outro. Ele funda a miragem do Um justamente por causa do gozo
aí obtido. É o que justifica a fórmula 'há Um' de Lacan. Ele não se
sobrepõe inteiramente ao pecado porque ele é também realização
pulsional. O amor é a realização do mito de Eros e por isso o amor
é agente e não paciente, ele é apaixonante e não só paixão. A tristeza,
também inscrita no campo do pecado, desobjetaliza o gozo, esco-
rado no sentido, o que afasta o corpo do Outro ao invés de tocá-lo.

A paixão, o afeto e sublimação

Podemos retomar estas considerações a partir das indica-


ções de Lacan neste Seminário quanto ao sujeito suposto saber. f,.
-J?..~~~o situa-se ~? ~ª?,lP?~~wn-~!? ,1~ -~~~~!PR,:. .
~.~ -~~~-~;!P,,9,~~t~?
__Ou_i~~ü-'"'amc; a,qpf;+~~al sU:ponho um saber' 15 . Obtém-se
então um certo gozo e não um ;;i;~;:·~ q~~-~t~~; a busca de um
saber capaz de dizer este gozo. A partir de I busca-se Se encontra-se
R. O afeto situa-se no mesmo campo mas repousa sobre uma arti-
culação distinta. 'Eu sou afetado quando obtenho um saber', é o
que poderíamos contrapor, no nível do afeto, à máxima lacaniana
do amor, citada acima.1!~:1:~:.9.1.;!e.~~~~ é entendi~o como algo
-~--~_.....,.·

139
Os Destinos da Pulsão

que vem ao corpo afetado pelo significante, podemos dizer que a partir de
I encontra-se S e oculta-se R na agitação de um corpo afetado.
Esta distinção fundamental aparece de maneira conclusiva
com relação ao objeto a. O amor e o ódio estão no ponto inaugu-
ral, imediatamente após a angústia, no qual o objeto se materializa.
Amoródio é o nome do ponto no qual o objeto se constitui como
-dcs.uc.iiª2.Pª€§rêuillt~i:~~\k~!~~ªl;e;;-10s u~ª snurca- -·>::>
0,o ue cinde a vida sexual, de um lado, e a vida a~~w~,.ge.":'ó1i.b:o.
Por um lado, o . e'6'nsisi:ír·erri"" frâ~i:';;s do corpo do
Outro que se unificarão, por vezes, na miragem do Um. Um outro
corpo, um outro sexo, uma cara metade. Por outro lado, o objeto
vai se descorporificar e se simbolizar progressivamente, fazendo
surgir os demais afetos na dependência da relação do sujeito com
este Outro do sentido. O mito do Um destaca-se neste nível, ao
menos parcialmente, da satisfação pulsional e toma as formas afetivas
disponíveis no imaginário de uma cultura 16•
Na angústia o objeto aparece como real. Nas paixões do
ser, temos a como imaginário, miragem de Um, sendo que este Um
pode aparecer como 'Um (outro) corpo' (imaginarização do real),
onde a posse ou a falta vão inscrever-se como amor ou ódio ou,
como no caso dos afetos, como 'Um sentido', onde a posse ou a
falta vão aparecer de modo dessexualizado como alegria ('a vida
faz sentido') ou tristeza ('a vida não tem sentido') 17 •
Para concluir, podemos nos perguntar se não poderíamos
tentar situar a sublimação a partir destas colocações. Na via da pai-
xão e do afeto dilui-se o objeto seja no corpo do Outro, seja nos
sentidos que ele assume, afastando-se da (in)satisfação pulsional
objetalizada. Com a sublimação, descolamo-nos também do obje-
to como objeto de satisfação, mas seguimos uma outra via, pois ele
é tomado, de saída, pelo seu viés não especular. Enquanto a paixão
pode ser situada a partir da cobertura de a por uma roupagem
imaginária, i(a), a sublimação passa por sua materialização através

140
Marcus André Vieira

de sua "construção", onde a vem a ser ao mesmo tempo um obje-


to e uma obra. Esta outra via, apesar de partir do mesmo ponto,
vai constituir um caminho de paixões desencarnadas pela criação
do objeto a partir do nada, já que ele é, segundo esta via, nada.
Aproximamo-nos assim das colocações de Lacan no Seminário 7: a
ética da psicanálise a partir de Heidegger. Concebe-se a sublimação
como uma maneira de fazer o objeto passar do extra-mundo ao
mundo dos existentes. O ato do artesão que, ao criar o vaso, cria o
vazio cm seu interior, aproxima-se do que faz a sublimação e apon-
ta para a satisfação (dessexualizada) aí obtida por percorrer, materi-
alizando, os contornos do objeto.
Vemos então que o percurso da análise não conduz à subli-
mação, como tantos já insinuaram. A análise se desenvolve na pas-
sagem da crença inicial de 'o que falta é algo de um saber' para a
experiência de 'o que falta está fora do significante' (a). Neste percurso,
a paixão, pilar da transferência, entra como esta busca de saber enquan-
to o afeto sinaliza os ganhos de saber do percurso. O caminho da
análise conduz a deixar o plano onde este saber se revela eternamente
impotente e a percorrer os caminhos de sua impossibilidade de dizer
o real. Deste modo a análise, ao invés de materializar o objeto como
faz a sublimação, traça seus contornos sem dar-lhe existência, con-
duzindo a efeitos singulares na esfera afetiva: um novo amor, feito
de contingência e de finitude no nível das paixões; entusiasmo e gaio
saber no rúvel dos afetos; o primeiro associado ao vislumbre da incon-
sistência dos grilhões do ser, e o segundo como um saber leve, que faz
destes grilhões amarras para articular gozo e deciframento, lugar de
onde o analista persiste causando desejo.

NOTAS

1- cf. L\CAN,J. Le Séminaire, Livre XXI: Les noms dupes errent (1973-4). Inédi-
to, aula de 12 de março del 974.

141
Os Destinos da Pulsão

2- Em um artigo fundamental como "Pulsões e destinos das pulsões" (1915),


por exemplo, as questões do amor e da sexualidade recebem ttatunentos diferencia-
dos, sendo teorizadas separadamente (p. 154). CE também FREUD, S. "Contribuiçoes
à psicologia do amor''. Em: Obms completas, vol XI. Rio de Janeiro, Imago, 1980.
3- LACAN, J. L Séminaire, Livre L· L.r écrits techniques de Freud (1953-4). Paris,
Seuil, 1975, p. 304.
4- Cf p. ex. o verbete afeto em LAPL-\NCHE,J. & PONTALIS,J.-B. Vocabu-
lá1io de p.ricanáli.re. São Paulo, Martins Fontes, 1986.
5- FREUD, S. "Inibição, sintoma e angústia". Em: Obra.r completas, vol. XX.
Op. cit., p. 161.
6- LACAN, J. L Séminaire, Livre XX: Encore. Paris, Seuil, 1975, p. 10.
7- HEIDEGGER, M. Etre et temp.r. Paris, Gallimard, 1976, p. 186 e p. 235.
8- Ilustremos este ponto através do enunciado infantil proposto por Lacan:
"É impossível que um ser amado não tenha falo. Existem seres vivos, ma-
mãe por exemplo, que não têm falo, então não existem seres vivos - donde
a angústia". Lacan, J. L Séminaire, Livre X: UAngoisse (1963-4). Inédito, aula
de 19 de dezembro de 1962.
9- MILLER, J.-A., ''.A propos des affects dans l"expérience analytique", Actes
de l'ECF, vol. X, 1986.
10- LACAN,J. Télévi.rion. Paris, Seuil, 1974, p. 39.
11- LACAN, J. L Séminaire, Livre XX: Encore. Op. cit., p. 132.
12- Aliás, se este sonho dura, temos a angústia. O que explica por que estas
paixões do ser são tão facilmente mutáveis em angústia.
13- Cf. p. ex. LACAN, J. L Séminaire, 1.im v'II: L'éthique de la prychana/yse.
(1959-60). Paris, Seuil, 1986, p. 123
14- LACAN, ]. Télévision. Op. cit., p. 39.
15- L-\CAN, J. L Séminaire, Livre XX: Encore. Op. cit., p. 64.
16- Trataremos aqui apenas da tristeza e da alegria, mas outros afetos poderi-
am ser inseridos neste campo. Para citar apenas os afetos trabalhados por
Lacan poderíamos mencionar entre outros: cólera, vergonha, covardia, medo,
pena, raiva. Cf. quanto a este ponto VIEIRA, M. A. "L"éthique de la passion".
Tese de doutorado do Departamento de Psicanálise de Paris VIII, 1996.
17- Não poderemos abordar aqui a paixão da ignorância, mas a questão se
coloca: seriam os afetos possibilidades de inserção na via da paixão da igno-
rância ou estes se constituem em um registro à parte? Cf. quanto a este ponto
VIEIRA, M. A. "La pasión de l"ignorancia, entre el saber y el sentido", Uno
por U110, n. 44, 1997.

142
Sintoma e sublimação

parte dois
SUBLIMAÇÃO - S1NTOMA? 1

Joseph Attié
Membro da École de la Cause Freudienne. Membro da Escola Brasileira de
Psicanálise

Sublimação, sintoma, termos que poderiam parecer hetero-


gêneos. De fato, não se vê à primeira vista a relação que pode haver
entre um e outro. Ainda mais que, tomados isoladamente, podem
inclusive parecer antitéticos.

O sintoma: o que não vai bem

Assim pode-se evocar o sintoma no campo da medicina,


da psiquiatria, da neurologia, da sociologia, da economia, da arte ou
da ciência. Mas, qualquer que seja o campo ao qual ele é referido,
trata-se sempre de um sinal, de um indício de que alguma coisa não
vai bem: há sintoma.
Pode ocorrer que o sintoma fale alto e forte. Pode também
ocorrer que ele seja discreto, permanecendo inaudível e invisív~l
para o sujeito do sintoma, assim como para todo mundo. Saber
balizá-lo é estar atento ao que se manifesta, ao que se revela de
modo mais ou menos ·subterrâneo.
Se lhes digo "há um sintoma na literatura francesa", alguns
de vocês ficarão sem dúvida surpresos, simplesmente por não se
terem dado conta disso, e pelas melhores razões. Não são especialis-
tas: nem todos vocês são especialistas em literatura francesa, assim
como nem todos são médicos para estabelecer tal 0u tal diagnóstico.
Os Destinos da Pulsão

A sublimação: o que vai bem

Em oposição ao sentido muito amplo do termo sintoma,


que acabo de dar, o de sublimação tem um sentido aparentemente
mais restrito. .t\ntes que Freud fizesse da sublimação um proceSS(?·_
muito particular, esse termo tinha três conotações: alquíip.i_ca,
química e mor~!. No sentido ~!químico, sublimação consiste_ n,a -
transformação do vil metal cm ouro puro. É o sonho secular do
ser humano tornado metáfora_ Em Baudelaire, quando diz a
Deus: "Tu me deste tua lama, e eu dela fiz ouro". É a mesma
metáfora alquímica. ~-?. _sentido químico, é um termo ti_cp.ico
descrevendo a passagem de um estado sólido para um estflc,ls:>
gasoso, sem passar por um estado líquido. É um processo de
.purificação, provavelmente ainda em uso. A essas duas acepções
do termo, deve-se acrescentar aquela que, parece-me, data do
século XIX, mas que se fundou na mais remota antiguidade. No
sentido mor~l, a sublimação é uma purificação da alm~. Pode-se
facilmente encontrar seu fundamento em Aristóteles: a alma pu-
rifica-se através do espetáculo do herói trágico. A tragédia, atra-
vés do temor e da piedade, impele o ser humano, o espectador, a
erguer-se, a elevar sua alma. Há nisso alguma coisa da ordem da
sublimação.
Quaisquer que sejam essas acepções, pode-se fazer esse ter-
mo de sublimação dizer o que se quiser na linguagem usuatR~s_t~,.
porém, que a sublimação não conota alguma coisa que não vai bem,
alguma coisa que claudica. _É exatamente o oposto. Ali onde há su- -
blimação, tendemos a dizer que há algo que vai, que vai belll, e _::i.tt.
muito bem. A sublimação representa um importante sinal de_su~es~.
so. Ser capaz de sublimar: isso faz parte dos ideais de uma socieda~
de. Ser escritor ou pintor... é tanto mais um ideal por não ser dado a
todo mundo. Assim, sintoma e sublimação nessa ótica são inteira-
mente antinômicos.
~"'-'"""'-
~ ...............,,. _ _ _ _ , ____ <>, ·-,-...- .. '.
·••···· ·v..,._, '••.
"\. ..... ~~. - ,..-,·

i,/'

146
Joseph Attié

A ruptura operada por Freud

Freud introduz uma verdadeira ruptura no que concerne às


primeiras acepções do termo sublimafàO. Essa ruptura, que bem se
pode dizer epistemológica - ou seja, alguma coisa que opera de
modo muito diferente na ordem do saber e da ciência-, mostra-
se patente para todo leitor de Freud. Ele a operou do mesmo modo
com relação ao termo sintoma. A partir de Freud, e para nós, o
sintoma recebe uma especificação própria e torna-se "o sintoma
analítico", não podendo ser comparado a nenhum outro. Defina-
mos, portanto, o que é o sintoma analítico, para podermos estatuir
no que ele se relaciona com a sublimação.

O sintoma analítico: Cecz1ia M.

Recorrerei a um dos primeiros exemplos de sintoma que,


sob sua forma analítica, se impuseram a Freud. Esse exemplo, que
tomo dos "Estudos sobre a histeria", apresenta uma dupla vanta-
gem. Primeiro, sua simplicidade que permite, muito rapidamente,
evidenciar sua estrutura. Em seguida, seu caráter de ser o primeiro.
De fato, não é pouco assistir a emergência do que podemos cha-
mar, doravante, sintoma analítico. Esse nascimento surgiu aos olhos
de um Freud inteiramente surpreendido.
Trata-se do caso da assim chamada Cecília M. Se vocês
observarem o índice da obra, verão que os diversos casos desses
"Estudos sobre a histeria" concernem a Anna O., Emily voo N.,
Lucy R., Katharina e Elizabeth voo R., mas não a Cecília M. E isso,
não sem motivo: Freud dele não faz propriamente um caso, mas
sim um acréscimo ao de Elizabeth von R., numa demonstração -
que não conseguia acabar de estabelecer - concernente à questão
do símbolo e do sintoma. Para Freud, o sintoma de Cecília M. tem
um caráter exemplar quanto à ilustração dessa questão.

147
Os Destinos da Pulsão

Cecília M. sofria de uma nevralgia facial. Isso já durava 15


anos. Escusado dizer que o sintoma se repetia. Ele aparecia inespe-
radamente duas ou três vezes por ano, persistia de cinco a dez dias
e resistia, de modo absoluto, a todos os tratamentos. Depois, desa-
parecia. Freud, neurologista, delimita a dor facial, situando-a entre a
segunda e a terceira ramificação do nervo trigêmeo.
Durante esses 15 anos, é inútil dizer que Cecília teve a opor-
tunidade de consultar tudo o que se possa imaginar como especia-
listas, de recorrer a todos os tipos de tratamento: foi tempo perdi-
do. Ela assim chega ao consultório de Freud, que por sua vez utiliza
vários procedimentos, mas fracassa na obtenção de qualquer resul-
tado até o dia em que, estando Cecília sob hipnose (Freud a pratica-
va na época), ele se decide "a lançar sobre a dor uma enérgica inter-·
dição". Diz ele: "Isso tem de cessar!"
Ora, a partir desse momento as dores cessam. E Freud ob-
serva que começa a duvidar da autenticidade dessa nevralgia. Em
suma, não era alguma coisa propriamente corporal: havia ali um
jogo, uma dimensão psicológica. As dores cessam porém, infeliz-
mente, um ano depois recomeçam cada vez mais, ao mesmo tempo
que se produzem outros sintomas. Cecília M. relata: "Tenho tal sin-
toma ... ". Freud pergunta-lhe quando e onde começou: engaja-se
assim o jogo das associações livres. Um dia, Cecília conta a Freud a
cena primeira, depois da qual desencadeou-se a nevralgia facial. Freud
situa aqui o que ele chama de cena traumatizante. Cecília era muito
suscetível, e seu marido durante uma briga disse-lhe coisas muito
violentas. Durante o relato, diante de Freud, ela grita de dor e clama:
"É como um tapa na cara". As palavras de seu marido foram como
se ela tivesse recebido uma bofetada. Desde esse dia instala-se uma
nevralgia que dura 15 anos, até o momento em que Freud nos cunta
essa história. Que conclusão tirar desse exemplo? Quais são as co-
ordenadas nas quais podemos fixar o sintoma para que ele seja ana-
lítico? Observemos, simplesmente, um fato bastante interessante: é

148
Joseph Attié

na relação com Freud (quando ela começa a falar com alguém) e só


após sua intervenção de um modo que se pode dizer no mínimo
que é bizarro (interditar um sintoma sob hipnose) que as coisas
tomam nova direção e as associações começam. Em suma, pode-se
dizer que graças à transferência, e à palavra que a instaurou, o sinto-
ma que já durava 15 anos começou a ser elaborado. O que se repetia
(para o sujeito) tomou a palavra. O que se chamava nevralgia, cha-
ma-se agora afronta.

Nevralgia
Afronta

E uma outra história começa.

As coordenadas do sintoma

Os termos de sintoma, transferência e repetição aparece-


ram nessa ordem nos primeiros escritos de Freud, os "Estudos
sobre a histeria". Eles ainda não haviam alcançado o nível de con-
ceitos. Era apenas fenomenologia. No entanto, ainda nesse nível,
convém acrescentar um quarto termo, que deve fixar nossa aten-
ção: o trauma, "a cena traumatizante", nos diz Freud, que na época
mantinha a teoria catártica da neurose. Esta última desencadeia-se
por um fato traumático ao qual o sujeito não soube ah-reagir nem
através do afeto, nem através da fala. É exatamente a história de
Cecília M. Humilhada, ela não soube responder nem através do
afeto, nem através da fala diante de seu marido. Isso lhe ficou atra-
vessado na garganta. O interessante é que Freud, mesmo tendo
descoberto a cena traumatizante da afronta, não conseguiu curá-la,
ainda que a teoria afirme que essa descoberta consiga dissolver o
sintoma. Por outro lado, vocês sabem que, no que se refere ao
trauma, Freud inicialmente pensou que o sintoma era devido a uma
sedução sexual praticada por um adulto numa criança. Posterior-

149
Os Destinos da Pulsão

mente, ele renunciará a essa primeira teoria para decidir-se pela dire-
ção da fantasia própria da criança. É a criança quem fantasia que a
seduziram.
Seja como for, tendo partido de uma nevralgia que eventual-
mente dependia de uma simples aspirina, deparamo-nos aqui com
coisas tão complexas como a transferência, a repetição e a fantasia, as
quais constituem, diremos, o sintoma como sintoma analítico. i\ palavra
falada na transferência visa a verdade do sintoma. É isso o que está cm jogo
e que se constitui de elementos muito complexos entrdaçados.

Plasticidade da libido na sublimação

Em relação à sublimação, sempre seguindo Freud, o sinto-


ma pode ser qualificado de forma diferente. Com efeito, o sintoma
analítico é uma fixação da libido em algum objeto genital, alguma
zona do corpo: para Cecília M., a face. Em contraste com essa
fixação do sintoma, a sublimação se define como sendo a latitude
LJUC tem um ser humano, ou antes a plasticidade de sua libido de

poder deslocar-se livremente. Essa possibilidade de deslocamento


é sem dúvida o caráter essencial da sublimação. Em seu estudo
sobre Leonardo Da Vinci, Freud fala da inibição da pulsão escópica
cm Leonardo. Alguma coisa, no nível do olhar, não quer ver. Uma
tal inibição poderia ter dado em sintoma; poderia ter atingido o
olho, poderia ter se tornado uma neurose grave.
Com a idéia, presente em todo ser humano, relativa à pre-
sença ou ausência do pênis na mãe, cuja aposta é a subjetivação
possível da castração, isto poderia em Leonardo ter evoluído para a
perversão, caso o sujeito se obstinasse em dizer: "Eu sei muito bem
que a mãe não tem pênis, mas mesmo assim... ".
Toda perversão, tal como Freud a define, gira em torno
dessa questão. Ora, com Leonardo acontece outra coisa. Sua libido

150
Joseph Attié

mostra-se capaz de se deslocar, e Leonardo faz de sua pulsão escópica


inibida a fonte de uma curiosidade intelectual e de dons artísticos.
Essa plasticidade da libido na sublimação é um traço absolutamen-
te fundamentaL_J\_ tal po~t_o que alguns_ analistas~ como Karl
Abraham, dela fizeram o traço que melhor define a capacidade de
;daptação.do ser humano. Capacidade de adaptação à realidade
que se tornou sinônimo de normalidade: ser normal é ser capaz de
adaptar-se. Quando perdemos um objeto querido, um ser amado,
é normal que soframos. Há um trabalho de luto a ser feito. Caso ele
não se faça, todo mundo disso suspeita. Se, ao contrário, o luto se
eterniza, também disso suspeitamos. A normalidade consiste em
fazer o trabalho de luto, em desatar os laços libidinais com relação ao
objeto amado que perdemos, para em seguida podermos reinvesti-los
alhures, deslocá-los. Nisso se fundamenta a idéia de que essa plasticidade,
esse deslocamento da libido é uma sublimação.
Portanto, temos novamente dois pólos opostos. De um lado
o sintoma, indicador da doença e da neurose; do outro a sublima-
ção, indício da normalidade. Poder-se-ia assinalar minuciosamente
os paradoxos desta antítese. Mas procederei de outra forma, a fim
de esclarecê-la e tentar reduzi-la.
Para começar, continuemos a especificar a natureza do sin-
toma como sintoma analítico, apoiando-nos no ensino de Lacan.

O sujeito suposto saber, a demanda

Dois pontos fundamentais devem ser destacados aqui.


Primeiramente a transferência, inerente à natureza do sinto-
ma como sintoma analítico foi especificada por Lacan nos seguin-
tes termos: há transferência a partir do momento em que nos ende-
reçamos a alguém a quem supomos o saber. O sintoma, qualquer
que ele seja, marca um encontro. O termo encontro é muito impor-

151
Os Destinos da Pulsão

tante; é preciso entendê-lo no sentido de um encontro amoroso.


Como todo encontro, ele é inteiramente contingente: pode aconte-
cer, como pode não acontecer. Por conseguinte, o sintoma encon-
tra um sujeito suposto saber do qual se complementa. O sujeito
suposto saber torna-se o complemento do sintoma. É nesse senti-
do que Lacan avançou a idéia de que o próprio analista faz parte do
sintoma. Esse sintoma, quando é suficientemente perturbador, quan-
do faz sofrer, dele o sujeito busca saber sua significação. O sintoma
- e com ele, o sujeito do sintoma - encontra aquele que pode
conter essa significação: o analista, o sujeito suposto saber. Assim
começa a análise. O sintoma se engaja num discurso que se pode
chamar do Outro, do grande Outro, que é o discurso do inconsci-
en tc. Este é o quadro do sintoma analítico, cuja moldura, dada por
Lacan, é a metáfora. O sintoma é uma metáfora: um significante
vem no lugar de um outro,

s S'
S' X

Enquanto Cecília M corria atrás de sua nevralgia, nada se passava


A partir do momento que a nevralgia a conduziu àpalavra afronta, passamos
a ter a metáfora do sintoma, a partir do que o discurso engrenará:

Nevralgia Afronta

Afronta X

A palavra afronta torna-se a metonímia a partir da qual


Cecília vai associar. Da metáfora do sintoma resulta a metonímia
do desejo, que é metonímia da falta a ser.
Entretanto Freud não conseguiu curar Cecília M., e isso não
nos surpreende. De fato, essa metáfora constitui apenas o sintoma
como sintoma analítico. Há todo o resto a fazer. E é a partir da
afronta que o trabalho analítico deve prosseguir.

152
Joseph Attié

Isso nos leva ao segundo ponto, corolário do primeiro. De


fato, para que haja análise, é preciso haver uma demanda. Mas o que
é uma demanda? Não é nada além do funcionamento do circuito
pulsional. Eis como Lacan escreve o materna da pulsão:%, que desig-
na o sujeito dividido pelos significantes de sua demanda - ('$OD).
Vejamos o que se passa com Dora. Freud aceitou analisá-la
pois ela vem queixar-se de seu pai. Presa entre o Sr. e a Sra. K. e seu
pai, acusava esse último de utilizar-se dela para suas próprias
investidas amorosas. Isso foi o que ela disse a Freud. Deve-se ressal-
tar que foi em função das solicitações de seu pai que Dora aceitou ir
a um psicanalista. E para dizer-lhe o quê? Para dizer-lhe: "Meu pai é
um crápula". Lacan considera que Dora apresentava quase um de-
lírio de perseguição. Porém se uma tal queixa é admissível como de-
manda de análise, é porque ela implica a divisão do próprio sujeito.
De fato, até um certo limite, uma parte de Dora almeja
representar o papel que ela desempenha nesse cenário. A demanda
aqui toma o aspecto de uma denúncia concernente ao pai. Um
momento fundamental da evolução do tratamento consiste, para o
analista, em perguntar qual é a parte que cabe ao sujeito naquilo que
este lhe diz.
Temos agora todas as coordenadas do sintoma analítico:
por um 1~, o tripé freüruanõ·::::-·mrrsfu-êfi'§~~._riá>;tiçãõ;"fifftisili;:
~-···---~·· --.,........., .-· .. ··•··..... -----~ -...... ------· . . . . . --·------ ·,

~-tr~g_tr_1:1~~a da transferen6à em termos de sujeito s~pos-


to saber e de pulsão." Vocês· póderri realizar, então, ó quanto a -~-irii-
"' --···· .
pµêJ~ã-ií~vralglà fadatsó--funciumratiâves. de" cónêeitos-extte:
------·- ····-· . . . . . ... .. .. -· . . . - .•......... ~ ..
mamente complexos, e ·que esi:á fora de questão decorticá-los.. aqui,
um após o outro.
Eis aqui uma última formulação do sintoma analítico, sob a
forma de estrutura quadripartite: alguma coisa se repete na vida do
sujeito (repetição), que conduz a uma demanda (pulsão). A deman-
da supõe um sujeito suposto saber e alguma coisa de opaco para o
sujeito, a fantasia.

153
Os Destinos da Pulsão

Parece-me que, após ter analisado detalhadamente a ques-


tão do sintoma, podemos enfim colocar a seguinte pergunta: diante
de tudo isso, qual é o lugar da sublimação? Quais são as articulações
da sublimação com as diferentes coordenadas do sintoma?

R.epetição
Pulsão = Demanda
Stg'eito suposto saber
Fantasia

Recalcamento e fantasia

Para responder à articulação da sublimação com o sintoma


analítico, seria necessário, antes de tudo, destacar o conceito de su-
blimação em Freud e em Lacan, coisa muitíssimo complexa. Con-
tentar-me-ei em insistir sobre dois pontos fundamentais da teoria
de Freud, também encontrados em Lacan.
Esses dois pontos detêm minha atenção por nos instalarem
no âmago dessa dialética sintoma-sublimação que fiz acompanhar,
no título deste meu trabalho, de um ponto de interrogação.
Primeiramente, a sublimação só é possível porque a libido
funciona fora do recalcamento. Se há uma plasticidade, se a libido
pode deslocar-se, é - em termos precisos - porque ela não está
recalcada. Dito de outra forma, se houvesse recalcamento, seria a
fixidez do sintoma e da neurose. Até aqui, portanto, sintoma e su-
blimação opõem-se sempre.
Em segundo lugar, o ponto de partida dado por Freud à
sublimação é a fantasia do artista. O artista sabe elaborar uma reali-
dade nova a partir de sua fantasia, sem passar pelo principio de
realidade. Ali onde cada um de nós deve considerar essa realidade

154
Joseph Attié

exterior (para cumprir seu dever, por exemplo), o artista não dá a


mínima, apega-se a sua fantasia e elabora alguma coisa. Isso o neu-
rótico não consegue fazer.
Quem diz fantasia, designa seu objeto, ou seja, o que é da
causalidade, o que constitui gozo para o ser humano, aquilo em di-
reção a que todo ser corre. Assim, ao lado dessa divisão do sujeito
pela demanda rj O D), temos igualmente uma divisão do sujeito
por um objeto que lhe é desconhecido: (% Oa).

~emos o te~.3 todo ~~~~.~~~Lc~~~.f~z gozlj_r e



~ divide º, sujeito, ~!~}~:....~.R:~P.~~!.~9.,~l.~§§i!,..Qi,~lé.tic4d~
problemãttcaõa' c1uãT'Preud coloca a iantasia na origem da sublima-
~·t.~ean·:rttânç0Uá-~e~1Ut~}6;~ul~ qu.~ se ~ncontra ·no S~mr~drio,
lzvro7tâ'"êlidi da"p"jj~~~áli~·~.'. ; sublirnação, a cl;boração de um obJeto ·.
de-ittc consiste êri1 elevar o objeto à dignidade da Coisa. Para esse
~.• ~
., ..... .. ·~ . . l ......,. . . . . . . . . . '

objeto desconhecido e 111consc1cnte, trata-se de construir uma espé-


cie de habitat: Em busca do tempo perdido ou a obra de Leonardo da
Vinci. Eis o que permite um acesso mais ou menos direto, mais ou
menos mediado a essa alguma coisa que faz gozar. Construir a coisa
a partir do objeto, tal é a tese de Lacan no Seminário, livro 7: a ética da
psicanálise.
Porém se a fantasia é colocada por Freud na origem da su-
blimação e de toda obra de arte, nós destacamos há pouco que
Freud também a colocava na origem do sintoma, inicialmente sob
a forma de um trauma. Temos aqui um entrecruzamento funda-
mental: ao falar da fantasia, pode-se chegar ou bem ao sintoma, ou
bem à sublimação. É o que fundamenta Freud para falar de dois
destinos diferentes da pulsão: recalcamento de um lado (do lado
do sintoma), e sublimação do outro. Uma vez mais, sintoma e su-
blimação parecem distinguir-se nitidamente. Contudo aqui eles têm
um ponto comum: sua mesma origem, a fantasia. Dito de outro
modo, o objeto causa.

155
Os Destinos da Pulsão

Um grafo de Lacan

Para avançar em meu explanação, recorrerei a um grafo


construído por Lacan no Seminário, livro 14: a lógica da fantasia. Esse
seminário inédito é extremamente difícil, e o grafo, muito complexo.
Vou tentar articulá-lo para vocês, pois ele tem a vantagem de retomar
com exatidão os termos freudianos que acabamos de avançar.
Lacan constrói um retângulo, inscrevendo em cada vértice
um termo diferente. Ele começa pelo vértice repetição. Como vi-
mos, o sintoma é iniciado pela repetição.

Rp

Sobre uma das diagonais, Lacan escreve a transferência: outro


elemento que define o sintoma como analítico, e que implica o su-
jeito suposto saber e a demanda como funcionamento da pulsão.

Rp

Na extremidade desse vetor, Lacan acrescenta dois termos:


o objeto a da fantasia e ao lado, -cp, ou seja, a questão da castr;.,ção.

156
Joseph Attiê

Rp

Reencontramos as coordenadas do sintoma com a pulsão,


com o sujeito suposto saber e a fantasia. No entanto, nesse lugar do
objeto, Lacan não escreve a fantasia. Surpreendentemente, ele escre-
ve sublimação.

Rp

~
Sublimação

Eis porque retomo esse grafo: por que ele coloca face a
face - e não se poderia fazê-lo de modo mais claro - a fantasia e
a sublimação. O que a sublimação vem fazer aqui?
Ao lado da repetição alguma coisa fundamental se repete,
na qual Lacan articula o cogito cartesiano: "Eu penso, logo eu sou".
Trata-se do pensamento de um ser humano e de seu ser. Lacan -
é uma outra demonstração - retira o logo e coloca:

Eu penso
Eu sou

157
Os Destinos da Pulsão

Ele os coloca assim e, depois, assenta sobre cada um desses


termos a negação:

Eu penso

Eu sou

Ou eu não penso, ou eu não sou. É uma ilustração da divi-


são do sujeito. Seria importante retornar aqui às fórmulas da sexuação.
Nada no inconsciente prova que o homem é homem e que a mu-
lher é mulher. Se penso ser um homem ou uma mulher, não há
nada que o prove no meu ser, naquilo que eu sou. Temos assim
uma separação entre o pensamento e o ser.

Eu penso Pensamento

Eu sou Ser

O pensamento e o ser vão se separar em duas direções dife-


rentes, segundo essas duas setas: eu não penso, eu não sou.

Eu não penso
Rp

Eu não sou

Sublimação

Comentarei isso logo a seguir. No momento, porém, pre-


enchamos os vértices desse retângulo.

158
Joseph Attié

Temos, portanto, um único ponto de partida no alto e à


direita: a repetição, o que se repete para todo ser humano entre o
"eu não penso" e o "eu não sou". O vetor horizontal conduz a
alguma coisa que Lacan chama de passageJJJ ao ato, e a coloca ali.

Eu não penso
Rp
Passagem
ao ato

Eu não sou

Sublimação

Isso quer dizer que alguém passa ao ato no mesmo ponto


onde não pensa. Onde ele não é como falado, o que define de
modo muito preciso o inconsciente. A coisa pode ser percebida no
seu nível mais fenomenológico. Aquele que passa ao ato, por defini-
ção não pensa. Se nos pusermos a pensar, não passamos ao ato. O
que passa ao ato age, faz de si mesmo objeto de uma ação. Pode-se
tomar dois exemplos extremos. Um homem que, no metrô, enfia
sua faca na barriga do vizinho porque não foi com sua cara. Foi um
caso de apresentação de pacientes em psiquiatria. Eu estava diante
desse homem que tentava explicar o que havia se passado. Inegavel-
mente ele passou ao ato, enfiou a faca, sabe-se lá por quê! Há uma
passagem ao ato menos trágica, menos brutal; a de um sujeito que
acaba batendo a porta no nariz de seu analista. Esse segundo exem-
plo indica a proximidade da passagem ao ato com o ato, o ato
analítico propriamente dito: aquele que terminou sua análise, efeti-
vamente bate a porta no nariz de seu analista. Como, então, é pos-
sível saber se o final da análise é uma passagem ao ato ou um ato,
um verdadeiro ato? Vocês sabem que a experiência do passe tem

159
Os Destinos da Pulsão

como função, como tarefa, demonstrar a parte possível dessa con-


fusão e demarcá-la. O sujeito que se propõe ao passe, teria ele rea-
lizado um ato analítico ou seria uma passagem ao ato? Isso é para
ilustrar-lhes o "eu não penso" no momento da passagem ao ato.
Passemos agora aos outros vetores. O primeiro vetor, Lacan
o designa como alienação. O sujeito está alienado em seu ser. Ele não
quer pensar. Ele quer ser alguma coisa: um objeto.
O outro vetor, que vai da repetição ao "eu não sou", é o
vetor da verdade.
Eu não
penso

@ Aliena ão
Rp

Passagem
ao ato Verdade

Eu não sou

Sublimação

Tendo também saído da repetição, esse segundo vetor con-


duz em direção a quê? Lacan escreve aí o acting-out.
Eu não
penso

@ Aliena ão
Rp

Passagem
ao ato Verdade

acting
out
Eu não sou

Sublimação

160
Joseph Attié

O acting-out significa que o sujeito enuncia "eu não sou", em


vez de "eu não penso". Mais precisamente, ele diz: "Não faço o
menor caso do que me acontece".
Pode acontecer, por exemplo, de ele perder bobamente al-
guma coisa ao sair da sessão. Será uma perda ou um acting-out? Foi
por causa da sessão que ele perdeu seus documentos? Para ir mais
diretamente ao assunto, o sujeito pode dizer: "Não faço o menor
caso dessa associação livre que acabei de fazer".
Isso acontece com mais freqüência do que se supõe. To-
mem o exemplo dado por Freud concernente à denegação. Al-
guém havia sonhado com uma mulher e disse a Freud: "O senhor
certamente vai pensar que essa mulher era minha mãe; de modo
algum, ela não é minha mãe". Dizendo de outro modo: "Eu não
tenho nada a ver com esse sonho que eu fiz".
Sem dúvida, uma denegação não é um actin,g-out; porém
sou levado a associá-los uma vez que todos dois decorrem do in-
consciente, quer dizer, da aposta fálica. Assim, o objeto que estava
ali, no alto e à esquerda, nós o reencontramos embaixo, à direita, no
"eu não sou", com a noção do falo.
Eu não
penso

@ Rp

Passagem
ao ato Verdade

acting
OU[

Eu não sou@

Sublimação

Eis porque Lacan pôde escrever a conjunção do objeto e


do falo no vértice embaixo à esquerda.

161
Os Destinos da Pulsão

"Eu não penso" escreve o objeto; "eu não sou" escreve o


"eu não dou a mínima para essa história de castração". Temos uma
conjunção desses dois elementos, absolutamente ardentes, e a apos-
ta fundamental para todo ser humano. Isto é interessante quanto ao
acting-out porque é o inconsciente que fala. Nesse lugar pode-se,
então, escrever inconsci.ente.
Eu não
penso

@ Aliena ão
Rp

Passagem
ao ato Verdade

acting
out
Ics
Eu não sou®

Sublimação

De fato, uma denegação, por mais que se esforce para ser uma
denegação, nos interessa no que ela pode apelar para uma interpre-
tação. Vemos que da passagem ao ato e do acting-out partem dois
vetores que conduzem à essa conjunção final de a com -<p. Conjun-
ção que o final de análise visa desunir. É por excelência a figura de
um final de análise.
Eu não
penso

@ Aliena ão
Rp

Passagem
ao ato Verdade

acting
out
Ics
Eu não sou®

Sublimação

162
Joseph Attié

O problema, o paradoxo é que nessa ponta extrema dos


três vetores, Lacan inscreve a sublimação. Como resolver esse proble-
ma? É claro que a sublimação tem de se haver com a repetição,
com a passagem ao ato e com o acting-out. Pode-se demonstrá-lo.
Mas por que inscrevê-la nesse lugar? Pois bem, não se pode respon-
der a essa questão sem recorrermos ao resumo que Lacan fez de
seu Seminário: a lógica da fantasia, publicado em Ornicar?, n. 32. Esse
resumo avança alguma coisa totalmente nova com relação a esse
esquema. O seminário já é bastante complexo e o resumo o é
ainda mais. Jacques-Alain Miller empenhou-se em comentar esse
resumo em seu curso dos anos 1984-5, intitulado "1, 2, 3, 4". Foi
isso o que me permitiu encontrar uma solução para a questão que
eu me colocava.

O segundo grafo de Lacan

Em seu resumo Lacan duplica o primeiro grafo. O ponto


de partida permanece o cogito cartesiano, a repetição, ilustrada por
Lacan com os círculos de Euler: "eu não penso", "eu não sou"
inscrevem-se em cada círculo. Eis aqui o pensamento e o ser sepa-
rando-se. Um vai numa direção e outro, em outra.

p E
Eu não

@
penso
Aliena ão
CID Rp

e,'-4

Passagem ,..,...'c5'
ao ato <;>~ Verdade
~'1.4

acting
out

~
Ics
Eu não sou®

Sublimação

163
Os Destinos da Pr,/são

O ponto de partida do segundo grafo permanece, portanto,


o cogito com os dois braços, diz Lacan, em esquadria: alienação de
um lado, verdade do outro. Porém Lacan introduz aí alguma coisa
nova.
p E
Eu não
penso
CID
Passagem
ao a.to

out
lcs
Eu não s o u ~

Sublimação
É nesse momento, sobre esse novo vetor que vai da passa-
gem ao ato até o acting-out, que Lacan inscreve a transferência. O que
isso guer dizer? Eis uma questão que não se deve nunca deixar de se
colocar. Quando o sujeito passa ao ato, é o momento em que ele
não pensa, e quando quer se afirmar. Quando é que alguém se
afirma melhor do que quando passa ao ato?
Tentem dar um soco em alguém e vocês verão o quanto
vocês existem no espaço de um segundo. "Eu sou" nessa passagem
ao ato. E eu sou o quê? Eu sou um absolutamente nada, um ser de
puro sintoma: é o que isso pode querer dizer. Desse lugar da passa-
gem ao ato no segundo grafo pode haver invocação, apelo ao sujei-
to suposto saber, ou seja, ao inconsciente. De fato, é dos impasses
do "eu não penso" que um endereçamento, uma demanda de aná-
lise pode produzir-se (o fato de alguém não querer pensar, no sen-
tido de nada querer saber do inconsciente, pode levá-lo a impasses
por toda sua existência).
Daí a nova posição da transferência, que vai da passagem
ao ato, do "eu não penso", para o "eu não sou". O sujeito o !ê no

164
Joseph Attié

sentido inverso, ou seja, de que ele não dá a mínima ao que lhe


acontece: isso é o que ele diz, porém, uma vez mais, é muito impor-
tante que ele o diga. Pois dizer "eu não dou a mínima porque não
entendo nada" é a lei da associação livre.
De imediato o sintoma analítico se define de modo mais
preciso. A pulsão, quer dizer, a demanda (o sujeito suposto saber
está sempre ali) ocorre a partir da passagem ao ato para interrogar
o inconsciente. Nós o vemos com Dora. Ao dar uma bofetada no
Sr. K, ela passou ao ato. Depois disso, ela aceita esta missão de ir a
um analista, e o sintoma analítico se instala. Mas nessas condições o
sintoma nada mais tem a ver com a sublimação.
Com esse esquema Lacan opera a disjunção entre a subli-
mação e o sintoma. Deve-se observar que o sintoma, se é analítico,
supõe a possibilidade de ter esse destino, ou seja, aquilo que pode-
mos almejar para cada um: terminar sua análise, chegar a esse ponto
de conclusão, a esse ponto de conjunção-disjunção entre a e -q>, a
essa ponta na qual Lacan escrevera a sublimação e onde agora eu
escrevo a letra S.
p E
Eu não
penso

@ < Alienaç,~o __
CID
Rp

Passagem
ao ato Verdade

acting
out
Ics
Eu não sou@

s ~ão

Que se faz com a sublimação? É importante observar que


a sublimação deve ser entendida como uma operação, e não como
um ponto final. Ela se designa por um vetor, não por um ponto

165
Os Destinos da Pulsão

p E
Eu não
penso

@ Aliena ão
CID Rp

Passagem
ao ato Verdade

acting
OU!
lcs
Eu não sou@

s
Essa precisão basta para remover toda dificuldade: o apa-
rente paradoxo que havia ao se colocar a sublimação como aquilo
que emerge no final da análise, o que o esquema precedente tendia
a deduzir. Ora, uma análise não é uma sublimação. E um final de
análise, tampouco. Esse segundo grafo construído por Lacan mos-
tra uma via diferente: a sublimação inscrevendo-se sobre um vetor
é alguma coisa diferente, que nada tem a ver com transferência.
Nesse ponto, que nomeio S - S como Sujeito, e no mais S como
sublimação - , Lacan situa o que ele chama de nibil do sujeito. Essa
nada (nibil, em latim) do ponto de partida é o sujeito mais puro,
sempre a advir como significante. No caso de Cecília M., era a
palavra (mo-!) afronta que a puncionara como sujeito.
Pois bem, diz Lacan, esse nibi/torna-se o bi/e do sujeito. Hzle
é um termo bastante interessante. Basta tomarmos o dicionário
para vermos mais claro. Em botânica, bi/e quer dizer cicatriz: cicatriz
que resulta da ruptura de um grão. Diz-se o bife da fava. Mas em
anatomia (os médicos o conhecem bem) bi/e é um ponto de inser-
ção dos vasos e condutos excretores de um órgão: diz-se o bi/e do
fígado, o bife do rim. Portanto, bife é, por um lado, cicatriz e, por
outro, um ponto de inserção. Nem em sonho se encontraria um
termo mais preciso para o lugar do sujeito. É desse ponto S que
parte o vetor de sublimação e que nos dará este segundo grafo:

166
Joseph Attié

p E
Eu não
penso

@ Aliena ão
CID Rp

Passagem
ao ato Verdade

acting
Nihil out

~
lcs
Eu não sou®

A partir desse grafo da sublimação, Lacan inscreve sobre


os dois outros vetores que partem do ponto S a repetição e a pressa.
Em contrapartida, a passagem ao ato e o acting-out permanecem em
seus lugares

p E
Eu não
penso

@ Aliena ão
CID JYp

Passagem
ao ato Verdade

RP

acting
Nihi/ out

~
lcs
Eu não sou®

s
Uma tal configuração merece uma longa interrogação. Li-
mitar-me-ei a algumas observações.

167
Os Destinos da Pulsão

Três observações

A primeira se refere ao vetor que vai do ponto S da subli-


mação para a passagem ao ato através da repetição: o que se repete
não na vida do sujeito, mas na sublimação. Por definição, da subli-
mação pode-se dizer que ela é sempre repetição. Porém se ela con-
duz em direção ao "eu não penso", torna-se o indício de um fra-
casso. É o caso daquele ou daquela que não vai além do primeiro
romance, ou do primeiro poema. Essa primeira observação, que
deduzi do grafo, é também patente cm termos clínicos. Muitos
romancistas não vão além do seu primeiro romance.
A segunda observação se refere ao vetor que vai da sublima-
ção para o ading-out através da pressa. Quando se termina uma tarefa,
uma conferência por exemplo, é sempre às pressas. É preciso concluir
sempre no último segundo. Todos os que recorreram a uma atividade
artística, sabem que só se termina o próprio trabalho na pressa. Isso
assinala, aliás, o caráter inacabável da coisa. Inacabável que não pode
senão fazer ricochetear o empreendimento. Mas a pressa é o vetor que
conduz ao inconsciente, quer dizer, a parte ligada com a verdade.
Quando a sublimação toma essa via da pressa, ela corre o risco, pelo
viés da verdade, de despertar os significantes do sintoma. Até esse
ponto o sujeito artista partiu de sua fantasia; da verdade, troçava. A
verdade tem a ver com a castração, com o falo. Essas não são questões
que os artistas se coloquem. Mas se por seu trabalho, o que normal-
mente acontece, despertam-se os significantes de seu sintoma, isso pode
levar - pelo vetor diagonal - para a passagem ao ato, ou seja,
também para uma possibilidade de transferência.

Pode ocorrer a alguém que escreve um romance, deter-se


em seu trabalho. Por quê? Porque ele encontrou, no decorrer de seu
trabalho, significantes de sua demanda. Por não poder mais tratá-
los artisticamente, esses significantes podem inibi-lo. Os mais céle-
bres escritores conheceram momentos de inibição semelhantes e

168
Joseph Attié

recorreram aos analistas (podemos nomear: George Bataille, Michel


Leiris, Raymond Queneau, Georges Pérec, e muitos outros). Esses
momentos de inibição, o real do sintoma, não fazem parte do tra-
balho artístico, eles o detêm. Para sair disso, recorre-se ao analista.
Uma vez levantada a inibição, retoma-se o trabalho artístico. Nesses
momentos de inibição a sublimação encontra seu limite pois ela
toma o aspecto do sintoma. Começamos, então, a perceber a exis-
tência de uma dialética complexa entre sintoma e sublimação. Esses
conceitos não são tão opostos quanto se pensava. A sublimação
pode tomar o aspecto do sintoma. Resta saber se o sintoma pode
conduzir à sublimação.
Terceira observação. Para ter êxito, a sublimação deve pas-
sar pelo vetor mediano - que não é a repetição nem a pressa - na
conjunção do "eu não penso" com o "eu não sou". Conjunção essa
que reduplica em ato o ponto de partida do sujeito S, o nihil, a partir
do qual uma obra de arte se elabora e se constrói.
Esse desdobramento do sujeito reconstituído pela obra de
arte dá as coordenadas do sintoma. Mas desta vez é um sintoma
cifrado. O sujeito não sabe ler seu sintoma em sua obra. Aquele que
lê do exterior, nela pode ver o sintoma, mas não aquele que a escre-
ve. O sintoma, elevado à categoria de obra de arte, não tem mais
razão de ser Coisa, a não ser construir-se como tal. O sintoma, no
caso de uma análise, precisa ser decifrado. A façanha do artista é
saber cifrar alguma coisa de seu inconsciente. Como sintoma analí-
tico vimos como o sintoma remete à repetição, à demanda, ao
sujeito suposto saber e à fantasia. Com a sublimação temos sempre
a repetição e também a pulsão. Porém ela não funciona mais como
demanda endereçada a um sujeito suposto saber.
O artista, o escritor, por definição, não se endereça a um
analista para realizar sua obra. É uma constatação. Quando ele se
dirige a um analista é por não poder mais prosseguir nessa obra. E
ante a questão de saber onde ele encontra seu ponto de apoio - já

169
Os Destinos da Pulsão

que não é a demanda - seu ponto de Arquimedes para construir


sua obra, só podemos replicar com a resposta freudiana: na fantasia.
Diferentemente do que ocorre com a do neurótico, essa fantasia
não fixa o sujeito num gozo inconsciente, nem num imaginário do
pathos. Essa fantasia, porém, traz-lhe uma certeza. Esse real que o
sujeito traz em si, ele tenta elaborá-lo numa forma, numa nova
forma - romance, poema, objeto de arte - que constitui a res-
posta do sujeito, de onde podemos balizar as coordenadas imagi-
nárias, simbólicas e reais de seu sintoma. Lacan nos traz a demons-
tração disso em seu Seminário, livro 23: o sinthoma sobre Joyce, semi-
nário no qual Lacan, de modo curioso, ainda que consagre o ano
inteiro a esse imenso escrito, não utiliza uma só vez o termo subli-
mação. No lugar desse termo, aparece o termo "sinthoma" (sinthome).
Essa escrita singular do termo sintoma é uma retomada de sua orto-
grafia medieval e Lacan dela faz um conceito particular e à parte,
distinguindo-o do sintoma (symptôme). O sinthoma (sinthome), com
relação ao imaginário, ao simbólico e ao real, é o quarto elemento
que vem atar os três círculos. Aqui, a obra de arte.
O neurótico, embaraçado por seu sintoma, não sabe mais
onde pôr a cabeça, não sabe mais onde está o imaginário, o simbó-
lico e o real. É preciso toda uma análise para que o novo analista,
em tal circunstância, possa dar conta do imaginário, do simbólico e
do real naquilo que é dito. Isso, de fato, não é evidente. É preciso
tempo para se avançar nisso. E é preciso também que a análise seja
bem sucedida para poder chegar até aí.
LA sub)iwação se é sintoi;n~s_~mente nã ma
analítico. Para sustentar isso, citemos o que Lacan diz de James Joyce,
;Ü~exto intitulado "Lituraterre" (1971). Ele recorda que numa
certa época em que James Joyce ia muito mal, aconselharam-no a
fazer uma análise - com Jung, aliás. Escreve Lacan: "Ele teria mais
vantagem (em relação a essa análise) indo diretamente ao que de
melhor se pode esperar no final de uma psicanálise". Diretamente.
Para onde? Para sua arte, para sua obra, obra de arte.

170
Jos,ph Attié

É ainda preciso ser capaz disso pois, comparativamente à


obra extraordinária de um James Joyce, quantas produções exis-
tem, de todos os tipos, que do mesmo modo estão referidas à arte.
E por que não? Do romance policial ao gadget que compramos nos
mercados. É a arte em seu nível mais imaginário.

O que nos dizem os poetas

Sendo o caminho que seguimos um tanto austero, conclui-


rei com alguns versos.
Inicialmente, versos de René Char para quem: "O poema é
o amor realizado do desejo permanecido desejo".
O poema é esse objeto a ser situado no quarto ponto, o da
sublimação. Enquanto está na cabeça do poeta, ele ainda está por
vir, imaginário. Mas Char nos diz: "o poema é um amor realizado".
Sua realização é justamente sua escrita, sua inscrição no simbólico.
O que é específico de Char é chamar o poema de "um amor reali-
zado". Todos os poetas não diriam a mesma coisa. E ele acrescen-
ta: "o amor realizado do desejo permanecido desejo". "Do desejo
permanecido desejo", eis a parte real que não cessará no sujeito.
Poder assim nomear o poema, como simples possibilidade de aber-
tura da dialética entre amor e desejo, é algo fabuloso e que não é
dado a todo mundo. Nesse lugar o neurótico arrisca-se a corrupiar
entre sintoma, inibição e angústia. Lacan, no que chamou de ''.A
terceira", seu terceiro discurso de Roma, nos diz: "Eu chamo de
sintoma o que vem do real". O que vem do real, ou seja, da fanta-
sia. Porém o real de Char não é o real de todos os outros escritores.
Pensem no "Dom do poema", de Mallarmé. Num grave momen-
to de sua vida, na ocasião de uma depressão que durou anos,
Mallarmé escreveu esse poema que começa assim: "Trago-te a cri-
ança de uma noite de Idumeia". Idumeia, diz o Antigo Testamento,
é uma região desértica, um país mantido por Deus, onde vivem ho-

171
Os Destinos da Pl{lrão

mens sem mulheres e que só podem gerar monstros. O poema-


criança de Mallarmé será certamente uma cria monstruosa. Avalia-
mos a distância, a diferença com o poema de René Char. Apressemo-
nos, entretanto, em precisar que Mallarmé não permanecerá nisso.
1\0 contrário, esse é o ponto no qual ele se engaja numa verdadeira
escrita. A poética de Mallarmé parte de Herodíade, ao mesmo tem-
po que desse poema: "Trago-te a criança de uma noite de ldumeia".
Ele dá essa criança pobre e pálida à mãe da qual nada sabemos, se
ela poderá ou não alimentá-la.

