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I. A Situação Contemporânea
Senhoras e senhores, [deixem-me] chegar agora ao assunto em si, que está ligando
ao que tenho a dizer sobre o drama da humanidade na situação contemporânea. Agora, a
primeira coisa que talvez seja incomum, mesmo se usada como termo técnico, é falar de
um drama da humanidade e não de um drama do homem. Veremos aqui porque há uma
diferença importante.
Mas isso nos dá um ponto de partida; temos que ser claros sobre isso: Qual é a
concepção atual do homem em um sentido público? Você deve sempre distinguir entre
como alguns filósofos especialistas lidam com tais problemas e o que é geralmente aceito
e geralmente conhecido. Portanto, eu quero colocar primeiro, simplesmente enumerando-
os, os termos em que o homem moderno é popularmente caracterizado de uma forma
tópica geral. Então, em oposição, [quero] formular como as mesmas características devem
ser caracterizadas a partir de uma posição crítica. Poderão ver melhor, por meio de uma
clara enumeração de categorias, que existe uma grande lacuna entre a concepção
publicamente aceita e o que é feito hoje na filosofia.
E isso é, que toda a nossa civilização ocidental, distinta digamos, de uma civilização
grega ou civilização egípcia, é uma civilização que cresceu através da aculturação. Ela
não cresce na base original das antigas civilizações cósmicas e do mito cosmológico,
puxando para sua substância daquela fase mais antiga, mas começa no nível relativamente
primitivo das tribos germânicas que assumem uma civilização altamente desenvolvida,
uma civilização mediterrânea de aproximadamente do século IV, V e VI. Este processo
de aculturação está agora exposto a grandes perigos, porque se esses conceitos culturais
que foram adquiridos, mas não foram originalmente fundamentados pela civilização, se
perderem, não há nada em que se possa recuar. Distinguindo-se de uma civilização grega
ou civilização egípcia, não há arcaísmo, por exemplo, possível na civilização ocidental,
porque a civilização ocidental não tem um período arcaico. Não existe tal coisa na
civilização ocidental como, por exemplo, o final do período egípcio, em que se pode
recorrer à escultura e às formas de arte do terceiro milênio a.C. E não se pode recorrer
aos vikings; eles são muito [remotos] de qualquer civilização desenvolvida.
Esse é um dos problemas do século XX. Essa é a razão pela qual tantas pessoas
hoje, uma vez que não temos um mito próprio em nossa civilização, voltaram-se agora à
arqueologia, à religião comparada, à literatura comparada e a assuntos similares, porque
esse é o lugar onde podem recapturar a substância que em nossa civilização aculturada e
agora desculturada está se perdendo. É por isso que as pessoas de repente se tornam zen-
budistas. Você tem que se tornar um zen-budista porque não há nada comparável na
civilização ocidental a qual você possa recuar, se um dogmatismo tiver acabado, como o
cristão tem na Era do Iluminismo. Portanto, nesse sentido, a partir do século XIX, temos
um desenvolvimento peculiar de construções históricas em que toda a história anterior é
descartada. Uma espécie de começo original é feito, sempre no presente, com o presente
estado de consciência, seja no sistema hegeliano, ou comteano, ou marxista, ou qualquer
um dos [outros] sistemas ideológicos do século XIX – uma espécie de construção
apocalíptica pela qual toda a história passada é descartada como mais ou menos
irrelevante, ou tendo sua relevância apenas como conduzindo ao seu ponto atual, [...] o
ponto moderno em que todos nós temos que viver. Vivendo em um ponto, jogando fora
toda a história passada, essa é talvez a característica do moderno humor apocalíptico.
Deve-se, no entanto, introduzir uma ligeira diferenciação (sobre a qual terei mais [a
dizer] na última palestra): os grandes pensadores apocalípticos do século XIX – acabei de
mencioná-los, homens como Hegel, Comte ou Marx – ainda baseiam sua visão
apocalíptica da história em um conhecimento muito minucioso de materiais históricos –
eles próprios são historiadores muito bons – enquanto hoje a posição apocalíptica
resultante geralmente é assumida, mas não assumida com todo o conhecimento histórico
que entrou em sua formação. Portanto, temos um peculiar apocalipse epigonal no século
XX que, por exemplo, resulta em uma atitude do que hoje na Rússia é chamada de
Comunismo Soviético, um tipo especial de comunismo que não é idêntico ao marxismo.
Os marxistas genuínos se opõem a esse tipo de comunismo. Há uma revolta interna, dos
marxistas contra os comunistas, que são o tipo epigonal do qual os burocratas são
recrutados. Os intelectuais voltariam a Hegel e Marx porque são onde se encontram as
origens, as origens existenciais desse apocalíptico. Assim, dessa maneira você tem um
dogmatismo epigonal peculiar que nem mesmo retém o conhecimento histórico mais
antigo que ainda estava presente nas décadas de 1830, 1840 e 1850. Foi-se tudo.
Se você tiver o problema do tempo aberto, você sempre terá que considerar que em
cada ponto de presença nesta linha [Voegelin traçou uma linha no quadro] nós não
estamos nos movendo somente nesta linha, mas na abertura para a realidade divina, de
modo que cada ponto de presença é, como T.S. Eliot formulou, um ponto de intersecção
do tempo com a eternidade. Esse é o ponto da presença. Assim, toda a série do tempo não
seria uma sequência em uma linha, mas uma série de pontos presentes nos quais nenhum
jamais é passado, mas apenas passado em relação ao seu presente, não realmente passado.
Ontologicamente, na verdade, é sempre em relação à presença, que é a mesma presença
que constitui o meu presente aqui e agora. Nesta concepção de uma presença divina, que
é a presença em cada ponto presente na linha, depende toda concepção de história que faz
sentido, todo sentido de história. Não haveria motivo algum para nos preocuparmos com
o que aconteceu há três mil anos, ou três minutos atrás, a menos que houvesse uma razão
talvez para relembrar, porque está ligado ao nosso ponto atual três minutos depois, porque
tem uma presença assim como o nosso ponto tem uma presença. Assim, uma formulação
diagramática adequada não seria a linha, mas você teria que fazer com que fosse algo
como um fluxo de presença, como eu a chamo, com uma direção na qual há
permanentemente uma tensão entre os polos imanentes e transcendentes. Isso seria um
bom diagrama de tempo, mas não uma linha reta.
Mas eu deveria dizer mais algumas palavras sobre isso, porque, como eu disse, esse
ponto de linha, esse diagrama de linhas de tempo, surgiu no século XVIII e Kant tinha já
seu problema com essa concepção de uma linha reta do tempo. Porque ele tinha que se
perguntar: se nós temos uma linha tão direta do tempo indo em uma direção e se
aproximando de um ponto de perfeição em algum lugar num futuro indefinido, em um
futuro indefinido você teria, então, por um lado, o “Indefinido” e, por outro lado, em letras
maiúsculas, a “PERFEIÇÃO”. Essa é a sua concepção de história, a história como uma
abordagem indefinida ao reino da perfeição. E então ele se perguntava: quão grande é a
nossa perfeição em qualquer tempo finito em que vivemos? – porque, afinal de contas,
não vivemos infinitamente, mas apenas por um período de tempo.
Agora, pegue um pedaço finito de tempo, um pequeno “t” (que pode representar
dez anos ou cinquenta anos ou um século ou uma vida humana), e então se pergunte:
Quão grande é o progresso dentro desse tempo finito? E então você teria que formular
que esse tempo finito é igual a grande “PERFEIÇÃO”, de modo que a pequena
“perfeição” esteja relacionada à perfeição completa como “t” para infinito, que lhe dá
então a equação, “t” é o maiúsculo “T” vezes “t” pelo infinito, que é igual a...que?
[Membro da audiência:] “Zero.” Se você tem essa concepção de uma linha de tempo em
perfeição indefinida, todo progresso finito no tempo é zero, então esse é um termo ilógico.
Claro que você pode pegar outra situação. Você pode supor que você está no meio
do fluxo e você é infinito: então o fluxo passaria por você. Você seria uma constante em
algum momento, e então, de fato, você estaria na corrente fluindo com ela para o futuro
– o que tem outra consequência muito interessante que não posso entrar agora.
Mas vejam, só quero afrouxar um pouco a sua ideia sobre o tempo. Não é uma
questão fácil, mas você pode usar todo tipo de simbolismo. Você deve estar ciente de que
você usa simbolismos, porque você usa simbolismos, e que a pergunta “Qual é o
simbolismo adequado a ser usado?” só pode ser resolvida por uma análise da realidade, e
não apenas falando sobre o tempo. É preciso analisar a realidade. Aqui estou usando o
conceito do fluxo de presença, ao qual terei que voltar agora, em detalhes. Essa é a posição
geral da história que usarei aqui.
O título dessas palestras é “O Drama da Humanidade”. Eles não são sobre o homem,
mas sobre a nossa humanidade. Ora, por quê? Estamos acostumados, por exemplo, a falar
sobre a natureza do homem, e então você geralmente tem as grandes lutas entre os adeptos
da filosofia clássica, que lhe dirão que a natureza do homem é uma constante e os
intelectuais excitados apocalipticamente, que lhe dirão que a natureza do homem muda e
que mudará cada vez mais no futuro, [que] todas as nossas expectativas para o futuro e
para um novo reino na terra dependem de mudanças na natureza do homem. Agora,
obviamente, aqui [temos] novamente um problema lógico, porque se pela natureza de
qualquer coisa você quer dizer os recursos constantes, eles não podem mudar, porque
então eles não seriam constantes. Isso é logicamente impossível: por definição, uma
natureza não pode mudar.
