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MARTINHO TOMÉ MARTINS SOARES

História
e ficção
em Paul Ricoeur e Tucídides

Imprensa da Universidade de Coimbra


Coimbra University Press
(Página deixada propositadamente em branco)
HISTÓRIA E FICÇÃO
EM PAUL RICŒUR E TUCÍDIDES

PRÉMIO FUNDAÇÃO ENG. ANTÓNIO DE ALMEIDA


de homenagem à
DOUTORA MARIA HELENA DA ROCHA PEREIRA
(ano 2011)
instituído pela
FUNDAÇÃO ENG. ANTÓNIO DE ALMEIDA
na área de estudos clássicos na
FACULDADE DE LETRAS DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA
Título: HISTÓRIA E FICÇÃO EM PAUL RICŒUR E TUCÍDIDES

Autor: MARTINHO TOMÉ MARTINS SOARES

Edição original e ©: FUNDAÇÃO ENG. ANTÓNIO DE ALMEIDA


Rua Tenente Valadim, 325
4100-479 Porto – Portugal
Tel. 2260674218 – Fax 226004314
E-mail: fundacao@feaa.pt
Site: www.feaa.pt

Edição digital: IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA


Rua da Ilha, 1
3000-214 Coimbra – Portugal
Tel. 239 247 170
Email: imprensa@uc.pt
URL: http//www.uc.pt/imprensa_uc

Data da 1ª edição: Dezembro de 2013

Data da 1ª edição digital: Dezembro de 2016

Paginação da 1ª edição: José Soares Pinto

ISBN 978-972-8386-96-2

ISBN Digital 978-989-26-1296-6

Trabalho de Investigação financiado pelo POPH - QREN - Tipologia 4.1 - Formação Avançada,
comparticipada pelo Fundo Social Europeu e por fundos nacionais do MCTES.
MARTINHO TOMÉ MARTINS SOARES

HISTÓRIA E FICÇÃO
EM PAUL RICŒUR E TUCÍDIDES
(Página deixada propositadamente em branco)
«Confesso que procuro contar-me entre o número
dos que escrevem progredindo e que progridem escre-
vendo. Portanto, se afirmei, por imprudência ou igno-
rância, uma opinião que merece ser corrigida, não
apenas por outros que se possam aperceber dela, mas
por mim próprio, na medida em que progrido, isso
não há-de causar nem admiração nem pena. Antes é
preciso perdoar e alegrar-se, não porque houve erro,
mas porque houve correção».

(Agostinho de hiPonA, Epístola 143)


(Página deixada propositadamente em branco)
AGRADECIMENTOS

expresso a minha mais profunda gratidão a todos aqueles que suportaram


anímica e cientificamente esta investigação, e propiciaram a sua realização.
À minha esposa e às minhas filhas, aos meus pais, aos meus sogros e amigos
deixo o meu mais sincero e sentido muito obrigado. Revejo neles as âncoras
fundamentais, os garantes de estabilidade emocional: pela compreensão, pela
complacência, pela companhia fiel e auxílio pronto, ao longo dos altos e baixos
desta ora entusiasmante ora sofrida jornada. Às minhas orientadoras exprimo o
meu efetivo reconhecimento pelo apoio incondicional, pela motivação, pela con-
fiança, pelo competente acompanhamento científico.

expresso igualmente os meus mais sinceros agradecimentos à Fundação


eng. António de Almeida e à pessoa do seu Presidente, dr. Fernando Aguiar-
-Branco, pela edição e publicação desta obra.

A todos o meu muito bem-haja.


(Página deixada propositadamente em branco)
SUMÁRIO

PReFÁCio....................................................................................................................... 15

PReÂMBULo ................................................................................................................. 17

notA PReLiMinAR ..................................................................................................... 21

intRodUÇÃo geRAL – histÓRiA e histÓRiAs............................................. 23

PRIMEIRA PARTE – HISTÓRIA E FICÇÃO EM PAUL RICŒUR

CAPÍtULo i. soB o signo dA VeRdAde ........................................................ 35


1. objetividade e subjetividade em história............................................................ 45
2. interpretação e verdade.......................................................................................... 53

CAPÍtULo ii. eXPLiCAÇÃo histÓRiCA e CoMPReensÃo nARRAtiVA . 59


1. explicar e compreender: texto, ação e história.................................................. 63
2. história e narrativa ................................................................................................ 75
2.1. o eclipse da narrativa ................................................................................... 76
2.1.1. historiografia francesa: contra o acontecimento e a narrativa ...... 77
i) Raymon Aron: a “dissolução do objeto”................................... 80
ii) h. i. Marrou e a compreensão do outro .................................. 81
iii) A escola dos Annales e a nova história ................................... 84
iv) Marc Bloch: testemunho e análise ............................................. 89
v) Fernand Braudel e a “longa duração” ....................................... 92
2.1.2. Modelo nomológico: contra a compreensão narrativa .................... 103
i) Carl hempel e as leis gerais em história ................................. 103
ii) Charles Frankel e a interpretação............................................... 109
2.1.3. Críticas e alternativas ao modelo nomológico................................. 112
i) William dray e a explicação fora da lei .................................. 112
ii) A explicação histórica de georg Wright ................................... 119
12 sUMÁRio

2.2. o ressurgimento da narrativa: as teses narrativistas.................................. 123


i) A. danto: as “frases narrativas” da história ............................ 124
ii) W. gallie: Story e history à luz do conceito de followability 129
iii) L. o. Mink: compreensão histórica como configuração ou
apreensão ....................................................................................... 141
iv) hayden White: explicação por composição da intriga ............ 153
v) Paul Veyne: a escrita da história ............................................... 164
2.3. explicação e compreensão: um balanço...................................................... 174
3. intencionalidade histórica: dialética explicação/compreensão............................. 182
3.1. imputação causal e imaginação: quasi-intriga ............................................ 184
3.2. As entidades da história: quasi-personagens ............................................... 194
3.3. tempo histórico e tempo narrativo: quasi-acontecimento ......................... 199
4. Repercussões das teses de Ricœur....................................................................... 207

CAPÍtULo iii. histÓRiA e FiCÇÃo: PoR UMA PoÉtiCA do teMPo...... 217


1. narrativa, a guardiã do tempo ............................................................................. 219
1.1. teoria geral da narrativa: mimesis, mythos e praxis ................................. 225
1.2. o tempo narrado pela história e pela ficção ............................................. 237
1.2.1. heterogeneidade: resposta às aporias do tempo.............................. 239
1.2.1.1. A poética do tempo histórico .............................................. 240
i) o tempo do calendário ................................................. 241
ii) A sequência das gerações ............................................. 244
iii) os arquivos, documentos e traços ............................... 248
1.2.1.2. tempo ficcional: as variações imaginativas ....................... 252
i) A neutralização do tempo histórico ............................. 252
ii) Variações imaginativas sobre a falha entre tempo
vivido e tempo cósmico............................................... 253
iii) Variações sobre as aporias internas da fenomenologia 256
iv) Variações imaginativas e “tipos-ideais” ....................... 259
1.2.2. Paralelismo: representância e leitura ................................................. 260
1.2.2.1. A realidade do passado histórico: a noção de represen-
tância........................................................................................ 260
i) sob o signo do Mesmo: imaginação histórica e
“reenactement” em Collingwood ............................... 263
ii) sob o signo do outro: dilthey (o outro), Veyne (a
diferença), de Certeau (o afastamento)....................... 270
iii) sob o signo do Análogo: h. White e a teoria dos
tropos ............................................................................... 274
1.2.2.2. Mundo do texto e mundo do leitor: leitura e refiguração 283
i) da poética à retórica..................................................... 285
ii) A retórica entre texto e leitor...................................... 287
sUMÁRio 13

iii) Fenomenologia e estética da leitura ............................ 288


A) Fenomenologia do ato individual de ler............... 289
B) hermenêutica da receção pública de uma obra ... 292
1.2.2.3. dialéticas da refiguração: afinidades com a representância. 295
1.2.3. entrecruzamento de história e ficção ............................................... 297
1.2.3.1. Ficcionalização da história: imaginação, metáfora, imagem. 299
1.2.3.2. historicização da ficção: tempo verbal e verosimilhança. 307
1.3. notas finais..................................................................................................... 310

CAPÍtULo iV. RePResentAÇÃo e FiCÇÃo ....................................................... 313


1. Representação mnemónica ..................................................................................... 319
1.1. o documento como prova científica............................................................ 325
2. Representação como objeto de compreensão/explicação: variação de escalas 338
3. Representação literária ........................................................................................... 352
3.1. Representação e narratividade....................................................................... 354
3.2. Representação e retórica: a questão do referente ...................................... 359
3.3. Representação e imagem: a dialética do ler e do ver.............................. 368
3.4. Representação como representância.............................................................. 374
4. A hermenêutica da condição histórica do homem ............................................. 381
5. história e Ficção: síntese e outras perspetivas (Pomian e Jauss) ................... 384

SEGUNDA PARTE – HISTÓRIA E FICÇÃO EM TUCÍDIDES

PReÂMBULo: A PeRenidAde dA histoRiogRAFiA CLÁssiCA................. 399

CAPÍtULo i. tUCÍdides, MestRe de VeRdAde............................................ 411


1. tucídides e heródoto............................................................................................. 419
2. Condições do surgimento da história: grandiosidade, imortalidade e política.. 424
3. Historie e syngrapho ............................................................................................. 431
4. Ktema es aei .......................................................................................................... 444
5. os discursos............................................................................................................ 462
6. tucídides cientista ou artista? entre objetividade e subjetividade ................... 476
6.1. o historiador íntegro e o artista intenso .................................................... 488

CAPÍtULo ii. PReFigURAÇÃo, ConFigURAÇÃo e ReFigURAÇÃo dA


HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO............................................................. 501
1. Prefiguração: testemunhos e documentos ............................................................ 501
1.1. supremacia da observação direta e das testemunhas oculares ................. 506
1.2. história do presente e história do passado: testemunhos e indícios....... 511
14 sUMÁRio

1.3. história e memória ........................................................................................ 517


1.4. Semeion e tekmerion...................................................................................... 522
2. Configuração narrativa e explicação .................................................................... 528
2.1. Unidade narrativa e causalidade................................................................... 532
2.2. Processo e causalidade .................................................................................. 538
2.2.1. tempo e acontecimento ...................................................................... 543
2.2.2. Processo e estrutura ............................................................................ 546
2.3. tucídides e Aristóteles, a propósito de história e poiesis ........................ 549
3. Refiguração e retórica: do “ver-como” ao “fazer ver” ..................................... 566
3.1. Refiguração e leitura...................................................................................... 566
3.2. “Ver-como” trágico......................................................................................... 573
3.3. “Fazer ver” o passado................................................................................... 576
3.3.1. A vividez do discurso de tucídides – enargeia e ekphrasis ........ 582

ConCLUsÃo.................................................................................................................. 597

BiBLiogRAFiA
Ricœur .......................................................................................................................... 601
tucídides....................................................................................................................... 611

ÍndiCe onoMÁstiCo................................................................................................ 621

ÍndiCe de AssUntos............................................................................................... 631


PREFÁCIO

este trabalho, marcado por um grande entusiasmo científico e uma inves-


tigação muito séria e rigorosa, sobre a novidade do conceito de narrativa his-
tórica de Paul Ricœur, tem como eixo central a relação entre narrativa histórica
e verdade de facto nas conceções históricas de tucídides e Ricœur. A grande
questão que alimenta todo este trabalho científico é a seguinte: sendo a poética
histórica uma mimese da ação humana, será que ela se reduz, contra as teses
do positivismo histórico, a mero artefacto literário? Qual o verdadeiro contri-
buto de Paul Ricœur para uma mediação entre as duas teses mais célebres
sobre o discurso histórico: ciência ideográfica ou nomotética?
se a grande tese de Ricœur é a de que a história é um discurso que visa
sempre, através de um método científico e crítico, a verdade dos factos, embora
não possa dispensar a imaginação, como compreender a relação entre história
e ficção em tucídides? são as categorias da mimese i, ii e iii de Ricœur que
Martinho soares aplica a tucídides, no sentido de com elas apreender, testar e
compreender a dimensão da prefiguração – valorizando a história e a memória,
o semeion e o tekmerion –; a da configuração narrativa, que implica uma refle-
xão sobre ação e tempo humano, condensado na narrativa – o que torna per-
tinente a aproximação tucídides/Aristóteles –; e, finalmente, a da refiguração,
pela qual ao leitor é feito ver o passado como um “tua res agitur”, quiçá, de
dimensões trágicas.
o autor chega, naturalmente, no seu discurso reflexivo e na sua investi-
gação à inevitável dimensão retórica da narrativa histórica – o que, de resto, a
aproxima da narrativa dramática. A sua reflexão e escrita partem de um traba-
lho sério de investigação, a que não faltou uma vasta pesquisa bibliográfica e
uma apurada leitura.
16 PReFÁCio

esta é uma obra de grande qualidade, que evidencia maturidade e origi-


nalidade na abordagem dos temas. Muito aproveitará, por conseguinte, a todos
aqueles que se interessam por teoria Literária, epistemologia da história, his-
toriografia Antiga e Poética e hermenêutica Filosófica.

