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História
e ficção
em Paul Ricoeur e Tucídides
ISBN 978-972-8386-96-2
Trabalho de Investigação financiado pelo POPH - QREN - Tipologia 4.1 - Formação Avançada,
comparticipada pelo Fundo Social Europeu e por fundos nacionais do MCTES.
MARTINHO TOMÉ MARTINS SOARES
HISTÓRIA E FICÇÃO
EM PAUL RICŒUR E TUCÍDIDES
(Página deixada propositadamente em branco)
«Confesso que procuro contar-me entre o número
dos que escrevem progredindo e que progridem escre-
vendo. Portanto, se afirmei, por imprudência ou igno-
rância, uma opinião que merece ser corrigida, não
apenas por outros que se possam aperceber dela, mas
por mim próprio, na medida em que progrido, isso
não há-de causar nem admiração nem pena. Antes é
preciso perdoar e alegrar-se, não porque houve erro,
mas porque houve correção».
PReFÁCio....................................................................................................................... 15
PReÂMBULo ................................................................................................................. 17
ConCLUsÃo.................................................................................................................. 597
BiBLiogRAFiA
Ricœur .......................................................................................................................... 601
tucídides....................................................................................................................... 611
1
Martinho soares, Tempo, mythos e praxis: o diálogo entre Ricœur, Agostinho e Aris-
tóteles, Fundação eng. António de Almeida, Porto, 2013.
18 PReÂMBULo
sabia que, pela sua mão, eu seria levado a visitar tudo o que de essencial no
século XX se tivesse escrito acerca de história e ficção e história e ciência, e
este facto explica, em grande parte, a extensão desta tese, a qual pretende não
só dar voz a Ricœur, mas também a todas as vozes que ecoam em Ricœur e
que são essenciais para se compreender, com seriedade e abrangência, este
assunto. Assim, Ricœur acabou por ser um bom pretexto para uma compilação,
inédita em Portugal, de teorias (e pensadores), ora complementares ora antagó-
nicas, sobre história e ficção.
embora estivesse ciente de que o filósofo francês fornecia matéria sufi-
ciente para uma tese de doutoramento, a minha matriz classicista e a minha
índole comparatista reclamavam de insatisfação. em se tratando de história e
ficção, o nome que primeiro me veio à mente foi o de heródoto. A intervenção
feliz e oportuna de Maria do Céu Fialho, co-orientadora desta investigação
científica, jogou aqui um papel determinante, ao sugerir-me tucídides. Apesar
de ser um dos pensadores gregos mais estudados em todo o mundo, autor de
um dos maiores clássicos da literatura universal, constantemente revisitado por
historiadores, sociólogos, politólogos, tucídides é uma figura ainda pouco lida
e estudada em Portugal2. não obstante, ninguém como ele, na Antiguidade, pro-
blematizou de forma tão complexa e tão completa a dialética história e ficção
e suas variantes: retórica e verdade, ciência e arte, história e memória, subje-
tividade e objetividade, imparcialidade e interpretação, seleção e totalidade,
geral e particular.
são vários os motivos que nos estimulam a desenvolver um trabalho em
que os dois protagonistas são um historiador grego do século V a. C. e um dos
mais ecléticos e produtivos filósofos da nossa era. em primeiro lugar, notámos
uma semelhança excecional na forma como o filósofo francês teoriza e o his-
toriador ateniense aplica a ficção na história: os privilégios da imagem retórica,
decorrentes da representação literária, em Ricœur, e a vividez imagética, pathe-
tika, em tucídides, conseguida por meio da ekphrasis e da enargeia, têm como
finalidade fazer ver ou pôr sob os olhos dos leitores acontecimentos unicamente
únicos que, no entender de Ricœur, clamam por justiça e não podem de modo
algum ser esquecidos. em segundo lugar, ambos trabalham contra uma menta-
2
A primeira tradução para português – diretamente a partir do grego – da História da
Guerra do Peloponeso, é muito recente; data de dezembro de 2010, e é da responsabilidade
de Raul Miguel Rosado Fernandes e M. gabriela P. granwehr. em termos de estudos sobre
tucídides, até à data, o que existe em Portugal é uma tese de doutoramento defendida por
Adriana nogueira, em 2000: «A filosofia do Poder: Nomos e physis e a lei do mais forte em
tucídides».
PReÂMBULo 19
lidade relativista que ameaça fazer da história uma disciplina tão fantasiosa
como a ficção literária e procuram formas de conferir credibilidade científica ao
ofício do historiador. Assim, ambos foram, no seu tempo e cada um a seu
modo, baluartes da verdade contra tendências relativistas de reduzir todo o dis-
curso histórico à retórica ficcional; mas também os dois acabam por reconhecer
alguma razoabilidade às teorias que combatem e preservam delas o que pode
valorizar a dimensão ética do ofício do historiador. em terceiro lugar, temos
um elo de ligação e de problematização entre tucídides e Ricœur, que é Aris-
tóteles. Ricœur constrói a sua teoria narrativa, que abrange a história e a ficção,
alicerçada na Poética aristotélica; e a obra de tucídides ajusta-se ao modelo da
tríplice mimese aristotélico-ricœuriano; porém, paradoxalmente, Aristóteles
recusa colocar os historiadores ao mesmo nível dos poetas, com base no argu-
mento de que os primeiros imitam o particular e os segundos o universal. ora,
uma das características principais da obra de tucídides é o seu pendor gene-
ralista, universal, e o caráter, a todos os níveis, verosímil e trágico do seu
texto. esta questão evoca uma outra que é central em Ricœur e passível de se
reconstituir em tucídides: a dialética compreensão/explicação. Um outro pro-
blema que é nuclear em Ricœur e em tucídides é a crítica dos testemunhos e
das testemunhas, dos indícios, das provas, dos documentos, em suma, da
memória. A reflexão de Ricœur sobre a memória, o papel das testemunhas e os
limites da representação inscrevem-se numa reflexão histórica suscitada por
uma guerra contemporânea. em tucídides, os mesmos tópicos emergem tam-
bém sob a influência de uma guerra contemporânea, cujas principais fontes de
informação são as memórias dos sobreviventes. este tema traz ao debate o con-
ceito chave de mimesis e a teoria ricœuriana da representância, com a qual se
pode confrontar a História de tucídides. tucídides parece querer configurar o
texto com a guerra, como se um pudesse ser o espelho do outro, mas a expres-
são que utiliza para unir escrita e guerra (“escrever como aconteceu”) é aquela
na qual se inspirará Leopold Ranke e na qual se apoiará posteriormente Ricœur
para construir o conceito de representância. Por fim, tucídides é um precursor,
o pioneiro de uma disciplina que só amadurecerá enquanto ciência erudita a
partir do século XV com Lorenzo Valla e, sobretudo, do séc. XiX com a
escola Metódica. Até aí, o autor da História da Guerra do Peloponeso perma-
nece como figura ímpar da historiografia, não emulado pelos seus sucessores
e superando em vários pontos o seu antecessor, heródoto. A prova é que foi
adotado como figura tutelar pelos pais da história científica (mais pelo seu
ambicioso programa de trabalho do que propriamente pela sua concretização
prática). de facto, em tucídides reconhece-se uma atitude que é original e fun-
dadora, ainda que meramente incoativa: a instituição de uma epistemologia
20 PReÂMBULo
3
em Histoire et Vérité, Ricœur consagra uma nota a tucídides onde refere que o tipo
de causalidade praticada pelo historiador ateniense é próximo do da ciência física do seu
tempo, distanciando-se, nesse particular, de heródoto (HV: 29). o nome de tucídides surge
depois duas vezes em TR i e uma vez em TR ii. em TR i Ricœur declara, num parêntesis,
que a História de tucídides contradiz o dito aristotélico de que a história é demasiado epi-
sódica para as exigências da Poética (p. 288). na vez seguinte (p. 308), o nome do histo-
riador ateniense aparece atrelado a Paul Veyne, historiador e intelectual francês que cita
amiúde o nome de tucídides na sua obra Comment on écrit l’histoire. em TR ii, a evocação
faz-se a propósito do caráter permanente das ktema humanas narradas por tucídides (p. 273,
nota 1). em La mémoire, l’histoire, l’oubli, o nome de tucídides surge pelo menos quatro
vezes, nas páginas 29, 168, 173, 209: uma vez no âmbito das “ktema es aei”; outra em que
apoda tucídides “um mestre de verdade”; outra relacionada com a escrita e a finalidade que
tucídides outorgou à escrita da sua obra; e a última a propósito da distinção entre o histor
e o aedo. Para além disso, há ainda menções ao nome do historiador grego em vários artigos
que oportunamente serão citados e que, grosso modo, se referem a tucídides e heródoto
como os pais da história.
24 intRodUÇÃo geRAL
-se às mais variadas incidências interpretativas. não é esse o valor maior dos
gregos, que nós os possamos interpretar constantemente à luz de novos presen-
tes? só assim se entendem leituras tão díspares como as de Cornford e Coch-
rane, que representam duas tendências antagónicas de posicionamento diante da
obra de tucídides. Mas pelo meio há toda uma panóplia matizada de análises
e interpretações que transformam a História da Guerra do Peloponeso numa
densa nuvem hermenêutica da qual é impossível sair pacificado.
não nos alongamos em apreciações relativamente a tucídides. na segunda
parte desta investigação, haverá oportunidade para aprofundar e desenvolver os
motivos que nos levam a reunir sob o mesmo teto Ricœur e tucídides. Cen-
tremo-nos, por agora, no filósofo francês, figura tutelar da primeira parte deste
estudo.
Paul Ricœur foi um dos filósofos que, nas últimas décadas, mais tempo
e páginas dispensou a refletir sobre a história, com o único intuito de lhe
encontrar um lugar condigno entre as ciências sociais. Por ela combateu contra
todas as ameaças que punham em perigo o seu estatuto científico, a sua vita-
lidade narrativa e a sua própria validade ética: o narrativismo e o estrutura-
lismo, o positivismo lógico, o negacionismo. de facto, a história ocupa um
lugar de destaque na economia do pensamento ricœuriano. Basta ver o número
de vezes que ela é convocada para a sua obra filosófica. Para além de um
amplo naipe de artigos e ensaios citados no decorrer deste estudo, há três obras
principais onde a problemática histórica é nuclear: Histoire et vérité (1955),
Temps et récit i e iii (1983 e 1985), La mémoire, l’histoire, l’oubli (2000).
numa entrevista divulgada na revista Esprit, em 1981, pouco antes da
publicação do primeiro volume de Temps et récit, Paul Ricœur justifica a sua
opção pela história com três razões de ordem essencial e várias de ordem
técnica4.
não é possível uma filosofia sem diálogo com as ciências humanas; ora,
a história ocupa um lugar fundamental no concerto das ciências humanas. não
há conhecimento de si que não se efetue através do desvio por sinais, símbolos
e obras culturais5; entre estas obras culturais encontram-se de forma permanente
4
«L’histoire comme récit et comme pratique. entretien avec Paul Ricœur», in Esprit,
n.º 54, 1981, pp. 155-165. Redação de P. Kemp e F. Marchetti.
5
esta ideia do mediato contra o imediato, do indireto contra o direto, do desvio pelos
símbolos da cultura, Ricœur vem defendendo desde a Simbólica do mal e repete em escritos
posteriores, contra a imanência textual defendida pelo estruturalismo: «Contrairement à la tra-
26 intRodUÇÃo geRAL
as histórias que contamos e que o historiador escreve. Por fim, é preciso pre-
servar a diversidade das formas de linguagem existentes – a Ricœur interessa,
sobretudo, o caráter narrativo do ato de contar histórias.
As razões de ordem técnica prendem-se com várias questões interligadas.
em primeiro lugar, o desejo de superar a subdivisão paradoxal do ato de narrar
entre história e ficção. não haverá um fator de convergência, de unidade? Para
Ricœur, a intriga é o elemento comum que une os dois géneros narrativos. em
segundo lugar, pareceu ao filósofo que este ato narrativo unificador tem uma
relação privilegiada com a experiência humana do tempo, porquanto esta não é
redutível ao tempo cronológico marcado pelos relógios6. daqui surge a bifurca-
ção entre tempo cronológico e tempo histórico; se o segundo é o meio através
do qual nós narramos, conclui-se o seguinte: «Le caractère narratif de l’expé-
rience du temps serait alors une sorte de test pour articuler philosophiquement
la structure du temps, ce qui a toujours constitué un des grands problèmes phi-
losophiques» (Ricœur 1981: 156). Contra a opacidade e mudez da experiência
temporal, o filósofo propõe a loquacidade da narrativa, que serve como uma
«espécie de janela aberta sobre o que é o tempo humano» (ibid.).
Finalmente, há ainda razões de uma terceira ordem, secundárias do ponto
de vista filosófico mas centrais do ponto de vista das suas convicções pessoais.
Ricœur recorda «o caráter essencialmente narrativo da fé bíblica, que, antes de
se exprimir em dogmas, em expressões abstratas sobre deus, se apoia em his-
tórias contadas: a história do Êxodo, a história da Crucificação e da Ressurrei-
ção, a história do Pentecostes, da igreja primitiva […]» (ibid.).
o ato narrativo possui, então, uma dimensão religiosa que poderá estar
relacionada com o potencial da narrativa para estruturar o tempo. Mas, antes
desta dimensão religiosa, existe uma dimensão ética na narrativa. nenhuma
existência pode viver sem história, nenhuma consciência humana é autotranspa-
rente ou autoposicional, porque toda a experiência está imbuída de temporali-
dade e ninguém se pode conhecer a si próprio sem ser por intermédio das nar-
rativas que conta sobre si, o que leva a falar de uma função identitária pessoal
e comunitária da narrativa7.
talvez não seja possível identificar um tema com que se possa unificar a
ampla e heterogénea bibliografia ricœuriana sobre a temática histórica, que
conta com as três obras maiores já referidas e uma panóplia de artigos, comu-
nicações, entrevistas e ensaios dispersos por revistas, livros, enciclopédias e atas
de colóquios. no âmbito da reflexão epistemológica, os mais recorrentes são a
dialética explicação-compreensão, sob a qual se discute a relação da história
com a ciência e a narrativa, e daí com o tempo, a memória e a ficção. no
âmbito da hermenêutica, da ontologia e da filosofia da história, os escritos de
Paul Ricœur giram em torno do sentido da história, da consciência histórica e
da condição histórica do homem, da memória e do esquecimento. no entanto,
parece-nos que a preocupação maior do filósofo nesta matéria como, de um
modo geral, em toda a sua produção filosófica tem como cerne a compreensão
do homem no seu meio a partir da sua ação: o que é o homem, o que e de
que forma as “praxeis” culturais humanas (muito particularmente as mediadas
pela linguagem simbólica-metafórica-narrativa) nos podem revelar acerca do
agente e do paciente humano? em última análise, é sempre o mistério do
homem temporal, agente, falível e sofredor que Ricœur procura iluminar através
da análise semântica dos elos opacos que medeiam a nossa relação com o
mundo e connosco próprios8. neste processo interpretativo, as narrativas ocu-
7
«[…] notre propre existence est inséparable du récit que nous pouvons faire de nous-
mêmes: les histoires, vraies ou fausses d’ailleurs – peu importe! –, les fictions aussi bien que
les histoires exactes, disons vérifiables, on cette valeur de nous donner une identité. […] si
l’on applique cette idée au champ religieux, on peu dire qu’israël a constitué son identité en
racontant sa propre histoire. Certains auteurs ont même appelé la Bible l’autobiographie d’is-
raël. et, en ce sens, on peut dire qu’une tradition religieuse se caractérise d’abord par les his-
toires qu’elle raconte et, bien entendu aussi, par les interprétations symboliques ou autres
qu’elle greffe sur ces histoires. Mais le premier noyau est un noyau narratif» (Ricœur 1981:
156).
8
A opção de refletir o sujeito de forma indireta recusando a ideia husserliana de uma
consciência de si imediata – através do desvio pelas manifestações simbólico-culturais do pró-
prio sujeito orienta toda a sua atividade filosófica desde o início e define a sua originalidade
como pensador, mesmo relativamente a filósofos que ele admira e tem como mestres, como
é o caso de husserl. na sua autobiografia intelectual, Ricœur admite-o: «[…] déjà dans les
essais que j’ai consacrés à husserl à la suite de la traduction des Ideen I […], je prenais mes
distances à l’égard d’une conscience de soi immédiate, transparente à soi, directe, et plaidais
pour la nécessité du détour par les signes et les œuvres déployés dans le monde de la cul-
ture» (RF, 34). A hermenêutica como instrumento privilegiado desponta em Symbolique du
mal, segundo volume de Finitude et culpabilité (1960). no quadro de toda uma reflexão
28 intRodUÇÃo geRAL
pam um lugar cimeiro: a narrativa diz de forma indireta (poética), mas signi-
ficativa, o homem concreto e a realidade que o envolve9. Ricœur parte da cons-
tatação de que o homem vive enredado em histórias, procura conhecer-se e dar-
-se a conhecer através delas.
Compreende-se, pois, que a história – sendo, de um modo específico, uma
narrativa e, além do mais, uma narrativa que visa relatar factos verdadeiros,
comprováveis – ocupe um lugar central nesta economia. Que a história é uma
narrativa comprova-o a própria ambiguidade do termo que, na maior parte das
línguas europeias, significa, simultaneamente, o que realmente aconteceu no
passado (dimensão ontológica do termo) e o discurso que sobre isso se faz
(dimensão epistemológica do termo)10. Ricœur acredita que esta ambiguidade
semântica não acontece por acaso, contribuindo para reforçar a similitude entre
o ato de narrar a história e o estar na história, ou seja, entre fazer a história
e ser histórico11. Mas vai mais longe ao destacar o papel que história e ficção
desempenham na construção de narrativas que direta e indiretamente contri-
buem para desfazer a opacidade da experiência humana12. de facto, as histórias
e a história são fautoras de historicidade humana13. A polissemia da palavra his-
acerca da consciência do mal, Paul Ricœur formula o famoso adágio que o “símbolo dá que
pensar”. Aceitando a mediação dos símbolos e dos mitos e recusando terminantemente um
acesso imediato, direto ou apodítico ao Cogito, o autor propõe um conhecimento do ser
humano através dos signos depostos na sua memória e no seu imaginário pelas grandes cul-
turas (cf. Portocarrero 2005, 71-86: A via longa da hermenêutica).
9
Para Ricœur, a ficção é um meio privilegiado para redescrever a realidade. Aristóteles
cauciona esta teoria atribuindo à linguagem poética a virtude de fazer a mimesis da realidade.
A tragédia só imita a realidade recriando-a por meio de um mythos, de uma fábula que atinge
a sua essência mais profunda (cf. Ricœur, TA, 115).
10
«“geschichte”, “history”, “histoire”, avons-nous dit, signifie à la fois ce qui s’est
réellement produit et le récit que nous en faisons» (Ricœur 1980, in tiffeneau 1980: 58).
11
«[…] le terme histoire, dans la plupart des langues européennes, a l’ambiguïté intri-
gante de signifier à la fois “ce qui s’est réellement produit” et le récit de ces événements.
or cette ambiguïté semble recouvrir plus qu’une rencontre de hasard ou qu’une confusion
déplorable. nos langues, plus vraisemblablement, préservent […] une certaine appartenance
mutuelle entre l’acte de raconter (ou d’écrire) l’histoire et le fait d’être dans l’histoire, entre
faire l’histoire et être historique. en d’autres termes, la forme de vie dont le discours narratif
est une partie est notre condition historique elle-même (Ricœur 1980, in tiffeneau 1980: 50).
12
«[…] la prétention référentielle indirecte des récits de fiction et la prétention réfé-
rentielle directe des récits historiques (en tant qu’histoire «vraie», au sens épistémologique du
mot «vrai»)» (Ricœur 1980, in tiffeneau 1980: 58).
13
«Cette opacité logique peut expliquer que l’historicité de l’expérience humaine ne
puisse être portée au langage que comme narrativité, – et que cette narrativité elle-même ne
intRodUÇÃo geRAL 29
requière pas moins que le jeu et l’intersection des deux grands modes narratifs. L’historicité
est dite, dans la mesure où nous racontons des histoires et écrivons l’histoire» (Ricœur 1980,
in tiffeneau 1980: 59).
«nous avons besoin du récit empirique et du récit de fiction pour porter au langage
notre situation historique» (Ricœur 1980, in tiffeneau 1980: 65).
14
«Après une longue éclipse du récit au cours de laquelle les historiens du XiXe et
du XXe siècle ont cru pouvoir fonder une physique sociale, croyant rompre à jamais avec
l’histoire-récit, les historiens aujourd’hui insistent au contraire sur le fait que la notion d’his-
toire revêt une valeur polysémique, désignant tout à la fois l’action narrée et la narration elle-
même, confondant tout ainsi l’action d’un narrateur, qui n’est pas forcément l’auteur, avec
l’objet du récit. L’historien est de nouveau invité à s’interroger sur son acte d’écriture, sur
la proximité de celui-ci avec l’écriture fictionnelle et en même temps sur la frontière qui dis-
tingue les deux domaines» (dosse 2000: 87).
30 intRodUÇÃo geRAL
séculos15. Contudo, foi a partir do séc. XiX, com o eclodir da chamada história
científica (epifenómeno do hegemónico e otimista modelo positivista), que a
questão se agudizou e ganhou novos contornos. Para a história exigiu-se o
mesmo tipo de método e resultados que as ciências físicas e biológicas almejam
(Montesquieu, Voltaire, Condorcet). A conclusão de que a lei e a causa posi-
tivista não estavam ao alcance da história não faz os historiadores arredarem pé
da senda das ciências, já não das naturais mas das sociais e humanas. enquanto
teóricos narrativistas e estruturalistas tentaram aproximar a narrativa da ciência
e contribuíram para reduzir a história a um artefato literário, sujeito ao relati-
vismo de todo o discurso ficcional, os historiadores franceses da movência dos
Annales e os teóricos do modelo nomológico tentam afastar a história da nar-
rativa e do acontecimento breve, aproximando-a da ciência. A história é con-
frontada com a alternativa de ser ciência idiográfica (compreensiva) ou ciência
nomotética (explicativa), narrativa de acontecimentos singulares ou conjunto de
proposições científicas que inscrevem factos sob leis gerais.
É neste cenário de real tensão que surgem as reflexões de Ricœur.
homem atento às questões do seu tempo, leitor assíduo das obras dos historia-
dores, contribui de forma determinante para uma reconciliação. A sua grande
vitória foi justamente a de ter conseguido conciliar dois termos aparentemente
contraditórios sem retirar credibilidade e autoridade explicativa à história. esta,
apesar de recorrer à ficção para cativar o público, para dar visibilidade aos fac-
tos narrados, em suma, para se dar a ler, continua a ter como alvo insubstituí-
vel a verdade. não uma verdade de teor positivista (em que haveria coincidên-
cia entre o real e o conhecimento histórico), mas a verdade visada através da
positividade do ter-sido e reconstruída sob o regime analógico da representân-
cia. só assim a história mantém a capacidade para dar conta, de forma cien-
tífica, de uma realidade exterior ao discurso, evitando cair no relativismo que
os teóricos do linguist turn alimentaram.
Atualmente, é relativamente pacífica entre historiadores e filósofos a com-
ponente ficcional da história em concomitância com a autonomia explicativa e
científica da mesma. Ricœur tem aí a sua quota-parte16. A história é uma ciên-
15
«histoire et fiction: vieux comme l’histoire même, le problème de leurs rapports
porte de nos jours une interrogation fondamentale pour l’avenir de la philosophie et de la
connaissance» (Pomian 1989: 115).
16
«Le tournant interprétatif adopté par les travaux actuels permet de ne pas se laisser
enfermer dans la fausse alternative entre une scientificité qui renverrait à un schéma mono-
causal organisateur et une dérive esthétisante. Le basculement est particulièrement spectacu-
laire dans la discipline historique qui a été nourrie tout au long des années soixante et
intRodUÇÃo geRAL 31
cia, ainda que não como as outras, e uma arte, ainda que diferente de todas as
outras (vide Le goff 1984: 158). esse facto é hoje assumido um pouco por
toda a parte17. A ficção, sabemo-lo, é do domínio da criação, da modelação, do
recurso à imaginação18; tem contacto com o mundo, mas não tem contrato com
a verdade nem está obrigada a prestar provas das suas declarações. A opinião
de Ricœur é de que a história, ainda que não possa dispensar a imaginação, a
interpretação e a retórica, é um discurso que, através de um método científico
e crítico, busca incessante e incansavelmente a verdade rigorosa dos factos que
narra, nisso ocupando um espaço distinto do da ficção. o historiador estabelece
implicitamente com o leitor um compromisso ético e profissional de verdade,
que implica julgar/explicar mediante a apresentação de provas. e, por conse-
guinte, a sua tarefa aproxima-se da do juiz19.
soixante-dix, sous l’impulsion de l’école des Annales, d’un idéal scientiste, celui de trouver
la vérité ultime au bout des courbes statistiques et des grands équilibres immobiles et quan-
tifiés. grâce au travail sur le temps de Paul Ricœur, on redécouvre la double dimension de
l’histoire qui, sous le même vocable en France, recouvre à la fois la narration elle-même et
l’action narrée (dosse 2000: 54-55).
17
«A dimensão poética da produção e da escrita da história, que esta de facto nunca
perdeu – apesar de, insista-se, em dada altura se ter feito crer que tal tinha acontecido, o que
apenas diminuiu o valor da sua presença mas sem a anular – pode então assumir-se, sem pre-
tensão alguma de se tornar única ou dominante, de celebrar "retornos" ou "ruturas" que
excluam outras experiências, como modelo plausível e capaz de seguir um caminho próprio.
Articulando, naturalmente, a sua experiência com o rigor dos métodos de pesquisa e de crítica
documental, e com todo o corpo de conhecimentos, que são património incontornável da his-
toriografia no seu conjunto. Quer isto dizer: admitindo e praticando a história como saber
próprio mas híbrido, que combina dados e imaginação, e o faz com rigor e com arte, afas-
tando-se da estéril presunção da certeza e oferecendo-se ao interesse das pessoas que, por
prazer ou vontade de conhecer – mas de preferência pelos dois motivos combinados – por
ela se interessam, para ela são conquistadas, de alguma maneira a integram nas suas vidas»
(Bebiano s/d: 19).
18
«Fiction, c’est fingere, et fingere, c’est faire» (Ricœur, TA, 17).
19
A comparação do historiador com o juiz é muito frequente em P. Ricœur. Para além
de várias referências em Temps et Récit, o autor dedica uma análise mais demorada ao tema
em La mémoire, l’histoire, l’oubli («L’historien et le juge», pp. 413-436). o grande historia-
dor Carlo ginzburg escreveu também um ensaio sobre o mesmo assunto: Il giudice e lo sto-
rico, turin, einaudi, 1991.
(Página deixada propositadamente em branco)
PRIMEIRA PARTE
História e Ficção
em Paul ricœur
(Página deixada propositadamente em branco)
CAPÍTULO I
SOB O SIGNO DA VERDADE
1
em Histoire et Vérité (HV, seuil, Paris, 19551, 19642), o autor coloca os seus ensaios
– enquadrem-se eles no âmbito da epistemologia histórica, da história da filosofia ou da filo-
sofia e teologia da história – sob a regência da verdade.
2
«Parce que l’histoire est notre histoire, le sens de l’histoire est notre sens» (ricœur
1986: 36].
3
Fazemos nossas as palavras de Dosse: «cette dimension véritative de l’histoire est un
fil conducteur majeur de ricœur dans son dernier ouvrage. elle constitue même ce par quoi
l’histoire se différencie d’autres formes d’écriture, d’autres genres comme la fiction. a ce
titre, ricœur définit une épistémologie de l’histoire dont l’ambition et le pacte avec ses lec-
teurs est d’atteindre le niveau de la véracité par l’écriture» (2006: 22-23).
4
a verdade não é mais entendida na aceção que lhe deu tomás de aquino, na senda
de Platão e aristóteles: adaequatio rei et intellectus – o acordo do pensamento com a coisa
ou, numa tradução mais livre, a adequação do saber ao real. a adequação ao real que está
a montante e a jusante do pensamento é linguisticamente mediada. Nesse sentido, verdade
não é apenas correspondência mas também coerência, o que implica necessariamente a con-
sideração não só de uma prática metodológica como de uma prática literária configurativa. É
36 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
nesta dupla vertente que o tema da verdade em história está diretamente relacionado com o
seu oposto, a ficção, como bem no-lo relembra chartier: «aujourd’hui, pour les historiens, la
pertinence d’une interrogation sur les rapports entre histoire et vérité est directement liée à
son envers, c’est-à-dire à leur relation avec la fiction (1998b: 30).
5
isto não invalida que a ficção não almeje também a verdade, apenas se trata de um
outro tipo de verdade, segundo uma modalidade diferente de pretensão referencial, «a preten-
são a redescrever a realidade de acordo com as estruturas simbólicas da ficção» (ricœur
1980, in tiffeneau 1980: 58). a pretensão que guia a ficção é indireta, ela visa indiretamente
a nossa experiência temporal, a da história é direta, mas isso não nos impede de dizer que,
num outro sentido de “verdadeiro” e “verdade”, história e ficção podem ser consideradas as
duas “verdadeiras”.
6
as últimas três décadas do séc. XX conheceram uma importante reação do chamado
linguistic turn, nascido em solo americano e filho da pós-modernidade, contra a história con-
cebida como disciplina objetiva e portadora de natureza demonstrativa. os narrativistas (saí-
dos do movimento do linguistic turn) trouxeram um importante contributo – reconhecido por
ricœur – à epistemologia da história, ao recordarem-nos que a história é também narrativa,
arte, retórica, ficção e que a sua verdade, tal como a de outras ciências, não é objetiva, defi-
nitiva nem incontestável. contudo, ao serem exclusivos, contribuíram para aumentar ainda
mais o ambiente de ceticismo relativista, de descrença na verdade, que marcou a pós-moder-
nidade, como nos conta rui Bebiano: «o caráter plural das formas de pensamento da pós-
-modernidade, que como é sabido exclui uma ideologia ou tendência hegemónica e se centra
no discurso do multiculturalismo, tem vindo a acentuar esta redefinição dos conceitos, rela-
tivizando como nunca o valor “definitivo” da espécie de verdade que pode ser obtida no pro-
cesso de aproximação e de conhecimento do passado. Fá-lo tomando os documentos singu-
lares [...] como fragmentos manipuláveis (e remanipuláveis) em todos os momentos pelo
capítulo i – soB o sigNo Da VerDaDe 37
historiador, rompendo com a presunção cientista e assumindo com frequência o caráter poé-
tico, como tal recorrentemente indeterminado e dependente da criatividade, da conceção da
escrita e da comunicação em história» (s/d: 1).
7
É como mediador e sanador deste conflito metodológico/epistemológico que ricœur
merece ser reconhecido: «les historiens savent la dette qu’ils ont envers Paul ricœur. [...] le
livre de ricœur les a aidés à être plus lucides sur leur propre pratique et à comprendre com-
ment l’intention de vérité qui fonde leur discipline ne pouvait être séparée des parentés qui
lient son écriture à celle des récits de fiction» (chartier 2002: 4).
8
outros pensadores franceses, contemporâneos de ricœur, chamaram a atenção para
este vínculo que une narrativa e operação historiográfica. o pioneiro foi Paul Veyne, que em
1971 deu à estampa o seu importante texto Comment on écrit l’histoire, seuil, Paris. segue-
-se-lhe michel de certeau, no seu artigo «l’opération historiographique», publicado, numa
versão truncada, em 1974, em Faire de l’histoire e, numa versão completa, na sua célebre
obra L’écriture de l’histoire (1975), que influencia indelevelmente, e a vários níveis, a refle-
xão de ricœur, nomeadamente, a divisão triádica da operação historiográfica; a formulação do
conceito de representância, com a categoria do “outro”; e a ideia de história como túmulo,
referente a uma poética do ausente. o outro pensador foi Jacques rancière, que no seu livro
Les mots de l’histoire (1992) define a «poética do saber» como o «conjunto dos procedimen-
tos literários pelos quais um discurso se subtrai à literatura, ganha um estatuto de ciência e
o significa» (p. 21).
38 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
9
as palavras de roger chartier, em Au bord de la falaise (1998: 247), convergem com
o pensamento de ricœur: «cette référence à une réalité située hors et avant le texte histo-
rique et que celui-ci a pour fonction de restituer à sa manière n’a été abdiquée par aucune
des formes de la connaissance historique, mieux même, elle est ce qui constitue l’histoire
dans sa différence maintenue avec la fable et la fiction».
10
Dosse 2000: 13-17: «thucydide ou le culte du vrai». «Desde o alvorecer da história
que se julga o historiador pela medida da verdade. com razão ou sem ela, Heródoto passa
muito tempo por “mentiroso” [...] e Políbio, no livro Xii das suas Histórias, ataca sobretudo
um confrade, timeu» (le goff 1984: 166).
11
signo não é tomado aqui na aceção saussuriana que serviu de base à semiótica estru-
turalista – o que seria contrariar o próprio pensamento de P. ricœur, que muitas vezes, em
nome do referente e do sentido, combateu o conceito de signo em favor do de frase como
unidade mínima de discurso –, mas mais na aceção de sinal ou antes de traço, aquele traço
deixado que é uma marca do passado no presente e condição ontológica da operação histo-
riadora. adiante, veremos como este traço tem a dupla condição de signo e efeito.
capítulo i – soB o sigNo Da VerDaDe 39
12
em bom rigor, P. ricœur aborda pela primeira vez o tema da história em 1949 com
o artigo Husserl et le sens de l’histoire, mas por se tratar de um estudo de «caractère phi-
losophique trop technique» (HV, 9: nota 1), o autor opta por deixá-lo de fora da compilação
de Histoire et Vérité.
13
Justamente, Dosse, referindo-se a este ensaio do filósofo francês, sublinha o contrato
de verdade, aí relembrado por ricœur, que desde Heródoto e tucídides guia o trabalho do
historiador: «ricœur rappelle les règles qui régissent ce contrat de vérité qui, depuis thucy-
dide et Hérodote, guide toute investigation historienne et fonde sa méthodologie» (2006: 19).
14
esta obra, como o próprio autor admite no prefácio, resulta da reunião de alguns
ensaios produzidos para circunstâncias diversas, sem uma aparente espinha dorsal ou conexão
lógica. No entanto, é possível ver neles uma certa ordem com base nas constantes de ritmo
e tema. agrupados em torno de dois polos fundamentais, o da metodologia histórica e o da
ética-política-cultura, estes ensaios encontram um ritmo único (de proporções invertidas em
cada uma das partes) na recusa de dissociar a reflexão levada a cabo sob a alçada dos con-
ceitos diretores de história e verdade do compromisso social e político e de intervir ativa-
mente na crise da nossa civilização. Por sua vez, a unidade temática é conseguida sob a
batuta da verdade da história, que na primeira parte rege o conhecimento histórico e, na
segunda, a ação histórica.
40 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
15
«Je réserve toutefois le terme de fiction pour celles des créations littéraires qui igno-
rent l’ambition qu’a le récit historique de constituer un récit vrai. si, en effet, nous tenons
pour synonymes configuration et fiction, nous n’avons plus de terme disponible pour rendre
compte d’un rapport différent entre les deux modes narratifs et la question de la vérité. ce
que le récit historique et le récit de fiction ont en commun, c’est de relever des mêmes opé-
rations configurantes que nous avons placées sous le signe de mimèsis ii» (ricœur, TR ii, 12).
16
a despeito das diferenças referenciais, ricœur reconhece que referência por traços e
referência metafórica fazem um intercâmbio de elementos. a referência por traços aprende da
referência metafórica, comum a todas as obras poéticas, a reconstruir o passado com o auxílio
da imaginação. Por outro lado, a referência da narrativa ficcional aprende da referência his-
tórica a narrar como se as coisas tivessem realmente acontecido, recorrendo aos tempos ver-
bais do passado para narrar o irreal. Nisto consiste, basicamente o entrecruzamento de história
e ficção: cf. ricœur, TR i, 154; TR iii, 329-348.
17
«c’est une attente du lecteur du texte historique que l’auteur lui propose un «récit
vrai» et non une fiction» (ricœur 2000b: 731).
capítulo i – soB o sigNo Da VerDaDe 41
18
«ricœur évite tout enfermement de l’écriture dans la seule strate discursive et
accorde une place nodale à un concept déjà utilisé dans Temps et Récit qui est celui de repré-
sentance. Par là, il entend la cristallisation des attentes et des apories de l’intentionnalité his-
torienne. la représentance est la visée de la connaissance historique elle-même placée sous
le sceau d’un pacte selon lequel l’historien se donne pour objet des personnages, des situa-
tions ayant existé avant qu’il n’en soit fait récit. cette notion se différencie donc de celle de
représentation dans la mesure où elle implique un vis-à-vis du texte, un référent que ricœur
qualifie de lieutenance du texte historique» (Dosse 2006: 27).
19
ao propor a noção de representância, P. ricœur recusa a separação radical entre o
real e as representações que dele dá o historiador. todavia, esta noção constitui mais um pro-
blema ou enigma do que propriamente uma solução, porque a história é construção, configu-
ração e não cópia ou coincidência; o que foi já não é e não volta a ser e a tradução verbal
do acontecimento não é exatamente a mesma coisa, é sempre outra coisa, análoga ou seme-
lhante à primeira. a ambição de verdade e os limites da noção de representância são deter-
minados pela distinção essencial entre facto e acontecimento. a distinção entre os factos
declarados pelo historiador e os acontecimentos reais rememorados é um acautelamento contra
uma epistemologia ingénua da coincidência entre facto construído e acontecimento real. Não
se trata de um regresso ao método historiográfico dito positivista, objetivista. o estatuto epis-
temológico específico do facto histórico resulta de uma reciprocidade entre a construção e o
estabelecimento do facto com base no documento; é, justamente, porque o facto é cons-
truído/estabelecido a partir de documentos que ele pode ser dito falso ou verdadeiro. Não só
o facto construído deve ser separado do acontecimento real como também do trabalho de
interpretação, distinção que H. White não tem em conta e que ricœur procura instituir. recu-
sar a distinção entre facto histórico construído e interpretação ao nível da pesquisa documen-
tal, com o pretexto de evitar uma regressão positivista, tem como consequência a impossibi-
lidade de qualquer julgamento de verdade sobre o facto histórico. ademais, este julgamento
torna-se mais difícil nas fases de explicação/compreensão e de representação literária, mais
contaminadas que estão pela interpretação. eis porque ricœur tem necessidade de deixar bem
clara a autonomia da operação documental de estabelecimento e construção do facto relati-
vamente ao trabalho de interpretação ou de configuração narrativa; o que equivale a defender
a existência de referente extratextual e de procedimentos científicos próprios que o saber his-
tórico não partilha com a operação configurativa ficcional.
42 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
20
«c’est ensemble que scripturalité, explication compréhensive et preuve documentaire
sont susceptibles d’accréditer la prétention à la vérité du discours historique» (ricœur, MHO,
363). Delacroix, falando do conceito de verdade histórica em Paul ricœur (2005: 103-112),
salienta um dado insistentemente sublinhado por ricœur em La mémoire, l’histoire, l’oubli:
a interligação das três fases da operação historiográfica e o poder dado à prova documental
como imperativo que se impõe às restantes fases de compreensão/explicação e da represen-
tação literária. citamos: «l’originalité de [... La mémoire, l’histoire, l’oubli], par rapport aux
développements antérieures de P. ricœur sur le nécessaire projet d’objectivité de l’histoire, est
d’insister sur l’imbrication de ces trois moments méthodologiques [...] et sur la contrainte
incessante de l’impératif documentaire – avec son noyau dur de la critique des témoignages
– qui opère aussi bien dans le moment d’explication/compréhension que dans celui de l’écri-
ture. ce déplacement de la contrainte de la preuve documentaire tout au long de l’opération
historiographique vise, en particulier, à rappeler que la phase de représentation/écriture, pour-
tant exposée à la clôture discursive, a avant tout en charge de réaliser la visée de vérité pro-
pre au discours historique» (Delacroix 2005: 105).
21
Nesse sentido, as configurações narrativas e retóricas têm um papel paradoxal quanto
ao projeto de verdade da escrita histórica: «[...] structurant à son insu le lecteur, elles peuvent
jouer le double rôle de médiations en direction du réel historique et d’écrans opposant leur
capítulo i – soB o sigNo Da VerDaDe 43
opacité à la transparence prétendue des médiations» (ricœur 2000b: 742). as constrições nar-
rativas e retóricas (analisadas pela semiótica estrutural e pela escola narrativista) exercem uma
ação ambígua relativamente à intenção de representar com verdade o passado, porque, por um
lado, nos aproximam do acontecimento dando-lhe legibilidade e visibilidade, mas, ao mesmo
tempo, levantam uma cortina opaca entre a realidade e a sua representação em forma narra-
tiva, pondo em causa a objetividade e a verdade históricas. Por tudo isto, ricœur decide, na
sua última obra, abordar a questão narrativa em história até à consideração dos signos de lite-
rariedade, coisa que não fez em Temps et Récit, dando azo a que se confundisse a compo-
sição narrativa com a conexão explicativa.
22
«le but de P. ricœur est précisément de démontrer que c’est le travail lui-même de
l’historien, le respect de procédures et méthodes propres, qui permettent non seulement la
seule sortie “scientifique” possible de l’énigme de la représentance mais aussi de surmonter
le handicap historien de l’absence de reconnaissance. [...] l’intervention épistémologique de
P. ricœur vise donc à défendre, avec les historiens, la nécessité de la dimension critique de
l’histoire, seule démarche disponible au service de la vérité en histoire» (Delacroix 2005:
110-111).
23
«[...] ela é para nós uma “ficção”, no sentido em que a história é sempre uma
“modelação” do passado. e com isto não estamos a admitir que ela não é uma ciência e
muito menos que ela é apenas uma arte, já que não entendemos a ciência como um conhe-
cimento que estabelece leis rígidas, que devem necessariamente conduzir à previsão, como se
existisse apenas um só paradigma científico.
Por outro lado, mesmo que queiramos afastar a história o mais possível da “literatura”,
nunca o conseguiremos de todo. a ficção de que falávamos é, por assim dizer, uma “ficção
44 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
científica” e não uma “ficção literária”, mas não esconderemos o drama do historiador no ato
da “escrita da história”. o certo é que ele não deixa de usar, ao descrever e até ao interpretar,
uma linguagem literária, ainda que reduzida, mesmo que se esforce por utilizar uma termi-
nologia rigorosa e por formular juízos objetivos» (luís reis torgal, in torgal; mendes;
catroga 1998: 155-156).
24
referindo-se, num dos artigos que antecedem a publicação de La mémoire, l’histoire,
l’oubli, às três fases que decanta na epistemologia do processo historiográfico, ricœur é bas-
tante assertivo quanto ao papel da(s) verdade(s) como espelho de toda a reflexão: «ces trois
niveaux peuvent être ordonnés en fonction de l’idée de vérité. on ne peut en effet appliquer
à l’histoire un concept homogène de vérité. les trois niveaux distingués offrent trois versions
différentes de l’idée de vérité» (1998b: 24). Num outro artigo, insiste na mesma ideia: «[...]
le destin de la vérité en histoire ne se joue pas au seul niveau terminal de l’écriture au sens
scripturaire et littéraire, mais tout au long de la chaîne épistémologique. [...] c’est l’opération
historiographique intégrale qui doit être évaluée en terme de vérité dans la représentation du
passé» (1996: 15).
capítulo i – soB o sigNo Da VerDaDe 45
25
o ensaio de abertura consagrado ao estudo da objetividade da história ocupa uma
posição estratégica na economia da obra, uma vez que serve de antecâmara para os restantes,
ao introduzir os conceitos nucleares de história e verdade, conceitos estes que para além de
emprestarem o nome ao título da obra permitem estabelecer um fio condutor entre os vários
ensaios. o segundo, «L’histoire de la philosophie et l’unité du vrai» (pp. 51-68), parte da
constatação alcançada no anterior de que a verdade da obra histórica é limitada. ricœur o
que faz é estender este princípio ao campo da história da filosofia que ensina na universi-
dade, uma vez que a história da filosofia prossegue a partir da história dos historiadores,
guiada por uma tomada de consciência histórica. Nesse sentido, acrescenta ricœur (HV, 12),
ela deriva da história e não da filosofia.
26
«le philosophe a une manière propre d’achever en lui-même le travail de l’historien,
cette manière propre consiste à faire coïncider sa propre “prise” de conscience avec une
“reprise” de l’histoire» (ricœur, HV, 41).
46 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
texto histórico, cumpre num leitor (neste caso, filósofo) o trabalho do historia-
dor, pois não há texto sem leitor. a história retomada (“reprise”) pelo filósofo
permite-lhe formular uma história do espírito que não absorve nem anula a his-
tória dos historiadores. No segundo caso, retoma-se o texto histórico para deter-
minar toda a problemática de uma época e as influências do passado que
ecoam em determinada filosofia, sem que o trabalho do historiador da filosofia
se confunda com o do historiador propriamente dito27.
Por sua vez, esta dupla leitura filosófica que fez surgir o homem como
consciência e como subjetividade também pode ser útil ao historiador, reve-
lando-lhe uma história contínua – «como único sentido em marcha» – e des-
contínua – «como constelação de pessoas» (ricœur, HV, 49), e ainda a neces-
sidade de trabalhar aquém desta divisão da filosofia para assumir como objeto
completo de estudo a história factual e a história estrutural.
concluindo, apesar de o ofício do historiador bastar para discernir a boa
e a má subjetividade do historiador, o historiador precisa da reflexão filosófica
para discernir a boa e a má objetividade da história. a filosofia relembra à his-
tória o erro que seria voltar-se exclusivamente para uma espécie de objetivismo
que omite o homem, composto por estruturas, forças e instituições, em detri-
mento dos homens e dos valores humanos que constituem as civilizações28.
27
«[l’historien de la philosophie] a seulement fait un autre choix que l’historien pro-
prement dit: le choix pour les existants exceptionnels et pour leur œuvre, en tant que cette
œuvre est une œuvre singulière, irréductible à des généralités, à des types repérables (réa-
lisme, empirisme, rationalisme, etc.); le choix de cette lecture implique que l’économique, le
social, le politique, ne sont considérés que comme influence, situation, facilitation par rapport
à l’émergence de tel créateur de pensées, de telle œuvre singulière. ce créateur et cette œuvre
sont alors le centre de gravité, le réceptacle, le porteur unique de toutes les influences subies
et de toutes les influences exercées» (ricœur, HV, 46-47).
28
«[...] l’objet de l’histoire c’est le sujet humain lui-même» (ricœur, HV, 50). esta é
uma ideia também muito cara a marc Bloch, que não apreciava a definição de história como
a ciência do passado, considerando absurda a ideia de que o passado, como tal, pudesse ser
objeto da ciência, e definia a história como «a ciência dos homens no tempo» (1952: 18).
Por outro lado, esta é uma máxima que ricœur perfilha e não se cansará de frisar em Temps
et Récit, a propósito do eclipse da narrativa na historiografia francesa praticada pela escola
dos annales. Para que haja narrativa é fundamental personagens e acontecimentos que sus-
citem mudanças. Já antoine Prost, invocando justamente l. Febvre e marc Bloch, insiste na
mesma tecla, mas atribuindo três características ao objeto da história: é humano, e mesmo as
histórias que parecem mais afastadas do caráter humano acabam por indiretamente conduzir
ao humano; é coletivo, a história interessa-se por grupos, e mesmo quando se concentra num
só indivíduo é porque ele é representativo de todo um grupo ou classe; por fim, é concreto,
situado num tempo e num espaço (Prost 1996: 148-149).
capítulo i – soB o sigNo Da VerDaDe 47
29
«[ricœur] récuse notamment la fausse alternative, qui va devenir de plus en plus
prégnante dans l’opération historiographique, entre l’horizon d’objetivation, avec son ambition
scientiste, et la perspective subjectiviste avec sa croyance en une expérience de l’immédiateté
quant à la capacité à procéder à la résurrection du passé. l’objet est de montrer que la pra-
tique historienne est une pratique en tension constante entre une objectivité à jamais incom-
plète et la subjectivité d’un regard méthodique qui doit se déprendre d’une partie de soi-
même en se clivant entre une bonne subjectivité, “le moi de recherche” et une mauvaise, “le
moi pathétique” (Dosse 2006: 18; vide, etiam, Delacroix, Dosse, garcia 2007: 370-374).
30
le goff, refletindo acerca das revisões incessantes a que deve estar sujeito o traba-
lho histórico, cita este passo de ricœur dizendo que foi um dos dois filósofos que melhor
exprimiu «a lenta marcha da história para a objetividade» (1984: 168, 169).
48 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
31
a primeira edição é 1949. usamos a segunda, de 1952. obra fundamental e impul-
sionadora de uma nova forma de fazer história, escrita por marc Bloch durante o cativeiro
de guerra. o historiador acabaria por ser fuzilado em 1944, pelos nazis alemães, deixando o
manuscrito inacabado.
32
marc Bloch define “trace” como «la marque, perceptible aux sens, qu’a laissée un
phénomène en lui-même impossible de saisir» (1952: 34).
33
a função inelutável da questão para a constituição do facto histórico é uma das
ideias primordiais que ricœur destacará amplamente em La mémoire, l’histoire, l’oubli
(p. 226) e que outros historiadores tomam como um imperativo categórico. Prost não se cansa
de no-lo lembrar ao longo de toda a sua obra Douze Leçons sur l’histoire: «sans questions
les traces restent muettes et ne sont même pas “sources”» (id. 1996: 145). Veja-se, especial-
mente, a lição n.º 4, pp. 79-100, toda ela subordinada ao tema das questões do historiador.
34
lucien Febvre, na sua célebre sessão inaugural no collège de France, a 13 de
dezembro de 1933, diz a propósito da constituição do facto histórico: «Dado? Não, criado
capítulo i – soB o sigNo Da VerDaDe 49
pelo historiador e, quantas vezes? inventado e fabricado, com a ajuda de hipóteses e conje-
turas, por um trabalho delicado e apaixonante... elaborar um facto é construí-lo. se quiser-
mos, uma questão dá-nos uma resposta. e, se não há questão, não fica mais que o nada»
(apud le goff 1984: 167).
35
«la conscience d’époque que l’historien, dans ses synthèses les plus vastes, tentera
de reconstituer, est nourrie de toutes les interactions, de toutes les relations en tous sens que
l’historien a conquises par l’analyse» (ricœur, HV, 31).
36
«ainsi, de part en part, l’histoire est fidèle à son étymologie: c’est une “recherche”,
ἰστορία» (ricœur, HV, 32).
50 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
37
«[...] l’historien fait partie de l’histoire; non seulement en ce sens banal que le passé
est le passé de son présent, mais en ce sens que les hommes du passé font partie de la même
humanité. l’histoire est donc une des manières dont les hommes “répètent” leur appartenance
à la même humanité» (ricœur, HV, 37).
capítulo i – soB o sigNo Da VerDaDe 51
38
rayon aron publicou, em 1938, Introduction à la philosophie de l’histoire. Essai sur
les limites de l’objectivité historique, gallimard, Paris; e Henri-irinée marrou publicou, em
1954, De la connaissance historique, Éd. Du seuil, Paris. são palpáveis as influências destes
dois pensadores no trabalho de ricœur, que adota uma postura perante a objetividade e a sub-
jetividade na história muito próxima da de marrou: «Ni objectivisme pur, ni subjectivisme
radical, l’histoire est à la fois saisie de l’objet et aventure spirituelle du sujet connaissant. [...]
Que dans cette connaissance, il y ait nécessairement du subjectif, quelque chose de relatif à
ma situation d’être dans le monde, n’empêche pas qu’elle puisse être, en même temps, une
saisie authentique du passé» (marrou 1954: 229).
39
«la subjectivité d’historien, comme toute subjectivité scientifique, représente la vic-
toire d’une bonne subjectivité sur une mauvaise subjectivité» (ricœur, HV, 38).
52 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
2. INTERPRETAÇÃO E VERDADE
40
«l’amplitude du concept d’interprétation n’est pas encore pleinement reconnue dans
une version que je tiens pour une forme faible de la réflexion sur elle-même, et ordinairement
placée sous le titre «subjectivité vs objectivité»» (ricœur, MHO, 437).
54 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
41
loin de récuser l’importance de la notion d’interprétation, je propose de lui donner
une aire d’application beaucoup plus vaste que celle que lui assignait Dilthey; il y a, selon
moi, de l’interprétation aux trois niveaux du discours historique, au niveau documentaire, au
niveau de l’explication/compréhension, au niveau de la représentation littéraire du passé. en
ce sens, l’interprétation est un trait de la recherche de la vérité en histoire qui traverse les
trois niveaux: c’est de l’intention même de vérité de toutes les opérations historiographiques
que l’interprétation est une composante (ricœur, MHO, 235).
capítulo i – soB o sigNo Da VerDaDe 55
42
as lições de antoine Prost (1996) dão bastante relevo a esta componente seletiva da
operação historiográfica e vão ao encontro das afirmações de ricœur. se a constituição de
uma intriga histórica implica o recorte de um objeto particular na trama infinita dos aconte-
cimentos da história, ela implica duas escolhas fundamentais: a escolha do início e do termo
do período a estudar; e a escolha da perspetiva de abordagem. a seleção do início e do fim
do assunto a estudar é uma escolha interpretativa com consequências no sentido e no tipo de
intriga: «le découpage chronologique est aussi un parti interpretatif» (ibid.: 245). Não é a
mesma coisa estudar a guerra de 1914 começando em 1871 e terminando em 1933 ou estudar
a mesma entre as datas de 1914 e 1919. «la mise en intrigue porte aussi sur les personnages
et les scènes. elle est choix des acteurs et des épisodes. toute histoire comporte, implicite,
une liste des personnages et une suite de décors. Pour rester dans la guerre de 1914, on ne
construira pas la même intrigue si l’on prend en compte l’arrière, les femmes, les vieux, les
enfants, ou si l’on se limite aux soldats. De même, l’intrigue des généraux n’est pas celle des
simples soldats. et l’histoire prendra un sens un peu différent si l’on décide de visiter les
hôpitaux et les cimetières, ou si l’on se limite aux tranchées et aux ministères» (ibid.: 246).
Posto isto, reitera-se um princípio fundamental da filosofia da história: a de que não há factos
isolados já constituídos. É estudando um facto que ele é isolado e construído como facto par-
ticular, sob um aspeto particular. «l’événement n’est pas un site que l’on va visiter, il est au
croisement de plusieurs itinéraires possibles, et l’on peut de ce fait l’aborder sous divers
aspects, en lui donnant une importance variable» (ibid.). a escolha do período e do ponto de
vista dependem totalmente do tipo de intriga desejado e do enfoque que se pretende dar ao
facto estudado: «le même fait, pris dans des intrigues différentes, change de valeur, de sig-
nification et d’importance» (ibid.: 246-247). uma história militar da guerra difere de uma his-
tória demográfica ou de uma história social e política da mesma. o objeto é o mesmo, mas
um tipo de intriga dará relevo a factos que outra descurará ou deixará para segundo plano.
assim: «la sélection du fait, sa construction, les aspects qu’on en dégage, l’importance qu’on
lui accorde dépendent de l’intrigue choisie. l’événement, dit P. ricœur, est une variable de
l’intrigue» (ibid.).
capítulo i – soB o sigNo Da VerDaDe 57
43
leduc identifica, em toda esta série de escolhas no plano da operação historiográfica,
outros fatores que não têm que ver com a busca da verdade: a ideologia do historiador, a sua
sensibilidade, a sua permeabilidade a pressões sociais ou à moda, a sua carreira académica
ou editorial, etc. estes fatores impossibilitam o projeto de objetividade, enquanto restituição
total e imparcial do passado, mas há algumas garantias que impedem a história de cair na
fantasia, a saber: o profissionalismo (o ofício de historiador exige escolarização superior); a
crítica dos colegas do historiador, a que Karl Popper designa de intersubjetiva; por fim, o
facto de a história não ser um discurso autorreferencial, o seu paratexto (notas, inventário de
fontes, bibliografia) faz dela uma construção verificável. «a défaut de “vérité” – mot au par-
fum d’absolu – la construction historique est en recherche de vraisemblance, une vraisem-
blance que des nouvelles recherches pourront toujours, selon une autre formule de K. Popper,
falsifier» (2008: 6).
(Página deixada propositadamente em branco)
CAPÍTULO II
EXPLICAÇÃO HISTÓRICA E COMPREENSÃO NARRATIVA
alterando um pouco a ordem dos fatores seguida por ricœur – por uma
questão de equilíbrio na estrutura desta exposição; por causa do peso que esta
matéria assume quer no contexto geral da reflexão histórico-epistemológica do
autor (transcendendo Temps et Récit) quer no nosso estudo; e devido ao facto
de se poder ler, sem prejuízo, separada do tema maior ao qual aparece subor-
dinada (a relação tempo e narrativa) – decidimos apresentar este capítulo iso-
lado do itinerário argumentativo em que aparece embutido em Temps et Récit
e que tem que ver com a poética do tempo, assunto a que dedicaremos o pró-
ximo capítulo. ou seja, na obra em causa, a meditação sobre a relação entre
história-ciência e narrativa, sem deixar de estar relacionada, obriga à suspensão
da argumentação que o autor vem trazendo em torno da dialética tempo e nar-
rativa, que só encontrará continuidade no terceiro volume da obra. Depois de
demonstrar especulativamente essa simbiose – dando-nos conta da aporia agos-
tiniana do tempo, da teoria poética aristotélica, que recobre a aporia temporal,
e da sua própria teoria geral da narrativa, assente no círculo mimético formado
pela tríplice mimese – o filósofo parte para a consideração específica do modo
narrativo história-ciência. De facto, inicialmente, a inteligência narrativa é
caracterizada uniformemente com base na operação dinâmica da “mimesis” ii
ou mise en intrigue, cuja configuração inteligível traça uma ponte entre o
mundo da ação temporal e o do leitor. Parte-se do pressuposto que essa espiral
hermenêutica se adequa de modo igual à historiografia e à ficção, os dois
ramos maiores que constituem atualmente a narrativa. todavia, ricœur não quer
dar esse facto por adquirido, sobretudo porque as novas formas epistemológicas
e metodológicas de apreender o passado afastaram-se imenso da tradicional his-
tória narrativa, que é apenas mais um género dentro da gama da historiografia.
60 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
Por esse motivo, o filósofo não avança para a tese final do entrecruzamento
entre história e ficção na refiguração do tempo sem previamente deixar bem
claro que em toda a história dita sábia, mesmo na mais afastada da inteligência
narrativa, sobrevive uma marca de água narrativa, pois a inteligibilidade da
mise en intrigue faz dela mais do que uma simples crónica ou sequência des-
garrada de acontecimentos; a narrativa compõe-se de uma dimensão episódica-
-linear e outra configurante que é a base da sua inteligibilidade:
ma thèse est que le lien de l’histoire avec le récit ne saurait être rompu sans que
l’histoire perde sa spécificité parmi les sciences humaines. Je dirai d’abord que
l’erreur de base de ceux qui opposent histoire à récit procède de la méconnais-
sance du caractère intelligible que l’intrigue confère au récit, tel qu’aristote le
premier l’avait souligné. une notion naïve du récit, comme suite décousue d’évé-
nements, se retrouve toujours à l’arrière-plan de la critique du caractère narratif de
l’histoire. on n’en voit que le caractère épisodique et on en oublie le caractère
configuré, qui est la base de son intelligibilité. en même temps, on méconnaît la
distance que le récit instaure entre lui-même et l’expérience vive. entre vivre et
raconter, un écart, si infime soit-il, se creuse. la vie est vécue, l’histoire est
racontée [ricœur, TA, 15].
44
«une des raisons du succès de cette appropriation historienne (certes inégale) tient
aussi au travail mené par ricœur (1983-1985, 2000) qui n’est pas un “méta-récit” philoso-
phique de plus sur l’histoire car il s’appuie sur une lecture approfondie des productions his-
toriennes elles-mêmes. son analyse de La Méditerranée de Braudel est devenue une référence
désormais classique pour démontrer que le récit n’avait pas vraiment disparu de l’historiogra-
phie française (Hartog, 1995). il y démontre comment une structure narrative complexe – un
récit donc – est maintenue par Braudel. celui-ci invente un nouveau type d’intrigue qui
conjugue des structures, des cycles et des événements pour rendre compte du déclin de la
méditerranée comme “héros collectif de l’histoire mondiale”» (Delacroix, Dosse, garcia 2007:
588).
62 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
45
«l’erreur des tenants des modèles nomologiques n’est pas tant qu’ils se méprennent
sur la nature des lois [...] mais sur leur fonctionnement. ils ne voient pas que ces lois revê-
tent une signification historique dans la mesure où elles se greffent sur une organisation nar-
rative préalable qui a déjà qualifié les événements comme contribution au progrès d’une
intrigue» (ricœur, TA, 15).
46
«Faudra-t-il dire, ici aussi, que la sémiotique, dont le droit d’exister est hors de
question, ne conserve son qualificatif de narrative que dans la mesure où elle l’emprunte à
l’intelligence préalable du récit [...]» (ricœur, TR ii, 65).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 63
47
o próprio autor, numa nota da página 168 de TR i, informa que a análise que con-
sagra à intencionalidade histórica (ponto de encontro, em história, de compreensão e expli-
cação) reaviva e dá continuidade a este ensaio.
48
«le cas de l’explication historique m’a au contraire donné l’occasion de raffiner la
dialectique expliquer-comprendre, dont j’avais traité sous une forme plus rudimentaire sous le
couvert de la notion de texte, ou dans le cadre de la théorie de l’action» (ricœur, RF, 69-70).
64 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
cias naturais e ciências humanas, como bem no-lo explica antoine Prost49.
Neste duelo primário, explicação designa a tese da não diferenciação, da con-
tinuidade epistemológica entre ciências da natureza e ciências do espírito, e
compreensão a reivindicação da especificidade irredutível das ciências do
homem. este dualismo epistemológico é fundado pelo pressuposto de que a
ordem dos signos e das instituições é inconciliável com a dos factos cobertos
por uma lei, ou seja, que existe um modo de ser da natureza e um modo de
ser do espírito. ricœur, no artigo supracitado, põe em causa esta dicotomia
entre duas modalidades irredutíveis. É nos níveis do texto, da ação e da história
que o filósofo vê uma semelhança ou, nas suas palavras, uma homologia que
autoriza uma dialética assente na interpretação como via alternativa50. a inter-
pretação é enriquecida com a explicação, consistindo precisamente na alternân-
cia de fases de compreensão e de fases de explicação «ao longo de um único
eixo hermenêutico» (ricœur 1987: 7). ora, em termos epistemológicos, uma
implicação mútua entre os métodos significa que entre as ciências da natureza
e as ciências do espírito deve existir tanto continuidade como descontinuidade,
parentesco e especificidade metodológica. se não existe dualismo epistemoló-
gico, também não poderá haver dualismo ontológico. abolida a diferença de
métodos, a filosofia não privilegiará umas disciplinas em detrimento de outras,
mas deve abraçá-las todas sob o teto do conceito fundamental e superior de
verdade.
49
«l’opposition entre le mode d’intelligibilité des hommes et celui des choses a été
théorisée par Dilthey et reprise en France par r. aron, dans sa thèse. Bien qu’il soit daté, ce
débat épistémologique reste important. il pose une différence radicale entre les sciences de l’es-
prit ou sciences humaines (Geisteswissenschaften) et celles de la nature (Naturwissenschaften),
celles-ci étant la physique et la chimie de la fin du siècle dernier. les sciences de la nature
expliquent les choses, les réalités matérielles; celles de l’esprit font comprendre les hommes
et leurs conduites. l’explication est la démarche de la science proprement dite; elle recherche
les causes et vérifie les lois. elle est déterministe: les mêmes causes produisent toujours les
mêmes effets, et c’est précisément ce que disent les lois. la rencontre d’un acide et d’un
oxyde donne toujours un sel, de l’eau et de la chaleur. manifestement, les sciences humaines
ne peuvent viser ce type d’intelligibilité. ce qui rend les conduites humaines intelligibles,
c’est qu’elles sont rationnelles, ou du moins intentionnelles. l’action humaine est choix d’un
moyen en fonction d’une fin. on ne peut l’expliquer par des causes et des lois, mais on peut
la comprendre. c’est le mode même d’intelligibilité de l’histoire» (1996: 151).
50
«Je voudrais tirer argument de la ressemblance ou, pour mieux dire, de l’homologie
qu’on peut aujourd’hui établir entre trois problématiques, celle du texte, celle de l’action et
celle de l’histoire. [...] Par dialectique, j’entends la considération selon laquelle expliquer et
comprendre ne constitueraient pas les pôles d’un rapport d’exclusion, mais les moments rela-
tifs d’un processus complexe qu’on peut appeler interprétation» (ricœur, TA, 162).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 65
51
W. Dilthey, «origine et développement de l’herméneutique», 1900, in Le Monde de
l’Esprit, i, Paris, 1974.
52
«Dilthey n’a cessé de se confronter avec ce paradoxe. il a découvert, principalement,
après avoir lu les Recherches logiques de Husserl, que les Geisteswissenschaften sont des
sciences dans la mesure où les expressions de la vie subissent une sorte d’“objectification”
qui rend possible une approche scientifique quelque peu semblable à celle des sciences natu-
relles, en dépit de la coupure logique entre Natur et Geist. De cette façon, la médiation
offerte par ces “objectifications” paraît être plus importante, du point de vue scientifique, que
la signifiance immédiate des expressions de la vie au niveau des transactions quotidiennes»
(ricœur, TA, 198).
66 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
53
as manifestações escritas do psiquismo de outrem ficam a cargo da interpretação,
província da compreensão que tem como tarefa específica compreender os signos escritos que
manifestam a interioridade de outrem e marcar a diferença fundamental que existe entre as
ciências do espírito e as ciências da natureza: «l’interprétation est ainsi l’art de comprendre
appliqué à de telles manifestations, à de tels témoignages, à de tels monuments, dont l’écri-
ture est le caractère distinctif» (ricœur, TA, 143). assim sendo, no binómio compreender-
-interpretar, a compreensão fornece o fundamento, a saber, o conhecimento através de signos
do psiquismo de outrem, a interpretação fornece o grau de objetivação, graças à fixação e à
conservação que a escrita confere aos signos. e, para Dilthey, só há duas hipóteses, mutua-
mente exclusivas: «ou bien vous “expliquez”, à la manière du savant naturaliste, ou bien vous
“interprétez”, à la manière de l’historien» (ibid.: 142). É por isso que ricœur, avesso que é
a oposições exclusivistas e apelando ao seu espírito dialéctico, tenta demonstrar, no artigo que
antecede o que estamos a analisar (TA, 137-159), que o conceito de interpretação já não serve
para fazer a oposição entre explicação e compreensão, no intuito de salvaguardar a especi-
ficidade das ciências do espírito, na medida em que, atualmente, essa oposição é despropo-
sitada, já que a explicação que se aplica às ciências do espírito não é uma extensão das ciên-
cias da natureza («ce n’est pas un modèle naturaliste étendu après coup aux sciences de
l’esprit» [ibid.: 146]), mas provém, por analogia, da própria esfera da linguagem, como é o
caso do modelo estruturalista saído da linguística («il est en effet possible de traiter les textes
selon les règles d’explication que la linguistique applique avec succès aux systèmes simples
des signes qui constituent la langue-parole» [ibid.]). assim sendo, a interpretação já não tem
de se confrontar com um modelo exterior às ciências humanas; o seu debate é com um
modelo de inteligibilidade que pertence ao mesmo domínio das ciências humanas, a linguís-
tica. mais uma vez, o objetivo de ricœur é tornar menos antinómica a relação entre expli-
cação e interpretação, orientando a sua pesquisa no sentido de «uma estreita complementari-
dade e reciprocidade» (ibid.: 142) entre as duas, no momento chave da leitura.
54
«Je résumerai ces trois débats partiels par une même formule. expliquer plus c’est
comprendre mieux. autrement dit, si la compréhension précède, accompagne et enveloppe
l’explication, celle-ci, en retour, développe analytiquement la compréhension» (ricœur 1987a: 8).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 67
apesar de a teoria da história ser aquela que de momento mais nos inte-
ressa, muito do que se disser sobre texto e ação serve também para história,
devido à sua correlação e reenvio mútuo.
55
a dialética ricœuriana entre compreensão e explicação ao nível do texto retoma as
conclusões de um ensaio anterior: «the model of the texte: meaningful action considered
as a text», in Social Research, 38/3 (1971), pp. 529-562 [retomado em TA, sob o título «le
modèle du texte: l’action sensée considerée comme un texte», pp. 183-211]. aí, tal como
aqui, o autor, movido pelo mesmo desejo de conciliação, busca a explicação do lado do texto,
logo, das ciências do espírito, e não como uma expansão das ciências naturais. a leitura, fun-
cionando como réplica da escrita, permite estabelecer um diálogo entre compreensão e expli-
cação, fornecendo uma solução ao paradoxo metodológico das ciências humanas: «il y a une
dialectique entre expliquer et comprendre parce que le couple écrire-lire développe une pro-
blématique propre qui n’est pas seulement une extension du couple parler-entendre constitutif
du dialogue» (ricœur, TA, 198). É neste ponto que a hermenêutica ricœuriana se afasta cla-
ramente da tradição romântica da hermenêutica, que tinha como modelo de análise não o
texto mas o diálogo. o texto exibe características próprias que lhe conferem a objetividade
da qual deriva a possibilidade de explicar. a explicação não é importada de um domínio
estrangeiro, o dos acontecimentos naturais, mas é retirada dos próprios signos linguísticos.
É, pois, no campo dos signos que explicação e compreensão se confrontam. o paradigma da
leitura é depois estendido por ricœur a toda a esfera das ciências humanas.
68 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
56
relativamente à famosa antinomia saussuriana entre “langue” e “parole”, que funda-
menta o estruturalismo, podemos dizer que o discurso está do lado da “palavra” em oposição
à “língua”. esta não tem ligação alguma com a realidade, as palavras reenviam simplesmente
umas às outras no circuito fechado do dicionário. o discurso, por seu turno, visa as coisas,
aplica-se à realidade, exprime o mundo.
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 69
57
«si nous ne pouvons plus définir l’herméneutique par la recherche d’un autrui et de
ses intentions psychologiques qui se dissimulent derrière le texte, et si nous ne voulons pas
réduire l’interprétation au démontage des structures, qu’est-ce qui reste à interpréter? Je
répondrai: interpréter, c’est expliciter la sorte d’être-au-monde déployé devant le texte»
(ricœur, TA, 114).
58
g. Frege, Écrits logiques et philosophiques, Éd. du seuil, Paris, 1971. ao falar de
referência, ricœur não está, obviamente, a pensar numa referência primária, imediata, pois
essa é abolida pela ficção e pela poesia, ele fala de uma outra, metafórica, que se ergue sobre
as ruínas desta e que atinge o ser-no-mundo. É assim que qualquer discurso poético ou fic-
cional se reporta sempre à realidade, não à realidade visada pela linguagem corrente, mas
àquela onde se desdobra a verosímil e provável essência humana. «et pourtant, il n’est pas
de discours tellement fictif qu’il ne rejoigne la réalité, mais à un autre niveau, plus fonda-
mental que celui qu’atteint le discours descriptif, constatif, didactique, que nous appelons lan-
gage ordinaire. ma thèse est ici que l’abolition d’une référence de premier rang, abolition
opérée par la fiction et par la poésie, est la condition de possibilité pour que soit libérée une
référence de second rang, qui atteint le monde non plus seulement au niveau des objets mani-
pulables, mais au niveau que Husserl désignait par l’expression de Lebenswelt et Heidegger
par celle d’être-au-monde» (ricœur, TA, 114).
70 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
ção. «É sempre alguém que recebe, faz seu e se apropria do sentido» (ibid.).
em suma, não há conflito ou incompatibilidade entre a análise objetiva estru-
tural e a apropriação do sentido pelos sujeitos. entre as duas desdobra-se o
mundo do texto e o significado da obra, constituído pelo “mundo dos trajetos
possíveis da ação real” (ibid.): «si le sujet est appelé à se comprendre devant
le texte, c’est dans la mesure où celui-ci n’est pas fermé sur lui-même, mais
ouvert sur le monde qu’il redécrit et refait» (ricœur, TA, 168).
a dialética compreensão/explicação ao nível do texto será alvo de uma
profunda e mais ampla análise em Temps et Récit ii. Nós, por agora, voltamo-
-nos para a teoria da ação, onde salientamos apenas as ideias principais. ainda
que se possa estabelecer alguma conexão entre a teoria do texto e a teoria da
ação, os autores e as problemáticas são outras bem distintas.
59
o argumento dos jogos de linguagem, que sustentava a sua irredutibilidade, consiste
no seguinte: «ce n’est pas dans le même jeu de langage que l’on parle d’événements se pro-
duisant dans la nature ou d’actions faites par des hommes. car, pour parler d’événements, on
entre dans un jeu de langage comportant des notions telles que cause, loi, fait, explication,
etc. il ne faut pas mêler les jeux de langage, mais les séparer. c’est donc dans un autre jeu
de langage et dans un autre réseau conceptuel que l’on parlera de l’action humaine. car, si
on a commencé à parler en termes d’action, on continuera à parler en termes de projets, d’in-
tentions, des motifs, de raisons d’agir, d’agents, etc.» (ricœur, TA, 169).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 71
tro jogo de linguagem. em segundo lugar, foi a noção de agente que contribuiu
para acender ainda mais o debate. Podemos considerar um agente causa dos
seus atos se estivermos a pensar num modelo de causa não-humiano, isto é, em
que causa não signifique antecedente constante. ricœur considera esta dicoto-
mia insustentável, na medida em que ela retira à filosofia a sua missão de arti-
culadora, hierarquizadora, organizadora do saber, para a reduzir a preservadora
da diferença entre jogos de linguagem heterogéneos. Por isso, reage contra ela
com dois argumentos fundamentais: o primeiro relativo ao debate entre motivo
e causa e o segundo relativo à forma como a ação se insere no mundo. No pri-
meiro demonstra como não é possível manter motivo e causa separados, como
se cada um fosse específico de um só jogo de linguagem. Na verdade, eles
misturam-se, interferem entre si. o fenómeno humano situa-se entre os extre-
mos de uma causalidade sem motivação (como as constrições e os motivos
externos que atuam no inconsciente) e uma motivação sem causalidade, pura-
mente racional, onde os motivos se confundem com as razões (como nos jogos
de estratégia). o mais frequente, na realidade humana da motivação, é o motivo
ser, ao mesmo tempo, movimento suscitado pelo querer e justificação. Daí, a
afirmação de ricœur: «l’homme est tel précisément qu’il appartient à la fois
au régime de la causalité et à celui de la motivation, donc de l’explication et
de la compréhension» (TA, 172).
Para a construção do segundo argumento, ricœur socorre-se do filósofo
finlandês von Wright, que propõe uma reformulação das condições de explica-
ção e das condições de compreensão, de modo a combiná-las na noção de
“intervenção intencional” no mundo. Wright contesta a noção de determinismo
universal, reconhecendo ao homem o poder para desencadear uma ação e inter-
ferir no curso das coisas60. através do entrecruzamento de uma teoria dos sis-
temas com a teoria da motivação, Wright anula a dicotomia entre explicar e
compreender61. o curso das coisas e a ação humana recobrem-se na noção de
intervenção. este sentido de intervenção resulta numa ideia de causa sinónima
da iniciativa de um agente e, logo, muito diferente da de Hume. assim, pode-
mos concluir: «action humaine et causalité physique sont trop entrelacées dans
cette expérience tout à fait primitive de l’intervention d’un agent dans le cours
60
«Par l’exercice d’un pouvoir, je fais arriver tel ou tel événement comme état initial
d’un système» (ricœur, TA, 173).
61
«D’une part, il n’est pas de système sans état initial, pas d’état initial sans interven-
tion, pas d’intervention sans l’exercice d’un pouvoir. agir, c’est toujours faire quelque chose
en sorte que quelque chose arrive dans le monde. D’autre part, il n’est pas d’action sans rela-
tion entre le savoir-faire (le pouvoir faire) et ce que celui-ci fait arriver» (ricœur, TA, 174).