Tomarei como terceiro exemplo alguns versos de Yves


Bonncfoy, que dizem as seguintes palavras: "o que pode dizer no
fim do combate/ aquele que foi vencido por probantes palavras".

Essa é uma fala que poderia ser a de qualquer analisante. O


poeta prossegue: "Eu não passo de palavras intentadas contra a
ausência./ Sim, é dentro em pouco perecer por só ser palavras/ E
é tarefa fatal e vão coroamento".
Para Bonnefoy, diferentemente de Char e de Mallarmé, o
poema é um dever; os poemas, ética de nomear. Amor e procria-
ção que vimos em Char e Mallarmé, não são nomeados aqui.

São simplesmente três opiniões através das quais o poeta


deixa entender do que se trata quanto a sua verdade, sem o recurso
ao analista; pela representação, simplesmente.

Através do símbolo ~eiam o Seminário sobre Joyce), o poeta


faz sintoma. E cabe a toda a arte, a todo o artificio que reside nessa
duplicidade do símbolo e do sintoma de fazer deles um objeto de arte.

NOTAS

1- Conferência pronunciada em Vannes, setembro de 1990

Tradução: Vera Lúcia Avellar Ribeiro

172
PERCURSO FREUDIANO DA SUBLIMAÇÃO

Joseph Attié
Membro da École de la Cause Freudiemze. Membro da Escola Brasileira de
Psicanálise

Não dispomos do famoso estudo de Freud sobre a subli-


mação, que fazia parte dos doze textos de sua Metapsicologia e que
teria sido escrito nos anos de 1914-15. Não dispomos de um tal
estudo, de uma teoria da sublimação propriamente dita. Mas Freud
não deixou, durante quase toda a sua vida, de referir-se a esse des-
tino parúcular da pulsão que é a sublimação.

Mais precisamente, que eu saiba, a aparição desse termo


em Freud encontra-se no relato do caso Dora por volta de 1900.
"Mal-estar na civilização" e a quarta de suas "Novas conferências
introdutórias à Psicanálise" trazem precisões assim como simples
evocações da tese central de Freud: a sublimação constitui um dos
quatro destinos da pulsão. É isso que faz da sublimação um conceito
analítico. Ao mesmo tempo, e de modo curioso, é preciso acrescentar
que este conceito não concerne à experiência analítica propriamente
dita. Não foi do processo dos tratamentos analíticos por ele conduzi-
dos que Freud destacou a sublimação. Por uma razão simples, talvez:
é c.1ue os que são capazes de proceder por sublimação geralmente
não recorrem a um tratamento analítico. Digo isso de um modo
bem geral; no caso particular, muitas vezes ocorrem pedidos de
ajuda ao psicanalista. Nestas condições, a demanda formulada é muito
precisa: que o tratamento permita a retomada do trabalho de subli-
mação paralisado por algum sintoma, inibição ou angústia.
Os Destinos da Pulsão

Estamos, então, na fronteira destes dois destinos da pulsão:


o recalque, que produzirá o sintoma, e a sublimação. O sintoma não
é, com certeza, uma sublimação. Deixemos assim para retomá-lo
mais adiante. A pergunta que merece ser colocada aqui é a seguinte:
em que medida a sublimação é um sintoma?
De um modo geral a sublimação, conduzindo-se de outro
modo, fora do recalcamento, esquiva o que constitui o fundo de
toda experiência analítica: a questão da castração. Retomo assim a
tese de alguns trabalhos psicanalíticos.
No sentido mais particular do termo, acabo de assinalá-lo,
a sublimação nem sempre é bem sucedida, e pode levar aquele que
a pratica a uma demanda de análise. E aqui vê-se melhor o contraste
entre o recalcamento e a sublimação.
O emprego que darei ao termo sublimação remete a seu
sentido nobre, por assim dizer, ao sentido de todo processo criati-
vo. Freud empregou esse conceito para descrever alguma coisa muito
mais geral, tal como a transformação do amor em ternura. Para
Freud, isso constitui uma sublimação pelo simples fato da pulsão
tornar-se dessexualizada.
Com freqüência este termo era usado pela maioria dos dis-
cípulos de Freud numa acepção geral, ou seja, no sentido de qual-
quer possibilidade de adaptação à realidade. O grau de sublimação
torna-se assim o grau de normalidade. Trata-se de uma flexibilidade
e de uma maleabilidade da pulsão, oposta a toda rigidez neurótica.
Flexibilidade que permite à pulsão abster-se de sua satisfação sexual
ao encontrar um alvo substituto.
Não é nessa ótica, portanto, que interrogarei esse conceito.
Ao contrário, enfatizarei a dimensão criadora justamente para isolar
um funcionamento particular da pulsão. Chego assim à concepção
de sublimação que se pode destacar nos escritos de Freud.

174
Joseph Attié

Não terei tempo de fazer o percurso freudiano anunciado


no meu título. Contentar-me-ei em definir os eixos principais que
estão no cerne do texto freudiano, para levantar algumas questões.
Freud, de fato, inicia os "Três ensaios sobre a teoria da se-
xualidade" com a questão da pulsão sexual que tem um alvo e um
objeto. É na parte de sua obra concernente aos desvios referentes
ao alvo que Freud introduz o conceito de sublimação. Com efeito,
a pulsão pode encontrar obstáculos à sua própria satisfação. Ela é
então obrigada a formar novos alvos, tais como contentar-se em
tocar e olhar o objeto sexual. "Da mesma forma - acrescenta
Freud - numa outra direção, a curiosidade pode transformar-se
no sentido da arte ("sublimação''), quando o interesse não está mais
unicamente concentrado nas partes genitais, mas estende-se ao con-
junto do corpo" 1•
Aqui, muitas observações:
a) Dir-se-ia que essa frase de Freud foi feita para originar
seu estudo sobre Leonardo Da Vinci: o interesse sexual inibido,
transformado em arte. Porém as telas de Leonardo permaneceram
inacabadas. Ele trabalhava lentamente, nem sempre terminava seus
quadros, em geral pouco numerosos. E, além disso, seu interesse
pelo corpo tornou-se uma curiosidade científica, remetendo à ana-
tomia, prolongando-se pelas leis do vôo, máquinas de guerra, ar-
quitetura etc.
b) As aspas com que Freud assinala o termo "sublimação",
empregado pela primeira vez, nos deveriam lembrar que esse ter-
mo, em sua origem, tem um sentido alquímico. Em geral, atribuí-
mos sua aparição na literatura numa referência a Goethe, no sentido
de uma elevação moral.
c) É preciso realçar aqui a nota de 1915 sobre a idéia do
belo nos "Três ensaios":

175
Os Destinos da P11/sào

Parece-me indiscutível que a idéia do belo tem suas raízes 11a excitafão
sexual e que, originariamente, ele (o belo) não designe outra coisa senão o
que excita sexualmente. O fato de que os órgãos genitais, c,ga visão
determina a mais fane excilafão sexual, não possamjamais ser considera-
dos como belos, está relacionado com isso.

Observem, portanto, o caráter peremptório das afirma-


ções de Freud: "parece-me indiscutível", "não possam jamais ser
considerados como belos" etc. Estamos, de fato, no cerne da subli-
mação tal como Freud vai explicitá-la ao longo dos anos. Como
não me é possível continuar o comentário do texto passo a passo,
transmito a ·vocês as principais teses de Freud sobre o assunto.

l. Inibida quanto ao alvo, a sublimação igualmente constitui


uma satisfação da pulsão. Lacan destacou esse paradoxo. E a ques-
tão que se coloca é a de saber qual é, portanto, a natureza dessa
satisfação. Não hesitarei em designar essa satisfação de gozo. De
fato, não se passa a vida borrando telas ou escrevinhando papéis,
freqüentemente morrendo na miséria, sem encontrar nisso um gozo.
Qual é, então, a natureza desse gozo?

2. Na sublimação há mudança, deslocamento de objeto. Se


c1uisermos demonstrar o caráter não natural mas inteiramente se-
cundário do objeto para a pulsão, a sublimação surge como sua
mais patente ilustração. E aqui é preciso observar que Freud recor-
reu a um outro termo diferente de sublimação, que existe na língua
alemã. Freud usava o termo Sublimiemng. Michcl Silvestre, cm seu
artigo sobre a sublimação2, destacou esse ponto para avançar a hi-.
pótesc, que me parece bastante correta, de que ao insistir mais sobre
Sublímienmg do que sobre sublimação, Freud enfatiza menos o re-
sultado que o processo da sublimação, ou seja, em alemão o produ-
to é melhor conotado por sublimação.

Não resta dúvida que na sublimação o processo, quer dizer,


o deslocamento de um significante para um outro, o que Jakobson
chama de "substituibilidade", em suma, o caminho percorrido, é

176
Joseph Attié

muito mais importante que o objeto da viagem. Esse deslocamento


é a própria essência do processo, a ponto de podermos perguntar:
onde está, então, seu limite? Pois bem, justamente esse é um ponto
fundamental: não há limite, não há ponto de confinamento. A pulsão
não cessará de refazer seu circuito. E, em geral, o trabalho, quer
dizer, o combate com a língua - para falar dos escritores - cessa
quando desaparece o combatente. É a morte que põe um ponto
final nesse processo. Maurice Blanchot é inexaurível neste assunto.

Blanchot leu tudo o que se pode ler, desde os pré-socráticos


até Marguerite Duras, passando por Kafka, Mallarmé, Freud, Lacan
e mesmo Serge Leclaire. E quando se pôs a querer nos dizer no que
reside a verdadeira essência da literatura - pode-se generalizar para
as outras artes - , ele o formula em um único ou em milhares de
termos, mas que dizem a mesma coisa: o inacabável. Quem se engaja
na literatura engaja-se numa palavra infinita, um eterno repetitório, o
que pode, se quisermos, ser traduzido pela seguinte frase: "Isso
nunca aconteceu, jamais houve uma primeira vez e, no entanto, isso
recomeça de novo, e de novo, infinitamente".

É possível que nesta frase Blanchot tenha se inspirado em


J\fallarmé. Este, no final de sua vida e ao término da obra-prima
que produziu, Le coup de dés, chega a segu1nte fórmula:
Nada
Terá tido lugar
senão o lugar
inferior marulho insignificante como para dispersar
o ato vazio. 3

E recomeçar por um novo Lance de dados evidentemente.

É evidente que o inacabável de que nos fala Blanchot não é


contingente, mas de estruturi. Não é por se ter detido após três
frases, três poemas ou três romances que a obra é dita inacabada.

177
Os Destinos da Pnlsão

A obra pode estar inacabada à proporção do vazio que ela


soube segregar em seu próprio coração. Os exemplos não faltam
para ilustrar esse ponto de vista. Há, com freqüência, ilusão quando
se imagina que uma obra está terminada e ilusão, por exemplo,
quando se imagina que se Proust tivesse vivido mais alguns anos,
teria terminado sua busca do tempo perdido.
Essa falta, que parece ser questão de tempo, remete ao va-
zio da obra que só pode nutrir a si mesmo. Exterior e interior só
fazem designar essa extimidade de das Ding, termo utilizado por
Lacan e ao qualJacques-Alain Miller consagra um ano de seminários:
'~\ sublimação - observava Miller - consiste em instalar no lugar
do vazio da coisa, o imaginário do fantasma".
Maurice Blanchot, portanto, falou como um verdadeiro
"expert". Entretanto, seu único erro foi aplicar sua descoberta à
obra de Freud, confundindo-a com o inconsciente. Isso para dizer
que a teoria analítica introduz alguma coisa totalmente diferente com
relação a esse tipo de destino da pulsão. Indicação sobre a qual
retornaremos.
3. A terceira tese de Freud referente à sublimação assinala o
fato de que esse deslocamento vai fundar-se numa dessexualização.
Aliás, isso nos remete, por ser uma conseqüência, à inibição quanto
ao alvo da pulsão em jogo. Vocês o sabem, Lacan o elaborou e
demonstrou suficientemente: entre a linguagem e a sexualidade há
um desentendimento fundamental do qual padece o ser humano.
Essa relação que se define por ser uma não relação, reenvia-nos a
essa antinomia entre o simbólico e o real. Abro assim a questão,
tendo balizado seu rastro em Freud a propósito da sublimação.
4. A quarta tese de Freud concernente à sublimação, nós a
encontramos em "Introdução ao narcisismo". Há que se dizer que
Freud foi absolutamente extraordinário nesse texto. No jogo do
vaso comunicante entre libido de objeto e libido do eu, no qual é

178
Joseph Attié

muito difícil saber o que acontece à direita e o que se engaja à es-


querda, Freud encontra aí o momento de colocar, de dizer que a
sublimação é um processo concernente à libido de objeto, sendo a
ênfase colocada sobre o desvio que afasta do sexual.
Uma segunda distinção é operada nesse texto: sublimação e
idealização como dois conceitos inteiramente diferentes. A menor
das afirmações de Freud levanta muitos problemas e merece lon-
gos desenvolvimentos e interrogações. Mas já que é preciso andar
em marcha acelerada, vou simplesmente relembrar como Freud
sustenta sua argumentação. A idealização e a sublimação são pro-
cessos concernentes ao objeto. No entanto, e diferentemente da
sublimação, através da idealização "o objeto é engrandecido e exal-
tado psíquicamente sem que sua natureza seja mudada".
A idealização seria, de algum modo, uma fixação a um
objeto. Nesse sentido ela pode aumentar as exigências do cu (moz) e
agir em favor do recalcamento. Ora, a sublimação concerne direta-
mente à pulsão. Desse modo, e por sua plasticidade e seu desloca-
mento, ela representa "a saída que permite satisfazer às exigências
do cu (mot) sem ocasionar o recalcamento". Já que a satisfação sexu-
al é inibida, agora ou nunca é tempo de lembrar a tradução do Tn'eb
que fez Lacan num dado momento: o Trieb é uma deriva. Pois bem,
mais uma vez a sublimação ilustra perfeitamente do que se trata
nessa tradução. É uma deriva onde o sujeito inventa seus próprios
significantes; daí o gozo em jogo.

Esta é a tese de Freud em seu texto sobre o narcisismo.


Sobre esse ponto específico, eu os remeto ao desenvolvimento fei-
to por Michel Silvestre. Isso conduz a uma outra questão sobre a
qual me deterei um pouco.
Está entendido que a pulsão, na sublimação, é dessexualizada.
Mas qual é a natureza da libido que serve, se assim posso dizer, de
combustível para a sublimação? Sobre esse ponto, Freud jamais

179
Os Destinos da Pulsão

mudou de posição: o que caracteriza a sublimação, em relação aos


outros destinos da pulsão, é que ela se funda sobre uma parte da
libido não recalcada.
Aqui uma precisão, uma precaução indispensável. Freud trata
a libido como uma energética. E esta não é alguma coisa abstrata,
mas encontra-se, segundo o próprio Freud, enganchada na
Vorsteilungsreprdesentanz, o que Lacan chama de a ordem, o conjunto
da cadeia significante em sua própria sincronia.
Para guardar a terminologia freudiana, colocarei a questão
da natureza econômica, dinâmica e tópica dessa libido não recalcada..
Para responder a essa questão, é preciso voltar aos dois outros estu-
dos metapsicológicos que são: "O Inconsciente" e "O recalque".
No texto sobre o inconsciente, Freud assinala, desde as pri-
meiras linhas, que recalcado e inconsciente não se superpõem. Tudo
o que é recalcado é sem dúvida inconsciente, mas o inconsciente
tem uma extensão mais larga que o recalcado, o qual é apenas uma
parte do inconsciente. Então, será possível dizer que existe algo de
não recalcado no inconsciente?
Uma precisão impõe-se aqui. Falar deste modo do incons-
ciente pode fazer supor que ele constitui um continente, uma reser-
va de onde basta escavacar os significantes. Essa não é a concepção
de Freud nem de Lacan sobre o inconsciente. Do mesmo modo, é
Freud quem observa: "Não se está dizendo nada de uma moção
pulsional quando nos contentamos em constatar se ela é recalcada
ou não".
Observem, portanto, que acabamos de passar a uma mo-
ção pulsional. E o que está recalcado pode ser ativado ou não pela
pulsão. Estamos na ordem do pulsional: o grau de ativação ou de
investimento é que decide o destino da representação. "E ocorre -
diz Freud em "O recalque" - ser precisamente a ativação que
carreia o recalque"\

180
Joseph Attié

O poeta, por exemplo, produz seus signÍficantes investin-


do-os, mas sem produzir recalcamento. Já a ativação, sob a forma
do que vem no sonho ou no lapsus, é a insistência da cadeia
significante, uma chamada à ordem para constituir o significante.
Portanto, o que se depreende como conclusão nos anos 1915
é que o inconsciente engloba um certo número de representações
não recalcadas por não serem investidas. Estamos na primeira tópi-
ca de Freud. Se nos debruçarmos sobre "O Eu e o Isso", a posição
de Freud sobre esse ponto permanece a mesma: "Tudo o que é
recalcado é inconsciente, mas existem elementos inconscientes que
não são recalcados"5. Insisto, portanto: qual é o estatuto desses ele-
mentos não recalcados mas que estão no inconsciente?
Há aí alguma coisa desde sempre presente, mas que não é
sequer recalcada. Com Lacan, é possível especificar que se trata de
alguma coisa que não cessa de não se escrever. Eis aqui circunscrito esse
elemento do real no próprio rastro da teoria freudiana. É um· furo
no simbólico. Freud muito certamente designou es·se furo ao falar
do umbigo do sonho. Há um limite do qual não se pode ir além daquilo
que decorre do recalcamento originário.
Para explicitar agora esse furo no simbólico, no que tange à
nossa questão sobre a sublimação, vou me referir à resposta que
Lacan deu a Marcel Ritter sobre o termo alemão de Unerkannte6.
Ritter esbarrou com o prefixo Un, com freqüência encon-
trado cm Freud, tal como nos termos Unbewu{3te, Unheimliche,
Unerkannte. Este último foi traduzido como desconhecido. Na ver-
dade, é o não reconhecido, o real não simbolizado. Trata-se de um
real pulsional, pergunta Ritter a Lacan? Não, responde Lacan. Ele
não acha que esse não reconhecido seja o real pulsional. Em compensa-
ção, Lacan fica gratamente surpreendido ao ouvir falar de real
pulsional pois: "Há um real pulsional unicamente à medida que o
real é aquilo que, na pulsão, reduz-se à função do furo".

181
Os Desti11os da Pt1lsão

Esse furo não designa nada além do que os orifícios


corporais, o que é preciso distinguir daquilo que funciona no
inconsciente.
Permitam-me, nesse momento, distinguir três tipos de real:
o do recalque primário, que está na própria origem da linguagem
- "alguma coisa, diz Lacan, que em nenhum caso pode ser dita"; o
real do sintoma - entendo por isso a parte que do sintoma pode
simbolizar-se, vir à luz do significante, podendo assim cessar de não
se escrever; e, enfim, o real pulsional.

T,acan tira proveito desse Un que designa a impossibilidade,


o limite, mas no sentido cm que, acrescenta ele, "quando falamos
da 'impoética', esse é o fundo sobre o qual se produz o poético".
Não acho, de modo algum, que seja por acaso que Lacan recorreu
à poesia.
Para concluir, Lacan vê entre o real designado pela Unerk.annte
e a U nverdriingte uma relação de analogia com o real pulsional. O que
faz furo é o que faz laço. É a esse real pulsional que cu tenderia a
articular o que Freud chamava de libido não recalcada.
Quanto aos três reais que quis distinguir em minha exposi-
ção, é evidente que eles têm um mesmo fundo comum: o do gozo
l]UC se modula diferentemente nos seres humanos. Desse real, isto

é, da fantasia, deste gozo Joyce elaborou seu sinthoma.


Não é qualquer um que pode trabalhar diretamente -
enfatizo trabalhar - a partir de sua fantasia. Esse sinthoma de Joyce,
ou seja, um Nome-do-Pai, é uma sublimação. Compreende-se me-
lhor agora porque Lacan sustenta que o neurótico não é dado à
sublimação. É porque o neurótico goza em silêncio, em segredo e
com vergonha. É quando o sintoma se faz muito ruidoso que ele se
põe a falar e deixa filtrar, muito a contragosto, daquilo que se trata
em sua fantasia e em seu gozo. O puro funcionamento da pulsão
no lugar da fantasia é a especialidade do criador.

182
Joseph Attié

O analista pode chegar à travessia da fantasia. Como, então,


funciona sua pulsão? Essa é a questão que Lacan coloca no Seminário,
livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise é a mesma que a do
passe.
Mas, primeiramente, é preciso dizer que o neurótico paga
caro por isso: o preço se chama castração. Uma perda de gozo.
Se ele se põe a trabalhar, ele pode então sublimar. Mas não
é mais a sublimação no sentido primeiro do termo, por ser toda a
economia da subjetividade humana que mudou em relação à pulsão.
E para que isso não seja coisa abstrata, eu os remeto ao diálogo
de Sócrates com Híppias sobre o belo. Ele se conclui com uma questão:
"O belo será o bem, ou é o bem quem funda o belo?"
Se devemos inscrever o desejo do analista em algum lugar,
não é entre o belo e o bem, mas em relação à questão do saber e da
verdade.
A sublimação, cm sua ordem arústica, pode ser dita como
uma resposta da pulsão, do real, ao impossível da relação sexual.
Aquele que sublima, elabora seu sintoma a partir de sua fantasia. O
neurótico chega a sua fantasia a partir de seu sintoma.

NOTAS
1- FREUD, S. Trois essais mr la théorie de la sex11a/ité. Paris, Gallimard, 1987, p. 42
2- cf. Omicar?, n. 19.
3- No original: Rie11/ N't111ra eu liett/ q1te !e lieu/ infériettr clapotis q11elconq11e
comme po1tr dispcrser/ l'acte vide.
4- FREUD, S. "Le refoulement''. Em: Métap!]chologie. Paris, Gallimard, 1985,
p. 54
5- FREUD, S. Essais de P!]chanafyse. Paris, Payot, 1981, p. 185.
6- cf. Lettre de L 'École, n. 18.

Tradução: Vera Lúcia Avellar Ribeiro

183
SUBLIMAÇÃO E SINTOMA

Stella Jimenez
Membro da Escola Brasileira de Psicanálise

Sublimação

Freud pensa a sublimação como mais um destino da pulsão


- junto com o recalque, o retorno sobre o próprio sujeito e a
transformação em seu contrário - ou seja, como uma das vicissi-
tudes que podem acontecer com uma pulsão. Às vezes ele teoriza
que esse destino é posterior ao recalque; em outras, como uma
transformação direta que evita esse outro mecanismo. Em deter-
minado momento chega a arriscar uma gênese: o narcisismo subs-
titui o objeto sexual pelo próprio ego através da identificação, e
depois propõe à pulsão uma nova finalidade não sexual'.
Mas eu duvido que a sublimação seja um destino da pulsão.
Parece-me mais uma outra maneira de satisfação pulsional e -
nisso estou de acordo com Freud - certamente mais efetiva.
Mais efetiva em quê? A pulsão visa contornar o objeto. Duas
significações aparentemente contraditórias podem ser atribuídas a
esse contornar. Por um lado a pulsão contorna o objeto para elidi-lo,
para evitar o confronto com ele, para evitar a percepção da falta. A
pulsão tenta fechar o corte que o significante do desejo do Outro
abre no corpo. O paradigma disto seria a famosa frase: "Quem
dera que eu pudesse beijar meus próprios lábios". A satisfação
Os Destinos do P11/são

pulsional compensa aquilo que a promessa de amor tem de frus-


trante2. Mas contornar o objeto tem também a significação de lhe
dar contornos, presentificá-lo. E é neste sentido que a sublimação é
mais eficaz. A sublimação é a forma privilegiada de fazer aparecer
o vazio, como mostra a primitiva arte de fazer potes e a pintura
rupestre. As paredes das cavernas eram pintadas para que o vazio
central tomasse relevo.
Na dialética alienação-separação a pulsão, mesmo sendo ali-
cnaçào pela articulação na demanda, no registro do real é separaçào.
Ú aquilo que é de inteira responsabilidade do sujeito: mostra sua
forma particular de velar a castração e de evidenciá-la, sua forma
individual de sustentar o desejo. Também neste aspecto de separar,
responsabilizar e individualizar a sublimação é mais eficaz.
No momento que a pulsão fecha seu circuito se estabelece,
segundo Freud, um novo sujeito. Para Lacan esse novo sujeito é
acéfalo\ um sujeito que se verifica como objeto. A visada da pulsão
é, em seu fundamento, isto: presentificar a referência última do su-
jeito como objeto e simultaneamente a diferenciação do objeto.
Posso exemplificar isto com o exibicionismo/voyeurismo: no mo-
mento que o circuito se fecha, presentifica-se o objeto olhar e o
sujeito se percebe como o olhar que é apreendido e como o sujeito
que deseja o olhar. O sujeito é e não é seu objeto e, dizendo-o de
uma forma mais rigorosa ainda, não é nem o sujeito nem o objeto,
mas aquilo que vacila constantemente entre ambos. A sublimação
também consegue isto de forma mais eficaz e evidente. O sujeito se
verifica sendo o objeto criado e ao mesmo tempo dele se diferen-
cia. O autor é a sua obra e simultaneamente não o é. Flaubert dizia
"Madame Bovary sou eu".
Considero sublimação toda atividade humana aparentemen-
te dessexualisada. Penso, como Lacan, que até falar seja uma subli-
mação.

186
Stella Jimenez

Sinthoma

A partir do Seminário, livro 22: RSI Lacan percebe que o nó


de três elos é sempre falho, pois ele não permite uma verdadeira
referência do sujeito no nó, nem uma diferenciação entre os três
registros. Os três tendem a se confundir em um só. Os elos que
compõem o nó são marcados por letras que distinguem os três
registros: o real - R - como ex-sistência, o imaginário - I -
como consistência e o simbólico - S - como furo. No entanto,
se olharmos mais de perto, veremos que há uma homogeneidade
de base entre o real, o simbólico e o imaginário. Isto é, cada um
destes elos ex-siste, tem consistência e tem furo. Uma vez que são
indiferenciados, cada elo pode se confundir com outro. Os três elos
podem mudar de lugar e de orientação, fazendo que o sujeito, que
deve se referenciar nos pontos em que os três elos se superpõem
mediante um estiramento do nó, fique sem lugar (figura 1) e sem
possibilidade de distinguir os registros.

s
figura 1

Um quarto elo é necessário para assegurar a amarração


borromeana, diferenciar os outros três e lhes dar orientação. A rea-
lidade psíquica, isto é, o complexo de Édipo, constitui na neurose o
quarto elo ou rinthoma. O sinthoma singulariza o sujeito mediante o
estabelecimento de um enlace privilegiado com o elo do simbólico
(figura 2), o que permite diferenciar o simbólico e, consequentemente,
o imaginário e o real . Sem o quarto elemento, o nó triplo pode ser

187
Os Destinos da P11Jsão

equivalente ao nó trevo (figura 3), no qual é clara a continuidade e o


prolongamento de um registro no outro, nó que caracteriza a para-
nóia. Durante o surto os três elos que compõem o nó se rompem.
No processo de reconstrução do sujeito pelo delírio, as pontas rom-
pidas são emendadas, configurando um nó trevo. Neste caso, a ca-
deia borromeana - impropriamente denominada nó, pois de fato é
uma cadeia, ou seja, formada por elos distintos - transforma-se em
um nó, no qual um único elo configura os três campos~. Assim, na
paranóia uma alucinação é simultaneamente real, imaginária e simbóli-
ca, sem que os três registros possam ser diferenciados.

figura 2 figura 3

Reciprocamente, tudo aquilo que permite a diferenciação


dos elos e simultaneamente os amarra funciona como sinthoma ou
como quarto elo. Por isso a escrita (a planificação) do nó de três
funciona fixando-os e permitindo uma diferenciação; daí toda es-
crita ter algum efeito de sinthoma.

Sublimação e sinthoma

Apesar de aparentemente Lacan só ter percebido no final


da sua obra que o produto da sublimação funciona como o quarto
anel, ou seja, como o sinthoma, esta idéia já estava antecipada no

188
Stello Jimenez

Seminário, livro 7: a ética da psicanálise, quando definiu o reconhecimen-


to da função paterna como sublimação\ possivelmente porque a
função paterna eleva a mãe à dignidade da Coisa. Assim estaria já
antecipada a idéia de que o quarto anel, que na neurose é o comple-
xo de Édipo, seria o efeito de uma sublimação, conhecida como
interdição do incesto.
Como isto poderia ser pensado? Talvez concebendo a inter-
dição do incesto como uma invenção do ser falante, e por conseqü-
ência como uma criação ex-nihilo. O produto da sublimação funcio-
naria como sinthoma porque permitiria concretizar a amarração dos
elos e estabelecer a diferença entre eles: a obra é um equivalente do
"oljeto pequeno d' no centro da amarração borromeana, e o resultado
da identificação e da separação do autor com sua obra é equivalente
a ter podido se situar dentro dos elos.
Esta amarração e esta diferenciação poderiam ser pensadas
da seguinte maneira: sabemos que a sublimação é um processo que
tende a fazer aparecer o vazio a partir do objeto, ou aquilo que o
objeto contém de vazio. Assim, a sublimação presentifica o real. Por
outro lado, toda sublimação tende ao belo, ou seja, àquilo que é o
último véu antes da aparição do real. O véu é do registro do imagi-
nário, mas exatamente nesse ponto em que imaginário e real ocupam
o mesmo lugar. O belo não é como os bens, que tendem a cingir o real
para não se aproximarem dele. Ao contrário, o belo conduz direta-
mente ao real; o belo está exatamente no lugar que está o real.
Por outro lado o belo corresponde a uma estética que Kant
definiu como transcendental, e Lacan retoma a idéia dizendo que a
topologia é a nossa estética transcendental. Para Kant trata-se das
intuições a priori, espaço e tempo - espaço e tempo são a substân-
cia da topologia lacaniana. De fato, são as relações matemáticas que
sustentam a estética, ou seja, algo da ordem simbólica. Isto se evi-
dencia no número de ouro, pensado pelos antigos como uma mar-
ca divina por sua repetição em tudo o que é belo.

189
Os Destinos da P11/são

Aquele que produz uma obra, seja esta uma obra de arte ou
não, articula os três registros. Na neurose e na perversão a obra
tende a opacificar aquilo que do sinthoma se faz escutar como verda-
de, como demonstrei num trabalho sobre Gidé, talvez por uma
consolidação do .rinthoma (voltas a mais num .rinthoma que existia
previamente), que o faz mais eficaz e ao mesmo tempo menos
transparente. Já na psicose a obra pode funcionar como quarto elo
e produzir uma estabilização da estrutura.

NOT,\S

1- FREUD, S. "El yo y el ello". Em: Obras completas, tomo II. Madrid, Bibli-
oteca Nucva, 1968, p. 17.
2- L:\CAN, J. O Seminário, livro 4: a relação de oijeto. Rio de Janeiro, Jorge Zahar
Editor, 1995, p. 178.
3- LACAN, J. Le Séminaire, Livre XI: Les q11atre concepts fa11damenta11x de la
p.rychcma!Jse. Paris, Seuil, 1973, p. 165.
4- PEQUENO, A. & JIMENEZ, S. "Joyce, o sinthoma ", Boletim da EBP
Sepio-Rio, julho 1995.
5- L.\C.AN, J. O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro, Jorge
Zahar Editor, 1988, p. 17 8.
6- JIMENEZ, S. "Ci-gide: efeitos subjetivos da obra literária". Em: Quinet, A.
(org), Jacques Lacan: a psica11álise e 111as co11exões. Rio de Janeiro, Imago, 1993, p.
107.

190
O FILHO NECESSÁRI0 1

Colette Soler
Membro da École de la Cause Freudienne. Membro da Escola Brasileira de
Psicanálise

Se Lacan dedicou um Seminário a James Joyce (Seminário, livro


23: o sinthoma, 1975-6), não foi por razões literárias mas porque acre-
ditou ver em Work in progress de Joyce um exemplo extremo e para-
doxal de sintoma, segundo a definição generalizada de sua estrutura
que propôs em um Seminário anterior: RS.J.
A tese de Lacan é que Joyce aprimora2 o sintoma ao fazer
"existir" o inconsciente fora do sentido. Aprimora o sintoma até
seu estado supremo. Eis o termo usado por Lacan: Joyce ilustra o
puro gozo da letra fora do sentido e deste modo permanece fora
do símbolo, sempre condensador de sentido. Que há nisso de espe-
cial? O que há aí de especial não é o fato de que Joyce goze da letra
fora do sentido, mas que disso goze por meio da literatura. Isto é
um paradoxo extraordinário. O ensino de Lacan nos propõe outro
exemplo de puro gozo da letra: a caligrafia, gozar de traçar o traço
único, de um só golpe. Pode-se conceber que é um gozo fora do
sentido, uma arte da riscadura (tachadura), que justamente não é uma
riscadura literária. Lacan jogou com a assonância entre literatura e
riscadura. Não é difícil entender que a paixão da caligrafia é uma
localização de gozo que deprecia o campo do símbolo e que por
O.r De.rtino.r da Pulsão

isso também deixa o Imaginário fora do jogo. Mas que através da


literatura alguém chegue a depreciar o símbolo, isto é um paradoxo.
Pois toda literatura, inclusive a mais pura poesia, trança sempre o
gozo da letra com o gozo do sentido. Todas as proporções são
possíveis, mas sempre entre esses dois elementos.
Lacan reconhece em Joyce uma literatura que desordena o
sentido. A idéia de Lacan é que o desordena por um uso especial do
equívoco. Entende-se que isso interesse a Lacan e aos psicanalistas
em geral porque, se seguimos a prática de Freud e a teorização que
Lacan dela fez, o equívoco é do que dispomos contra o sintoma.
Lacan o disse muitas vezes e volta a dize-lo ainda no Seminário sobre
Joyce: o equívoco é tudo de que dispõe o analista para desordenar
(desbaratar) o sintoma. Ele o diz em "O aturdido": ''A interpretação
produz seu efeito pelo equívoco". Retoma-o no Seminário, livro 22:
RS.l. e confirma-o no Seminário sobre Joyce. O paradoxo é que
Joyce trama o próprio equívoco como sintoma. Onde o analista
utiliza o equívoco para desfazer uma fixação sintomática de gozo,
Joyce faz exatamente o contrário. O jogo com o equívoco na psica-
nálise tem um objeto preciso.
A interpretação que utiliza o equívoco finge equivocar-se
do significante3 e, rivalizando com o lapso, aparenta (hace semblante)
enganar-se para fazer aparecer outro termo por trás do termo sin-
tomático e assim conectar o Um do sintoma a uma cadeia na qual
seu gozo se metonimiza e toma outro sentido. Joyce, ao contrário,
utiliza o equívoco para fazer ex-sistir o inconsciente. Fazer existir o
inconsciente quer dizer subtrair a letra à cadeia do sentido,
desconectá-la do inconsciente como sentido e fixá-la pelo gozo.
Por isso Lacan pode dizer que Joyce abole o sentido, uma vez que o
símbolo está sempre cheio de sentido, inclusive quando se erige e se
isola como Um. Joyce acentua um aspecto que está presente em
todo sintoma, pois todo sintoma é uma ofensa ao sentido, mais
precisamente ao sentido comum. O sentido comum, o que se cha-

192
Co/ette S o/er

ma o bom sentido, a sensatez, o que nos permite reconhecer-nos


mais ou menos com o vizinho, o sentido comum no qual o chama-
do louco não logra muitas vezes manter-se, é produzido pelo dis-
curso. O sentido comum é um efeito do ajuste do gozo pelo dis-
curso do Mestre. O segredo da eleição do sentido é sempre o gozo.
E o segredo do sentido comum é o gozo ajustado segundo as leis
comuns do discurso.
O sintoma opõe-se ao sentido comum. O sentido que se
chega a dar na psicanálise ao sintoma neurótico ou perverso nunca
é comum; é um sentido singular. Não há sentido comum do sinto-
ma neurótico, disse Lacan mais de uma vez. O neurótico cm seu
sintoma está retirado (desabonado) do sentido comum. Parcialmente
retirado do sentido comum, pois não é louco. Joyce, no dizer de
Lacan, está retirado do inconsciente; é um retirado voluntário, um
retirado diligente e consciente de sê-lo. Em Stephen I-íero,Joycc diz o
que para ele é o inferno dos infernos: o jovem.
Stcphen - que nada mais é do que o porta-voz de Joyce
- diz: "Estava decidido a lutar com todas as forças da alma e do
corpo contra todo o possível de consignar no que agora considera-
va o inferno dos infernos - a região, dito de outro modo - na
qual tudo se encontra óbvio"\
A evidência, ligada ao sentido comum, do que resulta que
todos pensem um pouco igual, que repitamos o mesmo disco, é
para Joyce a pior coisa. O jovem Stephen - Joyce - se dedica à
carreira literária de maneira decidida, com uma intenção fundada
no ódio e no asco profundo pelo que é evidente, pelo que indica
consenso ou acordo. Não é indiferente para nós que esta afirmação
surja numa passagem na qual Joyce está falando do tesouro das
palavras e da linguagem e em páginas nas quais se surpreende hip-
notizado pelas conversas mais banais. Lendo estas páginas se pode
observar que o hipnotizam porque dá às palavras um valor além
do dito no contexto comum.

193
Os Destinos da Pulsão

Lutar contra a evidência tal é sua palavra de ordem de artis-


ta, a situar do mesmo lado do que chama as epifanias. Essas epifanias,
que tanto deu o que falar, se constroem com um modo muito
simples em Joyce: toma um objeto, uma cena, uma frase e os retira
do que habitualmente se chama seu contexto, isto é, os extrai do
contexto em que este objeto, esta cena, esta frase têm um sentido
que é um sentido banal. Quando se lê aparece claramente que se
trata de uma técnica que vai do dois, o dois necessário na escrita
mínima para definir um contexto - ou seja, S1-S 2 - até o só um
isolado. Joyce para construir suas epifanias rompe o contexto de
sentido e extrai esse objeto, isolando-o como S 1• Uma vez assim
erigido em sua solidão encontra ou supõe que este objeto, esta cena
ou esse fragmento de discurso comece a revelar algo mais ou me-
nos inefável. Isto não deixa de evocar-nos algo próximo de certos
fenômenos elementares da psicose, embora aqui não se trate de fenô-
men~s elementares mas de uma técnica literária. Ainda ocorre que Joyce
se divirta confundindo os comentadores, pois em seguida volta a colo-
car suas epifanias em outro contexto. Tendo-as tirado de um, coloca-as
em outro e desta maneira provoca uma nova interrogação.
Em resumo,Joyce usa a língua de maneira distinta da habi-
tual: a maneira com que joga com as palavras e com a letra o faz sair
do terreno do chiste. O chiste é também um jogo com a língua e
com a letra, mas que se detém na emergência de uma pequena
borbulha de sentido, ao passo que Joyce aprimora o jogo até o
limite em que já não há nada chistoso. Em sua escrita trata-se unica-
mente de matéria da letra, e o que interessou Lacan é que, finalmen-
te, o gozo de Joyce está mais próximo ao do matemático que,
assim como na caligrafia, também faz, ao seu modo, um curto-
circuito do sentido. Essa é a razão pela qual Lacan diz que Joyce
põe um ponto final no sonho. O sonho é a própria literatura, Finnegans
Wake é um despertar do sonho do sentido.

Então podemos inicialmente sublinhar que a arte de Joyce é


homogênea aos fenômenos elementares da psicose. Em segundo

194
Co/ette S o/er

lugar - é do que trataremos a seguir - há uma correspondência


entre sua arte e sua relação especial com o corpo. Podemos pergun-
tar de que modo Lacan teve a idéia de que Joyce era psicótico.
Dizer que Rousseau era paranóico, isso todo mundo sabe, mas Joyce,
psicótico, só um Lacan pode dizer algo assim, exceto nós mesmos,
que o repetimos depois de Lacan. E que a psicose de Joyce tenha
ocorrido a Lacan, nós o explicamos - sem que muito se tenha
revelado sobre isso - pelo fato de que sua escrita expulsa o imagi-
nário do sentido e de que é um jogo entre o Simbólico e o Real Pois
bem, Lacan define os fenômenos elementares da psicose como uma
interseção direta entre o Simbólico e o Real. "Porca" é um significante
que aparece no Real, fora do sentido, e se quisermos colocá-lo no nó
borromeano, teríamos que situá-lo entre Real e Simbólico. A alucina-
ção do dedo cortado do Homem dos Lobos é a mesma coisa, apesar de ser
uma imagem: o corte aparece no Real. Trata-se de uma interseção
direta entre o Simbólico e o Real sem a mediação do Imaginário.
Lacan começou perguntando-se: pode-se considerar Joyce
psicótico? Inclusive dirige esta pergunta num dado momento a
Jacques Aubert. Vemos desdobrar-se o tempo para compreender
no Seminário, livro 23: o sinthoma e finalmente há a conclusão de que a
psicose de Joyce não deixa dúvidas. Devemos interrogar este diag-
nóstico, não tão evidente à primeira vista, e perguntar no que Lacan
fundamenta sua certeza. Lacan suspeitou da psicose de Joyce a par-
tir de diferentes pontos. Em seguida era preciso que estes diferentes
pontos pudessem se conectar e enlaçarem-se, para que a conclusão
fosse válida. O ponto principal é o que Lacan considera como sin-
toma: a maneira de escrever de Joyce, sua maneira de tratar a língua
até o ponto em que realiza o Simbólico. Se consideramos a lingua-
gem como o campo do Simbólico, Joyce o eleva à dignidade do
sintoma, à dignidade do Real; é um modo de dize-lo seguindo a
definição de sublimação de Lacan. O Simbólico que se encontra no
Real ou que se torna Real é a definição da psicose desde o ponto de
partida de Lacan.

195
Os Destinos da P11/são

A enigmática escrita de Joyce é uma escrita separada, corta-


da do sentido. Lacan insiste muito neste ponto, na expulsão do
sentido na escrita de Joyce, expulsão da qual resulta que do sentido
só resta um pequeno vestígio, um pequeno resto que é o enigma.
De certo modo, poderíamos dizer que trata-se de um procedimen-
to metódico de foraclusão do sentido. Recordemos a passagem
citada em Stephen Hero, na qual Joyce diz que temos que eliminar a
evidência, custe o que custar. Não se trata apenas de (}Ue sofra com
a desaparição do sentido mas de que decida faze-lo desaparecer de
maneira metódica. Isto é o que evoca um procedimento de
foraclusào.
Em segundo lugar está o que Lacan localiza como outra
porta de entrada na psicose de Joyce: a relação com o próprio
corpo. Lacan apoia-se num pequeno fenômeno, um fenômeno tê-
nue do qual Joyce dá testemunho e que a Lacan não parece exage-
rado, ainda que lhe pareça raro: é o fenômeno da sova que Joyce
relata no Retrato do artista quandojovem. Quando foi surrado por seus
companheiros, a cólera se dissolveu, não se manteve como seria
normal para alguém que amasse seu corpo como a si mesmo. O
narcisismo é isso, identificar-se com seu corpo, sua imagem, o bas-
tante para amá-lo quase como a si mesmo. Pois bem, em Joyce isto
não se mantém. Joyce em várias passagens no-lo diz com muita
precisão. Podemos citar uma delas, se bem que Joyce tenha insistido
várias vezes cm seu espanto ante o fato de que suas paixões narcísicas
apenas esboçadas se dissiparam, se diluíram imediatamente.
Todas as descrições de excessivo amor e ódio que havia encontrado nos
livros tinham-lhe parecido, portanto, imais. Inclusive esta noite, quando
regressava para casa titubeando na fone '.r Road, sentira que algum poder o
desp'!)ara dessa cólera subitamente trançada, tão facilmente como umjruto
deJpqjado de sua pele tenra e madura. 5

Nele poderíamos também encontrar este sentimento em


outras passagens, o evanescente das paixões narcisistas que têm rela-

196
Colette S oler

ção com o corpo próprio e de maneira mais geral com o eu (yo). Ele
próprio, então, evoca uma deficiência do registro passional, do que
Kant chamaria o registro do patológico. É preciso ser Lacan para
extrair isto, já que as diferentes passagens em que podemos ler a evo-
cação destes sentimentos não somam mais do que vinte linhas num
grosso volume. Lacan apoia-se decididamente neste traço, e o diz
assim: "O abandono do corpo próprio é suspeitoso de psicose".
Em Joyce este fato não deixa de ter relação com seu tipo de
escrita. Assim, em Lacan há dois acessos à psicose de Joyce: o sinto-
ma literário e o abandono do corpo próprio. Qual é a razão, a lógica
desta equiparação? Que têm a ver uma escrita que rechaça o sentido
e a indiferença narcisista para com o corpo? Ambas convergem
por uma simples razão: têm a ver com a função do Imaginário e
são indícios da falta de nó entre Imaginário, por um lado, e Sim-
bólico e Real, por outro. Não há que perder de vista que o sen-
tido se produz na incidência do Simbólico sobre o Imaginário
(figura 1).
O sentido está sempre ligado ao imaginário do corpo. É
necessário não esquece-lo para poder ligar as duas portas de entra-
da na psicose em Joyce. Dito de outro modo, a expulsão do senti-
do em Joyce nos faz supor que não há enlace do Imaginário com o
Simbólico, o que se pode representar separando os dois círculos ou
superpondo-os sem enlace (figura 2).

figura 1 figura 2

197
Os Destinos da Pulsão

O sem sentido, o ilegível da escrita de Joyce tem correlação


com o fato de que, para ele, o sentido cravado no corpo não está
enganchado nos símbolos; podemos conceber que, como resultado
disto, tenha acesso a uma arte que opera diretamente entre Simbóli-
co e Real. Ambos são solidários. Para compreende-lo bem, convém
precisar o que Lacan chama Imaginário no nó borromeano. O Ima-
ginário como consistência distinta e autônoma do Simbólico e do
Real é o próprio corpo. Lacan enfatiza esta tese em RS.I. e no
Sinthoma. Diz isso de maneira insistente: "O Imaginário é o corpo",
mas temos que precisar que o imaginário não é irreal e que há um
real no imaginário. O Imaginário é a consistência do corpo e não há
que reduzir este imaginário ao estágio do espelho, à imagem do
corpo, dado que nestes Seminários Lacan evoca o corpo em termos
de superfícies e de orifícios. Não o evoca em termos de forma mas
cm termos de saco; o corpo é um saco com orifícios, orifícios nos
quais objetos vêm desempenhar seu papel, eventualmente "tam-
pões", o que permite entender que é um Imaginário relacionado
com o objeto a como consistência corporal.
Para concluir sobre este ponto, o que permite a Lacan dizer
que Joyce é psicótico é que o nó borromeano de três não funciona
e c-1ue o Imaginário, por assim dizer, fica flutuando.
A particularidade da literatura-sintoma de Joyce é que não é
sintoma de corpo; esta deixa o corpo plantado. Por isso podemos
entender que em sua segunda conferência "Joyce, o sintoma" Lacan
chegue a pôr em questão que Joyce tenha um corpo 6• Insiste no fato
de que o homem não é seu corpo, de que seu corpo o tem, mas
para que o tenha, é necessário que se dê uma operação que o atribua
a si: esta operação é a operação de enlace. Assim, dizer que o anel
do Imaginário fica livre, flutuando, é o mesmo que dizer que Joyce
não tem um corpo.
O que quer dizer ter um corpo? Não tomemos a expressão
no sentido de um realismo simplista, como ter um corpo que se

198
Colette Soler

pode fotografar. Temos fotografias de Joyce, não era um fantasma,


não era um espírito puro por mais incorporal que tenha sido sua
literatura. O incorporal de sua literatura ocorre porque entre Real e
Simbólico trata-se de um gozo que não é gozo do corpo mas gozo
da letra. Ter um corpo é fazer algo com ele, utilizá-lo, usá-lo. Na
literatura de Joyce fica claro que não usa seu corpo.
Um corpo, insistamos nisso, há de ser atribuído ao sujeito.
Podemos jogar com a palavra e escrever a-tribuir, a-tributo, o que
significa que para que o corpo seja atribuído a alguém, há que se
pagar um tributo e esse tributo que se paga, chama-se castração. De
todo modo, o sintoma Joyce tem a particularidade de não ser um
acontecimento do corpo.-~ assim que Lacan define o sintoma em
1979: "O sintoma é um acontecimento de corpo"7. Isto se pode
dizer de todos os sintomas, mas não do sintoma de Joyce. Para que
um sintoma seja um acontecimento de corpo é necessário o nó.
Um acontecimento de corpo implica, forçosamente, uma interse-
ção entre o Simbólico e õ'lm'ã"gtn'!rio~ctêfil'õs~fàtãr-'éfe·â~'c;~t~-;;f: ..
~ o de corpo qu;:;d~·~·s~-bóli~~-incidé ·o.~ cÔrpo3 {ocásió~;n- ..
~ p~tdll'f"e-nesse·sentid~-p.~, .evídentemeiite~'..Úm:{rêlâçãQ:ê.ti.i:t;:
o.i~l~!iit~õ'tn~ ac?ntec~~n~?.. de C()J;R? -~.,3;.J?~l~ào~ p~~to su..e,_a.. -,
pulsão é de" certo niôdo ·á'pr~va da eficác:~~ .<;la. litigq!!g~P..,2?bre o
C;9tf5õ.'Quândo o ·sintoma não é um acontecimento do corpo, i;to
supõe um corte, uma separação entre o Simbólico e o Imaginário e,
ainda mais, outro corte, outra separação interna ao Simbólico. Seja
como for, Lacan ordena os sintomas em relação a um aconteci-
mento do corpo, colocando o de Joyce, para diferenciá-lo, em série
com o sintoma mulher e o sintoma histérico. "Uma mulher é sinto-
ma de outro corpo"9 • Nesta frase "uma mulher" está tomada como
um indivíduo nomeado, que não é qualquer um. O que constitui o
indivíduo não é o corpo, contrariamente ao que acreditava
Aristóteles, mas o Um do significante. Assim, uma mulher é nome-
ada Uma e portanto particular, sintoma de outro corpo a não ser
que se trate de um sintoma histérico. O sintoma histérico é outro.