Tal processo da alma humana (ou o que quer que você queira chamá-la onde este
processo ocorre, porque não ocorre no organismo, mas é um processo mental ou
espiritual) produziu sua própria forma adequada de simbolização que é chamado
autobiografia. Onde quer que haja consciência do homem em processo, o problema da
autobiografia começa a se desenvolver como um assunto interessante. Caso contrário,
você teria apenas um tipo sólido, que nunca muda. Mas quando você se torna consciente
dessa mudança, da importância da mudança, os problemas autobiográficos começam a se
apresentar. Também na antiguidade, é aí que começa a autobiografia. Sempre temos o
problema de que, por um lado, existem características estáveis no homem, por outro lado,
há um processo em andamento, especialmente o processo de descobrir que o homem
possui características estáveis. Porque o homem como assunto a ser definido em qualquer
termos em tudo não é onipresente na história, mas surge na civilização grega com
definições específicas do homem como, por exemplo, o animal rationale (animal
racional), o zoon noun echon – em grego um animal que tem a mente ou nous ou razão –
e tal definição em si é um evento na história da humanidade.
Agora, uma característica deste evento, como aconteceu na filosofia grega, é que
resulta uma formulação da natureza do homem em termos estáveis. Tal definição como
“o homem é um animal racional”, animal rationale, é o resultado; mas não incluído nesta
observação [é o fato] de que a observação em si é um novo evento na história. Com isso,
você tem uma estrutura peculiar de toda filosofia clássica da ordem. Você tem uma visão
da estrutura pessoal do homem como uma estrutura estável em uma dada situação da polis
tardia.
Isso nos deixa com várias definições com as quais posso concluir esta seção. A
Humanidade significa o homem em um modo de compreender a si mesmo em sua relação
com Deus, mundo e sociedade, e esses modos mudam. A História seria o drama (se um
significado no qual pode ser descoberta) da humanidade, da auto-compreensão do
homem. Com isso quero deixar a parte introdutória, na esperança de que tenha cumprido
minhas obrigações a esse respeito e possa agora abordar o assunto das três palestras.
Aqui temos que lidar com o plano das três palestras. Desenvolverei apenas a
primeira palestra e mencionarei as outras. Os títulos das três palestras são “O Homem no
Cosmos”, “A Epifania do Homem” e “O Homem na Revolta”.
Vou agora dar novamente apenas em forma de diagrama – porque às vezes é mais
persuasivo do que qualquer outra declaração elaborada – a relação desses três tópicos
entre si. Se você considerar o nível da experiência cósmica, um belo pudim como esse
[Voegelin desenha um diagrama no quadro], como incluindo todas as realidades, como
homem, Deus, céu, terra, sociedade, e Deus sabe mais o quê: com essa ordem dada, você
tem uma espécie de comunidade ordenada de parceiros em toda essa realidade global.
Quando, nessa realidade global, surge o elemento da consciência no homem até o nível
da autoconsciência, você receberá um pequeno globo neste sentido, representando a
consciência do homem em que ele está consciente de ser em relação ao fundamento divino
da existência. Essa é a constante real de consciência quando aparece. Agora, isso seria
um evento dentro da realidade cósmica, a diferenciação da consciência.
Eu quero especialmente chamar sua atenção para o problema de que os deuses são
intra-cósmicos. Não existe tal coisa como um Deus transcendente ao mundo em qualquer
civilização cosmológica; e por um tempo muito longo, mesmo na revelação e na filosofia,
não há Deus transcendente ao mundo. Esse é um problema muito peculiar, como esse
problema surge. Mas nas civilizações cosmológicas, os deuses são intra-cósmicos, parte
do cosmos.
Com isso em mente, deixe-me dizer uma palavra sobre as formas expressivas, as
simbolizações, nas quais tal ideia, tal experiência, é expressa. Geralmente é chamada de
mito. E aqui a ciência prática ainda está em considerável dilema metodológico. Os
religiosos e mitólogos e arqueólogos comparados usualmente assinam as antigas
concepções de mito, que estão enraizadas na fenomenologia geral da religião. Isso é
[dizer] que eles são fundamentalistas: o fenômeno de um símbolo é aproveitado e não se
volta para a experiência que o produziu. Portanto, se você considerar o mito como o
fenômeno de um símbolo, chegará a tal definição do mito que encontra na obra Mito e
Realidade de Eliade. Deixe-me ler isso para você, porque assim você verá mais
facilmente qual é o novo problema. Eliade define o mito:
O mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo
primordial, o tempo fabuloso do “princípio”. Em outros termos, o mito narra como, graças
às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade
total, o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um
comportamento humano, uma instituição. É sempre, portanto, a narrativa de uma “criação”:
ele relata de que modo algo foi produzido e começou a ser.
Contra essa definição muito aceita de mito, gostaria de fazer as seguintes exceções:
O segundo ponto é que os deuses são designados como “seres sobrenaturais”. Isso,
é claro, é inadmissível. O termo sobrenatural, em oposição ao natural, é a terminologia
escolástica muito usada por Tomás de Aquino. Do escolasticismo, como parte do dogma,
entrou no dogmatismo iluminista no século XVIII. Eliade é, ao contrário, um ideólogo do
Iluminismo a respeito dos escolásticos. Nesse contexto, falamos de sobrenatural em
oposição a natural. Como indiquei, nenhum homem que vive em uma civilização
cosmológica jamais soube que os deuses eram uma natureza suprema contra uma
natureza; havia o céu e a terra, os deuses e os homens e o rei, e tudo fazia parte dessa
parceria. Nada nele era mais natural do que qualquer outra coisa. Assim, os termos natural
e sobrenatural não fazem sentido quando usados anacronicamente em relação à
civilização cosmológica. Isso faz sentido no século XIII do escolasticismo, que faz
sentido no Iluminismo sob a influência das ciências naturais, mas não faz sentido quando
você lida com uma civilização antiga.
Por essa razão, não se pode aceitar essas definições nominalistas. Tem que se ter
uma definição realista, que é muito mais simples. Pode simplesmente dizer: o mito é
aquele corpo de símbolos que de fato foram encontrados adequados pelos membros de
tais civilizações para expressar suas experiências do cosmos em que viviam. Ninguém
pode objetar a isso – você simplesmente volta a fatos empíricos.
Agora deixe-me fazer bem que eu disse, que no mito você tem muitas coisas que
não são histórias. Por exemplo, listei nove tipos diferentes. Deixe-me apenas enumerá-
los; lidarei com dois deles como exemplos.
Aqui temos todos os tipos de literatura e expressões simbólicas, que são sempre
agrupadas como mitos e das quais apenas uma pequena parte tem o caráter de uma
história. Como já vimos da enumeração, todos os problemas e situações humanos com os
quais estamos familiarizados [são também mitos]. A questão da perda da existência, as
questões da alienação, da crise, do império, da crise pessoal, e assim por diante, todas
essas questões são objeto de expressão em um meio peculiar, então [não há] apenas uma
concepção peculiar disso ou daquilo.
Agora eu quero lhe dar um ou dois exemplos do que parece em tempos de crise, e
que expressão no meio da civilização cosmológica realmente é, o que parece se não é uma
história. Quero dar dois exemplos: um – talvez eu ainda possa fazer isso hoje – do ponto
de vista do governante, e o outro exemplo do ponto de vista do cidadão comum.
Agora aqui você vê o que é uma expressão mítica. Aqui um governante fala depois
que os hicsos foram expulsos do país. E agora vem, em dois pares ordenados, primeiro, a
conquista da rainha. Ela restaurou o que havia sido arruinado, e a característica da ruína
é: esses invasores governaram sem o deus sol. Assim, há regra sem regra apropriada: “e
Deus não agiu por ordem divina até a minha majestade”. Essa é a ordem que é mediada
pelo faraó dos deuses. Deus não deixou a ordem fluir de si mesmo através do faraó para
o império das pessoas que viviam no império. Essa é uma definição de desordem. Agora,
quando é restabelecido, o faraó é novamente o mediador da ordem divina para o povo,
graças ao deus.
Aqui está o problema. Nesse tipo de problema, você também tem os plebeus
sofrendo amargamente. Na famosa “Disputa de um homem, que quer cometer suicídio,
com sua Alma”, [o assunto] não é o faraó, mas um plebeu. Ele quer cometer suicídio
[porque] há desordem; ele não quer viver nesse tipo de império. (Eu só quero dar alguns
exemplos da questão, não posso dar toda a análise porque o tempo já avançou muito. Mas
pelo menos alguns exemplos.) Ele descreve o mundo social desordenado em que vive.
Agora olhe para as formulações: Elas são dadas em tercetos em que a primeira linha é
repetida. Ele diz, por exemplo,
Como uma sociedade moderna urbanizada, você poderia dizer. Lonely Crowd de
Riesman e tais paralelos surgem imediatamente. Ou:
E assim ele continua e continua com todas as metáforas da fuga desta realidade
como uma libertação de uma doença, uma libertação da prisão, uma libertação de uma
escuridão que faz você ver a luz, e assim por diante, e retornando a uma espécie de casa.
E o que deve resultar de tal fuga desta realidade sem sentido: uma espécie de julgamento
no Além. No último grupo de tercetos ele diz:
Aqui você tem quase uma análise completa de uma existência deficiente na
sociedade quando o ma'at, a ordem, desapareceu, ou a recuperação da verdade da
existência, no sentido da ordem divina que é necessária. Mas nesta situação particular
[há] o desespero que através de qualquer tipo de ação social [recuperação] poderia ser
alcançada. Portanto, o único curso sensato e significativo de ação seria o suicídio. Isso
traria o homem para a imortalidade, na companhia do deus sol, e ali reforçaria seu poder
de ordenação – novamente para o mundo, para a restauração do império do Egito.