72 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
des choses pour que l’on puisse faire abstraction du premier terme et porter le
second à l’absolu» (ricœur, TA, 174-175).
texto e da ação. mas, tal como nelas, também na teoria da história esta posição
fraturante revela aporias e embaraços. uma teoria assente no transporte ime-
diato para a vida psíquica de outra pessoa não deixa lugar para a postura crí-
tica, por outras palavras, a imediatez da intropatia não deixa lugar para a
mediação crítica que caracteriza a operação historiográfica enquanto atividade
científica: «l’histoire commence quand on cesse de comprendre immédiatement,
et qu’on entreprend de reconstruire l’enchaînement des antécédents selon des
articulations différentes de celle des motifs et des raisons allégués par les
acteurs de l’histoire» (ricœur, TA, 177).
a questão está em saber como é que a explicação se acrescenta, sobrepõe
ou substitui a compreensão imediata do curso da história passada. a tentação
de transpor o modelo explicativo das ciências naturais para a epistemologia his-
tórica pode afastar-nos do trabalho original e específico do historiador,
impondo-lhe um esquema artificial que só ao epistemólogo é capaz de satisfa-
zer. Foi isso que aconteceu com o positivismo lógico saído da escola analítica
de língua inglesa, depois da publicação do famoso artigo de carl Hempel, The
Function of General Laws in History, em 1942. mais à frente, exporemos com
maior detalhe a proposta de Hempel, que se resume no chamado “modelo
nomológico” (“covering law model”), de subsunção ou lógico-dedutivo. Basica-
mente, o que esta teoria defende é que a explicação histórica não tem nada de
específico e original, pois segue o mesmo esquema que a explicação de um
acontecimento físico, como, por exemplo, a rutura de um radiador de automó-
vel, uma avalanche ou uma erupção vulcânica. a explicação de um facto his-
tórico tem por base o cruzamento de dois tipos de enunciados: um que reporta
as condições iniciais singulares (acontecimentos anteriores, circunstâncias, con-
textos) e outro que relata hipóteses universais (alegadas ou verificadas). a fra-
queza científica da história provém da fraqueza epistemológica das leis gerais
alegadas ou tacitamente admitidas. o modelo hempeliano é demasiado ambi-
cioso, apresentando um ideal epistemológico inatingível para o historiador. Por
ter consciência disso, Hempel baixa um pouco a fasquia e propõe o “esquisso
explicativo” (explanation-sketch) como satisfatório para a história, que deve ser
completado e elevado a um maior grau de cientificidade por uma explicação
cada vez mais fina. apesar desta concessão, o seu modelo epistemológico con-
tinua a ser estranho à prática história, o que leva ricœur a ensaiar, mais uma
vez, uma conciliação entre explicação e compreensão.
Para começar, o filósofo francês, na senda dos autores narrativistas, par-
ticularmente W. gallie (1964), dá-nos a sua definição de compreensão, a qual
assenta, fundamentalmente, numa competência específica, a competência para
seguir uma história que se narra:
74 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
suivre une histoire, en effet, c’est comprendre une succession d’actions, de pen-
sées, de sentiments présentant à la fois une certaine direction mais aussi des sur-
prises (coïncidences, reconnaissances, révélations, etc.). Dès lors, la conclusion de
l’histoire n’est jamais déductible et prédictible. c’est pourquoi il faut suivre le
déroulement. mais, non plus, l’histoire ne doit pas être décousue: non déductible,
son issue doit être acceptable. il y a ainsi, en toute histoire racontée, un lien de
continuité logique tout à fait spécifique, puisque l’issue doit être à la fois contin-
gente et acceptable [ricœur, TA, 179].
É assim que ricœur vê, neste artigo que será aprofundado em Temps et
Récit i, a alternância e convivência de compreensão e explicação na tessitura
histórica.
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 75
2. HISTÓRIA E NARRATIVA
62
«[...] every work of history displays two features which strongly support the claim
that history is a species of the genus story» (gallie 1964: 66).
63
À cet égard, ma thèse concernant le caractère ultimement narratif de l’histoire ne
se confond aucunement avec la défense de l’histoire narrative. ma seconde conviction est
que, si l’histoire rompait tout lien avec la compétence de base que nous avons à suivre une
histoire et avec les opérations cognitives de la compréhension narrative [...] elle perdrait son
caractère distinctif dans le concert des sciences sociales: elle cesserait d’être historique. mais
de quelle nature est ce lien? là est la question (ricœur, TR i, 165).
76 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
64
«la présente investigation s’emploie à relier, sur le mode de l’oratio obliqua, l’ex-
plication à la compréhension narrative décrite sous le titre de mimésis ii» (ricœur, TR i,
167).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 77
65
«ce que l’école historique française offre de meilleur est une méthodologie d’hom-
mes de terrain» (ricœur, TR i, 172).
66
ricœur retoma, de forma abreviada, algumas das análises apresentadas num estudo
anterior: «the contribution of French Historiography to the theory of History», The Zaharoff
Lecture (1978-1979), oxford, clarendon Press, 1980.
78 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
67
esta designação é muito contestada, até pelo próprio ricœur; aplica-se com mais jus-
teza àquele tipo específico de história determinista, influenciada pela doutrina filosófica de
comte, preocupada com o estabelecimento de leis universais e a busca de um sentido (cf.
mendes 1987: 66-68 e Delacroix, Dosse, garcia 2007b: 96-98). as noções de “facto positivo”
ou de “estudo positivo” não significava, de modo algum, para os historiadores desta escola,
concordância com a teoria de comte, o facto positivo é aquele cuja existência é atestada por
uma documentação também ela autentificada e assegurada pela crítica.
68
langlois, charles-Victor; seignobos, charles, Introduction aux études historiques,
Hachette, 1898; reed. Kimé, 1992.
69
apesar de algumas ingenuidades, nomeadamente, ao nível da conceção do facto his-
tórico e da ausência de questionário sobre os documentos, e, apesar do excesso didático, tem-
se chegado ultimamente à conclusão que estas acusações dirigidas pelos annales, particular-
mente por lucien Febvre, contra a escola metódica são exageradas e injustas (vide Delacroix,
Dosse, garcia 2007b: 96-98). atentemos nas palavras de Dosse: «les historiens de l’école
méthodique n’ont pas été les naïfs pour lesquels on les a fait passer. on ne peut plus dire
qu’ils cultivaient un fétichisme du document et qu’ils niaient la pertinence de la subjectivité
historienne [...] simplement, l’école méthodique voyait la grandeur de l’historien dans sa
capacité à contrôler sa subjectivité, à la tenir en bride» (2000: 27-28). De facto, langlois e
seignobos são frequentemente citados, quer por aron e marrou quer por Prost e outros
historiadores como pessoas cientes da interferência da subjetividade do historiador no ato de
historiar e cientes do conhecimento histórico como indireto, assente nos documentos, ao invés
das ciências experimentais. simplesmente, a busca do rigor levou-os a ignorar as origens lite-
rárias da história e a execrar as formas de eloquência, porque «escondem a realidade», «des-
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 79
viam a atenção dos objetos para as formas», e «enfraquecem o esforço de representar as coi-
sas e compreender as suas ligações» (Dosse 2000: 27). É infundada a crítica de que seigno-
bos concebia a história como restituição de documentos: «l’histoire n’est pas non plus pour
seignobos, comme on a pu le dire plus tard, la simple restitution des documents présentés
comme les faits dans leur authenticité, mais tout au contraire un procédé de connaissance
indirect, hypothético-déductif [...]» (ibid.: 28). No entanto, afirma Dosse, se há historiador a
quem se possa imputar as ingenuidades denunciadas pelos annales esse é Fustel de coulan-
ges, que se mostra um idólatra do documento, comparando a análise em história com a aná-
lise em química, uma operação delicada que, atenta ao mais ínfimo detalhe, deve extrair do
documento tudo o que aí encontrar. «Fustel réduit la lecture et l’interprétation de l’historien
à une simple restitution du document comme vérité: «il n’est pas besoin de dire que la vérité
historique ne se trouve que dans les documents» [coulanges, De l’analyse des textes histo-
riques, 1887, p. 349]» (Dosse 2000: 29). Na teoria de coulanges, a análise histórica fica
dominada pelo método filológico e a prática histórica reduz-se a um cientismo reacionário
contra os textos, à recusa de toda e qualquer forma literária e ao apagamento do historiador.
Há, pois, que saber distinguir no interior da escola metódica os contributos por vezes dís-
pares dos vários historiadores, evitando todo o tipo de sincretismo, e reconhecer, para além
dos defeitos, também as virtudes desta escola: «história com limitações e deficiências, sem
dúvida. mas justo é reconhecer, igualmente, que algumas das particularidades da metodologia
atual – entre outras, o rigor da crítica, a exatidão das referências, a fidelidade na transcrição
de textos e a indicação precisa das fontes – entroncam, precisamente, na história da escola
metódica» (mendes 1987: 71). Foi preciso esperar pela década de 70 do século XX para que
os trabalhos de charles-olivier carbonell, de gérard Noiriel e de antoine Prost sobre os his-
toriadores da escola metódica reabilitassem a sua reputação e recuperassem muito do seu
valor, que a escola dos annales deitara fora.
70
«D’abord, il s’agit des «grands événements», liés le plus souvent aux rôles des
«grands hommes» – les «grands hommes historiques de l’histoire mondiale» dont parlait
Hegel –, qui prévalent en histoire politique, militaire, diplomatique, ecclésiastique: a savoir
guerres, traités, mariages royaux, changements de règne, etc. le déplacement de l’histoire
politique vers l’histoire sociale et économique, soulignent ces critiques, implique un moindre
intérêt pour les grands hommes et les grands événements. même en histoire politique les
historiens contemporains s’attachent plus à l’évolution des institutions qu’aux événements
politiques soudains et contingents. en d’autres termes, le porteur de l’histoire est moins l’in-
dividu et ses actions que les entités collectives qui les englobent» (ricœur 1980, in tiffeneau
1980: 14).
71
cf. François Furet, «De l’histoire-récit à l’histoire-problème» (1982: 73-90).
80 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
72
Introduction à la philosophie de l’histoire: Essai sur les limites de l’objectivité his-
torique (1948), pp. 147-148.
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 81
73
«les idées que l’on cherche, on veut les intégrer au système actuel, les monuments
transmis sont appelés à enrichir notre culture, les existences que l’on reconstitue doivent ser-
vir d’exemples ou de références, puisque l’homme ne se reconnaît et ne se détermine que par
la confrontation» (aron 1948: 148).
74
«[...] la connaissance historique, reposant sur la notion de témoignage, n’est qu’une
expérience médiate du réel, par personnage interposé (le document), et n’est donc pas sus-
ceptible de démonstration, n’est pas une science à proprement parler, mais seulement une
connaissance de foi» (marrou 1954: 143).
82 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
75
esta mesma posição é partilhada por ricœur no ensaio já analisado: «objectivité et
subjectivité em histoire» – ricœur, HV, 27-50.
76
«connaissance de l’homme par l’homme, l’histoire est une saisie du passé par, et
dans, une pensée humaine, vivante, engagée ; elle est un complexe, un mixte indissoluble de
sujet et d’object» (marrou 1954: 232).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 83
vérité est double, étant faite à la fois de vérité sur le passé et de témoignage
sur l’historien» (marrou 1954: 229).
em face disto, ricœur comenta que deste modo a compreensão é vincu-
lada à verdade histórica possível. ela não é a face subjetiva da qual a face
objetiva seria a explicação, como se a primeira fosse a prisão e a segunda a
sua libertação. longe de se digladiarem ou excluírem, subjetividade e objetivi-
dade complementam-se (TR i, 177). a história é capaz de uma verdade autên-
tica mas parcial, limitada pelas constrições impostas à condição humana: pode-
mos saber coisas acerca do passado humano, mas não podemos saber o todo
desse passado, o que inviabiliza a pretensão de uma história universal. Não há
quem possa reunir no microcosmo do seu conhecimento o macrocosmo dessa
matéria inequívoca e inesgotável que é o passado ou o presente.
uma vez que o historiador está implicado no conhecimento histórico, este
não pode ser entendido como uma tarefa de “re-atualização” do passado, pois
há que distinguir realidade histórica de conhecimento histórico: a primeira
designa o passado realmente vivido pelos homens; a segunda corresponde à
humilde tentativa de reconstituição dos factos pelo historiador. Para esta distin-
ção concorrem dois fatores. Por um lado, a história só se torna conhecimento
através da relação estabelecida entre o passado vivido pelos homens de outrora
e o historiador de hoje. consequentemente, o passado realmente vivido pela
humanidade só pode ser postulado, tal como o númeno kantiano. o passado é
apreendido como conhecimento, e nesse instante já ele sofreu uma grande
metamorfose, encontra-se remodelado pelas categorias do sujeito cognoscente,
ou melhor, pelas constrições lógicas e técnicas que pesam sobre a ciência his-
tórica (marrou 1954: 40-41). caso contrário, se o passado nos fosse acessível,
não seria objeto de conhecimento, pois aparecer-nos-ia, como todo o presente,
confuso, multiforme, ininteligível, uma rede intrincada de causas e efeitos,
campo de forças imensamente complexo, que a consciência do homem, quer
como ator quer como testemunha, se mostra necessariamente incapaz de captar
na sua realidade autêntica, capacidade só acessível a Deus. mas o historiador
não se pode satisfazer com uma visão tão fragmentária e superficial das coisas.
ele deseja e tenta saber mais do que soube ou pôde saber qualquer dos con-
temporâneos da época estudada, não no sentido do pormenor e da precisão da
experiência vivida, mas do ponto de vista da inteligibilidade. elevando-se acima
da poeira dos factos menores e da desordem do presente, persegue uma visão
ordenada, que faça sobressair linhas gerais, orientações suscetíveis de com-
preensão, cadeias de relações causais ou finais, significações, valores: «l’histo-
rien doit parvenir à jeter sur le passé ce regard rationnel qui comprend, saisit
et (en un sens) explique» (ibid.: 48).
84 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
77
o próprio marrou cita na sua obra (1954: 50-51) o axioma de aron relativo à dis-
solução do objeto.
78
Paul ricœur, «l’écriture de l’histoire et la représentation du passé», Annales 4, vol.
55, 2000, pp. 731-747.
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 85
79
sobre a presença da escola dos Annales na obra de ricœur, veja-se o estudo de
christian Delacroix, em Delacroix, Dosse, garcia 2007: «ce que ricœur fait des annales:
méthodologie et épistémologie dans l’identité des annales», pp. 209-230.
80
Para um conhecimento mais aprofundado e desenvolvido do surgimento e evolução
desta escola consulte-se le goff, chartier e revel 1978; allegra e torre 1977; cedronio et
alii 1945.
86 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
nados e negligenciados pelas elites, para uma massa anónima na qual se reco-
nhecia a verdadeira força de mutação histórica.
outra mudança fundamental adveniente do surgimento desta nova história
dá-se ao nível do questionário e do documento. a iniciativa passa do docu-
mento para a questão colocada pelo historiador. o novo historiador não se
limita a reproduzir os documentos, mas seleciona e questiona os dados, confere
a validade e a autenticidade dos documentos, contribuindo para uma história de
tipo problemático, que busca a compreensão dos factos. assim, os factos não
são dados pelos documentos, mas os documentos são selecionados em função
de um questionário. o questionário tradicional colocava como questão prioritá-
ria: o que se passou durante determinado período, em determinado local? Pro-
curava-se o novo, o extraordinário, o inesperado, para depois inferir as causas
pertinentes que, por sua vez, também deveriam ser singulares. ora, este tipo de
questionário viciava à partida a investigação do historiador, uma vez que o
orientava apenas para os factos pontuais e acidentais que se destacavam do
fundo rotineiro da ação humana. Por esta ordem de ideias, nas épocas em que
nada de assinalável se passava nada havia a historiar. antes, a atividade do his-
toriador centrava-se nas fontes narrativas, depositárias dos factos mais relevan-
tes e agitadores do passado. os historiadores eram como antiquários, colecio-
nadores de curiosas preciosidades, recusando tudo o que era banal, quotidiano,
habitual. a própria arqueologia selecionava o que era rico, belo e raro, pondo
de parte vestígios materiais da vida do comum dos mortais. Praticada desta
forma, a história divergia das ciências sociais que, a partir da segunda metade
do século XiX, começaram a ganhar relevo e prestígio – particularmente, a
sociologia, a economia e a geografia. apesar de continuar a reclamar para si o
estatuto de científica, a distância entre a sua prática e as suas pretensões era
abissal. alguns historiadores tentaram ultrapassar esse abismo, desistindo do
estatuto de ciência e remetendo a história para a categoria da narrativa literária.
outros tentaram enquadrá-la num regime especial através da conjugação entre
o privilégio que tinham para eles os factos singulares e uma certa cientifici-
dade, concebendo a história como ciência idiográfica, isto é, tendo por objeto
específico o que não se repete, o singular. seria, portanto, uma ciência única,
oposta às ciências ditas nomotéticas, que tentam deduzir leis a partir da veri-
ficação de repetições e constâncias81. outros havia, por fim, que desejavam a
81
esta famosa distinção entre ciências idiográficas e nomotéticas é da autoria de Win-
delband, «geschichte und Naturwissenchaft», Discours de strasbourg, 1984, reproduzido em
Präludien: Aufsätze un Reden zur Philosophie uns ihrer Geschichrte, vol. ii, tübingen,
J.B.c., 1921, pp. 136-160.
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 87
82
a sociologia de Durkheim conhece um enorme êxito nos finais do século XiX e iní-
cios do século XX, contribuindo para revolucionar as ciências sociais e humanas ao reunir a
geografia, a história e psicologia à volta do conceito de causalidade social. os princípios epis-
temológicos desta sociologia fundam-se sobre o objectivismo do método (com exclusão da
subjetividade do investigador); sobre a realidade do objeto (os factos sociais devem ser ana-
lisados como coisas e estes factos exercem uma constrição exterior sobre o indivíduo); e
sobre a independência da explicação, que permite reduzir o facto social à sua causalidade
sociológica (a explicações puramente sociológicas), a única que se considera eficiente. a his-
tória não ficou indemne, pelo contrário, é sob a pressão do novo método científico instaurado
por Durkheim que ela se vê obrigada a trabalhar em torno de uma física social, de uma
sociedade encarada como uma coisa da qual o historiador pode extrair os sistemas de cau-
salidade. o manifesto de François simiand («méthode historique et sciences sociales») foi
publicado na Revue de synthèse historique. claramente influenciado pela sociologia de Durk-
heim, o artigo denunciava uma história que não tinha nada de científico, que se limitava a
descrever fenómenos contingentes, ocasionais, enquanto a sociologia pode ter acesso aos fenó-
menos repetíveis, regulares, estáveis e deduzir a partir deles a existência de leis. simiand
denuncia, objetivamente, os três ídolos que adoram os historiadores: o ídolo político, o ídolo
individual e o ídolo cronológico (cf. Dosse 2000: 45, 46).
88 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
83
«[...] qu’entendons-nous en effet par documents sinon une «trace» c’est-à-dire la
marque, perceptible aux sens, qu’a laissée un phénomène en lui-même impossible de saisir»
(Bloch 1952: 34). ricœur retomará esta definição, em Temps et Récit iii, aquando da análise
ontológica do real passado. De momento trata apenas de tecer algumas considerações episte-
mológicas sobre a matéria.
90 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
lise distintiva das coisas. a delicada rede que constitui um facto histórico só
pode revelar-se depois de classificados os factos por categorias específicas. este
primado da análise sobre a síntese permitiu ao autor distinguir vários fenóme-
nos dentro do fenómeno histórico global, como o político, o económico, o artís-
tico, dando origem à chamada história comparativista, herdeira do método ins-
tituído pela sociologia de Durkheim. este corolário começa com a tomada de
consciência de que é mais fácil julgar do que compreender e de que a com-
preensão é uma paixão que domina e ilumina o trabalho dos historiadores84.
opondo-se às teorias da história factual, crente numa observação histórica obje-
tiva e imparcial, o historiador sustenta que os documentos constituem uma pri-
meira barreira entre o historiador e o passado, quase nunca se apresentam
organizados de acordo com as necessidades de entendimento de quem os per-
ceciona. Por isso, não basta percecionar os documentos em bruto, há que sele-
cionar algumas informações e apartar outras, ou seja, analisar. o historiador
descobre as semelhanças a fim de as aproximar. a tarefa do historiador não
consiste em reconstituir as coisas tal como aconteceram. a compreensão não é
uma atividade passiva. ela tem atrás de si a análise, que consiste na descoberta
de semelhanças entre fenómenos diversos. em vez de reproduzir – sem selecio-
nar e estabelecer contiguidades – uma panóplia de atividades diferentes tal
como nos são apresentadas no intrincado de um documento ou de uma vida
particular ou coletiva, o historiador procura o parentesco entre determinados
fenómenos, de modo a encontrar uma tendência particular, e até certo ponto,
estável, do indivíduo ou da sociedade. Daqui resulta necessariamente que sem-
pre se compreenderá melhor um facto humano, qualquer que ele seja, se pos-
suirmos já a inteligência de outros factos da mesma espécie, ocorridos anterior-
mente85. Na medida em que os fenómenos humanos se determinam dos mais
84
«un mot, pour tout dire, domine et illumine nos études: “comprendre”. Ne disons
pas que le bon historien est étranger aux passions; il a du moins celle-là. mot, ne nous le
dissimulons pas, lourd de difficultés; mais aussi d’espoirs. mot surtout chargé d’amitié. [...]
comprendre, cependant, n’a rien d’une attitude de passivité. Pour faire une science, il faudra
toujours deux choses: une matière, mais aussi un homme» (Bloch 1952: 83).
85
«aussi bien, quand, dans le cours de l’évolution humaine, nous croyons discerner
entre certains phénomènes ce que nous appelons une parenté, qu’entendons-nous par là, sinon,
que chaque type d’institutions, de croyances, de pratiques ou même d’événements, ainsi dis-
tingués, nous paraît exprimer une tendance particulière, et jusqu’à un certain point, stable, de
l’individu ou de la société? Niera-t-on, par exemple, qu’à travers tous les contrastes il n’y ait
entre les émotions religieuses quelque chose de commun? il en résulte nécessairement qu’on
comprendra toujours mieux un fait humain, quel qu’il soit, si on possède déjà l’intelligence
d’autres faits de même sorte» (Bloch 1952: 84).
92 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
antigos para os mais recentes, eles ordenam-se, em primeiro lugar, por cadeias
de fenómenos semelhantes. ordená-los racionalmente por géneros é, portanto,
pôr a nu linhas de força de uma eficácia capital. estas distinções e classifica-
ções só existem na inteligência do investigador e não na própria realidade, onde
tudo aparece mesclado, logo, ela é fruto de um processo de abstração e de ima-
ginação, concluindo Bloch que nenhuma ciência pode dispensar a abstração
nem tão pouco a imaginação86.
relacionado com o tópico da classificação dos factos, surge o problema
da nomenclatura e do anacronismo. Bloch reflete acerca do tipo de linguagem
a usar para nomear os factos do passado. Por um lado, a terminologia patente
nos próprios documentos deve merecer uma crítica, na medida em que ela pró-
pria é um testemunho de uma época. Por outro, aplicar aos documentos do pas-
sado uma terminologia atual pode levar à perda, por anacronismo, da especifi-
cidade dos fenómenos passados e à eternização prepotente das categorias do
presente. ricœur comenta que a mesma dialética do semelhante e do disseme-
lhante patente na crítica histórica rege também a análise histórica.
o verdadeiro manifesto da escola dos annales – comenta ricœur (TR i,
182) – vamos encontrá-lo em Fernand Braudel e na sua obra-prima sobre
O Mediterrâneo e o mundo mediterrânico.... autor e obra são um marco na
historiografia francesa do século XX e também na argumentação de ricœur em
prol da matriz narrativa dissimulada na história estrutural. Por esse motivo,
antepomos à análise e comentário de ricœur uma nota informativa que visa
contextualizar e caracterizar as novidades introduzidas por Braudel, passando
em revista alguns dos seus comentários empíricos mais importantes.
86
«Pourquoi avoir peur des mots? aucune science ne saurait se dispenser d’abstraction.
Pas plus, d’ailleurs, que d’imagination» (Bloch 1952: 85).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 93
87
«c’est là aussi que règne l’événement assimilable à une explosion» (ricœur, TR i,
184).
seguimos a tradução portuguesa de 1995.
88
90
relativamente a este eclipse da narrativa na obra de Braudel e, de um modo geral,
nos trabalhos dos historiadores da escola dos annales, Hayden White estabelece uma interes-
sante comparação. Diz ele que «uma historiografia científica (ou cientificista) do tipo da con-
cebida pelos Annalistas, que versa sobre as forças físicas e sociais anónimas e em grande
escala, [...] produz o equivalente historiográfico de um drama que é todo cena e carece de
atores, ou uma novela que é toda tema e carece de personagens. esta historiografia é toda
fundo e carece de primeiro plano» (1992b: 184).
91
«troisième partie, enfin, celle de l’histoire traditionnelle, si l’on veut de l’histoire à
la dimension non de l’homme, mais de l’individu, l’histoire événementielle de François
simiand: une agitation de surface, les vagues que les marées soulèvent sur leur puissant mou-
vement. une histoire à oscillations brèves, rapides, nerveuses» (Braudel 1969: 12; vide, etiam,
pp. 45-47).
92
la découverte de toute une nouvelle dimension de l’histoire, de l’histoire structurale,
très lente, «quasi immobile», «faite bien souvent de retours insistants, de cycles sans cesse
recommencés», est un des plus grands apports de «méditerranée» à la pensée et à la pratique
historiques de notre temps (Pomian 1978: 542).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 95
cf. Pomian 1978: 540-542) 93. trata-se, pois, de identificar, no nível mais pro-
fundo e duradouro – o da longa duração – as repetições e de evidenciar o seu
caráter constante, para a partir daí se constituir um elemento de estrutura.
o estudo da evolução biológica da humanidade em perspetiva temporal, a
cargo da demografia histórica, assume um papel preponderante, pois faz apare-
cer ritmos mundiais de população num longo período de tempo. assim, a
demografia histórica assegura a transição da história serial ou quantitativa de
nível económico para uma história serial de nível social, depois de nível cul-
tural e espiritual, de acordo com os três níveis estipulados por labrousse (cf.
ricœur, TR i, 193-194).
Numa sociedade polimorfa, em constante mutação superficial, não será o
que dura e perdura a sua essência, o que permanece sob a capa do social? –
indaga Braudel:
[...] a sua biologia profunda, as suas condições de base, os seus constrangimentos,
o seu ritmo respiratório? esta procura do permanente, do quasi-permanente, é o
que caracteriza o estruturalismo dos historiadores da chamada escola dos Annales
que nada tem que ver com o estruturalismo sofisticado, à moda dos belos espíritos
de Paris ao longo dos anos sessenta [Braudel 1991: 278].
93
De facto, a escolha da personagem mediterrâneo é singular e pertinente, na medida
em que não possui data de nascimento ou de óbito e na medida em que obrigou o historiador
francês a sair dos ritmos históricos vulgares praticados pelos seus colegas historiadores.
94
«a esta história profunda chamei estrutural – mas por favor entenda-se, e de uma
vez por todas, que o meu estruturalismo não tem nada a ver com o estruturalismo (aliás, pas-
sado de moda) dos linguistas. Para mim, é estrutura tudo o que resiste ao tempo da história,
o que dura e até perdura – algo, pois, de bastante real, e não a abstração da relação ou da
equação matemática» (Braudel 1991: 302).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 97
-nos, com insistência, para o que ele considera ser um mal-entendido da sua
teoria da longa duração: esta não pressupõe a imobilidade histórica.
a estrutura não é imobilidade rigorosa. ela só parece imóvel em relação a tudo
o que, à sua volta, se move, evolui mais ou menos rapidamente. mas ela gasta-
-se a si própria, ao longo do tempo. Diminui-se. está mesmo sujeita a ruturas,
mas muito distanciadas umas das outras no tempo e que, por mais importantes que
sejam, nunca incidem sobre toda a arquitetura estrutural de uma sociedade. Nada
se quebra de uma só vez [Braudel 1991: 290]
Digo história profunda, não imóvel como diz repetidamente emmanuel le roy
ladurie, de acordo com um exemplo que eu próprio devo ter dado outrora. com
efeito, a imobilidade não é a palavra conveniente: a imobilidade é a morte,
enquanto a história profunda está viva; na verdade, ela é repetição. assim, dando
como exemplo o mediterrâneo antigo, os rebanhos que vão para as pastagens de
verão sobem regularmente, todos os anos, a partir das planícies e voltam a essas
baixas regiões quando se aproxima o inverno, eis uma história longa. o mesmo
se passa com os mares agitados de inverno, em que a navegação no mediterrâneo
é suspensa pelas regras de precaução das cidades. e isto durante séculos. Para
durar, essas realidades repetem-se. Há evidentemente muitas outras repetições,
muitas outras permanências: mais não seja a continuidade das civilizações (as reli-
giões, os falares), dos equilíbrios económicos, das hierarquizações sociais e eco-
nómicas inevitáveis – realidades que se substituem lentamente, diferentes nas suas
formas, mas análogas nas suas razões de ser e de durar [ibid.: 301].
É histórico o que muda e também o que não muda. a mudança deve con-
ciliar-se necessariamente com a não mudança, pois a história global resulta de
uma dialética permanente entre estrutura e a conjuntura, entre permanência e
mudança95. Na longa duração o mediterrâneo permanece inalterado, repetitivo e,
aparentemente, «mas só aparentemente» – adverte o autor (ibid.: 289) – imóvel,
pois acima deste, oscilações cíclicas de mais ou menos longa duração fazem a
história mover-se: são as conjunturas.
95
a partir da década de quarenta do século XX, o novo questionário dos historiadores
organiza-se em torno da oposição entre estrutura e conjuntura. as estruturas designam fenó-
menos geográficos, ecológicos, técnicos, económicos, sociais, políticos, culturais, psicológicos,
que permanecem constantes durante um longo período ou que evoluem de um modo quase
impercetível. as conjunturas designam flutuações de amplitudes diversas que se manifestam
no contexto das estruturas. Por outras palavras, a estrutura é um conjunto de constrições e
barreiras que impedem as diferentes variáveis, cujas oscilações constituem a conjuntura, de se
elevar acima de um determinado teto.
98 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
acima dele, uma história de lentas pulsações, uma sequência de conjunturas que,
nas suas vagas sucessivas, levantam, depois abandonam, constroem e depois des-
troem, e continuamente movem as economias, as civilizações, as formas políticas,
as realidades sociais, os vaivéns da história das ideias, as correntes artísticas e lite-
rárias que evoluem de geração em geração, ou ainda os costumes, ou as maneiras
de pensar... [Braudel 1991: 289.].
96
«tudo muda verdadeiramente quando a história profunda começa a correr, pouco a
pouco, num outro sentido, quando uma rutura profunda entra lentamente em ação, enorme
fenda onde submerge a história ardente que os homens vivem no dia-a-dia» (Braudel 1991:
303).
97
o mesmo se pode verificar no exemplo descrito por le goff (1963), em Le Temps
du travail dans la “crise” au XIVe siècle: du temps médiéval au temps moderne: foi cidade
a cidade, vila a vila que, paulatinamente, se foram multiplicando os relógios, alterando a con-
ceção temporal dos habitantes que originou uma verdadeira revolução económica e social.
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 99
98
«somos herdeiros de uma água profunda na qual navegamos mal, às cegas. esta
superfície da história é-nos propícia, sem dúvida: julgamo-nos livres no interior dela e a liber-
dade é, no essencial, a ilusão feliz de se ser livre, de se pensar que “o homem faz a história”,
quando o contrário – “a história faz o homem” – é infelizmente mais verdadeiro» (Braudel
1991: 303).
99
chateaubriand (1831), um dos precursores avant la lettre da Nova história, manifesta
este desprezo pela narrativa que deve implicar uma história moderna. No prefácio dos seus
Études historiques, criticando duramente a história assente em factos e personagens principais
e clamando já por uma história moderna abrangente e total, reconhece que este novo modo
100 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
querida a ranke» (1969: 13). ricœur estranha o facto de nenhum dos funda-
dores dos Annales ter notado que estavam a aproximar a realidade histórica da
narrativa de ficção, como criação de um narrador, ao tecerem críticas veemen-
tes ao facto histórico dado totalmente nas fontes para defenderem uma realidade
histórica construída pelo historiador (TR i, 183-184)100.
ricœur valoriza o conceito braudeliano de “longue durée” mas assinala,
mais uma vez, a ausência da discussão em torno das ideias de causa e lei. Para
além disso, constata que não há grande rigor epistemológico na referência à
pluralidade temporal. Braudel não fala simplesmente de diferenças quantitativas
entre extensões temporais, como tempo curto e tempo longo, mas também de
medidas de tempo que implicam velocidade e movimento, como tempo rápido
e tempo lento. o recurso a imagens e metáforas do mundo marítimo, por exem-
plo, para dizer a rapidez dos movimentos que percorrem intervalos de tempo
têm como finalidade depreciar o acontecimento, sinónimo de tempo breve: «une
agitation de surface, les vagues que les marées soulèvent de leur puissant mou-
vement. une histoire à oscillations breves, rapides, nerveuses» (Braudel 1969:
12). Já as metáforas que caracterizam o tempo longo enaltecem o seu valor
excecional.
sob esta vontade de tornar visível e audível o que o clamor do drama
eclipsou e reduziu ao silêncio subjazem duas perceções adversas, mas mantidas
em equilíbrio: a permanência e a mudança. Por um lado, a defesa da longa
duração, por permitir à história aceder a um tipo de inteligibilidade único, pró-
prio dos equilíbrios duráveis, que se traduz numa espécie de estabilidade na
mudança, que Braudel identifica com a estrutura. À espuma do facto opõe-se
a rocha da duração, sobretudo, quando o tempo se inscreve na geografia ou se
recolhe na perenidade das paisagens. um exemplo disso é o conceito de civi-
lização que por diversas vezes o historiador aflora nos seus escritos (Braudel
de fazer história implica o sacrifício de historiadores como tucídides, tito lívio e tácito.
apesar de reconhecer que este sacrifício é um inconveniente, acha-o necessário e inevitável
(apud le goff 1978: 223-224). No comentário a esta passagem, le goff é mais incisivo:
«histoire globale à nouveau où l’économique, l’artistique, l’anthropologique sont au premier
plan. Histoire des prix et de l’économie politique (et non histoire politique). Histoire prête,
enfin, à renoncer au prestige du style, à la conception de l’historien écrivain et artiste s’il faut
payer de ce prix la rigueur scientifique...» (ibid.: 224).
100
«il n’y a pas de réalité historique toute faite, et qui se livrerait d’elle-même à l’his-
torien. comme tout homme de science, celui-ci doit, selon le mot de marc Bloch, “face à
l’immense et confuse réalité”, faire “son choix” – ce qui, évidemment, ne signifie ni arbitraire
ni simple cueillette, mais construction scientifique du document dont l’analyse doit permettre
la reconstitution et l’explication du passé» (le goff 1978: 216). cf. l. Febvre 1953: 7.
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 101
1991: 302-305). mas quando a matemática social tenta aplicar à longa duração
as suas estruturas acrónicas, os seus moldes intemporais, o autor vê-se na obri-
gação de sublinhar que mesmo a permanência inclui mudança, pois sem ela não
pode haver história (Braudel 1969: 42-83). É que a longa duração, mesmo a
muito longa duração, continua a ser duração, logo, inseparável do tempo. os
modelos são de duração variável, porque apenas «são válidos, enquanto é válida
a realidade que registam. [...] mais significativos que as estruturas profundas da
vida são os seus pontos de rutura, a sua brusca ou lenta deterioração, sob o
efeito de pressões contraditórias» (Braudel 1976: 52-53).
com esta chamada de atenção, Braudel tenta salvar a história estrutural de
se confundir com as matemáticas qualitativas, como a antropologia ou a socio-
logia. estas não podem servir de modelo à história, pois limitam-se a circular
por uma só das inúmeras rotas do tempo – a rota da extrema lentidão, monó-
tona e tranquila, quase intemporal – ignorando os acidentes, as conjunturas e as
ruturas. ao historiador, nas suas viagens pelo tempo, interessam, de sobrema-
neira, os momentos mais significativos, logo, uma duração muito longa, exces-
sivamente longa, é incapaz de «reencontrar o jogo múltiplo da vida, todos os
seus movimentos, todas as suas durações, todas as suas ruturas, todas as suas
variações» (ibid.: 58).
o teorizador da longa duração envolve-se assim num duplo combate: con-
tra o acontecimento episódico, breve e explosivo e contra a duração demasiado
longa. mais à frente ricœur dirá como é que esta apologia da longa duração
com a sua dupla recusa se pode conciliar com o modelo da configuração nar-
rativa.
101
«o historiador está sempre atento à mudança, a «longa duração» é sempre «dura-
ção». Na própria dialética de «conjuntura» e «estrutura» – como na «história serial» de P.
chanu – há sempre uma coloração temporal da estrutura; neste aspeto os historiadores da
«história económica», por exemplo, distinguem-se dos economistas e dos sociólogos» (tei-
xeira, i, 194).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 103
Paul ricœur toma como ponto de partida para esta discussão a clássica
tese de carl Hempel sobre a função de leis gerais em história103, que consiste,
essencialmente, na apologia da função análoga das leis gerais em história e nas
ciências naturais104, assente no princípio fundamental de que uma explicação
científica deve ser tal que dela logicamente se possa inferir aquilo que se
explica. este modelo que ficou conhecido como “covering-law model of expla-
102
a unificação das ciências é incompatível com a dissociação de Windelband entre
método idiográfico e método nomotético. esta distinção, prolongada pela filosofia crítica
alemã, torna inconciliáveis compreensão e explicação e, logo, a possibilidade de fazer derivar
a história a partir da narrativa. cf. aron 1938.
103
artigo publicado pela primeira vez no Journal of Philosophy, em 1942, tendo sido
reeditado in Patrick gardiner, Theories of History, New York, the Free Press, 1959, 344-356.
104
«[...] general laws have quite analogous functions in history and in natural sciences,
[...] they form an indispensable instrument of historical research, and [...] they even constitute
the common basis of various procedures which are often considered as characteristic of the
social in contradistinction to the natural sciences» (Hempel 1942, in gardiner 1959: 345).
104 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
105
W. Dray designa-o de covering law model, modelo segundo o qual uma lei cobre
os casos particulares que se tornam exemplos da própria lei. em português, tal como em fran-
cês “subsomption”, o termo que melhor definirá este modelo será o de “subsunção”, reme-
tendo para a relação paralela entre espécie e género.
106
«l’occurrence d’un événement d’un type spécifique peut être déduite de deux pré-
misses. la première décrit les conditions initiales: événements antérieures, conditions préva-
lantes, etc. la seconde énonce une régularité quelconque, c’est-à-dire une hypothèse de forme
universelle qui, si elle est vérifiée, mérite d’être appelée une loi» (ricœur, TR i, 202).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 105
107
«ce n’est pas que Hempel ignore l’intérêt de l’histoire pour les événements parti-
culiers du passé: au contraire, sa thèse concerne précisément le statut de l’événement. mais
elle ne tient pas pour important, sinon pour décisif, qu’en histoire les événements tirent leur
statut proprement historique d’avoir été initialement inclus dans une chronique officielle, un
témoignage oculaire, ou un récit base sur des souvenirs personnels. la spécificité de ce pre-
mier niveau de discours est complètement ignoré, au bénéfice d’une relation directe entre la
singularité de l’événement et l’assertion d’une hypothèse universelle, donc d’une forme quel-
conque de régularité» (ricœur, TR i, 202).
108
«a set of events can be said to have caused the event to be explained only if gen-
eral laws can be indicated which connect “causes” and “effect” [...]» (Hempel 1942, in gar-
diner 1959: 346).
106 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
Diz Hempel: «Previsão, numa ciência empírica, consiste em deduzir uma afir-
mação acerca de um certo evento futuro»109.
a estrutura lógica de uma previsão científica é, pois, a mesma de uma
explicação científica, uma vez que a previsão implica sempre, nas ciências
empíricas, uma referência a hipóteses universais empíricas. Hempel salvaguarda,
contudo, uma diferença pragmática: no caso da explicação científica, o evento
já ocorreu e é necessário procurar as suas condições determinantes; relativa-
mente à previsão, passa-se o inverso – temos as condições iniciais e há que
determinar o seu efeito, que ainda não ocorreu110. acrescenta ainda que o cará-
ter preditivo da explicação é critério de validade da própria explicação, sendo
a sua ausência sinal de incompletude.
curiosa é a extensão destas considerações à história. segundo ele, a expli-
cação histórica deveria demonstrar que determinado evento não foi fruto do
acaso, mas era previsível, em virtude de certos antecedentes ou condições
simultâneas e adverte que não se trata de profecia ou adivinhação, mas de ante-
cipação científica racional assente em leis gerais. Por último, este modelo expli-
cativo só serve para acontecimentos de um tipo específico, os repetíveis, e não
abrange a classe dos singulares. Hempel justifica a exclusão dos acontecimentos
singulares – o terramoto de lisboa ou o assassinato de Júlio césar, por exem-
plo – pela impossibilidade de se descrever exaustivamente todas as proprieda-
des manifestadas pela região espacial ou pelo objeto individual em causa,
durante o tempo em que se manifestou o ocorrido. tarefa tão impossível para
o historiador como para o físico. uma explicação só pode ser precisa e apu-
rada, não tem nem pode dar conta de todas as particularidades de um evento
singular, logo, nenhum evento singular pode ser explicado cientificamente. Per-
cebe-se, pois, que a singularidade do acontecimento é, consequentemente, «um
mito para afastar do horizonte científico» (ricœur, TR i, 204).
ao elaborar este modelo universal, Hempel ambiciona colocar a história
sob o mesmo teto, outorgando-lhe um estatuto similar, das ciências empíricas,
pois ela deve ser ciência e não arte. todavia, reconhece que a história é uma
ciência não totalmente desenvolvida, já que, na maior parte das vezes, as suas
explicações não incluem uma afirmação explícita das regularidades gerais que
pressupõem; por outras palavras, as explicações históricas não oferecem nem
109
«Quite generally, prediction in empirical science consists in deriving a statement
about a certain future event [...]» (Hempel 1942, in gardiner 1959: 347).
110
«if the final event can be derived from the initial conditions and universal hypothe-
ses stated in the explanation, then it might as well have been predicted, before it atually hap-
pened, on the basis of a knowledge of the initial conditions and the general laws» (Hempel
1942, in gardiner 1959: 348).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 107
111
«l’histoire n’établit pas les lois qui figurent dans la majeure de la déduction hem-
pelienne. elle les emploie. c’est pourquoi elles peuvent rester implicites. mais c’est pourquoi
surtout elles peuvent relever de niveaux hétérogènes d’universalité et de régularité» (ricœur,
TR i, 208)
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 109
charles Frankel [1957, in gardiner 1959, 408-427] foi o que forçou mais
o modelo nomológico até ao limite da sua flexibilidade. a razão prende-se com
a admissão da interpretação – entendida de forma muito similar à ideia alemã
de compreensão na filosofia crítica da história de Dilthey (cf. aron 1964) –
como um momento necessário do conhecimento histórico. Frankel admite que
o historiador tende a emitir juízos de valor e de sentido sobre eventos. isto
acontece quer na escolha e delimitação da história que narra e nos juízos
morais que profere quer na imputação concreta de conexões causais, orientadas
por consequências terminais (Frankel 1957, in gardiner 1959: 417-418).
apesar desta concessão, Frankel cuida de não abrir demasiadas brechas no
tecido nomológico112. ao conciliar a interpretação com a explicação causal, sub-
mete a primeira às exigências limitativas da segunda. É um facto que as gene-
ralizações históricas se inscrevem em esboços de explicação, mas isso é mais
uma contingência gnosiológica do historiador do que uma limitação da própria
história. Por conseguinte, nada a impede de se aproximar das outras ciências,
devendo acrescentar às generalizações em esboço os muitos factos que o his-
toriador ignorou, para conseguir explicações objetivas e geralmente aceites.
Quanto à incapacidade preditiva ou retroditiva das explicações históricas, esta
deve-se ao facto de exprimirem as condições essenciais, mas não suficientes
para a ocorrência de um evento. são insuficientes, mas nem por isso deixam
de satisfazer as nossas exigências de explicação, contanto que nos deem conta
das diferentes fases do processo evolutivo que deu origem a determinado fenó-
meno que suscitou a nossa curiosidade. Perante estes considerandos, Frankel
não hesita em considerar a explicação histórica um tipo normal de explicação
causal: primeiro, porque esta espécie de explicação típica da história ocorre
noutras ciências que tratam do desenvolvimento ou da evolução, como a
embriologia; segundo, a descrição das fases do processo ou das condições
essenciais para a ocorrência de um evento funda-se tanto como uma explicação
inteiramente preditiva em generalizações tácitas ou expressas (ibid.: 411-412),
que asseguram um nexo causal entre as várias fases. observação crítica de
ricœur: «la frontière, dès lors, tend à s’effacer entre l’explication scientifique,
112
Frankel, apesar de reconhecer as especificidades da explicação histórica, nomeada-
mente, o elemento subjetivo da interpretação, acha que estas características distintivas da
explicação histórica não são suficientes para marcar uma descontinuidade em relação à lógica
da investigação científica (cf. Frankel 1957, in gardiner 1959: 410).
110 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
lidade defender a ciência histórica das críticas dos céticos e justificar a sua luta
pela objetividade. Foi assim que a apologia da objetividade e do modelo nomo-
lógico se tornaram indissociáveis.
a) a primeira parte da sua obra consiste numa análise crítica que conduz
à dissociação das ideias de explicação e de lei. ao efetuar esta separação, o
filósofo contesta também que a noção de explicação obrigue a lei a justificar
113
tradução de Vítor matos e sá de covering law model, in gardiner, Teorias da His-
tória, Fcg, 20045, 494.
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 113
todos os casos particulares que ela supostamente cobre. a explicação por leis
não é, pois, suficiente nem tem caráter necessário. Para explicar um aconteci-
mento, não basta conhecer as leis físicas que o regem, é preciso estabelecer a
cadeia detalhada dos acontecimentos que tiveram lugar entre o princípio despo-
letador e o seu efeito final, defende o autor. Não sendo suficiente, a explicação
por leis também não é necessária. enquanto um lógico da escola de Hempel,
para explicar determinado acontecimento histórico, se limita a evocar um con-
junto de leis implícitas, vagas e de caráter geral, para o historiador é preciso
uma lei que contemple as condições específicas que conduziram ao aconteci-
mento, ou seja, uma lei tão detalhada que se torna de um só caso. Nesta situa-
ção, já não se trata de uma lei explicativa de acordo com o modelo de sub-
sunção. Nem lei se pode chamar, ainda que a reformulação operada pelo
raciocínio do historiador lhe dê uma aparência de lei empírica. o historiador,
de forma pragmática e análoga à do mecânico que procura explicar uma avaria
num automóvel, explica um acontecimento enumerando um conjunto de fatores
específicos que o causaram114; o lógico – confiante no modelo da lei global –
perante a ocorrência de determinados fatores predirá o evento, socorrendo-se de
uma lei. Dray classifica esta última equivalência de falaciosa, pois a hipótese
de determinado acontecimento se dar a partir de um conjunto de fatores é ape-
nas provável e não totalmente segura, logo, o facto de ser hipotética significa
que não é necessariamente empírica. ela apenas permite predizer ou inferir um
resultado com alguma razoabilidade. Nesta confusão entre lei empírica e prin-
cípio de inferência, na opinião de Dray, reside a falha do modelo nomológico.
Desta tese ricœur retira, provisoriamente, duas conclusões que incorporará
na sua análise futura da dialética entre compreender e explicar em história.
a primeira diz respeito à noção de acontecimento, já abordada no contexto da
historiografia francesa. a rejeição do modelo nomológico parece implicar o
regresso à conceção de acontecimento único. esta asserção é evidentemente
falsa se entendermos o conceito de unicidade de acordo com a tese metafísica
de que o mundo é constituído por elementos radicalmente distintos. Neste caso,
não é possível qualquer tipo de explicação. a afirmação é verdadeira se com
ela pretendemos manifestar o desejo do historiador de descrever e explicar, em
pormenor, o que realmente aconteceu, demarcando-se das constrições epistemo-
lógicas do método nomológico. Neste caso, a noção de único para o historiador
114
«Prenons l’exemple d’un accident mécanique: le grippage d’un moteur. Pour attri-
buer la cause à une fuite d’huile, il ne suffit pas que l’on connaisse les diverses lois phy-
siques mises en jeu; il faut encore que l’on puisse considérer une série continue d’incidents
entre la fuite et la détérioration du moteur» (ricœur, TR i, 220).
114 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
115
«entendons par jugement la sorte d’opération auquel se livre un juge quand il pèse
des arguments contraires et prend une décision. De la même façon, expliquer, pour un his-
torien, c’est défendre ses conclusions contre un adversaire qui invoquerait un autre ensemble
de facteurs pour soutenir sa thèse. cette manière de juger sur des cas particuliers ne consiste
pas à placer un cas sous une loi, mais à regrouper des facteurs éparpillés et à peser leur
importance respective dans la production du résultat final. l’historien, ici, suit la logique du
choix pratique plutôt que celle de la déduction scientifique» [ricœur, TR i, 223].
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 115
116
«a logically miscellaneous lot» (Dray 1957: 85; apud ricœur, TR i, 221).
117
«la recherche de “garants”, la “pesée” et l’ “appréciation” des causes, l’ “épreuve”
des candidats au rôle de cause, toutes ces activités de jugement relèvent d’une analogie entre
l’argumentation historique et l’argumentation juridique qui demande à être explicitée»
(ricœur, TR i, 228). ricœur retoma o tema aquando da imputação causal, que estabelece um
vínculo entre compreensão e explicação, mas só o explicitará de forma aprofundada e deta-
lhada em La mémoire, l’histoire, l’oubli («l’historien et le juge», pp. 413-436).
118
a análise causal aplica-se a acontecimentos ou a condições históricas em grande
escala («fairly large-scale historical events or conditions» [Dray 1957: 118; apud ricœur,
TR i, 229]).
119
«l’explication par des raisons s’applique à «un éventail de cas plus réduit», à savoir
«la sorte d’explication que les historiens donnent en général des actions des individus qui
sont suffisamment importants pour être mentionnés au cours du récit historique» (ricœur,
TR i, 229).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 117
o nome dado pelo autor a este modo de explicação resume o seu pro-
grama. Por um lado, aplica-se às ações de agentes semelhantes a nós, abrindo,
positivamente, caminho para a interseção da teoria histórica com a teoria da
ação da mimesis I. todavia, o risco inerente é de restringir a explicação his-
tórica ao domínio da história “événementielle”, repudiada pela nova historiogra-
fia francesa. Por outro lado, pretende-se que seja ainda um modelo de explica-
ção; pelo que o autor se coloca a meio caminho entre os positivistas, para
quem explicar consiste em cobrir um acontecimento com uma lei empírica, e
os idealistas, defensores da empatia, para quem compreender a ação é revivê-
-la, reatualizá-la, repensar as intenções, as conceções e os sentimentos dos
agentes. Dentre os idealistas, Dray aproxima-se, sobretudo, de collingwood e
da sua teoria de compreensão histórica, que foi vivamente criticada como não
científica pelos positivistas120. Dray tenta demonstrar que as operações propostas
por collingwood têm uma lógica que as distingue da psicologia ou da heurís-
tica e lhes confere um estatuto de explicativas.
explicar uma ação individual recorrendo às razões é reconstruir o cálculo
feito pelo agente, os meios que ele teve de adotar em vista de um determinado
objetivo que estabeleceu, tendo em conta as razões e as circunstâncias. explicar
é, pois, segundo Dray, demonstrar que o que se fez era o necessário, tendo em
conta as razões e as circunstâncias. No fundo, trata-se de justificar e avaliar até
que ponto a ação levada a cabo foi apropriada aos fins e às circunstâncias;
note-se que isto não implica ratificar a opção de acordo com os nossos critérios
morais121. a explicação racional é uma tentativa para atingir um tipo de equi-
líbrio lógico no termo do qual uma ação está em consonância com o cálculo
efetuado. Nós procuramos uma explicação justamente quando a ação do sujeito
não bate certo com aquilo que nós sabemos dele e, por isso, procuramos
reconstituí-la.
o conceito de equilíbrio lógico permite a Dray guardar a devida distância
da compreensão por empatia, por projeção ou por identificação e, simultanea-
120
Na sua teoria da história como re-apresentação da experiência passada, collingwood
defende que para apreender a verdadeira natureza dos acontecimentos históricos particulares
é necessário penetrar no interior dos eventos e discernir os pensamentos dos agentes histó-
ricos em causa. o historiador tem de repensar, em seu espírito, estes pensamentos, o que
acarreta uma reconstrução pessoal da situação em que os agentes se encontravam e o modo
como a encaravam. cf. collingwood 2001: 221-324 e 1946b, in gardiner 1959: 249-262.
121
«Justifier, ce n’est pas ratifier le choix selon nos critères moraux, et dire: «ce qu’il
a fait, je l’aurais fait aussi», c’est peser l’action en fonction des buts qui sont ceux de
l’agent, de ses croyances même erronées, des circonstances telles qu’il les a connues»
(ricœur, TR i, 231).
118 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
mente, subtrair a sua explicação à crítica hempeliana. Para atingir este ponto de
equilíbrio, é preciso todo um trabalho documental de reconstrução que passa
pela reunião por via indutiva das provas materiais que permitam ao historiador
apreciar o problema tal como o agente o viu. trata-se de um processo traba-
lhoso, aberto a retificações, tal como a análise causal.
ricœur verifica que Dray não estabeleceu quaisquer ligações entre a sua
análise e a construção narrativa e, no entanto, elas são evidentes. o autor
observa que uma explicação através de razões comporta um tipo de generali-
zação ou de universalidade diferente do de uma lei empírica, de acordo com a
seguinte fórmula: «se y é uma boa razão para A fazer x, y seria uma boa razão
para qualquer um suficientemente parecido com A fazer x em circunstâncias
suficientemente semelhantes» (apud ricœur, TR i, 232).
reconhece-se, nesta fórmula, a probabilidade de que falava aristóteles na
Poética: «o que um homem diria ou faria necessária ou verosimilmente». o
autor canadiano fixou-se de tal maneira na polémica contra o modelo nomoló-
gico e na distinção do princípio de uma ação de uma generalização empírica
que descurou este entrecruzamento da teoria da história com a teoria da narra-
tiva; o mesmo não sucedeu com a teoria da ação, como já vimos.
o maior entrave que ricœur encontra nestas propostas de Dray é a difi-
culdade deste modelo de explicação através de razões, na medida em que cruza
a teoria da história com a teoria da ação, dar conta da razão de ações atribuídas
a agentes não individuais, isto é, agentes coletivos. este é o ponto fraco de
toda a teoria narrativista, como a seu tempo teremos oportunidade de constatar.
as três respostas sugeridas por Dray para tentar resolver este problema são cla-
ramente insuficientes, pois obrigam a considerar o processo social equivalente
à soma dos processos individuais analisados em termos intencionais e a consi-
derar por simplesmente irracional a brecha que os separa. De facto, o que
parece distinguir a explicação histórica da explicação da ação através de razões
é, em primeiro lugar, a dimensão dos fenómenos que a primeira estuda, fenó-
menos relativos a entidades de caráter social, irredutíveis à soma dos seus indi-
víduos; em segundo, o surgimento de efeitos irredutíveis à soma das intenções
dos seus membros, logo, dos seus cálculos; por fim, as mudanças históricas
irredutíveis às variações do tempo vivido por cada um dos indivíduos.
a teoria da ação desenvolvida por W. Dray não vai além da que ricœur
desenvolveu sob o título de mimesis I. o filósofo francês termina esta incursão
pela obra do autor canadiano a franquear a via para uma reflexão futura em
torno das quase-personagens, ao questionar-se se um tratamento “narrativista”
da compreensão histórica, que se valesse dos recursos da inteligibilidade narra-
tiva da mimesis II, não poderia superar este fosso entre a explicação por razões
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 119
122
«l’intérêt, pour notre propre investigation, consiste très exactement dans cette
approximation sans annexion du domaine de la compréhension par un modèle issu de l’en-
richissement de la logique propositionnelle à l’aide de la logique modale et de la théorie des
systèmes dynamiques» (TR i, 236). ricœur já antes havia recorrido a von Wright, seja no
artigo por nós comentado sobre a dialética explicação/compreensão ao nível da teoria da ação
seja em «le discours de l’action», in D. tiffeneau (org.), La Sémantique de l’Action, Paris,
1977, 1-137. Dessa vez foi para criticar a generalização indiscriminada da oposição entre
“motivo” e “causa”.
120 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
sistemas físicos dinâmicos que gera condições propícias para acolher a reformu-
lação lógica de toda a problemática da compreensão.
esta aproximação faz-se por intermédio da explicação causal e não da
análise causal. considerando um estado terminal, a análise causal interroga-se
sobre as causas da vinda e da composição do dito estado terminal em termos
de condições necessárias e suficientes. É preciso distinguir condição necessária
de condição suficiente. Quando dizemos que p é a condição suficiente de q,
estamos a dizer que todas as vezes que p, então q (p é suficiente para assegurar
a presença de q). Dizer que p é a condição necessária de q, significa que todas
as vezes que q, então p (q pressupõe a presença de p). É a diferença de sen-
tidos, progressivo ou regressivo, que distingue os dois tipos de condições.
a explicação causal distingue-se da análise causal porque nesta última
exploramos as relações de condicionalidade no interior do sistema, ao passo
que na primeira é uma ocorrência individual de um fenómeno genérico (acon-
tecimento, processo, estado) que é dado e procuramos em que sistema este
fenómeno genérico – explanandum – pode ser ligado a um outro segundo uma
relação de condicionalidade.
ricœur sublinha em que medida a passagem da análise causal à explica-
ção causal e a aplicação a esta última da diferenciação entre condição neces-
sária e condição suficiente representa um passo significativo em direção das
ciências humanas.
la relation de condition suffisante régit la manipulation (en produisant p, on fait
arriver q); la relation de condition nécessaire régit l’empêchement (en écartant p,
on empêche tout ce dont p est une condition nécessaire). c’est en termes de
condition suffisante qu’on répond à la question: pourquoi tel type d’état est-il
arrivé nécessairement? en revanche, c’est en termes de condition nécessaire, mais
non suffisante, qu’on répond à la question: comment a-t-il été possible que tel type
d’état arrive? Dans l’explication du premier groupe, la prédiction est possible; les
explications du deuxième groupe n’autorisent pas la prédiction, mais la rétrodic-
tion, en ce sens que, partant du fait que quelque chose est arrivée, nous inférons,
à rebours du temps, que la condition antécédente nécessaire doit s’être produite et
nous en cherchons les traces du présent, comme c’est le cas en cosmologie, en
géologie, en biologie, mais aussi, comme on le dira plus loin, dans certaines expli-
cations historiques [TR i, 240].
com esta nota, ricœur abre caminho para as teses de tipo narrativista,
que propõem uma reabilitação da narrativa.
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 123
123
«l’attention aux procédures textuelles, narratives, syntaxiques par lesquelles l’his-
toire énonce son régime de vérité conduit à se réapproprier les acquis des travaux de toute
la filiation narratologiste particulièrement développée dans le monde anglo-saxon et connue en
France grâce à ricœur» (Dosse 2006: 27-28).
124 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
e sabendo que esta mesma ação pode ser alvo de várias descrições, a frase nar-
rativa é apenas uma das descrições possíveis da ação humana.
renunciando a qualquer “filosofia substantiva” da história, ou seja, qual-
quer filosofia da história de tipo hegeliano, devido à sua pretensão de apreender
o todo da história, devido ao seu caráter profético de tentar extrapolar o futuro
a partir do passado, Danto recusa qualquer história do futuro e do presente,
pois que as frases narrativas apenas redescrevem acontecimentos anteriores à
luz de acontecimentos posteriores, desconhecidos dos agentes ou pacientes da
primeira ocorrência124. trata-se de uma descrição post eventum, baseada na assi-
metria temporal entre um facto anterior que é descrito e o facto ulterior sob a
descrição do qual o primeiro é descrito.
esta teoria da frase narrativa desenvolvida por Danto começa por contes-
tar o preconceito de um passado determinado, fixo, eternamente parado no seu
ser, enquanto só o futuro seria aberto, não decidido, contingente. só um cro-
nista ideal poderia ser testemunha e transmissor absolutamente fiel e seguro de
um passado inteiramente terminado, na medida em que apenas ele poderia fazer
a transcrição instantânea, completa, definitiva e por ordem cronológica dos
acontecimentos testemunhados por si (cf. Danto 1965: 149). ainda assim, este
tipo de testemunho perderia eficácia, pois o seu desconhecimento do futuro não
lhe permite fazer descrições narrativas, já que a verdade integral acerca de
determinado evento só pode ser conhecida posteriormente (por vezes, muito
tempo depois) à sua ocorrência. isto faz com que nenhum evento possa ser
atestado por testemunhas imediatas, só os historiadores podem contar esta his-
tória (story)125.
124
em suma, o defeito das filosofias substantivas da história é escrever no futuro as
frases narrativas que só são possíveis no passado. mas não é seguro que aquilo que os filó-
sofos da história substantiva tentam fazer seja produzir acerca do futuro o mesmo tipo de
asserções que os historiadores fazem sobre o passado. ricœur observa muito bem que este
argumento de Danto só em parte se pode imputar à Filosofia da história, pois esta não está
limitada às descrições através de frases narrativas: «l’argument est impeccable aussi long-
temps qu’il est formulé en termes négatifs: si la philosophie de l’histoire est la pensée du tout
de l’histoire, elle ne peut être l’expression du discours narratif approprié au passé. mais l’ar-
gument ne peut éliminer l’hypothèse que le discours sur le tout de l’histoire ne soit pas de
nature narrative et constitue son sens par d’autres moyens. la philosophie de l’histoire n’est
assurément pas narrative. l’anticipation du futur dans une philosophie ou une théologie de
l’espérance, n’est pas non plus narrative. au contraire, la narration y est réinterprétée à partir
de l’espérance, certains événements fondateurs – l’exode, la résurrection – étant interprétés
comme jalonnant l’espérance» (TR i, 258).
125
«même un témoin idéal ne pourrait pas dire, en 1789 par exemple, que la révo-
lution Française commence. il ne pourrait non plus dire, en 1715, que l’auteur du “Neveu de
rameau” vient juste de naître» (ricœur 1980, in tiffeneau 1980: 10).
126 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
126
«[the] most general characteristic [of narrative sentences] is that they refer to at
least two time separated events though they only describe (are only about) the earliest event
to which they refer» [Danto, 1965, 143]. «the class of descriptions i am concerned with refer
to two distinct and time-separated events, e-1 and e-2. they describe the earliest of the
events referred to» (Danto 1965: 152).
127
«“Being a cause” may indeed be a special case of the sort of characterization of
events which narrative description affords. causes after all cannot be witnessed as causes:
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 127
Hume pointed this out long ago. to say of e-i that it caused e-2 is to give a description
of e-i by referring to another event (e-2) which stands as a necessary condition for e-i –
under the appropriate description. if e-2 fails to occur, if it is false that “e-2 takes place”,
then it would follow that “e-i caused e- is in turn false. From this it does not follow that
e-i is a sufficient condition for e-2. We would presumably not want to say in general that
every cause of an event is a sufficient condition for that event. Nor again would we want
necessarily to say that e-2 is a necessary condition for e-i. What it would be proper to say
is that the occurrence of e-2 is a necessary condition for e-i being a cause, or more pre-
cisely, a cause of e-2» (Danto 1965: 157).
128
«[...] retroactive re-alignment of the Past [..]» (Danto 1965: 168)
128 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
zar o caráter intencional da própria ação129. É esta diferença que contribui para
distinguir a teoria da ação da teoria da história, pois, como refere arthur Danto:
«for the whole point of history is not to know about actions as witnesses
might, but as historians do, in connection with later events and as parts of tem-
poral wholes» (1965: 183).
uma última consequência epistemológica desta análise dá conta de que
não existe história do presente, no sentido estritamente narrativo do termo.
escrever sobre o nosso presente não seria mais do que antecipar o que os his-
toriadores futuros poderiam, eventualmente, vir a escrever sobre nós, mas nós
não sabemos o que dirão de nós os historiadores do futuro. Não só não sabe-
mos que acontecimentos terão lugar, como também não sabemos que aconteci-
mentos serão considerados importantes. só sabendo de antemão os interesses
dos historiadores no futuro é que poderíamos prever as descrições nas quais
incluirão as nossas ações. comenta ricœur que a simetria entre explicar e pre-
dizer, característica das ciências nomológicas, é fraturada mesmo ao nível do
enunciado histórico (TR i, 262).
relativamente ao contributo da frase narrativa para o esclarecimento da
relação entre explicação histórica e compreensão narrativa não é possível adian-
tar muito, uma vez que Danto nunca trata o problema de forma assertiva e
aberta. sabe-se que esta análise das frases narrativas não esgota o problema da
teoria da história, uma vez que Danto nunca tem a pretensão de afirmar que
um texto histórico se resume a uma sucessão de frases narrativas. as constri-
ções impostas à descrição verdadeira de um acontecimento pela estrutura tem-
poral da frase narrativa constituem somente o que ele designa de «minimal cha-
racterization of history» (1965: 25). a escolha da frase narrativa como
constrição minimal poderia levar-nos a concluir que os enunciados acerca de
acontecimentos datados ou pontuais à luz de outros acontecimentos datados ou
pontuais constituem os átomos lógicos do discurso histórico. Na verdade, pelo
menos até ao capítulo X do livro, só se fala de «true descriptions of events in
their past» em oposição à pretensão dos filósofos da história de descrever tam-
bém «events in their future» (Danto 1965: 25). Fica implícita a ideia de que
explicação e descrição – no sentido da frase narrativa – são operações impli-
cadas uma na outra. Nada indica que o discurso histórico necessite de conec-
tores diferentes da estrutura da frase narrativa. Para ele, qualquer narrativa é já
explicativa, na medida em que estabelece conexões entre os factos que relata;
129
«[...] frequently and almost typically, the actions of men are not intentional under
those descriptions given of them by means of narrative sentences» (Danto 1965: 182).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 129
não é concebível que uma narrativa seja uma mera ordenação cronológica de
eventos. É por isso que explicar e descrever não se distinguem. a noção de
intriga ou de estrutura narrativa parece reger-se pela lógica da frase narrativa,
como se a descrição de um facto anterior em função de um posterior fosse já
uma intriga em miniatura. uma narrativa, ao selecionar factos, ao estabelecer
laços pertinentes entre eles, tornando-os significativos, parece ser uma expansão
da frase narrativa. mas a relação entre frase e texto nunca é claramente abor-
dada.
ricœur verifica que o assunto surge, mais tarde, quando se trata de ave-
riguar se há lugar na história para a aplicação do modelo explicativo nomoló-
gico, sendo que a narrativa é já naturalmente uma forma de explicação. Danto
parece não se opor totalmente a esta hipótese, apenas se limita a observar a
inutilidade da operação por redundância.
Danto, en effet, ne s’oppose pas de front à Hempel: il se borne à observer que
les partisans du modèle nomologique, si soucieux de la structure forte de l’expla-
nans, ne voient pas que cet explanans fonctionne dans un explanandum qui est
déjà un récit, donc qui est déjà “couvert” par une description qui vaut explication.
on ne peut couvrir un événement par une loi générale que s’il figure dans le lan-
gage comme un phénomène sous une certaine description, donc inscrit dans une
phrase narrative. Dès lors, Danto peut être beaucoup plus libéral et ambivalent que
William Dray à l’égard du modèle nomologique [ricœur, TR i, 265].
propõe que este hiato entre frase narrativa e texto narrativo seja coberto pela
noção de followability.
gallie advoga que qualquer que seja o conteúdo da compreensão ou da
explicação histórica este deve ser sempre avaliado pela sua relação com a nar-
rativa da qual provém e para o desenvolvimento da qual contribui130. Dado
importante a reter: a explicação histórica provém de um discurso que tem já
uma forma narrativa e existe em função dessa mesma forma narrativa. a forma
narrativa é pois, simultaneamente, a matriz e a estrutura de acolhimento da
explicação, mas esta tese não adianta nada acerca da estrutura da própria expli-
cação. em todo o caso, o autor desenvolve a sua tese assente em dois objetivos
fundamentais: por um lado, procura entender quais são os recursos inteligíveis
da compreensão que fundam a explicação; por outro, procura o que falta à
compreensão para que esta necessite do suplemento da explicação. o conceito
de followability tem o mérito de satisfazer as duas questões.
Para começar, interrogamo-nos sobre a natureza de uma história (story)
narrada e depois sobre o que é seguir uma história. atentemos na noção de
história:
every story describes a sequence of actions and experiences of a number of peo-
ple, real or imaginary. these people are usually presented in some characteristic
human situation, and are then shown either changing it or reacting to changes
which affect that situation from outside. as these changes and the characters’ reac-
tions to them accumulate, they commonly reveal hitherto hidden aspects of the
original situation and of the characters: they also give rise to a predicament, call-
ing for urgent thought and action from one or more of the main characters. [...]
Whether or not the main characters respond successfully to the predicament, their
response to it, and the effects of their response upon the other people concerned,
brings the story to within sight of its conclusion [1964: 22].
esta noção de história (story) não anda muito longe da noção de mise en
intrigue apresentada por ricœur. gallie unicamente não se refere à intriga e às
suas constrições estruturais, preferindo destacar as condições subjetivas sob as
quais uma história é aceitável e que conferem à história a aptidão para ser
seguida. seguir uma história significa compreender as sucessivas ações, pensa-
mentos e sentimentos dos carateres descritos enquanto seguem determinado
130
«i have tried to analyse what it means to follow a narrative and have argued that
whatever understanding and whatever explanations a work of history contains must be
assessed in relation to the narrative from which they arise and whose development they sub-
serve» (gallie 1964: 9).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 131
131
«it is only when things become complicated and difficult – when in fact it is no
longer possible to follow them – that we require an explicit explanation of what the char-
acters are doing and why. But the more skilful the story-teller, the rarer will be the intrusion
of such explicit explanations» (gallie 1964: 22-23].
132
«[...] the conclusion of a story is essentially a different kind of conclusion form that
which is synonymous with “statement proved” or “result deduced or predicted”. the conclu-
sion of any worthwhile story is not something that can be deduced or predicted, nor even
something that can be seen at a later stage to have been revealed at some earlier stage» (gal-
lie 1964: 23).
133
explica gallie que, na linha da tradição filosófica, contingências são coisas que
indubitavelmente temos de aceitar, não sendo obrigatório que sejam intelectualmente aceitá-
veis, ou seja, por definição, o que é contingente está fora do nosso controlo intelectual (cf.
gallie 1964: 30).
134
«We should notice here that perhaps of greater importance for stories than the pre-
dictability relation between events is the converse relation which enables us to see, not indeed
that some earlier event necessitated a later one, but that a later event required, as its neces-
sary condition, some earlier one» (gallie 1964: 26).
132 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
135
«si cette continuité narrative entre “story” e “history” a été si peu remarqué dans
le passé, c’est parce que les problèmes posés par la coupure épistémologique entre fiction et
histoire, ou entre mythe et histoire, on fait porter toute l’attention sur la question de la preuve
(évidence), aux dépens de la question plus fondamentale de savoir ce qui fait l’intérêt d’un
ouvrage d’histoire. or c’est cet intérêt qui assure la continuité entre l’histoire au sens de
l’historiographie et le récit ordinaire» (ricœur, TR i, 269).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 133
de verificar até que ponto o que foi dito para o género story vale também para
history. e o que foi dito para story, recapitulamo-lo, é que seguir uma história
«is a teleologically guided form of attention. We are pulled along by our sym-
pathies towards a promised yet always open conclusion, across any number of
contingent, surprising events, but always on the understanding that these will
not divert us hopelessly from the vaguely promised end» (gallie 1964: 65).
Da história narrativa – a única que gallie toma como paradigma – diz-
-se que ela deve lidar com ações humanas, projetos e resultados que podemos
reconhecer como sendo semelhantes aos nossos (cf. ibid.: 52). logo, nem todo
o conhecimento do passado humano pode ser considerado história; e não pode
haver história de seres humanos ou de sociedades que nos sejam totalmente
alheias, que nos sejam impermeáveis ou que não pertençam connosco a um
único sistema de comunicação, do qual qualquer história é sempre apenas um
fragmento ou um segmento. Para serem estudadas como história, um conjunto
de ações humanas passadas devem ser sentidas pelos membros de um determi-
nado grupo humano como pertencentes ao seu passado, e devem ser inteligíveis
e bem compreendidas do ponto de vista dos seus interesses presentes. É este
facto, por exemplo, que dá origem ao muito discutível axioma que proclama
que toda a história é contemporânea.
Voltando ao conceito de story, questiona-se se esta, de algum modo, pode
contribuir para perceber o que é específico da compreensão histórica; porém,
antes, é preciso averiguar se a narrativa é indispensável em qualquer história e,
se sim, qual o seu lugar e função face a outros aspetos e características da his-
tória, como as discussões, as explicações e as análises.
as histórias que interessam abordar são aquelas que visam apreender
«some major achievement or failure of men living and working together, in
societies or nations or any other lastingly organized groups» (ibid.: 65).
são assuntos típicos destas histórias a unificação ou a desintegração de
um império, a ascensão e a queda de uma classe, de um movimento social, de
uma seita religiosa ou de um estilo artístico, a invenção de algo muito influente
ou a realização de uma reforma moral.
mesmo admitindo que cada trabalho genuinamente histórico deve conter
exercícios da razão, de julgamento, hipóteses e explicações, ainda assim não
pode dispensar duas classes de características fundamentais que qualificam a
historiografia como uma espécie do género narrativo: «history is a species of
the genus story» (ibid.: 66). Primeiro, a leitura das obras históricas deriva da
nossa competência para seguir narrativas: apreciar e, em certo sentido, usar um
livro ou um capítulo de história significa lê-lo do princípio ao fim, segui-lo de
lés a lés, à luz do seu prometido e entrevisto desfecho, através de uma suces-
134 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
136
«[...] every successful work of history (of the kind that interests us all most) must
be followable, as a unity, in the way that a story is» (gallie 1964: 68).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 135
137
«a trend or tendency is something that we see gradually disclosed through a suc-
cession of events; it is something that belongs to the events which we are following and no
others; it is, so to speack, a pattern-quality of those particular events. it would thus seem that
our appreciation of any historical trend must depend upon, or be a result of, our following
a particular narrative, a narrative of events which happen to be arranged in such a way that,
roughly speaking, they move in some easily described relation to some fixed point of refer-
ence» (gallie 1964: 70).
136 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
138
«[...] these real (although abstract) entities have histories; and historians can trace
out these histories and can render them followable even when the names and separate indi-
vidualities of all concerned in them are entirely lost» (gallie 1964: 78).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 137
139
«applying generalisations so as to be able to follow a developing performance or
game or story or history is thus basically different from applying them with a view to deduc-
ing, and in a particular predicting, some future event» (gallie 1964: 90).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 139
lity» (ibid.: 90). No caso das narrativas ficcionais, as explicações servem ape-
nas para evitar que a narrativa deslize para a obscuridade e para a incoerência.
mas na historiografia, tal como nas ciências, as explicações têm um papel posi-
tivo: «Not only do they enable the historian to classify and clarify and endorse
facts which at first seem puzzling or improbable, they help him to enlarge his
vision of the context and potential relevance of particular actions and episodes»
(ibid.).
o historiador não espera que as explicações eliminem as contingências,
mas o ajudem a melhor compreender o contributo das contingências para o
desenrolar da história. o seu interesse não é, pois, deduzir nem predizer, mas
compreender melhor a complexidade dos encadeamentos que, ao cruzarem-se,
concorreram para a ocorrência do evento em causa. Nisto o historiador distan-
cia-se do físico. enquanto este procura aumentar o campo das generalidades,
reduzindo as contingências, o historiador apenas quer compreender melhor o
que aconteceu140. Há mesmo campos de estudo onde as contingências assumem,
para o historiador, um interesse primaz: conflitos entre estados ou nações, lutas
sociais, descobertas científicas ou inovações artísticas. o interesse pelas contin-
gências não significa que o historiador dá primazia ao sensacional. De um
modo análogo ao que foi descrito no âmbito da peripeteia aristotélica, a preo-
cupação do historiador consiste em incorporar estes acontecimentos acidentais
numa narrativa aceitável, logo, inscrever a contingência num todo. só assim um
facto suscetível de figurar numa narração pode ser “sequível”141.
tendo definido o exercício da capacidade para seguir uma história como
o fundamento da compreensão histórica, importa esclarecer o contributo ancilar
das leis que o historiador pede emprestadas às ciências para essa atividade: «to
follow an historical narrative always requires the acceptance, from time to time,
140
«[...] there is a clear and indispensable distinction between studies in which our pre-
dominant interest is to increase the range and accuracy of our generalisations and studies in
which our predominant interest is in how things atually went, atually developed, in teaching
some already broadly know result. Now it seems to me quite clear that the distinction
between these two types of study is equivalent to the distinction between studies in which
contingencies are unimportant either because they cancel each other out or for some other
reason, and studies in which, as in history, certain contingencies are seized upon because they
help us to see how other things atually worked out the way they did» (gallie 1964: 92-93).
