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Análise da Mensagem,
de Fernando Pessoa
Rio de Janeiro
1997
1
Cada época entrega às seguintes apenas aquilo que não foi.
ÁLVARO DE CAMPOS
OCTÁVIO PAZ
OLIVEIRA MARTINS
2
ÍNDICE
À GUISA DE APRESENTAÇÃO........................................
1. INTRODUÇÃO...................................................................
1.1. Um pórtico: abertura de sentidos......................................
1.2. Estrutura épica...................................................................
1.2.1. Os modelos épicos............................................................
1.2.2. O modelo épico moderno da Mensagem..........................
1.3. Estrutura lírica....................................................................
5. CONCLUSÃO.........................................................................
6. BIBLIOGRAFIA.......................................................................
À GUISA DE APRESENTAÇÃO
Na famosa carta escrita a Adolfo Casais Monteiro, Fernando Pessoa afirma que a
publicação da Mensagem, seu primeiro ( e último! ) livro deveu-se ao fato de buscar atender a
apelos de alguns amigos. 1 Partindo de um poeta de numerosos projetos -- conhecidos ou
ocultados -- e de obstinada perseguição do sentido dos símbolos não só poéticos e dos
meandros históricos e míticos da Pátria, tal alegação pode não passar de mais um disfarce do
criador dos heterônimos. Com efeito, mais que fruto de um projeto, Mensagem é o resultado
do desafio de uma vida inteira de poeta. Afinal, desde 1913, com a publicação do poema “D.
Fernando Infante de Portugal”, sob o título de “Gládio”, até o ano de sua morte (1935), Pessoa
esteve debruçado sobre o projeto de refletir poeticamente sobre a trajetória histórica da Pátria
e de ser o arauto da sua messiânica ressurgência, mítico-poética que seja. Vale, a este
propósito, ressaltar ainda a sua relação de admiração e recusa para com o poeta d’Os
lusíadas. E, paralelamente ou em decorrência, a também obstinada idéia da necessidade do
surgimento de um Super-Camões, aquele que, depois que “Cumpriu-se o Mar e o Império se
desfez”, viesse a ser o instrumento de um Portugal que “falta cumprir-se” ( Cf. “O infante” ).
Ou, ainda, aquele que, embora escrevendo o seu “livro à beira-mágoa” ( Cf. o poema
“Terceiro” ), viesse realizar imaginariamente o sonho do Quinto Império e se apresentasse,
enfim, como “Quem vem viver a verdade / Que morreu D. Sebastião [?]” ( Cf. “O quinto
império” ).
Mensagem é, certamente por tudo isso, uma das partes mais substanciais e
representativas da vastíssima produção poética de Fernando Pessoa, senão a sua porção
mais prevalecente, justo pelo caráter sistêmico que imprimiu à construção textual deste único
volume por ele verdadeiramente organizado. Estranho parece, no entanto, que, até o
presente, não tenha ele sido devidamente estudado, em que pese a sua fortuna crítica contar
com mais de uma centena e meia de títulos, arrolados na bibliografia deste trabalho. Será que
os inúmeros e apaixonados pessoanos espalhados pelo mundo não se aperceberam de mais
essa cilada do poeta? É bem verdade que este poema de poemas -- igualmente à Europa cujo
rosto é Portugal -- se afigura, na complexidade de sua formulação poemática e de suas
relações de sentido, como uma construção poética de “olhar esfíngico” ( Cf. “O dos castelos” ).
Mas não “fatal”.
O presente trabalho se propõe abrir uma via de decifração desse enigma textual.
Pretende resultar numa contribuição para o entendimento de sua estrutura global de sentido e
da correlação que com ele mantêm as diversas ocorrências estéticas que a pontilham. A partir
desta compreensão e investigação do texto como objeto poético, intenta observar as suas
relações interdiscursivas, o diálogo que ele estabelece com os discursos histórico, ideológico e
mítico e ainda com a tradição literária ocidental. Logo, sem se querer incorrer na obviedade de
dizer-se que não se pretende esgotá-lo, afirma-se, contudo, que ele deambula por direções
variadas, procurando manter a consistência de um olhar que se lança como leitura crítica que
parte do texto como sistema de sentido para estabelecer os diversos elos de significação que
ele suscita.
Resulta como produto final de pesquisa realizada no âmbito da Faculdade de Letras da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, cujos alunos do curso de Graduação foram, por
alguns anos, campo de experiência de idéias, espaço de resposta de suposições e -- quem
sabe -- convivas de alguns delírios primordiais. Destaque-se também o inestimável contributo
de pesquisas realizadas em Lisboa, Portugal, durante os meses de setembro a novembro de
1
MONTEIRO, Adolfo Casais. A poesia de Fernando Pessoa. Lisboa, Imprensa Nacional / Casa da Moeda, 1985, p. 229
1996, propiciadas por Bolsa de Investigação sob patrocínio do Instituto Camões e ao abrigo da
Fundação das Casas de Fronteira e Alorna.
Ressalte-se, por fim, que ele é o resultado tardio, mas amadurecido, de investigações
sobre a obra do poeta, iniciadas em 1974 e das quais decorreu a dissertação de Mestrado
apresentada por seu autor à Pontifícia Universidade Católica / RJ, sob o título de O
constelado Fernando Pessoa. 2 O desafio à decifração do enigma da esfinge-Mensagem
data de então. Mas só agora é que “É a Hora!” ( Cf. “Nevoeiro”).
Portanto, ainda pessoanamente,
Valete, Fratres.
2
Rio de Janeiro, Imago, 1976
1. INTRODUÇÃO
O entendimento dos símbolos e dos rituais (simbólicos) exige do intérprete que possua
cinco qualidades ou condições, sem as quais os símbolos serão para ele mortos, e ele
um morto para eles. 2
2
Ibidem, p. 69.
Mesmo o ter-um-sentido... 3
O “ter-um-sentido” desta epopéia pessoana não se encerra, pois, em si, não é uno. Ele
“tem outro sentido”: aquele que, para além da História, dimensiona o Mito, e que, para além do
canto da lusitanidade, referencia a trajetória humana. Não é por acaso que a busca de uma
nova realidade e de uma outra dimensão para a História e para a existência são tópicos de
insistente ocorrência ao longo da Mensagem, a lhe conferir uma feição messiânica própria. 4
Este verdadeiro Deo gracias que o pórtico da Mensagem encerra se constitui, por outro
lado, numa espécie de síntese de toda a sua estrutura de sentido. A noção de predestinação
que ele contém permeia todo o processo histórico português, tal como é concebido pelo
peculiar relato dessa narrativa épica de fundamento místico-messiânico. E isto ocorre
principalmente no que diz respeito ao tratamento dispensado aos heróis dos atos inaugurais
da trajetória lusitana. Desse modo, se cada uma das três partes em que se divide essa
epopéia pessoana corresponde a um ciclo histórico, é possível verificar-se que os seus heróis,
escolhidos dentre muitos que construíram séculos de uma história grandiosa, são projeções
circunstanciadas daquela predestinação. Senão, vejamos. Já no primeiro castelo --
representação da ante-história -- postula-se o conceito de que o mito (a lenda) fecunda a
realidade, determinismo que, de alguma forma, aparece reduplicado na pré-história
portuguesa, representada por Viriato ( “Nação porque reencarnaste” ). Os dois personagens
que, na visão do narrador, constituem a proto-história ( o conde D. Henrique e D. Tareja ) são
marcados de modo explícito e acentuado por essa noção, precisamente por serem heróis
involuntários: respectivamente, “Deus é o agente, / O herói a si assiste, vário / E inconsciente”
e “Teu seio augusto amamentou / (...) / O que, imprevisto, Deus fadou”. A partir deles, surge o
herói voluntário e fundador do Reino, que, na condição de “Pai” da Pátria, funciona como
intermediário entre Deus e o povo predestinado. Invocado como tal, dele se suplica que, na
“vigília” do presente da enunciação (“Hoje”) -- o do vazio a ser preenchido pelo mito do
Encoberto -- seja dada a “bênção” enquanto “exemplo” e a “espada” enquanto “força”.
D. João I inicia, por sua vez, uma nova etapa dentro do ciclo da história da terra
narrada no Brasão: uma nova dinastia e a entrada de Portugal no mercantilismo europeu. E o
poema que consigna a sua presença na Mensagem se abre de modo conceitual: “O homem e
a hora são um só / Quando Deus faz e a história é feita”. E sua D. Filipa de Lencastre, tratada
no texto que lhe é dedicado como versão lusa da intercessora Virgem Maria, só ratifica a
ocorrência dessa noção de predestinação nesse ciclo histórico português.
“O Infante”, poema com que se abre a segunda parte é, certamente, aquele em que
mais plenamente se reduplica o conceito contido no pórtico da Mensagem. Nele podemos
verificar, novamente de modo explícito, que o homem -- que, no poema, em metonímia ele é --
aparece concebido como intermediário entre Deus e a obra:
A sagração é, pois, agora, o sinal dado para a construção do império do mar, que
pertence a todo um povo ( noster, nobis ) que na figura do Infante se representa: “Quem te
sagrou criou-te português”.
D. Sebastião, o primeiro símbolo do Encoberto e que, portanto, abre o terceiro e último
ciclo da história relatada na Mensagem, é apresentado como o herói ungido por um sinal de
3
Ibidem, p. 113.
4
Cf.: “Novos infiéis”, “novo fado”, “Eucaristia Nova”, “A Nova Terra e os Novos Céus”, “novo dia”; “outro destino”,
“E outra vez conquistemos a Distância -- / Do mar ou outra ...”, “outro lado”.
dupla e opositiva dimensão. Por um lado ele é marcado -- e com ele o povo que, em
metonímia, representa -- pela unção da desgraça ( “Sperai! Caí no areal e na hora adversa /
Que Deus concede aos seus” ). Por outro, ele se mostra como o escolhido para a redenção
mítica: “É O que eu me sonhei que eterno dura, / É Esse que regressarei”. E ambas as
dimensões se configuram -- igualmente ao herói -- como intermediárias entre os desígnios
divinos e a contingência da realidade nacional e humana: “Para intervalo em que esteja a alma
imersa / Em sonhos que são Deus”.
O pórtico de abertura da Mensagem é, pois, uma síntese do seu significado enquanto
estrutura de comunicação poética e enquanto referenciação épico-lírica da história, da
ideologia e do universo mítico português.
5
Já se lhe atribuíram classificações diversas: "epopéia estática", "poema épico-elegíaco" e outras ainda de menor
propriedade.
1.2.1. Os modelos épicos
E esta proposição de regresso iniciada com a forma verbal “'Sperai!” que abre o poema
encontra resposta no início do poema “O desejado”, em que o agente da enunciação lírico-
narrativa, falando de e ao próprio D. Sebastião, como que estabelecendo um diálogo,
apresenta uma espécie de promessa e convocação:
2.1. Os Campos
Os dois poemas com que o narrador da Mensagem abre o Brasão, sua primeira parte,
configuram as noções através das quais Fernando Pessoa organiza a sua leitura do símbolo
heráldico português que elegeu para retratar a história pátria, na fase de sua construção e
afirmação. São elas -- e já o vimos antes -- a MATERIALIDADE e a ESPIRITUALIDADE,
respectivamente representadas n“O dos castelos” e n“O das quinas”.
O primeiro deles se estrutura em dois movimentos que organizam duas a duas as suas
estrofes. Inicia-se pela descrição de uma Europa jacente que, em sua postura de esfinge, é
configurada por elementos plásticos, visuais: seus “românticos cabelos”, seus “olhos gregos”,
seus cotovelos -- um em ângulo, outro afastado -- e sua mão “em que se apóia o rosto”. Com
efeito, a contemplação do contorno físico da geografia européia, visto a partir do Norte,
permite-nos identificar -- de modo preciso, até quanto possível -- esta forma esfíngica que o
poeta nos sugere. O segundo movimento, em que o poema parece findar em descensão de
uma estrofe de dois versos e outra terminal de apenas um, apresenta a reiterada ação
concreta dessa Europa jacente que “fita” o Ocidente através do seu rosto-Portugal. Assim, um
universo de elementos concretos marcados pela plasticidade e pela ação dimensiona muito
claramente a noção de MATERIALIDADE.
Já no poema “O das quinas” encontramos configurado um campo semântico
completamente oposto, assentado fundamentalmente em elementos abstratos que encerram
apóstrofes e / ou conceitos genéricos. Acrescente-se que também são abstratos,
indeterminados e / ou imprecisos os sujeitos das ações básicas do texto: Deuses ( “vendem
quando dão” ), Compra-se ( “a glória” ) quem ( “baste” ) e Deus ( “definiu”, “opôs” e “ungiu” ).
Temos, pois, aqui, constituído o plano da ESPIRITUALIDADE. Com ele o poeta da Mensagem
faz eco ao d'Os lusíadas quando este, pela enunciação narrativa de Vasco da Gama ao rei de
Melinde, explica a origem e o significado cristãos das quinas do brasão português. E para isso
se fundamenta no milagre e na batalha de Ourique:
8-12-1928
Neste poema, que funciona como a proposição desta epopéia pessoana, Portugal é
metonímia da Europa, do Velho Mundo que é enfocado em movimento descendente do todo
para a parte, isto é, do corpo-esfinge para o rosto. Este processo de construção metonímica
reforça a postura ideológica do narrador épico na sua ótica de valorização da nacionalidade
portuguesa. E aqui, mais uma vez, podemos observar que é com o poema camoniano que o
texto de Fernando Pessoa dialoga. Senão, vejamos: ao apresentar-se ao rei de Melinde, é
como o europeu que o Gama aparece configurado, enquanto síntese de uma história e de
uma civilização continental unificada, apesar de suas diversidade nacional:
Por certo, é enquanto rosto da Europa que, pela visão ideologizada do sujeito da
enunciação, Portugal aparece como o espaço revelador de sua identidade civilizacional. O
rosto não se mostra ao próprio indivíduo, mas expõe a sua individualidade ao mundo e a
projeta nele. Tal foi, na ótica do narrador, a função histórica do Portugal das navegações em
relação ao corpo esfíngico da Europa, enquanto propagador de sua civilização através dos
continentes onde estabeleceu o seu domínio. E, embora não sendo visto pelo próprio corpo, é
por este rosto que o corpo-Europa vai conhecer sua identidade civilizacional e propagá-la pelo
mundo. Como janela atlântica da Europa aberta ao Ocidente é que Portugal, através dos
mares, muito mais que o seu destino, cumpriu o ciclo histórico e civilizacional do velho
Continente. Mas a fatalidade do domínio imposto ao Novo Mundo teve mão de retorno a partir
de sua libertação, e a utopia pretendida para o futuro se perdeu no passado, uma vez que o
Ocidente se tornou o topos de si próprio. Voltaremos a tratar deste aspecto logo adiante.
A Europa que, na sua configuração geográfica, jaz “De Oriente a Ocidente”,
historicamente também, e através de Portugal, esteve fitando extremos desses dois
hemisférios por onde estendeu seu domínio: do Japão e das Índias ao Brasil. E assim o fez,
assentada no esteio dos grandes impérios que constituíram a ancestralidade de sua formação
civilizacional. Vejamos por partes: das raízes germânicas, sugerida nos “românticos cabelos”
que lhe toldam o rosto, procede a tradição guerreira do império visigótico; do império grego,
que seus olhos estão “lembrando”, veio-lhe a base luminar do refinamento da sensibilidade e
do desenvolvimento intelectual; do império romano, cotovelo direito “em ângulo disposto”,
restaram-lhe, entre outros, os fundamentos da fé. E não estaria ainda poeticamente figurada
certa faceta da história das relações internas do continente europeu na representação do
braço, do cotovelo-Inglaterra, cuja mão “apóia o rosto” que é Portugal? Afinal, desde os idos
de D. João I e sua Filipa de Lencastre até o Ultimato de 1890, passando, entre outros
episódios, pelas investidas napoleônicas, que, de alguma forma, Portugal recorreu na sua
travessia histórica ao suporte econômico ou militar inglês.
As duas estrofes finais deste poema encerram ainda um enigma poético de sugestão
histórica que merece decifração: o “olhar esfíngico e fatal” se volta para um “Ocidente, futuro
do passado”. É que, na sua construção poemática, o texto aqui nos redimensiona a oposição
mítico-histórica entre a esfinge-Europa e o Édipo-Ocidente -- o Novo Mundo, ou mais
precisamente, o Brasil, que, como tal, é caracterizado no poema VII de Mar português. E o
enigma de dominação se decifra com a sua emancipação. A independência do Novo Mundo
tornou, pois, passado o sonhado futuro de exploração nutrido pela Europa imperialista.
Ainda a propósito do verso final deste poema, Gilberto de Mello Kujawiski 4 considera a
evidência que nele se dá de um Portugal que aguarda por sua imagem devolvida de longe. É
que, diferentemente das comunidades mediterrâneas detentoras de culturas “de apetite de
conservação extrovertida”, Portugal, pequeno e atlântico, e ainda com séculos de história de
ser-para-a-distância, é uma nação marcada pela introversão. Para se ver, precisa, portanto,
refletir-se no outro, esperar o regresso de si mesma da distância a que se lançou.
Vale registrar, ainda, a relação intertextual que Andrée Rocha 5 estabelece entre este
poema e um outro de Miguel de Unamuno, incluído no livro Rosário de sonetos e publicado
em revista portuguesa de que Pessoa era também colaborador. É muito provável ter havido,
por parte do autor da Mensagem, o aproveitamento temático e imagístico deste texto, uma vez
que nele o poeta espanhol descreve a Península Ibérica como uma figura feminina
3
Os lusíadas, C. II, E. 97, Vv. 5-8 . Os destaques em negrito são nossos.
4
KUJAWISKI, Gilberto de Mello. “Mensagem e o mito lusíada”. In: Fernando Pessoa, o outro. São Paulo, Conselho
Estadual de Cultura, 1967, pp. 15-29.
5
ROCHA, Andrée. “Um caso de intertextualidade na poesia de Fernando Pessoa”. In: Temas de literatura
portuguesa. Coimbra, [s. ed.], 1986, pp. 133-136.
ansiosamente espreitando o mar e as “agoreras brumas”, a ver se delas “alza don Sebastián,
rey del misterio”. O teor do seu terceto final pode ainda ter sido aproveitado no poema “A
última nau” e na terceira parte, O encoberto. Reproduzamos o texto de Unamuno para melhor
comprovação:
8-12-1928
6
“D. Sebastião rei de Portugal”: “Sem a loucura que é o homem / Mais que a besta sadia, / Cadáver adiado que
procria?”; “O quinto império”: “Triste de quem vive em casa, / Contente com o seu lar”, “Triste de quem é feliz” e
“Ser descontente é ser homem”.
CONCEITO / Os Deuses vendem quando dão.
\_ Compra-se a glória com desgraça.
_
APÓSTROFE / Ai dos felizes, porque são
\_ Só o que passa!
_
APÓSTROFE / Baste a quem baste o que lhe basta
\_ O bastante de lhe bastar!
_
CONCEITO / A vida é breve, a alma é vasta:
\_ Ter é tardar.
vendem X dão
\ /
\/
/\
/ \
glória X desgraça
breve X vasta
\ /
\/
/\
/ \
ter X tardar
7
Outros tantos ainda podem ser verificados como, por exemplo, no plano lexical, a redundância do verbo bastar e seu
cognato para reforçar a noção de que se deve viver não para a efemeridade, mas para o eterno, resultante da busca
incessante da espiritualidade. Acrescente-se, a propósito, que todos os cinco poemas d’As Qinas apresentam,
igualmente, estrutura e recursos conceitistas.
plenificar enquanto pai, o próprio Deus ( mito ) buscou a aderência do real, fazendo-se
humano em Cristo. Por outro lado, ainda, se verificarmos no poema a ocorrência dos tempos
verbais, podemos constatar que o primeiro movimento está centrado no presente, tempo da
generalidade própria dos aforismos pautados em conceitos universalistas. Já o segundo
apresenta somente verbos no passado, tempo a que se recorre, no poema, para a
comprovação histórico-mítica dos aforismos emitidos. Por fim, é patente em todo o texto a
configuração de uma atmosfera de ESPIRITUALIDADE, seja pela arquitetura barroquista dos
conceitos que tomam como seu fundamento as noções de passividade e fatalidade, seja pelo
já apontado caráter abstrato, impreciso e indefinido dos agentes verbais: Deuses, Compra-se,
felizes, quem, o (que lhe baste), vida, alma, Ter e Deus.
Pelo critério de seletividade de que Fernando Pessoa lança mão para narrar a história
de Portugal, oito personagens ocupam, conforme já vimos, os sete castelos do Brasão. Isto
porque, no último destes, encontram-se D. João I e D. Filipa de Lencastre, casal real que inicia
a Dinastia de Avis. Também com eles se encerra, para o narrador da Mensagem, o ciclo da
construção da nacionalidade: a formação do Reino ( de “Ulisses” até “D. Afonso Henriques” ),
a posse e fixação do território ( representada em “D. Dinis” ) e a sua integração no concerto
dos reinos europeus ( “D. João o primeiro” e “D. Filipa de Lencastre” ). Esta última etapa se
consuma a partir das relações de Portugal com a casa inglesa, e, ainda, da sua conseqüente
inserção no processo econômico do mercantilismo continental.
