James Fowler escreveu o seu famoso livro “Estágios da Fé”
em 1995, no qual aborda de maneira analítica, e poderia se dizer, científica, o desenvolvimento da espiritualidade ao longo da vida. O autor faz um paralelo entre o desenvolvimento espiritual com as fases de desenvolvimento normal pelas quais todo ser humano passa. Em sua discussão sobre espiritualidade ele não aborda alguma agremiação religiosa e suas expressões típicas de espiritualidade em si, mas o fenômeno, a dimensão humana da espiritualidade. Por favor, o leitor deve compreender a maneira como ele se expressa, não como uma tentativa de defender o ecumenismo, mas a tentativa de analisar o fenômeno da espiritualidade independentemente onde ele se manifesta, já que é uma dimensão e necessidade humana, independente de onde ela se manifeste. Esse autor usa o termo fé para o exercício da religiosidade em geral, conceito que chamamos de espiritualidade aqui. Destacaremos os principais aspectos que constituem o processo de desenvolvimento da espiritualidade, segundo James Fowler. A partir dele podemos pensar: Como conceituar espiritualidade? Qual a relação desse conceito com o desenvolvimento humano e com os processos culturais e educativos? Se puder ler o livro, creio que seria um acréscimo considerável à compreensão da espiritualidade. Leia também do mesmo autor o livro “Faith Development and Pastoral Care” publicado pela Fortress Press de Philadelphia em 1987. 1. Conceituando espiritualidade Fowler estabelece algumas diferenciações conceituais entre espiritualidade, religião e crença. A religião pode ser entendida como uma “tradição cumulativa”: textos, escrituras, leis, narrativas, mitos, profecias, relatos de revelações, símbolos visuais, tradições orais, música, dança, ensinamentos éticos, teologias, credos, ritos, liturgias, arquitetura. Já a espiritualidade é mais profunda e pessoal, é a forma como a pessoa ou o grupo responde ao valor transcendente. espiritualidade e religião são recíprocas. A espiritualidade é mais profunda, mais rica, mais pessoal (…). É uma orientação da personalidade em relação a si mesmo, ao próximo, ao universo; é uma resposta total; uma forma de ver as coisas e de lidar com as coisas com que se lida, quaisquer que sejam; uma capacidade de viver além de um nível mundano; de ver, sentir e agir em termos de uma dimensão transcendente. A crença é “esposar certas idéias”, ela surge do esforço de traduzir a experiência transcendente em conceitos ou proposições. A crença pode ser um dos modos pelos quais a espiritualidade se expressa. Já a espiritualidade: é uma qualidade do viver humano. Na sua melhor forma ela assume o aspecto de serenidade, coragem, lealdade e serviço: uma tranqüila confiança e alegria que capacita a pessoa a sentir-se em casa no universo, e a achar sentido no mundo e em sua própria vida, um sentido que seja profundo e último e que seja estável, não importando o que possa acontecer à pessoa no nível dos eventos imediatos. 2 . Espiritualidade e relacionamentos Outro aspecto relevante destacado por Fowler é o de que a espiritualidade acontece sempre num padrão pactual de relacionamento. E segundo ele, sempre dentro de uma perspectiva triádica composta por (e) o eu, (o) os outros e (ccvp) centros compartilhados de valor e poder. A partir disso compreende que existem três grandes tipos de relação: - Politeísta: que tem interesses em muitos pequenos centros de valor e poder. Essas pessoa fazem uma série de investidas relativamente intensas ou totais de identidade e espiritualidade, contudo de forma transitória e mutável. A atual sociedade de consumo faz cada um de nós ser mais politeísta do que gostaria, na medida em que você deve experimentar tudo o que quiser e se relacionar intimamente com quem lhe agrade. - Henoteísta: que significa crer e confiar em um só deus, contudo, se trata de um ídolo. É um padrão de fé e identidade no qual uma pessoa investe profundamente em um centro de valor e poder, achando nele uma unidade focal para sua personalidade, contudo é um centro inapropriado, falso, não é algo que o toque incondicionalmente. Pode ser o próprio eu, instituições, nações, igrejas, universidades, partidos políticos, causas, filosofias, movimentos ideológicos. A forma mais extrema é o fetichismo, como em casos extremos de carreirismo, o sexo, o dinheiro… - Monoteísmo radical: comprometimento com um único Deus, o criador, regente e sustentador transcendente, como o das tradições cristã, judaica e islâmica. Implica lealdade ao princípio do ser e à fonte e centro de todo valor e poder. Não significa negação de outros centros de valor e poder menos universais e menos transcendentes, significa sim sua relativização e ordenamento. 