141
«the basic and constant aim of the historian is to present an acceptable, because
evidenced and unified, narrative: chance developments, creative developments, necessary or
foreseeable developments must alike be woven into the whole design, and their categorical
diversity is indeed liable to be lost under the even texture of a great historical style» (gallie
1964: 103).
140 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
of explanations which have the effect of enabling one to follow further when
one’s vision was becoming blurred or one’s credulity taxed beyond patience»
(ibid.: 105). ou ainda: «[...] the characteristic function of explanations in his-
tory is an ancillary one. it is, to repeat, to enable us to follow a narrative when
we have got stuck, or to follow again more confidently when we had begun to
be confused or bewildered (ibid.: 107).
as explicações em história desempenham o papel de auxiliar no segui-
mento da narrativa, quando se obscurece a nossa visão do seu encadeamento ou
quando a nossa capacidade de aceitar a visão do autor é solicitada até ao ponto
de rutura142. a explicação histórica não é uma versão enfraquecida do modelo
dedutivo das ciências naturais. Não se trata de aplicar o modelo nomológico de
“covering-law” à história.
toda a narrativa é self-explanatory, isto é, explica-se por si mesma, no
sentido de que contar o que sucedeu é já explicar por que sucedeu. Nesse sen-
tido, seguir uma história implica conhecimento e aceitação de generalizações do
comportamento humano, sejam elas de ordem classificatória, causal ou de
outras teorias da ação humana, generalizações que podemos encontrar já nas
histórias quotidianas sobre situações, funções, motivos, fins, provações e saídas.
Nada obsta, então, a que generalizações e explicações cada vez mais complexas
e importadas de outras ciências se venham interpolar na textura histórica; sig-
nificando que, se por um lado, qualquer narrativa se explica por si própria, por
outro, nenhuma narrativa histórica se explica apenas por si própria; está sempre
em demanda da explicação a interpolar no seu tecido textual, porque fracassou
a explicar-se a si mesma e, por isso, precisa de ser de novo colocada sobre os
carris143. mas aceitar estas generalizações não equivale a pôr um caso sob a
alçada de uma lei, é sim relançar o processo de seguir uma história quando há
um bloqueio ou um obscurecimento. Deste modo, o critério de uma boa expli-
cação é pragmático, já que a sua função é altamente corretiva. a explicação por
razões proposta por W. Dray é a mais apropriada para esta exigência; recons-
truímos o pensamento de um agente quando uma ação nos surpreende, nos
intriga, nos deixa perplexos.
142
«this, i maintain, is the peculiar and all-important role of explanations in history:
they are essentially aids to the basic capacity or attitude of following, and only in relation
to this capacity can they be correctly assessed and construed» (gallie 1964: 105).
143
«[...] no historical narrative is self-explanatory, every historical narrative stands in
need of the kind of explanation which is intruded into it because it has failed to be self-
explanatory, because it needs to be righted, needs to be got back on the rails again, so that
we can follow its progress as before» (gallie 1964: 109).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 141
todavia, a explicação nunca vai além desta função ancilar e corretiva rela-
tivamente à compreensão aplicada à followability da narrativa histórica.
144
«reste que nul n’est allé aussi loin que mink dans la reconnaissance du caractère
synthétique de l’activité narrative» (ricœur, TR i, 276).
142 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
reflexões mais relevantes de mink, com o fito de explicitarmos muitos dos con-
ceitos e ideias-chave que formam o substrato da filosofia ricœuriana.
a apologia de uma autonomia da compreensão histórica baseada no ato
do julgamento surge pela primeira vez no artigo The autonomy of historical
understanding (1966). o autor começa por refutar as teses do modelo nomoló-
gico e do seu método hipotético-dedutivo, que concebe a história como uma
protociência a caminho do estatuto de ciência145. em ordem a instaurar a auto-
nomia histórica, resgatando-a da sombra da protociência, mink precisa de lhe
encontrar um método alternativo de explicação. Propõe-se para isso examinar
seis características fundamentais da prática e da descrição histórica, comum-
mente aceites entre os historiadores.
em primeiro lugar, os historiadores questionam por que podem ambicionar
explicar factos do passado, mas não prever o futuro, nem sequer no nível de
incompletude e de generalidade com que explicam o passado. a resposta é que
método histórico e método científico são necessariamente divergentes: explicar
em história não equivale a subsumir factos sob leis gerais, o que esclarece a
incapacidade de previsão dos historiadores. em história, explicar é amiúde esta-
belecer coligações, o que significa explicar um acontecimento descrevendo as
suas relações intrínsecas com outros acontecimentos e situá-los no seu contexto
histórico146. a descrição de explicações como coligativas significa que para a
compreensão histórica de um facto deve conhecer-se os seus antecedentes e os
seus consequentes; o historiador deve olhar para o antes e para o depois; sig-
nifica ainda que de certa forma podemos compreender um facto particular loca-
lizando-o corretamente numa sequência narrativa, da mesma forma que pode ser
classificado como exemplo de uma lei. a narrativa pode, pois, resultar de uma
resposta narrativa à questão “e depois, o que aconteceu?”.
Questiona-se também por que é que as hipóteses não são falsificáveis em
história como o são nas ciências. É que os historiadores tendem a ver as hipó-
145
«Bemused by the contradictions and ambiguities of “common sense” and ordinary
language, history as we know it is in the chrysalid stage of proto-science; and the apparent
differences between historical and scientific methods can be reconciled theoretically by analy-
sis and practically by increased methodological sophistication on the part of historians» (mink
1966: 66).
146
«it is to describe such mode that W. H. Walsh has revived Whewell’s term “col-
ligation”, by wich Walsh intends to describe “the procedure of explaining an event by tracing
its intrinsic relations to other events and locating it in its historical context.” explanation by
colligation, he suggests, is appropriate in cases where a purpose or policy has found expres-
sion in a series of actions each “intrinsically” related to the others in the series» (mink 1966:
71).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 143
teses não como potenciais leis mas como guias. Para o historiador, uma hipó-
tese não é uma lei experimentável mas um indicador para formular questões,
uma regra para delimitar o campo de inquirição e para determinar a relevância
da evidência. Para o cientista, a hipótese é o alvo, para o historiador é um sinal
de orientação.
em terceiro lugar, tenta explicar-se a necessidade de os historiadores
recorrerem à reconstrução imaginativa dos eventos que investigam, atividade
que definem como “insight” ou intuição147. contra este método de empatia psi-
cológica, defendido por Dilthey, croce e collingwood, que entendiam as ações
humanas como expressões de estados da mente que podiam ser re-experiencia-
dos pelos historiadores, insurge-se o ponto de vista da protociência, argumen-
tando que este método de compreensão (“insight”) não é suficiente quando se
investigam leis históricas. Para os críticos do método de compreensão, qualquer
exemplo que esteja sob uma lei é um exemplo anónimo, isolado do rico e deta-
lhado contexto com o qual o historiador trabalha. Na perspetiva da protociência,
o conceito de compreensão é equivalente ao de explicação e este, por sua vez,
identifica-se com o de predição. Para mink uma elucidação do conceito de
compreensão passa pela sua inclusão no contexto. uma visão global dos factos
passa pela sua compreensão num ato de julgamento que os apreende em con-
junto e não em série148. uma família é apreendida como um conjunto de pes-
soas interrelacionadas e não como uma série de pessoas mais as suas relações
individuais. É verdade que só se pode descrever uma família de acordo com o
último caso enunciado, ou seja, pessoa a pessoa, mas trata-se de uma conse-
quência acidental proveniente da discursividade da linguagem, que só pode
nomear individualmente cada um dos elementos do grupo passível de ser
apreendido simultaneamente como um todo. salvaguarda mink que esta visão
de conjunto não é um método nem uma técnica de prova ou um sistema lógico
de descoberta, mas um tipo de julgamento reflexivo (cf. 1966: 77).
mink constata também que, normalmente, os historiadores não aceitam
quaisquer conclusões, a menos que estejam ligadas a um argumento por eles
147
Devido à falta de correspondente em português, mantemos o termo no original
inglês. o termo português que me parece ter o significado mais próximo é o de “intuição”,
entendido literalmente como “ir dentro”.
148
«the minimal description of historical practice is that the historian deals with com-
plex events in terms of the interrelationship of their constituent events (leaving open entirely
the question whether there are “unit events” in history). even supposing that all of the facts
of the case are established, there is still the problem of comprehending them in an act of
judgement which manages to hold them together rather than reviewing them seriatim» (mink
1966: 77).
144 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
149
«What is here called “synoptic judgment” is, i think, both a characterization of the
type of historical thought in the process of research and also a description of its final aim»
(mink 1966: 82).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 145
causais. todavia, são duas operações bem distintas: «the logic of confirmation
is appropriate to the testing of detachable conclusions, but ingredient meanings
require a theory of judgment» (ibid.: 84). o facto de todos os eventos ocorre-
rem sequencialmente no tempo não significa que o historiador tenha de os
reproduzir na mente por ordem sequencial para os compreender, mas deve, num
ato de julgamento, reunir na mente os factos que ninguém poderia vivenciar de
uma só vez150.
Por último, verifica-se que os historiadores se dirigem a um público uni-
versal e não apenas a uma elite de eruditos. isso explica-se pelo teor da sua
comunicação que é um julgamento mais próximo da phronesis aristotélica
(conhecimento prático ou do senso comum) do que da ciência: o problema do
historiador torna-se inteligível se for entendido como uma «tentativa para
comunicar a sua experiência de ver-as-coisas-em-conjunto no necessário estilo
narrativo de uma coisa-após-a outra» (mink 1966: 85)151.
mesmo que tivéssemos a possibilidade de visionar, através de um ecrã, o
desenrolar detalhado dos acontecimentos passados, precisaríamos da compreen-
são histórica para tornar inteligível este confuso panorama.
um aspeto é comum às seis características da historiografia sobre as quais
centrámos a nossa atenção: a ideia de síntese histórica ou de história interpre-
tativa. É esta especificidade como modo de compreensão que uma teoria do
conhecimento histórico deve reconhecer se quer justificar e preservar a autono-
mia metodológica da história. tentou demonstrar-se que a história difere da
ciência não só porque lida com diferentes tipos de factos e de modelos de
explicação, mas porque o historiador cultiva um hábito muito próprio: «[...] it
cultivates the specialized habit of understanding which converts congeries of
events into concatenations, and emphasizes and increases the scope of synoptic
judgement in our reflection on experience» (ibid.: 88).
Do mesmo modo que a empatia não substitui a prova, também o julga-
mento sinóptico não pretende substituir uma metodologia. mink reconhece que
deixa em aberto questões epistemológicas como a de saber se as sínteses inter-
150
«But this is the same type of synoptic judgment by which a critic “sees together”
the complex of metaphor in a poem, by which the clinical psychologist “sees together” the
responses and history of a patient, or by which the leader of a group “sees together” the
mutually involved abilities, interests, and purposes of its members. [...] success in any of
these enterprises depends at least as much on the ability to make synoptic judgments as on
the correctness of theory» (mink 1966: 84).
151
«[...] an attempt to communicate his experience of seeing-things-together in the nec-
essarily narrative style of one-thing-after-another».
146 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
152
«gallie does not define “contingent” but he remains stoutly phenomenological in
using it: it always means for him “surprising” or “unexpected in the circumstances”, rather
than “not subject to law” or “not predictable in principle”. so events can be contingent in
his sense which in fact we [...] do not believe to be uncaused or even unpredictable, given
knowledge which just happens not to be available in the circumstances» (mink 1968: 134).
153
«[...] gallie’s account is based entirely on the experience of following a story for
the first time. But history is not the writing but the rewriting of stories, and the reflective
reading of history depends on knowing that this is the case. Here the analogy with following
a game in progress is most misleading. Forth historian the game is over (although it may be
a problem to say just when and how it ended); writing history, or reading it reflectively, is
not like watching a game with a “promised but open” outcome but rather like going over and
over our records of it and writing and rewriting our stories of it to reduce rather than to
exploit the contingencies of the events narrated» (mink 1968: 136).
154
«cette sorte de redescription est, comme celle de Danto, une description post even-
tum. mais elle met l’accent sur le processus de reconstruction à l’œuvre plutôt que sur la
dualité des événements impliqués par les phrases narratives (ricœur, TR i, 279: nota 2).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 147
155
«[...] tracing the lines backwards is exactly what an historian does, and there are
no contingencies going backwards [...]» (mink 1968: 136).
156
«and when we tell the story, we retrace forward what we have already traced back-
ward. thus what may be contingent in the occurrence of events is not in their narration [...]»
(ibid.).
157
«[...] it is not following but having followed which carries the force of understand-
ing» (mink 1968: 47, nota 9).
148 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
«a lógica da explicação deveria ter alguma coisa que ver com a fenomenologia
da compreensão; a primeira, espera-se, deveria servir para corrigir a segunda e
a segunda para enriquecer a primeira»158.
este comentário é uma pista preciosa para ricœur conciliar explicação e
compreensão.
outra falha assinalada é bem mais discutível e representa um risco muito
maior para a neutralização da categoria temporal da narrativa. mink censura
gallie por não distinguir categoricamente passado e futuro, ao conceber o pas-
sado como futuro passado e o futuro como passado futuro. a explicação para
o facto está no desejo de gallie de transferir a abertura e a contingência do
nosso futuro presente para a narrativa de eventos passados, pois parece-lhe que
não há outro modo de pensar esses eventos senão como tendo sido alguma vez
futuros. ricœur discorda desta análise por achar que futuros passados e passa-
dos futuros não são categoricamente a mesma coisa. o passado não é tão aca-
bado que não permita uma de re-significação retroativa, para a qual Danto cha-
mou – e muito bem – à atenção. Por fim, argumenta ricœur [TR i, 281], o
processo que consiste em percorrer de novo de trás para a frente o percurso
que já tínhamos feito de frente para trás pode dar azo à redescoberta de con-
tingências pertencentes ao passado quando era presente, ou seja, «pode restituir
uma espécie de admiração instruída, graças à qual as “contingências” encontram
uma parte da sua pujança inicial de surpresa» (ricœur, TR i, 281).
o filósofo francês tem interesse em acentuar esta ideia, na medida em que
ela lhe permite antecipar a hipótese, que confirmará mais à frente, deste poder
das contingências estar de algum modo associado ao caráter ficcional da com-
preensão histórica. Pode estar ligado, especula ele, ao aspeto da ficção que
aristóteles identifica como mimesis da ação. É ao nível das contingências ini-
ciais que determinados factos gozam da condição de terem sido futuros no
curso da ação que é reconstruída retrospetivamente. Nesse sentido, também
deve haver lugar para os futuros passados numa ontologia do tempo, na medida
em que o nosso tempo existencial é construído pelas configurações temporais
da história e da ficção em conjunto.
É, pois, sem surpresa, que ricœur constata na obra de mink uma tendên-
cia para despojar de qualquer traço temporal o ato da “apreensão de conjunto”,
característico do processo de configuração. a própria recusa de atribuir aos
acontecimentos narrados a condição temporal de terem sido futuros no passado
158
«the logic of explanation should have something to do with the phenomenology of
understanding; the former, one hopes, should serve to correct the latter and the latter to enrich
the former» (mink 1968: 135).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 149
159
Para uma caracterização mais detalhada dos vários modos, vid. mink 1970: 51-53.
150 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
160
[...] grasping together in a single mental act things which are not experienced
together, or even capable of being so experienced, because they are separated by time, space,
or logical kind. and the ability to do this is a necessary (although not a sufficient) condition
of understanding (mink 1970: 49).
161
«[...] the complicated relationships of parts which can be experienced only seriatim»
(mink 1970: 50)
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 151
162
«of course this is an unattainable goal, but it is significant as an ideal aim against
which partial comprehension can be judged. to put it differently, it is unattainable because
such comprehension would be divine, but significant because the human project is to take
god’s place» (ibid.).
152 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
163
«the more one comes to understand the atual relations among a number of events,
as expressed in the story or stories to which they all belong, the less one needs to remember
dates» (mink 1970: 57).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 153
164
título original: The content of the form. Narrative discourse and historical repre-
sentation, the Johns Hopkins university Press, Baltimore/london, 1987. seguimos a tradução
espanhola: El contenido de la forma: narrativa, discurso y representación histórica, Paidos,
Barcelona/Buenos aires/mexico, 1992.
165
Metahistory: The Historical Imagination in nineteenth-century Europe, the Johns
Hopkins university Press, Baltimore and london, 1973. seguimos a tradução espanhola:
Metahistoria: La imaginación histórica en la Europa del siglo XIX, Fondo de cultura eco-
nómica, méxico, 1992.
154 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
166
«mientras leía a los clásicos del pensamiento europeo del siglo XiX me pareció evi-
dente que para considerarlos como formas representativas de la reflexión histórica hacía falta
una teoría formal de la obra histórica. esa teoría es lo que he tratado de presentar en la intro-
ducción» (White 1992: 9).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 155
167
um dos artigos mais provocadores de White é justamente The Historical Text as
Literary Artifact, publicado inicialmente em Clio 3, 1974, e incluído na compilação de 1978:
The Tropics of Discourse, 81-100.
168
«o historiador e o poeta não diferem pelo facto de um escrever em prosa e o outro
em verso [...]. Diferem é pelo facto de um relatar o que aconteceu e o outro o que poderia
acontecer. Portanto, a poesia é mais filosófica e tem um caráter mais elevado do que a His-
tória. É que a poesia expressa o universal, a História o particular» (aristóteles, Poética:
1451b 1-5 [2004]).
156 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
169
White postula um nível profundo de consciência, através do qual o historiador rea-
liza um ato essencialmente poético, o da prefiguração do campo histórico, prefiguração esta
associada a quatro tropos literários: metáfora, metonímia, sinédoque e ironia. a teoria da pre-
figuração tropológica, que determina a forma como o historiador apreende os factos do campo
histórico, fica fora desta primeira incursão de ricœur pela obra de White por não contribuir
para o efeito explicativo da composição narrativa, objetivo primordial desta análise.
170
«las crónicas, hablando estrictamente, son abiertas por los extremos. en principio
no tienen inauguraciones, simplemente “empiezan” cuando el cronista comienza a registrar
hechos. Y no tienen culminación ni resolución, pueden proseguir indefinidamente. los relatos,
en cambio, tienen una forma discernible (aun cuando esa forma sea una imagen de un estado
de caos) que distingue los hechos contenidos en ellos de los demás acontecimientos que pue-
den aparecer en una crónica de los años cubiertos por su desarrollo» (White 1992: 17).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 157
171
los relatos históricos presentan las secuencias de sucesos que llevan de las inau-
guraciones a las terminaciones (provisionales) de procesos sociales y culturales de un modo
como no se espera que lo hagan las crónicas (White 1992: 17).
172
«en la crónica el hecho simplemente está “ahí” como elemento de una serie; no
“funciona” como elemento de un relato. el historiador ordena los hechos de la crónica en una
jerarquía de significación asignando las diferentes funciones como elementos del relato de
modo de revelar la coherencia formal de todo un conjunto de acontecimientos, considerado
como un proceso comprensible con un principio, un medio y un fin discernibles» (White
1992: 18).
173
«estas preguntas tienen que ver con la estructura del conjunto completo de hechos
considerado como un relato completo y piden un juicio sinóptico de la relación entre deter-
minado relato y otros relatos que podrían ser “hallados”, “identificados” o “descubiertos” en
la crónica. se pueden responder de varias maneras. llamo a esas maneras 1) explicación por
la trama, 2) explicación por argumentación, y 3) explicación por implicación ideológica»
(White 1992: 18).
158 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
174
«se llama explicación por la trama a la que da el “significado” de un relato
mediante la identificación del tipo de relato que se ha narrado. si en el curso de la narración
de su relato el historiador le da la estructura de trama de una tragedia, lo ha “explicado” de
una manera; si lo ha estructurado como comedia, lo ha “explicado” de otra. el tramado es
la manera en que una secuencia de sucesos organizada en un relato se revela de manera gra-
dual como un relato de cierto tipo particular. [...] un historiador determinado está obligado
a tramar todo el conjunto de relatos que forman su narrativa en una forma de relato general
o arquetípica» (White 1992: 18).
175
White distingue dois modos de explicação: a explicação da história e a explicação
do acontecimento. ricœur explica esta separação com a intenção de White de escapar aos
argumentos antinarrativistas dos partidários do modelo de Hempel: deixa para eles a organi-
zação da história em termos de causas e de leis e tira-lhes a explicação categorial ou arque-
típica própria da composição da intriga (TR i, 292, 293).
176
Northrop Frye, The Anatomy of Criticism: Four Essays, Princeton, 1957.
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 159
177
«Pero aquí distingo entre la trama de los hechos de una historia considerados como
elementos de un relato y la caracterización de esos hechos como elementos de una matriz de
relaciones causales que se presume existieron en provincias específicas del tiempo y del espa-
cio» (White 1992: 23).
178
«lo que está en juego aquí, por lo menos en un nivel de conceptualización, son
diferentes nociones de la naturaleza de la realidad histórica y de la forma apropiada que un
relato histórico, considerado como una argumentación formal, debe adotar» (White 1992: 24).
179
«siguiendo el análisis de stephen c. Pepper en su World Hypoteses, he distinguido
cuatro paradigmas de la forma que puede adotar una explicación histórica, considerada como
argumento discursivo: formista, organicista, mecanicista y contextualista» (White 1992: 24).
180
«con el término “ideología” quiero decir un conjunto de prescripciones para tomar
posición en el mundo presente de la praxis social y actuar sobre él (ya sea para cambiar el
mundo o para mantenerlo en su estado atual) (White 1992: 32).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 161
181
ricœur salienta que esta dimensão da compreensão histórica é fortemente subli-
nhada, em França, por marrou e aron. relembremos que estes autores defendiam, justamente,
a implicação do historiador no fazer da história, a consideração dos valores, e o laço entre
a história e a ação no mundo presente.
162 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
dades que regulam a sua própria leitura dos quatro grandes historiadores e dos
quatro grandes filósofos da história aos quais é consagrada a sua obra (cf.
1992: 39). todavia, estas afinidades não devem ser consideradas como combi-
nações necessárias dos modos para um determinado historiador. ao invés, a
tensão dialética que caracteriza a obra de qualquer historiador importante
advém geralmente do esforço em conciliar um modo de composição com um
modo de argumentação ou de implicação ideológica que não se coaduna bem
com ele. No entanto, esta tensão dialética deve evoluir dentro do contexto de
uma visão coerente do campo histórico completo182. só assim o estilo historio-
gráfico particular do historiador ganha a consistência e a coerência que definem
os seus atributos estilísticos distintivos. a base dessa coerência e dessa consis-
tência é, de acordo com H. White, de natureza poética e especificamente lin-
guística (1992: 39).
ricœur chama a atenção para o facto de esta tripla tipologia que carac-
teriza cada um dos modos e sobre a qual assenta a teoria do estilo historiográ-
fico não reivindicar nenhuma autoridade lógica. No caso particular dos quatro
modos de composição da intriga (romântico, trágico, cómico e satírico), são
produtos de uma tradição de escrita que lhes outorgou a configuração que o
historiador põe em prática ao escrever a sua obra. este aspeto da tradição é o
mais importante, porque o historiador, ao escrever, dirige-se a um público sus-
cetível de reconhecer as formas tradicionais da arte de narrar. Por conseguinte,
as estruturas não são regras inertes, não são classes resultantes de uma taxino-
mia a priori, são formas de uma herança cultural. se se pode dizer que
nenhum facto em si é à partida trágico ou cómico e que é a forma como o his-
toriador o codifica que o faz parecer trágico ou cómico, é porque a arbitrarie-
dade da codificação tem limites, impostos não pelos próprios factos mas pela
expetativa dos leitores que deverão reconhecer, através dos códigos, as figuras
da tradição literária. Diz H. White que a codificação dos factos em função de
uma determinada estrutura de intriga é um dos processos de que dispõe uma
182
P. ricœur vê nesta tensão dialética o germe da dialética concordância discordância,
gerada quer pela oposição entre os três modos que, tomados em conjunto, conferem às estru-
turas narrativas uma função explicativa quer pela conciliação de opostos nas várias formas de
compor intrigas, verificável não apenas entre vários escritores, mas mesmo no seio de uma
grande obra de história, como no caso da obra de Hegel (TR i, 299). o filósofo francês
comenta ainda, a propósito da Meta-história de H. White, que a noção de estrutura narrativa
é muito mais abrangente neste autor do que em qualquer outro autor narrativista e que a
noção de intriga ganha uma precisão pouco comum graças à sua posição de contraste entre
a história narrada e o argumento (TR i, 299).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 163
183
«[...] the encodation of events in terms of such plot structures is one of the ways
that a culture has of making sense of both personal and public pasts» (The Historical Text
as Literary Artifact, in White 1985: 85).
184
«the effect of such encodations is to familiarize the unfamiliar» (ibid.: 86).
185
«the historian shares with his audience general notions of the forms that significant
human situations must take by virtue of his participation in the specific processes of sense-
making which identify him as a member of one cultural endowment rather than other» (ibid.).
186
«ainsi est restitué, à travers son caractère de traditionalité, le caractère dynamique
de la mise en intrigue, même si son caractère générique est seul considéré. au reste, ce trait
se trouve compensé par la continuité que la notion de style historiographique rétablit entre
chronique, chaîne de motifs, intrigue, argument, implication idéologique. c’est pourquoi il est
permis – un peu contre H. White, mais beaucoup grâce à lui – de tenir la mise en intrigue
pour l’opération qui dynamise tous les niveaux d’articulation narrative. la mise en intrigue
est beaucoup plus qu’un niveau parmi d’autres: c’est elle qui fait la transition entre raconter
et expliquer» (ricœur, TR i, 300-301).
164 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
187
seguimos a tradução portuguesa: Paul Veyne, Como se escreve a história, edições
70, lisboa, 1983.
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 165
188
ao afirmar que um facto histórico não é só o que acontece, mas o que pode ser
contado ou o que já foi contado em crónicas, P. Veyne aproxima-se dos narrativistas ingleses
que temos vindo a estudar.
189
«[...] o não-acontecimental são os acontecimentos ainda não saudados como tais:
história dos solos, das mentalidades, da loucura ou da procura de segurança através dos tem-
pos. chamaremos portanto não-acontecimental à historicidade da qual não temos consciência
enquanto tal» (Veyne 1983: 32).
166 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
causas materiais, de fins e acasos, numa palavra, uma fatia de vida, que o his-
toriador recorta a seu bel-prazer e onde os factos têm as suas ligações objetivas
e a sua importância relativa» (ibid.: 48).
Não é obrigatório que esta intriga se organize de acordo com uma ordem
cronológica. ricœur reconhece que esta definição de intriga como combinação
de factos díspares está próxima da sua noção de síntese do heterogéneo190.
mesmo a história quantitativa que, preterindo as sequências cronológicas, opta
por séries de itens, precisa da intriga, o que faz com que pertença ao campo
da história. ao associar a história quantitativa à intriga, através do entrecruza-
mento de séries, o autor estende a noção de intriga até ao ponto em que a
dimensão temporal perde toda a importância. a noção de intriga de P. Veyne,
tal como a de aristóteles, acaba por ignorar a dimensão temporal, apesar de
conceberem ambos a intriga com princípio, meio e fim. a acronicidade em
aristóteles justificava-se pelo caráter universal que defendia para a Poética; em
Paul Veyne a razão é idêntica, expressa num aparente paradoxo entre individual
e específico.
Depois de negar que a história é uma relação de valores, o autor francês
afirma que o objetivo da história não é o individual mas o específico. com isto
o filósofo quer dizer que a história procura compreender os acontecimentos,
isto é, encontrar neles uma espécie de generalidade ou mais precisamente de
especificidade. específico significa assim, ao mesmo tempo, “geral” e “particu-
lar”. esta passagem da singularidade individual à especificidade equivale à pas-
sagem ao indivíduo como inteligível, já que o específico é a individualidade
compreensível:
a história propõe-se descrever as civilizações do passado e não salvar a memória
dos indivíduos; ela não é uma imensa recolha de biografias. [...] ela não se ocupa
dos indivíduos, mas do que eles têm de específico, pela simples razão de que,
como se verá, não há nada a dizer da singularidade individual [...] Que o indiví-
duo seja personagem principal da história, ou figurante entre milhões de outros, só
conta historicamente pela sua especificidade [Veyne 1983: 75].
190
«À mon avis, cette définition est tout à fait compatible avec la notion de synthèse
de l’hétérogène proposée dans notre première partie» (ricœur, TR i, 303)
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 167
191
«É histórico o que não é universal e o que não é singular. Para que isso não seja
universal, basta que haja nisso diferença; para que isso não seja singular, basta que seja espe-
cífico, que seja compreendido, que remeta para uma intriga» (Veyne 1983: 78).
168 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
192
«expliquer plus, c’est raconter mieux, et de toute manière on ne peut pas raconter
sans expliquer» (Veyne 1971: 132) ; «explicar mais é contar melhor, e de qualquer modo não
se pode contar sem explicar» (Veyne 1983: 122).
193
«[...] a explicação histórica leva mais ou menos longe a explicação dos fatores; por
outro lado, neste mundo sublunar, estes fatores são de três espécies. um é o acaso, a que
chamamos também causas superficiais, incidente, génio ou ocasião. outro chama-se causas,
ou condições, ou dados objetivos; nós chamar-lhe-emos causas materiais. o último é liber-
dade, a deliberação, a que nós chamaremos causas finais. o mínimo “facto” histórico com-
porta estes três elementos, se é humano; [...]» (Veyne 1983: 125).
170 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
explica só por incidentes ou ocasiões nem por causas económicas nem por
mentalidades, projetos ou ideias. Não existe nenhuma regra de ordenação destes
três aspetos, ou seja, reitera-se a ideia de que a história não tem método pró-
prio.
Paul ricœur entende o processo de retrodicção, teorizado por P. Veyne no
capítulo Viii (1983: 179-210), como uma exceção a esta tese que entende a
explicação em história como uma forma de fazer compreender, de descrever as
coisas tal como se passaram. Porque a retrodicção põe em jogo uma explicação
causal para um facto do passado cuja causa se desconhece, a explicação e a
compreensão aparecem como dois processos distintos. P. Veyne define o con-
ceito de retrodicção como uma operação indutiva de preenchimento de uma
lacuna da narrativa histórica por analogia com um enchimento análogo mas sem
falha numa outra série. No fundo, trata-se de tentar encontrar ou presumir a
melhor explicação para um problema acontecido, sempre que o documento seja
omisso, partindo da explicação de um acontecimento similar. No caso da pro-
posição «luís XiV tornou-se impopular porque os impostos eram demasiado
pesados», não tendo o historiador um documento que afirme que os impostos
foram realmente a causa da impopularidade do rei e sabendo somente que os
impostos eram pesados e que, por outro lado, o rei se tornou impopular no
final do seu reinado, só lhe resta raciocinar por retrodicção, isto é, remontar da
impopularidade (efeito) a uma causa hipotética. esta retrodicção tem de apoiar-
-se em casos paralelos da época e nas mesmas circunstâncias que evidenciam
o descontentamento e a reação negativa dos povos a impostos demasiado pesa-
dos194. raciocinamos assim por comparação com o semelhante, mas sem a
garantia de que num caso particular esta analogia não falhe; não podemos
esquecer que estamos a lidar com a causalidade sublunar, irregular e confusa.
a retrodicção é um raciocínio muito próximo da seriação, raciocínio típico dos
epigrafistas, filólogos e iconografistas:
[...] quando um epigrafista, um filólogo ou um iconografista quer saber o que sig-
nifica a palavra rosa ou o que faz, nesse baixo-relevo, um romano que é repre-
sentado deitado num leito, recolheu todas as outras ocorrências da palavra rosa e
de romanos deitados e tira, da série assim constituída, a conclusão de que rosa
quer dizer rosa e que o romano dorme ou come; a fundamentação dessa conclusão
é que seria surpreendente que uma palavra não tivesse sempre pouco mais ou
menos o mesmo sentido e que os romanos não tivessem comido e dormido como
queriam os hábitos da sua época [Veyne 1983: 188].
194
«subentendido: se as coisas se passaram regularmente; a retrodicção aparenta-se por
aí ao raciocínio por analogia ou a essa forma de profecia racional, porque condicional, a que
chamamos predição» (Veyne 1983: 186).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 171
195
Daí que o autor afirme: «estudar a síntese histórica, ou retrodicção, é estudar que
papel desempenha em história a indução e em que consiste a “causalidade histórica”, por
outras palavras, dado que a História não existe, a causalidade na nossa vida quotidiana, a
causalidade sublunar» (Veyne 1983: 180).
196
«[...] conceitos e “leis” histórico-sociológicos não têm sentido nem interesse senão
através de trocas subreptícias que continuam a manter com o concreto que governam; é pre-
cisamente nessas trocas que reconhecemos que uma ciência ainda não o é» (Veyne 1983:
202).
172 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
muito explícito relativamente a esta exceção, apenas diz que a ciência pode ser
útil à história para explicar o intervalo entre as intenções e os acontecimentos.
as nossas intenções nunca coincidem totalmente com os efeitos, e este inter-
valo é o lugar reservado para as explicações científicas, na escrita e na prática
histórica. só recorremos à ciência quando as intenções não bastam, ou seja,
fazemos apelo à ciência unicamente para explicar um efeito incompreensível ou
imprevisto, porém esta exceção não é suficiente para derrubar a barreira que
separa história e ciência197.
uma outra tese de Veyne é a de que a história não tem método, mas uma
crítica e uma tópica, as quais não substituem o método mas são-lhe equivalen-
tes. a explicação histórica é inata e familiar, por isso se pode qualificar de
compreensão, e o método histórico que atualmente possuímos é o mesmo desde
Heródoto e tucídides198. «o que progrediu consideravelmente, em contrapartida,
foi a crítica histórica e sobretudo [...] a tópica histórica» (ibid.: 137).
Por crítica histórica o autor entende a vigilância que o historiador exerce
sobre os conceitos que emprega. Depois de refutar o valor das teorias históricas
e a criação de uma tipologia em história (que até pode ter algum valor heu-
rístico, mas nada acrescenta à explicação histórica,) e de optar pelo nomina-
lismo (porque as abstrações não existem e não podem, por isso, ser causas
eficientes: não existe a França, somente os franceses; não existem forças pro-
dutivas, apenas homens que produzem), P. Veyne acaba por reconhecer que os
historiadores não podem deixar de utilizar teorias, tipos ou conceitos, que são
uma única e mesma coisa – «resumos de intrigas já prontos» (ibid.: 155) –,
ainda que estes sirvam apenas para abreviar uma descrição199. a partir do
197
«as ciências físicas e humanas podem realizar todos os progressos possíveis: a his-
tória não será mudada do seu assento; com efeito, ela não fará uso das suas descobertas
exceto num caso muito preciso: quando essas descobertas permitem explicar um intervalo
entre as intenções dos agentes e os resultados» (Veyne 1983: 210).
198
todas as tentativas de descoberta de um método ou de uma conceção geral que
explicasse o funcionamento da história e da sociedade, como o materialismo económico,
nunca resultaram e os filósofos e teóricos que praticaram uma metodologia histórica viram-
-se obrigados, assim que se tornaram historiadores, a regressar às evidências do bom senso.
o ofício dos historiadores é de fazer compreender o sublunar, por isso a compreensão não
aceita nenhum outro tipo de explicação ao seu lado. «a explicação histórica não pode apelar
para nenhum princípio, para nenhuma estrutura permanente (cada intriga tem o seu dispositivo
causal particular)» (Veyne 1983: 137).
199
«o tipo ou a teoria só podem servir para abreviar uma descrição; fala-se de des-
potismo esclarecido ou de conflito cidade-campo para ser breve, como se diz “guerra” em vez
de “conflito armado entre potências”» (Veyne 1983: 154).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 173
200
«o enriquecimento dos reportórios de lugares é o único progresso que o conheci-
mento histórico pode fazer, a história não poderá nunca dar mais lições do que dá presen-
temente, mas ela poderá multiplicar ainda as questões. ela é definitivamente narrativa e
reduz-se a contar o que alcibíades fez e o que aconteceu. longe de desembocar numa ciência
ou numa tipologia, ela não deixa de confirmar que o homem é matéria variável sobre a qual
não se pode fazer um juízo fixo; não sabe melhor do que no primeiro dia como se articulam
o económico e o social e é ainda mais incapaz do que no tempo de montesquieu de afirmar
que, tendo-se produzido o acontecimento a, o acontecimento B se produzirá igualmente»
(Veyne 1983: 270).
174 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
201
«conceptualisation, recherche d’objectivité, redoublement critique marquent les trois
étapes de l’autonomisation de l’explication en histoire par rapport au caractère «auto-explica-
tif» du récit» (ricœur, TR I, 314)
176 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
202
«sur ces trois voies, l’explication propre à la recherche historique paraît bien faire
une partie du chemin qui la sépare de l’explication immanente au récit» (ricœur, TR i, 316).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 179
ciências físicas ou humanas. mas história e ciência, salvo raras exceções (não
especificadas), para explicar um efeito incompreensível, não se podem misturar.
salva-se a ideia forte de história como compreensão de intrigas, com as reser-
vas atrás apontadas sobre os limites pouco claros do conceito de intriga.
ricœur reconhece sucesso e fracasso às teorias narrativistas203. Não fazem
justiça à especificidade da história, dentro do leque da narrativa; as suas con-
siderações valem apenas para as formas historiográficas com ligação direta e
visível à narrativa, ignorando as transformações que a historiografia entretanto
foi sofrendo; e não conseguem integrar a explicação através de leis no tecido
narrativo da história. Por outro lado, perceberam bem que a qualidade propria-
mente histórica da história só pode ser preservada por meio do elo que liga a
explicação histórica à compreensão narrativa, contra a rutura epistemológica que
pretende dissociá-las. independentemente do triplo corte epistemológico exigido
pela nova história científica, a história não pode ser radicalmente desligada da
narrativa sem sacrificar o seu caráter histórico.
os narrativistas conseguiram demonstrar que narrar é já explicar. o
famoso conceito aristotélico do “um por causa do outro” (di’allela), que faz a
conexão lógica de qualquer intriga, aplica-se não só à narrativa ficcional como
à histórica. esta tese tem várias consequências. Por um lado, a conexão causal
ativada em qualquer narrativa pela composição da intriga representa uma vitória
sobre a simples cronologia e torna possível a distinção entre história e crónica,
uma vez que nesta última os factos são apresentados uns a seguir aos outros
e não uns por causa dos outros. Por outro, se a construção da intriga resulta
de um julgamento, é porque há necessariamente um narrador implicado na nar-
ração. o narrador mantém um ponto de vista distante e diferente do dos agen-
tes ou personagens envolvidos na própria ação narrada, que possuem uma com-
preensão dos acontecimentos e do seu contributo para o desenrolar da intriga
mais confusa e limitada. este distanciamento permite passar do narrador ao his-
toriador. Por fim, se é possível à narrativa integrar, num todo coeso e signifi-
cante, aspetos tão díspares como as circunstâncias, os cálculos, as ações, as aju-
das e os obstáculos, os resultados, então, também é possível à história incluir
os resultados não intencionais ou inesperados da ação e produzir descrições da
ação distintas da sua descrição em termos simplesmente intencionais (Danto).
um segundo aspeto positivo das teses narrativistas tem que ver com o
facto de responderem a uma diversificação e a uma hierarquização dos modelos
203
«J’ai dit plus haut que le demi-succès des théories narrativistes était aussi un demi-
échec» (TR i, 316).
182 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
204
a intenção oblíqua que o autor vê, especulativamente, na escrita da história, permi-
tir-lhe-á inscrever a historiografia no grande círculo mimético de que falámos anteriormente
e daí alcançar o objetivo principal e final: a construção do tempo histórico. estamos, por isso,
ainda na antecâmara dos aposentos onde história e ficção colaboram pela narrativa do tempo.
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 183
205
a expressão que traduzimos por “questionamento analéptico” pretende equivaler à
francesa “questionnement à rebours”, com a qual o filósofo francês designa o método de
questionar utilizado por Husserl a propósito das ciências clássicas, ditas de galileu e de New-
ton. «la solution du problème relève de ce qu’on peut appeler une méthode de questionne-
ment à rebours. cette méthode, pratiquée par Husserl dans la Krisis, ressortit à une phéno-
ménologie génétique, au sens non d’une genèse psychologique, mais d’une genèse de sens»
(ricœur, TR i, 318).
206
Nous nous interrogeons à notre tour sur ce que j’appellerai désormais l’intentionna-
lité de la connaissance historique ou, par abréviation, l’intentionnalité historique. J’entends
par là le sens de la visée noétique qui fait la qualité historique de l’histoire et la préserve
de se dissoudre dans les savoirs auxquels l’historiographie vient à se joindre par son mariage
de raison avec l’économie, la géographie, l’ethnologie, la sociologie des mentalités et des
idéologies (ricœur, TR i, 318).
207
«en vertu de sa position médiane entre l’amont et l’aval du texte poétique, l’opé-
ration narrative présente déjà les traits opposés dont la connaissance historique redouble le
contraste: d’un coté, elle naît de la rupture qui ouvre le royaume de la fable et le scinde de
l’ordre de l’action effective; de l’autre, elle renvoie à la compréhension immanente à l’ordre
de l’action et aux structures pré-narratives de l’action effective» [ibid., 319].
184 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
208
a dupla prova indutiva e pragmática de que fala Dray, através das quais se verifica
a capacidade ou o grau de influência de determinados fatores na explicação de um evento,
aproxima-se muito da lógica da imputação causal desenvolvida por Weber e aron.
209
r. aron, Introduction à la philosophie de l’histoire. Essai sur les limites de l’ob-
jectivité historique, gallimard, Paris, 1948, pp. 195-330; m. Weber, Essais sur la théorie de
la science, librairie Plon, Paris, 1965, (trad. fr., Julien Freund, de Gesammelte Aufsatze zur
Wissenschaftslehre, 2.ª ed., tubingen, mohr, 1951). Da tradução francesa, que reúne quatro
dos dez ensaios que constituem o original alemão, salientamos o segundo ensaio “Études cri-
tiques pour servir à la logique des sciences de la culture” (1906). Nesse mesmo ensaio, o
segundo ponto, intitulado “possiblité objective et causalité adéquate en histoire” (Weber 1965:
290-323) é a peça chave de que ricœur se socorre para estabelecer o paralelo e a diferença
entre explicação por imputação causal e explicação narrativa.
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 185
210
«si l’historien peut affirmer que, en modifiant ou en omettant en pensée un événe-
ment singulier dans un complexe de conditions historiques, il s’en serait suivi un développe-
ment différent d’événements “concernant certaines relations historiques de cet événement”,
alors l’historien peut poser le jugement d’imputation causale qui décide de la signification
historique dudit événement» (ricœur, TR I, 325).
211
«la bataille de salamine est pour l’historien, dans un certaine situation de discours,
un événement unique, dans la mesure où elle peut faire en tant que telle l’objet d’une impu-
tation causale singulière» (ricœur, TR i, 336).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 187
212
Prost, na lição consagrada a “imaginação e imputação causal” (1996: 169-187)
sublinha o papel insubstituível da imaginação na identificação das causas: «en effet, toute
histoire est contre-factuelle. il n’y a pas d’autre moyen, pour identifier les causalités, que de
se transporter en imagination dans le passé et de se demander si, par hypothèse, le dérou-
lement des événements aurait été le même au cas où tel ou tel facteur considéré isolément
aurait été différent. l’expérience imaginaire est la seule possible en histoire [...]» (ibid.: 178).
188 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
213
«on le voit, un fait singulier est donc insignifiant pour l’historien non seulement
lorsqu’il n’a eu aucun rapport avec l’événement en discussion, de sorte qu’on peut l’omettre
en pensée sans qu’une quelconque modification n’intervienne dans le cours réel des événe-
ments, mais déjà lorsque les éléments essentiels in concreto et seuls intéressants semblent
n’avoir pas été en relation causale avec lui (Weber 1965: 300).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 189
214
«l’historien n’est pas un simple narrateur: il donne les raisons pour lesquelles il
tient tel facteur plutôt que tel autre pour la cause suffisante de tel cours d’événements»
(ricœur, TR i, 329).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 191
215
«et, pourtant, redisons-le, la filiation de l’explication historique à partir de l’expli-
cation narrative n’est pas rompue, dans la mesure où la causalité adéquate reste irréductible
à la seule nécessité logique. le même rapport de continuité et de discontinuité se retrouve
entre explication causale singulière et explication par des lois qu’entre la première et la mise
en intrigue» (ricœur, TR i, 329).
216
«[...] la sociologie se caractérise par l’effort pour établir des lois (ou du moins des
régularités ou des généralités), alors que l’histoire se borne à raconter des événements dans
leur suite singulière» (aron 1948: 235).
217
Prost, nas suas lições sobre a história (1996) vê vantagem na alternância e na inte-
ração entre a história narrativa, fundada no acontecimento, e a história quadro de tipo socio-
lógico, fundada na estrutura. a imputação causal é a forma de explicação mais adequada para
a história narrativa dos acontecimentos e a explicação comparativa, quantitativa e estatística,
192 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
Posto isto, podemos afirmar com solidez que a imputação causal singular
desempenha a função de mediadora entre a composição narrativa e a explicação
por leis. No termo desta reflexão que associou causa e imaginação ao nível dos
procedimentos da investigação histórica, adivinha-se a complexidade que
envolve uma mesma mediação para o nível das entidades da história estrutural.
Pode objetar-se que os exemplos que max Weber apresenta para ilustrar a
imputação causal singular – os quais legitimam a filiação entre composição nar-
rativa e imputação causal singular – estão confinados à esfera política e, por
isso, confundem-se com a história factual ou com uma variante da “explicação
através de razões”, uma vez que põem em cena decisões de personalidades
influentes como a decisão de Bismarck de atacar o império austro-Húngaro.
esta objeção perde sentido se se puder estender a imputação causal singular a
acontecimentos históricos de grande envergadura, cuja causa não seja um indi-
víduo. e de facto, já o dissemos antes, a imputação causal singular pode, sem
perder o seu caráter singular, ser aplicada a acontecimentos históricos irredutí-
veis a indivíduos, como a batalha de salamina ou a influência da ética protes-
tante no espírito capitalista (exemplos também apresentados por max Weber),
onde não é possível discernir, separadamente, nem as decisões individuais nem
os acontecimentos pontuais218. ora, aparentemente, esta extensão parece provo-
car uma fratura total com a narrativa. contra esta aparência, ricœur assevera
que a analogia se mantém, mas deve ser entendida em termos de quasi-intriga.
intriga, segundo Paul Veyne, é a conjugação de fins, causas e acasos. este
mesmo critério é aplicado por ricœur à configuração narrativa: síntese do hete-
rogéneo: um todo coeso e uno formado por elementos tão díspares como as cir-
cunstâncias, as intenções, as interações, as adversidades, a fortuna e o infortú-
218
«l’historien peut s’interroger sur la portée historique de la bataille de salamine,
sans décomposer cet événement en une poussière d’actions individuelles. la bataille de sala-
mine est pour l’historien, dans une certaine situation de discours, un événement unique, dans
la mesure où elle peut faire en tant que telle l’objet d’une imputation causal singulière»
(ricœur, TR i, 336).
194 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
nio. É este critério que nos autoriza a falar, por transferência analógica, de
intriga no quadro das imputações causais singulares, na medida em que todas
as imputações causais singulares consistem numa síntese do heterogéneo. No
entanto, para salvaguardar a analogia da extensão da imputação causal singular
a partir do individual e para permanecer fiel ao argumento do laço indireto
entre explicação histórica e compreensão narrativa, Paul ricœur usa o conceito
de quasi-intriga219. esta analogia é extremamente importante para estabelecer o
paralelo entre as entidades de base do conhecimento histórico e as personagens
narrativas.
219
«toutefois, pour rester cohérent avec mon argument du rapport indirect de l’expli-
cation historique à la structure du récit, je parlerai de quasi-intrigue, pour marquer le carac-
tère analogique de l’extension de l’imputation causale singulière, à partir de son exemple
princeps, l’explication causale des résultats d’une décision individuelle» (ricœur, TR i, 339).
Veremos como em La mémoire, l’histoire, l’oubli, ricœur não terá mais necessidade de man-
ter o “quasi”, pois estaremos já longe da macro-história de labrousse e Braudel. a história
das representações introduzida pela micro-história autoriza uma ligação direta com a narrativa
e as suas entidades de base que são, justamente, singulares.
220
o autor mostra-se avesso à teoria do “individualismo metodológico”, segundo a qual
é possível reduzir qualquer mudança social a ações individuais ou elementares, como se fosse
possível e legítimo identificar cada um dos autores responsáveis pela mudança social.
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 195
221
«l’appartenance participative est aux entités ce que l’imputation causale singulière
est aux procédures de l’historiographie» (ricœur, TR i, 341).
196 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
222
Não é tarefa de uma história que se quer científica explorar este laço oblíquo entre
a sociedade e os indivíduos que a compõem, cabe porém à fenomenologia genética a missão
de estudar a origem desta ligação. esta encontra-o no chamado fenómeno de pertença par-
ticipativa, que une as entidades históricas de primeira ordem à esfera da ação.
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 197
223
«[...] to constitute aspects of a single ongoing process» (apud ricoeur, TR i, 353).
224
«les conditions initiales ne peuvent être dites entraîner logiquement leur effet,
puisque ce dernier résulte du fait contingent que chacune des occurrences prises au point de
départ ont pris place à tel moment et en tel lieu» (ricœur, TR i, 354).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 199
de ponto de partida para esta premissa225. o que torna a distinção entre as três
modalidades temporais de La Méditerranée et le Monde méditerranéen... pen-
sável é a própria unidade da obra que mantém a coesão entre as três partes em
que se subdivide. mesmo o título, ao fazer referência quer ao mediterrâneo
quer a Filipe ii, interpela-nos sobre a forma como a longa duração opera esta
transição da estrutura para o acontecimento, ou seja, do meio físico para a
figura histórica do rei. a compreensão do papel mediador da longa duração dos
fenómenos civilizacionais, que ocupa a secção intermédia, permite a ricœur o
reconhecimento do caráter narrativo que se cola ao todo constituído pelas três
partes da obra. Por isso, concluirá que o papel relevante das estruturas de tran-
sição que asseguram a unidade e coerência do texto permitem considerar o seu
agenciamento unificador em termos de quasi-intriga, na aceção mais abrangente
de Paul de Veyne226.
mesmo na primeira parte onde, sob a batuta de uma duração muito lenta
(quase imóvel) se descreve o meio geográfico, é possível detetar um ténue
cunho histórico, preservado, justamente, pelas referências económico-políticas
que vão preparando o terreno para a ação da segunda e da terceira partes,
dominadas pelos conflitos entre a espanha e a turquia. as montanhas, os mares
e as planícies são descritas sempre em função dos homens que aí habitam,
antecipando os acontecimentos do segundo nível temporal227. a polaridade dos
impérios turco e espanhol é avançada na própria polaridade geográfica, as
zonas marítimas transformar-se-ão em zonas políticas. É assim que a geo-his-
tória do primeiro nível dá lugar à geopolítica do segundo.
oscilando entre o registo da estrutura e da conjuntura, a segunda parte
constitui-se em torno de três grandes princípios estruturadores: as economias, a
geopolítica, as civilizações. todavia, a exposição de um conjunto de factos his-
tóricos, devidamente datados, comprovam a constante interferência do nível iii
no nível ii. ricœur termina mesmo a análise das duas primeiras partes da obra
225
«il faut se demander ce qui rend pensable la distinction même entre une «histoire
quasi immobile», une «histoire lentement rythmée» et une «histoire à la dimension de l’in-
dividu», a savoir cette histoire événementielle que l’histoire de longue durée doit détrôner»
(ricœur, TR i, 365).
226
Por estrutura de transição ricœur entende «toutes les procédures d’analyse et d’ex-
position qui font que l’œuvre doit se lire d’avant en arrière et d’arrière en avant» (TR i, 366).
227
«répétons-le: ce ne sont pas les espaces géographiques qui font l’histoire, mais bien
les hommes, maîtres ou inventeurs de ces espaces» (Braudel, La Méditerranée et le Monde...;
apud ricœur, TR i, 368).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 201
de Braudel, dizendo o seguinte: «tout, donc, conspire, dans les deux premières
parties, à couronner l’édifice par une histoire des événements qui met en scène
«la politique et les hommes» (TRi, 373).
zona histórica. Para ricœur, Braudel, com o seu método analítico e disjuntivo,
inventou um novo tipo de intriga, que designa de intriga virtual, uma intriga
onde as três temporalidades diferentes aparecem separadas: «s’il est vrai que
l’intrigue est toujours à quelque degré une synthèse de l’hétérogène, l’intrigue
virtuelle du livre de Braudel, en conjuguant des temporalités hétérogènes, des
chronologies contradictoires, nous apprend à conjuguer des structures, des
cycles et des événements» (TR i, 382).
Depois de fundamentar a atribuição do caráter de quasi-intriga ao texto de
Braudel, ricœur mostra-se em condições de realizar uma depuração semântica
no conceito de acontecimento tal como o entende a escola dos annales. Para
ricœur, o acontecimento não tem de ser necessariamente breve, nervoso, explo-
sivo. Não é específico apenas do terceiro nível temporal, mas pode aparecer em
qualquer um dos outros, com funções diversas: no terceiro nível ele guarda a
sua característica explosiva, nos restantes ele assume-se como um sintoma ou
testemunho. o acontecimento do historiador, diferentemente do usado pelo
sociólogo e pelo economista, resulta dos desacordos ou discordâncias entre os
vários ritmos temporais que envolvem as pessoas e as civilizações. o historia-
dor, ao invés do sociólogo, está atento aos pontos de rutura pontuais das estru-
turas, à sua brusca ou lenta deterioração, em suma, à perspetiva da sua extin-
ção. Braudel, como qualquer historiador tradicional, é dominado pela
caducidade dos impérios; na obra em causa, pela perda da influência histórica
do mundo mediterrânico. Daqui conclui ricœur: «c’est à nouveau la fragilité
des œuvres humaines qui passe au premier plan et avec elle la dimension dra-
matique dont la longue durée était censée délivrer l’histoire» (ibid.: 384).
De facto, o que o trabalho de estruturação da história, levado a cabo por
Braudel, acaba por fazer é atribuir uma nova qualidade ao acontecimento, ao
mostrar-nos que mesmo as estruturas mais estáveis não estão livres de sofrer
mudanças228. e o que lhes acontece é a morte. Daí que a sua obra termine com
o quadro de uma morte, não a do mediterrâneo, mas a de Filipe ii229.
228
Num artigo de 1992 («le retour de l’Événement»), ricœur dirá o quanto o exemplo
da obra de Braudel lhe permitiu fazer a transição apropriada para o “regresso do aconteci-
mento” (ricœur 1992: 31), na medida em que a história “non événementielle” pôs em evi-
dência estruturas e conjunturas instáveis que dão lugar ao imprevisível, ao contingente, per-
mitindo colocar o acontecimento como terceiro elemento da tríade constituída já por estrutura
e conjuntura. com esta promoção, o acontecimento muda o seu estatuto epistemológico. o
acontecimento é construído mas não por uma narrativa, antes por uma estrutura ou uma con-
juntura, que por sua vez também são construções. em todo o caso, continua a ser uma cate-
goria inexpugnável, permitindo chamar revolução aos acontecimentos súbitos da estrutura
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 203
230
«c’est tout ce que je voulais démontrer: les quasi-événements qui marquent les
périodes critiques des systèmes idéologiques s’encadrent dans des quasi-intrigues, qui assu-
rent leur statut narratif» (TR i, 391).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 205
232
a análise de ricœur é justa, a obra de Braudel é ainda uma narrativa, possui uma
intriga muito ténue e diluída, mas tem os traços constitutivos da narrativa. todavia, até como
escrita é diferente. se partirmos, como rancière (1992: 32-33) da distinção efetuada por Ben-
veniste entre tempo da diegese que se relata por si própria e tempo do discurso no qual o
locutor está envolvido, chegamos à conclusão que a arquitectura narrativa do texto de Braudel
distancia-se da tradicional nos tempos verbais empregues, dando, atrevidamente, primazia ao
presente e ao futuro, conferindo-lhe objetividade e força assertiva, em vez dos tradicionais
perfeito, imperfeito e mais-que-perfeito, cuja distância temporal e neutralização da pessoa nar-
radora davam ao relato uma objetividade não assumida. Jacques rancière vê nesta revolução
gramatical operada por Braudel no emprego dos tempos verbais uma manifestação da revo-
lução sábia da nova história contra a história tradicional, factual. admira-se que muito poucos
e até mesmo ricœur não se tenham dado conta deste facto, embora entenda que a análise do
filósofo francês depende da sua perspetiva fenomenológica. ricœur virá a reconhecer a jus-
teza e a complementaridade da análise de rancière: «rancière complète ma propre analyse
de la structure narrative dissimulée de l’ensemble de l’ouvrage par un examen de l’usage
grammatical des temps verbaux [...]» (MHO, 447); mas também reconhece que a distinção
entre tempo do discurso que se relata a si próprio e tempo do discurso no qual o locutor está
implicado não é assim tão funcional no texto de Braudel: «la distinction n’est peut-être pas
aussi opératoire qu’on le voudrait dans le cas du texte braudélien» (ibid.).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 207
233
«l’événement revient avec le politique avec des aspects proches de la péripétie dra-
matique: comme instauration et comme destruction. Dans le politique, quelque chose com-
mence: un nouveau pouvoir, ou mieux une nouvelle domination; et quelque chose finit: des
guerres sont perdues, des hommes sont massacrés, parce qu’incarnant telle race, des empires
s’écroulent ou se décomposent. c’est peut-être dans la politique que l’on est au plus près de
l’apparaître et du disparaître, du commencer et du finir qui définissent l’événement brut.
mais, encore une fois, l’événement ne s’ajoute pas du dehors et comme par surcroît à la
structure et à la conjoncture, qui seraient à chercher hors de la sphère politique, laquelle ne
serait qu’événementielle. la politique est lui-même le lieu de conjonction du structurel, du
conjoncturel et de l’événementiel» (ricœur 1992: 32).
234
Philippe carrard, apresenta, em 1992, um interessante estudo com o título de Poe-
tics of the New History, que parte, justamente, também, de uma análise do discurso histórico
na França do pós-guerra, de Braudel a chartier, nomeadamente, o produzido pelos historia-
dores que se identificam com a escola dos annales. analisa os seus diversos modos de escrita
a partir de critérios como a personificação ou não de entidades abstratas, a utilização dos
tempos verbais, a projeção do “eu” no discurso, as modalidades da prova (citações, séries,
quadros, gráficos, etc.). o interessante desta análise é constatar que historiadores que comun-
gam dos mesmos princípios ideológicos da história-ciência e se debruçam sobre um mesmo
objeto de análise conseguem ser extremamente díspares na forma de escrever e nas provas
apresentadas. isto equivale ao reconhecimento da dependência da história relativamente às
técnicas retóricas da narração e as possibilidades, conscientemente controladas ou não, das
variações no seio da matriz que partilham.
208 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
235
«l’histoire sociale constitue un bon exemple si l’on veut comprendre comment
s’unissent, dans une démarche concrète, la structure et l’événement, l’analyse des cohérences
et la recherche des causes» (Prost 1996: 213).
236
«Quelques-unes des plus fortes œuvres historiques de ce siècle, à commencer par La
Méditerranée, s’organisent autour de ces solidarités, de ces cohérences. [...] la dévalorisation
de l’événement et le désintérêt pour la question des causes s’accompagnent ici d’une valo-
risation du temps long des structures géographiques, économiques et techniques. le raisonne-
ment sociologique est à sa place, même si Braudel affirme quelque défiance envers les sys-
tèmes trop déterministes (Prost 1996: 207, 208).
210 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
237
«l’histoire économique, comme celle des pratiques culturelles ou des représentations
peuvent appeler le récit aussi bien que l’histoire politique» (Prost 1996: 240).
238
Prost está claramente a referir-se ao artigo emblemático de lawrence stone, «retour
au récit ou réflexions sur une nouvelle histoire» (1980), que propalava com euforia o regresso
da narrativa, depois de um longo período de aridez dominado pelos números e pelas estatís-
ticas.
239
«Pas plus que le récit, le tableau n’est nécessairement associé à un type d’objet his-
torique. Naturellement, il convient à la présentation d’une société donnée, ou d’un groupe
social précis à un moment déterminé de l’histoire [...]. on peut consacrer des tableaux à des
événements, et même à ces événements les plus événementielles que sont les batailles. tout
dépend de la question privilégiée» (Prost 1996: 241).
240
«Plus profondément, l’explication causale du récit fait appel à des régularités qui
relèvent de structures, tandis que la description des structures recourt à des personnalisations
qui les transforment en acteurs de récits d’un autre type. les deux catégories se distinguent
sans s’exclure» (Prost 1996: 242).
241
«Qu’une histoire soit un récit, un tableau ou une forme mixte, c’est un texte clos,
un élément arbitrairement découpé dans l’ensemble indéfini du continuum illimité de l’his-
toire. toute entreprise historienne se définit par une clôture» (Prost 1996: 243).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 211
com ricœur, que apesar de haver narração nos três níveis temporais em que
subdivide a obra de Braudel, só em conjunto os três formam uma intriga, cujo
desenlace é o declínio do mundo mediterrânico – «on ne comprendrait rien au
dénouement, si l’on n’intégrait pas les trois parties du livre entre elles et à l’in-
térieur de cette grande intrigue (Prost 1996: 253). Daí a conclusão epistemoló-
gica de que pode haver narrativa mesmo no interior de uma estrutura desde que
o objeto construído seja dinâmico: «toute histoire est narrative, parce qu’elle
inclut toujours du changement» (ibid.: 253). esta constrição deixa de fora da
intriga a marca mais genuína do quadro: a sua dimensão sincrónica. ora, Prost
pretende demonstrar que a sincronia também faz intriga e narrativa, na medida
em que está sempre, de algum modo, referida à diacronia. Desse modo, pode-
mos falar de narrativa na explicação de estruturas, correndo o risco consciente
de enfraquecer a própria noção de narrativa, ao reduzi-la às temporalidades
mútuas que ela inclui nos seus próprios enunciados, como exemplifica a frase
narrativa de Danto: «en 1717 naquit l’auteur du Neveu de Rameau». É que,
segundo o autor, «descrever uma coerência ou analisar uma estrutura supõe
uma intriga» (ibid.). No cinema não são apenas os filmes que estão construídos
sobre uma intriga, para Prost os documentários também têm intriga. Dois argu-
mentos militam neste sentido.
em primeiro lugar, a explicação sincrónica e a explicação diacrónica fun-
dam-se no mesmo tipo de raciocínio natural. ou seja, narrar-explicar um aci-
dente rodoviário que se presenciou é o mesmo que descrever a um amigo uma
família numerosa, explicando quem é quem e os laços que unem os seus ele-
mentos: «une description de ce type met en œuvre les mêmes choix que celle
d’un récit. les questions posées sont certes différentes, mais on retrouve le
même découpage, ici territorial ou setoriel plus que chronologique, le même
choix de personnages – au sens large – et de niveaux d’analyse» (ibid.: 255).
a partir do momento em que um relato tenha um fio condutor que lhe confira
sentido, lhe permita estruturar a montagem e hierarquizar as sequências, temos
uma intriga.
o segundo argumento passa por «prolongar a análise de P. ricœur liber-
tando a dimensão narrativa presente em qualquer quadro enquanto quadro»
(ibid.: 254). o quadro, do mesmo modo que a narrativa, está sempre delimitado
e estruturado por questões, sendo uma delas relativa à mudança temporal:
comme le récit, le tableau est toujours délimité et structuré par des questions, et,
parmi ces questions, figure toujours celle du changement dans le temps. on le voit
bien dans la vie courante. Quand un grand-père «explique» à ses petits-enfants
comment était son village avant la guerre, il leur dit tout ce qui a changé depuis:
son tableau est construit à partir de la différence entre hier et aujourd’hui. l’his-
torien n’est guère différent du grand-père (ibid.).
212 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
242
a obra de ariès serve de exemplo, ela comporta quatro quadros sucessivos, corres-
pondendo cada um a uma época, sendo que cada um retém traços dessa época que se ligam
em sentido e cronologia às configurações anterior e posterior. o que estrutura e orienta a des-
crição é a análise global da mudança de atitudes face à morte até à atualidade e isso faz com
que os quadros estejam organizados como uma narrativa. «un bon exemple en est le livre de
Philippe ariès, La Mort en Occident, qui s’articule en quatre chapitres successifs, consacrés
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 213
chacun à la mort à une époque donnée [...]. il s’agit bien d’un récit, puisque nous passons
d’une situation à une autre. le plan est d’ailleurs chronologique. mais c’est un récit sans évé-
nements, au rythme très lent» (Prost 1996: 243).
243
«en dernière instance, le récit prend donc le pas sur le tableau, ou, si l’on préfère,
l’événement (au sens de ce qui change et dont on fait le récit) sur la structure. ou, pour le
dire autrement, la structure, telle que les historiens l’appréhendent, est toujours précaire, pro-
visoire. elle est comme minée de l’intérieur par l’événement. l’événement est au cœur de la
structure, comme le levain dans la pâte ou le ver dans la pomme – je laisse chacun choisir
la métaphore suivant qu’il est optimiste ou pessimiste» (Prost 1996: 255).
214 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
sua ordem, que o conhecimento objetivo das ciências da natureza» (Prost 1996:
153). o que torna uma história compreensível é o encadeamento dos factos,
não a sua ordenação cronológica, critério que distingue uma narrativa de uma
crónica. o que o historiador, o sociólogo e o antropólogo procuram compreen-
der é o sentido das vidas e dos comportamentos humanos, apelando à compe-
tência narrativa de seguir uma história. compreender uma história implica
seguir o desenrolar dos acontecimentos para apreender o seu sentido e perceber
as suas causas. a história é narrativa e a compreensão visa assegurar-lhe res-
peitabilidade científica, uma legitimidade igual à das ciências naturais, pois a
história quer ser um saber verdadeiro e não uma opinião. Para isso, a com-
preensão empática ou intuitiva por si só é insuficiente, devendo ser complemen-
tada com a explicação “não científica”. Para ricœur, não se compreende o
acontecido apenas por meio de intropatia ou amizade, esta forma de compreen-
são deve ser equilibrada por elementos menos intuitivos, mais racionais e segu-
ros. obviamente, esta exigência não invalida que as teorias da compreensão de
Dilthey, marrou, collingwood tenham a virtude de nos despertar para a subje-
tividade e intersubjetividade que animam a atividade historiadora: o historiador
é movido por um impulso de amizade ou mesmo amor que o não deixa indi-
ferente aos homens que estuda. a atividade de historiar não é fria, assética,
insensível, mas é viva e afetiva. No entanto, a história exige ir mais além da
busca dos motivos, sentimentos e pensamentos pessoais, quer explicações, não
explicações iguais às das ciências naturais, mas imputações causais244. a com-
preensão enquanto procura de causas assume uma força explicativa que a apro-
xima das ciências e a afasta da empatia, tirando sentido à oposição entre com-
preensão e explicação. Nesse sentido, a explicação histórica prolonga a
compreensão. todavia, convém recordar que as condutas humanas, objeto da
história, inscrevem-se na ordem do sentido e não da ciência. e também que o
complexo encadeamento das causas em história é inesgotável. a história não se
explica totalmente, é verdade, mas explica-se; se se explicasse perfeitamente,
seria previsível como as ciências deterministas. mas ela não é nem totalmente
determinada nem totalmente aleatória, os seus prognósticos, baseados em diag-
nósticos, devem reservar uma boa margem para o contingente, para o inespe-
rado. Daí que o raciocínio imaginativo da imputação causal goze de grande pri-
244
«[...] en histoire, la compréhension ne suffit pas, et elle risque d’être fautive, si l’on
ne se soucie pas de construire à partir d’elle une explication plus systématique, en analysant
la situation initiale, en identifiant les divers facteurs et en pesant les causes» (Prost 1996:
172).
216 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
245
«mon hypothèse de base est à cet égard la suivante: le caractère commun de l’ex-
périence humaine, qui est marqué, articulé, clarifié par l’acte de raconter sous toutes ses
formes, c’est son caractère temporel. tout ce qu’on raconte arrive dans le temps, prends du
temps, se déroule temporellement; et ce qui se déroule dans le temps peut être raconté. Peut-
être même tout processus temporel n’est-il reconnu comme tel que dans la mesure où il est
racontable d’une manière ou d’une autre. cette réciprocité supposée entre narrativité et tem-
poralité est le thème de Temps et Récit» (ricœur, TA, 12).
218 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
246
«en traitant la qualité temporelle de l’expérience comme référent commun de l’his-
toire et de la fiction, je constitue en problème unique fiction, histoire et temps» (ricœur, TA,
12).
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 219
247
«sous forme schématique, notre hypothèse de travail revient ainsi à tenir le récit
pour le gardien du temps, dans la mesure où il ne serait de temps pensé que raconté»
(ricœur, TR iii, 435).
248
em 1977, Paul ricœur dirigiu um seminário na universidade de missouri-columbia,
consagrado à Narratividade, ao jogo de linguagem da narração comum à história dos histo-
riadores e à narrativa ficcional. os resultados deste seminário (designado em inglês “Brick
lectures”) foram publicados em França, sob a direcção de Dorian tiffeneau, com o título de
La Narrativité, em 1980. os três capítulos da primeira parte [1) «Histoire comme récit»; 2)
«le récit de fiction»; 3) «la fonction narrative»] constituem o núcleo do que haveria de ser
Temps et Récit.
249
Para uma análise mais detalhada desta dialética entre tempo e narrativa veja-se o
nosso trabalho anterior: soares, martinho, Tempo, mythos e praxis: o diálogo entre Ricœur,
Agostinho e Aristóteles, Fundação eng. antónio de almeida, 2013; vide., etiam, teixeira
2004, vol. ii: 9-51.
220 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
250
a alma, cuja atividade em tensão consiste em abreviar a expetativa e alongar a
memória, fazendo esse “trânsito” pela atenção presente, à medida que faz passar, passa tam-
bém, sofrendo o efeito negativo da sua própria ação. esta intentio ou tensão única da alma
para aspetos múltiplos pretende explicar a possibilidade de se medir o tempo, não o tempo
em si, mas as impressões deixadas na memória e na expetativa pelos eventos passados e
pelos eventos futuros, respetivamente. mas é, justamente, por este ato mensurável que a pas-
sividade das impressões provoca a chamada distentio animi, deixando patente um antago-
nismo insolúvel entre distentio e intentio animi e explicada a supremacia da ação do tempo
sobre o ser humano.
251
«il n’y a pas, disons-nous, de phénoménologie pure du temps chez augustin. Nous
ajoutions: peut-être n’y en aura-t-il jamais après lui. [...] Par phénoménologie pure, j’entends
une appréhension intuitive de la structure du temps, qui, non seulement puisse être isolée des
procédures d’argumentation par lesquelles la phénoménologie s’emploie à résoudre les apories
reçues d’une tradition antérieure, mais ne paie pas ses découvertes par des nouvelles apories
d’un prix toujours plus élevé. ma thèse est que les authentiques trouvailles de la phénomé-
nologie du temps ne peuvent être définitivement soustraites au régime aporétique qui carac-
térise si fortement la théorie augustinienne du temps» (TR i, 156).
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 221
252
Nenhuma das duas teorias (de agostinho e de aristóteles), tomada isoladamente, é
capaz de explicar cabal e totalmente a experiência temporal, de tal forma que o aprofunda-
mento de cada uma das posições antagónicas resulta na descoberta de uma temporalidade
transcendente à sua definição e cada uma delas encontra sempre como resíduo a sua expres-
são inversa. se aprofundamos o tempo da alma, acabamos por chegar à conclusão que o
tempo a circunscreve, a envolve e a domina, sem que ela jamais o possa engendrar. se, por
outro lado, sublinharmos a prioridade cosmológica do tempo, deparamos com um instante
físico, mensurável, que implica uma alma que o meça, sem que, todavia seja possível iden-
tificar os instantes do mundo e a presença que torna “presente” a alma a si mesma. Há uma
separação intransponível entre o instante aristotélico e o presente agostiniano. É que o ins-
tante aristotélico, para ser pensável, requer apenas um corte efetuado pela alma na continui-
dade do movimento, porque este é numerável. mas este instante pode ser qualquer um, qual-
quer instante é digno de ser o presente. Num movimento há apenas a sequência na qual a
alma pode distinguir os dois instantes do antes e do depois, sem que se possa dizer que um
é passado e o outro futuro.
222 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
253
«ce qui demeure aussi opaque chez Heidegger que chez augustin, c’est la triplicité
interne à cette intégralité structurale: les expressions adverbiales [...] signalent au niveau
même du langage la dispersion qui mine de l’intérieur l’articulation unitaire. le problème
augustinien du triple présent se trouve simplement reporté sur la temporalisation prise dans
son ensemble» (TR iii, 129). No entanto, as modalidades de temporalização que Heidegger
define em Ser e Tempo servem para a hermenêutica da condição histórica do homem:
«l’“être-dans-le-temps” est la façon temporelle d’être-au-monde» (ricœur, MHO, 498). Nós
representamos o passado porque existimos no tempo. É no tempo que existimos e é no tempo
que as coisas acontecem. todavia, ricœur demonstra alguma desconfiança relativamente ao
ser-para-a-morte de Heidegger, preferindo pôr a tónica no estar-em-dívida como laço possível
entre passado e futuro. Para ele, é essencial que o ter-sido suplante o simples e negativo ter-
-passado. o passado existe ainda no presente (cf. ricœur, MHO, 501). Neste ponto ele coin-
cide com Jankélévitch, de quem retira a epígrafe que serve de pórtico à sua obra La mémoire,
l’histoire, l’oubli: «celui qui a été ne peut plus désormais ne pas avoir été: désormais ce fait
mystérieux et profondément obscur d’avoir été est son viatique pour l’éternité».
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 223
254
ce sont ces apories que précisément la poétique du récit traite comme autant de
nœuds qu’elle s’emploie à dénouer (ricœur, TR iii, 435).
255
«il va de soi que c’est moi, lecteur d’augustin et d’aristote, qui établis ce rapport
entre une expérience vive où la discordance déchire la concordance et une activité éminem-
ment verbale où la concordance répare la discordance» (ricœur, TR i, 66).
224 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
identificar a ação pelos seus traços estruturais ou pela sua rede concep-
tual exige uma semântica da ação256. esta semântica permite distinguir a ação
do mero movimento físico. a ação implica fins (o quê da ação) cuja antecipa-
ção não significa previsibilidade ou adivinhação; reporta-se a motivos (porquê)
que explicam as razões de determinado ato de um agente – diferente de um
evento físico que dá origem a outro; tem agentes (quem) que podemos consi-
derar autores e responsáveis pelos seus atos; os agentes agem e são vítimas de
determinadas circunstâncias (como) favoráveis ou desfavoráveis que estão fora
do seu controlo; agem em interação (com ou contra quem) com outros agentes
numa postura de cooperação ou de competição tão contingentes quanto as cir-
cunstâncias; mas toda a ação visa uma saída ou desenlace que pode ser uma
mudança de sorte em direção à felicidade ou à infelicidade. todos estes traços
estruturais que compõem a semântica da ação estão numa estreita relação de
intersignificação. Dominar esta rede conceptual no seu conjunto e cada um dos
seus elementos em particular como membro do conjunto significa possuir a
competência que ricœur designa de compreensão prática (TR i, 110). a relação
entre a compreensão prática e a compreensão narrativa é dupla: de pressupo-
sição e de transformação. Pressupõe-se que quer o narrador quer o seu audi-
tório conheçam bem termos como agente, fim, meio, circunstância, socorro,
hostilidade, cooperação, conflito, sucesso, fracasso, que compõem a rede con-
ceptual da ação. mas a narrativa não recorre apenas à nossa competência prag-
mática – ou paradigmática segundo a terminologia semiótica – ela utiliza traços
discursivos sintáticos, próprios da compreensão narrativa, que permitem distin-
guir a narrativa de uma simples sucessão de frases de ação. Falamos de regras
de composição que governam a ordem diacrónica da intriga (ficcional ou his-
tórica) e que se situam na ordem sintagmática. a intriga, entendida como reu-
nião e organização de factos numa ação total constituinte da história narrada,
é o equivalente literário da ordem sintagmática que a narrativa introduz no
campo da ação (ibid.: 112). Nesta transposição da ordem paradigmática da ação
para a ordem sintagmática da narrativa os termos da semântica da ação adqui-
rem integração e atualidade. atualidade, pelo facto de termos que apenas pos-
suíam um significado virtual ou potencial na ordem paradigmática receberem
um significado efetivo graças ao encadeamento sequencial que a intriga confere
aos agentes, ao seu agir e ao seu sofrer; integração, pelo facto de elementos tão
díspares como agentes, motivos, circunstâncias, se poderem harmonizar e coo-
perar em totalidades temporais efetivas.