Coimbra, 9 de julho de 2013

MARiA do CÉU FiALho


MARiA LUÍsA PoRtoCARReRo
PREÂMBULO

o interesse pelo pensamento de Ricœur surge como consequência dos


estudos de mestrado em Poética e Hermenêutica, onde foram preponderantes os
seminários conduzidos pela especialista em Paul Ricœur, Luísa Portocarrero.
Mais tarde, concedeu-me o privilégio de co-orientar as minhas teses de mes-
trado e de doutoramento. nesses mesmos estudos de mestrado, os seminários
de Poética Aristotélica, ministrados por Maria do Céu Fialho, consolidaram e
aumentaram o meu interesse por Aristóteles e pelos estudos filosófico-literários.
daqui resultou uma tese de mestrado onde se intercetava o pensamento de
Ricœur, de s.to Agostinho e de Aristóteles sobre o chão comum do tempo e da
narrativa1. A intercessão de tempo e narrativa desembocava no cruzamento de
história e ficção. história e ficção concorriam ambas, sob o modo de intriga,
para prefigurar, configurar e refigurar o tempo da praxis humana, na medida
em que ambas nos oferecem uma imagem narrativa do tempo que se subtrai ao
pensamento fenomenológico e constituem, desse modo, uma solução poética à
aporia do tempo. Aquando da investigação para a tese de mestrado, apercebi-
-me de um imenso território de reflexões, dispersas por várias obras e artigos
de Paul Ricœur, que confrontavam a história com a ciência e a narrativa, e que
tive de contornar por constrições de tempo e de pertinência temática. todavia,
a curiosidade e o interesse insinuaram-se, e ficaram aguardando, ansiosamente,
uma oportunidade. essa oportunidade surgiu com outra bolsa da FCt; desta
feita, para doutoramento.
o tema foi instantâneo: história e ficção. e o autor também: Paul Ricœur.
Conhecendo já um pouco do seu espírito de leitor dialético, atento e transver-
sal, que conduz a sua reflexão com um leque de livros aberto à sua frente,

1  
Martinho soares, Tempo, mythos e praxis: o diálogo entre Ricœur, Agostinho e Aris-
tóteles, Fundação eng. António de Almeida, Porto, 2013.
18 PReÂMBULo

sabia que, pela sua mão, eu seria levado a visitar tudo o que de essencial no
século XX se tivesse escrito acerca de história e ficção e história e ciência, e
este facto explica, em grande parte, a extensão desta tese, a qual pretende não
só dar voz a Ricœur, mas também a todas as vozes que ecoam em Ricœur e
que são essenciais para se compreender, com seriedade e abrangência, este
assunto. Assim, Ricœur acabou por ser um bom pretexto para uma compilação,
inédita em Portugal, de teorias (e pensadores), ora complementares ora antagó-
nicas, sobre história e ficção.
embora estivesse ciente de que o filósofo francês fornecia matéria sufi-
ciente para uma tese de doutoramento, a minha matriz classicista e a minha
índole comparatista reclamavam de insatisfação. em se tratando de história e
ficção, o nome que primeiro me veio à mente foi o de heródoto. A intervenção
feliz e oportuna de Maria do Céu Fialho, co-orientadora desta investigação
científica, jogou aqui um papel determinante, ao sugerir-me tucídides. Apesar
de ser um dos pensadores gregos mais estudados em todo o mundo, autor de
um dos maiores clássicos da literatura universal, constantemente revisitado por
historiadores, sociólogos, politólogos, tucídides é uma figura ainda pouco lida
e estudada em Portugal2. não obstante, ninguém como ele, na Antiguidade, pro-
blematizou de forma tão complexa e tão completa a dialética história e ficção
e suas variantes: retórica e verdade, ciência e arte, história e memória, subje-
tividade e objetividade, imparcialidade e interpretação, seleção e totalidade,
geral e particular.
são vários os motivos que nos estimulam a desenvolver um trabalho em
que os dois protagonistas são um historiador grego do século V a. C. e um dos
mais ecléticos e produtivos filósofos da nossa era. em primeiro lugar, notámos
uma semelhança excecional na forma como o filósofo francês teoriza e o his-
toriador ateniense aplica a ficção na história: os privilégios da imagem retórica,
decorrentes da representação literária, em Ricœur, e a vividez imagética, pathe-
tika, em tucídides, conseguida por meio da ekphrasis e da enargeia, têm como
finalidade fazer ver ou pôr sob os olhos dos leitores acontecimentos unicamente
únicos que, no entender de Ricœur, clamam por justiça e não podem de modo
algum ser esquecidos. em segundo lugar, ambos trabalham contra uma menta-

2
A primeira tradução para português – diretamente a partir do grego – da História da
Guerra do Peloponeso, é muito recente; data de dezembro de 2010, e é da responsabilidade
de Raul Miguel Rosado Fernandes e M. gabriela P. granwehr. em termos de estudos sobre
tucídides, até à data, o que existe em Portugal é uma tese de doutoramento defendida por
Adriana nogueira, em 2000: «A filosofia do Poder: Nomos e physis e a lei do mais forte em
tucídides».
PReÂMBULo 19

lidade relativista que ameaça fazer da história uma disciplina tão fantasiosa
como a ficção literária e procuram formas de conferir credibilidade científica ao
ofício do historiador. Assim, ambos foram, no seu tempo e cada um a seu
modo, baluartes da verdade contra tendências relativistas de reduzir todo o dis-
curso histórico à retórica ficcional; mas também os dois acabam por reconhecer
alguma razoabilidade às teorias que combatem e preservam delas o que pode
valorizar a dimensão ética do ofício do historiador. em terceiro lugar, temos
um elo de ligação e de problematização entre tucídides e Ricœur, que é Aris-
tóteles. Ricœur constrói a sua teoria narrativa, que abrange a história e a ficção,
alicerçada na Poética aristotélica; e a obra de tucídides ajusta-se ao modelo da
tríplice mimese aristotélico-ricœuriano; porém, paradoxalmente, Aristóteles
recusa colocar os historiadores ao mesmo nível dos poetas, com base no argu-
mento de que os primeiros imitam o particular e os segundos o universal. ora,
uma das características principais da obra de tucídides é o seu pendor gene-
ralista, universal, e o caráter, a todos os níveis, verosímil e trágico do seu
texto. esta questão evoca uma outra que é central em Ricœur e passível de se
reconstituir em tucídides: a dialética compreensão/explicação. Um outro pro-
blema que é nuclear em Ricœur e em tucídides é a crítica dos testemunhos e
das testemunhas, dos indícios, das provas, dos documentos, em suma, da
memória. A reflexão de Ricœur sobre a memória, o papel das testemunhas e os
limites da representação inscrevem-se numa reflexão histórica suscitada por
uma guerra contemporânea. em tucídides, os mesmos tópicos emergem tam-
bém sob a influência de uma guerra contemporânea, cujas principais fontes de
informação são as memórias dos sobreviventes. este tema traz ao debate o con-
ceito chave de mimesis e a teoria ricœuriana da representância, com a qual se
pode confrontar a História de tucídides. tucídides parece querer configurar o
texto com a guerra, como se um pudesse ser o espelho do outro, mas a expres-
são que utiliza para unir escrita e guerra (“escrever como aconteceu”) é aquela
na qual se inspirará Leopold Ranke e na qual se apoiará posteriormente Ricœur
para construir o conceito de representância. Por fim, tucídides é um precursor,
o pioneiro de uma disciplina que só amadurecerá enquanto ciência erudita a
partir do século XV com Lorenzo Valla e, sobretudo, do séc. XiX com a
escola Metódica. Até aí, o autor da História da Guerra do Peloponeso perma-
nece como figura ímpar da historiografia, não emulado pelos seus sucessores
e superando em vários pontos o seu antecessor, heródoto. A prova é que foi
adotado como figura tutelar pelos pais da história científica (mais pelo seu
ambicioso programa de trabalho do que propriamente pela sua concretização
prática). de facto, em tucídides reconhece-se uma atitude que é original e fun-
dadora, ainda que meramente incoativa: a instituição de uma epistemologia
20 PReÂMBULo

orientada por critérios de verdade, objetividade, imparcialidade; a valorização


das ações humanas (políticas e militares); a indagação semiótica ou indiciária
do passado a partir de traços arqueológicos, escritos e orais; a atitude crítica
para com as provas e a memória; a construção de uma narrativa histórica expli-
cativa e retroalinhada por ordem cronológica; a distinção entre história e ficção.
daqui nasce o primeiro exemplar de história contemporânea e político-militar;
o que na Antiguidade é o mais exímio conciliador de retórica e história, ciência
e arte, objetividade e subjetividade.
Vinte e cinco séculos depois encontramos as mesmas preocupações que
estão na raiz da historiografia nas amplas e profundas meditações que Ricœur
consagra à epistemologia da história em Histoire et vérité (1955), Temps et
récit i e iii (1983 e 1985), Du texte à l’action: Essais d’herméneutique ii
(1986), La mémoire, l’histoire, l’oubli, (2000). todavia, a reflexão de Paul
Ricœur tem como pano de fundo não a historiografia antiga (embora esta surja
esporadicamente) mas a historiografia moderna. esta implica outra noção de
história e de erudição, outras exigências ao nível das provas, das explicações,
dos conceitos, do questionário e até dos factos. Por conseguinte, este confronto
entre a epistemologia da história de Ricœur e a História da Guerra do Pelo-
poneso de tucídides é também uma oportunidade para avaliar o desempenho do
historiador ateniense, descobrindo-lhe as forças e as fraquezas e o seu lugar na
história da história.
NOTA PRELIMINAR

tendo usado para Ricœur um modelo de referência bibliográfica diferente


do utilizado para os restantes autores e obras, importa explicitá-lo. Por uma
questão de clareza e operacionalidade, nas citações retiradas das principais
obras de Ricœur, optámos por substituir a data de publicação pelas iniciais das
obras. Assim, em vez de termos (Ricœur 1983: 20) temos (Ricœur, TR i, 20).
Quando se trata de artigos ou ensaios do filósofo, seguimos a prática comum,
ou seja, referimos a data de publicação. Relativamente às restantes citações,
quando estas surgem entre « », a referência bibliográfica vem entre ( ); quando
aparece destacada do corpo do texto, a referência, porque aparece integrada na
própria citação, vem entre [ ]. Aparecem entre « » todas as citações em nota
de rodapé e aquelas que ocupam menos de três linhas. As que têm uma exten-
são superior são destacadas do corpo do texto. expomos, abaixo, a lista de
siglas utilizadas para referir as obras de Paul Ricœur mais frequentemente cita-
das por nós.

HV Histoire et Vérité, seuil, Paris, 1964 (2.ª ed., reimp. 2003).