O início desse percurso histórico se dá, contudo, muito remotamente, com Ulisses que,
representando a origem mítica de Portugal, configura-se como uma espécie de sua ante-
história. De um extremo ao outro, contudo, encontra-se nitidamente referenciado, em cada um
dos oito poemas, o sema isotópico MATERIALIDADE, conforme já observamos em pontos
anteriores deste trabalho. E em todos eles também se faz presente a noção de ato inaugural,
de marca de uma etapa do processo iniciático português. Tem razão Carlos Castro da Silva
Carvalho quando postula que, como Ulisses, “Os outros castelos, outros tantos mitos da
criação, repetem, reencarnam, ressuscitam, a nos lembrar que Deus é o agente e o homem a
sua haste, o herói, o cavaleiro incumbido de realizar as missões que Deus fadou; a nos
lembrar que a origem da nacionalidade está no Além e que uma tal nação tem forçosamente
uma missão oculta a cumprir”. 8
É naturalmente pela via do mito e não da realidade que o narrador da Mensagem vai
iniciar o seu relato da história de Portugal. Para tanto, resgata neste primeiro castelo do
Brasão a referência que Camões faz ao herói homérico na estrofe 5 do canto VIII d‘Os
lusíadas. Nesta parte da epopéia renascentista, o marinheiro Paulo da Gama, a pedido do
Catual, descreve figuras históricas do Reino lusitano, e nela se diz que:
O poema pessoano, por sua vez, proclama mesmo o primado e a vitalidade do mito em
relação à própria realidade ( “O mito é o nada que é tudo”; a lenda fecunda a realidade ). Com
efeito, o sujeito da enunciação fundamenta a sua concepção da origem nacional no legendário
desembarque de Ulisses na embocadura do Tejo. De certo modo chega mesmo a encampar a
remota e até improvável possibilidade de Lisboa e, por extensão, de a própria existência de
Portugal ser uma decorrência do ato fundador desse herói grego: “Este, que aqui aportou / (...)
/ nos criou”. Embora a tradição portuguesa estabeleça um elo mítico entre Ulisses e Lisboa, a
relação não passa de uma coincidência fônica entre o remoto topônimo Olissipona e o
antropônimo do herói grego, sem se deixar, contudo, de levar em conta que ele tinha por
epíteto “o fundador de cidades”. Muito antiga e não consignada pela história, a origem de
Lisboa remonta certamente a épocas anteriores à chegada, na Península Ibérica, dos fenícios,
gregos, celtas e iberos. E assim, o mito de que lança mão o eu enunciador cumpre com
proficiência a sua função de preencher imaginariamente a descontinuidade cognitiva que se
abre entre o sujeito e a realidade. Desta forma, onde a história cala, o mito fala. Assim é que,
sendo “nada” -- uma vez que se constitui como o discurso de uma formulação cognitiva
inconsciente -- o mito “é tudo”. Mais que isso, na sua potencialidade de discurso imaginário,
ele se possibilita fecundar a realidade e dar-lhe o sentido que ela por si, enquanto “metade /
De nada”, não tem.
É justamente fundamentado nesse conceito das relações contraditórias inerentes ao
processo do conhecimento humano que Fernando Pessoa estabelece, no poema “Ulisses”,
uma bem consistente definição de mito. Segundo ela, sua função epistêmica se realiza
justamente por ser ele uma formulação discursiva imaginária, já por si contraditória. Sua
função é precisamente a de VELAR ( “é o nada” ) DESVELANDO ( “que é tudo” ). Ou, em
sentido inverso, a de DESVELAR ( “sol ... brilhante” ), VELANDO ( “mudo” ). É, enfim, a de
operar no estreito limite intersticial que se situa entre o exotérico e o esotérico. É, pois,
enquanto irrealidade, enquanto lenda, que Ulisses passa a significar e a -- ocultamente --
intervir no real ( “escorre”, “fecunda”, “decorre” ). Em contraposição, “Em baixo”, no espaço da
realidade, por não estar impregnada da potencialidade do mito, a vida é “metade de nada” e
“morre”. Por esta via de entendimento é que se pode conceber que este poema constitui a
primeira e maior chave de sentido da Mensagem. Ao contrário d`Os lusíadas que, como
manifestação do modelo épico renascentista, cantam o real histórico produzindo a aderência
mítica, esta epopéia pessoana procura, a partir do mito, construir uma nova realidade, na
forma de uma existência oculta que permite todas as dúvidas e perplexidades.
Por isso, toda a estrutura de sentido do texto está centrada em antíteses e paradoxos --
ou oxímoros, como quer Roman Jakobson 9 -- estabelecendo uma permanente tensão entre
NEGAÇÃO e AFIRMAÇÃO ou, em outros termos, entre VACUIDADE e PLENITUDE.
Observemos que, pelo caráter transcendente próprio da função do mito, é precisamente o
primeiro destes pólos que se sobrepõe ao outro: “nada” ---> “tudo”; “mito” ---> “sol”; “morto”
---> “vivo”; “por não ser” ---> “existindo”; “sem existir” ---> “bastou”; “por não ter vindo” --->
“foi vindo”; “lenda” ---> “realidade” . Somente nos dois últimos versos do poema, ao definir o
plano da imanência terrestre e humana, é que se invertem os termos desse parâmetro. E aí
encontramos a constatação de que a “vida” -- positiva, apesar de não passar de “metade / De
nada” -- “morre”. Com efeito, para justificar o caráter mítico da ancestralidade portuguesa, o
sujeito da enunciação poética lança mão do próprio mito cristão no que respeita à cena da
ressurreição de Cristo ( “O corpo morto de Deus / Vivo e desnudo” ). E para ratificá-la se utiliza
de outras simbologias que se reportam a esta cena, como aquela em que a associa ao
espetáculo do nascer do “sol que abre os céus”, representação da ressurgência da vida. Assim
como Deus somente se plenificou na sua ação salvadora do homem com o Cristo ressurrecto,
assim também Portugal só se consumou enquanto realidade histórica na medida em que
Ulisses -- por não ter sido real -- miticamente “aqui aportou”, “nos bastou”, “foi vindo / E nos
criou”.
Por ser criação discursiva do inconsciente e, pois, fundamentado no paradoxo, o mito
se sustenta e prevalece pela força de sua autonomia de discurso imaginário que se cria,
enquanto -- em outro nível, é claro -- constrói a realidade.
Não é por acaso ou tão-somente por se pautar na lenda que Fernando Pessoa toma
Ulisses como símbolo inicial da história portuguesa relatada em sua epopéia. Ele é de fato a
sua matriz mítica e poética. Afinal, como herói metonímico de toda a Grécia, ele é uma das
matrizes poéticas de toda a literatura ocidental. O próprio Fernando Pessoa, em diversos
escritos em prosa, enaltece a Grécia como origem e modelo da civilização do Ocidente, e o
lugar para onde se deveria voltar. O verso final da Mensagem ( “É a Hora!” ) é também um
chamamento ao retorno, à reinauguração da história que deixou de ser cumprida.
Ulisses é, de qualquer modo, o herói-fundador por excelência da Mensagem. Em
primeiro lugar, porque através dele se instaura o mito, elemento nuclear desta epopéia
pessoana e, como tal, elemento primordial de sua realização dentro do modelo épico moderno.
E, a partir daí, pela sua condição de ser luminar, dotado da visão multifacetada com que
derrota o Cíclope de um olho só, ele se torna o paradigma de um texto aberto a uma
multiplicidade de sentidos. É um herói que, como tantos outros da Mensagem, “a si assiste,
vário” ( Cf. “O conde D. Henrique” ) num texto poético em que -- retomemos ainda uma vez --
“Tudo tem outro sentido, ó alma, / Mesmo o ter um sentido”. Ulisses é, pois, o mito
fundamental de um texto-mito, e vai ter em D. Sebastião a sua revivescência, a sua
atualização na fundação de um novo ciclo da história nacional: o da virtualidade, do devir, do
“poder ser” ou, pelo menos, do “desejar poder querer” ( Cf. “Tormenta”).
Com relação a este aspecto, necessário se faz concordar com Luís F. A. Carlos 10 que
considera Ulisses uma “figura textual” na Mensagem, e afirma que “O D. Sebastião que por
9
Jakobson, Roman. “Os oxímoros dialéticos de Fernando Pessoa” In: Lingüística, Poética. Cinema. São Paulo,
Perspectiva, 1970, pp. 93-118.
entre a névoa da linguagem vemos surgir mais morto do que vivo não é senão um subproduto
de Ulisses”. Ainda a este propósito, vale lembrar que o que mais profundamente move os dois
heróis, o da Odisséia e o Encoberto da Mensagem, é justamente o regresso: um, refém de
Calipso em Ogígia, deseja sua Ítaca e nela é esperado; o outro, prisioneiro da morte física em
Alcácer Quibir, habita “As ilhas afortunadas” e tem o seu regresso desejado na Pátria que
deixou órfã. Ambos regressam. Ulisses, vinte anos depois, quando não reconhece mais sua
terra, pois uma divindade havia espalhado uma névoa ao seu redor. D. Sebastião, através de
um “mar que não tem tempo ou spaço” ( Cf. “A última nau”), retorna “entre a cerração” de um
discurso poético-mítico. E tem a “Hora” de sua ressurgência num “Nevoeiro”, em que
“Ninguém sabe que coisa quer. / Ninguém conhece que alma tem, / Nem o que é mal nem o
que é bem”. Note-se, a este propósito e por fim, que o herói da Odisséia também se define
como Ninguém.
1 0
CARLOS, Luís F. A. “A função matricial de 'Ulisses' na Mensagem de Fernando Pessoa”. Nova Renascença.
Lisboa, vol. V, 18: 110-126, abr.-jun., 1985.
2.2.2. “Viriato” - “Luz que precede a madrugada”
22-1-1934
1 1
A esta relação se voltará logo adiante e, depois, por oportunidade do estudo do penúltimo poema da Mensagem,
intitulado de “Antemanhã”.
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Os lusíadas, C. III, E. 22. Ver também C. VIII, E. 6-7:
Assi o Gentio diz. Responde o Gama: Com força, não; com manha vergonhosa
“Este que vês, pastor já foi de gado; A vida lhe tiraram, que os espanta;
Viriato sabemos que se chama, Que o grande aperto, em gente inda que honrosa,
Destro na lança mais que no cajado. Às vezes leis magnânimas quebranta.
Injuriada tem de Roma a fama, ............................................................................
Vencedor invencibil, afamado. ............................................................................
Não tem co ele, não, nem ter puderam, ............................................................................
O primor que com Pirro já tiveram. .............................................................................
o (que esqueceu) lembra alma (que
sente)
instinto memória raça
O segundo movimento é constituído da estrofe final. Nele se lança mão do símile do dia
nascente para reduplicar, em imagem de teor plástico e visual, os conceitos do movimento
anterior. Esquematicamente, temos:
Mais uma vez aqui se configura a noção genérica de ato inaugural, de fundação e
primordialidade com que o narrador da Mensagem marca todos os personagens-símbolo que,
neste livro-poema, representam Os Castelos do Brasão. Com respeito a esse aspecto, note-se
ainda que o termo “antemanhã” contido no verso que encerra este segundo poema do Campo
dos Castelos é o mesmo que dá título ao penúltimo texto da epopéia pessoana: aquele em
que se anuncia a precedência do transcendente Quinto Império preconizado pelo sujeito da
enunciação no verso com que a finaliza ( “É a Hora!” ). Afinal de contas, na terceira parte da
Mensagem -- e isto se prenuncia já no poema “A última nau” e se explicita em “Terceiro” --, o
sujeito da enunciação se outorga a condição de arauto de uma nova primordialidade, a do
Encoberto.
Viriato é apresentado, pois, como a precedência do momento inaugural do Reino, do
limiar do dia da liberdade. Este se representa de modo mais manifesto primeiramente no
“involuntário” gesto fundador do Conde D. Henrique ( terceiro d‘Os Castelos ) e naquilo que,
de “imprevisto, Deus fadou” a D. Tareja (quarto). Depois, ele se realiza plenamente em D.
Afonso Henriques que, no quinto d‘Os Castelos, é o “Pai” do qual se suplica o “exemplo
inteiro” e a “bênção”, unções históricas que possam favorecer a vitória sobre os “Novos infiéis”
da decadência.
Ergueste-a, e fez-se.
Quarto filho de Henrique de Borgonha e bisneto de Roberto I da França, o Conde D.
Henrique casou-se em 1095 com D. Tareja, filha bastarda de D. Afonso VI, rei de Leão e
Castela, e de Ximena Nunes. É deste ano que datam as primeiras informações de sua
presença na Península Ibérica. A partir daí também, vários documentos dão conta de atos
administrativos seus que vão redirecionar os rumos da história desta parte ocidental da
Europa. A história do período que vai do fim do século XI ao início do subseqüente consigna a
sua atuação como introdutor do espírito europeu nas terras do futuro Reino de Portugal. De
formação feudal e gregoriana, Henrique se destacou pela defesa dos princípios de maior
autonomia dentro da hierarquia estabelecida e da sucessão em linhagem masculina. Ainda lhe
é atribuída a introdução, nos domínios de seu Condado, da liturgia romana e da escrita
carolíngia. Sua condição de negociador foi, contudo, marcada por dúbias e mutáveis gestões
diplomáticas. Neste particular, atuou ele primeiramente em pactos de mútua proteção
mantidos com seu primo e concunhado Raimundo, e, depois, no processo sucessório do sogro
Afonso VI, do qual resultou mais larga autonomia para o Condado Portucalense. As
constantes viagens, os múltiplos acordos entremeados pelas investidas bélicas que marcaram
a sua atuação até a morte ( 1112 ? ) fizeram com que a tradição lhe atribuísse o epíteto de O
Lidador. Sua luta -- incessante quanto indecisa -- pela preservação e ampliação de poderes é
certamente a marca de sua heroicidade na antecedência da história portuguesa, tal como a
concebe Fernando Pessoa na Mensagem. É nesta perspectiva que o poeta o toma,
juntamente com D. Tareja, como a proto-história do Reino. Por isso, D. Henrique é o herói de
um começo “involuntário”. Ele é, pois, aquele que “a si assiste, vário / E inconsciente”, e que
se interroga sobre o que fazer com a “espada em suas mãos achada”. Mas é também o
portador do gesto genesíaco expresso no último verso do poema: “Ergueste-a, e fez-se.”.
Esse gesto fundador do conde D. Henrique, marcado pelo erguer da espada, pode
suscitar ainda outras inferências de sentido e relacionamentos com diversos poemas da
Mensagem. Não é por acaso que o verbo erguer, de significado bem definido no livro-poema
pessoano, aparece, com efeito, em mais quinze ocorrências diretas, a que se acrescentam
outras em que é substituído por equivalentes semânticos: seis vezes ocorre o verbo surgir, e
uma vez cada os verbos apanhar, ascender, despertar e chamar. E não é também de forma
desmotivada que esta incidência se dá. Ao contrário, ela procura reforçar, na quase totalidade
das vezes, o apelo messiânico de que o sujeito da enunciação se faz portador, seja sob a
forma de súplica, seja como retomada de um exemplo que, na história pátria, tenha
secundado o ato inicial desse conde. Em dez dessas ocorrências o verbo erguer está ligado à
noção de recriar o “Império [que] se desfez” ( Cf. “O infante” ) depois de cumprir-se o mar. 13
As cinco outras, por seu turno, aparecem nos poemas “Horizonte”, “O mostrengo” e
“Tormenta”, como que para caracterizar objetos-desafio com os quais a Nação teve de se
defrontar, seja no seu percurso histórico, seja no vazio do presente da enunciação. Trata-se,
pois, de razões e exemplos ou fundamentos para a ressurgência messiânica. As demais nove
ocorrências verbais de sentido equivalente seguem via de regra essas mesmas tendências. 14
Retomemos, ainda, esse último verso do poema em questão ( “Ergueste-a, e fez-se” )
para considerar a simbologia de que se reveste o instrumento da ação criadora desse
donatário do Condado Portucalense. A espada é, com efeito, dentro da mítica cristã, o símbolo
resumidor da generosidade e do poder emanados de Deus. Verifiquemos, por exemplo, sua
presença no Gênese, quando, expulsos Adão e Eva do Paraíso, são colocados à sua porta
1 3
“Mas que espada é que, erguida,” e “Ergue a luz da tua espada” ( “Nun'Álvares Pereira” ), “Uma ergue o facho
trêmulo e divino” e “A mão que ergueu o facho que luziu” ( “Ocidente” ), “E erguendo, como um nome, alto o
pendão / Do Império” ( “A última nau” ), “A mão do vento pode erguê-la ainda” ( “Prece” ), “Sem que um sonho, no
erguer de asa” ( “O quinto império” ), “E erguer-te do fundo de não seres”, “Vem, Galaaz com pátria, erguer de
novo” e “Mestre da Paz, ergue teu gládio ungido” ( “O desejado” )
1 4
Surgir em “O infante”, “Ascensão de Vasco da Gama”, “A última nau”, “Antônio Vieira” e “Calma”; apanhar em
“Afonso de Albuquerque”; despertar em “Terceiro”; ascender em “Ascensão de Vasco da Gama”; e chamar em
“Antemanhã”.
dois querubins com espada de fogo. D. Henrique é, no poema, o intermediário de Deus que “é
o agente” , e cuja espada em “suas mãos achada” lhe outorga a condição de nobre cavaleiro,
de herói da fé, ao lado do rei Artur, de Rolando, Carlos Magno, etc.
A espada vai estar presente na caracterização de outros heróis-cavaleiros da
Mensagem como os que a seguir passamos a enumerar. D. Afonso Henriques ( “A bênção
como espada, / A espada como bênção!” ), é portador e virtual doador de um gládio desejado
como instrumento de sagração dos novos cruzados da hora “errada”: aquela do presente da
enunciação marcado pela consciência do vazio histórico e pela conseqüente espera
messiânica. Para D. Fernando ( “Deu-me Deus o seu gládio porque eu faça / A sua santa
guerra” ), a espada aparece como símbolo do herói, simultaneamente talhado para a “honra” e
para a “desgraça”. Nun'Álvares Pereira é o detentor de uma espada que é também auréola.
Ela é, por isso, tomada como representação de sua dupla heroicidade de guerreiro e de santo,
condição que muito se presta à concepção místico-nacionalista que, na Mensagem, Fernando
Pessoa faz da história portuguesa.
A exemplo de alguns outros poemas dessa epopéia pessoana, este de que o conde D.
Henrique é feito personagem apresenta uma estrutura de sentido baseada numa extrema
economia verbal e imagística. Em apenas oito versos, alternados em segmentos métricos de
oito e quatro sílabas, encontramos um número restrito de núcleos de sentido: o começo
involuntário, os agentes e o instrumento da ação iniciática. Ressalte-se ainda que ocorrem
algumas reduplicações morfológicas ou semânticas: “espada” aparece duas vezes e
“involuntário” está de certa forma retomado em “vário” e em “Inconsciente”. Estes aspectos do
plano da manifestação poemática ratificam a caracterização do conde D. Henrique como o
herói do ato criador insciente.
Igualmente, ainda, a outros da Mensagem, este poema apresenta uma estrutura de
raciocínio dedutivo. Partindo de um conceito generalizador, universalista, contido nos quatro
primeiros versos, ele se encerra, nos quatro últimos, com uma exemplificação particularizada.
E tal estrutura se reduplica na manifestação semântica do poema. Vejamos que, no primeiro
movimento, encontram-se três sujeitos marcados pelo caráter de generalidade e imprecisão
( “Todo começo”, “Deus” e “O herói” ), o que se reforça pelos três predicativos ( “involuntário”,
“vário” e “Inconsciente” ). Na segunda metade do texto, ao contrário, os pronomes possessivos
e pessoais ( tuas, teu, eu e a ) explicitam a noção de particularidade e de definição. E assim
se articula o diálogo interno do poema: a exemplo de todo herói, que é “inconsciente”, o herói
involuntário do começo de Portugal se pergunta sobre o que fazer com sua espada, e, pelo
simples gesto de erguê-la, faz a Pátria.