199
Os Destinos da Pulsão

O sintoma histérico, que está ao alcance tanto do homem como da


mulher, consiste em interessar-se pelo sintoma de outro. Tal é a defini-
ção da histeria que Lacan dá neste momento de sua elaboração.
Ao sujeito histérico só interessa outro sintoma. É também
um acontecimento do corpo, mas que concerne a outro que não é o
sujeito. O exemplo que Lacan nos propõe aqui é muito claro:
Sócrates. Lacan nos diz que Sócrates não é um homem, já que aceita
morrer pela cidade. Frase surpreendente, pois dela podemos dedu-
zir que ser um homem implica não aceitar morrer pela cidade. Isto
requereria muitos comentários e talvez não se possa dizer muito a
respeito: pode-se assinalar que o desapego de Joyce é com seu cor-
po; o de Sócrates, com sua vida. Trata-se talvez de um avatar histé-
rico da relação com o próprio corpo. O sintoma histérico de inte-
ressar-se pelo sintoma de outro não exige o corpo a corpo. Não se
tem que perde-lo de vista quando se fala do gozo do sujeito histé-
rico. Isto permite entender muitos fatos clínicos e especialmente
todos os ascetismos histéricos. Quanto ao acontecimento do corpo,
o sujeito histérico tem esta particularidade, pois o que conta para ele
é o acontecimento de corpo do outro.
Joyce - já que nos ocupamos de seu caso - não pertence
nem ao sintoma mulher nem ao sintoma histérico. Lacan nos diz
que Joyce é sintomatológico, sublinhando que nos proporciona ape-
nas a abstração, o aparato lógico do sintoma. A expressão que tem
peso neste texto de Lacan é que Joyce mantém o sintoma em seu
nível de consistência lógica. Temos de recordar a oposição que Lacan
constrói a respeito do objeto a em seu Seminário, livro 14: a lógica da
fantasia entre a consistência lógica do objeto a e sua consistência
corporal. A consistência lógica do objeto a é o que permite a inser-
ção do objeto na lógica do significante. Sua consistência corporal
resulta do fato de que um pedaço do corpo, o que às vezes chamou
de uma peça desgarrada do corpo, chegue a alojar-se no ponto que
escrevemos (-1), ali onde há significante que falta no Outro. No

200
Colei/e S oler

sintoma como acontecimento do corpo, o objeto a em suas duas


consistências - lógica e corporal - está sempre em jogo.
A definição geral do sintoma como função da letra, ou seja,
de um termo tomado do inconsciente, extraído como um, que faz
''.fixpão" 10 do gozo, não exclui a referência ao objeto, suporte da
letra. Isto precisamente permite a Lacan situar o parceiro como sin-
toma. Mas o sintoma Joyce, diferentemente do sintoma neurótico,
está livre do Imaginário e a letra pura, sem corpo, é o que é o
parceiro.
Por isso Lacan diz sintomatológica, o que quer dizer que não é
.romatolo ~ia, se me permitem a expressão para evocar o abandono
0

do corpo. Por isso algo deve se agregar a seu gozo da letra para que
Joyce se torne LOM, três letras para designar o nó necessário.
Então, cm que ponto podemos encontrar a suplência? Mi-
nha idéia é que a suplência não é a escrita de Joyce em si própria, e
(1ue a escrita de Joyce está muito mais próxima de seu sintoma
psicótico. O que produz a suplência é que Joyce publica. Lacan
estabelece esta distinção. Sente-se que Joyce em sua escrita goza da
letra, com um gozo que não é dividido, que não é contagioso. O
sentido é muito mais contagioso que o gozo de Joyce. Se nos per-
guntamos por que Joyce publicou, encontraremos o que Lacan vai
escrever como "sinthoma", isto é, uma função que desempenha o
mesmo que o Nome-do-Pai. Quando a publicação se agrega ao
sintoma, à escrita, então temos o sinthoma, e isso é o que, para Lacan,
fará de Joyce um LOM1 1• Lacan escreve l'homme (o homem) com
essas três letras, LOM, que quando lemos como palavra se pronun-
cia do mesmo modo. Por um lado LOM faz Um, mas também,
colocando-se pontos após cada uma das letras, faz três e isso nos
remete aos três do nó borromeano, R.5.1. Para a promoção de
LOM faz falta o que Lacan escreve assim: l'hessecabeau, jogando com
a palavra escabeau - escabelo - de tal modo que nela encontramos

201
Os Destinos da Pulsão

o h de homem junto com o beau - belo, guapo. O escabelo é algo


para subir e ganhar estatura; é o que faz de um qualquer alguém, isto
porque se vê "belo" (hissecroi-beau, il se croit beau12 , tal como o escre-
ve Lacan, jogando à maneira de um pastiche joyceano).
A arte de Joyce é o escabelo que o transformará em Um de
exceção, que é a função do Pai. Deixa de ser um homem qualquer
para tornar-se Um de exceção. Aí Lacan em vez de escrever
hessecabeau, toma apenas duas letras, SK beau. SK é belo, pois o traço
específico de Joyce é que consegue fazer-se LOM graças à letra, à
escrita da letra sem o imaginário. Graças ao engenho da letra,Joyce
consegue "pôr-se belo". Mas tem de agregar-se a publicação para
que esta escrita entre em correlação com os outros, que podem
valer como segundo significante, de tal modo que entre a escrita de
Joyce e seu público se estabeleça um equivalente de cadeia significante.
Em resumo, o escabelo de Joyce, o que produz a levitação do
nome, implica a publicação. O surpreendente é que com uma escri-
ta fechada sobre si própria conseguiu um efeito de comunicação,
um efeito de intercâmbio. Assim em Joyce há um modo de "ficar
belo" - se faire beau - que não é banal. Pois o modo banal de
"ficar belo", a via habitual- é uma maneira de traduzir o escabelo,
recordando que o imaginário transporta algo da imagem - passa
pela via do sentido imaginário, inclusive do sentido edípico. Pois
bem, Joyce "não se põe belo" pela novela edípica; Joyce "põe-se
belo" pela letra. É sua originalidade. "Pôr-se belo" é um modo de
dizer "fazer-se um ego consolidado". Poderíamos refletir sobre o
fato de que Lacan não diz moi, diz 1/_gO, e não creio que seja apenas
porque Joyce escreva em inglês. Se retoma o termo ego é por ser um
termo alheio à língua francesa e porque é necessário dar-lhe uma
definição mais ampla que ao moi.
Joyce chega a sustentar seu ego com sua escrita e, ao mes-
mo tempo, por isso se faz "o filho de suas obras", como disse
Cervantes, de certo modo um filho sem pai. O fato de que a ques-

202
Cole/te S oler

tão do filho surja da pena de Joyce, Lacan o vê como um sinal de


que a função do Nome-do-Pai é incondicional no sintoma. Joyce
nos desvela que "pôr-se belo" sem passar pela história edípica in-
troduz necessariamente a questão do filho. Ele se fez filho, um filho
sem genealogia e quase teríamos de dizer um filho-pai, pois ele
próprio se fez o sustentador do que chama "o espírito incriado de
minha raça". Ainda que Lacan não o tenha dito, arriscaria dizer que
Joyce ilustra algo que Schreber não ilustrou em absoluto. Schreber
ilustra um empuxo-a-mulher como efeito da foraclusão. Joyce mostra
outra coisa, um efeito empuxo-ao-filho. É outra versão, melhor
dito, outro efeito da foraclusão. Podemos além disto pôr em série
todos os casos de psicose em que aparece o tema do filho redentor,
os delírios de ser o Cristo e todos os delírios de salvação do pai. Se
há filho redentor é que há pai a salvar. Pode-se ver que este efeito
empuxo-ao-filho, tanto e mais ainda que o efeito empuxo-a-mu-
lher, é para Joyce um elemento de estabilização, ou melhor, de su-
plência, mais do que para Schreber dado que aparentemente Joyce
nunca se descompensou. É um empuxo-ao-filho que se realiza sem
delírio, sem o delírio de redenção. Assim se entende por que Lacan,
nessa época, interrogava a Jacques Aubert se haviam vestígios de que
Joyce se tomara pelo redentor: Lacan buscava os signos do delírio.
Mas, finalmente, a resposta de Jacques Aubert não foi clara. Não havia
delírio de redenção propriamente dito em Joyce: o que ele se dizia é
que através de sua arte se converteria no pai de sua raça.
Lacan diz textualmente: "É o filho necessário, o que não
cessa de se escrever de que se concebe" 13 • Podemos entende-lo como
uma espécie de "criação contínua" do filho. É importante sublinhar
o equívoco da palavra "conceber", que designa também a concep-
ção do filho, a imaculada ou não imaculada concepção do filho.
Joyce, esse filho necessário, evoca a imaculada concepção, pois a
imaculada concepção se engendra, se auto-engendra sem o relevo
da carne. Mas vai mais longe do que a imaculada concepção, pois a

203
Os Destinos da Pulsão

imaculada concepção se engendra sem o relevo da carne, mas não


se engendra sem o relevo do Pai; aí está Deus sob a forma do
Espírito Santo que fecunda a Virgem. Joyce, no fundo, se engendra
sem o recurso da carne e também sem o recurso do Pai.
Por que falar, então, de }ilho necessário? Em primeiro lugar
porc.1ue é o próprio Joyce quem o diz; é Joyce aquele que fala do
espírito incriado de sua raça, promovendo-o. E sobretudo porque
esta referência ao filho, e necessariamente como conseqüência a pa-
ternidade, demonstra que o sinthoma, o sinthomaJoyce é uma estru-
tura "na qual o Nome-do-Pai é um elemento incondicional". O que
isto significa? Isto quer dizer, creio, que a partir do momento em
que se produz o enlace, isto necessariamente evoca a geração do
filho, e o que Joyce nos mostra é que não há necessidade de Pai, que
há uma suplência possível. Lacan em ''Joyce, o sintoma" o diz preci-
osamente através de uma comparação com Hamlet: "Eleva-se-crê-
se-belo mas não da histerietd' 14 •
Eleva-se e se crê belo. O que permite a Joyce "crer-se belo",
acreditar-se belo como LOM de sua raça, o primeiro e talvez o
único? É que consegue enganchar este corpo que não o interessa,
constituir para si um ego, de onde a imagem especular era
desfalecente. ''Acreditar-se belo" pela histerieta, e "acreditar-se belo"
pelo Édipo a partir do Pai. De maneira interessante Lacan não evo-
ca cm absoluto Édipo, evoca Hamlet e o assassinato de Hamlet.
Evidentemente o assassinato de Hamlet não deixa de incluir em
suas conotações o assassinato de Édipo. Então Joyce eleva-se-trê-se-
belo não pela historieta mas pela "promoção" de seu sintoma, pro-
moção que indica que não é um santo. Lacan precisa que embora
Joyce esteja desapegado da paixão narcisista, não é um santo. Aqui,
entre parênteses, dever-se-ia quiçá estudar o papel dos períodos de
dandismo de Joyce. Porque o dandysmo consiste de certo modo
em "tornar-se belo" pelo vestir-se, pela aparência, por uma ima-
gem fabricada, artificiosa. De um modo ou de outro Joyce não é

204
Co/ette So/er

um santo. Isto nos interessa já que Lacan coloca o analista do lado


do santo e nos propõe uma nova definição do santo: a scabeaustration15
- escabelastração, a castração do escabelo. É uma condensação
que quer dizer a castração da promoção do ego.
Não sei se em psicanálise chegamos a isso. Não encontro
ares disso. Apesar de tudo, é um Ideal, talvez um ponto no horizonte.

NOTi\.S

1- Extraído das lições de 25 de janeiro, 8 de fevereiro e 1 de março de 1989 do


Semil/(hio: o.r poderes rio simbólico, proferido por Colette Soler na Seção Clínica de
Paris (1988-90).
2- N. do T. No original: Jqyce apura e! sí11loma. Este termo em espanhol guarda
tanto o sentido de averiguar ou desentranhar a verdade, torná-la exposta, quan-
to o de extremar, levar até o fim, às últimas conseqüências. Na língua portugue-
sa encontramos a aproximação entre extremar e .ruh/imm; no sentido de tornar
algo ao mesmo tempo extremo, derradeiro, e sumo. Optamos por traduzi-lo
por ap,imom o si11/oma, a fim de sublinhar a ocorrência de uma ação indagativa
que não se distancia de um certo primor.
3- Exemplos em francês: pode-se escutar "11011 rl11pes emmt" no lugar de "11011-
d11-Pere"; ''jmne homme" no lugar de '')e 11omme"; "d'eu."..'' no lugar de "de11x' ...
4- JOYCE, J. Stephen I-Iero. London, Paladin Harpercollins, 1991, p. 36.
5- . A porlrait q( thc a11ist as ayomig ma11. London, Penguin, 1992, p. 87.
6- L\C:\N,J. "Joyce le symptôme". Em:]f!Yt'C avec l---t1ca11. Paris, Navarin, 1987,
p. 33.
7- Idem, p. 31.
8- N. do T. No original: hace mel/a e11 e/ merpo. Em espanhol a expressão hacer
mel/a pode significar tanto ca11sar 11m efeito como ocasionar uma perda 011 menoscabo.
Na tradução escolhida procuramos, com o recurso dos colchetes, separar a
ação (incidir) e sua consequência (perda). Em português menoscabar mantém o
sentido de deixar i11completo.
9- Idem, p. 35.
10- N. do. T.fixção. Traduzimos assim o termofi:xion, que é uma condensação
feita por Lacan defiition (ficção) efixatio11 (fixação).
11- L\CAN,J. "Joyce le symptôme". Op. cit., p. 35.

205
Os Destinos da Pulsão

12- N. do T. Além do assinalado pelo autor, há em hissecroi-beau a conjunção


que há entre hisser (elevar-se) e il se croit beau (ele se crê belo), conjunção que será
retomada adiante.
13- LACAN,J. "Joyce le symptôme". Op. cit., p. 34.
14- N. do T. No original Hissecroibeau mais pas de l'qystoriette. Nesta frase
encontra-se também um jogo de palavras entre qystérie (histeria) e histoirette
(historieta).
15- LACAN,J. "Joyce le symptôme". Op. cit., p. 33.

Tradução do espanhol: Manoel Barros da Motta


Revisão da tradução: Vera Lúcia Avellar Ribeiro
DO SINTOMA AO S1NTHOMA 1:
REFERÊNCIAS JOYCEANAS DE LACAN

MirtaZbrun
Membro da Escola Brasileira de Psicanálise. Membro de la Escuela de
Orientación Lacaniana.

Abril, 26. Mamãe está colocando minhas roupas novas (de


segunda mão) em ordem. E está rogando agora, diz ela, para que
eu possa aprender na minha vida própria, efora do lar e dos
amigos, o que o coração é e o que ele sente. Amém. Assim sqa.
Sé bem-vinda, ó vida! Eu vou ao encontro, pela milionésima veZJ
da realidade da experiência, a fim de moldar, na forja da minha
alma, a consciência ainda não criada da minha raça.
Abril, 27. Velho pai, velho artífice, mantém-me, agora e
sempre, em boa forma.
Dublin, 1904.
Trieste, 1914.
James Joyce, em Retrato do artista quando jovem.

"É falado de Joyce que era o sinthoma; toda sua obra é um


longo testemunho disso". Assim se refere Lacan em seu Seminário,
livro 23: o sinthomd-, de 1976 - um tema que virá representar uma
refundição epistemológica de seu ensino - , às palavras que pro-
nunciara em conferência na Sorbonne, datada de 16 de junho de
197 5, na abertura do Quinto Simpósio InternacionalJames Jqyce. Na mes-
ma conferência, dirá: "Com o acordo de Jacques Aubert, por insis-
tência de quem devem minha presença aqui-Jacques Aubert é um
Os Destinos da P11/siio

joyceano, cuja estética de Joyce é uma obra eminentemente reco-


mendável- tomei como título desta conferência: Jqyce-le-rymptóme".1.
O que levou Lacan a interpelar a obra literária de Joyce: Re-
trato do artista quando jovem, Ulisses, e ·Finnegans Wake? Certamente o
fato de que esta lhe servirá para a conceitualizaçào do sintoma
como sinthoma. E também para outros temas psicanalíticos
como o pai-sintoma, a questão da nomeação, as suplências pos-
síveis ao Nome-do-pai, a mulher como sintoma do homem e a
sublimação na obra de arte. "Ulisses é o testemunho do porquê
Joyce permanece arraigado a seu pai, renegando a ele. Ú isso o (1ue
constitui seu sinthoma", diz Lacan, usando sinthome, maneira antiga
de escrever sintoma.
James Joyce foi o operador principal na produção do con-
ceito de sinthoma, um elemento de estudo de caso para Lacan. A
de permitiu refundir o conceito de sintoma analítico, como Freud
o fez com a leitura das Memórias do Presidente Schreber, dando um
novo conceito de paranóia para a psicanálise .
.A problemática do sintoma como sinthoma liga-se estreita-
mente à nominação e às suas consequências. Tema joyceano assina-
lado por Lacan em seu Seminário 23, a nominação faz aparecer ime-
diatamente a proibição, o pecado, o sintoma. Eva, .A mulher, torna-
se imortal por ter provado do fruto proibido da Sabedoria. Consi-
derada por Lacan como um dos nomes de Deus, sintoma do ho-
mem, não-toda, Eva tem estatuto de sintoma·1•
Desse modo abrem-se pelo menos três vias de estudo so-
bre o sintoma em psicanálise: o sintoma e o campo da linguagem, o
real do sintoma e o gozo, e sintoma, significante e letra. Como se
conjugam na escritura do sintoma as articulações entre gozo e
significante? Como pensar o sintoma na experiência analítica? Eis
algumas das perguntas que pretendemos responder aqui.

208
Mirta Zbnm

Sintoma e campo da linguagem.

O sintoma é revisto por Lacan sob o prisma dos três regis-


tros: real, simbólico e imaginário, o que o leva à nova conceitualização
do sintoma freudiano. Na experiência analítica, o sintoma é
interpretável, é uma mensagem. Mas sua consistência não é somente
semântica - ele é jouiJ-sens, gozo do sentido. Índice do gozo que
Freud descobriu como o limite do poder da interpretação, seu ro-
chedo, em ''.Análise terminável e interminável" (1937). Sustentado
na estrutura da linguagem, o sintoma, porém, está "inscrito num
processo de escritura"".
Essa inscrição como letra outorga ao sintoma seu lugar
particular entre as formações do inconsciente. Sendo da ordem do
necessário, ele é "o que não cessa de não se escrever".

O real do sintoma e o gozo

A versão do pai em Joyce é um das referências


paradigmáticas para a conceitualização por Lacan do sintoma como
sinthoma, assim como para sua universalização. "Um pai, que Joyce
sempre renegou, mas do qual nunca abriu mão", diz Lacan.
Em Ulisses, no capítulo sobre "Hamlet ou Le Distrait", es-
creve Joyce: "Um pai- disse Stephen, batalhando contra a deses-
perança - é um mal necessário". E ainda:
A paternidade, no sentido de geração consciente, é desconhecida ao
homem. É uma propriedade mística, uma sucessão apostólica, do só gera-
dor ao gerado.( ...) A paternidade pode ser uma ficção legal Quem é opai
de filho qualquer que filho qualquer devesse amar ou ele afilho qualquer?

O pai-sintoma universaliza o sintoma, pluraliza seus nomes


e o transforma em sinthoma. Uma categoria similar à função da
foraclusão generalizada como exclusão de um significante-chave,

209
Os Destinos da P11/são

por exemplo, o significante da "não-relação sexual". Universalização


do sintoma e da foraclusão que funda a estrutura do sujeito como
efeito do significante6.
Nas "Conferências introdutórias à psicanálise", Freud se
ocupa do sintoma em pelo menos duas delas: "O sentido dos sin-
tomas" (XVII) e em "O caminho da formação dos sintomas"
(XXII)7. Freud percorre um caminho que vai do sintoma ao sentido
do sintoma, do sintoma à sua satisfação. Uma via pulsional que
conduz do sentido à satisfação libidinal, tendo como causa uma
fantasia inconsciente recalcada.

\ ·) O sintoma freudiano é o resultado de um circuito libidinal


,.i · onde aparecem a pulsão e o desejo. A pulsão, que pode ser lida como
" cadeia significante, e o desejo como significado dessa cadeia, de modo
que o circuito pulsional possa ser conectado ao circuito semântico.
\ Nesta perspectiva a categoria clínica do sintoma está entre
\ semblante e real, aí onde o semblante toca o real. Ao distinguir
\
q'"~\,sentido e rea~ o sintoma estará mais para o lado do real da experiência
1 )\ analítica do que para o lado do sentido. Isso porque o sintoma pode
·' passar desapercebido e somente vir a se formalizar na análise, onde
. adquirirá seu "envoltório formal". Pode aparecer "como um enuncia-
do repetitivo sobre o real, e nesse momento, ele é uma mentira"8 •
Afirma Lacan em ''Joyce, o sintoma": "O gozo é a única
coisa que podemos realmente apreender no texto de Joyce. Aí resi-
de seu sintoma; sendo aquilo que condiciona a alíngua materna,
Joyce o eleva a uma potência de linguagem, sem que por isso se
tome analisável".

Sintoma, significante e letra

A função da letra como resto, ao valorizar a equivalência


joyceana entre letter e litter, é essencial na formulação do sinthoma

210
Mirta Zbmn

em Lacan como um resultado obtido pelo artista. Algo análogo ao


que se pode esperar de um final de análise, onde o objeto vira
dejeto. Como relacionar, então, sintoma, significante e letra?
No "Seminário sobre a carta roubada", Lacan tinha postu-
lado que há significante na lettre (carta-letra), que ela é uma mensa-
gem mas também um objeto. E que é uma letra? Uma lettre é um
signo que define seu significado não somente como significante,
mas por sua natureza de objeto.
Nesse sentido já não é possível falar do sintoma sem impli-
car a letra na própria estrutura da linguagem. Nesse campo da fun-
ção da fala e da linguagem se introduzirá a função da letra. É o que
propõe Lacan no famoso comentário sobre a Carta roubada (cf.
ÉcritJ), quando faz uso da expressão: "A. letter, a litter, uma carta, um
lixo. Equivocou-se no cenáculo de Joyce sobre a homofonia dessas
duas palavras em inglês"9 •
O sinthoma é, assim, letra-resto-lixo, que não diz nada para
ninguém, que não é uma mensagem, mas uma cifra de gozo. Gozo
puro de uma escrita, tal como podemos ler nos primeiros parágra-
fos de Retrato do artista quando jovem: "O cheirinho de sua mãe era
mais gostoso do que o cheiro de seu pai. Ela tocava ao piano o
Cachimbo de Chifre do Mango para ele dançar.

T ralalá trala/adona
Tra/alá lalá
Tralalá /alá
Traia/a /alá'~º.

Quando gozo e sentido se conjugam, segundo a fórmula


que aparece em Televisão de Lacan:jouis-sens, gozo-sentido, já estamos
na produção de "Joyce, o sintoma". Isto significa interrogar a psica-
nálise no campo da linguagem a partir da escrita, mantendo a letra
fora dos efeitos de significado, tendo como única finalidade o gozo.
Por isso a referência lacaniana à insígnia Joyce.

211
Os Destinos da Pulsão

No entanto o inconsciente só advém na experiência analíti-


ca. Lá onde somente tínhamos gozo autista, a análise fará aparecer
os efeitos de significado, operando sobre os sintomas para produ-
zir um efeito especial de significação.
No Seminário, livro 22: RSI (1975-6), Lacan dirá que o sinto-
ma é a maneira como cada qual goza de seu inconsciente. Com o
sinthoma-Joyce faz um questionamento radical dos fundamentos
da psicanálise, partindo do sintoma como fora-do-discurso, como
o incurável. Desse modo "questiona o próprio discurso do analis-
ta". Assim, "o que Lacan fez com Joyce não significa desprezo pelo
artista, mas ele aí nos convida a tomar dele seu grão" 11 •
Quando em Ulisses lemos: "O sentido·da beleza nos des-
garra - disse belezaentristezamente Best ao feiento Eglinton" - ,
observamos o gozo da letra. O mesmo uso da letra pode ser lida
cm ·Finnegans Wake: "riocorrente, depois de Eva e Adão, do desvio
da praia à dobra da baía, devolve-nos por um commodius vicus de
recirculação devolta a Howth Castle Ecercanias" 12•
Finalmente, será o eu de Joyce o quarto elo a enlaçar os três
outros do nó. Por que o pai para Joyce é um mal necessário, uma
ficção legal, ele pergunta: "Bem: se o pai que não tem um filho não
é pai, pode o filho que não tiver um pai ser um filho?"

Do Retrato do artista quando jovem a Finnegan.r Wake a posi-


ção de Joyce a respeito do sintoma materializar-se-á não como
metáfora, mas encarnará a face de gozo do sintoma. Tal como
dirá Eric Laurent: "O avesso do sintoma, é o sinthoma" 13.
Ao sinthoma o sujeito terá por bem ser-lhe fiel, a ele identi-
ficar-se e, por fim, amá-lo como a si mesmo.

212
Mirta Zbrun

NOTAS

1- O jogo homofônico estabelecido por Lacan entre sintoma e santohomem é


irreproduzível na tradução portuguesa de sinthoma, que em francês se grafa
sinthome.
2- LACAN, J. "Le Sinthome" (197 5-6). Em: Ornicar?, n. 6 a 11. Paris, aula de 13
de janeiro de 1976.
3- Texto fixado por Jacques-Alain Miller, a partir de notas de Eric Laurent.
Publicado com sua autorização na revista l'Ane, n. 6.
4- LACAN,J. "Le Sinthome". Op. cit., aula do 18 de novembro de 1975.
5- LACAN, J. Écrits. Paris, Seuil, 1966, p. 445.
6- Tema introduzido por ].-./\.Miller em O Outro que não existe e seus comités de
Ética, curso "Orientação lacaniana", 1986-7.
7- FREUD, S. "Conferências XVII e XXII de Introdução à psicanálise". Em:
Obms Completas. Madrid, López Ballesteros, 1968.
8- MILLER, J-A. "Seminário sobre Die Wege der Symptombildtmj', Revista
freudiana, n. 19, 1996, p. 7-56
9- Utter que cm inglês quer dizer, entre outras coisas, lixo. É uma citação de
James Joyce extraída por Jacques Lacan da obra coletiva 011r exagmination
round his factiftcatio11 for i11,ami11atio11 of 1vo1ie i11 progress.
1O-JOYCE, J. Retrato do artüta q11a11do jovem. Rio de Janeiro, Civilização Brasi-
leira, 1987, p. 2.
11- MILLER, J-A. ''Prefácio a ]'!)Ice avec Laca,I'. Paris, Navarin, 1987, p. 9-12.
12- CAMPOS, A. & CAMPOS, H. Pa11aroma de Fi1111ega11s Wake. São Paulo,
Perspectiva, 1971, p. 35.
13- LA.URENT, E. "Gozo o sintoma". Em: Lacan. ]'!)Ice o sintoma. Lsboa,
Escher, 1987, p.11-5.

Refer2ncias bibliográficas

CAMPOS, A. & CAMPOS, H. Pa11aroma de Fi1111egafls IV"ake. São Paulo, Pers-


pectiva, 1971.
J OYCE,J. Ulisses. São Paulo, Abril Cultural, 1983. Tradução de Antônio Houaiss.
JOYCE, J. Retrato do artista quando jovem. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,
1987. Tradução de José Geraldo Viera.

213
Os Destinos da P11lsão

L\C.-\N, J. Écrits. Paris, Seuil, 1966.


- - - - · Televisão. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1993.
____ . Joyce o sintoma. Lisboa, Escher,1986.
EM GOETHE

Sonia Alberti
Membro da Escola Brasileira de Psicanálise

'Die Wünsche des Liebhabers erfüllen sich im Artisten".


("Os desyos do amante realizam-se no artistd' 1).
]. W Goethe

A pulsão em Goethe é antes de tudo força pulsional:


Triebkrq(t. Força que o impulsiona a partir da descoberta do que
chama seu Genie - podemos traduzi-lo por um talento altamente
criador - a que Goethe, ao contrário de Leonardo (cf. Freud,
19102), não se acovardou em servir durante toda sua vida. Goethe
define o Genie como a força do homem que, pela ação e pelo ato,
dá as leis e as regras3.
Há quem diga que já no ímpeto infantil do qual Freud
(1917l soube tirar uma conclusão que nos será útil - menciono o
episódio da quebração da louça que, em torno dos quatro-cinco
anos, Goethe jogava pela janela - , algo dessa força pulsional se
mostrava. O episódio está transcrito na íntegra no texto freudiano,
texto que termina com os seguintes dizeres de Freud:
Quando se foi o inquestionável queridinho da mãe, mantém-se, por toda a
vida, tal sentimento de elevação, tal confiança no sucesso, que esta, não
raro, realmente arrasta consigo o sucesso. E uma observação da seguinte
espécie: minha força está enraizada na minha relação com minha mãe,
Goethe poderia tê-la colocado, com justeza, no início do relato da história
de sua vida" (Idem, p.266).
Os Destinos da Pulsão

Observo, de passagem, que Freud certamente sabia, por ex-


periência própria, do que estava falando.
A pulsão decorre da relação com o Outro e, neste contexto,
nada tem de biológico, que me perdoe o Luis Hanns 5! Ao contrário,
no contexto, ela move o talento altamente criador de Goethe na
tarefa de jamais faltar com sua real verdade - Wirklichkeit.
Seu objeto: o olhar, sem dúvida, com todas as metáforas
que procuram circunscrevê-lo ao mesmo tempo que o elevam à
dignidade da Coisa, tal como Édipo em Colona. No fim o que diz:
"Mais luz!"<•. Também aqui é o Outro do século - conhecido por
ser justamente o das luzes - em que se formou, em que cresceu,
em que se deram as diferentes retificações subjetivas do criador que
dá o tom do circuito da pulsão.
Ao contrário de Joyce e dos gênios da literatura mais nos-
sos contemporâneos, que banhavam na civilização cujo mal-estar é
da ordem da atual Weltanschauttng, Goethe acreditava no bem. Não
tanto enquanto supremo, como Kant mais seu contemporâneo, mais
com Spinoza, cuja obra lhe era muito próxima. Apesar de conviver
com os grandes conflitos do final do século, sempre manteve deles
distância e, poderíamos dizer, até um certo ponto foi um daqueles
que pode gozar das vantagens de uma guerra: já na infância, o ofi-
cial francês que morava em sua casa numa Alemanha invadida lhe
foi tão próximo que deixou marcas definitivas na vida, como a
língua e a cultura francesas, intimamente enraizadas. E se houve al-
gum incômodo nessa convivência imposta pela guerra, este advinha
exclusivamente do pai que, durante os anos de ocupação, era ranzinza
e fechado por ter que submeter-se a dividir a casa com o intruso
indesejado. É claro que a mente infantil do filho não pode enten-
der tais sentimentos de rejeição, já que o oficial era amigo e a
mãe, por natureza, se dava bem com qualquer pessoa pois sua
índole o facilitava; podemos dizer que ela adotou o oficial como
membro da família.

216
Sonia A/berti

Mas esta relação com a vida e o mundo, marcada pela cren-


ça no bem, não o cegava para a posição subjetiva de cada um. Idéias
suicidas, perdas irreversíveis - sobretudo no amor - aos poucos
exigiam uma implicação com a castração.
Goethe nasceu em 1749; na década de 1770 escreveu suas
primeiras obras que o tornaram conhecido - Gotz e Werther7 - e
começou a trabalhar no Fausto e no Wilhelm; em 177 6 foi para
Weimar, amadurecendo; em 1796 foi para a Itália, onde finalmente
encontrou a maturidade que lhe permitiu reescrever essas duas gran-
des obras e que o impulsionou a trabalhar até o fim, nos anos 1830.
O Werlher é um testemunho de que, já na primeira fase,
conhecida como mais subjetiva, Goethe se via às voltas com a dor
de existir. Na época, tal como o personagem do livro, vivera um
grande amor, que perdeu. Diz que dormia com a arma ao lado da
cama, tentando enfiá-la no peito várias vezes, até que um dia, como
não conseguia fazê-lo, soltou uma gargalhada e resolveu escrevê-lo.
Para o Werlher inspirou-se em Jerusalem, jovem que se matara, e
anotou mais tarde os seguintes versos:

Isso e aquilo poderia afligir-me se


Já não o tivesse escrito em versos. 8

O que há de tão grande neste escritor, burguês de Frank-


furt, filho de um jurista a serviço do Imperador que diz textual-
mente que todas suas poesias e criações não são "senão fragmentos
de uma grande confissão"? Ao contrário de Agostinho ou de
Rousseau, Goethe não a concebia senão fragmentada: Dichtung und
Wahrheit, cuja tradução para Poesia e verdade fez uma escolha que não
deixa transparecer o paradoxo que o próprio autor quis acentuar:
fantasia e verdade Até onde a criação, até onde a verdade? É Freud, nova-
mente, quem nos auxilia: Venlichtung- condensação, um dos mecanis-
mos mais genuínos pelos quais o sonho é incorporação do deseja 1,

217
Os Destinos da Pulsão

Assim eu perambulo do desejo ao gozo


E no gozo eu anseio por desefo (Fausto). 9

Que força é essa que move Goethe à verdade poética das


mais carnais sensações?
A sublimação, ensina Freud, é um dos destinos da pulsão.
Ela implica, ela exige, ela surge da mudança da finalidade que deixa
de ser sexual. O objeto sofre uma idealização através da qual ocorre
uma mudança na sua natureza, engrandecendo-o e elevando-o psi-
quicamen te 10. Assim, à sublimação da pulsão corresponde uma
idealização do objeto, como aliás Lacan iria retomar na Ética11 •
Goethe tinha absoluta consciência disso, é dele, na realidade, a fór-
mula da idealização na criação.
Para Goethe, a maior felicidade que um homem pode en-
contrar é a da subserviência diante, justamente, o ideal "tal como os
antigos romances do amor cortês nos sabem transmitir, com toda
força, mesmo se de forma obscura" 12 •

Pulsão, sublimação e sintoma

Quando então me vefo frente ao espelho


No silêncio do viúvo lar,
Nele, antes que eu me aliene,
A amada junta ao meu, o seu olhar.
Me volto rapidamente e de novo
A que eu via desaparece;
Então olho para os meus poemas
Ressurge ela e resplandece. 13

218
S onia Alberti

O objeto é idealizado na amada, ali elevado à categoria de


Coisa. Goethe recria em seus poemas o objeto agalmatizado na fi-
gura da amada, fazendo disso seu ato de criação. Este só pode ocor-
rer na falta do objeto, o que Goethe experimentava a cada vez que
criava um novo poema. Tantas amadas para tantos poemas - con-
forme a estrutura da neurose obsessiva, como ensina Freud no Ho-
mem dos Ratos - , onde cada poema é a mortificação de um novo
amor que vivia intensamente como se fosse o primeiro e do qual
sabia dizer: não é senão reedição.
A mãe, Gretchen, Friederika, Lotte, Lilli, Charlotte, Christiane
(única esposa e mãe de seu filho único), Marianne, Betina Brentano,
Minna e Ulrike (ele com 74 anos, ela com 19).
Inicialmente Goethe, como bom neurótico, deixava levar-
se pelos acontecimentos, enganando-se em não escolhê-los por atri-
buir ao Outro ainda uma boa consistência. O episódio do beijo,
discutido por Lacan 1\ o demonstra: o poder da maldição, que
Lucinde joga sobre a primeira que fosse beijar novamente aqueles
lábios, impede Goethe de beijar Friederika. Bastou, no entanto, to-
mar disso consciência que Goethe vence os entraves e passa ao ato.
Já pude escrever, quando comentava sua juventude, sobre
as "noites de insônia, anorexia, ruminações de uma infelicidade,
banhadas cm lágrimas e acessos de fúria( ...) estado de dor" em que
"só via infelicidade em cima de infelicidade e, sobretudo, não dei-
xava faltar as imagens bastante lastimáveis dele próprio" (...) "esta-
dos que acompanharão Goethe durante toda sua juventude, que
farão dele o que se chamava, na época, um rapaz sensível, afeito às
mais variadas doenças de difícil diagnóstico médico" 15. Tudo isso
mudou, como o próprio Goethe observa: "Eu me virilizava real-
mente, e a primeira coisa que de início foi afastada foi o choro e a
encenação que eu agora via como altamente infantis" 16•
Quando surge o Werther, nova retificação subjetiva, instigada
por sua transferência com Herder, também por mim já comentada.

219
Os Destinos da Pnlsão

O movimento literário Sturm und Drang ao qual se filia, promove o


encontro com o seu talento que chama seu Genie. Este talento alta-
mente criador, que lhe dá um novo destino no mundo, é pois fruto
do Drang pulsional que assume como seu, numa ruptura em relação
à consistência do Outro. Goethe aqui é a pulsão, "sempre à deriva
com relação a seu alvo, como Lacan a descreve na Étzúi' 17 • Assim,
ainda aqui, Goethe não escolhe o seu destino mas, à deriva, deixa
levar-se.
Tudo muda no dia em que, finalmente, pode fazer uma es-
colha: recebera um convite do príncipe herdeiro em Weimar para
trabalhar na corte com um aviso de que, dali a alguns dias, um carro
passaria cm Frankfurt para pegá-lo. Tendo aceito o convite, arruma
as malas e despede-se de todos no intento de aguardar o enviado.
Que não vem. Dias, semanas, Goethe esconde-se em seu quarto
para não ser visto por ninguém pois já havia se despedido e não
queria ter que fazê-lo novamente. No início acha até agradável, pois
pode trabalhar ininterruptamente mas, aos poucos, a angústia vence
e Goethe já não se concentra. Por não agüentar esconder-se todo
tempo, à noite fantasia-se para freqüentar a cidade. Reedita-se, as-
sim, o episódio com Friederika frente a quem inicialmente também
se fantasiava. Naquela época, o jogo de esconde-esconde estava
determinado pela proibição maldita de Lucinde. Agora, já não se
trata de Friederika mas de Lilli a quem, assim fantasiado, ouvia can-
tar do lado de fora da grade de seu palacete. Na realidade, a deci-
são de ir para Weimar fora determinada pela impossibilidade do
casamento com Lilli. Impossibilidade que também decorria da pró-
pria deriva de Goethe quando este se depara com um obstáculo à
união: Lilli era nobre e devia casar-se com um nobre (o que real-
mente irá acontecer).
Finalmente Goethe foge efetivamente: conversa com seu
pai, que já começa a inquietar-se com a demora do enviado, suge-
rindo a Goethe que escolha a Itália que ele, o pai, lhe pagaria a
viagem. Tal como a escolha da profissão - o pai queria que ele

220
Sonia Alberti

fosse igualmente jurista e Goethe teria preferido a medicina mas


termina por ser jurista - Goethe, mais uma vez, segue o pai jurista.
Goethe despede-se novamente de um único amigo que ficaria por
demais chateado se não o fizesse e parte em direção à Itália. Não
sem antes parar em Heidelberg, lugar que o lembra Friederika e Lilli
e onde alguns conhecidos o encarregam de tarefas diplomáticas em
Roma. Na noite anterior à partida, Goethe recebe um correio ur-
gente: o enviado de Weimar estava em Frankfurt à sua espera. Esti-
vera retido na viagem por inúmeras ocorrências e não podia voltar
de mãos abanando. "Para o sul, onde figuravam, a partir dos rela-
tos diários de meu pai, os céus mais lindos da cultura e da natureza,
ou para o norte, para onde era convidado por gente tão importante
e tão nobre?" 18 Os conhecidos em Heidelberg o empurram para a
Itália mas eis que Goethe escolhe Weimar, retornando ainda aquela
mesma noite para Frankfurt.
Um dia o pai lhe confessara: se Goethe lhe tivesse sido
estranho ele o teria invejado 19 •
É em Weimar que Goethe amadurece e conhece Charlotte
von Stein. É a época chamada clássica e que o prepara para o en-
contro com uma Itália que já não é a do pai, mesmo se desta ele
poderá servir-se. Assim, tendo atravessado todo processo de
amadurecimento, tendo podido deixar cair o pai que ora o inveja-
va, pode dele servir-se para o encontro com seu destino que, como
última das escolhas dos três escrínios (cf. Freud, 19132°), agora es-
colhia definitivamente.
Que sintoma?
Inicialmente o sintoma se inscrevia no contexto perfeita-
mente edípico da tipologia obsessiva, onde a escolha do pai impõe
ao sujeito uma proibição em escolher, sintoma que sustenta o sujei-
to para além da depressão - que, como sabemos, diz respeito à
covardia moral2 1•

221
Os Destinos da Pulsão

Num segundo momento, um sintoma que insiste, tal o real,


aproxima a história de Goethe à de Melchior de Wedekind22 , com a
diferença de que o homem mascarado aqui é o próprio Goethe,
fazendo se passar por outro, ou seja, negando a identificação pater-
na - die Verneinung, como diria Freud.
Finalmente, que destino ao sintoma, após o amadurecimen-
to, a escolha do destino, a queda das identificações, o encontro com
a criação?
Certa vez, Goethe confessa a seu amigo Eckermann, já bem
tarde em sua vida: "Sempre vislumbrei minha ação e produção
somente como simbólicas e no fundo me foi bastante indiferente se
fazia panelas ou tijelas"23 • Goethe certamente não tinha consciência
de onde tirava as panelas e as tijelas mas, como sabemos, elas já
estavam lá, desde o início, na cena da janela da infância que no
fundo anunciava, como podemos agora verificar, a travessia da
fantasia. Em outro momento, comenta que o que é para o pintor a
moldura de seu quadro, é para o escritor a encadernação de seu
livro. Eis onde foram parar as panelas e as tijelas atiradas pela janela
da fantasia: na obra literária de Goethe.
Elas não são senão metáforas. Se você é um verdadeiro
escritor, tudo pode ser criado no escrito. Talvez Goethe até tenha
tentado de outra forma; por exemplo, era exímio desenhista. Mas
seu desenho especularizava a natureza e não era portanto uma cria-
ção. A natureza era, para Goethe, a própria realidade verdadeira.
Dizia que quem a ela se contrapunha, se enganava tanto quanto
aquele que crê dar uma chance ao acaso ao misturar as cartas antes
de distribuí-las entre os jogadores 2~. Mas a natureza já não lhe basta:
é preciso o estudo teórico que lhe dará a ponte para a arte:
Na medida em que o artista toma qualquer oijeto da natureza, estejá não
pertence mais à natureza, podemos mesmo dizer que o artista cria neste
exato momento em que acrescenta a ele (ao oijeto) a importância, a carac-
terística, o interesse, ou melhor, o valor. 25

222
Sonia Aiberti

Tantas amadas para tantos poemas, eis o valor de troca para


o amor.
O valor é algo que, como já vimos, determina o Genie. Este
se decompõe no valor moral mais elevado que faz nó, para Goethe,
com a natureza do outro lado. O toque final é dado, sem dúvida,
pela amada, de forma que o real, o simbólico e o imaginário se
associam. Para mantê-los agregados, em sua obra que é infinda, o
próprio simbólico presentifica Goethe, que a ele oferece sua vida .
..A este propósito seu amigo Merck lhe disse um dia: "O seu intento
(...), a sua direção impossível de desviar, é a de fornecer uma forma
poética às reais verdades; os outros procuram tornar realidade ver-
dadeira o assim chamado poético, o imaginativo, e disso só resulta
coisa boba" 2('. Então, as reais verdades, em Goethe, implicam a
simbolização que faz nó, como um sintoma, entre real, simbólico e
imaginário. Em .Esse sujeito adolescente já aludi uma vez para a assonância
entre Goethe e Gotisch, a própria língua, cultura e escrita alemãs. Se
Goethe é visto como aquele que estabelece a literatura alemã e sua
língua na escrita - na associação com Shakespeare para o inglês,
Dante, Cervantes e Camões para as suas respectivas - ele é sua
presentificação no simbólico. Ele o nomeia, como vimos: "Sempre
vislumbrei minha ação e produção como simbólicas".

Para terminar, que ação?

(...) dar-se conta de uma grande máxima, o que sempre é uma operação
genial do espírito; chegamos a isso através do olhar, não foi pensando, nem
aprendendo, nem por transmissão. Trata-se aqui de dar-se conta da força
moral que ancora na aposta/ crença permitindo uma certeza. (...)

Talpercepção traz enorme alegria a quem descobre, pois indica, de manei-


ra original, o interminável,· não se faz necessário nenhum tempo para um
convencimento: isso brota por inteiro e se completa no instante de ver, donde
o bem humorado dizer antigo francês: En peu d'heure/ Dieu labeure
(Deus trabalha em poucas horas). 27

223
Os Destinos da Pulsão

Completamente inscrito no discurso da ciência, Goethe-


Deus não se atreveria se não fosse em nome do próprio simbólico
cartesiano, seu fiel parceiro.

NOTAS

1- Dichtung und Wahrheit. Parte 4, livro 20, p. 297. Todas as traduções dos
trechos de Goethe e de Freud são da autora, razão das notas - para Goethe
- que trazem o texto no original.
2- FREUD, S. "Eine Kindheitserinnerung des Leonardo da Vinci" (1910).
Em: St11diena11sgabe, vol. X Frankfurt a.M., S. Fischer, 1969.
3- GOETHE, J.W Dichtung und Wahrheit. Em: GoetheJ IPerke, vol. XI. Basi-
léia, Birkhauser, 1944, p. 286.
4- r'REUD, S. "Eine Kindheitserinnerung aus Dichtrmg 1111d Wahrheit' (1917).
Em: Studienattsgabe, vol. X Op. cit.
5- HANNS, L.A "Retornando a Freud- a teoria pulsional no texto alemão".
Opção lacania11a, n. 19, agosto 1997.
6- cf. LACAN, J. "O mito individual do neurótico", Falo -Revista Brasileira do
Ca111po Freudiano, n. 1, 1988n. 1, 1988.
7- cf. ALBERT!, S. "Texto e contexto". Em: E11e s1geito adoluce11te. Rio de Janei-
ro, Relume Dumará, 1996, p. 49.
8- "Mich konnte dies und das betrüben,/ Hiâtt ich's nicht schon in Versen
geschrieben". Em: "Zahme Xenien III". Goethes Werke, vol. 2. Op. cit., p. 188.
9- "So tauml'ich von Begierde zum Genuss/ Und im Genuss verschmacht ich
nach Begierde".
10- FREUD, S. "Zur Einführung des Narzissmus" (1914) Em: Studienausgabe,
vol. III, cap. 3. Op. Cit. p. 61.
11- LACAN, J. I..e Séminaire, Livre VII: L'éthique de la psychana/yse (1959-60)
Paris, Seuil, 1987.
12- "(...)wie uns die alten Ritterromane dergleichen zwar auf eine dunkle,
aber kriâftige Weise zu überliefern verstehen". Em: Dichtung tmd Wah,·heit.
Op. Cit., v. 11, parte 4, livro 17, p. 234.
13- "Wenn ich nun vorm Spiegel stehe/ Im stillen Witwerhaus,/Gleich guckt,
eh ich mich versehe,/Das Liebchen mit heraus./Schnell kehr ich mich um,
und wieder/ Verschwand sie, die ich sah;/Dann blick ich in meine Lieder,/
Gleich ist sie wieder da". Em: "Westostlicher Diwan". Goethes Werke, vol. 2,
poema 46 ''.Abglanz". Op. cit., p. 364.

224
S onia Albetti

14- LACAN,J. "O mito individual do neurótico". Falo, n. 1. Op. cit.


15- :\LBERTI, S. Esse stljeito adolescente. Op. cit., p. 46.
16- Idem.
17- Idem.
18- GOETHE, J.W. Dich//11(~ u11d Wahrheit. Op. Cit., v. 11, parte 4, livro 20, p.
303-4.
19- Idem, livro 17, p. 229.
20- FREUD, S. "Das Motiv der Kastchenwahl". Em: St11diena11sgabe, vol. X.
Op.cit.
21- Cf. K.ALIMEROS. A dor de existir e SI/as far111(Js dí11icas: histeza, depressão, 111e-
!a11colia. Rio de Janeiro, Contra Capa Livraria, 1997.
22- Cf. WEDEKIND, F. Das Ftiíhlin,g Envachens apud. ALBERT!, S. Esse
Sl!J"eito adolescmte. Op. cit., p. 234.
23- "Ich habe all mein Wirken und Leisten immer nur symbolisch angesehen
und es ist mir im grunde ziemlich gleichgültig gewesen ob ich Topfe machte
oder Schüsseln". Retirado da nota do editor do volume 12dcGoethesWeme.
Op.Cit.
24- "(...) abcr wir verschwõrcn uns gar zu gero mit dcm Irrtum gegen das
Natürlichwahre, so wie wir die Karten mischen, eh wir sic hcrumgebcn,
damit ja dcm Zufall sein Anteil an der Tat nicht vcrkümmcrt werde". Em:
Dichll11i_~ 1111d Wahrheit. Op. cit., v. 11, p. 307.
25- GOETHE, J.W. "Zur Kunst". Em: Goethes l!'lé1;ke, vol. 12. Op. cit., p. 214.
26- "Dein Bestreben" (...), "deine unablenkbare Richtung ist, dem Wirklichen
eine poetische Gcstalt zu geben; die anderen suchen das sogenannte Poetische,
das Imaginative, zu verwirklichen, und das gibt nichts wie dummes Zeug".
GOETHE, J.W. (1833) Dichll111g 1111d Wahrhcit. Em: Goethes Werke, vol. 11,
parte 4, livro 18. Op. cit., p. 255.
27- "(...) das Gcwahrwerden einer grossen Maxime, welches immer eine
gcnialische Geistesoperation ist; man kommt durch Anschauen dazu, weder
durch Nachdenken noch durch Lehre oder Überlieferung. Hier ist es das
Gewahrwerden der moralischen Kraft, die im Glauben ankert und so in
stolzer Sicherheit mitten auf den Wogen sich emfpfinden wird".
"Ein sôlches Aperçu gibt dem Entdecker die grosste Freude, weil es auf
originelle Weise nach dem Unendlichen hindeutet; es bedarf keiner Zeitfolge
zur Überzeugung: es entspringt ganz und vollendet im Augenblick, daher
das gutmütige altfranzosischc Reimwort: En pe11 d'heure/ Dieu /abeure ". GOETHE,
J.W. Dichtu11g u11d l~ahrheit. Op. cit., v. 11, p. 218-9.

225
J.Zenith

PESSOA, A ESFINGE

Colette Soler
Membro da École de la Cause Freudienne. Membro da Escola Brasileira de
Psicanálise.

"Ser homem é não se contentar".


Assimfalava 1/tll anti-revo/11cionário deádido, Fernando Pessoa,
11,n dos maiores poetas deste sém/o. Dele faro o terceiro do par
Rmmeau-Jqyce, pelo q11a/já me interessei anteriormente'.

O ego explodido

Os críticos de Fernando Pessoa raramente evitam evocá-lo


como um caso, mas logo se apressam em acrescentar as aspas, sem
as quais temeriam depreciar... o Poeta. Pois ainda se crê de bom
grado que ali onde,está a obra, não mais está' o sintoma. De fató,
pura petição de princípio. Jacques Lacan, consagrando um ano ele
seu Seminário a James Joyce, não se deixou intimidar por este gênero
ele "não toquem ni�so". Não foi para fazer crítica literária, tampouco
para benefício da psicanálise aplicada e ainda menos, salvo algumas
observações, para o da psico-biografia, mas p_ara dizer o que foi,
para o sujeito Joyce, a função específica de S\Ja obra e o modelo
que ela constitui.
Como poeta, se nao é um caso, Pessoa é ao menos um
fenômeno. Qual o_utro como escritor terá parido vários autores,
cada um com sua bbra bem diferenciada, sua inspiração própria, e
O.r Dc.rti11os da Pttlsiío

também seu retrato e sua b.i<,gtafia singular, os famosos poetas


heterônimos, companheiros e parceiro&\ de diálogo do poeta ...
Fernando Pessoa gue, ainda ele, é um outro?

Aliás, no que o concerne, não hesitava em falar dele próprio


como de um caso. Na verdade, não sabia bem qual, mas isto não o
impedia de ter sms convicções, de colocar seu diagnóstico em ter­
mos psiquiátricos, e mesmo de redigir, cm 1907 com a idade de 19
anos 2 , a falsa carta de um suposto psiquiat:ia interrogando-se a seu
respeito, pois ele se sentia, se sabia à beira da loucura, aspirado pelo
hospital psiquiátrico que muitas vezes evoca, mas onde nunca este­
ve. No entanto, também ele distinguia seu caso e o do poeta, este
mas sutilmente, pois a própria poesia lhe parecia dizer respeito a
algo como um diagnóstico. Certamente um diagnóstico de,um ou­
tro gênero, não o do psiquiatra mas o do poeta-crítico. Q�_anto a
isso Pessoa deu provas, desenvolvendo o 1ue não seria excessivo
chamar de uma espécie de nosografia racional e racionalizada da
l.itcratura universal, de Homero - segundo ele, o maior entre os
maiores - aos balbucias da poesia futurista do começo dó século.
Todavia, de um caso ao outro, do caso do escritor como pessoa ao
de sua escrita, lança pontes, enraizando ambos, quando se trata dele
próprio no que chama a "despersonalização"3.
É aí que a aproximação de Joyce e de Pessoa se impõe, o
ego desfalecente de Joyce encontrando ccrta111,ente seu pcndant em
Pessoa na dita "despersonalização". Mas se Joyce-o-sintoma, tor­
nando-se o Único pela sua arte, constrói para si um ego de suplên­
cia, o que dizer da pluralização do eu (moz) em Pessoa? A coleção de
personalidades que inventou e com as quais se avizinha põe desde
sempre para o leitor e para os críticos uma questão urgente.

Ora, nesta constelação, além do poeta e do crítico literátio,


há o político. E que político: apaixonadamente anti-revolucioná­
rio, é o inimigo jurado de todos os valores da democracia mo­
derna e o... místico obsoleto da alma perdida de Portugal. Fenôme-

228
Colcttc S o/ar

no curioso, ap arentemente nin guém p ensa em fazer de Pessoa um


p aradigma do espírito reacionário. Rousscau-a-·convicção, auto r dos
Discursos e do Contrato social, p ermanece em seu século como o sim­
bolo cios valores novos e o p recursor do mundo p or vi r. Quan to a
Joy ce, a desp eito ele seus amores de juventude p ela Irlanda, exclui
todo p ensamento da revolução e de seus valores, p ois seu trata­
mento es tranhamente assernântico da letra anula a p ró p ria diz�men­
ç ão (dit-memion) da ideolo gia. O caso de Pessoa é bas tante di ferente.
Mis tura-se com a p olítica e aí sustenta teses muito ofensivas, das
g uais ninguém lhe p ede exp licações. Podemos sim p lesmente acredi­
tar c1 ue o p olítico sej a p erdoado p elo p oeta. Vej o aí sobretudo u m
e feito de p er p lexidade. Pois Pessoa, também ele, mal-trata a semân­
tica, embora de uma maneira in teiramente diversa da q uela de J oyce.
Onde este último p rncede p or secagem elas signi ficações, Pessoa as
p ulveriza. Ap reendendo cada uma das facetas ela verdad� menl1ros�,
ele alternadamente as anima e as exaltn, mas a todas anula justa p on ­
do-as. Além disso, es ta sincrnnia de diferen tes asserções 'emanando
de uma amoroso da lógica, qu e não p oderíamos tachar de nenhuma
desenvoltura com o raciocínio, p õe em questão a afirmaç ão un ária
da obra e conduz inevitavelvelmente a se interrog ar sobre o q ue
p ode ser neste contexto a p aixão p olítica de Pessoa.

A obra rousseliana

Poeta múlti p lo, Pessoa não é simp lesmente um mitômano


q ue criou interlocutores ima ginários, tamp ouco a p enas um drama­
turg o, ainda q ue deste reconheça em si a ins p iração: se inventa p er­
sonag ens, como bem .ressaltou um de seus con tem p orâneos e ami­
g o, p roduz sobretudo obras ori ginais, es tilos diferentes, cuj os auto­
res ad quirem corp o e p resen ç a p ara ele. O resultado é uma obra de
es trutura rousseliana (Raymoncl Roussel) : o conjunto das p rodu,
ções de Fernando Pessoa compreendendo como elementos os es­
critos do próprio Fernan do Pessoa.