Esta é uma condição egípcia, é claro, mas uma concepção revolucionária, porque
sob a concepção do império apenas o faraó é o mediador da ordem divina. Um único
egípcio não pode fazer nada sobre isso; ele só pode criar desordem. Quando aqui aparece
o homem solteiro, que por meio de suicídio se torna um deus vivo como o faraó na barca
do deus sol, ele se coloca no lugar do faraó.
Você teria que se juntar aos mortos na barca do deus sol para contar algo, e é por
isso que o suicídio se torna um problema. Se as instituições do império não estão mais
tão vivas que são um bloqueio absoluto à atividade individual, então você [só] pode entrar
no problema da ação revolucionária através de novos movimentos espirituais intelectuais
ou outros, com o centro da personalidade, um profeta ou algo parecido. [Aqui] isso ainda
não é possível. Deixe-me concluir lá. Na próxima vez, chegaremos à “Epifania do
Homem”, quando tais coisas se tornarem possíveis, [quando] tudo o que puder ser feito.
Muito obrigado.
III. A Epifania do Homem
Agora, com essa consciência, você teria que dizer que, quando se torna auto-
reflexiva, a consciência sempre tem um duplo sentido. Primeiro, é o sítio de participação
no fundamento divino. Segundo, é o sensorium pelo qual você se tornou consciente dessa
participação e a torna tópica e usa conceitos para descrevê-la. Assim, no nível filosófico
da experiência, a consciência é sempre o sítio e o sensorium. Portanto, quando [a
consciência] se torna consciente, [ela é] agora o centro de toda ordem. A ordem não está
mais lá simplesmente [como um dado]. Ainda existe essa ordem no cosmos, mas não é
em sua própria pessoa e na sociedade, a menos que você a produza em virtude da
compreensão de sua própria existência e de sua ordem na consciência. Portanto, você
encontra, por exemplo, na política clássica, que uma constituição paradigmática para a
sociedade pode ser desenvolvida com base em uma análise da consciência. A consciência
explodida na tela maior da sociedade entregará o tipo certo de constituição. Se você for
informado sobre a ordem correta de consciência, você pode descrever aproximadamente
qual seria a ordem correta para a sociedade. Nesse sentido, a consciência se torna o centro
de toda filosofia e especulação sobre problemas ou ordem.
Um outro par de conceitos que surgem em conexão com isso (eu usei isso até agora
sem explicá-lo mais) são os termos imanência e transcendência. O termo transcendência
provavelmente se origina com Platão, que o utilizou ocasionalmente na Politeia como a
epekeina, o Além. A Ideia, especialmente a ideia do Agathon, está além de todo o contexto
do mundo. Aqui você tem a ocasião em que surgem termos como imanência e
transcendência. Você pode falar do Deus que não é mais um deus intracósmico, como
um Deus transcendente ao mundo; ele é transcendente, e o mundo em relação àquele Deus
então se torna imanente. Nada é simplesmente transcendente e nada é simplesmente
imanente, mas imanência e transcendência são um par de correlativos que aparecem como
índices, ligados ao cosmos antigo, não tão diferenciado, e nunca devem ser usados
isoladamente.
Quando você tem uma experiência de participação e quer expressar seu conteúdo,
você desenvolve tais índices para os polos: um polo imanente do mundo e um polo
transcendente ao mundo, um Deus transcendente ao mundo e um conteúdo do mundo
imanente em relação àquele Deus, e assim por diante. Todas essas coisas não têm
significado, exceto no que diz respeito à experiência que as engendra. Se você os separar
da experiência que os engendra, eles se tornam letras mortas que não significam nada e
não se referem a nada. Vamos ser claros sobre isso. Há uma correlação entre os termos
consciência, transcendência, imanência, Deus transcendente, mundo imanente, e assim
por diante que não devem ser quebrados. Se você romper este triângulo da consciência
que engendra o símbolo da imanência e transcendência e falar de uma consciência sem
imanência ou transcendência, ou dizer que a consciência é imanente, ou se você fala de
uma realidade imanente sem uma realidade transcendente, ou de uma realidade
transcendente sem uma realidade imanente; se você quebrar de qualquer maneira e
objetificar esses símbolos linguísticos das experiências, você ficará irremediavelmente
em proposições sem sentido. Este triângulo nunca deve ser quebrado terminologicamente.
Agora isso é até onde a consciência se tornou o sítio de tal participação. Mas como
eu disse, há também um sensorium de tal participação, e você pode expressar o resultado
de tal dissociação do cosmos por (agora eu vou usar o termo em seu sentido técnico)
ideias, e nós podemos chamá-las as “ideias universais”. Você verá imediatamente por
quê. Porque quando esta consciência é reconhecida como o caráter específico humano –
o homem é a criatura que tem consciência de tal natureza que é auto-reflexiva e produz
tais símbolos linguísticos e assim por diante – e [você] diz, isso é especificamente
humano, você tem criou a ideia de homem que até agora não existia. É preciso estar ciente
disso. Não há ideia do homem antes dessa diferenciação filosófica. Há uma ideia do
homem e, se você levar o homem coletivamente ao longo da história, a ideia da
humanidade. A ideia do homem e da humanidade é uma ideia que surgiu concretamente,
por ocasião desse processo de diferenciação em que a consciência se torna autoconsciente
ou auto-reflexiva. Não há humanidade independente dessa experiência; caso contrário [o
termo] não faz sentido.
O problema real [por trás disso é que há uma tendência, um impulso, para descobrir
nos textos egípcios] a ideia de uma divindade universal já reconhecível no terceiro
milênio antes de Cristo. Isso é verdade. A divindade universal chega a uma expressão
aproximadamente boa no cristianismo, mas apenas aproximadamente, porque até o
cristianismo ainda está sobrecarregado com a ideia de que a divindade universal é, por
assim dizer, um privilégio dos cristãos. Todos nascidos antes de Cristo são mais ou menos
relegados ao limbo, se não ao inferno, porque ainda não estavam sob a divindade
universal. Como um problema, a extensão da [divindade] universal para o resto da
humanidade antes de Cristo foi conscientemente formulada pela primeira vez, penso eu,
por Tomás na Idade Média, e [a noção] não foi muito eficaz. Uma verdadeira filosofia da
história baseada no problema da divindade universal, como estou tentando aqui, por
exemplo, nunca foi feita, até onde sei. É uma ideia muito lenta no desenvolvimento.
Temos uma pré-história de dois mil anos antes de Cristo e uma pós-história de dois mil
anos depois de Cristo, e ainda não é, você poderia dizer, geralmente aceita. Ainda se faz
exceções a essa divindade universal como o único fundamento divino de todo ser.
A terceira ideia universal que surge nesta ocasião é o mundo como o mundo comum
de todos, com uma estrutura autônoma. Ou seja, o mundo não é nem homem, nem Deus,
nem o cosmos em que o céu e a terra, e reis e pessoas, e deuses, e assim por diante, são
abraçados indiscriminadamente, mas existe uma estrutura do mundo. Você tem uma ideia
universal do mundo que também é muito lenta no desenvolvimento. Você pode dizer que
a ideia universal do mundo foi totalmente desenvolvida apenas a partir do século XVI,
com o surgimento da ciência moderna. [Mas] como um problema, ele já está presente em
Aristóteles e no desenvolvimento da astrofísica pós-aristotélica em sua própria escola.
Estas são as três ideias principais que surgem: humanidade universal, divindade
universal, mundo universal. Vou me referir brevemente a eles como "os universais" que
surgiram naquela ocasião. O que eu disse para o triângulo de consciência, imanência e
transcendência [também é válido para eles]: você obtém os três como uma unidade ou
não obtém nada. Se você entregar um ou outro, todo esse sistema, ou todo esse aparato
de ideia que é inerente à exegese de tal experiência, entrará em colapso. Tal colapso
(temos que lidar com isso na terceira palestra) é uma das características do período
moderno. No geral, pelo menos no Ocidente, as pessoas concordam que temos um mundo
universal, mas não que tenhamos um homem universal e um Deus universal. Assim, você
vê que a divindade não é universal, mas será apropriada a certas partes do conteúdo
mundial, por exemplo, ao proletariado, ou a uma nação, ou a uma raça, e assim por diante.
Quando você torna a divindade imanente ao mundo, coloca-o no mundo, e seleciona um
fragmento do conteúdo do mundo e o dota com a qualidade da divindade universal, você
destruiu a tensão na qual esses universais devem permanecer. [Assim, isso deve ser
evitado], a menos que você queira causar um estrago horrível e se tornar completamente
irracional – às vezes com a consequência de uma doença mental, se o triângulo entrar em
colapso. O colapso do triângulo, dessas três ideias, é uma das características da história
moderna.
E isso continua então através do céu, o céu é tecido no mundo dos Gandharvas; os
Gandharvas nos mundos de Aditya (o sol), de Chandra (a lua), dos Nakshatras (as
estrelas), dos Devas (os deuses), de Indra (os deuses superiores), de Prajapati (deuses
ainda mais elevados) e finalmente os mundos de Brahman. O questionamento termina da
seguinte maneira, depois que Yajnavalkya explicou que tudo está tecido nos mundos de
Brahman.
“Em que então os mundos de Brahman são tecidos, como urdidura e trama?” (Essa garota
é persistente!)
Yajnavalkya disse: “Ó Gargi, não pergunte demais, para que sua cabeça não caia.
Você pergunta muito sobre uma divindade sobre a qual não devemos pedir muito. Não
pergunte muito, O Gargi”.
Depois disso, Gargi Vachaknavi manteve a paz.
Aqui você tem isso de uma forma muito simples. Você pode questionar através de
toda a hierarquia do ser. Não precisa estar na terminologia cosmológica. Você pode
questionar, como, digamos, Agostinho, através do mundo inorgânico, do mundo
orgânico, do vegetativo, do animal, do psicológico, até que você entre na esfera desse
ponto transcendente - da anima animada para Deus; você pode fazer isso dessa maneira
em uma descrição posterior da hierarquia do ser. Mas o problema está sempre
pressionando a pergunta: Qual é o fundamento e qual é o fundamento daquilo que você
determinou? até chegar ao [...] fundamento que não tem fundamento em si, o fundamento
sem [...] fundamento de todo ser. Isso é o que se chama Deus ou, neste caso, Brahman.