257
«[...] le symbolisme confère à l’action une première lisibilité» (TR i, 115).
228 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
marcas temporais que não só nos permitem narrá-las como demandam narração.
Não é só o texto da ficção que é narrativo, a própria experiência exibe já uma
qualidade narrativa ou, no mínimo, pré-narrativa, como se pode concluir seja
pela análise fenomenológica da intratemporalidade (ou do ser-no-tempo) seja
por algumas experiências maiores reveladas pela linguagem quotidiana, como é
o caso de uma história de vida258. Percebe-se, pois, qual o valor e o sentido da
mimesis i: imitar ou representar a ação é, antes de mais, pré-compreender o que
aí há de agir humano, na sua componente semântica, simbólica e temporal.
sobre esta pré-compreensão, que é partilhada pelo poeta e pelos seus leitores,
ergue-se a mise en intrigue e, com ela, a mimética textual e literária. Por
258
Para ricœur, a estrutura da intratemporalidade é a que melhor caracteriza a tem-
poralidade da ação. É sobre ela que se edificarão conjuntamente as configurações narrativas
e as formas mais elaboradas da temporalidade que lhe correspondem (ricœur, TR i, 124-125).
De acordo com m. Heidegger a forma mais originária da experiência do tempo é a tempo-
ralidade, composta pela dialética entre “por-vir”, “tendo-sido” e “tornar-se-presente”, dialética
na qual o tempo é totalmente dessubstancializado. termos como futuro, passado e presente
desaparecem para dar lugar a um tempo como unidade deflagrada destes três êx-tases tem-
porais. esta dialética constitui o tempo do Cuidado (Sorge). em seguida, num nível inferior
ao da temporalidade, Heidegger apresenta a historicidade, caracterizada por dois traços: a
extensão do tempo entre nascimento e morte e a deslocação do acento do futuro para o pas-
sado. em favor de um terceiro traço – o da repetição – o filósofo alemão tenta “re-unir” o
conjunto das disciplinas históricas. No terceiro e último nível, o filósofo coloca a intratem-
poralidade. esta é colocada na última posição porque é a mais apta a ser nivelada pela repre-
sentação linear do tempo como uma sucessão regular de instantes abstratos. Porém, ricœur
manifesta o seu interesse por ela, curiosamente, em função dos traços pelos quais esta estru-
tura se distingue da representação linear do tempo e resiste ao nivelamento que a reduziria
a esta representação a que Heidegger chama conceção vulgar do tempo (TR i, 121). a intra-
temporalidade revela um caráter estrutural do Cuidado do Dasein: o estar-lançado entre as
coisas (da ocupação e da pré-ocupação). Estar-no-tempo é antes de mais contar com o tempo
e, consequentemente, calcular. estas características existenciais não são dedutíveis da simples
representação linear do tempo. É porque contamos com o tempo e fazemos cálculos que
recorremos à medida do tempo ou ao tempo como medida e não ao contrário. o contar com
está antes da medição. expressões como “ter tempo”, “agarrar o tempo”, “ganhar tempo”,
“perder tempo”, “então”, “depois”, “mais tarde”, “até que”, “enquanto”,”desde que”, “agora
que”, etc., orientam-nos já para o caráter datável e público da preocupação existencial e
antropológica. Não são as coisas do Cuidado que determinam o sentido do tempo, mas o pró-
prio Cuidado. ao romper assim com a representação linear do tempo, a análise da intratem-
poralidade representa um benefício para a pré-compreensão da temporalidade da ação. cf. m.
Heidegger, Sein und Zeit, §§78-83, tübingen, 196310, particularmente o último capítulo da
secção ii: «temporalidade e intratemporalidade como origem do conceito vulgar de tempo»;
e o prefácio de Paul ricœur a H. arendt, La Condition Humaine, Paris, 19832.
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 229
259
«en plaçant mimèsis ii entre un stade antérieur et un stade ultérieur de la mimèsis,
je ne cherche pas seulement à la localiser et à l’encadrer. Je veux mieux comprendre sa fonc-
tion de médiation entre l’amont et l’aval de la configuration. Mimèsis ii n’a une position
intermédiaire que parce qu’elle a une fonction de médiation» (ricœur, TR i, 126-127).
260
a intriga é duplamente mediadora: não só entre a narrativa e a ação temporal por-
tadora de mudança, mas entre dois estádios miméticos, um a montante e outro a jusante,
sendo que esta segunda mediação está ao serviço da primeira, servindo-lhe de fundamento
teórico, porque o objetivo principal de ricœur é estabelecer uma mediação entre tempo e nar-
rativa: «[...] en passant de la question nouvelle de la médiation entre temps et récit à la ques-
tion nouvelle de l’enchaînement des trois stades de la mimèsis, je base la stratégie entière de
mon ouvrage sur la subordination du second problème au premier. c’est en construisant le
rapport entre les trois modes mimétiques que je constitue la médiation entre temps et récit.
ou, pour le dire autrement, pour résoudre le problème du rapport entre temps et récit, je dois
établir le rôle médiateur de la mise en intrigue entre un stade de l’expérience pratique qui
la précède et un stade qui lui succède. en ce sens l’argument du livre consiste à construire
la médiation entre temps et récit en démontrant le rôle médiateur de la mise en intrigue dans
le procès mimétique» (TR i, 107).
230 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
261
Num ensaio posterior a Temps et Récit, no qual ricœur tenta dar a conhecer ao
público os traços gerais da sua filosofia, dirá que a mise en intrige tem essa virtude extra-
ordinária de reunir ações dispersas e ilógicas (que em si não são princípio nem meio nem
fim de nada) num organismo textual coeso e significante, com princípio, meio e fim: «com-
prenons par là qu’aucune action n’est un commencement que dans une histoire qu’elle inau-
gure; qu’aucune action n’est non plus un milieu que si elle provoque dans l’histoire racontée
un changement de fortune, un «nœud» à dénouer, une «péripétie» surprenante, une suite d’in-
cidents «pitoyables» ou «effrayants»; aucune action, enfin, prise en elle-même, n’est une fin,
sinon en tant que dans l’histoire racontée elle conclut un cours d’action, dénoue un nœud,
compense la péripétie par la reconnaissance, scelle le destin du héros par un événement
ultime qui clarifie toute l’action et produit, chez l’auditeur, la katharsis de la pitié et de la
terreur» (ricœur, TA, 13-14).
262
esta definição de acontecimento, que ricœur reitera no artigo de abertura da com-
pilação Du texte à l’action [TA], é fulcral para corroborar, como vimos, o caráter narrativo
da história de tipo estrutural. «l’intrigue est le médiateur entre l’événement et l’histoire. ce
qui signifie que rien n’est événement qui ne contribue à la progression d’une histoire. un
événement n’est pas seulement une occurrence, quelque chose qui arrive, mais une compo-
sante narrative» (ricœur, TA, 14).
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 231
263
«[...] je dirai que l’intrigue est l’unité intelligible qui compose des circonstances, des
buts et des moyens, des initiatives, des conséquences non voulues» (ricœur, TA, 14). Paul
ricœur deve esta ideia a Paul Veyne [1971], que define a intriga como uma combinação em
proporções variáveis de fins, causas e imprevistos e faz deste princípio o fio condutor da sua
obra de reflexão histórica.
264
o conceito de followability aparece na teoria histórica de W. B. gallie, Philosophy
and the Historical Understanding (1964), e, tal como a teoria de Veyne e de mink, foi apre-
sentada por nós, no capítulo anterior, no quadro das teses narrativistas.
232 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
265
«[...] la compétence à suivre l’histoire constitue une forme très élaboré de compré-
hension» (ricœur, TA, 14).
266
Vimos no capítulo anterior que a apologia da narrativa como entrelaçada de uma
dupla dimensão episódico-linear e configurante é essencial para fundamentar o parentesco da
história com a narrativa. muitos historiadores desconfiam ou recusam este parentesco porque
veem na narrativa uma mera sucessão sequencial ou cronológica de acontecimentos, o que a
tornaria inapta para a nova história.
267
«[...] bref l’acte de raconter, réfléchi dans l’acte de suivre une histoire, rend pro-
ductifs les paradoxes qui ont inquiété augustin au point de le reconduire au silence» (TR i,
131).
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 233
268
Vide «entre temps et récit: concorde/discorde» in aaVV, Recherches sur la philo-
sophie et langage. Cahier du groupe de recherches sur la philosophie et le langage de l’Uni-
versité de Grenoble, grenoble, 1982, 11.
269
«la constitution d’une tradition, en effet, repose sur le jeu de l’innovation et de la
sédimentation. c’est à la sédimentation, pour commencer par elle, que doivent être rapportés
les paradigmes qui constituent la typologie de la mise en intrigue. ces paradigmes sont issus
d’une histoire sédimentée dont la genèse a été oblitérée» (ricœur, TR i, 133).
234 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
270
«Nous racontons des histoires parce que finalement les vies humaines ont besoin et
méritent d’être racontées. cette remarque prend toute sa force quand nous évoquons la néces-
sité de sauver l’histoire des vaincus et des perdants. toute l’histoire de la souffrance crie ven-
geance et appelle récit» (tr i, 143).
271
a noção de leitura será alvo de uma importante expansão crítica no terceiro volume
de Temps et Récit, para assegurar o entrecruzamento da história e da ficção.
272
este conceito de referência herdado de Metáfora viva sofrerá uma revisão crítica no
terceiro volume de Temps et Récit onde será substituído pelos de representância – para mar-
car a assimetria entre a realidade do passado visada pela história e a irrealidade da ficção
– e de refiguração – para dar conta da especificidade do referente ficcional, e fugir à noção
de redescrição, oriunda também de Metáfora viva.
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 235
tico; dizendo a alguém algo acerca de alguma coisa, ele aponta para o mundo
fora de si – «ce que reçoit un lecteur, c’est non seulement le sens de l’œuvre
mais, à travers son sens, sa référence, c’est-à-dire l’expérience qu’elle porte au
langage et, à titre ultime, le monde et sa temporalité qu’elle déploie en face
d’elle» (ricœur, TR i, 148).
esta tese vai contra as teorias da semiótica e da linguística, que recusam
qualquer referência do texto ao mundo externo, em nome da estrita imanência
da própria linguagem literária. mas negar o impacto da literatura na experiência
quotidiana é, por um lado, assumir uma atitude positivista e, por outro, negar
à ficção o seu caráter subversivo de afetar a ordem moral e social. as obras
de ficção alargam o nosso horizonte de existência273. Não obstante, a função da
hermenêutica não consiste tanto em restituir a intenção do autor por trás da
obra, mas muito mais em explicitar o movimento através do qual um texto
expõe ao leitor uma proposta de mundo que transfigura o mundo do próprio
leitor274. No texto literário ficamos perante um mundo não empobrecido mas
sobressignificado na sua dimensão temporal pela ação de um aumento icónico.
o aumento icónico em causa consiste no aumento da legibilidade ou da com-
preensão do mundo pré-narrativo da praxis. Por conseguinte, «a ação humana
pode ser sobressignificada, porque ela já está pré-significada por todas as
modalidades da sua articulação simbólica» (ibid.: 153).
o assunto da última etapa de teorização da mimese iii diz respeito ao
terceiro momento da mimese i, ou seja, ao tempo da ação convertido pela
configuração mimética (mimese ii) em tempo narrado. o tempo da ação,
mais ainda que os outros traços da mimese i, é intensificado ou aumentado
iconicamente pela mise en intrigue e refigurado pela mimese iii. a questão
273
«c’est en effet aux œuvres de fiction que nous devons pour une grande part l’élar-
gissement de notre horizon d’existence. loin que celles-ci ne produisent que des images affai-
blies de la réalité, des “ombres” comme le veut le traitement platonicien de l’eikon dans l’or-
dre de la peinture ou de l’écriture (Phèdre, 274e-277e), les œuvres littéraires ne dépeignent la
réalité qu’en l’augmentant de toutes les significations qu’elles-mêmes doivent à leurs vertus
d’abréviation, de saturation et de culmination, étonnamment illustrés par la mise en intrigue»
(ricœur, TR i, 151).
274
«Je n’ai cessé, ces dernières années, de soutenir que, ce qui est interprété dans un
texte, c’est la proposition d’un monde que je pourrais habiter et dans lequel je pourrais pro-
jeter mes pouvoirs les plus propres» (ricœur, TR i, 152). «la fiction a ce pouvoir de
«refaire» la réalité praxique, dans la mesure où le texte vise intentionnellement un horizon de
réalité nouvelle que nous avons pu appeler un monde. c’est ce monde du texte qui intervient
dans le monde de l’action pour le configurer à nouveau ou, si l’on ose dire, pour le trans-
figurer» (ricœur, TA, 23).
236 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
275
este propósito – na continuidade da teoria narrativa que desenvolve sob a égide da
tríplice mimese – preenche as páginas do segundo volume de Temps et Récit, instigando
ricœur a diversificar a noção de temporalidade recebida da tradição agostiniana, procedendo
a um simultâneo alargamento, aprofundamento, enriquecimento e abertura para fora da noção
de mise en intrigue (mimesis ii) recebida da tradição aristotélica. Alargar a noção de mise
en intrigue significa, primeiramente, testar a capacidade do mythos aristotélico de se meta-
morfosear noutros géneros narrativos (como o conto popular, a epopeia, a tragédia e a comé-
dia, o romance) sem perder a sua identidade. Aprofundar a noção de “mise en intrigue” é
confrontar a inteligência narrativa que nos foi transmitida pelas narrativas da nossa cultura
com a racionalidade narratológica, muito particularmente com a semiótica narrativa de tipo
estruturalista. Enriquecer a noção de mise en intrigue e a que lhe é correlativa, a de tempo
narrativo, significa explorar os recursos da configuração narrativa que parecem próprios da
narrativa ficcional e isso implica distinguir enunciação de enunciado e, consequentemente,
tempo da narração e tempo das coisas narradas. Finalmente, abrir a mesma noção e a do
tempo que lhe é apropriado para fora, «é seguir o movimento de transcendência pelo qual
toda a obra de ficção, seja ela verbal ou plástica, narrativa ou lírica, projeta para fora de si
mesma um mundo a que podemos chamar mundo da obra». (ricœur, TR ii, 15). o mundo
da obra exibe ao leitor experiências fictícias do tempo. estes quatro objetivos levam ricœur
a entabular um diálogo com a crítica literária de Northrop Frye e Kermode, com o estru-
turalismo de roland Barthes, com a Morfologia do Conto de Propp e com os semióticos da
escola de greimas, como genette e günther müller, entre outros (tr II, 17-188). ilustra o
modo como a ficção lida com tempo do real a partir de três fábulas, três experiências
temporais da literatura contemporânea (tr II, 189-286): Mrs. Dalloway de Virgínia Woolf,
A Montanha Mágica de thomas mann e Em busca do tempo perdido de marcel Proust.
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 237
276
se é verdade que, de um ponto de vista epistemológico, a relação entre tempo e
narrativa e o parentesco entre história e narrativa já tinham ficado solidamente demonstrados
em Temps et Récit i, ricœur desde cedo admite que a dialética tempo narrativa não fica com-
pleta sem o confronto com a crítica literária (TR ii), donde extrai o conceito de “variações
imaginativas”, e a fenomenologia do tempo (TR iii, 21-178), onde põe a descoberto as apo-
rias da fenomenologia do tempo. só após esta conversação triangular, o filósofo fica em
posse dos instrumentos necessários para concluir o ciclo hermenêutico que pretende instaurar
entre uma poética da narratividade e uma aporética da temporalidade.
238 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
277
Não dispensamos a mesma atenção às soluções que as variações imaginativas ofe-
recem às aporias da fenomenologia do tempo, cingindo-nos a um breve apanhado das con-
siderações que ricœur produz para o efeito, porque isso implicaria uma exposição mais deta-
lhada e técnica quer do pensamento filosófico de Kant, Husserl e Heidegger a propósito do
tempo (cf. ricœur, TR iii, 21-178 e 229-251) quer das três fábulas sobre o tempo e do con-
ceito de “variações imaginativas” que o autor francês desenvolve ao longo do segundo
volume de Temps et Récit. além disso, preferimos destacar os contributos do tempo cons-
truído pelo trabalho do historiador, porquanto nos parecem mais relevantes para os propósitos
que norteiam a nossa investigação.
278
«l’histoire révèle une première fois sa capacité créatrice de refiguration du temps
par l’invention et l’usage de certains instruments de pensée tels que le calendrier, l’idée de
suite des générations et celle, connexe, du triple règne des contemporains, des prédécesseurs
et des successeurs, enfin surtout par le recours à des archives, des documents et des traces»
(TR iii, 189).
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 241
279
«[...] son institution constitue l’invention d’un tiers-temps» (TR iii, 190).
280
«s’il fallait opposer mythe et rite, on pourrait dire que le mythe élargit le temps
ordinaire (comme aussi l’espace), tandis que le rite rapproche le temps mythique de la sphère
profane de la vie et de l’action» (TR iii, 193).
242 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
281
ricœur diz-se devedor da obra de alfred schutz, The phenomenology of the social
world, Northwestern university Press, 1967, cap. iV: «the structure of the social World; the
realm of Directly experienced social reality; the realm of contemporaries, and the realm
of Predecessors», pp. 139-214.
282
W. Dilthey, «ueber das studium der geschichte, der Wissenschaften vom menschen,
der gesellschaft uns dem staat» 1875, Ges. Schriften, V, pp. 31-73.
283
Karl mannheim, «Das Problem der generationen», Kolner Vierteljahrshefte fur Sozio-
logie, Vii, munich et leipzig. Verlag von Duncker et Humblot, 1928, pp. 157-185, 309-330.
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 245
284
«l’enjeu, pour nous, est de discerner la signifiance du temps anonyme qui se consti-
tue à ce niveau médian, au point d’articulation entre temps phénoménologique et temps cos-
mique» (TR iii, 204).
246 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
285
«[...] dès lors que l’idée d’une dette à l’égard des morts, à l’égard des hommes de
chair à qui quelque chose est réellement arrivé dans le passé, cesse de donner à la recherche
documentaire sa finalité première, l’histoire perd sa signification» (TR iii, 216).
250 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
286
«o historiador prolonga a seu modo este dado familiar à linguagem, evidenciando
a profunda equivalência entre o caráter dinâmico da passagem (a atividade dos homens do
passado) e o caráter mais estático da marca (as obras enquanto produto dessa atividade): no
primeiro sentido (dinâmico), o passado é uma passagem e são os homens que são primaria-
mente visados como agentes ou autores (de que o traço é signo); no segundo sentido (está-
tico), o passado deixa uma marca e são as obras ou coisas que são primariamente visadas
como resultado dessa passagem passada (de que o traço é efeito)» (teixeira 2004, i: 260).
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 251
287
«la trace combine ainsi un rapport de signifiance, mieux discernable dans l’idée de
vestige d’un passage, et un rapport de causalité, inclus dans la choiséité de la marque» (TR
iii, 219).
288
«cette double allégeance de la trace, loin de trahir une ambigüité, constitue la trace
en connecteur de deux régimes de pensée et, par implication, de deux perspectives sur le
temps: dans la mesure même où la trace marque dans l’espace le passage de l’objet de la
quête, c’est dans le temps du calendrier et, par-delà celui-ci, dans le temps astral que la trace
marque le passage. c’est sous cette condition que la trace, conservée et non plus laissée
devient document daté» (TR iii, 219-220).
252 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
fundada. esta conexão entre as duas perspetivas temporais, verificada nos dois
conectores do tempo histórico, permite suturar a fratura especulativa, pois há
entre eles uma mútua e recíproca intromissão.
Da meditação de emmanuel lévinas289, ricœur aprende que o traço ou
não é um signo como os outros que se organizam em sistemas; pelo contrário,
ele desarranja qualquer sistema ou ordem, pelo facto de indicar sempre uma
passagem, não uma presença possível. Daí, a frase chave de que o traço sig-
nifica sem fazer aparecer. Por conseguinte, podemos considerá-lo um dos ins-
trumentos mais enigmáticos através dos quais a narrativa histórica refigura o
tempo.
289
«la trace», Humanisme de l’autre homme, Fata morgana, montpellier, 1972,
p. 57-63.
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 253
ciona-se diretamente com a maior liberdade do narrador que não tem, contra-
riamente ao historiador, de se submeter aos conectores específicos da reinscri-
ção do tempo vivido sobre o tempo cósmico. as personagens de uma obra de
ficção fazem uma experiência irreal do tempo, uma vez que as marcas tempo-
rais dessa experiência não exigem uma ligação à situação espácio-temporal que
caracteriza o tempo cronológico. a experiência temporal de um protagonista
não precisa de estar referida ao tempo do calendário e sabemos desde a epopeia
ao romance, passando pela tragédia e pela comédia antiga e moderna, que o
tempo da narrativa está livre das constrições que exigem uma relação com o
tempo do universo. Deste modo, não parece fazer qualquer sentido falar de
conectores entre o tempo fenomenológico e o tempo cosmológico no seio da
narrativa ficcional – «chaque expérience temporelle fictive déploie son monde,
et chacun de ces mondes est singulier, incomparable, unique» (TR iii, 231).
Não há um único mundo imaginário que serve de referência a todas as obras
ficcionais. Nenhuma experiência temporal fictícia pode ser absolutizada ou
tomada como modelo único.
Não obstante, o que parece ser uma desvantagem – a isenção das cons-
trições temporais do tempo cosmológico – revela-se, pelo contrário, uma van-
tagem: a ficção pode explorar à vontade os recursos do tempo fenomenológico
que a narrativa histórica está inibida de explorar, porque está obrigada a ligar
o tempo da história ao tempo cósmico através da reinscrição do primeiro sobre
o segundo. a exploração dos recursos escondidos no tempo fenomenológico e
as aporias que essa exploração suscita fazem a ligação secreta entre história e
ficção. ricœur entende a ficção como «uma reserva de variações imaginativas
aplicadas à temática do tempo fenomenológico e às suas aporias»290. Para o
demonstrar, o autor regressa aos três grandes textos literários (as três fábulas
sobre o tempo) e confronta-as com as aporias da fenomenologia do tempo.
290
«la fiction, dirai-je, est une réserve de variations imaginatives appliquées à la thé-
matique du temps phénoménologique et à ses apories» (TR iii, 231).
254 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
291
Mrs. Dalloway situa-se claramente depois da Primeira guerra mundial, mais pro-
priamente em 1923, e desenrola-se numa londres, capital de um ainda poderoso império bri-
tânico. a ação de A Montanha Mágica decorre em 1914, no limiar da guerra e os episódios
de Em busca do tempo perdido antes e depois da Primeira guerra mundial.
292
«[...] citation identique à l’intérieur d’univers temporels non superposables et incom-
municables» (TR iii, 233).
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 255
293
De acordo com ricœur, a arte da autora inglesa está em conseguir «entrosar o pre-
sente, as suas praias de iminência e de passado recente, com um passado relembrado, e assim
fazer progredir o tempo retardando-o» (L’art de Virginia Woolf est ici d’enchevêtrer le pré-
sent, ses plages d’imminence et de récence, avec un passé ressouvenu, et ainsi de faire pro-
gresser le temps en le retardant) (TR iii, 239). ademais, este facto torna-se visível em todas
as personagens principais cuja consciência do tempo gravita em torno de dois polos: o pre-
sente vivo, inclinado para a iminência do futuro; e uma série de quase-presentes que irradiam
lembranças do passado. o próprio tempo contínuo do romance avança através de uma espécie
de vasos comunicantes entre os múltiplos fluxos de consciência das personagens, as proten-
ções de uma personagem dirigem-se para as retenções de outra.
294
a fórmula de Proust equivalente à “repetição” é a de “tempo perdido reencontrado”.
a repetição não é reviviscência, ela atinge o seu auge quando a tensão imediata, que ocorre
nos momentos felizes, entre duas sensações semelhantes, é suplantada pela longa meditação
sobre a obra de arte. Nos momentos ditos felizes ou bem-aventurados, dois instantes seme-
lhantes eram milagrosamente aproximados, mas na meditação sobre a obra de arte «o milagre
fugitivo é fixado numa obra durável. o tempo perdido iguala o tempo reencontrado» (ricœur,
TR iii, 241).
258 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
295
«ainsi le mythe, que nous avons voulu écarter de notre champ de recherche, y aura
fait, malgré nous, deux fois retour [...]» [TR iii, 246]
260 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
296
o termo “représentance” é colhido por ricœur em F. Wahl, Qu’est-ce que le Struc-
turalisme?, Paris, 1968, 11. em La mémoire, l’histoire, l’oubli, o autor retoma o conceito, no
quadro da representação literária da história, dedicando-lhe uma longa nota onde nos explica
o significado que lhe atribui no contexto histórico, a partir da sua evolução lexical e semân-
tica fora da historiografia (vide MHO, 367-369).
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 261
297
Dosse diz: «Par ce concept de représentance, ricœur rend hommage à l’apport des
narrativistes et en même temps il met en garde contre l’indistinction épistémologique entre
fiction et histoire, rappelant l’exigence véritative du discours historique» (Dosse 2001: 6). cf.
etiam Dosse 2000: 109.
262 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
298
o conceito de representação, que fará o eixo de La mémoire, l’histoire, l’oubli, é
mencionado em Temps et récit, meramente, como contraste de representância, estando muito
longe da força e do protagonismo que adquirirá na obra posterior, como núcleo da revolução
epistemológica da micro-história.
299
«Je ne prétends pas que l’idée de passé soit construite par l’enchaînement même de
ces trois “grands genres”; je soutiens seulement que nous disons quelque chose de sensé sur
le passé en le pensant successivement sous le signe du même, de l’autre, de l’analogue»
(TR iii, 255).
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 263
300
Por exterior de um evento o autor entende tudo aquilo que, fazendo parte dele, é
passível de ser descrito como se de um corpo e seus movimentos se tratasse: a travessia do
rubicão por césar e seus soldados, numa certa data, ou o derramamento do seu sangue no
pavimento do senado, noutra data. Por interior entende-se aquilo que nele só pode ser descrito
em termos de pensamento: o desafio de césar à lei da república, ou o conflito da política
constitucional entre ele próprio e os seus assassinos. o trabalho do historiador pode iniciar-
-se na descoberta do exterior de um acontecimento – a sua faceta dinâmica – mas não pode
cingir-se ao mero evento: na medida em que todo o acontecimento foi uma ação, a sua mis-
264 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
cadeia de acontecimentos, como uma maneira de repensar o que foi já uma vez
pensado; e a conceber o repensar como numericamente idêntico ao primeiro
pensar. Por sua vez, cada um destes pressupostos corresponde a uma etapa de
análise do pensamento histórico, constante no capítulo V de A ideia de história:
o caráter documental do pensamento histórico301; o trabalho da imaginação na
interpretação da prova documental (evidence)302; o desejo de que as construções
303
«[...] as fontes dizem-nos que, num dia, césar estava em roma e, num outro dia,
estava na gália; não nos dizem nada sobre a sua viagem de um lugar para o outro, mas inter-
polamos isto com uma consciência perfeitamente clara» (collingwood 2001: 252).
266 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
304
sublinhe-se: as provas não são material prefabricado, destinado a ser tomado acri-
ticamente pelo historiador. Prova é tudo aquilo que o historiador pode usar como prova e tem
de ser alguma coisa percetível por ele aqui e agora. todo o mundo percetível é potencial-
mente uma prova, cabe ao historiador descobrir-lhe alguma validade a partir do seu próprio
conhecimento histórico que, quanto mais alargado for, mais possibilidade dá à prova de se
constituir enquanto tal. «a prova só é prova, quando alguém a observa historicamente. De
outro modo, não passa de um facto meramente percebido, historicamente mudo» [colling-
wood, 2001, 257]. este raciocínio leva collingwood a sustentar que «o conhecimento histó-
rico só pode desenvolver-se a partir de conhecimento histórico; por outras palavras, o pen-
samento histórico é uma atividade original e fundamental do espírito humano ou [...em termos
cartesianos] a ideia de passado é uma ideia “inata”» (collingwood 2001: 257).
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 267
ainda assim, estes três ditames são insuficientes para satisfazer a preten-
são à verdade das construções históricas; é fácil concluir que o quadro ou a
pintura imaginária do passado é outra diferente do passado.
o historiador, ainda que trabalhe muito tempo e com rigor, não pode nunca dizer
que o seu trabalho – mesmo sob a forma de simples esboço, ou neste ou naquele
mínimo pormenor – é definitivo. Não pode nunca dizer que o seu quadro do pas-
sado se adequa, em qualquer ponto, à sua ideia daquilo que ele devia ter sido
[ibid.: 259].
305
«Que deviennent les notions de processus, d’acquisition, d’incorporation, de déve-
loppement et même de critique, si le caractère événementiel de l’acte de réeffectuation lui-
même est aboli? comment appeler encore recréation un acte qui abolit sa propre différence
par rapport à la création originale?» (ricœur, TR iii, 263).
270 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
306
«a história não é [...] uma narração de acontecimentos sucessivos ou um relato de
transformações. ao contrário do cientista que estuda a natureza, o historiador não tem nada
a ver com os eventos como tais. só lhe dizem respeito os eventos que são expressão externa
de pensamentos, e só na medida em que exprimem pensamentos» (collingwood 2001: 232).
307
«se, sob o signo do mesmo, a alteridade era reabsorvida na pura ipseidade (do) pre-
sente, agora é esta que se dilui na pura alteridade do passado» (teixeira 2004, i: 277).
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 271
308
a conceptualização histórica acentua o efeito de afastamento temporal, pois corta
com o ponto de vista, as ignorâncias, as ilusões e toda a linguagem dos homens do passado;
afasta-os de nós no tempo. conceptualizar é adotar o olhar de simples curiosidade do etnó-
logo.
309
«ainsi la conceptualisation d’un invariant permet d’expliquer les événements; en
jouant sur les variables, on peut recréer, à partir de l’invariant, la diversité des modifications
historiques» (Veyne, apud ricoeur TR iii, 268: nota 1).
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 273
Por fim, ricœur convoca michel de certeau para este debate310. o histo-
riador francês é o que vai mais longe no sentido de uma ontologia negativa do
passado (vide michel de certeau, L’opération historique, in le goff et Nora
1974, i: 3-41). No pensamento de michel de certeau, a diferença surge num
sentido diametralmente oposto ao que vimos anteriormente. a apologia da dife-
rença inscreve-se agora no contexto de uma «sociologia da historiografia», no
qual não se problematiza mais o objeto ou o método da história, mas o histo-
riador quanto à sua atividade (fazer história é produzir qualquer coisa) e o
lugar social da operação histórica311. ora, o seu lugar é o não-dito por exce-
lência da historiografia. a história científica pretende ser produzida a partir de
nenhum lugar, como se não precisasse de juiz. No entanto, De certeau contesta
esta ambição, denunciando toda a história com pretensão científica de ser domi-
nada por uma ideologia implícita, que é o desejo de dominar e de transformar
o historiador em árbitro do sentido. resta-nos apurar de que forma esta posição
intelectual conduz à teoria do acontecimento como diferença. a mesma crítica
ideológica à ambição de domínio que alimenta a historiografia científica pode
ser estendida à construção de modelos e à investigação de invariantes. uma
história menos ideológica não se limitaria a construir modelos, mas a dar um
significado às diferenças provocadas pelo afastamento relativamente aos mode-
los. Por outras palavras, o estatuto de uma história menos ideológica exige não
tanto uma conceção da diferença como variante individualizada de uma inva-
310
michel de certeau, menos vezes citado nesta trilogia, verá a sua obra L’écriture de
l’histoire (1975) ser alvo de amplas e frequentes citações por parte de ricœur em La
mémoire, l’histoire, l’oubli, nomeadamente, a propósito da visão tripartida da operação histo-
riográfica e da noção de “o ausente da história”; o autor terá ainda lugar de destaque, como
mestre de rigor, ao lado de Foucault e Norbert elias (MHO, 257-261). Dosse (2006) fez um
estudo comparativo das teorias defendidas por ricœur e michel de certeau sobre a história.
apesar de em vida raramente terem dialogado, desenvolveram inequívocos pontos de conver-
gência.
311
«envisager l’histoire comme une opération, ce sera tenter, sur un mode nécessaire-
ment limité, de la comprendre comme le rapport entre une place (un recrutement, un milieu,
un métier, etc.) et des procédures d’analyse (une discipline)» (De certeau le goff et Nora
1974, i: 4).
274 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
312
«car comment une différence, toujours relative à un système abstrait et elle-même
aussi détemporalisée que possible, tiendrait-elle lieu de ce qui aujourd’hui absent et mort,
autrefois fut réel et vivant?» (ricoeur, TR iii, 271).
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 275
mesmo e do outro contêm elementos úteis para uma resposta final ao enigma
do “real” passado.
antes mesmo de descobrir a chave de representância ou lugar-tenência
que a virtude dialética ou simplesmente didática da série mesmo-outro-análogo
lhe permite alcançar para o problema exposto, ricœur é estimulado por algu-
mas «antecipações veladas desta categorização da relação de lugar-tenência ou
de representância em análises anteriores, onde não cessam de aparecer expres-
sões do tipo “tal como” (tal como foi)»313. Nesse sentido, a fórmula de leopold
ranke é paradigmática: define o ideal de objetividade histórica como uma ten-
tativa de “mostrar as coisas tal como efetivamente aconteceram” (“wie es
eigentlich war”). a expressão não afirma tanto a ambição de atingir o passado
ele-próprio, sem mediação interpretante, mas mais a obrigação do historiador se
despojar das suas preferências, de se apagar, para deixar falar as coisas. sem-
pre que se quer distinguir história de ficção, fala-se da exigência de uma certa
conformidade entre a narrativa histórica e o que realmente aconteceu. todavia,
sabemos que qualquer reconstrução histórica é necessariamente não coincidente
com o curso dos eventos que relata. muitos historiadores recusam até o termo
representação para designar o processo de reconstrução histórica, para desfazer
qualquer equívoco de uma reduplicação da realidade. simplesmente, uma
mudança terminológica não altera em nada o problema da correspondência com
o passado. se a história é uma construção, o historiador não abdica do seu ins-
tinto de reconstruir construindo. Quer seja sob o signo da empatia ou da curio-
sidade, ele é movido pelo desejo de fazer justiça ao passado. enquanto nosso
representante, está incumbido de pagar a nossa impagável dívida ao passado.
esta ideia lapidar de dívida para com o passado, que ricœur vai buscar à refle-
xão de michel de certeau (1975; cf. ricœur, TR iii, 283: nota 1), é comum
ao pintor e ao historiador: o primeiro procura dar-nos (rendre) a paisagem, o
outro o curso dos acontecimentos314.
Para além do motivo da dívida, um outro impele ricœur a entrar no
género do análogo: verificar até que ponto uma teoria dos tropos não poderá
revezar a articulação conceptual da representância, no ponto em que foi deixada
na análise das teorias anteriores. apesar de o género do análogo não vir con-
templado nas listas platónicas dos “grandes géneros”, ele surge na Retórica de
313
«[...] anticipations voilées de cette catégorisation du rapport de lieutenance ou de
représentance dans les analyses précédentes, où ne cessent de revenir des expressions de la
forme “tel que” (tel que cela fut)» (TR iii, 272).
314
«sous ce terme «rendre», je reconnais le dessein de «rendre son dû» à ce qui est
et ce qui fut» (ricœur, tr iii, 273).
276 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
315
esta obra, que reúne alguns dos artigos mais marcantes de Hayden White, foi publi-
cada em 1978. Nós usamos a edição de 1985. Daremos particular atenção ao artigo «the his-
torical text as literary artifact» (White 1985: 81-100).
316
«Para figurar-se “lo que realmente ocurrió” en el pasado, por lo tanto, el historiador
tiene que prefigurar como posible objeto de conocimiento todo el conjunto de sucesos regis-
trado en los documentos. este ato prefigurativo es poético en la medida en que es precog-
noscitivo y precrítico en la economía de la propia conciencia del historiador. también es poé-
tico en la medida en que es constitutivo de la estructura que posteriormente será imaginada
en el modelo verbal ofrecido por el historiador como representación y explicación de “lo que
ocurrió realmente” en el passado [...] en el ato poético que precede al análisis formal del
campo, el historiador a la vez crea el objeto de su análisis y predetermina la modalidad de
las estrategias conceptuales que usará para explicarlo» (White 1992: 40).
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 277
ricœur reage a esta teoria de White dizendo que se visa, de facto, o que
realmente aconteceu no passado, mas é paradoxal que não se possa descrever
este anterior a qualquer narrativa senão prefigurando-o (TR iii, 275)317.
317
a prefiguração de Hayden White nada tem que ver com a que é teorizada por
ricœur no quadro da mimesis i; trata-se de uma operação linguística que se desenrola ao
nível da massa documental ainda indiscriminada. No artigo «the historical text as literary
artifact», White é bem específico: [...] the only instruments that the [historian] has for endow-
ing his data with meaning, of rendering the strange familiar, and of rendering the mysterious
past comprehensible, are the techniques of figurative language. all historical narratives pre-
suppose figurative characterizations of the events they purport to represent and explain. and
this means that historical narratives, considered purely as verbal artifacts, can be characterized
278 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
by the mode of figurative discourse in which they are cast. if this is the case, then it may
well be that the kind of emplotment that the historian decides to use to give meaning to a
set of historical events is dictated by the dominant figurative mode of the language he has
used to describe the elements of his account prior to his composition of a narrative (1985:
94).
318
«Pero el número de estrategias explicatorias posibles no es infinito. Hay, en reali-
dad, cuatro tipos principales, que corresponden a los cuatro tropos principales del lenguaje
poético. [...] en suma, la teoría de los tropos nos proporciona una base para clasificar las for-
mas estructurales profundas de la imaginación histórica en determinado periodo de su evolu-
ción» (White 1992: 40).
319
«la ironia, la metonimia y la sinécdoque son tipos de metáfora, pero difieren entre
sí en los tipos de reduciones o de integraciones que efectúan en el nivel literal de sus sig-
nificados y por los tipos de iluminaciones a que apuntan en el nivel figurativo. la metáfora
es esencialmente representativa, la metonimia es reduccionista, la sinécdoque es integrativa
y la ironia es negativa» (White 1992: 43). Vide, etiam, White 1985: 91.
320
«la teoría de los tropos proporciona un modo de caracterizar los modos dominantes
del pensamiento histórico que tomaron forma en europa en el siglo XiX. Y como base para
una teoría general del lenguaje poético, me permite caracterizar la estructura profunda de la
imaginación histórica de ese periodo considerado como un proceso de ciclo cerrado. Porque
cada uno de los modos puede ser visto como una fase, o momento, dentro de una tradición
de discurso que evoluciona a partir de lo metafórico, pasando por comprensiones metonímica
y sinecdóquica del mundo histórico, hasta una aprehensión irónica del irreductible relativismo
de todo conocimiento» (White 1992: 47).
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 279
321
«this is what leads me to think that historical narratives are not only models of past
events and processes, but also metaphorical statements which suggest a relation of similitude
between such events and processes and the story types that we conventionally use to endow
the events of our lives with culturally sanctioned meanings. Viewed in a purely formal way,
a historical narrative is not only a reproduction of the events reported in it, but also a com-
plex of symbols which gives us directions for finding an icon of the structure of those events
in our literary tradition» (White 1985: 88).
280 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
322
No 7.º estudo de A metáfora viva, onde se reflete acerca de «metáfora e referência»,
ricœur defende basicamente o seguinte: tal como o sentido metafórico resulta da emergência
de uma nova pertinência semântica sobre as ruínas da pertinência semântica literal, do mesmo
modo, a referência metafórica procede da dissolução da referência literal. esta tese de teor
retórico tem um alcance ontológico. ricœur faz corresponder ao “ver-como” do enunciado
metafórico um “ser-como” extralinguístico revelado pela linguagem poética. o “ser-como” faz
justiça às realidades inacessíveis da linguagem ordinária, direta e literal e, neste sentido, a
poesia deteta o que a prosa não consegue. a analogia funciona, pois, como marca da relação
da linguagem com o mundo. Por outro lado, a correlação entre o “ver-como” e o “ser-como”
permite a ricœur combater a tese estruturalista que a linguagem aponta para si própria, admi-
tindo apenas relações imanentes. contra esta conceção, o autor francês vê na linguagem poé-
tica as virtudes máximas para dizer o segredo das coisas, para redescrever o real. em Temps
et Récit, ricœur não renuncia a esta tese, apenas deteta uma lacuna, a ausência de um elo
entre a referência metafórica pertencente ao próprio enunciado metafórico e o “ser-como”
para o qual tende; este elo é a leitura. um enunciado em si mesmo não tem capacidade de
se referir, precisa de alguém que estabeleça a referência. essa é a missão do leitor. É ele que
capta a nova pertinência semântica e a atualiza como impertinente para o sentido literal. só
o leitor é capaz de estabelecer a correspondência entre um “ser-como” inédito e o “ver-como”
suscitado pelo enunciado metafórico, deixado pelo poeta. Finalmente, o real que é redescrito
é o que pertence ao mundo do leitor. «c’est le monde du lecteur qui offre le site ontologique
des opérations de sens et de référence qu’une conception purement immanentiste du langage
voudrait ignorer» (ricœur, RF, 48).
282 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
323
Paul ricoeur dá grande destaque a este assunto num estudo intitulado precisamente
«appropriation», in Hermeneutics and Human Sciences. Essays on Language, Action and
Interpretation, Paris/cambridge, 1981, 182-194. Neste estudo, o autor fala da via que um
texto segue quando se dirige a alguém, desenvolvendo a partir daí a dialética entre o “mundo
do texto” e o “mundo do leitor”. o conceito de apropriação é pensado não enquanto projeção
do sujeito no texto, mas antes como a configuração de identidade do sujeito a partir da
apreensão dos mundos propostos pelo texto, mundos estes que são o genuíno objeto da inter-
pretação.
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 285
parte da obra de Wayne Booth, The Rhetoric of Fiction (1961), para refletir
sobre as técnicas utilizadas pelo autor a fim de tornar a sua obra comunicável.
Não o faz sem previamente esclarecer que a sua análise não faz cedências nem
à psicografia nem à autonomia semântica do texto: não perfilha a tese nem do
autor real, objeto de biografia, nem a tese estruturalista do texto como seman-
ticamente autónomo, omitindo a ação do autor.
a primeira etapa consiste, então, em fundamentar a inclusão da categoria
de autor implicado (na e pela obra) numa retórica da ficção. o autor implicado
é resultado da dissimulação do autor real e é ele que o leitor descobre nas mar-
cas do texto. a categoria do autor implicado desempenha um papel fundamental
numa teoria englobante da leitura, na medida em que o leitor se apercebe da
sua presença quando apreende intuitivamente a obra como uma totalidade uni-
ficada. esta unificação da obra deriva não apenas das regras de composição
(poética), mas também daqueles artifícios e estratégias que fazem do texto a
obra de um enunciador (retórica).
ainda a propósito das estratégias retóricas do autor, ricœur tece algumas
considerações acerca de narrador digno de confiança (reliable) e narrador não
digno de confiança (unreliable). apenas salientamos algumas. a confiança que
o narrador deve conquistar ao leitor e este atribuir-lhe está para a narrativa fic-
cional como a prova documental está para a historiografia. Porque não possui
provas documentais do que narra, o romancista pede ao leitor que confie nele
e lhe conceda o direito de comentar ou formular juízos a propósito das situa-
ções ou personagens que descreve. Quando o autor introduz (dramatiza) um
narrador na sua obra, este goza do mesmo privilégio do autor implicado, de
poder aceder, se quiser, ao interior das personagens. este privilégio faz parte
dos poderes retóricos investidos ao autor implicado pelo acordo tácito que se
estabelece entre autor e leitor. o caso do narrador indigno de confiança, fre-
quente no romance moderno, é particularmente interessante porquanto ele apela
à liberdade e à responsabilidade do leitor:
À la différence du narrateur digne de confiance, qui assure son lecteur qu’il n’en-
treprend pas le voyage de la lecture avec des vains espoirs et de fausses craintes
concernant non seulement les faits rapportés, mais les évaluations explicites ou
implicites des personnages, le narrateur indigne de confiance dérègle ces attentes,
en laissant le lecteur dans l’incertitude sur le point de savoir où il veut finalement
en venir. ainsi le roman moderne exercera-t-il d’autant mieux sa fonction de cri-
tique de la morale conventionnelle, éventuellement sa fonction de provocation et
d’insulte, que le narrateur sera plus suspect et l’auteur plus effacé, ces deux res-
sources de la rhétorique de dissimulation se renforçant mutuellement [TR iii, 296].
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 287
a literatura moderna requer, pois, um novo tipo de leitor que possa cor-
responder à desconfiança do narrador. Neste ponto, uma retórica centrada sobre
o autor, como é a de Wayne Booth, revela os seus limites, na medida em que
ela só dá conta da iniciativa de um autor desejoso de comunicar a sua visão
dos factos. Falta-lhe a contrapartida dialética, um leitor de um novo género,
também ele desconfiado, porque a leitura deixou de ser uma viagem segura na
companhia de um narrador digno de confiança, mas transformou-se num com-
bate com o autor implicado.
324
W. iser, The implied Reader. Patterns of Communication in Prose Fiction from Bun-
yan to Beckett, Baltimore/london, 1975, cap. Xi, «the reading Process: a Phenomenological
approach»; idem, Der Akt des Lesens. Theorie aesthetischer Wirkung, münchen, 1976; trad.
fr. de evelyne sznycer: L’acte de lecture. Théorie de l’effet esthétique, Bruxelles, P. mardaga,
1985.
325
Hans robert Jauss, Literaturgeschichte als Provokation, Frankfurt, suhrkamp, 1974.
seguimos a tradução portuguesa: A literatura como provocação, Passagens, lisboa, 20032
(trad. e pref. de teresa cruz).
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 289
ção de uma obra pelo público. Deste modo, justifica-se plenamente a inclusão
da fenomenologia do ato de ler na história literária, entretanto renovada pela
estética da receção.
326
roman ingarden desenvolve este assunto em duas grandes obras: Das literarische
Kunstwerk (trad. ingl. The Literary Work of Art), Halle, 1931, tübingen, 19612 e A Cognition
of the Literary Work of Art, Northwestern university Press, 1974.
327
Paul ricoeur detém-se, particularmente, no terceiro capítulo de L’acte de lecture:
«Phénoménologie de la lecture, pp. 245-286.
290 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
totalidade do texto nunca poder ser captada de uma só vez, quer o facto de o
leitor, colocado dentro do texto literário, “viajar” com ele à medida que pro-
gride na leitura.
Há dois traços que marcam a resposta do leitor à retórica da persuasão.
estes traços são os que sublinham o caráter dialético do ato de leitura e os que
nos inspiram a falar do trabalho de leitura como se do trabalho do sonho se
tratasse.
Quanto às dialéticas que emergem do ato de leitura que trabalha o texto,
podemos apontar três. a primeira reflete-se na resposta que a leitura dá à estra-
tégia da deceção, que consiste em frustrar a expetativa criada por uma confi-
guração imediatamente legível, deixando ao leitor a responsabilidade de confi-
gurar a obra. Bom exemplo é o Ulisses de Joyce e muitos dos romances do
período moderno. Nos antípodas do leitor enfastiado por uma obra demasiado
didática, que não deixa espaço à imaginação criadora, o leitor do romance
moderno corre o risco de sucumbir sob o peso de uma tarefa impossível –
suprir a falta de legibilidade maquinada pelo autor, facto este que leva ricœur
a comentar: «la lecture devient ce pique-nique où l’auteur apporte les mots et
le lecteur la signification» (TR iii, 308).
a primeira dialética, que espelha a leitura como uma espécie de combate,
suscita uma segunda, que manifesta a leitura não apenas como uma falta de
precisão mas também como um excesso de sentido. todo o texto, mesmo
aquele que é sistematicamente fragmentário, «revela-se inesgotável à leitura,
como se, pelo seu caráter inelutavelmente seletivo, a leitura revelasse no texto
um lado não escrito» (ricœur, TR iii, 308).
É, precisamente, este lado não escrito que a leitura se esforça prioritaria-
mente por figurar. assim sendo, o texto revela-se para a leitura, pela primeira
dialética, defetivo e, pela segunda, excessivo.
a terceira dialética esboça-se no horizonte desta procura de coerência. se
esta procura resultar, o não-familiar torna-se familiar, a ponto de o leitor, sin-
tonizado com a obra, se perder nela, tornando-se a concretização numa ilusão,
um julgar que se está a ver. se, ao invés, esta procura de coerência falhar, o
não-familiar continua como tal e o leitor não entra no imaginário da obra.
Posto isto, ricœur define o que entende por uma “boa” leitura: «la “bonne”
lecture est donc celle qui tout à la fois admet un certain degré d’illusion [...]
et assume le démenti infligé par le surplus de sens, le polysémantisme de l’œu-
vre, à toutes les tentatives du lecteur pour adhérer au texte et à ses instruc-
tions» (TR iii, 308).
a “boa” leitura mantém o leitor a uma “boa” distância do texto – distân-
cia esta em que a ilusão é simultaneamente irresistível e insustentável, em que
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 291
Posto isto, será legítimo admitir que existe no texto sinais de um leitor
implicado (identificado com o destinatário virtual da obra e decifrável nas ins-
truções que o texto emite para o leitor real) em correlação perfeita com um
autor implicado (decifrável no estilo singular do texto), cada um deles correla-
tos ficcionais de entidades reais? ricœur denuncia a falácia da simetria. o
autor implicado é um disfarce do autor real, que desaparece ao transformar-se
no narrador imanente à obra (voz narrativa); pelo contrário, o leitor real é uma
concretização do leitor implicado, alvo da estratégia de persuasão do narrador;
face a ele, o leitor implicado permanece virtual enquanto não for atualizado. ou
seja, o processo é inverso, enquanto um pretende dissimular-se, o outro deve
aparecer: «tandis que l’auteur réel s’efface dans l’auteur impliqué, le lecteur
impliqué prend corps dans le lecteur réel» (TR iii, 311).
É por este último (o leitor real) que se interessa uma fenomenologia do
ato de ler. contrariando crenças demasiado textualistas, que defendem a auto-
nomia semântica do texto, ricœur salvaguarda a irredutibilidade do leitor real,
não o deixando coincidir totalmente com o leitor implicado (efeito variável da
estrutura do texto). e percebe-se porque é que ricœur insiste em defender a
existência de um leitor real que dá corpo ao leitor virtual, simplesmente porque
sem ele não há refiguração da obra, o leitor virtual não é suficiente para refi-
gurar a mensagem que o texto veicula. autor implicado e leitor implicado são
meras categorias literárias compatíveis com a autonomia semântica do texto.
são construtos do próprio texto e são correlatos ficcionais de seres reais, mas
a fenomenologia do ato de leitura, se quisermos dar toda a amplitude ao tema
da interação, tem necessidade de um leitor em carne e osso, que, ao efetivar
o papel do leitor pré-estruturado no e pelo texto, o transforma.
292 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
a outra face da estética da receção que ricœur convoca para o seu estudo
é composta pela hermenêutica da receção pública de uma obra, núcleo da Esté-
tica da Receção de H. r. Jauss, autor fortemente influenciado por gadamer.
o intuito da sua obra não é o estabelecimento de uma teoria fenomenológica
do ato de ler, mas sim a renovação da história da literatura.
a tese principal da Estética da Receção de Jauss, da qual decorrem as
restantes, faz assentar o significado de uma obra literária sobre a relação dia-
lógica, que em cada época, ela estabelece com o seu público. esta tese, que
tem pontos de contacto com a de collingwood – segundo a qual a história é
a reconstituição do passado no espírito do historiador – consegue trazer para o
perímetro da obra o efeito que a mesma produz ou, para ser mais exato, o sen-
tido que lhe atribuiu o público. mais do que o efeito atual, é a “história dos
efeitos” – expressão central na hermenêutica filosófica de gadamer – que deve
ser considerada; por sua vez, esta exige a restituição do “horizonte de expeta-
tiva” (conceito husserliano) da obra literária considerada, ou seja, a restituição
de todo um sistema de referências complexamente estruturado por tradições
anteriores, concernentes ao género, ao tema, ao grau de oposição existente nos
primeiros destinatários entre a linguagem poética e a linguagem corrente. a
título de exemplo, seria impossível compreender o sentido da paródia do D.
Quixote se não pudermos reconstruir todo o sentimento de familiaridade do
público da época com os romances de cavalaria e, consequentemente, o choque
produzido por uma obra que frustra as expetativas do público. este fenómeno
da alteração do horizonte verifica-se com mais frequência em obras novas. Por
isso, «o fator decisivo para o estabelecimento de uma história literária consiste
em identificar os desvios estéticos (écarts esthétiques) sucessivos entre o hori-
zonte de expetativa preexistente e a nova obra, desvios que delimitam a receção
da nova obra. estes desvios constituem os momentos de negatividade da rece-
ção» (TR iii, 313). reconstituir o horizonte de expetativa de uma experiência
ainda desconhecida é reencontrar o jogo de questões às quais a obra propõe
uma resposta. a lógica da questão e da resposta significa que só podemos com-
preender uma obra depois de percebermos a que é que ela responde. esta
mesma lógica obriga-nos a corrigir a ideia errada de que a história é toda ela
uma história de desvios, ou seja, uma história da negatividade, porque enquanto
resposta, a receção de uma obra opera uma certa mediação entre o passado e
o presente, ou melhor, entre o horizonte de expetativa do passado e o horizonte
de expetativa do presente. Posto isto, é esta mediação histórica que possibilita
a história literária. Para Jauss – contrariamente a gadamer e a Hegel, para
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 293
quem o caráter clássico de uma obra provém da “fusão de horizontes”, que faz
a estabilização duradoira da sua significação – a perenidade das grandes obras
é apenas a «estabilização provisória da dinâmica da receção» (ricœur, TR iii,
314). aquilo que para nós é clássico não foi desde logo captado como sub-
traído ao tempo, mas como algo que abriu um novo horizonte. uma obra dita
“clássica” é uma obra aberta, com capacidade para prefigurar uma experiência
futura, contrariando a ideia de uma verdade intemporal. a história dos seus
efeitos não está concluída, pois toda a obra é não apenas uma resposta a uma
questão anterior, mas uma fonte de novas questões.
Quanto à influência social da obra de arte, Jauss recusa liminarmente as
teses estrábicas e antinómicas do estruturalismo extremo (que proíbe “sair do
texto”) e do marxismo dogmático (que vê as obras de arte como um reflexo ou
imitação natural da sociedade). Jauss situa a “função criadora da obra de arte”
ao nível do “horizonte de expetativa” de um público, coincidindo deste modo
com ricœur na crítica à estética da representação, na aceção de cópia –
recorde-se o papel de descoberta e de transformação atribuído à mimese ricœu-
riana. Jauss sublinha ainda que o “horizonte de expetativa” próprio da literatura
não coincide com o da vida quotidiana e que se uma obra nova pode criar um
desvio estético é porque existe um desvio prévio entre o conjunto da vida lite-
rária e a prática quotidiana. mas este não é o único desvio, há uma oposição
ainda mais indispensável entre linguagem poética e linguagem prática ou entre
mundo imaginário e realidade social328. a função de criação social da literatura
acontece exatamente neste ponto de articulação entre as expetativas específicas
da arte e da literatura e as expetativas que constituem a praxis quotidiana. É
por isso que só indiretamente a literatura influi sobre os costumes, criando des-
vios de segundo grau ou secundários relativamente ao desvio primário entre o
imaginário e o real quotidiano. cabe ao leitor formular as questões apropriadas
para a solução que a obra lhe oferece – questões constitutivas do problema
estético e moral suscitado pela obra. o momento em que a literatura atinge a
sua máxima influência social é, provavelmente, quando consegue colocar o lei-
tor nessa situação de interrogante.
o maior contributo da estética da receção é a constituição de uma her-
menêutica literária, que ultrapassa em larga escala o seu propósito inicial de
renovação da história literária. mas esta hermenêutica literária, que deveria
328
«c’est un trait fondamental de l’horizon d’attente sur lequel se détache la réception
nouvelle, qu’il soit lui-même l’expression d’une non-coïncidence plus fondamentale, a savoir
l’opposition, dans une culture donnée, “entre langage poétique et langage pratique, monde
imaginaire et réalité social”» (TR iii, 317).
294 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
329
«[...] la projection d’un monde fictif consiste dans un processus créateur complexe,
qui peut n’être pas moins porté par une conscience de dette que le travail de reconstruction
de l’historien» (ricœur, TR iii, 324).
296 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
330
«cette oscillation entre le même et l’autre n’est surmontée que par l’opération
caractérisée par gadamer et Jauss comme fusion des horizons et qui peut être tenue pour
l’idéal-type de la lecture. Par-delà l’alternative de la confusion et de l’aliénation, la mise en
convergence de l’écriture et de la lecture tend à établir, entre les attentes créés par le texte
et celles apportées par la lecture, une relation analogisante, qui n’est pas sans rappeler celle
dans laquelle culmine la relation de représentance du passé historique» (ricœur, TR iii, 326).
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 297
331
«avec ce chapitre, nous atteignons le but qui n’a cessé de régir la progression de
nos investigations, à savoir, la refiguration effective du temps, devenu ainsi temps humain, par
l’entrecroisement de l’histoire et de la fiction» (TR iii, 329).
298 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
Para atingir este ponto de confluência, explica o próprio, foi fundamental passar
pelas fases precedentes de heterogeneidade e de paralelismo. as aporias reve-
ladas pela fenomenologia do tempo foram o pretexto para reunir frente a frente
história e ficção, tendo a primeira respondido com o tempo histórico (resultante
da reinscrição do tempo vivido sobre o tempo cosmológico) e a segunda com
as variações imaginativas (resultantes da ficcionalização do tempo). respostas
diferentes – podemos dizer, mesmo opostas – mas que constituem um primeiro
ponto de atração, ou melhor, de confronto, entre as duas disciplinas. em
seguida, a teoria da leitura aproximou história e ficção, tendo criado um jogo
de espelhos entre a representância do passado histórico e a transposição do
mundo fictício do texto para o mundo efetivo do leitor. uma teoria alargada da
leitura mostrou o ato de ler não confinado à receção de textos literários, pois,
lembra-nos ricœur, não somos menos leitores de história do que de romances
– «toute graphie, dont l’historiographie, relève d’une théorie élargie de la lec-
ture» (ricœur, TR iii, 330). a leitura é a responsável pelo envolvimento mútuo
de história e ficção. e é, justamente, de uma teoria alargada da receção que
parte ricœur para as análises que consagra ao entrecruzamento de história e
ficção. Por entrecruzamento da história e da ficção ricœur entende «a estrutura
fundamental, tanto ontológica como epistemológica, em virtude da qual a his-
tória e a ficção só concretizam cada uma a sua respetiva intencionalidade
emprestando mutuamente à intencionalidade uma da outra» (TR iii, 330).
a referida concretização apela à teoria da narrativa, mormente, à noção
desenvolvida por ricœur em La métaphore vive do “ver-como”, com a qual
caracterizou a referência metafórica e depois, com a ajuda de H. White, tam-
bém a conexão da representância da consciência histórica com a referência do
passado, através de uma apreensão “analogizante”. mas o que ricœur demons-
tra neste capítulo final é que esta concretização só é alcançada quando a his-
tória se serve de algum modo da ficção para refigurar o tempo e a ficção se
serve da história com o mesmo intuito. «cette concrétisation mutuelle marque
le triomphe de la notion de figure, sous la forme du se figurer que...» (ricœur,
TR iii, 331).
a referência por traços ao real passado usa a imaginação que aprende na
referência metafórica comum a todas as obras poéticas, pois a reconstrução do
passado obriga ao uso da imaginação; porém, na medida em que é orientada
para e pelo real do passado, a referência por traços empresta à referência meta-
fórica uma parte do seu dinamismo referencial, pois toda a narrativa é narrada
como se tivesse tido lugar, como o atesta os tempos verbais do passado usados
para narrar o irreal. É nesse sentido que se pode dizer que a ficção deve tanto
à história como a história à ficção e que, por isso, existe uma referência cru-
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 299
332
«[...] la question est justement de montrer de quelle façon, unique en son genre,
l’imaginaire s’incorpore à la visée de l’avoir-été, sans en affaiblir la visée “réaliste”» (TR iii,
331).
333
«cette réinscription du temps du récit dans le temps de l’univers, selon une unique
échelle, demeure la spécificité du mode référentiel de l’historiographie» (ricœur, TR iii, 331).
300 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
intérprete faz a tradução contínua de uma língua para outra, juntando dois uni-
versos linguísticos, o gnómon une dois processos, de acordo com determinadas
hipóteses sobre o mundo: um processo é o movimento do Sol, ao qual se junta
o da vida de quem consulta o gnómon; a hipótese diz respeito aos princípios
implícitos na construção e no funcionamento do quadrante solar. tal como o
calendário, o quadrante pertence a dois universos: por um lado, pertence ao
universo da vida humana, por outro, ao universo astronómico. só porque se
acredita que é possível fazer derivar sinais relativos ao tempo a partir do movi-
mento da sombra é que se põem estes dois mundos em relação. Por esta
crença, o homem organiza a sua vida em função dos movimentos da sombra;
porém, esta, porque é independente, não se dobra ao ritmo das necessidades e
dos desejos do homem. Para ler o gnómon tem que haver divisões horárias e
curvas concêntricas, que informam, respetivamente, sobre a hora (pela orienta-
ção da sombra sobre o quadrante solar) e sobre a estação do ano (através da
extensão da sombra ao meio-dia).
mettre en parallèle deux cours hétérogènes d’événements, former une hypothèse
générale sur la nature dans son ensemble, construire un appareil approprié, telles
sont les principales démarches inventives qui, incorporées à la lecture du cadran
solaire, font de celui-ci une lecture de signes, une traduction et une interprétation
[...] [TR iii, 333].
334
The Genesis and Evolution of Time. A critic of Interpretation in Physics, the uni-
versity of massachusetts Press, amherst, 1982.
335
«la datation d’un événement présente ainsi un caractère synthétique, par lequel un
présent effectif est identifié à un instant quelconque» (ricœur, TR iii, 333).
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 301
336
«il est toujours possible d’étendre le souvenir, par la chaîne des mémoires ances-
trales, de remonter le temps en prolongeant par l’imagination ce mouvement régressif [...]. en
ce sens, le réseau des contemporains, des prédécesseurs et des successeurs schématise – au
sens kantien du terme – la relation entre le phénomène plus biologique de la suite des géné-
rations et le phénomène plus intellectuelle de la reconstruction du règne des contemporains,
des prédécesseurs et des successeurs. le caractère mixte de ce triple règne en souligne le
caractère imaginaire» (ricœur, TR iii. 334).
302 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
337
«[...] le passé, c’est ce que j’aurais vu, dont j’aurais été le témoin oculaire, si j’avais
été là, de même que l’autre côté des choses est celui que je verrais si je les apercevais de
là où vous les considérez. ainsi la tropologie devient l’imaginaire de la représentance»
(ricœur, TR iii, 336).
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 303
mento histórico, cujo objeto não é observado nem observável, reside neste “do
mesmo modo que” 338.
338
Joaquim teixeira, no seu estudo sobre ipseidade e alteridade em ricœur, observa que
também aqui (na aproximação ao passado histórico) ipseidade e alteridade não se opõem total-
mente, sob pena de caírem na pura indizibilidade e impensabilidade. e acrescenta: «esta com-
preensão lógica e analógica do outro em geral recebe, no caso específico do outro histórico
(dos outros homens passados com que estamos «em dívida»), um prolongamento afetivo, poé-
tico («em imaginação e simpatia») e ético («dívida» para com os mortos)» [2004, i: 267].
304 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
339
«Je parlerais volontiers d’illusion contrôlée pour caractériser cette heureuse union
qui fait, par exemple, de la peinture de la révolution française par michelet une œuvre lit-
téraire comparable à Guerre et Paix de tolstoï, dans laquelle le mouvement procède en sens
inverse de la fiction vers l’histoire et non plus de l’histoire vers la fiction» (TR iii, 338).
340
em La mémoire, l’histoire, l’oubli, ricœur retomará este tema da imagem e do
“fazer ver”, dando-lhe um mais amplo destaque. com a ajuda das reflexões de louis marin,
ricœur desenvolve toda uma argumentação que visa pôr em relevo os privilégios retóricos da
imagem no momento mais específico da representação histórica (MHO, 339-358).
341
«Je pense à ces événements qu’une communauté historique tient pour marquants,
parce qu’elle y voit une origine ou un ressourcement. ces événements, qu’on dit en anglais
“epoch-making”, tirent leur signification spécifique de leur pouvoir de fonder ou de renforcer
la conscience d’identité de la communauté considérée, son identité narrative, ainsi que celle
de ses membres» (ricœur, TR iii, 339).
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 305
342
«ce qui rend suspecte la commémoration révérencieuse, c’est son affinité avec l’his-
toire des vainqueurs, bien que je tienne l’élimination de l’admiration, de la vénération, de la
pensée reconnaissante pour impossible et peu souhaitable» (ricœur, TR iii, 340).
343
como veremos no próximo capítulo, em que analisaremos as reflexões de ricœur
acerca de história, memória e esquecimento, este tema da comemoração associado aos abusos
da memória aparecerá como um dos motivos maiores de redação de La mémoire, l’histoire,
l’oubli.
306 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
344
«Na tragédia, porém, os poetas prendem-se a nomes reais e a razão disso é que o
possível é fácil de acreditar. Na verdade, nós não acreditamos que coisas que ainda não acon-
teceram sejam possíveis; ao contrário, pelo facto de terem acontecido, torna-se evidente que
eram possíveis, pois não teriam ocorrido se fossem impossíveis» (aristóteles 2004: 1451 b
15-18).
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 309
345
«ce n’est pas lorsque le roman exerce une fonction historique ou sociologique
directe, mêlée à sa fonction esthétique, qu’il pose le problème le plus intéressant quant à la
vérisimilitude. la véritable mimèsis de l’action est à chercher dans les œuvres d’art les moins
soucieuses de refléter leur époque. l’imitation, au sens vulgaire du terme, est ici l’ennemi par
excellence de la mimèsis. c’est précisément lorsqu’une œuvre d’art rompt avec cette sorte de
vraisemblance qu’elle déploie sa véritable fonction mimétique» (ricœur, TR iii, 346).
310 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
3. NOTAS FINAIS
l’histoire à une activité d’interprétation de textes clos sur eux-mêmes. mais les
Annales rejettent également le “positivisme plat” (proche ici du labroussisme,
entendu comme une “fossilisation” des propositions de labrousse) qui ignore les
processus de construction sociale de la réalité et postule que les catégories sont
une copie du réel [Delacroix, Dosse, garcia 2007: 516-517].
CAPÍTULO IV
REPRESENTAÇÃO E FICÇÃO
346
«Poser cette question, c’est demander en quoi l’histoire reste ou plutôt devient
représentation du passé, ce que la fiction n’est pas, du moins en intention, si elle l’est en
quelque sort par surcroît» (ricœur, MHO, 240).
347
No preâmbulo da obra, ricœur aponta os três motivos principais que presidiram à
feitura da mesma. em primeiro lugar, a preocupação privada de preencher uma lacuna de
Temps et Récit, onde a relação direta entre experiência temporal e narrativa histórica e fic-
cional descurou os níveis intermédios da memória e do esquecimento. em segundo, uma con-
sideração profissional, que diz respeito à participação do autor em imensos colóquios e deba-
tes e seminários promovidos por historiadores profissionais em torno do problemático
relacionamento entre memória e história. Por fim, uma preocupação pública: o autor confessa-
-se perturbado quer pelo excesso de memória quer pelo excesso de esquecimento, bem como
pela influência das comemorações e dos abusos de memória e de esquecimento. Daí o seu
projeto de uma política da justa memória. «l’idée d’une politique de la juste mémoire est à
cet égard un des mes thèmes civiques avoués» (MHO, i; vide, etiam, ricœur 1998b: 17).
Dosse (200: 1-2) sublinha as circunstâncias favoráveis que tornam a publicação da obra de
ricœur extremamente oportuna e pertinente: crise de historicidade com uma consequente
febre das comemorações; recurso constante aos historiadores por parte de uma sociedade que
tem tendência para confundir os papéis da testemunha, do perito, do juiz e do historiador;
perda de valor estruturante dos grandes esquemas ideológicos de explicação histórica (funcio-
nalismo, estruturalismo, marxismo e outros -ismos) que gera um clima de incertezas acerca
do interesse da operação histórica.
capítulo iV – rePreseNtação e Ficção 315
348
cf. lawrence stone, «retour au récit ou réflexions sur une nouvelle histoire»
(1980); le goff, «comment écrire une biographie historique aujourd’hui» (1989); entre nós,
cf. Fátima Bonifácio: «o abençoado retorno da velha história» (1993); «a narrativa da época
pós-histórica» (1999); Apologia da história política (1999).
349
«les interactions humaines [...] survenant entre les agents et les patients de l’agir
humain, ne se prêtent aux processus de modélisation par lesquels l’histoire s’inscrit parmi les
sciences sociales qu’au prix d’une objetivation méthodique qui a valeur de coupure épistémo-
logique par rapport à la mémoire et au récit ordinaire. À cet égard, histoire et phénoméno-
logie de l’action ont intérêt à rester distinctes pour le plus grand bénéfice de leur dialogue»
(ricœur, MHO, 232).
350
o esquecimento e o perdão constituem o horizonte final da reflexão ricœuriana, per-
mitindo a unificação das três partes que formam o livro: «l’oubli et le pardon désignent,
séparément et conjointement, l’horizon de toute notre recherche. séparement, dans la mesure
où ils relèvent chacun d’une problématique distincte: pour l’oubli celle de la mémoire et de
la fidélité au passé; pour le pardon, celle de la culpabilité et de la réconciliation avec le
passé» (ricœur, MHO, 536). o esquecimento é um elemento do dever de memória e, ao
mesmo tempo, uma marca da vulnerabilidade da condição humana. De um modo geral, o
esquecimento é como que a sombra da memória infeliz projetada sobre a memória feliz.
a esse nível, o perdão desempenha a função de esquecimento feliz, que possibilita uma
316 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
White, pela configuração narrativa e pela retórica literária, mas seja obrigada a
cumprir o trajecto completo da epistemologia histórica, incluindo a prova docu-
mental e o processo de explicação/compreensão353. Para além disso, mostrando
um avanço relativamente a Temps et Récit, o filósofo francês tem o cuidado de
separar o que provém dos modelos explicativos do que provém da mise en
intrigue354. Deste modo, estabelece as bases de uma epistemologia histórica
capaz de restituir, até certo ponto, o passado e corresponder ao pacto de leitura,
assente num compromisso de verdade, entre historiador e leitor.
Não se pode pôr no mesmo plano de rigor científico história e memória,
mas a segunda é filha da primeira355. além do mais, a história precisa da
memória, da memória arquivada, ponto de partida da prova documental, capaz
de certificar ou invalidar determinada explicação. a memória procura ser fiável
e obter confiança; a história, verdadeira, crítica e obter ciência. É o lema da
verdade que ressurge no pensamento de ricœur com toda a vitalidade. a ques-
tão propriamente dita da ficção está implícita, ganhando proeminência na
segunda secção da obra e, dentro desta, de forma mais relevante, no momento
da redação do discurso histórico ou da representação literária.
À luz do que propõe michel de certeau em Faire de l’histoire (1974:
3-41), ricœur começa por estabelecer a análise epistemológica como historio-
grafia356. isto significa que a história é escrita de uma ponta à outra da ope-
353
a citação que transcrevemos a seguir é lapidar nesta obra de ricœur, porquanto ela
resume a sua posição relativamente às teses de H. White e a sua teoria epistemológica da his-
tória: «il faut patiemment articuler les modes de la représentation sur ceux de
l’explication/compréhension et, à travers ceux-ci, sur le moment documentaire et sa matrice
de vérité présumée, à savoir le témoignage de ceux qui déclarent s’être trouvés là où les
choses sont advenues. on ne trouvera jamais dans la forme narrative en tant que telle la rai-
son de cette quête de référentialité. c’est ce travail de remembrement du discours historique
pris dans la complexité de ses phases opératoires qui est totalement absent des préoccupations
de H. White» (ricœur, MHO, 328).
354
«[...] la crainte de confondre la cohérence narrative avec la connexité explicative
m’a conduit à ajourner le traitement du narratif en histoire jusqu’au moment de la prise en
compte des signes de littérarité» (ricœur 2000b: 742).
355
a ideia de memória como matriz da história é muito cara a ricœur, na medida em
que a história é herdeira das aporias e embaraços da memória: «si l’histoire a au plan du
savoir un commencement distinct, marqué de noms fameux, Hérodote, thucydide, voire des
sources plus anciennes, ses problèmes majeurs, et, pour le dire d’emblée, ses difficultés, ses
embarras lui viennent de plus loin qu’elle, de la mémoire précisément» (ricœur 1996: 7).
356
Historiografia não designa aqui, restritamente, nem a fase da pesquisa ou da prova
nem a fase da escrita, mas sim todo o processo tripartido que constitui a operação histórica,
logo, deve ser entendida na aceção que lhe dá certeau: operação em que consiste o conhe-
318 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
cimento histórico. É por isso que ricœur tem o cuidado de não chamar fase historiográfica
à fase de composição do texto histórico, mas antes “literária” ou “escriturária” para sublinhar
o modo de expressão ou “representativa”, se a tónica é posta na exposição ou na exibição
da intenção histórica, que consiste na representação presente das coisas ausentes do passado.
357
ricœur retoma em MHO a mesma divisão triádica (pesquisa, explicação, escrita)
que já tinha ensaiado num estudo anterior: «Philosophies critiques de l’histoire: recherche,
explication, écriture», in guttorm FlØistad (dir.), Philosophical Problems Today, i, Dordrecht-
Boston-londres, Kluwer academic Publishers, institut international de philosophie, 1994, pp.
139-201.
358
«on a proposé le mot “phase” pour caractériser les trois segments de l’opération
historiographique. il ne doit pas y avoir d’équivoque concernant l’usage du terme: il ne s’agit
pas de stades chronologiquement distincts, mais de moments méthodologiques imbriqués les
uns dans les autres; [...] nul ne consulte une archive sans projet d’explication, sans hypothèse
de compréhension; et nul ne s’emploie à expliquer un cours d’événements sans recourir à une
mise en forme littéraire expresse de caractère narratif, rhétorique ou imaginatif. toute idée de
succession chronologique doit être bannie de l’emploi du terme “phase opératoire”» (ricœur,
MHO, 170).
capítulo iV – rePreseNtação e Ficção 319
1. REPRESENTAÇÃO MNEMÓNICA
359
ao começar a sua obra pela representação mnemónica, ricœur não tem intenção de
tomar partido pelos advogados da memória contra a história, ele fá-lo porque o problema da
representação, que é a cruz do historiador, já figura no campo da memória antes de chegar
à história. «l’histoire en ce sens est l’héritière d’un problème qui se pose en quelque sorte
en dessous d’elle, au plan de la mémoire et de l’oubli; et ses difficultés spécifiques ne font
que s’ajouter à celles propres à l’expérience mnémonique» (ricœur 2000b: 731). o estudo
que ricœur apresenta em MHO sobre a memória, e que ocupa a primeira parte do tríptico
em que se divide a obra, tem por base uma série de artigos que o autor foi apresentando em
colóquios ou em revistas. Destacamos «entre mémoire et histoire» (1996), «Histoire et
mémoire» (1998b) e «l’écriture de l’histoire et la représentation du passé» (2000b).