TR i Temps et récit i: L’intrigue et le récit historique, seuil, Paris, 1983
(reimp. 2005).
TR ii Temps et récit ii: La configuration dans le récit de fiction, seuil,
Paris, 1984 (reimp. 2005).
TR iii Temps et Récit iii: Le temps raconté, seuil, Paris, 1985 (reimp. 2005).
MV La métaphore vive, Éd. du seuil, Paris, 1975 (reimp. 2002).
TA Du texte à l’action. Essais d’herméneutique ii, seuil, Paris, 1986.
RF Réflexion faite: autobiographie intellectuelle, esprit, Paris, 1995.
MHO La mémoire, l’histoire, l’oubli, seuil, Paris, 2000.
(Página deixada propositadamente em branco)
INTRODUÇÃO GERAL
História e Histórias

Ricœur não consagra nenhuma monografia, capítulo ou mesmo página


a tucídides, mas evoca-o em todas as suas obras e na maioria dos artigos de
reflexão histórica. na maior parte das vezes, nomeia-o em notas de rodapé e
por variados motivos: tendência generalizante do seu sistema explicativo, o
caráter verosímil (poético) dos discursos ou a função do histor na grécia
Antiga e a sua relação com o aedo3. em La mémoire, l’histoire, l’oubli, Ricœur
ensaia mesmo uma explicação para as famosas “lições para sempre da história”
(ktema es aei), colocando-as no lugar de “estados de coisas”. no entanto, não
há indícios inequívocos de que Ricœur tivesse um conhecimento direto ou fre-
quente da obra de tucídides. É muito provável que, em tempos, enquanto estu-

3
em Histoire et Vérité, Ricœur consagra uma nota a tucídides onde refere que o tipo
de causalidade praticada pelo historiador ateniense é próximo do da ciência física do seu
tempo, distanciando-se, nesse particular, de heródoto (HV: 29). o nome de tucídides surge
depois duas vezes em TR i e uma vez em TR ii. em TR i Ricœur declara, num parêntesis,
que a História de tucídides contradiz o dito aristotélico de que a história é demasiado epi-
sódica para as exigências da Poética (p. 288). na vez seguinte (p. 308), o nome do histo-
riador ateniense aparece atrelado a Paul Veyne, historiador e intelectual francês que cita
amiúde o nome de tucídides na sua obra Comment on écrit l’histoire. em TR ii, a evocação
faz-se a propósito do caráter permanente das ktema humanas narradas por tucídides (p. 273,
nota 1). em La mémoire, l’histoire, l’oubli, o nome de tucídides surge pelo menos quatro
vezes, nas páginas 29, 168, 173, 209: uma vez no âmbito das “ktema es aei”; outra em que
apoda tucídides “um mestre de verdade”; outra relacionada com a escrita e a finalidade que
tucídides outorgou à escrita da sua obra; e a última a propósito da distinção entre o histor
e o aedo. Para além disso, há ainda menções ao nome do historiador grego em vários artigos
que oportunamente serão citados e que, grosso modo, se referem a tucídides e heródoto
como os pais da história.
24 intRodUÇÃo geRAL

dante e apreciador dos clássicos, tivesse lido a História da Guerra do Pelopo-


neso e por isso possuísse uma ideia geral do texto. em todo o caso, ficamos
com a sensação de que Ricœur conhece as problemáticas inerentes ao texto de
tucídides por intermédio de abordagens de outros autores, nomeadamente,
Aron, hartog, dosse e, talvez, Châtelet – intelectuais que dedicam importantes
análises à obra do historiador ateniense e que Ricœur cita amiúde. Ainda assim,
pese o imenso hiato epistemológico e temporal, com tudo o que isso representa,
é possível ler a obra de tucídides seguindo algumas das coordenadas fun-
damentais da reflexão ricœuriana: a dialética entre história e ficção, ciência e
arte, compreensão e explicação, objetividade e subjetividade, imparcialidade e
retórica.
tucídides pratica uma disciplina que está a dar os primeiros passos como
prática na história do pensamento ocidental; um género ainda à procura do seu
lugar entre a “ciência” e a literatura (principalmente a retórica, com quem man-
tém uma relação ambígua). Por um lado, está ainda muito presa aos géneros
trágico e retórico, onde vai beber os discursos políticos, as técnicas de compo-
sição dramática, a força deíctica e ecfrástica, o efeito catártico e persuasivo; por
outro lado, manifesta um desejo veemente de se demarcar destes géneros fic-
cionais e das Histórias de heródoto: dos seus devaneios fantasiosos – próprios
para discurso oral, dos excessos de linguagem e do descuro da verdade. A prosa
tucididiana é já uma crisálida a tentar evolar-se do casulo da tradição mítica e
ficcional urdida por poetas, oradores e logógrafos, a ganhar asas que a levem
pelos caminhos mais seguros da objetividade, do rigor, da imparcialidade e da
verdade, encontrando na escrita e no racionalismo grego uma poderosa rampa
de lançamento. o texto de tucídides caminha nesta tensão entre a episteme
grega e a mimesis literária; pretende dizer a verdade sob os constrangimentos
da exatidão (akribeia) e ao mesmo tempo moldar o seu texto de tal forma que
ele seja a própria guerra, a figura do horror. Mas a figura nunca é o objeto.
teria tucídides consciência desta clivagem? Mimesis, para Aristóteles e Ricœur,
como veremos, é recriação, reconstrução, representância e não cópia ou imita-
ção. Para tucídides, a mimesis tem como objetivo fazer ver a guerra tal como
aconteceu. Poderemos sempre especular sobre o sentido da conjunção ὡς (cópia
ou reconstrução?), tal como podemos perguntar o mesmo a Leopold Ranke –
o historiador positivista que adota a expressão tucididiana como uma espécie de
axioma para a história científica. Curiosamente, é sobre ela que Ricœur, à luz
do pensamento de dilthey, Collingwood, Marrou, Certeau, Veyne e hayden
White, constrói a sua teoria da representância. Mas será tucídides um digno
patrono da história científica? o passado não é estanque, a própria escrita do
passado não é monolítica ou unívoca, está em constante metamorfose e adapta-
intRodUÇÃo geRAL 25

-se às mais variadas incidências interpretativas. não é esse o valor maior dos
gregos, que nós os possamos interpretar constantemente à luz de novos presen-
tes? só assim se entendem leituras tão díspares como as de Cornford e Coch-
rane, que representam duas tendências antagónicas de posicionamento diante da
obra de tucídides. Mas pelo meio há toda uma panóplia matizada de análises
e interpretações que transformam a História da Guerra do Peloponeso numa
densa nuvem hermenêutica da qual é impossível sair pacificado.
não nos alongamos em apreciações relativamente a tucídides. na segunda
parte desta investigação, haverá oportunidade para aprofundar e desenvolver os
motivos que nos levam a reunir sob o mesmo teto Ricœur e tucídides. Cen-
tremo-nos, por agora, no filósofo francês, figura tutelar da primeira parte deste
estudo.

Paul Ricœur foi um dos filósofos que, nas últimas décadas, mais tempo
e páginas dispensou a refletir sobre a história, com o único intuito de lhe
encontrar um lugar condigno entre as ciências sociais. Por ela combateu contra
todas as ameaças que punham em perigo o seu estatuto científico, a sua vita-
lidade narrativa e a sua própria validade ética: o narrativismo e o estrutura-
lismo, o positivismo lógico, o negacionismo. de facto, a história ocupa um
lugar de destaque na economia do pensamento ricœuriano. Basta ver o número
de vezes que ela é convocada para a sua obra filosófica. Para além de um
amplo naipe de artigos e ensaios citados no decorrer deste estudo, há três obras
principais onde a problemática histórica é nuclear: Histoire et vérité (1955),
Temps et récit i e iii (1983 e 1985), La mémoire, l’histoire, l’oubli (2000).
numa entrevista divulgada na revista Esprit, em 1981, pouco antes da
publicação do primeiro volume de Temps et récit, Paul Ricœur justifica a sua
opção pela história com três razões de ordem essencial e várias de ordem
técnica4.
não é possível uma filosofia sem diálogo com as ciências humanas; ora,
a história ocupa um lugar fundamental no concerto das ciências humanas. não
há conhecimento de si que não se efetue através do desvio por sinais, símbolos
e obras culturais5; entre estas obras culturais encontram-se de forma permanente

4
«L’histoire comme récit et comme pratique. entretien avec Paul Ricœur», in Esprit,
n.º 54, 1981, pp. 155-165. Redação de P. Kemp e F. Marchetti.
5
esta ideia do mediato contra o imediato, do indireto contra o direto, do desvio pelos
símbolos da cultura, Ricœur vem defendendo desde a Simbólica do mal e repete em escritos
posteriores, contra a imanência textual defendida pelo estruturalismo: «Contrairement à la tra-
26 intRodUÇÃo geRAL

as histórias que contamos e que o historiador escreve. Por fim, é preciso pre-
servar a diversidade das formas de linguagem existentes – a Ricœur interessa,
sobretudo, o caráter narrativo do ato de contar histórias.
As razões de ordem técnica prendem-se com várias questões interligadas.
em primeiro lugar, o desejo de superar a subdivisão paradoxal do ato de narrar
entre história e ficção. não haverá um fator de convergência, de unidade? Para
Ricœur, a intriga é o elemento comum que une os dois géneros narrativos. em
segundo lugar, pareceu ao filósofo que este ato narrativo unificador tem uma
relação privilegiada com a experiência humana do tempo, porquanto esta não é
redutível ao tempo cronológico marcado pelos relógios6. daqui surge a bifurca-
ção entre tempo cronológico e tempo histórico; se o segundo é o meio através
do qual nós narramos, conclui-se o seguinte: «Le caractère narratif de l’expé-
rience du temps serait alors une sorte de test pour articuler philosophiquement
la structure du temps, ce qui a toujours constitué un des grands problèmes phi-
losophiques» (Ricœur 1981: 156). Contra a opacidade e mudez da experiência
temporal, o filósofo propõe a loquacidade da narrativa, que serve como uma
«espécie de janela aberta sobre o que é o tempo humano» (ibid.).
Finalmente, há ainda razões de uma terceira ordem, secundárias do ponto
de vista filosófico mas centrais do ponto de vista das suas convicções pessoais.
Ricœur recorda «o caráter essencialmente narrativo da fé bíblica, que, antes de
se exprimir em dogmas, em expressões abstratas sobre deus, se apoia em his-
tórias contadas: a história do Êxodo, a história da Crucificação e da Ressurrei-
ção, a história do Pentecostes, da igreja primitiva […]» (ibid.).
o ato narrativo possui, então, uma dimensão religiosa que poderá estar
relacionada com o potencial da narrativa para estruturar o tempo. Mas, antes
desta dimensão religiosa, existe uma dimensão ética na narrativa. nenhuma
existência pode viver sem história, nenhuma consciência humana é autotranspa-
rente ou autoposicional, porque toda a experiência está imbuída de temporali-
dade e ninguém se pode conhecer a si próprio sem ser por intermédio das nar-

dition du Cogito et à la prétention du sujet de se connaître lui-même par intuition immédiate,


il faut dire que nous ne nous comprenons que par le grand détour des signes d’humanité
déposés dans les œuvres de culture. Que saurions-nous de l’amour et de la haine, des sen-
timents éthiques et, en général, de tout ce que nous appelons le soi, si cela n’avait été porté
au langage et articulé par la littérature. Ce qui paraît ainsi le plus contraire à la subjectivité,
et que l’analyse structurale fait apparaître comme la texture même du texte, est le medium
même dans lequel nous pouvons nous comprendre» (Ricœur, TA, 116).
6
«est-ce que l’acte de raconter ne développe pas son propre temps, qui serait le temps
humain?» (Ricœur 1981: 156).
intRodUÇÃo geRAL 27

rativas que conta sobre si, o que leva a falar de uma função identitária pessoal
e comunitária da narrativa7.
talvez não seja possível identificar um tema com que se possa unificar a
ampla e heterogénea bibliografia ricœuriana sobre a temática histórica, que
conta com as três obras maiores já referidas e uma panóplia de artigos, comu-
nicações, entrevistas e ensaios dispersos por revistas, livros, enciclopédias e atas
de colóquios. no âmbito da reflexão epistemológica, os mais recorrentes são a
dialética explicação-compreensão, sob a qual se discute a relação da história
com a ciência e a narrativa, e daí com o tempo, a memória e a ficção. no
âmbito da hermenêutica, da ontologia e da filosofia da história, os escritos de
Paul Ricœur giram em torno do sentido da história, da consciência histórica e
da condição histórica do homem, da memória e do esquecimento. no entanto,
parece-nos que a preocupação maior do filósofo nesta matéria como, de um
modo geral, em toda a sua produção filosófica tem como cerne a compreensão
do homem no seu meio a partir da sua ação: o que é o homem, o que e de
que forma as “praxeis” culturais humanas (muito particularmente as mediadas
pela linguagem simbólica-metafórica-narrativa) nos podem revelar acerca do
agente e do paciente humano? em última análise, é sempre o mistério do
homem temporal, agente, falível e sofredor que Ricœur procura iluminar através
da análise semântica dos elos opacos que medeiam a nossa relação com o
mundo e connosco próprios8. neste processo interpretativo, as narrativas ocu-