2.2.4.. “D. Tareja” - “... Mãe de reis e avó de impérios”
24-9-1928
Como vimos a propósito do poema anterior, podemos entender que Fernando Pessoa
situa D. Tareja, juntamente com seu marido, na proto-história de Portugal. Mas não a concebe
conforme, ao longo dos tempos, configurou-se o seu perfil. A história, a tradição e a literatura
lhe traçaram um caráter ambivalente e negativo: o de mulher tenaz, mas ambiciosa; ciosa de
poder e mando, mas intriguista; zelosa na manutenção e ampliação dos domínios legados pelo
marido, mas disposta até mesmo -- em detrimento do filho Afonso Henriques -- a dividi-los com
Fernão Peres de Trava, seu aliado e pretendente a segundo marido. Camões, invocando
mitos gregos, assim a define:
9-2-1934
1 7
A propósito desta descontinuidade no relato da história portuguesa, explica Antônio Cirurgião: “São nove os reis da
primeira dinastia e, entre eles, escolheu o poeta dois: o primeiro e o sexto. Repare-se, aliás, que é sob o número seis,
número da perfeição, que D. Dinis (1261-1325) aparece no Campo dos Castelos; e repare-se também que o último dia
da criação foi o sexto, segundo o Genesis. É como se, com D. Dinis, a criação de Portugal ficasse completa, no seu
aspecto ontológico”.
18
Os lusíadas, C. III, E. 96-97.
19
Cf. o poema “Horizonte”, segundo de Mar português.
Finalmente, no tríptico de versos que encerra o poema, ocorre uma condensação-
superposição de sentidos diferentes ou por ventura opostos: com relação ao objeto de
referência ( o som ), “a fala dos pinhais” é “marulho obscuro”; no plano temporal, o “som
presente” é do “mar futuro; e com respeito à dimensão espacial, este som “É a voz da terra
ansiando pelo mar”. A condição de agente inaugural, de arauto e precursor de que D. Dinis é
portador, encontra-se marcada no texto através de inúmeras e redundadas expressões: “a
haver”, “ondulam sem se poder ver”, “por achar”, “marulho obscuro”, “mar futuro” e “ansiando”.
12-2-1934
26-9-1928
D. Filipa e D. Tareja são -- já o frisamos antes -- as únicas presenças femininas na
Mensagem, de Fernando Pessoa. Recebem elas do poeta-narrador desta epopéia a
caracterização de antecessoras de momentos primordiais e epifânicos, predestinação divina
que cumprem ao lado de seus maridos. Estes -- cada um no seu tempo e pelas razões
próprias de suas existências -- são heróis involuntários da hora predestinada, para quem
“Deus é o agente”, no momento “Quando Deus faz e a história é feita”. E assim, como
mediadoras entre Deus e o destino dos homens e do Império, elas são concebidas pelo
narrador como atualizações portuguesas do mito cristão da Virgem Maria. Por isso, os poemas
em que são referenciadas apresentam um tom de ladainha. Aqui também se verifica a
atmosfera de mistério ( “Que enigma havia em teu seio” ) com que se abre o poema relativo a
D. Tareja ( “As nações todas são mistérios” ) e que reduplica o dogma da concepção de Maria.
Aqui, também, a mãe da chamada Ínclita Geração, “Que só gênios concebia” a partir de
sonhos velados por arcanjo -- Gabriel lusitano --, é o “Humano ventre do Império” de que seus
descendentes se tornariam fundadores. E o poema se encerra, igualmente àquele de que sua
antecessora é personagem, com o apelo messiânico através do qual se produz uma espécie
de nova aderência mítica ( “Volve a nós” ). Notemos, a propósito, que todo ele é organizado a
partir de uma estrutura apostrófica com base numa interrogação retórica e numa interpelação
vocativa. Nesta invocação, a rainha se torna destinatária dos epítetos “Princesa do santo Gral /
Humano ventre do Império / Madrinha de Portugal”, por sua condição de mãe primeira de uma
dinastia de fundadores do Ultramar, onde Portugal teria demandado o novo Graal: o Império
conquistado na era dos descobrimentos. É, de fato, ainda, pela condição de dedicada mãe, de
protetora dos desamparados e de devota piedosa de D. Filipa que Fernando Pessoa concebe
o primeiro destes epítetos. Com efeito, é possível depreender-se o desdobramento da
simbologia do graal no mito cristão em três planos que, entretanto, são entre si
complementares. Ele teria sido utilizado por Cristo na Santa Ceia, nele se teria recolhido o
sangue do Cristo agonizante e, ainda, na liturgia católica, ele é lembrado no cálice da
consagração. Em todos esses planos está presente a noção de bondade, de altruísmo de que
também se revestem a história e a lenda em torno de D. Filipa. Por outro lado, ainda, pode ser
observada nessa alusão pessoana a referência à condição de novos cruzados que alguns dos
membros da chamada Ínclita Geração assumiram: o Infante D. Henrique empreendeu a
sistematização da conquista do mar; o rei D. Duarte e D. Fernando, o Infante Santo,
envolveram-se dramaticamente na investida africana de que resultou o sacrifício do último; D.
Pedro, depois feito regente, foi o Príncipe das Sete Partidas.
Por tudo isso, o apelo que abre a segunda estrofe se consuma como um novo
investimento messiânico. Através dele, no presente da enunciação, suplica-se que seja
permitida a demanda de um outro Graal que resulte na fundação de um novo império, o da
transcendência, que será configurado na terceira parte da Mensagem, O encoberto.
2.3.1. “D. Duarte, rei de Portugal” - “A regra de ser Rei (...) contra o
Destino”
26-9-1928
É, com efeito, nesta visão fatalista em relação ao Reino e ao Rei que se fundamenta o
foco narrativo da Mensagem. Ela aparece ressaltada no determinismo do “dever” e da “regra”,
diante do qual o personagem se confessa passivo. Por sua vez, o questionamento em torno
dos efeitos das leis da “Fortuna” sobre o monarca e seu governo ecoa nitidamente nos dois
versos finais do poema pessoano: “Cumpri contra o Destino o meu dever. / Inutilmente? Não,
porque o cumpri”. E a “tristeza” e a “firmeza” que encerram os versos 4 e 6 da oitava
renascentista não estariam condensadas na expressão pessoana “Firme em minha tristeza”?
Por outro lado, finalmente, a “lei” sobre que se interroga Camões não viria a ser a “regra de ser
Rei” do texto da Mensagem?
2.3.2. “D. Fernando, infante de Portugal” - “Cheio de Deus”
21-7-1913
Como vimos no tópico anterior, a vida -- e mais ainda a morte -- de D. Fernando está
diretamente ligada aos destinos da existência e do mandato real do irmão Duarte. Sob suas
indecisas ordens, ele embarcou para a fatal empresa africana que, malograda, resultou no seu
aprisionamento e morte (1443). Seu prolongado martírio se deu paralelamente a irresolutas
negociações em torno de seu resgate. Sua história foi, contudo, marcada por traços bem
definidos: a determinação com que, imbuído da ideologia da guerra santa, abraçou a
empreitada; o patriotismo e a resignação com que se entregou ao suplício imposto pelo
inimigo; o estoicismo com o qual assistiu ao abandono de seus aliados, entre eles o próprio
irmão Infante D. Henrique. A história e a lenda de seus sacrifícios lhe conferem a condição de
Infante Santo.
Esta matéria de extração histórica se encontra metaforicamente configurada no poema
através do qual D. Fernando é inscrito na história portuguesa da Mensagem. No primeiro
movimento, constituído pelas duas estrofes iniciais, temos a sagração do herói, submetido aos
ditames divinos, a partir dos quais aparece tragicamente ungido pelo seu dúplice pendor para
a “honra” e para a “desgraça” ( “Deu-me Deus”, “Sagrou-me seu”, “doirou-me / A fronte” e
“Pôs-me as mãos sobre os ombros” ). Esta noção de duplicidade pode ser também identificada
no gládio ( espada de dois gumes ), instrumento com o qual o herói, fazendo “A (sua) santa
guerra”, encontra a morte, mas, também, a iluminação e a santificação ( “... e a luz do gládio
erguido dá / Em minha face calma” ). Neste aspecto, por sinal, D. Fernando se aproxima de
Nun'Álvares Pereira, cuja espada, como adiante veremos, é também auréola. E não faltam
aqui, a exemplo do poema sobre D. Duarte, elementos que configuram uma ambiência de
tragédia ( “Às horas em que um frio vento passa / Por sobre a fria terra” ). E isso contribui para
que, nesse texto, cumpra-se, o mais plenamente à risca, o conceito com que se abre o poema
“O das quinas”, que preceitua que “Os Deuses vendem quando dão. / Compra-se a glória com
desgraça”.
No segundo movimento, correspondente à terceira estrofe, o personagem se torna
sujeito de sua ação que consiste apenas em cumprir o ditame divino ( “E eu vou” ) e de,
resignadamente, aceitá-lo:
Cheio de Deus, não temo o que virá,
Pois, venha o que vier, nunca será
Maior do que a minha alma.
Este poema, pelo que ficou acima demonstrado, tem relevante importância dentro da
estrutura de sentido da Mensagem. Sob o título de “Gládio”, ele apareceu pela primeira vez
nas provas de página do número 3 de Orpheu (1915), que não chegou, contudo, a ser
publicado. Ressalte-se que, datado de 21/07/13, muito certamente ele não foi concebido para
integrar a arquitetura poética desta epopéia e, ainda, que não dizia respeito ao chamado
Infante Santo. Estava muito mais provavelmente relacionado com um projeto de idêntico título,
concebido sob a inspiração da idéia do Super-Camões preconizada no ano anterior. O eu lírico
que nele se manifesta atualizava, pois, não o do personagem que o assume na versão final,
mas o próprio sujeito da escritura, funcionando, nesse caso, como o do poema “Terceiro” d'O
encoberto.
Além do título original que, considerada a hipótese acima, seria metáfora do próprio
fazer poético, apenas duas alterações são substancialmente significativas na versão definitiva.
Na primeira, encontramos a substituição de “gênio”, referência ao poder criador do poeta, por
“honra”, termo mais apropriado à caracterização do herói místico, cavaleiro da guerra santa
martirizado e morto. A segunda se dá pela substituição do sintagma “querer justiça” por
“querer grandeza”, mais consonante com o ideal de expansão do império e da fé, professado
pelo Infante Santo.
Segundo afirma Jacinto do Prado Coelho a propósito da versão original,
Aí é o poeta que fala de si próprio, que a si próprio se define de modo místico: sagrado
por Deus “em gênio e em desgraça”, faz na terra “a Sua santa guerra”, com destemor
confiante por se sentir “cheio de Deus”; com o “gênio” recebe a “febre de Além” que o
consome e o “querer-justiça”. 20
“O que fora interiorização lírica das agruras da criação passa a ser a expressão dum
destino histórico negativo”. 21
20
COELHO, Jacinto do Prado. A letra e o leitor. Lisboa, Moraes, 1977, p. 130.
21
ROCHA, Andrée. “Fernando ou D. Fernando”. In: Temas de literatura portuguesa. Coimbra, [s. ed.], 1986, p. 139.
2.3.3. “D. Pedro, regente de Portugal” - “Dúplice dono (...) de dever e de
ser”
15-2-1934
Quarto filho dos iniciadores da dinastia de Avis, D. Pedro ( 1392 - 1449 ) tomou parte,
ainda sob o reinado do pai, na campanha da conquista de Ceuta, o que lhe valeu o título de
Duque de Coimbra. Entre 1425 e 1428, viajou por quase toda a Europa, pelo que ficou
conhecido como o Príncipe das Sete Partidas. Esta empreitada lhe rendeu a aquisição de um
vasto conhecimento e de larga experiência sobretudo no trato de relações diplomáticas. Muito
dado ao estudo e à reflexão, deixou obras de tradução e escritos próprios de aguda
sensibilidade como a Virtuosa benfeitoria. Inteligente, culto e experimentado, tentou influir no
governo de D. Duarte com lúcidos conselhos, principalmente contrários à expansão africana.
Neles chegou mesmo a prever, com detalhes de estrategista e presumida visão profética, o
desastre de Tânger, após o qual morreu cativo o irmão Fernando. Sua concepção moderna de
política européia em muito contribuiria para a mudança de rumos que imprimiria à
administração do mandato regencial que, entre 1440 e 46, exerceria em nome do sobrinho
Afonso, depois aclamado Quinto. Assim é que, contrariando os interesses da nobreza
senhorial, trocou a política de fixação de domínios no norte da África pela do ouro, do
comércio e da colonização interna. Com vistas ao incremento do mercantilismo burguês,
juntamente com seu irmão, o Infante D. Henrique, incentivou a arremetida para os
descobrimentos como forma de promover a expansão comercial e marítima. Em 1446, antes
de passar o governo ao príncipe herdeiro que contava 14 anos, promulgou as Ordenações
afonsinas, primeiro código civil português. Operou também reformas na Universidade, visando
ao aprimoramento dos quadros dirigentes do Reino.
As intrigas e detrações da nobreza atingida em suas ambições senhoriais lançaram o
jovem rei contra seu tio, sogro e antigo regente. Assim, declarado desleal, veio a receber
intimação para que escolhesse entre a morte, a prisão perpétua ou o desterro. Ao tentar
chegar a Lisboa para clamar por justiça, foi morto em Alfarrobeira pelo exército real.
Esta terceira quina do Brasão da Mensagem se constitui como que numa biografia
poética desse infante regente, traçando-lhe o perfil essencial das contradições que marcaram
a sua existência. O caráter apolíneo de sua trajetória não comportaria sem dúvida num
discurso de pura confissão e de intimismo, características presentes nas outras quatro quinas.
Por isso, verificam-se no poema duas modalidades discursivas: num primeiro momento, o
personagem é falado em terceira pessoa; num segundo, ele confessa a sua condição de
excluído da Sorte, mas se revela “Calmo sob mudos céus” e resignadamente firme na postura
que imprimiu às suas decisões ( “Fiel à palavra dada e à idéia tida” ). E o verso que encerra o
poema ( “Tudo mais é com Deus!” ) ainda um vez o inscreve no rol dos estóicos submetidos
aos superiores ditames divinos.
D. Pedro é, na Mensagem, um herói trágico, mas uno e pleno em sua duplicidade, o
que, contudo, não implica dilema. Marca disso é a redundância do adjetivo “claro” que, na
abertura do poema, confere predicado às três dimensões de seu caráter e de sua ação: o
pensar do estrategista e do espírito contemplativo, o sentir do escritor e planejador profético e
o querer do administrador pragmático. Foram estes os três requisitos que o instrumentalizaram
para ficar “Indiferente ao que há em conseguir / Que seja só obter”. Ou seja: posicionar-se
contrariamente à proposta de dar continuidade à política de fixação de domínios na África,
numa nítida opção pela modernidade fundada no mercantilismo e na expansão atlântica. Ou,
ainda em outros termos, assumir a opção daqueles que estão para além do “ter” que “é
tardar”, peculiaridade marcante de todos os heróis d'As Quinas. D. Pedro é, pois, um herói uno
em todas as suas adversidades: na vida e na morte ( “Assim vivi, assim morri, a vida” ),
sempre integralizado (“Dúplice dono, sem me dividir, / De dever e de ser”).
Com efeito, o dever e o ser, isto é, a ética e a ontologia ou, por outras palavras, a
EXISTÊNCIA e a ESSÊNCIA são as polaridades de sentido que estruturam todo este poema.
Elas são, contudo, fusionadas com a finalidade de dimensionar a integridade deste herói-
mártir das vicissitudes e mazelas políco-econômicas do seu tempo. Vejamos como elas se
acham simetricamente reduplicadas na construção semêmica do texto, apresentando duas
ocorrências em cada movimento:
28-3-1930
NULIDADE PLENITUDE
Inutilmente <---- X ----> eleita
\ /
\ /
/ \
/ \
Virgemente <---- X ---->parada
PLENITUDE NULIDADE
20-2-1933
2 2
Em panfleto datado de 1923, escrevia Fernando Pessoa em defesa de Raul Leal: “Loucos são os heróis, loucos são os
santos, loucos os gênios, sem os quais a Humanidade é uma mera espécie animal, cadáveres adiados que procriam”.
Esta forma apositiva final aparece ainda numa ode de Ricardo Reis ( Cf. PESSOA, Fernando. Obra poética. Rio de
Janeiro, Aguilar, 1969, p. 289 ).
Ou, por outros termos ainda, como aquele que apenas “é carne, cujo pó / A terra espreita” ( Cf.
“D. João o primeiro” ).
É, pois, esta sagrada e sagradora loucura que faz de D. Sebastião o herói-síntese da
Mensagem. A este propósito, considera Georg Rudolf Lind que
2 3
LIND, Georg Rudolf. “Fernando Pessoa e a loucura”. In: Estudos sobre Fernando Pessoa. Lisboa, Imprensa
Nacional / Casa da Moeda, 1981, pp. 480-1.
2.4. A Coroa -- “Nun'Álvares Pereira” - “S. Portugal em ser”
'Sperança consumada,
S. Portugal em ser,
Ergue a luz da tua espada
Para a estrada se ver!
8-12-1928
Consta da história de Nun'Álvares Pereira (1360-1431) que ele teve sua adolescência
marcada por uma formação cavaleiresca e que, com a morte de D. Fernando (1383) e a crise
de Estado conseqüente das alianças de Leonor Teles com os leoneses e castelhanos, tornou-
se aliado de D. João, o Mestre de Avis. Com esta opção teria passado a partilhar dos ideais
daqueles que detinham a consciência dos perigos que a rainha viúva representava para a
independência do Reino. Desta relação resultou ter sido alçado à condição de chefe do
exército que tomou D. João como líder da luta civil e da guerra com Castela. Foi nessas lides
que revelou o grande poder de comando e a elevada capacidade de estrategista, culminados
com a vitória em Aljubarrota ( 14 de agosto de 1385 ). Seus sucessivos feitos de guerra o
tornaram merecedor, por parte do Mestre de Avis, de inúmeras outorgas efetivadas em
honrarias e posses materiais. Passado o período de beligerância, adveio outro de grande
animosidade entre ele e os conselheiros do rei. É que, contrariando a política de centralização
do Reino, o Condestável Nun'Álvares se dava o poder, inclusive, de distribuir posses
territoriais a companheiros de arma. Em 1423, teve início o ciclo final de sua existência.
Desiludido, renunciou aos bens e complicações da vida mundana, para ingressar, sob o nome
de Frei Nuno de Santa Maria, no Convento da Ordem dos Carmelitas, como donato humilde,
pobre e mendicante. Com o tempo, o povo passou a lhe atribuir bem-aventuranças que a
Igreja, séculos depois, viria a reconhecer, outorgando-lhe, em 1918, a beatificação.
O poema que assegura a sua inserção na Mensagem, a exemplo do que ocorre nos de
D. Tareja e D. Filipa de Lencastre, apresenta uma estrutura fundamentada na ocorrência de
apóstrofes e de súplicas. Mais uma vez acontece de o narrador lançar mão da estrutura de
uma ladainha da liturgia com que reverencia figuras destacadas de sua mítica nacionalista. No
primeiro movimento ( duas estrofes iniciais ) a enunciação se dá apostroficamente à forma de
perguntas e respostas, a partir das quais opera uma construção em quiasmo: a “auréola” é a
“espada” e a “espada” é (faz) o “halo no céu”. No movimento final, a apóstrofe assume um
caráter de súplica ( “Ergue a luz da tua espada / Para a estrada se ver!” ), antecedida de
epítetos ao personagem, como é corrente nas ladainhas ( “Sperança consumada, / S. Portugal
em ser” ).
A este propósito recordemos que, por reunir, na figura do novo Galaaz, as duas noções
antitéticas de MATERIALIDADE e ESPIRITUALIDADE, este poema apresenta também uma
fusão de duas instâncias de enunciação. Nas duas primeiras estrofes o herói é apresentado
pelo narrador a partir da articulação enfática de perguntas e respostas. Ocorre, pois, aí um
processo de interiorização ( ESPIRITUALIDADE ) pela pergunta, e de exteriorização
( MATERIALIDADE ) pela resposta oferecida pelo próprio sujeito da enunciação. Até porque,
ainda, a “auréola” e o “halo”, símbolos de santidade sobre que se indaga, são a própria
“espada”, símbolo do guerreiro que atuou na construção material do Reino. Na última estrofe
do poema, o sujeito da enunciação, à forma de apóstrofe, dirige-se ao personagem no apelo
messiânico final, o que, de certo modo, os identifica e equipara, tornando-se um o pretendente
à continuidade do outro ( “Ergue a luz da tua espada, / Para a estrada se ver!” ). A espada é,
pois, o elemento centralizador do foco evocativo-laudatório do poema. Ela está presente em
todas as três estrofes e, também, sempre associada às noções de luminosidade e de unção.
Com efeito, Nun'Álvares Pereira é o portador de uma espada que, sendo
simultaneamente auréola, credencia-o como símbolo da plena heroicidade, por incorporar a
dupla condição de guerreiro e de santo. E esta duplicidade do herói identificado como a Coroa
que encima os dois campos do Brasão muito se presta à concepção místico-nacionalista que,
na Mensagem, Fernando Pessoa faz da história portuguesa: a de uma trajetória
simultaneamente marcada pela ação heróica e pela busca de transcendência. Pode-se dizer,
aliás, que, na simbologia organizada neste livro-poema, o Santo Condestável é superado em
importância somente por D. Sebastião. Afinal, este último é o herói maior que, ungido pela
“loucura” de “querer grandeza”, transpõe-se para além da dimensão humana, a do “Cadáver
adiado que procria”, constituindo-se como mito-síntese da lusitanidade.