229
Os Destinos da Pulsão

A isto vem se acrescentar a incerteza do contorno definiti­


vo des ta obra p lural, pois muito permanece inédito. E mais ainda:
uma das produções maiores, o grande, o único texto narrativo do
"semi-heterónimo" Bernardo Soares, no qual Pessoa trabalhou quase
toda a sua vida, p ara o qual deu o título de Livrv do desassossego -
traduzido em francês como Le livre de !'intranqmllité - e que não foi
conhecido antes de sua morte s enão de forma muito p arcial, p er­
maneceu como que em estado de p uzzle. O número e a data dos
fragmentos assim como sua composição definitiva não foram fixa�
dos p or Pes s oa, que considerava exis tir em 1 932 .j , três anos antes de
seu falecimento, p elo menos ainda um ano de trabalho para dar ao
Livro a configuração acabada q ue j amais lhe deu. Para s eu Fausto,
outra obra q ue atravessa sua vida, é ainda mais claro: nela trabalhou
de 1 908 a té o ano de sua morte, mas não o p ublicou (qão alude a
es te nem em seus proj etos de publicação entr"e 1 932 e 1 935) nem o
compôs, deixando a maior p arte dos fragmen tos, muitas vezes ra­
biscados à mão e quase ilegíveis, sem data.
Compreende-se q ue a obs tinação exeg ética se enfureça em
torno deste texto móvel, quase tan to quanto em torno de J oyce.
A p enas para o Livro do desassossego, de p ois de 1 982, data da primeira
edição, quatro outras edições p ortuguesas foram p ublicadas, cada
uma pro p ondo, s egundo sua interpretação, um novo arranj o dos
fra gmentos, os q uais na maior parte não foram datados por Pes­
soa. Isso sem con tar as versões publicadas em es p anhol, francês,
italiano, alemão e as que ainda o serão. Não existe também p ara o
Fausto urna p robabilidade menor para que as duas versões publicadas
até o momento, cada uma com sua ordern1, s ej am as últimas, e que
as inter p retações se multipliq uem, rivalizando com os heterônimos.

Assim Pes soa, de p ois de talvez ter, como Mallarmé, sonha·­


do com o Livro, terá conseguido deixar bem mais que um livro
inacabado, o livro infinito, p ois infinitamente manejável, o pró p rio
livro p arte de uma obra não-toda advinda, que deixa à posteridade a

230
Colette Sofer

tarefa de prosseguir um 1vork in progress sem ponto' final. Como se


"Fernando Pessoa" não fosse mais do que o nome de um conjunto
sem contorno, onde as obras finitas que engendram os nomes próprios se
avizinham com outras carentes de ba tismo, votadas ao limbo do não
acabamento a té que a posteridade queira de fato apadrinhá-las.

A valise de Fernando Pçssoa

Esta p arte do "não realizado", es ta "zona das larvas"5, te­


souro dos exegetas e obj eto de meditações tanto quanto de cobi­
ças\ é a valise, a famosa valise na c1ual Fernando Pessoa depositava
seus manuscritos , que o encerra. "Eu não evoluo? Eu VlAJO", 'e scre­
ve Fernan do Pessoa em 20 de janeiro de 1 935. E ele precisa que as
maiúsculas só es tão aí por erro de datilo grafia, mas que lhe parecem
convir bastante bem p ara que as deixe. N a realidade, Pessoa adulto
não deixa o centro de Lisboa. De sua vida, só fez uma grande ida e
volta para a África do Sul. Tendo p artido aos sete anos por razões
familiares, retorna aos 17 com sua valise -- conservemos seu singu-
lar - para não mais se mexer, atribuindo a Bernardo Soares, o au­
tor s e1ni-heterônimo do Livro do desassossego, um horror das via gens
reais que bem p arece ser o seu 7 • No entanto escreve a Armando
Côrtes-Rodrigues, um professor e p oeta atnigo, no dia 1 9 de j aneiro
de 1 9 1 5: "Durante alguns anos viaje� para descobrir maneiras de
sentir. Agora que tudo experimentei e tudo vi . . . ". Que isto não nos
engane: trata-se de uma "viagem imóvel" 8 . Ulisses sedentário, Pes­
soa é um nômade unicamente do pensamen to, um itinerante do
imaginário, o visionário de uma viagem no quarto. Ele faz Bernardo
S oares dizer: "Meu ideal s eria de Ludo viver num romance"9 , e não
duvida que a imaginação apalpe o real tão bem e melhor que a per­
cepção: "Se imagino, vej o. Que faço a mais viajando?" 1 º É q ue p ara
ele a "mentalidade" simula todos os continentes e os universos so­
nhados parecem mais reais do que a realidade s empre um pouco
fantasmagórica.

231
O.r Dc.rtino.r da Pulsão

A valise recolheu os dep ósitos desta travessia imóvel e merttál,


p ois aparentemente Pessoa jamais teve a obs tinação em publicar
que animava Joyce. Ele sem p re o fez bem p ouco e muitas vezes
sob o efeito de s olicitações. Considerando ap er : as o p onto ele vistá
quantitativo, foram publicados durante sua vida cento e trinta textos
em p rosa, essencialmente de crítica e de teoria literária, reflexões
p olíticas ou comerciais ( !) , e cerca de trezentos poemas. Sem dúvida
isto não é pouco e não é mais que um q uarto das Obras completas
p revistas.
Ele só publicou p or iniciativa próp ria um livro intitulad o
1\1ensagem, lançado em 1 934 e q ue inspira um es tranho p atriotis mo
mís tico. Numa nota autobio gráfica de março de 1 93 5 , portan to
p ouco nn tes de sua mor te, faz uma avaliação. Além des te texto, ele
só " j ulga válido" nas suas diversas publicações ocasiqnais os sone­
tos e poemas publicados em in glês em 1 9 1"8 e 1 922. Q uanto a seu
"arrazoado a favor da clitadura militar em Por tu g al", O Interregno,
p ublicado em 1 928, ele o "considera nulo". Sua correspondência
i n dica, aliás, ao menos quanto ao essencial, o que ele se prop ôs
publicar. 1\s três cartas de 28 de j unho de 1 932 e de 25 de fevereiro
de 1 933 a J oão Gas p ar Simões e a de 1 3 de j aneiro de 1 935 a Casais
Mon teiro, apesar de su a s varian tes q uanto à ordem previs ta das
p ublica ç ões, dão um a p anhado suficien te de s '.las inten ções. Qüe
ele tenha p e n sado em p ublicar o Livro do desassossego, além de
c o le tâneas de seus próprio s p oemas e de seus três heterónimos,
Alber to Caeiro, Álvaro de Cam p o s e Ricardo Reis, is to é certo.
Ora, e s tes textos hoj e es tão todos dis p o níveis 1 1 . N o mais, p ara
os p a p eizinhos da valis e, não teria ele p ró p rio se ap licado llm
ap ólog o que eventualmen te u tiliza o das três caixas de Portia - de
ouro, de p rata e de chumbo - , dentre as q uais a vida p ediria que
es colhes s e uma, e s obre o qual conclui que é mais feliz aquele que
não abre nenhuma delas, não levando s enão "a lembrança das tái­
xas fechadas"? 1 2

23 2
Colette Sofe1·

Desde que a valise tenha um n ome, o q u e com ela a p os­


teridade pode fazer? A b re-a: n ada men o s do c1 ue 2 5 . 42 6 d ocu­
mento s 1 3 nes ta caixa de Pandora, hoje tra n s feridos p ara a B i b li­
o teca N acional de Lis b o a . Evidentemente os es p ecialis tas es p e­
ram que es ta grande l o to de fra g men tos inéditos permita animar
o ritmo das publicações pós tumas com uma atu alidade de Fernando
P e s s o a s e mp re r e n ovad a . l\if as exis te aí, p arece- m e , al g u m a
sobredeterminação.
Não se trata apenas de que a época, bisbilhoteira como o
diabo, tenha se habituado a procurar o segredo das obras nas g ave­
tas dos au tores. Creio que uma outra n ecessidade venha redobrar o
agalma do encobrimento que aureola esta valise: a de fazer suplên­
cia à enigmática ausência do Um na obra de Pessoa, como se a
valise desse seu corpo intranqüilo porém espacial ao mis téri o des te
autor múlti p lo e prolífero - mis tério q ue chama de alma. A q ues­
tão da iden ti dade, que retorna como leitmotiv na p oesia e na p rosa de
Pessoa assim como em sua correspondência, nele não é apenas um
tema de elucubrações. Eu o disse, a estrutur; da própria obra traz o selo
de uma inconsistência que vai além do não acabamento. Octavio Paz
num belo artigo consagrado a Pessoa, datado de 1 96 1 mas p ublicado
cm 1 984 na coletân.ca La Flettr .raxifrage, condtúa com esta expressão:
'1J essoa, ou a iminência do desconhecido". Com efeito, Fernando Pes­
soa nos deixa seu nome, mas teria tido muita dificuldade somente de
imaginar algo como "O retrato do artista" com o artigo definido de o
único. Em matéria de retrato, é toda uma galeria que ele ap resen ta,
uma multidão ele pess oas deslocadas, onde, além disso, outros es tão
semp re ainda p or vir 1 4 • Quanto a s eu desassosseg ado Bernardo So­
ares, é o retrato d e uma inexis tência, dispersa na vacuidade de suas
sensações, que deambula e conta as horas. No que diz respeito a si
próprio, o que disso ele pode dizer de mais categórico é, sem dúvi­
da, esta afirmação muitas vezes repetida: eu sou o intervalo - defi­
nição q ue p or vezes atribui igualmente a Deus.

233
Os Destinos da Pulsão

D aí, parece-me, o mérito secreto da valise: es ta contém


"toda" obra aberta, dando ao menos um es p aço ao não-identifica­
do, espécie de aleph zero "realizado" para "the man iJJho never wa/',
se gundo a expressão de J orge de Sena, outro poeta português que
viveu nos Estados Unidos.

O caso serve a obra

Aqui o caso passou à obra. Como J oyce, Pessoa pode muito


bem ser um cas o, e mesmo no sentido p s iq uiátrico, mas isso não
s eria o mesmo se não fosse Pessoa. Além dis s o, no que o concerne,
não duvido que s er um caso tenha servido a sua memória. Com
e feito, Poeta, e dos maiores, Pessoa o é seguramente. Mas se não
houvesse o fascinante fenômeno dos heterônimos, se faria tanto. . .
caso? Se as obras p lurais n ã o geras sem, colocando e m p erspectiva
umas às outras, um curioso efeito de não-sentido, que não realiza a
ó tica própria a cada uma relativizando-a, s erá que, ap esar dos fas tos
do es tilo, ainda nos causariam prazer os discursos q ue se tornaram
razoavelmen te velhus cos dos heterônimos, o supos to paganismo
de Alberto Caeiro e o neo-es toicismo medíocre de Ricardo Reis?
Fech aríamos tão facilmen te os olhos sobre muitos textos políticos
que se tornaram intensamente chocantes na ideologia contemporâ­
nea? Ao menos numa. p rimeira leitura, porque olhando-os de mais
pert<; p arecem dizer respeito a uma outra interpretação. Não é ape­
nas que a obra política seja contrária a todos os ideais da modernidade,
que a diatribe, o tom de provocação inaudita con tra tudo o que _
concerne aos direitos do homem, à democracia e certamente à revo­
lução, associados aos sofismas da argumentação demons trativa, os­
cilem en tre o cômico e o intolerável. l� c1ue a própria mensagem -
as profecias político-messiânicas de Pessoa, c1ue não parecem aliás
ter exercido uma influência his tórica de terminan te - é hoj e caduca
e ilegível para qualquer um que não o his toriador da literatura ou o
exegeta.

234
Colette Soler

S eria fácil organizar uma coletânea para a indign aç ão com


os textos p olíticos dr Pessoa, o p olemis ta que nada in timida, o pro­
vocador dos consensos, o argumentador negativis ta q ue nunca dei­
xa de encontrar a fórmula choque p ara colocar a serviço da ideolo­
gia aristocrática e anti-igualitária, que, aliás , p artilha com muitos es­
critores p ortugueses de sua geração.
As sim, p or exemplo, p ode escrever sem rodeios que entre
ele - não obs tante, "p ouca coisa na escala dos que p ensam" -- e
um camp onês de alguma localidade perdida há indubitavelmente
uma dis tância maior que en tre este mesmo camp onês e um gato ou
um cão, p ois "o homem sup erior difere do homem inferior, e de
seus irmãos os animais, p ela simp les qualidade de sua ironia" 1 5 . A
democracia é por ele denunciada, no término de urna dedução cer­
rada, como "anti-social, anti-po p ular, e anti- p �triótica" 1 6 ; o famoso
trio "liber ade, igu aldade, fra ternidade", estigmatizado como uma
"santa trindade para o uso dos que não têm religião" 1 7 • Sendo a
revolução "um ato de desnacionalização, urna invasão es piritual es­
tran g eira"18, conclui: "Ser revolucionário' é servir o inimig o. Ser
liberal é odiar sua p átria. A Democracia moderna é uma orgia de
traidor" 1 9 e tc. Isto é ap enas uma p e q uena amos tra, p orém mais não
é neces sário p ara comp reender o embaraço dos ap aixonados de
Pessoa o p oeta.
Existem alguns estudos de textos p ro priamente p olíticos
de Pessoa e de seu con teúdo ideológico20 , mas curiosamente p arece
que, para a critica literária como tal, os p aradoxos e os excessos de
Pessoa tenham sido es p ontaneamente postos de lado por uma es­
p écie de sep aração um p ouco amnésica. Como se Pessoa devesse
ficar fora do alcance da crítica, quase intocável, tal como o convida­
do vindo de fora que diz ter sido desde semp re, desde sua infância,
mesmo entre seus p róximos. Incensamos o p oeta, o mestre da lín­
gua e da sensibilidade contem p orânea, o crucificado q ue eleva ao
trágico a ex p eriência do suj eito moderno, nós o vemos corno p re-

235
Os Destinos da P11/são

cursor, como "homem do futuro", colocamo-lo n a comp anhia dos


maiores do começo deste século, Kafka, J oy ce, Borges, Beckett e
muitos outros, e ele o merece como ra p idamente outros gran des
como André Breton e Octavio Paz se deram con ta. Mas p ara o
res to, p ara suas p osições p olíticas e eso téricas, tanto quanto p ara a
ques tão de sua sintomatologia es p ecífica, desvia-se o olhar. Silencia"
mos, só evocando lateralmente, de um modo por vezes um ta nto
cons trangido, suas contradições e seus excessos. Como s e, por exem­
p lo, s eu longo arrazoado de 1928 p ela ditadura militar em Portugal,
O Interregno, não tivess e mais conse qüências do que uma moleca gem,
uma inadvertência ou uma mistifica ç ão 2 1 do gênero q ue o fez p arti­
ci p ar, em setembro de 1 930, do desa p arecimento organizado de
uma . certo Aleis ter Crowle y, alquimis ta e astrólo go inglês, que p re­
ten dia ser nada mais nada m enos do que a reencarnação da besta
do a pocalip se, o 666, e do q ual, em boa lógiGa irônica, foram p er­
didos os traços nos tochedos da Boca do In ferno, não longe de
Lisboa, Pessoa res p ondendo com a mais p erfeita cara-de-pau as
p erguntas da im p rensa e da p olicia in glesa!
N o entanto, nenhuma interp retação de Pes soa p ode s e exi­
mir de o p inar sobre o es tatu to de suas reflexões p olíticas. Tanto
mais q ue es tes textos são ortônimos - fo ram, aliás , conhecidos
durante sua vida antes do essencial de sua obra p oética. Não es queça­
mos também que o único livro c1ue p ublicou p or iniciativa e conta
p rópria é Mensagem, p oema de p olítica 111.í stica que anuncia de maneira
velada o Quinto Império vaticinado nas p redições, e q ue recebeu b
se gundo p rêmio do Secretariado p ara a p ro p agan da nacional!
Por vezes ele é absolvido, su p ondo-se q ue a heteronímia
p assou incógnita na ortonímia. É o caso p or exemp lo de Eduardo
Prado Coelho que, num artigo aliás bas tante no tável, autoriza-sé
dos p aradoxos do es critor plural p ara sus tentar q ue "Pess oa, au tor
de Mensagem é ap enas um h eterônimo a ma.is"21. A heteronímia s er-
ve a q ui p ara re tirar dos textos s eu p eso de ass erç ão para p ensá-los

236
Co/ette Sole,

como exercícios de ex p loração de uma das facetas do discurso. A o


viajante d o p ensamento, a o agrimensor d o s p ossíveis, jamais identi-­
ficado com qual q uer uma de suas asserções, tudo será p ermitido:
excessos, contradições, e também o con trário, como outros tantos
ins trumentos de um laboratório de exp loração do ser. Com e feito,
já q ue falei de uma coletânea p ara a indi gnação, como não acrescen­
tar q ue coletâneas se p oderia fazer muitas outras ... inclusive edificantes.
Colocar-s e-ia, p or exem p lo, no q ue concerne ao seu arrazoado p el a
ditadura militar cm Portug al es ta sen tença escrita em 30 de março
de 1 935, a título de "últimas considerações": "combater, sem p re e
em toda p arte( . . . ) - a I gnorância, o Fanatismo e a Tirania" 23, i gual­
mente uma p á gina feroz sobre Salazar, e sua decisão de não mais
p ublicar a p ós um discmso des te último sobre a cultura. Do mesmo
modo traríamos à lembran ç a , ao lado das p rofissões de fé reacio ­
nárias, o " p ro fessor de indisci p lina" q ue ele se diz ser etc.

De fato, se a obra de Pessoa fosse escrita de uma única


p ena, sup ortaríamos tão facilmente suas exaltações p assadistas à glória
de Portugal p or vir, este vocabulário obsoÍeto da "alma nacional",
todas es tas maiús culas colocadas - e tip o g raficamente falando -
em p rol do renascimento de um Sup ra-Portu g al ou de um Su p ra­
Poeta, da J-lora ou a bandeira da Raça etc. ? Pois assim falava, p or
vezes, com p ro p ósitos c1ue p oesia alguma p oderia reabilitar, caso se
tratasse de um verdadeiro p rojeto p olítico, aquele q ue se dizia tam­
bém "o ser mais ino fensivo" do mundo. Haveria ainda um leitor
moderno p ara este nacionalismo mís tico, anunciando ao fu turo o
retomo do p assado es p iritual o mais longín q uo e . . . o mais duvido­
s o, se não p ressentíssemos que a heteronomia que trabalha esta obra
muda alguma coisa no esta tuto da enunciação?

Tudo se p assa como se, nes te grande corp o fragmentado


q ue é o texto de Pessoa, onde a ero geneidade cio verbo es tá em
toda p arte, recuássemos de sacrificar q uak1uer fragmento, sobretu­
do renunciando p edir s atis fação ali onde percebemos que talvez

237
Os Destinos da P11IHio

falte o traço que totaliza. Parece que por não poder assinar Pes soa
em seus textos, trata-s e ele como se faz com uma mulher, uma cliv a'
.

a guem, p or ser mulher e diva, deixa-se p assar muitas coisas. Em


s uma, a incompletude lógica se traduz ao nível da crítica em efeitos
de quase indulgência, a menos que não seja em inibição d o julga­
mento - é no mínimo a interpretação que faço do silêncio críti co
de que se beneficia Pessoa.

Os Pessoas

Não podemos nos pronunciar s obre Pessoa o pensador


sem criarmos primeiramente uma doutrina s obre o fenômeno da
heteronomia, pois es te põe em questão o dizer. A pluralização
heteronômica, que faz de Pessoa uma das. personalidades literárias
mais m onstruosas do século XX por que demultiplica as vozes -
as sim s e disse - engendra um curioso e feito de suspensão da
asserção. Falar de voz aqui se justifica, pois os textos de Pessoa
falam. Eles falam numa cacofonia de vozes cruzadas, mas falam
tanto quanto os de Rousseau, que foi uma única grande voz. Não se
dirá tanto da escrita de Joyce que, antes de tu do, deixa de falar,
sacrificando a p alavra à letra p ura. Há tantas vozes em Pessoa que
não s e sabe mais qual é a sua. Se é justo dizer "o estilo é o homem",
na falta de um estilo, o Homem-Pessoa não e s tá aí. Evidentemente é
preciso tomar a medida deste plural. Os comentadores que o afir­
mam com força e que dis s o fazem um enigma, deixam por vezes
dubitativo, e não é senão indo aos próprios textos que o verifica­
mos . . . com incredulidade!
N em a dimensão do fenômeno, nem sua amplitude, nem
sua natureza tinham aparecido a seus amigos e contemporâneos,
Conhecia-se duran te sua vida os três heterônimos consagrados, dos
quais ele fez publicar um certo número de textos: Alberto Caeiro,
Ricardo Reis e Álvaro de Campos, aos quais se reunia Bernardo

23 8
Colette So/er

Soares, o sign atário do Livro do Desassossego, qualificado de semi­


heterônüno. Foi apenas de p ois da morte de Pessoa que se desco­
briu toda uma multidão em sua valis e. Quase cin q üenta! Des te es ta­
do civil p rolífero, Antônio Tabucchi, num artigo intitulado "Uma
vida, várias vida.s", reteve as figuras principais: Frederico Reis, pri­
mo e crítico de Ricardo; Alexander Search, q ue se correspondia -
em in glês - com Pessoa desde 1 899, que assinou um p acto com
Satã e do qual se espera a publicação de vários textos entre os quais
"The philosopfy oj rationalism"; Barão de Teive, a quem foi con fiada a
"es p eculação sobre a certeza que os loucos possuem mais do que
nós"; Antônio Mora, o filóso fo louco, au tor do "Regres so dos
Deuses", Rap hael Balday a, que assinou um "Tratado da neg ação" e
"Princíp ios de Metafísica"; muitos outros ainda, aos quais se acresce
o poeta dito ortônimo, que é ele próprio vários e cada coisa transi­
toriameote, vez p or outra elegíaco, mís tico, esotérico e . . . messiânico.
O problema da heteronímia não pode se resolver na alter­
nativa q ue dividiu a crítica. Ela consis tiu em conceber s ej a como um
fenômeno de su p erfície, p ensemo-lo como simulação ou mis tifica­
ção 24 , meio de se escapar ou de se realizar25, sej a como tão radical
que compromete �oda ortonímia e volatiza o dizer até o p onto de
não deixar subsistir sob o nome de Pessoa senão uma dispersão
irremissível de posturas e de textos. Não temos que escolher entre
um Pessoa t JUe seria alguém, porém demultiplicado, ou um Pessoa
que s eria ninguém (personne) por força de ser tudo. No entanto o
próprio Pessoa nas convidaria de fato a dissolver seu nome pró­
prio no nome de ninguém, Pessoa que, dep ois de muito temp o ter
assinado Pessôa, decidiu um belo dia, em setembro de 1 9 1 6, su pri­
mir o acento sobre o o de s eu nome 2<·, o que o igualou ao nome
comum que em p ortuguês significa pessoa (personne) .
Quando se explora a bibliografia dos estudos consagrados
à obra de Pessoa, que ho j e tornou-se considerável, p ode-se ter o
sentimento de que os críticos se exaltaram um p ouco com o fenô-

23 9
O_r Destinos da P11!são

meno ela heteronírnia, e que houve uma certa � nfatuação. É certo


no entanto que não se trata de um simples artifício de escritor, pura­
mente formal, vizinho da prática dos pseudônimos, ou mesmo da­
quela da máscara -,- ter-se-á. repetido o bastante que Pessoa quer
dizer pers ona, que segundo a e timologia quer dizer m áscara? Gérard
Labrunie, pseudônimo, não difere de Gérard de Nerval. Abel Martin
e Juan de Mairena não são idênticos a Antônio Machado, mas são
máscaras t.ransparen tes 27 . Os heterônimos de Pessoa têm um outro
es tatu to. Não simples procedimentos: Pessoa não é um Fregoli da
li teratura mas, ao contrário, o paciente de um fracionamen to desen­
cadeado.

«As criaturas da palavra" 28

Para Pes soa, ele o disse e repetiu, seus heterônimos existem.


Exis tem tanto ou mais do que os conhecidos que ele encontra quo­
tidianamente; não apenas como suj eitos sup os tos no estilo próprio
ele seus textos, mas como verdadeiras pessoas. Nfais do que uma
poética e um manej o da língua diferen ciado, têm uma imagem -
cu os vej o, diz Pessoa, que os des creve para nós --:-- uma his tória,
urna biog.r afia precisa, uma visão do mundo, digamos uma ética e
um modo de gozo próprios. Os principais en tre eles, verdadeiros
nós borrorneanos, dispõem daquilo que parece faltar a Pessoa: uma
consistência unátia. Sem contar que eles entretêm relações seguidas
uns com os outros, assim como com . . . sua mãe - é assitn que ele
próprio se qualifica numa carta famosa 29 a Casais Monteiro, de l 3
d e janeiro de 1 935, consagrada aos heterônitnos. Eles s e escrevem,
se julgam, se admiram ou se criticam. Dir-se-ia que é de maneira
alucinatória? Por que não, o termo é aliás empregado pelo escritor
i taliano Andrea Zanzotto, numa entrevi s ta concedida a An tonio
Tabucchi. Quan to a Eduardo Prado Coelho, ele usa de uma com­
paração com o cas o que evoca Ronald Laing, o de uma criança que

240
Colette Soier

brincava com uma dúzia de cadeiras e s obre cad a uma das quais
tornava-s e outro.
Pessoa des creveu o trans e ins p irado durante o qual o trio
dos heterônimos consagrados com eçou a se im p or a ele no mesmo
momento que acabava de fracassar numa tentativa de inventar um
poeta bucólico p ara "fazer uma bla gue" 'com s eu amig o Sá-Carnei­
ro. Ele diz:

No dia em quefinalmente renunciara - era 8 de ma1ro de 1914 - eu me


aproximei de uma cómoda alta, e tomando uma folha de papel, pus-me a
e.rerever em pé como o faço cada vez que posso. E escrevi trinta e poucos
poemas de enfiada, numa espécie de êxtase de qt1e eu não .raheiia definir a
natureza. Foi o dia triut?fal de minha vida e não poden'a co/1hecer outros
como aquele. Comecei por ;;.m título: "O guardador de rebanhos ': E o que
se seg:tiufoi a apmição em mim de alguém a quem eu imediatamente dei o
• nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da .fase: meu senhor
su,��im em mim. Tive imediatamente a sensação. A talponto que, uma vez
escritos estes trinta e poucos p oemas, tomei uma outra folha de pap el e
escrevi, de etifiada igualmente, os seú p oemas que constit1,1em "Chuva
oblíqua " de Fernando Pessoa. Imediatamente e jJor inteiro. ·1 0

Muitos es cri tores, e n tre outros Jean-Jac q ues Rousseau


com sua "iluminação" de Vin cen nes, p uderam des crever o fe­
n ô meno da ins p iração criadora como um tran s e no q ual o suj ei­
to, d e s a p ossa do, encontra - s e atrave s s a d o p or um texto q ue vem
como de alhures. Es ta heteron omia do verbo, vizinha do fenô­
meno impos to, manife s ta uma p ro p riedade do simbólico habi­
tualme n te mascarada, e revela, s e g undo a ex p res s ão de Lacan,
um suj ei to q ue é p oema mais q ue p oeta . Na g eneralidade dos
cas o s , no entanto, ela não p õ e em caus a a "atribuição subj eti­
va"11 e o inspirado assina. A particularidade de Pessoa está nis to: o
texto, ou melhor os textos, se im põem a ele com suas criaturas. Na
carta citada ele escreve:

241
Os Desti11os da PJJ!são

Eu assim concebi e propaguei ván'os amigos e conhecidos quejamais exis­


tiram, mas que hoje àinda, a mais ou rmnos ttinla anos de distância, eu
OllfO, eu sinto, e11 vejo - Eu repito: eu ouro, eu sinto, eu Vf!/O . . • E sinto
falta deles! Mais 1111c111fwlo ainda: ( "Ncio sei bem entendido se eles não
e:x:istiram ou se so11 ett q11e 11ão existo. Nesta matéria como em todas, não
Sl!J'ctmos dogmáticos '). 32

Pessoa confidencia sempre ter sido desde a idade de seis


anos visionário de personalidades fictícias. Um certo Chevalier de
Pas, cuj o nome escreve e1n francês, foi s eu primeiro companheiro
heterônirno -- q ue ap areceu es tranhamente um ano de p ois da mor­
te de seu pai, quando só tinha cinco anos, e no mesmo ano da morte
de seu j ovem irmão. Mas esta comp anhia mental não é filha apenas
do ima gi nário. Pessoa não é um mitômano: cria obras para as quais
inven ta em seguida p essoas. Concluo: são todas "criaturas da p ala­
vra" segundo a expressão que Lacan em p r eg a a p rop ósito do Presi­
den te Schreber. N ão há um só destes filho s da imaginação que não
nasça de um texto c.1ue não tenha a p arecido antes. O escrito gera seu
suj eito como se este fosse calculado pelo texto. O Chevalier de Pas,
por exemplo, c1ue apareceu tão cedo na vida da criança Pessoa, era
representado junto a este p elas cartas escritas pela p ena de seu des­
tinatário. Mais surpreendente ainda: Pessoa isola uma fase de gera­
ção de suas criaturas, sobrevinda quando já era maior, e que é em
g eral p ouco comentada. Ele diz:

Vi_nha-me à idéia um dJ1ste, totalmente estranho, por uma mzão 011 por
outra, aquele q11e sou oú acredito se,: E11 o dizia, Jogo, espo11tanecmm1te,
cotno se elefosse um de 111e11s a111igos, para o qual et1 inventava o nome, t!O
s
q11al e11 acrescentava a hi tóna e do q11al eu via imediatamente dia11te de
mim a imagem - tvs(o, estatura, vestimentas, gestos. 33

Pode-se designar 1nais claramente um juízo ele rej eição da


a tribuição s ubj e tiva que s e salde p ela aparição, quase alucinada, de
novas criaturas encarregadas ele endoss á-la? O êxtase ins p irado, ci­
tado acima, donde sai Alberto Caeiro, p arece bem diferente à pri-

242
Colette Solcr

meira vista, mas aí 'n;encon tramos no entanto os mesmos elemen­


tos : não é o chis te mas a bla gue, inventar um p oeta bucólico, dep ois
o mesmo traço de heteronímia do texto, co.nfirmado lo g o p ela
necessidade na q ual Pes soa afirma se ter encontrado: dever imedia­
tamente es crever um texto q ue p udes se assinar.
Patologia, estas heteronímias imp ostas? Não é o que faria
recuar P e s s o a : ele começa sua carta evocando sua tendência a
des p ersonalização . . . "his térica", e ele a conclui com urna nota de
humor, desculpando-se de fazer cair o interlocutor "em p leno co­
ração de um asilo de alienados"3 1 . Dis to não p odemos duvidar: da
desintegra ç ão heteronúnica Pessoa foi o paciente, o tes temunho
doloroso, e como c.1ue o mártir. Entre muitos outros, um fra gmen·­
to não datado, reencontrado em sua mala, nos leva rnuito além da
p las tici � ade bis térica:

Não sei quem sou, nem que alma tenhu( . . . ) So11 diversamente otltro de um
só eu: de c11ja 11xistênàa não esto11 aliás seguro (e Je 11ao fossem eJtes ou­
/Jm) . ( . . .) Eu me sinto múltip lo. So11 como ;11n quarto com i1111merâveis
eJpelhosfantá�licos que destorcem em falsos reflexos uma única realidade
anletior q11c não está em nenhum deles e está em todos. Como o panteísta
se sente árvore e mesmo flor, e11 me Jinto vários seres. Eu sinto que uivo
vidas de outros em mim, ÍllCOJJJjJ Íe!Cl'l'1Je!lÍe, COt/10 Se V Jett serjizesse par/e rfe
todos os homens, incomp letamente de mda um, através de uma soma de
11ão-eus sintetizados num único eu postiço. 35

A qui o leitor fica in quieto o bas tante para sentir-s e im p ulsi­


onado à interp retação, induzido a p rocurar uma unidade secreta.
A ques tão ela articula ç ão entre a hetcronímia como fato
literário e � imp losão do Um como fato subjetivo não p ode s er
evitada, ainda que no conjunto a crítica, aborrecida ou embaraçada,
tenha sobretudo p rocurado contorná-la. Quando se trata de Jean­
) ac q ues Rousseau p odemos dizer, com todo rigor, deixando os
Diálogos de lado, qu e o es critor e o p ensador eclip s am o caso. Joyce
é a tal p onto idêntico a s eu caso que este desaparece sob a obra.

243
Os Destinos da PHlrão

Para Pess oa, o caso guarda uma p rioridade. Não p orque dê a obra
o ess encial de sua temá tica, não porque daria conta do g ênio - este
p ermanece em todos os casos não dedutível ---, e tamp ouco por­
que eclip se a obra. Não é o caso. É porq ue, condicionando a p ró,
pria raridade das formas nas c1 uais ela se realiz a, ele a eleva, esta
obra, ao nível de cas o. O q ue p essoa alguma contes ta.

O não-identificado

"Os poetas não têm bio grafia", dizia O ctavio Paz. Se, no
en tanto, nos voltamos p ara a vida de Pessoa p ara aí encontrar os
. trnços do que ele foi, p odemos descreve-lo como líder van guardis ta
e como crí tico literário: na origem de alguns "ismos" - paulismo,
interseccionismo, sensacionismo - teria fundado duas Revis tas,
Orpheu, em março de 1 9 1 5, q ue causou ·escândalo, e Athena, em
outubro de 1 924; como j ornalis ta amador: bastaram-lhe poucas
crônicas para p rovocar uma insurreição dos . . . taxistas da cidade de
Lisboa e fazer-se agradecer; como p olemi s ta sardônico; como teó-
�t
. ri,c � J? Olítip e da civilização; um p ouco como teósofo, como
médium, e talvez mesmo como iniciado em alguma ordem oculta
- a qui são as cartas q ue tes temunham. Tu do is to não o impede,
além diss o, de ser vers ado nos p roblemas comerciais; tentou criar
primeiro uma li p ografia, Íbis - a f alência não se fez espcrnr �
depois uma firma polivalente 0/isipo - edição, livraria, publicidade,
criação de novas indústrias etc. Em 1 926 cria uma Revista de comérào
e contabilidade e redi g e um lon go texto com orientações sobre os
problemas comerciais. Mas Pes soa tem mais veleidades do que gê­
nio p rático. É um org anizador "no p apel". Planos e idéias teve
muitos, mas p ara de, aparentemente, nada dura e nada se conclui.
Na realidade, o t1:aj eto de seus dias vai do q uarto à "Rua dos
D ouradores", onde é em p regado, e retorna via . . . o café. E quando
lhe p ropõem um trabalho de tradução e de edi ç ão que o faça ir à
In glat<:fP, malgrado sua situação fin anceira s em p re p recária, recusa.

244
Co!ette Soler

Como Rouss eau co piando suá música, como J oyce no . banco em


Roma ou no curso Berlitz, Pessoa viveu de traduzir co�respondências
comerciais p ara o in glês. No mais, vivendo de escrita e . . . de álcool.
Uma linha de demarcação transversal percorre o con j unto
da obra. Ela cliva o regis tro do (ou dos) pensador(es), o teórico em
matéria de literatura, de filoso fia, de p olítica, e todas as obras _do
p oeta dramaturg o, q uer sej am em vers o ou em prosa. De um lado
raciocínio, asserção e certeza, de outro .r everberação dos estilós,
demulti p licação elas fi guras, cultura da nuança ínfima, diluição dos
contornos, "a indefinição de tudo" 36 . Aliás, Pes soa demarca utna
1

clivagem homóloga ao nível de sua p essoa (pe1:ronne) . Numa carta de


1 9 1 9 em q u e d e s creve s eu " t e m p era m e n t o " , diri gi d a a: u m
hi p n o tizador p arisiense c o m q uem q ueria ter aulas, opõe s u a potên­
cia de raciocínio à ins tabilidade p roteiforme de suas emoções e à
indecis- ã o fundamental de sua vontade.

Além disso, há um forte conttaste entre, de um lado, tudo o


q ue ele diz de si mesmo e, de outro, o que p ercebemos nas suas
p roduções de crítica literária, política ou filosó fica. Eu dis tin go o
q ue chamo de textos de confidência: são sobretudo e em p rime.iro
lugar suas cartas e alguns escritos autobio gráficos, dos q uais p ode­
mos em seguida interrog ar as convergências com as obras ortônimas.
Aí é um homem doente que fala. Um solitário, assombrado pela
loucura, habitado p ela de p ressão e q ue es p era a "catástrofe nervo­
sa"37, q ue s e diz in teiramente " feito de hesitação, de dúvida" 3 8, "des­
provido do p oder de q uerer" 39 , amalgamado de incerteza, de pas­
sividade e de sonho, q ue assegura viver na tortura e "no mal-estar
psíq uico", não ser senão "o atlas involuntário de um mundo de
tédio" 40, flu tuando na dúvida, cativo do deses pero e do horror.
Desarvoramento, desolação, dep ressão, neurastenia, retornam como
leitmotiv o tem p o todo. Desta insistência brota a idéia de uma exis­
tência ao mesmo tem p o' larvar e torturada, glauca e es tridente, a tor­
men tada p ela consciência do nada de todas as coisas. Mas quem lê

245
Os Desti11os da Pulsão

s e us estudos es téticos e políticos 4 1 descobre algo inteiramente outro


que e s tas areias movediças. Primeiramente um homem de raciocí­
nio, e mesmo, ele próprio o diz, um raciocinador, apaixona do pela
lógica e pela demonstração, chegando algumas vezes a té ao absur­
do . .Amigo das provas e dos argumentos, escreve es ta fras e na qual
se une inclusive a Rousseau: "Tem-se o costume de dizer que contra
os fatos não há argumentos. Ora, é justamente contra os fatos que
há razões para argumentar"4 2 . Uma grande cultura, uma visão sirúé­
tica da his tória universal, uma análise pontilhosa do texto literário e
sobretudo, sobre tudo, um �0111 inimitável. Aí nenhuma hesitação,
nem mesmo nuança, mas a _asserção peremp tória, muitas vezes ora­
cular, a virulência polêmica, o sarcasmo e o escapelo da ironia. Pro­
vocador -- muitas vezes se diss e - este homem não corre a trás da
vetdade, ele cliz suas verdades, c1ue é A verdade, para seus contem­
porâneos, aos escritores de seu tempo, aos portugueses de hoj e, que
não o são mais, ao Portugal de sempre, que está por vir, a Europa
c1ue é apenas o Portugal de amanhã, em suma, ao sécul\) e aos sécu­
los. Panfletário in spirado e racionalista decidido, Pessoa o é com
cuidado, aplicação, s eriedade, o sentimento do que es tá em j ogo
estando sempre presente. O humor, de que ele aliás não está desa
provido, es tando reservado a suas tribulações privadas.
Um exemplo. O de seus críticos literários -- pois eu reser­
vo as anális e s p olíticas. O termo nos ografia que empreguei se justi­
fica pelo procedimento de decomposição analítica do que caracteri­
za urna inspiração, e pelo es forço para definir não apenas gêneros
literários, mas tipos de es tilo s egundo a mixagem dos componen­
tes. Daí é conduzido a uma abordagem por momentos quas e
norrnativa. O vocabulário de Pessoa, quan to a is to, pode parecer
an tic1uado e sis ternático, mas o seu uso s e revela sutil e complexo.
Sensibilidade, in teli gência e cons trução são a s eus olhos os três in­
gredientes de toda arte, pois ele opera geralmente com os trip letos,
subdividindo-se eles próprios, e muitas vezes ern três. }J erem p tório,
o crítico Fernando Pess oa, quando se detém sobre um texto, de-

246
Colctte Sofer

com p õe seu s o p ro se gundo sua grade q uase a p riori, diz o q ue aí


encontra, o que aí falta tanto quanto o que o sobrecarrega, e faz
p rognósticos sobre a evolução p ossível do autor, como se detives­
se em s egredo a idéia p latônica da p erfeição em cada gênero. Como,
além diss o, j ulg a que é seu dever de irmão de escrita de fazer conhe­
cer sua análise, comp reende-se q ue isto nern sem p re a grade ao des­
tinatário, e que este deva muitas vezes p rotes tar contra suas boas
intenções. Foi notadamente o caso com Mi guel Torga, a q uen1 es­
crevera em 6 de junho de 1 930 1 3 na recep ção de seu livro Rampa.
Fernando Pessoa está inteiramente p erp lexo p or cons tatar que Torga
fi c ou "vexado a té a quarta p o tência"4 4 . Seg uindo na s ua corres p on­
dência os p rotestos de imp arcialidade com os c1uais ele acomp anha
g eralmen te suas análi ses crí icas, avaliamos que de fato não se tra ta
t

d e des conhecimento, n ã o obs tan te a sintaxe fre q üen temente


denegativ, . Inconsciência, no sentido banal do termo, seria mais
J us to. Pessoa, visando a p erfeição na p recisão analítica, p ode fazer
muitas críticas a seu escap elo crítico - aliás, ele também as ap lica a
si p ró p rio - mas não p ode s e ver senão oomo crítico inocen te,
como se a consideração da obra anulasse com toda legitimidade a
da p essoa a q uem se dirige. O resultado é um es tilo de crítica assertiva
e densa que, q uando Pessoa quer manejar o p anfleto, atinge a fero­
cidade: só con ta o enunciado jus to que forclui a p arentemente p ara
ele qual quer questão s obre a enunciação latente.
Quem reconheceria nesta boca da verdade o abúlico sem­
p re incerto que descrevem suas cartas? E ainda, s � houvesse ap enas
es tes dois, s eria sim�les: dis tin guir-s e-ia Fernando e Pes soa, como
fez de Jean-Jac ques � Rousseau aquele de quem ele se reconhece
f
irmão, a título de "misanthropic lover o mankinc/"1 5 • Mas cómp reende­
se que o dois não bastària a q ui. Aliás, a a p roximação com Rous seau
torna a diferença sensív: eL Rousseau se in terroga s obre sua identida­
de. Que se p ens e no famoso come ç o de sua p rimeira Reverie: "Mas
eu, s e p arado deles e de tudo, que sou eu, eu p róprio?"46 Ele também
p ode situar os p eríodos de sua vida nos q uais se tornava um outro,

247
Os Destinos da Pulsão

descrever-s e como u m ser flutuante a não ser que estej a inspirado, e


gemer repetidamente sob.te o "vazio de seu coração". No ent anto, 0
a�tor do p rimeiro . Di.rcurso sobre as ciências e as artes, o pensador do
Contrato social e do Emílio, o enamorado pela natureza e o romancis"
ta, o caminhante das Rêveries, e mesmo o raciocinador dos Diálogos é
o mesmo, dis so o leitor não p ode duvidar. Mesma sensibilida de,
mesma relação com o outro, mesma fibra reformadora, mes ma rít­
mica da p rosa. Numa p alavra, a consis tência de um gosto, e de tod a
uma relação com o mundo que As Co1!fissões só confirmam. Nada
dis to em Pessoa. Não é o mesmo na sua p rosa e n a sua p oesia, não
é o mesmo no interior de sua p ros a e tamp ouco no de sua p oesia. E
no entan to, existe unidade em Pessoa, mas não é a ele um eu (moz) .
Tal é minh a tese.

A experiência fundamental

"Tragédia subj etiva" tal era o subtítulo q ue Pessoa fixara


para Fausto. Este Faus to, com certeza, não é um diário íntimo, mas
trata do ín timo, assim como o Livro do desassossego, o Cancioneiro, ou
os Poemaspagãos dos três grandes heterônirn os. "Tra gédia subj etiva'';
es te p oderia ser o subtítulo do conj unto da obra p oética que p arece,
com efeito, brotar de uma exp eriência fundamental, reiterada, que à
escrita sublima em poesia, sem reduzi-.ta. Dá a obra seu tema mais
q ue central, único. Face invertida do efeito de c d stal demultip licador
q ue é a heteronomia, ela se diz e se re p ete até p roduzir uma verda­
deira rep isa q ue, remetendo de obra em obras as mesmas exp res 0
sões diferen temente recon textualizadas, constitui sem dúvida a frà­
queza maior cio conjunto. Pessoa o p oeta múltiplo é o paciente de
uma experiência fundamental: a ela dor e do mis tério de exis tir, s em
o s ocorro de um eu constituído. Ela aflora em enunciados reiterativos
tão numerosos que todos não p oderíamos evocá-los. Semp re, este
"excltiÍdo da vida", q ue leva "até o calvário, esta cruz" que é ' 10
simp les fato d e exis�"'17 p ergunta: "Quem então me salvará de exis·

248
Colctte So/ar

tir?"48 Porque sua angús tia chama uma segunda morte: "não cessar
de exis tir( . . . ), mas uma coisa bem mais horrível e p rofunda: cessar
de ter m � smo existido" 49 . É daí q ue a obra centrífuga se irradia em
. . . "extratos do inexis tente" 50 .
Esta dor de estar "só face ao n1is tério da inexis tência, entre­
gue ao deses p ero de se sentir viver" 5 1 , nutre a obra . . Ela não é sua
asserção p rimeira e única, mas a Exp eriência p rimeira, a qui p edindo
em p res tado a Pessoa sua mania das Maiúsculas. Ela é húmus melan­
cólico da extraordinária plas ticidade criadora q ue foi a sua, e q ue lhe
p ennitiu jus tamente não ser um caso de melancolia. "O sentirnento
a p ocalíp tico da vida" 52 , todo o p eso, toda a dor des te "univers o real
e im p ossível" es tão em toda p arte na p oesia de Pessoa. Existe nesta
o bra alg o d o grito, d a n áuse a a n t e s da hora, da derrelição
heideggeriana p ré-datada e uma an gús tia metafísica submerg ente. A
o p resS"ão de exis tir, o sentimento de irrealidade, de "não-ser", de
caos e de vazio, declinam-s e aí em modos vatiados, en q uanto o bos­
quej o da contingência irredutível, do n ão-sentido e da vacuidade,
armados como enigma, elevados ao .l'vlistfaio - ainda uma maiús­
cula - dão consistência a uma in q uietante iminência como se, st:m­
p re, "o q uase-revelado hesitasse em fazer sua ap ariç ão" 5 3.

Ficções

Desta dor de existi.r Fausto trata literária e filo s oficamente.


A referência histórica do título o indica: ele tem a p eg o ao século, ao
deses p ero de uma é p oca e de uma geração ó.rfã de toda fé, tanto
religiosa como científica; ele faz vibrar um deses p ero e um niilismo
metafísico que poderíamos dizer precursores e muito modernos, não
fossem o tom e o vocabuli.rio. Isso é um pouco sério demais no
gênero do p atos metafisico: horror, febres, 1nis tério, - abismo, verti­
g ens, trevas, p avor etc. Mas não é o objeto literário que me in teressa
a qui, antes esta voz que fracassa, q ue não tem outro destino s enão o

249
Os Destinos da P11/são

impasse da experiência existencial, a tragédia ele um sujeito excluído da


inconsciência bem-aventurada cio que ele chama "a vida evidente e
unânime"5 ', e que por toda parte vê surgir o mistério do existente. O
livro anima, de forma teatral, a grande repisa martelada daq uele qu� .
escreve: "Eu sou o singular, o Excluído, o Tenebroso!" 55 .

É a mesma "Agonia, angústia de exis tir" 56 que fez alçar à


cena da litera tura um dos s eus primeiros anti-heróis modernos,
Beckett e alguns outros não tão dis tantes : Bernardo Soares, script
insone de uma vida minúscula, c1ue jaz sua vida (é sua exp ressão) no
marasmo subj e tivo. B ernardo Soares, ao escrever O livro do desassos­
sego, não escreve o diário de Fernando Pessoa, tam p ouco o de um
o u tro, pois B ernardo S o ares n ã o exis te: m e n o s do que um
heterônimo, é uma "personalidade literária", diz Pes soa. Por tanto,
não procurernos aí o retrato clac1uele c1ue º fabricou. Contudo sua
.
"litania da desesperança" pertence ele fato a Fernando Pes soa, salvo
que es te é ainda ou tra coisa a mais. Ele o disse, Bernardo Soares é
utn "cepo": " s ou eu menos o raciocínio e a a fetividade". Ele não o
inventou totalmente, mas forjou por subtração. Aliás Pessoa se re­
conhece nesta "produção mórbida" 5 7, "cotn p licada", "tortuosa" e
nas experiências mentais das quais Soares é o analis ta aplicado. Em
4 de outubro de 1 9 1 4 ele escreve: "Meu estado de espírito a tual é
uma profunda e calma depressão. Eu es tou há alguns dias no mes­
mo plano que o Livro do clewssossego" 58 . Ora, este Bernardo Soares é
o gra forréíco obstinado de experiências ínfimas e fluentes, o tes tes
munho rne tódico do ins tante, de sensações efêmeras. Da pró p ria
Lis boa - seu único amor ·- que ele torna soberbamente presen te,
ele só retém os elementos mais ins táveis, mais fugazes: cores, refle­
xos de luzes, ressonâncias, nuvens que deslizam, o rio q ue passa, a
in tranc1üilidade dos movimen tos da visão que vêm em con traponto
aos frêmitos da in terioridade e de s uas sensações as mais tênues.
.
"P as sante integra l" , centro a b s trato d e sensaçoes
- 11npess
. oa1s · ,
. ,,;9
rebo talho do laço social, o vazio de todo sen tido, ele o povoa por
es ta crônica de uma não-vida, que nos limbos de urna inexis têncía

250
Colette Soler

insone, es (1 uadrinha sua aus ência do mundo, sua nulidade, seu de­
sencantamento, sua angústia.
O s três heterônimos maiores, Alberto Caeiro, Ricardo Reis
e Álvaro de Cam p os, também eles divergem a p artir des ta exp eri­
ência fundamental, mas não se contentam em decliná-la, eles a tra­
tam como ou tros tantos eus fictícios. Se p or vezes Fernando Pessoa
os designa como uma ... Escola 60 é sem dúvida p orq ue .eles são os
n1ensa geiros de uma vida p os sível, cuj o visão de conj unto lhe p are­
ce ter vindo p ela leitura de Walt Whitman. Do trio, Caeiro é o m.es­
tre; os dois outros são s eus dis cíp ulos.
Alberto Caeiro é o sup osto p agão, "o único p oeta da natu­
reza", o "argonauta das sensações verdadeirns" 6 1 , q ue são tudo o
q ue res ta da natureza q uando esvaziada de sentido. Neste bom selva­
gem q ue se tornou p oeta, Octavio Paz vê a única afirmação de toda
a obra de Pessoa . De fato, ele é a ne g a ç ão encarnada da exp eriência
trágica. Pós-simbolista, feliz ne g ador do mis tério, inimig o dos liris­
mos e da metáfora, não q uer conhe,cer s en ã o uma n a tureza
desabitada, onde "uma p edra é uma p edra e nada mais", "o único

1

sen tido íntimo das coisas" dado p elo fato de " g ue elas não tem
sen tido ín timo alg um"r·2 . A p oiando-se inteiramente na certeza tran­
qüila da ade q uação à nat1.ueza, ele exorciza o mis tério, o não-senti­
do e a morte. É _ a uto p ia viva de uma relação imediata com o
mundo que não seria trabalhado p ela negatividade da lin g ua gem, o
sonho de um olhar virg em a quém "das men tiras dos homen s " .
Para realizar este p aradoxo d e uma p oesia q ue se desejaria p ré­
reflexiva, como q ue anterior à lin gua gem, Pessoa reanima o gênero
bucólico, e inventa um estilo cho q ue q ue procede p ela nega ç ão, p ela
tautolo gia, p ela "denotação_ p ura" 63 , p ara reunir num dizer sem fic­
ção a crônica edificante de uma contemp lação de um mundo vazio,
na qual a visão não (] Uer "ver serião o visível", encantando-s e consi­
go p ró p ria nas bordas únicas do es p a ç o s ensív el. É a imagem inver­
tida da in tran qüilidade metafísica ele Pessoa.

251
Os Destinos da PHlsão

Ricardo Reis é uma outra j anela sobre a vi da e uma outra


es tética. Suas odes se servem daq uelas de Horácio, de sua métrica,
de seu ritmo, de sua sintaxe, que Pessoa conhecia bem. Mas é uin
Horácio "mul tiplicado pela alma", o que faz seu amigo Mário de
Sá-Carneiro dizer: '°Você conseguiu realizar uma novidade clás si­
ca"64. Este neo-classicismo de reis, fora do tempo, ao mesmo tem­
p o arcaico e enfático, é harmônico com a solução existencial que de
p resentifica. Reis não ten ta foracluir a dimensão t;:ágica da existên·
eia: dobra-se a ela. Recusando toda es p eran ça e toda ambição, p te­
tende liberar-se da an gústia p ela aceitação do nada de toda coisa e
vive a p enas p ara cultivar o dis tanciamento do sábio estóico e os
p razeres do h edonis ta e p icureu65 do q u al só se distin gue por uma
interioridade pós-romântica. É a solução pelo co11sentimento.