7
«[…] notre propre existence est inséparable du récit que nous pouvons faire de nous-
mêmes: les histoires, vraies ou fausses d’ailleurs – peu importe! –, les fictions aussi bien que
les histoires exactes, disons vérifiables, on cette valeur de nous donner une identité. […] si
l’on applique cette idée au champ religieux, on peu dire qu’israël a constitué son identité en
racontant sa propre histoire. Certains auteurs ont même appelé la Bible l’autobiographie d’is-
raël. et, en ce sens, on peut dire qu’une tradition religieuse se caractérise d’abord par les his-
toires qu’elle raconte et, bien entendu aussi, par les interprétations symboliques ou autres
qu’elle greffe sur ces histoires. Mais le premier noyau est un noyau narratif» (Ricœur 1981:
156).
8
A opção de refletir o sujeito de forma indireta recusando a ideia husserliana de uma
consciência de si imediata – através do desvio pelas manifestações simbólico-culturais do pró-
prio sujeito orienta toda a sua atividade filosófica desde o início e define a sua originalidade
como pensador, mesmo relativamente a filósofos que ele admira e tem como mestres, como
é o caso de husserl. na sua autobiografia intelectual, Ricœur admite-o: «[…] déjà dans les
essais que j’ai consacrés à husserl à la suite de la traduction des Ideen I […], je prenais mes
distances à l’égard d’une conscience de soi immédiate, transparente à soi, directe, et plaidais
pour la nécessité du détour par les signes et les œuvres déployés dans le monde de la cul-
ture» (RF, 34). A hermenêutica como instrumento privilegiado desponta em Symbolique du
mal, segundo volume de Finitude et culpabilité (1960). no quadro de toda uma reflexão
28 intRodUÇÃo geRAL

pam um lugar cimeiro: a narrativa diz de forma indireta (poética), mas signi-
ficativa, o homem concreto e a realidade que o envolve9. Ricœur parte da cons-
tatação de que o homem vive enredado em histórias, procura conhecer-se e dar-
-se a conhecer através delas.
Compreende-se, pois, que a história – sendo, de um modo específico, uma
narrativa e, além do mais, uma narrativa que visa relatar factos verdadeiros,
comprováveis – ocupe um lugar central nesta economia. Que a história é uma
narrativa comprova-o a própria ambiguidade do termo que, na maior parte das
línguas europeias, significa, simultaneamente, o que realmente aconteceu no
passado (dimensão ontológica do termo) e o discurso que sobre isso se faz
(dimensão epistemológica do termo)10. Ricœur acredita que esta ambiguidade
semântica não acontece por acaso, contribuindo para reforçar a similitude entre
o ato de narrar a história e o estar na história, ou seja, entre fazer a história
e ser histórico11. Mas vai mais longe ao destacar o papel que história e ficção
desempenham na construção de narrativas que direta e indiretamente contri-
buem para desfazer a opacidade da experiência humana12. de facto, as histórias
e a história são fautoras de historicidade humana13. A polissemia da palavra his-

acerca da consciência do mal, Paul Ricœur formula o famoso adágio que o “símbolo dá que
pensar”. Aceitando a mediação dos símbolos e dos mitos e recusando terminantemente um
acesso imediato, direto ou apodítico ao Cogito, o autor propõe um conhecimento do ser
humano através dos signos depostos na sua memória e no seu imaginário pelas grandes cul-
turas (cf. Portocarrero 2005, 71-86: A via longa da hermenêutica).
9
Para Ricœur, a ficção é um meio privilegiado para redescrever a realidade. Aristóteles
cauciona esta teoria atribuindo à linguagem poética a virtude de fazer a mimesis da realidade.
A tragédia só imita a realidade recriando-a por meio de um mythos, de uma fábula que atinge
a sua essência mais profunda (cf. Ricœur, TA, 115).
10
«“geschichte”, “history”, “histoire”, avons-nous dit, signifie à la fois ce qui s’est
réellement produit et le récit que nous en faisons» (Ricœur 1980, in tiffeneau 1980: 58).
11
«[…] le terme histoire, dans la plupart des langues européennes, a l’ambiguïté intri-
gante de signifier à la fois “ce qui s’est réellement produit” et le récit de ces événements.
or cette ambiguïté semble recouvrir plus qu’une rencontre de hasard ou qu’une confusion
déplorable. nos langues, plus vraisemblablement, préservent […] une certaine appartenance
mutuelle entre l’acte de raconter (ou d’écrire) l’histoire et le fait d’être dans l’histoire, entre
faire l’histoire et être historique. en d’autres termes, la forme de vie dont le discours narratif
est une partie est notre condition historique elle-même (Ricœur 1980, in tiffeneau 1980: 50).
12
«[…] la prétention référentielle indirecte des récits de fiction et la prétention réfé-
rentielle directe des récits historiques (en tant qu’histoire «vraie», au sens épistémologique du
mot «vrai»)» (Ricœur 1980, in tiffeneau 1980: 58).
13
«Cette opacité logique peut expliquer que l’historicité de l’expérience humaine ne
puisse être portée au langage que comme narrativité, – et que cette narrativité elle-même ne
intRodUÇÃo geRAL 29

tória serve para recuperar o papel da narrativa na história, depois de um


período de eclipse, obrigando o historiador a interrogar-se sobre o seu ato de
escrita, sobre a proximidade deste com a ficção e ainda sobre a fronteira
que os separa14. É precisamente o que faz Ricœur e, como veremos adiante,
igualmente tucídides. Apesar de reconhecer essa polissemia do termo história,
que tanto pode significar história como histórias, o filósofo francês não pre-
tende fazer tábua rasa das diferenças que separam a história das narrativas fic-
cionais, nomeadamente, no que à pretensão à verdade diz respeito. É que a
imaginação não está confrontada com as mesmas exigências críticas e científi-
cas da história, sendo que esta se pauta pela realidade dos documentos e dos
arquivos.
Je n’ai aucunement l’intention de nier ou d’obscurcir les différences évidentes qui
séparent l’histoire de l’ensemble des récits de fiction quant à leur prétention res-
pective à la vérité. Pour un certain niveau d’analyse et d’argumentation, le concept
conventionnel de vérité, défini en termes de vérification et de falsification empi-
riques, est parfaitement valide. […] la vérification ou la falsification en histoire ne
met pas en jeu un concept de vérité différent de celui que la physique assume.
documents et archives sont les sources de vérification et de falsification pour l’in-
vestigation historique. Les récits de fiction, d’autre part, ignorent la charge de
fournir des preuves de cette sorte. […] il reste que l’imagination ignore le dur
labeur de se confronter à des documents et même de les établir en fonction des
questions qui leur sont posées. en ce sens l’imagination n’a pas de “faits” à traiter
[Ricœur 1980, in tiffeneau 1980: 51].

A suspeita de que a história não é totalmente verdadeira porque está enre-


dada na ficção nasceu com a própria história e acompanhou-a ao longo dos

requière pas moins que le jeu et l’intersection des deux grands modes narratifs. L’historicité
est dite, dans la mesure où nous racontons des histoires et écrivons l’histoire» (Ricœur 1980,
in tiffeneau 1980: 59).
«nous avons besoin du récit empirique et du récit de fiction pour porter au langage
notre situation historique» (Ricœur 1980, in tiffeneau 1980: 65).
14
«Après une longue éclipse du récit au cours de laquelle les historiens du XiXe et
du XXe siècle ont cru pouvoir fonder une physique sociale, croyant rompre à jamais avec
l’histoire-récit, les historiens aujourd’hui insistent au contraire sur le fait que la notion d’his-
toire revêt une valeur polysémique, désignant tout à la fois l’action narrée et la narration elle-
même, confondant tout ainsi l’action d’un narrateur, qui n’est pas forcément l’auteur, avec
l’objet du récit. L’historien est de nouveau invité à s’interroger sur son acte d’écriture, sur
la proximité de celui-ci avec l’écriture fictionnelle et en même temps sur la frontière qui dis-
tingue les deux domaines» (dosse 2000: 87).
30 intRodUÇÃo geRAL

séculos15. Contudo, foi a partir do séc. XiX, com o eclodir da chamada história
científica (epifenómeno do hegemónico e otimista modelo positivista), que a
questão se agudizou e ganhou novos contornos. Para a história exigiu-se o
mesmo tipo de método e resultados que as ciências físicas e biológicas almejam
(Montesquieu, Voltaire, Condorcet). A conclusão de que a lei e a causa posi-
tivista não estavam ao alcance da história não faz os historiadores arredarem pé
da senda das ciências, já não das naturais mas das sociais e humanas. enquanto
teóricos narrativistas e estruturalistas tentaram aproximar a narrativa da ciência
e contribuíram para reduzir a história a um artefato literário, sujeito ao relati-
vismo de todo o discurso ficcional, os historiadores franceses da movência dos
Annales e os teóricos do modelo nomológico tentam afastar a história da nar-
rativa e do acontecimento breve, aproximando-a da ciência. A história é con-
frontada com a alternativa de ser ciência idiográfica (compreensiva) ou ciência
nomotética (explicativa), narrativa de acontecimentos singulares ou conjunto de
proposições científicas que inscrevem factos sob leis gerais.
É neste cenário de real tensão que surgem as reflexões de Ricœur.
homem atento às questões do seu tempo, leitor assíduo das obras dos historia-
dores, contribui de forma determinante para uma reconciliação. A sua grande
vitória foi justamente a de ter conseguido conciliar dois termos aparentemente
contraditórios sem retirar credibilidade e autoridade explicativa à história. esta,
apesar de recorrer à ficção para cativar o público, para dar visibilidade aos fac-
tos narrados, em suma, para se dar a ler, continua a ter como alvo insubstituí-
vel a verdade. não uma verdade de teor positivista (em que haveria coincidên-
cia entre o real e o conhecimento histórico), mas a verdade visada através da
positividade do ter-sido e reconstruída sob o regime analógico da representân-
cia. só assim a história mantém a capacidade para dar conta, de forma cien-
tífica, de uma realidade exterior ao discurso, evitando cair no relativismo que
os teóricos do linguist turn alimentaram.
Atualmente, é relativamente pacífica entre historiadores e filósofos a com-
ponente ficcional da história em concomitância com a autonomia explicativa e
científica da mesma. Ricœur tem aí a sua quota-parte16. A história é uma ciên-

15
«histoire et fiction: vieux comme l’histoire même, le problème de leurs rapports
porte de nos jours une interrogation fondamentale pour l’avenir de la philosophie et de la
connaissance» (Pomian 1989: 115).
16
«Le tournant interprétatif adopté par les travaux actuels permet de ne pas se laisser
enfermer dans la fausse alternative entre une scientificité qui renverrait à un schéma mono-
causal organisateur et une dérive esthétisante. Le basculement est particulièrement spectacu-
laire dans la discipline historique qui a été nourrie tout au long des années soixante et
intRodUÇÃo geRAL 31

cia, ainda que não como as outras, e uma arte, ainda que diferente de todas as
outras (vide Le goff 1984: 158). esse facto é hoje assumido um pouco por
toda a parte17. A ficção, sabemo-lo, é do domínio da criação, da modelação, do
recurso à imaginação18; tem contacto com o mundo, mas não tem contrato com
a verdade nem está obrigada a prestar provas das suas declarações. A opinião
de Ricœur é de que a história, ainda que não possa dispensar a imaginação, a
interpretação e a retórica, é um discurso que, através de um método científico
e crítico, busca incessante e incansavelmente a verdade rigorosa dos factos que
narra, nisso ocupando um espaço distinto do da ficção. o historiador estabelece
implicitamente com o leitor um compromisso ético e profissional de verdade,
que implica julgar/explicar mediante a apresentação de provas. e, por conse-
guinte, a sua tarefa aproxima-se da do juiz19.

soixante-dix, sous l’impulsion de l’école des Annales, d’un idéal scientiste, celui de trouver
la vérité ultime au bout des courbes statistiques et des grands équilibres immobiles et quan-
tifiés. grâce au travail sur le temps de Paul Ricœur, on redécouvre la double dimension de
l’histoire qui, sous le même vocable en France, recouvre à la fois la narration elle-même et
l’action narrée (dosse 2000: 54-55).
17
«A dimensão poética da produção e da escrita da história, que esta de facto nunca
perdeu – apesar de, insista-se, em dada altura se ter feito crer que tal tinha acontecido, o que
apenas diminuiu o valor da sua presença mas sem a anular – pode então assumir-se, sem pre-
tensão alguma de se tornar única ou dominante, de celebrar "retornos" ou "ruturas" que
excluam outras experiências, como modelo plausível e capaz de seguir um caminho próprio.
Articulando, naturalmente, a sua experiência com o rigor dos métodos de pesquisa e de crítica
documental, e com todo o corpo de conhecimentos, que são património incontornável da his-
toriografia no seu conjunto. Quer isto dizer: admitindo e praticando a história como saber
próprio mas híbrido, que combina dados e imaginação, e o faz com rigor e com arte, afas-
tando-se da estéril presunção da certeza e oferecendo-se ao interesse das pessoas que, por
prazer ou vontade de conhecer – mas de preferência pelos dois motivos combinados – por
ela se interessam, para ela são conquistadas, de alguma maneira a integram nas suas vidas»
(Bebiano s/d: 19).
18
«Fiction, c’est fingere, et fingere, c’est faire» (Ricœur, TA, 17).
19
A comparação do historiador com o juiz é muito frequente em P. Ricœur. Para além
de várias referências em Temps et Récit, o autor dedica uma análise mais demorada ao tema
em La mémoire, l’histoire, l’oubli («L’historien et le juge», pp. 413-436). o grande historia-
dor Carlo ginzburg escreveu também um ensaio sobre o mesmo assunto: Il giudice e lo sto-
rico, turin, einaudi, 1991.
(Página deixada propositadamente em branco)
PRIMEIRA PARTE

História e Ficção
em Paul ricœur
(Página deixada propositadamente em branco)
CAPÍTULO I
SOB O SIGNO DA VERDADE

mon propos, après bien d’autres, c’est la vérité en histoire


(ricœur 1996: 7).