2.5. O Timbre 24 - “O globo mundo em sua mão”
“A cabeça do grifo
O infante D. Henrique”
Em seu trono entre o brilho das esferas,
Com seu manto de noite e solidão,
Tem aos pés o mar novo e as mortas eras --
O único imperador que tem, deveras,
O globo mundo em sua mão.
26-9-1928
26-9-1928
26-9-1928
2 4 .
Fernando Pessoa havia publicado na revista O mundo português, nos 7-8, de julho-agosto de 1934, um “Tríptico”
que continha os dois primeiros dos poemas que se seguem. Atribuía-os aos mesmos personagens, só que em ordem
inversa de nomeação e sem configurá-los como “A cabeça” e “Uma asa do grifo”. Consideramos, porém, que esta
inversão de títulos na composição final da Mensagem representa a última vontade do poeta, de resto confirmada no
exemplar da primeira edição, sobre o qual fez várias anotações manuscritas. O poema dedicado a Afonso de
Albuquerque era, contudo, outro. Cf. PESSOA, Fernando. Mensagem - Poemas esotéricos. Edição crítica. José
Augusto Seabra (coord.). Coleção Archivos. Madrid, UNESCO, 1993, pp. 39-41.
representação heráldica de Portugal a partir do reinado de D. João I, o qual é encimado por
uma serpente alada. O grifo é, com efeito, o timbre do Brasão do Infante D. Henrique -- em
nada mais de essencial divergente daquele de seu pai. E é precisamente este que o poeta da
Mensagem elege como o emblema da Nação a ser poetizado. E não é por outra razão que, na
composição metafórico-metonímica da epopéia pessoana, a cabeça deste ser fabuloso é
ocupada justamente por este infante dos mares.
Animal legendário , com cabeça e asas de águia e corpo de leão, o grifo traz em si
representada a noção da dupla natureza solar e sombria dos elementos que o constituem.
Eles são relacionados às idéias de sabedoria, justiça e poder, mas também às de orgulho,
desgraça e opressão. Desta forma, associam-se igualmente à dúplice essência dos seres, a
humana e a divina, assim como à dupla condição da existência: a vida e a morte. Por isso é
que, em certas mitologias, consta que a águia, por aproximar-se demasiado do sol, incendeia-
se, mas se atira na água e renasce. Em outras tantas, concebe-se que o leão engole o dia no
crepúsculo e o vomita na aurora, simbolizando desta forma a perene revitalização das
energias cósmicas. E ainda, em várias culturas, águias, leões e também grifos são tomados
como monstros guardiães de tesouros.
Na Mensagem, Fernando Pessoa entende o grifo como antecipada e sintética
figuração da história da navegação portuguesa, da arrancada da terra para o mar. E cabe já
aqui considerar a significação que se pode inferir das duas feições constitutivas do ícone
legendário escolhido: como leão, rei dos animais e dominador da terra; e, como águia, rainha
das aves, vocacionada para as alturas e para a distância. Tem-se, pois, a figuração da
passagem da fixação na terra para a busca dos limites do “mar sem fim”, tal como aparece
referenciado no poema “Padrão”, de Mar português. E mais: o altruísmo luminar pressuposto
no projeto expansionista da fé e da cultura ( caracterizado no poema “O infante D. Henrique” e
em parte do “D. João o segundo” ) resultou no exercício de uma dominação até mesmo
cruenta ( sugerida em parte do poema de D. João e em quase todo o “Afonso de Albuquerque”
). Ou, ainda, se observarmos o ciclo histórico que a Nação cumpre: a sedentariedade na terra
seria a morte para um Portugal que procurou renascer num plano maior, através do
investimento num império do mar. Uma vez cumprido, este império “se desfez”, restando-lhe
ainda ressurgir na dimensão transcendente de uma nova “Distância -- / Do mar ou outra, mas
que seja nossa!” 25 Outras oposições podem ser ainda -- e por fim -- identificadas,
principalmente com relação aos dois personagens que ocupam as asas do grifo pessoano: D.
João II e Afonso de Albuquerque. Entre elas pode ser enumerado, por exemplo, o
antagonismo entre a condição de Rei de um e a de vassalo Vice-Rei do outro, ou, ainda, a de
quem fica no Ocidente e a de quem parte para o Oriente, etc.
Carlos Castro da Silva Carvalho considera que o grifo da Mensagem simboliza a
transposição de Portugal para um umbral superior no seu processo iniciático. Neste processo,
é necessário que o cavaleiro, para cumprir a sua missão, tenha de lutar com o dragão e de o
vencer, a fim de que possa eliminar as categorias pelas quais se antagonizam. Mas o
processo somente se encerra com a morte de ambos os lutadores e a sua reunião num só
corpo que é o grifo, a que os ocultistas chamam de “pedra astral”. E conclui, considerando que
Na Mensagem, o grifo representa seguramente a conclusão da luta do homem com o
mar, a empresa das descobertas, a reunião do conhecido com o desconhecido, do
Ocidente com o Oriente, e a respectiva aniquilação dos lutadores: a perda da
independência que logo se seguiu e a perda progressiva do império. 26
2 5
Fazemos aqui referências ao primeiro e último poemas da segunda parte da Mensagem, respectivamente, “O
infante” e “Prece”.
2 6
CARVALHO, Carlos Castro da Silva. “Aspectos formais do nacionalismo místico da Mensagem”. Colóquio /
Letras. Lisboa, 62: 26-35, jul. de 1981, p. 31.
De qualquer forma, segundo a ótica seletiva e o discurso sintético do narrador da
Mensagem, a história da navegação portuguesa cumpre o seu ciclo pleno no transcurso de
pouco mais de um século, desde o Infante D. Henrique a D. João II e Afonso de Albuquerque.
O Infante (1394-1460) é o quinto descendente de D. João I e Filipa de Lencastre. Consta ter
sido um dos homens mais clarividentes do seu tempo: na guerra, soube dar decisão à
conquista de Ceuta; na vocação inata para estadista, mostrou-se um ecumenista na sua
concepção de expansionismo da cristandade, tornando-se um precursor do destino de
Portugal no âmbito do domínio dos mares. Neste particular, a história e a lenda lhe têm
atribuído a fundação da Escola de Sagres. Seja enquanto instituição -- aliás, de existência
duvidosa -- seja enquanto método experimentalista de navegar, é fato que, a partir desse
infante, desencadeou-se o expansionismo português pelos oceanos. Por isso é que o narrador
o identifica como a cabeça do grifo, e nele sintetiza a posse dos mares. E, por isso, ele o
associa ainda a Atlas, quando coloca “O globo mundo em sua mão”. Este gigante, filho de
Jápeto, significativamente, tem sua morada no extremo Ocidente, o que é facilmente
identificável com a posição geográfica de Portugal na Europa, tal como aparece referenciada
no poema “Ulisses” ( “O rosto com que fita é Portugal” ). A mitologia também atribui ao gigante
a condição de astrônomo e o fato de ter ensinado aos homens as leis do céu pelas quais
teriam passado a se orientar. E será que, pelo símile pessoano, não teria sido precisamente
essa a missão cumprida pelo mentor da Escola de Sagres em relação aos navegantes seus e
futuros? Sua importância na Mensagem se marca, ainda, pelo fato de ser ele, depois de D.
Sebastião, o único herói que tem mais de uma presença no relato fragmentário e seletivo
dessa epopéia. Com efeito, estes dois heróis se identificam por uma peculiaridade que lhes é
comum: o sonho, isto é, o fato de terem sido, na história portuguesa, aqueles que apontaram
para um futuro que lhes era remoto. Na estrutura histórico-mítica do relato da Mensagem, o
Infante está na precedência do sonho imperial que se concretizou e a que D. Sebastião, na
decadência, pretendeu dar continuidade e amplitude. Ele é o homem que “sonha” aquilo que
“Deus quer” para que nasça a “obra” a ser dimensionada pela “grandeza” que D. Sebastião
não conseguirá realizar, mas que, numa dimensão espiritual, se proporá o resgate ( “É Esse
que regressarei” ). 27
Passemos agora ao estudo do segundo poema desta seção final do Brasão da
Mensagem. D. João II (1455-95), desde a juventude, atuou como príncipe regente, em função
de sucessivas ausências do pai, Afonso V, e, a partir de 1474, passou a dirigir a política
atlântica do Reino. Seu governo, com início em 1481, foi marcado por uma rigorosa
centralização do poder e pela continuidade do expansionismo através do Atlântico. Neste
particular, foram relevantes os sucessos de Diogo Cão pela costa meridional africana, de
Bartolomeu Dias até o Cabo das Tormentas, e de outros navegantes que, pelo Mediterrâneo,
atingiram o Egito e a Etiópia. Durante o seu reinado -- que o credenciou como o Príncipe
Perfeito -- firmou-se o Tratado de Tordesilhas (1494) e se desenvolveu uma política externa de
estreitos laços com os tronos da Europa e com Roma. Ainda sob seu comando foram,
certamente, iniciados os preparativos para as viagens de Vasco da Gama e de Pedro Álvares
Cabral, consumadas, respectivamente, três e cinco anos após sua morte.
O texto que lhe é dedicado no tríptico que constitui o Timbre caracteriza poeticamente
o substrato histórico acima exposto. No seu sistema de significação se pode constatar uma
dinâmica interna que reduplica metaforicamente a relação entre a noção de imponência do
poder deste Príncipe Perfeito e a de submissão do mundo por onde ele impôs o seu domínio.
Para constatar esta relação, observemos inicialmente que cada estrofe pode ser dividida em
duas metades. Nos dois dísticos iniciais de cada uma delas se referencia a primeira daquelas
noções e nos finais, a segunda. Assim, na imponência dominadora de sua postura de “Braços
cruzados”, semelhante a uma “alta serra” “em promontório” e com “Seu formidável vulto” que
2 7
Fazemos aqui referência, respectivamente, aos poemas “O Infante”, “D. Sebastião rei de Portugal” e “D. Sebastião”.
“Enche de estar presente o mar e o céu”, o rei navegador infunde submissão no “limite da terra
da dominar”, no “mundo vário” que “parece temer” que ele “lhe rasgue o véu”.
Afonso de Albuquerque (1462 ? - 1515), representado na outra asa do grifo, foi criado
na corte de Afonso V e serviu aos reinados de seus dois sucessores, João II e Manuel. O
último destes monarcas, depois de assistir às repetidas vitórias do vassalo no mar arábico
(Omã, Ormuz, etc.), nomeou-o Governador Geral da Índia em substituição ao Vice-Rei D.
Francisco de Almeida. A partir de então e, sob sua chefia, os portugueses se apossaram,
entre outros domínios, de Goa e Málaca que, juntamente com Ormuz, são os “Três impérios”
que “do chão lhe a Sorte apanha”. Ainda sob sua orientação, a colonização portuguesa se
fixou nos domínios orientais através de intenso processo de miscigenação fomentado pela
Metrópole. Esta estratégia passou, posteriormente, a ser adotada pela Holanda e pela
Inglaterra, e se lhe deu o nome de Método ou Princípio de Albuquerque. Sua personalidade e
atuação se marcaram por múltiplas e até contraditórias facetas. Por um lado, revelou sua
competência como capitão de frota, estrategista, administrador progressista e mesmo como
hábil diplomata. Estas qualidades, contudo, não apagaram de sua história a condição de
promotor de uma política colonial quase genocida, na tarefa que se impôs de estabelecer o
domínio português no Oriente. Segundo consta ainda de sua biografia, no final de sua
existência, teria sido ele alvo de invejas e intrigas cortesãs que o levaram ao descrédito
perante o rei, à destituição do cargo e à desgraça. Não é, pois, historicamente desmotivada a
referência lírica que, no texto, se lhe faz aos “olhos cansados / De ver o mundo e a injustiça e
a sorte”. E é de se notar ainda que este substantivo final aparece marcado pela negatividade,
o que o diferencia da sua ocorrência seguinte, no penúltimo verso do poema ( “Três impérios
do chão lhe a Sorte apanha” ). Aqui, a maiúscula alegorizante deixa claro que se referencia o
anterior lado luminar e épico deste dominador do Oriente.
Esses três personagens resumem, pois, mais de um século da história do
expansionismo português sobre os mares. E eles se encadeiam não só pela inserção de suas
existências na trajetória lusitana. Também é marcante, nos poemas em que fazem presença
na Mensagem, a ocorrência de recursos estéticos que lhes conferem unidade. Notemos, por
exemplo, a gradação que entre eles se estabelece, uma vez observemos a postura em que se
encontram os seus três personagens -- cada um a seu modo, com sua ação e em seu tempo --
representando o avanço do poder de Portugal pelos mares. O Infante, que pensou as
navegações e que, por isso, é a cabeça do grifo, está sentado “Em seu trono”. D. João II, que
ordenou as grande viagens, “De braços cruzados, fita além do mar”. Finalmente, Afonso de
Albuquerque, que consolidou o domínio, encontra-se “De pé sobre os países conquistados”.
Por outro lado, ainda, pés e mãos que, em quase todas as mitologias e na simbologia
tradicional, exprimem idéia de atividade e ao mesmo tempo de poder, de dominação,
aparecem nos três textos como signos poéticos que também conferem estruturalidade aos
personagens. O Infante, que está na primordialidade da história da navegação como seu
mentor, “Tem aos pés o mar novo e as mortas eras” e é “O único imperador que tem,
deveras, / O globo mundo em sua mão”. O pensar acarreta, pois, a inclusão dos dois símbolos
de ação e poder, exatamente porque precede, desencadeia e dá sentido à história da
navegação. D. João II se caracteriza por estar de “Braços cruzados” e pelo fato de que “
parece temer o mundo vário / Que ele abra os braços e lhe rasgue o véu”. Ele é, portanto, só
braços, de que as mãos são extremidades: mando e ação da missão de navegar. Afonso de
Albuquerque impõe a dominação “De pé sobre os países” que “Calcara (...) / Sob o seu passo
fundo”: só pés -- e, como no caso anterior, em duas ocorrências -- representando a imposição
do poder.
O poder, por sinal, aparece nos três poemas sempre associado à noção de solidão: o
primeiro personagem se apresenta “Com seu manto de noite e solidão”, o segundo com “Seu
formidável vulto solitário” e o terceiro distanciado do “submisso mundo” que criara “como quem
desdenha”.
O Timbre -- já o dissemos antes -- é a síntese antecipada da história da navegação,
assunto da segunda parte da Mensagem. Também sintéticos, dotados de uma singular
economia verbal e de uma condensada imagística são os poemas que o compõem, num
crescente de cinco, oito e dez versos, respectivamente. E este crescente no número de versos
não poderia, de certa forma, figurar a gradação do avanço do domínio português sobre os
mares? Gradativa também é a atitude dos três representantes desta dominação, se
observarmos a sua relação com o mundo conquistado. No primeiro é possível identificar a
postura de paz contemplativa de quem pensa o domínio futuro, pelo qual o povo que aqui ele
representa terá “O globo mundo em sua mão”. O segundo -- que, ainda em atitude de
contemplação, “fita além do mar” -- exibe já o seu “formidável vulto” que “Enche de estar
presente o mar e o céu” e faz “temer o mundo vário”. O terceiro, por fim, apresenta-se, já de
início, numa postura de agressor ( “De pé sobre os países conquistados” ), consciente de ser
“Tão poderoso que não quer / O quanto pode” sobre um “submisso mundo” que criou “como
quem desdenha”.
Esse processo de caracterização gradativa dos personagens se encontra também
ratificado na estrutura verbal dos três poemas. No primeiro, verifica-se a inexistência de verbos
de ação. A única forma verbal ocorrente é “tem”, a qual, usada duas vezes, apenas reitera a
noção da posse dos mares pensada pelo Infante. D. João, mesmo em sua atitude
contemplativa, “fita” a “terra a dominar”, e, no exercício de seu domínio, com seu “formidável
vulto (...) / Enche de estar presente o mar e o céu”. E, ainda, este mesmo mundo “parece
temer (...) / Que ele abra os braços e lhe rasgue o véu”, o que ratifica a potencialidade, a
virtualidade de ação desse herói da ordenação. Afonso de Albuquerque, por fim, direta ou
indiretamente, é sujeito de nada menos que nove verbos, todos eles de ação, tal a sua
condição de executor da dominação. Assim se representa, na estrutura verbal dos três
poemas, a efabulação metonímica do avanço gradativo do domínio português sobre os mares:
do pensamento à ordenação e desta à execução. Antônio Cirurgião encontra ainda outra
forma de ver a estrutura d'O Timbre da Mensagem, considerando-a como semelhante à
“concepção platônica do governo dos estados: os filósofos fazem as leis; os governantes
administram-nas; e os soldados executam-nas. (...) O Infante D. Henrique pensa; D. João II
manda; Afonso de Albuquerque faz”. 28 Podemos ainda, por nosso turno, considerar que essa
gradação em três etapas aparece também marcada na sucessão dos verbos ocorrentes no
verso inicial do outro poema que tem como personagem o mesmo D. Henrique e que abre a
história do Mar português: “Deus quer, o homem sonha, a obra nasce”.
Para finalizar, e retomando ainda a noção de domínio que, conforme vimos, aparece
reiterada nos três poemas, observemos que muito significativamente em todos eles ocorre o
termo “mundo”: “O globo mundo em sua mão”, “temer o mundo vário” e “submisso mundo”,
respectivamente. O “mundo”, na sua acepção de totalidade, aparece, pois, sempre marcado
pela notação de submissão, de domínio imposto pelos três heróis que são a síntese da
conquista do mar. Mais significativo ainda é verificar-se que, no poema do Infante, herói da
precedência, o sintagma “globo mundo” pode apresentar mais que apenas uma nova forma de
referir o mapa mundi. Américo da Costa Ramalho 29 levanta esta hipótese, considerando a
existência, no latim, da forma dupla: mundus, i, como substantivo, significando “adorno
feminino, ordem, universo”, e mundus, a, um, enquanto adjetivo e com o sentido de “limpo, a”.
Segundo ele, no espírito dos escritores latinos, as duas formas eram semanticamente
pregnantes, registrando que a adjetiva aparece ainda em Camões, na estrofe 85 do canto X
d`Os lusíadas: “Debaixo deste círculo onde as mundas / Almas divinas gozam...”. E o próprio
Ricardo Reis escreveu numa das odes a Lídia: “Furtivos retiremos do horto mundo / Os
depredandos pomos”. A partir dessas considerações, o reconhecido latinista supõe que
28
Op. Cit., p. 140.
29
RAMALHO, Américo da Costa. “O globo mundo em sua mão”. Colóquio - Revista de Artes e Letras. Lisboa, 17: 60-62,
fev. 1962.
Fernando Pessoa, como jogo verbal, teria utilizado “mundo” no duplo sentido: globo (do)
mundo e globo limpo, perfeito, intacto, completo. Muito mais pertinente é a sua hipótese, se
considerarmos que essa ocorrência se dá precisamente no poema do Infante D. Henrique,
aquele que, na precedência da dominação, apenas sonhou, idealizou, pensou o império que
se faria futuro.
3. SEGUNDA PARTE - MAR PORTUGUÊS
Possessio maris.
1
As referências em algarismos romanos indicam os oito primeiros poemas da segunda parte da Mensagem em que se
encontram as expressões destacadas
Mar português é, dentre as três partes da Mensagem, aquela que mais se aproxima do
que tradicionalmente se concebe como estrutura épica. O seu pórtico de abertura ( Possessio
maris ) já a identifica com o tema d’Os lusíadas e indica a idéia de ação grandiosa, própria do
discurso inaugurado por Homero. Apresentando um relato seletivo e fragmentário -- o que, de
resto, acontece nas demais --, é, contudo, a parte em que se configura um fio narrativo mais
aparente e mais consonante com a realidade da História. Até mesmo o número dos poemas
que a compõem -- doze ao todo -- parece sugerir uma idéia de unidade, uma vez que seu
arcabouço de sentido encontra identificação principalmente com o mito cristão que funciona
como uma das mais consistentes estruturas de base de todo o livro-poema. Não bastasse
entender que o caminho para a ascensão aos céus se fez pela via do padecimento e morte, só
justificáveis pela determinação do cumprimento de uma missão que “Deus quer”. Antônio
Quadros enumera algumas das ocorrências dessa relação entre o número doze e a idéia
mítica de plenitude:
os 12 filhos e as 12 tribos de Israel, os 12 frutos da árvore da vida, os 12 discípulos de
Cristo, as 12 portas da Jerusalém Celeste no Apocalipse de S. João, os 12 fundamentos
da Cidade do futuro, em ouro fino, o número da Igreja triunfante, o número do ciclo
completo do cumprimento, que por isso é o número dos Cavaleiros do Rei Artur, que hão
de encontrar o Graal perdido. 2
2
QUADROS, Antônio. A idéia de Portugal na literatura portuguesa dos últimos 100 anos. Lisboa, Fundação
Lusíada, 1989, p. 166.