320 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
360
«À la mémoire est attachée une ambition, une prétention, celle d’être fidèle au
passé; à cet égard, les déficiences relevant de l’oubli [...] ne doivent pas être traitées d’em-
blée comme des formes pathologiques, comme des dysfonctions, mais comme l’envers d’om-
bre de la région éclairée de la mémoire, qui nous relie à ce qui s’est passé avant que nous
en faisons mémoire. si l’on peut faire reproche à la mémoire de s’avérer peu fiable, c’est
précisément parce qu’elle est notre seule et unique ressource pour signifier le caractère passé
de ce dont nous déclarons nous souvenir. Nul ne songerait à adresser pareil reproche à l’ima-
gination, dans la mesure où celle-ci a pour paradigme l’irréel, le fictif, le possible et d’autres
traits qu’on peut dire non positionnels [...] Pour le dire brutalement, nous n’avons pas mieux
que la mémoire pour signifier que quelque chose a eu lieu, est arrivé, s’est passé avant que
nous déclarions nous en souvenir» (ricœur, MHO, 26)
361
É como imagem presente de algo ausente que a memória se junta à história, pois
o passado que ambas buscam padece desse enigma de ausência-presença. a história é um
“motor de busca” que procura incessantemente o que michel de certeau chama o “ausente
da história”, isto é, a recordação reconhecida como passado.
362
«Voici l’énigme: le souvenir vient à l’esprit comme une image qui se donne spon-
tanément comme signe, non d’elle-même présente, mais d’une autre chose absente qui, dans
le cas précis de l’image-souvenir, est désignée comme ayant existé auparavant. trois traits par
conséquent: présence, absence, antériorité; trois traits assignés à des entités différentes. la
présence est celle de l’image même, mais d’une image qui se donne comme la trace, l’em-
preinte, le signe de la chose absente» (ricœur 1996: 8).
capítulo iV – rePreseNtação e Ficção 321
ficidade, por isso ricœur conduz a sua reflexão tendo como divisa a asserção
aristotélica «a memória é do passado», extraída do seu pequeno texto Acerca
da memória e da reminiscência, que integra o grupo das Parva Naturalia. Dife-
rentemente da fantasia ou da imaginação, com a memória, a marca do antes e
do depois está ligada à coisa evocada. a marca temporal é encontrada pela dis-
tinção que o estagirita estabelece entre mneme e anamnesis. a “mneme”
(memória) designa a impressão passiva surgida na memória e passível de invo-
cação espontânea; a “anamnesis” (reminiscência) designa a ação mais ou menos
laboriosa e produtiva de recordar-se de algo acontecido antes.
o acento temporal não resolve a aporia da imagem como presença do
ausente, mas estende-a para o tempo. aristóteles sabe que a imagem, tal como
a pintura de um animal, consiste em duas coisas ao mesmo tempo: ela é ela
própria e a representação de outra coisa. este enigma repete-se na representação
escriturária da história, porquanto também ela é em si mesma uma coisa e a
representação de outra ausente. Podemos dizer que a imagem é ao mesmo
tempo inscrição atual e signo do seu outro. É sobre esta alteridade do outro que
o tempo larga a sua marca distintiva ao nível da memória, dando azo ao con-
ceito de “anamnesis”. a recordação da coisa não é sempre dada, por vezes é
preciso procurá-la: a procura (“anamnesis”) é reminiscência, é recordação. as
duas faces da memória (presença da recordação e busca da recordação) lançam
as bases de uma fenomenologia e de uma definição de memória:
Quant à moi, après un long embarras, je suis arrivé à la conviction que la
mémoire, définie par la présence à l’esprit d’une chose du passé et par la
recherche d’une telle présence peut par principe être attribuée à toutes les per-
sonnes grammaticales: moi, elle/lui, nous, eux, etc. [...] la mémoire n’est plus alors
[...] que la réflexion de soi sur soi étalée dans le temps [ricœur 2000b: 734].
363
«et voici la première et provisoire résolution que la mémoire en propose. [...] la
reconnaissance des images, la survivance des images. la reconnaissance est, comme j’aime
dire, un petit miracle: c’est de ce bonheur de la reconnaissance que l’histoire sera privée et
à la recherche duquel elle est peut-être vouée» (ricœur 1996: 8).
322 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
364
«mais – je le dis fortement – nous n’avons pas mieux que l’image-souvenir dans
le moment de la reconnaissance» (ricœur 2000b: 733). «la certitude est ici inexpugnable au
point de nous faire avouer: aussi douteux que soit le souvenir dans le moment de la recon-
naissance, nous n’avons pas mieux que lui pour nous faire éprouver, croire, dire, raconter, que
quelque chose a eu lieu auparavant tel que nous en faisons mémoire» (ricœur 1996: 8-9).
capítulo iV – rePreseNtação e Ficção 323
365
a originalidade de ricœur está em não apresentar a memória e a história como
inconciliáveis, abolindo a tradicional dissociação entre ambas (maurice Halbwachs). a sua
relação é inseparável, intrincada. Discurso histórico e discurso mnemónico sofrem interferên-
cias mútuas. a memória serve de matriz à história. Na sua pesquisa rigorosa, o historiador
não pode reduzir os traços memoriais a resíduos falaciosos ou a ficções ilusórias. também
não pode confinar a memória ao domínio do psíquico, da impressão, do fluido. Há um aspeto
onde a memória leva a melhor sobre a história: a memória concede-nos a possibilidade do
reconhecimento. Porque a história não goza deste privilégio, o seu enigma de representação
revela outros contornos e as suas construções complexas só podem almejar ser reconstruções,
se quiser cumprir o pacto de verdade com o leitor. É por isso que a história não pode eman-
cipar-se totalmente da memória. mas se a memória é a sua matriz, cabe à história dominá-
-la, regulá-la, iluminá-la e traduzir-lhe o sentido. ao nível da epistemologia da história,
enquanto disciplina científica, é inquestionável a independência da história relativamente à
memória: «[...] l’autonomie de la connaissance historique par rapport au phénomène mnémo-
nique demeure la présupposition majeure d’une épistémologie cohérente de l’histoire en tant
que discipline scientifique et littéraire» (ricœur, MHO, 168,169). só no plano de uma her-
menêutica da condição histórica do homem, as afinidades entre o conhecimento e a prática
da história e a experiência da memória viva serão postas em confronto (vide MHO, 512-589).
366
«Disons-le d’un mot, l’exercice de la mémoire, c’est son usage; or l’us comporte
la possibilité de l’abus. [...] c’est par le biais de l’abus que la visée véritative de la mémoire
est massivement menacée» (ricœur, MHO, 68).
324 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
367
«c’est la représentation de ce qui n’est plus présent qui pose de la façon la plus
tranchante la question de la vérité dans la représentation» (ricœur 1996: 7).
368
«en effet, il est un privilège qui ne saurait être refusé à l’histoire, celui non seu-
lement d’étendre la mémoire collective au-delà de tout souvenir effectif, mais de corriger, de
critiquer, voire de démentir la mémoire d’une communauté déterminée, lorsqu’elle se replie
et se referme sur ses souffrances propres au point de se rendre aveugle et sourde aux souf-
frances des autres communautés. c’est sur le chemin de la critique historique que la mémoire
rencontre le sens de la justice. Que serait une mémoire heureuse qui ne serait pas aussi une
mémoire équitable?» (ricœur, MHO, 650).
capítulo iV – rePreseNtação e Ficção 325
369
recapitulamos, sinteticamente, as três características principais do tempo crónico: 1)
a referência de todos os acontecimentos a um acontecimento fundador que serve de eixo do
tempo; 2) a possibilidade de percorrer os intervalos de tempo nas duas direções opostas de
anterioridade ou posterioridade relativamente ao ponto zero; 3) a constituição de um repor-
tório de unidades que servem para designar os intervalos de tempo: dia, mês, ano, etc.
370
Krzysztof Pomian, L’Ordre du temps, gallimard, coll. «Bibliothèque des histoires»,
Paris, 1984.
328 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
está nos limites do pensável, e a cronologia com que trabalha a história pen-
sante, mostrando a que ponto a primeira influenciou a segunda. as grandes
categorias que os historiadores usam para ordenar o seu discurso na fase de
explicação/comprensão, a saber, “acontecimentos”, “repetições”, “épocas”,
“estruturas”, são reflexos da cronosofia. Pomian entende por cronosofia as gran-
des periodizações da história, como as do cristianismo e do islão, e as suas
tentativas de correspondência com a cronologia. ricœur detém-se na sobrevi-
vência de cada uma destas categorias na historiografia e o impacto que conti-
nuam a ter na mentalidade histórica atual. Por influência da tipologia cronosó-
fica inventámos todo um conjunto de categorias temporais e fazemos deduções
acerca do tempo. a ela lhe devemos a oposição entre tempo estacionário (seja
cíclico seja linear) e tempo não repetível (seja progressivo ou regressivo). o
presente recebe um lugar significativo no todo da história, influenciado pelas
grandes orientações do tempo cronosófico. assim, falamos de idades, séculos,
períodos, estádios, épocas por sua influência. Periodizações como antiguidade,
idade média, renascimento, modernismo, contemporaneidade; expressões como
“regressar às fontes”, “avanços”, “recuos” “degradação de costumes”; ideias
como a de “progresso” ou de “tempo linear cumulativo e irreversível”; os
ciclos caros aos economistas ou os tempos sobrepostos de Braudel são exem-
plos que ricœur evoca para demonstrar os resíduos cronosóficos que se escon-
dem sob uma fachada científica. mas conclui:
[...] l’affranchissement de toute cronosophie, au bénéfice d’un certain agnosticisme
méthodique concernant la direction du temps, n’est pas achevé. Peut-être n’est-il
pas souhaitable qu’il le soit, si l’histoire doit rester intéressante, c’est-à-dire conti-
nuer de parler à l’espoir, à la nostalgie, à l’angoisse [MHO, 197].
371
a obra que lhe serve de guia desta vez é a renaud Dulong, Le Témoin oculaire.
Les conditions sociales de l’attestation personnelle, eHess, Paris, 1998.
330 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
372
«en effet, à part les confessions, les autobiographies et autres journaux, les chartes,
les pièces secrètes de chancellerie et quelques rapports confidentiels de chefs militaires, les
documents d’archives sont majoritairement issus de témoins malgré eux» (ricœur, HMO,
215).
332 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
373
os vestígios são traços muito caros à arqueologia e podem ser utensílios, moedas,
imagens pintadas, esculturas, mobiliário, objetos funerários, restos de habitações.
374
carlo ginzburg, «traces. racines d’un paradigme indiciaire», in Mythes, Emblèmes,
Traces. Morphologie et histoire, coll. «Nouvelle Bibliothèque scientifique», Paris, 1989, pp.
139-180.
375
«[...] au paradigme galiléen, défini par le rapport entre expérimentation, modélisa-
tion, vérification, s’oppose ce que carlo ginzburg appelle paradigme indiciaire de nature
sémiotique où le document d’archive est observé, interprété, soumis au jugement des experts;
il voisine alors avec le symptôme médical et les autres vecteurs d’une connaissance indirecte,
conjecturale, probable. ce caractère indiciaire de la médiation historienne n’est pas signe d’un
défaut d’objectivité: c’est le mode propre de l’objectivité de la connaissance historique: la
vérité documentaire, en vertu de sa qualification probabiliste, admet des degrés, en fonction
de la densité des indices, de leur cohérence, de l’amplitude de leur portée, de leur confirma-
tion par le moyen de la comparaison et de la discussion. ainsi la vérité en histoire s’est-elle
éloignée d’un degré de la fidélité de la mémoire par la grâce du document et de l’archive»
(ricœur 1996: 10).
capítulo iV – rePreseNtação e Ficção 333
376
cf. saul Friedländer, Probing the Limits of Representation, Nazism and the “Final
Solution”, cambridge, massachusetts, and london, Harvard university press, 1992.
capítulo iV – rePreseNtação e Ficção 335
377
o documento, elaborado a partir da noção de testemunho, só ganha estatuto com a
questão. mesmo se qualquer resíduo do passado é, potencialmente, um documento, nada em
si é documento. «Pour l’historien, le document n’est pas simplement donné, comme l’idée de
trace laissé pourrait suggérer. il est cherché et trouvé. Bien plus, il est circonscrit, et en ce
sens constitué, institué document, par le questionnement» (ricœur, MHO, 226). cf. Prost
1996: 79-100.
336 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
sens, il faudrait toujours écrire: le fait que ceci ou cela est arrivé. ainsi compris,
le fait peut être dit construit par la procédure qui le dégage d’une série de docu-
ments dont on peut dire en retour qu’ils l’établissent [ricœur, MHO, 227].
378
É infundada qualquer crítica de “regresso ao positivismo”. existe um hiato entre o
real representado e a construção do historiador. o autor é explícito, não há coincidência entre
o acontecimento real e o facto proposicional. todavia, esta distinção não impede a história
de prosseguir o seu projeto de verdade. ricœur defende que é possível dar conta do acon-
tecimento construindo ou estabelecendo o facto. É por isso que o filósofo francês discorda da
indistinção defendida por H. White entre enunciado factual e narração, entre facto e interpre-
tação, quer dizer, discorda da sua recusa em autonomizar a operação documental de estabe-
lecimento/construção do facto relativamente ao trabalho de interpretação e de configuração
narrativa. esta recusa é, em certa medida, a tradução epistemológica do esquecimento do refe-
rente e do apagamento da fronteira entre a ficção e a história, que ricœur não se cansa de
combater.
capítulo iV – rePreseNtação e Ficção 337
379
sobre a conceção historiográfica post-modernista e as questões que essa conceção
levanta ao nível do relativismo e da confusão entre história e ficção veja-se o estudo de ana
Paula arnaut, Post-Modernismo no Romance Português Contemporâneo. Fios de Ariadne.
Máscaras de Proteu (2002), particularmente o capítulo V: «a história contra-ataca».
380
À la conception binaire du signe héritée d’une linguistique saussurienne, peut-être
déjà mutilée, j’oppose la conception triadique du signifiant, du signifié et du référent. [...] le
discours consiste en ceci que quelqu’un dit quelque chose à quelqu’un sur quelque chose
selon des règles (ricœur, MHO, 229).
338 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
381
«[...] on peut tenir pour dépassée la querelle suscitée au début du XXe siècle autour
des termes, tenues pour antagonistes, d’explication et de compréhension. max Weber s’était
montré fort perspicace dans l’élaboration des concepts directeurs de sa théorie sociale en
combinant d’entrée de jeu explication et compréhension» (ricœur, MHO, 234).
382
«c’est par rapport à l’explication que le document fait preuve» (ricœur, MHO,
231).
capítulo iV – rePreseNtação e Ficção 339
da história e não se perder no da ficção. são dois os princípios que todo o his-
toriador deve respeitar quanto ao referente. em primeiro lugar, os modelos
explicativos usados em história têm em comum o facto de se dirigirem à rea-
lidade humana enquanto facto social. Deste ponto de vista, a história social não
é uma especialidade entre outras que a história cultive, mas sim o seu único
campo de trabalho. a história é, necessariamente, uma ciência social. mas é
dentro do concerto das ciências sociais que surge o segundo princípio limitativo
da prática histórica. a história tem como objeto formal de estudo não todo o
campo social, mas aquele que é delimitado pela mudança e pelas diferenças ou
desvios que afetam as mudanças. aqui, a história diverge das outras ciências
sociais, principalmente, da sociologia. este traço distintivo da história é válido
quer a história trate da realidade económica, de fenómenos sociais, de práticas
ou representações.
Porquê as mudanças ou as diferenças/desvios que afetam as mudanças?
Depois de se ler Temps et Récit, a resposta torna-se óbvia. a história, enquanto
compreensão-followability, depende do caráter temporal que a mudança e a
diferença necessariamente acarretam face às leis. a história – dizia marc Bloch
– «é a ciência dos homens no tempo». Por isso se pode falar de longa duração,
de tempo curto e de acontecimento quase pontual, como durações construídas
pelo historiador e, nesse sentido, bem distintas das durações propostas por uma
fenomenologia da memória383. as durações temporais da história variam con-
soante o tipo da mudança (económica, institucional, política, cultural ou outra),
a escala utilizada para apreender a mudança (macro-histórica ou micro-histó-
rica), e o ritmo temporal apropriado à escala. assim, faz todo o sentido que as
mudanças sociais (económicas e geográficas) estudadas pela escola dos annales
se ajustem a uma escala macro-histórica e à longa duração. esta correlação
entre escala e ritmo temporal é reforçada por uma correlação suplementar entre
a natureza específica do fenómeno social tomado por referente e o tipo de
documento privilegiado. a longa duração dá prioridade às séries de factos repe-
tidos sobre os acontecimentos singulares, únicos. os factos repetidos são pas-
síveis de um tratamento quantitativo ou matemático. este tipo de história, que
atingiu o seu auge em meados do século XX, entrou em crise nas décadas
seguintes, vindo a ser substituída por uma que dá mais atenção às representa-
383
«même si la mémoire fait l’épreuve de la profondeur variable du temps et ordonne
ses souvenirs les uns par rapport aux autres, esquissant par là quelque chose comme une hié-
rarchie parmi les souvenirs, il reste qu’elle ne forme pas spontanément l’idée de durées mul-
tiples. celle-ci reste l’apanage de ce que Halbwachs appelle “mémoire historique”» (ricœur,
MHO, 233).
340 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
384
sobre a ascensão e queda da história das mentalidades veja-se Delacroix, Dosse,
garcia, Les courants historiques en France (2007b), pp. 408-482; 501-505.
385
Vide l. Febvre, Combats pour l’histoire, armand colin, Paris, 1953.
342 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
de l’homme d’une époque donnée, voilà ce que l’histoire des mentalités peut
se proposer de montrer, quitte à laisser dans l’indétermination la question de
savoir qui pense ainsi par le moyen de cet “outillage mental”» (ibid.: 243).
386
Vd. F. Dosse, L’Histoire en miettes. Des «Annales» à la nouvelle histoire, la
Découverte, Paris, 1987; reed. Pocket, cool. agora, 1997.
344 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
387
Vid. Jacques revel (org.), Jeux d’échelles. La micro-analyse à l’expérience, galli-
mard – le seuil, Paris, 1996. Nesta obra, revel (que contribui com o texto: «micro-analyse
et construction du social») e Bernard lepetit (que contribui com o texto: «De l’échelle en
histoire») reúnem ensaios de alguns dos mais ativos historiadores da micro-história.
388
«Notons d’emblée que la dimension “micro” ne jouit, à cet égard, d’aucun privilège
particulier. c’est le principe de la variation qui compte, non le choix d’une échelle particu-
lière» (revel 1996: 19).
389
«Faire varier la focale de l’objectif, ce n’est pas seulement faire grandir (ou dimi-
nuer) la taille de l’objet dans le viseur, c’est en modifier la forme de la trame. ou, pour
capítulo iV – rePreseNtação e Ficção 345
recourir à un autre système de références, jouer sur les échelles de représentation en carto-
graphie ne revient pas à représenter une réalité constante en plus grand ou plus petit, mais
à transformer le contenu de la représentation (c’est-à-dire le choix de ce qui est représenta-
ble)» (revel 1996: 19).
390
a esse nível, Braudel foi pioneiro no uso de escalas de observação, na sua obra
sobre o mediterrâneo e o mundo mediterrânico. mas o seu modelo macro-histórico era mais
cartográfico do que propriamente histórico, e isto devido a alguma hesitação no manusea-
mento da hierarquia das durações (cf. ricœur, MHO, 270-271).
346 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
391
Delacroix diz que as obras de c. ginzbug e g. levi têm em comum o facto de
«romperem com a história social labroussiana, com a história quantitativa e serial e com a
história das mentalidades» (Delacroix, Dosse, garcia 2007b: 496).
392
Basta passar os olhos pelo índice da obra para constatarmos a diversidade de socie-
dades e problemas estudados: o exercício do poder no islão mediterrânico; a questão do
“droit de cuissage” (ou direito à primeira noite) no ocidente católico; o caso da indústria
naval entre os finais do séc. XiX e inícios do séc. XX; a construção da identidade social
entre os magnatas de Florença, em finais da idade média; os pequenos patrões da indústria
têxtil, num quarteirão de Paris, na atualidade; as configurações da sociedade francesa do séc.
XiX; e as curvas económicas do antigo regime. a disparidade de histórias e lugares evo-
cados justifica-se pelas semelhanças na forma de abordagem, no teor de algumas questões,
mas, fundamentalmente, as leituras e o vocabulário partilhados assinalam uma mudança cien-
tífica, a elaboração de novos modelos e a constituição de novas referências em história.
393
«on proposait d’abord de réordonner la hiérarchie des intérêts de la discipline en
posant comme problème prioritaire la question des identités et des liens sociaux. a une his-
toire des mentalités trop strictement entendue, il s’agissait de rappeler que les hommes ne
348 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
sont pas seulement au monde mais qu’ils sont entre eux, et qu’on ne peut considérer qu’ils
vivent dans un univers de représentations indifférent aux situations dans lesquelles elles se
trouvent activées. contre une histoire quantifiée des structures sociales, il s’agissait d’opposer
[...] que les hommes ne sont pas dans les catégories sociales comme des billes dans des
boîtes, et que d’ailleurs les “boîtes” n’ont d’autre existence que celles que les hommes [...],
en contexte, leur donnent. on proposait donc, au point de départ d’un nouveau moment his-
toriographique, de recommencer à prêter une attention particulière à la société, et d’analyser
celle-ci comme une catégorie de la pratique sociale, c’est-à-dire de considérer que les iden-
tités sociales ou les liens sociaux n’ont pas de nature, mais seulement des usages» (lepetit
1995: 13).
capítulo iV – rePreseNtação e Ficção 349
394
sob o signo de escala de eficácia ou de coerção, ricœur coloca as instituições e
as normas, duas realidades que se prestam a uma variação da escala de eficácia. «sur le che-
min de la représentation, l’institution crée de l’identité et de la contrainte. cela dit, il faut
peut-être cesser d’opposer le côté coercitif, accordé de façon préférentielle à l’institution, au
côté présumé subversif reconnu à l’expérience sociale» (ricœur, MHO, 283).
395
os graus de legitimação são os graus de grandeza que os agentes sociais podem
ambicionar obter na ordem da estima pública. «on est rendu grand lorsque, dans un contexte
de discorde, on se sent justifié d’agir de la manière qu’on le fait. grandeur et justification
vont ainsi de pair» (ricœur, MHO, 284).
396
ricœur aplica a noção de escala e de variação de escalas às modalidades intensivas
(e não extensivas) do tempo histórico, tais como, ritmo, acumulação, recorrência, persistência.
No fundo, trata-se de fazer uma revisão dos conceitos temporais empregues na historiografia,
em função da mudança social.
350 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
397
este é um tema recorrente do pensamento de louis marin. Vide louis marin, Le
Portrait du roi, Éd. de minuit, Paris, 1981.
352 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
3. REPRESENTAÇÃO LITERÁRIA
398
Na abertura desta última fase da operação historiográfica, ricœur relembra mais
uma vez que a designação “escrita da história” não é correta, pois que a história é toda ela
escrita, desde o momento de redação dos documentos dos arquivos até ao momento de reda-
ção para publicação do discurso histórico. tal como os documentos tinham o seu leitor, o his-
toriador pesquisador, também o livro de história tem os seus leitores, o público que o lê. «en
tombant ainsi dans l’espace public, le livre d’histoire, couronnement du “faire de l’histoire”,
reconduit son auteur au cœur du “faire l’histoire”. arraché par l’archive au monde de l’action,
l’historien s’y réinsère en inscrivant son texte dans le monde de ses lecteurs; à son tour, le
livre d’histoire se fait document, ouvert à la suite des réinscriptions qui soumettent la
connaissance historique à un procès incessant de révision» (ricœur, MHO, 302).
399
Na terceira fase da operação historiográfica, a que dá o título de escritura, michel
de certeau define a operação que faz passar da prática de investigação à escrita de represen-
tação escriturária (cf. certeau, 1975, 119-12).
400
les trois phases de l’opération historique, faut-il le rappeler, ne constituent pas des
stades successifs, mais des niveaux enchevêtrés auxquels seul le souci didactique donne une
apparence de succession chronologique (ricœur, MHO, 303).
capítulo iV – rePreseNtação e Ficção 353
dada à relação direta entre tempo e narrativa, omitindo a passagem pela memó-
ria, e em parte devido à ausência de uma análise detalhada dos procedimentos
de explicação/compreensão. mas a noção de intriga e de configuração narrativa
mantêm-se válidas. em Temps et Récit, os recursos retóricos também não eram
distinguidos dos da narratividade (MHO, 305: notas 3 e 4).
em La mémoire, l’histoire, l’oubli, o aspeto retórico da configuração nar-
rativa é analisado em três vertentes: o papel seletivo das figuras de estilo e de
pensamento na escolha das intrigas; a mobilização de argumentos prováveis na
trama da narrativa; a preocupação do escritor em convencer o seu público per-
suadindo-o. É a estas solicitações do narrador, expressas através dos recursos
retóricos empregues, que corresponde uma determinada postura do leitor na
receção da obra. o momento em que se reflete mais aberta e concretamente as
afinidades entre história e ficção surge a propósito desta última equação entre
a representação e os prestígios da imagem. Não se trata de um confronto entre
duas formas literárias, mas da exposição da análise mais ampla que louis
marin, figura tutelar desta matéria, dedica aos chamados “poderes da imagem”,
os quais definem os contornos de um vasto império que é o outro do real. com
esta problemática específica da composição imagética (“mise en images”) das
coisas ditas do passado põe-se a descoberto uma nova dimensão no trabalho de
representação. ao desejo e ao cuidado que já havia de tornar legível ou coe-
rente um texto vem juntar-se uma nova preocupação: a de dar visibilidade ou
tornar visível aquilo que se narra. ricœur resume-o do seguinte modo: «la
cohérence narrative confère lisibilité, la mise en scène du passé évoqué donne
à voir» (MHO, 305-306).
3.1. Representação e narratividade
401
Numa nota de rodapé (MHO, 314: nota 12), ricœur informa que no contexto desta
obra o prefixo restritivo “quase” que, em Temps et Récit, antepunha à intriga, às personagens
e aos acontecimentos, pode ser suprimido, uma vez que não se trata mais de estender ou
transpor as categorias da narrativa ficcional e tradicional ao discurso sábio da história. Nessa
altura, a tónica era posta sobre a derivação indireta da história a partir da narrativa tradicional
e ficcional. em La mémoire, l’histoire, l’oubli, as categorias narrativas operam de pleno
direito no plano historiográfico, na medida em que o vínculo pressuposto nesta obra entre a
história e o campo prático onde se desenrola a ação permite uma aplicação direta da categoria
aristotélica dos “agentes” no domínio da história. Não se fala mais em transposição ou exten-
são, mas sim de articulação entre a coerência narrativa e a conexão explicativa.
capítulo iV – rePreseNtação e Ficção 357
o autor francês ilustra a sua tese com dois exemplos onde a “coerência
narrativa” e a “conexão causal ou final” operam em conjunto. os dois exem-
plos visam dar uma resposta ao dilema e à aporia dele resultante, decorrentes
da reflexão de louis o. mink, nos seguintes termos: é vã toda e qualquer ten-
tativa para encontrar uma relação direta entre a forma narrativa e os aconteci-
mentos tal como aconteceram; esta relação só pode ser indireta através da
explicação e, ainda antes, através da fase documental, a qual, por sua vez,
remete para o testemunho e para a credibilidade atribuída à palavra de alguém.
o primeiro exemplo é sugerido pelo jogo de escalas, entendido como sín-
tese do heterogéneo ou como narrativização, decorrente da própria mudança de
escalas402. ricœur constata que, apesar de privilegiarem determinada escala,
nem a micro-história nem a macro-história se confinam ao uso contínuo de uma
só escala. a micro-história aponta, de preferência, o seu foco para a aldeia,
para os grupos de indivíduos e famílias que interagem nesse meio, onde se
desenrolam negociações e conflitos e se descobre a situação de incerteza que
este tipo de história põe em relevo. No entanto, não deixa de ler, de baixo para
cima, as relações de poder que se jogam a uma escala superior: «la discussion
sur l’exemplarité de ces histoires locales menées au ras du sol présuppose l’en-
chevêtrement de la petite histoire dans la grande histoire en ce sens, la micro-
histoire ne manque pas de se situer sur un parcours de changement d’échelle
qu’elle narrativise chemin faisant» (ricœur, MHO, 315).
com a macro-história passa-se algo similar. a narrativização é patente,
por exemplo, quando há o desejo de apurar o alcance (portée) ou a persistência
dos efeitos de um determinado acontecimento da grande escala (grandes
sequências temporais delimitadas por grandes narrativas) longe da sua fonte.
À imagem inversa do que acontece com a micro-história, a procura dos efeitos
– sob os quais se dissimula a causa – de um sistema, que opera a um plano
superior de produção, num plano inferior de efetivação concreta, obriga a uma
mudança de escalas (desta feita, de cima para baixo) que apela aos recursos
narrativos da macro-história – «comme l’illustre l’œuvre de Norbert elias, les
effets d’un système de pouvoir, tel que celui de la cour monarchique, se
déploient le long d’une échelle descendante jusqu’aux conduites d’autocontrôle
au niveau psychique individuel» (ibid.: 316).
o segundo exemplo que ricœur convoca mexe com a própria noção de
acontecimento. a noção de acontecimento tem duas aceções que parecem incon-
402
«Parmi toutes les sortes de synthèses de l’hétérogène que constitue la mise en
intrigue, ne pourrait-on pas prendre en compte le parcours narrativisé des changements
d’échelles?» (ricœur, MHO, 315).
358 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
403
r. Koselleck, «représentation, événement, structure», in Le Futur passé: contribu-
tion à la sémantique des temps historiques, eHess, Paris, 1990, pp. 133-144.
capítulo iV – rePreseNtação e Ficção 359
404
«Dans la mesure où le récit de fiction et le récit historique participent aux mêmes
structures narratives, le rejet de la dimension référentielle par l’orthodoxie structuraliste
s’étend à toute textualité littéraire» (ricœur, MHO, 318).
360 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
405
ricœur expõe detalhadamente as constrições estruturalistas impostas à narrativa, no
segundo capítulo de Temps et Récit ii, sob o título de «les contraintes sémiotiques de la nar-
rativité».
406
«l’histoire-récit se trouve alors placée sur le même banc d’accusation que le roman
réaliste hérité du XiXe siècle européen» (ricœur, MHO, 322).
407
cf. r. Barthes, «le discours de l’histoire», in Le Bruissement de la langue, Éd. du
seuil, Paris, 1984, pp. 153-166.
408
Para Barthes, o discurso histórico, pela sua estrutura, é essencialmente uma elabo-
ração ideológica ou imaginária. o enunciante de um discurso é uma entidade puramente lin-
guística, ao passo que o assunto da enunciação é uma entidade psicológica ou ideológica. Daí
até adotar a célebre afirmação de Nietzsche de que não existem factos em si mesmos e que
é preciso começar sempre pela introdução de um sentido para que possa haver um facto vai
um pequeno passo. a conclusão é que a existência do facto é unicamente linguística, asserção
que White escolheu para epígrafe da sua obra The content of the Form: «on arrive ainsi à
capítulo iV – rePreseNtação e Ficção 361
Não nos surpreende, pois, que, a concluir o seu artigo, r. Barthes aplauda
a ascensão da história de tipo estrutural e o declínio da história narrativa, con-
siderando esta mutação uma transformação ideológica410.
No ensaio seguinte, «l’effet de réel»411, Barthes explica como é que o
referente reprime o significado. a culpa é atribuída às notas que acompanham
o romance realista e a história do mesmo período, porque são supérfluas, são
detalhes que não contribuem em nada para a estrutura e para o sentido da obra,
são “praias insignificantes” relativamente ao sentido imposto pelo curso da nar-
ce paradoxe qui règle toute la pertinence du discours historique [...]: le fait n’a jamais qu’une
existence linguistique [itálico nosso] (comme terme d’un discours), et cependant tout se passe
comme si cette existence n’était que la “copie” pure et simple d’une autre existence, située
dans un champ extra-structural, le “réel”» (Barthes 1984: 164).
409
«Dans un premier temps [...], le référent est détaché du discours, il lui devient exté-
rieur, fondateur, il est censé le régler: c’est le temps des res gestae, et le discours se donne
simplement pour historia rerum gestarum: mais dans un second temps, c’est le signifié lui-
même qui est repoussé, confondu dans le référent; le référent entre en rapport direct avec le
signifiant, et le discours, chargé seulement d’exprimer le réel, croit faire l’économie du terme
fondamental des structures imaginaires, qui est le signifié» (Barthes 1984: 164, 165).
410
«aussi, l’on comprend que l’effacement (sinon la disparition) de la narration dans
la science historique actuelle, qui cherche à parler des structures plus que des chronologies,
implique bien plus qu’un simple changement d’école: une véritable transformation idéolo-
gique; la narration historique meurt parce que le signe de l’histoire est désormais moins le
réel que l’intelligible» (Barthes 1984: 166).
411
«l’effet de réel», op.cit., pp. 153-174.
362 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
412
ricœur diz que o historiador não pode apoiar-se na linguística saussuriana que reduz
o signo ao par significante/significado com exclusão do referente. o seu socorro deve vir da
linguística do discurso à maneira de Benveniste e Jakobson, que têm como unidade de sen-
tido do discurso não a palavra ou signo, mas a frase: alguém diz alguma coisa a outrem
sobre algo de acordo com as regras codificadas da interpretação. «ainsi est préservée dans
le principe la triade: signifiant, signifié, référent, l’événement désignant globalement le réfé-
rent du discours documenté, réserve faite de la spécification ultérieure du terme événement
par rapport à structure et conjoncture» (ricœur 2000b: 739).
413
«ma thèse est que celle-ci ne peut être discernée au seul plan du fonctionnement
des figures qu’assume le discours historique, mais qu’elle doit transiter à travers la preuve
documentaire, l’explication causale/finale et la mise en forme littéraire. cette triple membrure
reste le secret de la connaissance historique» (ricœur, MHO, 323).
capítulo iV – rePreseNtação e Ficção 363
414
Metahistory: The Historical Imagination in nineteenth-century Europe, the Johns
Hopkins university Press, Baltimore and london, 1973.
364 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
415
«c’est ce travail de remembrement du discours historique pris dans la complexité
de ses phases opératoires qui est totalement absent des préoccupations de H. White» (ricœur,
MHO, 328).
416
Vide saul Friedlander (org.), Probing the Limits of Representation. Nazism and the
“Final Solution”, Harvard university Press, cambridge, mass., e londres, 1992.
417
«Demandera-t-on [...] en quoi les problèmes posés par l’écriture de l’événement
“aux limites” dénommé auschwitz sont exemplaires pour une réflexion générale sur l’histo-
riographie? ils le sont dans la mesure où ils sont eux-mêmes, en tant que tels, des problèmes
“à la limite”. on a rencontré en cours de route plusieurs illustrations de cette problématisation
extrême: impossibilité de neutraliser les différences de position des témoins dans les jeux
capítulo iV – rePreseNtação e Ficção 365
d’échelles; impossibilité de sommer dans une histoire englobante les reconstructions gagées
par des investissements affectifs hétérogènes; dialectique indépassable entre unicité et incom-
parabilité au cœur même de l’idée de singularité. Peut-être toute singularité – tour à tour
unique et/ou incomparable – est-elle, à ce double titre, porteuse d’exemplarité» (ricœur,
MHO, 339).
418
Historiadores profissionais como momigliano, ginzburg, spiegel e Jacoby apontam
as suas baterias a dois artigos que aparecem incluídos na obra de 1987, The Content of the
Form (White: 1992b): «the value of narrativity in the representation of reality» e «the poli-
tics of historical interpretation».
366 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
419
«[...] la voix moyenne correspond tout à fait à l’état de l’écriture moderne: écrire
c’est aujourd’hui se faire centre du procès de parole, c’est effectuer l’écriture en s’effectuant
soi-même, c’est faire coïncider l’action avec l’affection, c’est laisser le scripteur à l’intérieur
de l’écriture, non à titre de sujet psychologique [...] mais à titre d’agent de l’action» (Barthes
1984: 28-29).
capítulo iV – rePreseNtação e Ficção 367
tas que fizeram história. É neste sentido que os limites inerentes aos aconteci-
mentos limite refletem-se e prolongam-se na própria representação, pondo a
descoberto a sua própria limitação, a saber, «a impossível adequação das for-
mas de figuração disponíveis à solicitação de verdade que se eleva do seio da
história viva» (ricœur, MHO, 337). De um modo particular, podemos conside-
rar inapropriadas e esgotadas as formas herdadas da tradição naturalista e rea-
lista do romance e da história do século XiX; logo, é necessário procurar novos
modos de expressão alternativos ao livro, como por exemplo o teatro, o
cinema, as artes plásticas. as possibilidades são imensas para tentar suprir a
falha que se insinua entre a capacidade representativa do discurso e a demanda
do acontecimento, desde que não se caia no mesmo erro denunciado por White
como modernista, que é alimentar estilos de escrita que criem uma ilusão simi-
lar à da tradição realista.
em jeito de conclusão, podemos dizer com ricœur que o desafio de
escrever/representar a história do holocausto não está fora do nosso alcance,
desde que se tenha noção dos limites, dos riscos e dos requisitos epistemoló-
gicos e metodológicos.
De ces considérations résulte que tenter d’écrire l’histoire de la “solution finale”
n’est pas une entreprise désespérée, si l’on n’oublie pas l’origine des limites de
principe qui l’affectent. c’est plutôt l’occasion de rappeler le trajet que le critique
doit effectuer, remontant de la représentation à l’explication/compréhension et de
celle-ci au travail documentaire, jusqu’aux ultimes témoignages dont on sait que
le recueil est brisé, entre la voix des bourreaux, celle des victimes, celle des sur-
vivants, celle des spectateurs diversement impliqués [ricœur, MHO, 338].
tação dos arquivos, entra num mundo de acontecimentos que tiveram realmente
lugar. assumindo uma postura crítica, de alguém que está atento a falsidades,
exige, se não um discurso verdadeiro, equiparável a um tratado de física, pelo
menos um discurso plausível, honesto e verídico420. realidade e irrealidade,
enquanto modalidades referenciais heterogéneas, não permitem qualquer tipo de
confusão entre história e ficção ao nível dos géneros literários. a intencionali-
dade histórica implica que as construções do historiador ambicionem ser
reconstruções mais ou menos aproximadas do “real” ocorrido. independente-
mente desta fronteira inquestionável entre passado “real” e ficção “irreal” – que
uma teoria da representância ajuda a matizar e problematizar – o entrecruza-
mento dos efeitos exercidos por narrativas de história e ficções, ao nível do
mundo do texto (esse mundo onde poderíamos habitar e desenvolver as nossas
potencialidades próprias) decorrente de uma teoria da leitura, permite uma abor-
dagem dialética desta dicotomia elementar. lembramos que esta dialética foi
demonstrada por ricœur em Temps et Récit iii, capítulo V, a propósito da refi-
guração do tempo. os efeitos da narrativa histórica e da narrativa ficcional (vis-
tos unicamente da perspetiva dos géneros literários) eram alvo de entrecruza-
mento em função da refiguração efetiva do tempo vivido, sem qualquer
consideração pela mediação da memória. História e ficção só concretizam cada
uma a sua intencionalidade respetiva recorrendo à intencionalidade uma da
outra. Daí que se tenha falado de historicização da ficção, («quasi-passés sont
les quasi-événements et les quasi-personnages des intrigues fictives» [ricœur,
MHO, 341]) e de ficcionalização da história, justificada pela visão dos apare-
lhos de medição do tempo (gnómon, calendário e relógio) e de todos os ins-
trumentos da datação histórica como produtos da imaginação científica. ade-
420
«ils se distinguent par la nature du pacte implicite passé entre l’écrivain et son lec-
teur. Bien qu’informulé, ce pacte structure des attentes différentes du côté du lecteur et des
promesses différentes du côté de l’auteur. en ouvrant un roman, le lecteur se prépare à entrer
dans un univers irréel à l’égard duquel la question de savoir où et quand ces choses-là se
sont passés est incongrue; en revanche, ce lecteur est disposé à opérer ce que coleridge appe-
lait wilful suspension of disbelief, sous réserve que l’histoire racontée soit intéressante: c’est
volontiers que le lecteur suspend sa méfiance, son incrédulité, et qu’il accepte de jouer le jeu
du comme si – comme si les choses racontées étaient arrivés. en ouvrant un livre d’histoire,
le lecteur s’attend à rentrer, sous la conduite du pilier d’archives, dans un monde d’événe-
ments réellement arrivés. en outre, en passant le seuil de l’écrit, il se tient sur ses gardes,
ouvre un œil critique et exige, sinon un discours vrai comparable à celui d’un traité de phy-
sique, du moins un discours plausible, admissible, probable et en tout cas honnête et véri-
dique; éduqué à la chasse aux faux, il ne veut pas avoir affaire à un menteur» (ricœur,
MHO, 339, 340).
370 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
o facto de se chamar figuras aos tropos propostos por White para orna-
mentar e articular o discurso histórico na sua fase literária poderia ser enten-
dido como um indício para a teoria que ricœur pretende desenvolver sob o
signo da imagem. a sugestão é boa, mas não se pretende ir tão longe. o que
ele pretende mostrar-nos, como se tratasse de examinar uma tapeçaria, é a inter-
cessão entre legibilidade (leitura) e visibilidade ao nível da receção do texto
literário, ou a ligação entre sequência e imagem, narração e descrição. É que
o texto dá a compreender e a ver – «De fait, le récit donne à comprendre et
à voir» (ibid.). o historiador tem noção desta alternância entre descrição e nar-
ração. a construção do retrato de uma personagem, histórica ou ficcional, repre-
senta a hegemonia da visibilidade sobre a legibilidade. ora, uma das teses
constantes desta obra de Paul ricœur tem que ver com a teoria do retrato:
or, c’est là une thèse constante de ce livre: les personnages du récit sont mis en
intrigue en même temps que le sont les événements qui, pris ensemble, constituent
l’histoire racontée. avec le portrait, distingué du fil de la trame du récit, le couple
du lisible et du visible se dédouble franchement [ricœur, MHO, 342].
421
cette définition de la rhétorique comme tekhne du discours propre à persuader est
à l’origine de tous les prestiges que l’imaginaire est susceptible de greffer sur la visibilité des
figures du langage (ricœur, MHO, 343).
422
a obra que ricœur segue é Portrait du roi (1981).
423
«la question pour nous sera de savoir si, avec la fin de la monarchie d’ancien
régime et le transfert sur le peuple de la souveraineté et de ses attributs, l’historiographie a
pu éliminer de la représentation toute trace du discours de louange. ce sera demander en
même temps si la catégorie de grandeur et celle qui lui est connexe de gloire peuvent dis-
paraître sans laisser de trace de l’horizon de l’histoire du pouvoir» (ricœur, MHO, 348).
372 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
424
Na obra anterior, sobre a lógica de “Port-royal” (1975), o autor demonstra o papel
central do motivo eucarístico.
425
«c’est au service de la grandeur et de la gloire que sont dispensés les prestiges de
l’image dont se recommande le “Projet de l’histoire de louis XiV”» (ricœur, MHO, 346).
426
«Il faut louer le Roi partout, mais pour ainsi dire sans louange, par un récit de tout
ce qu’on lui a vu faire dire et penser...» (marin 1981: 59).
427
«À la différence de l’enluminure qui illustre un texte, ou même de la tapisserie qui
le plus souvent ne représente qu’un instant d’histoire, la médaille est un portrait qui, comme
l’hypotypose, offre un abrégé en tableau. en donnant à voir le portrait du roi dans une ins-
capítulo iV – rePreseNtação e Ficção 373
ricœur constata que estes temas subsistem, embora sob outras formas.
o estado-nação é agora o polo organizador dos referentes ordinários do dis-
curso histórico, logo, continua a ser celebrado como grandeza. a figura do
homem de estado substitui, até certo ponto, o retrato do rei. mas as figuras de
grandeza não se restringem ao homem de estado, há uma redistribuição da
grandeza por um espaço social mais vasto, como atesta o livro aparecido na
última década do séc. XX, com o título de “economias da grandeza” 428, que
estende a ideia de grandeza não apenas ao campo político mas ao campo mais
lato de justificação e de pedido de justiça429. as grandezas são as formas legí-
timas do bem comum em situações típicas de diferendos, a partir do momento
em que são legitimadas pelos argumentários típicos. o que é aqui fundamental
é que a grandeza seja tomada pela filosofia prática e pelas ciências humanas
relacionada com a ideia de justificação, como um dos regimes de apreensão do
cription spécifique, une gravure dans le métal, la médaille dépeint, par la vertu de l’or et de
sa brillance, l’éclat de la gloire. en outre, la médaille, comme une monnaie, peut être mon-
trée, touchée, échangée. mais surtout, à la faveur de la dureté et de la durée du métal, elle
fonde une permanence de mémoire, en transformant l’éclat passager de l’exploit en gloire
perpétuelle. un relai avec le récit est assuré par la devise inscrite au revers de la figure du
roi marquée en son effigie et en son nom; elle assure l’exemplarité potentiellement universelle
des vertus gravées dans l’or» (ricœur, MHO, 349).
428
luc Boltanski e laurent thévenot, De la justification: les économies de la gran-
deur, gallimard, Paris, 1991.
429
«c’est dans des situations de disputes que des épreuves de qualification ayant pour
enjeu l’évaluation des personnes font appel à des stratégies argumentatives destinées à justi-
fier leur action ou a soutenir les critiques au cœur des différends» (ricœur, MHO, 356).
374 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
bem comum no seio das relações comunitárias. ricœur explicita esta nova ace-
ção de grandeza e o seu alcance atual:
il s’agit bien encore de “formes politiques de la grandeur” (Le Portrait du roi, p.
107 seqq.), mais dans une acception si étendue du terme “politique” que le pres-
tige du roi dans son portrait s’y trouve entièrement exorcisé par la substitution à
la figure du roi de celle des personnes et de leurs prétentions à la justice. le
retour du thème de la grandeur n’en est que plus saisissant [MHO, 356].
sem par. todavia, sem referente histórico é a própria verdade da história que
corre perigo, a ponto de não ser mais possível distinguir história de ficção. Por
isso, ricœur não desiste desta cruzada pelo referente, pela intencionalidade,
pela verdade. É com esse intuito que ele vai repescar o conceito de represen-
tância, que dá nome a este curto capítulo com que encerra os trabalhos em
torno da representação escriturária e da epistemologia da história. De facto, o
conceito de representância empurra-o para o campo metafísico da ontologia,
que está fora da circunscrição da epistemologia. a condição histórica do
homem é uma questão ontológica que precisa de uma hermenêutica e já não de
uma epistemologia, e o conceito de representância (pela sua natureza ambiva-
lente, epistemológica e hermenêutica) permite fazer essa ponte para a terceira
e última parte da obra, consagrada – sob o título de esquecimento – à resolução
da tensão história-memória, por meio de uma reflexão ontológica que procura
deslindar o mistério da nossa condição de seres históricos obrigados a conhecer
por mediação e interpretação; seres que, estando na história, fazem história e
fazem a história.
assim sendo, o conceito de representância concentra em si todas as expe-
tativas, exigências e aporias da intencionalidade histórica que fomos encon-
trando ao longo dos vários ciclos da representação literária430. Por conseguinte,
ricœur começa por recapitular o percurso feito, de modo a reunir todas as pon-
tas que foram ficando soltas pelo caminho. seremos levados à conclusão de
que a representação literária só poderá fazer justiça ao intento noético da his-
tória se se articular com a compreensão/explicação e a prova documental, onde
o testemunho desempenha um papel fundamental. só depois entra em cena a
verdade e com ela a questão da representância. mas, voltemos antes ao início
e sigamos o raciocínio de ricœur.
430
«le mot “représentance” condense en lui-même toutes les attentes, toutes les exi-
gences et toutes les apories liées à ce qu’on appelle par ailleurs l’intention ou l’intentionnalité
historienne: elle désigne l’attente attachée à la connaissance historique des constructions
constituant des reconstructions du cours passé des événements» (ricœur, MHO, 359).
376 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
431
a outra razão tem que ver com o fechamento que eles dão às formas narrativas,
mesmo as da representação histórica, o que representa um desafio para ricœur, na medida em
que o esforço por superar esta aporia conduzi-lo-á à elaboração de um modelo epistemológico
que dignifica a história enquanto ciência humana e literária.
capítulo iV – rePreseNtação e Ficção 377
432
«À cet égard, s’agissant de la microhistoire, on peut d’abord se féliciter de l’effet
de crédibilité par proximité engendré par les récits en effet “proches des gens”, puis, à la
réflexion, s’étonner de l’effet d’exotisme que suscitent des descriptions que leur précision
même rend étranges, voire étrangères» (ricœur, MHO, 361).
378 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
433
«il m’est arrivé de dire que nous n’avons pas mieux que la mémoire pour nous
assurer de la réalité de nos souvenirs. Nous disons maintenant: nous n’avons pas mieux que
le témoignage et la critique pour accréditer la représentation historienne du passé» (ricœur,
MHO, 364).
capítulo iV – rePreseNtação e Ficção 379
434
«en ce point, l’épistémologie de l’histoire confine à l’ontologie de l’être-au-monde.
J’appellerai condition historique ce régime d’existence placé sous le signe du passé comme
n’étant plus et ayant été. et la véhémence assertive de la représentation historienne en tant
que représentance ne s’autoriserait de rien d’autre que de la positivité de “l’avoir été” visé
à travers la négativité du “n’être plus” (ricœur, MHO, 367).
435
«il faut l’avouer, les notions de vis-à-vis, de lieutenance, constituent plus le nom
d’un problème que celui d’une solution» (ricœur, MHO, 366).
436
«or les anticipations d’une ontologie de la condition historique, telle qu’elle sera
conduite dans la troisième partie, peuvent être dénoncées comme des intrusions de la “méta-
physique” dans le domaine des sciences humaines par des praticiens de l’histoire soucieux de
bannir tout soupçon de retour à la “philosophie de l’histoire”» (ricœur, MHO, 369).
capítulo iV – rePreseNtação e Ficção 381
437
Veja-se a longa nota que ricœur consagra à evolução semântica e lexical do termo
representação-substituição, que está por trás do de representância, em MHO, 367-369.
438
«l’énigme passé est finalement celle d’une connaissance sans reconnaissance»
(ricœur, MHO, 369).
439
a filosofia crítica da história combate, por um lado, a “hybris” histórica, ou seja,
põe limites à ambição totalitária do saber histórico, característica da filosofia romântica e pós-
-romântica alemã e, por outro, explora os títulos de validade de uma historiografia consciente
das suas limitações.
382 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
440
«l’écriture historique joue le rôle de rite d’enterrement. instrument d’exorcisme de
la mort, elle l’introduit au cœur même de son discours et permet symboliquement à une
société de se situer en se dotant d’un langage sur le passé. le discours historien nous parle
384 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
du passé pour l’enterrer. il a, selon michel de certeau, la fonction du tombeau dans le double
sens d’honorer les morts et de participer à leur élimination de la scène des vivants (Dosse
2000: 55).
441
Fernando catroga, na sua obra Memória, História e Historiografia (2001: 40-44),
também se debruça sobre esta analogia estabelecida por michel de certeau entre os cemité-
rios e as narrações do passado. relembra mesmo a etimologia de signo, que remete para o
túmulo: «todo o signo funerário, explícita ou implicitamente, remete para o túmulo (signo
deriva de sema, pedra tumular), isto é, para uma sobreposição de significantes [...]. e, neste
jogo de negação da morte e da corruptibilidade do tempo, os signos “são assim dados em
troca do nada segundo uma lei de compensação ilusória pela qual, quanto mais signos temos
mais existe o ser e menos o nada” [...]. Por isso, o túmulo e o cemitério devem ser lidos
como totalidades significantes que articulam dois níveis bem diferenciados: um invisível e
outro visível. e as camadas semióticas que compõem este último têm o papel de dissimular
a corrupção (o tempo) e de simular a não morte, transmitindo às gerações vindouras a semân-
tica capaz de individuar e de ajudar à re-presentação, ou melhor, à re-presentificação do
ontologicamente ausente. É à luz destas características que é lícito falar, a propósito da lin-
guagem cemiterial – tal como do discurso historiográfico –, de uma poética da ausência”
(ana anais gomez, 1993; F. catroga, 1999» (catroga 2001: 43).
capítulo iV – rePreseNtação e Ficção 385
442
Le Débat, n.º 54, mars-avril 1989, pp. 89-113.
443
ibid., pp. 114-137.
388 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
basta subtrair à configuração narrativa a exposição das res factae para chegar
à inteligência do que é objetivo nos factos narrados. Para ele, as res fictae con-
tribuem terminantemente para a constituição do sentido da experiência histórica,
são meios de conhecimento e de exposição. até aqui não há desacordo relati-
vamente ao dito por ricœur. a divergência começa quando o autor considera
preconceituosa qualquer separação entre res factae e res fictae. mas a sua argu-
mentação é, inicialmente, tal como a de White, muito correta; ambas tornam-
-se problemáticas quando não distinguem facto proposicional de relato ficcional
interpretativo. Jauss começa por sustentar que o ornamento retórico não se junta
de fora ao processo histórico, como se fosse possível chegar pura e objetiva-
mente aos factos estabelecidos a partir das fontes e só um ato segundo, a trans-
posição dos factos para uma narrativa, pusesse em jogo os meios estéticos que
o historiador científico utiliza, geralmente, com má consciência. a hermenêutica
desfez este preconceito e outorgou um estatuto ficcional aos factos, ao demons-
trar que as res factae não são um primeiro estádio: enquanto factos, eles pres-
supõem desde o momento da sua constituição as formas elementares da conce-
ção e da apresentação da experiência histórica.
[...] la mise en fiction de l’expérience historique est toujours déjà à l’œuvre, car
le quoi (Was) événementiel d’un processus (Geschehen) historique est toujours
déjà conditionné par le quand (Wann) perspectiviste de sa perception ou de sa
reconstruction, mais aussi par le comment (Wie) de son exposition et de son inter-
prétation, et il est donc constamment prolongé dans la détermination de sa signi-
fication [Jauss 1989: 90].
É por isso que o tema história e ficção, velho como a própria história, mantém
na atualidade uma renovada pertinência para o futuro da filosofia e do conhe-
cimento444.
a estratégia de Pomian, ao invés da de Jauss, passa não por denunciar o
pendor ficcional da história, mas sim o pendor realista e científico da ficção,
numa luta (velada) contra as teses semióticas do estruturalismo. se é inegável
que a história precisa da verdade, também a ficção a não pode dispensar
(Pomian 1989: 118). o romance enquanto género literário não se fecha comple-
tamente na ficção, porque a imaginação coabita quase sempre com o conheci-
mento, a ficção com a realidade, a invenção com a verdade. só uma ficção
pura pode fechar-se sobre si própria; sem qualquer referência temporal ou espa-
cial do mundo real, cria os seus próprios objetos, tempo e espaço, diferentes de
tudo o que conhecemos, absolutamente novos, portanto. mas, se a ficção aspira
a inscrever-se numa realidade, tem de escolher obrigatoriamente entre os mode-
los de conhecimento disponíveis, a saber, ou o realista, ou o naturalista, ou o
dos romances psicológicos, ou o da ficção científica ou o do romance histó-
rico445.
contra o ficcionalismo, Pomian declara uma fronteira intransponível entre
história e ficção, com base nas chamadas marcas de historicidade446 que o his-
toriador deixa no seu texto e que conduzem o leitor para uma realidade extra-
textual. estas marcas são signos e fórmulas, citações e notas de rodapé que
remetem para as fontes ou para os próprios objetos descritos, no caso da his-
444
Quem o diz é Pomian: «Histoire et fiction: vieux comme l’histoire même, le pro-
blème de leurs rapports porte de nos jours une interrogation fondamentale pour l’avenir de
la philosophie et de la connaissance» (1989: 115).
445
«Dès qu’elle aspire toutefois à s’inscrire dans une réalité, elle n’a de choix qu’entre
celles que rendent accessibles les modalités de la connaissance à notre disposition. ce sont:
la perception et le langage usuel invoqués par les auteurs des romans réalistes, l’approche sta-
tistique mise à contribution par les écrivains naturalistes, l’introspection qui alimente les
romans psychologiques, l’observation-expérimentation qui joue le même rôle pour la science-
fiction, et la reconstruction du passé qu’exploitent les romans historiques. il va de soi qu’un
même roman peut mobiliser les donnés de plusieurs modalités de la connaissance; au XXe
siècle cela est assez fréquent» (Pomian 1989: 118).
446
«une narration se donne donc pour historique lorsqu’elle comporte des marques
d’historicité qui certifient l’intention de l’auteur de laisser le lecteur en quitter le texte et qui
programment les opérations censées permettre soit d’en vérifier les allégations, soit de repro-
duire les actes cognitifs dont ses affirmations se prétendent l’aboutissement. en bref: une nar-
ration se donne pour historique quand elle affiche l’intention de se soumettre à un contrôle
de son adéquation à la réalité extratextuelle passée dont elle traite» (Pomian 1989: 121).
capítulo iV – rePreseNtação e Ficção 391
447
«[...] aucun argument contraignant, qu’il soit linguistique ou psychanalytique, n’in-
terdit de prendre au sérieux la prétention qu’a une narration historique ou scientifique de par-
ler d’une réalité extranarrative, voire extratextuelle, et d’essayer de la confronter à celle-ci
pour établir si et dans quelle mesure cette prétention peut être reconnue valable» (Pomian
1989: 123).
392 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
tido» (ibid.). os ficcionistas refutam esta tese, dizendo que os leitores de base
não têm tempo nem competências científicas para controlar a narração, confiam
simplesmente na autoridade da narração histórica. Neste caso, as marcas de his-
toricidade não são um programa das operações de controlo, são sim um reforço
da confiança no autor, que, deste modo, mostra como as suas afirmações se
prestam a ser submetidas à crítica dos conhecedores, cujo silêncio, por sua vez,
equivale a aprovação. Pomian contrapõe dizendo que esta teoria põe mais uma
vez a tónica na escrita da obra e na sua receção pelo leitor, reduzindo as mar-
cas de historicidade a procedimentos retóricos de persuasão. e se é verdade
que a maior parte dos leitores não tem tempo nem interesse nem competência
para averiguar a veracidade ou a falsidade das marcas de historicidade, há
muitos leitores que o fazem, sendo possível uma leitura passiva e uma leitura
crítica da obra e que é esta segunda leitura que valida ou invalida as afirma-
ções feitas.
reste qu’une même narration qui se donne pour historique peut faire l’objet de
deux lectures: d’une lecture passive et d’une lecture critique. et que, du point de
vue épistémologique, la seconde est supérieure à la première pour autant qu’elle
produit des effets cognitifs publics, surtout quand elle aboutit à infirmer ponctuel-
lement ou globalement la narration qui en fait l’objet [Pomian 1989: 123].
448
«toute source historique virtuelle renvoie à des référents invisibles» (Pomian 1989:
126).
capítulo iV – rePreseNtação e Ficção 393
449
«car, tel qu’il donne prise à la connaissance par l’intermédiaire des vestiges qui le
représentent parmi nous, le passé est toujours fragmentaire, lacunaire et décontextualisé. Frag-
mentaire, parce qu’il nous arrive en morceaux. lacunaire, parce que ceux-ci, même réunis, ne
permettent jamais à eux seuls de reconstituer la totalité dont ils faisaient partie. Décontextua-
lisé, parce qu’ils se trouvent dans un environnement différent de celui qui fut le leur à l’ori-
gine» (Pomian 1989: 131-132).
394 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur
História e Ficção
em tucídides
(Página deixada propositadamente em branco)
PREÂMBULO
A PERENiDADE DA hiSTORiOGRAfiA cLáSSicA
Vários fatores contribuem para que nos sintamos autorizados, sem receio
de sermos julgados por anacronismo ou enviesadas correspondências, a confron-
tar a História da Guerra do Peloponeso com as meditações de ricœur sobre
epistemologia da história, pois, pesem as incontestáveis e notórias disparidades,
para nós, a medula do espírito historiador da atualidade nasceu na Grécia, no
século V a. c. estamos convictos de que não são despropositados alguns para-
lelismos que tentamos estabelecer entre o trabalho de tucídides e o pensamento
histórico do filósofo francês, sobretudo em três domínios: a relação da narrativa
histórica com a verdade e a ficção; com o tempo e o acontecimento; o poder
retórico, ecfrástico ou iconográfico da narrativa histórica para dar visibilidade a
acontecimentos que não podem ficar esquecidos, que demandam louvor ou exe-
cração e demandam um envolvimento emocional e psicológico do leitor – con-
dição sine qua non da refiguração ou mimesis iii. inerente a esta última afi-
nidade está um facto assinalável. a reflexão de ricœur sobre os poderes da
imagem para fazer ver o horror e a luta contra o relativismo histórico surgem
no quadro de uma história contemporânea ou do tempo presente, onde as prin-
cipais fontes não são já escritas mas orais, decorrentes de testemunhas vivas.
ora, a história de tucídides é a primeira história do tempo presente de que
temos conhecimento, também ela tem como objeto os horrores de uma guerra
e como fonte a observação direta. e também ele teve de lidar com o problema
dos testemunhos orais.
esta ponte por cima de vinte e cinco séculos vem comprovar, uma vez
mais, a perenidade da cultura clássica, mesmo em matérias que alguns julgam
400 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
1
rusten (2009), na introdução à compilação que reúne alguns dos mais significativos
ensaios sobre tucídides, passa em revista a receção da obra do historiador ateniense ao longo
dos séculos, e é curioso verificar como esta é alvo das mais variadas e controversas leituras,
sobretudo no século XX. o valor e a qualidade do trabalho de tucídides varia consoante o
enfoque e consoante a evolução que a própria historiografia foi alcançando. digamos que os
estudos que se foram produzindo são tão complexos e tão controversos quanto a sua própria
obra. No renascimento foi exaltado como modelo de retórica. Nos séculos XViii e XiX, foi
eleito por Hume, Kant, Niebuhr e ranke o único historiador antigo digno de imitação. Foi
traduzido por Lorenzo Valla no renascimento e thomas Hobbes, em 1629, expressa a sua
admiração pelo historiador e pelo escritor, assinando a primeira tradução para inglês da His-
tória da Guerra do Peloponeso e transportando para o seu Leviathan algumas marcas tuci-
didianas (1651).
2
«an increasing sophistification on the part of historians about the literary nature and
moral implications of their craft may have made it more difficult to accept uncritically the
old clichés about ‘letting the facts speak for themselves’, ‘the value of objectivity’, and writ-
ing ‘wie es eigentlich gewesen’. surely new tendencies in literary criticism have also had
their effect» (connor 1977, in rusten 2009: 30).
PreâmBuLo 401
3
sobre a separação entre história e erudição, a influência que esta separação tucidi-
diana teve sobre o desenvolvimento da historiografia e a relação entre a história de tucídides
e a história positivista da escola metódica, veja-se o esclarecedor estudo de momigliano
1984: 100-104.
4
ricœur atribui a paternidade da história sábia a Heródoto e tucídides, como se pode
depreender da seguinte distinção entre a origem da memória e a origem da história: «si l’his-
toire a au plan du savoir un commencement distinct, marqué de noms fameux, Hérodote,
thucydide, voire des sources plus anciennes, ses problèmes majeurs, et, pour le dire d’em-
blée, ses difficultés, ses embarras lui viennent de plus loin qu’elle, de la mémoire précisé-
ment» (ricœur 1996: 7).
402 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
5
châtelet considera que não se pode falar de história científica antes do século XiX,
porque antes desse marco histórico não havia o cuidado de comprovar os factos com docu-
mentos e testemunhos nem de datar com precisão os acontecimentos; faltavam, portanto, as
técnicas ditas indispensáveis. e nunca se poderia falar de Heródoto (ou tucídides) pai da his-
tória, no mesmo sentido em que se diz que Galileu é o pai da física moderna. «L’histoire est
savoir. elle n’est savoir scientifique – on veut dire par là: savoir qui a la possibilité d’ap-
porter les preuves de sa véracité – que depuis le XiXe siècle. [...] avant les travaux de Nie-
buhr, de L. von ranke, de L’École historique française, il n’ya a pas, à proprement parler,
de science historique. [...] il faut que tout le discours parlant du passé puisse établir claire-
ment pourquoi – en fonction de quels documents, de quels témoignages – il donne, de telle
succession d’événements, telle version plutôt que telle autre. il convient, en particulier, qu’un
grand soin soit apporté à la datation de l’événement, puisque celui-ci n’acquiert son caractère
historique que dans la mesure où il reçoit de semblables déterminations. or, ce souci de la
précision dans l’étude de ce qui est arrivé jadis n’apparaît clairement qu’au début du siècle
dernier: jusqu’alors, il y a bien des récits sur le passé proche ou lointain et, en ce sens, une
certaine assomption de la temporalité profane; il y a aussi des efforts érudits – portant sur
des faits limités d’ailleurs: généalogiques des familles nobles, histoire des ordres religieux –
visant à établir les filiations exactes, des chronologies précises. mais les deux aspects se com-
binent mal et la pensée n’a pas encore à sa disposition les techniques indispensables» (châ-
telet 1962: 20, 22).
6
Não admira se pensarmos que a tucídides foram buscar inspiração teórica. mas é
estranho se pensarmos que tucídides só achava possível fazer história do tempo presente,
devido ao primado da autopsia (observação directa dos factos) e os historiadores da escola
metódica rejeitavam este tipo de história, em favor da história do passado. Hartog manifesta
da seguinte forma este paradoxo: «thucydide, pour qui seule l’histoire contemporaine est fai-
sable, va, de manière paradoxale, être promu au tout premier rang des historiens de l’anti-
quité (au XiXe siècle), par des hommes, pour qui l’histoire ne peut se faire qu’au passé: thu-
PreâmBuLo 403
cydide historien du présent devient un modèle pour des gens, les historiens “positivistes”, qui,
par histoire, entendent histoire du passé» (1980: 276). também é paradoxal que uma escola
que, por esse motivo, dava tanto valor aos arquivos, aos dados linguísticos, às escavações
arqueológicas e às averiguações sistemáticas escolha como modelo um historiador que secun-
darizava ou mesmo dispensava essa erudição, que não era de modo algum uma autoridade no
estudo de fontes documentais, uma vez que tinha optado por uma história contemporânea,
logo, assente na visão e na memória do historiador, na recolha de testemunhos orais. Há
ainda outros factos paradoxais que causam estranheza a Momigliano: «La idealización de
Tucídides como el historiador perfecto, en el siglo XIX, marca el momento en el que la his-
toriografía moderna comenzó a crear verdaderamente tipos de investigación histórica desco-
nocidos por el mundo clásico (como historia económica, historia de las religiones y, más allá
de ciertos límites, historia cultural)» (1984: 21). Por conseguinte, talvez possamos concluir
que o que atraiu os modernos em tucídides foi mesmo a sua paixão pela política e a sua
obsessão pela verdade.
7
opinião contrária tem Nicole Loraux (1980): «thucydide n’est pas un collègue».
8
«À une époque où l’histoire en général se trouve l’objet d’une attention exception-
nelle, une telle étude peut donc revêtir un intérêt de plus. après tant de travaux traitant soit
de l’histoire elle-même, en tant que devenir humain, soit de la connaissance qui peut en être
prise et de ses limites, l’analyse des procédés employés en fait par un historien comme thu-
cydide peut se présenter, en quelque sorte, comme un exemple et une application» (romilly
1956: 10).
404 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
9
É claro que o alargamento da tópica, enquanto questionário, implica automaticamente
o alargamento das explicações ou das respostas, mas Veyne ignorou esse aspeto. como tive-
mos oportunidade de verificar na primeira parte deste estudo, de tucídides para cá multipli-
caram-se os métodos explicativos, métodos estes que quebraram com uma tradição iniciada
justamente em tucídides, que é a de ter cingindo o objeto da história ao político-militar ou
evenemencial, sem grande consideração por outras realidades sociais explicativas. No compar-
timentado panorama historiográfico do século XX, a obra de tucídides cabe apenas numa das
gavetas e das menos abertas. Já Heródoto podia ser uma fonte de inspiração para La médi-
terranée… de Braudel. Não obstante, as últimas duas décadas do século XX puderam nova-
mente ver em tucídides um precursor, devido ao regresso da história política e narrativa e
ao interesse pela história contemporânea.
10
«[...] les classicistes n’ont pas l’habitude de réfléchir sur l’histoire, ni sur des pro-
blèmes historiques autres que ceux sur lesquels ils se trouvent travailler immédiatement et, en
règle générale, ils ne font même pas de lectures historiques sérieuses hors du champ de l’an-
tiquité. Leurs idées générales en histoire tout comme leurs idées en économie ont été en gros
fixées au moment de leur scolarité; ce sont elles qui façonnent les postulats de base et les
généralisations implicites, dont ils partent pour classer et ordonner les événements et les ins-
titutions du monde ancien» (Finley 1981: 138).
406 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
duas secções. comecemos pela segunda. esta divide-se em três partes, em con-
sonância com cada um dos estádios da operação historiográfica demarcados por
ricœur. Na primeira, confrontaremos a História de tucídides com as medita-
ções ricœurianas sobre testemunhos, indícios e provas documentais; na segunda,
o confronto faz-se a partir de configuração narrativa, explicação, acontecimento
e tempo; na terceira, onde a convergência entre os autores é surpreendente e
onde história e ficção falam mais alto, falaremos de artifícios retóricos e do
poder iconográfico e persuasivo da narrativa histórica tucididiana. À imagem do
que fizemos para ricœur, a primeira secção é sobre história e verdade em tucí-
dides, enquadrando aí algumas reflexões sobre o modo como o historiador ate-
niense articula subjetividade e objetividade, arte e ciência. ricœur, ele mesmo,
dá o mote, ao referir-se a tucídides como mestre da verdade, expressão que
colhe (2000). em La Mémoire, l’histoire, l’oubli, o filósofo francês, referindo-
-se à estrutura da obra de dosse, assina a seguinte nota de rodapé: «La problé-
matique de la vérité commence moins par Hérodote, le premier histor, que par
thucydide et son “culte du vrai”» (MHO, 168, n. 2). Podemos dizer que esta
preocupação com a verdade é um fio condutor que começa em tucídides, atra-
vessa vinte e cinco séculos e acaba na mão de ricœur – o pensador contem-
porâneo que mais terá investido na questão da verdade historiográfica, esfor-
çando-se por salvar a história do aluvião relativista que a ameaça submergir.
mesmo sem querermos entrar, agora, demasiado na polémica sobre se
tucídides é um “colega” ou se a sua história pode ser considerada científica,
não podemos deixar de insistir na ideia de que entre o trabalho do historiador
ateniense e o dos historiadores da escola metódica existe um hiato considerá-
vel, que se resume numa certa mentalidade e na insuficiência técnica dos gre-
gos. tal não obsta a que consideremos frutuosa e pertinente esta anábase,
podendo assumir como nossas as dúvidas e as respostas de châtelet a esse pro-
pósito (La naissance de l’Histoire (1962: 33). Pode perguntar-se se não existe
um paradoxo em querer compreender o que quer que seja do espírito historia-
dor interrogando o pensamento helénico; se não é a visão grega do mundo
fechada ao reconhecimento da historicidade humana e não é por um abuso de
linguagem, anacronismo, que traduzimos ἱστορία por história. independente-
mente da classificação que se possa atribuir às histórias de Heródoto e tucídi-
des (descrições, explorações, investigações), trata-se de textos que tomam por
objeto o passado (passado próximo), mas não com as determinações próprias
que nós atualmente atribuímos a esta categoria temporal. É, pois, errado pensar
que os Gregos escreveram história porque tinham uma forte consciência histó-
rica ou porque acreditavam como nós na capacidade humana para transformar
o mundo ou no homem como autor da história. ora, estes não acreditavam ple-
PreâmBuLo 407
11
«torna-se preciso ter presentes todos estes argumentos para se evitar interpretações
anacrónicas, como a de pensar que – mesmo nos autores que mais se aproximaram do antro-
pocentrismo (os sofistas, por exemplo) – os gregos (e os romanos) podem ser elevados a
uma espécie de precursores do historicismo moderno e, em particular, do seu princípio
viquiano segundo o qual é o homem quem “faz” a história» (catroga 2009: 59).
12
«une analyse historique sérieuse [...] suppose qu’on accorde du poids, une “causa-
lité” à l’acte humain comme tel, qu’on le tient pour effectivement producteur d’ “originalités”
qui comptent; il faut, en quelque manière, croire à la liberté de l’homme comme puissance
négatrice pour reconnaître une importance à l’histoire de l’humanité. or, il paraît évident
qu’une telle notion est étrangère à la pensée hellène» (châtelet 1962: 35).
408 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
Para retomar o assunto que deixámos para trás: que contém, então, a nar-
rativa de tucídides (e também por inerência a de Heródoto) que nos faz voltar
a ela? «aspetos decisivos do espírito historiador» estão presentes nas suas
obras: um tipo de narrativa; um estilo de referência; uma visão de conjunto que
parte do reconhecimento da importância, do peso e do valor da res gestae; uma
determinada forma de conceber a existência humana13. entre estas virtudes há
13
«il demeure – c’est ce que l’on voudrait souligner et prouver par les textes – que,
malgré sa totale non-préparation à recevoir et à forger les notions permettant l’élaboration
d’une historia res gestarum sérieuse, cette pensée, à partir du Ve siècle, a été, en quelque
PreâmBuLo 409
sorte, contrainte par les res gestae à construire un type de récit, un style de référence, une
visée d’ensemble reconnaissant, par une décision d’une grande importance, le poids et la
valeur des res gestae et inaugurant, par là, une façon de considérer l’existence humaine. des
aspects décisifs de l’esprit historien sont présents dans l’œuvre d’Hérodote et de thucydide;
des dimensions capitales de la philosophie de l’histoire apparaissent chez Platon et chez aris-
tote; la liaison du politique et de l’historique est partout présente dans les siècles d’or de la
Grèce» (châtelet 1962: 55).
14
esta é também a opinião de uma autoridade como momigliano: «La variété et la
complexité de notre travail historique actuel accordent une importance accrue aux liens avec
le monde classique que l’on avait négligés jusqu’alors» (1992: 1).
(Página deixada propositadamente em branco)
cAPÍTULO i
TUcÍDiDES, MESTRE DE VERDADE
15
o termo akribeia exprime o sentido de “conformidade com a realidade”, de “ajuste”,
e é uma metáfora proveniente do campo semântico da carpintaria e da joalharia. os sentidos
de objetividade e rigor que lhe estão associados terão sido acrescentadas pelo próprio tucí-
dides (vide Hornblower 1987: 37). Hartog afirma que «Akribes se diz, por exemplo, de uma
armadura que se adapta bem ao corpo» (2005: 95).
412 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
mesmo uma voz dissonante como a de Nicole Loraux reconhece, com iro-
nia, é certo, como escopo de tucídides a verdade e é sobre esse escopo que
ela se apoia para criticar o trabalho do historiador, porque este não tem cons-
ciência do ato de escrita e como este ato de escrita se interpõe entre os factos
e o leitor, impossibilitando o alcance da verdade:
or la vérité est ouvertement la visée de thucydide, comme s’emploie à le démon-
trer l’exposé de méthode, qui s’ouvre sur le navrant manque d’héroïsme avec
lequel la foule recherche le vrai et se clôt sur l’épiphanie de la “plus vraie cause
de la guerre”, que présente le “je”. Lire l’œuvre reviendra donc à rencontrer la
vérité: thucydide l’a cherché, et il l’a trouvée (1986: 150).
16
«thucydides’ legacy to later historical writing was in many ways profoundly bene-
ficial, in that he set standards of research and accuracy for all time» (Hornblower 1987: 30).
17
«His true greatness, therefore, is that of a pioneer in scientific method» (cochrane
1929: 168).
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 413
estudo das suas declarações de teor metodológico, por onde perpassa um insis-
tente desejo de verdade e objetividade. centramo-nos, para já, principalmente,
em torno do prólogo e do capítulo 22. os capítulos 20 e 21 (cujos excertos se
apresentam aqui traduzidos) merecerão outra atenção da nossa parte na próxima
etapa deste estudo, onde abordaremos questões relativas a testemunhos, provas
e documentos18. após a exposição dos textos e respectivas traduções, passare-
mos a uma análise detalhada de alguns tópicos fundamentais.
i. [1] tucídides de atenas pôs por escrito a guerra dos Peloponésios e dos ate-
nienses, como guerrearam uns contra os outros, começando a escrever logo aos
primeiros sinais, por ter pressentido que esta havia de ser a de maiores proporções
e mais memorável das guerras havidas até aí, deduzindo-o pelo facto de ambos os
lados irem para ela no auge das suas forças e totalmente apetrechados e por ver
o restante mundo grego aliar-se a um ou outro dos lados, uns de forma imediata,
outros em intenção. [2] Foi, de facto, a maior agitação que se deu entre os Gregos
e uma parte dos bárbaros e, pode dizer-se, entre a maior parte da humanidade.
[3] Na verdade, não era possível conhecer com clareza o que aconteceu antes nem
os acontecimentos ainda mais antigos, por se ter passado um longo período de
tempo, mas a partir dos indícios nos quais se baseia a minha confiança, quando
procuro ver até onde é possível alcançar, considero que não houve nada de gran-
des dimensões nem em guerras nem noutras coisas.