Álvaro de Cam p os é o único moderno d esta tri ndade


heteronômica. Futurista rivalizando com MaÍ:inetti, e mais do que
ele herdeiro do sens aci,onismo, d e fensor de u1na estética não­
aristotélica, grande irmão extremado e p recurs or do Barnabooth
de Valér y Larbaud, não cultiva nem a inocência das origens, nem o
distanciamento filosófico: quer tudo viver. É a g ueie que põe em ato
o fam oso "tudo sentir e de todas as ma11eiras", que é um dos
ritornelos da obra, que reencontramos tanto no Livro do desassossego
quanto no Cancioneiro, ou nas Odes de Álvato de Camp os. Este visi­
onário da nova era, bu.límico de todas as ex p eriências, em sintonia
com as estridências do maquinismo moderno, se entreg a a um liris­
mo surrealista nutrido de desrazão, de excesso, de escatologia e de
ironia deses p erada 66 . Através dele Pessoa, a falta de ser um, é imagi­
nariamente tudo.

As obras destas três cüaturas, Pessoa imaginou situá-las sob


o título Ficçves de inter!tÍdio. Ora, p odemos ler no Livro do desassossego
uma breve nota que disso exp õe sua função: Ficções de interlúdio que
vêm cobrir, multicolores, o marasmo e a agn:.ra de nossa íntima
descrença" 67 • Existe aí uma chave. Ela não resolve o mis tério do

252
Colette Soler

gemo, mas revela a lógica de s eu polimorfismo: a profusão em


Pessoa se engendra a partir de um vazio central, sempre descober­
to, que lhe dá sua condição primeira. · Ele próprio o disse: "Posso
imaginar tudo porque não sou nada" 68 . Também Bernardo S oares'
diz: "Eu sou alguém postiço"19 . Podemos considerar que todo eu é
sem dúvida, digamos, acres centado, e que cobre o vazio do suj eito,
mas só aparece p o s tiço e mesmo inexis tente, em todo caso disper­
s o, lá onde falta a ancoragem numa fantasi:t que prende o suj eito em
um modo de gozo fixo.
É a realidade de uma inconsis tência irremediável, tão incô­
moda p ara o suj eito Pessoa que manej a o espaço de um imaginário
fragmentado mas também de urna criação demultiplicada. Ela é
solidária do que ele nomeia sua "descrença" mas esta é também
sinônimo de uma liberdade p ouco comum para com as pré- fic­
ções da eultura, p ois os semblantes não têm poder sobre um tal
sujei to. Que desta foraclusão ele s o fra, é certo. Que ela o entregue à
dor crua de apenas viver, condenado a os cilar entre o nada e o
tudo, a sentir o nada de s eu s er e a sonhar e;n s er tudo, q ue de seu
clamor ele faça como que o "baixo contínuo" de. toda a sua obra,
ele, "o Eleito da Dor" 70 , não eleve nos mascarar o que seu gênio lhe
deve . Como a teia que sai do ventre da aranha, é des s e foco q ue se
irradia o p olimorfi smo de Pessoa: es ta es tranha difração das ima­
gens e dos estilos, este medúsica parturiçào de criaturas novas, po­
etas ou não. N o entanto, às maravilhas do múltiplo é necessário
acrescentar o relevo das ausências , menos espetaculares, mas não
menos sign ifi cativas.

«A mentalidade"

Que faltou dizer àquele que desej av,1 "Tudo dizer, sobre tudo,
sem falha, s em defeito ou fra q ueza"7 1 ? Ele não p ode dizer aq uilo de
que foi exilado, encerrado que es tava na bolha el a mentalidade

253
Os Destinos d(/ P11isão

p ululante, seu único recurso contra a experiência trágica. Além dis"


s o, à obra prolífica de figuras e de nomes falta sin gularmente carne:
nada de nenhuma das paixões humanas, nem o amor nem o ero tis­
mo, nem o calor das afeiçôes, tamp ouco as lutas, as em preitada s e O
suor. Quanto à mulher com q ue sonha é ... uma ima g em numa taça
de chá. No LJ Ue esta faz menção de sau· de sua interioridade, a imagi­
nação de Fernando Pessoa p ermanece es tranhamente cerebral: quer
to p ar tudo mas nada aí é p ara valer; tudo é "como se", os o bje tos
p ermanecendo no es tado de sombras. A própria natureza q ue de s­
creve não é aquela com c1ue se to p a . É luz, reflexos, imagens. que
p assam e q ue se p erdem, a s s ediadas às vezes p or vag as reminiscên­
cias. Assim Bernardo Soares se move num mundo fantasmagórico
de onde ele deixa es capar fórmulas bem es tranhas de fi m do mun­
do. E s te rebo talho de toda intencionalidade vital, este abandonad o
do la ç o social p ergunta: "Então, onde estãó o s vivos?"72, "Es tou
cercado de sombras vivas" 7 3 , enquanto alhures ele elocubra a respei­
to de seus semelhantes, "es tas indiferenças encarnadas", para "com­
p reender como outras p essoas podem exis tir"74 , concluindo: "Não,
os outros não exis tem". O labor humano, as paixões comun�, o
fo g o do erotismo estão totalmente ausentes da obra de Pesso::,, e
algumas vezes mais do que aus entes: rejeitados. Diante de uma_ ma­
nifes tação o p erária, Soares exclama: "Tive subitamente náusea", eles
eram "reais, lo g o inacreditáveis". Pois p ara ele um homem sempre
teve "menos importância do q ue uma árvore, se esta árvore é bela"75 •
Caeiro "o guardador de rebanhos", o fal so p a gão q ue aliás confessa
não ter outros cordeiros ítlém de seus p ensamentos, e (J Ue em si
p ró p rio cultiva "o eg oísmo na tural das flores" diz alg o semelhante:
"Que importam p ara m.im os homens / E tudo o que sofrem ou
s up ôem q ue so frem?" 76 •

O livro do desassoJJego desenvolve mais longamente esta moral


da alma discordante, inacessível ao que a piedade e a simp atia su­
p õem de iden tificação ao semelhante: "não fazer a ninguém nem
bem nem mal. ( ... ) Ter Uns com os ou tros a amabilidade dos passa�

254
Colette Soler

geiros embarcados para a mesma viagem". E acrescenta: "Tenho


ern relação a tudo o que exis te uma afeição visual, uma ternura da
inteligência - nàda no coração. Não tenho fé em nada, esperança
em nada, caridade 'por nada" 77.
Assim s ó resta da es p es sura carnal da p resença uma superfí­
cie de duas dimensões e o recorte das silhue tas eternizadas. "O
mundo é para mim uma galeria de quadros sem fim", diz Soares,
"não me lembro de ter amado em alguém nada mais do que 'o
quadro" 7 8 e "sempre ressenti os movimentos humanos - as gran­
des tra gédias coletivas da história(... ) como frisos coloridos, despro­
vidos da alma daqueles que os a travessam" 79 • O próprio Pes s oa
algumas vezes defende a realidade superior do espaço mental do
sonho, com suas duas dimensões. Em s etembro de 1 9 1 4 es creve,
para o j ornal O Raio, o primeiro (e único) artigo de uma rubrica
in titulala "Crônicas decora tivas". Texto delicioso, de um humor. . .
lo uco, e d o qual não s e pode imaginar s em rir o e feito p ro duzido
sobre o leitor comum. Trata- se de seu encon tro com um Dr. Boro,
professor na U niversidade de Tóquio, o q t�al te m três dimens ões, e
,
mesmo uma s ombra, encontro inaudito para aquele que sabe bem
que o verdadeiro Japão, o Japão de porcelana, tem o tato reLJUÍnta­
clo de nunca ter tido senão duas dimensões, a das taças de chá, com
suas "figuras deliciosas, eternamen te sentadas perto das casas elo seu
tamanho, à beira de �agos absurdos, de um azul impossível. . . " 80 etc.

É evidente que a mulher é aqui a pedra no caminho. É: a


g rande ausente na vida de Fernando Pes s oa - o famoso idilio com
Ophélia Queiros, tão breve, epis tolar e platônico não o contradiz
- mas é adorada, ela também, como q uadro, se lhe q uet "esta exu­
berância toda japonesa de só ter, evidentemente, duas dimens ões" 8 1 ,
pois "a única coisa digna de urna mulher real é ter como ideal o de
assemelhar-s e a uma gravura" 82 • Bernardo Soares, que "perdeu o
mun do" 83 , que grita seu desprez o da carne", "seu noj o do amor" e
seu "Horror das mulheres reais" 8\ que escreve "A glória das mulhe-

255
Os Destinos da Pulsão

res es téreis" 8 5, diz à "Darpa dos Sonhos": "Pehnaneçam os eterna­


mente assin1, tal como uma silhueta de homem sobre um vitral , an te
uma silhueta de mulher sobre um outro vitral(:. . ) Os séculos deixa­
rão intacto nosso silêncio de vidro" 86 • Quanto ' ao Outro, a mulher
de três dimensões: "Não a to q ü em j amais ", pois "Ver e ouvir são as
únicas cois as que a vida nos oferece. Os outros sentidos são p lebeus
<
e carnais " 87 •
Pode-se ver a irreali dade e a desvitalização do laço social
procedendo do mesmo ponto q ue a profusão desenfreada do ima­
ginário, nada deixando subsis tir aí da espessura das coisas e dos
seres. Nada mais do que "uma mentalidade"88 desativada das pulsões,
um imaginário s em eu, que as potências da vida desertaram e que
multiplica através de metamorfose formas inumeráveis. A letra as
eterniza, sem dúvida, mas sem chegar a suturar o vazio enigmático
-instalado no coração do ser, nem a acalma"r a consciência dolorosa
da exi s tência . . . insensata.

Ora, a reflexão p olítica de Pessoa não pertence a es te regis­


tro, eu o diss e. A obra do pensador e do crítico tem uma marca
bem diferente dacp1ela do p oeta, embora ela próp ria n ão seja ho­
mogênea, mas estendida entre os dois pólos da ironia que destruí e
do messianismo que anuncia. A dimensão lúdica ou simplesmente
exploratória está aí totalmente ausente, e a questão que se coloca é
de saber p or qual lógica es te pensamento qu e nunca é de faz-de­
conta, como se diz, se ajusta ao "como s e" do imaginário plural.

A ironia

Eu evoquei a virulência de Pessoa o pettsador anti-revoluci­


onário, inimigo de toda ideologia ascendente sobre os direitos do
homem, a democracia, os valores de solidariedade etc. De fato,
serí2. n ecessário dizer in transitivamente: Pess oa o pensador-anti. O que
ele vomita, como .J oyce, são as evidências, a p rópria ordem do

256
Colette So ler

consenso e todas as regulações coletivizantes do presente odiado. A


ironia, ele a maneja como um ácido, p arra corroer o que .execra: os
conformismos, as influências recebidas, as sugestões consentidas,
tudo o q ue se fabrica da identificação e do mesmo. Crítico, ele o é
até o negati vismo. Desprezamos traidores, dirá que é erro de p ers­
pectiva; valorizam0s a coerência, denegri-la-á; denunciamos um
paradoxo, sus tentará que nenhum paradoxo é um paradoxo etc.
Sempre defende a tal p onto a an títese das idéias recebidas, que eu
poderia apo� tar que teria sido mais democrata em tempos mais
aristocráticos. Verifica-se q ue ele que advogou a favor de uma dita··
dura, aliás de um gênero muito especial, não a quer quando esta aí
r,stá com Salazar, a respeito de quem escreveu uma de suas páginas
mais ferozes 89 . É que o motor de suas polêmicas está alhures: na
posição de não-en ganado do discurso q ue, rejeitando os semblan­
tes e as ficções j á-exis tentes, produz esta curiosa vizinhança das teses
as mais reacionárias e de um toque incontes tavelmente subversivo,
q ue inclusive vai muito além de tudo o que pode atingir a crítica
social de um Jean-J acques Rousseau. E s,e acreditamos que exi s te
em Pessoa arrogância aris tocrática, o que eu não p enso, é porque s ó
pode reconhecer uma elite, a d a "espiritualidade", o q u e nele quer
dizer a do espí.rito ]_ivre, que por mais devas tadora que s eja sua
hberdade, tanto mais afronta o mistério da exis tência que faz tábua
rasa do discurso. Advogando p ela "desintegração espiritual" contra
todas as creduhdades, escreve: "Convicções p rofundas, só as têm
os s eres sup erficiais. (. . . ) Não se curvam, e são coeren tes. São da
madeira de que se servem a política e a ' religião, eis por que quei­
mam tão mal dian te da Verdade e da Vida". 90

Es ta frase não deixa de evocar para mim uma outra de


J acques Lacan em "Radiophoníe": "os militantes de carteirinha como
bab_y-sitter da his tória" 9 1 . De que se trata afinal, senão de um es forço
de irreverência p ara "dar o exemplo do desrespeito" visando mi­
nar o "servilismo"? 92 É o es p í.rito negador que sevicia a q ui, usando
da contradiçã o quase metódica e do paradoxo. Assegurado de que

257
Os Desti11os da Pulsão

toda coesão social repousa em fic ções, é a consistência das ficç ões
que ele ataca, p ois:

Sem a loumm, o homem, que é ele


Além da robusta besta
Cadáver adiado que proaia? 93

O e s c a p e l o crí tico d e P e s s o a e s tá evid e n temente


correlacionado a sua "incom p etência" para viver o laço social Ele
evocou muitas vezes e de maneira muito engra ç ada sua p erp lexida­
de esgazeada e incrédula dii,nte das vidas anônimas e tolerantes,
ins taladas na familiaridade de seu mundo, e que nenhuma inquietµde
p erturba. É p or maravilhar-se até a obsessão da segurança tranc.1 üila
e im p iedos a com a q ual O Patrão Vas q ues faz s eus negócios, assim
como do contentamento de tal cozinheiro oxgulhoso de sê-lo, fa"
z em trinta anos, e que nunca saiu de sua cozinha. Sua fascinação por
a queles qne ele chama de seus "caros veg etais" vai junto com o sen­
timento de uma irrem.ediável "incomp atibilidade", que ultrapassa
de long e, s egundo o que diz, o lote da solidão cos tumeira. Quando
a consciência de sua missão o habita, quando a revelação lhe advém,
ele eleva este es p anto até o veredicto.
Em Mensagem escreve:
Triste de quem vive em casa
Contente com o sett lar,
Sem que um sonho, 110 ergtter da am,
Faça até mais mbra a brasa
Da latúra a abando,wr?

'Ttiste de quem éfeliz!


Viveporque a vida dttra.
Nada na alma lhe diz
Mais que a lição da raiz ­
Terpor vida a sepultura.

25 8
Co/ette So/er

São as duas p rimeiras estrofes da terceira parte intitulada


"O encoberto; I. Os symbolos; Segundo - O quinto Império", as
duas últimas estrofes basculando num outro regis tro, ap ós uma es­
trofe de transição:

Eras sobre eras se somem


No tempo em que eras vêm.
Ser descontente é ser homem.
Que asforças cegas se domem
Pela visão que a alma tem!

Não, Fernando Pessoa não era reacionário. Isto dele teria


exigido uma outra base na realidade. Mas de sua grande imprecação
de anti-revolucionário ele interpreta o desejo de revolução, fazendo
aparece� aí lateralmente o gosto da ordem q ue o envolve. Sobre
este ponto, por vias totalmente opostas, ele se une ao Joyce apolítico:
subversivo demais para s er revolucionário.

Falta apreender de que modo aquele que entra como mes­


tre irônico na cidade do dis curso pode desembocar no impasse de
um messianismo bem estranho a toda modernidade.

Entre enigma e certeza

Noto primeiramente que é à própria medida da rej eição


dos semblantes que surge, nas pulsações da dor, o s entimento do
Mis tério maiúsculo. Da irreal realidade esvaziada de significação onde
se mantém Pessoa, ascende o. . . sentido opaco. Então tudo torna-s e
enigm a: sobre o ins ignificante p a s s a o sopro do mistério, o mundo
desertado se anima com uma presença obscura e com a iminência
de uma revelação contida. Esta está presente em toda parte na obra
poética, ainda que de forma negada, como o é em Caeiro. Fausto
exclama:

259
Os Destinos da Pulsão

Ele é estranho até a vertigem


E s11blimemente negro e profundo
De ver os seres, os vivos que se agitam
Que nada. de ( . . ) , que.falam a ( . . . )
Na luz e no ca!.ir - ele ver neles todos
Um mistério que tudo obscurece
E.faz da vida um horror incompreendido.9'1

En q uan to Bernardo Soares nota, um exemp lo en tre mil: ''O


mundo visível continua a girar sob os raios do sol. Mas o totalmen­
te-outro nos es p reita na sombra" 95 .

..
Esta p resença da sombra, a an gústia cons tante do entrevis-
to (de l'entr'aperç'I{) dá à p oesia de Pessoa uma tonalidade única e dele
faz, como notou um de s eus críticos, um homem "ébrio de senti­
do" es crutando a "es fin ge" q ue é p ara si p ró p rid, tanto como p ara
o logogrifo que vê em cada coisa, semp re à es p reita da iluminação
resolutiva.

Todo o as p ecto esotérico do p ensamento de Pessoa, seu


i n tere s s e fas cinado e atemorizado p ela teo s o fia, sua s u p os ta
mediunidade, seu messianismo ins pirado aí se desenvolvem, entre
enigma e certeza, entre mis tério e revelação, no in tervalo, ele q ue diz
s er ap enas um intervalo, sobre o fundo da rejeiçiio p révia de todas
"as mentiras dos homens". O messianismo de Pessoa não se op õe à
sua ironia. Ao contrário, ele a ela se une p erfeita mente p or um p ro­
cesso que inverte em certeza o enigma devas tador do não-sentido
q ue a rejeição do discurso deixa a descober to. Aí se p ode reconhe­
cer facilmente a natureza dos fenômenos ditos intuitivos onde "o
grau de certeza( . . . ) toma um p eso p ro p orcional ao vazio enigmá ico
t

que inicialmente se ap resenta no lugar da signific;t ç ão"96.


Este salto se re p etiu várias vezes na vida de Pessoa. Sua
corres p ondência o testemunha de maneira indubitável. Des tas revi­
radas que o fizeram p assar do nada à exaltação salvadora e fecunda,

260
Colette S oler

já se tinha um exem p lo em 1 9 1 2: um lon g o período de marasmo,


desembocando em uma "crise de su p erabundância" 97 , anteci p ada
p ela publicação de. seus três p rimeiros tex tos consa grados à p oesia
p ortu guesa 98 , nos g uais "o raciocínio ultra p assando o sonho" lhe
p ermitia an;;nciar, depois de uma lon g a dedução, e num tom muito
exaltado, "a p rodigiosa ressurreição de Por tug al" e a a p arição fatal
do Grande p oeta que suplantaria Camões e s eria "o maior p oeta de
nossa ra ç a", "o maior poeta da Europ a, de todos os tem p os".
Podemos igualmente seguir, ao lon g o do ano de 1 9 1 4, a crÔilÍca de
suas catás trofes. Em j unho escreve a sua mãe: "Talvez a glória tenha
um gos to de morte e de inutilidade e o triun fo, um odor de podri­
dão"99; em setembro, ele se diz no mesmo nível de deses p erança
que O livro do desassossego; no fün de outubro, fala ele "sua p rofunda e
calma depressão"; em 1 9 de novembro, ainda escreve a Armando Côrtes­
Rodri gu es uma carta p atética: "Não sou mais eu. Sou wn fragmento de
mim conserv;tdo num museu abandonado ( . . . ) Estou mergulhad e;
numa desola ç ão infinita ( . . . ) um estado de não-ser" 1 110 •
Porém, dois dias dep ois, em 2 1 de novembro, o marasmo se con-
verteu em convicção. Um fragmento autobiográfico o testemunha:
Ho1e, tomando a decisão de ser eu, de viver a altura de minha tar�fa, ( . . .)
entrei na p lena posse de meu gênio e tenho a divina consciência de minha
missão( . . . ) Um clarão me iluminou de lucidez. Nasci. 1 º'

N ão é indiferente notar que uma' carta de 1 4 de setembro


nos in forma que entrementes ele se deixou atrair p elo "mis terioso
fe n ô m e n o n a ci o n a l , talv e z i m p o r t a n t e , q u e c h a m a m
'Sebas tianismo" 1 º 2 • (Trata-se d e u m mes sianismo p róp rio d e Portu­
g al, fundado sobre a espera da reap ari ç ão do rei Don Sebas tião,
desaparecido em 1 578 na batalha de Alcácer-Quibir, e cuj o corpo,
tal como o falo perdido de Osíris embalsamado, nunca foi reen­
con trado. Seu retorno deve marcar o advento do Quin to-Im p ério
anunciado nas p rofecias) . N as s emanas g ue se seguem, anuncia ex­
p licações sobi-e s eu "curioso es tado de es p í.rito" 1 º·1 e sobre a nature-

261
Os Desti11os da Pulsão

za· da "crise p sí q uica" q ue atravessa. Quando vêm, na gran de e


belís sima carta de 1 9 de j aneiro de 1 9 1 4, explica que s e trata de uma
crise de incompatibilidade, devida ao fato de q ue ele, e apenas ele
dentre todos, nasceu p ara a consciência da "terrível e religiosa mis ­
são q ue todo homem de gênio recebe de Deus". Ser artista pa rec: e­
lhe doravante "a mais terrível missão", para realizar "os olhos fixa­
dos sobre o fim criador-de-civilização", com uma noção profun da
da "gravidade e do mistério da Vida". Ele acrescenta ademais: "a
idéia p atrió tica, sempre mais ou menos p resente nos meus desígni­
os, cresce agora em mim" e roga a Armando Côrtes-Rodrigues
p ara "não ver nesta carta f obra de um megalomaníaco" º".
1

1
· Uma báscula idênti ca s e observa no curso do ano de 1 9 1 6,
ano terrível, durarite o c1 ual ele se inicia na teosofia, descobre-se
ri1édium e p erde seu amig o Sá-Carneiro, que se s uicida em Paris em
26 de abril. Em dezembro de 1 9 1 5, ele lhe escrevia: "Psíquicamente
eu estou assediado( . . . ) Estou num estado de desarvoramento e de
angústia intelec tual q ue você não p ode ima ginar". É que ele se in­
formou sobre os ritos e mis térios dos rosa-cruzes e da teosofia q ue
o fascina. "É o horror e a atração do abismo coexis tindo no além
da alma" 105 . Ele diz ainda: "Vocês comp reendem c1ue esta tragédia
irre p resentável é bem real, cheia de aqui e a gora, e q ue minha alma
e s tá im p regnada como de verde as folhas" 1 º6 •

Em junho, uma longa carta a uma de suas tias conta "a


ques tão mis teriosa" ele sua novíssima . . . . mediuniclade. Ela nos p er­
mite avaliar do que Pessoa es tava assediado. Não era ap enas p or ter
rabiscado de maneira automática a as sina tura, q ue conhecia bem, de
um de seus tios-avós, que aí reconhecia uma manifestação vinda do
além, é. que ele a testa fenômenos diferen temente caracterís ticos: o
es p elh o não mais lhe remete sua ima g em, mas uma face de homem
barbudo; de um g olpe ele se sente ''pertencer a outra coisa": seu braço
se emancip a em movimentos q ue ele .não q uis etc. e outros tantos
signos, di.z ele, de c1ue "o mestre desconhecido quer assim me inici­
ar". Mas em 4 de sete1nbro de 1 9 1 6, escreve: "Eu me recons truo",

262
Cole/te Soler

tão bem "que as únicas novas que posso da1· de mim é que não,
porém melhor ag ora (A frase é esta mesmo, pois meu p rivilégio é de
não me exprimir)" 107 .

Messianismo

Na obra, paralelamente ao irônico "indis ciplinador de al­


mas" que convidav� a "uma anarquia p ortu guesa", faz p endant a
a p arição a n u n ciada do Su p ra- C a m õ e s , d o s u p er- h omem d o
U/timatum futurista d e Álvaro de Camp os, e p or fun do Rei Dom
Sebastião reencarnado. "Gênio, loucura, mis tificação?", p ergunta um
de s eus críticos. Mis tificação seguramente não, p orque, como ele o
diz, "é 'isso' que dá seu sentido a vida-obra de Pessoa. Foi 'isso' que
o orienJ:ou, p ermitiu-lhe éxistir" 1 0 8 . Tomemos o tom des ta veia p ro­
fética. Em 1 923, numa entrevis ta, da qual p rovavelmente ele p ró­
p rio redigiu as p erguntas e as respostas, interrogado s obre o futuro
da raça p ortu guesa, res p onde:

O Quinto Impétio. O fi1ti1ro de Portugal - que eu não imagino, mas


que eu sei ? - já está escrito para qmm sabe lê-lo, nas predzi'ões de

.Bandarra, e tt.Jmbém 11os quatrilhos de Nostmdamus. NoJSo ji,turo é de


ser tudo. Quem sendo português pode viver na estreiteza de mna só per­
sonalidade, uma só naf'êiO, uma sófé? (. . .) Absorvamos todos os dmses!Já
conquistC1mos o MC1r, jC1lta-11os co11quistC1r o Céu, deixcmdo C1 Term aos
Otttros, CIOS Outros de 11C1sámento, aos Europ eus que não seio Ei11vp eus,
porque não sdo porlltgueses. Ser tudo, de todas CIS mC1neiras, pois C1 verdade
não é se lhefalta ainda alguma coisa! Ctiemos assim o Paganismo Sttp eri-
01; o Politeísmo Sup1u110! NCI eterna mentira de todos os deJ.1ses, só os
deusesjtmtos �:ão a verdade. 1 10

J\liás, o messianismo dos últimos anos prolonga em Pessoa uma


indefectível e estranha paixão de juventude p or sua Pátria, que p arece de fato
ter tomado o lugar das afeições humanas mais encarnadas. Com vinte anos,
no mesmo texto onde ele se compara a Rousseau escreve:

263
Os Destinos da P11lrão

A pena intensa qtte experúnento por minha páttia, meu desejo intenso dé
melhorar a condição de Portu,ga!, me inspiram - como dizer com qtie
ardo,; com que intensidade, com que sinccn'dade! -- milhares de p lanos,
que sópode1iam serpostos em ação por 11111 home111 dotado de uma qualidade
da qual eu sou totalmente desprovido - o poder de quem: 1vlas eu sofro
até a beira da loucura, eu ojuro... O s�frimento é atro Z: Ele me mantém
constantemente, digo, à beira da loucura. 1 1 1

Podemos nos interrogar, j á nos ques tionamos, sobre o es­


tatuto deste messianismo. Não seria apenas metáfora para chamar a
um sobressalto espiritual, mito concebido para insuflar o novo elã
no lug ar vazio deixado pel�'falta imensa de um deus verdadeiro"?
Teria sido pensável p or parte daquele que afirma que o renascimehto
nacional só p ode passar por um grande mito nacional e que diz
sonhar ele próprio de s er um criador de mito. Mas numerosos
indícios mos tram q ue es tamos bem além da m�táfora.

Quando q uer evocar o que se trama obscuramente entre


passado, presente e futuro, Pessoa quase s empre fala por alusões
quase reticentes. Em 1 920 ele escreve a Ophélia uma carta de ruptu­
ra que diz:

Meu destino diz respeito a uma outra L.,ei, de que você ignora mesmo a
existência, e ele çstá cada vez mais mbmetido a Senhores que não consen­
tem nem perdoam. T/océ não tem necessidade de com/) reender i.rso. 1 1 2

De Orpheu número três, acredita que foi "impedido de sair


por uma von tade que veio do alto"" \ e de Mensagem, diz: "O que
eu fiz por acaso e que .resultou depois de conversas, fô.ra precisa­
mente desenhado com esquadro e compasso pelo Grande Arquite­
to" 1 1'1 _ Na advertência de seu Inten·egno, anuncia uma seqüência even­
tual, que es creverá "se a ordem está dada e à hora chegada'; 1 1 5 .
Além disso, o texto acaba com uma afirmação cifrada, dizendo
que, desde 1 578 até o dia em que Pessoa toma a palavra, nenhum
Por tu guês se dirigira aos Portugueses. S endo 1 57 8 a data do desa-

264
Coletie Soler

p arecimento de dom Sebastião, podemos concluir sem muito risco,


como o fez Joel S errão, que ele en fun retornou e que agora se
chama Fernando Pessoa. Tanto mais que, em 1 934, a respeito do
livro d e seu amigo A ugus to Ferreira G omes, Quinto Império, q ue
p refaciou, dispomos de um fragmento dos mais suges tivos, citado
p or José Blanco. Pessoa, tendo evocado uma predição qu e situa a
data ele reap arição ele dom Sebas tião entre 1 878 e 1 888, acres centa:

Ora, neste último ano (1 888) passou-se em Portugal o acontecimento mais


imp ortante da vida nacional desde as descobertas,· 110 entanto, por sua
próp ria natureza, o acontecimento passou, e devia passar inteiramente
desapercebido. ( . . . )Não creio que antes de dez anos o povo português venha
compreender do qm se trata e a importância desta questão. 1 16

Para nós bas ta que lembremos a data ele nascimen to ele


Pessoa, p recisamente em 1 888, para com preender do que s e trata.
Enquanto Joyce, o " filho necessário", é o fundador de seus
ancestrais e sus tenta sozinho, numa genealo gia p ela avesso, o q ue
chama "o es p írito incriado" de sua raça, Pessoa, reencarn ação ele
um rei morto, se inventa uma linhagem de suplência, utilizando os
mitos da Pátria. Assim a certeza veio responder, fazendo um lim ite
à deriva pluralizante da heteronomia. Depreendemos daí a função
des te Quinto Im p ério. Por que não dizê-l a terapêutica do o.ã o-sen ­
tido e da dis p eJ:são, aos q uais ele traz o U m ele uma iden tidade
reencontrada e . . . heróica?

Não p erguntemos mais onde es tá, nem quem é Fernando


Pessoa, pois a heteronímia, p enso tê-lo mostrado, p or ser o. fenô­
meno mais raro e mais fascinante de sua obra, dela não é o único.
Inclui-se no triân gulo da ironia negativista, da mentalidade liberta de
suas amarras, e da identidade messiânica reencontrada, todas três
s olidárias e surgidas do face a face com o real da exis tência. No
entanto, traço marcante em Pessoa, este trio do esvaziamento das
significações, da p rofusão das criaturas e do messianismo q ue t.r ans-

265
Os Desti11os da P11ísào

forma o não-s entido em plenitude do sentido, não se ordena em


fases sucessivas, mas se coloca numa sincronia a-cronológica.

A verdadeira pluralidade de Fernando Pessoa não é a da


heteronímia, mas a que faz se avizinhar de maneira sincrónica O
depreciador da realidade, o poeta disperso em p oetas, e o poeta
único da promessa esotérica, como outras tantas eflorescências da
peq,lexidade primeira, a gue inspira o menos-um deste trio: o po­
e ta do nada e do mis tério. Concluo: a es finge da unidade perdida,
ela também, es tava suj eita à lógica.

Um só poeta

Resta, contingência absoluta, o gênio da lingua. Esta eclipsa


em última ins tância a fragmentação do dizei:, pois o único amor de
Pessoa é sua língua, sua única volúp ia, a · do dis curso. N ele, só o s
poemas têm um corpo, as frases, uma personalidade humana e os
textos são mais reais do que a própria vida. Ele o disse:

Aspalavras são para mim corpospalpáveú, sereias visíveis, senmalidades


encarnadas. Talvez porque a sensualidade real não apresente para mim
interesse de qualquer sorte - nem mesmo mC11tal, nem mesmo em sonho;
por esta raz!io talvez.i o des1:Jo se transmutou 110 que, em mim, é capaz de
criar 1itt1Jos verbais. 1 1 7

Aliás, ele nota o quanto um erro de ortografia pode faze-lo


s ofrer, pois urna palavra é também U!Tl rosto, o quanto "um adjeti­
vo tem mais valor para [ele] do que lágrimas sinceras vindas do
coração" 1 1 8 • Lembra-se, ele que da vida nada pôde chorar, de suas
lágrimas de criança e sua comoção na leitura de uma célebre passa­
geip de Vieira: "Salomão cons trui um palácio. . . "
.Esta progressão hierática 1111ma língua clara e mqjestosa, esta expressâo da
idéia pelas palavras inevitáveis ( . . .) este maravilhamento das sonon'dades
que se tornam cores ideais - h1do isto me exaltou instintivamente tal
1,
como uma grande emofão política. 1 1 �

266
Cole/te So ler

O adjetivo é aqui pesado, pois a própria raça e a patxao


p atriótica p assam, segundo Pess oa, pelo amoi: da língua única e
primeira, confundindo-se inclusive com ela.
Ao erotismo da letra acrescenta-se em Pessoa uma paixão do
dizer, imperiosa e secreta, sem dúvida sua única paixão �erdadeira:

Dizer é sobreviver. Não há nada de real JJa vida que não o seja pela única
razão de que o descrevamos bem. 1 20

Dizer! Saber dizer! Saber exútirpela vo z escn'ta e a imag em mental! A


vida não vale mais: o resto são homens e vmlheres, a,nores mpostos e
verdades Jactícias, mbte,ftígios da digestão e do esquecimento, seres se
agitando em todos os sentidos - como estes bichinhos sob uma pedra q11e
levantamos - sob o vasto rochedo abstrato do cétt azul e desprovido de
. sentido. 1 2 1

É Bernardo Soarês quem as sim se ex p ressa, mas é a isso


mesmo que Fernando Pess oa dedicou a consumação de seus dias .
Se então nos perguntamos o que o leitor atual pode ainda
receber das mensagens de Fernando Pessoa, eu direi: tudo, pela
g raça da arte poéti c a. De fato, são os p rodutos de sua ironia, suas
p rofissões de fé, seus p aradoxos e suas diatribes p ara envergonhar
aos valores do p resente que sem dúvida são os mais ilegíveis hoje.
Ao contrário, no pró,prio auge do esoterismo delirante de Mensagem,
embora o novo evangelho de Dom Sebas tião-o-retorno não nos
diga nada, o p oeta ainda nos fala. A certeza está tão bem aí que se
decifra e se deduz, mas só aflora em alusões tão discretas, tão p ou­
co didáticas, que rC;s ta apenas p ara o não "ini �iado" uma p oesia da
in q uietação, da es p era, da p romessa indistinta. Poesia do limite q ue
des p erta as nos talgias frus tadas do alhures e da Outra coisa, en­
q uanto de seu a pelo a um futuro ·sublimado ela sabe tocar o p onto
de dor lancinante d? sujeito moderno, exilado ele toda transcendência.
A traves sada p elo so p ro de uma exigência qu e não se resigna, de

267
Os Desti110J da Pulsão

uma dor q ue es timula, a p oesia realiza assim .. . a missão. Mas uma


o�tra, a(J uela do artis ta, tal como Pessoa o metaforizava no notável
p oema in glês intitulado "The mad fiddler", o músico louco cuj a
magia, reavivando as "bus cas esci uecidas", deixa os passantes ''de
um golpe forçados a viver" 1 22 .

N OTAS

1 -Dcvo a Marta Wintrobert ter chamado minha aterição s obre o exemplo de


Fernando Pessoa como p ossível ilustração do que Lacan chamou a doença da
mentalidade. Cf. sobre este P 'i1 to o artigo de J.-A Miller em Ornicar?. Os textos
de Fernando Pessoa em francês es tão hoje publicados por vários editores. O
essencial dos textos acessíveis, excelentemente traduzidos, estão disponíveis
nos oito tomos publicados p or Christian Bourgois. As edições de La Di.tférence
empreenderam também a publicação das obras compl.e tas de Pessoa em fran­
cês: cinco volumes para os textos publicados em.vida do autor, e quinze volu­
mes p revistos para as obras pós tumas. A correspondência será citada segundo
o volume de cartas e documentos es tabelecido por José Bianca, traduzido em
francês com o titulo Pessoa en personne. Paris, La Di fférence, 1 986. N. do 'r.
Dada a diversidade das re ferências utilizadas pela autora, assim como da exis­
tência, algumas vezes, de mais de uma versão, nem sempre nos foi possível
localizar o "original" em p ortugu ês. Neste caso, optamos por traduzir livre 0
merite do francês es tas referências.
2- BLANCO, ]. Pessoa ett perso1111e. Paris, La Différence, 1 986, p. 69.
3 - J\ s referências sobre es te ponto seriam numerosas. Ver notadamente a
carta ele 1 3 de j aneiro de 1 935 a Adolfo Casais Monteiro sobre os heterônimos .
O p . cit., p . 297 .
4 - Carta a João Gas p ar Simões de 28 de junho d e 1 932. "Ocorre que existé
muito a equilibrar e a rever no Livro do desassossego, e que não posso pensar
decentemente que is so me ocu p e p or menos d e um ano", p . 286.
5- LACAN, ]. Le Sé111í11aire, Livre XI: Ln quatre co11cepts Jonda1nentat1x. Paris,
Seuil, 1 973, p. 26.
6- Veja-se a este respeito o imp ortante artigo de Antonio Tabucchi, intitulado
"Uma mala cheia de gente". Paris, Christian Bourgo.is, 1 992.
7- C f. notadamente os fragmentos 1 1 1 a 1 1 6 do Livt? de l'intra11q11i//ité, vol. I.
Paris, Christian Bourgois, 1 968. "Ah, que viagem os q ue não existem! Para os

268
Colette Soler

que não são nada como os tios, é o fluxo g ue deve ser a vida. Mas para os que
pensam e que sentem, todos os que são vigilantes, estes, a horrível histeria dos
tre ns, dos carros e dos bat:cos não os deixa nem dormir hem ficar desp eJ:tos" etc.
8- A expressão dá título a uma p equena coletânea de fragmentos p ublicados
em francês p elas edi ç ões Rivages.
9- Ibid ., p . 202.
1 0- Ibid., p . 203
1 1 - Ver os tomos a V das Omvres de Fernando Pessoa p ublicados p or
Chris tian Bourgois.
1 2- Oeuvres completes, Prose 1 . Paris, La Difféxence, 1 988, p. 263.
1 3- Cifra fornecida por J osé Blanco no seu p refácio ao volume I das Oeuvres
completes de Fernando Pessoa, op. cit. , e que agrupa os textos em p rosa pu bli­
cados durante a vida de Pessoa.
1 4- Cf. a carta de 28 de j unho de 1 932 a J oão Gas p ar Simões, j á citada
1 5- PESSOA, F. Livre de l'intrc111q11illité, vol. I. Op. cit., p . 240.
1 6- PESSOA, F. "A o pinião p ública". Em: Omvre.r completes. Op. cit., p. 209
1 7- IdS!m.
18- Ibid . , p . 219.
1 9- Idem.
20- C f. notadamente RIVA.S, P. "Ideologia s re,icionarias e sedu ç ões fascis tas
no futuris mo p ortugu ê s " . E m : Cahiers rles .avant-.�arrle.r. Lausanne , L'Age
d'homme, 1 978, e do mesmo au tor, "Frontieres et limites des futurismes au
Portugal et au Brésil", Emvpe, n. 55 1 , março de 1 975.
2 1 - Antonio Tabuccbi o qualifica de "malfadado".
22- COELHO, E. "Pessoa ou le voyage à rebours". Em: Cancioneiro. Paris,
Cb.ris tian Bourg ois, 1 988, p . 250.
23- PESSOA , F "Nota autobiográfica". Em: Pessoa en Jm,on11e. Op. cit., p. 68.
24- Não foi o caso, por exemp lo, de seu amig o J oão Gas p ar Simões, que
tinha sem dúvida se aproximado p or demais das facécias e misti ficações de
Pessoa para não ver aí mais do que uma simula ç ão lúdica.
25- É o que sustenta notadamente Robert Bréchon cm sua introdu ç ão geral
ao Cancio11eiro.
26- Carta a Armando Côrtes-Rodrigues de 4 de setembro de 1916. Op. cit., p. 1 83 .
2 7 - Retirei esta anota ç ão do ensaio d e Octavio Paz, j á citado
28- A expressão enconrra-se no texto: LACAN, J. "D'une question préliminaire à
tout u-a.itement possible de la psychose''.. Em: ÉCJit.r. Paris, Seui� 1966.
29- Carta de 30 de j aneiro de 1 935, O p . cit., p. 297-307 .

269
Os Destinos da Pulsão

30- Idem.
3 1 - L-\Ci\N, J. "D'une question prélimina.u:e à tout traitement possible de la
psychose". Op. cit., p. 533.
32- Carta citada, p. 301 .
33- Idem.
34- Ibid.
35- Fernando Pess oa. Em: LANCASTRE, M. ]. Pessoa, 11ne photobiographie,
Paris, Christian Bourgois, 1 990, p. 1 1 2.
36- PESSOA , F Uvre de l'intnmq11if!ité II. Op. cit., p. 64.
37- Carta a Alvaro Pinto de 30 de novembro de 1 9 1 2 . Op. cit., p. 85.
38- "Fragmentos autobiográficos". Op. cit. , p. 78.
39- Idem, p. 76.
40- Carta a Jaime Cortesão de 3f de janeiro de 1 9 1 3 . Op. cit., p. 94.
4 1 -· Sobre este assunto nos reportaremos a PESSOA, F. Oe11vres completes, vol. I.
Paris, La Différence, 1 988.
42- Idem, nota 24.
43- Ibid., p. 243.
44- Ibid., p. 247, carta a João Gaspar Simões de 28 de j unho de 1 930.
45- Ibid., "Fragmentos autobiográficos", p. 76.
46- ROUSSEAU, J-J. "Les rêveries du promeneur solitaire" . Em: Oeuvres
t'Ol1tp!etes I. Paris, Gallimard, 1 9 59, p. 995.
47- Idem, p. 1 20.
48- Ibid., voL I, p. 92.
49- Ibid., vol. I, p. 1 1 2.
50- Ibid., vol. II, p. 253.
5 1 - Ibid., p. 1 1 9.
52- Ibid., p . 1 02.
53- Ibid., p. 64.
54- l bid , p. 57.
55- PESSOA, F. Fausto. Paris, Chris tian Bourgois, 1 990, p. 47 .
56- Idem, p. 53.
57- Carta a Armando Côrtes-·Rod.cigues de 2 de setembro de 1914. Op. cit., p. 119.
58- Idem, p. 1 28.
59- PESSOA, F. Uvre de f'intm11q11il!ité I. Op. cit., p. 1 25.
60- Carta de 28 de junho de 1 932 a João Gaspar Simões. Op. cit., p. 287.
61- PESSOA, F PoMm pai'ens. Paris, Christian Bourgois, 1 989, p. 65.
62- Idem, p. 35.
63- . Ibid., p 1 7 .
6 4 - Citado por SEABRA , J. A . "Ricardo Reis ou l a double feinte". Em:
Poemes paiens. Op. cit., p. 1 1 2.

270
Colette Soler

65- A título de exemplo; "( . . .) Nada é saber! Tudo é ficção/ Viva cercado de
ro sas, ame, beba/ E cala-te. O resto não é nada ( . . .)"; e "Quem quer pouco,
tem tudo; quem quer náda/ É livre. Quem não tem e não deseja,/ Homem, é
igual aos deuses ( .. .)"; "Teu destino intrínseco involuntário, realiza-o/ Com
grandeza. Torna- te teu. próprio filho".
66- A título de exemplo: "Deitei com todos os sentimentos,/ Fui o protetor
de todas as emoções,/ Todos os azares das s ensações pagaram-me para
beber,/ Fiz cândidos olhos para todas as razões de agir,/ Dei a mão a todas
as veleidades da partida,/ Febre intensa das horas!/ Angústia da forja das
emoções!/ Raiva, espuma, imensidade que não cabe em meu lenço/ Cadela
da quinta que assombra minha insônia/ Bosque onde passeamos esta tarde,
cabelos ao vento,/ Minha rosa, o musgo, os pinheiros,/ Toda a raiva de não
conter tudo is to, de nada disso reter/ Ó fome abstra-ta das coisas/ cio impo­
tente dos ins tantes,/ Intelectual orgia de sentir a vida!".
67- PESSOA, F. Livre de l'i11traNq11illtté II. Op. cit., p. 222.
68- Citado em "Fragments d'un voyage immobile", p. 9 1 .
69- PESSf)A, F. Livre de l'intra11quillité II. Op. cit., p. 1 25 .
7 0 - Idem, p . 201 .
7 1 - Carta a Jaime Cortesão. Op� cit., p. 94.
72- PESSOA, F. Livre de l'intra11q11i/lité 1. Op. cit., p. 57.
73- PESSOA, F. Livre de l'i11tn111q11i/lité II. Op. cit., ,p. 245.
74- PESSOA, F. Livre de /'intra11q11illité 1 . Op. cit., p. 69.
75- Idem, p. 1 21 .
76- PESSOA, F. Poemes paiens. Op. cit., p. 56.
77- PESSOA, F Livre de /'intranquillité I . Op. cit., p. 1 23.
78- Idem, p. 1 45 .
7 9 - Ibid., p. 1 2 1 .
80- PESSOA, F "Chroniques décorat:ives I". Em: Ouevm rompletes. Op. cit., p. 1 57.
8 1 - PESSOA, F. Livre de l'i11tmnqHil/ité II. Op. cit., p. 1 75 .
82- Idem, p . 1 7 7 .
8 3 - Ibid. , p . 1 88.
84- Ibid., p. 13 8-9 .
85- Ibid., p. 1 66.
86- Ibid . , p. 1 57-7.
87- Ibid., p. 1 58.
88- C f. nota 1 .
89- Fernando Pessoa, fragmento não datado. Em: LAN CASTRE, M . J. Pes­
soa, une pbotobiogmphie. Op. cit., p. 269.
90- PESSOA , F. "Chronique de la vie qui passe, 5 avril 1 9 1 5" . Em: Ouevres
completes. Op. cit., p. 1 65 .

271
Os Destinos da Prtlsão

91- L\CAN, J. "' Radiophonie". Em: Sei/icei 2/ 3. Paris, Seuil, 1970, p. 67.
92- Carta a Francisco Fernandes Lopes. Op. cit., p. 191.
93- PESSOA., F. "Dom Sébastien, roi du Portugal". Em: ]e ne mis perso1111e,
A11tbologie. Paris, Christian Bourgois, 1994, p. 128.
94- PESSOA, F. fausto. Op. cit., p. 49.
95- PESSOA., F Uvre de l'intra11quilfité I. Op. cit., p. 174.
96- L.-\CAN, J. "D'une question préliminaire à tout traitement possible de la
psychose". Op. cit., p. 538.
97- Carta de 1 de fevereiro de 1913. Op. cit., p. 102.
98- Ver Omvres co11Jpletes, Proses I. Op. cit.
99- PESSOA, F. Pessoa en perso11ne. Op. cit., p. 115.
100- Idem, p. 132.
101- Ibid., p. 135.
102- lbid., p. 122.
103- Ibid., p. 136.
104- Ibid., p. 144-6.
105- Ibid., p. 168-170.
106- Ihid., p. 172.
107- lbid., p. 183.
108- Citado por José Blanco. Op. cit., p. 511.
109- Grifo meu.
110- PESS01\, F. Pessoa e11 personne. Op. cit., p. 270-1.
111- "Fragments autobiographiques". Op. cit., p. 76.
112- Carta de 21 de novembro de 1920. Op. cit., p. 218.
113- Carta de 26 de outubro de 1930. Op. cit., p. 254.
114 -Carta de 13 de janeiro de 1935. Op. cit., p. 299.
115- PESSOA, F. L'i11terrigne. Op. cit., p. 364.
116- Prose I. op. cit, p. 525
117 - Le livre de f'i11tra11q11iflité, vol. 1. Op. cit. p. 101.
118- Ibid., p. 124
119- lbid., p. 102
120- lbid., p. 261
121- Ibid., p. 260
122- PESSOA, F. ]e ne suis personne. Op. cit., p. 233.

Trndução do francês: Manoel Barros da Motta


l~ruisão da tradução: Vera Lúcia Avellar Ribeiro

272
PULSÃO: AMOR E ÓDIO

Heloisa Caldas
Membro da Escola Brasileirà de Psicanálise

O conceito de pulsão, como sabemos, é um dos conceitos


fundamentais da psicanálise. Um conceito impossível de ser
dissociado de todo o edifício da teorização sob pena de perder sua
validade epistemológica e de deixar cair por terra toda a constru-
ção. _1'Jo entanto, a pulsão não é um conceito verificável em si; por
esta razão há tantas comparações entre o registro da pulsão e o
funcionamento de modelos energéticos, biológicos e gramaticais,
sem que nenhum deles sirva completamente para defini-la. Na verda-
de, Freud assinala, logo no início do artigo metapsicológico sobre a
pulsão, que se trata de um conceito que porta "certo grau de
indefinição [e que] chegamos a uma compreensão acerca de seu
significado por meio de repetidas referências ao material de obser-
vação do qualparecem terprovindo, mas ao qual, de fato,foram impostas" 1•
Ou seja, é uma construção conceitua! na qual Lacan salienta o aspec-
to de convenção. Um conceito criado para fundamentar a teoria
cuja validade é o resultado de sua eficiência na sustentação do cor-
po teórico 2• Conseqüentemente, qualquer discussão sobre a existên-
cia da pulsão em si é infrutífera, pois não podemos concebê-la a
não ser em sua vinculação ao inconsciente, à transferência e à repe-
tição, os três outros conceitos fundamentais da psicanálise segundo
Lacan. Eis, portanto, um axioma básico da psicanálise: há pulsão. E
o que ela é?
Os Destinos da P11/siio

Freud se debateu com o problema de explicitar o que é a


pulsào traçando o caminho que esta toma, verificando as conse-
<-Jüências decorrentes de seus termos, suas vias e sua articulação aos
outros conceitos. Com os três pares de dicotomias que elabor_cm_a?
predicar sobre a pulsão, tenta dizer o que ela é com classificações.
duais, declaradamente apoiadas no traço distintivo entre dois
significantes, como uma bateria mínima a perseguir o sentido da
pulsão. No primeiro par (pulsões de auto-conservação/pulsões se-
xuais) é evidente o resquício do critério de distinção orgânico; no
segundo (pulsões do eu/pulsões sexuais) o critério baseia-se na re-
alidade como psíquica; e no terceiro (pulsão de vida/pulsão de
morte) a baliza se desloca de qualquer vestígio romântico de uma
biologia adaptativa para situar o mal-estar como critério. Estas três
elaborações permitem inferir o afastamento que Freud foi toman-
do do parâmetro organicista e evolucionista, assim como nos dão
testemunho do quanto buscava saber c1ual era a essência deste con-
ceito. Alcançou, no entanto, apenas apontar como funciona, o que
não é pouco, e ainda por cima, demonstrou que funciona sempre
mal. Porque funciona mal é que precisa de vias (no plural), o que
significa que não há A via do pulsional. Isso extravasa, escapa, passa
ora aqui, ora acolá, de forma imperativa, sempre passa. Os diferen-
tes destinos da pulsão, assinalados no artigo de 19153, mostram que
não podemos encontrar a pulsão em um lugar adequado; a pulsão
toma um destino, uma vicissitude, justamente porque não tem des-
tino certo.
São quatro os destinos da pulsão, sendo que os dois primei-
ros "reversão a seu oposto" e "retorno ao próprio eu" traçam a via
pulsional como submetida a uma lógica de lugares oriundos dos
lugares estabelecidos pela gramática em função de uma sintaxe. Su-
jeito, objeto, ativo, passivo e reflexivo são as referências nas quais
11rcud se pauta para estudar a pulsão, tomando-a por um dos ângu-
los cm que pode ser vislumbrada: o inconsciente. A tese lacaniana
de que o inconsciente é estruturado como uma linguagem esclarece

274
Heloisa Caldas

definitivamente que o ser falante está entre dois lugares e que o


campo do pulsional se constitui simultaneamente ao campo do
Outro.
O que Freud estuda nestes dois destinos também é válido
para o terceiro, "recalque", pois neste caso, como o recalque nunca
é inteiramente eficiente, seu retorno trata apenas de recuperar a via
torta da pulsão. Os sintomas neuróticos são grandes edifícios mon-
tados a partir do mascaramento dos destinos da pulsão na fantasia.
Já a "sublimação', o destino mais complexo na teorização freudiana,
apela a uma dessexualização4 , que cabe perguntar se é verídica ou se
não passa de buscar atingir o alvo onde rtão se espera, e de sexualizar
o improvável ao dessexualizar o provável. O provável como sendo
o mais ligado à necessidade e o improvável, o indicativo do desejo.
Outro aspecto ressaltado por Freud também é tributário
da gramática. Refiro-me ao que ele chama de reversão do conteú-
do da pulsão abordando o verbo, categoria da mais antiga classifi-
cação morfológica: amar/ odiar. Bem, ele nos demonstra como a
pulsão passeia e, depois, nos diz o que ela carrega em sua mala de
viagem - seu conteúdo. Lacan, ao articular a pulsão à demanda,
permite situar a sintaxe e a morfologia freudianas em termos de
uma lógica do discurso, de um apelo ao Outro pelo dom do amor.
Porém este dom que representa o impossível de ser atendido atesta
o mal. O que a pulsão visa, o prazer do órgão como libido, não é
um objeto. A pulsão não tem objeto, é demanda intransitiva. O
estatuto do objeto se estabelece na vinculação do campo do pulsional
ao campo do Outro, passando pelos desfilamentos dos significantes
da demanda para se revelar como inatingível na esfera do desejo.
Há objetos da demanda, objetos que, por não satisfazerem com-
pletamente, contornam o objeto como objeto de desejo, de fal-
ta. Daí, amar é, de certa forma, se iludir e achar que encontrou o
objeto do desejo no dom do amor, e odiar a operação de constatar o
logro.