Se você quer uma definição de Deus, você pode dizer que, em tal processo de
questionamento, seria o ponto em que você esgotou todos os tipos conhecidos de
realidade e ainda não sabe o que é o fundamento; é o que é o fundamento, isso é Deus.
Essa seria a definição de Deus com base em tal questionamento, após o esgotamento de
todos os tipos conhecidos; o não típico, o que é o além. Esse é o caso indiano.
Agora, deixe-me dar outro exemplo, um que é muito mais elaborado e muito mais
bonito, chamado de Apocalipse de Abraão. O Apocalipse de Abraão é um documento dos
essênios, em algum lugar em torno do período de Cristo – apenas um pouco antes, apenas
um pouco depois, não se sabe exatamente. Ali o jovem Abraão relata seu tipo de
experiência pneumática. Eu gosto particularmente porque achei acidentalmente quando li
o romance de Thomas Mann, José e seus irmãos. O credo é o descrito por Thomas Mann.
Quando leio Thomas Mann, sempre me perguntei de onde ele tirou sua concepção
peculiar do credo e fé de Abraão, porque não está no Antigo Testamento. E quando eu li
o Apocalipse de Abraão [caps. 7–8] descobri que é de onde ele tirou, quase literalmente.
Esses dois exemplos devem ser suficientes para [nosso propósito], isto é, para
entender, para que saibamos sobre o que estamos falando. Agora temos que voltar aos
detalhes técnicos. Existem todos os tipos de transições. Deixe-me referir a alguns deles.
Mesmo no ambiente cosmológico, você pode especular sobre o fundamento. Enquanto o
problema do fundamento como fundamento [...] aparece apenas como um termo técnico
em filosofia, o fundamento, a busca pelo fundamento sempre se passa na esfera
cosmológica [também]. Portanto, você sempre encontra construções especulativas do
tipo: Quem é responsável pelo mundo e seu fenômeno? Você pode atribuir a origem do
mundo ou a criação do mundo a um deus ou outro. Os deuses favoritos no Egito, por
exemplo, são sempre os deuses elementares, o deus do sol, o deus do vento, o deus da
terra e assim por diante vários elementos, deuses da água, o Nilo – especulação sobre o
fundamento ainda na forma politeísta. Tais explicações variadas, você pode dizer, são
pluralisticamente coexistentes como explicações de como o mundo veio a ser o que é, e
como você é, e assim por diante.
Uma vez que esta dissociação tenha ocorrido, nós entramos no problema do
descarrilamento, [para] você pode mudar o assunto. A experiência original foi: Há um ser
real, o ser eminente que é o ser divino no Além. Mas você pode dizer: eu só tenho
experiência de coisas no mundo. Essas coisas existentes – isso é realidade, isso é ser; e
tudo o mais que você quer me dizer é simplesmente um absurdo, não está lá, não existe
tal coisa. Agora, se você tomar essa posição e simplesmente disser: Não há um
fundamento de ser, o assunto chegou ao fim, porque você usou esses termos que são
baseados na experiência da transcendência, de uma participação em uma base do ser, e
que são válidos apenas quando o triângulo, do qual falei antes, está preservado. Você
pegou uma parte do [triângulo] e decapitou o resto. Mas então, o que você fala, a parte
que você deseja preservar, é um absurdo, porque não existe um ser imanente sem o ser
transcendente, ao qual ele está em correlação, a base da experiência.
Mas também se pode dizer legitimamente: quero [reservar o termo] sendo para
todos os seres-coisas que existem, e eu chamo de existente o que existe, por exemplo, no
tempo e no espaço, incluindo o homem. Então alguém teria que continuar e dizer que este
fundamento é algo como uma realidade inexistente. É real, mas é inexistente. A divindade
não tem o modo de existência no tempo e no espaço; pode-se dizer isso. Se você quiser
falar sobre isso e reconhecer que ele não existe no tempo e no espaço, você não pode
simplesmente atribuir a ele os atributos mitológicos mais antigos. Você tem que
desenvolver uma lógica específica, a analogia do ser, para falar dessa realidade
transcendente que não está no tempo e no espaço.
Este problema da analogia do ser já era um problema em 500 a.C., mas recebeu sua
designação e foi totalmente desenvolvido na Suma Teológica de Tomás de Aquino. Aqui
você tem novamente um longo processo de cerca de 1700 anos ou mais, até que surge a
questão de como falar de uma realidade inexistente (isto é, uma realidade que não existe
no tempo e no espaço) e em que terminologia. Aplicando termos a ela analogicamente,
[termos] que tomo da minha experiência mundana, posso dizer que Deus dura todo o
tempo, Ele é onipresente, Ele é todo justo, Ele é todo o Bem e assim por diante. Mas esses
termos só têm significado em nossas relações humanas no mundo, e quando são [usados
como] uma resposta para [questões relativas a] Deus, eles só podem ser usados
analogicamente e não univocamente ou equivocadamente. Esse é um desenvolvimento
técnico em filosofia que, a seu modo, não pode ser superado. Você pode renunciar a falar
sobre os atributos de Deus em geral, mas se você os usa, você está na analogia do ser.
Essas são algumas das dificuldades técnicas relacionadas a ele.
Quando você tem essa consciência, você entra no problema de como reconstruir o
mundo inteiro que você dissociou com sua experiência de consciência, porque o mundo
continua mesmo agora que a consciência é descoberta. Agora que você descobriu que
existe um Deus transcendente no mundo, você tem que reconstruí-lo dizendo que as
coisas no mundo, como por exemplo na concepção platônica, se tornam coisas se elas
participarem das ideias transcendentes do mundo. Essa é uma maneira de interpretar isso.
Ou você precisa construir o sentido peculiar da consciência – o que isso significa?
Significa que você é – pense no Apocalipse de Abraão – em busca de um fundamento do
ser e você é chamado ou movido por esse fundamento do ser. Há uma dinâmica
experienciada e existe um vocabulário para essa dinâmica. Temos termos definidos como
fé, esperança e caridade, já desenvolvidos por Heráclito. E temos termos desenvolvidos
por Aristóteles para descrever a parte questionante, a zetesis; isto é, buscando e sendo
movido para a busca, a kinesis vinda do outro lado, o lado divino (algo muito semelhante
ao que no cristianismo se chama graça). Todo um vocabulário surge agora para descrever
a operação interior dessa consciência, toda a linguagem da descrição espiritual e
intelectual e da auto-expressão.
Nietzsche viu isso muito bem, porque se você se render àquela base clássica da
razão comum, não há razão particular para amar alguém. Você observa muito bem isso
empiricamente: não vejo razão para amar alguém, apenas olhar para esses [rostos], a
menos que eu os considere iguais no espírito divino. A divindade do espírito que está
presente em todos os outros [é o que] constitui o homem e a dignidade do homem e a
obrigação de ter respeito pelos outros homens. Esta divindade comum é formulada aqui
pela primeira vez. Como você vê no vocabulário cristão, o vocabulário filosófico foi
assumido; homonoia, a mentalidade semelhante e assim por diante isto é, o vocabulário
cristão: [Ele] foi tirado da “fé, esperança e caridade” de Heráclito; e aqui, do vocabulário
aristotélico.
Estes são os significados da razão, e quando todo este complexo é quebrado e você
escolhe isto ou aquilo e omite outra coisa, você entra novamente nas construções
desequilibradas, que constituem a característica da revolta. O que quero destacar aqui
especialmente hoje é que, com a Epifania do Homem, surgiu um sistema muito complexo
de símbolos, que [deve] ser mantido em equilíbrio adequado [e isso só pode ser feito
através de instituições e transmissão de ensino sobre tais assuntos. Você não pode
descobrir tudo por si mesmo. É preciso cultivar [os símbolos e mantê-los em equilíbrio];
isso tem que ser ensinado e transmitido em alguns processos educacionais e alguns
processos de ensino e assim por diante. Se esse equilíbrio for destruído pelo colapso das
instituições, no sentido de que essas [questões] não são mais ensinadas – pelas igrejas,
pelas escolas ou pelas universidades – então a sociedade não pode funcionar
adequadamente. Isso não significa que a sociedade irá quebrar imediatamente, porque
existe depois de toda a família e há tradições de costume e hábito que você aprende com
os pais e assim por diante, e a sociedade segue em frente por um tempo. Mas se
sistematicamente, ao longo de um século, o ensino em tais assuntos for interrompido,
então o conhecimento do problema [dos símbolos] se atrofiará e você terá esse problema
peculiar do analfabetismo ao qual me referi ontem. Você simplesmente não sabe mais do
que está falando. Então você vê porque esse método é tão perigoso. Você tem uma
construção racional realmente complicada, um corpo de símbolos a ser mantido em
equilíbrio, tão importante [para manter] a sociedade em equilíbrio como, por exemplo, a
continuação e tradição e ensino de rito e culto através de um sacerdócio organizado
sociedade cosmológica. Todas essas coisas também precisam ser transmitidas para
manter a sociedade em ordem. O que temos que fazer é manter essa estrutura intelectual
em ordem. Se todo um corpo, como a filosofia, é jogado fora ou distorcido,
inevitavelmente, as interpretações errôneas rastejam para dentro.