3
LOURENÇO, Antônio Apolinário. “Mar português: aventura e iniciação”. Colóquio / Letras. Lisboa, 113-114: 125-
136, jan.-abr., 199O.
3.1. “O infante” - “Quem te sagrou criou-te português”
Na apóstrofe que abre o poema, verifica-se que o feito do povo navegador consistiu na
transformação do MITO ancestral em REALIDADE, configurada metonimicamente na
constatação de que os “medos / Tinham coral e praias e arvoredos”. E este desvelamento se
manifesta à forma da oposição sêmica entre Obscuridade ( “noite”, “cerração”, “mistério” ) e
Claridade ( “Abria em flor”, “Splendia” ). A dinâmica da ação desveladora se apresenta,
contudo, mais evidente na narratividade que é possível inferir, se observarmos, na segunda
estrofe, a gradação que se estabelece entre as expressões indicativas de movimento com
notação de aproximação: “longínqua costa” ---> “nau se aproxima” ---> “Mais perto, abre-se” ---
> “no desembarcar”. Esta gradação, aliás, já se encontrava de certo modo sugerida na
enumeração contida no primeiro verso do poema: “coral” ---> “praias” ---> “arvoredos”. Estes
recursos estéticos indicativos da ação gradativa do povo navegante reduplicam de alguma
forma, no primeiro movimento, a noção de que o vazio do MITO ( “onde o Longe nada tinha”, )
é preenchido pela REALIDADE ( “há aves, flores” ).
O segundo movimento encerra um conceito genérico, porque se reporta à trajetória
histórica portuguesa e, por projeção metonímica própria da epopéia, à existência humana. Por
ele se constata que o sonho ( do Infante, do povo português e do Homem ) “é ver
(REALIDADE) as formas invisíveis” (MITO). É, enfim, “Buscar na linha fria do horizonte
(MITO) / (...) / Os beijos merecidos da Verdade” (REALIDADE). Esta formulação aparecerá
ainda em outros poemas de Mar português como “Epitáfio de Bartolomeu Dias” ( “Dobrado o
Assombro, / O mar é o mesmo” ) e “Os colombos” ( “a Magia que evoca / O Longe e faz dele
história” ).
Antônio Cirurgião observa ainda, a propósito da estrutura de sentido deste poema, que
a viagem marítima e cósmica é transubstanciada em viagem iniciática e mística, chegando
mesmo a levantar a possibilidade de as suas três estrofes representarem as três fases de um
percurso de iniciação: a demanda, o achamento e o prêmio. 6
4
A este respeito e mais sobre o Velho do Restelo, Adamastor e Ilha dos Amores, veja-se QUESADO, José Clécio
Basílio. “Um percurso pelo alegórico n‘Os lusíadas”. Convergência. Rio de Janeiro, Real Gabinete Português de
Leitura, 5: 19-28, jul.-dez. de 1978.
125
Os lusíadas, C. IV, E. 68 - 69.
6
Op. Cit., p. 155.
3.3. “Padrão” - “O mar sem fim é português”
13-9-1918
PLENITUDE X LIMITAÇÃO
Mítica Real
“alma divina” “obra imperfeita”
\ /
\ /
/ \
/ \
“a parte feita” “O por fazer”.
LIMITAÇÃO X PLENITUDE
Real Mítica
Por seu turno, os incisivos conceitos com que se abrem as duas primeiras estrofes do
poema ( “O esforço é grande e o homem é pequeno” e “A alma é divina e a obra é imperfeita”
) retomam aqui aquele que se encontra como justificativa da relação entre a grandeza da ação
e a suportação da desgraça, e que fundamenta o sentido do poema “O das quinas”: “A vida é
breve, a alma é vasta”. E isto se dá certamente porque, neste terceiro poema de Mar
português, começa a ser projetada a inserção do herói navegante -- metonímia do seu povo --
no plano da transcendência, o que se consumará com a “Ascensão de Vasco da Gama”. É
significativo ainda observarmos que o próprio herói se afirma como marcado pela “febre ( em
mim ) de navegar”. E ela, certamente, outra não é senão a dimensão marítima da metafísica
“febre de Além” do D. Fernando da segunda quina. Pode-se entender, ainda, que ela
prenuncia “a Magia que evoca o Longe / E faz dele história”, marca que diferencia dos
colombos o navegante português. Com respeito, mais uma vez, ao diálogo intratextual que
este poema estabelece com outros da Mensagem, parece-nos interessante ressaltar que o
“areal moreno” em que se finca o padrão, símbolo da conquista e da construção do Ultramar, é
o mesmo que aparece referenciado nos dois poemas dedicados a D. Sebastião, emblema da
falência do mesmo Império: a quinta quina ( “onde o areal está” ) e o primeiro dos símbolos
d‘O encoberto ( “Caí no areal” ). O espaço onde se realizou a construção do império
ultramarino (PLENITUDE) é, pois, o mesmo em que serve de cenário à tragédia nacional
(LIMITAÇÃO).
Retomando, ainda uma vez, a estrutura semântica do poema em estudo, podemos
constatar que as duas estrofes do primeiro movimento se iniciam com aforismos que sào
desenvolvidos ao correr de cada uma delas. Esses axiomas se reduplicam um no outro a partir
da relação entre Causa e Efeito. Eles desdobram ainda a estrutura sêmica básica acima
apontada ( PLENITUDE X LIMITAÇÃO ) em outra polaridade de sentido: aquela em que se
opõem e se complementam as noções de Humanidade ou Dimensão Real e Divindade ou
Dimensão Mítica. E, para reforçar esta dupla articulação opositiva e complementar, esses
aforismos se organizam à forma de paralelismo e de quiasmo. Observemos que o “esforço”
( que “é grande” ) é efeito produzido pela “alma” ( que “é divina” ), enquanto que o “homem”
( que “é pequeno” ) é sujeito e causa da “obra” ( que “é imperfeita” ). Essa estrutura
bidimensional se reduplica nas duas estrofes finais que formam o segundo movimento, a partir
da referência aos dois símbolos emblemáticos que compõem o padrão fincado no areal: as
quinas e a cruz. Assim, na terceira estrofe, as quinas -- tomadas aqui como metáfora
resumidora da LIMITAÇÃO do homem e de sua obra imperfeita -- “ensinam” a Dimensão Real
do “mar sem fim” que “é português”. Note-se que “a parte feita” consiste na conquista do
“imenso e possível oceano”. Enquanto isso, a cruz, que na quarta estrofe se torna síntese
emblemática do plano Divino, “diz” que a Dimensão Mítica somente será encontrada na
transcendência de um “porto sempre por achar”, que é a obra “por fazer”.
3.4. “O mostrengo” - “... medos do mar sem fundo”
9-9-1918
Três vezes, ainda, é repetida a sua ação de tremer, uma ocorrência em cada estrofe:
“disse, tremendo”; “tremeu, e disse”; “no fim de tremer”. Por fim, três é o número de vezes que
ele fala no seu diálogo com o monstro, findando cada uma das suas intervenções com uma
espécie de refrão pelo qual reafirma a sua determinação de afrontar o adversário. Trata-se,
sem dúvida, de uma forma de reforçar a noção de que a REALIDADE do seu feito se
sobrepõe ao MITO que naquele é representado. E seria ainda pertinente supor que o homem
do leme -- na sua obstinada fé de navegar em nome “De El-Rei D. João Segundo” -- três
vezes afirmando fidelidade ao seu senhor, estaria aqui retratado como o antípoda do apóstolo
Pedro que igual número de vezes negou a Cristo.
Assim, o numeral três, que por sinal aparece em sete ocorrências no poema, confere-
lhe uma atmosfera cabalística, de mistério, remetendo para uma noção de totalidade, de
completitude e finalização, a qual caracteriza o feito do herói. Afinal, o sujeito da conquista que
aqui se faz presente é o intermediário do pensamento do rei navegador e intervém pela
palavra, afirmando a determinação que preside sua ação, sua obra: as três formas pelas quais
o homem pode atuar sobre o real. Como herói do grande feito épico, ele é o agente do rito de
passagem das eras. E, assim, credenciado pelo passado da história do povo de que é a
síntese, sua ação no presente em que é enunciado constrói o homem futuro: três dimensões
temporais. Herói em processo de afirmação sobre o mundo, ele saiu da segurança da terra de
que proveio, navega na incerteza do mar desconhecido para ter acesso ao céu a que
ascenderá sob a forma do Argonauta de poema posterior: três planos espaciais. Ou ainda,
para finalizar, podemos inferir que ele, na luta por se impor à Natureza, teria saído do estado
sólido da terra, para dominar o líquido dos mares e, com isso, alçar-se à imortalidade no
estado etéreo das alturas celestiais.
Retomando ainda a dimensão mítica do mostrengo, podemos conceber que ele é a
esfinge que guarnece a Tebas do mar até então desconhecido. E para ele -- em igual relação
com o mito grego -- o “homem do leme”, que mais adiante se apresentará sob a forma do
Fernão de Magalhães que “Violou a terra” ( poema VIII ), será o seu Édipo fatal. Não é
aleatório que, neste poema que referencia o autor da circunavegação, menciona-se
precisamente que “São os Titãs, os filhos da Terra, ( outros mostrengos ) / Que dançam da
morte do marinheiro”. Por seu turno, Antônio Cirurgião o associa ainda à provação por que tem
que passar o neófito no seu caminho iniciático:
Lido num contexto religioso, de sinal rosacruciano ou teosófico, este poema representa a
prova, o exame, a que o neófito tem que sujeitar-se, antes de poder ser admitido no
pratum felicitatis, ou o jardim das delícias, simbolizado, por sua vez, no âmbito das
história mística dos descobrimentos portugueses, por aquele Eldorado tão afanosamente
perseguido. Para apoio desta leitura, nem sequer faltam as três pancadas rituais do
neófito, representadas pelas três perguntas do Mostrengo e pelas três respostas. 8
8
Op. Cit., p. 164.
9
CARLOS, Luís F. A. “A função matricial de ‘Ulisses’ na Mensagem de Fernando Pessoa”. Nova renascença.
Lisboa, 18: 11O-126, abr.-jun. 1985, p. 119.
3.5. “Epitáfio de Bartolomeu Dias” - “O capitão do Fim.”
10
Os lusíadas. C. V, E. 44.
Finalmente, como novo Atlas que exibe “o mundo no seu ombro”, esse Capitão se
torna um dos agentes do primordial sonho de domínio daquele infante D. Henrique que, n’O
Timbre, é “O único imperador que tem, deveras, / O globo mundo em sua mão”.
2-4-1934
Já pelo título, podemos perceber no presente poema a nítida intenção irônica que move
o narrador da Mensagem. Aqui, ele contrapõe aos grandes feitos marítimos dos portugueses
as investidas de outros navegantes desprovidos da Magia. Mais precisamente, a referência se
reporta aos espanhóis que, à altura do final dos quatrocentos, competiam com Portugal numa
acirrada corrida espacial. O antropônimo do marinheiro genovês, generalizado pela
pluralização, perde aqui até mesmo a sua aura histórica. Passa, então, a denominar
vulgarmente aqueles que, no plano material ( configurado na primeira estrofe ), contentavam-
se com “O que houvermos de perder”, e que, na sua ação expansionista, não foram sagrados
pela mágica unção de navegar ( caracterizada na segunda estrofe ). Nos três últimos versos
do poema encontramos a referência -- de mais intensa mordacidade irônica -- à condição em
que se deram as descobertas espanholas pelo Novo Mundo: com o auxílio da “luz
emprestada”, ou seja, das teorias e da ousadia de Cristóvão Colombo (1451-15O6) e,
também, da sabedoria e experiência portuguesas. Com efeito, este descobridor não só era um
estrangeiro no país para cujo reino navegou e conquistou terras. Foi, ainda, em Portugal que,
em longas e repetidas estadas, ele aprimorou sua perícia em artes náuticas e acentuou sua
paixão pelo mar. E a falta da “Magia que evoca / O Longe e faz dele história”, isto é, da unção
que imortaliza o herói, pode também referenciar o ostracismo a que foi relegado esse
descobridor da América. De fato, a 2O de maio de 15O6, o navegador genovês veio a falecer
em Valladolid ante a mais absoluta indiferença de seus contemporâneos.
A intenção irônica que tece o jogo de sentidos deste poema, que é de 1934, já estava
esboçada pelo poeta, doze anos antes, no texto a que dera justamente o título de “Ironia”, e
que foi publicado na revista Contemporânea, integrando um conjunto denominado “Mar
portuguez” :
Faz um a casa onde outro poz a pedra.
O gallego Colón, de Pontevedra,
Seguiu-nos para onde nós não fomos.
Não vimos da nossa árvore esses pomos.
O poema “Os colombos” é, mais uma vez, um texto da Mensagem que pode ser
tomado como decalcagem de passagens d‘Os lusíadas. Os “Outros” -- duas vezes aqui
citados -- mais que simplesmente os espanhóis, são o que para Camões foram também os
ingleses, franceses e holandeses, lançados à faina da pirataria e à desordem moral e política.
Todos eles “poderão achar”, no mar ou na história, apenas “O que houvermos de perder”, isto
é, a substância constitutiva de parcela de sua riqueza material. Trata-se, pois, de um diálogo
explícito com o início do canto VII da epopéia camoniana. Nesse trecho, tendo os navegantes
de Vasco da Gama chegado às Índias ( estrofe 1 ), o narrador evoca, na segunda e terceira
estâncias, a “geração de Luso”, considerando-a como marcada pela fé de navegar ou como
ungida para navegar pela fé. A partir daí até à décima estrofe, ele contrapõe a fidelidade cristã
e a ousadia dos portugueses à rebeldia e desavenças político-religiosas dos demais povos da
Europa do seu tempo: a soberba dos alemães e dos ingleses rompidos com o Papa; as
disputas entre os cristãos Francisco I da França e Carlos V da Espanha; as discórdias internas
e a decadência dos costumes dos italianos, etc. Trata-se, pois, da falta de espiritualidade pela
qual se distinguem dos portugueses e que Fernando Pessoa toma como a “Magia” que “a eles
não toca”. Nas quatro estâncias seguintes ( de 11 a 14 ), finalmente, o narrador renascentista
exorta os povos cristãos do Continente a seguirem o exemplo da ação dos novos cruzados, ou
seja, da gente da “pequena casa lusitana” que assentara domínio na África e na Ásia, e para
quem, “se mais mundo houvera, lá chegara”.
O poema pessoano realiza, contudo, um jogo de sentido que transpõe a dimensão da
história portuguesa e busca instaurar um Sentido -- maior -- para a existência humana. Os
colombos são também os humanos em geral que, a mercê do Destino, estão em perene
disputa pelo espaço existencial, num eterno jogo de perde-e-ganha. Esta noção está patente
logo na primeira estrofe, principalmente no seu dístico de abertura e no seu verso final. E
ainda mais se clarifica uma vez observemos que o pronome “Outros” e o nós, que está
implícito e que a ele se opõe, representam genericamente mais que a dicotomia estrangeiros /
portugueses. Finalmente, pela concepção metafísico-existencial do poema -- que, no geral, ao
lado da histórica, preside toda a Mensagem -- resta a alguns navegantes da existência o
garantirem a sua marca de unção, a luz própria da “Magia” da primordialidade messiânica. É o
de que trata a segunda estrofe do poema.
1 1
Contemporânea. Lisboa, 4, outubro de 1922. A propósito deste texto e de sua relação com “Os colombos”, veja-se:
PICCIO, Luciana Stegagno. “Ironia de Fernando Pessoa: 'Os colombos’”. In: Cleonice clara em sua geração. Rio de
Janeiro, Editora UFRJ, 1995, pp. 394-4O5.
3.7. “Ocidente” - “A mão que ao Ocidente o véu rasgou,
/.../ Foi Deus a alma e o corpo Portugal”
“COM
1 2
Este texto integrava o conjunto “Mar portuguez” publicado no número 4 da revista Contemporânea, com o título de
“Os descobridores do Ocidente”. Para inseri-lo na Mensagem, o poeta produziu variações. A segunda estrofe era a
seguinte: “Fosse a hora propícia ou a força fria / A mão que o Oeste a estes entregou, / Foi alma a Ciência e corpo a
Ousadia / Da mão que consumou”. Na terceira estrofe, o segundo verso era: “A mão que a estes o Ocidente abriu,”. O
último verso recebeu o pronome o.
------------------ DUAS MÃOS -------------------
| DESVENDAMOS” |
| |
CASUALIDADE INTENCIONALIDADE
Destino Ato
uma ergue o facho (...) divino outra afasta o véu
(hora) que havia hora que haver
alma a Ciência corpo a Ousadia
Acaso ou Temporal Vontade
Deus a alma corpo Portugal
10-1-1922
É visível, por outro lado, o resgate que neste poema se faz da alegoria da conquista
configurada na chegada do Gama e seus navegantes à Ilha dos Amores. Mais precisamente
ainda, ele se reporta à cena da subida do herói ao topo do monte a partir do qual terá a
deslumbrada visão do transunto do Universo e a descrição de suas esferas feita pela ninfa
Tétis. Aqui, esta cena é anunciada como verdadeira epifania que abre ao herói os últimos
umbrais de uma iniciação só permitida aos ungidos, àqueles capazes de transpor os limites da
condição humana, caracterizada pelos “gigantes da terra” que “pasmam” e pelo “pastor” que
“gela”. Trata-se, portanto, da equivalente pessoana àquilo que, pela palavra da Ninfa, postula
Camões:
“Faz-te mercê, barão, a Sapiência
Suprema de, cos olhos corporais,
Veres o que não pode a vã ciência
Dos errados e míseros mortais.” 14
14
Os lusíadas. C. X, E. 76.
avaliação da conquista marítima ( “Deus ao mar o perigo e o abismo deu / Mas nele é que
espelhou o céu” ).
1 5
Serão aqui retomadas algumas proposições contidas na análise deste poema constante de “A dimensão universal do
mar português”, de nossa autoria, In: SILVA, Anazildo Vasconcelos da et alii. Desconstrução / construção no texto
lírico. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1975, pp. 78-81.
humana e suas implicações espirituais. Nele, a isotopia fundamental do poema se reduplica
nas noções de Plenitude X Sofrimento articuladas a partir das mesma relações de implicação
e condição. Só que, agora, sua ocorrência se dá em ordem inversa à do primeiro movimento: a
dimensão da alma e a dor são, respectivamente, condições para que tudo valha a pena e para
a ultrapassagem do Bojador da vida; e o céu implica perigo e abismo. Estas relações
apresentam neste novo plano de sentido do poema uma notação de positividade, contrária à
do primeiro, justamente porque, na ótica ideológica do narrador da Mensagem, a
particularidade do sacrifício nacional português toma sentido na medida em que encontra
sustentabilidade numa dimensão universal e transcendente.
Os eixos Particularidade X Generalidade e Pessoalidade X Impessoalidade se
reduplicam, aliás, no poema de modo que a polaridade inicial se manifesta na primeira estrofe
e a final na segunda. Vejamos como esta ocorrência se dá em alguns aspectos da
manifestação poemática do texto. No primeiro movimento, as relações entre as noções de
CONQUISTA e PERDA se configuram com base em construções metonímicas ( lágrima é
parte do sal e vice-versa; mães, filhos e noivas são partes da Nação ). Enquanto isso, no
segundo, elas se manifestam através de formulações metafóricas. Assim é que “mar” é
metáfora da existência cujo “Bojador” é o limite da condição humana. Sua ultrapassagem se
faz através da PERDA, isto é, dos percalços ( “o perigo e o abismo” ) que credenciam o
Homem para a CONQUISTA da transcendência referenciada em “céu” .
Quanto à regularidade de estrutura que organiza os dois movimentos, podemos
destacar ainda que eles se iniciam por interpelações simétricas. A primeira ( “Ó mar salgado” )
se reporta a um interlocutor explícito de forma a configurar, pela função conativa, o caráter de
pessoalidade, de Particularidade, já que nesta parte o sujeito da enunciação referencia o
circunstancial nacional. A segunda ( “Valeu a pena?” ) se dirige a um interlocutor implícito e
genérico que pode ser, por ventura, o próprio sujeito da enunciação que, na forma de uma
função fática, a si mesmo se interroga e se responde. Nessa medida, a própria instância de
enunciação assume a dimensão do Homem universal, abrindo-se assim a significação
metafísico-existencial que neste movimento apontamos. Outro aspecto da manifestação
estética do poema que atualiza esta ampliação de sentido pode ser constatado se
observarmos os pronomes que explicitam as noções de sujeito e de objeto da isotopia
CONQUISTA X PERDA. No primeiro segmento os pronomes teu e te referenciam o objeto da
conquista, particularizado na acepção de mar. No segundo, entretanto, este objeto se atualiza
através do indefinido tudo, abrangendo, assim, a generalidade, a universalidade própria deste
segmento. Do mesmo modo, o sujeito que, na primeira estrofe, aparece pessoalizado através
do pronome nosso ( isto é, do homem português ), assume, na segunda, a forma de
impessoalidade universal através do relativo quem ( ou seja, todo aquele que ).