275
Os Destinos da Pulsão

Há uma novela, intitulada Um copo de cólera\ de um autor


brasileiro chamado Raduan Nassar, que muito provoca, pois parece
quase uma radiografia da pulsão e destes seus aspectos amar e odi-
ar. Toda a novela é escrita com as associações "livres" de um dos
personagens, construindo um texto pontuado apenas por vírgulas e
ressaltando assim este incessante trabalho do maquinário inconsci-
ente, do qual a pulsão é o hipotético motor. Na verdade, a força do
texto registra muito bem o desejo operando previamente à transa
sexual (no sentido estrito), e o que poderíamos chamar de momen-
to paroxístico quando se verifica, após esta transa, o ódio como
uma das paixões do ser.
O personagem, a quem não é dado um nome, chega em seu
sítio e lá encontra, à sua espera, a namorada, que também não é
nomeada. Ele sabe o que ela quer: ela espera mais uma vez que se
tenha uma relação sexual. De partida o desejo é confundido com a
demanda e passa muito velado por um jogo de furtar-se a atender
esta demanda, em uma típica procrastinação neurótica obsessiva.
Ele passeia pela casa bancando indiferença à ansiedade dela, e não
responde à sua pergunta, "o que é que você tem?"<>, exibindo, em
troca, ao seu olhar sôfrego as pequenas partes reconhecidas, pelo
enredo tramado de seu discurso amoroso, como disparadoras do
desejo dela - seus dentes de cavalo, que mastigam um tomate, seus
pés brancos e úmidos, que ela chamara de lírios brancos. Dentro
desta lógica de discurso amoroso e desejante, ele supõe enfatuado
que sabe o que ela quer, o que ele tem e ela cobiça, as imagens dos
pequenos objetos a, que ela própria situa para que ele se reconheça
fálico na mensagem de forma invertida. A falta dele é desta forma
suprida pelo trabalho escravo dela a lhe ofertar como produto o
suposto complemento do sujeito dividido. Estamos no Discurso
do Mestre e o macho no lugar de agente exibe orgulhoso sua plu-
magem de pavão com um olhar que procura capturar no olhar dela
a faísca do fascínio. Ele pensa:

276
Reloira Caldas

... foi sempre na mira dos olhos dela que comecei a comer tomate, salgando
pouco apouco o que ia me restando na mão.fazendo um empenho simulado
na mordida pra mostrar meus dentes fartes como os dentu de um cavalo,
sabendo que seus olhos não desgrudavam da minha boca, e sabendo que por
baixo do seu silêncio ela se contorcia de impaciência, e sabendo acima de
tudo que mais eu lhe apetecia quanto mais indiferente eu lhe parecesse, ... 7

O falo circula, passa por ele na forma mais iludida que é a


convicção de tê-lo, passa por ela como falta, assinalado de maneira
mais verdadeira na mascarada feminina que cala sua ansiedade e
com o silêncio ostenta a falta. O olhar - como o objeto de suplên-
cia da falta do objeto da pulsão - está nos dois lugares; nele com
a consistência de objeto de gozo, nela como objeto de desejo pro-
priamente dito, objeto de falta. De seu lugar de mestre, curiosa-
mente, ele não goza senão por procuração através do gozo que
atribui a ela. Este jogo passa rapidamente ao ato e os dois vão para
a cama. As metáforas passam a ser mais incandescentes, e vale a
pena conferir na obra a sublimação do obsceno.
Sublinho apenas algumas frases. Na primeira se pode veri-
ficar o circuito da pulsão como um curto-circuito: "medíamos o
caminho mais prolongado de um único beijo". Na segunda, o su-
jeito topologicamente situado na demanda do Outro da qual extrai
seu desejo, "atendia precoce a um de seus (dos meus) caprichos
mais insólitos". Na terceira, o saber que ela lhe oferece quando
"onde eu fazia aflorar o que existia em mim de mais torpe e sórdi-
do, sabendo que ela arrebatada pelo meu avesso haveria sempre de
gritar 'é este canalha que eu amo'... ". E finalmente uma frase que
trará conseqüências ao desenrolar da história e que deixa vislumbrar
a divisão subjetiva do mestre: "fascinando-a com as contradições
intencionais (algumas nem tanto) do meu caráter, ensinando entre
outras balelas que eu canalha era puro e casto"8.

277
Os Destinos da Pulsão

Uma mulher, de um lado, se oferece como objeto à fanta-


sia que imputa ao homem, fabricando com seu saber o saber sobre o
gozo. De outro, só pode amá-lo como dividido, ama sua castração.
No dia seguinte acordam, mas ele sabe que ela está insatis-
feita, que ele não lhe propiciou o suficiente. Ela tenta seduzi-lo no-
vamente, mas ele se furta ao seu abraço, conduzindo o próprio
abraço para outros fins: "acabei dividindo com ela a prisão a que
estava sujeito, e, lado a lado, entrelaçados, os dois passamos, aos
poucos, a trançar os passos, e foi assim que fomos diretamente pro
chuveiro"'1• No chuveiro ele enfim se cnttega aos cuidados mater-
nais dela. Agora é ele que produz o sabei: a partir da mestria dela a
lhe administrar sabonetes, duchas, toalhas - a mãe fálica e seu bebê.
Como Lacan menciona no Seminário, livro 8: a transjérência, "à de-
manda de ser alimentado responde, assim, e de uma maneira que se
pode dizei: logicamente contemporânea a esta demanda, no lugar
do Outro, no nível do Ot1tron, a demanda de se deixar alimcntar" 10 •
Pois bem, ele se deixa limpar, entrega-se a operação de transmudar
o "torpe e sórdido" em "puro e casto".
Depois do pecado e de sua absolvição, ainda dividido pelo
olhar acanhado de D. Mariana, a caseira, diante da porta do quarto
e da cama escancarada, toma um café da manhã cm comunhão
com a paisagem bucólica que da varanda a granja oferece ao olhar.
Relaxa e entrega-se ao desfrute de um cigarro, sob o olhar indicativo
de insatisfação dela, quando subitamente é perturbado: "mas meus
olhos foram conduzidos, e essas coisas quando acontecem a gente
nunca sabe bem qual o demônio, e, apesar da neblina, eis o que
vejo: um rombo na minha cerca-viva" 11 •
O personagem perde a cabeça, lança-se impulsivamente para
o local já munido de cáusticos formicidas para aniquilar aquelas
infinitas formigas ordeiras, trabalhadoras incansáveis que lhe sub-
traem o ligustro na calada da noite, insaciáveis em sua gulodice,
inteiramente subtraídas ao seu olhar de comando, em nada autori-

278
Heloisa Caldas

zadas por sua dialética de ablatividade e retenção. As formigas in-


vadem, tomam, fazem furo na sua cerca com a qual protege sua
vidinha de granjeiro. O duelo de vida e morte o toma por inteiro
em um ataque de ódio, "c'uma gana que só eu é que sei o que é
porque só eu sei o que sinto, (...)daí que propiciei a elas a mais gorda
bebedeira, encharcando suas panelas subterrâneas com farto caldo
de formicida, cuidando de não deixar ali qualquer sobra de vida"1~.
Com um gozo inefável provocado pelo que da demanda resta desejo
insatisfeito, nosso personagem tenta matar a demanda, fazer calar
definitivamente este Outro, petrificando-o para nào se petrificar.
Porém aniquilar as formigas não é o suficiente. Para a na-
morada, a situação permite um franco ataque à posição do mestre,
o racional ê posto cm questão, e um comentário irônico sobre sua
destemperança é apenas a fagulha elétrica que ele precisa para jogar
na voz o mal que porta. Afinal as formigas, por estarem fora da
linguagem, não sabem, não podem funcionar como S2, e o sujeito
precisa encontrar no campo do Outro o endereçamento de seu
bem e de seu mal: "meu estômago era ele mesmo uma panela e cu
estava co'as formigas me subindo pela garganta" 1-\
Neste ponto da novela, Raduan Nassar demonstra com
seu personagem o discurso mais a serviço do gozo que do dizer. O
discurso, como sabemos, no início da teorização de Lacan foi
balizado pelas vias do desejo, pelo reconhecimento, mas posterior-
mente passa a ser trabalhado como um aparelho de gozo 1~, no qual
a via do dizer é tributária da via do gozar. Pela via do dizer a pulsão
erige objetos de desejo, objetos supostos satisfazer; entretanto, pela
via do gozo, via que ultrapassa o limite, encontra objetos
insatisfatórios, encontra seu mal. O balé amoroso de um gozo do-
mesticado em gozo fálico é subvertido e deixa transparecer o resto
inassimilável ao falo. Do amor passa-se ao ódio, de forma até mais
verdadeira do que quando tantas máscaras velavam a falta-a-ser e a
falta do objeto.

279
Os Destinos da Pulsão

O amor sofre o que Freud chamou de reversão de conteú-


do da pulsão. No entanto, deparamo-nos com um paradoxo espe-
tacular: não é o amor que se revira em ódio; o ódio veio primeiro e
o amor não passa de um véu para encobri-lo. Trata-se de um para-
doxo porque contraria toda a lógica do princípio do prazer construída
sob a égide de uma busca de satisfação e que foi marcadamente
alterada na teoria, alguns anos mais tarde, com a lógica do para-
além do princípio do prazer. O mesmo que anteriormente foi cita-
do aqui como o critério do mal-estar da última classificação pulsional
de Freud.
Lacan não usa o termo gramática ao abordar a pulsão se-
não quando menciona o trabalho de Freud e reconhece a sintaxe
apenas na instância pré-consciente15. O que ele nos propôe em troca
é uma montagem que compõe os quatro termos da pulsão (Drang,
Quelle, Objekte Zie~ de forma disjunta, irracional, como numa mon-
tagem surrealista. Ele enumera estes quatro termos na ordem que
citamos acima para dissuadir-nos da tentação de querer vê-los desta
forma encadeados: era uma vez um impulso que emanou de uma
zona erógena, encontrou seu objeto e atingiu assim sua satisfação.
Este seria o mito da pulsão, um conto de fadas. A forma que Lacan
nos convida a visitar o conceito é a que nos leva a pensar em um
aparelho que funciona incessantemente sem pé nem cabeça, mas
que insolitamente atinge sempre alguma satisfação, até mesmo quando
não parece buscar atingi-la como no sintoma e na sublimação. Atin-
ge alguma satisfação, mas não toda. Um aparelho cuja ação poderia
se exprimir por dois verbos correlatos aos usados por Freud:
sexualizar e dessexualizar. A novidade é que são dois verbos que
não se corporificam inteiramente. Refiro-me ao que Lacan chama
das duas muralhas do impossível1 6 por onde passa o sujeito: de um
lado a satisfação como impossível e do outro o real como impos-
sível. Impossível a sexualização toda de algo e impossível sexualizar
algo todo; o que resta é dessexualizado. Isto é, um defeito da
sexualização por parte do sujeito e um defeito em servir à

280
Heloisa Caldas

sexualização por parte do objeto. O ódio, portanto, já estava lá, e


apelar ao Outro em seu nome deixava claro o objeto como um
resto, um nada, um puro relé para servir à pulsão.
O personagem desanca na procura de responsáveis pelo ata-
que das formigas sabendo que não há responsáveis, mas precisa
vociferar: "Meu berro tinha força, ainda que de substância só tives-
se mesmo a vibração (o que não era pouco)" 17 • Volta-se para D.
Mariana, inquire por seu marido suposto negligente com o ataque
das formigas, enfim manda e desmanda. A moça não pode se fur-
tar a mais um ataque a este mestre onipotente e caprichoso, nova-
mente ela o espicaça chamando-o de "fascista". É tudo o que ele
precisa; alguém responde à sua demanda e se oferece como uma
escora:

Eu estava dentro de mim, precisava naquele instante é de uma escora,


precisava mais do que nunca-pra atuar- dos gritos secundários de uma
atriZi e que fique bem claro que não queria balidos de platéia, (...) só
queria meu berro tresmalhado, e ela nem tinha tanto a ver com tudo isso
(concordo que é confuso, mas era assim), eu estava dentro de mim, eujá
disse (e que tumulto.?, estava era às voltas co'o imbróglio, co'as cólicas,
co 'a.r contorsôe.r terríveis duma virulenta congestão, co 'a.r coisa.r fermenta-
das na panela do meu estômago. 18

Nada melhor para definir a total submissão do órgão ao


significante, de sorte que a zona erógena só revela seu caráter de
somática pelo que resta impossível da significação. No artigo
"Recalque" 19, Freud nos demonstra a hiância entre pulsão e
significante deixando bem claro que se o que conhecemos da pulsão
é sua representação, esta não se reduz a isto. O residual da pulsão é
seu caráter de irredutível a toda operação de representação. Pode-
mos nos contentar simplesmente com a famosa demarcação de
"conceito limítrofe entre o somático e o psíquico", porém foi o
próprio Freud quem nos ensinou que o somático da psicanálise

281
01 De1tinoJ da P11/.rão

segue outras leis que não as da fisiologia. Não encontraremos pulsão


sem uma zona erógena e vice-versa, o que nos deixa no labirinto da
explicação tautológica. Porém é evidente que zona erógena não é
apenas uma porção do soma, é o corpo libidinizado, isto é, o corpo
a serviço do significante, o que implica o real em articulação ao
simbólico e ao imaginário, e não um real puramente orgânico.
Nosso personagem diz mais: "e as malditas insetas me ti-
nham entrado por tudo quanto era olheiro, pela vista, pelas narinas,
pelas orelhas, pelo buraco das orelhas especialmente! E alguém ti-
nha de pagar, alguém sempre tem de pagar queira ou não, era esse
um dos axiomas da vida" 211 • Pagar com sua libra de carne, pagar
com a morte pela crogeinização da vida.
A partir deste ponto o mesmo par, que já havia posto em
cena a não relação sexual na esfera do amor e do desejo erótico,
passa a protagonizar na briga o impossível desta relação. As frases
de cunho político e ideológico dardejam lado a lado cm uma luta
pela qual passa o questionamento da propriedade, da mais-valia,
dos ideários revolucionários da década de 1970, do mal burguês
verm.r a força do proletariado. Conhecedores que ambos são de
suas contradições, todos os argumentos valem para estilhaçar mu-
tuamente o ideal do eu de cada um - "só sei que aí a coisa foi
suspensa, o circo pegou fogo (no chão do picadeiro tinha uma
máscara), minha arquitetura em chamas veio abaixo" 21 •
E neste momento, com a queda dos ideais, como em toda
briga passional quando o gozo é soberano, a coisa termina com
tapas... e beijos. Ele se recupera em sua posição sádica de sacana que
submete todo o discurso dela a frases que ela não diz, mas que ele
ouve assim: "amor, amor, amor, (...) sim, amor, sim (...) esquece,
amor, esquece (...) não sei, amor, não sei (...) você, amor, você" 22 •
Eis remontada a cena fálica e poderíamos esperar que ele enfim se
regozijasse. Mas, ao contrário, o excesso da entrega dela, que já não

282
Heloisa Caldas

sabe o que diz, em um gozo suplementar 3 o faz fugir de um salto,


proferir mais alguns impropérios. Dela, que também se restabelece
sujeito, ouve um derradeiro "broxa" antes de dar a partida em seu
carro e sair da granja.

O gozo da mulher, eis o enigma para o homem, este gozo


que se revela para além do significante, indomesticável, capaz de
fruir do mal para sabe-se lá que bem. Após a retirada dela, a cena se
desmonta e ele, separado da cena que o aliena, cai prostrado sobre o
chão ao mesmo tempo que lhe ocorre a lembrança do retrato da
família e a mãe lhe aparece nos ditos higienizadores de uma moral
- "o amor é a única razão da vida", "à zona escura dos pecados,
sim-sim, não-não, vindo da parte do demônio toda mancha de im-
precisão"21. Pulsão como representação é juízo de existência, só cabe
dizer sim para dizer não, e toda Befahung implica em Am:rto/31mj":
amor e ódio.

A novela poderia ter acabado aí; no entanto, o sintoma é


repetição. A moça retorna à noite. Desta vez é ela o personagem
que ao pensar nos conta a história. Encontra a casa em penumbra,
aberta à sua espera, o que confirma um bilhete dele sobre a mesa da
sala: "Estou no quarto". Ele a tem como seu sintoma e ela se ofere-
ce como tal. Vislumbra-o ao entrar no quarto, sobre a cama,

deitado de lado, a cabeça quase tocando osjoelhos recolhidos, ele dormia,


não era a primeira vez que ele fingia esse sono de menino, e nem seria a
primeira vez que me prestaria aos seus caprichos, poisfui tomada de repente
por 1,1ma ternura, tão súbita e insuspeitada, que eu mal continha o ímpeto
de me abrir inteira eprematura pra receber de volta aquele enorme feto. 26

Assim, Raduan Nassar termina sua novela mostrando o que


há de tão díspar entre o desejo e o gozo deste homem e desta
mulher, sublimando a demonstração de que a relação sexual não
existe e o sintoma é sua suplência.

283
Os Destinos da Pulsão

NOTAS

1- FREUD, S. " Os instintos e suas vicissitudes". Em: Obras completas, vol. XIV:
Rio de Janeiro, Imago, 1974, p.137, nossos grifos.
2- L'\.CAN, J. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise
(1964). Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1988, p. 155.
3- FREUD, S. "Os instintos e suas vicissitudes". Op. cit, p. 147.
4- FREUD, S. "Sobre o narcisismo: uma introdução". Em: Obras completas,
vol. XIV: Op. cit., p. 111.
5- NASSAR, R. Um copo de cólera (1978). São Paulo, Companhia das Letras,
1997.
6- Idem, p. 10.
7- Ibid.
8-Ibid,p.15,p.15,p.14ep.17,respectivamente.
9- lbid, p. 20.
10- LACAN, J. O seminário, livro 8: a tranferência (1960-61). Rio de Janeiro,
Jorge Zahar Editor, 1992, p. 201.i
11- NASSAR, R. Um copo de cólera. Op. cit., p. 30.
12- Idem, p. 31-2.
13- Ibid., p. 36.
14- LACAN, J. O seminário, livro 20: mais, ainda (1972-3). Rio de Janeiro, Jorge
Zahar Editor, 1985, p. 75.
15- LACAN, J. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise.
Op. cit, p. 70.
16- Idem, p. 158-9.
17- NASSAR, R. Um copo de cólera. Op. cit., p. 37.
18- Idem, p. 43.
19- FREUD, S. "Repressão". Em: Obras completas, vol. XIV. Op. cit., p. 176.
20-NASSA.R, R. Um copo de cólera. p. 43.
21- Idem, p. 69.
22- Ibid., p. 74-5.
23- LACAN, J. O seminário, livro 20: mais, ainda. Op. cít., p. 99.
24- NASSAR, R. Um copo de cólera. Op. cit., p. 80.
25- FREUD, S. ''.A negativa". Em: Obras completas, vol. XIX. Op. cit.
26- NASSAR, R., Um copo de cólera. Op. cít., p. 85.

284
SUBLIMAÇÃO E A POESIA DE
MANOEL BANDEIRA

Lucia Cipriano Baima

DESENCANTO

Eu faço versos como quem chora


De desalento ... de duencanto
Fecha o meu livro se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto
Meu verso é sangue. Volúpia ardente.. .
Tristeza esparsa... remorso vão.. .
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota a gota do coração
E nestes versos de angústia rouca
Assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca
- Eu faço versos como quem morre.

Manoel Bandeira, em Cinza das Horas (1912)

Pretendemos apreender o que Manuel Bandeira conhece


sobre o inconsciente, objeto de estudo da psicanálise. Assim, utiliza-
remos a poesia para enriquecer o entendimento da teoria e não a
teoria para desvelar o poeta.
Os Destinos da Pulsão

O desafio parece ser impedir a simplificação do encontro


entre psicanálise e poesia, escapando da tentação de fazer uma aná-
lise do autor, caminho que foi criticado por Lacan ao fazer sua
"Homenagem a Marguerite Duras":
Não é um madrigal mas um limite de método que entendo aqui afirmar, no
seu valorpositivo e negativo. O sl!feito é um termo da dénda, perfeitamente
calculável, e lembrar esse estatuto deveria pôrfim ao que épreciso designar
pelo seu nome: a pulhice, digamos opedantismo de uma certa psicanálise.
Essa.face dos seus passatempos, de ser sensível, espera-se, àqueles q11e aí se
lançam, deveria servirpara lhes assinalar que escomgam numa tolice: a de,
por exemplo, atribuir a técnica ma11[(esta de um autor a uma neurose:
pulhice, e de o demonstrar como a adoção explídta dos mecanismos que
fazem o edifício inconsciente: tolice. 1

Percebemos, ao iniciar nossos estudos, que a psicanálise não


se rendeu à dominância do valor explicativo que uma racionalidade
cientificista conferia à ciência do século XIX. Esta reduzia os obje-
tos à simplicidade de seus elementos, por intermédio de um
determinismo estrito que negava o imaginário e a significação, apre-
sentando como única função da linguagem a de comunicação, des-
prezando a história, o desejo e a existência do inconsciente.
A linguagem possibilita falar do que não possui
materialidade, fazendo emergir a realidade psíquica. Freud, ao falar
de realidade psíquica, relaciona-a com os processos inconscientes,
enfatizando que ela não se confunde com a realidade material, ape-
sar de apresentar coerência e resistências comparáveis a esta. Esse
psiquismo diferenciado é responsável por manter o desconhecido
como parte determinante da subjetividade.
A personalidade literária de Manuel Bandeira parece sub-
verter a realidade através de uma deformação voluntária. Sua obra
expressa a realidade terrena limitada com um certo tipo de materi-
alismo dos seres e das coisas, sem buscar explicá-los. Assim cria
uma espécie de transcendência, de ressonância misteriosa que ex-
pande o âmbito habitual do poema. ;

286
Lucia Cipriano Baima

A tuberculose surpreendeu Bandeira por volta dos 18 anos,


quando se preparava para matricular-se no curso de engenheiro-
arquiteto em São Paulo. Em busca de climas mais propícios para a
cura de sua doença, o poeta iniciou uma peregrinação que o levaria
de Teresópolis a Davos-Platz, na Suíça. Somente depois de sua
internação no sanatório de Clavadel (Suíça) em 1913, é que a saúde
de Bandeira começou a acusar melhoras. De volta ao Brasil em
1914, Bandeira iniciou um período de convalescença que se esten-
deria por quase 13 anos.
Segundo Ivan Junqueira, nos estudos críticos que faz do
livro Testamento de Pasárgada2, "o poeta aprendera a conviver com a
morte ao ouvir de seu médico que era portador de lesões incompa-
tíveis com a vida". Como sinalizam Gilda e Antônio Cândido de
Mello e Souza no prefácio de Estrela da vida inteira\ podemos per-
ceber no lirismo amoroso do poeta o jogo erótico e a transcendência
que nascem precisamente do fato dele abordar a ternura do corpo
com tão grande franqueza que acaba conduzindo o leitor ao arre-
batamento das abstrações.
A AR.'J'E DE AMAR

''.S'e queres sentir afelicidade de amar, esquece a tua alma


A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus - ou fora do mundo.
As almas ,ão incomunicáveú.
Deixa teu corpo entender-se com outro corpo.
Porque os corpos se entendem mas as almas não. 4

Este poema nos remete aos "Três ensaios sobre a teoria da


sexualidade" (1905), no qual Freud distingue a paixão amorosa como
estado em que o fim sexual normal parece fora de alcance ou cuja
realização está suspensa. O poeta, como o psicanalista, percebe a

287
Os Destinos da P11/são

incompletude dos encontros amorosos. O homem é acometido


pela falta; a relação sexual não existe.
Em "Escritores criativos e devaneios" (1908) Freud des-
creve o escritor criativo como alguém que leva a sério o seu mundo
de fantasia, investindo nele criatividade e emoção ao mesmo tempo
em que mantém a separação entre este mundo e a realidade. Consi-
dera também que é a linguagem que preserva a relação existente
entre a brincadeira infantil e a atividade poética:
Uma poderosa experiência no presente desperta no escritor criativo uma
lembrança de uma experiência antenor (geralmente de sua i,ifáncia), da
qual se origina então um destjo que encontra realização na obra criativa. A
própria obra releva elementos da ocasião motivadora do presente e da lem-
brança antiga. 5

Bandeira nos expõe sua concepção da infância como de-


tentora da origem da felicidade, tal como no poema "O impossível
carinho", ao desejar ofertar à amada "as mais puras alegrias de sua
infância"6 ou quando nos confia a sua sexualidade pueril ao decla-
mar sobre o presente que ganhou aos seis anos de idade: "O meu
porquinho da índia foi a minha primeira namorada" 7 • Bandeira nos
remete à lógica de um discurso poético que se aproxima da lógica
do inconsciente.
Freud cria a psicanálise descobrindo o inconsciente. Lacan
retoma este conceito fundamental da psicanálise no Seminário, livro
11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Para Lacan, o
inconsciente é estruturado como uma linguagem, o que não signifi-
ca que seja como uma língua (que é comum a um povo, a uma
nação). Em "Função e campo da palavra e da linguagem em psica-
nálise" (1953), Lacan diz que a linguagem "tem caráter universal de
uma língua que se faria ouvir em todas as outras línguas; ao mesmo
tempo passa a ser a linguagem que apreende o desejo no ponto
mesmo onde ele se humaniza, fazendo-se reconhecer, ela é absolu-
tamente particular ao sujeito"8•

288
Lucia Cipriano Baima

No capítulo VII de ''A interpretação dos sonhos" (1900),


Freud nos apresenta sua concepção de aparelho psíquico, enfatizando
suas três instâncias: os sistemas inconsciente, pré-consciente e cons-
ciente. Esse aparelho é marcado pelo conflito entre os sistemas.
Algo do sistema inconsciente só pode ter acesso à consciência atra-
vés dos sistemas pré-consciente e consciente, que modificam e
distorcem o conteúdo do inconsciente. Os desejos inconscientes
são independentes e subsistem na ausência de vínculo sintático. So-
mente pelo estudo dos derivados do inconsciente (sonhos, sinto-
mas, lapsos e chistes) temos acesso ao seu funcionamento. Ao in-
consciente pertence o representante ideativo, um dos registros da
pulsão no psiquismo, que constitui o conteúdo do inconsciente.
Em ''A pulsão e suas vicissitudes" (1915), revendo e
reform~lando alguns conceitos trabalhados cm momentos anterio-
res de sua obra, Freud concede à pulsão a posição de conceito
fundamental da metapsicologia. Assim, a sublimação, que é um de
seus destinos, passa a ser entendida como derivação das forças
pulsionais. A sublimação - o recalque, o retorno ao próprio eu e a
reversão ao seu oposto, os outros - é um dos quatro prováveis
destinos da pulsão, que existem como defesa contrária à satisfação
direta. É o que desperta nosso interesse nesse momento, já que se
refere às obras criadas pelo homem.
A substituição de objeto e objetivo sexuais da pulsão por
objeto e objetivo não sexuais determina o processo de sublimação.
Apesar da criação existir a partir de uma força sexual proveniente
de uma fonte sexual, as obras artísticas podem existir distantes das
referências à vida sexual.
Os efeitos da sublimação produzidos por criações religio-
sas, científicas e artísticas nos impõem a questão da linguagem. A
psicanálise passa a abrir o espaço da criatividade, da possibilidade
sublimatória e permite nossos estudos em torno do encontro entre
psicanálise e literatura. Para a psicanálise, a linguagem não dá conta
do real, sendo inclusive um instrumento para tentar cerni-lo.

289
Os Destinos da Pulsão

Na poesia de Manuel Bandeira o amor e a morte são trazi-


dos ao nível da experiência diária, na qual o poeta organiza a desor-
dem e o tumulto desses acontecimentos, utilizando sua capacidade
de síntese e de elipse. Domina o sentimentalismo através da
condensação da expressão e da redução ao essencial tanto no plano
dos temas quanto no das palavras.

Só! - meu coração ardeu:


Ardeu em ,~ritos dementes
Na sua paixão sombria...
E dessas horas ardentes
Ficou esta cinza fria.
- Esta pouca cinza fria ... 9

Lacan utiliza o conceito linguístico de metáfora, inspirado na con-


cepção freudiana de condensação. A metáfora, pertencente à lin-
guagem da retórica e retomada por Lacan, é muito utilizada na
poesia. Sendo a substituição de um significante por outro, a metáfora
possibilita o aparecimento de uma nova significação. A utilização de
recursos metafóricos na poesia de Bandeira desperta no leitor sensa-
ções que só um poeta pode produzir com simples palavras:

l'OEMETO ERÓTICO (fragmentos)


Teu corpo claro epe,feito,
- Teu corpo de maravilha,
Quero possuí-lo 110 leito
E1treito da redondilha...
(.... )
A todo mommto o vejo...
Teu corpo... a única ilha
No oceano do meu desejo ...

Teu corpo é tudo que brilha,


Teu corpo é tudo que cheira...
Rosa, flor de lara1!feira... rn

290
Lucia Cipriano Baima

O erotismo e a sensualidade dificilmente encontrariam defini-


ções mais apropriadas do que aquelas que o poeta usa. Não podería-
mos finalizar esse ensaio sem nos referirmos aos temas da morte, da
perda e da tristeza, constantes na poesia de Bandeira. O poeta dá des-
taque à morte em sua obra, conduzindo-nos, através de suas palavras,
a sentimentos até então inexplicáveis e indizíveis. O poema "Desencan-
to"11, epígrafe desse trabalho, nos confronta com estes.
Bandeira trata não só da dor e da tristeza; percebemos em
sua obra temas de evasão. Seu poema "Vou-me embora pra
Pasárgada", um dos mais populares de toda poesia moderna brasi-
leira, é um exemplo de busca de fantasias que podem se encontrar
fora do âmbito da realidade, o que novamente nos remete ao texto
de Freud "Escritores criativos e devaneios". Esse poema nos pos-
sibilita aprender sobre a tristeza e as fantasias, tão bem ilustradas
pelo poeta:

E quando eu estiver mais tn'ste


Mas triste de não terjeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
- Lá sou amigo do rei -
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
·vou-me emborapra Pasárgada. 12

A psicanálise nos apresenta a tristeza como um sentimento


próprio ao homem, independente de sua estrutura psíquica. A tris-
teza é a expressão da dor de existir.
Em "Inibição, sintoma e angústia" (1926), Freud vai de en-
contro à percepção do poeta dizendo que, cm qualquer momento da
vida, o sujeito pode ser acometido a uma perda que lhe traga a presen-
ça da dor: "A dor é assim a reação real à perda de objeto, enquanto a
ansiedade é a reação ao perigo que essa perda acarreta e, por um desloca-
mento ulterior, uma reação ao perigo da perda do próprio objeto"13.

291
Os Destinos da Pfllsão

A dor de existir está relacionada à castração, que é atualiza-


da pelo sujeito a cada perda. Como já vimos, o poeta também
conhece a falta que constitui o homem e o inacessível encontro com
o gozo prometido. Bandeira constrói sua obra desejando o encon-
tro com o objeto impossível e reconhecendo na morte a possibilidade
de deücar de ser "aquele menino doente" que na inf'ancia fora "como
os demais feliz" e que o "mau destino" fez dele "o que quis".

L-<'a/ta a morte chegar. .. Ele me espia


Neste i11sta11te talvev mal SflJpeita11do
Que já 111orri qua11do o que eufui morria. 1~

NOT,\S

1- L;\C.\N, J. Shakespeare, D11rai, Wedekit1d, Jqyce. Lisboa, Assírio e ..\!vim,


1989, p. 128.
2- fü\NDEIRA, l\I. Testamento de Pasárgada. Rio de Janeiro, Nova Fronteira,
1980, p. 39.
3- BANDEIRA, M. Estrela da Vida Inteira. Rio de Janeiro, José Olympio,
1973, p. XXVII.
4- 13:\NDEIR.A, M. Tutamento de Pasárgada. Op. cit., p. 192.
5- FREUD, S. "Escritores Criativos e Devaneios" (1908(1907)]. Em: Obras
Completas, vol. IX. Rio de Janeiro, Imago, p. 156.
6- B:\NDEIRA, M. Estrela da Vida Inteira. Op. cit., p. 128.
7- B.\NDEIRA, M. Testamento de Pasárgada. Op. cit., p. 188
8- LACAN, J. "Função e campo da palavra e da linguagem em psicanálise".
Em: Emitos. São Paulo, Perspectiva, 1978, p. 158.
9- B:\NDEIR.:\, M. Testamento de Pasárgada. Op. cit., p. 40.
10- Idem, p. 40.
11- Idem, p. 21.
12- BANDEIRA, M. Estrela da Vida Inteira. Op. cit. p. 117-8.
13- FREUD, S. "Inibição, Sintoma e Angústia"(1926(1925)]. Em: Obras Com-
pletas, vol. XX. Op. cit., p. 197-8.
14- BANDEIRA, M. Testamento de Pasárgada. Op. cit., p. 240.

292
O olhar e a voz

parte três
LEMBRA-SE DO OBJETO QUE VIMOS,
MINHA ALMA... 1

François Leguil
Membro da École de la Cause Freudienne. Membro da Escola Brasileira de
Psicanálise.

Se os maiores teóricos da psicanálise não tivessem falado


de pintura - a começar por Freud com seu Leonardo, ou por
Lacan com Holbein, Velázquez etc. - alguns entre nós não se auto-
rizariam a debruçar-se sobre esse assunto em público. Não sendo
nem crítico de arte, nem praticante e, na verdade, razoavelmente
em desvantagem ao considerar esses domínios que me intimidam,
abordarei o tema do olhar, graças ao que os textos, cuja existência
acabo de evocar, me ensinaram por sua incidência clínica. Portanto
me inscreverei de um ponto de vista sobretudo reduzido nessa série
de conferências.
Diferentemente de Manuel Kizer que me acolhe, não sou
pintor e - meus antigos estudos de anatomia o confirmaram -
posso confessar que desenho muito mal. Numa palavra, as musas
deixaram-me sem talento. Um de meus familiares exerceu uma ati-
vidade pictórica: o problema é que ele pintava por todos os lados,
particularmente sobre as paredes da minha casa, até mesmo sobre
as da sala de espera de meu consultório. São coisas que acontecem
quando se vive num lugar onde também vivem crianças. O que ele
pintava parecia um pouco com o dripping da escola americana do
pós-guerra, uma espécie de tachismo que, não obstante minha in-
dulgência encorajada pelo laço familiar, tanto quanto por minha
Os Destinos da Pulsão

ignorância enciclopédica, não procurei comparar com as obras de


um Pollock ou de um Sam Francis, que me tocam de um modo
totalmente diferente!
Foi, de fato, necessário que eu pusesse um fim a esse exercí-
cio parietal. Seria isso oprimir irremediavelmente uma carreira anun-
ciada? A tradição narra o exemplo de um dos mais autorizados
mecenas da história das artes, venerável entre todos,Júlio II, agraci-
ando um joalheiro comprometido num negócio escuso, sob o pre-
texto de que um criador daquele calibre não podia ser tratado como
um culpado. Não se tratava de Benvenuto Cellini, cuja rixa famosa
que o forçou a deixar Florença e partir para Roma (se acreditarmos
em suas memórias), data de seis ou sete anos após o fim do reino
do ilustre Pontífice. No entanto, poder-se-ia conjeturar: dispondo-
se a falar do olhar, como não se deter diante do inaudito Perseu
segurando a cabeça de Medusa na loggia dos Lanzi.
Não sendo pintor, nem crítico nem mecenas, não preciso
estender-me muito mais sobre peripécias que só dizem respeito a
mim: lembro-me apenas que no auge da manifestação do furor de
sua paixão, o artista com quem eu estava em conflito por uma
questão de "suporte-superfície" só tinha três anos de idade. Atual-
mente, ele já ultrapassou esse momento de exuberância inspirada, e
desde que aprendeu a ler, desenha. Será preciso incriminar uma
etiologia traumática, a rusticidade de seu meio ambiente estético ou
a hereditariedade para explicar que desenhando, desenha mal? Con-
tinuei a mantê-lo um pouco sob meus olhos para evitar que ele
cobrisse minha casa com esses grafitas que invadem os muros de
nossas cidades, revelando-nos, sem dúvida, que no mundo moder-
no, no qual a imagem reina como senhor absoluto, assistimos a uma
terrível e curiosa manifestação da "instância da letra". Por seu cará-
ter indecifrável seria esta forma de recobrir nossas ruas com inscri-
ções opacas à inteligência comum a testemunha de um nonsense rei-
vindicando obscuramente seus direitos?

296
François Leguil

A opacidade não é um mau começo para o que falaremos.


Não nos ensina o fenômeno que a ausência de significações reco-
nhecíveis dessas estranhas mensagens murais e a irrupção quase ame-
açadora de uma caligrafia singular em nosso campo da palavra e da
linguagem confrontam o sujeito - através dessa sucessão de letras
que ele não sabe identificar, mas que busca as significações - com
um registro do objeto? Isso confunde, desorienta (com freqüência,
essas coisas são escritas inclusive sobre as placas de sinalização das
estradas, mascarando o que estava anteriormente indicado), impõe-
se como uma afirmação arbitrária do ser daquele que detinha a
tinta, o Jprqy em suas mãos, e nos choca quando, ao desviar os olhos
do que mancha deste modo nossa paisagem habitual, parecemos
evitar alguma coisa que nos escrota na objetividade de um olhar
misterioso.
Aqui estamos longe do olhar apaziguador que, como um
invólucro, parece proteger, ou daquele da pessoa que nos anos 1950
se cognominava: The Look. Tratava-se, como a maioria de nós se
recorda, do cognome dado a uma atriz, Lauren Bacall, devido, sem
dúvida, ao efeito de sua primeira aparição num filme de Howard
Hawks, suposto ter sido rodado não longe da Venezuela, numa ilha
das Caraíbas. O filme, acho que escrito por William Faulkner, con-
tava a história de um pequeno episódio da resistência além-mar da
França gaulista e provinha de um livro de Ernest Hemingway
intitulado To have or have nof, cuja única tradução perfeitamente
admissível em francês é-En avoirou pas (Ter ou não). Não se sabe
por quais razões isso apareceu em nossas telas hexagonais como: Le
por! de l'angoisse (O porto da angústia).
É sabido que o olhar de Lauren Bacall não remete a uma
dimensão de ameaça ou de inquietação, mas sim de charme: é um
olhar prometedor, sedutor. E de um título a outro, de uma primei-
ra língua a uma segunda, de um traduttore a um traditore, dessa an-
gústia ao que, todavia, não deixa de estar relacionado à castração,

297
Os Destinos da Pulsão

podemos introduzir com relativa facilidade o materna de Jacques


Lacan: aquele em que o objeto causa de desejo contém e envelopa
assim como dissimula a castração, fazendo do falo que falta à mãe
um objeto desejável: a/-q>.
Sem chegar a retornar a distinção kantiana entre beleza livre
e beleza aderente, pode-se observar que estamos longe do que o .
analista encontra em sua clínica: a evocação cinematográfica de uma
realidade construída para não despertar o sujeito - tal como o faz
um objeto que revela a falta, a perda ou o horror - parece, num
primeiro momento, inapta para esclarecer o que fala um sujeito ao
queixar-se de sua condição que o confronta com um impossível de
suportar. Estamos do mesmo modo afastados de um debate entre
psicanalista e arte, pois esse olhar da starconvenientemente sedutor
e, sem dúvida nenhuma, belo não surge como um ato de criação
gue se possa referir como tal, isto é, como um valor interrogando a
estética em seus conceitos e questionando-a sobre a natureza desse
limite que é a beleza, alcançada pela sublimação da obra.
No entanto já se pode acentuar que o vocabulário, isolando
o olhar - the look - de uma atividade perceptiva mais vasta, a
visão, que aqui seria the sight, ensina que em seu nível mais rudimen-
tar e impreciso, no nível léxico, a língua separa campos semânticos
que não comportam os mesmos jogos.
O olhar não é o todo da visão e dela se distingue graças ao
fato de que a palavra introduz uma noção de parcialidade, graças
ao fato de que ela especifica uma atividade, uma escolha no interior
de uma função. Logo à primeira vista, ele se presta a um julgamento
de valor: há o olhar dos que nada vêem e, ao contrário, o de outros
que nos penetram. A palavra olhar põe o desejo rapidamente em
cena como o comprova o que se depõe na fala quotidiana. O olhar
se produz de uma espécie de subtração no espaço coberto pelo
campo visual: ele é a visão menos o que não vemos, caso não tenha-
mos o cuidado de olhar, ou, ao contrário, é o que vemos menos o

298
François LBguil

que olhamos, pois se podemos pretender ver tudo, não podemos


tudo olhar ao mesmo tempo.
Pode-se quase acentuar um efeito de perda nesse primeiro
momento em que distinção entre o olhar e a visão contém a noção
de escolha e de verdade: dizemos, na linguagem comum, um olhar
fugidio como correlato de uma personalidade mentirosa. Aqui as
coisas são tomadas no nível mais baixo. Isso é bom como ponto de
partida, desde que não permaneçamos aí. Uma palavra ainda antes
de terminar essa pequena varredela de lugares-comuns: na espécie
de esperanto espontâneo ou de pidgin ecumênico para onde tendem
nossas falas contemporâneas, the look é o olhar, mas também a ma-
neira pela qual nos damos a ver. Deliberadamente ou não, organiza-
mos nossa postura, nosso modo de estar no mundo, num espaço
onde evoluímos, mas que só adquire seu sentido por ser para nós
um espaço onde somos olhados. Fala-se de um look elegante, des-
cuidado, moderno, arcaico... para evocar a escolha de uma imagem
feita pelo sujeito no campo do olhar do outro. Essa escolha da
imagem que a pessoa faz, oferecendo-se nolens, volenl ao olhar, não
deixa de estar relacionada aos ideais, atuais ou, como aqueles do
passado, esquecidos, conscientes ou inconscientes para o sujeito. Aqui
se cruzam no plano mais elementar, mais fácil de compreender, os
domínios estéticos e éticos. Um moralista de nosso Grande Século~,
o duque de La Rochefoucauld - que Lacan citava ocasionalmente
- , considerava serem os melhores sentimentos ditados pelo inte-
resse, em suma, escrevia que a partir de uma certa idade um ho-
mem é responsável por sua aparência.
O olhar, que é também o que nos olha, e até mesmo o que
nos julga, se destaca da visão. No início da La légende des siecles, Victor
Hugo escreveu: "O olho estava na tumba e olhava Caim". A força
do verso deve-se também à potência de uma metáfora. Podemos
muito bem sentirmo-nos olhados sem que nenhum olho se encar-
regue disso! A dupla polaridade, olhar-ser olhado, o duplo senti-

299
Os Destinos da P11/são

do (no sentido de direção) da palavra olhar é explorado num mo-


mento crucial da teoria de Freud, momento em que ele tenta expli-
citamente articular as relações entre o gozo e o sujeito num artigo
muito denso: "As Pulsões e seus destinos".
Para os psicanalistas freudianos - lacanianos portanto! -
a pulsão é um conceito fundamental que busca definir nos limites
extremos do que se chega a pensar, ou seja, que visa nomear, articu-
lar os recônditos da atividade secreta de um ser falante e que
concernem ao seu gozo. A pulsão freudiana é um impulso constan-
te, sem trégua que, no plano escópico, sobre um trajeto de ida e
volta, conduz incessantemente o sujeito a buscar, apesar dele pró-
prio e no que se dá a ver, o que não pode ser visto, o que permane-
ce escondido do que se olha, e que é o próprio olhar. Vendo-se ver-
se5 precisa Lacan ao comentar um poema de Valéry, mas não vemo-
nos ver-nos do ponto onde olhamos. Não se trata aqui de coisas
vertiginosas e impossíveis de compreender. No artigo de Freud,
percebe-se bem como é articulada uma clínica do olhar, uma vez
que ele é um objeto de gozo, graças ao exemplo dos artificias do
exibicionista. Freud os explora mostrando com clareza que o estra-
tagema perverso consiste em surpreender o outro pelo espetáculo
impudico que lhe é exibido, a fim de produzir justamente um olhar
que o divide. Desse modo, esse objeto olhar faz-se para o perverso
objeto e instrumento da divisão de um outro sujeito.
Observamos, mais acima, que a simples consideração do
olhar como distinto da visão introduzia-nos no campo do desejo.
Com o exemplo tomado da clínica de uma perversão, vê-se bem
que, no que o sujeito provoca, é preciso também falar do gozo. É o
papel do analista, se ele quer, de modo prudente, juntar sua voz ao
concerto dos que se interessam pela arte pictural: dizer que espécie
de gozo aí está em causa, de que maneiras o sujeito se relaciona com
ele e como sua possibilidade o concerne para ensinar algo singular à
teoria psicanalítica. A perversão não é mal vinda para mostrar que a

300
Franfois Leg1til

noção de olhar, elevada na experiência à dignidade de um objeto,


sugere uma realidade constituída por valores de ultrapassagem de
um interdito, de outra-passagem\ de realização de uma transgres-
são sem os quais não há invenção. É evidente que toda invenção
não é necessariamente própria para constituir um acontecimento
estético, mas a criação artística não se concebe sem esta dimensão
de produção do novo. Isso pode parecer um truísmo, para precisar
ser lembrado, salvo se almejamos pôr no devido lugar essa questão
de transgressão, geralmente mal compreendida, senão por demais
exaltada.
Numa entrevista que deu à revista L>i'ne, n. 4,Jurgis Baltrusairis
escreveu: "a invenção não decorre de um amor à verdade, mas de um
desejo maligno", e devemos reter essa afirmação, pois a psicanálise
não pode intervir nesse debate em nome dos ideais do bom, do
belo e do bem. O amor à verdade conduz à idealização e o psica-
nalista pode testemunhar tratar-se do contrário, quando é um dese-
jo de verdade que opera e não seu amor.
Baltrusaitis escreveu coisas muito importantes sobre as
anamorfoses, esses objetos estranhos que apareceram num momento
preciso da história da pintura, semblante de uma perfeita incongru-
ência e cuja imagem varia em função do ângulo sob o qual o con-
templamos. Esses objetos só podem ser produzidos, pintados so-
bre o quadro, indo contra regras muito estritas, regras que serão
contestadas. Essas anamorfoses, "objetos não integráveis a um do-
mínio constituído do saber clássico procedendo de 'perspectivas
depravadas"7, são os mesmos objetos que permitiram a Lacan
mostrar o que o psicanalista pode dizer sobre o olhar, sobre o olhar
cm causa na clínica da transferência e na pintura, sobre o olhar como
um objeto de gozo e uma causa do desejo, e como o que igualmen-
te pode produzir horror, pois é impossível nomeá-lo.
Pode-se achar inaceitável a mistura entre o prazer estético e
o que aparentemente figura nas fronteiras do mau gosto, a mistura

301
Os Destinos da Pulsão

entre o desejo e o execrável, considerando que no domínio da arte


e do abrandamento dos costumes por ela implicado, segundo uma
fórmula consagrada, o reforço das teorias psicanalíticas e a elucidação
do que é o olhar devem chegar a uma explicação da obra que
contribua para o julgamento estético e, por conseguinte, para o
saber sobre o que é o belo. Pois bem, a posição freudiana não é
esta: seu célebre conceito de sublimação não é definido pelo
idealidade uma vez que, muito ao contrário, a sublimação é o meio
de satisfazer a pulsão, ou seja, de aceder a um gozo por um viés que
não implica o recalque, e não como o faz o neurótico ao dissimular
para si as condições de acesso ao que lhe satisfaz.
A sublimação não basta, segundo Freud, para caracterizar a
atividade do artista. E Lacan dirá aos norte-americanos no final de
seu ensino, que não se pode, de fato, explicar a arte pelo inconscien-
te, e que a sublimação é uma categoria muito geral para dar conta
corretamente do que o artista produz 8 . Quinze anos antes, no Semi-
nário, livro 7: a ética da psicanálise, Lacan formulava essa precisão capi-
tal: é certo que a arte está relacionada com a produção do belo, é
certo que a beleza intervém de modo não discutível na dinâmica do
desejo, mas o belo não funciona nem como um alvo inacessível ao
comum dos mortais, nem como o santuário determinando a essên-
cia do que está em jogo na confecção da obra; a beleza opera como
uma barreira nas fronteiras do horror, alojando o que os psicanalis-
tas fiéis a Freud nomeiam pulsão de morte.

O grande poeta Charles Baudelaire escreveu um dos mais


belos poemas da língua francesa, versando sobre o cadáver de um
animal em decomposição, e fez desse espetáculo quase uma mensa-
gem de amor. Cito alguns versos de memória:

Lembra-se do oijeto que vimos, minha alma.. .


Na curva de uma senda, uma carniça infame.. .
E o céu olhava a carcaça soberba
Como uma flor a desabrochar... 9

302
François Leguil

Num outro poema intitulado, justamente,A beleza (La bea11te),


a ligação é ainda mais explícita: "Sou bela, ó mortais! como um
sonho de pedra" (]e suis bel/e, ô morte/si comme un rêve de pierre).
Em 1960, Lacan ensina que "a verdadeira barreira é (...)
[esse fenômeno que se chama] fenômeno estético identificável à
experiência do belo - o belo em seu brilho deslumbrante, esse
belo do qual se disse ser o esplendor da verdade. Evidentemente, é
porque a verdade não é muito bonita de se ver que o belo se não é
seu esplendor, é ao menos a capa 10 • O belo aproxima-se ao máxi-
mo do campo da destruição e muito seriamente nos detém e nos
indica em que direção esse campo se encontra, se acha. O belo, por
visar o centro da experiência moral, está mais próximo do mal do
que do bem. O belo é o inimigo do bem.
Um pintor francês contemporâneo, considerado por mui-
tos como um grande pintor, e que foi um dos jovens amigos de
Lacan, François Rouan, pôde ilustrar numa entrevista com Judith
Miller o laço entre a beleza, o olhar e o horror. François Rouan
evoca o excepcional quadro de Tiziano, quadro tardio que parece
ser datado dos anos 1570 e cuja cena remete a um episódio cruel da
mitologia clássica: após a perda de um concurso, o sátiro frígido
Marsias é esfolado vivo por Apolo. Rouan comenta: "na tela O
suplíâo de Marsias, os pêlos, o sangue, o feixe de dardos de Júpiter, a
música, a tepidez do outono constituem uma trama extraordinária.
O único que, curiosamente, mantém-se à distância dessa cena terrí-
vel é o grande cão [.. .]. Esse grande cão, seu olhar, tem alguma coisa
verdadeiramente muito estranha [...]. Preciso pintar o olhar desse
- ,, .
cao
No verão desse ano, 1991, o próprio François Rouan res-
pondeu a um crítico do jornal Le Monde que havia um princípio
estético o qual persistia em defender mais do que a muitos outros e
que implicava a noção de quadro. "Quadro e não tela; apego-me à
palavra que se tornou anacrônica. O quadro tem uma especificidade

303
Os Destinos da Pulsão

própria: mantém-se fora da pura representação onde triunfam


doravante as imagens médicas, os scanners, todos os procedimentos
atuais de precisão, reprodução e transmissão" 11 •
O saber resultante da experiência analítica, a partir desse
objeto-olhar, ocasionalmente objeto de horror e de enigma em todo
caso, pode nos ensinar o que pintor busca captar no que ele fabrica
e que chamamos de quadro. Jacques Lacan interrogou dois pontos
na pintura em torno precisamente da questão do objeto e do qua-
dro, como assinala Gérard Wajeman 12 • Lacan interrogou a fonte
estrutural da pintura (o objeto perdido que falta e causa o desejo e
que é o olhar como objeto); em seguida, sua função, a que é preen-
chida pelo quadro como "armadilha para o olhar" 13; o sujeito do
inconsciente, quer dizer, o sujeito que é efeito do inconsciente pode,
no campo escópico, em seu acesso ao visível, reconhecer-se como
tal nesse objeto olhar que o pintor consegue depor no quadro. Ali
onde diante de um quadro pensamos contemplar uma imagem -
alguma coisa representada, seja o que for, situada no campo da
representação - falhamos em perceber que é um objeto o que o
artista busca cingir, e que esse objeto é o olhar. Isso parece quase
irrefutável depois de Mondrian, Kandinsky ou Malévitch. Mas ain-
da é preciso articulá-lo. Pensamos ver uma imagem que reproduz
ou representa e somos confrontados com um olhar que pode an-
gustiar, dividir.
A função pacificadora do quadro reside, segundo Lacan,
na capacidade da obra de nos fazer depor esse objeto angustiante,
o olhar, que nos revela, no campo escópico, o que não podemos
ver: nossa falta, nossa castração. O quadro, por sua capacidade de
.nos fazer depor o olhar "como se depõe as armas", tem uma fun-
ção de "domar-olhar" (dompte-regard/". Isso explica a dimensão co-
letiva e social exigida por Freud para que se possa falar de arte. O
pintor, com seu quadro, cinge esse objeto ali onde ele falta, ali onde
ele falha, ali onde precisamente ele é objeto da falta.