Bem, acho que talvez devesse concluir com isso hoje, porque qualquer outra coisa
levaria a problemas muito complicados. Deixe-me apenas [mencionar] um [assunto] que
eu tenho que lidar mais extensivamente amanhã. Isto é, essa busca pelo fundamento,
como eu disse, torna-se temática e é elaborada na ocasião do aparecimento da consciência,
no sentido auto-reflexivo, na filosofia. Mas a busca [do] fundamento e a construção de
simbolismos que incluem o fundamento e insistem no fundamento ocorrem antes da
filosofia. Terei que lidar com um desses [simbolismos] da próxima vez, com o
simbolismo da historiogênese; isto é, a construção unilinear da história [que decorre
continuamente] do terceiro milênio a.C. nas construções ideológicas mais recentes. É um
dos grandes simbolismos que vão desde as origens cosmológicas até o presente. É preciso
[entender] por que ele passa [até o presente] e por que ainda estamos preocupados com
exatamente os mesmos problemas na construção da história, como os sumérios e os
babilônios em 2000 a.C. Vou deixar isso para a próxima vez.
Deixe-me [resumir] o curso do argumento das duas primeiras palestras, para que
possamos continuar com ela. Na primeira palestra, desenvolvi a posição do homem no
cosmos. O homem no cosmos tem um certo tipo de autocompreensão; esse tipo de
autocompreensão é o que eu chamo de humanidade. Quando esse cosmos dissocia-se sob
o impacto do despertar da consciência, a autocompreensão cósmica do homem é
substituída por uma nova autocompreensão à luz da consciência da participação do
homem no divino. Temos então um novo tipo de humanidade, um novo tipo de homem
compreendendo a si próprio.
[Na última palestra], tive que passar pelas consequências desse avanço em direção
a um novo autocompreensão. A consequência é que a estrutura da consciência se torna
clara como uma tensão do homem em direção ao fundamento de sua existência; esse é o
conteúdo da consciência. Ao mesmo tempo, isso é o que [os filósofos clássicos]
chamavam de razão: ter consciência do fundamento de si mesmo e de todas as coisas.
Todo raciocínio de um fundamento tem sua origem na estrutura de uma mente que tem
um fundamento e é consciente de um fundamento. A menos que você estivesse consciente
de um fundamento e tivesse problemas de um fundamento, não haveria nenhuma questão
de fundamento, e você não teria lógica nem argumento científico – não há critérios [para
eles]. Nesse contexto, o termo razão adquire vários significados, porque, na filosofia
clássica, a razão é, por um lado, a razão humana pela qual o homem se entende como
estando em tensão em relação à base da existência; [por outro] a razão também tinha o
significado do próprio fundamento. Então, a própria tensão é chamada razão e assim por
diante – na razão como constituinte do homem e da razão como constituinte da sociedade.
Além disso, quando esta dissociação do cosmos no mundo e numa divindade
transcendente ao mundo ocorreu, todo o conteúdo mundial deve ser reconstruído sob este
novo aspecto, e temos os problemas da Ideia Platônica e da questão que uma coisa tem
forma através da participação na forma transcendente e assim por diante. Todas as coisas
que [...] aparecem no contexto de uma experiência primária do cosmos são o que são sem
necessidade adicional de construção. O novo fator que surge quando a consciência se
diferencia é, por um lado, a necessidade de construir, por outro lado, a possibilidade de
construir. Dada a necessidade de construir e, ao mesmo tempo, a aparência da
possibilidade de construir, você pode facilmente imaginar que se pode entrar em muita
má interpretação. [De fato], uma das consequências dessa aparência das possibilidades de
construção é, na verdade, um grande número de interpretações errôneas. Um bom
negócio, de certo tipo, de tal interpretação equivocada é peculiar ao período moderno,
com o qual eu quero lidar agora sob o título de “A Revolta do Homem”.
Deixe-me explicar brevemente o que quero dizer com isso. Na última hora,
expliquei que você tem a diferenciação da consciência no sentido de uma consciência de
que o homem tem uma base de existência e vive existencialmente em tensão em direção
a ela. Vamos simbolizar isso por uma linha com dois polos: do homem e do divino, ou
Deus. Com isso é dado, desde que eu tenho consciência reflexiva, um número de ideias
universais, como expliquei, uma ideia universal do homem que é caracterizado por essa
tensão. Ele é aquele que tem consciência – outras coisas no mundo não têm consciência
nesse sentido. Então a ideia universal da humanidade aparece, o homem e a humanidade.
Então, no polo de transcendência, surge agora a ideia de uma divindade universal sob a
qual todos os homens vivem, tornando-se homem pela sua presença sob a divindade
universal. Então o resto do mundo, agora com exceção do homem e da divindade, é um
mundo comum a todos – nós temos uma ideia universal do mundo nesse sentido. Essas
três ideias universais devem ser mantidas em equilíbrio. Você não pode isolar um contra
o outro porque assim que você isola um ou outro, os outros dois ficam sem sentidos.
Somente os três juntos são uma descrição adequada da realidade que antes era
experienciada na forma primária da experiência cósmica, e agora, no nível da consciência,
se divide nesses três universais, que cobrem toda a realidade. No nível da consciência, a
integridade da tensão, o equilíbrio da tensão, você pode dizer, é a condição de [manter]
toda a realidade em um equilíbrio adequado.
Se, em vez da realidade original, uma parte da realidade for erigida em absoluto,
todas as outras partes devem ser interpretadas como uma função da realidade una e
absoluta, que [no fato real] é apenas uma parte da realidade. Porque a realidade, claro,
passa a existir como antes. Se você insiste que uma parte dessa realidade é “a” realidade,
o absoluto, você deve fazer algo sobre o resto da realidade que você não mais acredita ser
realidade; você tem que interpretar como dependente. Para esta construção como
dependente eu uso o termo uma função. Há certas construções favoritas para expressar
tal característica funcional.
Agora, por que não deveria ser assim? Não se pode usar essa construção pela
seguinte razão – deixe-me explicar isso imediatamente. No século XVIII, quase um
século antes de a teoria da evolução ser formulada na forma darwiniana, as pessoas já
falavam sobre o problema da evolução. Isso foi muito discutido pouco antes de 1750. Em
sua Crítica do Juízo [1790], Kant deu a razão pela qual uma teoria da evolução não pode
servir para fazer do homem uma função da natureza e deste mundo, o uso para o qual já
se destinava naquele tempo. Se você colocar o homem como o último item em uma cadeia
de evolução, você pode diagramaticamente [...] rastrear, de alguma forma, a vida em suas
formas mais simples, [...] orgânicas ou matéria animal. Você pode então demonstrar que
essa vida orgânica pode ter sua origem em uma cadeia de vida vegetativa ainda mais
avançada [no tempo]. Você pode então dizer que a vida vegetativa tem sua origem em
uma cadeia de várias formas de matéria inorgânica, até chegar ao último elemento da
física atômica, ou algo parecido. Isto é, você não tem um começo de homem. Você não
pode explicar o homem colocando arbitrariamente um começo em algum lugar dentro
dessa cadeia. Mas se você levar a evolução a sério, você sempre terá que voltar ainda
mais para o vegetativo, para a parte inorgânica, e assim por diante [até que] chegue à
questão da matriz de uma questão que potencialmente contém toda a evolução.
Mas você ainda se depara com a questão: de onde vem essa matéria, quem a
inventou e dotou-a do tipo de evolução que levou, no final, a culminar no homem? Não
remontar a um começo imaginário nos levará em torno da questão de que não há começo
no tempo. O começo é sempre um problema mítico ou metafísico. Ainda nos deparamos
com as famosas perguntas de Leibniz: Por que há algo? Por que não nada? e por que as
coisas são como são? Isso está no começo. Sem qualquer preconceito sobre o conteúdo
empírico de toda observação científica sobre evolução – eles estão perfeitamente corretos
– uma teoria da evolução não fornece uma explicação do homem, apenas empurra-o de
volta a um começo imaginário. Essa é uma possibilidade, e essa possibilidade já contém
um sério problema estrutural do pensamento moderno (ao qual teremos de voltar mais
tarde). Explicações, como a explicação do homem como uma função da natureza com
base em uma teoria da evolução, sempre se baseiam na suposição de que não há ninguém
presente na audiência que faça perguntas desagradáveis como Kant, [aquelas que] e
analisar [evolução] para os seus primórdios, levantando o problema do começo e origem
de tudo. Somente quando as premissas não são questionadas, o argumento da evolução
pode funcionar.
O próximo ponto é que Deus é uma função do homem. Esse ponto [tornou-se
agudo] no século XIX com a “psicologia da projeção” de Feuerbach. Todas as ideias
religiosas, especialmente a ideia de Deus, foram concebidas por Feuerbach como uma
projeção de conteúdos da mente humana em um além. Hoje, a psicologia da projeção é
praticamente uma parte aceita da ciência da psicologia, especialmente em sua forma
psicanalítica. Lá foi desenvolvido em uma psicologia da religião como uma ilusão. Mas
começou com o colapso dos sistemas idealistas alemães depois de Hegel, quando, muito
[urgentemente], a pergunta tinha que ser feita: se alguém não consegue explicar essas
ideias na forma gnóstica específica de um sistema hegeliano que foi rejeitado, de onde
elas vêm? A psicologia da projeção de ideias religiosas tem seu começo crítico aqui. É
claro que sua pré-história remonta ao século XVII, mas eu não quero entrar nisso. A
explicação psicológica das ideias religiosas é o veículo pelo qual Deus e as ideias
religiosas são transformadas em funções da psique humana. Aqui você tem o primeiro
espectro de construções que são usadas quando o mundo é erguido em uma entidade
absoluta. Ou seja, a ideia do mundo é transformada em uma entidade, o que Whitehead
chamou de “a falácia da concretude equivocada”.