Se retomarmos a idéia de implicação que apontamos como uma das relações
articuladoras da isotopia fundamental no primeiro e no último dísticos deste poema,
poderemos compreender a amplitude de significado do seu título em função das duas leituras
dele traçadas: a histórico-nacional e a metafísico-existencial. Assim como Posse implica
Tributo ( sal e lágrimas se implicam mutuamente ), Plenitude implica Sofrimento ( mar inclui
perigo e céu ). Ora, se mar (sal) “São lágrimas de Portugal”, é porque mar implica Portugal, é
Portugal, da mesma forma que Portugal implica mar, é mar. Daí o título “Mar português” ter
sido utilizado não só no sentido limitado do mar que foi conquistado por Portugal, mas do mar
que é português, que é Portugal. Por outro lado, se considerarmos que, no segundo
segmento, mais que o sentido de vida e de homem português, “mar” traduz o de Homem
universal, poderemos verificar que o poema se conclui com a assertiva de que mar é perigo e
abismo, mas também céu. Donde a vida ( que tem sua metáfora em mar ) é Sofrimento e
Plenitude, porque isto é o próprio do Homem, na medida em que Homem é vida. Desta forma,
o mar está para Portugal assim como a vida está para o Homem.
O poema “Mar português” se situa na Mensagem como um diálogo intertextual mantido
com a alegoria do Velho do Restelo d'Os lusíadas. 16 Diálogo de opostos, é bem verdade, já
que aqui o sujeito da enunciação não emite o contradiscurso que o venerando ancião formula
a partir do seu “saber só de experiências feito”. Muito pelo contrário, aqui o questionamento se
faz exatamente para articular a dicção do mesmo, para explicitar o lugar de sentido da
ideologia, ratificando a proposição mítico-nacionalista que pontilha toda esta epopéia
pessoana. Essa relação intertextual se evidencia, com efeito, em diversos aspectos de sua
manifestação. Os versos do primeiro movimento do poema se fazem como eco ou decalcagem
direta do discurso camoniano. Encontramos em seus sintagmas exclamativos a versão
pessoana da descrição contida nas palavras de Vasco da Gama ao rei de Melinde. Assim,
“quantas mães choraram” e “Quantas noivas ficaram por casar” resgatam as referências feitas
na estrofe 89 do canto IV às “mulheres cum choro piadoso e às “Mães, Esposas, Irmãs, que o
temeroso / Amor mais desconfia (...)”. Finalmente, em “Quantos filhos em vão rezaram” ecoam
os versos finais da estrofe que, n`Os lusíadas, antecede as referências acima:
E nós, co a virtuosa companhia
De mil religiosos diligentes,
Em procissão solene, a Deus orando,
Pera os batéis viemos caminhando.
É bem verdade que, de algum modo, esses pontos dos respectivos poemas
manifestam a ressonância de toda uma tradição poética de lamentos e de expectativas em
torno do destino daqueles que se lançavam à aventura do mar. Basta recordar as cantigas de
amigo e, em especial, a famosa “Ondas do mar de Vigo, / Se vistes, meu amigo!”.
Em conclusão, o poema faz um balanço da história trágico-marítima, concebendo-a
como uma forma de martírio voluntário que imprime sentido à existência humana. O dístico
que abre a segunda estrofe e também o questionamento ( “Valeu a pena? Tudo vale a pena /
Se a alma não é pequena” ), espécie de chave de sentido não só desse poema, mas de toda
esta epopéia pessoana, projeta o eco intertextual daqueles versos com que Camões encerra a
estrofe 78 do canto IV da sua:
Faz as pessoas altas e famosas
A vida que se perde e que periga,
Que, quanto ao medo infame não se rende,
Então, se menos dura, mais se estende.
1 7
SANTOS, Américo Oliveira. “Mensagem: mitos e grifos”. Nova Renascença. Lisboa, v. V, 18: 101-109, abr.-jun.,
1985, p. 104.
primeira vez na Mensagem, manifesta-se como instância de enunciação portadora de uma
tríplice condição: a de narrador, a de eu-lírico e a do próprio poeta, agente da escritura. E,
para tanto, esta multifacetada instância de enunciação se contrapõe ao senso comum ( “Ah,
quanto mais ao povo a alma falta / Mais a minha alma atlântica se exalta” ). A partir desta
contraposição é que, em sua ótica de mitificação, esta instância enunciadora passa a
configurar o universo imaginário ( “num mar que não tem tempo ou 'spaço” ), propício à
epifania do mito messiânico. Desta forma, a “cerração” aqui antecipa o “nevoeiro” que
“Portugal hoje” é e que dá título ao último poema da Mensagem. Assim, também, a hora que
aqui ainda não é sabida ( “Não sei a hora, mas sei que há a hora” ) é, enfim, anunciada no
último de todos os versos desta epopéia pessoana ( “É a Hora!” ). O eu que se apresenta na
dicção deste poema é, pois, o do vate, do profeta desta “Hora” futura. Nela, voltando, será
desvelado esse D. Sebastião partido na nau fatídica e de quem se sabe que “Deus guarda o
corpo” “onde o areal está”, mas cuja “forma do futuro (...) Sua luz projeta”, porque lá não ficou
“o que há”. 18 De resto, o sujeito da enunciação se porta neste poema segundo a convicção
que o poeta já manifestava em 1912, à altura da concepção do Super-Camões, quando
afirmava: “E a nossa grande Raça partirá em busca de uma Índia nova, que não existe no
espaço, em naus que são construídas daquilo de que os sonhos são feitos”.
1 8
Referimo-nos ao diálogo que este poema “A última nau” mantém com o que ocupa a quinta quina do Brasão,
podendo ainda nele apontar a ocorrência da mesma forma de caracterização do rei D. Sebastião encontrada naquele
que, abrindo a terceira parte da Mensagem, é o primeiro d'Os Símbolos. Vejamos, em específico, os seus versos
inicial e finais: “'Sperai! Caí no areal e na hora adversa” e “É O que eu me sonhei que eterno dura, / É Esse que
regressarei”.
3.12. “Prece” - “E outra vez conquistemos a Distância”
31-12-1921/1-1-1922
Conforme vimos anteriormente, o poema “Prece” com que encerra esta segunda parte
da Mensagem se reporta ao primeiro, “O infante”. Em sua estrutura semântica ele reduplica o
dístico final deste. Assim, o penúltimo verso deste poema inicial de Mar português ( “Cumpriu-
se o Mar, e o Império se desfez” ) se encontra reduplicado na primeira estrofe de “Prece” na
qual também se constata o apogeu do Ultramar ( “O mar universal” ), e o seu esvaziamento
( “a saudade” ). E o apelo que encerra “O infante ( “Senhor, falta cumprir-se Portugal!” ) aqui
se desdobra na metáfora do “sopro”, da “aragem” por que se suplica na expectativa da
conquista de uma “outra” “Distância”, pela qual a Nação possa cumprir sua missão
transcendente.
No entanto, essa tessitura intertextual se faz, também, com toda a terceira parte da
epopéia pessoana, O encoberto. Verifiquemos que, logo de início, o “Senhor” que é
destinatário do apelo messiânico, na sua ambivalência de sentido, é certamente também o
portador da própria simbologia do mito português, representando, pois, sinteticamente, Os
Símbolos, primeiro plano da terceira parte, desde “D. Sebastião” até “O encoberto”. A “noite” e
a “tormenta”, aqui tomadas, respectivamente, como efeito e causa da tragédia histórica
nacional, são precisamente os termos escolhidos para dar título aos dois primeiros poemas
d'Os Tempos, terceiro plano d'O encoberto. Os dois versos finais da primeira estrofe ecoam,
respectivamente, nos poemas “Nevoeiro” e “Antemanhã”. Neles podemos verificar que o
“silêncio hostil” e a “Saudade” resumem o estado de letargia e nulidade que caracteriza o
Portugal que é “nevoeiro”, apesar de ter sido o detentor do “mar universal”, ou, como aparece
no poema “Antemanhã”, aquele que “foi outrora Senhor do Mar”. A “Distância -- / Do mar ou
outra, mas que seja nossa!”, que o sujeito da enunciação finalmente suplica seja conquistada,
é precisamente aquela cuja “Hora” é anunciada no verso de fecho da Mensagem. Mas ela
está também definida no poema “Calma” sob a forma de um “outro lado”, onde
Surja uma ilha velada,
O pais afortunado
Que guarda o Rei desterrado
Em sua vida encantada.
Por fim, o poema “Prece” é, além da súplica em que todo ele consiste, uma pré-
anunciação do Encoberto. E o sujeito que assume a sua dicção é, numa instância restrita, o
mesmo do “Terceiro” d'Os Avisos, e, numa dimensão mais ampla, o sujeito coletivo -- o eu
nacional que fala ainda pela voz d“O Bandarra” e de “Antônio Vieira”.
O sujeito da enunciação que aqui se manifesta em primeira pessoa do plural é, ainda, a
amplificação daquele mesmo que, no poema anterior ( “A última nau”), investe-se da tríplice
condição de narrador, eu lírico e poeta emissor. Já não mais, porém, diferenciado do senso
comum do povo a quem “a alma falta”. Agora, ao contrário, ele chama para si a função de,
falando em nome desse mesmo povo, preencher o seu vazio histórico com “o sopro, a
aragem” a ser dada pelo mito que começa a se instaurar através da própria escritura poética.
Esta proposição de discurso com função epifânica em relação ao mito se confirma --
ressaltemos mais uma vez -- no poema “Terceiro” d'Os Avisos, quando, ainda que “à beira-
mágoa”, o sujeito da escritura poética se apresenta como agente da revelação do mito do
Encoberto.
A proposição exclamativa que compõe o segundo verso deste poema ( “Tanta foi a
tormenta e a vontade!” ) pode ainda ser vista como um diálogo intertextual com “Ocidente”,
sétimo desta mesma segunda parte. Neste, conforme já vimos, caracteriza-se a conquista de
um dos extremos limites do domínio português sobre os mares como resultado de uma
possível dúplice motivação: “Fosse Acaso, ou Vontade, ou Temporal”. E aqui entendemos que
“Acaso” e “Temporal” semanticamente se identificam. Esta relação intertextual mantida entre o
presente poema e tantos outros da Mensagem confere e ratifica a importância de sentido de
que ele se reveste na estrutura desta epopéia pessoana. Afinal de contas é nele que, pela
primeira vez, mais explícita e intensamente se manifesta o mito e o apelo messiânico. E é
nele, também, que mais amplamente se sintetiza a trajetória histórica de Portugal, desde a sua
preparação na história remota do Reino ( “a chama, que a vida em nós criou” -- Ulisses e
Viriato ), ao apogeu do Império ( “O mar universal”) e à sua decadência ( “a noite veio”,
“silêncio hostil” e “saudade” ), até chegar ao apelo para a ressurgência messiânica ( “Dá o
sopro” ).
Sendo a Mensagem uma epopéia que resgata, na forma de uma paráfrase ao seu
modo, o discurso épico de Camões, seria até plausível supor que, no poema “Prece”, possam
ser identificados ecos das palavras com que o poeta renascentista se refere a D. Sebastião na
Dedicatória e no Remate d'Os lusíadas. 19
Trabalhando a isotopia POTENCIALIDADE X IMPOTÊNCIA como forma de referenciar,
no plano da interpretação, o eixo Vida X Morte ou, em outros termos, Mito X Realidade, este
poema se desenvolve em três segmentos que acompanham a divisão estrófica. O primeiro fala
da descontinuidade da realidade presente ( IMPOTÊNCIA manifestada através de “noite”,
“silêncio hostil” e “saudade” ). A ela se contrapõe a POTENCIALIDADE de um passado em
que, apesar da “tormenta”, a “vontade” fez com que restasse para a História o conhecimento
de um “mar universal”. O segundo, referenciando o espaço intervalar entre a constatação da
descontinuidade histórica ( primeira estrofe ) e o apelo mítico ( terceira ), atualiza a noção de
que, sob a IMPOTÊNCIA desse vazio ( “O frio morto em cinzas a ocultou” ), persiste a latência,
a virtualidade de um ressurgimento ( “vida ainda não é finda”, “a mão do vento pode erguê-la
ainda” ). O último movimento consiste no apelo à revitalização -- mítica -- da grandeza latente,
que se suplica seja manifesta sob a forma de uma potencializada outra “Distância” que,
grafematicamente marcada no texto pela maiúscula alegorizante, encontra-se “num mar que
não tem tempo ou 'spaço” ( cf. “A última nau” ), ou seja, na transcendência do Encoberto.
19
Os lusíadas. C. I, E. 6-18 e C. X, E. 146-156, respectivamente.
4. TERCEIRA PARTE - O ENCOBERTO
Pax in excelsis.
Ressaltem-se no trecho acima os adjetivos que referenciam o campo semântico a que nos
referimos. No quarto tempo, aquele que caracteriza a “Antemanhã” do DESVELAMENTO, “o
som da treva” “Faz mau o sono, triste o sonhar”. Finalmente, em “Nevoeiro” o narrador se
interroga sobre “Que ânsia distante perto chora (?)”.
Esta ânsia, este sonho situado no presente da enunciação é, pois, o da ressurgência
do mito, do redimensionamento da história de Portugal num plano transcendente. É
certamente por isso que, nesta terceira parte da Mensagem, o sujeito da enunciação conduz a
narratividade como apenas um tênue fio de implicitação da história do mito e lhe imprime um
tom emotivo e evocativo muito mais acentuado que nas demais. A partir desse prisma é
possível entender as múltiplas formas de manifestação pelas quais ele se apresenta: seja
como personagem em “D. Sebastião”, como um eu coletivo em “As ilhas afortunadas”, entre
outros poemas, seja, ainda, na própria condição de poeta, de agente da escritura, no poema
“Terceiro”. Por aí também se explica a alta incidência de exclamações ( sete vezes ), de
interrogações ( vinte e três vezes ) e de inúmeros outros recursos retóricos e estéticos que
conferem a O encoberto uma tonalidade emotiva mais intensa que nas duas partes anteriores.
Há, sem dúvida -- ressalte-se mais uma vez --, um veio de narratividade que perpassa
e organiza as três seções que compõem esta terceira parte da Mensagem e, em particular,
cada um dos treze poemas nela contidos. 1 Os cinco Símbolos são resgatados da história
decorrida após o apogeu do Império do Ultramar. Neste plano, conforme já vimos, “D.
Sebastião” (Primeiro) é aquele que concretamente sonhou “O quinto império” (Segundo) e que
foi “O desejado” (Terceiro) antes mesmo de nascer, durante sua breve existência e depois de
sua morte. A partir da fatalidade que o abateu e que, de resto, atingiu a própria Nação, passou
a habitar “As ilhas afortunadas” (Quarto) na condição de “O encoberto” (Quinto). Os três
Avisos -- realcemos mais uma vez -- traçam a trajetória da espera pela ressurgência do
Encoberto, desde o remoto Bandarra ( no Século XVI ) a Antônio Vieira ( no Século XVII ) e
deste ao “Terceiro”, porta-voz do apelo, no presente da escritura, assumido pela instância de
enunciação poética. N'Os Tempos, embora situados todos no presente, encontramos
configurada uma nítida gradação cronológica: à “Noite” do caos e da decadência se sucede a
“Tormenta”, depois da qual vem a “Calma”; a partir desta se dá o prenúncio do
DESVELAMENTO na forma de uma “Antemanhã” que precede a decisiva hora proclamada em
“Nevoeiro”.
1
Note-se aqui, ainda uma vez, a presença do cabalismo no número treze na totalidade dos poemas subdivididos em três
seções, duas com cinco e uma com três. Tudo é bem consonante com o teor mítico desta terceira e última parte da
Mensagem.
4.1. Os Símbolos - “... sonhos que são Deus”
Dentre os cinco símbolos que compõem esta primeira seção da terceira parte da
Mensagem, conforme já observamos, os três ímpares são, em essência, um só: “D.
Sebastião” ( Primeiro ) que é “O desejado” ( Terceiro ) e que, a partir de Alcácer Quibir,
transformou-se n“O encoberto” ( Quinto ). Os dois outros são os objetos ou espaços do desejo
do mito messiânico português: “O quinto império”, “por Deus mesmo visto” e sonhado pelo
povo eleito, e “As ilhas afortunadas”, onde o Rei se encobriu e de onde haveria de retornar.
Estes cinco símbolos apresentam a implícita gradação já referida, se observarmos as
noções de CONCRETUDE e ABSTRATICIDADE que neles se referenciam. D. Sebastião foi
historicamente rei, lutou e morreu pela formação de um império que foi sonhado, mas que,
concretamente, não chegou a existir. Assim sendo, o Rei desaparecido e o seu sonhado
império se fundem numa só e mais vaga abstração que se define no terceiro símbolo como
sendo “O desejado”. Este, por sua vez, refugia-se no espaço mítico d“As ilhas afortunadas”
( quarto d'Os Símbolos ). Por fim, todo esse contexto de sujeito, objeto e espaço de desejo e
de sonho tem sua consubstanciação na forma inefável d“O encoberto”.
De qualquer modo, não somente os cinco símbolos, como todo O encoberto e, de
resto, tudo na Mensagem gira em torno de D. Sebastião. Observando o tratamento que a este
rei foi dispensado por Antônio Nobre no seu “O desejado” e por Fernando Pessoa na
Mensagem, Maria Madalena Gonçalves afirma que
Não havendo necessidade de inventar o herói da decadência por ele existir já sob a
forma de mito nacional, não admira que D. Sebastião figure nos dois poemas como
símbolo dessa decadência e como signo da própria fragmentação com que se intenta
representá-lo no plano estético. 2
Este poema apresenta como personagem o primeiro símbolo d'O encoberto e o mais
totalizador de toda a Mensagem. Logo pela forma imperativa com que se abre
2
GONÇALVES, Maria Madalena. “Significados retóricos de um mito nacional. D. Sebastião n`O desejado de Nobre e
na Mensagem de Pessoa”. Colóquio / Letras. Lisboa, 113-114: 91-98, jan.-abr., 1990, p. 92.
(“Sperai”), ele pode ser entendido como a segunda locução de um diálogo que se supõe
iniciado em “Prece”, último poema de Mar português. Aqui fala o “Senhor” que lá é invocado e
a quem se suplica a possibilidade de conquista de uma outra “Distância”: aquela que só se
atualiza no plano mítico. A partir daí, a confissão “Caí no areal” parece resgatar a informação
que, nos dois versos finais da primeira estrofe da última quina do Brasão, aparece como
justificativa para a transbordada certeza ( “Por isso onde o areal está / Ficou meu ser que
houve, não o que há” ). A seguir, o sujeito da enunciação -- e também seu personagem --
lança mão de um investimento mítico apoiado na referência a Deus, para definir o presente
como o momento intervalar que medeia o vazio da realidade histórica e o advento da epifania
transcendente. Talvez por isso seja possível compreender as cinco vezes em que nele ocorre
a referência a Deus. Três delas se fazem em seu próprio nome. As outras duas aparecem
através dos pronomes O e Esse, expressos em maiúsculas alegorizantes, e através das quais
o herói da decadência material e da ressurgência mítica se identifica com a entidade divina
( “me sonhei” e “regressarei” ).
Este poema se constrói, pois, como uma rede de diálogo intertextual. 3 A possibilidade
de o entendermos como uma resposta ao apelo contido em “Prece” se reforça mais ainda uma
vez observemos o processo retórico de sua estrutura interna. Na primeira estrofe se constata,
à forma de uma justificativa, uma situação de disjunção entre o passado da queda ( dois
versos iniciais ), o presente de “intervalo” ( verso 3 ) e os “sonhos” do futuro regresso mítico
( verso 4 ). A segunda estrofe se organiza com base numa espécie de função fática de que
resulta um reforço de argumentação e um esforço de convencimento. Observemos que o
personagem, sujeito da enunciação, interroga ( versos 5 e 6 ) para, depois, responder com a
assertiva da eternidade de sua condição ( verso 7 ) e com a conseqüente garantia de seu
retorno ( verso 8 ). Por outro lado ainda, o sonho -- aqui com duas ocorrências, uma em forma
substantiva e outra verbal -- nada mais é do que a dimensão transcendente daquela “loucura”
que, na quinta e a última das quinas, fundamenta a existêcia do Homem ( “Sem a loucura que
é o homem [?]” ) e que, como tal, deve ser resgatada e redimensionada ( “outros que me a
tomem” ).