ricœur reúne sob o título de História e Verdade os seus primeiros escritos


de epistemologia e filosofia da história1. e é a verdade (a par do sentido, pode-
mos dizer2) um dos motores que de forma mais ruidosa ou em surdina impele
a reflexão fenomenológica, epistemológica e ontológica de ricœur até à sua
última publicação sobre o ato de historiar: La mémoire, l’histoire, l’oubli (seuil,
Paris, 2000)3. Que outro cuidado pode justificar tanto labor a confrontar e a
conciliar o aparentemente inconciliável: objetividade e subjetividade, história e
ficção, explicação e compreensão, ciência e narrativa, história e memória, inter-
pretação e metodologia crítica4? mesmo quando o diálogo da história não é

1
em Histoire et Vérité (HV, seuil, Paris, 19551, 19642), o autor coloca os seus ensaios
– enquadrem-se eles no âmbito da epistemologia histórica, da história da filosofia ou da filo-
sofia e teologia da história – sob a regência da verdade.
2
«Parce que l’histoire est notre histoire, le sens de l’histoire est notre sens» (ricœur
1986: 36].
3
Fazemos nossas as palavras de Dosse: «cette dimension véritative de l’histoire est un
fil conducteur majeur de ricœur dans son dernier ouvrage. elle constitue même ce par quoi
l’histoire se différencie d’autres formes d’écriture, d’autres genres comme la fiction. a ce
titre, ricœur définit une épistémologie de l’histoire dont l’ambition et le pacte avec ses lec-
teurs est d’atteindre le niveau de la véracité par l’écriture» (2006: 22-23).
4
a verdade não é mais entendida na aceção que lhe deu tomás de aquino, na senda
de Platão e aristóteles: adaequatio rei et intellectus – o acordo do pensamento com a coisa
ou, numa tradução mais livre, a adequação do saber ao real. a adequação ao real que está
a montante e a jusante do pensamento é linguisticamente mediada. Nesse sentido, verdade
não é apenas correspondência mas também coerência, o que implica necessariamente a con-
sideração não só de uma prática metodológica como de uma prática literária configurativa. É
36 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

diretamente com a ficção, mas com interlocutores como a narratividade, a ciên-


cia, o tempo ou a memória, a verdade não deixa de ser a estrela polar que
orienta a reflexão de ricœur. Da pretensão à verdade destaca-se de forma mais
manifesta a dicotomia entre história e ficção –
l’histoire et la fiction se réfèrent toutes deux à l’action humaine, quoiqu’elles le
font sur la base de deux prétentions référentielles différentes. seule l’histoire peut
articuler la prétention référentielle en accord avec les règles de l’évidence com-
mune à tout le corps des sciences. au sens conventionnel attaché au mot “vérité”
par la familiarité avec ce corps des sciences, seule la connaissance historique peut
énoncer sa prétention référentielle comme une prétention à la “vérité” [ricœur
1980, in tiffeneau 1980: 58]5.

– e a construção deste ponto de honra constitui um dos contributos mais sig-


nificativos de ricœur à epistemologia da história, na medida em que eleva o
seu estatuto e delimita o seu lugar no (des)concerto teórico-prático que marcou
o século XX, dividido entre os extremos do cientismo e do narrativismo6.

nesta dupla vertente que o tema da verdade em história está diretamente relacionado com o
seu oposto, a ficção, como bem no-lo relembra chartier: «aujourd’hui, pour les historiens, la
pertinence d’une interrogation sur les rapports entre histoire et vérité est directement liée à
son envers, c’est-à-dire à leur relation avec la fiction (1998b: 30).
5
isto não invalida que a ficção não almeje também a verdade, apenas se trata de um
outro tipo de verdade, segundo uma modalidade diferente de pretensão referencial, «a preten-
são a redescrever a realidade de acordo com as estruturas simbólicas da ficção» (ricœur
1980, in tiffeneau 1980: 58). a pretensão que guia a ficção é indireta, ela visa indiretamente
a nossa experiência temporal, a da história é direta, mas isso não nos impede de dizer que,
num outro sentido de “verdadeiro” e “verdade”, história e ficção podem ser consideradas as
duas “verdadeiras”.
6
as últimas três décadas do séc. XX conheceram uma importante reação do chamado
linguistic turn, nascido em solo americano e filho da pós-modernidade, contra a história con-
cebida como disciplina objetiva e portadora de natureza demonstrativa. os narrativistas (saí-
dos do movimento do linguistic turn) trouxeram um importante contributo – reconhecido por
ricœur – à epistemologia da história, ao recordarem-nos que a história é também narrativa,
arte, retórica, ficção e que a sua verdade, tal como a de outras ciências, não é objetiva, defi-
nitiva nem incontestável. contudo, ao serem exclusivos, contribuíram para aumentar ainda
mais o ambiente de ceticismo relativista, de descrença na verdade, que marcou a pós-moder-
nidade, como nos conta rui Bebiano: «o caráter plural das formas de pensamento da pós-
-modernidade, que como é sabido exclui uma ideologia ou tendência hegemónica e se centra
no discurso do multiculturalismo, tem vindo a acentuar esta redefinição dos conceitos, rela-
tivizando como nunca o valor “definitivo” da espécie de verdade que pode ser obtida no pro-
cesso de aproximação e de conhecimento do passado. Fá-lo tomando os documentos singu-
lares [...] como fragmentos manipuláveis (e remanipuláveis) em todos os momentos pelo
capítulo i – soB o sigNo Da VerDaDe 37

como veremos ao longo deste estudo, ricœur evita habilmente qualquer


posição extremista ou unilateral, colaborando de forma determinante para diri-
mir esta contenda entre história-ciência e história-narrativa7. Podemos dizer que
o filósofo francês propõe uma via do meio, que é uma via de diálogo, de con-
ciliação da ciência-verdade com a narrativa-ficção, que ecoa nos trabalhos de
pensadores e historiadores de craveira como François Dosse, roger chartier,
christian Delacroix, le goff, ou, entre nós, Fernando catroga (2001, 2003,
2009) e Fátima Bonifácio (1993, 1999, 1999b). a história é vista como um dis-
curso crítico sobre a realidade passada, mas sem poder dispensar os recursos da
ficção para se dar a ler; para isso dá ao passado a forma de intriga, cria con-
tinuidade entre os vestígios do passado, põe, eventualmente, em cena atores
ficcionais (povo, classe, nação), emprega a metáfora, joga com os tempos ver-
bais, etc8.
Prudentemente, o autor de Temps et Récit não se cansa de insistir na assi-
metria inegável dos métodos que história e ficção usam para se dirigir à rea-
lidade: a historiografia tem a obrigação da verdade e o que lhe resta do acon-
tecimento passado confere-lhe uma nota realista inalcançável mesmo pela
literatura mais “realista”. o historiador é, filosoficamente falando, um realista,
não no sentido positivista e empiricista da história de ranke, mas porque con-
sidera que há uma realidade distinta do ato através do qual conhece essa rea-

historiador, rompendo com a presunção cientista e assumindo com frequência o caráter poé-
tico, como tal recorrentemente indeterminado e dependente da criatividade, da conceção da
escrita e da comunicação em história» (s/d: 1).
7
É como mediador e sanador deste conflito metodológico/epistemológico que ricœur
merece ser reconhecido: «les historiens savent la dette qu’ils ont envers Paul ricœur. [...] le
livre de ricœur les a aidés à être plus lucides sur leur propre pratique et à comprendre com-
ment l’intention de vérité qui fonde leur discipline ne pouvait être séparée des parentés qui
lient son écriture à celle des récits de fiction» (chartier 2002: 4).
8
outros pensadores franceses, contemporâneos de ricœur, chamaram a atenção para
este vínculo que une narrativa e operação historiográfica. o pioneiro foi Paul Veyne, que em
1971 deu à estampa o seu importante texto Comment on écrit l’histoire, seuil, Paris. segue-
-se-lhe michel de certeau, no seu artigo «l’opération historiographique», publicado, numa
versão truncada, em 1974, em Faire de l’histoire e, numa versão completa, na sua célebre
obra L’écriture de l’histoire (1975), que influencia indelevelmente, e a vários níveis, a refle-
xão de ricœur, nomeadamente, a divisão triádica da operação historiográfica; a formulação do
conceito de representância, com a categoria do “outro”; e a ideia de história como túmulo,
referente a uma poética do ausente. o outro pensador foi Jacques rancière, que no seu livro
Les mots de l’histoire (1992) define a «poética do saber» como o «conjunto dos procedimen-
tos literários pelos quais um discurso se subtrai à literatura, ganha um estatuto de ciência e
o significa» (p. 21).
38 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

lidade. Para ricœur, a ideia de um referente passível de ser reconstruído pelo


historiador é basilar:
seule l’historiographie peut revendiquer une référence qui s’inscrit dans l’empirie,
dans la mesure où l’intentionnalité historique vise des événements qui ont effec-
tivement eu lieu. même si le passé n’est plus et si, selon l’expression d’augustin,
il ne peut être atteint que dans le présent du passé, c’est-à-dire à travers les traces
du passé, devenues documents pour l’historien, il reste que le passé a eu lieu.
l’événement passé, aussi absent qu’il soit à la perception présente, n’en gouverne
pas moins l’intentionnalité historique, lui conférant une note réaliste que n’égalera
jamais aucune littérature, fût-elle à prétention “réaliste” [ricœur, TR i, 154]9.

a verdade, mais do que um tema de especulação filosófica, é um critério


e um objetivo: um critério que permite separar e demarcar história e ficção e
um objetivo que desde tucídides orienta o ofício do historiador que pretende
dizer de forma verdadeira a verdade sobre os homens do passado10. Perguntar
se a história é ciência ou narrativa, objetividade ou subjetividade, explicação ou
compreensão, memória ou esquecimento é tentar perceber, por um lado, qual o
capital de confiança e rigor científico que se lhe pode atribuir e, por outro, a
qualidade da verdade que põe a descoberto acerca da nossa condição histórica,
comparativamente com outras ciências sociais e humanas e com a literatura.
Não estranhamos, pois, que sob o signo da verdade tenha desabrochado a
reflexão de ricœur sobre a praxis histórica11. a sua primeira incursão relevante
no domínio da metodologia da história data de 1952, por ocasião de uma comu-
nicação nas Jornadas pedagógicas de coordenação entre o ensino da filosofia e

9
as palavras de roger chartier, em Au bord de la falaise (1998: 247), convergem com
o pensamento de ricœur: «cette référence à une réalité située hors et avant le texte histo-
rique et que celui-ci a pour fonction de restituer à sa manière n’a été abdiquée par aucune
des formes de la connaissance historique, mieux même, elle est ce qui constitue l’histoire
dans sa différence maintenue avec la fable et la fiction».
10
Dosse 2000: 13-17: «thucydide ou le culte du vrai». «Desde o alvorecer da história
que se julga o historiador pela medida da verdade. com razão ou sem ela, Heródoto passa
muito tempo por “mentiroso” [...] e Políbio, no livro Xii das suas Histórias, ataca sobretudo
um confrade, timeu» (le goff 1984: 166).
11
signo não é tomado aqui na aceção saussuriana que serviu de base à semiótica estru-
turalista – o que seria contrariar o próprio pensamento de P. ricœur, que muitas vezes, em
nome do referente e do sentido, combateu o conceito de signo em favor do de frase como
unidade mínima de discurso –, mas mais na aceção de sinal ou antes de traço, aquele traço
deixado que é uma marca do passado no presente e condição ontológica da operação histo-
riadora. adiante, veremos como este traço tem a dupla condição de signo e efeito.
capítulo i – soB o sigNo Da VerDaDe 39

da história12. aí profere o texto que disporá à entrada de Histoire et Vérité


(1955), com o sugestivo título de Objectivité et subjectivité en histoire. os para-
lelos que estabelece entre história e ciência e história e filosofia têm como preo-
cupação latente a relação entre história e verdade13; verdade na dupla aceção: no
sentido de rigor científico (enquanto capacidade de dizer o que realmente acon-
teceu); e no sentido de revelador da subjetividade histórica que procuramos
compreender e explicar. a primeira constatação é a de que a objetividade alcan-
çada pelo historiador é de um tipo específico, mais limitada do que a alcançada
pelos cientistas, é certo, mas ainda assim suficiente para não deixar a história
envergonhada diante das outras ciências. o que poderia ser considerado como
um obstáculo à verdade, a saber, a interferência subjetiva-interpretativa-seletiva-
-explicativa do historiador, é de facto um limitador da verdade objetiva cientí-
fica, mas não da verdade subjetiva filosófica; pelo contrário, é a intervenção do
historiador no desconexo material histórico que permite concluir e salientar ver-
dades significantes do passado dos homens e dos homens do passado.
este artigo de abertura é bastante significativo, porquanto encerra em si,
de forma ainda seminal, muitos dos tópicos que ricœur proficuamente desen-
volverá em Temps et Récit e em La mémoire, l’histoire, l’oubli. assim, embora
Histoire et Vérité não seja proeminente no panorama da epistemologia histórica
empreendida por ricœur (só o primeiro dos ensaios se pode classificar verda-
deiramente de epistemológico), ao escolher como estruturador temático da com-
pilação o binómio história e verdade, acaba por lançar as bases de todo um
programa de pesquisa que se repercutirá nas obras subsequentes14.