Se você atribui a uma ideia [a] concretude [de] uma entidade [...] se você tem tal
concepção do mundo como se "o mundo" fosse real, você pode deixar que essas outras
construções sigam. O homem é uma função deste mundo e Deus é uma função do homem;
e nisso depende toda uma riqueza de problemas adicionais. Desde que acabei de
mencionar Feuerbach, deixe-me mencionar também Marx. Feuerbach ainda deixava o
assunto no nível da psicologia das projeções, enquanto Marx dizia de maneira mais
consistente: “Por que deveríamos projetar? Vamos puxar essas projeções de volta para
nós mesmos onde começaram!” Isso significa: Vamos trazer a divindade de volta à nossa
humanidade e, assim, tornar-nos deuses, ou, se não, deuses, pelo menos, super-homens.
A expressão “super-homem” foi usada por Marx para designar o homem que puxou a
projeção de Deus de volta para si mesmo. O mesmo termo foi então usado por Nietzsche
para praticamente o mesmo propósito. Então, isso seria o fim de tudo: quando essas
funções são entendidas como funções e uma delas as traz de volta à realidade originária
do homem. Com isso, a revolta do homem se torna visível como uma revolta contra Deus.
Deus é tragado no homem e o homem divinizado se torna o centro de toda a realidade,
como foi feito nos séculos XIX e XX.
Esta é a primeira cadeia de tais construções que temos que seguir. Eu darei mais
duas construções principais nesta hora, e elas [seguirão] o problema que eu toquei na
primeira dessas palestras, a questão do tempo. Eu expliquei que se você pode imaginar o
tempo como uma linha, você teria que definir o ponto de presença como a interseção do
tempo com a dimensão da eternidade: onde esses dois se cruzam, seria o ponto de
presença. [Voegelin aponta para um diagrama.] Você sempre tem construções
especulativas, penetrando em uma ou outra dessas direções de tempo, até a origem, seja
no começo (no tempo) aqui, seja na origem no início transcendente (na eternidade), aqui.
Esses dois problemas de origem estão de acordo com as duas dimensões do tempo.
O problema vertical, como você pode imaginar depois do que acabei de dizer em
relação à primeira construção geral, será muito peculiar. Se você primeiro construiu o
mundo como o absoluto, então o homem como uma função do mundo, então Deus como
uma função do homem, então obviamente a estrutura da consciência como uma tensão
em direção ao fundamento divino é destruída. Você não tem mais razão em sua forma
original, mas decapitou Deus, e o que resta é o polo humano da razão. Quando somente
o polo humano da razão é deixado, o conteúdo da razão, que é precisamente a tensão em
direção ao fundamento, a consciência do fundamento, é destruído. Uma vez que o homem
não pode viver, ou não vive, sem contar para si mesmo em termos de um fundamento,
Deus, o fundamento transcendente, deve ser substituído por motivos substitutos do ser.
Deixe-me enumerar algumas das instâncias.
Ou, também no século XVIII, a ideia parece que a sociedade, tanto internamente
quanto nas relações internacionais, pode ser mantida em equilíbrio através do equilíbrio
de poderes. A paz de Utrecht em 1713 já previa uma ordem mundial (na época uma ordem
europeia) com base no equilíbrio das grandes potências. Em vez de orientar a vida de uma
pessoa para com Deus, a lógica do poder, assim como a lógica da ação econômica, [era]
fornecer os propósitos pelos quais se esforçar.
Ou, em vez de uma ordem divinamente orientada, pode-se ter evolução. A teoria da
evolução, que acabei de mencionar, era, em sua forma original darwinista, baseada em
grande parte no tipo de argumento utilitarista inglês da sociedade burguesa. Na sociedade
competitiva, os mais aptos sobreviveriam; novamente a sobrevivência do mais apto [era]
fornecer algum tipo de ordem. De lá, você teria que tomar medidas: se você derrotar o
outro homem na competição, competição política ou competição internacional, e assim
por diante isso provaria que você é o mais apto. Eu não vejo o que mais poderia provar,
[...], mas que algo poderia ser concebido como [uma] ordem [para substituir] uma ordem
ética.
Ou pode-se dizer que a base de toda ordem no mundo, de toda ordem inteligível,
está nas raças e na luta entre raças. Também encontramos isso no século XIX com Klemm
e Gobineau.
Ou pode-se dizer que a ordem da existência humana é determinada por algum tipo
de equilíbrio nos instintos ou impulsos naturais. Isso remonta à psicologia dos séculos
XVII e XVIII, à ideia da libido dominandi, do amour propre como princípio de ordenação
na vida de alguém. Permite a calculabilidade nas ações do homem: calcula-se que ele fará
o que satisfará suas paixões. Se isso é usado como regra, pode-se governar o homem
apelando para as paixões, [...] condicionando-as adequadamente. [Essa é a] concepção do
instinto como fator de equilíbrio, um fator determinante.
Isso vale para todas as ideologias assim que são institucionalizadas, seja na forma
de um grupo dominante ou de um grupo socialmente dominante em uma sociedade – ela
não pode simplesmente ser derrubada. Sua exaustão no nível intelectual não significa que
esteja exaurida como força social. É preciso ter em conta que estas interpretações erradas
são conhecidas como interpretações erradas. E claro, também sob regimes totalitários,
como o regime comunista, os homens não são comunistas, mas seres humanos e sabem
disso. Eu estava na Iugoslávia no outono passado, em Zagreb, e encontrei na faculdade
de ciência política (havia seis pessoas [...]), que todos insistiram que não eram
“comunistas”, mas “marxistas”, como eles chamavam isto. Quando você pergunta qual é
a diferença entre o comunismo e o marxismo, verifica-se que o marxismo são as ideias
do jovem Marx, especialmente do manuscrito econômico-filosófico de 1844. (Essas
pessoas estão muito perto do existencialismo do século XX, e eles estão muito
intimamente familiarizados com o existencialismo francês.) De qualquer forma, não é o
comunismo. O comunismo é para burocratas e outras pessoas estúpidas. Aqui está uma
estratificação social interna que é importante e que, tanto quanto sei, existe de uma forma
ou de outra em todas as sociedades comunistas. Você não pode dizer como esta resistência
interna sairá a longo prazo, mas nenhuma mudança inicial é esperada.
Esse é o terceiro desses grandes equívocos na direção do transcendente – que na
verdade não pode estar na direção do transcendente porque isso é cortado – que se
expressa na intervenção de fundamentos substitutos em vez do fundamento do ser. Esse
é um desses corpos de construção com os quais temos de lidar, “o homem revoltado”. É
claro que, a propósito, isso significa que todas as ideologias, sejam elas de uma ou de
outra variedade, são teoricamente, ou como ciência, todas erradas – [a esse respeito] não
temos que nos preocupar com eles. Nós podemos esquecê-las.
A outra direção para o começo é a horizontal; estas são as duas possibilidades. Mais
uma vez, começando com o final do século XVII e depois no século XVIII, temos a
filosofia da história; às vezes se esquece que isso é peculiar ao período moderno. A
filosofia da história é também uma forma moderna de simbolizar os problemas da história
– nem sempre temos uma filosofia da história. Podemos ter a substância do problema,
mas o termo filosofia da história é moderno. Começa no século XVIII, praticamente com
Voltaire. Nestas filosofias modernas da história, as [...] socialmente dominantes
[expressam] a situação do homem em revolta. Todos eles são construções unilineares da
história. Ou seja, eles constroem a história como algo que começa em algum lugar no
começo, muitos milhares de anos atrás, às vezes centenas de milhares de anos atrás, e leva
até o presente em uma linha reta de significado. A construção unilinear é o problema, e
nisso há uma história um pouco mais longa.
[Mas] isso não foi suficiente, já que ainda havia uma grande parte das pessoas que
estavam bastante próximas das histórias das cidades-estados. Então eles os cortam em
pedaços. Eles não tomam toda a primeira parte em cada período, mas tiram uma parte
daqui, uma parte de lá, adicionam-nos e fazem uma colcha de retalhos de três ou quatro
dessas subseções desta história, empurrando-a cada vez mais para trás até a história das
cidades-estados suméria, com base nos registros, está esgotado. E então eles ainda não
estão felizes. Mas quando eles têm muito bem empurrado [na linha temporal] de volta
para os limites externos – extrapolando para o começo do mundo e a criação do mundo
pelos deuses com uma pré-história mítica – o registro histórico começa, organizado neste
peculiar estilo de retalhos, até chegar à história do Império Sumério. Dessa forma, você
faz de um tipo pluralista de história paralela uma história de uma linha chegando até o
presente que explica por que o atual império sumério é a única ordem legítima do mundo,
criada desde o princípio pelos deuses.
É assim que começou. A mesma técnica é seguida por todas as outras filosofias da
história e especialmente as modernas. Deixe-me dar um exemplo, por exemplo, a filosofia
da história de Hegel. Eu não quero entrar nos menores; lá você entra em outras coisas. Eu
vi uma vez, infelizmente eu esqueci o autor, mas era um americano, que fez uma história
unilinear do mundo dividida em três fases. A primeira fase foi do começo do mundo até
1798. A segunda fase foi de 1798 à Legislação Anti-Católica. E a terceira fase [foi] o
declínio da humanidade, começando com a Legislação Anti-Católica! Então você pode
fazer todo tipo de coisa e pegar as coisas mais engraçadas se entrar nos cantos e recantos.
Mas vamos nos ater aos grandes, como Hegel. O que ele faz? Sob o pretexto de uma
sequência cosmológica, ele tem uma sequência de impérios. Existem primeiro os
impérios asiáticos, os chineses, os indianos e os persas; então entramos no mundo romano
e no mundo greco-romano e, finalmente, no moderno mundo germânico e cristão.
Vamos nos ater ao tipo antigo. Acima de tudo, o interessante é o império persa.