18
Para as citações da História da Guerra do Peloponeso no original grego seguimos
a seguinte edição: stuart Jones, H., Powell, J. e., Thucydidis, Historiae, 2 vols., oxford uni-
versity Press, oxford, 1942, reimp. 1963. as traduções para língua portuguesa são da nossa
autoria.
414 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
μιᾷ ψήφῳ προστίθεσθαι ἑκάτερον, ἀλλὰ δυοῖν, καὶ τὸν Πιτανάτην λόχον αὐτοῖς
εἶναι, ὃς οὐδ᾽ ἐγένετο πώποτε. οὕτως ἀταλαίπωρος τοῖς πολλοῖς ἡ ζήτησις τῆς
ἀληθείας, καὶ ἐπὶ τὰ ἑτοῖμα μᾶλλον τρέπονται.
21 [1] ἐκ δὲ τῶν εἰρημένων τεκμηρίων ὅμως τοιαῦτα ἄν τις νομίζων μάλιστα ἃ
διῆλθον οὐχ ἁμαρτάνοι, καὶ οὔτε ὡς ποιηταὶ ὑμνήκασι περὶ αὐτῶν ἐπὶ τὸ μεῖζον
κοσμοῦντες μᾶλλον πιστεύων, οὔτε ὡς λογογράφοι ξυνέθεσαν ἐπὶ τὸ
προσαγωγότερον τῇ ἀκροάσει ἢ ἀληθέστερον, ὄντα ἀνεξέλεγκτα καὶ τὰ πολλὰ ὑπὸ
χρόνου αὐτῶν ἀπίστως ἐπὶ τὸ μυθῶδες ἐκνενικηκότα, ηὑρῆσθαι δὲ ἡγησάμενος ἐκ
τῶν ἐπιφανεστάτων σημείων ὡς παλαιὰ εἶναι ἀποχρώντως. [2] καὶ ὁ πόλεμος
οὗτος, καίπερ τῶν ἀνθρώπων ἐν ᾧ μὲν ἂν πολεμῶσι τὸν παρόντα αἰεὶ μέγιστον
κρινόντων, παυσαμένων δὲ τὰ ἀρχαῖα μᾶλλον θαυμαζόντων, ἀπ᾽ αὐτῶν τῶν ἔργων
σκοποῦσι δηλώσει ὅμως μείζων γεγενημένος αὐτῶν.
τις εὐνοίας ἢ μνήμης ἔχοι. [4] καὶ ἐς μὲν ἀκρόασιν ἴσως τὸ μὴ μυθῶδες αὐτῶν
ἀτερπέστερον φανεῖται: ὅσοι δὲ βουλήσονται τῶν τε γενομένων τὸ σαφὲς σκοπεῖν
καὶ τῶν μελλόντων ποτὲ αὖθις κατὰ τὸ ἀνθρώπινον τοιούτων καὶ παραπλησίων
ἔσεσθαι, ὠφέλιμα κρίνειν αὐτὰ ἀρκούντως ἕξει. κτῆμά τε ἐς αἰεὶ μᾶλλον ἢ
ἀγώνισμα ἐς τὸ παραχρῆμα ἀκούειν ξύγκειται.
22 [1] Quanto ao que disse cada um dos lados em discurso, estando para entrar
em guerra ou estando já nela, era difícil recordar a exatidão mesma do que foi
proferido, quer o que eu próprio ouvi quer o que me relataram outras fontes: eu
expus o que a meu ver cada um terá dito de acordo com o que seria mais con-
veniente para cada circunstância, mantendo-me o mais próximo possível do sen-
tido geral do que foi realmente afirmado. [2] relativamente aos acontecimentos
passados durante a guerra não me pareceu correto escrever qualquer informação
que me chegasse nem o que a mim me parecia ter acontecido, mas só o que eu
próprio presenciei ou o que acerca de cada um procurei saber junto de outras pes-
soas como o máximo de exatidão possível. [3] Foi uma árdua investigação, porque
os que estiveram presentes em cada acontecimento não diziam o mesmo acerca
deles, devido à simpatia que pudesse haver por um dos lados ou devido à memó-
ria. [4] Provavelmente, o caráter não fabuloso dos factos relatados fá-los-á parecer
menos agradáveis ao ouvido: mas julgue-os úteis quantos queiram ver claro nos
acontecimentos do passado e nos que, no futuro, em virtude do caráter humano
que é o seu, apresentarão similitudes ou analogias, e isso para mim será suficiente.
compôs-se um tesouro para sempre mais do que um recital para um auditório
momentâneo.
19
adam Parry, com a sua tese de doutoramento apresentada em 1957 Logos and Ergon
in Thucydides (1988) e o ensaio Thucydides’ historical perspective (1972), foi um dos primei-
ros a contrariar esta crença, demonstrando o pathos e a envolvência de tucídides na sua
escrita.
416 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
20
«Now there is a general consensus that by the mythic (τὸ μυθῶδες) thucydides
meant the fabulous or storytelling element of his predecessors. He contrasts it with clarity (τὸ
σαφές), which seems to be closely bound up with the certainty of contemporary history, and
this suggests that ‘the mythic’ cannot be tested or inquired about, because of both the dis-
tance in time from the events, and the essentially fantastic nature of the material. it is a trib-
ute to the influence of thucydides that after him myth could only with difficulty be rescued
or redeemed. in later historians we can see only three possibilities: avoid myths altogether;
try to ‘rationalize’ or ‘de-mythologise’ them; or, as Lucian suggests, include them, but leave
their credibility to the reader to decide. if one include them, one had to defend oneself»
(marincola 1997: 117-118).
21
sobre a relação de tucídides com o prazer proveniente das palavras vide o interes-
sante trabalho de crane 1996: 215-235.
22
tucídides inclui na sua História um episódio que dramatiza muito bem este conflito
entre oralidade e escrita. o general ateniense Nícias recusa confiar nos seus próprios mensa-
geiros devido à falibilidade da oralidade e da memória, optando por escrever uma carta –
tucídides: Vii. 8. 2.
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 417
For writing allowed one not only to compose and recompose but to study, correct,
and revise, dwelling at length and in private on one’s manuscript until the eye was
satisfied with is product. it permitted “a different kind of scrutiny of current
knowledge, a more deliberate sorting of logos from doxa, a more thorough pro-
bing into the ‘truth’ ”. the result is a manuscript that yields far more to the eye
than to the ear, for the reader could study it closely and discern what the equally
close attention of the writer had implanted therein. He would discover an episte-
mology. and this thucydides effected through a skillful and original use of one
of the conventions of the oral performance since Homer, the speeches of the par-
ticipants [Hunter 1982: 290].
o rhetor joga com as emoções dos ouvintes, usa truques retóricos para
fins de convencimento do auditório, podendo mesmo enganá-lo, forjando as
mais variadas ilusões com as palavras. a questão que muito provavelmente se
colocava tucídides é onde fica a verdade no meio da ilusão (apate) produzida
pela retórica. as convenções da oralidade podem não ter outro fim que não seja
obscurecer a verdade. certamente, era isto que acontecia com a epideixis, a per-
formance pública do sofista ou rhetor. Para este, os logoi não tinham como fim
necessariamente a comunicação da verdade ou mesmo de uma qualquer men-
sagem. os logoi possuem o estranho poder de evocar sentimentos nos ouvintes
e de os guiar pelas emoções. tucídides ter-se-á apercebido que o rhetor, ins-
trumentalizando assim os logoi, podia tornar-se muito perigoso, por isso recusa
este tipo de figura. todavia, não recusa o seu instrumento de trabalho, o dis-
curso; pelo contrário, apropria-se dele e dá-lhe a máxima vitalidade. mais à
frente, verificaremos como os discursos políticos desempenham um papel vital
na obra de tucídides23. em todo o caso, percebe-se quem sustenta que a epis-
temologia de tucídides pode ser considerada como uma resposta a Górgias24.
Quem também ganhava a vida a declamar era o logógrafo, categoria onde
tucídides insere Heródoto. o logógrafo fascinava os seus ouvintes com as suas
23
«the orator and the text may aim at different groups, but, in a political document
such as thucydides’ History, the written logoi have much in common with those the orator
performs before a living audience» (crane 1996: 233).
24
m. untersteiner, The Sophists, trad. ingl. K. Freeman, oxford, 1954, explora esta
relação entre apate e logos e consagra o capítulo 5 à «epistemologia de Górgias». a secção
intitulada «o encómio de Helena», pp. 101-131, é particularmente interessante. Parte da sua
interpretação toma como ponto de partida tucídides, iii. 43. 2. crane (1996) também con-
sagra o último capítulo do seu livro, sob o título The Rhetoric of austerity, ao confronto da
obra de tucídides com os temas da retórica.
418 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
25
antes de Heródoto, os logógrafos eram genealogistas e arquivistas. ao serviço das
grandes famílias das cidades, tinham como missão recolher provas que atestassem a antigui-
dade e a nobreza de um genos, o seu direito ao reconhecimento público ou de consignar os
atos importantes – diplomáticos, militares ou religiosos – de uma pólis. Hecateu de mileto,
também ele logógrafo, já introduz as variantes geográficas e etnográficas no seu relato de fac-
tos históricos, vindo a influenciar o próprio Heródoto.
26
Hornblower, que refuta muitas das críticas que normalmente se fazem a Heródoto e
desmonta muitas das falhas que tradicionalmente se lhe apontam, reconhece três dívidas de
tucídides para com Heródoto, sendo a primeira delas a decisão de fazer um registo verda-
deiro e interpretativo do passado: «[...] the decision to record truthfully, and to interpret, the
past, confining himself to contemporary or near-contemporary events, i.e. knowledge he could
control» (1987: 26).
27
momigliano é dos poucos que contraria a ideia da leitura pública das obras de Heró-
doto, argumentando que não há dados concretos que o confirmem, e a alusão de tucídides
não é suficientemente fiável: «Puede ocurrir muy bien que tucídides se contraponga aquí
polémicamente a sí mismo frente a Heródoto en materia de lecturas públicas, pero sus pala-
bras no son explícitas en este sentido. Como máximo son ambiguas. Solo si estamos seguros
por un camino independiente del hecho de que Heródoto hizo lecturas públicas de sus obras,
podríamos buscar una confirmación a Tucídides. Éste es reticente incluso sobre su propia
obra; no excluye ni confirma que fuese leída o que pudiese leerse en público. Lo que quiere
expresar principalmente es la convicción de que una buena historia es una historia que las
futuras generaciones leerán para su instrucción» (1984: 112).
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 419
1. TUcÍDiDES E hERÓDOTO
28
«such things thucydides reject in the interests of truth, and we say that Herodotus
was after all an artist, while thucydides was the first scientific historian» (Gomme 1954:
117).
29
«certainly, thucydides goes even further than Herodotus in claiming to have
checked his facts by original research: at the beginning, perhaps with Herodotus specifically
in mind, he remarks that most people do not take trouble over the search for the truth. But
even this remark belongs in a tradition, for aristophanes uses the same word in a similar
context. [...] But thucydides, like Herodotus in his programmatic statement about ‘speaking
of what he knew’, may have used conventional language to signal what was really an uncon-
ventional plan of work» (Hornblower 1987: 24).
30
«s’inscrit, en effet, à l’évidence dans les premières pages de l’Histoire de la guerre
du Péloponnèse une volonté de rupture avec les autres Histoires et, notamment, avec déjà les
plus célèbres d’entre elles, celles d’Hérodote» (Hartog 2005: 92).
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 421
31
«thucydide raconte comment, enfant, il eut l’occasion d’entendre Hérodote en per-
sonne raconter ses Histoires à olympie. son émerveillement fut tel qu’il en pleura d’émotion.
malgré cet enchantement, à une seule génération de distance, le fils tu le père et Hérodote
subit une disqualification quasi immédiate de la part de son disciple. thucydide qui lui
reproche de rester encore trop près de la légende et trop éloignée des strictes règles d’éta-
blissement de la vérité. Hérodote passe alors pour un affabulateur, trop prompt à l’invention
pour combler les lacunes documentaires. Père de l’histoire, il devient également père des
mensonges» (dosse 2000: 13). Hartog reforça a mesma ideia: «il fallait thucydide pour
qu’Hérodote pût apparaître comme menteur [...]» (2005: 99).
32
momigliano retrata bem esta situação paradoxal: a fama de Heródoto como pai da
história e como mentiroso deve-se a tucídides. «Y sin embargo el padre de la historia no fue
nunca, o casi nunca, reconocido como un historiador modelo, porque no fue nunca tratado,
tampoco por sus admiradores, como digno de fe. Hasta su compatriota Dionisio de Halicar-
naso, que lo admiró en todo lo demás, calla sobre su veracidad. Esta situación parajódica se
explica fácilmente. Heródoto fue padre de la historia, porque Tucídides lo reconoce implíci-
tamente como tal; pero fue considerado como no digno de fe, porque fue tal el veredicto de
Tucídides. En otras palabras, la reputación de Heródoto en la antigüedad fundamentalmente
depende de la dirección que Tucídides imprimió a la historiografía» (1984: 97).
422 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
33
Numa outra obra, Momigliano faz uma síntese das heranças e das ruturas entre os
dois historiadores: «Thucydide, à l’instar d’Hérodote, ne mettait pas en question la présupposé
selon lequel la tradition orale surpassait la tradition écrite. et comme lui, il croyait d’abord
ce qu’il voyait de ses yeux et ce qu’il entendait de ses oreilles avant de considérer ce que
disaient des témoins dignes de foi. [...] il se séparait cependant d’Hérodote de deux manières:
en premier lieu, il ne se satisfaisait jamais d’un honnête compte rendu sans prendre la res-
ponsabilité de ce qu’il rapportait. Le simple λέγω τὰ λεγόμενα n’était pas pour lui. en
deuxième lieu – il s’agit là, dans une certaine mesure, de la conséquence du premier point
– il a rarement indiqué le détail des sources de son information. il avait le sentiment qu’on
devait le croire sur parole» (1992: 49).
34
a nosso ver, estes dois tipos de deleite, um assente em mythodes e outro na capa-
cidade de conferir vivacidade (enargeia) ao relato, marca a diferença entre Hayden White e
Paul ricœur. os dois admitem a utilização de recursos retóricos ou da ficção enquanto forma
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 423
de comunicação com o leitor, mas para White estes recursos são deixados à deriva, entrando
na categoria de mythodes e para ricœur eles não podem perder o contacto com a res gestae,
ou seja, hão de ser necessariamente controlados pelas provas documentais. É uma ficção sem-
pre sujeita a controlo documental.
35
esta opção de tucídides pela história política haveria de prevalecer até ao século
XX, mais precisamente, até à História do Mediterrâneo e do mundo mediterrânico de Fer-
nand Braudel, que se pode considerar um regresso ao espírito historiador (etnográfico e geo-
gráfico) de Heródoto. Hornblower considera-a como uma das heranças negativas que tucí-
dides nos legou: «it was profoundly damaging because [...] it was thucydides who by his
influential practice ordained that history should henceforth be primarily a matter of war and
politics» (1987: 30). momigliano justifica assim esta eleição do historiador ateniense e a
rejeição da etnografia e da geografia: «tucídides se concentraba sobre la vida política, en ella
reencontraba el sentido al obrar humano. Comprendiendo la vida política del presente, y sus
consecuencias militares, consideraba haber comprendido la naturaleza del hombre en sus ele-
mentos perennes. Regularmente, si no siempre, dejaba de lado las descripciones de países
extranjeros, de experiencias insólitas (hecha excepción de la peste), de anécdotas sobre indi-
viduos notables, de mitos y cultos, de noticias sobre cosas conspicuas por su belleza o gran-
deza. Hacía hincapié en considerar la guerra del Peloponeso como la suma de la naturaleza
humana; tan obstinadamente que no tenía duda alguna sobre sus premisas metodológicas»
(1984: 98).
36
cf. Hornblower 1987: 29-30: «the first main difference between Herodotus and
thucydides is in their theology and view of causation. Herodotus is much readier than
thucydides to give a place in his causal scheme to oracles, and to see human fate in terms
of tisis, divine requital, although this does not exclude causation at the human level».
424 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
Não é, como já vimos, uma intensa consciência histórica que leva Heró-
doto e tucídides a historiografar. tucídides não é, nesta fase, muito explícito
quanto aos seus propósitos. saberemos mais tarde que tem em mente deixar-nos
“lições para sempre”. Já Heródoto é muito claro: preservar aquilo que aos
homens deve a sua existência (τὰ γενόμενα ἐξ ἀνθρώπων), para que o tempo
o não apague e para não deixar sem renome (aklea) os gloriosos e admiráveis
feitos dos Gregos e dos Bárbaros. aquele que cícero apodou de pai da história
– pater historiae (De legibus i, 5; De oratore ii, 5) – propôs-se, deste modo,
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 425
37
«a mortalidade é isto: mover-se em linha reta num universo onde tudo o que se
move, se é que se move, o faz dentro de uma ordem cíclica. sempre que perseguem os seus
objetivos, lavrando a passiva terra, conduzindo o livre vento para o côncavo das suas velas,
sulcando as ondas que rolam sem cessar, os homens irrompem através de um movimento que
é sem objetivo e que gira dentro de si mesmo. Quando sófocles (no famoso coro da Antí-
gona) diz que não há nada que inspire mais terror do que o homem, exemplifica-o evocando
atividades humanas que violam a natureza porque perturbam o que, na ausência dos mortais,
constituiria a eterna quietude do ser-para-sempre que repousa ou volteia dentro de si mesmo»
(arendt 2006: 56).
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 427
38
este é o grande paradoxo que Hannah arendt encontra na cultura grega, que terá
contribuído grandemente para o seu pendor trágico e terá perseguido poetas e historiadores
gregos, tal como inquietou os filósofos. a grandeza é entendida em termos de permanência,
mas a grandeza humana é vista precisamente nas menos duradouras das atividades humanas.
Por outras palavras: por um lado, «tudo era visto e mensurado contra o pano de fundo das
coisas que existem para sempre, [por outro,] a verdadeira grandeza humana era entendida,
pelo menos entre os gregos pré-platónicos, como residindo nos feitos e nas palavras, sendo
melhor representada por aquiles, “o herói dos grandes feitos e das grandes palavras”, do que
pelo fazedor ou o fabricador, ou até do que pelo poeta ou pelo escritor» (2006: 59).
39
Píndaro apresenta uma particularidade que merece atenção, na medida em que utiliza
o mito como instância fundadora e amplificadora de sentido e, a nosso ver, como forma de
inscrever na esfera do eterno a glória pontual do humano. «cristalizando o mito aquela expe-
riência humana que a sentença (gnome) enuncia como validade universal, ele acolhe o par-
ticular da vitória nessa universalidade em que se inscreve o sentido dos próprios Jogos, reno-
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 429
vado e atuante em cada competição» (Fialho 2003: 131). os seus epinícios em honra dos
vencedores nos jogos Pan-Helénicos tomam como ponto de partida a vitória histórica de um
determinado atleta mas concedem pouco espaço aos elementos factuais, recusando ficar-se
pela particularidade e pela individualidade. Píndaro guinda esta grandeza humana e passageira
ao nível da imortalidade imutável, amplificando-o com recurso a um mito associado ou ao
herói fundador ou protovencedor dos Jogos ou ao herói tutelar da polis do vencedor cele-
brado. o tempo caduco da vitória é, por esta via, revestido pelo tempo do mito e arrebatado
para a esfera das grandezas imortais (cf. Hornblower 2004).
40
É interessante verificar a inversão de paradigmas que se deu sob influência da reli-
gião judaico-cristã e que abrirá caminho para a consciência historicista que marca a idade
moderna. a partir do momento em que o indivíduo é o único ser imortal e sagrado e tudo
o resto, o cosmos, a natureza, é perecível, alteram-se profundamente os cânones clássicos da
história, a começar pelo enfoque no interesse pessoal, que domina a filosofia política moderna
(cf. arendt 2006: 66).
430 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
o cidadão é integrado pela sua pertença à unidade política num devir pro-
fano no qual vê desenrolar-se o seu destino. Não lhe é mais possível ignorar
a sua historicidade, pois a realidade na qual se encontra mergulhado manifesta-
-se a ele forçosamente como histórica. se ele conquistou, graças à vida política,
o seu estatuto de homem atuante, o seu projeto, no entanto, só tem sentido no
interior de uma situação histórico-política. Homem político – cidadão de uma
polis – e homem histórico – situado no e pelo devir sensível-profano – reco-
brem-se mutuamente e marcam a génese do pensamento histórico no mundo
helénico41.
41
moses Finley partilha da mesma opinião de châtelet. Para ele, também foi a política
a condição decisiva do surgimento da história entre os gregos: «À la génération suivante,
thucydide alla encore beaucoup plus loin [qu’Hérodote] en mettant l’accent sur la continuité
d’un récit organisé selon une chronologie stricte, sur une laïcisation rigoureuse des analyses,
et, avec non moins d’insistance et de rigueur, sur l’action politique. L’impulsion nouvelle
venait de la polis classique, et en particulier de la polis athénienne qui, pour la première fois,
du moins dans le monde occidental, fit de la politique une activité humaine, et ensuite en fit
la plus fondamentale des activités sociales. un regard neuf sur le passé s’imposait. cela ne
signifie pas qu’aucun autre point de départ n’eût pu produire l’idée de l’histoire, mais que
chez les Grecs – si on y ajoute le scepticisme et l’habitude d’enquêter, déjà mentionnés – ce
fut la condition décisive» (Finley 1981: 36-37).
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 431
3. HISTORIE E SYNGRAPHO
42
«un tel mode d’affirmation de soi et de production d’un discours n’a nullement été
le fait de la seule historiographie. il est, tout au contraire, la marque, proprement la signature
de cette époque de l’histoire intellectuelle grecque (entre le Vie et le Ve siècle av. J.-c.), qui
a vu au même moment chez les artistes, les philosophes de la nature, les médecins, la montée
de l’“égotisme” (Hartog 2005: 39-40). antes de Heródoto, já Hecateu de mileto, autor de
umas Genealogias e de uma Descrição da Terra em duas partes (europa e Ásia), acompa-
nhada com um mapa ilustrativo, assinara de modo similar as suas Genealogias, nos inícios
do século V: «Hecateu de mileto fala assim». a consciência autoral de Hecateu, que trans-
forma o narrador num escritor consciente da sua subjetividade, é um primeiro passo da his-
toriografia neste novo espaço político e intelectual de que fala Hartog, onde o historiador vem
substituir o aedo, e a que Heródoto dará continuidade: «si l’aède était le porte-parole de la
muse, l’historien, qui recourt à l’écriture, se revendique comme écrivant» (Hartog 2005: 47).
a obra de Hecateu aproxima-se no conteúdo à do seu sucessor, pois mistura considerações
de ordem geográfica e etnográfica com dados históricos. Para além disso, criou uma crono-
logia por gerações de quarenta anos e brindou-nos com uma célebre frase reveladora de espí-
rito crítico: «escrevo de acordo com o que me parece ser a verdade; pois as histórias dos
Gregos são, em meu entender, muitas e ridículas» (fr. 1a Jacoby, apud rocha Pereira 1998:
285). a prática da escrita, na qual Hecateu é um dos pioneiros, permitiu aos gregos dos finais
432 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
43
a crítica de Loraux tem por base a seguinte afirmação de tucídides: «comecei por
indicar em primeiro lugar a razão pela qual romperam o tratado, as causas e os diferendos,
para que ninguém tenha um dia de procurar donde surgiu tão grande guerra para os gregos»
(tucídides: i. 23. 5). «en un mot, l’histoire de la guerre est faite, et il n’y a plus à s’inter-
roger il est même interdit de rouvrir la recherche après thucydide – aussi bien la recherche
était-elle pour l’historien le premier temps du parcours et peut-être le plus important, mais,
de cette étape fondatrice, une fois les faits “trouvés”, aucune trace de devait demeurer. il n’y
a plus à chercher, puisque le procès d’écriture a eu lieu, moment ultime de la démarche
historiographique, mais le seul qui doive laisser sa marque. [...] il n’y a rien à chercher
au sujet de la guerre du Péloponnèse en dehors de ce que thucydide en a écrit, parce
que l’œuvre a pleinement accompli sa visée d’être la guerre muée en texte [...]» (Loraux
1986: 159).
434 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
44
«mais, parce que ce qui est écrit a été éprouvé comme relevant vraiment de l’ordre
des erga, le lecteur est invité à se convaincre que, dans le texte, il trouve les faits, rien que
les faits» (Loraux 1986: 149).
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 435
leva Parry a concluir que o historiador tinha consciência de a sua história ser
uma interpretação dos factos: «and so the History is an interpretation of reality
which also interprets the possibilities of interpretation» (1988: 10)45.
o historiador, nomeando-se, não se autoexclui do processo historiográfico,
logo, a seu ver, não há contradição entre reunir por escrito os factos tal como
aconteceram e a presença organizadora e compositora do sujeito. Na senda
deste ideal de verdade especular, o historiador está obrigado a articular subje-
tividade e objetividade, parcialidade e imparcialidade, arte e ciência, ficção e
história. e, como veremos, na parte final deste estudo, uma das maiores preo-
cupações de tucídides foi escrever da forma mais realista e pictórica possível,
com o claro intuito de transpor iconograficamente a realidade para o discurso.
e não é isto que propõem ricœur e rancière? e não sabemos nós que a his-
tória herdou da memória as aporias da imagem, não se podendo falar de res-
surreição do passado (michelet) ou de coincidência entre o representado e a
representação?
Na primeira asserção, rica de elementos epistemológicos, a diferença
maior, que determina indelevelmente os trabalhos dos dois historiadores em
cotejo, reside na diferença entre historie e syngrapho (vide edmunds 1993, in
rusten 2009: 91-114). Heródoto expõe as suas investigações (ἱστορίης
ἀπόδεξις), empregando para “investigações” o mais afortunado dos termos da
história da historiografia, histories, do qual a mesma haveria de herdar a sua
identidade – termo que, curiosamente, tucídides nunca utiliza. Heródoto expõe,
mas tucídides reúne por escrito (sunegrapse) e a diferença é mais do que
lexical.
comecemos pela conceção arcaica da figura do histor. Historie é a forma
iónia de historia. termo abstrato formado a partir do verbo historein, que sig-
nifica investigar, inicialmente com o sentido de investigação judicial, historia
deriva de histor. este, por sua vez, deriva do radical indo-europeu *wid-, a par-
tir do qual se formaram os termos gregos idein – aoristo radical temático por
supletivismo do verbo orao, que significa “ver” – e eido, cujo perfeito, oida,
assume a aceção de “saber” como resultado de ter visto. originariamente, histor
45
sobre a relação do texto de tucídides com a realidade descrita veja-se a curiosa
reflexão de edmunds que parte da comparação feita por richard dawkins entre genes e com-
plexos genéticos e programas de computador. «His example is of great use in understanding
thucydides’ claims for the writing, because in dawkins we see how a new technology of
communication is, with the greatest enthusiasm, equated absolutely with a subject matter that
is categorically different from the technology. thucydides, i submit, saw in writing a tech-
nology that could completely appropriate the subject he chose, to the extent that the writing
and the subject became indistinguishable» (edmunds 1993, in rusten 2009: 106).
436 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
Hartog explica que o verbo semainein aplica-se àquele que viu o que os outros
não veem ou não puderam ver, pertencendo ao campo do saber oracular. a pri-
meira vez que Heródoto diz “eu” é com intenção de semainein, isto é, de
designar, revelar e atribuir significado a alguma coisa. a primeira vez ocorre no
prólogo e designa aquele que teve a iniciativa de ofender os Gregos, creso da
Lídia, o responsável pelo desencadear do conflito. Heródoto não se faz passar
por adivinho, mas, pelo seu saber, assume um estilo de autoridade oracular:
«Par cette recherche et cette désignation en responsabilité, Hérodote ne se pré-
sente pas en devin ou ne joue pas au devin, mais il reprend, au titre de son
propre savoir, un style d’autorité de type oraculaire» (Hartog 2005: 73).
em suma, desta abordagem filológica, podemos concluir, em primeiro
lugar, que a historiografia surgiu «sob o signo do olhar e, logo, da perceção»
e, em segundo, que historein «refere-se tanto a testemunhar como a investigar
e conjeturar» (catroga 2009: 60). a obra de Heródoto é um exemplo claro de
como em historein e semainein se cruzam e concentram os saberes antigos e
os novos. são dois gestos que marcam a prática do primeiro historiador e lan-
çam a “evidência da história”, pois permitem-lhe ver claro mais longe, para lá
do visível, no espaço e no tempo (cf. Hartog 2005: 73).
tucídides também coloca o olhar no centro da sua atividade, a sua epis-
temologia está fundada na autopsia, mas rejeita a palavra historia em favor do
verbo syngraphein47. Historein e semainein não são pretensões suas. Não almeja
ser como o aedo nem como o adivinho ou o histor e, no entanto, ele dá origem
a um novo tipo de histor, um novo “mestre da verdade”48. a sua obra não se
46
o aedo e o adivinho eram dois dos “mestres de verdade”, na Grécia arcaica. o outro
era o rei que administrava a justiça (vide marcel detienne, Les Maîtres de Vérité dans la
Grèce archaïque, Le livre de Poche, Paris, 2006).
47
a recusa do termo historein e seus derivados lexicais tende a ser vista como uma
forma de afastamento relativamente à prática de Heródoto. Na verdade, o facto de tucídides
não se referir à sua obra como historia e ao seu ofício como histor pode ter uma outra jus-
tificação: é que na época os termos ainda não existiam como nomenclaturas técnicas para
classificar o tipo de trabalho a que tucídides se devota. Logo, se a sua intenção era evitar
qualquer associação com a obra de Heródoto, não há provas que o corroborem. certo é que
o termo só veio a adquirir por completo o significado técnico que lhe conhecemos com Pla-
tão e, sobretudo, com aristóteles, responsável pela distinção genológica entre poesia e história
e pela cunhagem técnico-semântica do termo.
48
«L’héritage légué par thucydide avec son insistance sur le contrat de vérité est resté
au cœur de la vocation historienne ainsi que son souci de la démonstration qui anime le récit
factuel, véritable opérateur d’un choix conscient pour étayer l’hypothèse à vérifier auprès du
lecteur» (dosse 2000: 15).
438 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
apresenta como a exposição de uma historia, mas como uma inscrição, uma
redação ou composição para sempre49. connor (1984), Loraux (1986), edmunds
(1993) e crane (1996) realçam o valor semântico deste verbo e o que ele
representa como reivindicação de autoridade e como mudança de paradigma.
o verbo syngrapho concentra as ideias de “organizar por escrito” algo que já
existia noutra forma, e era usado para descrever a composição de um trabalho
em prosa. connor, na senda de edmunds (1993), especifica o tipo de trabalhos
a que se refere este verbo: «contemporary uses of this verb and its cognates
refer for the most part to technical works or those with few literary preten-
sions» (1984: 28). No seu sentido literal, o verbo não remetia para as ideias de
criação ou imaginação. usava-se para referir acordos diplomáticos, documentos
legais ou constitucionais, contratos, obras de caráter técnico – como tratados de
medicina, planos arquitetónicos, tratados de retórica e narrativas históricas.
a linguagem escrita não tinha no século V o mesmo prestígio que haveria
de conhecer no século seguinte, mas o seu papel na sociedade estava a mudar
rapidamente50. duas formas de escrita influenciaram indelevelmente a prosa
tucididiana. a primeira e mais evidente foi a retórica, cujas técnicas permitiram
a tucídides compor os diálogos. o poder de abstração e de argumentação deste
tipo de discurso permitiu-lhe converter os seus discursos em explorações gene-
ralistas do poder, do risco e da oportunidade. Questões como a justiça, o medo,
o interesse próprio, a reputação, a intimidação, a conquista do poder, os cál-
culos de risco ganham um significado universal. No entanto, crane (1996: 8)
deteta uma outra importante influência discursiva. os documentos administrati-
vos que proliferavam na atenas democrática do século V serviram de arquétipo
para a narrativa51. estes documentos forneceram-lhe um modelo narrativo que
49
«thucydides thus chose to write about things that would be useful (ôphelima) to
later readers. For a topic to retain its future usefulness, however, it must lend itself to rep-
resentation in written prose, because the text must stand by itself and, as much as possible,
contain its own evidence» (crane 1996: 7).
50
sobre o prestígio da linguagem escrita e a sua proeminência na atenas do século V
sugerimos a leitura de crane 1996: 9-26.
51
«the burgeoning rhetoric of administrative documents provided thucydides with an
additional model. if the speeches drew upon openly tendentious rhetorical techniques, thucy-
dides could find a model for others aspects of his history in the growing number of state
documents, some of which were beginning to find their way onto stone inscriptions. the con-
servative “old oligarch” saw the administrative energy at athens as a profoundly democratic,
and thus politicized, activity, designed to enrich the common people (Pseud-Xen., Const. of
the Athenians 3.1-3)» (crane 1996: 8).
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 439
pode acontecer com o texto de tucídides. Por isso, ele o criou apenas para ser
completamente compreendido pelo leitor reflexivo52.
expondo a sua investigação, Heródoto não tem como objetivo primordial
a verdade, o que não significa que tenha intenção de mentir, apenas está livre
para reproduzir fielmente as várias versões que ouviu (atrekeia), ao passo que
tucídides ao “escrever para sempre” excluía os testemunhos não comprovados
(akribeia) e concentrava-se sobretudo na apresentação final do produto da sua
investigação53. É errado concluir que o historiador de Halicarnasso acreditava
em tudo o que relatou ou pretendia que o seu público acreditasse, mas julgava
que o seu dever de narrador é relatar o que se diz, o que significa, por vezes,
privilegiar (até pela ordem da exposição) a versão que lhe parece mais credível.
uma das provas que frequentemente dá do seu saber, logo, da sua credibili-
dade, é o número de versões que conhece do mesmo acontecimento, conten-
tando-se, por vezes, em dizer que recolheu outras mas não as expõe, ou seja,
sabe mais do que o que diz, deixando essa reserva de saber como meio de con-
ferir credibilidade ao narrador. ele é, portanto, o garante dos vários logoi que
apresenta. Quando a história se torna ἡ ζήτησις τῆς ἀληθείας, o narrador retira-
-se. contrariamente a tucídides, que se esconde para deixar os factos falarem
por si próprios, o narrador das Histórias é omnipresente. sendo direta ou indi-
retamente o único sujeito de enunciação, assume-se como a garantia única dos
seus múltiplos dizeres, pois ele é o que faz ver e dá a saber o que do passado
estava oculto, logo, aquele que semainein.
diferença não negligenciável entre a escrita de Heródoto e a de tucídides
é que uma é vocacionada para a recitação oral e a outra para a leitura privada:
Herodotus composed a massive script, a book that could be read but that appeared
in an oral world, and that was designed for performance. Herodotus’ Histories
belong, like svenbro’s Phrasikleia inscription, to a world in which the text does
not “speak”, but still looks for the reading voice to give it expression. thucydides
composed a book far better suited to stand by itself, to exist as a separate and
independent artifact [crane 1996: 3].
52
Nesse sentido, o historiador ateniense terá sido extremamente sensível ao texto
enquanto artefacto: «thucydides, more than any author who had preceded him, was sensitive
to his text as a written artifact – as marks scratched on a papyrus, unrolled and scanned by
the eye» (crane 1996: 7).
53
Vid. crane, 1996, 50-65: «Herodotus’ Atrekeia versus thucydidean Akribeia».
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 441
54
«Having experienced the devastating effects of rhetoric, used by the epigones to fur-
ther their own private interests and ambitions, the rhetoric that led to bad decisions, thucy-
dides concerned himself with the way in which it was possible to distinguish truth from
deception» (Hunter 1982: 295).
442 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
55
[4] αἰεὶ γὰρ ἔγωγε μέμνημαι, καὶ ἀρχομένου τοῦ πολέμου καὶ μέχρι οὗ ἐτελεύτησε,
προφερόμενον ὑπὸ πολλῶν ὅτι τρὶς ἐννέα ἔτη δέοι γενέσθαι αὐτόν. [5] Ἐπεβίων δὲ διὰ
παντὸς αὐτοῦ αἰσθανόμενός τε τῇ ἡλικίᾳ καὶ προσέχων τὴν γνώμην, ὅπως ἀκριβές τι εἴσομαι:
καὶ ξυνέβη μοι φεύγειν τὴν ἐμαυτοῦ ἔτη εἴκοσι μετὰ τὴν ἐς Ἀμφίπολιν στρατηγίαν, καὶ
γενομένῳ παρ᾽ ἀμφοτέροις τοῖς πράγμασι, καὶ οὐχ ἧσσον τοῖς Πελοποννησίων διὰ τὴν φυγήν,
καθ᾽ ἡσυχίαν τι αὐτῶν μᾶλλον αἰσθέσθαι.
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 443
56
a lista de historiadores gregos importantes que se exilaram de forma voluntária ou
forçada das suas cidades para escrever é extensa: para além de Heródoto e tucídides, há que
nomear Xenofonte, ctésias, teopompo, Filisto, timeu, Políbio, dionísio de Halicarnasso e
Posidónio. era certamente mais fácil obter informações exatas sobre um tema vasto e ser
imparcial quando se tinha a liberdade de movimento de um exilado.
57
«a imparcialidade, e com ela toda a historiografia, surgiu no mundo quando Homero
decidiu cantar tanto os feitos dos troianos como os dos aqueus, e exaltar tanto a glória de
Heitor como a grandeza de aquiles. Nesta imparcialidade homérica, a que Heródoto deu
seguimento quando se abalançou a impedir que “os grandes e admiráveis feitos dos gregos
e dos bárbaros ficassem sem o seu justo tributo de glória”, reside ainda o mais elevado tipo
de objetividade que conhecemos» (arendt 2006: 65).
58
«durante a sua breve existência, os grandes feitos e as grandes palavras eram, na
sua grandeza, tão reais como uma pedra ou uma casa: quem quer que estivesse presente não
podia deixar de os ver ou de as ouvir. a grandeza era facilmente reconhecida como aquilo
que por si mesmo aspira à imortalidade» (arendt 2006: 66).
444 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
4. KTEMA ES AEI
59
«No nosso contexto, isto significa que o modelo de objetividade praticada por tucí-
dides, por muito admirada que possa ser, não possui já qualquer fundamento na vida política
real. uma vez que fizemos da vida a nossa suprema e principal preocupação, deixou de haver
espaço para qualquer atividade baseada no desprezo pelo nosso próprio interesse vital. o
desapego pode ainda ser uma virtude religiosa ou moral, mas dificilmente pode ser uma vir-
tude política. sob tais circunstâncias, a objetividade deixou de ser validada pela experiência,
divorciou-se da vida real e converteu-se nesse assunto académico, “sem vida”, que droysen
acertadamente denunciou como objetividade do eunuco» (arendt 2006: 66).
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 445
60
«Historia vero testis temporum, lux veritatis, vita memoriae, magistra vitae, nuntia
vetustatis, qua voce alia nisi oratoris immortalitati comendatur» (cícero 2002, ii c. 9, c. 36
e c. 12, c. 51). Para uma história do conceito “historia magistra vitae” vide Koselleck, 1990:
37-62. segundo Koselleck, o uso da fórmula ciceriana, que foi quase ininterrupto até ao
século XViii, tem como pressuposto uma compreensão anterior e universal das possibilidades
humanas numa continuidade histórica geral. Quer isto dizer a crença que «a história pode
conduzir os contemporâneos ou as gerações seguintes a tornarem-se mais inteligentes ou rela-
tivamente melhores» (ibid.: 38), desde que se mantenham as condições. ou seja, até ao século
XViii, o emprego desta fórmula é um «sinal infalível da permanência da natureza humana,
cujas histórias se prestam perfeitamente a servir de provas sempre reutilizáveis de ensinos
morais, teológicos, jurídicos e políticos» (ibid.: 39). mas a polivalência da sentença advém
ainda da crença numa semelhança potencial entre os eventos terrestres: «Quando um aconte-
cimento social tinha lugar, ele fazia-se tão lentamente, sobre um tão longo termo, que a uti-
lidade dos exemplos passados continuava inteiramente válida. a estrutura temporal da história
traçava os limites de um campo contínuo de aprendizagens possíveis» (ibid.).
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 447
61
«ela contava o que já foi, com o fito de lembrar, à luz dos ritmos cíclicos, ou da
repetição do que é característico da natureza humana, o que poderá vir a acontecer, mos-
trando que, não obstante ao homem só ser dada uma pequena margem para fugir ao destino,
a tyche não conduziria ao fatalismo absoluto, e o fado que preside à vida humana só teria
um poder destruidor, porque, tal como se mostrava na tragédia, o homem é habitualmente
cego em relação aos seus ditames, não sabendo formular as opiniões corretas que, sem se cair
na hybris, permitem evitar os seus golpes decisivos (catroga 2006: 14)».
62
«[2] καὶ ἐπέπεσε πολλὰ καὶ χαλεπὰ κατὰ στάσιν ταῖς πόλεσι, γιγνόμενα μὲν καὶ αἰεὶ
ἐσόμενα, ἕως ἂν ἡ αὐτὴ φύσις ἀνθρώπων ᾖ, μᾶλλον δὲ καὶ ἡσυχαίτερα καὶ τοῖς εἴδεσι
διηλλαγμένα, ὡς ἂν ἕκασται αἱ μεταβολαὶ τῶν ξυντυχιῶν ἐφιστῶνται. ἐν μὲν γὰρ εἰρήνῃ καὶ
ἀγαθοῖς πράγμασιν αἵ τε πόλεις καὶ οἱ ἰδιῶται ἀμείνους τὰς γνώμας ἔχουσι διὰ τὸ μὴ ἐς
ἀκουσίους ἀνάγκας πίπτειν: ὁ δὲ πόλεμος ὑφελὼν τὴν εὐπορίαν τοῦ καθ᾽ ἡμέραν βίαιος
διδάσκαλος καὶ πρὸς τὰ παρόντα τὰς ὀργὰς τῶν πολλῶν ὁμοιοῖ».
448 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
este excerto está em consonância com a descrição que Hannah arendt fez
da mentalidade grega. Podemos ler nas suas entrelinhas que a natureza é
cíclica, por isso sempre ocorrerão males e haverá guerras, mas o movimento
humano é retilíneo e, por isso, cada mal e cada guerra trará consigo aconteci-
mentos diferentes. No entanto, indo do presente para o futuro, o intuito não era
a previsibilidade, mas antes a compreensão e explicação dos presentes por vir
depois de ocorridos, pois, em virtude da “coisa humana” (κατὰ τὸ ἀνθρώπινον),
não faltarão no futuro crises análogas às do presente63. a natureza humana
(φύσις ἀνθρώπων) acaba por ser a fundamentação para esta capacidade de aná-
lise futura e, ao mesmo tempo, a explicação mais geral para os acontecimen-
tos64. No contexto da peste, e antes de avançar para a descrição da epidemia,
o historiador insiste novamente na margem de imprevisibilidade do futuro. Por-
que a natureza é repetitiva, ele sabe que a epidemia poderá sobrevir novamente,
por isso deixa uma série de indicações para o seu conhecimento em caso de
nova ocorrência, mas não garante a sua repetição. a conjunção condicional “se”
(εἴ) faz aqui toda a diferença: «eu direi como é que esta doença se apresentou;
os sinais a observar, para melhor se poder, se ela voltar a aparecer, aproveitar
um saber prévio e não ficar diante do desconhecido» (tucídides: ii. 48. 3)65.
estas sentenças são, a nosso ver, a melhor ilustração da utilidade (e da
inerente ambiguidade) que tucídides pretende atribuir à sua obra: descrevendo
a epidemia da guerra, o historiador parece estar a fornecer aos vindouros um
63
The human thing é o título da obra de marc cogan (1981) e pretende ser a tradução
da expressão tucididiana τὸ ἀνθρώπινον, a qual, de acordo com o autor, relaciona a utilidade
da história com a apresentação de princípios universais que foram a causa dos acontecimentos
humanos: «the ultimate utility of his history, according to thucydides himself, lay in its pre-
sentation of a universal principle which was the cause, and explanation, of human events. His
history, he says, will be useful because the same actions or ones much like them will occur
again, κατὰ τὸ ἀνθρώπινον – in accordance with “the human thing”. as the significance of
the history (in thucydides’ terms) and its utility depend on this, so must our goal be the
understanding of that “human thing” which was for thucydides both the principle of the his-
tory he wrote and the principle of all human action» (ibid.: xvii).
64
«ainsi, la lecture de l’Histoire de la Guerre du Péloponnèse constitue un véritable
enseignement philosophique qui permet de saisir les principes les plus généraux qui gouver-
nent la nature humaine. thucydide ne manque jamais d’insister sur ce fond commun qui unit
tous les hommes dans un même destin; il multiplie les expressions telles que: «l’homme est
par nature…», «les hommes ont coutume de…». il y a une nature humaine et il est possible
d’en dégager les caractères» (châtelet 1962: 233).
65
«ἐγὼ δὲ οἷόν τε ἐγίγνετο λέξω, καὶ ἀφ᾽ ὧν ἄν τις σκοπῶν, εἴ ποτε καὶ αὖθις
ἐπιπέσοι, μάλιστ᾽ ἂν ἔχοι τι προειδὼς μὴ ἀγνοεῖν, ταῦτα δηλώσω αὐτός τε νοσήσας καὶ αὐτὸς
ἰδὼν ἄλλους πάσχοντας».
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 449
guia que lhes permitirá reconhecer uma guerra presente, mas não diz para que
serve esse reconhecimento: para prevenir, para prever, para curar a “doença” da
guerra? em 1969, adam Parry publicou um ensaio fundamental sobre este
assunto (The language of Thucydides’ description of the plague), onde, para
além de fazer um apanhado das principais teses publicadas sobre a utilidade da
descrição da epidemia, refuta os que defendem o cariz técnico e científico da
linguagem tucididiana com base na tese de que o historiador emprega termos
médicos retirados dos escritos hipocráticos. deixando para já esta segunda
questão de parte, convém dizer que os estudiosos de tucídides não eram con-
sensuais quanto ao que o historiador terá querido dizer com este prólogo à
peste. Basicamente, eles dividem-se em dois grupos. os otimistas sustentavam
que tucídides queria formular leis gerais sobre o comportamento humano, que
permitissem a um futuro homem de estado desempenhar bem a sua missão. os
pessimistas defendiam que tucídides estava apenas interessado em revelar aspe-
tos permanentes da condição humana, sem com isso pensar que o sofrimento
e a destruição que a sua obra com tanto realismo narra pudessem no futuro ser
evitados. eles são uma doença para sempre, sem cura. Parry também não
encontra nenhuma intenção terapêutica ou prática nas proposições de tucídides.
a utilidade da sua obra consiste em oferecer ao leitor uma imagem clara dos
factos.
Jacqueline romilly, apesar de ser um dos alvos “otimistas” visados por
Parry, assume uma posição que se pode considerar “pessimista”. Num famoso
artigo publicado em 1956, L’utilité de l’histoire selon Thucydide (2005: 15-30),
põe de parte qualquer interpretação que vá no sentido da previsão ou de apli-
cação prática, pondo a tónica no simples conhecimento:
[...] il faudrait mettre à part deux idées, qui, en réalité, ne trouvent nullement
place dans le “programme” de thucydide: ce sont celles d’une prévision de l’ave-
nir et d’une utilité pratique. thucydide ne mentionne ni l’une ni l’autre. il parle
bien d’utilité dans le domaine de la seule connaissance; il parle bien d’événements
“à venir” – mais qu’il s’agit seulement de comprendre une fois qu’ils seront révo-
lus [2005: 15-16].
66
explorando as semelhanças entre as utilidades dos ofícios do historiador e do
médico, começa por acentuar as variações circunstanciais de que fala tucídides: «it is true,
though, that there are assumptions in common between thucydides and the doctors about the
450 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
História de tucídides permite são as veiculadas pelos discursos, que são «ver-
dadeiros modelos de previsão» (ibid.: 17), na medida em que mostram os ora-
dores jogando em antecipação, isto é, raciocinando no sentido de prever ou cal-
cular o futuro desenvolvimento dos factos. Nós compreendemos por quê
atenas, esparta, corinto, Nícias, demóstenes agiram da forma como agiram em
determinada circunstância: diante de uma determinada conjuntura e de uma
finalidade – independência, vitória – quase evidente, a decisão resulta de um
cálculo67. a narração posterior virá confirmar ou infirmar os cenários previstos
purpose of their activities. the doctors did not merely gather together case-histories; they
hoped that their collection of materials would be useful in identifying and treating disease,
and that the technê would thus slowly advance. ([...] the physician must practice pronoia,
‘forecasting’; he ‘will carry out the treatment best if he knows beforehand from the present
symptoms what will take place later’.) all this resembles thucydides’ famous sentence about
the plague [ii. 48.3.] ‘i shall describe its character and shall provide information to enable
anybody to recognize the symptoms beforehand if it should ever break out again’. Like the
medical writers [...] thucydides is aware that a phenomenon may vary in its character accord-
ing as attendant circumstances change; he says that the eidê (forms) of stasis vary with
changes in the accompanying phenomena (Hussey compares this to ‘boundary conditions’ in
modern physics)» (2009: 83). depois enfatiza uma diferença significativa: as descrições de
tucídides não têm qualquer intenção moral ou curativa, ao contrário das do médico: «But if
the job of the doctor is to ‘help or at least not to harm’, as Nikias puts it, does thucydides
see it as is job to improve the reader? the answer must be an emphatic ‘no’. there is no
moralizing tendency of his kind in thucydides; and this sets him apart from most other his-
torians of Greco-roman antiquity» (ibid.). Finalmente, a utilidade da sua história é puramente
intelectual, e isso significa que é um instrumento para auxiliar homens de estado a prever e
interpretar; instrumento válido para sempre, desde que se tenha em conta as mudanças cir-
cunstanciais: «thucydides’ idea of ‘usefulness’ is, by contrast, purely intellectual (tough medi-
cal diagnosis is of course a largely intellectual business also). statesmen need to be able to
predict and to interpret. thucydides’ account of the Peloponnesian war will be useful for such
men, and for anybody who wishes to be clear about the past; and about future events,
because the constancy of the human condition means that patterns are likely to recur. that
is all. there is no program of moral education here, no suggestion that thucydides sees his
job as the improvement of the soul or (to put it less grandly) the behavior of human beings,
in a way analogous to the improvement of the body at which the doctor aims [...] all that
thucydides aims to do by his writing is to enable the politician to predict and to interpret.
in that sense his work has the permanent value which he claims for it: provided that
allowance is made for changes in attendant circumstances, thucydides’ subject-matter (human
affairs) will never go out of date, and the material which he supplies and interprets will
always stand as the basis for rational prediction» (ibid.: 84).
67
aron, em sintonia com romilly (Histoire et raison chez Thucydide [1956]), salienta
a inteligibilidade dos combates devido à sua interdependência com os cálculos dos estrategas:
«thucydide s’efforce de rendre les combats intelligibles en les rapportant aux plans des stra-
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 451
pelos oradores, e sempre se terá de contar com a tyche: «a estas coisas juntou-
-se ainda o acaso, que se opôs a nós de forma nada meiga» (tucídides: ii. 87.
2).68 o acaso intervém de diversas formas na guerra do Peloponeso relatada
pelo historiador ateniense («incertas são as guerras» – ἄδηλα γὰρ τὰ τῶν
πολέμων [ii. 11. 4; cf. etiam i. 78, iii. 59]), deixando impotente o estratega:
veja-se, a título de exemplo, a perda de controlo sobre os soldados no ardor da
luta, no primeiro ataque noturno executado pela armada de demóstenes em
socorro de Nícias, que começou por ser um sucesso e descamba para o desastre
na obscuridade e na confusão. os combates que tucídides infatigavelmente des-
creve tanto confirmam como desmentem os cálculos dos estrategas.
Le récit, en effet, vérifie les prévisions. Les termes qu’il emploie sont tels qu’ils
viennent ratifier – soit totalement soit partiellement – le raisonnement d’un orateur
ou celui de son adversaire. ils indiquent qui a eu raison, en quoi, pourquoi. Le
bon calcul et le mauvais, l’adresse et la faute deviennent ainsi clairement lisibles,
sans que thucydide ait à intervenir en son nom personnel» [romilly 2005: 17-18].
tèges, au jeu des intelligences aux prises. mais il rend intelligible en même temps l’événe-
ment lui-même qui a déçu les espoirs de l’un ou de l’autre stratège, parfois de deux» (aron
1961: 136).
68
ξυνέβη δὲ καὶ τὰ ἀπὸ τῆς τύχης οὐκ ὀλίγα ἐναντιωθῆναι.
452 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
69
«mais ce qui est le plus étonnant est que ce même refus du particulier puisse appa-
raître dans le récit. un récit, normalement, a pour fonction de rapporter le particulier; et le
prédécesseur immédiat de thucydide, Hérodote, montre assez que l’histoire grecque, dès ce
moment, s’engageait résolument dans cette voie. Hérodote, toujours curieux et dans tous les
domaines (géographique, ethnographique, psychologique, logique), Hérodote à l’affût du
concret et du pittoresque, avec son goût des mœurs curieuses, des aventures, des particularités
biographiques, des noms propres, Hérodote a le goût de savoir et de s’enquérir; et ce goût
se retrouve toujours plus ou moins après lui, soit qu’il s’agisse du pittoresque, comme chez
le Xénophon de l’Anabase, soit qu’il s’agisse des particularités individuelles, comme chez les
biographes ou même chez un tacite. Le goût de thucydide le porte juste à l’opposé; et,
comme si l’histoire essayait dès ses débuts, par un grand mouvement de pendule, ses deux
directions les plus opposées, il veut se débarrasser de tous ces détails, simplifier, élaguer,
décanter» (romilly 2005: 20-21).
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 453
70
esta advertência pode aplicar-se a châtelet: «son Histoire est moins un récit qui tend
à rendre impérissables les événements passés qu’une démonstration qui vise à dégager les lois
générales d’une évolution historique. [...] il n’est pas besoin de lire entre les lignes pour
découvrir le message transhistorique de l’historien: il se pose lui-même immédiatement
comme un penseur qui recherche des constantes et dévoile les structures profondes de l’acte
historique humain – du drame individuel ou collectif» (1962: 204).
71
as “probabilidades sugeridas” que romilly atribui a tucídides aproxima o historiador
ateniense da prática dos sofistas. J. H. Finley (1942) apercebeu-se das analogias existentes
entre a tendência de tucídides para formular princípios gerais e os argumentos usados pelos
sofistas. estes, em consonância com a prática dos filósofos jónios que os precederam, pro-
tagonistas de uma revolução antropocêntrica, tentam definir leis do comportamento humano
com uma formulação similar à das leis da física. esta evolução antropocêntrica é fruto da
implementação da democracia e o consequente desenvolvimento da retórica enquanto arte de
persuadir. os sofistas, na qualidade de mestres na arte de persuadir, tentaram estudar e fixar
as leis do comportamento humano como forma de prever as reações do auditório e explicar
através dessas leis as próprias ações que, se se coadunam com essas leis gerais, entram dentro
do provável (to eikos). a lista das probabilidades é muito ampla, tanto quanto possa ser a dos
“lugares-comuns” num manual de retórica.
454 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
por si própria72. o que há a inferir no seu texto deve ser feito pelo leitor, a
partir da relação entre narração e discursos. tucídides contava seguramente com
a inteligência dos seus leitores (vide connor 1984: 13 e romilly 1956: 105).
Não só contava com a inteligência dos seus leitores como esperava
ensiná-los a serem inteligentes – é o que se depreende da análise de Virginia
Hunter. Hunter, alguns anos depois de Thucydides the artful reporter, retoma a
teoria dos paradeigmata – a autora não fala de generalizações mas de modelos
(paradeigmata)73. Na senda de romilly, também reconhece nos discursos a
faculdade de concentrar a narrativa em torno de um tema central e a faculdade
de antecipar acontecimentos que a narrativa posterior virá confirmar. todavia,
Hunter acrescenta que a conexão dos discursos com os factos narrativos não se
faz só para a frente mas também para trás («these links backward and forward
characterize an oral work» [1982: 293]), mostrando se o falante aprendeu
alguma coisa com experiências anteriores, suas ou de outros: «the link back-
ward to the narrative that preceedes can also be important, revealing whether
the speaker has learned from his own or others’ experiences (from empeiria or
paradeigma)» (ibid.: 291). esta observação de Hunter permite aprofundar o
nosso entendimento da utilidade dos discursos e do seu contributo metodológico
para o apuramento da verdade. o que surpreende, nesta leitura de Hunter, é que
tucídides tenha aproveitado o que considerava como maior ameaça à verdade
para o transformar no maior auxiliar da verdade, através do método ponderado
e refinado da escrita de discursos74. Hunter verifica que não só os oradores e
72
«[...] it becomes possible to discover the general truths of action thucydides has felt
would be conveyed, not by any abstract statement separated from specific occasions and
actions, but by the representation of those concrete actions and statements in which they
operate and through which they are manifested» (cogan 1981: xvi).
73
Hunter, Thucydides the artfull reporter (1973), constrói a sua tese muito com base
na teoria da pedagogia dos paradeigmata, quer para as personagens quer para os leitores:
«each instance of a pattern we call a paradeigma. For the reader earlier events exist as
paradeigmata, model situations, the outcome and possibilities of which he knows. By bring-
ing this knowledge of the past with him into the present, he is equipped to compare and
judge, even to predict. [...] if the characters in the History are represented as learning from
their own and others’ experiences, the reader himself learns from the example of others,
paradeigmata in the sense of history» (1973: 180).
74
«[...] it must be noted that thucydides effected this shift without breaking with the
past entirely or discarding all the techniques of composition for oral performance. rather he
transformed these techniques, refining them in such a way as to take full advantage of a text
composed for readers. For interrelated sets of logoi and erga were already present in
Herodotus’ Histories. Herodotus too composed many of his speeches to form the nucleus of
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 455
an unfolding process. they established a link both backward and forward, directing the lis-
teners to the true meaning of what has transpired and of what will transpire. they thus antic-
ipate in the manner of thucydides» (Hunter 1982: 292).
75
«this logos we call the “stronger” (κρείττων) on the principle that life itself, the
erga, confirme it as true. on the same principle the other logos is the “weaker” (ἥττων)»
(Hunter 1973: 178). Veja-se, a este propósito, o estudo de Nogueira (2000) cujo fio condutor
é precisamente a dicotomia fraco-forte na obra de tucídides.
456 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
76
momigliano também acentua esta ideia da retoma da história política, que deve
encontrar no estudo da História de tucídides um incentivo: «Le fait que l’historiographie
politique pure soit à présent discréditée et généralement considérée comme fastidieuse nous
invite à réévaluer notre dette à l’égard des historiens grecs» (1992: 2).
458 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
future des affaires humaines. on ne trouve pas chez les historiens grecs l’idée
d’une répétition inévitable des événements à intervalles réguliers. La notion d’un
temps cyclique, qui leur est souvent attribué, est une invention moderne [momi-
gliano 1992: 20].
Numa outra obra (1984: 79), momigliano recorre também às três passa-
gens mais emblemáticas por nós já comentadas – da permanência da natureza
humana, do aproveitamento das informações sobre a peste para aplicações futu-
ras e da recorrência dos efeitos morais da guerra civil com a salvaguarda da
singularidade das circunstâncias futuras – para rejeitar categoricamente que se
possa ver implícito no pensamento de tucídides um entendimento do tempo
como eterno retorno. ademais, noutro passo, adota um argumento eficaz:
se habrían podido evitar muchas discusiones aburrías sobre la «circularidad del
tiempo» en la historiografía griega si se hubiese señalado que el espacio de tiempo
con el que tiene que tratar generalmente la investigación histórica es demasiado
breve para poder ser definido como lineal o circular (1984: 18).
o próprio tucídides de atenas pôs por escrito estes factos, pela ordem em que
cada um ocorreu, por verões e invernos, até ao momento em que os Lacedemónios
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 459
e seus aliados puseram fim ao domínio dos atenienses e se apoderaram dos Lon-
gos muros e do Pireu. até esse momento a duração total da guerra foi de vinte
e sete anos [tucídides: V. 26. 1].
este modelo de cálculo temporal já fora utilizado por Hesíodo nos Tra-
balhos e dias e era típico do Corpus Hippocraticum, que terá exercido forte
influência sobre tucídides. Não podemos ficar indiferentes à escolha das esta-
ções como marcador temporal e ao quanto esta opção pode ser reveladora da
conceção temporal de tucídides. as estações formam um círculo, são uma lei-
tura interpretativa da repetição cíclica da natureza; não obstante, os aconteci-
mentos humanos dentro das estações acarretam sempre novidades. em cada ano
de narração há sempre combates, mas também vicissitudes; há batalhas, deci-
sões, estratégias militares e comportamentos que se assemelham a anteriores (de
acordo com o género humano), porém, nenhum ciclo anual narrado por tucí-
dides é exatamente igual a outro. dentro desta eterna repetição da natureza, há
sempre novidades.
dito isto, podemos pôr-nos ao lado de momigliano contra aqueles que
defendem a mentalidade aistórica dos Gregos (Hegel, collingwood, reinhold
Niebuhr). a ideia de que os Gregos eram desprovidos de sentido histórico por-
que pensavam inspirados em modelos regulares e periódicos, em termos de leis
naturais, de substância intemporal é uma generalização apressada que pode
assentar bem a Pitágoras, Platão e Zenão mas não a Heródoto, tucídides e
Políbio. No entanto, nem os filósofos nem os historiadores gregos tinham uma
conceção única de tempo (momigliano 1992: 33-34).
Gomme também discorda dos que acreditam que tucídides tem uma visão
cíclica e determinista da história. o facto de tucídides acreditar na ocorrência
futura do mesmo tipo de eventos que ele presenciou não significa, necessaria-
mente, que ele pensasse na sua recorrência cíclica, muito menos que, por causa
disso, fosse possível prever a sua ocorrência77.
É verdade que tucídides diz que a natureza humana se mantém e que o
mesmo tipo de acontecimentos se repetirá no futuro e isso faz da sua História
um laboratório de vivências e paradeigmata para a posteridade, uma verdadeira
magistra vitae. e quem o pode negar? Quantas guerras já se fizeram depois da
77
«But to say that he believed that similar events would recur is not to say that he
believed that events go round in cycles, still less that he thought they were in consequence
predictable by anyone sensible enough to read his History of the Peloponnesian War»
(Gomme 1954: 156).
460 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
–, pois, também ele, inspirado por uma notícia sobre a guerra do Vietname,
decidiu regressar à História da Guerra do Peloponeso em busca de novas
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 461
78
Vide «the influence of thucydides in the modern World», in http://www.hri.org/por/
thucydides.html. Neste artigo, alexander Kemos faz um interessante balanço da influência das
teses políticas de tucídides no quadro das relações internacionais ao longo do século XX,
não hesitando em atribuir ao historiador ateniense a paternidade da história científica e do
“realismo” político. entende-se por realismo político, a escola de pensamento segundo a qual
as relações interestatais se baseiam mais no poder do que no direito. No período Pós-segunda
Guerra mundial, a obra de tucídides influenciou diretamente a escola realista e a própria fun-
dação da diplomacia americana durante a Guerra Fria: «in fact, while his Peloponnesian War
is chronologically distant from the present, thucydides’ influence upon realist scholars in the
post-1945 period, andin turn upon american diplomacy, is direct. specifically, the foundations
of american diplomacy during the cold War with regard to the struggle between the two
superpowers and the ethical consequences or problems posed for smaller states caught in the
vortex of bipolar competition are derived from his work» (ibid.: 1).
462 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
5. OS DiScURSOS
79
marta Várzeas, «entre a história e a ficção: os discursos na obra de tucídides»
(2004).
80
«thucydides includes speeches because Homer and Herodotus included speeches, and
individual ‘warners’ like Herodotus artabanus and thucydides’ Nikias, who in Book vi tries
to dissuade the athenians from sending the expedition against sicily, have Homeric
antecedents. again, thucydides can sometimes use his speeches as ‘pause points’ in the nar-
rative» (Hornblower 1987: 66).
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 463
81
«Le principe de l’antilogie a toujours paru aux Grecs la condition même de la
sagesse et de la compréhension. L’antilogie, c’est la délibération. c’est peser le pour et le
contre. [...] ceux qui critiquent un peu sommairement l’éristique oublient, en effet, que le but
de l’antilogie est en définitive la confrontation des deux thèses» (romilly 1956: 222, 223).
464 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
esta operação atinge o seu apogeu nos diálogos socráticos de Platão, onde
se tende para a submissão das contradições e das diferenças à universalidade do
logos.
É preciso entender como na génese dos debates e da própria história se
encontra uma raiz comum – a política, no duplo sentido de pertença a e exer-
cício de cidadania – e como a obra de tucídides ao introduzir os discursos
políticos acaba por ser o espelho da sua própria génese e da sua própria época.
É no ambiente político favorável que se vive na polis de Péricles que se desen-
volve e consolida este género novo que é a historia rerum gestarum. ademais,
esta é a tese principal de châtelet, que vê na vida política e no assumir do
estatuto político pelo homem um móbil para a tomada de consciência da exis-
tência humana como existência sensível-profana e como devir efetivo onde se
dão acontecimentos que vale a pena anotar e apresentar às gerações futuras.
[...] c’est par la médiation de la vie politique que s’effectue la prise de conscience
du caractère “temporel” de l’existence humaine et c’est d’abord en tant que
citoyen que l’homme peut se penser comme volonté agissante au sein de la réalité
sensible-profane. Les structures des sociétés plus anciennes ne permettaient pas
une telle saisie et l’homme se tournait immanquablement, quoique selon des
modalités diverses, vers le mythe et le sacré. Le fait de se reconnaître dans une
réalité dont la vie est tout entière liée au monde profane détermine l’homme à
prendre en charge son destin temporel et la culture à fixer dans un discours les
événements qui la scandent [...]. une hypothèse en effet se précise: celle selon
laquelle la vie politique et l’assomption du statut politique de l’homme constituent
l’élément majeur dans lequel peut et doit se développer, sous des formes diverses,
une prise en considération de l’existence comme existence sensible-profane,
comme devenir effectif où se produisent des faits valant la peine d’être notés et
présentés comme événements aux générations présentes et futures. cette hypo-
thèse, seule la lecture des ouvrages d’histoire est susceptible de la confirmer»
[châtelet 1962: 82-83].
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 465
82
«mais il se trouve qu’en agissant de la sorte, l’historiographie grecques ne les lais-
sait pas parler: elle les faisait parler, ce qui est différent» (romilly 2005: 35).
466 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
83
«ce qui frappe le plus, à la lecture de l’œuvre de thucydide, c’est l’existence et la
teneur des discours» (romilly 1956: 21).
84
a posição mais radical é a de collingwood que, por causa dos discursos, desqualifica
tucídides como historiador: «tomem-se em consideração os seus discursos. o hábito embo-
tou a nossa sensibilidade; mas perguntemos a nós próprios, só por instantes: um homem
imparcial, dotado dum espírito verdadeiramente histórico, seria capaz de tolerar o emprego de
tal convenção? observa-se, em primeiro lugar, o estilo deles. sob o ponto de vista histórico,
não será um ultraje pôr a falar, exatamente do mesmo modo, toda uma série de figuras dife-
rentes? Quando é que alguém poderia ter falado, desse modo, ao dirigir-se às tropas, antes
duma batalha, ou ao interceder pelas vidas dos prisioneiros? Não será evidente o facto de o
estilo denunciar uma falta de interesse pela questão de se saber o que disse realmente um
certo homem, em certa ocasião? em segundo lugar, observe-se o conteúdo deles. Podemos
dizer que – apesar de o seu estilo não ser histórico – a sua substância é histórica? [...] os
discursos parecem-me ser, quanto ao conteúdo, não história mas comentários de tucídides
sobre os seus próprios móbeis e intenções» (1989: 43-44).
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 467
e
[...] he himself is avowedly not concerned with the original language of the spea-
kers but is concerned about getting across to us their ideas [ibid: 39].
since the interpretation of words is different for different readers or hearers, it was
the ideas expressed and the way they confronted a particular situation that were
the crucial things for the historian to include, however difficult (χαλεπόν) that task
might be [ibid.: 41].
assim sendo, τῆς ξυμπάσης γνώμης não se traduziria por sentido geral,
mas sentido total. É uma interpretação; vai ao encontro da marcante tese de
doutoramento de adam Parry: Logos and Ergon in Thucydides (1988)85.
Hornblower encontra na afirmação programática com que o historiador
anuncia os critérios tidos em conta para a redação dos discursos um confronto
entre a objetividade e a subjetividade que atravessa toda a parte narrativa86.
reconhecendo a dificuldade de reproduzir com exatidão os debates, tucídides
opta por reescrever o que achou conveniente, à letra, “o que era necessário” (τὰ
δέοντα) que os oradores tivessem dito naquelas circunstâncias específicas, man-
tendo-se o mais próximo possível do sentido geral (ξυμπάσης γνώμης) do que
foi verdadeiramente dito (ἀληθῶς λεχθέντων). o confronto entre τὰ δέοντα,
ξυμπάσης γνώμης e ἀληθῶς λεχθέντων resulta numa contradição entre os cri-
térios de subjetividade e de objetividade. o critério para ἀληθῶς λεχθέντων é
a verdade, o critério para τὰ δέοντα é a conveniência.
85
a dicotomia logos e ergon, que se traduz no conflito entre linguagem e realidade ou,
se quisermos, a conceção humana das coisas e a forma como as coisas são em si mesmas,
atravessa de um modo geral a obra de tucídides e, de um modo particular, os discursos. esta
antinomia nunca dá azo a considerações abstratas por parte do historiador mas ela está
patente no significado que atribui aos acontecimentos que narra, forçando uma certa interpre-
tação intelectual das suas narrações. É a tendência para dar relevância à sua visão dos factos
e do mundo. Parry constata que o historiador ateniense, no excerto metodológico que temos
vindo a comentar, divide o seu trabalho em duas categorias – logos e ergon, discursos e
ações – que definem as duas categorias da experiência histórica. Por sua vez, estas duas cate-
gorias relacionam-se com outras duas: Erga diz respeito à guerra; logos refere-se à escrita da
história. tucídides manifesta consciência de que logos, sendo o que o homem pensa e diz,
é também uma força vital no ato da guerra; não só porque as palavras dos homens afetam
a realidade, mas porque o historiador vê a linguagem como um esforço para organizar e con-
trolar o mundo exterior.
86
o autor encontra uma tensão em tucídides entre o desejo de registar todas as ações
(erga) particulares da guerra (por impossível que seja) e a tendência para omitir e selecionar
até ao extremo, com o intuito de extrair daí as implicações gerais dos acontecimentos. temos,
pois, uma espécie de tucídides repórter que grava tudo e uma espécie de tucídides soció-
logo, este último mais interessado nos padrões gerais que regem a sociedade humana. os dis-
cursos ampliam este dualismo: «the speeches offer further evidence that two hearts beat in
thucydides’ breast» (Hornblower 1987: 34-44).
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 469
87
«the Funeral Speech then, and all the other speeches, represent the thought of
thucydides just as they are expressed in language which is unquestionably his own. But in
another sense they are genuinely objective, in so far as each of them constitutes an analysis
conveying to the reader the attitude of representative individuals or groups in relation to the
facts which came up for discussion» (cochrane 1929: 26).
88
em «intellectual affinities» (1987: 110-131), Hornblower estuda prováveis influências
da medicina e da tragédia e influências óbvias da retórica no trabalho tucídides. todavia,
470 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
early plays of euripides and parts of the History other than the speeches would
suggest that the historian was himself influenced by ideas current in athens before
his exile [Finley 1967: 4].
91
«it seemed therefore to follow that although thucydides wrote some, perhaps most,
of this History after 404, he nevertheless reflects with some fidelity the outlook and attitude
of earlier years. one could not, to be sure, assert on such evidence that given speakers actu-
ally spoke as thucydides said they did, but it was at least clear that they might well have
spoken so, since the ideas were then so much in the air as to find expression in tragedy»
(Finley 1967: 55).
472 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
a sua historicidade, falam dos discursos como meios para exibir (epideixis) cau-
sas e princípios, abstraídos de um particular contexto histórico e enunciados em
termos universais. sugerem que tucídides utiliza os discursos para propor aná-
lises políticas gerais, quando a função do historiador é expor e explicar os
eventos na sua particularidade. cogan ataca esta interpretação dos discursos,
que designa de epidíctica (ibid.: xiv), sustentando que o que torna tucídides um
grande cientista político é justamente o facto de ele cumprir tão bem a sua mis-
são, preocupando-se mais com as particularidades da política do que com abs-
tratas formulações políticas.
com base na seletividade de tucídides – os acontecimentos que omitiu,
as prioridades que deu a uns em detrimento de outros – é possível, hoje em
dia, especular acerca dos princípios seletivos empregues pelo historiador relati-
vamente aos eventos da guerra e a partir daí inferir a sua interpretação da
guerra, ainda que essa especulação seja sempre incompleta devido à falta de
outros relatos alternativos da guerra do Peloponeso. Já no caso dos discursos a
realidade é outra. devem ter sido pronunciados milhares de discursos políticos
durante o tempo que durou a guerra, mas tucídides apenas transcreve vinte e
sete. mesmo sem conhecer os discursos que o historiador omitiu, cogan acre-
dita que tucídides selecionou «os mais representativos daqueles processos e
forças que ele sentiu serem o verdadeiro sentido da guerra» e os mais repre-
sentativos em «exibição e explicação» da matéria que compõe a sua história
(cogan 1981: xv). cogan acredita ainda que esta seleção é mais um argumento
a favor da autenticidade dos discursos (com tão grande quantidade de discursos,
tucídides não teria necessidade de inventar) e que o alto nível de seletividade
assegura que uma interpretação da informação neles contida e das razões para
a inclusão destes discursos em particular permite inferir os princípios de sele-
tividade que estruturam a composição da história composta por tucídides.
Brunt adota uma posição intermédia. dizer que se manteve o mais pró-
ximo possível do sentido geral do que foi realmente dito implica que teve
algum contacto com o real, logo, os discursos não serão uma invenção total.
Nuns casos, o historiador deu-nos o que terá recordado anos mais tarde e o que
achou apropriado (τὰ δέοντα). Noutros, deve ter-se dado o caso de o historiador
ter os discursos ainda frescos na sua memória. contudo, mesmo nesta situação,
não se pode evitar as parcialidades da memória. a alegação de Brunt resume-
-se em poucas linhas:
manny of the speeches seem plausible enough in their content, but even here can-
not be sure that they are historic; for in so far as thucydides’ inventions were dra-
matically true to the speaker and the occasion, we cannot hope to distinguish them
from “what was actually said”.
474 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
We can reasonably suppose that when the importance of a speech was immedia-
tely evident, he will have set down a version of it while recollection was still
fresh. in this category we may put most, if not all, of the speeches recorded on
the eve of the war or of the sicilian expedition. even here is memory might
unconsciously have selected those parts of a speech which he thought most
cogent, and he may have added or elaborated arguments which refleted his own
turn of mind. But in other cases the relevance of certain speeches to his theme
may dawned on him long after memory had faded [1993: 151].
e cientista. alguns dos discursos recreados por tucídides serão fiéis à argumen-
tação real, não só porque ele próprio os terá ouvido mas porque a argumenta-
ção devia ser conhecida do público em geral e, a fazer fé no profissionalismo
confesso do historiador, acreditamos que o mesmo se tenha realmente empe-
nhado na recolha de informações. outros devem contar com uma margem
maior de arbitrariedade e originalidade, não só porque tucídides dificilmente os
terá ouvido, mas porque não seria fácil obter informações suficientes e seguras
sobre eles. Para ilustrar os dois extremos, tomemos dois exemplos. existem
provas de que os argumentos empregues por Péricles no seu primeiro discurso,
no final do livro i, exortando os seus compatriotas a manterem-se firmes e a
rejeitar o ultimato dos Peloponésios, são reais; sabe-se que Péricles os terá pro-
ferido em várias ocasiões e que, muito provavelmente, tucídides os ouviu ou,
mesmo que não os tivesse ouvido pessoalmente, não seria difícil ouvi-los de
terceiros. Já não podemos dizer o mesmo acerca dos discursos dos Plateienses
e dos tebanos, depois da rendição de Plateias, acerca dos quais não seria mais
difícil conseguir informações com alguma fidelidade. e mesmo que tivesse sido
informado acerca do tom e dos argumentos evocados, estaria sempre em melho-
res condições para reproduzir sensu latu o discurso de Péricles do que os destes
últimos. o discurso de Plateias entra mais facilmente naquela categoria que
aristóteles define como o provável (οἷον ἂν γένοιτο), e que define o poético
e o de Péricles adequa-se mais ao que realmente aconteceu (οἷον ἐγένετο), que
define o histórico. ainda assim, nenhum discurso é precisamente como aconte-
ceu (ὄπερ ἐγένετο), por muito que tucídides os introduza com τοιάδε ἔλεξεν,
como se citasse as palavras dos próprios oradores. se, por hipótese, tucídides
tivesse tido acesso aos registos escritos dos discursos, como têm atualmente os
historiadores, poderia ser mais fidedigno, mais exato, mais cientista, mais his-
toriador? sem dúvida que sim, mas isso não nos deve fazer esquecer que,
mesmo nessa situação ideal, ele se veria confrontado com um conjunto de
opções de caráter subjetivo, como, ademais, se veem confrontados os historia-
dores da atualidade: selecionar discursos, integral ou parcialmente, textual ou
indiretamente, de forma detalhada ou em síntese. selecionar e apresentar são
sempre atividades subjetivas, sujeitas que estão ao julgamento do próprio his-
toriador. selecionando e apresentando, tucídides está a obedecer às leis que
governam a escrita da história e, ao mesmo tempo, governam a arte. o trabalho
do historiador está sujeito às limitações espaciotemporais; e não pode ser de
outro modo; ninguém pode escrever fora do mundo. o que se lhe pede é que
seja inteligente, isto é, que não seja ingénuo acerca da sua época e das suas
preferências; que se empenhe a fundo na procura de provas documentais que
476 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
corroborarem as suas interpretações dos factos; que vise como única meta irre-
dutível a verdade; por fim, mas não menos importante, que tenha competências
de escrita.