Este diálogo intertextual e todo o substrato de sentido do poema se manifestam,
contudo, numa estrutura semântica de certo modo simplista de apenas oito versos pontilhados
de redundâncias, repetições e polissíndeto. E ela estabelece como núcleos de sentido, as três
dimensões temporais: o passado da queda material ( “Caí”, “hora adversa”, “morte” e
“desventura” ); o presente intervalar da espera-esperança ( “Sperai!”, “intervalo”, “sonhos”, “me
guardei” e “me sonhei” ); e o futuro da ressurgência messiânica ( “são Deus”, “com Deus”, “O
(...) que eterno dura” e “regressarei” ). D. Sebastião, mito maior de Portugal e da Mensagem,
é, pois, transtemporal e, em todo o texto, onipresente.
3
Reveja-se a este respeito a nota 18 do capítulo anterior e as observações que a suscitam.
4.1.2. “O quinto império” - “... passados os quatro / Tempos”
21-2-1933
O “Encoberto / Sonho das eras português”, como será definido no “Terceiro” d'Os
Avisos, configura-se aqui sob a forma do Quinto Império que, n“O Bandarra” será “por Deus
mesmo visto”. A raiz mítica deste espaço utópico português se encontra na Bíblia, no Livro de
Daniel, capítulo II, versículos 31 a 45, em que o profeta adivinha e interpreta o sonho de
Nabucodonosor, rei dos babilônios. Nesta cena da escritura cristã, buscando livrar-se da morte
a si e aos outros sábios do reino condenados pelo rei por não poderem decifrar o seu sonho,
Daniel invoca a ajuda de seu Deus e dele recebe a visão que passa ao soberano. O rei
sonhara com uma formidável estátua cuja “cabeça era de fino ouro, o peito e os braços de
prata, o ventre e os quadris de bronze; as pernas de ferro, os pés em parte de ferro, em parte
de barro”, 4 e que, pelo impacto de uma pedra, despedaçava-se e era pulverizada ao vento.
Conforme a interpretação do sábio, Nabucodonosor era a cabeça da estátua e, juntamente
com os outros três reinos que lhe sucederiam, passariam por sobre a face da terra. Os dedos
dos pés, formados de ferro e barro,
misturar-se-ão mediante casamento, mas não se ligarão um ao outro (...). Mas nos dias
destes reis, o Deus do céu suscitará um reino que não será jamais destruído; este reino
4
Bíblia sagrada. Livro de Daniel, Cap. II, versículos 32 - 33.
não passará a outro povo: esmiuçará e consumirá todos estes reinos, mas ele mesmo
subsistirá para sempre. 5
5
Ibidem, versículos 43 - 44.
6
Os lusíadas, C. I, E. 24. Grifos nossos.
Numa outra interpretação que se propõe situar-se para aquém da versão mítico-bíblica
e histórica sobre o advento do quinto império português, Antônio Cirurgião associa os
“quatro / Tempos do ser” às “quatro fases da vida do homem: a infância ou primavera, a
juventude ou verão, a vida adulta ou outono, a velhice ou inverno”. 7 Seguindo esta trilha,
supõe ainda poder-se entender que, “passados os quatro / Tempos” da matéria, a perfeição,
universalmente sugerida pela simbologia do número cinco, seria atingida com o devir da
quintessência do império da espiritualidade. E esta sugestão é, no presente poema, tanto mais
realizada se verificarmos que a sua estrutura de manifestação reforça este aspecto: o poema
é composto de cinco estrofes de cinco versos cada.
18-1-1934
7
Op. cit., p. 210.
Eucaristia, o que aqui se torna, metaforicamente, o significante do resgate mítico do
Encoberto.
Dando continuidade à observação do suposto diálogo a que aludimos a propósito do
poema “D. Sebastião”, podemos observar que o presente texto se inicia como que oferecendo
uma resposta ao pedido de espera formulado no início daquele. Assim, à súplica e à confissão
formuladas pelo herói da decadência ( “Sperai! Caí no areal...” ) reage o sujeito da
enunciação, assegurando que “Onde quer que, entre sombras e dizeres, / Jazas, remoto,
sente-te sonhado, / (...) / Para o teu novo fado!”. Estes dois versos iniciais se constituem, pois,
numa profissão de fé, num credo que prepara o apelo à ressurgência contido nos dez versos
restantes do poema. Neste segundo movimento, o investimento messiânico se direciona, pois,
ao Desejado, tomado agora na condição de novo Galaaz: não mais errante, mas “com pátria”,
e não mais aventureiro da guerra, mas “Mestre da paz”. Como n'A demanda do santo graal, a
espada e o vaso são aqui objetos providos de valor místico, instrumentos -- um intermediário,
outro final -- de revelação da “Eucaristia Nova”, aquela que o povo português poderá alcançar
na dimensão transcendente do Encoberto.
O insistente apelo à ressurgência do Encoberto se realiza na manifestação estética do
poema através da reiterada utilização do verbo erguer, com três ocorrências, uma em cada
estrofe: “ergue-te”, “erguer de novo (...) / A alma penitente do teu povo” e “ergue teu gládio
ungido”. E notemos que, nas duas primeiras ocorrências, sugere-se o resgate do passado
esvaziado com o fim do Império em Alcácer Quibir, e que seus respectivos objetos são o herói
da decadência ( D. Sebastião ) e o Povo que com ele também caiu. O objeto da terceira e
última é já o “gládio”, e se suplica que, uma vez erguido, 8 sua luz possa, no futuro, revelar o
novo “Santo Gral”. Aqui, mais uma vez, o messianismo se caracteriza como o imaginário
resgate futuro do paraíso perdido no passado da História.
8
A propósito da ocorrência do verbo erguer na Mensagem já se fez referência anteriormente, por ocasião da análise do
poema “O conde D. Henrique”.
4.1.4. “As ilhas afortunadas” - “... Terras sem ter lugar”
26-3-1934
21-2-1933/11-2-1934
Como símbolo final e síntese mais abstrata dos quatro anteriores, surge agora a
referência direta ao Encoberto que dá título ao presente poema e a toda esta terceira parte da
Mensagem. Sua importância se ressalta logo à mais rápida observação sobre sua estrutura
semântico-sintática. Verifiquemos que o poema se divide em três estrofes iniciadas
anaforicamente pela expressão “Que símbolo”, seguida de adjetivos que formam uma espécie
de gradação ( “fecundo” ----> “divino” ----> “final” ). Outra anáfora inicia a segunda metade de
cada estrofe ( “Na Cruz” ), em que se contêm as respostas da estrutura fática do texto. E,
igualmente à anterior, é seguida de qualificações que também se encadeiam em gradação
( “do Mundo” ----> “que é o Destino” ----> “fatal” ). Esta estrutura fática de perguntas e
respostas, de reduplicações anafóricas e de ampliações de sentido tem por função explícita a
de reforçar a afirmação do mito do Encoberto, a sua identificação no universo abstrato do
inconsciente coletivo português.
Como símbolo maior que é, o Encoberto, mito messiânico português por excelência,
recebe a aderência de outros mitos: da simbologia rosacrucista, ( primeira estrofe ) à qual se
superpõe a cristã (segunda). No último quarteto, finalmente, estas duas simbologias se
fundem para redimensionar a mitologia nacional. Forma-se assim um processo de associação
em que a cruz, que, na trajetória iniciática do neófito é o “Mundo” e na ação redentora de
Cristo é o “Destino” de seu padecimento humano, representa, no mito nacional, a fatalidade da
decadência do Império. Assim, também, a rosa que, como símbolo esotérico de Vida ( primeira
estrofe ), é Cristo redentor (segunda) e é o Encoberto português (terceira).
Esse processo de superposição e de gradação se verifica também com respeito às
notações temporais do poema, que, por sua vez, marcam o compasso do DESVELAMENTO
do Encoberto: “aurora ansiosa” ----> “dia já visto” ----> “sol já desperto”. As interrogações que,
simetricamente, dividem ao meio cada uma das três estrofes do texto, nele estabelecem
também uma forma de unidade e encadeamento. Para além de funcionarem como abertura da
função fática, elas vão suscitando, numa espécie de maiêutica, a ampliação de sentido da
simbologia contida em “Rosa” e em “Cruz”. E, assim, de símbolos rosacrucistas passam a
marcas totêmicas do Cristianismo e, finalmente, com esta dupla feição, conforme indicamos
acima e desenvolveremos a seguir, dimensionam o mito nacional.
“Cruz” e “Rosa” são, pois, as metáforas estruturantes do sentido do texto. E elas vão
tendo seus desdobramentos conforme a dimensão mítica que em cada estrofe se configura.
Assim, na primeira, agenciam as noções de morte e vida enquanto transmutação, numa
concepção existencial e esotérica do Mundo e do Homem. Na segunda, a partir da visão
cristã, elas reproduzem a trajetória humana, pela qual o destino da morte espiritual inerente ao
pecador se redireciona, com Cristo, para a possibilidade da vida eterna. Na última, elas
assumem a simbologia do percurso histórico português, de modo que a cruz assume a
figuração da decadência, da fatalidade do vazio histórico nacional a ser preenchido pela
revivescência messiânica d“A Rosa do Encoberto”.
4.2. Os Avisos - “A madrugada irreal do Quinto Império”
Os três poemas que compõem esta seção da terceira parte da Mensagem apresentam
os arautos do Encoberto, os profetas do irreal Quinto Império. Eles também formam entre si
uma unidade estruturalmente verificável, seja na observação de uma certa narratividade
constituída pela temporalidade em que se inscrevem, seja numa certa ampliação de sentido
que entre eles se dá. O Bandarra se situa historicamente na primeira metade do Século XVI e,
como ancestral da anunciação do mito português, faz o resgate das profecias de Daniel e
prenuncia o sebastianismo. Antônio Vieira retomando, no século seguinte, a anunciação de
que foi portador aquele sapateiro de Trancoso, dá-lhe amplitude e a redimensiona num plano
intelectual, religioso e histórico. O “Terceiro” é o aviso em que, no presente da escritura, pode-
se identificar o sujeito da enunciação interpelando o próprio sonho do Quinto Império numa
súplica pela sua ressurgência. É aquele que proclama o apelo final para que a sua
revivescência possa, imaginária e transcendentemente, preencher a descontinuidade do real
produzida pela falência do Império que se desejou na História.
Com relação à temporalidade em que se situam os profetas da Mensagem, Antônio
Cirurgião conceitua ainda que
Bandarra profetiza na época em que as nuvens da decadência do império ultramarino e
da fraqueza do reino começavam a adensar-se sobre os céus de Portugal: é o profeta do
Portugal à beira do abismo; Vieira profetiza na época em que Portugal acaba de fazer a
travessia do deserto, simbolizada pelos sessenta anos da monarquia dual, durante as
primeiras décadas da quarta dinastia: é o profeta do Portugal que tenta refazer-se do
cativeiro de Babilônia; Pessoa profetiza a três séculos de distância, na época em que
Portugal faz a experiência republicana, ensaia os primeiros passos no caminho do
Estado Novo e procura reencontrar a sua alma e o seu destino: é o profeta da pátria em
busca de si mesma. 10
De alguma forma é possível supor uma estreita relação entre esses Avisos da
Mensagem e as profecias ocorrentes n'Os lusíadas: o sonho de D. Manuel, as advertências
do Velho do Restelo, as ameaças do Adamastor e as predições da ninfa na Ilha dos Amores.
Camões, por lidar com uma matéria épica que se articula tão-somente a partir da História,
transformando-a em mito, operou com a dialética ou, pelo menos, com a dialogia. Daí ter
contraposto a predição dos grandes feitos -- constante na primeira e na quarta daquelas
alegorias -- aos avisos de mau augúrio contidos nas duas mediais. A Mensagem de Pessoa,
diferentemente, opera a partir do fim da História, e não a utiliza senão enquanto fundamento
para o mito do Encoberto. Por isso a sua visão sobre ela não é dialética, mas unilateralmente
positivadora e exclusivamente de endosso ideológico. Por isso, ainda -- e porque o mito é n'O
encoberto a matéria poética e o próprio fundamento ideológico da epopéia pessoana --, Os
Avisos apontam apenas no sentido da apoteose, da epifania messiânica, da heroificação do
futuro imaginado-imaginário.
Interessante é notar-se que Camões, poeta maior da nacionalidade e, como tal, efígie
de referência e reverência obrigatórias na galeria dos heróis do canto e da história portuguesa,
não aparece na Mensagem. E logo ele que, de alguma forma na Dedicatória e no Remate
d`Os lusíadas, foi o profeta do momento sebastiânico. Eduardo Lourenço desde há muito
apontou e explicou essa ausência. 11 Com efeito, antes de se apresentar como um dos avisos,
Pessoa -- ele mesmo investido da auto-proclamada condição de Super-Camões -- arrola dois
vaticinadores do Encoberto de menor importância que Camões. Omite, pois, aquele que, no
10
Op. cit., p. 227.
1 1
LOURENÇO, Eduardo. “Camões e Pessoa”. Brotéria. Lisboa, v. 11O, 7-8-9: 55-68, 198O. Reproduzido em seu
Poesia e metafísica. Camões, Antero, Pessoa. Lisboa, Sá da Costa, 1983, pp. 245-261.
momento histórico do rei-desejado, tomou-o como síntese e referente do mito português ( o
que é o caso dos demais ), mas também como destinatário do seu próprio canto épico, e, mais
ainda, de conselhos e vaticínios. Hélder Macedo considera esta omissão como ato proposital
pelo fato de “Pessoa nunca ter sido capaz de perdoar a contrariedade de ter havido antes dele
em Portugal um Camões, contra o qual insensatamente julgou poder medir-se”. 12 E termina
por concluir que, mesmo tendo sido obliterado do rol dos heróis da Mensagem, Camões
“acabou por se tornar na grande ausência estruturante do poema, implicitamente referenciado
na imagem pesadélica do Mostrengo”.
Eduardo Lourenço toma como epígrafe do supracitado trabalho um trecho de carta de
Fernando Pessoa a João Gaspar Simões que muito bem coloca em pauta a questão: “Tenho
uma grande admiração por Camões ( o épico, não o lírico ), mas não sei de elemento algum
camoniano que tenha tido influência sobre mim, influenciável como sou. É que o que Camões
me poderia “ensinar” já me fora ensinado por outros...”. Daí o referido crítico considerar que “A
ausência de Camões é o texto negado sobre o qual o texto de Pessoa pôde, enfim, surgir
como o outro texto da mesma e diferente invenção de uma Pátria. Mensagem começa ideal e
formalmente onde Os lusíadas acabam”. E, em outro ponto, chega a concluir de modo
peremptório:
O presente de Pessoa que nele oscilou, enquanto impulso imaginante, entre o passado
mítico e o futuro mitificado, exigia o assassinato ritual de Camões como suprema forma
de afirmação na cena portuguesa onde a figura do autor de Os lusíadas não avulta só
como a de um grande poeta, ao lado de outros, mas como a voz e a alma de uma
ausência pátria inscrita, por assim dizer, no registo divino. Pessoa, ainda jovem, podia
endereçar ao Épico a mesma pergunta-desafio que Nietzsche, pela boca de Zaratrusta,
acabava de dirigir a Deus: “Se Deus existisse, como poderia eu tolerar ser não-Deus?”.
28-3-1930
31-7-1929
O padre Antônio Vieira ( 1608-1697 ), nascido português, veio com oito anos de idade
para a Bahia, onde fez sua formação jesuítica, destacando-se pela grande erudição e pelo
notável pendor oratório. Sua importância na história do messianismo português consiste no
fato de sua trajetória profética está intimamente ligada à do sapateiro de Trancoso. Já em
1634, esboçava sua crença messiânica , ainda de cunho sebastianista, no “Sermão de São
Sebastião”, proferido na Bahia. Mas seu definitivo ingresso no credo do Encoberto se deu a
partir de sua atuação política, quando, em 1641 e já em Portugal, colocou-se a serviço de D.
João IV nos primeiros e difíceis momentos da Restauração. Seu empenho como conselheiro
da corte e espécie de diplomata voltado essencialmente para os interesses do Estado
restaurado lhe rendeu fortes inimigos no âmbito eclesiástico, principalmente no Santo Ofício e
na Companhia de Jesus. Decepcionado e pressionado, Vieira embarcou para o Maranhão,
dedicando-se desde então a outra causa à época também problemática: a do combate à
escravidão indígena.
Data, porém, do início dos anos 60 a sua arrancada para a trajetória de grande
pregador messiânico. Por esta época, já morto o rei a quem servira, proferiu sermão em que,
fundamentando sua assertiva nas profecias do sapateiro Bandarra, afirmava que D. João IV
haveria de ressuscitar para operar os prodígios que dele se esperava. Essa pregação
consistia, aliás, no desenvolvimento de uma idéia que já havia esboçado ainda em vida do
monarca e que ficou documentada num posterior escrito sob o título de “Esperanças de
Portugal, Quinto império do mundo, primeira e segunda vida de el rei D. João o quarto,
escritas por Gonçalianes Bandarra e comentadas pelo padre Antonio Vieira”. Enviado para
André Fernandes, bispo do Japão, este texto foi parar nos gabinetes do Santo Ofício, o que
terminou por motivar sua prisão nos cárceres de Coimbra (1665) e conseqüente condenação
ao silêncio no púlpito. Livre do trabalhoso e duradouro inquérito, no limiar dos anos 80, estava
o pregador novamente na Bahia. Retornando ainda uma vez às causas políticas e ao culto do
Quinto Império, Vieira vislumbrou, então, a encarnação do Encoberto na pessoa de D. Pedro II
e, depois, naquele que viria a ser D. João V. Seu profetismo se manifestou em outras peças
como a inacabada “História do futuro” e, ainda em 1695, em “Voz de Deus ao mundo, a
Portugal e à Bahia”, sermão elaborado por ocasião da passagem de um cometa visível
naquelas paragens brasileiras. Nestas como em toda a sua imensa produção oratória,
destaca-se a sua vasta erudição aliada a um fidelíssimo culto da vernaculidade. Por fim, deve-
se ao padre Antônio Vieira não só a instauração de uma nova fase do messianismo português,
a joanista, mas, principalmente, o fato de ter sido ele o primeiro a imprimir historicidade a este
profetismo.
No poema que consigna sua presença na Mensagem, Antônio Vieira é consagrado
pela importância com que se destaca na plêiade dos arautos do sonho do Encoberto. Ele é o
portador de uma anunciação de dimensões certamente mais amplas que a do Bandarra.
Embora não tendo como este a marca da primordialidade, é ele quem dá foros intelectuais,
religiosos e políticos ao discurso profético que lhe toma de empréstimo. É por isso que ele é
tratado como “um céu” em cujo “espaço (...) de meditar”, projeta-se a “visão”, o “prenúncio
claro do luar” do Quinto Império. Além disso, este arauto da fé messiânica portuguesa é
sempre qualificado no poema através de unidades semânticas que atualizam a noção de
plenitude: “tem grandeza”, “fama”, “glória”, “Imperador”, “um céu”, “imenso”, “amplo”. Com este
segundo arauto, o sonho do Quinto Império -- ainda caracterizado como abstrato e impreciso
( “visão”, “prenúncio”, “desejo”, “madrugada irreal” ) -- passa a ser objeto da iluminação de sua
clarividência messiânica e da erudição e vernaculidade com que ele o transformou em
discurso. Observem-se, na camada semântica do texto, as notações indicativas de Claridade,
como “strela o azul”, “constelado”, “claro”, “luz do etéreo”, “dia” e “Doira”. E não se furtou o
poeta da Mensagem à oportunidade de caracterizar este orador sacro como o primoroso
cultista da forma ( “Imperador da língua portuguesa” ) e como o ardiloso conceptista barroco
que foi ( “No imenso espaço seu de meditar” ).
Antônio Vieira é, pois, na Mensagem, o herói por excelência do verbo anunciador d'Os
Tempos do DESVELAMENTO do Encoberto. Se o Bandarra teve o mérito da precedência,
Vieira é donatário da evidência ( “fama” e “glória” ) pela lucidez do seu pensamento e pela
transparência do seu discurso. Por isso o texto lhe ressalta ainda, como atributos básicos, as
noções de grandeza e de profundidade. E o faz seja com vistas à caracterização de sua
interioridade -- de homem erudito e de profeta intuitivo --, seja quanto à exterioridade em que
promoveu a sua ação de evangelizador de mundos. Estas noções se atualizam no texto
principalmente através de um campo semântico manifesto de modo reiterado pelos sememas
“céu” (três vezes), “luar” (duas vezes) e mais “strela”, “azul”, “constelado”, “luz”, “etéreo” e
“madrugada”.