Porque se você olhar para a cronologia (e a cronologia já era muito conhecida no tempo
de Hegel), você pensaria que o filósofo da história começaria seus materiais com as
civilizações mais antigas conhecidas. E eles seriam o Oriente Próximo, o Egípcio, o
Sumério e o Babilônico. Isso seria a coisa natural a fazer. Em vez disso, ele começa com
os chineses, que é posterior. E agora o persa tem uma função muito peculiar. Sob o
império persa, ele compreende (e explica por que ele faz assim) o império que vem no
final de toda uma civilização, neste caso até mesmo uma área multi-civilizacional. Com
o império persa, ele significa apenas todos os estados do reino único, ou seja, lá como
você queira chamá-los, que foi gradualmente absorvido ou conquistado pelo império
persa. Isso significa que sob o império persa aparecem os sumérios, os babilônios, os
assírios, os egípcios, os judeus e os sírios – tudo: todo o Oriente Próximo, que em um
tempo foi o império persa e foi, de fato, unificado no império persa.
Aqui você tem a mesma técnica que no caso sumério. Existem várias histórias
paralelas; há história egípcia, suméria, babilônica, assíria e judaica, os reinos da Síria e
Lídia, e Deus sabe o que mais. Tudo isso não lhe interessa. Todos são reunidos no último
ramo do império persa a fim de obter uma boa linha, porque se ele não fizesse a construção
dessa maneira, ele nunca poderia elaborar uma única linha da história. Ele obteria
histórias paralelas. [Se ele tivesse usado seus materiais] corretamente, ele teria, digamos,
a linha mais antiga, começando pelos antigos impérios do Oriente Próximo, como o Egito,
a Suméria e a Babilônia e descendo, digamos, para o Império Romano ou algo assim. E
você teria uma história chinesa paralela e uma história indiana funcionando
paralelamente, mas você nunca chegaria a uma linha porque há várias histórias paralelas.
Esse problema peculiar e seu significado tornam-se visíveis pela primeira vez, e
talvez tenham sido melhor formulados - conscientemente ou semi-conscientemente –
porque, se a arrogância tivesse sido bastante consciente, isso não teria sido feito por
Turgot no século XVIII. Turgot fez tal construção de uma linha, essencialmente já a
construção de uma linha que encontramos em Comte e outros exemplos de três fases. Ele
disse que estava ciente de que, obviamente, a humanidade não se encaixa em tal padrão.
Embora haja muitas pessoas que [assumem] que chegaram agora a um período de ciência
e iluminação positivistas, a vasta maioria da humanidade não sabe que está vivendo em
tal período de iluminação, porque a era do Iluminismo é confinada a um enclave muito
pequeno da humanidade na Europa Ocidental ou, em casos especiais, a intelectuais
parisienses. No entanto, para justificar a construção, Turgot supõe que a humanidade é
uma masse totale, uma massa total.
Você pode fazer julgamentos com relação a toda a humanidade referindo-se à sua
parte representativa, que presume que você que faz os julgamentos é a parte
representativa. Todos os intelectuais franceses no século XVIII estavam dispostos a dizer
que eles eram a parte representativa da humanidade. Turgot o fez, depois Condorcet, e
depois, é claro, tornou-se costume geral de todos os intelectuais serem a parte
representativa da humanidade e julgar toda a humanidade sob a suposição de que eles
mesmos são representantes da humanidade. Essa suposição da totalidade da massa [e de
seu ser] representada pelo respectivo especulador da história é o pressuposto das
modernas construções unilineares da história, seja de Condorcet, ou Comte, ou Hegel, ou
Marx, ou de qualquer [outra pessoa]. Cada um deles só é possível e só faz sentido sob a
suposição de que há de fato apenas uma linha da história, que é uma linha de crescente
significado, que seu significado chega ao seu mais alto desenvolvimento na pessoa do
respectivo pensador, que o que é representado por este pensador é representativo de toda
a humanidade, e [que] a construção é, portanto, válida para toda a humanidade; [apenas]
como a construção suméria, a história da humanidade é representada pelo império
sumério, e [isso é].
Portanto, temos aqui todo um conjunto de construções que são a base dos regimes
totalitários modernos e sua eficácia. Essa é a suposição de que há uma história unilinear,
que a história tem uma série de idades, que suas idades estão em uma linha ascendente, e
que a última, que é sempre o presente, é a mais alta dentro dela, para não ser superada por
qualquer outro. É o mais alto e o último. Nesta dupla qualidade do mais alto e último,
repousa a reivindicação de seus representantes, de que todos os que vivem têm que se
submeter a ela. Parte da eficácia de tal ideia repousa no fato de que a maioria das pessoas
que estão imediatamente interessadas tem, na melhor das hipóteses, uma variante de tal
afirmação absoluta e, portanto, já existencialmente deformada o suficiente para aceitar a
reivindicação do outro homem, se provar ser poderoso. Mas a concepção geral de que
estamos vivendo em uma “era” é uma concepção ideológica. A noção de que estamos
vivendo em uma “idade” e temos que nos comportar apropriadamente para sermos
membros dessa “era” tem suas origens nessas construções da história e é a base da
imposição terrorista totalitária em outras pessoas. Aqui você tem o problema da
horizontal, e isso remonta à sua forma mais antiga, aos primórdios sumérios e egípcios
da construção não-historiogênica da história. Uma dessas construções historiogenéticas
da história, a mais importante, é claro, é que no Antigo Testamento, desde a criação do
mundo até Israel.
Estes são dois tipos especulativos. Eu não quero ir mais longe neles; eles são muito
complicados. Mas vamos um pouco nas consequências. O que é construído em tais
construções – na direção de um substituto para o fundamento, na direção vertical ou em
construções históricas na direção do tempo horizontal – é o que hoje é frequentemente
chamado de segunda realidade. A realidade em que vivemos é substituída por uma
segunda realidade da construção humana. A imposição de segundas realidades é o
momento de perigo em nossa civilização contemporânea, porque essas segundas
realidades se tornaram tão socialmente dominantes, e a primeira realidade se atrofiou tão
fortemente (pelo menos no nível público de debate), que facilmente se submete a
segundas realidades. Então, se alguém propõe algo para você em termos de ciência,
digamos, “a ciência diz isto ou aquilo”, você já está chocado porque acredita que a ciência
tem algo a dizer. Você não está ciente de que “ciência” é uma figura alegórica e “ciência”
não diz nada, mas alguma pessoa específica diz algo que pode estar totalmente errado.
Você pode dizer que essas segundas realidades já possuem um valor de prestígio. Ora,
esses valores de prestígio só podem ser mantidos, é claro, se não forem feitas perguntas
sobre as evidências trazidas para tais construções de segundas realidades. (Eu já toquei
neste problema.) Mesmo no caso de um sistema filosófico – seja ele hegeliano ou marxista
– você não faz perguntas desagradáveis com relação à validade de suas premissas. Se
você admitir as premissas, tudo segue bem porque esses homens pensam mais ou menos
logicamente. Mas se você fizer perguntas sobre as instalações, todo o sistema se rompe.
Então, não fazer perguntas é muito importante. Ou, na esfera empírica, em detalhes com
o caso de Hegel, que eu apresentei, parece maravilhoso se você acabou de ler essa
filosofia da história e não fazer perguntas. Mas o que, por exemplo, se tornou do império
egípcio em todo esse assunto? Se for necessária evidência empírica, se você fizer
perguntas, essas coisas se quebram. Um fenômeno interessante do nosso tempo é que, em
primeiro lugar, as pessoas que fazem tais construções não são dissuadidas pela evidência
de fazê-las; segundo, [e] curiosamente, aqueles que são as supostas vítimas de tais
construções geralmente não fazem perguntas, mas acreditam no que lhes é dito.
Esse é um fenômeno peculiar. Nós estamos realmente vivendo em uma atmosfera
de segundas realidades, porque os construtores das segundas realidades não se fazem
perguntas sobre os sistemas e aqueles que são as vítimas também não fazem perguntas.
Como esse fenômeno, se não deve ser explicado, pelo menos, deve ser descrito?
Quero dar a descrição do fenômeno, com alguns comentários, que Sartre deu em
sua obra O Ser e o Nada. É o capítulo sobre má fé. Estamos na esfera da má fé se
construções obviamente em conflito com evidências são feitas e se questões relativas a
evidências não devem ser feitas e de fato não são feitas. Por que não se, apesar da
pergunta, todo mundo sabe que algo não está na melhor ordem? Deixe-me ler essa página
de Sartre com alguns comentários.
Má fé [diz ele] não mantém as normas e critérios da verdade, pois são aceitos pelo
pensamento crítico de boa fé.
Definição geral.
Com má fé, uma verdade aparece, um método de pensar, um tipo de ser que é como o dos
objetos; a característica ontológica do mundo da má-fé com que o sujeito se envolve
subitamente é esta: que o ser aqui é o que não é e não é o que é.
Por não-persuasivo entenda-se “evidência que não é real, mas que é aceita como
evidência mesmo que não seja”. Você veja! Todo o processo foi muito bem analisado por
Koestler em sua obra O Zero e o Infinito, a evidência não persuasiva.
A má fé apreende provas, mas resigna-se antecipadamente a não ser cumprida por esta
evidência...
A descrição moderna dessa fé.
Torna-se humilde e modesto; não é ignorante, diz, que fé é decisão e que após cada intuição,
ela deve decidir e querer o que é. Assim, a má fé em seu projeto primitivo e em sua vinda
ao mundo decide sobre a natureza exata de suas exigências.