304
François Leguil

O estudo detalhado do quadro de Holbein Os embaixadores,


a que Lacan se dedica em 1964, o indica claramente: ao lado dos
representantes do saber, dos emblemas da ciência, ao lado dos sus-
tentáculos da sabedoria e dos poderes da troca diplomática, surge
uma anamorfose, essa coisa estranha que só se pode olhar a partir
de um certo ângulo, mas que parece olhar-nos de todos os lados, e
que é uma cabeça da morte. Vou citar novamente um artigo notável
de Gérard Wajeman, do qual me sirvo bastante: "Assim, pintar é
perder (...) fporque] pintar o objeto é representá-lo como perdi-
do15. Contrariamente ao que se poderia imaginar, a criação verda-
deira confronta o artista com a perda de uma ligação ao saber,
ligação abalada por essa criação. Neste sentido, com o artista, com
aquele cuja obra é uma criação ex nihilo, trata-se de um ato, um ato
revelador de uma verdade que sem a graça dessa obra produziria
horror, e não poderia aparecer. Malévitch, eu acho, dizia: "O artista
não precisa de sinceridade, mas de verdade".
Esse olhar, objeto em causa na pintura, não é visível, assim
como não é nomeável pelo que Lacan chama, graças a Saussure,
um significante. Nem por isso ele é uma quimera, já que se pode
deduzi-lo a partir do que se constrói na experiência analítica, do que
se localiza na clinica da angústia e do desejo, e por vermos que tão
logo identificado, ele mostra o que está em causa na preocupação
do pintor: fazer surgir a dimensão desse olhar num quadro, graças à
pintura do que jamais foi visto. Esse olhar que não se nomeia está
habitualmente mascarado na experiência do sujeito (exceto na psi-
cose onde alguém pode sentir-se espreitado, perseguido pelo que o
escruta e que se destaca do campo do Outro. Num delírio de obser-
vação o sujeito se sente penetrado por um olhar que o torna transpa-
rente para o mundo). Esse olhar faz parte do que lhe é inconsciente e
está engastado numa fantasia cujas coordenadas lhe estão veladas.
O artista pintor consegue "fazer passar" algo disso, graças a
seu quadro: ele nos mostra o que é inominável. Lacan observou

305
Os Destinos da P11/são

isso e, sem dúvida, de modo mais operatório do que fizeram antes


da Segunda Guerra mundial os psicólogos e os teóricos da Gestalt
que consideravam: o que é indizível pode ser comunicado pela for-
ma. Nesse esforço para transmitir o que é incomunicável- esfor-
ço que mostra não haver comunicação, que ela é sobretudo impos-
sível, já que o âmago da experiência de cada um começa por esse
indizível - o artista pode passar por um herói erguendo-se contra
a modernidade de nosso mundo mediatizado, que acredita que tudo
pode ser visto e reproduzido. E certamente há heroísmo pois há
solidão. Sem dúvida, ocorre que o artista pague o ato ao qual ele se
devota com um sacrificio comprovado (Rosine e Robert Lefort
bem o narraram num trabalho persuasivo que escreveram para a
revista Ornicar?, sobre as Demoiselles d'Avignon de Pablo Picasso 1<>).
De um modo quase lírico, Malévitch, em busca da "manifestação
do nada desvelado", de uma "cristalização do mundo sem objeto
[que] começa ali onde o mundo objetivo perde sua significação" 17 ,
definia o movimento que ele criava, o suprematismo, como o se-
máforo da cor do ilimitado. Traspassei o abajur dos limites da cor,
penetrei no branco: ao meu lado, camaradas pilotos, navegai nesse
espaço sem fim" 18• Esse estilo apaixonado e entusiasta, certamente
ligado às renúncias que o criador consente, assim como aos riscos
aos quais se expôs, não deve dissimular que a aventura artística de-
senrola-se num universo determinado por uma lógica de lingua-
gem. Os limites que Malévitch ultrapassa só têm sentido se reporta-
rem à articulações precisas.
Com "seti" objeto olhar - que, juntamente com a voz (se-
gundo objeto do desejo isolado por Lacan) acrescenta-se aos da
demanda, descoberto por Freud (objeto oral e objeto anal) - Lacan
está num outro tempo da história da arte que o fundador da psica-
nálise e, do mesmo modo, num outro momento da episteme. Ele
está num tempo em que, tal como o fisico Max Planck escreveu, a
estrutura do mundo "não cessou de afastar-se do mundo dos sen-
tidos perdendo assim, gradualmente, suas características

306
François Leguil

antropomórficas originais". Lacan não aborda o obra de arte como


Émile Zola, que esperava através dela ver emanar a personalidade
do autor. Lacan não busca "um sentido oculto", pois a arte não é
dissimulação, mas revelação. Em maio de 1966, ele especifica em
várias lições de seu Seminário, que não se trata de saber o que o artista
quis dizer, mas sim o que disse. O analista em sua prática interpreta
o que está recalcado através do que sujeito quer dizer nos tropeços
de sua fala, ou através do que ele quis fazer em seus atos falhos. Ora,
com a arte não se trata do que ela quis fazer, mas do que ela fez.
Não é o malogro que revela o que a obra revela; ao contrário, é a
sua realização concluída. Há no artista um primeiro circuito conclu-
ído que não permite ao analista interpretar a obra. Ei-lo antes na
posição não de pretender trazer algo à obra, mas de servir-se do
que a obra contribui para a própria teoria analítica.
Considerando o texto de Freud consagrado a Leonardo
da Vinci, podemos ficar tentados a opor dois modos de abordar a
questão colocada pela arte à psicanálise. Freud, é verdade, busca na
biografia do pintor alguns segredos suscetíveis de esclarecer pontos
importantes da composição pictural. E, como demonstrou num
excelente artigo Meyer Schapiro, um crítico muito importante, Freud
não geriu espaço suficiente à necessidade propriamente estética que,
sozinha, pode dar razão à causalidade de uma obra, indicando qual
o contorno no qual a liberdade criadora de um autor irrompeu. No
entanto, Freud não buscou interpretar a obra, ele jamais pretendeu
explicar psicanalíticamente o que é o talento ou a invenção estética.
Também Lacan, em seu Seminário, livro 11: os quatro conceitos funda-
mentais da psicanálise, presta-lhe homenagem considerando pri-
meiro sua preocupação formal. Segundo Lacan, o que Freud as-
sinala a seu amigo, o pastor Pfister, sobre a estrutura piramidal do
quadro da Santa Família exposto no Louvre e sobre o enlaçamento
dos corpos no desenho do panejamento testemunham que Freud,
em seu estudo do quadro, visava alcançar a própria estrutura da
fantasia.

307
Os Destinos da Pulsão

O objeto olhar é um dos objetos da fantasia segundo Lacan,


que justamente o descobre de modo parcial no pintor: o quadro
não é uma fantasia pois ele revela o que fantasia esconde. Podería-
mos servir-nos aqui do exemplo do comentário de Lacan sobre a
famosa Santa Luzia de Zurbarán, apresentando seus olhos sobre
um pequeno prato depois de martirizada.
Após dialogar através de um livro póstumo com seu ami-
go, o filósofo fenomenólogo Maurice Merleau-Ponty, Lacan pôde
mostrar que articulações longas e lógicas eram exigíveis para dizer-
se qual é esse objeto-olhar que não está numa realidade visível, mas
sem o qual esta não existiria, sem o qual teríamos o sentimento de
que essa realidade é sem "carne" (chairy.
Dois anos mais tarde, em 1966, Lacan retoma seus desen-
volvimentos teóricos sobre o olhar, graças a uma confrontação com
um filósofo ainda jovem e já célebre, a quem Lacan foi um dos
primeiros a elogiar e apoiar: Michel Foucault. No primeiro capítulo
de seu livro As palavras e as coisas, Foucault dedica-se a uma brilhante
análise da obra-prima de Velázquez, a fim de dar um exemplo ad-
mirável da maneira como baliza duas grandes descontinuidades no
campo epistemológico da cultura ocidental. Essas descontinuidades
são anônimas no campo do saber, cuja historicidade é, segundo
Foucault, livre de qualquer atividade constituinte. Assim, o quadro
pode ser o acontecimento que atesta a ultrapassagem de um limiar
epistemológico, os deslocamentos e as transformações de concei-
tos que se produziram nos vastos sistemas de pensamento e que o
filósofo aborda como outras tantas unidades arquitetônicas. Dois
grandes cortes são isolados por esse livro: o primeiro, no fim do
século XVII, inaugura a idade clássica marcada por uma solidarie-
dade entre as teorias da representação e as teorias da linguagem, da
natureza, da riqueza. O segundo corte epistemológico, no início do
século XIX, é aquele onde se vê que a teoria da representação perde
a prioridade, não sendo mais o fundamento geral de todas as or-

308
François Leguii

dens pensáveis: linguística, biológica, econômica ou política, tornan-


do-se o homem então o objeto de um saber possível. Esse segun-
do corte corresponde ao do Nascimento da Clínica, título de um livro
precedente de Michel Foucault e que Lacan celebra em dois textos
de seus Escritos19 (o que é suficientemente raro para se assinalar). Em
1964, Foucault descobre que no período em que a clínica se impõe
como uma das grandes diretrizes de uma nova coerência científica,
o olhar é promovido à categoria que liga doravante o sujeito à
morte, lhe dá o sentido de uma nova finitude ao mesmo tempo em
que se faz a causa recalcada de uma dimensão quase escatológica
onde a saúde substituiu a salvação.
No momento das Meninas, ou seja, no momento do pri-
meiro grande corte, o filósofo dá um outro status ao olhar: este não
é essa "coisa" que o médico isola numa nova prática do corpo
autopsiado e que o motiva inconscientemente mostrando-lhe o que
o limita, mas bem ao contrário o olhar é aquilo que vai encontrar na
representação a própria razão do que ele organiza. Numa argu-
mentação, ao mesmo tempo complexa e clara (que não posso reto-
mar aqui, e remeto ao primeiro capítulo de As palavras e as coisas,
assim como, pela "resposta dada por Lacan", às quatro lições de
maio de 1966, de seu Seminário, livro 13: o objeto da psicanálise), Foucault
deduz que a natureza do único pequeno quadro visível ao fundo da
sala onde pinta Velázquez é um espelho onde se vê o reflexo do que
não se vê, mas que é, manifestamente, o centro do quadro, ou seja,
o que Velázquez olha: o casal real que ele pinta, que está escondido,
e que é fixado pela infanta Dofia Margarida - o par Felipe IV e sua
esposa, supostos estar no lugar mesmo do espectador, lugar instá-
vel de olhares incessantemente cambiantes e anônimos. A função
desse casal real ocupa no exterior do quadro esse ideal em relação
ao que torna possível a representação, cuja essência encontra-se as-
sim revelada: a de solidarizar "a invisibilidade profunda do que se
vê com a invisibilidade daquele que vê". Por não ser possível que a
completa felicidade da imagem alguma vez ofereça em plena luz o

309
Os Destinos da Pulsão

mestre que representa e o soberano que se representa, pois a ima-


gem necessariamente elide ou Velázquez ou Felipe rv, os olhares
cruzados dos múltiplos personagens do quadro centram um vazio
essencial que manifesta imperiosamente a desaparição do que fun-
damenta a representação. Assim, esta encontra-se liberada da rela-
ção que a encadeava ao sujeito e pode, doravante, oferecer-se como
"pura representação".
Verdadeira Aujhebung do olhar pela representação, essa de-
monstração, cujo brilhantismo lembra a arte da sofística mais con-
vincente, leva, segundo Lacan, a conclusões errôneas por negligen-
ciar o fato de que todos os personagens pintados são personagens
da corte - eles próprios em representação; porque esta demonstra-
ção se apóia de modo muito imprudente sobre a natureza especu-
lar do pequeno quadro reproduzindo o casal real; porque não re-
serva um destino suficientemente eqüitativo à posição do homem
que está saindo, ao fundo da tela, à direita; enfim e sobretudo pelo
status de Dona Margarida não estar corretamente identificado. Esse
quadro não põe em cena o "espetáculo em face" assegurado pelo
casal real evocando o artifício "de designação do nome próprio",
mas demonstra inversamente que a função da tela suporta como tal
a significância. Não se trata de imaginar como a representação libe-
ra-se dos laços que a encadeiam ao sujeito e sim, apesar do que a
representação dissimule, de balizar qual é a estrutura visual do mun-
do sobre o qual se funda a instauração do sujeito, e de que modo o
objeto a como relação do olhar com o mundo visto o divide.
Velázquez em seu quadro consegue cingir, fazer que nele se
deponha algo de real (sempre elidido na realidade de nossa fanta-
sia), que sozinho explica nossa paixão fascinada a contemplar o que
ele realizou e à qual o discreto toque de insolência pintado sobre o
rosto de Dona Margarida parece responder.

Um acadêmico francês que não gosta muito dos psicanalis-


tas e quer retirar do dicionário os termos herdados da teoria freudiana

310
François Legui/

do mesmo modo pensa que o objeto nos olha, "que somos sem-
pre observados" e que "o objeto julga aquele que não o olha". Eis
aí um temor, sem dúvida, um tanto excessivo; ele não deixa de
lembrar a confissão que o antigo leiloeiro Maurice Rheims fez um
dia ao seu amigo, o escritor Paul Morand: Maurice não podia con-
templar um quadro sem tentar adivinhar qual poderia ser o seu
preço numa venda! Pois bem, se o objeto o olha, ele não é, no
entanto, o mesmo que Lacan descobriu na pintura: o objeto a, "seu"
objeto, aquele que o pintor lhe revela, não tem preço, não é negoci-
ável como tal, ele é não cifrável no comércio usual dos homens. Ele
não se presta à troca de bens e à consumação dos que querem
negociar; ele não se entrega a qualquer preço. É preciso muito tra-
balho para cingi-lo, e também um pouco de genialidade. O objeto
olhar não se presta ao comércio da arte, exceto para dar conta das
loucuras, do arbitrário e da desordem desse comércio.
Antes mesmo que soubesse ensinar como o objeto a se
articula cm sua teorização da divisão do sujeito, da ligação ao obje-
to e da lógica da fantasia, Lacan sempre abordou a questão do
olhar com uma preocupação muito demarcada, acentuando-a às
vezes de forma quase dramática e demonstrando o que de crucial
na condição humana era preciso nela ver. Uma nota do "Discurso
de Roma" em 1953, que inaugura seu "retorno a Freud", o com-
prova: "basta ter visto, na recente epidemia, um coelho cego no
meio de uma estrada, elevando em direção ao sol poente o vazio
de sua visão modificada em olhar: ele é humano até o limite do
trágico" 20 •
Assim como a voz é esse objeto quase incorpóreo, que não
pertence ao registro sonoro, o objeto olhar "desespera o olho",
indica-lhe que não vê tudo - em 1964, Lacan fala de "castração
escópica" - pois esse objeto olhar é mascarado nas condições
usuais. Ele é dissimulado na visão pela relação especular, aquela em
que o sujeito faz a experiência do ver-se vendo-se (cf. nota 5).

311
Os Destinos da Pulsão

Do mesmo modo, tal como a voz é o que produz a lingua-


gem quando se esvazia as palavras de toda significação (por isso na
alucinação a voz é causa de enigma), o olhar é produzido pelo
esvaziamento na visão de tudo o que é capaz de fazer imagem. Essa
intuição de Lacan - o olhar é o que no mundo da visão não se
presta à imagem - é muitíssimo anterior à distinção do real, do
simbólico e do imaginário, tal como o atesta uma frase pronuncia-
da desde o final da Segunda Guerra Mundial, no texto "Propos sur
la causalité psychique": "Quando o homem, buscando o vazio do
pensamento, avança no clarão sem sombra do espaço imaginário,
abstendo-se mesmo de esperar o que vai surgir, um espelho sem
brilho mostra-lhe uma superficie onde nada se reflete".
É preciso notar que esses dois objetos do desejo, a voz e o
olhar, descobertos por Lacan não são o que se poderia chamar
pejorativamente de abstrações teóricas. No início do principal texto
consagrado à psicose, Lacan demonstrou magistralmente como esses
objetos por si só são capazes de explicar a etiologia e a natureza da
patologia alucinatória. Inversamente à psicose, onde esses objetos
aparecem na própria realidade do sujeito como se animados por
uma concretude terrificante, chamamos neurótico o estado mais
tranqüilo de um sujeito que não escuta essa voz e que quase ou nada
sabe desse olhar. Essa "surdez" e essa "cegueira" neuróticas estão
ligadas ao conceito freudiano de castração e explicam que a relação
do sujeito com o objeto é uma relação com o que parece perdido.
O artista em seu quadro não restitui ao sujeito o que causou
essa perda, mas a ele revela, de modo diferente que no drama pato-
lógico, qual é a natureza dessa perda. O autor da obra nem por isso
dá aos neuróticos que somos a ocasião de estarmos de acordo
quanto a um objeto comum que pudesse substituir aquele que nos
falta, pois o olhar deposto no quadro só dá seu valor à obra justa-
mente por estar fora de toda avaliação de preço. Porém o artista
nos dá o exemplo e nos ensina que o trabalho e a ultrapassagem das

312
François Leguil

regras que conhecemos permitem obter não um reaver o objeto,


mas sim o achado de alguma coisa nova que diz o que é o objeto
para o homem. Isso não concerne ao que se limita a sensorialidade,
ao mundo das percepções sensitivas: não basta ver para compreen-
der o que aqui está em jogo e "inclusive o cego aí é sujeito de se
saber objeto do olhar" 22 •
O olhar revelado pelo pintor não é instrumento de mestria,
tal como o médico gostaria que fosse o seu, esquecendo-se um
tanto rapidamente que não há olhar clínico, pois é o próprio olhar
que é objeto da clínica, assim como é objeto da pintura. O olhar
não reúne; ele divide o sujeito, separa-o de tudo o que ele conhece
para eventualmente convidá-lo a saber mais disso. O que conta aqui
não é o que o psicanalista tenha a dizer ao pintor, que bem sabe o
quanto lhe custa o que ele realiza; mas sim o que o psicanalista pode
aprender do pintor a partir do que este revela - a cada vez que o
pintor realiza um ato criativo, ele faz surgir de um modo diferente
que na angústia e de modo "civilizatório" o que a realidade quotidi-
ana esconde, esse objeto olhar que "deixa o sujeito na ignorância do
que há para além da aparência" 23.

NOTAS

1- Transcrição de uma conferência pronunciada na Venezuela, em outubro de


1991, a convite de Manuel Kizer, presidente da Escola do Campo Freudiano
de Caracas.
· 2- N. do E. HEMINGWAY, E. Ter e não ter. Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira, 1994. Tradução de Ênio Silveira.
3- N. do T. Expressão latina equivalente a "quer queira, quer não".
4- N. do T. A época de Louis XIV, na França.
5- N. do T. No original: On se voit se voir précise Lacan en commentant um poeme de
Valéry. C[ LACAN,]. O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da
psicanálise. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1988, cap. VI, p. 80-9. Versão
de M. D. Magno.

313
Os Destinos da Pulsão

6- N. do T. No original: des vaku1r de franchissime11t d'u11 i11terdit, d'outre-passement,


d'accomplissement d'une transgression.
7- BALTRUSAITIS,J. "Les perspectives dépravées". Em: UÂ11e, n. 4, Paris, p. 20.
8- L\C\N,J. "La conférence à Yale University du 24 novembre 1975". Em:
Co,!fénmces et entretiens dans des Universités 11ord-américai11es, Scilicet, n.6-7. Paris,
Seuil, 1975, p. 76.
9- B.\UDEL\IRE, C. "Une charogne". Em: Les.fleun d11 r11aL Paris, Gallimard,
1972. "Roppelez-vous l'oijet q11e n01ts vimes, nom âme... / Au déto11r d'un sentier, 11ne
charogne ilifâme... / Et /e dei regardait la carcasse st1perbe/ Comme 1111e jle11r s 'épa11011ir. .. "
10- Li\CJ\.N,]. Le Séminaire, Livre VII: L'éthiq11e de la P!Jch,ma/yse. Paris, Seuil,
1986, p. 256.
11- "Rouan dans le labyrinte", Le Monde. Paris, 18 el 9 de agosto de 1991, p. 9.
12- WAJEMAN, G. "Narcisse ou le fantasme de la peinrure", Art etfa11ta.r111e,
Paris, Champ Vallon, 1984, p. 107-126.
13- L'\.C\N,]. "Du regard comme objet d'. Em: Le séminaire, Livre XI: Les
q11atre concepts jõ11damentaux de la psycha11a/yse. Paris, Seuil, 1973.
14- Idem, p. 102.
15- W.:\JE~L\N, G. "Narcisse ou !e fantasme de la peinrure". Op. cit.
16- LEFOin: R. e R. "Les Demoiselles d'Avignon" ou 'la passe de Picasso".
Em: Ondear?, n. 46. Paris, Navarin, 1988.
17- Malévitch, Die Gegen-standslose Welt, ivfunich, 1927, ap"rl. VALLIER, D.
L 'art "bstr«it. Paris, Pluriel; 1963.
18- Malévitch, Die Gegen-standslose Welt, Munich, 1927, ap11d. VJ\.LLIER, D.
Catalo<g11e d'exposition du 10'"" Salon d'État. Moscou, 1918.
19- LACAN,]. "De nos antécédents" e "Variantes de la cure type". Em:
Éc,its. Paris, Seuil, 1966, p. 66 et 324.
20- L1\C.:\N, ]. "Fonction et champs de la parole et du langage en
psychanalyse". Em: Écrits. Paris. Op. cit., p. 280.
21- LACAN,J. "Propos sur la causalité psychique". Em: Éc1'its. Paris. Op. cit.
22- LJ\C-\N,]. ''De nos antécédents". Op. cit, p. 71.
23- LJ\CAN,]. "Du regard comme objet d'. Op. cit., p. 71.

Tradução do francês: Vera Lúcia Avellar Ribeiro.

314
SUBLIMAÇÃO E VOZ

Vera Pollo
Membro da Escola Brasileira de Psicanálise

O olhar e a voz

Na letra-poema de Caetano Veloso, "Cantar é mais do que


lembrar/ É mais do que ter tido aquilo". E lhe permite indagar: "Como
será que isso era? Esse som/ que hoje sim, gera sóis, dói em dás".
Conta a fábula de Apuleio que Psiquê vivia num mundo
povoado de sons, mas desprovido da visão do corpo humano. Era
feliz, servida por muitos lacaios, de quem conhecia tão somente a
voz. Até o dia em que, armada para encontrar-se com um possível
monstro, decidiu iluminar seu objeto de amor. No mesmo movi-
mento ela fere mortalmente Eros e fica só. É despertada ao desejo.
No quadro do pintor italiano Zucchi, comenta Lacan no
Seminário, livro 8: a transferência (1960-61), um vaso de flores cobre o
falo de Amor, demonstrando que a castração advém no próprio
âmago da relação de amor. Aqueles que assistiram o filme Denise está
chamando tiveram a oportunidade de visualizar uma versão contem-
porânea de Psiquê sorprende Amore. Estes se lembram, com certeza,
da cena em que a câmara focaliza o amanhecer do jovem homem
nu estendido em seu leito. O aparelho telefônico, que na véspera lhe
fizera ouvir a voz da namorada nunca vista, cobre-lhe, como um
vaso, o órgão genital.
Os Destinos da Pulsão

Na pulsão escópica o sujeito acredita perseguir o objeto de


desejo, quando persegue apenas uma imagem, seu duplo narcísico e
especular. O olho está aí como tampão da falta do olhar, o objeto-
causa. Na pulsão invocante as palavras, as súplicas de amor e de
objeto podem, como as imagens, repetir e mascarar o vazio que as
origina. Tomar a palavra é penhorar o ser na moeda da voz. É
fazer-se sujeito da demanda ali onde se encontra o Outro do dese-
jo, pois a voz que causa, pôde dizer Lacan, é o objeto que caiu do
órgão da palavra. E foi onde Dora o conduziu, ao se mostrar
desprovida de palavras, totalmente afônica, no simples tête-à-têtecom
asenhoraK.
O objeto, que é a voz do pai morto no texto freudiano,
transforma-se em objeto a na escrita algébrica de Lacan. A partir de
então, podemos dizê-lo cego e mudo, aos moldes da figura de
mulher que representa a Lei justa, a Justiça no Direito. Todavia Freud,
homem de desejo, continuou a dizer Lacan em "Os nomes do pai"
(1963), não se furtou à questão derradeira sobre a castração: "de
quem é a voz que o sujeito toma emprestado a cada vez que ele
fala? Se o sujeito só pode fazê-lo no lugar do Outro, o que, ou
quem, lhe dá a voz?"

Fabíola e a voz

Fabíola não se indaga de onde lhe vem a voz, porque, do


lugar de sujeito da histeria, quer saber se sua voz é bela. Ela afirma
que deseja ser cantora, e que a lembrança mais forte que guarda de
sua infância são os fins de semana sempre "musicais". Antes da
separação dos pais, quando contava 13 anos de idade, o pai reunia
os amigos em casa todo fim de semana. Cantavam e tocavam vio-
lão. Ainda adolescente, começou a fazer aulas de canto e de
impostação de voz, e pertenceu ao grupo "Cor e canto". Adulta,

316
Vera Pollo

decidiu seguir carreira solo, continuou as aulas, e começou a se apre-


sentar esporadicamente, cantando em boates e teatros.
Uma voz desapareceu em sua infância, pois quando ela
contava cinco anos, morreu um de seus três irmãos mais velhos.
Também a mãe desapareceu nessa ocasião, necessitando internar-se
pelo período de um mês. Mas foi a voz do pai que ela conservou
na memória, a dizer-lhe que "só se deve cantar para o lazer e o
prazer, nunca como uma profissão". Então Fabíola canta, sem con-
seguir livrar-se do gozo nocivo do sintoma. Na antevéspera de
todos os espetáculos está sempre resfriada e sofre de muitas dores
na garganta. No palco, sua inibição é freqüentemente censurada.
Queixa-se de que jamais alguém lhe disse explicitamente:
"Você tem uma boa voz". Aprisionada em sua demanda de amor,
faz amizade com músicos reconhecidos e com eles sonha. Com
eles, igualmente, ela se decepciona, porque "são fáceis em promes-
sas e difíceis em realizações". Na impossibilidade em que ainda se
encontra de "servir-se do pai para ir além", seus sonhos buscam
um meio de satisfazê-lo. Sonha que um compositor muito famoso
dorme em sua casa, ou que ele a encontra nos bastidores do teatro,
e a chama de "querida". Mas sonha também que "um segurança
enorme" a impede de entrar no teatro em que irá se apresentar, ou
que consegue passar pelo segurança, dizendo-lhe simplesmente:
''Você é muito grande, mas você não é dois".
Podemos dizei, com Freud e Lacan, que o sintoma é sem-
pre dois, posto que é simbólico e real, quer dizer, mensagem e gozo
pulsional. E que a voz faz sintoma em Fabíola porque se encontra
condenada no amor ao pai. Ela anseia pela sublimação da voz. Diz
que pela primeira vez se faz acompanhar por "uma banda de pri-
meiro escalão", e interroga "o que é uma mulher?" na modalidade
de "o que é uma cantora amada e admirada pelo marido e pelo
pai?", ou "o que é uma voz feminina boa e bela?"

317
Os Destinos da Pulsão

A sublimação da voz

Freud pontuou que um psicanalista raramente se interessa


pelo tema da estética, por entender que na neurose o belo se restrin-
ge ao que "foi, outrora, sexualmente excitante". Quando emprega
o termo "sublimação" em seus "Três ensaios sobre a sexualida-
de"(1905), ele o insere no binômio de opostos fixação-desloca-
mento da libido, diferenciando entre a fixação da libido no sintoma
da neurose e o deslocamento libidinal da sublimação na arte. Asso-
cia inicialmente o mecanismo sublimatório à perversão, enunciando
que esta se caracteriza pelo deslocamento do interesse que se dirige
aos órgãos genitais ao interesse pela forma do corpo como um
todo. Mas é possível dizer que o chamado "mecanismo da sublima-
ção" já emerge bipartido no texto freudiano: ele tanto se refere às
"experiências verbalizadas" ou "sublimadas" da análise de Dora, quanto
às produções do "homossexualismo ideal" de Leonardo Da Vinci.
Em alguns momentos Freud deixa claro que a pulsão ou
toma o caminho da transferência ou o da sublimação, ou a libido é
recalcada ou escapa ao recalque e assim pode ser sublimada. Em
sua "Introdução ao narcisismo" (1914), por exemplo, ele diferencia
o avatar da pulsão na sublimação, denominando-o "libido sublima-
da", da idealização do objeto, trajeto de volta da libido ao eu, me-
tamorfose do objeto em traço de ideal responsável pela cegueira
no amor. Em outros momentos, Freud emprega o termo "subli-
mação" de forma ampla, abrangendo simultaneamente as criações
na arte e na análise. Observa, inclusive, que o analista não deve visar
ao "tudo sublimar", que eqüivaleria a privilegiar a sociedade em
detrimento do indivíduo. E chega a dizer que "uma estética de ori-
entação econômica" talvez explicasse um dia a alegria do artista e o
sofrimento sintomático do analisando.
Mas o fato é que Freud, nas elaborações que produziu so-
bre a arte de criar, articulou com clareza que a sublimação implica

318
Vera Pollo

em atravessar a fantasia. Em suas palavras, o artista é aquele que dá


um privilégio inicial à fantasia em detrimento das exigências da vida
real mas que, graças ao dom da criação, sabe encontrar o caminho
que o conduz "de volta ao mundo". O artista consegue através da
fantasia a mesma satisfação que o neurótico obtêm na fantasia.
Com Lacan, podemos dizer que há uma relação de inver-
são entre o sintoma e a criação. Se, por um lado, ele nos chama a
atenção para o fato de que o uso da língua parece reservar o
significante "criação" para a sublimação que tem por resultado a
obra de arte, por outro, escreve em "De nossos antecedentes" (1966)
que "o envelope formal do sintoma se inverte em efeitos de cria-
ção". Nesse pequeno texto-homenagem aos que considerou seus
mestres, a "poesia involuntária" dos escritos de Aimée lhe serviu de
exemplo desse possível resultado.
Lacan foi buscar em Kierkegaard e sua "descoberta no
domínio do erótico" a ponte que une, via transferência, o sublime e
o horror, ou seja, o que é da ordem do amor e o que Freud cha-
mou de Wiederholungzyvang, compulsão a repetir. Lacan acentuou,
como Freud, que o psicanalista não lida com nenhum eidos da beleza
ou do bem. Nas línguas faladas, o objeto de análise, não há mais
que resíduos condensados, tropeços e balbucios, e "nenhum retor-
no de um sublime verdadeiro". Acentuou, como Kierkegaard, que
a Gjentagelsen, ou retomada do mesmo sob nova forma, implica que
se o escute, implica encontrar um auditor. Nas palavras do filósofo,
o ponto de origem de um amor-paixão é necessariamente "um
mal-entendido sobre a pessoa-objeto", que é fonte de "conflito
poético" e "ponto de estancamento em toda metafísica". Aquele
que tenta transformar essa experiência em "relação real" acaba por
entregar-se à "trapaça eterna". Para Kierkegaard, esse sujeito, "que
possui um olhar erótico e não é um covarde", deve apenas buscar
um confidente ou terceiro. Ele começa sua vida em guerra com a
existência inteira, e sempre perde na primeira luta. Sua inclinação

319
Os Destinos da Pulsão

amorosa é tragicômica. Ela é trágica em sua idealidade e cômica na


simpatia pelo objeto. É conveniente que ele se dirija a quem pos-
sua, então, "a feminilidade necessária à fecundação da idéia".
Resumidamente, o olhar erótico se tornará a ocasião do "des-
pertar poético", se for acompanhado pelo encontro com a fe-
minilidade-fecundante.
Sublimar não é, para Lacan, restaurar ou reparar o corpo
materno fantasmaticamente danificado, como conceberam Melanie
Klein e seus seguidores. Se no Seminário, livro 7: a ética da psicanálise
(1959-60) ele define a sublimação como elevar o objeto à dignida-
de de das Ding, é porque, seguindo Freud, a concebe literalmente
como um lugar inalcançável e vazio, o objeto em si mesmo interdi-
tado. O objeto criado repete a mesma falta da qual se origina, como
o vazio interior de vaso é causa e efeito de sua modelagem. O
processo sublimatório, nos termos de Lacan, repete e satisfaz um
gozo originário e opaco, uma opacidade subjetiva que se origina no
fato de que o desejo do homem representa inicialmente o que teria
sido a necessidade simples, se ela existisse. Ele é mais a geração do
significante, a doação de um vaso, do que propriamente o uso de&-
te. Se não há objeto genital em jogo na sublimação, a finalidade
permanece sendo, no entanto, uma finalidade sexual.
É no Seminário, livro 14: a lógica da fantasia (1966-7) queLacan
opera o retorno de Freud a Kierkegaard. Ele associa a sublimação
à identificação a A mulher, que constitui, como sabemos, um dos
nomes lacanianos do impossível, da Coisa materna ou do real. Ele
nos faz ver que se a sublimação é tão freqüentemente enunciada
como "fruto típico da situação analítica", é por nela desempenhar
uma função operatória, que é exatamente a sustentação subjetiva na
ausência de objeto. Sustentação da finalidade sexual onde não há
termo intermediário, significante algum, que venha enlaçar o ser
falante ao desejo puro como morte. Lacan distingue, nesse Seminá-
rio, a entrada do objeto no ato sexual, resto de um ato anterior,

320
Vera PoUo

entrada mediada pelo significante "filho", do que é da ordem da


relação amorosa. A "miragem erótica" é, em suas palavras, fantasia
de dom feminino, doação do que não se tem. Uma vez que qual-
quer objeto pode vir a ocupar o lugar do falo imaginário no ato
sexual, pode haver sublimação. Ela é a criação de substitutos desse
objeto em falta e como tal, onipotente.
No discurso do analista há lugar para a criação da fantasia,
esse ponto de junção entre o sujeito e a falta de objeto. E dela pode
resultar a produção de SI' significante inútil e sem sentido porém
operador. Assim, nos é possível dizer que a sublimação está na en-
trada e na saída de uma análise, quando desdobramos, com Miller,
o sintagma lacaniano "o envelope formal do sintoma", referindo-o
à mensagem cifrada do sintoma, portanto decifrável e curável. Sa-
bemos que uma metáfora se desfaz. Mas sabemos também que há
no sintoma uma espécie de matéria de gozo, que corresponde a seu
lado incurável. Ora, se pensarmos a transferência como um ading
ottt do próprio inconsciente, enlaçamento do sintoma ao Outro da
linguagem, que faz dele uma "manifestação verídica", verificare-
mos que a eliminação do sujeito suposto saber é o que promove a
disjunção entre a matéria e a forma do sintoma pela qual a transfe-
rência retorna ao ponto de partida. "Pela travessia da fantasia", enun-
ciou Miller, "ou às vezes pela passagem ao ato, a transferência retorna
à sublimação, o formal se desprende do material do gozo". O
significante se sublima em letra, da qual Lacan também nos diz que,
como qualquer objeto de arte, é feita para os pequenos outros. E o
destino da matéria-gozo?
Entre a voz que faz sintoma e aquela que talvez possa ser
dita "sublimação da voz", há que se passar pela identificação a A
mulher, pela criação de substitutos do falo imaginário, e pelo
significante que toma lugar de ato, ou de travessia. É o caminho que
conduz ao objeto, que embora não seja sexuado, pode ser dito
"feminino" por se situar além da significação e condensar o gozo.

321
Os Destinos da Pulsão

Num interessante trabalho sobre ''A voz na diferença sexu-


al", Zizek nos sugere colocarmos como ocorrência exemplar da
voz que rompe as amarras da significação, imaginária e fálica, para
precipitar-se na consumação do gozo de si, o apogeu da ária (femi-
nina) na ópera. A voz em excesso, que não se contabiliza no simbó-
lico, representaria assim a imbricação paradoxal, talvez mesmo a
imissão, da sensualidade mais apaixonada e da pureza assexuada.
Então, se "tudo são trechos que escuto", se a saudade não é
"mera contraluz que vem do que deixou prá trás", como diz ainda
a poesia de Caetano, é possível a consumação do sentido em sem-
sentido, "j'ouis senl', gozo ouvido e sentido, e gozo "sem", gozo
desprovido. No retorno do significante ao signo, num final de aná-
lise, ou numa produção da arte, algo faz peso no real.

Referêndas bibliográficas
APULÉE. L'â11e d'or. Paris, Gallimard, 1958.
ftREUD, S. "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade" (1905). Em: Obras
completas, vol. VII. Rio de Janeiro, Imago, 1969.
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tas, vol. XIV. Op. cit.
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K.IERKEGAARD, S. La reprise. Paris, Flammarion, 1990.
LACAN, J. "De nos antécédents". Em: Écrits. Paris, Seuil, 1966.
_ _ _ _ . O seminário, livro 7: a ética da psicanálise (1959-60). Rio de Janeiro,
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Zahar Editor, 1992.
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nossa tradução
_ _ _ _ . Le séminaire, Livre XIV: La logique dr, fantasme (1966-7). Inédito,
aulas de 22 de fevereiro e 1 de março de 1967.
MILLER, J-A. "Reflexiones sobre la envoltura formal dei sintoma". Em: La
envoltura formal dei sintoma. Buenos Aires, Manancial, 1989.
ZIZEK, S. "La voix dans la différence sexuelle". La Cause freudie1111e, n. 31.
Paris, 1995, p. 82-92.

322
ARTE: DA PSICANÁLISE A
WALTER BENJAMIN

Oswaldo França Neto

Introdução

Alain Badiou, em um texto sobre arte e filosofia (1994),


afirma que a maneira como a psicanálise trabalha a arte visa muito
mais servir aos propósitos da psicanálise do que propriamente aos
da arte. O objeto artístico aqui seria sempre tematizado na sua rela-
ção com aquilo que mais caro é à psicanálise, isto é, o desejo. Nesse
mesmo texto, ao discorrer sobre o marxismo, ele identifica essa
corrente do pensamento com uma tentativa de tratar a arte como
uma ferramenta a serviço da revolução, dando à arte uma função
teleológica em consonância com a esfera política. Alain Badiou não
desenvolve muito essas colocações, e elas nitidamente só são feitas
dentro de um contexto argumentativo visando a outros fins. Porém
elas servem para realçar a importância que esse tema possui. Seja
qual for a corrente de pensamento, cedo ou tarde todas elas se
defrontam com a tentação (ou a necessidade) de dar à arte algum
tipo de inteligibilidade dentro dos limites de sua malha discursiva.
Para que serve a arte? Por que todas as sociedades, cada
uma a seu modo, em qualquer tempo histórico, sempre arruma-
ram maneiras de construir mecenas que garantissem a existência
do sopro artístico? Por que ela causa tanto fascínio? Por que é
tão enigmática?
Os Destinos da Pulsão

Talvez uma maneira possível de se alargar um pouco a nos-


sa concepção do que seria arte seja promover o atrito entre dois
campos conceituais diferentes e, através das faíscas produzidas, ten-
tar delinear com um pouco mais de clareza os limites e os pontos
de inaprecnsabilidade que cada um desses campos comporta.
Vou tentar aqui discorrer sobre uma das oposições possí-
veis entre as formas como a psicanálise se apodera da manifestação
artística e a forma com que Walter Benjamin, filósofo que tende a ser
aproximado com a linha marxista, enfrentou a mesma problemática.
Vamos iniciar pela psicanálise.

Arte e psicanálise

A maneira como a psicanálise entende a arte não é terreno


seguro. Talvez seja melhor apenas tentar levantar alguns aspectos
dessa temática, sem maiores pretensões.
No S emindrio, livro 11: o.r quatro conceitos fundamentais
(1985(1964]), ao trabalhar a oposição entre o olhar e a visão, Lacan
desenvolve um pouco o que ele considera a relação que se estabele-
ce entre um admirador e a pintura.
Segundo Lacan, ao olharmos um quadro, somos apreendi-
dos por este, e nos tornamos quadro pata ele. Somos apreendidos
cm uma cena, sem que isso seja sentido necessariamente como uma
imposição. Não lutamos naturalmente contra. Não existe aí impul-
so de libertação. Trata-se de uma apreensão, mas não é algo que se
oponha como desprazer a um outro estado gue seria o de liberda-
de. Não se tenta libertar, fugir do quadro, pois ele nos apazigua, nos
acalma. O nosso impulso como que se arrefece, e nós nos torna-
mos quadro para o quadro, algo que bordeja a dessubjetivação, só
que sem atingi-la, e portanto sem ser angustiante.

324
Oswaldo França Neto

Sobre o quadro não há saber. Pode-se fazer erudição sobre


os pintores e suas obras, mas esse saber não é pertinente ao que se
refere à forma com que a psicanálise entende o que seria o efeito da
arte sobre nós. Essa erudição inclusive atrapalha. Se observarmos o
quadro guiados pelo saber escolástico, nós inviabilizamos sua ação.
Para que ele possa nos arrebatar, nos apreender em uma cena, quem
deve estar na posição passiva somos nós e não o quadro. Ao que-
rermos saber sobre o quadro, estaremos competindo com ele na
atividade. Em vez de permanecermos soltos, entregues, receptivos
a sua ação, iremos fazer o possível para dominá-lo, apreendê-lo,
decodificá-lo. Estaremos, nesse caso, indo no sentido inverso ao
que realmente importa no quadro.
Isso não quer dizer que devamos combater a erudição so-
bre a arte. Apenas que a arte e o efeito que ela nos provoca são dois
campos diferentes, estranhos um ao outro.
Alain Didier-Weill (1997), falando sobre a arte, afirma que
esta traz à baila o inaudito, o invisível, o imaterial, isto é, ela nos
coloca frente a frente com o que escapa ao simbólico (o inaudito) e
ao imaginário (o invisível), nos remarcando algo que se refere ao
real (o imaterial), e dando a esses elementos (o inaudito, o invisível e
o imaterial) algum tipo de expressão 1•
Segundo esse autor, na música nós somos conduzidos por
uma série de momentos lógicos, até o que denominou de Nota
AZf1/, que seria o ponto principal da música, onde algo do registro
da destemporalização ocorre, onde a saudade e a tristeza causadas
por uma ausência se tornam nostalgia. Apesar de permanecermos
tristes, nós ficamos confortados. O objeto faltoso, apesar de per-
manecer assim, de alguma forma se marca como presença, trans-
formando a sua falta em alguma coisa mais suportável.
Ao contrário do chiste, que se apresenta como surpresa
ressignificando retroativamente o início da frase, na música as notas

325
Os Destinos da Prt!são

precedentes preparam num crescente a chegada da Nota Azul. Se


no chiste a significação se dá em um movimento de aprés-coup, na
música ocorre um efeito de avant-coup, sendo a Nota Azul a "realiza-
ção da promessa da qual o discurso antecedente.era portador; ela é
a continuação, poderíamos dizer, do saber suposto da linha
diacrônica" 2 •
A Nota Azul está nas notas precedentes como uma pro-
messa. Isso porém não a diminui frente ao chiste, sendo inclusive o
inverso, já que seu gozo, apesar de ser de certa forma esperado, "se
reduplica com a descoberta de que não é vão esperar o gozo" 3.
Ainda segundo Didier-Weill, a arte se apresenta como
contraponto à globalização, resgatando o furo, ou o vazio, na tota-
lidade. Ela dá cor e som ao invisível e inexprimível, sem que isso
signifique que eles se tornem apreensíveis, mas apenas que se tor-
nam presentes, marcando-se como enigma.
Em termos gerais, talvez possamos dizer que para a psica-
nálise a arte tem como efeito provocar no espectador uma espécie
de dessubjetivação, porém sem que isso seja sentido por ele como
uma situação de angústia.

Arte e Benjamin

Vamos agora discutir as questões levantadas por Benjamin.


Se para a psicanálise a arte está envolta em mistérios, ao entrarmos em
Benjamin o terreno fica ainda mais movediço. Tentarei polemizar algu-
mas questões que o texto desse filósofo me suscitou, em especial o
artigo "A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução" (1983),
sem me preocupar em achar para elas uma resposta definitiva.
O primeiro grande problema refere-se à linguagem. Se-
gundo Bruno Tackels (1992), para Benjamin a arte seria uma forma
de linguagem, e a tarefa de ambas seria a de tradução.

326
Oswaldo França Neto

A colocação nesses termos é complicada, podendo resva-


lar para uma concepção perigosa de linguagem. No senso comum,
quando utilizamos a expressão "tradução" somos levados a supor
uma separação, uma exterioridade entre aquilo que tem a função de
traduzir e o que será traduzido. É como se aquilo que será subme-
tido à tradução tenha uma essência própria, uma realidade em si,
independente daquilo que seria a tradução. Teríamos então duas
séries: a série dos elementos que seriam submetidos à tradução, e a
série dos elementos que visariam traduzir (representar) a série ante-
rior para uma forma de expressão que a tornasse assimilável. Cria-
se desse modo uma decalagem entre a linguagem (exterioridade) e
a realidade (essência), estando a arte identificada com a primeira.
Arte aqui - assim como a linguagem - entendida como instru-
mento de apresentação (tradução) da realidade. Essa postura teóri-
ca é cômoda. Permite-nos inclusive classificar as manifestações ar-
tísticas: a boa arte seria aquela que bem traduzisse a essência, e a má
arte seria aquela que o fizesse de uma maneira errada. Outra conse-
qüência lógica seria trazer para o primeiro plano as técnicas utiliza-
das nessa tradução. Quanto melhor forem as técnicas, melhor será a
tradução, maior será a afinidade do produto final com aquilo que
ele visa traduzir. Poderíamos mesmo fazer uma aproximação mai-
or: a arte se identificaria com a técnica, confundindo-se integral-
mente o objeto (arte) com seus meios de expressão (técnica).
Mas será que existe mesmo algo exterior à arte (ou à lingua-
gem) a qual esta visaria nos apresentar (traduzir)? Não seria a arte (ou a
linguagem) a present:ificação de sua própria essência? Porém, ao traba-
lhar o que chamou de aura, Benjamin nos mostra que as suas coloca-
ções são mais complexas do que à primeira vista aparentavam ser4 •

A aura

A concepção do que seria a aura para Benjamin parece às


vezes ser dúbia. Inicialmente temos a impressão de que ela seria

327
Os Destinos da Pulsão

uma espécie de véu nústico, quase religioso, fornecido pela herança


cultural à obra de arte. Como efeito, esta última adquiriria um esta-
tuto de inapreensabilidade, intocabilidade, apesar de espacialmente
próxima do espectador. Seria como se ela pertencesse a uma outra
dimensão, ganhando um caráter atemporal, e portanto fora do flu-
xo ordinário da existência, na qual nós somos prisioneiros. Nessa
concepção de aura não haveria interação entre o espectador e a
obra, já que ela se distingue deste, faz parte de um outro registro, só
restando a ele a possibilidade da admiração.
Essa maneira de entender a arte é condizente com a sua
aproximação à função de tradução. Ela nos lembra um pouco as
cópias e os simulacros de Platão: o artista seria aquele capaz de
produzir a verdadeira cópia, sendo que as reproduções feitas se-
cundariamente a partir dela seriam os simulacros, cabendo ao bom
entendedor de arte distinguir as cópias dos simulacros, adquirindo
as primeiras o invólucro da aura.
O que faria a obra adquirir essa aura não seria propriamen-
te o efeito artístico que teria sobre o espectador, mas tão somente o
fato de saber-se, antecipadamente, que elas foram feitas diretamen-
te por aquele que tem o dom de bem traduzir a verdade (ou essên-
cia). Nesse caso, o valor dado ao artista em si, como entidade, é
quase religioso. A ele, e somente a ele, é propiciada a capacidade de
produzir a verdadeira tradução da verdade. Ele adquire um status
quase místico, como se fosse um intermediário entre Deus e os
outros mortais. Sua produção (arte), apesar de ser uma tradução da
verdade, teria o valor da própria essência, já que, além de ter sido
forjada por um semi-deus, seria a única tradução fidedigna do que
seria a essência.
Só que quem outorgaria à determinada obra ou artista o
valor de bem traduzir a essência, seria a tradição, o saber escolástico.
Os parâmetros utilizados seriam aqueles que fossem caros à tradi-
ção, isto é, aquilo antes considerado como essência em verdade se

328
Oswaldo França Neto

confundiria com os alicerces da tradição. A arte ganharia seu valor


ou aura do exterior, e quanto mais fosse transparente a esse exteri-
or, à tradição, mais ela seria considerada como uma autêntica cópia,
e maior seria a sua aura. Após adquirir o respaldo da tradição, após
adquirir a aura, esta se tornaria definitiva, incorporada à obra, inde-
pendente do efeito que viesse a ter ou deixar de ter sobre cada
espectador individualmente. Ela adquiriria o status de ter continui-
dade com a verdade. Ela corporificaria o poder divino, pois teria
sido feita diretamente pelas mãos daquele que tem o dom de bem
traduzir a essência, ou de bem nos mostrar qual seria a face da
verdade. Nesse sentido ela adquiriria um valor místico, e o seu au-
tor, elevado a um lugar divino, pois se só Deus tem o poder de
criar a essência, só alguém divino teria o dom de bem traduzi-la.
Essa forma de trabalhar a arte parece muito mais preocu-
pada com a tradição do que propriamente com a arte. O que é
priorizado aqui é a forma com que a tradição se apropriou da arte,
passando a utilizá-la para seus próprios fins, e a maneira como pos-
teriormente esta última veio a se libertar. Tem-se a tendência então a
considerar como sendo a própria essência da arte esse ato de liber-
tação. Isoladamente, a afirmação de que a arte freqüentemente se
indisponha com a tradição não cria dificuldades. Por ser estranha à
tradição, por funcionar em outro registro (segundo o escopo da psica-
nálise), ao ser aprisionada em suas malhas, com o passar do tempo a
própria arte, estando anacrônica àquele meio, vai acabar por se tor-
nar um dos agentes do desmembramento dessa malha. Mas esse
efeito revolucionário é apenas a conseqüência de uma má apropriação
da arte por algo (ou alguém) que lhe seria exterior (a tradição), não
significando necessariamente que este efeito seja a sua essência.
Porém, em outros momentos, parece que Benjamin dá à
aura uma concepção mais alargada do que a descrita acima, desco-
lando-a um pouco das amarras culturais. Nesse segundo caso, a
obra de arte, independente dos saberes constituídos que a carreassem

329
Os Destinos da Pulsão

pela história, poderia nos provocar por si só essa sensação de estra-


nheza e atemporalidade, de longínquo-próximo, deslocando o ad-
mirador da segurança do campo conceitual que lhe serviria de solo.
Ao contrário da primeira concepção, que entendia a aura como
uma aquisição permanente, aqui ela teria um caráter fugidio,
evanescente, acontecendo em algum momento mágico da conjun-
ção entre o espectador e a obra de arte, não podendo ser mantida
ou guardada no tempo. Sob um certo aspecto essa segunda aura
também poderia ser considerada revolucionária, pois ao nos esca-
par, por não ser algo consolidado e constante, ela nos colocaria no
caminho disso que escapa. Ela provocaria o movimento em detri-
mento da conservação.
Também nessa segunda concepção as novas técnicas de
reprodutibilidade seriam de fundamental importância, no sentido
de resgatarem à aura o seu caráter fugidio, que antes era mantido
constante pelas redes da tradição. Com as técnicas modernas de
reprodução, um modelo primeiro, original, perde-se para sempre.
Cada obra em si vai deixar de ser o produto único de um semi-
deus, pois este "Um" não existirá mais - toda obra será, de prin-
cípio, uma (re)produção. A arte perderá então o caráter religioso ou
místico que a tradição lhe imputava, tomando-se livre para ocupar,
na sua plenitude, o campo que lhe concerne.

Últimos comentários

Minhas opiniões com relação ao que Benjamin entende por


arte oscilam de um extremo a outro. Em certos momentos sinto difi-
culdades em concordar com seus passos, para logo em seguida me
descortinar em uma vasta complexidade que dão à minha descrença
anterior a ilusão de ter sido apenas uma má compreensão do seu texto.
Porém, pouco depois, volto ao ponto inicial, e assim sucessivamente.

330
Oswaldo França Neto

A minha maior proximidade com a psicanálise me leva a


tematizar a arte na sua relação com a subjetividade, independente-
mente de suas variações históricas. Que a forma da arte se expressar
mude conforme a cultura de um povo, e entre povos diferentes
(com culturas diferentes), não há dúvidas. Mas para a psicanálise
esse fato não parece ser o mais importante. Tenta-se, em vez disso,
caracterizar o que na arte a distingue como singularidade em relação
às outras manifestações humanas, tendo como parâmetro referencial
o desejo. Já Benjamin parece trabalhar a arte na sua relação com os
desdobramentos culturais de um povo. A essência da arte estaria
atrelada à ação que ela exerceria sobre o movimento histórico que a
carreia. Da subjetividade individual à finalidade histórica, da psica-
nálise à Benjamin, os possíveis entrecruzamentos freqüentemente
parecem mais da ordem da oposição do que da consonância. Essas
dificuldades, porém, talvez estejam na má compreensão do que
significaria para Benjamin o que ele nomeou por "finalidade histó-
rica". Ao que tudo indica, essa expressão não pode ser reduzida à
maneira como o senso comum a entende. Benjamin dá a ela um
sentido todo próprio, básico na sua teoria, que permeia possibilida-
des para que trabalhemos a arte de uma forma distinta da de um
mero instrumento revolucionário. Possivelmente, esse é um dos cami-
nhos para que, futuramente, em um outro trabalho, uma aproximação
maior deste filósofo com a psicanálise possa ser melhor explorada.

NOTAS

1- DIDIER-WEILL, .A. Nota AZfiL Rio de Janeiro, Contra Capa Livraria,


1997, p. 19-26.
2- Idem, p. 63.
3- Ibid., p. 64.
4- Já no seu artigo ''.A tarefa do tradutor" Benjamin se opõe frontalmente à
problemática concepção de linguagem desenvolvida acima. Vamos, no entan-
to, optar por demonstrar seu pensamento por meio da tematização do que
ele nomeou por aura.