92
«the true is that thucydides had the assured faith of a scientist because he was a
scientist, because, in fact, he was inspired by contact with a department of positive science
which in his day had succeeded in extricating itself from the coils of cosmology, and which
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 477
by means of a method adequate to the most rigid modern demands was already advancing
to conclusions which were recognized as valid and immensely significant for human life. on
the other hand, biological and medical science deals directly with humanity in its normal and
pathological conditions. and, in the second half of the fifth century, biology and medicine
were already established as fruitful sciences in the hands of the Hippocratic school. the intel-
lectual and spiritual affiliations of thucydides were with this school. [...] specifically, how-
ever, his inspiration comes from Hippocrates, along with the principles of method which
determined the character of his work. the Histories of thucydides represent an attempt to
apply to the study of social life the methods which Hippocrates employed in art of healing,
and constitute an exact parallel to the attempts of modern scientific historians to apply evo-
lutionary canons of interpretation derived from darwinian science» (cochrane 1929: 3).
478 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
to the objection that thucydides cannot have been such a fool as to utter such
a flagrant contradiction, we can reply that the contradiction is far from flagrant:
it requires language like ‘objective’ and ‘subjective’, and more important a cons-
cious distinction between the historian as recorder of fact, on the one hand, and
the writer of the dramatically plausible on the other, which as we have seen is a
distinction not formulated until aristotle – though thucydides’ own admirable
practice may have contributed to its formulation [1987: 46].
93
crane (1996) denuncia outras exclusões vocabulares na História da Guerra do Pelo-
poneso, como laços de parentesco, oikos, genos, polis.
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 479
romilly talvez não estivesse desperta para o assunto, mas tudo o que diz
neste excerto sobre as limitações da historiografia grega podia aplicar-se à his-
toriografia moderna. Neste aspeto em concreto, a sua objetividade não era dife-
rente da atual, pois toda a historiografia é sempre análise, interpretação e pen-
samento. um historiador não cessa de escolher. Quando define o seu domínio,
delimita a sua pesquisa, informa-se, escolhe. escolhe também entre os dados,
mesmo incompletos, que reuniu, entre os documentos, mesmo limitados, que
conheceu e reteve. a verdadeira historiografia é aquela que procura explicar, e
isso herdámo-lo dos Gregos: sem explicação não há história, há crónica. Não
é aí que tucídides fracassa. o mesmo tom acusatório se encontra nos seguintes
termos:
480 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
Pour des Grecs, l’information de l’historien n’est pas simplement contrôle entre
vrai et le faux: elle est déjà intelligence et tri entre ce qui compte et ce qui ne
compte pas. Les efforts de l’enquêteur impliquent une perpétuelle activité d’esprit,
une comparaison, un choix, une mise en ordre intelligente [ibid.: 33].
o que romilly aqui diz dos historiadores gregos se pode dizer de todos os his-
toriadores, de todos os tempos, como ficou demonstrado das reflexões de
ricœur. a partir do momento em que o historiador dirige uma questão ao pas-
sado, já está a limitar a sua pesquisa, a orientá-la num certo sentido, a sele-
cionar, a omitir, a racionalizar.
se, de facto, havia um distanciamento dos gregos relativamente à objeti-
vidade, ele não implicava nenhum compromisso ideológico, como sucederá pos-
teriormente com toda a historiografia até à atualidade. se há coisa que se deve
reconhecer aos historiadores gregos, é a sua isenção ideológica – «mais le pro-
pre de l’historiographie grecque est que cette distance par rapport à l’objectivité
n’y implique aucun engagement doctrinal» (ibid.: 36).
também de parcialidade é injusto acusar os historiadores gregos:
certes, nous n’avons pas beaucoup d’éléments pour critiquer les historiens grecs;
et leurs fautes sont peut-être beaucoup plus graves qu’il n’y paraît. mais on peut
remarquer que leurs critiques mutuelles (jusqu’à Plutarque) ne visent pas en géné-
ral la partialité ni la règle du sine ira aut studio. comme pour la philosophie, le
problème essentiel n’est donc pas là: il est dans la forme et le but qu’ils assignent
à l’histoire [ibid.: 34].
romilly, a nosso ver, bem, deita um pouco de água nesta fervura levan-
tada por Hunter: «cela est vrai; et pourtant je ne saurais, cette fois encore,
prendre la chose au tragique. thucydide a en effet plus de rigueur qu’un tel
résumé ne ferait croire» (2005: 38). Não escamoteia de modo algum o artifício
inventado por tucídides, sinal mais visível da sua interferência, apenas o sua-
viza, explicando que ele assenta numa visão muito particularmente grega da
natureza humana:
Pourtant, cette prévision, à laquelle se livrent ses orateurs, et ces vraisemblances,
qu’il tente de mettre en lumière, cachent une autre originalité, d’une portée plus
482 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
grande, et peut-être, pour nous, plus inquiétante. en effet, les prévisions des ora-
teurs se fondent sur l’idée d’une constance de la nature humaine, sur des compor-
tements sujets à se reproduire, soit en vertu de la logique du raisonnement qui les
inspire, soit du fait de l’entraînement qu’exercent sur l’homme des émotions mal
contrôlées et subies de façon passive. Les arguments de vraisemblance supposent
une certaine universalité. or ces prévisions des orateurs, par leur rôle dans le récit,
reçoivent à chaque fois le double contrôle d’une prévision opposé et d’une mise
à l’épreuve concrète: elles deviennent donc à leur tour des leçons dans l’art de
prévoir. et cette orientation nous révèle l’existence, derrière de procédé, d’un troi-
sième postulat sur l’histoire, qui est que certains traits s’y répètent [ibid.: 39].
a objetividade grega existia, apenas tem que ser entendida dentro da visão
que os Gregos tinham do devir humano, baseado no conflito entre doxa e epis-
teme, particular e geral: «L’objectivité grecque existe, mais, même en histoire,
elle s’atteint par l’esprit et se réfère à l’universel» (ibid.: 40). os Gregos não
viam a história como algo sempre em mutação em direção ao progresso. de um
ponto de vista prático, a visão grega do devir humano e da história convida a
uma purga das singularidades e das particularidades para reter apenas o geral.
o objeto da história é, pois, a ideia ou forma no sentido platónico do termo.
a história deve procurar o verdadeiro para lá da aparência e o eterno para lá
do mutável.
Posto isto, diremos que, se falamos de tucídides cientista, é no sentido de
alguma akribeia que não podemos deixar de reconhecer: rigor, precisão, impar-
cialidade, objetividade. Falamos de alguém que imita um modelo de linguagem
técnica ou que, pelo menos, se reclamava de objetiva e neutra para escrever a
sua história; alguém que, eventualmente, recorre a métodos de leitura importa-
dos das ciências do seu tempo; sobretudo, alguém que rompe, definitivamente,
com a explicação mítico-religiosa ou a racionaliza, procurando sempre razões
humanas e naturais para os acontecimentos; alguém que estabelece uma episte-
mologia, um programa metodológico, e orienta o seu trabalho por critérios de
verdade; em suma, alguém que estabelece como prioridade separar história de
ficção. Já o dissemos, em tucídides a prática fica consideravelmente aquém da
ambiciosa (mas ainda válida) teoria. Por isso, se falamos de tucídides artista,
falamos do oposto de todas estas características enunciadas. do que fomos
dizendo sobre tucídides não restam dúvidas que nele se conjugam as facetas do
artista e do cientista, da subjetividade e da objetividade, da parcialidade e da
imparcialidade, em suma, da história e da ficção. É assim que o veem muitos
dos seus conhecedores. cornford teve o mérito de assinalar fortemente os traços
que aproximam a história de tucídides da tragédia, mas não foi capaz de per-
ceber, como Lamb (1914), Finley (1942), Gomme (1954), romilly (1956, 86)
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 483
que «estes traços podem aliar-se com a exatidão e a preocupação pela ver-
dade», ou que é um erro supor que o recurso literário é incompatível com o
relato verdadeiro. Pelo contrário, a forma literária pode ser uma forma estili-
zada de apresentar a verdade94. esta é no fundo a tese maior que aqui preten-
demos expor.
onde o conflito entre objetividade e subjetividade se torna mais evidente
é na sentença programática relativa aos discursos. aí, o historiador ateniense
tenta conciliar em si duas tendências: uma objetiva, o historiador que regista “o
que foi verdadeiramente dito” (ἀληθῶς λεχθέντων); outra subjetiva, o escritor
de um drama verosímil que regista “o que poderia ter sido dito” (τὰ δέοντα).
ainda que admitamos, com Hornblower, que tucídides não tinha consciência
desta diferença entre subjetividade e objetividade, nem tão pouco conhecia os
termos que aristóteles mais tarde categorizará, podemos ao menos partir das
palavras do próprio tucídides para dizer que ele tinha consciência da diferença
entre o seu trabalho (que nós designamos de história) e τὸ μυθῶδες, verdade
e retórica, akribeia e poesia. Para chegar a esta conclusão, não é preciso mais
do que reler o seu programa metodológico. Por um lado, manifesta-se cético
relativamente aos artistas: os poetas que compõem hinos (ποιηταὶ ὑμνήκασι)
acerca de acontecimentos do passado que não conhecem e que engrandecem
embelezando-os (τὸ μεῖζον κοσμοῦντες μᾶλλον); os logógrafos (λογογράφοι)
que procuram mais agradar ao auditório com τὸ μυθῶδες do que dizer a
verdade (προσαγωγότερον τῇ ἀκροάσει ἢ ἀληθέστερον); os bem-falantes (εὖ
εἰπόντων) que enganam os ouvintes com belas palavras, persuadindo-os das
piores ideias (iii. 38). contra este comportamento artístico, tucídides adota
uma atitude objetiva de cientista: é seu intento que ninguém fique mal infor-
mado (οὐχ ἁμαρτάνοι), por isso procura a verdade (ἡ ζήτησις τῆς ἀληθείας);
faz investigação (ηὑρῆσθαι) do passado com base nos indícios mais evidentes
(ἐκ τῶν ἐπιφανεστάτων σημείων); e do presente com base no que o próprio
presenciou (αὐτὸς παρῆν) ou no que procura saber junto de terceiros (παρὰ τῶν
ἄλλων), com o máximo de rigor possível (ὅσον δυνατὸν ἀκριβείᾳ); porque da
tendenciosidade dos testemunhos e da parcialidade da memória desconfia
(ἑκατέρων τις εὐνοίας ἢ μνήμης); tem o cuidado de narrar cada acontecimento
por ordem cronológica e datados por estações (γέγραπται δὲ ἑξῆς ὡς ἕκαστα
ἐγίγνετο κατὰ θέρος καὶ χειμῶνα); revela meticulosidade científica na descrição
94
cf. Hornblower 1987, 79: «With thucydides, as with Herodotus, it is a mistake to
suppose that a literary device is somehow inconsistent with a truthful account; it may rather
be a stylized way of presenting what is true».
484 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
de alguns acontecimentos como a peste (ἐγὼ δὲ οἷόν τε ἐγίγνετο λέξω, καὶ ἀφ᾽
ὧν ἄν τις σκοπῶν); revela atitude objetiva ao querer apagar-se da narrativa e
deixar os acontecimentos narrarem-se por si próprios, ou serem apresentados
por terceiros em discurso direto; por fim, guarda imparcialidade, não favore-
cendo ou desfavorecendo nem espartanos nem atenienses nem quaisquer
outros; resistindo mesmo à tentação de falar de si, enquanto interveniente na
guerra, ou aproveitar para censurar os responsáveis pelo seu desaire. Por outro
lado, tucídides, ele mesmo, admite não ser rigoroso na transcrição dos discur-
sos (χαλεπὸν τὴν ἀκρίβειαν αὐτὴν τῶν λεχθέντων διαμνημονεῦσαι); e manifesta
uma clara contradição entre objetividade e subjetividade – τῆς ξυμπάσης
γνώμης τῶν ἀληθῶς λεχθέντων; ao mesmo tempo que tenta apagar-se da nar-
rativa, deixa bem evidente a sua marca autoral, ao autoenunciar-se em nomina-
tivo (Θουκυδίδης Ἀθηναῖος ξυνέγραψε); se demonstra uma imparcialidade
exemplar com cada um dos lados em conflito, nota-se parcialidade relativa-
mente a determinadas figuras – excesso de louvor a Péricles, excesso de cen-
sura a cléon; a sua escrita, imitadora do modelo documental, que reclama neu-
tralidade e objetividade, afinal, tem subjacente imensas influências de modelos
artísticos como a tragédia, a epopeia e a retórica; seleciona, concentra e omite
– omite factos, omite causas, omite figuras, omite fontes. relativamente a estes
dois últimos aspetos, salvaguarde-se já que nenhum historiador escreve sem
influências; pois que a escrita já é em si uma arte, e todos os historiadores
selecionam, condensam e omitem informação.
Nada disto nos deve escandalizar. desde a antiguidade que tucídides era
visto como um artista cheio de pathos, conciliando em si as duas facetas de
artista e cientista. connor (1977, in rusten 2009: 29-43) dá-nos conta do sur-
gimento de um novo tucídides, a partir da década de sessenta do século XX,
muito influenciado por uma onda de criticismo retórico que acentua de sobre-
maneira o envolvimento emocional do escritor nos factos que relata em detri-
mento da precisão, da neutralidade, do distanciamento.
to be sure, some of the new wave of thucydidean criticism may have more new
rhetoric than new perception. thucydides the artist is no new discovery; the
ancients often stressed the quality of pathos in his work; and certainly many clas-
sicists in the 50s and early 60s were attracted to thucydides by the feeling of his
superb mastery of his material and the intense, if largely explicable, power of his
work [connor 1977, in rusten 2009: 31].
algumas lacunas que Wallace imputa a tucídides são fruto da visão his-
tórica do seu tempo. Não se pode pedir a tucídides a mesma consciência do
valor das causas económicas de um historiador do século XX; o objeto político-
-militar foi a sua opção, por isso, tentou manter-se o mais próximo possível da
sua escolha95. em todo o caso, um historiador sempre terá que selecionar e
95
sobre os fatores económicos na história de tucídides, veja-se romilly 2005: 109-
114, que refuta algumas das críticas que apontam para a total negligência das causas econó-
micas na História de tucídides.
486 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
Grant é ainda mais acutilante e radical nas críticas que faz a tucídides:
[...] it is generally recognized that thucydides was a great artist. it does not seem
so certain, however, that the prominence of the artist in thucydides as compared
with the scientist has been sufficiently recognized, and so i propose, in the first
part of this paper to consider briefly some aspects of his work [...] which seem
more consonant with the artistic than the scientific, in the hope that his may con-
tribute something to our knowledge of thucydides and his work.
We may, to start, say that the artist is intensely, emotionally involve in his subject,
whereas the scientist is expected to show a more objective coolness and restraint
[id. 1974: 83].
stahl, por sua vez, diz que reconhecer a subjetividade da história tucidi-
diana – e de toda e qualquer produção historiográfica – permite-nos redescobrir
e apreciar mais intensamente os modos como tucídides seleciona e apresenta
os factos.
mere narration of any set of historical facts already implies a subjective element
(because presentation includes judgment, evaluation, selection, in short: interpreta-
tion) – to recognize, i say, the inherent subjective character of any historical nar-
ration at the same time allows us, in this field too, to rediscover and appreciate
more fully the categories which thucydides applied for selecting and presenting
events [apud cogan 1981: xv].
2009: 33). connor termina o seu ensaio com estas significativas palavras que
tomamos como guia: «as we open our eyes wider it may be possible to behold
in thucydides the fusion of an historian of integrity with an artist of profound
intensity» (ibid.: 42).
a fusão entre o “historiador íntegro” e o “artista de profunda intensidade”
é uma característica chave para a nossa leitura de tucídides e para a tese que
aqui advogamos.
96
crane observa que tucídides acaba por imitar muitos dos clichés da tradição poética
de Homero e Hesíodo que logo no início da obra se propõe ultrapassar. «Like the poets
whose work he seeks to transcend, thucydides thus claims that he too will confer immortality
upon his subject, that his subject matter is grander, that he avoids the favoritism of Homeric
poetry, and that he, unlike the poets and prophets, truly does offer his audience an under-
standing of the past as well as the future. the Peloponnesian War subtly claims to have been
all that the trojan expedition was not. thucydides replaces Homer as the true giver of undy-
ing fame» (1996: 215).
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 489
97
relembramos que os estudiosos, atualmente, dão mais valor às diferenças entre tucí-
dides e Hipócrates do que às semelhanças. Veja-se, por exemplo, Parry 1969.
98
«this narrative of the pestilence is, in fact, the one which illustrates best the union
of the particular and the general, of which thibaudet speaks, and of science and art in thucy-
dides (if “union” is the right word to apply to two aspects of the same thing)» (Gomme
1954: 144).
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 491
Gomme começa por nos advertir que para os Gregos e para os romanos
a história, por muito distinta que fosse da crónica, era sempre um produto artís-
tico e que alguns escritores modernos ignoraram essa dimensão. mesmo para
tucídides, a forma literária é indissociável da composição histórica. Lívio diz,
a dado momento, numa das suas obras, que não cita documentos oficiais por-
que se o fizesse estaria a violar os cânones artísticos da antiguidade que reque-
riam que o estilo da história fosse uniforme e não fosse desfigurado pela inter-
polação de documentos oficiais, leis e material do género. e acrescenta que até
tucídides, de um modo geral, se conformou com esta prática. seria interessante
saber se a referência a tucídides nestes termos significa que ele era menos
artista ou menos cientista do que os outros historiadores.
Gomme acredita que tucídides quis ser um verdadeiro artista. Fez todo
um imenso trabalho de bastidor como recolha de documentos e registo de notas
e ao público apresentou somente o resultado final. como pintor que apresenta
o quadro acabado sem os rascunhos ou o arquiteto a obra terminada sem as
plantas. se possuíssemos as suas notas podíamos testar melhor a sua credibi-
lidade e a sua exatidão. Neste particular, Heródoto é mais cientista, se é que
assim se pode dizer, pois amiúde nos revela as suas notas, diz-nos onde esteve,
o que viu ele próprio, quem o informou. tucídides só por duas vezes nos
informa dos locais onde esteve: em atenas durante a peste e no comando de
um exército na trácia, em 424. também sabemos que entre esta data e o fim
da guerra, vinte anos depois, não esteve em atenas nem contactou com as for-
492 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
ças atenienses. e que tirou proveito do seu exílio para contactar com outras
fontes, sobretudo, inimigas dos atenienses.
uma das maiores lições que tucídides nos pode ensinar é que arte e ciên-
cia não são incompatíveis. Para começar não nos podemos esquecer que tucí-
dides escreve história contemporânea e que essa é uma tarefa extremamente
delicada, que o obrigou a recolher todo o material dos dois lados em conflito
e escrever a história antes de morrer. claro que tucídides gozou do privilégio,
nas suas palavras, do exílio, que lhe permitiu estar mais à vontade ou ter tempo
para fazer o seu trabalho.
tucídides não evita o dramatismo que os eventos já possuem em si mes-
mos, pelo contrário, consciente dele, utiliza-o para estabelecer contrastes dramá-
ticos na sua narrativa. assim, é verdade que o cinismo da conquista e do cruel
tratamento de melos (incluindo a conferência entre mélios e atenienses) e o ili-
mitado e poderoso optimismo da expedição contra siracusa contrastam com o
desastre daí resultante. No entanto, este contraste é real. os dois episódios
sucederam-se no tempo, sem nada de relevante entre eles. outros contrastes
podem ser encontrados em tucídides, um deles ainda mais dramático entre o
idealismo da feliz e confiante atenas do discurso fúnebre no final do primeiro
ano de guerra e o relato da peste que sobreveio, com a devastação e a desmo-
ralização que sabemos. No livro iii, podemos encontrar um outro tipo de con-
traste. a história da secessão de mitilene de atenas e a consequente guerra, a
queda de mitilene e a cruel sentença de matar todos os homens e vender todas
as mulheres e crianças como escravas e a posterior revogação de pena que dá
origem a um dos mais emocionantes e dramáticos episódios, onde se relata a
empolgante viagem de barco dos mensageiros, que sem descanso navegaram
para arribar antes dos companheiros, que levavam um dia de avanço, a fim de
evitar a execução da funesta sentença. a seguir a este episódio, tucídides
coloca o impressionante debate entre Plateienses e tebanos, onde se decide por
uma guerra de palavras a sorte dos prisioneiros de Plateias que se renderam
a esparta, não tendo seguido os seus compatriotas para o refúgio em atenas.
a ação dos espartanos é implacável e impiedosa. os Plateienses não são pou-
pados. Nesta estratégia de composição o leitor é levado a comparar a atitude
de atenas para com mitilene e a de esparta para com Plateias. tucídides
limita-se a narrar o sucedido sem comentários pessoais; mas nem precisava, a
ênfase que dá aos discursos e a forma como dispõe estrategicamente os episó-
dios, que de um ponto de vista do desenrolar da guerra são quase irrelevantes,
falam por si: aos que acham que atenas é indigna de governar as outras cida-
des, vejam se os do Peloponeso são mais dignos, eles que trataram deste modo
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 493
«the dramatic contrast is there, in the events and therefore in thucydides’ narrative»
99
prar comida para os sitiados. tucídides não gasta muitas palavras a explicar o
que se passou, não só porque os factos eram sobejamente conhecidos, mas
sobretudo porque aqui, tal como noutros pontos da sua História, ele deixa a sua
narrativa de acontecimentos dizer-se a si própria. o que ele faz é pôr em cena
as figuras e os dados militares e financeiros. seguindo o conselho de Péricles,
exposto anteriormente, os camponeses recolhem-se às muralhas com o máximo
de provisões, deixando para o inimigo o mínimo possível. Vêm – diz-nos tucí-
dides – de corações destroçados, habituados que estavam a viver no campo e
a vir à cidade apenas em ocasiões especiais, políticas ou religiosas. No início
do verão, chegam as tropas inimigas, oriundas do Peloponeso, e começam a
devastar as terras atenienses. os camponeses assistem do alto das muralhas;
revoltados e inflamados pela ira, juntam-se em grupos na disposição de sair em
defesa das suas terras, mas são demovidos por Péricles, que, em paga, recebe
acusações de cobardia. este mantém o controlo da população e permite apenas
que a cavalaria faça algumas investidas nas fações inimigas que se encontravam
mais próximas das muralhas. o capítulo 23 dá conta da retirada dos Peloponé-
sios. entretanto, os atenienses enviam para o Peloponeso cem navios de guerra,
com mil hoplitas e quatrocentos archeiros. os capítulos 24 a 27 narram várias
investidas atenienses em redor do Peloponeso. o capítulo 28 informa-nos sobre
a ocorrência de um eclipse, que, está comprovado, se deu no dia cinco de
agosto, à tarde. a aliança de atenas com o poderoso rei da trácia aparece des-
crita no capítulo 34. em seguida, continua a aventura dos soldados atenienses
em redor do Peloponeso, com a captura de uma praça-forte pertencente aos
coríntios e de mais duas outras localidades. os navios atenienses tomam final-
mente o rumo de casa. No regresso têm ainda tempo para invadir alguns ter-
ritórios afetos ao inimigo, nomeadamente mégara. o capítulo 33 descreve a
tentativa levada a cabo pelos coríntios durante o inverno para recuperar alguns
dos territórios que caíram em mãos inimigas. este primeiro ano de guerra ter-
mina com os rituais e cerimónias fúnebres em honra dos soldados atenienses
mortos durante a peleja (capítulo 34) e o célebre discurso (epitaphios) de Péri-
cles (capítulos 35-47). Gomme acredita que temos nestes relatos um exemplo
do que aristóteles quer dizer quando afirma que o historiador regista tudo o
que aconteceu durante um determinado período de tempo e pela ordem em que
ocorreu. Neste caso, a maior parte dos acontecimentos narrados por tucídides
são de pouca monta para o desenrolar da guerra, excetuando, quando muito, a
invasão da Ática pelas tropas do Peloponeso. todavia, vão ao encontro dos
objetivos que tucídides persegue, ao deixar a história falar por si própria. em
primeiro lugar, expõem o quadro do que será uma guerra entre uma potência
naval e uma potência terrestre – com as constantes escaramuças e impasses até
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 495
100
«o seu objetivo principal é estabelecer leis – leis psicológicas. a lei psicológica não
é um evento, nem sequer um conjunto de eventos: é uma regra imutável que dirige as rela-
ções entre os eventos. segundo julgo, todas as pessoas que conheçam ambos os autores esta-
rão de acordo comigo, ao afirmar que são os próprios eventos que interessam principalmente
a Heródoto; e que, a tucídides, interessam fundamentalmente as leis, segundo as quais eles
se verificam. mas estas leis são precisamente essas formas eternas e imutáveis que, de acordo
com a principal tendência do pensamento grego, são as únicas coisas cognoscíveis. tucídides
não é sucessor de Heródoto no pensamento histórico, mas o homem em quem o pensamento
histórico de Heródoto foi encoberto e sufocado por motivos anti-históricos» (collingwood
1989: 43).
496 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
Gomme (ibid.: 140) é de opinião de que na boa história, tal como na poesia
(embora de uma forma diferente), o geral está incorporado nos exemplos par-
ticulares, e aristóteles erra na distinção especial que faz das duas disciplinas.
Na boa história há, inevitavelmente, ciência e arte, e os estudiosos modernos
erram quando dizem ou supõem que as duas são incompatíveis. a partir do
momento em que a história é mais do que a recolha e apresentação de provas
e necessita de se organizar como narrativa, o historiador deve vestir a pele do
artista. antes do produto final do artista tucídides está o imenso trabalho do
historiador cientista:
thucydides, not because he was an “ancient” writer, but cause he was a sen-
sible man and clearheaded, did his work in the right order, and then presented the
finished work to the public, as the architect presents the building, not only without
the many first sketches and plans, but without the scaffolding [Gomme 1954:
140].
101
«[...] as artist at least, thucydides shares this quality with all of his countrymen
worthy of the name. the Greeks were obstinate, foolish, and cruel enough in their politics,
greedy of power, fierce; at best “helping their friends and doing harm to their enemies”, just
like other civilized peoples; but in their art – put a pen into their hands or a brush or a
chisel, and they do not know what partiality means; here at least they hardly took a step
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 497
wrong. in this world of art there is no wicked enemy, no contest between white and black;
the trojans are not wicked in Homer, nor is Helen, nor the Persians and egyptians, the
βάρβαροι, in aeschylus, the contemporary, who also, like thucydides, had taken part in
events, or in Herodotos, nor the spartans or some particular athenian faction in thucydides,
nor in aristophanes» (Gomme 1954: 162).
498 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
102
«We may be able, however, to conceive of an artistic history which shall be as reli-
able for the conveyance of truth as a proposition of euclide» (Lamb 1914: 66).
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 499
103
«La subjectivité d’historien, comme toute subjectivité scientifique, représente la vic-
toire d’une bonne subjectivité sur une mauvaise subjectivité» (ricœur, HV, 38).
(Página deixada propositadamente em branco)
cAPÍTULO ii
PREfiGURAÇÃO, cONfiGURAÇÃO E REfiGURAÇÃO
DA HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO
e, de facto, não podemos dizer que tucídides não apoia as suas informações
em provas documentais, no sentido amplo que ricœur dá a esta expressão, que
engloba indícios e testemunhos. tucídides é o primeiro historiador a afirmar
explicitamente que a sua investigação histórica é feita a partir de provas: ἐκ δὲ
τεκμηρίων [...] σκοποῦντί μοι πιστεῦσαι (i. 1. 3). mas o facto de não revelar
as suas fontes e os critérios usados na análise crítica das fontes torna difícil
verificar a veracidade dos acontecimentos que relata e avaliar a qualidade da
sua seleção e interpretação de documentos e explicações. só na secção intitu-
lada arqueologia o historiador é mais explícito quanto às fontes usadas e
quanto ao raciocínio seguido104.
Várias podem ser as explicações para esta falta. a primeira, defendida por
crane, é que as circunstâncias não favoreciam este tipo de prática, podendo
comparar-se as condições de trabalho de tucídides às dos etnógrafos do século
XX105. Perante um manancial informativo, e de modo a evitar uma obra exten-
síssima (que, mesmo inacabada, corresponde em tamanho a cinco sextos das
Histórias de Heródoto), tucídides estava obrigado a sintetizar informações e a
omitir o vasto arquivo documental, preferindo antes criar nos leitores uma ima-
104
«thucydides, unlike his predecessor, is singularly reticent about how he proceeded,
where he travelled and what he saw, what he rejected and why and how he came to his con-
clusions. on the other hand, he is certainly more explicit in the archaeology than in other
parts of the History about what he accepted as evidence and how he reasoned» (Hunter 1982:
100).
105
«it is easy to criticize thucydides for his silent and omniscient editorial control and
manipulation of the evidence, but his practice does not compare unfavorably with that of
more recent genres operating under similar constraints. i will, for example, consider the rela-
tionship between twentieth-century ethnography and thucydidean history» (crane 1996: 27).
«thucydides’ practice, in fact, compares favorably with that of twentieth-century ethnogra-
phers, who, despite vastly superior technology of publication, face the problem of distilling
months or years of personal experience into a three-hundred page manuscript. only now, with
the advent of massive storage devices such as cd rom or multigigabyte hard drives that can
store thousands of pictures and tens of thousands of pages, can fieldworkers begin to imagine
publishing large bodies of data as well as their own conclusions» (ibid.: 36).
504 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
106
«unable to provide his readers with all the evidence upon which his conclusions are
based, thucydides resorts, in fact, to the same device that malinowski later employed. He
offers the reader the image of the “heroic researcher”, wading through conflicting evidence
and indefatigably pursuing the truth» (crane 1996: 36).
107
«[...] il a rarement indiqué le détail des sources de son information. il avait le sen-
timent qu’on devait le croire sur parole. il pensait qu’ayant imposé des limites géographiques
et chronologiques très sévères à son entreprise, il pouvait s’adresser à son lecteur et lui deman-
der de le croire. il n’imagina jamais qu’il eût pu être autrement» (momigliano 1992: 49).
108
murari Pires (2003) interroga-se acerca do vazio informativo, mais propriamente
acerca do silêncio metodológico de tucídides sobre a transição da diversidade discordante dos
testemunhos à versão única: «Par quels procédés d’une (supposée) critique méthodologique
l’historiographie thucydidéenne passe alors de la diversité des récits à l’appréhension de l’uni-
cité du fait, thucydide ne le dit pas; bien au contraire, il le passe sous silence» (ibid.: 130).
segundo o autor, esta lacuna pode explicar-se se tucídides fez suas as competências de duas
reconhecidas figuras de autoridade: o phronimos como o define aristóteles – o homem dotado
de uma sageza prudente; o histor – tal como o definimos anteriormente.
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 505
Loraux, por seu turno, não entende como é que alguns historiadores con-
temporâneos apreciam e valorizam uma produção historiográfica que ofende os
mais sagrados valores da metodologia histórica:
Peut-être s’étonnera-t-on (pour ma part, j’avoue m’en étonner à chaque lecture de
La Guerre du Péloponnèse) de ce que l’historien fondateur dont des générations
d’universitaires admirent la puissance d’objectivité soit précisément celui qui
refuse au lecteur tout accès à ses sources. or il va de soi que ces modernes his-
toriens de la Grèce qui considèrent thucydide comme le premier d’entre eux se
sentent, eux, impérativement tenus de légitimer chacune de leurs propositions par
un système très complet de notes de bas de page. Partageant l’idée que le savoir
historique est de ceux qui doivent exhiber des preuves, je ne sais, dès lors, ce
qu’il faut le plus admirer en cette conjoncture paradoxale, de la force persuasive
du sujet thucydide ou de la puissance de l’investissement d’objectivité qui veut
que l’historien exemplaire ait été exemplairement objectif [1986: 151].
109
momigliano afirma que os historiadores gregos não possuíam regras precisas para
a recolha e seleção dos factos. Por esta razão, Heródoto passou muito tempo por impostor.
«El punto débil más evidente de los historiadores griegos era su forma de acercarse a los tes-
timonios, esto es, los criterios de los que se servían para establecer los hechos. La ausencia
de reglas precisas sobre el modo de recoger y elegir los datos creaba confusiones tanto en
los autores como en sus lectores. Heródoto podía ser considerado ya como el padre de la his-
toria ya como un embustero, porque nadie estaba en condiciones de controlar las historias
contadas por el [...] Únicamente la moderna investigación orientalista ha estado en condicio-
nes de demostrar que Heródoto era un cronista fiable (dentro de los límites de su informa-
ción) [...]» (1984: 19).
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 507
110
marincola exprime uma opinião contrária: «concerned as he is with underlying real-
ities that are not always apparent or easily perceived, he does not suggest that autopsy is
superior to inquiry, and in at least one place casts doubt on autopsy’s validity for non-con-
temporary history. in the archaeology (i. 2-19) [...]» (1997: 68). a posição de momigliano
sobre esta matéria, que diverge claramente da de marincola, funda-se numa nota fortuita na
qual se manifesta consciência dos limites dos testemunhos de visu nas batalhas (vide tucí-
dides: Vii. 44).
508 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
consegue entrever mais do que o vulto da pessoa que está à nossa frente, e,
portanto, em tais circunstâncias, não conseguimos reconhecer o que a distingue
de outra pessoa. estes comentários são coerentes com as anteriores declarações
de tucídides sobre a dificuldade de confiar nas testemunhas oculares da guerra
(i. 22. 3) 111. daqui decorre que a autopsia nem sempre é uma fonte segura de
informação, devendo ser submetida a uma filtragem crítica. todavia, o ouvido,
esse nunca é seguro, porque as informações adquiridas por essa via não são
comprováveis.
ainda assim – diz momigliano – em tucídides, como em Heródoto, a
tradição oral prevalece claramente como fonte histórica sobre a tradição escrita.
apesar de se distanciar de Heródoto no rigor e na exigência de verdade e de
atrair a história para a esfera da política, tucídides não consegue romper com
a tradição eminentemente oral da documentação historiográfica112. tinha à sua
disposição alguns testemunhos escritos (cartas, inscrições e tratados) que encai-
xavam nos seus critérios de credibilidade, porém optou maioritariamente pela
oralidade113. momigliano observa a que ponto esta preferência influenciou os
seus sucessores: «en definitiva dejó en sus sucesores la impresión de que la
observación direta y los relatos orales de testigos diretos en conjunto fuesen
preferibles a los testimonios escritos» (1984: 14). ainda assim, é bom que se
note que, apesar da existência de alguns documentos aproveitáveis à época de
tucídides, os relatos escritos de batalhas e assembleias eram escassos e não
existiam ainda os documentos oficiais e as cartas que se multiplicarão no
período helenístico e que teriam, aí sim, criado condições para uma história à
111
romancistas modernos, como stendhal na Cartuxa de Parma, tolstoy em Guerra e
Paz, tackeray em Vanity Fair, também testemunham a confusão sentida pelas pessoas que
tomaram parte nas batalhas, e a dificuldade em escrever um relato baseado nos seus teste-
munhos. mas esta desconfiança, nota Hornblower, não impede tucídides de ser extremamente
confiante nas opiniões factuais que emite: «thucydides is on the whole remarkable for the
confidence with which his factual opinions are expressed» (1987: 156).
112
«Tucídides, pues, lleva a la victoria una exigencia de veracidad más rigurosa que
la de Heródoto e incita a sus sucesores a limitar sus propios intereses a la esfera política,
pero no cambia la base de la documentación historiográfica que permanece en la antigüedad
de carácter oral principalmente y sólo secundariamente de carácter archivístico» (Momigliano
1984: 99).
113
«Tucídides aceptó el presupuesto de Heródoto de que la historia está hecha princi-
palmente de tradiciones orales. No será nunca suficientemente acentuada la importancia de
esta concordia fundamental. Los documentos escritos son marginales para Tucídides, como lo
son para Heródoto» (Momigliano 1984: 97).
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 509
114
«En el siglo V los griegos poseían muchos documentos que mencionaban a sacer-
dotes, magistrados, atletas victoriosos, pero poquísimos relatos escritos de batallas y asam-
bleas. Más tarde los que nosotros llamamos documentos oficiales y cartas privadas se mul-
tiplicaron, y en el período helenístico habría sido posible, sin más, escribir historia como
hacemos nosotros, yendo a los archivos o usando cartas privadas, memorias, y así sucesiva-
mente. Pero se continuaba prefiriendo la tradición oral y la observación visual, como queda
claro en Polibio, aun cuando esa preferencia no estaba mayormente justificada por las con-
diciones que prevalecían» (Momigliano 1984: 84).
115
«ce serait cependant une grave erreur d’expliquer notre meilleur connaissance de
mycenes uniquement par le progrès de la science. sur le plan technique, schliemann et sir
arthur evans utilisaient peu de moyens qui ne fussent déjà à la disposition des athéniens du
cinquième siècle. Les anciens Grecs possédaient déjà les techniques et la main-d’œuvre néces-
510 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
Hornblower indica ainda dois tipos de provas que tucídides não utiliza:
a etimologia e as moedas. os argumentos aduzidos a partir de nomes e étimos
eram frequentes entre os seus antecessores, contemporâneos e posteriormente
em Platão. tucídides evita usar este tipo de prova. a numismática é muito
usada pelos historiadores modernos mas não mereceu qualquer atenção da parte
de tucídides.
as provas mais utilizadas são mesmo as orais. Pena foi que tucídides não
tenha revelado a sua origem. No livro Vi ainda alude a isso, declarando ter
obtido de uma testemunha a informação de que Hípias era o filho mais velho
de Pisístrato. supõe-se que as informações acerca de demóstenes e eurime-
donte, na expedição à sicília, terão chegado a tucídides via cónon, mas não
podemos ir além da suposição. de igual modo, o debate entre Nícias e alci-
bíades acerca da sicília deve ter tido como fonte testemunhal andócides. ape-
sar do anonimato, a pesquisa tem vindo a comprovar a fidedignidade de algu-
mas informações. outras há que permanecem envoltas em mistério. o que o
historiador diz acerca de cléon vai muito além daquilo que poderia saber, uma
vez que não era seu confidente. este tipo de consideração deu origem à tese
de que, salvo raras exceções, os motivos e intenções das suas figuras históricas
são inventados. Não é fácil rebater esta tese, visto o anonimato das fontes. mas
há motivos para dar mais crédito à tese de inferência ou dedução do que de
invenção. os documentos que nos têm chegado preenchem algumas lacunas
mas também confirmam a versão tucididiana dos factos. as próprias comédias
de aristófanes, por vezes, corroboram e complementam o seu relato. No caso
de cléon, visto o ressentimento e a parcialidade com que foi tratado, é certo
que o seu retrato foi pintado pela imaginação de tucídides. Já os motivos que
atribui a temístocles, aristogíton, Nícias e Pausânias devem ser uma inferência
do próprio historiador. No caso de Pausânias, limita-se a usar a expressão “diz-
-se que” antes de revelar os comportamentos e pensamentos do líder.
em suma, podemos admitir que tucídides frequentemente adivinha os
motivos por trás das ações, não se afastando, nesse domínio, da prática dos his-
toriadores modernos. a diferença é que tucídides é tão assertivo nas informa-
ções que deduz por hipótese como nas outras sobre as quais não tem dúvidas.
Por conseguinte, o mais justo é evitar os extremos de pensar que tucídides ou
inventa todos os motivos ou não inventa nenhum.
saires pour découvrir les tombes à fosse de mycènes et le palais de cnossos, et ils étaient
assez intelligents pour associer les pierres enfouies – s’ils les avaient mises au jour – avec
les mythes d’agamemnon ou de minos. ce qui leur manquait, c’est l’intérêt: voilà l’immense
fossé qui sépare leur civilisation de la nôtre» (Finley 1981: 25).
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 511
Le passé, lui, n’est pas véritablement connaissable. c’est ce que vont démontrer
ses premiers chapitres, connus sous le nom d’«archéologie», où thucydide réussit
le tour de force de présenter à la fois l’exposé le plus clair sur les temps anciens
et la démonstration la plus nette qu’on ne peut en faire véritablement l’histoire
[Hartog 2005: 76].
116
«du passé proche: il faut insister sur cet aspect; les relations qui disent avec une
certaine fidélité ce qui s’est produit, portent, en général, sur des événements qui sont presque
contemporains des auteurs: c’est seulement à leur propos que la narration possède un mini-
mum d’objectivité» (châtelet 1962: 37-38).
512 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
117
«significant for the present study, the archeology allows one to see what is all too
rare elsewhere in the History – the historian selecting data, submitting them to the logical
analysis, and ultimately reconstructing the events of a period far in the past to which he was
not witness and about which he could have no firsthand evidence» (Hunter 1982: 17).
118
«For example, he must have seen mycenae and Lakedaimon, he at least knew of
the contents of the graves uncovered in the purification of delos, and he could describe the
manner of bearing arms in various parts of Greece in his own day» (Hunter 1982: 100).
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 513
119
as palavras de Hartog podem gerar algum equívoco relativamente ao trabalho do
juiz. convém fazer aqui a seguinte ressalva: o juiz não se fica pelos indícios. Para uma deli-
beração final – a menos que os indícios sejam de tal modo evidentes e conclusivos – ele há
de apoiar o seu julgamento em testemunhos que os indícios corroboram. a tese do paradigma
indiciário de Ginzburg também não se funda apenas em indícios como elemento de prova.
indícios e testemunhos complementam-se. sobre esta matéria, veja-se Ginzburg 1989.
120
«[...] lorsqu’il est question des temps anciens, la place est laissée aux récits
mythiques et à la tradition; quand ces derniers sont écartés comme insuffisants – c’est ainsi
que procède thucydide –, aucun effort résolu n’est fait pour substituer au vide ainsi crée une
leçon plus correcte: l’écrivain déclare alors que l’on ne peut rien savoir sur des temps aussi
reculés. en fait, l’introduction presque constante de la vraisemblance, du mythe, des “recons-
tructions” historiques, des digressions, du pittoresque traduisent cette impuissance radicale de
la pensée grecque à considérer avec le sérieux indispensable cet objet qu’est le passé humain.
La défaillance des œuvres s’explique par la structure de la mentalité et par l’insuffisance
technique qui lui est liée» (châtelet 1962: 37-38).
514 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
121
«He thus reconstructs the past. What is lacking in his reconstructions, however, is
the contribution of the nineteenth century to the discipline of history, source criticism. No
matter how painstaking he considered his pursuit of truth, how reliable his evidence, or how
reasonable the conclusions he drew from it; no matter how much he understood that caution
was necessary in the face of poetic exaggeration, he must nonetheless accept both the poets
and oral tradition as his factual basis. He just did not have at his disposal the tools of source
criticism or the means of evaluating documents used by the contemporary professional his-
torian. uncertainty and doubt he might express, but without ancillary disciplines like archae-
ology, comparative literature, or linguistics his efforts to criticize his sources, or even his
opportunities to verify them, remain minimal» (Hunter 1982: 37-38).
122
«thus, in his own terms, he did not have a source he believed was the truth, that
is, an objective means of distinguishing truth from fabrication in the mythoi of the poets or
in other forms of oral tradition [...]. Perhaps, like Herodotus, he believed that the poets dis-
torted Greek history and fabricated many of the stories of gods, heroes, and men, but he felt
no compulsion to demonstrate how and why they did so. instead, he took for granted a length
of historical time that preceded the events of the epic cycle and differed from them because
it was a temps des homes rather than a temps des dieux. in addition, he accepted the pos-
sibility of human knowledge of that time, even though he possessed no superior source to
assist him in discovering the truth» (Hunter 1982: 102).
516 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
para factos míticos. assim, a guerra de troia não pode ter sido tão grande
como dizem os poetas porque, se fizermos a média entre os navios grandes e
os navios pequenos referidos na Ilíada, chegamos à conclusão que as tropas
não eram muito numerosas. e a expedição não pôde ser muito grande, mais por
falta de dinheiro do que por escassez de homens. outro exemplo é quando
tucídides diz que agamémnon reuniu os aliados contra troia graças ao poder
adquirido e não pela obrigação imposta aos pretendentes de Helena pelos jura-
mentos feitos a tíndaro (vide Hunter 1982: 107-115 – o capítulo intitulado
“rationalism, rationalization, and rationality”).
devemos ainda reiterar que tucídides não considerava o passado interes-
sante nem significativo em si mesmo; que este não é mais do que o prelúdio
do presente; que a única maneira de conhecer o passado é a partir do presente,
já que o passado conduz por simples progressão (não linear) ao presente123.
esta é uma outra diferença relativamente a Heródoto, para quem o passado
tinha valor próprio (momigliano 1992: 50). tucídides acreditava que o passado
é similar ao presente, não só porque é um tempo humano, mas porque os está-
dios do progresso civilizacional e os seus pontos altos bem como a forma como
este pode progredir e regredir seguem um padrão idêntico: «muitas outras coi-
sas mostrariam que o mundo grego antigo vivia de forma análoga ao mundo
bárbaro atual» – πολλὰ δ᾽ ἂν καὶ ἄλλα τις ἀποδείξειε τὸ παλαιὸν Ἑλληνικὸν
ὁμοιότροπα τῷ νῦν βαρβαρικῷ διαιτώμενον – (tucídides: i. 6. 6). com esta
teoria civilizacional em mente, tucídides crê-se livre para ir além da simples
seleção das informações que lhe parecem mais racionais ou além da simples
atribuição de motivos a indivíduos no passado. ele toma a liberdade de gerar
factos para os quais não possuía provas e que eram anacronismos derivados do
mundo presente: «in other words, thucydides interpreted his data in such a
way as to make it useful to the present and the future by isolating similarity
of process in the past, permanence amidst change» (Hunter 1982: 103).
o que encontramos, pois, em tucídides, segundo Hunter, não é só conje-
tura, é uma forma de imputação causal por analogia, a explicação de factos do
passado por paralelismo com os do presente, partindo do pressuposto que o
padrão se mantém. a analogia funciona como princípio racional de reconstrução
123
«au legetai (on dit que) des logographes et d’Hérodote, qui rapportent ce qui se dit,
thucydide oppose le phainetai (il apparaît, il devient visible que). mais cette lumière incer-
taine est toujours à produire à partir du présent, en mesurant les événements du passé à
l’aune des événements contemporains et en se fondant sur le repérage et le rassemblement
d’indices (semeia) convergents» (Hartog 2005: 77).
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 517
1.3. história e memória
124
«Both probability and analogy are used by the historians [Herodotus and thucy-
dides] in their rationalizations. in the case of thucydides, one can go even further. analogical
reasoning is at the heart of his evolutionist theory of civilization. For uniform development
and uniform stages of growth also imply similarities and parallels. thus such a theory also
affords the means to approach data, to rationalize, and to reconstruct events in the past by
using the analogy of the present. in a word, analogy serves as a kind of rational principle
in thucydides’ speculative reconstruction of the past» (Hunter 1982: 112-113).
125
«[...] l’autopsie n’est pas une donnée immédiate, il convient de la filtrer par toute
une procédure de critique des témoignages pour établir les faits avec autant d’exactitude qu’il
est possible» (Hartog 2005: 76).
518 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
por um dos lados ou devido à memória» (i. 22. 3). mas também dá testemunho
das fragilidades da memória noutros passos. o caso mais notório ocorre quando
Nícias, o chefe da expedição ateniense à sicília, quer avisar a cidade da sua
situação crítica e envia, como é normal, mensageiros. Porém, receando que eles
acabassem por ter alguma falha de memória ou que contassem não a realidade
mas o que a multidão queria ouvir, decide redigir uma carta (cf. tucídides: Vii.
8. 2). Neste contexto, vale a pena referir também o comentário do historiador
a propósito da forma como os atenienses adaptaram um oráculo de que se
recordavam à realidade da peste, lendo loimos (peste) onde o oráculo dizia –
de acordo com tucídides – limos (fome): «os homens usam a memória em
consonância com o que lhes acontece»: οἱ γὰρ ἄνθρωποι πρὸς ἃ ἔπασχον τὴν
μνήμην ἐποιοῦντο (tucídides: ii. 54. 3)126.
saber historicamente é ter um conhecimento claro e distinto, é também
ver claro (saphes skopein). mas ver não é garantia imediata de saber. É a akri-
beia que deve, na medida do possível, transformar o ver em saber ou em “ver
claro”, é ela que deve assegurar a conformidade da narrativa ao real, ou
melhor, fazer com que a narrativa diga as coisas na sua evidência. Por conse-
guinte, «a akribeia é o outro nome da verdade» (Hartog 2005: 95). a história
não se limita a ser memorial, mais do que isso é investigação da verdade127.
Não só o que o historiador viu, mas mesmo o que as testemunhas dizem ter
visto deve ser submetido a crítica cerrada. isto traz à liça a problemática que
já tivemos em mãos a propósito de La mémoire, l’histoire, l’oubli: a relação
entre o historiador e a testemunha e a história e a memória. Não vamos repetir
as extensas e convincentes reflexões de ricœur sobre a matéria. tentemos ape-
nas circunscrever esta problemática ao âmbito da História da Guerra do Pelo-
poneso e veremos emergir algumas das questões que mobilizaram a reflexão do
filósofo francês. Podemos começar por dizer que tucídides faz apelo implícito,
nas suas declarações metodológicas acima citadas, a uma das condições funda-
mentais que ricœur impunha a qualquer crítica de testemunhas: a possibilidade
de desconfiar. relembramos que a possibilidade de desconfiar abre um espaço
126
«thucydides, i suggest, repudiates the traditional function of memory along with the
poets, the logographers, and oral performance. thucydides’ veridicality rests on mental oper-
ations of another sort. the archaeology, a display of reasoning from evidence and probability,
rejects nor only the poets’ account but also their traditional authority, namely, memory»
(edmunds 1993, in rusten 2009: 111).
127
«et l’histoire «véritable» est non pas mémorial ou historia, mais zetèsis tès alè-
theias, recherche et quête de la vérité, c’est-à-dire aussi enquête, au sens judiciaire du mot»
(Hartog 2005: 95).
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 519
128
«Qui veut réfléchir sur le phénomène du témoignage ne peut en effet que partir de
la centralité présente d’auschwitz et donc, aussi ou d’abord, de la centralité de l’Holocauste
(pour lui donner son nom anglais) dans l’espace américain, où le phénomène peut être saisi,
520 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
No fundo, entre o que aconteceu e aquilo que se disse que aconteceu vai
uma grande distância. o uso de testemunhas implica, por conseguinte, que se
si j’ose dire, dans sa force et sa netteté» (Hartog 2005 : 239). Há uma infinidade de artigos
e livros sobre esta matéria. No entanto, quem quiser fazer uma reflexão séria sobre o teste-
munho não pode ignorar três livros aparecidos em finais dos anos 90: o do sociólogo renaud
dulong, Le témoin oculaire; o da historiadora annette Wieviorka, L’ère du témoin; e o do
filósofo Giorgio agamben, Ce qui reste d’ Auschwitz. sugerimos ainda a leitura do artigo de
maria inés mudrovcic: «el debate en torno a la representación de acontecimientos limite
del pasado reciente: alcances del testimonio como fuente», Diánoia 59, ii, novembro 2007,
127-150.
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 521
129
«[...] il faut refuser la confusion initiale entre fait historique et événement réel remé-
moré. Le fait n’est pas l’événement, lui-même rendu à la vie d’une conscience témoin, mais
le contenu d’un énoncé visant à la représenter. en ce sens, il faudrait toujours écrire: le fait
que ceci ou cela est arrivé. ainsi compris, le fait peut être dit construit par la procédure qui
le dégage d’une série de documents dont on peut dire en retour qu’ils l’établissent» (ricœur,
MHO, 227).
522 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
1.4. Semeion e tekmerion
130
«or l’expérience à transmettre est celle d’une inhumanité sans commune mesure
avec l’expérience de l’homme ordinaire. [...] Pour être reçu, un témoignage doit être appro-
prié, c’est-à-dire dépouillé autant que possible de l’étrangeté absolue qu’engendre l’horreur.
cette condition drastique n’est pas satisfaite dans le cas des témoignages de rescapés»
(ricœur, HMO, 223).
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 523
131
«L’idée de «trace» fondant le document en histoire trouve en quelque sorte un pré-
curseur dans le semeion, dans l’indice et dans le tekmérion, la marque de reconnaissance tels
que les conçoivent thucydide» (calame 2007: 4).
524 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
ele considerou fiável (i. 1. 1). a melhor prova (tekmerioi de malista) para o
surgimento tardio do nome “Helenos” é fornecida pela sua ausência nos poemas
homéricos (i. 3. 3). Na arqueologia, a imagem dos tempos antigos baseada em
provas (ton tekmerion) é oposta à imagem baseada em elementos fantasiosos (to
mythodes) fornecida por poetas e logógrafos (i. 21. 1 e i. 20.1). Para explicar
porque é que acredita que a acrópole e a zona sul de atenas foram em tempos
a cidade, tucídides diz: «e a prova disso (tekmerion de) é que há inúmeros
templos na encosta sul» (ii. 15. 4). No relato da peste, também usa a mesma
expressão para provar que os animais que normalmente se alimentam de carne
humana putrefacta a recusam desta vez, porque se o fizessem morriam. e a
prova (tekmerion de) é que as aves necrófagas desapareceram (ii. 1. 2).
e ainda, no discurso de Péricles, a prova (tekmerion de) de que os atenienses
conseguiam conciliar uma vida descontraída com o ardor guerreiro é que os
espartanos tiveram que juntar reforços para os atacar, não o conseguindo fazer
sem a ajuda de aliados (ii. 39. 2).
Partindo destes exemplos podemos dizer que o emprego que tucídides faz
do termo tekmerion não corresponde à definição aristotélica nem ao uso que
dele fizeram os precursores da filosofia aristotélica. o que o historiador faz é
inferir a causa do desaparecimento das aves ou do ardor bélico dos atenienses,
mas não descarta a hipótese doutras explicações alternativas ou complementa-
res. o termo não possui, pois, um sentido técnico em tucídides. e também não
é possível na sua obra fazer qualquer distinção entre semeion e tekmerion, pois
estes são usados indistintamente, como se pode comprovar na digressão pela
vida de Pausânias, no livro i. os éforos espartanos dizem não possuir nenhuma
prova (semeion) clara contra Pausânias, sem a qual se recusam a agir contra um
homem da realeza. apenas quatro parágrafos depois reiteram a vontade de não
agir contra o espartano sem provas claras, usando para “provas claras” a
expressão tekmeria (tucídides: i. 132).
Não obstante, há uma outra passagem onde o historiador grego parece dis-
tinguir os conceitos. dizer que micenas deve ter sido insignificante porque é
fisicamente pequena é usar, segundo tucídides, uma prova (semeion) inexata.
aqui o conceito semeion parece assumir aquele traço de falibilidade que aris-
tóteles mais tarde lhe reconhecerá, o que leva Hornblower (1987: 104) a con-
cluir que há passagens como a de micenas em que de facto a distinção entre
semeion e tekmerion é observada e outras como a de Pausânias onde essa dis-
tinção não é mantida.
Por sua vez, observa Hornblower, o termo martyrion (testemunho) é usado
para dizer o mesmo que tekmerion, podendo considerar-se o primeiro uma
variação do segundo. Já paradeigma é usado, por vezes, no contexto arqueo-
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 525
Não podemos fechar este capítulo sobre as provas em tucídides sem evo-
car as meditações de carlo Ginzburg acerca de «História, retórica e prova»
(1999), que têm na História de tucídides e na Retórica de aristóteles preciosos
aliados133. o historiador, autor do paradigma indiciário e impulsionador da
132
«dans cette combinaison souvent contradictoire de signes visuels présents et d’in-
dices verbaux transmis par la tradition (ho lógos), le travail d’observation (skopeîn) et d’éva-
luation (nomízein) de la part de celui qui rédige par écrit est essentiel. c’est de lui que
dépend la défiance (apistía) que suscita en général la vue en contraste avec la confiance (pis-
teúein) à accorder aux indications données par les vers épiques d’Homère» (calame 2007: 4).
133
«my focus on proof leads to a much greater emphasis on thucydides’ bold use of
archaeological or literary clues as evidence for a conjectural reconstruction of a distant past»
(Ginzburg 1999: 48). Na verdade, era inevitável que mais dia, menos dia Ginzburg acabasse
526 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
Para já, deixamos de parte esta nota que será alvo de atenta análise no
próximo capítulo. das reflexões de Ginzburg importa-nos reter os princípios
identificativos da historiografia que o historiador italiano extrai da Retórica
aristotélica e que colocam tucídides no grupo dos verdadeiros historiadores –
distintos daqueles que aristóteles desqualifica na Poética e que praticam uma
historia semelhante à de Heródoto. em primeiro lugar, a história humana pode
ser reconstruída com base em traços, pistas, semeia. em segundo, estas recons-
truções implicam uma série de conexões, simultaneamente naturais e necessárias
(tekmeria) que podem ser vistas como certas, até que alguém prove o contrário.
terceiro, fora desta esfera de conexões naturais, os historiadores lidam com o
provável ou verosímil (eikos), nunca lidam com certezas.
a expressão hos eikos é típica de tucídides, mas não é fácil perceber se
se refere ao natural ou ao verosímil. todavia, desde tucídides que os historia-
dores sempre procuraram preencher os vazios das suas fontes com provas natu-
rais ou necessárias, certas135. assim, é possível reunir dentro da mesma catego-
ria aqueles que na Grécia antiga usam provas e entimemas, como tucídides (o
arqueólogo), aristóteles (o antiquário), o juiz, o médico, o orador, mas já não
Heródoto136.
com base nestes indícios literários, Ginzburg conjetura sobre o provável
conhecimento que o aristóteles da Retórica tinha de tucídides arqueólogo.
in this reading of the Rhetoric, it seems likely that the archaeological (that is,
antiquarian) dimension of thucydides’ work might have found a sympathetic rea-
der in aristotle, whose general attitude toward history could be reconsidered in the
light of the references to an inferential knowledge of the past included in this
writing [Ginzburg 1999: 48].
135
«[...] from thucydides’ time until today historians have tacitly filled the gaps in
their evidence with what is (or what they regard as) natural, self-evident and therefore cer-
tain» (Ginzburg 1999: 47).
136
«the judicial orator who reconstructed an event of the past by scrutinizing clues
and witnesses was closer to thucydides the archaeologist (and to aristotle the antiquarian)
than to Herodotus, a historian who was not particularly concerned either with proofs or with
enthymemes» (Ginzburg 1999: 47).
528 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
137
«the fashionable reduction of history to rhetoric cannot be rejected by claiming that
the relationship between history and rhetoric has always been tenuous and marginal. in my
view, that reduction can and must be rejected by rediscovering the intellectual richness of the
tradition started by aristotle, particularly its central argument: that proofs, far from being
incompatible with rhetoric, are its fundamental core» (Ginzburg 1999: 50).
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 529
histórica a um nível muito próximo da lei epistémica, dá-nos licença para espe-
cular sobre um tipo de modelo explicativo misto que concilia o modelo regular
(generalidades) com um modelo de tipo teleológico (motivos pessoais). esta
combinação está em consonância com a conceção tucididiana de tempo e de
natureza humana, com o seu desejo de transcender o mundo sensível e instável
das opiniões e fixar a sua história no plano imutável que aristóteles reservará
para a ciência e para a poesia. a harmonizar estes dois tipos de explicação
(nomotética e idiográfica) num todo inteligível e coeso está a mise en intrigue
ou mimesis ii, no sentido ricœuriano do termo. É ela que confere ao texto a
followability ou a inteligibilidade que nos permite compreendê-lo à medida que
o vamos seguindo. isto significa que, mesmo que no extremo queiramos ver na
História de tucídides um conjunto rudimentar e necessariamente precoce de
leis e estruturas psicológicas e sociológicas, esta nunca deixa de ser narrativa.
o que faz dela narrativa são os mesmos fatores que ricœur explora na história
estrutural e de longa duração praticada por Braudel: a intriga, as personagens,
os acontecimentos. mas ainda que admitamos algumas similitudes, com base
nas reflexões de Virginia Hunter, não podemos deixar de notar que a distância
que separa tucídides de Braudel é tão extensa como a que vai de tucídides aos
historiadores da escola metódica. estamos sempre no plano das parecenças e
não da igualdade.
descontando o facto de a imputação causal em tucídides não obedecer
aos critérios metodológicos que se impõem atualmente aos historiadores profis-
sionais – tanto lhe falta exibir as provas documentais dos motivos alegados,
como ter acesso aos métodos quantitativos e estatísticos que lhe permitissem
generalizar com segurança ou às ciências sociais a quem pudesse pedir empres-
tadas as leis –, é possível encontrar em tucídides uma forma paralela do jogo
de compreensão/explicação que ricœur define como típico da ciência histórica,
baseado nas teorias da imputação causal singular de collingwood, max Weber,
raymond aron. mantendo, então, as reservas que se prendem com ferramentas
e técnicas acessíveis só aos historiadores do século XX, parece-nos totalmente
legítimo realizar este exercício intelectual que continua a aprofundar a História
de tucídides à luz da história moderna e que acentua ainda mais não só o cará-
ter incoativo e precursor da História da Guerra do Peloponeso como possíveis
semelhanças na consciência de tempo. de facto, subtraindo o vertiginoso
avanço tecnológico do mundo contemporâneo, após o abandono da visão pro-
gressista do devir e da história, o tempo não é mais, para os ocidentais, um
devir acumulativo, parecendo tender mais para um modelo quase cíclico e
quase estacionário. a própria concentração quer nas estruturas e ciclos, quer no
tempo presente e nas testemunhas são indícios fortes de que a forma como nós
530 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
138
«au lieu de lois formulées, l’œuvre de thucydide présente seulement des vraisem-
blances suggérées» (romilly 2005: 26).
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 531
139
«[...] ce à quoi tend l’histoire de thucydide, c’est [...] à présenter un système de
vraisemblances indiscutable, rigoureux et complet; c’est, si l’on veut, à faire coïncider intégra-
lement le récit des faits et l’analyse des vraisemblances. il n’y a pas de connaissance générale
indépendante du récit, ni passage de l’un à l’autre. Les deux se recouvrent; et thucydide
s’emploie seulement – mais avec tout l’art possible – à mettre cette connaissance bien en
lumière, en écartant tout ce qui gêne et en soulignant tout ce qui compte» (romilly 2005: 28).
532 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
140
«[...] the kinds of explanations employed by the ancient historian are quite different
from those employed by the modern. the latter takes, or at least should take, account of the
social and economic, as well as the political, military, or diplomatic conditions that intersect
at a certain juncture to produce an historical event or series of events. thucydides neither
described social and economic conditions nor understood social and economic causes»
(Hunter 1982: 142-143).
141
este tesouro era constituído pelas contribuições monetárias dos aliados que não for-
neciam barcos aquando da guerra contra os Persas. após 450 a. c., já em período de paz, ate-
nas continua a exigir destes aliados, que consigo formaram a Liga de delos, o pagamento do
tributo, dando origem à ameaça imperialista que terá desencadeado verdadeiramente a guerra.
534 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
142
«Le silence sur l’augmentation du tribut peut s’expliquer dans cette perspective.
thucydide répétera dix fois, s’il le faut, que le tribut, et les ressources qu’il apporte, sont la
clef de la puissance athénienne; mais il ne s’arrêtera pas aux chiffres ni aux variations qui
passionnent les historiens modernes, penchés sur les listes retrouvés dans les «a. t. L.», ou
Athenian Tribute Lists. il cherche ce qui durera. il cherche, comme il dit, «la cause la plus
vraie». il élague. il ne retient que les grandes lignes» (romilly 2005: 114).
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 535
cette unité qui, de proche en proche, relie les événements entre eux, n’est jamais
exprimée directement; et aucune interprétation ne semble s’ajouter à la stricte
mention des faits. mais le choix effectué par l’historien impose cette unité: les
faits qu’il retient sont tels qu’ils en portent témoignage. thucydide part du désor-
dre des faits bruts, ou plus exactement – puisqu’il est difficile de faire intervenir
une notion objective aussi suspecte – du désordre qui peut se manifester quand
parviennent à l’historien des relations diverses, toutes incomplètes, et établissant
des points de vue divers; sur ce désordre, on dirait qu’il pose une grille; cette
grille dissimule tout ce qui à ses yeux est adventice pour ne laisser transparaître
que des éléments liés entre eux par un rapport interne: à ce moment-là, comme
un message s’exprime par une série de lettres quand on cache celles qui ne comp-
tent pas, l’ensemble devient lisible, prend un sens [romilly 1956: 33].
143
esta rede estende-se também ao vocabulário, ao paralelismo entre expressões e ter-
mos. «desde os elementos vizinhos de uma narrativa simples até às articulações distantes de
uma narrativa complexa» pode dizer-se que a obra de tucídides está cheia de ecos, de asso-
ciações, de correspondências» (romilly 1956: 39). em cada página é possível encontrar uma
frase que sugere, pela forma ou pelo conteúdo, uma outra frase de uma outra página. as
similitudes verbais contribuem grandemente para a unidade da obra. tucídides talvez até nem
tivesse consciência desta similitude verbal de que fala romilly e foi preciso esperar pelas lei-
turas de L. Bodin e J. H. Finley para notarmos estas aproximações, correspondências e com-
binações curiosas. Não obstante, salienta a mesma autora, os Gregos eram muito subtis e
nada nos garante que este sistema verbal quase matemático, tal é a sua precisão, não fosse
fruto de um método deliberado e intencional para atingir determinado efeito. os ensinamentos
dos sofistas forneceram aos Gregos um conjunto de ferramentas de composição literária que
lhes permitia explorar simbolismos, efeitos sonoros e imagéticos.
144
como sempre, no que diz respeito à obra de tucídides, é possível encontrar um
ponto de vista oposto. Hornblower é de opinião que na obra de tucídides há muito material
repetitivo e fortuito: «[...] there is in thucydides much adventitious and repetitive material»
(1987: 34). Portanto, não se pode aceitar a análise de romilly de tucídides como um escritor
que ignora tudo o que é fortuito: «[...] it is better just to accept that the view of thucydides
as a writer who ‘ignores everything adventitious’ is simply wrong» (ibid.: 9-10).
536 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
en négliger aucun élément, il semble que son récit s’érige en démonstration. Les
conditions retenues par lui sont, par rapport au résultat, nécessaires et suffisantes.
on ne peut rien ôter, rien changer. et la cohérence même qu’affecte le récit – des
prémisses aux conclusions – prend un air de nécessité [romilly 1956: 48].
todos os aspetos dos factos narrados nas batalhas estão numa relação de
necessidade e causalidade com o todo, tudo deve ter um significado aos olhos
do leitor, tudo deve ser visto por ele como verdadeiro e necessário, tudo con-
corre para confirmar ou infirmar os cálculos elaborados pela inteligência; só
entra na narrativa aquilo a que a inteligência deu forma e ossatura. a batalha
perde todo o caráter acidental, o que de patético e particular possa haver está
ligado ao todo e com uma função específica: suscitar emoção, envolver o leitor,
despertar a sua atenção. tucídides emprega as mesmas estratégias da tragédia
grega. a batalha de siracusa ilustra bem o que acabámos de dizer.
538 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
2.2. Processo e causalidade
estes blocos temáticos que romilly deteta na prosa tucididiana são ana-
lisados, de forma refinada por Hunter como processos históricos. Processos
constituídos por uma série de generalizações de caráter psicológico em torno
das quais se organizam os factos de forma inteligível, selecionados não pelo
seu valor efetivo ou pelo impacto que tiveram no desenrolar da guerra mas
pelo valor semântico e demonstrativo do processo.
this process and Brasidas’ success he explained, in turn, by a series of genera-
lizations, which he employed to link events in a meaningful way. the key word,
of course, is process, for it implies an approach wherein the facts of the narrative
are not related in isolation for their own sake but are unified by a central pur-
pose» [1982: 161].
145
as muralhas «eram uma prova física de physis» (Nogueira 2000: 12).
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 539
relação de causa e efeito, tal como é entendida no mundo das ciências, mas usa
generalizações imutáveis acerca da natureza humana e do comportamento
humano, em ordem a ligar factos num processo inteligível. defendendo esta
perspetiva, Hunter está a ir ao encontro de collingwood e de cornford. col-
lingwood sustenta que as leis de ordem psicológica dominam as ações dos ato-
res da História da Guerra do Peloponeso, assim se justificando o epíteto de
história psicológica, e que os eventos não têm qualquer importância para tucí-
dides. este pode considerar-se aistórico, devido ao fascínio, que partilha com
Platão, pelas leis gerais, pelo imutável146. a crítica de collingwood é claramente
excessiva e em vários aspetos incorreta, nomeadamente na defesa de um tucí-
dides nomológico. as explicações usadas por tucídides, embora não possam ser
consideradas leis, são, maioritariamente, de ordem psicológica: móbeis da ação
são frequentemente o medo, a esperança, o desejo, o interesse ou a ambição.
cornford, por sua vez, rejeita que se possa falar de causalidade em tucí-
dides no mesmo sentido em que se falava de causalidade histórica no início do
século XX, quando a história importou de teorias como o evolucionismo e o
naturalismo a ideia de que todo o curso dos eventos humanos ou não-humanos
consiste numa enorme concatenação de causas e efeitos que se estendem para
trás e para a frente no tempo infinito147.
146
«Heródoto pode ser o pai da história. mas tucídides é o pai da história psicológica.
mas o que é a história psicológica? Não é, de modo algum, história, e sim uma ciência natu-
ral de tipo especial. Não relata os factos como um fim em si mesmo. o seu objetivo prin-
cipal é estabelecer leis – leis psicológicas. a lei psicológica não é um evento, nem sequer
um conjunto de eventos: é uma regra imutável que dirige as relações entre os eventos.
segundo julgo, todas as pessoas que conheçam ambos os autores estarão de acordo comigo,
ao afirmar que são os próprios eventos que interessam principalmente a Heródoto; e que, a
tucídides, interessam fundamentalmente as leis, segundo as quais eles se verificam. mas estas
leis são precisamente essas formas eternas e imutáveis que, de acordo com a principal ten-
dência do pensamento grego, são as únicas coisas cognoscíveis. tucídides não é sucessor de
Heródoto no pensamento histórico, mas o homem em quem o pensamento histórico de Heró-
doto foi encoberto e sufocado por motivos anti-históricos (collingwood 1989: 43).
147
discordando da expressão com que Gomperz classifica a causalidade na obra de
tucídides, “causalidade inexorável”, cornford contesta que se possa comparar a causalidade
tucididiana com a vigente no mundo das ciências naturais: «Human affairs have, for thucy-
dides, not even an analogy with processes of nature; much less are they identified with one
of the processes of nature; much less, again, is their course informed by inexorable causality»
[1971: 69]. acrescenta ainda que devemos acautelar-nos de pensar que tucídides procurou
entidades como “fatores políticos”, “relação de forças”, “a fundação natural de fenómenos
históricos”, “forças universais que animam o homem”. são categorias e conceitos e modos
540 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
148
Note-se que mugler considera uma originalidade de tucídides a capacidade de ini-
ciativa que este atribui aos líderes. os acontecimentos deixam de ocorrer por mando de uma
lei divina e passam a ser da responsabilidade de agentes humanos. citamos alguns passos:
«[...] le chef, au lieu d’être le mandataire de puissances anonymes telles que la destinée ou
la volonté des dieux, apparaît comme le commencement absolu d’une série d’actions. [...]
cette idée de placer la force motrice du devenir historique dans la personnalité du chef,
constituerait à elle seule une découverte très féconde et une des initiatives les plus auda-
cieuses de l’antiquité, même si thucydide y avait limité son analyse. [...] L’initiative de
thucydide était d’autant plus hardie que jamais avant lui on n’avait pris conscience, dans la
littérature, que la personnalité humaine pût être considérée comme le commencement possible
542 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
d’une série nouvelle d’actions» (1951: 29). «À cette conception épique, dont Hérodote a
conservé de nombreuses survivances, thucydide substitue une représentation de l’histoire où
la cause efficiente par excellence du devenir historique est l’homme et où des séries entières
d’événements prennent leur origine dans la décision d’un personnage» (ibid.: 31). isto não
significa, obviamente, que tucídides tenha da personalidade a mesma conceção que será
desenvolvida nos séculos XVii e XViii sob a influência do idealismo: «Les protagonistes de
l’histoire chez thucydide n’agissent donc pas librement dans le sens de Kant et de ses pré-
décesseurs, et la découverte du grand athénien n’est pas équivalent à celle du livre arbitre
par descartes et corneille. il faudra, pour que la pensée occidentale soit mûre pour cet élar-
gissement de la personnalité, la redécouverte de la philosophie idéaliste après vingt siècles de
destinées tourmentées. mais dans le cadre de l’antiquité grecque, dans la période présocra-
tique en particulier, la découverte de l’efficacité personnelle telle que la conçoit thucydide
n’en marque pas moins une des initiatives les plus hardies de l’esprit grec» (ibid. 35-36).
149
contudo, há que distinguir processo narrativo ou retórico de processo histórico, no
sentido em que a filosofia da história o empregará. catroga pode elucidar-nos quanto a esta
distinção fundamental: «se, com esta afirmação, se pretende sustentar que os Gregos não pos-
tulavam a existência de qualquer logos imanente aos eventos humanos, que se explicitasse
num finalismo sobredeterminado pela ideia de futuro, a tese é aceitável. todavia, convém fri-
sar que o uso da exemplaridade narrada pelos historiadores obedecia a propósitos de conven-
cimento, exigência que levava à inserção dos acontecimentos em totalidades finitas e sem a
existência de qualquer pretensa lógica autossuficiente a comandar a irreversibilidade do devir
universal, como será apanágio das futuras “filosofias da história”» (catroga 2006: 12-13).
150
«modern narrative is linear, that is, it begins at the beginning and proceeds consec-
utively to the end, relating events for their own sake, and explaining them by reconstructing
the circumstances, conditions, or causes that made them possible, and dating each with pre-
cision, not merely relative to one another, but in terms of an absolute time-scale, measured
in years, months, and days. in process, on the other hand, there are no details related in iso-
lation for their own sake or no causes provided to explain events per se. Nor is the narrative
linear, so much as cumulative, with threads of meaning stretching back into earlier passages,
which do not yield causes, but do reveal similarities and thus link one process to another»
(Hunter 1982: 163).
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 543
2.2.1. Tempo e acontecimento
151
«in the present too he saw and attempted to describe the same process, a civiliza-
tion at its peak, entering the stage of decline and moving on a downward path. in such
process, which repeats itself, and which has an implicit circularity, what import could dates
on a linear scale have? if he recorded events only within a process and provided abundant
narrative detail merely to show how the process began or what stage it had reached, dates
recording such embedded events, mere links in a chain, are meaningless. it does not really
matter what year or day an event occurred, but rather what is its relative place in the process
as a whole» (Hunter 1982: 168).
152
além do mais, a prova de que esta forma de operar era típica da época é que Heró-
doto segue o mesmo esquema, que se pode identificar com base em três características:
«First, their greatest concern is psychology or human behavior. For it is at the psychological
level that release occurs. at the same time, some kind of superhuman force or forces usually
play a role in this release. and finally, the process that is set in motion has an inherent
necessity: it is inevitable» (Hunter 1982: 232).