12
em bom rigor, P. ricœur aborda pela primeira vez o tema da história em 1949 com
o artigo Husserl et le sens de l’histoire, mas por se tratar de um estudo de «caractère phi-
losophique trop technique» (HV, 9: nota 1), o autor opta por deixá-lo de fora da compilação
de Histoire et Vérité.
13
Justamente, Dosse, referindo-se a este ensaio do filósofo francês, sublinha o contrato
de verdade, aí relembrado por ricœur, que desde Heródoto e tucídides guia o trabalho do
historiador: «ricœur rappelle les règles qui régissent ce contrat de vérité qui, depuis thucy-
dide et Hérodote, guide toute investigation historienne et fonde sa méthodologie» (2006: 19).
14
esta obra, como o próprio autor admite no prefácio, resulta da reunião de alguns
ensaios produzidos para circunstâncias diversas, sem uma aparente espinha dorsal ou conexão
lógica. No entanto, é possível ver neles uma certa ordem com base nas constantes de ritmo
e tema. agrupados em torno de dois polos fundamentais, o da metodologia histórica e o da
ética-política-cultura, estes ensaios encontram um ritmo único (de proporções invertidas em
cada uma das partes) na recusa de dissociar a reflexão levada a cabo sob a alçada dos con-
ceitos diretores de história e verdade do compromisso social e político e de intervir ativa-
mente na crise da nossa civilização. Por sua vez, a unidade temática é conseguida sob a
batuta da verdade da história, que na primeira parte rege o conhecimento histórico e, na
segunda, a ação histórica.
40 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

logo em Temps et Récit i (pp. 125-126), na descrição dos processos


miméticos que fazem a inteligibilidade narrativa, ricœur tem o cuidado de
abdicar do termo “ficção” para designar a operação mimética que abre o espaço
do “como se” (a que dá os nomes de “configuração narrativa” ou “mimesis ii”)
e guardá-lo para fazer o contraste com a história (cf. TR i, 154 e 397: nota 1).
apesar de a crítica literária, de um modo geral, entender a ficção como sinó-
nimo de configuração narrativa, ricœur emprega o conceito como antónimo da
pretensão da narrativa histórica a constituir uma narrativa verdadeira15. com
efeito, a história é mise en intrige e resulta também de um processo de con-
figuração narrativa, mas não é uma ficção – ainda que com ela se entrecruze
nalguns pontos – porque está obrigada a aproximar-se, tanto quanto possível, da
verdade dos factos ocorridos. Discrepâncias relevantes ao nível da mimesis i e
da mimesis iii não permitem a sobreposição de géneros, apenas entrecruza-
mento. É verdade que ambos vão ao campo da praxis recolher a matéria-prima
do seu trabalho, mas a história dirige-se para ações realmente ocorridas no pas-
sado, tendo como referência os traços deixados, e, ainda que escolha o mesmo
material, a ficção não está obrigada ao ónus da prova, porque a sua referência
é metafórica16. a prova (assente nos testemunhos transformados em documen-
tos) e o tipo de referente fazem toda a diferença. em termos de refiguração,
verifica-se que ambas as artes se dirigem a um leitor ou a um público que
recebe o texto histórico e ficcional e a partir deles refigura o mundo da praxis
que o texto desdobra, mas ainda aí há discrepâncias: entre historiador e leitor
há um pacto de verdade sem paralelo em qualquer outro tipo de literatura dita
narrativa, mesmo realista17. Dito de outro modo, à história não se aplica o pre-
ceito coleridgiano de suspensão voluntária da descrença.

15
«Je réserve toutefois le terme de fiction pour celles des créations littéraires qui igno-
rent l’ambition qu’a le récit historique de constituer un récit vrai. si, en effet, nous tenons
pour synonymes configuration et fiction, nous n’avons plus de terme disponible pour rendre
compte d’un rapport différent entre les deux modes narratifs et la question de la vérité. ce
que le récit historique et le récit de fiction ont en commun, c’est de relever des mêmes opé-
rations configurantes que nous avons placées sous le signe de mimèsis ii» (ricœur, TR ii, 12).
16
a despeito das diferenças referenciais, ricœur reconhece que referência por traços e
referência metafórica fazem um intercâmbio de elementos. a referência por traços aprende da
referência metafórica, comum a todas as obras poéticas, a reconstruir o passado com o auxílio
da imaginação. Por outro lado, a referência da narrativa ficcional aprende da referência his-
tórica a narrar como se as coisas tivessem realmente acontecido, recorrendo aos tempos ver-
bais do passado para narrar o irreal. Nisto consiste, basicamente o entrecruzamento de história
e ficção: cf. ricœur, TR i, 154; TR iii, 329-348.
17
«c’est une attente du lecteur du texte historique que l’auteur lui propose un «récit
vrai» et non une fiction» (ricœur 2000b: 731).
capítulo i – soB o sigNo Da VerDaDe 41

em Temps et Récit, tal como em La mémoire, l’histoire, l’oubli, o con-


ceito fundamental que garante a verdade da história é o mesmo que garante o
seu referente extratextual: a representância. o facto histórico não se enreda nas
estruturas da narrativa autorreferencial, por isso, a história não pode ser vista
apenas como representação; também e, acima de tudo, como representância18.
a noção, ainda que aporética e enigmática, chega para nos dar conta de uma
história que tende para um passado realmente acontecido, ausente fisicamente,
presente nos traços e testemunhos deixados, entretanto tornados provas docu-
mentais que conferem à história uma tónica científica e realista19; uma história
que é movida por uma dívida para com os mortos; uma história que exige do

18
«ricœur évite tout enfermement de l’écriture dans la seule strate discursive et
accorde une place nodale à un concept déjà utilisé dans Temps et Récit qui est celui de repré-
sentance. Par là, il entend la cristallisation des attentes et des apories de l’intentionnalité his-
torienne. la représentance est la visée de la connaissance historique elle-même placée sous
le sceau d’un pacte selon lequel l’historien se donne pour objet des personnages, des situa-
tions ayant existé avant qu’il n’en soit fait récit. cette notion se différencie donc de celle de
représentation dans la mesure où elle implique un vis-à-vis du texte, un référent que ricœur
qualifie de lieutenance du texte historique» (Dosse 2006: 27).
19
ao propor a noção de representância, P. ricœur recusa a separação radical entre o
real e as representações que dele dá o historiador. todavia, esta noção constitui mais um pro-
blema ou enigma do que propriamente uma solução, porque a história é construção, configu-
ração e não cópia ou coincidência; o que foi já não é e não volta a ser e a tradução verbal
do acontecimento não é exatamente a mesma coisa, é sempre outra coisa, análoga ou seme-
lhante à primeira. a ambição de verdade e os limites da noção de representância são deter-
minados pela distinção essencial entre facto e acontecimento. a distinção entre os factos
declarados pelo historiador e os acontecimentos reais rememorados é um acautelamento contra
uma epistemologia ingénua da coincidência entre facto construído e acontecimento real. Não
se trata de um regresso ao método historiográfico dito positivista, objetivista. o estatuto epis-
temológico específico do facto histórico resulta de uma reciprocidade entre a construção e o
estabelecimento do facto com base no documento; é, justamente, porque o facto é cons-
truído/estabelecido a partir de documentos que ele pode ser dito falso ou verdadeiro. Não só
o facto construído deve ser separado do acontecimento real como também do trabalho de
interpretação, distinção que H. White não tem em conta e que ricœur procura instituir. recu-
sar a distinção entre facto histórico construído e interpretação ao nível da pesquisa documen-
tal, com o pretexto de evitar uma regressão positivista, tem como consequência a impossibi-
lidade de qualquer julgamento de verdade sobre o facto histórico. ademais, este julgamento
torna-se mais difícil nas fases de explicação/compreensão e de representação literária, mais
contaminadas que estão pela interpretação. eis porque ricœur tem necessidade de deixar bem
clara a autonomia da operação documental de estabelecimento e construção do facto relati-
vamente ao trabalho de interpretação ou de configuração narrativa; o que equivale a defender
a existência de referente extratextual e de procedimentos científicos próprios que o saber his-
tórico não partilha com a operação configurativa ficcional.
42 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

historiador o cumprimento de um pacto de verdade com o leitor. como saldar


esta dívida, como cumprir este pacto, como atestar, contra a ilusão e a opaci-
dade da linguagem, a existência de um facto real extratextual? em primeiro
lugar, a tese de Temps et Récit defende que a representância, enquanto signum
da verdade, consiste em percorrer o ciclo da hermenêutica histórica sob o signo
do mesmo, do outro e do análogo e representar o passado tal como aconteceu,
isto é, de um modo similar – mas não totalmente coincidente – ao como se da
ficção. Deste modo, preserva-se o caráter ontológico do facto histórico, marcado
pela dupla característica de presença e ausência, passível de uma reconstrução
analógica. todavia, representar não basta. a ficção também representa. os mor-
tos, sobretudo as vítimas do horror, merecem que se procure e se diga a ver-
dade, com base nos documentos/provas encontradas. em La mémoire, l’histoire,
l’oubli, ricœur esclarecerá que a única maneira possível de furar as malhas nar-
rativas – que tendem a fechar-se em torno de um sentido e de um significado –
de modo a atestar a realidade ou o referente externo, é obrigar a fase represen-
tativa ou da escrita a articular-se com a fase documental e de compreensão/
/explicação20. a representância liga-se a esta condição de vai-e-vem entre as
diversas fases do trabalho do historiador e salva a história de se perder no labi-
rinto do linguistic turn. Não chega, pois, escrever a história dando-lhe legibili-
dade e até visibilidade, é preciso fundamentar a representação sobre a memória
arquivada dos testemunhos e sobre os modos de conexão causal ou final21. Por

20
«c’est ensemble que scripturalité, explication compréhensive et preuve documentaire
sont susceptibles d’accréditer la prétention à la vérité du discours historique» (ricœur, MHO,
363). Delacroix, falando do conceito de verdade histórica em Paul ricœur (2005: 103-112),
salienta um dado insistentemente sublinhado por ricœur em La mémoire, l’histoire, l’oubli:
a interligação das três fases da operação historiográfica e o poder dado à prova documental
como imperativo que se impõe às restantes fases de compreensão/explicação e da represen-
tação literária. citamos: «l’originalité de [... La mémoire, l’histoire, l’oubli], par rapport aux
développements antérieures de P. ricœur sur le nécessaire projet d’objectivité de l’histoire, est
d’insister sur l’imbrication de ces trois moments méthodologiques [...] et sur la contrainte
incessante de l’impératif documentaire – avec son noyau dur de la critique des témoignages
– qui opère aussi bien dans le moment d’explication/compréhension que dans celui de l’écri-
ture. ce déplacement de la contrainte de la preuve documentaire tout au long de l’opération
historiographique vise, en particulier, à rappeler que la phase de représentation/écriture, pour-
tant exposée à la clôture discursive, a avant tout en charge de réaliser la visée de vérité pro-
pre au discours historique» (Delacroix 2005: 105).
21
Nesse sentido, as configurações narrativas e retóricas têm um papel paradoxal quanto
ao projeto de verdade da escrita histórica: «[...] structurant à son insu le lecteur, elles peuvent
jouer le double rôle de médiations en direction du réel historique et d’écrans opposant leur
capítulo i – soB o sigNo Da VerDaDe 43

isso, ricœur pugna por um “realismo crítico”, entendido como a intenção de a


história ser uma reconstrução verdadeira do passado22.
Defender a verdade da história passa por defender o seu caráter científico,
pelo cuidado de não confundir explicação e narratividade e retórica, sabendo,
contudo, que não há explicação sem coerência narrativa. Nesse sentido, a dia-
lética compreensão/explicação, em Temps et Récit, – que sustenta um corte
epistemológico entre explicação histórica e explicação narrativa ao nível da
explicação, das entidades e do tempo – e a mesma articulação reforçada em La
mémoire, l’histoire et l’oubli, desta feita com a coerência narrativa, são contri-
butos inequívocos para a intenção de verdade que anima o trabalho do histo-
riador. sem dúvida que a história se ergue a partir da matriz narrativa, sem
dúvida que a história é uma arte, uma arte narrativa e, mesmo quando envereda
pelas longas durações e pelas estruturas sincrónicas, ela não perde essa marca
matricial. todavia, isso não invalida que a história seja uma ciência, procure o
rigor, a exatidão, a verdade, e, por isso, não possa ater-se exclusivamente ao
poder explicativo da inteligibilidade narrativa e procure ser uma ficção cientí-
fica23. tem modos próprios de se explicar, de percorrer o tempo, de constituir