331
ÜJ' Dcsti11os da Pulsão

Referências bibliográficas

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Em: Os pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1983, p. 3-28.
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DIDIER-WEILL, A. Nota AZJi!.' Freud, Lacan e a arte. Rio de Janeiro, Contra
Capa Livraria, 1997.
1~-\CKELS, B. "L'art epuisé - la question de l'art ou l'art de la technique".
Em: Walter Be1!famb1: 1111e i11troductio11. Strasbourg, Presses Universitaires de
Strasbourg, 1992, p. 53-71.
AS FIGURAS DO VAZIO

Gleuza Maria Salomon


Membro da Escola Brasileira de Psicanálise

A visão através de algo é a definição da perspectiva. Em


1420, a partir de Filippo Brunelleschi (1377-1446), a perspectiva
constitui a imagem visual situada numa superfície plana para onde
convergem todos os pontos. A tentativa da perspectiva artifliialis é a
de mostrar o olho do pintor ou do espectador no ponto de fuga,
nomeado como o ponto do sujeito. Demonstra-se um fato de es-
trutura comemorando o aparecimento do sujeito. Funda-se uma
nova ordem das ciências, como nos fala Lacan no Seminário, livro 14:
a lógica da fantasia: a presença ou a ausência de um sujeito nesses
campos que ela constitui em domínios.
É através da pintura que o arquiteto Filippo Bronelleschi se
insurge contra a ciência da ótica cuja ausência do sujeito revelava o
campo do conhecimento sob uma falácia, a superfície curva da
perspectiva natura/is.
A projeção dos objetos sobre um plano é o que produz a
interseção da pirâmide ou cone visual, a construção visual exata do
princípio da câmara fotográfica.
Brunelleschi cria um dispositivo através do qual realiza a
experiência na qual impõe ao espectador situar seu olho no mesmo
ponto que o olho do pintor. Surge em Florença uma grande agita-
ção, as pessoas querem experimentar este novo invento: o especta-
dor deve colocar o olho contra o buraco furado numa prancha de
Os Destinos da Pulsão

madeira - la tavoletta. A pintura do Batistério está na face anterior


da prancha. A visão direta do Batistério, que situa-se do outro lado
da rua, é ocultada pela prancha, mas o reflexo do espelho devolve
a imagem pintada na tavoletta. O espectador é surpreendido pois,
através da pintura refletida na superfície de um espelho que está em
sua mão direita e colocado frente ao buraco, acredita ver o Batistério,
e com tal precisão que o sujeito já não sabe mais se é a pintura ou o
Batistério que ele vê.
Observa-se nesta experiência a questão posta por Lacan no
Seminário, livro 11: os quatro conceitosfundamentais, no capítulo "O que é
um quadro?" (1973(1964], p. 100), onde o olho está ausente, subs-
tituído por um buraco, e por detrás da pupila está o olhar.
Lacan nos responde a seguir: ao mesmo tempo que o qua-
dro entra numa relação com o desejo, o lugar da tela central está
sempre marcado, que é justamente o porquê diante do quadro sou
elidido como sujeito do plano geometral.
O sujeito surge deste impacto entre a arquitetura e a pintu-
ra, um vazio sagrado inerente à arquitetura primitiva que se reinscre-
ve, segundo Lacan, na perspectiva da pintura e dela retoma à arqui-
tetura neoclássica que, submetida às leis da perspectiva, injeta algo
que foi realizado na pintura e reencontra o vazio da arquitetura
primitiva.
Para Lacan no Seminário, livro 7: a ética da psicanálise, como
vimos acima, a arquitetura pode ser definida como algo organizado
em torno do vazio. É neste ponto que se situa a sublimação; é o
vazio que o indica e é neste lugar que os elementos imaginários do
fantasma estão a enganar o sujeito.
É à medida que o pintor inventa a perspectiva geométrica,
utilizando a matemática e a ótica, que ele se insere nas ciências do
Renascimento e nas Artes Liberais. Alberti em 1435 define a pintura
comparando-a a uma janela aberta pela qual olharíamos. A moldu-

334
Gleuza Maria Salomon

ra do vazio, o quadro, permite-nos captar o valor estruturante do


vazio; esta função da qual nos falaLacan no Seminário 11 (1973(1964],
p. 81) organiza-se de um modo totalmente novo dentro da história
da pintura. Lacan considera que o ponto geometral do domínio da
visão antecede e situa a instituição do sujeito cartesiano como um
tipo de P?nto geométrico, de perspectiva. Sabemos que Descartes
escreve o Discurso do Método em 1637, a seguir a Dióptrica, Geometria e
a Perspectiva. Foram necessários dois séculos para o surgimento do
sujeito moderno, o sujeito da ciência, este que a psicanálise freudiana
considera o sujeito do inconsciente, e Lacan, o sujeito barrado, o
sujeito vazio.
O sujeito já está em causa na perspectiva e através dela racio-
naliza o objeto, uma vez que é o campo escópico que estabelece a relação
do sujeito, do poder do olhar sobre o mundo. Esta dimensão está atada
para a psicanálise à fórmula lacaniana do Sl!J'eilofantasia de a (~ O a).
Duas passagens. A passagem da fantasia ao inconsciente,
realizada pelo sujeito que é um ser: Eu, o estatuto do "Eu sou eu",
ao preço de inicialmente rejeitar o inconsciente; a passagem para o
novo sujeito, aquele que admite o inconsciente, que todavia paga o
preço de nele não mais se reencontrar. A possibilidade desta passa-
gem, do surgimento de um novo sujeito, de um certo modo se
presentifica a partir da perspectiva, na qual o sujeito se crê mestre
do objeto - a ilusão da maestria do objeto, da possessão do sujei-
to sobre o mundo através do olhar.
Porém, em 1533, temos em Holbein, em seu quadro
intitulado Os embaixadores, a expressão de uma perspectiva deprava-
da que reunia no artifício os jogos ópticos. A perspectiva artifiâalis
· sofre um corte, uma lesão narcísica provocada pela disjunção entre
a ilusão do espaço e a criação do vazio. É o que representa para
Lacan a perspectiva anamorfótica, o barroco, onde os artistas se
servem das leis da perspectiva para criar algo absurdo, sem pé nem
cabeça.

335
Os Destinos da Pulsão

No quadro de Holbein, que está mais além do campo da


visão, Lacan nos pede para procuramos o olhar, e não mais o olho
do pintor como na perspectiva geometral, que em Brunelleschi pode
ser considerada como a perspectiva no estádio do espelho.
Para que surja este segundo ponto do sujeito é necessário,
pontua Lacan em seu Seminário, livro 13: o oijeto da psicanálise, que
exista uma abertura, uma fenda, uma visada, um olhar.
A relação do sujeito com a fantasia passa pelos dois pontos
do sujeito, e é estrutural no mundo projetivo. O primeiro é um
ponto qualquer sobre a linha do horizonte no plano da figura e o
segundo está sob a interseção de uma outra linha paralela à primei-
ra. Esta linha é chamada de fundamental porque exprime um rela-
ção entre o plano-figura, num "plano de terra", com o ponto de
fuga central, a linha ao infinito, no plano-figura.
Esta fórmula concernente ao artifício da pintura - "o in-
tervalo entre a interseção da diagonal com o horizonte e o ponto
de fuga central (AX) é igual à distância que se pressupõe separar a
vista do plano do quadro" - não era nem sequer intuída pela
teoria científica do Renascimento.

diuáncia cnlre o cibiirr\".ador e


A o pi.ano do qu:uhu

336
Gleuz.a Maria Salomon

O intervalo entre estes planos é a janela, o vazio estrutural


onde seu produto é o sujeito dividido. Esta subversão do sujeito,
marcada por sua relação à obra de arte, é o que Lacan nos indica
neste texto como o próprio da sublimação. O movimento pulsional,
o ir e o vir do sujeito ao sujeito, não sendo porém este segundo
sujeito idêntico ao seu ir; ele retorna ao avesso, perpassando dois
reviramentos pulsionais tal como nos demonstra o quadro de
Velázquez e conforme a topologia da banda de Moebius. Com
Holbein saímos do campo especular e entramos no campo escópico,
situando um novo sujeito através do objeto anamorfótico - uma
armadilha ao olhar, o objeto punctiforme que olhado de um ponto
da sala se transforma em uma caveira, a encarnação, como nos diz
Lacan (1973(1964], p. 83), imajada do -<p da castração, cuja função
é a de centralizar toda organização de nossos desejos através do
emolduramento das pulsões fundamentais.
Esta caveira reflete nosso próprio nada. Assim diante das
vaidades humanas surge a figura escondida, e no lugar do esplen-
dor humano, vê-se a caveira.
Lacan acentua no Seminário 11 (1973(1964], p. 82) o efeito
de fascinação que esta deformação provoca no sujeito, suturando
algo que escapa do campo da visão. Este algo relacionado à falta,
algo que ninguém jamais tocou, o efeito de ereção como alguma
coisa de simbólico da função da falta, trata-se do falo. Este quadro
nos ensina sobre o falo e o olhar.
Holbein, através da imagem deste objeto que voa no cam-
po perceptivo, introduz ironicamente a falta no espírito de seu tem-
po. Ali onde o homem se achava mestre do objeto, ele o faz encon-
trar-se com a castração.
Jacques-Alain Miller nos diz que esta experiência que faze-
mos ao olhar o quadro Os Embaixadores se associa ao fim de análise,
quando, ao sairmos da ~ala olhando o quadro, algo que não tinha
nome se nomeia, a caveira se nomeia vaidade - no contexto de

337
Os Destinos da Pulsão

Holbein, a caveira e a vaidade são nomes da verdade. Éric Laurent


assim nos fala ao discutir com Miller no IX seminário sobre "O
Outro que não existe e seus Comites de Ética", as ressonâncias do
discurso de Bernardino Horne que, neste mesmo dia, nos fala do
encontro com o objeto como lugar vazio, objeto da presença do
vazio ocupável sob a forma do objeto perdido, pequeno a. Prosse-
gue Bernardino Horne: é o objeto causa de desejo, quer dizer um
desejo causado pela falta.
O sujeito no passe localiza o que suporta o seu "parêtre",
parecer que veste seu cu, a partir do inconsciente onde o "Eu não
sou" chega a resolver-se através da pulsão onde "Isso goza", o que
torna disponível ao sujeito a consistência lógica do objeto a. A ten-
tativa do sujeito simbolizar a castração a partir do objeto a como
mais-de-gozar. Assim o sujeito vai do real ao simbólico, o que pro-
picia o acesso ao objeto como letra, a consistência lógica que res-
ponde à inconsistência lógica do inconsciente.
Onde se localiza o Isso, no "Eu não penso" ao se defron-
tar com o inconsciente, com o impossível a pensar diante da reali-
dade sexual, o sujeito encontra a falta, situa-se diante da não exis-
tência da relação sexual.
O sujeito do cogito supõe um recobrimento entre o ser e o
pensar: "Penso, logo sou (existo)"; porém o sujeito lacaniano já
esboçado no Seminário 11 (1973(1964], p.88) é de outra ordem que
o lugar do ponto geométrico definido pela ótica geometral.
Para Lacan, o sujeito cartesiano, fruto da interseção entre o
ser e o pensamento, pode estar aí indicado. Este seria o estatuto
natural do sujeito, aquele que se imagina mestre de seu pensar e que
rejeita o inconsciente. Na análise o sujeito se realiza como "Eu não
penso" que é -<p a partir da positivação do "Eu não sou" desde o
Isso; a realização do Isso é o objeto a, a letra ou a consistência
lógica do objeto.

338
Glmza Maria Salomon

Ainda no Seminário 11, continuando o parágrafo sobre a


distinção do sujeito do cogito e o ponto geométrico, este ponto no
infinito, Lacan nos fala do sujeito em relação à luz e a tela, onde situa
o olhar como algo que sempre se localiza entre a luz e a opacidade.
É este olhar que está fora do campo perceptivo que faz com o
sujeito, já que olhado, seja quadro. É pelo olhar que o sujeito entra
na luz e é dela que é feito.
No Seminário 13: o objeto da psicanálise Lacan comentará sua
tese sobre o quadro As meninas de Velázquez, onde o pintor conse-
gue, através do quadro, convocar o olhar, a presentificação do ob-
jeto olhar, desta parte elidida do campo perceptivo, sendo da or-
dem libidinal, porém fora do significante. Ao esconder o quadro, o
pintor esconde também seu olhar. O pintor, presente diante do
quadro, olha não para nós, mas sim para a menina.
Lacan comenta que neste quadro o olhar aparece sob a
forma de elisão. O olhar que está nos olhos do pintor surge da
divisão que o pintor instaura ao vermos que ele vê a menina. A
distância entre o que é visto e o que é pintado - que nós não
vemos - é o lugar que evoca o objeto olhar. Assim, o pintor loca-
liza o que não pode se ver, que se encontra por baixo da saia da
menina: a fenda. O olhar é convocado para elidir a fenda; é neste
lugar que falta alguma coisa, no qual se mostraria a falta, que o olhar
vem cobrir a castração. Temos aí a fórmula (a/-cp).
O sujeito é imanente ao percebido, o sujeito está no percebido.
É esse o ponto que Lacan desenvolve a partir de Velázquez: existe a
marca do sujeito no que ele percebe. Nesta pintura o artista vai nos
mostrar a função do quadro e a do espelho. Lacan nos diz "a
relação do sujeito do quadro é profundamente diferente daquela
do espelho".
Velázquez utiliza em As meninas, como já vimos, tanto o
quadro ao avesso como o espelho que se sobrepõe à cena que

339
Os Destinos da Pulsão

supostamente refletiria o tema do quadro, que vem por encanta-


mento captar a imagem do casal real cujo retrato se fixa. A imagem
é tanto mais enigmática porque é reenviada pela ausência dos pró-
prios modelos dentro do quadro. É o espelho que mostra o que é
paisagem, a cena ausente que é pintada, o que provoca um
descentramento da perspectiva.
Lacan se intriga com esta superposição do quadro sobre o
espelho e o remete à situação analítica, particularmente à função
escópica, ao olhar, uma vez que ele é o que mais elide a castração. A
intensidade e latência desta pulsão são constituídas pelo objeto olhar.
Por isso, o quadro pode vir a se inscrever como o campo
do percebido e isolar o lugar do objeto a, o vazio e sua relação com
a divisão do sujeito, reduzido ao próprio vazio.
É desta divisão que se suporta o desejo; é o olhar e a voz,
que podem vir a surgir na análise a partir da castração. O objeto
presentificará a parte libidinal elidida e, como tal, estes objetos fa-
zem recuar a apreciação de uma prática analítica até então do coti-
diano, o que Lacan vem criticar. Uma prática que viria recobrir estes
objetos através da relação especular junto às identificações do eu,
trata-se ao contrário de uma prática que as faça cair, uma a uma.
Para Lacan esta imagem que Velázquez isola entre as linhas
cruzadas, a imagem brilhante, estaria feita para nos mostrar, analis-
tas implicados no fim da análise, o ponto de encontro no qual o
sujeito pode aí vir a se conhecer, no objeto a.

340
Glmza Maria Salomon

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JOAN MIRÓ-UMA BUSCA DESESPERADA
DE APREENDER A PULSÃ01

Ana Martha Wilson Maia


Correspondente da Escola Brasileira de Psicanálise, Rio de Janeiro.

Sem dúvida, no fundo do meu olho, o quadro se pinta. O quadro,


certamente, está no meu olho. Mas eu e.rtou no quadro. [...] E eu, se
sou alguma r:oisa no quadro, é também sob essaforma de anteparo, que
ainda há pouco chamei de mancha.
Jacques Lacan (1985[1973])

Numa de suas primeiras análises de obras literárias, Freud


extraiu da Gradiva de Jensen um saber sobre os delírios e sonhos a
partir da personagem Norbert Hanold e concluiu que o autor con-
seguiu com o romance preencher uma lacuna não explicada pela
ciência:
Assim fiquei bastante surpreso ao verificar que o autor de Gradiva,
publicada em 1903, baseara sua criafliojustamente naquilo que eJt próprio
acreditava ter acabado de descobrir apartir dasfantes de minha e>..periência
médica. Como pudera o autor alcançar conhecimentos idênticos aos do médico
- ou pelo menos comporta-se como se os possuísse? (1980(1907], p. 60).

Relendo Freud, Lacan (1989[1965]) responderia, rendendo


homenagem a Marguerite Duras: isso é possível porque o artista
precede o psicanalista,Jensen sabia da existência do inconsciente.
Durante uma entrevista com James Johnson Sweeney em
1947,Joan Mirá fez um comentário sobre a repetição de um círcu-
lo, a lua e uma estrela nos quadros de Urgell: "Elas voltam sempre,
Os Destinos do Pulsão

cada vez ligeiramente diferentes. Mas para mim é sempre uma his-
tória de recuperação: nada se descobre na vida ... " (Chipp, 1988,
p.436). Lendo essa entrevista, não pude deixar de lembrar dos olhos
que Mirá insistentemente pintou numa fase em que dizia buscar
uma mudança na forma de composição de suas telas. Mirá pintou
olhos pequenos, grandes, engraçados, deformados, muitos olhos
que me fazem indagar sobre que relação eles têm com o olhar
como objeto inapreensível, evanescente, o objeto a lacaniano.
A fenomenologia da percepção de Maurice Merleau-Ponty
é uma referência de Lacan (1985(1973]) ao abordar a estrutura da
pulsão e do olhar como um dos objetos da pulsão. Merleau-Ponty
coloca o olhar como uma forma de acesso ao objeto, dizendo que
"a visão é um ato em duas faces" (1994(1945], p.104). Quando fixo
o olhar num objeto do campo visual, eu o seleciono como aquele
objeto que quero explorar em seu interior, transformando-o em
figura enquanto os demais objetos se tornam fundo. Nesse sentido,
longe de perturbar o olhar, a perspectiva o favorece pois é o meio
que os objetos possuem de se dissimular e se revelar. Os objetos se
espelham mutuamente e cada um é um espectador dentro desse
sistema que constituem. O corpo é um dos objetos que habitam o
mundo e é o meio que nos permite perceber o que está ao nosso
redor, é o nosso meio de comunicação com o mundo, o "hábito
primordial" (Idem, p. 108), o que comanda o espetáculo visível.
Em sua obra inacabada sobre o visível e o invisível Merleau-Ponty
retoma essa concepção de corpo, dizendo que a percepção nasce
no corpo e que o corpo é uma coisa visível contida no espetáculo
do mundo. É neste ponto que Lacan nos chama a atenção, porque
essa visibilidade do corpo supõe um narcisismo fundamental em
toda visão: há um olhar preexistente, portanto sou um ser olhado.
Vidente e visível se mutuam reciprocamente de modo que "não
mais se saiba quem vê e quem é visto" (1992(1964], p. 135). Merleau-
Ponty percebe que existe uma diferença entre o olhar e a visão,
...
sugere que pesquisemos essas palavras em diversas línguas, mas não

344
Ana Martha Wilson Maia

consegue ultrapassar o campo da visão porque o pensamento filosófi-


co está organizado em torno da concepção de um sujeito unificado, e
sem falar de castração, de falta de objeto, não há como falar do olhar.
A psicanálise rompe com a tradição filosófica quando Freud
diz que a libido está em jogo na questão do olhar. Foi partindo do
estudo da perversão que Freud (1980(1905]) postulou a pulsão
escópica. S chaulust_ é satisfação pulsional, o prazer de olhar, o que
explica o desvio da curiosidade sexual para a arte, o deslocamento
da libido para objetos artísticos. É o sujeito que coloca a beleza ou
o horror no objeto, como ilustra o artigo de Freud sobre Medusa
(1980(1922]), que exemplifica a associação que ele estabeleceu entre
o olhar, o belo e a sexualidade.
Para depreender a gramática da pulsão no jogo de inversão
e reversão do sujeito e do objeto a partir da perversão, Freud de-
senvolveu os três tempos da pulsão: "1. Alguém olhando para um
órgão sexual (= um órgão sexual sendo olhado por alguém); 2.
Alguém olha o órgão sexual do outro; 3. Um órgão sexual ou parte
de alguém é olhado por uma pessoa estranha" (1980(1915], p. 151).
Em (1) o sujeito está numa posição ativa, é ele.quem olha; em (2) ele
é olhado e em (3) ele se mostra para um novo sujeito a fim de ser
olhado. A ênfase dada por Lacan está no terceiro momento, que
marca a "preexistência, ao visto, de um dado-a-ver" (1985 [1973], p.
75). É preciso aparecer algo de novo, "um novo sujeito", para que
o sujeito se constitua, ou seja, nesse terceiro tempo, ao ser olhado, o
sujeito aparece. Centralizando a questão no "fazer-se ver", Lacan
destaca que a pulsão é uma estrutura e que o olhar é um objeto
inapreensível: "uma vez que o sujeito tenta acomodar-se a esse olhar,
ele se torna, esse olhar, esse objeto punctiforme, esse ponto de ser
evanescente, com o qual o sujeito confunde seu próprio
desfalecimento " (Idem, p. 83).
Podemos notar que enquanto Merleau-Ponty fala da
preexistência de um olhar no espetáculo do mundo, Freud faz refe-

345
Os Destinos da Pulsão

rência a um "ser olhado" e Lacan, por sua vez, privilegia o "fazer-


se ver" onde, como coloca Scheikman, "trata-se de se fazer olhar
naquilo que não se pode ver" (1995, p. 50). E o que é que não se
pode ver, que fica escondido, mascarado, velado, por trás da pulsão
escópica? O olhar, o desejo, o próprio sujeito que ao fazer-se ver,
transfigura-se em objeto para poder surgir como sujeito, direito e
avesso de um só tecido, conforme nos diz Lacan num outro Semi-
nário, ao diferenciar a visão do olhar:
O olhar não se situa simplesmente ao nível dos olhos. Os olhos podem
muito bem não aparecer, estar mascarados. O olhar não éfo1rosamente a
face do nosso semelhante, mas também é ajanela atrás da qual supomos que
ele nos espia. É um x, o objeto diante do qual o sujeito se torna of?jelo
(1986(1975]),p. 251).

Esse olhar que não se vê é justamente o que causa a jubila-


ção, o gozo da imagem, do Belo. No entanto, não é apenas a beleza
que causa fascínio, como demonstra Lacan ao fazer uma articulação
entre a mancha e o olhar, explicando que o olhar possui a função da
mancha, função de comandar e escapar à apreensão da visão
(1985[1973]). A mancha dirige o olhar, porém se furta a ser delimi-
tada como forma no campo escópico. E é por figurar-se enigma-
ticamente que ela exerce fascínio, como também o olhar, que é
capaz de fascinar mesmo quando os olhos estão fechados, ilustra
Lacan (1962-3) com o olhar do terceiro olho de Buda.
Tendo em vista a função da mancha e do olhar, Lacan de-
fine o quadro como uma armadilha do olhar pois que através do
olhar o sujeito é preso, manobrado, chamado para dentro do qua-
dro. Ao fixar o olhar do espectador, o quadro lhe faz apelo para
que deposite o seu olhar. Diz Lacan que o pintor oferece seu qua-
dro como "uma pastagem para o olho", diante do qual ele convida
o sujeito "a depor ali seu olhar, como se depõem as armas". Este
seria para ele o efeito pacificador da pintura "algo é dado não tanto
ao olhar quanto ao olho, algo que comporta abandono, deposição,

346
Ana Martha Wilson Maia

do olhar" (1985(1973], p. 99). Aí está a jubilação experimentada


pelo espectador quando ele é capturado pela pintura, o prazer deri-
vado da pulsão escópica, o gozo do olhar2 •
Assim sendo, se a função do quadro é, como uma mancha,
captar, fixar o olhar do espectador, qual a relação entre pintar e
pintar olhos? Se na armadilha do olhar o olhar é aquilo que está por
trás dos olhos, aquilo que a visão não consegue alcançar porque a
pulsão é inapreensível, por que a repetição de olhos na obra de
Mirá? Vejamos como posso desenvolver melhor essa questão ana-
lisando algumas de suas telas.
Inicialmente estão as telas de cores contrastantes e fortes, as
linhas grossas, com pinceladas rápidas. Nessa fase Miro residia com
os pais numa quinta em Montroig e suas raízes catalãs aparecem
constantemente nos quadros, que giram em tomo do tema de natu-
rezas-mortas, figuras humanas, animais, insetos, árvore!'., a terra. Para
ilustrar, escolho Natureza-Morta com Rosa (1916) em que uma garra-
fa, uma rosa e um cesto com uma fruta estão sobre uma mesa.
Assim que chegou a Paris, Mirá conheceu muitos poetas e
artistas surrealistas, como André Breton, Antonin Artaud, Paul
Eluard, Robert Desnos e Benjamin Péret. Lia poesias à noite, vivia
de alguns figos por dia e, olhando as paredes nuas de seu ateliê,
tentava capturar no papel ou na tela as imagens delirantes que lhe
surgiam sob efeito da fome. O quadro de Mi.ró intitulado Nu em Pé
(1921) foi pintado na fase em que ele se aproximou do surrealismo.
Comparando-o com Natureza-Morta com Rosa, é possível observar
uma diferença na composição. A mulher nua aparece em primeiro
plano e o resto dos elementos do quadro ficam como pano de
fundo. Já não surgem na tela as cores fortes e contrastantes. As
linhas se afinaram e é importante notar a maneira como Mi.ró dirige
o olhar do espectador sobre a tela. Se em Natureza-Morta com Rosa o
olhar se movimenta lentamente e é praticamente fixo, em Nu em Pé
o olhar está em constante movimento. Mink o analisa minuciosa-
.
347
Os Destinos da P11lsão

mente: "O olhar se desloca pela tela num movimento em zigueza-


gue, desde a massa negra sob o pé ao joelho branco, aos pêlos do
púbis, depois aos seios e às unhas brancas até aos cabelos negros"
(1993, p. 29). Aqui o olhar segue continuamente as linhas do quadro,
percorre sua superfície inteiramente. Parece que Miró nesse período
buscava uma mudança em sua forma de composição porque a
partir de então o equilíbrio dos elementos expostos na tela se torna
essencial para ele. Isso pode ser exemplificado com o quadro que
ficou conhecido como uma de suas obras-primas: AQuinta (1921-
22), onde se destacam figuras abstratas, animais, uma mulher, ele-
mentos da paisagem, objetos diversos (banco, regador, jornal, esca-
da, balde, marcas de pegadas, uma garrafa etc.), uma figura nua,
entre outros elementos isolados que se apresentam esteticamente
em harmonia, sugerindo que a composição do quadro foi pensada
minuciosamente. Disso resulta que o olhar do observador para um
elemento da tela é levado a outro e a outro e a outro, de modo que,
sem se dar conta, seu olhar percorre toda a superfície da tela. Mink
(1993) compara a composição deste quadro a um projeto
arquitetônico, em que os objetos são escolhidos e colocados um a
um. Essa preocupação com a harmonia da composição jamais será
abandonada. Em Terra Lavrada (1923-4) persiste o tema catalão de
A Quinta. A quinta, a terra em que morava com os pais é comum
aos dois quadros. No entanto, surge uma diferença: os elementos
do primeiro quadro aparecem no segundo mas transformados em
súnbolos, seres fantásticos, objetos deformados que representam a
realidade com imagens que se distanciam das formas reais dos ob-
jetos. O cachorro, o cavalo, o galo, os coelhos de A Quinta são
agora um coelho com orelhas desproporcionais, uma égua estranha
com o potrinho, o lagarto de grandes garras, o galo gordo de cabe-
ça pequena. A copa da árvore, ao invés de galhos, parece ter pêlos.
Há o jornal, embora diferente, uma orelha ... e um olho. A evolução
formal de Miró introduziu o olho como um elemento que se repe-
te em diversas telas seguintes, assim como linhas que interligam os

348
Ana Marlha Wilson Maia

objetos e uma linha principal que corta a tela dividindo-a numa


parte superior e numa parte inferior, cujos fundos são de um colo-
rido sombrio e de tênue diferença.
O Carnaval de Arlequim (1924) foi pintado quando da publi-
cação do primeiro manifesto surrealista. Vários quadros datam desta
época, mas este reafirma a influência surrealista sobre sua pintura, a
presença maciça da fantasia que aparece nas figuras deformadas,
fantásticas, que chegam a ser engraçadas. Dentre as criaturas do
quadro que festejam o carnaval, há vários olhos. Olhos de diferen-
tes tamanhos, olhos de animais, olhos irreconhecíveis. Ecoa a per-
gunta: por que essa repetição e por que o olho? Minha hipótese é
que Mirá buscava apreender o olhar pintando olhos. Na "história
de recuperação", a que ele se refere na entrevista, trata-se de "recu-
perar" o olhar como objeto a, recuperar o que jamais foi possuído.
Ele acreditava que isso seria possível modificando a forma de com-
posição. E prosseguirá em sua busca até o final de sua obra.
Tendo se deparado com a impossibilidade de apreender o
olhar na pintura, Mirá procurou uma saída na literatura. Do traço à
letra, ele mostrou o desejo de fazer de sua pintura, poesia. Inserindo
palavras e frases em suas telas, Mirá pretendia transcender os limites
da pintura. Em Foto - Isto é a Cor dos Meus Olhos (1925) sob uma tela
branca se encontram a palavra "Foto", uma mancha de cor azul e
embaixo da mancha a frase "isto é a cor dos meus olhos". O olhar
neste quadro é representado por essa mancha azul, a qual ele chega
na busca de unir a pintura, a literatura e a fotografia. Com a foto-
grafia ele introduz um outro olho além do olho do observador: a
objetiva da máquina. Porém não adianta multiplicar os olhos para
capturar o incapturável mistério do olhar.
Nos anos 1920, sob influência surrealista, Mirá pintou qua-
dros orgânicos e abstratos. Na década seguinte, introduziu colagens
nas telas, pintou figuras femininas e masculinas e as telas que ficaram
conhecidas como "selvagens". De 1936 a 1940, esteve exilado na

' 349
Os Destinos da Pulsão

França depois da Guerra Civil Espanhola. Sem um ateliê para pin-


tar e morando num hotel, começou a escrever prosas e poesias. Em
1937 inicia a série de quadros chamados ConstelafÕe.r. com o predo-
mínio das cores vermelho e preto, a superfície da tela se transforma
no cosmos, onde se encontram muitas estrelas, luas, sóis, diferentes
signos interligados por finas linhas, e olhos.
Numa fase seguinte, Miró foi chamado para pintar um mural
para o Terra Plaza em Cincinnati. Pintou também o M11ral da Lua e
o Mural do Sol para o Edifício Unesco em Paris (1955). Nos anos
1960 fez trabalhos em esculturas e pintou telas, dentre as quais se
destacam Azu!II e Azul III. As únicas figuras que estão na superfície
da tela de Azul II sobre fundo azul são um grosso traço vermelho,
do lado esquerdo na vertical, e pontos pretos de diferentes tama-
nhos, do lado direito do traço. Em Azul III, sob o mesmo fundo
azul, há somente dois pontos, um ponto preto isolado, e um menor
vermelho que está ligado a uma linha fina que corta a tela no sentido
diagonal. Há uma redução dos traços grossos, fortes e rápidos do
início de sua obra ao ponto preto de Azul III. O ponto vermelho
representa um objeto que está no ar, levitando, e que só não está em
movimento porque uma linha o aprisiona. É o próprio olhar como
objeto evanescente, objeto causa que a arte, de uma maneira geral,
tenta capturar. Em seu processo de apreensão do olhar, Mirá reduz
o traço ao ponto, à mancha, sem se dar conta de que o alcançou.
Olhar, ser visto, fazer-se ver, Mirá tenta capturar a gramática pulsional,
tenta diagramar o circuito da pulsão escópica trazendo mudanças
para a composição de suas telas, inserindo o olho, depois a letra, a
mancha, o ponto. Ele acrescenta linhas ora invisíveis, ora não, para
orientar o olhar do espectador, criando um caminho para o olhar,
um circuito pulsional. E "fazendo arte", refiro-me aqui às críticas
de que sua obra possui um caráter predominantemente infantil -
Mirá nos mostra que sabe que o trágico destino da pulsão é contor-
nar incessantemente o vazio do objeto, sem jamais encontrá-lo. Daí
ser possível "fazer arte".

350
Ana Marlha Wilson Maia

NOTAS

1. Este trabalho é dedicado a Karl Eric Scholhammer, professor do Departa-


mento de Letras da PUC/RJ, Maria Anita Carneiro Ribeiro e Manoel Motta,
com os quais tenho tido ricos momentos de discussão sobre as relações entre
psicanálise, arte e filosofia.
2. Sobre a relação entre o quadro, o olhar e o sujeito, ver l\L-\L\, .A. M. W
"Gala Salvador Dali - o amor recobre a dor de existir". Em: Kalimeros. A dor
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Contra Capa Livraria, 1997.

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351
Os Destinos da Pulsão

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TELES, G. M. Vanguarda européia e modernismo brasileiro. Rio de Janeiro, Record,
1987.
DA VOZ À MÚSICA: O GRÃO E O RESTO

Maria Lidia Arraes Alencar


Correspondente da Escola Brasileira de Psicanálise, Rio de Janeiro.

Todas as incursões que Lacan empreendeu no campo da


Arte durante seu ensino, mesmo não pretendendo uma reflexão
sobre a Arte em geral e sempre levando em conta que o artista o
precede, renderam para a Psicanálise importantes avanços teóricos.
Por que então nada se encontra ensaiado em Lacan, ou em Freud, a
respeito da Música? Que direção dar a uma interlocução entre esses
campos, se de saída nada está estabelecido para balizar a discussão?
Some-se à surdez assumida por Freud em relação à música o silên-
cio de Lacan sobre o tema. Por que Lacan não introduziu uma
esquize, a exemplo do olho e do olhar, entre ouvido e voz no que
concerne ao campo da música?
Tentaremos nos aventurar para fazer avançar o assunto, to-
mando os indícios como ferramentas. O primeiro é do próprio
Freud que ao se declarar impossibilitado de falar da música, o faz
por não conseguir abordar algo que o toma, o "agarra", sem que
disso ele possa ensaiar alguma explicação. Eis a questão: algo o
"agarra" e ele fica "surdo". O que indica que há de se ter ouvidos
para não escutar.
Lacan, por sua vez, amava a música e era freqüentador as-
síduo da boa música contemporânea em Paris, mas disso não fala-
va: ouvia música. Fez silêncio sobre isso. Aliás, esse é o tema: o
silêncio. O nosso segundo ponto de apoio.

,
Os Destinos da P11/são

Ao formular suas articulações sobre a pulsão e a Coisa (das


Ding) nos termos do vazio que se positiva na arte, Lacan já demarca
o tema do silêncio como estando recortado pelo grito que o funda.
O tema do grito será retomado por ele em ao menos outros dois
momentos, a saber: no Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamen-
tais da psicanálise, quando formula um dos objetos parciais da pulsão(a
voz), e no Seminário, livro 12:problemas cruciais da psicanálise, ao comen-
tar o quadro O Grito, de Munch.
Sobre o conceito de objeto-voz, objeto do delírio, Lacan
diz que a voz se dissimula por trás da fala e de seu dito, e que ela
como objeto não é o som e sim "um real sem duração que surge se
apagando quando alguma coisa é intimada pelo Outro" 1• Refere-se
não à voz modulada, mas à voz articulada, imperativa e afirma que
"o ouvido é, no campo do Inconsciente, o único orifício que não se
pode fechar" 2•
Assim a pulsão invocadora supõe o grito, que em princípio
não é apelo, passando da circulação da pulsão de morte para o
objeto a, uma vez que a ele (grito) responde a voz do Outro - voz
na qual se marcará seu desejo. A voz como objeto da pulsão diz
respeito, portanto, a um
fazer-se vozpara atingir o ouvido do Outro, e conseguir que o Outro emita
sua VOZ; que finalmente ressoa no vazio do ouvido do sujeito, onde a fivela
se fecha. A voz emitida na invocação, e visando a umfazer-se ouvir, vai em
direção ao Outro e não retorna para o Sfffeito. 3

Logo, é a voz da invocação - voz 9ue procura a voz -


que deverá se perder ao se emitir, pois seu movimento indica que
procura ouvir a voz(objeto), a resposta do Outro.
A propósito de exemplificar a voz objeto no quadro de
Munch, Lacan insiste que ela é totalmente diferente da modulação,
assim como das formas mais reduzidas da linguagem, porque é
mais simples que elas, faltando-lhe "a implosão, a explosão e o

354
Maria Udia A"aes Alencar

corte"4 • Voltaremos a esse ponto mais adiante, já que essa referência


tem lugar oportuno no terreno da semiótica musical.
Lacan segue definindo o nó que o grito e o silêncio articu-
lam, pois "o grito é o sorvedouro por onde o silêncio se precipita".
Esse nó, que se articula com a Coisa, por ressoar no espaço onde a
Coisa falta, cava o "buraco do grito", buraco intransponível, uma
espécie de buraco interior, "que a pulsão de morte contorna, para,
cm seguida, retornar à superfície"'.
Voltando à música, como articulá-la com o grito, o silêncio
e o buraco? Citaremos dois episódios que, por envolverem uma
cantora e um compositor, problematizam os conceitos que estamos
querendo implicar: a voz-objeto e a voz na música.
Comenta-se entre os fãs que, no final da década de 1960, a
então "maior cantora da América" estava sendo entrevistada num
programa da 1V americana. Falamos de J anis J oplin, um ídolo pop
que dispensa apresentações. Sua voz ainda está marcada em toda
uma geração. Quando já ia longe a entrevista começam a ser exibi-
das numa tela à parte as imagens de pessoas que compartilharam a
trajetória da artista numa espécie de programa interativo, e entre
elas surge na tela sua mãe. Uma mãe que elogia, que idealiza sua
"filha maravilhosa" e que, ao final, atira a questão: "Eu só não con-
sigo entender, minha filha, porque é que você grita tanto!?", ao que,
de pronto, Janis retruca: "É prá ver se você me escuta!"
Cortemos a cena. Mudemo11 de plano. Não queremos sa-
ber porque ela "grita tanto". Queremos seu "grito". Seguimos com
seu grito, arrastados que somos pela voz que canta. Agarrados por algo
que nos enreda, nos arrebata, com o qual queremos ensurdecer sem
medo, oscilando entre a angústia e o fascínio, tomados pelas modula-
ções harmônicas dessa voz, mas sem sequer ouvir o que ela nos diz.
Recorrendo a Roland Barthes em seus ensaios sobre a fruição
da música cantada, diríamos, com ele, que somos levados pela "voz

355
Os Destinos da Pulsão

que canta, esse espaço muito preciso em que uma língua encontra
uma voz e faz ouvir, a quem sabe escutar, o que se pode chamar seu
'grão' :a voz não é a expiração, é essa materialidade do corpo, ema-
nada da garganta, espaço onde o metal fônico adquire consistência
e se recorta" 6• E ainda com Barthes,
a voz situa-se na articulação entre o corpo e o discurso, e é nesse intervalo
de vaivém que a escuta pode realiZflr-se. Escutar alguém, ouvir sua VOZJ
exige porparte de quem escuta uma atenção aberta a esse intervalo entre o
corpo e o discurso, e que não se limita nem à impressão exercida pela VOZJ
nem à expressão do discurso. O que é oferecido para ser ouvido por essa
escuta é exatamente aquilo que o indivíduo que fala não diz: a trama
inconsciente que associa seu corpo como espaço de seu discurso. 1
Ao tentar definir a fruição do "grão" da voz pelo que na
língua não quer dizer nada, pelo que é pura volúpia de suas letras,
Barthes aponta para a dimensão de gozo, porque é com ele que se
canta e que se frui o canto na dimensão do corpo e não da alma. E
não implica essa fonética em "ouvir vozes"? - o autor se pergunta,
não seria a verdade da voz o ser alucinado?
O segundo episódio que recolhemos é a narração de um com-
positor de um momento particular de sua criação musical. Diz ele:
Pediram-me, outro dia, de uma hora prá outra, que compusesse uma peça
para um quarteto de cordas. Per:?,untei quanto tempo eu tinha para isso e
a respostafoi: não tem tempo. É prájá, éprá ontem. Isolei-me no silêncio/
escuro do meu quarto à espera, premido pela Ur:?,ência do pedido, visto que a
única condição era a pressa, e a liberdade de escolha, de resto, era total -
'Faça como quiser, queremos apeça'. Como eu quiser?Qual nada. Não fiz
nada. R.ecolhi-me ao nada, ao silêncio. Ative-me a não pensar em nada. E,
curioso, me dei conta de repente que duas linhas melódicas distintas, não-
sonoras (pois tudo era silêncio no escuro do meu quarto), na forma de dois
sons diferentes de trompetes se impuseram à minha escuta, em súbita
expansão no espaço-tempo. Surpreso, urgia me incluir nesse processo, o
quefiZ: Procurei rapidamente registrar as duas linhas, e tratei de ''esgarçar"
sua harmonia, abusar o que pudesse de seus limites (tonais) interpondo-
lhes súbitas texturas (de cordas,já que me pediram), pois que expandindo

356
Maria Udia A,raes Alencar

e contraindo o campo, deslocando ou suspendendo seus acentos, punha-se


em marcha um talprocesso, instável e estável a cada novo ponto, tecendo um
alinhavo entre o som e o silêncio. Aí, parou. A peça estava pronta, eu podia
assiná-la naquele instante.

Retomando a afirmação de Lacan de que faltam à voz-


objeto as condições de implosão, de explosão e de corte, essas
mesmas condições estão ativas na voz modulada, na voz-que-canta,
mas não sem que um resto caia no plano do discurso musical, não
sem que algo do que articula o som e o sentido se perca. Sem essa
operação de perda, que implica expandir (explodir), contrair
(implodir) o campo das imagens acústicas, não poderia se fazer o
corte (recorte) que cria cada obra como obra singular.
Se criar em música implica em velar a voz-objeto, torná-la
afônica, há que sobreviver da voz um resto, um mínimo vestígio. E
mesmo muda, a pulsão tem que premir a invocação e contornar,
infinita, o "grão" da voz. Pois, para além da dor de Janis e da pressa
de compor do nosso músico, mas tecendo com isso, se arma a tela,
anteparo melódico, que na voz dela se expande e goza do "grão"
que apela ao Outro; e nos trompetes que ele escuta se transmutam,
em metal fônico, vozes-vibratos-sopros daqueles que não se ou-
vem por orelhas, que são imagens (eidos), mas que são acústicas (es-
tão no acervo do compositor) e atravessam no processo da inven-
tiva o tráfego imagético, e fazem nó entre silêncio e som.

Referêndas bibliográficas

BARTHES, R. "O Grão da Voz". Em: O Óbvio e o Obtuso (1982). Rio de


Janeiro, Nova Fronteira, 1990.
BARTHES, R. "A Escuta". Em: O Óbvio e o Obtuso. Op. cit.
LACAN, J. O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise
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LACAN, J. O Seminário, livro 12: problemas cruciais para a psicanálise (1965).
Inédito.

357
SINTOMA E SUBLIMAÇÃO

Rainer Mello
Membro aderente da Escola Brasileira de Psicanálise.

"Minha vida está vazia, sem sentido!"


É assim que o sujeito se apresenta após ter conhecido uma
mulher jovem e virgem. A relação com esta mulher é sob uma
condição: permanecer virgem. Assim torna-se impossível gozar deste
objeto e é desse modo que esta mulher causa seu desejo. Com a
esposa sucede o contrário: ela se oferece como objeto de amor
mas ele não a deseja. Assim não pode gozar desse objeto.
Ternos aí a forma de expressão da divisão subjetiva na di-
mensão do amor. Um homem dividido entre duas mulheres com
as quais não pode gozar seja porque uma quer ser santa, isto é, não
quer gozar, seja porque a outra quer ser puta, isto é, quer gozar.
O problema da divisão subjetiva estaria facilmente solucio-
nado se ele fizesse a escolha da mulher que quer gozar, mas não é
está a que ele deseja; a mulher que ele verdadeiramente deseja é a
que quer permanecer virgem, isto é, a que não quer gozar.
\
A ironia consiste no fato de que um homem possui duas
mulheres e, no entanto, continua insatisfeito. Por isso, conclui: "Mi-
nha vida está vazia, sem sentido". Sem sentido sexual, valeria a pena
acrescentar, dado que a insatisfação de que se trata neste caso diz
respeito ao gozo sexual.
Os Destinos da Pulsão

Contudo, gostaria de deslocar o destaque da insatisfação


do desejo neste caso para a impossibilidade da escolha do objeto,
pois me parece que o sentimento de vazio do qual este sujeito se
queixa diz respeito à impossibilidade de decidir claramente a esco-
lha do objeto de amor. Creio que se trata aí da dúvida sistemática,
metódica, estrutural do sujeito, que se exprime na vida amorosa como
impossibilidade de decidir entre a virgem santa ou a mulher puta, ou
seja, a divisão subjetiva se exprimindo na divisão do objeto de amor.
Esta disjunção - ou a santa ou a puta, ou a virgem ou a
que goza - se repercute em um sonho no qual ele se encontra em
uma estrada e em determinado trecho dela aparece uma encruzilha-
da; de um lado está a esposa e do outro a analista; uma pode gozar
e a outra não pode. A outra é um objeto intocável e acredito que é
assim que se constitui o analista como objeto causa de desejo, cons-
tituição essencial para o estabelecimento do discurso do analista na
experiência psicanalítica.

Sublimação e recalque

Quando Freud escreve o segundo ensaio sobre a teoria da


sexualidade - a sexualidade infantil- ao tratar da pulsão escópica,
dcs taca a relação entre a pulsão de ver-ser-visto e as perversões
correspondentes - escopofilia (voyeurismo) e exibicionismo. Nes-
ta oportunidade ele diz que a pulsão escópica tende a transformar-
se em desejo de saber - Wisstrieb - , nomeando sublimação o
mecanismo desta transformação.
A sublimação é, então, definida como uma transformação \
da finalidade da pulsão, que antes era escópica e depois se torna
desejo de saber; antes era curiosidade de ver-ser-visto e depois se
\
torna saber. A operação significante que transforma a finalidade da \.
pulsão escópica se chama sublimação e este é o destino, a vicissitude
que atingiu a finalidade da pulsão.

360
Rmner Mel/o

Há um outro destino da pulsão que Freud evoca neste tex-


to, que não incide sobre a finalidade mas sobre o impulso - o
Drang - da pulsão e que consiste em reprimir, em recalcar o im-
pulso da pulsão. Trata-se da Verdrangung - do recalcamento.
Tomemos o mesmo exemplo (da pulsão escópica) que uti-
lizamos para definir a sublimação. A partir de determinado mo-
mento a criança descobre o sentimento de vergonha em relação ao
ver-ser-visto, sentimento que não existia antes. Por exemplo, estava
acostumada a ficar despida diante dos adultos, mas doravante não
quer mais exibir-se assim. Isto se considerarmos apenas nosso exem-
plo no nível do comportamento, isto é, no nível imaginário. Pois
podíamos considerá-lo também no nível verbal, no nível simbólico.
Dizemos então que a partir da introdução do sentimento
de vergonha a pulsão escópica, o desejo de ver-ser-visto será
recalcado só aparecendo de forma indireta retórica, disfarçada ou
deformada; enfim, simbolizada.
Poderíamos supor que tenha ocorrido alguma circunstância
peculiar, alguma contingência que levou o prazer de ver-ser-visto a
transformar-se em desprazer e que o recalque do impulso
escopofilico tem como resultado a formação do sintoma.

Sublimação e perversão

Podemos concluir que os destinos da pulsão aqui conside-


rados - sublimação e recalque - são diitintos, dado que incidem
sobre diferentes termos da pulsão - a finalidade e o impulso - e
ocasionam resultados diversos - perversão ou neurose.
Parece possível dizer que o caso permite suscitar a discus-
são dos conceitos de sintoma e recalque, de sublimação e perver-
são, sobretudo se considerarmos o texto de 1915 sobre os destinos
da pulsão. Lá, a pulsão é parcial, composta de quatro termos e

361
Os Destinos da Pulsão

quatro destinos. Cada destino corresponde a cada termo. Assim, à


fonte da pulsão corresponde a inversão do sujeito ao objeto; ao
objeto da pulsão corresponde a reversão ao seu oposto; ao impul-
so da pulsão corresponde o recalque e à finalidade da pulsão
corresponde a sublimação.
O caso do sujeito aqui considerado parece poder ilustrar
esta conclusão, uma vez que tendo desfeito a relação com a mulher
virgem, passou a cortejar uma colegial também virgem. Parece pos-
sível dizer que vai se configurando um traço de perversão de natu-
reza escopoftlica em um sujeito neurótico obsessivo. Vai se consti-
tuindo o modo de gozo particular a este sujeito que vou me perrrú-
tir chamar de gozar das virgens. O modo particular de gozo desse
sujeito consiste em cortejar uma mulher impossível de ser tocada, uma
mulher apenas para ser vista ou exibida. Ele vai até a escola da colegial
e a acompanha até em casa. Evidentemente, ele tenta racionalizar isto
atribuindo que a natureza de sua arrúzade pela menina é paternal.
Finalmente, parece possível dizer que a divisão subjetiva
corresponda à divisão do desejo e do gozo. Digamos que o sujeito
do caso em questão deseja um objeto de amor impossível e goza
de exibir este objeto ao olhar do outro. E digamos que é desse
modo que ele exprime a sua divisão.

Referêndas Bibliográficas

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FREUD, S. "Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade" (1905). Em: Obras
cot11p!etas, vol. VII. Rio de Janeiro, Imago, 1980.
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(l'>L'.). ld1·m.

362
Rainer Mel/o

FREUD, S "O tabu da virgindade" (1918 (1917]). Idem.


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QUINET, A. ''.A pulsão na análise: sintoma e acting-out". Opção Lacaniana, n.
18, 1997.

363
Embora considerasse inconclusa sua nome de pai. Visando responder aos
teoria das pulsões, Freud não se efeitos de criação, l ,acan nos lq~ou a
absteve de enunciá-las como mitos seguinte questào: e como vive a pulsão
indispensáveis ao analista, pbis aquele lJUe k:You sua análise até o fim?
somente a ação mutuamente oposta
Os trabalhos que compiiem o presente
pprém conjunta das pulsões poderia·
lino foram reunidos cm três grandes
explicar os paradoxos da clínica ou da
partes. A primeira,.- 1p11/.rdn e St'IIS
cultura. Os lacaios da Morte, pôde
destinos, como indica o trabalho de
dizer Freud, não são outros que'.ps
François J,eguil, privilegia a
.~diães da Vida.
transmissão da psicanálise e o saber na
A Trieb, conceito-limite na teoria prática do tratamento. Os textos da
freudiana, vem responder pela captura segunda parte indagam e esclarecem as
do ser humano numa verdadeira rclaçiies entre si11to111r1 e s11hli111t1{áo,
gramática das substituições. Nela verificando que do lugar do analista
deslizam o sujeito, o verbo e o objeto. "não há, na experiência, o retorno de
Sem jamais alcançar a satisfação total, um sublime verdadeiro". Finalmente,
a pulsão não cede de sua exigência. os trabalhos reunidos cm O olhar e r1
Diante dela nenhuma fuga se mostra l'OZ circunscrevem mais
eficaz, ela que, no entanto, abandona detalhadamente o que a psicanálise
prbntamente o objeto. Metamorfoseia- tem a dizer acerca destes objetos e
se no sintoma, e padece do destino da exploram o que faz função de criação
sublimação. na arte. Retorna-se à \'ercladc da
conclusão de Freud: a criação 11crmitt:
No testemunho de Lacan foi o
obter através da fantasia a satisfação
envelope formal do sintoma o
ou gozo aprisionada na neurose.
verdadeiro rastro clínico que o
conduziu a Freud, ao vê-lo invertido
na poesia involuntária de sua Aimée;
esclareceu que a pulsão se transforma
r í·ra />o/lo
em demanda no sujeito da neurose, e
acrescentou à série freudiana o que
Kalimeros - do grego kalós, belo, e·
hoje chamamos de "os objetos
lacanianos da pulsão": o olhar, a voz, e hlÍmerns, desejo apaixonado, desejo de
o nada. amor.
"Todos os dit1s 11t1sce _. !fi·odi/1', <' para
O percurso do sintoma ao sinthoma se
rdo111ar 110 p1ríp1io J>/{!/ár111111 eq11írocn q11i /,
estende do curável ao incurável. Há
rtff('(li!n, 1111111 l'l'lrladám l'lilllolr{l!,Ítl, ro1t"
sempre o resto de um gozo singular, o
rn11d11ir esse disl'm:ro m11111.r pt1lal'ms -
modo de gozar do inconsciente que é
kalcmera, holll-dia, kalimeros, ho///-dit1 r'
próprio a cada um. Numa de suas
helo deHjo - da l'('//1•:ü)o .mhre o q11f lhes
últimas conferências, Lacan observou
//"011.w t1q11i q11t111/n ú rel,1ráo do c1111or m111
que o sintoma é o que muitos sujeitos
nl,l!,IIIIJa cnisa qm, desde Sl'lllj>re, ch,1111011-se
têm de mais real, que ele vem do real
efl'J"l/() t/ll///1'". ' . '
amarrar o .nó do sujeito, como um
quarto elo fazendo.as vezes de um JacquesLacan, O Se//li11ári(1, Íit'l'n 8.

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