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 545
2.2.2. Processo e estrutura
uma vez que a nossa missão passa por confrontar e comparar a historio-
grafia arcaica e a moderna, e até fazer novas aproximações à arcaica à luz de
conceitos e ferramentas intelectuais da atualidade, é por demais conveniente
referir as várias analogias que assomam na análise de Hunter entre o paradigma
científico de Heródoto e tucídides (paradigma como forma de ver e organizar
conhecimento científico) e o de Braudel e da história económico-social de um
153
«in fact, whatever form of reflection one studies, whether critical method or expla-
nation, thucydides’ approach remains that of a historian writing in the fifth century B.c. this
is understandable, since he did not have at his disposal the techniques or concepts, nor did
he have the concerns, of a modern professional historian – the tools of source criticism and
means of evaluating documents, a concern for events or chronology per se, or even an under-
standing of causation derived from the sciences. in a word, his methodology throughout the
History, including his concepts and generalizations, is a uniform one, whether he recon-
structed contemporary events or events far in the past» (Hunter 1982: 175).
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 547
o que Hunter não diz é que para Braudel a história de tucídides seria
sempre uma história evenemencial, política, de líderes, de batalhas e de curta
duração. independentemente de terem ou não o mesmo valor que o paradigma
do século XiX lhes havia de reconhecer, independentemente de estarem depen-
dentes de processos e aglutinados em torno de proposições gerais, qualquer lei-
tor de tucídides não deixará de ver, em primeira instância, na sua obra, um
relato de acontecimentos (erga) e discursos (logoi)154. a ninguém que leia a
História da Guerra do Peloponeso e o Mediterrâneo e o mundo mediterrânico
na época de Filipe II, ocorrerá dizer que há similitudes. Narrativa, discursos,
descrição de batalhas, guerras civis, intrigas, peripécias, atos violentos, política
abundam em tucídides, escasseiam em Fernand Braudel. a História de tucídi-
des é uma história política e não há história política sem os seus três ídolos:
individualidades, acontecimentos breves e, claro está, política. Vale a pena reler
e reter as lúcidas lições de aron:
Quels que soient les compléments ou les rectifications que comporterait le récit de
thucydide, celui-ci ne changerait pas de caractère. Le sociologue, l’historien des
cultures, des classes, des prix, de l’industrie ou des idéologies, ne pourrait pas, s’il
s’intéresse à la grande guerre 1914-1918, éviter le récit avec l’intelligibilité des
actions par référence aux acteurs, l’intelligibilité des faits accomplis ou des grands
ensembles par confrontation aux intentions contradictoires des acteurs. L’histoire
des événements est irréductible à celle des sociétés, des classes et des économies.
elle était irréductible au Ve siècle avant notre ère, elle l’est toujours au XXe siècle
après Jésus-christ» [1961: 145-146].
154
«L’événement singulier demeure plus intéressant que les abstractions» (aron 1961:
152).
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 549
conquanto seja uma história de factos, estes estão, como bem notou
romilly e Hunter, enredados ao serviço das generalizações de caráter psicoló-
gico e sociológico que estruturam a narrativa. o que mais afasta, na índole, a
História de tucídides da história política como atualmente se pratica é esta
subserviência dos factos a princípios gerais. as sentenças gnómicas, o geral,
aquilo que dá continuidade e permanência à história e a tenta catapultar para
o mundo da episteme sobrepõe-se à res gestae, exatamente no campo da his-
toriografia onde os acontecimentos deveriam falar mais alto, deveriam valer por
si próprios.
155
Para um aprofundamento da relação poesis, mimesis e ficção na Poética de aristó-
teles, veja-se o interessante estudo de Bérenger Boulay (2005), «Histoire et narrativité. autour
des chapitres 9 et 23 de La Poétique d’aristote», in http://www.fabula.org/atelier.php?Histo-
ria_et_Poiesis.
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 551
156
«aristote ne se borne pas à constater que l’histoire est trop “épisodique” pour satis-
faire aux exigences de la Poétique (après tout, ce jugement est aisément révocable, dès l’œu-
vre de thucydide)» (ricœur, TR i, 288).
157
ricœur sugere que não é o material de referência que confere universalidade ou
verosimilhança ao mythos, mas sim a construção literária, isto é, a mise en intrigue. «Le pos-
sible, le général ne sont pas à chercher ailleurs que dans l’agencement des faits, puisque c’est
cet enchaînement qui doit être nécessaire ou vraisemblable» (TR i, 84). ou seja, é universal
aquilo que é total, que é coeso, que está unido por causas. a história, entendida por aris-
tóteles como uma crónica não pode apresentar este tipo de coesão e totalidade porque está
obrigada a narrar todos os acontecimentos ocorridos num determinado período de tempo.
como bem viu ricœur, para aristóteles, a universalização começa no estabelecimento de um
laço de causalidade entre acontecimentos, mesmo singulares (TR i, 85). os comentários de
Boulay reforçam e clarificam as ideias de aristóteles e ricœur. «L’agencement poétique est
par essence généralisant puisqu’il lie les parties par des lois (nécessaires ou probables) quant
la structure de l’historia n’est autre que celle du catalogue. aristote reproche à l’historia sa
fonction d’enregistrement, d’être rivée à la contingence phénoménale, de passer à côté des
causes nécessaires ou probables (vraisemblables) en faisant fi du souci de légalité causale
constitutif de ce que ricœur, dans sa lecture magistrale d’aristote, appelle «mise en intrigue».
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 553
La valeur philosophique de la poésie n’est pas relative au caractère imaginaire de ses objets,
par opposition à l’historia qui traite de «ce qui a eu lieu réellement» (chapitre 9, 51 a 36-
37), mais bien à leur légalité fondatrice de totalité, à leur configuration au sein d’une
intrigue. ceci peut éclairer la suite du chapitre 9 où aristote affirme (51 b 29-33) qu’ «à sup-
poser même qu’il [le poète] compose un poème sur des évènements réellement arrivés, il n’en
est pas moins poète, car rien n’empêche que certains événements réels ne soient de ceux qui
pourraient arriver dans l’ordre du vraisemblable et du possible, moyennant quoi il en est le
poète.
Les «universaux» de la poésie ne peuvent être jugés tels non pas parce qu’ils sont
inventés, encore moins parce qu’ils empruntent à des «mythes» (au sens de récits transmis
par la tradition et porteurs d’une signification universelle) mais relativement à leur enchaîne-
ment causal: c’est l’intrigue qui est universalisante; les objets de la poésie mimétique ne sont
pas généraux, sinon universaux, par eux-mêmes, par exemple parce qu’ils seraient imagi-
naires, mais parce qu’ils sont mis en intrigue. aristote n’exclut dès lors pas qu’on puisse
composer un poème en établissant des liens logiques (nécessaires et à défaut probables et
vraisemblables) entre des événements réellement arrivés» (2005: 7-8).
554 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
entre os vários episódios narrados por Heródoto podem não ser evidentes à pri-
meira vista; todavia, a sua obra é seguramente mais do que uma simples cró-
nica ou uma manta de retalhos158. No caso de tucídides, há ainda menos mar-
gem para dúvidas. É evidente que a sua obra, ainda que siga uma ordem
cronológica, se apresenta como um todo bem organizado, causalmente unificado
e pleno de generalizações que transcendem o particular e apontam para o uni-
versal159. o que nos leva à seguinte questão: os juízos que a Poética expõe
sobre a história permitem-nos concluir que aristóteles desconhecia ou conhecia
mal a obra de tucídides, a qual, como vimos, é rica em generalizações e refle-
xões político-filosóficas?
Já vimos anteriormente que carlo Ginzburg nos aconselha a procurar mais
do lado da Retórica do que do lado da Poética as apreciações de aristóteles
sobre historiografia: «this will be an effort to demonstrate that the work in
which aristotle dealt most extensively with historiography, or at least with
those essentials that are in a sense close to our own, is not the Poetics but the
Rhetoric» (1999: 38). o próprio historiador italiano, havemos concluído, crê
que as críticas de aristóteles na Poética não visavam tucídides mas apenas
Heródoto, pois há razões para considerar que tucídides corresponde ao modelo
de historiador gizado por aristóteles na Retórica, nomeadamente, no que ao uso
de entimemas e de raciocínio conjetural diz respeito. seguindo por outras vias,
Pippidi, autor de um dos mais conhecidos ensaios sobre esta matéria, também
defende que tucídides não era visado por aristóteles, que o consideraria não
um historiador, mas sim um filósofo de política.
158
indo contra a opinião de muitos comentadores – de aristóteles a roland Barthes –
Hartog, em Le miroir d’Hérodote, demonstra que as Histórias de Heródoto formam uma nar-
rativa coesa, que mesmo as várias digressões e episódios aparentemente anedóticos estão liga-
dos ao tema central das guerras médicas e contribuem para o avanço da narrativa (vide Har-
tog 1980: 11-30).
159
como relato acabado de um acontecimento histórico contemporâneo, a História da
Guerra do Peloponeso deve ser quase única, comenta Gomme (1954: 122), tal como a tra-
gédia de Ésquilo, Persai, é quase única no tratamento de um acontecimento contemporâneo,
sendo claramente filosófica, no sentido aristotélico do termo, e um bom exemplo para a teoria
exposta na Poética. ela é quase única, como história contemporânea, porque não é a com-
pilação de materiais documentais para uma história futura, mas é um produto acabado (ibid.:
122). Por isso, também para Gomme, o julgamento de aristóteles parece injusto para tucí-
dides.
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 555
160
sobre Aristóteles e a história veja-se raymond Weil 1960.
161
«Ἀπὸ γὰρ τῶν ὁμοίοων τὰ ὅμοια γίγνεσθαι πέφυκεν» (Retórica i. 4, 1360a 5).
556 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
162
«[...] we must admit that his disparagement of history is not entirely justified on his
own principles, at any rate in so far as it refers to the historian whom he is likely to have
had most in mind when describing history as “what alcibiades did or had done to him”:
namely, thucydides» (ste. croix 1992: 24).
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 557
amor pela história, facto paradoxal não só porque o próprio filósofo se consa-
grou amiúde à arte de clio, mas também porque este comentário da Poética
parece incompatível com a leitura da História de tucídides.
aristote n’aimerait alors vraiment ni ne comprendrait l’histoire. comment en effet,
dit-on, a-t-il pu s’exprimer ainsi, s’il a lu thucydide – et comment n’aurait-il pas
eu au moins quelque contact avec l’historien de la Guerre du Péloponnèse, s’il
s’intéresse à l’enregistrement des πράξεις? [ibid.: 165].
raymond Weil recusa a hipótese sugerida por Pippidi por não conseguir
explicar, por um lado, como é que aristóteles se pode ter consagrado a uma
disciplina que desprezava e, por outro, colocar tucídides em tão elevada con-
sideração e praticar uma história tão diferente da sua. Que tucídides nunca
emprega os termos “história” e “historiador” para caracterizar a sua atividade
parece ser uma convenção linguística da época, pois só a partir de Platão o
termo historia assume os valores de “pesquisa metódica” e “produto dessa
mesma pesquisa”. Logo, nada nos permite deduzir com segurança que a ausên-
cia dos termos tinha como intenção despromover a história à classe da crónica.
a distinção entre os termos ἱστορία – empregado por aristóteles na Poética –
e ξυγγραφή – utilizado por tucídides para se referir à sua obra – não é sufi-
cientemente clara e estável para que daí se possa inferir algum tipo de discri-
minação. se existe para o estagirita alguma diferença entre a história tucidi-
diana e as outras histórias, não é a distinção entre estes dois vocábulos que a
pode comprovar. ademais, nada há nos escritos aristotélicos que, inequivoca-
mente, conceda um lugar de eleição a tucídides. tudo nos leva a crer que para
o filósofo grego tucídides era um historiador como qualquer outro.
Para além disso, defende o mesmo autor, se aristóteles entende historia
como crónica de acontecimentos cronologicamente datáveis, então tucídides, ao
datar os acontecimentos por verões e invernos, é mais um cronista do que his-
toriador. mas em vez de procurarmos adivinhar em que categoria aristóteles
colocaria o historiador grego, talvez seja mais útil verificar se o conceito de
historia para o estagirita se reduz sempre a uma crónica – diz Weil. e, depois
de uma meticulosa análise filológica que visa validar uma edição do texto
558 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
a história é errado e injusto, e não está de acordo com os seus próprios prin-
cípios de pensamento.
the poet, according to aristotle, speaks of “what is possible according to proba-
bility or necessity”. But what the poet actually says is concerned with a particular
action: if we are to derive episteme from it, in aristotle’s sense, we have to take
the further step of recognizing the general (the universal or the necessary) in the
particular. is there any difference in what we make of the History of thucydides?
i believe not, once we are allowed to introduce the concept of to hos epi to polu
and take account of the fact that that is precisely what thucydides often offers us
[ste. croix 1992: 28-29].
163
Já antes de ricœur, châtelet falara abertamente da dimensão configurante da intriga
histórica, curiosamente motivado pelo texto tucididiano: «il suffit de remarquer que, nécessai-
rement, le discours sur la réalité historique doit s’ordonner autour de pôles qui, d’une part,
confèrent à l’expression une certaine unité et, d’autre part, permettent de subsumer la diver-
sité des événements sous des perspectives déterminées qui transforment la simple consécution
en connexion significative» (châtelet 1962: 217).
164
«como alguma história da historiografia clássica tem sublinhado, comummente, as
“investigações” selecionavam conjuntos limitados de factos, que se tinham sucedido no
tempo, para os explicar mediante uma ordenação que lhes dava forma, inserindo-os num todo
560 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
coerente. contra o caos, a narração construía uma totalidade, conquanto finita e fechada, mas
que, tal como na tragédia, era tecida por uma trama com um princípio, um centro e uma con-
clusão. assim, é explicável que os historiadores gregos (e romanos), mesmo os mais factua-
listas, não se tivessem preocupado muito com a descrição dos eventos tal qual eles aconte-
ceram; estes só ganhavam sentido desde que fizessem parte de um enredo. com isso, e ao
invés do que pensou aristóteles, o discurso historiográfico acabava por ultrapassar o particular
(as situações únicas e as ações individuais), pois a verdade do narrado não estaria tanto na
adequação dos enunciados à realidade, mas residiria, sobretudo, na sua correlação e corres-
pondência com um modelo de virtudes – pressuposto que muitos, como Plutarco, não deixa-
rão de explorar –, ou com uma teoria, principalmente com aquela que apontava para a exis-
tência de oscilações cíclicas nos negócios humanos (Políbio), ou a que acreditava na eterna
identidade da natureza humana (tucídides). deste modo, a narração, apesar do seu aparente
cariz doxográfico, veiculava um ideal de verdade que era sinónimo de construção de conjun-
tos harmoniosos, em consonância, aliás, com o que também se encontrava objetivado no ideal
epistémico e estético da Hélade» (catroga 2009: 62-63).
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 561
165
«there remains much in thucydides which is inexplicably repetitious and trivial
(i.e. not ‘historically important’ items, as we should say) and for which it is hard to find
explanations in terms of emotional effectiveness» (Hornblower 1987: 36).
166
«as well as providing detail, recorded in a spare and unemphatic way, thucydides
sometimes operates differently, taking certain ‘paradigmatic’ episodes or individuals and build-
ing them up because they are typical in some way of phenomena which he wants to illustrate.
[...] it has been said that there is not one thucydides but two: one is ‘the thucydides who
restricted Kleon to three appearances; the other is the historian who solemnly put down the
names and patronymics of endless obscure commanders and ship captains’: the thucydides
who treated demagogues and stasis so selectively was exploring general phenomena and
searching for ‘general ideas’» (Hornblower 1987: 41, 42).
562 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
[...] thucydides can select, abridge and build up themes in a way that aristotle
would call ‘poetic’ not ‘historical’. and this too is a departure from Herodotus, for
all that both are certainly ‘tragic’ historians. thucydides can achieve emotional
effects as well by the dry precision of the aristotelian ‘historian’ as by more
obviously poetic techniques [ibid.: 33].
isto não faz com que a História de tucídides não seja minimamente filo-
sófica e séria. Historia e poiesis são ambas filosóficas e sérias, pois ambas imi-
tam ações e palavras convertendo-as em mythoi. ste. croix relembra-nos, jus-
tamente, que aristóteles não desqualifica ou despromove completamente a
história, apenas a coloca num degrau mais abaixo: é menos filosófica e menos
digna que a poesia. Na verdade é preferível que assim seja, em nome da fron-
teira que separa história de ficção.
Historia e poiesis assemelham-se por ambas concatenarem num enredo os
eventos e as palavras que marcam a individualidade do homem, permitindo a
sua cristalização contra a corrupção temporal, garantindo a sua fama contra a
precariedade de tudo o que resulta da praxis, aproximando-se da eternidade das
coisas naturais. todavia, a falta de unidade de ação e de tempo, a menor con-
tenção, a maior extensão, a prevalência do discurso indireto e, acima de tudo,
a mimesis de um real prefigurado por testemunhas e indícios submetidos a pro-
cesso crítico impede de confundir a História da Guerra do Peloponeso com um
qualquer produto do género dramático. os dois géneros, historiográfico e poé-
tico, têm capacidade para formular juízos universais, mas a poesia, ao contrário
da história, não precisa de conformar os factos com a realidade narrada. além
do mais, os poetas trágicos lidam com matéria universal, os mitos, ao passo
que «a especificidade do novo discurso historiográfico terá residido na sua sen-
sibilidade perante a vida concreta dos indivíduos e dos povos, isto é, do par-
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 563
ticular em detrimento do geral» (catroga 2009: 62). e talvez também fosse isto
que aristóteles tinha em mente quando separou os dois géneros.
No fundo, o que o estagirita poderá ter querido dizer é que não podemos
pôr no mesmo plano uma figura mitológica e intemporal como Édipo e uma
figura histórica e irrepetível como alcibíades, ainda que o seu comportamento
social e político se possa vir a manifestar, de forma parecida, noutras figuras
históricas, ao longo da história da humanidade. então, talvez seja este confronto
entre história e mito que faça aristóteles dizer que a poiesis é mais elevada.
a história também é séria e elevada, mas não tanto como a poesia.
Para além do eventual confronto entre o mythos histórico e o mythos trá-
gico, o que parece estar aqui em causa, segundo moses Finley (1981) é um
confronto entre mito e história, confronto este que é explicável à luz do con-
texto cultural da época. a subalternização da história relativamente à poesia
lírica, trágica e épica (todos os géneros que punham em cena grandes aconte-
cimentos do passado) é explicável pelo pouco valor, quase desconsideração, que
os Gregos nutriam pela historiografia em oposição à grande consideração que
tinham pelo mito. o próprio aristóteles fundou um grande número de ciências
e, de uma maneira ou de outra, fez suas todas as outras, exceto a economia e
a história – a de tipo tucididiano ou narrativa, uma vez que, como bem sabe-
mos, ele próprio se dedicou intensamente a outro género de história que pode-
mos designar de “antiquária” (Ginzburg 1999) ou “crónica” (Weil 1960).
tirando os escassos comentários da Poética e da Retórica, aristóteles não faz
mais qualquer referência à história no vasto corpus textual que chegou até nós.
moses Finley (1981: 10) diz-nos que todos os filósofos gregos, até ao último
dos neoplatónicos, partilharam a mesma indiferença pela história. Pelo menos é
o que sugere o seu silêncio sobre o assunto. diz-se que teofrasto, discípulo de
aristóteles terá escrito uma obra com o título De historia e um outro peripa-
tético de nome Praxífanes, amigo do anterior, terá feito o mesmo, mas de um
e de outro nos chegaram apenas os títulos. a única obra antiga sobre a matéria
que chegou até nós vem da área da retórica, é um tratado de Luciano, com data
de 165 d. c., sobre a história, com o título de «como se deve escrever a his-
tória». Não vai além de uma sistematização de lugares-comuns sobre a escrita
da história, regras e máximas que faziam parte da educação retórica; daí, o seu
valor irrisório – a não ser o de nos confirmar que o cânone aristotélico pro-
posto na Poética ainda vigorava na altura. cinco séculos depois, era contra a
poesia que se continuava a medir a história. e isto porque – garante-nos moses
Finley – o desafio fundamental da universalidade e das grandes verdades sobre
a vida do ser humano só estava ao alcance do mito e o mito dominava o
564 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
167
«L’atmosphère dans laquelle les Pères de l’Histoire se sont mis au travail était satu-
rée par le mythe» (Finley 1981: 12).
168
«tous les ans, lors des grandes fêtes religieuses, les héros mythiques réapparais-
saient dans la tragédie et la lyrique chorale, et recréaient pour leurs auditoires la trame inin-
terrompue de la vie, en remontant par-delà les générations humaines jusqu’aux dieux; car les
héros du passé, et même bien des héros du présent, étaient d’ascendance divine. et tout cela
était sérieux et vrai, littéralement vrai» (Finley 1981: 13).
169
«Fondamentalement, c’étaient deux manières différentes de redire le passé qui riva-
lisaient l’une avec l’autre. car il ne faut pas s’y méprendre: tous acceptaient la tradition
épique comme fondée sur des faits réels, même thucydide. il nous le dit clairement aussitôt
après s’être présenté lui-même. La guerre du Péloponnèse, dit-il, mérite, plus qu’aucune des
guerres précédentes, d’être racontée, car «ce fut bien la plus grande crise qui émut la Grèce
et une fraction du monde barbare», plus grande même, précise-t-il, que la guerre de troie.
il argumente assez longuement sur ce point, et, parmi les personnages “historiques” qu’il
introduit dans ses pages d’ouverture, figurent Hellen, fils de deucalion (l’ancêtre éponyme
des Hellènes), minos, roi de crète, agamémnon et Pélops. Les détails demeurent incertains,
dit-il, tant pour le passé lointain que pour la période qui a précédé la guerre du Péloponnèse
– et c’est là une association très significative – mais les lignes générales sont claires et
dignes de foi» (Finley 1981: 14).
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 565
170
«Les maris et les femmes qui appartiennent à l’histoire vieillissent, mais le fait évi-
dent est que ni ulysse ni Pénélope n’ont le moins du monde changé; ils ne se sont modifiés
ni en bien ni en mal, pas plus qu’aucun autre personnage de l’épopée. des hommes et des
femmes de cette espèce ne peuvent faire des personnages historiques: ils sont trop simples,
trop enfermés en eux-mêmes, trop rigides et trop stables, trop détachés de leur arrière-plan.
ils sont intemporels comme le récit lui-même» (Finley 1981: 16).
171
«il le fit le plus facilement du monde, grâce à l’absence totale de l’élément tem-
porel. il n’avait pas à affronter de problèmes chronologiques, à synchroniser des dates, à tra-
cer ou à expliquer une évolution. La race des héros n’avait pas ce commencement dans l’his-
toire: Zeus la créait tout simplement. elle n’avait pas de fin non plus; pas de transition vers
l’étape suivante, contemporaine» (Finley 1981: 17).
566 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
3.1. Refiguração e leitura
ração das emoções de temor e compaixão dos leitores. Para convencer e sen-
sibilizar os seus leitores, tucídides não recorre a sentenças explícitas ou a jul-
gamentos morais diretos; para fazer os seus leitores reexperienciarem a guerra,
serem arrastados para o meio dela, sem desviarem o olhar dos episódios mais
desagradáveis ou reveladores, o historiador socorre-se de estratégias de compo-
sição desenvolvidas pelos antigos oradores, pelos retóricos e por Heródoto.
they are the familiar ones of author-based criticism – selection of episode and
detail, choice of word and phrase, careful determinations of when to draw close to
events and characters and depict them with fullness and vividness, and when to
draw away and leave them vague or impressionistic. selection, shaping, shading –
all have their place in a proper assessment of thucydides’ work [connor 1984: 16].
172
«La tendance à représenter les faits par la mise en scène de personnages en train
d’agir est la donnée même de la tragédie; or, la tragédie est bien pour les Grecs l’œuvre lit-
téraire par excellence» (romilly 1956: 89).
570 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
do autor. tal não nos deve suscitar compaixão, pois os leitores e os espetadores
Gregos estavam educados e bem treinados para este tipo de subtilezas:
mais ces différentes conditions aboutissent toujours à un art également complexe
et subtil, à une confiance également exigeante dans la perspicacité du lecteur. et
il faut bien en conclure que cette perspicacité existait, qu’il était naturel de comp-
ter avec elle et de ne pas tout dire, puisqu’elle était habituée à comprendre, même
sans que l’on eût tout dit [romilly 1956: 105].
Por conseguinte, connor tenta, a partir das pistas deixadas pelo próprio
texto de tucídides, fazer deduções acerca do público-alvo da História da
Guerra do Peloponeso. conclui, com base nos primeiros capítulos do livro i,
que o público a que se destinava a obra devia ser inteligente, bem-educado,
sofisticado, cosmopolita, rico, permitindo-lhe qualificar o texto de tucídides de
elitista, em linha com os textos dos sofistas, da medicina hipocrática e de
outros que surgiram durante este período apodado de “iluminismo grego”174.
173
Por exemplo, no relato da expedição a siracusa, lê-se bem nas entrelinhas a ideia
que tucídides pretende transmitir sem o dizer diretamente: a Gylipo pertence o mérito da
resistência e vitória dos siracusanos. «en fait, thucydide n’a rien dit de ce genre; il n’a pas
eu un mot, pas eu une remarque. mais Plutarque ne s’est pas trompé: le jugement porté par
l’historien se lit aussi clairement dans son récit que s’il l’y avait exprimé en son nom per-
sonnel; et l’objectivité de l’exposé lui confère même un caractère d’évidence encore plus
affirmé» (romilly 1956: 79).
174
«approaching the problem in this way we can speak at least in general terms about
the audience envisioned by the Histories. although the opening chapters, as we shall see, are
special revealing, the work throughout evokes a fiercely intellectual readership, one that is
intolerant of cliché and of all that is maudlin or old-fashioned. its readers, then and now,
must be exceptionally willing to struggle with a difficult style, to dispense with the story-
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 571
telling element, divine interventions and diverting excursuses, to contemplate a radical rein-
terpretation of the past, to rethink old certainties. they are expected to be tough-minded and
unsentimental in their approach to questions of conduct and value. if we cannot be sure of
the exact geographical distribution and economic status of this audience, we can as least rec-
ognize that the work avoids addressing a mass readership or one that is restricted to the
viewpoint of a single city. it leaves as little room for chauvinism as for sentimentality. Both
in antiquity and today the readership of the Histories has been cosmopolitan, sophisticated,
well-educated, and affluent. We can call this text “elitist” in a much stricter sense than we
can apply that term to the Homeric poems, Greek tragedy, or indeed to almost any archaic
or classical Greek poetry» (connor 1984: 13). a originalidade do trabalho de connor está,
justamente, em analisar a obra de tucídides concentrando-se não no autor mas nos leitores
a quem a obra se dirigia. «if we wish to speak more systematically about the complexity of
the work, we are forced to concentrate not on the author but on the work itself and on the
responses it evokes from its readership» (ibid.: 12). a pesquisa não é feita a partir de infor-
mações externas sobre a comunidade leitora visada pela História de tucídides, pois esse tipo
de informação é muito escasso, mas antes a partir das pistas fornecidas pelo próprio texto.
175
«the occasion for thucydides’ work is not momentary or specific but recurrent in
an undefined future (1.22.4); the subject is a twenty-seven-year war, and the audience not
limited to one city or to one time, nor even, as it turns out, to one culture. Nor is his goal
a vote, a verdict, a nod of approval or a burst of applause, but something much closer to
Henry James’ “enlargement of experience”» (connor 1984: 16).
572 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
if, for example, we study the account in the third book of the athenian decision
to spare mytilene (3.36-50), the absence of explicit evaluation will not be con-
fused with the avoidance of judgment or feeling. thucydides does not in his own
voice deplore the original athenian decision to execute the citizenry. But he
reports in great detail the reconsideration of the original decision when, on the fol-
lowing day, the athenians came to feel that their resolution had been “savage and
excessive” [1984: 17].
além do mais, não há nada que nos convença tanto e mexa tanto com as
nossas emoções como um relato pormenorizado, objetivo e imparcial de um
acontecimento dramático. É ainda connor que nos chama à atenção para o
facto de o poder retórico de uma narrativa, seja ela uma história do Peloponeso
ou uma peça jornalística sobre a guerra do Vietname, que prima pela objetivi-
dade, pelo apagamento e pela impessoalidade do narrador poder ter no leitor
um impacto superior ao de uma outra com forte carga retórica e denunciados
artifícios sensacionalistas176. a citação de meinecke (1970) que connor trans-
creve e da qual também nós nos apropriamos não podia ser mais eloquente
acerca do tipo de história que tucídides escreveu.
the presentation and exposition of culturally important facts is utterly impossible
without a lively sensitivity to the values they reveal. although the historian may,
in form, abstain from value judgments of his own, they are there between the
lines, and act as such upon the reader. the effect, then, as in ranke, for example,
is often more profound and moving than if the evaluation were to appear directly
in the guise of moralizing, and therefore it is even to be recommended as an arti-
fice. the historian’s implicit value judgment arouses the reader’s own evaluating
activity more strongly than one which is explicit [apud connor 1984: 8].
176
crane, justamente, compara o sensacionalismo de Heródoto e a contenção emocional
de tucídides, que consegue transmitir pathos de forma sóbria, sem cair nos excessos retóricos
que ele próprio condenou. «thucydides reacted directly and forcefully against such emotion-
alism. He banishes the marvelous from his narrative. the adjectives thaumasios and thaumas-
tos (which both mean “marvelous, amazing”) appear thirteen times in Herodotus, but only
once in thucydides. [...] Herodotus largely seeks to evoke, through the medium of language,
the experience of wonderment that so many of his characters experience, as they dash from
one part of the earth to another, gazing in fascination at the marvelous sights before them.
thucydides is, of course, not above playing to the emotions of his audience – many critics
have remarked upon the pathos he elicits in his description of the Plague, of stasis of cor-
cyra, of the athenian debacle at sicily, and other less famous passages. But thucydides
shows fastidious, stylistic restraint in eliciting these affects. He eschews open sensationalism,
and exploits minimalism to evoke strong emotions» (1996: 241).
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 573
3.2. “Ver-como” trágico
177
«L’étonnant est que cet entrelacement de la fiction à l’histoire n’affaiblit pas le pro-
jet de représentance de cette dernière, mais contribue à l’accomplir» (ricœur, TR iii, 337).
178
«F. m. cornford avait eu le mérite de signaler avec force les traits qu’apparentent
l’histoire de thucydide à la tragédie, et la distingue des autres; mais cela l’avait amené à
oublier que ce trait peut s’allier avec l’exactitude et le souci du vrai. Lamb, Finley, Gomme
ont été de ceux qui ont pris soin de le rappeler. Le premier est ainsi amené à parler d’une
histoire artistique pouvant transmettre la vérité de façon aussi sûre qu’une proposition d’eu-
clide; et, tout récemment, a. W. Gomme, après avoir parlé d’union entre la science et l’art,
pense qu’il s’agit, avec thucydide, non pas d’une union à proprement parler, mais de deux
aspects d’une même réalité» (romilly 1956: 86).
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 575
that tone of gloom is kept up for most of the two books; they end with the
solemn claim that sicily was the greatest ergon of the war, and that the athenian
defeat was total [...]. every conceivable tragic device is used to bring out the
depth of suffering and the magnitude of the reversal. in particular, the splendor
and arrogance of athenian resources and aims, at the beginning of Book vi, is
brought out by vague superlatives rather than by the precise enumeration of detail
which is thucydides’ more normal method. this is the method of grand tragedy
(oedipus is the ‘famous oedipus’, agamemnon is ‘king and conqueror’); the
athenian force in sicily, like oedipus and agamemnon, will be brought down in
the end, and the fall will be described in matching superlatives of suffering, in
language which specifically suggests the destruction of troy. thucydides draws
on the full range of emotional devices, including pathetic or tragic akribeia, and
a very euripidean portrayal of the effects of the battle on spectators. aeschylus’
Persai is verbally echoed at a couple of points. i have suggested elsewhere
that is because thucydides’ whole approach to the sicilian disaster is essentially
literary and tragic that he has exaggerated its atual importance for effect [1987:
148].
179
«Être témoin n’a jamais été ni une condition suffisante ni même une condition
nécessaire pour être historien. mais cela, thucydide déjà, nous l’avait appris. L’autopsie elle-
même devait passer par le filtre préalable de la critique. si l’on se déplace maintenant de
l’historien vers son récit, la question devient: comment raconter comme si je l’avais vu (pour
le faire voir au lecteur) ce que je n’ai pas vu et ne pouvais pas voir?» (Hartog 2005: 236).
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 577
e o histor180. Por muito que recuse engrandecer os feitos que narra com um tipo
de ficção ilegítima, to mythodes, o historiador ateniense não evita o recurso a
um outro tipo de ficção legítima, a retórica, para acentuar e engrandecer o pen-
dor trágico-pessimista que se reconhece na sua obra e fazem dela uma epopeia
negativa da guerra. tucídides mostra-se particularmente impressionado pelas
reviravoltas da guerra, pelo caráter dramático de um conflito que devia terminar
com a aniquilação de um dos adversários, mas que até ao fim reservará sur-
presas. impressiona-o a sucessão ininterrupta de acontecimentos violentos cau-
sados pelo antagonismo das duas potências em conflito, a destruição das cida-
des, a escravização das mulheres e das crianças e a execução dos homens, as
revoluções que sucedem os golpes de estado, a dispersão e o esboroamento das
famílias, os assassinos que passam por heróis e os imprudentes aventureiros que
são tidos por chefes audaciosos. a guerra provoca uma total inversão dos valo-
res conhecidos: as paixões vencem e o patriotismo que suscitou o combate não
resiste à loucura dos assassinatos e da violência. são muitos os passos que
poderíamos citar, tantas são as referências às crueldades e perversões da guerra,
mas em nenhum outro ponto da sua obra tucídides se detém tão longamente
nas censuras e na reprovação dos esquemas e consequências da guerra (neste
caso a guerra civil, stasis, na corcira) como em iii. 81-84. transcrevemos ape-
nas um curto excerto.
a maior parte dos suplicantes, todos os que não se tinham deixado convencer, ao
ver o sucedido, mataram-se uns aos outros, ali, no templo; alguns enforcaram-se
em árvores e outros suicidaram-se como puderam. durante os sete dias que per-
maneceu eurimedonte, desde a sua chegada com os sessenta navios, os corcireus
assassinaram quem lhes parecia ser seus inimigos, sob a acusação de quererem
derrubar a democracia, mas alguns morreram vítimas de ódios pessoais e outros,
que tinham contraído empréstimos de dinheiro, morreram às mãos daqueles a
quem deviam; houve todo o género de mortes e, tal como costuma acontecer em
tais circunstâncias, não se recuou diante de nada, pior ainda. o pai matava o seu
180
Numa nota de rodapé, onde discute as diferenças entre o aedo e o histor, ricœur
sustenta que Heródoto, ao eleger como tema principal das suas Histórias a preservação do
kleos (renome) dos Gregos e Bárbaros e tucídides a grandeza da guerra do Peloponeso, a
maior de todas as guerras, aproximam-se ambos do aedo que compõe epopeias. apenas as
epopeias dos historiadores são manifestos contra o esquecimento e contra o elogio, são epo-
peias da reprovação. «on ne saurait toutefois parler d’une franche et définitive coupure entre
l’aède et l’historien, ou, comme on dira plus loin, entre l’oralité et l’écriture. La lutte contre
l’oubli et la culture de l’éloge, face à la violence de l’histoire, sur fond de tragédie, mobi-
lisent toutes les énergies de la diction» (ricœur, MHO, 173, nota 5).
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 579
181
a mensagem fundamental da crítica de Péricles é a de que o poder ateniense não
é uma miragem linguística, é real. «athenian power is not a linguistic mirage. rather, thucy-
didean language provides us with a clearer picture of what actually happened. thucydides’
History is not an end in itself, but a lens through which we may more clearly study the
facts» (crane 1996: 210-211).
182
«[...] Gorgias was a somewhat older contemporary of thucydides, and his flashy
new rhetoric made a sensation when he visited athens on an embassy in 427. smooth, often
vapid, sentences characterize the surviving fragments of Gorgias’ prose. thucydides’ language,
twisted, defiantly idiosyncratic, and often nearly incomprehensible, at once imitated and
rejected Gorgias’ brilliant, but superficial, style. the Praise of Helen, Gorgias’ most famous
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 581
surviving work, is a classic epideictic composition: the orator defends an untenable position
(praise of the adulterous Helen) to demonstrate that “language” (logos) is more powerful than
“reality” (ergon). Gorgias, in fact, champions the very practice that thucydides condemns, for
it is thucydides who insists that language simply represents the erga, the real facts of the
case» (crane 1996: 218).
183
«[thucydides] develops a revolutionary new rhetoric of authority, one that rejects
the claims of poets and orators alike, while setting the stage for tremendously successful
boasts of later scientific discourse. Where previous authors had insisted upon the charm and
emotional power of their work, thucydides rejects the paradigm of language as enchantment,
constructing instead a self-denying rhetoric of austerity» (crane 1996: 215).
582 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
184
«Il faut louer le Roi partout, mais pour ainsi dire sans louange, par un récit de tout
ce qu’on lui a vu faire dire et penser…» (marin 1981: 59).
185
«N’est-ce pas le blâme extrême, sous la litote de l’inacceptable, qui a frappé d’in-
famie la “solution finale” et suscité plus haut nos réflexions “aux limites de la représenta-
tion”?» (ricœur, MHO, 358).
584 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
rica, de modo a gerar impacto emocional e visual na mente dos ouvintes ou lei-
tores. este processo é frequentemente mencionado nos antigos manuais de retó-
rica sob a designação de enargeia, sendo esta a alma da ekphrasis, e era
comum não só entre historiadores como entre poetas e oradores. É da epopeia
homérica que nos vêm os exemplos mais antigos. ora, no caso da historiogra-
fia, longe de minar a confiança do leitor, a enargeia contribuía para aumentar
a credibilidade do relato, na medida em que aproximava a observação indireta
do leitor da observação direta (autopsia) do historiador ou da testemunha. tucí-
dides, como veremos a seguir, era citado como o mais exímio cultor deste arti-
fício retórico.
com o advento da historiografia moderna, também dita científica, a enar-
geia, enquanto estratégia retórico-ficcional que tinha feito as delícias de suces-
sivas gerações de historiadores até ao século XiX, é categoricamente repudiada
como atentatória da objetividade e seriedade do trabalho do historiador. Nas
últimas décadas, porém, o conceito de enargeia tem aparecido, sobretudo, em
abordagens de teor literário e filológico186. Já o conceito de ekphrasis, pelo
facto de ser uma técnica extensiva a todos os géneros literários e não conotado,
especificamente, com a história, teve melhor sorte, nunca caiu em desuso.
sofreu, sim, uma mutação restritiva: deixou de ser uma descrição que colocava,
com vividez (enargeia) imagética, sob os olhos do espetador ou leitor o objeto,
qualquer que fosse, ou ação, e passou a significar, de forma limitada, uma des-
crição poética de uma obra de arte escultórica ou pictórica. ainda assim, ekph-
rasis é tema que tem despertado, nos últimos anos, uma atenção revigorada nos
estudos Literários e nos estudos clássicos187.
186
Zanker (1981): “enargeia in the ancient criticism of Poetry”; calame (1991):
“Quand dire c’est faire voir: l’évidence dans la rhétorique antique”; Walker (1993): “enargeia
and the spectator in Greek Historiography”; Kemman (1996): “evidentia”; Ginzburg (1989):
“montrer et citer: la verité de l’histoire”; Zangara (2007): Voir l’histoire. Théories anciennes
du récit historique, IIe siècle avant J.-C. – IIe siècle après J.-C.
187
o assunto tem sido alvo de múltiplas e amplas abordagens, sendo extremamente
difícil concentrar aqui uma lista bibliográfica substantiva. em todo o caso, pondo de parte a
área mais vasta dos estudos Literários, deixamos aqui nota de alguns dos mais significativos
trabalhos que têm vindo a lume na área dos estudos clássicos. em janeiro de 2007, a revista
Classical Philology dedica um número inteiro ao tema da ekphrasis, abrindo com o impor-
tante artigo de simon Goldhill, “What is ekphrasis for?”. o mesmo autor foi coeditor, com
robin osborne, em 1994, da obra Art and Text in Ancient Greek Culture, que consagra vários
artigos ao tema, sendo um deles o de Froma Zeitlin, ‘the artful eye: vision, ekphrasis and
spectacle in euripidean theatre’. em 2002, surge o trabalho de tim Whirthmarsh, ‘Written on
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 585
the body: ekphrasis, perception and deception in Heliodorus’ aethiopica’, inserido numa cole-
tânea de textos consagrados à relação entre o verbal e o visual: Jaś elsner (ed.), The Verbal
and the Visual: Cultures of Ekphrasis in Antiquity. todavia, a autora que, a nosso ver, mais
passos tem dado dentro deste campo é ruth Webb, que em 2009 publica Ekphrasis, imagi-
nation and persuasion in ancient rhetorical theory and practice, sendo que esta publicação
é antecedida de uma série significativa de trabalhos, publicados em revistas, compilações e
atas, em torno da mesma temática.
188
Prost (2006) é um dos que destaca a importância da visibilidade literária do texto
historiográfico, dizendo que o historiador deve procurar que o leitor consiga representar men-
talmente aquilo que diz. como? “Fazendo apelo à sua imaginação e não somente à sua
razão” (273).
189
rancière (1992: 25-54) oferece-nos um bom exemplo de como os historiadores con-
temporâneos não podem evitar apelar à imaginação do seu leitor. Basta lembrar o capítulo
que dedica à análise da morte do rei Filipe ii, narrada por Braudel no capítulo final do Medi-
terrâneo e o mundo mediterrânico…aí, constata rancière, Braudel pega no leitor pela mão,
fá-lo entrar no escritório do rei e fá-lo sentar-se na sua cadeira, para depois lhe mostrar por-
menores íntimos, como a escrita do monarca.
190
Já em finais do século XiX, charles seignobos chamava a atenção para a neces-
sidade de ultrapassar o caráter abstrato e por vezes vazio de sentido, para a maioria dos lei-
tores, dos conceitos empregues pelos historiadores. dizia ele que o que é preciso é dar vida
imagética ao texto, permitindo, antes de mais, que quem o leia consiga figurar mentalmente
os homens e os acontecimentos narrados, desde o seu aspeto exterior até ao seu universo
interior. a função primeira do historiador deveria consistir, antes de mais, em “fornecer repre-
sentações”; in ch. seignobos, «L’enseignement de l’histoire comme instrument d’éducation
politique», p. 117; apud Prost (1996: 274).
586 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
191
Na sua investigação, Zanker (1981), apesar de reconhecer a utilização indiscriminada
dos dois termos, conclui que o conceito de enargeia é anterior ao de ekphrasis e seus equi-
valentes (“descriptio”) e que um dos seus usos mais antigos se dá no campo da poesia:
“’Ενάργεια can therefore safely be said to have been current as technical term in the criticism
of poetry in the second century B.c. just as its use in historiography is attested for that cen-
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 587
os retóricos retiravam a maior parte dos exemplos que citavam para ilus-
trar ekphrasis e enargeia de poetas e historiadores. desses, Homero, Heródoto
e tucídides eram os mais nomeados. e, de facto, há uma associação clara entre
a hipotipose narrativa, outro sinónimo para ekphrasis, e a História de tucídi-
des. desde cedo, o historiador ateniense ganhou reputação de habilidoso recons-
tituinte de cenas; de notável explorador do poder figurativo e dramático da lin-
guagem, pela forma como confere relevo a determinadas ações ou personagens
que atraem e envolvem as emoções do leitor. desde cedo, os leitores reconhe-
ceram em tucídides uma dupla faceta: o historiador objetivo, distante e desa-
paixonado e o talentoso relator de cenas entusiásticas e emocionantes, que são
autênticos simulacros de presença. Nesta arte do realismo, não diverge do seu
congénere, Heródoto; ambos foram capazes de recriar memoráveis experiências
visuais que transportam o leitor, pela imaginação e pela emoção, para o teatro
dos acontecimentos. este facto chamou a atenção de muitos dos admiradores
de tucídides, e tornou-se praticamente um lugar-comum mencioná-lo como
um exemplar artífice de ilustração narrativa (a par de um compatriota tão
ilustre como Homero). disso mesmo nos dá testemunho Plutarco (Glor.
Athen. 347a-c.), ao comentar a descrição da batalha no porto de siracusa
(thuc. 7. 71):
tury in Polybius and agatharchides as we have seen; it thus seems to predate all the other
literary terms for “visual description”; specifically relevant to poetry, as well as being central
to all later literary and rhetorical theory on the subject” (307).
588 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
[...] o melhor historiador é aquele que através de emoções e das personagens com-
põe a sua história como uma pintura. tucídides esforça-se sempre na sua escrita
por alcançar esta vividez [ἐνάργειαν], ávido por fazer do leitor um espetador e por
gerar nos leitores as mesmas sensações de espanto e de consternação sentidas
pelos que assistiram aos acontecimentos. [...] há uma marca de pictórica vividez
[γραφικῆς ἐναργείας] na composição e na modelação dos acontecimentos.
192
a propósito desta relação entre leitor e espetador em tucídides, decorrente da téc-
nica de mise en abîme, veja-se a interessante reflexão de Walker (1993: 357-361).
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 589
historians the most vivid and exciting teller of a story – each phrase can be
like a camera shot” (1993: 403). outro especialista em tucídides, Hornblower,
também constata o talento do filho de oloros para “fazer ver” e, por conse-
guinte, envolver emocionalmente o leitor e conferir vividez e akribeia trágica
à sua obra. assim, alguns detalhes que parecem fortuitos explicam-se pelo seu
efeito emocional. a numeração, por exemplo, para além de ser uma resposta à
precisão (akribeia) que tucídides promete no livro i, cumpre uma função retó-
rica e trágica – a de facilitar a visualização e aumentar o pathos: “the precision
here makes it easier to visualise, and the enumeration adds pathos” (1987: 34).
Nas escolas gregas do império romano, os manuais de exercícios por
onde os alunos aprendiam os fundamentos da retórica, os Progymnasmata,
apontavam tucídides como um dos maiores cultores dessa técnica literária que
identificámos como ekphrasis e que era definida, nesses mesmos manuais,
como um discurso que põe de forma vívida, sob os olhos, determinado assunto.
os episódios de tucídides mais frequentemente citados eram a batalha noturna
(7.43.4), a fortificação de Plateias (3.21), a peste (2.49-54) e a construção da
máquina de guerra (2.75-78 e 4.100). No entanto, muitos outros passos podem
servir de exemplo. selecionámos alguns que julgamos particularmente ilustrati-
vos e significativos no desenrolar da intriga. o ataque de Plateias, porque
marca o início a sério do conflito armado entre as duas potências. a descrição
da peste, pela força trágica, emocional e imagética do discurso, mas também
pelo seu simbolismo no desenvolvimento e desenlace da História da Guerra do
Peloponeso. o episódio da corrida de barcos é um dos mais memoráveis da
intriga tucididiana, pelo que representa de peripécia, movimento, aventura,
empolgamento e dramatismo. os cercos de Plateias (2.75-78) e de siracusa são
dois exemplos magníficos de ekphrasis. dentre eles, optámos por traduzir algu-
mas linhas do cerco de siracusa, não só pelo que contém de vividez imagética
mas por ser o acontecimento que marca o início do desaire ateniense. Na
impossibilidade de transcrever na íntegra todos estes episódios, decidimos apre-
sentar alguns excertos mais representativos. as traduções são nossas.
o assalto de surpresa dos tebanos a Plateias, que marca o início formal
da guerra do Peloponeso, é narrado entre os capítulos 2 e 4 do livro 2. tucí-
dides conta com grande precisão de movimento, ação e realismo, como os
tebanos se fizeram infiltrar, de noite, dentro das muralhas da cidade, apa-
nhando todos os habitantes desprevenidos; como agiram com boa-fé e paci-
fismo, ao propor um tratado de paz em vez de passar logo à chacina da popu-
lação; como os Plateienses aproveitaram esse período de negociações para se
inteirarem do número de soldados invasores; como, ao perceberem a escassez
numérica dos seus adversários, se reuniram às escondidas e planearam um ata-
590 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
193
Parry desmonta os argumentos de cochrane, Finley, romilly e Gomme a favor da
descrição da peste como um exercício científico inspirado pela medicina hipocrática ou como
registo técnico de grande observação e precisão. afirma claramente que na descrição da peste
tucídides nem segue o modelo hipocrático nem usa linguagem técnica. «i hope enough has
been said to show that the vocabulary of the description of the Plague is not entirely, is not
even largely, technical. i should like to suggest a directly contrary conclusion, that thucy-
dides, like Plato, had something of an abhorrence, or an aristocratic disdain, for technical ter-
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 591
uma peça poética original de tucídides. a peste, tal como a guerra, é pathos,
é uma catástrofe alimentada por sofrimento e destruição. É o pior de todos os
desastres descritos por tucídides, por isso é relatada com uma linguagem poé-
tica de intensidade apocalíptica194. os termos que relatam a sua aparição na
cidade sugerem um ataque militar: são verbos como ἐπιπίπτειν, ἑσπίπτειν,
νικᾶν, ξυναιρεῖν. tucídides apresenta-nos a doença como uma invasora não
humana ou supra-humana, um inimigo demoníaco contra o qual nada pode a
força humana. a peste é também o mais violento desafio à tentativa de Péricles
para exercer qualquer espécie de controlo racional do processo histórico, uma
vez que ela ocorre logo após o seu discurso otimista acerca do futuro. assume,
assim, um papel metafórico e dramático, uma imagem concentrada da guerra,
significando em termos metonímicos a futura derrota dos atenienses e a própria
desordem e perversão moral da guerra: «strong verbal echoes confirm our
sense that the Plague is presented as a kind of concentrated image of the War
(Parry 1972: 56). a cena ocupa seis capítulos. transcrevemos aqui um excerto
que não dispensa a leitura integral do episódio.
o caráter desta epidemia é superior ao que se possa contar e, de um modo geral,
atacou cada um mais duramente do que consegue suportar a natureza humana. [...]
como não havia casas e eram obrigados a viver em cabanas sufocantes devido ao
calor, o flagelo atacava sem controlo: os cadáveres jaziam uns por cima dos
outros, os moribundos arrastavam-se pelas ruas e em direção a todas as fontes,
movidos pelo desejo de água. os lugares sagrados onde acampavam estavam
cheios de cadáveres que tinham morrido aí mesmo. extremamente pressionados
pelo mal, os homens, sem saber o que fazer, deixavam de ter respeito seja pelo
divino seja pelo humano. Foi assim que ficaram alterados todos os ritos fúnebres
antes observados: cada um enterrava como podia; e muitos prestaram-se a funerais
escandalosos, perante a falta do necessário, devido aos contínuos enterros já efe-
tuados antes; uns, depois de depositar o seu morto em piras alheias, antecipando-
-se aos que as haviam erguido, pegavam-lhe fogo, e outros, enquanto um corpo
era consumido, atiravam-lhe para cima o que eles transportavam e desapareciam
[ii. 50. 1, 52. 2-4].
minology, either of his own or of others’ making. the evidence for such a conclusion is that
thucydides succeeds in giving us so physically precise a description without using the quasi-
technical vocabulary which we in fact find in the early medical treatises» (Parry 1969: 170).
194
«it is in short the most sudden, most irrational, most incalculable, and most demo-
niac aspect of war in thucydides’ view of history» (Parry 1969: 176).
592 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
195
«the race of the two triremes is told with such vividness and involvement and the
attitudes of the participants themselves provide such a clear assessment of the situation that
the evaluation is inescapable. Here again “objectivity”, or the avoidance of explicit judgments,
is a technique rather than a goal. But now we can also see that part of the technique is to
draw the reader in, to awaken our critical and evaluative faculties, and to make the energy
of our own response contribute to the power of the text» (connor 1984: 17).
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 593
196
com o regresso do acontecimento, da história política e da história contemporânea,
o “ver” (opsis) e o “fazer ver” voltam a estar na ordem do dia, tal como o papel fundamental
da testemunha, com novas complexidades resultantes do protagonismo dos media. No que
concerne a este assunto, veja-se a dissertação de Hartog em Le miroir d’Hérodote, no capítulo
intitulado «L’œil et l’oreille (1980: 271-316): «mais l’événement ainsi exorcisé, fait “retour”
aujourd’hui, autre, produit par les mass media, et la question de l’histoire contemporaine se
trouve donc à nouveau posée. or “le retour de l’événement”, n’est-ce pas aussi le retour de
l’œil? [...] mais précisément, cet événement qui fait retour, est mis en scène, et en se donnant
à voir, il construit son propre champ de visibilité: “il n’est jamais sans reporter-spectateur ni
spectateur-reporter, il est vu se faisant, et ce ‘voyeurisme’ donne à l’actualité à la fois sa spé-
cificité par rapport à l’histoire et son parfum déjà historique”; donc l’autopsie si l’on veut,
594 segunda Parte – História e Ficção em tucídides
mais une autre autopsie: construite» (ibid.: 276-277). mais recentemente, calame, o filósofo
que reflete a partir do pensamento de ricœur, da pragmática linguística de Benveniste e da
historiografia de tucídides, faz eco das novas implicações e desafios que os mass media e
as testemunhas dos campos de extermínio trouxeram à história do presente: «À l’égard de ce
partage entre historie ancienne et histoire récente, la multiplication des médias a rendu la
situation de l’historiographie moderne particulièrement délicate. ainsi en va-t-il en particulier
des termes du débat sur les camps d’extermination et sur ses sinistres prémisses politiques.
[...] Le rôle qu’y jouent les témoins oculaires et, par images interposées, les témoignages
visuels est encore déterminant. L’intervention nouvelle de la photographie, de l’archive filmée
et de l’enregistrement du témoignage oral laisse supposer qu’il en sera ainsi au-delà de la dis-
parition des derniers rescapés d’un plan d’anéantissement qui fut conçu et appliqué de
manière d’autant plus cynique et systématique que sa réalisation a précisément bénéficié des
moyens techniques de l’ère industrielle. certains d’entre eux ont d’ailleurs permis, de manière
subséquente, d’en maintenir la mémoire visuelle et auriculaire» (2005: 30).
197
«What is imitated in ekphrasis and enargeia is not reality, but the perception of
reality. the word does not seek to represent, but to have an effect in the audience’s mind that
mimics the act of seeing (Webb 2009: 38).
198
«the effect of such mimesis could be ethical or pathetic, depending on whether it
involved representation of character or emotion» (Gray 1987: 473).
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 595
199
«Where Gorgias’ language is its own reality, and creates its own erga, thucydides
seeks to render language invisible, to make it a transparent lens directly onto the erga that
are its subject. it is easy now to dismiss thucydides’ fascination with objectivity as hopeless,
even disingenuous, but thucydides courageously championed a difficult, but essential, type of
writing» (crane 1996: 220).
200
«the study of ekphrasis and enargeia provides important information about ancient
habits of reading and deeply rooted attitudes towards texts, which are seen as inviting ima-
ginative and emotional involvement. these ancient modes of reading can be surprisingly dif-
ferent to our own: in the case of thucydides’ history, ancient readers saw not a dispassionate
and objective account of events but a window onto the violent and turbulent events of the
past. in these rhetorically oriented readings, the text opens up to the reader’s imagination: the
words on the page dissolve into images as they impact upon the mind» (Webb 2009: 195).
(Página deixada propositadamente em branco)
cONcLUSÃO
diferentes das que se colocou tucídides e os Gregos do seu tempo: que pode-
mos fazer com a linguagem, que andamos a fazer com a linguagem? afinal, o
que andam historiadores, jornalistas, homens do direito e políticos a fazer com
a linguagem? a retórica verbal tem sido usada para o bem e para o mal: para
justificar guerras, para obter poder, para cometer crimes, para manter tiranias,
para defender ideologias, para manipular o passado, para montar fraudes, para
vender jornais, para fazer comércio, para alimentar fantasias, para convencer
maiorias. em suma, para nos afastar da realidade, para criar um clima de sus-
peita, para instalar um ambiente de esquizofrenia.
a história enquanto arte, enquanto literatura, enquanto recreação mimética,
não pode escapar ao problema da retórica verbal ou da ficção. É Hayden White
e roland Barthes, entre outros, quem no-lo relembra. É ricœur e Ginzburg,
entre outros, quem nos relembra também que com as provas, os documentos e
a interpretação, enquanto atividade epistémica, em suma, com a crítica, a his-
tória e o direito podem sobreviver firmes na anarquia relativista; e ainda que
história e retórica não têm que se dar mal. Que história e retórica sempre anda-
ram de boas relações, demonstra-o uma análise da Retórica aristotélica e uma
leitura da arqueologia tucididiana. mas esta simbiose não significa uma sub-
missão ou dissolução da história na retórica ficcional. transpondo para a atua-
lidade, dissemos que as provas impedem a história de submergir completamente
no campo da retórica ficcional, ao passo que a retórica evita que a história seja
apenas um museu, uma crónica ou um glossário. as provas são o coração da
retórica, propõe Ginzburg, com base nas suas leituras de aristóteles e tucídi-
des201. ricœur e tucídides vão ainda mais longe. a retórica ficcional, em vez
de ser um empecilho, pode ser um precioso auxiliar para fazer ver ou exibir
acontecimentos que demandam justiça, reconhecimento, memória. tucídides
fá-lo recorrendo à ekphrasis e à enargeia, estratégias desenvolvidas pela retó-
rica. significa isto que, tal como ricœur, tucídides recusa deixar a história ren-
der-se à ficção, mas aproveita da ficção o que pode dar valor ético à história
e dignificar ainda mais o trabalho do historiador. Por diversas vezes, tucídides
insurge-se contra as manipulações dos hábeis manejadores de palavras, mas
quando toca a transmitir a violência e o horror da guerra, nada melhor do que
201
«the fashionable reduction of history to rhetoric cannot be rejected by claiming that
the relationship between history and rhetoric has always been tenuous and marginal. in my
view, that reduction can and must be rejected by rediscovering the intellectual richness of the
tradition started by aristotle, particularly its central argument: that proofs, far from being
incompatible with rhetoric, are its fundamental core» (Ginzburg 1999: 50).
coNcLusão 599
202
«c’est ainsi que les discours des historiens s’offrent désormais à nous comme des
représentations configurantes de l’espace et du temps par le moyen d’opérations de sélection,
de schématisation, de focalisation spatiale, de mise en séquence chronologique, de mise en
intrigue et de description modélisante, de logique causale et argumentative insérant l’événe-
ment dans une conjoncture multiforme, de rhétorique discursive enfin dans un “faire voir” qui
coïncide sans doute avec les images évoquées par la mémoire individuelle et collective»
(calame 2005: 37).
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2011 El legado de Tucídides en la cultura occidental – Discursos e historia,
CECH, Coimbra, in https://bdigital.sib.uc.pt/jspui/handle/123456789/61.
(Página deixada propositadamente em branco)
ÍNDICE ONOMÁSTICO
Rickert: 77
Ricœur (P.): 23-394, 399-401, 405, 406, 422, 434, 435, 446, 477, 480, 498, 499, 502,
503, 518, 519, 521, 529, 531, 534, 536, 545, 552, 559, 566, 567, 571, 577-579, 581,
583, 585, 588, 594, 598, 599
Robin (R.): 316
Romilly (J.): 403, 445, 446, 449, 451, 453, 454, 456, 463, 465, 479, 480-482, 498, 526,
530, 531, 533-538, 549, 560, 569, 570, 574, 590
Rusten (J.): 401, 435, 484, 487, 518
Ryle (G.): 108, 177
Saint-Hilaire (B.): 557
Salústio: 476
Sauge (A.): 436
Saussure (F.): 68, 359, 360, 391
Scholes (R.): 156
Schutz (A.): 244, 245, 247
Seignobos (C.): 51, 78, 89, 334, 434, 585
Shakespeare: 258
Simiand (F.): 48, 87, 89, 95
Simmel (G.): 77
Simónides (de Céos): 588
Soares (M.): 17, 219
Sócrates: 470, 471, 490, 597
Sófocles: 426, 525, 569
Sólon: 564
Spiegel: 365
Stahl (H.-P.): 487
Ste. Croix: 556, 558, 559, 562
Stendhal: 508
Stone (L.): 210, 311, 315
Stuart Mill (J.): 65
Swain (S.): 467
Tácito: 99, 452
Tackeray: 508
Teixeira (J.): 102, 219, 251, 270, 303
Temístocles: 510, 523
Teofrasto: 563
Thévenot (L.): 373
Thibaudet (A.): 490
Tiffeneau (D.): 28, 29, 36, 62, 79, 119, 125, 219
ÍNDICE ONOMÁSTICO 629
Ação: 27, 59, 64, 67, 70, 72, 74, 76, 82, 118, 181, 223, 287, 297, 382, 562, 569, 584,
587, 589, 590
Acontecimento: 30, 41, 44, 49, 57, 60-63, 68, 72, 73, 76-80, 94, 95, 99, 102, 105, 106,
111, 113, 114, 116, 117, 124, 126-128, 131, 134, 136, 139, 142, 144, 149-152, 157,
160, 164, 166, 167-174, 177-181, 186-188, 191-193, 199-206, 207-210, 212-214,
216, 230-233, 237, 238, 249, 263, 264, 267, 271, 273, 274, 276, 279, 283, 289,
304-306, 307, 327, 336, 337, 339, 350, 355-358, 366-368, 372, 374-378, 387, 399,
402, 406, 407, 411, 415-416, 426, 428, 429, 436, 439, 440, 442, 446, 447, 448, 454,
456-457, 458-460, 462, 464-466, 468, 470, 473, 478-480, 483, 486, 487, 491, 493,
507, 517, 520-522, 528, 530, 531, 534-541, 543-545, 547-549, 552, 553, 559, 560,
563, 572-574, 577, 578, 581, 582, 583, 585, 587, 589, 593-595, 598
Akribeia: 24, 411, 412, 440, 466, 467, 472, 482, 483, 489, 513, 518, 520, 589
Análise: 48, 49, 63, 67-70, 76, 89-92, 115, 120, 178, 184, 382, 400, 568
Analogia: 107, 161, 170, 175, 194-197, 205, 206, 212, 271, 275, 282, 284, 333, 393,
411, 415, 441, 445, 516, 546
Análogo: 41, 42, 182, 190, 262, 275, 280, 282, 283, 296, 302, 379, 436, 447, 516
Anamnesis: 314, 321, 427
Annales: 30, 46, 60, 62, 77-78, 84-89, 92, 93, 100, 101, 137, 165, 175, 176, 202, 203,
207, 311, 312, 326, 339, 344, 355, 384, 385, 401, 404, 546
Apate: 417, 419
Arqueologia: 86, 344, 412, 423, 503, 509, 514, 523-528
Arquivo: 55, 93, 240, 248, 249, 301, 314, 318, 319, 325, 329, 331, 346, 352, 369, 370,
503, 506, 509, 519, 546
Atenas: 439, 450, 452, 456, 463, 465, 469, 470, 478, 479, 491-496, 505, 524, 525, 531,
533, 543, 545
Atrekeia: 440
Autopsia (observação): 402, 437, 506, 508, 512, 517, 519
Calendário: 241-243, 251, 252, 259, 299, 300, 327, 369, 544, 546
Causa: 49, 61, 70, 71, 74, 105, 158, 169, 171, 180, 187, 191, 198, 209, 215-216, 250,
484, 537, 538, 540-542, 544, 559
632 ÍNDICE DE ASSUNTOS
Causalidade: 23, 49, 71, 87, 171, 187-191, 198, 212, 345, 532, 537, 540, 545, 547, 552
Ciência: 24, 27, 30, 31, 35, 38, 43, 55, 57, 65, 72, 73, 78, 82, 85, 103, 107, 171, 172,
175, 208, 209, 239, 355, 389, 391, 400, 406, 408, 412, 435, 443, 463, 477, 529
Compreensão: 24, 27, 35, 38, 42, 43, 47, 49, 53-55, 61-67, 68, 70-74, 76, 77, 81-84,
86, 91, 103, 115, 117, 120, 123, 128, 130-131, 135, 138-139, 142-145, 148-149,
152, 154, 160, 164, 169, 170, 172, 174, 175, 177, 178-181, 182, 184, 194, 199, 200,
214-216, 231, 246, 271, 279, 284, 294, 303, 314, 315, 317-319, 328, 334, 336,
337-340, 352, 354, 356, 362, 364, 394, 405, 448, 502, 520, 522, 529-532, 536,
538, 547
Concordância: 147, 152, 162, 163, 179, 180, 223, 231, 259, 356
Configuração: 40, 59, 123, 132, 141, 147, 149-151, 153, 162, 179, 184, 191, 199, 205,
213, 233, 285, 290, 296, 299, 318, 336, 345, 347, 353, 358, 360, 363, 367, 385,
388, 400, 405
Conjuntura: 87, 94, 97, 101, 102, 177, 200, 202, 350, 358, 377
Corinto: 450, 561
Crítica: 40, 44, 48, 51, 55, 60, 76, 77, 79, 81, 112-118, 141, 152, 155, 156, 172, 176,
177, 180, 225, 234, 236, 265, 332, 365, 367, 393, 401, 402, 405, 415, 432, 433,
539, 583, 586
Crónica: 60, 85, 156, 157, 176, 181, 215, 232, 243, 366, 479, 491, 528, 545, 552, 555,
557, 559
Cuidado: 47, 54, 55, 222, 228, 251, 262, 354, 394, 402, 466, 483, 513, 573
Dasein: 164, 221, 228
Dialética: 24, 27, 43, 47, 50, 59, 63, 64, 66, 67, 70, 72, 76, 81, 147, 152, 162, 175,
177, 179, 183, 203, 205, 214, 217, 218, 228, 275, 280, 283, 284, 287, 290, 291,
295, 296, 310, 326, 331, 333, 352, 369, 371, 379, 382, 387, 490, 532
Discordância: 147, 152, 168, 179, 180, 202, 223, 231, 256, 356
Discurso: 23, 24, 30, 31, 54, 57, 67, 68, 80, 129, 154, 196, 206, 207, 234, 279, 280,
316, 318, 319, 325, 328, 336, 337, 340, 341, 350, 352, 353, 359, 362, 364, 365,
367-371, 373, 378, 381, 382, 386, 403, 412, 415, 416, 432, 434, 435, 438, 441-443,
434, 452-454, 462, 466-475, 476, 479-481, 483, 492-494
Distentio animi: 220, 224
Dívida: 261, 275, 283, 284, 295, 302, 303, 310, 382
Documento: 41, 42, 48, 50, 52, 53-55, 78, 84, 86, 240, 248, 249, 261, 276, 279, 301,
304, 329, 331, 333-335, 338, 339, 346, 352, 370, 386, 402, 413, 479, 491, 510, 516,
521, 523, 546, 555
Doxa: 171, 417, 441, 455, 482, 520, 553, 599
Eikon: 235, 313, 320, 351, 379, 527
Ekphrasis: 582, 584-587, 589, 590, 593-598
Enargeia: 422, 522, 579, 582-587, 593, 595, 598
Entidade: 43, 62, 85, 194-197, 205, 207, 393
ÍNDICE DE ASSUNTOS 633
Histor: 23, 406, 435, 437, 504, 512, 576, 578, 583, 597
História das mentalidades: 341-343, 345, 377, 382
História económica: 88, 95, 101, 102, 176, 342
História estrutural: 101, 180, 193
História factual: 77, 80, 87, 89, 93, 95, 99, 102, 193, 306, 346, 355, 366
História política: 77, 88, 93, 98, 135, 176, 207, 311, 346, 355
Historicização: 239, 307, 308, 369
Historie: 136, 435, 436
History: 117, 132, 133, 134, 135, 355, 409
Ideia-tipo: 447, 455, 456, 465
Ilusão: 290, 442, 567, 577
Imagem: 218, 299, 304, 313, 319-322, 343, 351, 353, 368-372, 379, 386, 387, 399, 524,
577, 579-581, 586, 591, 594, 597
Imaginação: 31, 50, 51, 62, 193, 216, 263, 265, 289, 291, 302, 320, 337, 343, 364, 370,
371, 386, 387, 390, 393, 573, 582, 585, 587, 593, 597
Imortalidade: 426, 427, 429
Imputação causal: 175, 184, 186-195, 195-198, 201, 205, 209, 215, 299, 338, 516, 529
Indício: 358, 370, 400, 406, 412-414, 502, 511-513, 522, 523, 525-527, 529, 562
Intencionalidade: 239, 337, 369, 374, 375, 377, 386, 387, 582
Interpretação: 109, 110, 124, 246, 336, 366, 382, 401, 514, 568, 569
Intriga: 26, 37, 55, 69, 122, 130, 154-168, 172-174, 180-181, 187, 190, 194, 196, 199-
201, 205, 206, 208, 210-214, 224-226, 228-232, 234, 237, 279, 354-358, 363, 364,
366, 377, 385, 529, 536, 545, 551, 558, 559, 567, 573, 589, 594
Intropatia: 72, 215
Juiz: 114, 175, 188, 190, 234, 273, 314, 382, 449, 436, 512, 527
Julgamento: 141-144, 175, 181, 186, 189, 190, 321, 367, 382, 499, 513, 515, 568, 571
Katharsis: 230, 566, 567
Ktema es aiei: 23, 171, 444
Legibilidade: 235, 364, 371, 372, 374, 376, 386, 599, 582
Lei: 105, 112-116, 118, 132, 142, 143, 159, 164, 165, 168, 169-171, 177-181, 187-189,
191, 198, 405, 446, 449, 453, 459, 495, 529-531, 539, 555
Leitor: 159, 168, 176, 179, 183, 199, 218, 224, 228, 231, 233-237, 261, 263, 283, 285,
287, 288, 290, 291, 293, 294, 304, 308, 317, 318, 323, 331, 352, 354, 356, 368,
372, 374-377, 383, 388-392, 399, 412, 416, 418, 419, 422, 423, 432, 433, 440, 441,
449, 454, 455, 461, 462, 465, 466, 487, 490, 492, 495, 497, 501, 504, 505, 513,
514, 535, 537, 548, 566, 568-574, 576, 581-589, 592-597, 599
Leitura: 178, 182, 203, 207, 233, 234, 260, 274, 281,-287, 290, 294-308, 311, 317, 347,
375, 386, 392, 400, 454, 459, 511, 542, 545, 557, 560, 567, 569, 573, 588, 591, 595
Lexis: 370, 427, 582, 583, 588
Linguistic turn: 30, 42, 62, 123, 312, 363, 401, 434, 581, 599
ÍNDICE DE ASSUNTOS 635
Objetividade: 111, 176, 400, 406, 412, 415, 433-435, 443, 461, 465, 467, 468, 471, 476,
482, 486, 498, 501, 511, 575, 592
Objeto: 114, 180, 207, 208, 210, 273, 289, 392, 404, 405
Observação: 332
Odisseia: 489
Opsis: 507, 593
Outro: 248, 262, 270, 271, 274-275, 280, 282, 283, 296, 302, 379
Paradigma: 199, 231, 233, 238, 332, 363, 384, 401, 429, 434, 438, 478, 481, 513, 525,
546, 548, 551, 561
Paradigma indiciário: 332
Passado: 228, 246, 249, 250, 257, 260, 262, 263, 266, 267-271, 282, 283, 292, 293,
295, 298, 299, 301-303, 314, 317, 318, 321, 322, 325, 329, 353, 354, 360, 361, 376,
379, 382, 386-391, 392, 393, 403, 404, 414, 429, 430, 434, 435, 440, 441, 445, 489,
511-517, 522-526, 555, 556, 564, 565, 567, 571, 573, 576, 577, 581, 582, 595, 598
Pathos: 476, 484, 489, 501, 572, 589, 591, 599
Peloponeso: 399, 400, 408, 409, 411, 445, 448, 451, 456, 460, 462, 470, 485, 489, 492,
494, 497, 498, 548, 554, 556, 559, 562, 570, 572, 574, 575, 576, 578, 580, 583,
585, 589
Pentecontaeteia: 421, 478, 489
Peripécia: 224, 230, 231, 430, 548, 589
Personagem: 99, 181, 194-199, 203-205, 212, 254, 255, 257, 259, 283, 286, 289, 308,
356, 375, 377, 393, 454, 470, 481, 529, 546, 550, 569, 587, 588
Peste: 448, 449, 451, 476, 484, 491, 492, 505, 524, 589, 590
Phronimos: 504
Plateias: 475, 478, 492, 493, 581, 589
Poética: 23, 116, 154-155, 189, 205, 218, 224, 227, 231, 233, 237, 238, 285, 308, 477,
526, 528, 536, 550-552, 555, 557, 563, 566, 588, 599
Poiesis: 294, 405, 427, 428, 549-551, 562, 577
Política: 135, 555
Positivismo: 402, 434, 526, 599
Pós-modernismo: 316, 377, 365, 366, 526
Pragmática: 226, 323, 348, 385, 523, 551, 594
Prática social: 339, 347, 348
Praxis: 182, 184, 196, 224, 225, 227, 363, 427
Prefiguração: 156, 183, 277-279, 523, 546, 566, 597
Presente: 222, 223, 256, 263, 264, 270, 283, 292, 351, 379, 381, 382, 414, 445, 448,
483, 511, 512, 516, 519, 525, 555, 595
Processo: 107, 134, 140, 157, 198, 294, 295, 317, 323, 388, 403, 404, 407, 435, 473,
543, 576, 548
Progymnasmata: 587, 589
ÍNDICE DE ASSUNTOS 637
Tempo: 148, 151, 177, 184, 204-206, 207, 217-220, 223, 232, 233, 235-239, 326-237,
240, 242, 251-258, 299, 301, 335, 343, 351, 390, 399, 406, 407, 459, 492, 515, 516,
519, 523, 529, 537, 543-545, 547, 562
Tempo cosmológico: 152, 223, 236, 251, 253, 255, 282, 298, 326, 546
Tempo histórico: 102, 177, 199, 238-240, 244, 248, 251-256, 259, 270, 282, 298, 299,
301, 325, 328, 349, 545-547
Tempo humano: 204, 219, 223, 239, 297, 307, 310
Ter-sido: 80, 222, 228, 238, 256, 261, 274, 280, 299, 302, 308, 362, 379, 380, 382, 387,
582
Testemunha: 147, 283, 318, 329, 330, 335, 337, 364, 378, 399, 506, 517, 519, 520, 529,
562, 581, 584, 593, 597
Testemunho: 89, 90, 105, 201, 202, 261, 264, 325, 329-334, 337, 357, 364, 367, 375,
378, 399, 402, 406, 412, 418, 419, 442, 465, 483, 498, 502, 508, 511, 513, 519,
521-523, 526, 579
Texto: 128-130, 141, 183, 200-202, 206, 214, 225, 227, 233, 234, 237, 260, 283, 285-
288, 289-294, 296-298, 318, 333, 335, 351, 359, 369, 370, 374, 375, 393, 394, 401,
433, 434, 439-441, 451, 454, 466, 469, 487, 522, 534, 566, 567, 570-573, 581, 583,
588, 592, 593, 595, 597, 599
Tópica: 172-174, 176
Tournant critique: 311, 385
Traço: 90, 108, 123, 147, 150, 151, 179, 188, 195, 196, 206, 212, 282, 283, 290, 298,
301, 303, 307, 310, 323, 329, 331-335, 353, 355, 362, 371, 383, 482, 522, 527, 530,
546, 552, 553, 573, 574
Tradição: 196, 199, 233, 324, 511, 515
Tragédia: 158, 233, 236, 430, 447, 462, 469-471, 482, 484, 489, 497, 537, 559, 560,
566, 569, 574, 575
Tyche: 407, 417, 451, 457, 532, 536, 541, 542
Universalização: 552, 564, 567
Variação de escalas: 252, 336, 344, 347, 349, 352
Variações imaginativas: 296, 298, 310, 394
Ver-como: 281, 282, 298, 303, 566, 573, 575
Verdade: 146, 284, 380, 400, 401, 402, 406, 411-417, 419, 420, 422, 433-436, 440, 441,
454, 468, 471, 472, 479, 480, 482, 483, 496-498, 502-506, 515-519, 574, 580, 588,
598
Verificação: 55, 57
Verosímil: 173, 224, 308, 309, 386, 388, 416, 483, 527, 532, 536, 551, 552, 567, 582
Visibilidade: 259, 351, 352, 354, 364, 370-372, 376, 386, 387, 399, 579, 581-585
(Página deixada propositadamente em branco)
PRÉMIO
DOUTORA MARIA HELENA
DA ROCHA PEREIRA
2007
instituído pela
FUNDAÇÃO ENG. ANTÓNIO DE ALMEIDA