Agora, o que está aqui discretamente formulado significa que você está disposto a
ser persuadido de evidências insuficientes se quiser acreditar em algo e simplesmente não
olhar para o restante da evidência. Para dar um exemplo concreto: pude observá-lo, por
exemplo – você pode observá-lo em qualquer situação totalitária – nos anos 1930, em
Viena, quando o regime nacional-socialista já estava em ação na Alemanha. Em Viena,
pode-se obter todos os jornais, não apenas os nacional-socialistas, mas todos os jornais
franceses, suíços, alemães e assim por diante. Mas um bom nacional-socialista
simplesmente não leria os melhores jornais, dizem os jornais suíços, porque lá ele
descobriria coisas sobre o nacional-socialismo que ele não gostaria de saber. Claro, ele
só podia fazer isso - recusar-se a lê-los porque já sabia o que encontraria neles. Caso
contrário, antes de lê-los, ele não poderia saber que havia coisas neles que ele não queria
ler. Então você vê, sempre a complicada estrutura da má fé. Não é simplesmente
ignorância; você tem que saber que certas coisas são verdadeiras para não querer saber
que elas são verdadeiras. É uma complicação de muitos andares. Então, não é exigir
muito.
Aqui chegamos agora ao ponto crucial, a determinação do nosso ser. Não é assim
que este homem diz, eu sei que é assim e eu não quero saber porque estou simplesmente
dizendo o contrário, ou algo assim. Ele não é um mentiroso. É um complicado processo
psicológico em que se sabe ao mesmo tempo que não se sabe. Por exemplo, Sartre, muito
excelentemente, dá um exemplo de tais problemas em casos patológicos, um conceito da
psicologia de Freud, o censor. O censor da psique é aquela função da psique assim
chamada por Freud, pela qual o conteúdo do subconsciente é impedido de chegar à
superfície. O que, é claro, o censor só pode fazer se ele sabe o que está lá e, portanto,
impede que ele chegue à superfície. Se ele não soubesse o que estava lá e por que não
deveria vir à superfície, não poderia ser impedido de vir à superfície. Assim, o
inconsciente não é inconsciente, mas é uma repressão consciente do que se sabe. Isso nos
dá um problema muito interessante. O conceito de inconsciente em si é insustentável,
porque, a menos que o inconsciente fosse mantido pelo censor, o que pressupõe que a
consciência saiba o que está no inconsciente, você não teria problema algum. Aqui, em
casos patológicos, você tem um bom exemplo disso. Ele continua:
Uma vez que esse modo de ser tenha sido percebido, é tão difícil sair dele quanto despertar-
se...
Por isso estou dando uma descrição vívida: acho que é uma boa descrição; as
pessoas não podem sair disso.
Então, se você entrar em discórdia com alguém e pressioná-lo no assunto, ele dirá:
“Toda fé é má fé” ou “Toda opinião é apenas opinião”, ou o que se pensa ser uma
ideologia, e “Nada é realmente verdade”, e assim por diante. Esse é o fim disso – nós não
pedimos. Ou o argumento continua:
Toda crença é uma crença que fica aquém; ninguém acredita totalmente no que acredita.
Se toda crença em boa fé é uma crença impossível, então há um lugar para toda crença
impossível.
É muito verdade que a má-fé não consegue acreditar no que deseja acreditar. Mas é
precisamente a aceitação de não acreditar no que acredita ser má fé. A boa fé deseja fugir
do “não-crer no que acredita” encontrando refúgio no ser.
É uma descrição muito boa, mas toda essa passagem tem outra função muito
interessante, porque Sartre desenvolveu essa página com base em certas experiências
psicológicas na esfera privada, em relação a um amigo, a uma amante, a um expectador
em uma fé, e em breve. Ele nunca exemplifica esse problema no caso de uma ideologia,
um credo político, seja ele comunista ou outro. E se ele aplicasse sua descrição da má fé
à sua própria atitude em relação ao comunismo, por exemplo, sua atitude em relação ao
comunismo não seria possível. Se você aplicá-la nele, você tem no próprio Sartre a melhor
lição objetiva de um homem que pode até analisar o problema da má fé e ainda viver de
má-fé. [...] Portanto, essa passagem tem uma dupla importância, não apenas como uma
descrição, mas como uma lição objetiva em si mesma.
Deixe-me concluir com um ponto mais engraçado (não tem qualquer relação, mas
gostaria de chamar a sua atenção). Essa questão das segundas realidades, suas causas e
formas de aparência e assim por diante, atraiu a atenção durante todo o século XIX, e
recentemente encontrei na obra Paraísos Artificiais de Baudelaire com uma descrição
divertida do assunto. Os Paraísos Artificiais são sonhos induzidos por haxixe ou maconha
– drogas alucinógenas. Esse foi um grande problema na época de Baudelaire. O próprio
Baudelaire havia tomado haxixe e outros intelectuais ingleses antes dele como Coleridge,
De Quincey e assim por diante. Baudelaire estava realmente muito interessado no estudo
de De Quincey sobre o assunto, e ele faz os seguintes comentários sobre esse problema.
Ele diz que pelo uso de tais drogas pode-se induzir certos tipos de sonhos, e ele distingue
para esse propósito entre sonhos de paixão e sonhos de natureza hierofânica, como ele a
chama, preocupados com as relações com o divino. Ele acha que os sonhos de haxixe
estão principalmente preocupados com o sonho da paixão. Então ele faz um levantamento
das características dos homens que tomariam maconha com o propósito de ter tais visões.
Ele diz que seriam pessoas eticamente muito sensíveis, pessoas muito humanitárias,
pessoas que seriam tocadas por suas próprias boas intenções e, portanto, teriam uma
opinião muito boa sobre si mesmas, comparadas com outras que não têm tais boas
intenções, mesmo que tenham melhor ações; ou pessoas que são muito sensíveis ao curso
da história, e o peso dos problemas impostos pela história, e assim por diante. Então ele
vai um passo além e diz: “Aqui estou dando uma breve descrição de Jean Jacques
Rousseau. Lá você tem o homem que pode ter essas ideias sem usar drogas!”
Agora isso abre certas perspectivas. Esse problema das drogas como indução a
certos tipos de sonhos que, na época de Baudelaire, já eram identificados como sonhos
[do tipo] em que intelectuais do tipo de Jean Jacques Rousseau se entregavam, dá uma
ideia aproximada de onde esses problemas mentem. Há uma séria deformação mental que
se tornou virulenta desde o século XVIII [ou seja,] o colapso dos três universais – a
estrutura lógica que expliquei – e a redução dos universais à ideia universal do mundo.
Isso apela para um certo tipo de pessoas que chamamos de intelectuais ou para tipos
relacionados. Quando os sonhos dessa forma não podem ser ativamente cumpridos na
vida desperta da construção por um homem como Comte ou Marx, eles também podem
ser realizados e levar à mesma satisfação com sonhos de expansão pessoal e
engrandecimento, e assim por diante, tomando drogas. Você tem uma sequência muito
curiosa, que às vezes é formulada como: Marx considerava a religião como ópio para o
povo, depois, na formulação de Raymond Aron, o marxismo é ópio para o intelectual e
agora o povo toma o ópio diretamente!
Os problemas, penso eu, têm que ser tomados nesse nível. Há uma relação séria
entre esse tipo de pensamento no modo da revolta e a deformação patológica que também
pode ser fornecida pela ingestão de drogas. Tenho a impressão de que em nosso tempo
essas duas linhas convergem em movimentos contemporâneos de consumo de drogas e
assim por diante que têm o propósito de produzir no nível individual precisamente
experiências de expansão e engrandecimento como no nível intelectual um homem.
digamos, por exemplo, Comte, poderia experimentar sem tomar drogas e, como o
fundador da nova religião da humanidade, se expandir para o substituto de Cristo. Isso
também pode ser feito por meio de LSD ou algo parecido.
Com isso, quero agora fechar, não para sempre, não no sentido de que chegamos à
última palavra. Podemos analisar esses problemas hoje porque, com aproximadamente
duzentos anos, se não mais, [dessa] revolta moderna específica, as [formas] seguiram seu
curso e tornaram-se inteligíveis. E não apenas hoje; já há cem anos, como você vê em
casos como Paraísos Artificiais de Baudelaire, sabia-se qual era o problema com pessoas
desse tipo. Mas hoje sabemos muito melhor; e temos o que não há cem anos atrás, os
instrumentos intelectuais para analisar os estados que tentei explicar aqui. Se alguém
formulasse o problema, talvez fosse necessário falar – o que eu expliquei na primeira
palestra – a realidade plena, como está presente na experiência primária do cosmos.
Sempre que ocorre uma diferenciação, como a diferenciação da consciência, há o
perigo de que partes da realidade que não estão tanto no foco de interesse como a realidade
da consciência recém-diferenciada [seja] de alguma forma recuada para um pano de fundo
e não permaneçam no campo total da consciência. Quando as realidades são
negligenciadas, elas se tornam perigosas porque, fora da existência, elas emergirão em
alguma forma inconsciente ou em deformações no nível consciente. Quando, no nível da
consciência, a parte mais importante, a base, é obscurecida pelo tipo de construções que
expliquei hoje, praticamente toda a realidade relevante é movida para fora do horizonte
consciente da simbolização, e você [consegue] tudo tipos de distúrbios mentais, que eu
não posso entrar neste momento. Em parte, eles se expressam em tantas doenças quanto
foram analisadas, por exemplo, por Jung em sua versão da psicanálise. (As palestras de
Jung sobre religião, “As Conferências de Yale”, ou quaisquer outras obras de Jung, dão
exemplos interessantes do tipo de distúrbios causados pelo obscurecimento de setores da
realidade sob condições modernas).
Todos esses problemas são bastante conhecidos hoje em dia. Tudo tem a ver com a
estrutura da realidade. E o problema que enfrentamos hoje na ciência é a recuperação da
estrutura da realidade para saber que partes da realidade faltam em nossa imagem
contemporânea da realidade e como reintroduzi-las para sair dessa deformação mental
peculiar que, em alguns casos, pode assumir a mesma forma dos sonhos por meio de
intoxicação ou uso de drogas.