opacité à la transparence prétendue des médiations» (ricœur 2000b: 742). as constrições nar-
rativas e retóricas (analisadas pela semiótica estrutural e pela escola narrativista) exercem uma
ação ambígua relativamente à intenção de representar com verdade o passado, porque, por um
lado, nos aproximam do acontecimento dando-lhe legibilidade e visibilidade, mas, ao mesmo
tempo, levantam uma cortina opaca entre a realidade e a sua representação em forma narra-
tiva, pondo em causa a objetividade e a verdade históricas. Por tudo isto, ricœur decide, na
sua última obra, abordar a questão narrativa em história até à consideração dos signos de lite-
rariedade, coisa que não fez em Temps et Récit, dando azo a que se confundisse a compo-
sição narrativa com a conexão explicativa.
22
«le but de P. ricœur est précisément de démontrer que c’est le travail lui-même de
l’historien, le respect de procédures et méthodes propres, qui permettent non seulement la
seule sortie “scientifique” possible de l’énigme de la représentance mais aussi de surmonter
le handicap historien de l’absence de reconnaissance. [...] l’intervention épistémologique de
P. ricœur vise donc à défendre, avec les historiens, la nécessité de la dimension critique de
l’histoire, seule démarche disponible au service de la vérité en histoire» (Delacroix 2005:
110-111).
23
«[...] ela é para nós uma “ficção”, no sentido em que a história é sempre uma
“modelação” do passado. e com isto não estamos a admitir que ela não é uma ciência e
muito menos que ela é apenas uma arte, já que não entendemos a ciência como um conhe-
cimento que estabelece leis rígidas, que devem necessariamente conduzir à previsão, como se
existisse apenas um só paradigma científico.
Por outro lado, mesmo que queiramos afastar a história o mais possível da “literatura”,
nunca o conseguiremos de todo. a ficção de que falávamos é, por assim dizer, uma “ficção
44 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

acontecimentos, de observar e sintetizar os factos. e tudo isto só é científico


porque está sujeito a crítica e revisão constante por parte da comunidade cien-
tífica dos historiadores, que tem por trás o suporte insubstituível da prova docu-
mental, a qual orienta a explicação e certifica a representação. Qualquer obra
histórica é alvo de atestação ou refutação.
em La mémoire, l’histoire, l’oubli, a verdade é assumidamente uma coor-
denada para a fenomenologia da memória e para a hermenêutica histórica,
porém, é ao nível da reflexão epistemológica que ela se revela uma condicio-
nante multifacetada24. mas se, de algum modo, a verdade é o subsolo de tudo
o que ricœur disse acerca de história e ficção, ela transcende em muito este
tópico, alastrando-se a outras áreas do saber examinadas por ricœur, como o
comprova a heterogeneidade dos ensaios reunidos em Histoire et Vérité. a
busca de unidade e operatividade metodológica leva-nos a concentrar os nossos
esforços no par história e ficção, sendo o núcleo em torno do qual gravitam
grande parte das reflexões do filósofo francês sobre a história. Por uma questão
de pertinência e coerência lógica, e seguindo a própria opção do autor, integra-
mos neste primeiro capítulo (“sob o signo da verdade”) a única reflexão de teor
epistemológico que o próprio inseriu em Histoire et Vérité e a reflexão de cará-
ter mais hermenêutico que, posteriormente, constitui uma revisão e comple-
mento do par objetividade/subjetividade: falamos do conceito de interpretação,
tal como ele é apresentado em La mémoire, l’histoire, l’oubli. excetuando esta
prolepse, tudo o mais seguirá uma ordem aproximadamente cronográfica que é
também (crono)lógica.

científica” e não uma “ficção literária”, mas não esconderemos o drama do historiador no ato
da “escrita da história”. o certo é que ele não deixa de usar, ao descrever e até ao interpretar,
uma linguagem literária, ainda que reduzida, mesmo que se esforce por utilizar uma termi-
nologia rigorosa e por formular juízos objetivos» (luís reis torgal, in torgal; mendes;
catroga 1998: 155-156).
24
referindo-se, num dos artigos que antecedem a publicação de La mémoire, l’histoire,
l’oubli, às três fases que decanta na epistemologia do processo historiográfico, ricœur é bas-
tante assertivo quanto ao papel da(s) verdade(s) como espelho de toda a reflexão: «ces trois
niveaux peuvent être ordonnés en fonction de l’idée de vérité. on ne peut en effet appliquer
à l’histoire un concept homogène de vérité. les trois niveaux distingués offrent trois versions
différentes de l’idée de vérité» (1998b: 24). Num outro artigo, insiste na mesma ideia: «[...]
le destin de la vérité en histoire ne se joue pas au seul niveau terminal de l’écriture au sens
scripturaire et littéraire, mais tout au long de la chaîne épistémologique. [...] c’est l’opération
historiographique intégrale qui doit être évaluée en terme de vérité dans la représentation du
passé» (1996: 15).
capítulo i – soB o sigNo Da VerDaDe 45

1.  OBJETIVIDADE E SUBJETIVIDADE EM HISTÓRIA

Da obra Histoire et Vérité ganha particular relevo para a nossa pesquisa


o já referido ensaio sobre Objetividade e subjetividade em história (ricœur,
HV, 27-50). os estudos seguintes, embora continuem sob a batuta do binómio
história-verdade, estendem-se do âmbito da epistemologia histórica para os da
história da filosofia e para os da filosofia e da teologia da história25. esta refle-
xão, apresentada por Paul ricœur no quadro de umas jornadas pedagógicas
acerca da coordenação entre o ensino da filosofia e o da história, segue uma
determinada ordem lógica: da objetividade da história à subjetividade do histo-
riador e destas à subjetividade filosófica. as três etapas, fiéis ao contexto da
comunicação, desembocam num confronto entre a história dos historiadores e a
história dos filósofos.
uma das ideias fundamentais deste texto é precisamente a de que história
e filosofia precisam uma da outra. a história da filosofia tem, indubitavelmente,
horizontes diferentes dos da história propriamente dita; segue um caminho
bifurcado que tanto pode ir na direção de uma lógica da filosofia, pela procura
de um sentido coerente através da história, ou ir ao encontro da intimidade e
da singularidade de uma filosofia ou de um filósofo particulares. No entanto,
em ambos os modos de fazer aflorar a subjetividade da história, a história dos
historiadores serve de suporte informativo a retomar pelo filósofo. No primeiro
caso, para a reflexão acerca do sujeito e da subjetividade histórica, porque
«todas as filosofias andam em busca da verdadeira subjetividade, do verdadeiro
ato de consciência» (ricœur, HV, 41), o filósofo leitor retoma o trabalho do
historiador, fazendo coincidir a sua tomada de consciência com a retomada da
história26. este ato de consciência, que só é possível através da meditação do

25
o ensaio de abertura consagrado ao estudo da objetividade da história ocupa uma
posição estratégica na economia da obra, uma vez que serve de antecâmara para os restantes,
ao introduzir os conceitos nucleares de história e verdade, conceitos estes que para além de
emprestarem o nome ao título da obra permitem estabelecer um fio condutor entre os vários
ensaios. o segundo, «L’histoire de la philosophie et l’unité du vrai» (pp. 51-68), parte da
constatação alcançada no anterior de que a verdade da obra histórica é limitada. ricœur o
que faz é estender este princípio ao campo da história da filosofia que ensina na universi-
dade, uma vez que a história da filosofia prossegue a partir da história dos historiadores,
guiada por uma tomada de consciência histórica. Nesse sentido, acrescenta ricœur (HV, 12),
ela deriva da história e não da filosofia.
26
«le philosophe a une manière propre d’achever en lui-même le travail de l’historien,
cette manière propre consiste à faire coïncider sa propre “prise” de conscience avec une
“reprise” de l’histoire» (ricœur, HV, 41).
46 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

texto histórico, cumpre num leitor (neste caso, filósofo) o trabalho do historia-
dor, pois não há texto sem leitor. a história retomada (“reprise”) pelo filósofo
permite-lhe formular uma história do espírito que não absorve nem anula a his-
tória dos historiadores. No segundo caso, retoma-se o texto histórico para deter-
minar toda a problemática de uma época e as influências do passado que
ecoam em determinada filosofia, sem que o trabalho do historiador da filosofia
se confunda com o do historiador propriamente dito27.
Por sua vez, esta dupla leitura filosófica que fez surgir o homem como
consciência e como subjetividade também pode ser útil ao historiador, reve-
lando-lhe uma história contínua – «como único sentido em marcha» – e des-
contínua – «como constelação de pessoas» (ricœur, HV, 49), e ainda a neces-
sidade de trabalhar aquém desta divisão da filosofia para assumir como objeto
completo de estudo a história factual e a história estrutural.
concluindo, apesar de o ofício do historiador bastar para discernir a boa
e a má subjetividade do historiador, o historiador precisa da reflexão filosófica
para discernir a boa e a má objetividade da história. a filosofia relembra à his-
tória o erro que seria voltar-se exclusivamente para uma espécie de objetivismo
que omite o homem, composto por estruturas, forças e instituições, em detri-
mento dos homens e dos valores humanos que constituem as civilizações28.

27
«[l’historien de la philosophie] a seulement fait un autre choix que l’historien pro-
prement dit: le choix pour les existants exceptionnels et pour leur œuvre, en tant que cette
œuvre est une œuvre singulière, irréductible à des généralités, à des types repérables (réa-
lisme, empirisme, rationalisme, etc.); le choix de cette lecture implique que l’économique, le
social, le politique, ne sont considérés que comme influence, situation, facilitation par rapport
à l’émergence de tel créateur de pensées, de telle œuvre singulière. ce créateur et cette œuvre
sont alors le centre de gravité, le réceptacle, le porteur unique de toutes les influences subies
et de toutes les influences exercées» (ricœur, HV, 46-47).
28
«[...] l’objet de l’histoire c’est le sujet humain lui-même» (ricœur, HV, 50). esta é
uma ideia também muito cara a marc Bloch, que não apreciava a definição de história como
a ciência do passado, considerando absurda a ideia de que o passado, como tal, pudesse ser
objeto da ciência, e definia a história como «a ciência dos homens no tempo» (1952: 18).
Por outro lado, esta é uma máxima que ricœur perfilha e não se cansará de frisar em Temps
et Récit, a propósito do eclipse da narrativa na historiografia francesa praticada pela escola
dos annales. Para que haja narrativa é fundamental personagens e acontecimentos que sus-
citem mudanças. Já antoine Prost, invocando justamente l. Febvre e marc Bloch, insiste na
mesma tecla, mas atribuindo três características ao objeto da história: é humano, e mesmo as
histórias que parecem mais afastadas do caráter humano acabam por indiretamente conduzir
ao humano; é coletivo, a história interessa-se por grupos, e mesmo quando se concentra num
só indivíduo é porque ele é representativo de todo um grupo ou classe; por fim, é concreto,
situado num tempo e num espaço (Prost 1996: 148-149).
capítulo i – soB o sigNo Da VerDaDe 47

estas considerações de caráter filosófico, que aqui expusemos abreviada-


mente para dar uma visão holística do ensaio de ricœur, surgem no seguimento
da problemática epistemológica que faz sobressair a dialética entre a objetivi-
dade específica da prática histórica e a subjetividade do historiador, que leva a
concluir que a história deriva de uma epistemologia mista, de um entrelaça-
mento de objetividade e subjetividade, de explicação e compreensão29; dialética
do mesmo e do outro afastado no tempo, confronto entre a linguagem contem-
porânea e uma situação passada que põe a descoberto a equivocidade da lin-
guagem histórica.
Quando se fala de objetividade no contexto da história, impõe-se o cui-
dado de não a identificar totalmente com a objetividade própria das ciências
físicas e biológicas. a objetividade histórica é de outra natureza. apesar disso,
do mesmo modo que essas ciências, a história tem como objetivo o que o pen-
samento metódico (ricœur jamais descura o método e a análise crítica) elabo-
rou, ordenou, compreendeu e pode dar a compreender, daí que seja legítimo
esperar que ela eleve o passado das sociedades humanas a um nível de obje-
tividade. acontece, porém, que os níveis de objetividade variam consoante os
métodos e a história tem um método próprio, que acrescenta «uma nova pro-
víncia ao império da variedade da objetividade» (ricœur, HV, 28).
a objetividade em história é fixada pelo ofício científico do historiador e
não pela reflexão do filósofo. a retificação a que o labor histórico está sujeito
atesta a existência de uma objetividade próxima da das ciências físicas.
Nous attendons de l’histoire une certaine objectivité, l’objectivité qui lui convient;
la façon dont l’histoire naît et renaît nous l’atteste; elle procède toujours de la rec-
tification de l’arrangement officiel et pragmatique de leur passé par les sociétés
traditionnelles. cette rectification n’est pas d’un autre esprit que la rectification
que représente la science physique par rapport au premier arrangement des appa-
rences dans la perception et dans les cosmologies qui lui restent tributaires
[ricœur, HV, 28, 29]30.