Se, por um processo de relação intertextual, tivemos acima a oportunidade de
estabelecer uma aproximação entre o Bandarra e Nun'Álvares Pereira, Antônio Vieira pode ser
relacionado com o Vasco da Gama em ascensão. O herói-síntese da navegação detém o
mérito de ter levado a extremos da terra a ação expansionista portuguesa. Daí é que, em
similitude ao que aqui ocorre, no poema em que é referenciado, ele aparece habilitado à
amplitude de um céu que lhe abre o abismo em meio a uma apoteótica paisagem de “nuvens
e clarões” e “à luz de mil trovões”. A “fama” e a “glória” lhes são, pois, comuns porque foram
heróis de mundos sem limites. Pelo mar, o navegante ampliou o império imanente, dominando
“Os Deuses da tormenta e os gigantes da terra”. O orador sacro irradiou a luz de sua
sabedoria profética desde os salões dos reis da Europa até aos confins da selva brasileira e a
paços episcopais do extremo Oriente onde chegaram suas palavras. Vieira realizou, pois, pelo
seu discurso, o expansionismo do credo do império transcendente do Encoberto.
Só te sentir e te pensar
Meus dias vácuos enche e doura.
Mas quando quererás voltar?
Quando é o Rei? Quando é a Hora?
10-12-1928
Esta é, com efeito, a função dos discursos produzidos enquanto cadeias inconscientes
de sentido, o onírico, o mítico e o artístico: a de operarem o preenchimento imaginário da
descontinuidade eventualmente ocorrida no discurso da realidade, quando, para explicá-la
faltam parâmetros na ideologia e a ciência não basta.
O “Terceiro” dos avisos em muito difere dos anteriores. Trata-se de um verdadeiro
credo em forma de exaltada e ansiosa súplica. Observando a sua estrutura sintática, Sandra
Ferreira considera que ele “apresenta traços acentuadamente barrocos, por causa da
construção sinuosa da maioria dos versos, nos quais a inversão da ordem habitual de alguns
termos oracionais responde pelo efeito sonoro expressivo e pela intensificação do tom
interpelativo que caracteriza o poema, sugerindo um clima de angústia dilacerada”. 14
Neste tocante, outro aspecto a ser ainda levado em conta é a predominância da
parataxe nas duas primeiras estrofes e da hipotaxe nas três restantes. A parataxe imprime um
ritmo que de alguma forma sugere e ratifica o clima de angústia da suplicante espera. A
hipotaxe organiza um discurso que forma de uma espécie de desdobramento argumentativo
da interpelação inicial e impõe ao poema um lastro de razão em função do arrolamento de
fatos relacionados entre si. E estas analogias se fazem a partir da oposição entre as noções
de Carência e Plenitude ou, em outros termos, entre DESCONTINUIDADE e CONTINUIDADE:
“falso Deus” X “Cristo”; “mal que existo” X “Nova Terra” e “Novos Céus”; “sopro incerto” X
“Deus fez”; “esperança” X “amor”. Por outro lado ainda, a predominância da formulação
interrogativa e interpelativa, a camada semântica centrada na noção de espera ( “sonho”,
“anseio”, “esperança”, “Nova”, etc. ) e a ocorrência -- única na Mensagem -- de duas
interjeições ( “ó” e “Ah” ) são aspectos que levam a se poder considerar este poema como o
de maior intensidade lírica e emotiva de toda a epopéia pessoana. Nos dois versos finais
1 4
FERREIRA, Sandra. “O poeta quer, a língua sonha, a obra nasce: considerações sobre um poema de Fernando
Pessoa”. Revista de Letras - UNESP. São Paulo, 34: 171-176, 1994, p. 173.
ocorre uma certa contenção expressiva, acentuada por um ritmo pausado de segmentos
breves, como que a demonstrar um eu lírico extenuado pela intensa emoção:
Da névoa e da saudade quando?
Quando, meu Sonho e meu Senhor?
4.3. Os Tempos - “... do ser que sonhou”
Nesta terceira e última seção d'O encoberto, como vimos anteriormente, referenciam-se
os cinco tempos do DESVELAMENTO do mito, numa seqüência que lhe imprime
narratividade. Esta se faz por uma gradação que parte da Obscuridade -- maior em “Noite”,
menor em “Tormenta” -- para a Claridade que, prenunciada em “Antemanhã”, consuma-se no
lusco-fusco do “Nevoeiro”. Afinal, como diz Eduardo Lourenço, a mensagem da Mensagem
“dirige-se ao Dia, mas é da Noite que ela recebe a música desencantada que a acompanha”. 15
Os dois tempos iniciais se pautam na noção de escatologia, trazendo na essência de seu
sentido a referência simbólica ao caos da decadência, à descontinuidade do vazio histórico
nacional. O terceiro, “Calma”, é -- também já o vimos -- o momento intervalar, intersticial, que
faz a ponte entre o caos referido nos dois primeiros poemas e a epifania tratada nos dois
finais. Nestes últimos, “Antemanhã” e “Nevoeiro”, encontram-se significados os momentos --
gradativos, também -- do DESVELAMENTO do mito, até aquele em que, finalmente, “É a
Hora” da manifestação cosmogônica.
Estes cinco poemas apresentam, pois, os tempos do resgate, como fecho final da
arquitetura de sentido da Mensagem. E, por isso, como que à forma de síntese, encontram-se
aqui referências intertextuais a pontos importantes das duas partes anteriores, Brasão e Mar
português. Esta relação se dá, principalmente, com esta última, uma vez que o Encoberto se
busca na metáfora de um mar transcendente. Vejamos algumas delas. Comecemos por
observar que o dístico de abertura do poema “Noite” ( “A nau de um deles tinha-se perdido /
No mar indefinido” ) é uma espécie de retomada d”A última nau”, penúltimo texto de Mar
português que focaliza a partida fatal para o fim da história de um mar em que a Nação havia
conquistado aquilo que, também aqui, define-se como “O Poder e o Renome”. E mais: no
antepenúltimo verso deste poema, encontra-se a expressão “febre de ânsia” -- de
DESVELAMENTO do mito -- que, de alguma forma, reporta-se às duas partes anteriores da
epopéia pessoana. Ela pode aqui resgatar e dar expansão de sentido à “febre em mim de
navegar” do Diogo Cão que avançou com o padrão português pelo fim dos mares, e à “febre
de Além” que, na segunda quina do Brasão, consome e espiritualiza D. Fernando. Em
“Tormenta”, o Portugal virtual d”o poder ser” jaz “no abismo sob o mar”. E, como naquele
mesmo penúltimo poema de Mar português, uma nau mítica volta a ser falada em “Calma”, à
procura de uma “Ilha próxima ou remota (...) Que guarda o Rei desterrado / Em sua vida
encantada”. E ela está situada num “outro lado” que pode muito bem ser identificado com a
“Distância -- / Do mar ou outra” do poema “Prece”. Observemos que, desde “O infante” as
naus reais foram “de ilha em continente / (...) correndo até ao fim do mundo”. Em “Antemanhã”
volta a rodar o mostrengo que, já aqui de forma monologal, vem “Chamar Aquele que está
dormindo / E foi outrora Senhor do Mar”. E outro não é senão o mesmo que dialogou com “o
homem do leme” ( “Ascensão de Vasco da Gama” ) e que dançou “da morte do marinheiro”
Fernão de Magalhães. Antes do apelo final ( “É a Hora!” ), o poema “Nevoeiro”, em suas duas
estrofes de cinco versos, referencia o vazio da história em que não há mais “Nem rei nem lei,
nem paz nem guerra”, isto é, em que a construção da nacionalidade (Brasão) e a expansão do
Império (Mar português) são concebidas como etapas passadas de uma realidade que se
tornou descontínua.
1 5
LOURENÇO, Eduardo. “Sonho de império e império de sonho”. In: PESSOA, Fernando. Mensagem - Poemas
esotéricos. Edição crítica. José Augusto Seabra (coord.). Madrid, Edições Unesco, Coleção Archivos, n o. 28, 1993, p.
XXI
4.3.1. “Noite” - “... no mar sem fim e a névoa escura”
O primeiro dos cinco tempos d'O encoberto é um poema que faz referência, embora
apenas de maneira implícita, a um episódio da história trágica da navegação portuguesa.
Trata-se do drama que vitimou os irmãos Corte Real -- Gaspar, Miguel e Vasco -- filhos do
navegante João Vaz Corte Real que, por volta de 1472, alcançou a Terra Nova e depois a
América do Norte. O primeiro dos três, após duas bem sucedidas viagens também na rota do
Ocidente, zarpou de Lisboa em 1501 para uma terceira aventura da qual jamais voltou. O
segundo, em junho do mesmo ano, partiu no seu encalço mas retornou sem o encontrar.
Numa segunda tentativa, em maio do ano seguinte, enfrentou novamente os mares, sem que
também regressasse. “Por sua vez, Vasco Anes Corte Real, irmão mais velho dos dois
desventurados navegadores e sucessor de seu pai nas capitanias de Angra e de S. Jorge,
pretendeu ir, à sua custa, em busca de Gaspar e Miguel, mas não foi autorizado pelo
monarca.” 16 Assim, o sumiço dos dois irmãos e a interdição da busca de ambos imposta ao
terceiro se tornam, na Mensagem, metáforas estruturantes da falência do império marítimo
português e, por extensão metonímica, do limite da condição humana.
Neste ponto, embora ainda uma vez pautado n`Os lusíadas, Pessoa se distancia de
Camões. Para compor as profecias e ameaças do Adamastor, o épico renascentista
selecionou da história trágico-marítima alguns episódios célebres, privilegiando o naufrágio de
Manuel de Sepúlveda e sua formosa esposa. O poeta da Mensagem, elegendo a desventura
dos Corte Real, deu dimensão nacional à tragédia e, tomando-a como síntese da condição
humana, nela imprimiu sentido universalista. Para tanto, em primeiro lugar, tratou-os
anonimamente, relegando mesmo o fato de terem sido nobres e afamados navegantes. Mais
ainda, subverteu o que deles a história, a literatura e a lenda registram. Consta ter sido Miguel,
o segundo dos irmãos, o mais heróico e famoso navegante, mas que, no poema, aparece em
plano secundário. É, no entanto, ao terceiro que o poeta dispensa mais atenção e infunde
maior carga dramática. Isto porque, dentro da estrutura de sentido d`O encoberto, este é
tomado -- conforme já mencionamos -- como suporte maior da função metonímica: por um
lado, da Nação interditada na sua tentativa de arrancar para o futuro, de se arremeter para o
resgate da passada glória; por outro, do Homem, circunscrito aos limites de sua existência
terrena (“Queremos ir buscá-los, desta vil / Nossa prisão servil”). Américo da Costa Ramalho. 17
observa que, de alguma forma, estes versos lembram, com maior profundidade filosófica,
aqueles com que Camões descreve a morte do casal Sepúlveda: “Abraçadas as almas
soltarão / Da formosa e misérrima prisão”.
Passemos à análise do poema. Dividido em três blocos distintos que lhe conferem uma
dinâmica interna, ele relata a princípio a tragédia dos dois frustrados navegantes
desaparecidos e a interdição da tentativa de os resgatar. O segundo movimento ( terceira
sextilha ) se centra tão-somente no drama do terceiro dos Cortes Real que, cativo da
“amargura” e da “ânsia”, prostra-se, “Fitando a proibida azul distância”. No último movimento
formado pelos doze versos finais, a história trágico-dramática desses navegantes se
redimensiona num plano mais amplo de significação. E assim, Gaspar e Miguel, embora não
nomeados, passam a ser tratados como os “irmãos do nosso Nome” -- e a maiúscula
alegorizante é a marca grafemática desse sentido outro. Mais que isso, eles são agora
renomeados como “O Poder e o Renome” da própria Nação, e deles se constata que “Ambos
se foram pelo mar da idade”. E o “nós”, sujeito da enunciação que assume a dicção poética, é
também um novo Vasco Anes Corte Real, agora já provido de uma dúplice dimensão de
sentido. Numa primeira, ele é a síntese da Pátria prisioneira da decadência, a cujo Povo já
falta “O que faz a alma ser de herói”. Nos seis versos finais, esse agente enunciador que,
contrito, confessa sua omissão e impotência, é já um sujeito universal, agora encarcerado na
“prisão servil” do limite da condição humana e é por Deus interditado de dar vazão à sua “febre
de ânsia” transcendente. Esse ato de contrição -- tanto nacional como universal -- prepara,
neste primeiro d'Os Tempos d'O encoberto, a conclamação, também voltada para a
transcendência, que o sujeito da enunciação virá, ao final desta epopéia, avocar para si a
função de emitir: “É a Hora!”.
Observando ainda a dinâmica interna deste poema “Noite”, podemos constatar que
toda a sua estrutura semântica se fundamenta nas noções de Perda e Interdição que,
interativamente, dimensionam um sema globalizador: o VELAMENTO que se manifesta à
forma de Obscuridade já a partir do título. Vasta é a sua ocorrência no plano de expressão do
poema, enquanto significantes de Perda e de Interdição, seja do ponto de vista histórico, seja
do existencial-metafísico: “névoa escura”, “fim profundo”, “mar ignoto”, “enigma”, “proibida azul
16
Dicionário de história de Portugal. Joel Serrão (dir.). Porto, Figueirinhas, [s.d.], V. II, p. 197.
1 7
RAMALHO, Américo da Costa. “Sobre o poema `Noite` da Mensagem de Fernando Pessoa”. Separata de Biblos.
Coimbra, vol. LI - Miscelânea em homenagem a Paulo Quintela, 1975, p. 145-153.
distância”, “mar da idade” ( equivalente à “lei da morte”, metáfora camoniana para o
esquecimento ), “prisão servil” e “distância / De nós”.
Antônio Cirurgião chama a atenção para o fato de ser este o mais longo poema da
Mensagem, o que, segundo sua leitura algo impressionista, poderia sugerir os longos séculos
de espera pelo advento do Encoberto. Ressalta ainda que “a dificuldade da viagem dos dois
primeiros irmãos está sublinhada pelas redundâncias e reduplicações: “mar indefinido”; “mar
sem fim e a névoa escura”; “fim profundo / Do mar ignoto”. Nos encavalgamentos, nada
menos que nove, Cirurgião supõe que estaria sugerido também o “caráter agudizantemente
crescente da tragédia”. 18
26-2-1934
Este segundo tempo d'O encoberto é ainda um poema que, como vimos na introdução
ao estudo desta terceira parte da Mensagem, pauta-se na temática do VELAMENTO e da
escatologia, de exclusiva presença no poema anterior. Nele encontramos, no entanto, uma
dinâmica de sentido que parte da referência às noções de Perda e Interdição enquanto
Obscuridade ( primeira estrofe ) para a manifestação do primeiro vislumbre de resgate da
esperança, atualizado através de “relâmpago”, “farol” e “Brilha” (segunda). Trata-se aqui da
Claridade do virtual DESVELAMENTO do mito.
O primeiro movimento, a partir de uma estrutura fática de perguntas e respostas,
referencia, pois, tão-somente a Obscuridade. Ela representa no texto a consciência
portuguesa diante do destino falimentar de uma Nação jacente “no abismo sob o mar” e cuja
possibilidade de soerguimento consiste apenas na “inquietação” d”O desejar poder querer”.
Notemos, a propósito, que esta impertinente composição verbal produz uma ampliação de
sentido da expressão substantiva “o poder ser”, contida no segundo verso. Esta gradação,
aliás, torna mais vaga ainda a virtualidade do resgate da História no plano real.
O segundo movimento parte precisamente desta noção de vazio histórico que aparece
reduplicada pelo pronome “Isto”. Com a expressão “o mistério de que a noite é o fausto”, a ela
se adiciona uma outra noção: a de prenúncio da possibilidade de reversão da realidade. E
atentemos para a suspensão do enunciado em reticências e para a adversativa que se lhe
segue. Possibilidade, aliás, ainda vaga e efêmera ( “um hausto” ) porque se dá num “súbito,
onde o vento ruge” e porque se realiza enquanto “relâmpago”. Mas, de qualquer modo, realiza-
18
Op. Cit., p. 249.
se enquanto Claridade, isto é, como virtualidade de DESVELAMENTO do mito do Encoberto
no plano da transcendência ( “farol de Deus” ). E por fim -- do texto e de nossas considerações
-- não seria de todo insustentável supor que o estrugir do “mar escuro” possa ser entendido
como um incipiente esboço de reação à estagnação do Império. Ou seja, como um estímulo
ou desafio ( novo mostrengo ) para a conquista do que esteja para além da “proibida azul
distância” .
4.3.3. “Calma” - “... rasgões no espaço / Que dêem para o outro lado”
15-2-1934
DESVELAMENTO X VELAMENTO
as ondas contam [/] E se não pode encontrar
as ondas encontram [/] E nunca se vê
ilha próxima [/] e remota
persiste [/] não existe
mar insiste [/] é sozinho
um deles encontrado [/] onde há só sargaço
De resto, a noção de Claridade que se vai acentuando ao longo desses tempos d'O
encoberto se faz aqui presente no verso “Haverá clarões no espaço (?)”, espécie de
amplificação -- pela pluralização -- do “relâmpago, farol de Deus” do poema “Tormenta”.
4.3.4. “Antemanhã” - “Do novo dia sem acabar”
8-7-1933
É a Hora!
1O-12-1928
Valete, Fratres.
2 0
Acresce observar ainda neste símile a significativa imagem que ele encerra, já que “fogo-fátuo” é uma ilusão de ótica
resultante da incidência dos raios solares sobre os gases emanados da gordura de corpos em decomposição.
5. CONCLUSÃO
1
COELHO, Jacinto do Prado. "D`Os lusíadas à Mensagem". In: Actas do I Congresso Internacional de Estudos
Pessoanos. Porto, Brasília, 1979, p. 313.
2
LOURENÇO, Eduardo. "Camões e Pessoa". In: Poesia e metafísica. Camões, Antero e Pessoa. Lisboa, Sá da Costa,
1983, p. 254.
dotada de um destino de perfil mítico-dramático. A Mensagem seria, então, a recriação épico-
elegíaca e profética deste perfil. 3
A estrutura semântica desta epopéia pessoana, conforme demonstramos ao longo do
presente trabalho, reflete bem essa versão da história portuguesa. Toda a sua primeira parte,
Brasão, tem seu arcabouço de sentido organizado a partir do eixo MATERIALIDADE /
ESPIRITUALIDADE. São, afinal, as noções tomadas pelo poeta como fundamentos essenciais
para a existência de uma nação que sempre se pretendeu predestinada para o grande feito
histórico-mítico do Quinto Império. E os heróis que ocupam as suas marcas heráldica ou se
alternam nos pólos desse parâmetro sêmico, ou em si os conjugam. Mar português, segunda
parte, relata, de modo simbólico, a trajetória iniciática da Nação, o seu percurso de provações
no sentido de realizar o que "Deus quer" e, com isso, alçar-se ao umbral das divindades. E por
isso, toda ela se estrutura a partir do eixo semântico MITO / REALIDADE. Afrontando "o perigo
e o abismo" dos caminhos do "mar sem fim", os heróis da navegação transformaram em
REALIDADE os MITOS do mar tenebroso e, pela grandiosidade de seus feitos, inscreveram-se
como MITOS na memória humana. No entanto, "Cumpriu-se o mar, e o império se desfez". E
resta, então, a Portugal cumprir-se na virtualidade d`O encoberto. Daí é que toda esta terceira
parte da Mensagem se organiza em torno do eixo semântico VELAMENTO /
DESVELAMENTO, e sobre o tênue interstício desses pólos opositivos é que se proclama que
"É a hora!" em que há de vir o novo Ulisses para refazer a saga iniciada pelo primeiro dos
heróis-símbolo do Brasão.
Na Mensagem, como procuramos demonstrar pelas análises realizadas, cada poema
em particular apresenta um estrutura semântica organicamente constituída com base numa
economia verbal que dimensiona de modo plurívoco cada objeto, fato ou personagem-símbolo.
E com isso articula simultaneamente a sua representação na História e a sua função de
sentido na existência humana. Afinal, o SIGNUM do seu pórtico inicial pode ser entendido
como um lugar de sentido sagrado seja enquanto referente, seja enquanto símbolo poético
codificado e, ainda, enquanto linguagem dada à decifração. Vias iniciáticas do saber sobre o
real e suas representações. E, como tal, é plurívoco, porquanto "Tudo tem outro sentido, ó
alma, / Mesmo o ter-um-sentido". E essa plurivocidade resulta, ainda, de uma múltipla dialogia,
verdadeira polifonia de discursos, uma vez que, a partir de cada texto da Mensagem, além da
História e do Mito, falam também a ideologia, a filosofia, a metafísica em todos os seus ismos
e, sobretudo toda a tradição literária do Ocidente. Textualidade e interdiscursividades de um
texto plural e plurívoco.
3
Cf. LOURENÇO, Eduardo. "Oliveira Martins e Pessoa". Revista da Biblioteca Nacional. Lisboa, s. 2, vol. 1O, 1-2:
115-122, jan.- dez. de 1995.
6. BIBLIOGRAFIA
OBRAS DE REFERÊNCIA:
1. CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro, José
Olímpio, 1990.
2. COELHO, Jacinto do Prado (org.). Dicionário de literatura. Porto, Figueirinhas, 1973, 3 v.
3. SERRÃO, Joel (org.). Dicionário de história de Portugal. Lisboa, Iniciativas Editoriais,
[1979], 6 v.