3 . Os estágios da espiritualidade Na quarta parte de seu livro Estágios da fé, James Fowler desenvolve a teoria dos estágios da espiritualidade. A seguir destacamos as principais características do pré-estágio e de cada um dos seis estágios. a) Espiritualidade indiferenciada - Sementes de confiança, coragem X ameaças de abandono, privações do ambiente. - Mutualidade, confiança, autonomia, esperança e coragem (ou seus opostos). - Perigo ou deficiência: falha na mutualidade que pode resultar em isolamento ou num narcisismo exagerado. - Transição para o estágio 1: com a convergência do pensamento e da linguagem. b) Espiritualidade intuitivo-projetiva - Fase fantasiosa, imitativa muito influenciada pelos exemplos, temperamentos, ações e histórias dos adultos. - Mais típico dos 3 aos 7 anos. - Produção de imagens e sentimentos duradouros. - Primeira autoconsciência e consciência dos fortes tabus da morte e do sexo. - Força deste estágio: nascimento da imaginação e capacidade de unificar e captar o mundo da experiência em poderosas imagens e sentimentos intuitivos. - Perigos: “possessão” de imagens de terror ou destrutivas; reforço excessivo de tabus ou expectativas morais ou doutrinárias. - Transição para o estágio 2: surgimento do pensamento operacional concreto; resolução das questões edipianas. c) Espiritualidade mítico-literal - A pessoa começa a assumir para si as histórias, crenças e costumes de sua comunidade. - Apropriação literal das crenças, símbolos, regras. - A espiritualidade adquire uma construção mais linear, coerente e com sentido. - Os atores das histórias são antropomórficos. Entram na história e não coneguem tomar distância do fluxo dela. - Força: surgimento da narrativa, da história, do drama como formas de descobrir e dar coerência à experiência. - Perigos: perfeccionismo supercontrolador, “justificação pelas obras” ou um humilhante senso de maldade. - Transição para o estágio 3: a contradição implícita nas histórias; o surgimento do pensamento formal, a entrada na adolescência. d) Espiritualidade sintético-convencional - A experiência de mundo se amplia: família, escola, trabalho, companheiros, mídia, religião… - Espiritualidade como unificadora, sintetizadora de valores e informações. - Típico na adolescência, mas para muitos o estágio definitivo. - Estrutura o ambiente último em termos interpessoais - Estágio conformista com as expectativas e julgamentos de outros significativos. - Força: formação de um mito pessoal, mito do próprio devir da pessoa em identidade e espiritualidade. - Perigos: as avaliações e expectativas dos outros podem ser tão sacralizadas que prejudique a posterior autonomia de pensamento e ação; traições interpessoais podem acarretar num desespero niilista ou numa intimidade compensatória com Deus, não relacionada a relações humanas. Passagem para o estágio 4: conflitos ou contradições nas fontes de autoridade; as mudanças que ocorrem nas instituições; a experiência de “sair de casa”. e) Espiritualidade individuativo-reflexiva - Assumir encargos e responsabilidades por seus próprios compromissos, estilo de vida, crenças, atitudes. - O eu(identidade) e a perspectiva (cosmovisão) tornam-se diferenciados dos outros e passam a ser os unificadores. - É um estágio “desmitologizador”, mas um tanto “racional”. - Força: capacidade de refletir criticamente sobre a identidade e a perspectiva. - Perigos: confiança excessiva na mente consciente e no pensamento crítico; uma espécie de 2o narcisismo: ver tudo a partir da própria cosmovisão. - Passagem para o estágio 5: a pessoa começa a dar atenção às vozes interiores, anárquicas e perturbadoras; histórias, símbolos, mitos e paradoxos da própria ou de outras tradições podem perturbar a simplicidade da espiritualidade anterior. f) Espiritualidade conjuntiva - Uma espécie de “segunda ingenuidade” onde o poder simbólico é asssociado aos significados conceptuais. – Reconhecimento crítico do seu inconsciente social; do seu passado pessoal e cultural. - Torna porosa a delimitação de identidade estabelecida pelo estágio 4. Convive com os paradoxos e as contradições aparentes. Força: imaginação irônica: capacidade de compreender os mais poderosos significados da pessoa ou do grupo, reconhecendo sua parcialidade. Preocupação com as novas gerações. Perigo: passividade ou inatividade paralisante, ocasionando complacência ou afastamento cínico, devido a sua compreensão paradoxal da verdade. g) Espiritualidade universalizante - Se tornam encarnadoras e realizadoras do espírito de uma comunidade humana inclusiva e realizada. - São contagiantes, criam zonas de libertação dos grilhões sociais, políticos, econômicos e ideológicos. - São freqüentemente vistos como subversivos. Muitos morrem pelas mãos daqueles que esperam transformar. São reverenciados após a morte. - Pessoas lúcidas, simples e mais plenamente humanas. - Pessoas prontas para ter comunhão com pessoas de qualquer um dos outros estágios e quaisquer outras tradições. Conclusão: Apresentamos de forma resumida a perspectiva dos estágios de desenvolvimento da espiritualidade de James Fowler. Assim como uma criança que cresce aprendendo a tocar um instrumento musical, e se dedica a isso ao decorrer da vida, acaba chegando à idade adulta e posteriormente à maturidade com uma percepção musical muito mais desenvolvida do que uma pessoa que nunca teve essa oportunidade ou nunca quis se empenhar no aprendizado musical. Assim também é com o desenvolvimento da espiritualidade. Se um adulto sem formação musical for querer aprender a tocar um instrumento, ele terá que iniciar ali onde a criança mencionada acima começou e terá que aprender passo a passo todas as compreensões que quase que fluíram naturalmente para a criança ao longo de seu desenvolvimento. Em outras palavras, nunca é tarde demais para iniciar o seu desenvolvimento espiritual, mas ao mesmo tempo quanto antes cada um de nós se lançar a esse empenho, tanto menor será a luta para incorporar percepções, intuição, coragem espiritual, que procedem da prática do amor e de seus componentes (humildade, mansidão, paz, alegria, paciência, altruísmo, pureza, simplicidade, domínio próprio, etc. – cf. Mt 5:3-12 e Gl 5:21-23). Adaptado do artigo de Rogério Foschiera BIBLIOGRAFIA FOWLER, James W. Estágios da fé. A psicologia do desenvolvimento humano e a busca de sentido. São Leopoldo: Sinodal, 1992.