29
«[ricœur] récuse notamment la fausse alternative, qui va devenir de plus en plus
prégnante dans l’opération historiographique, entre l’horizon d’objetivation, avec son ambition
scientiste, et la perspective subjectiviste avec sa croyance en une expérience de l’immédiateté
quant à la capacité à procéder à la résurrection du passé. l’objet est de montrer que la pra-
tique historienne est une pratique en tension constante entre une objectivité à jamais incom-
plète et la subjectivité d’un regard méthodique qui doit se déprendre d’une partie de soi-
même en se clivant entre une bonne subjectivité, “le moi de recherche” et une mauvaise, “le
moi pathétique” (Dosse 2006: 18; vide, etiam, Delacroix, Dosse, garcia 2007: 370-374).
30
le goff, refletindo acerca das revisões incessantes a que deve estar sujeito o traba-
lho histórico, cita este passo de ricœur dizendo que foi um dos dois filósofos que melhor
exprimiu «a lenta marcha da história para a objetividade» (1984: 168, 169).
48 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

Próxima mas distinta. ricœur retira do célebre texto de marc Bloch os


alicerces da objetividade possível no trabalho do historiador. a inacabada obra
Apologie pour l’histoire ou Métier d’historien fornece as várias etapas da cons-
trução da objetividade: observação histórica, crítica, e análise histórica31. a cada
uma corresponde um capítulo.
a observação diz respeito à apreensão do passado. Não se trata de uma
apreensão direta, mas através de traços ou vestígios deixados pelo passado.
Nesse sentido, segundo a célebre fórmula de François simiand, retomada por
m. Bloch (1952: 34), toda a história é um «conhecimento por traços»32. isso
significa também que toda a história é uma reconstituição. o facto de o his-
toriador não estar nunca diante do objeto passado não retira crédito científico
à sua atividade, pois
reconstituir um acontecimento ou antes uma série de acontecimentos, ou uma
situação, ou uma instituição, a partir de documentos, é elaborar uma conduta de
objetividade de um tipo específico, mas irrecusável: pois esta reconstituição supõe
que o documento seja interrogado, forçado a falar; que o historiador vá ao seu
encontro, lançando-lhe uma hipótese de trabalho [ricœur, HV, 29].

Deste modo, o historiador/questionador eleva o traço ao estatuto de docu-


mento significante e institui o facto histórico, já que o documento não era
documento antes de o historiador o isolar para o questionar33. Desta atividade
metódica, em tudo similar à das outras ciências, surge a objetividade do facto
científico, também ele idêntico aos outros factos científicos. Podemos, pois,
concluir que o facto científico não é dado à partida, mas resulta de uma ope-
ração crítica34.

31
a primeira edição é 1949. usamos a segunda, de 1952. obra fundamental e impul-
sionadora de uma nova forma de fazer história, escrita por marc Bloch durante o cativeiro
de guerra. o historiador acabaria por ser fuzilado em 1944, pelos nazis alemães, deixando o
manuscrito inacabado.
32
marc Bloch define “trace” como «la marque, perceptible aux sens, qu’a laissée un
phénomène en lui-même impossible de saisir» (1952: 34).
33
a função inelutável da questão para a constituição do facto histórico é uma das
ideias primordiais que ricœur destacará amplamente em La mémoire, l’histoire, l’oubli
(p. 226) e que outros historiadores tomam como um imperativo categórico. Prost não se cansa
de no-lo lembrar ao longo de toda a sua obra Douze Leçons sur l’histoire: «sans questions
les traces restent muettes et ne sont même pas “sources”» (id. 1996: 145). Veja-se, especial-
mente, a lição n.º 4, pp. 79-100, toda ela subordinada ao tema das questões do historiador.
34
lucien Febvre, na sua célebre sessão inaugural no collège de France, a 13 de
dezembro de 1933, diz a propósito da constituição do facto histórico: «Dado? Não, criado
capítulo i – soB o sigNo Da VerDaDe 49

a análise diz respeito à atividade do historiador que procura uma expli-


cação. Para marc Bloch, a explicação histórica não se faz sem a prévia cons-
tituição de séries de fenómenos – económicos, políticos, culturais, etc. – que
permitem descobrir uma mesma função em acontecimentos diferentes. este pro-
cesso tem uma forte componente de abstração e anula qualquer fantasia de ver
no trabalho do historiador uma restituição das coisas tal como aconteceram.
a história é “re-constituição” e não “re-vivência”, é análise e não coincidência
emocional. e não há síntese sem análise ou compreensão sem explicação.
o trabalho de recomposição (síntese) só vem depois da análise, sendo uma o
prolongamento da outra. eis porque, neste processo, a compreensão não é
oposta à explicação, é antes o seu complemento e contrapartida. o historiador
procura compreender as séries que isolou através da sua análise e só depois faz
a síntese da sua observação. são as análises que tornam possível a síntese ou
compreensão35.
ricœur conclui a sua análise da objetividade em história dizendo que,
deste modo, ela se mantém fiel à sua etimologia grega de “pesquisa”, “inqui-
rição”, de acordo com o étimo usado por Heródoto36. Não obstante, não há
objetividade sem historiador, ou seja, sem subjetividade. a subjetividade apa-
rece implicada na própria objetividade e não pode ser procurada fora do traba-
lho do historiador. a subjetividade do historiador afeta a objetividade histórica,
tornando-a mais incompleta do que a conseguida por outras ciências. em pri-
meiro lugar, porque o historiador escolhe ou seleciona acontecimentos e fatores
através de um julgamento de importância. em segundo lugar, porque a história
é tributária a vários níveis de uma conceção pobre de causalidade, segundo a
qual a causa tanto pode designar um acontecimento breve e excecional como
uma conjuntura de lenta duração ou ainda uma estrutura permanente. a conhe-
cida obra de Braudel, La Méditerranée et le monde méditerranéen à l’époque
de Philippe II, é a primeira a tentar separar e ordenar estas causalidades, num
esforço meritório mas precário de busca de objetividade histórica. a causalidade
empregue pelo historiador, oscilante entre o determinismo e a probabilidade, é

pelo historiador e, quantas vezes? inventado e fabricado, com a ajuda de hipóteses e conje-
turas, por um trabalho delicado e apaixonante... elaborar um facto é construí-lo. se quiser-
mos, uma questão dá-nos uma resposta. e, se não há questão, não fica mais que o nada»
(apud le goff 1984: 167).
35
«la conscience d’époque que l’historien, dans ses synthèses les plus vastes, tentera
de reconstituer, est nourrie de toutes les interactions, de toutes les relations en tous sens que
l’historien a conquises par l’analyse» (ricœur, HV, 31).
36
«ainsi, de part en part, l’histoire est fidèle à son étymologie: c’est une “recherche”,
ἰστορία» (ricœur, HV, 32).
50 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

frequentemente ingénua e pouco crítica. o historiador usa, naturalmente, modos


de explicação que excedem a sua reflexão. em terceiro lugar, temos a chamada
distância histórica que o tempo cava entre o historiador e o objeto do seu
conhecimento. a história é o passado ausente, o outro. ressalta aqui a velha
dialética do mesmo e do outro, desde logo na nomenclatura: como nomear e
dar a entender com linguagem contemporânea algo que já ocorreu senão através
de similitudes funcionais: “tirania”, “vassalagem”, “feudalidade”, “estado”, etc.
o historiador tenta vencer a distância temporal recorrendo à imaginação, que
lhe permite transportar-se para um outro presente que é o passado. a imagina-
ção histórica intervém, então, como meio heurístico essencial da compreensão,
abrindo uma fenda entre a história e as outras ciências. a subjetividade é a
ponte necessária para aceder à objetividade, efetuando um salto temporal:
«c’est même un don rare de savoir approcher de nous le passé historique, tout
en restituant la distance historique, mieux: tout en instituant, dans l’esprit du
lecteur, une conscience d’éloignement, de profondeur temporelle» (ricœur,
HV, 35).
Por fim, o passado que nos interessa é o humano. em última instância,
a história visa explicar e compreender o vivido por outros homens no passado,
logo, o historiador não se transporta apenas para um outro presente no passado,
mas também para uma outra vida humana. a transferência temporal por meio
da imaginação é simultaneamente a transferência para uma outra subjetividade,
adotada como centro de perspetiva. É pois a simpatia do historiador pelos
homens de outrora, pelos seus valores e instituições, animada por um desejo de
encontro e de explicação, que o faz aproximar-se deles e criar afinidades pro-
fundas. mas a simpatia pelos homens do passado leva implícita a subjetividade
do historiador, que não pode descartar a sua própria experiência humana,
enquanto ser que partilha a mesma condição histórica da humanidade que
estuda e da qual também faz parte37. Para evitar que a sua obra seja uma apo-
logética ou uma hagiografia, o historiador deve pôr em prática a boa simpatia,
a que adota as crenças dos homens de outrora suspendendo-as ou neutralizando-
-as enquanto crenças atualmente professadas. em suma, a história permite esta
comunicação de consciências de indivíduos que pertencem à mesma humani-
dade, comunicação esta escrutinada pela etapa metodológica do traço e do
documento, o que a diferencia do diálogo tradicional onde o outro responde,

37
«[...] l’historien fait partie de l’histoire; non seulement en ce sens banal que le passé
est le passé de son présent, mais en ce sens que les hommes du passé font partie de la même
humanité. l’histoire est donc une des manières dont les hommes “répètent” leur appartenance
à la même humanité» (ricœur, HV, 37).
capítulo i – soB o sigNo Da VerDaDe 51

mas a integra no plano da intersubjetividade total, sempre aberta ao debate (cf.


ricœur, HV, 37). Vemos aqui aflorar já não apenas a subjetividade do historia-
dor mas a subjetividade da história de que falámos anteriormente.
ao fazer o ponto da situação, ricœur garante que esta intrusão da sub-
jetividade do historiador na objetividade da prática histórica não invalida as
considerações anteriores a propósito da objetividade nem contribui para a dis-
solução do objeto, pois a objetividade própria do ofício do historiador é de um
tipo específico, o correlato da subjetividade histórica; sendo que esta, tal como
a descrevemos, é de uma riqueza muito maior que a do físico, não deixando
de ser uma boa subjetividade. com esta premissa, o filósofo francês empenha-
-se agora em demonstrar que a qualidade do trabalho do historiador depende de
uma boa subjetividade, aquela que é educada pelo próprio ofício do historiador.
Para esta boa subjetividade contribuíram grandemente a crítica filosófica
de raymond aron e de Henri-iriné marrou, autores franceses da predileção de
ricœur, e cuja influência se repercute notoriamente neste ensaio38. estes soube-
ram separar o trigo do joio da escola metódica (dita incorretamente positivista)
e do pensamento de seignobos, extraindo daí ensinamentos que aumentam o
grau de cientificidade do método histórico e nos relembram que «nem o julga-
mento de importância, nem a teoria, nem a imaginação temporal, nem sobretudo
a simpatia abandonam a história a uma qualquer deriva subjetiva; estas dis-
posições subjetivas são dimensões da própria objetividade histórica» (ricœur,
HV, 39).
a história reflete a subjetividade do historiador, mas é ao ofício de his-
toriador que cabe educar a sua própria subjetividade, o que leva ricœur a afir-
mar que «a história faz o historiador tanto como o historiador faz a história.
antes: o ofício de historiador faz a história e o historiador» (ricœur, HV, 39).
ricœur considera, pois, que há dois tipos de subjetividade, uma boa e
outra má, e só a boa interessa ao historiador e à história39. a subjetividade boa

38
rayon aron publicou, em 1938, Introduction à la philosophie de l’histoire. Essai sur
les limites de l’objectivité historique, gallimard, Paris; e Henri-irinée marrou publicou, em
1954, De la connaissance historique, Éd. Du seuil, Paris. são palpáveis as influências destes
dois pensadores no trabalho de ricœur, que adota uma postura perante a objetividade e a sub-
jetividade na história muito próxima da de marrou: «Ni objectivisme pur, ni subjectivisme
radical, l’histoire est à la fois saisie de l’objet et aventure spirituelle du sujet connaissant. [...]
Que dans cette connaissance, il y ait nécessairement du subjectif, quelque chose de relatif à
ma situation d’être dans le monde, n’empêche pas qu’elle puisse être, en même temps, une
saisie authentique du passé» (marrou 1954: 229).
39
«la subjectivité d’historien, comme toute subjectivité scientifique, représente la vic-
toire d’une bonne subjectivité sur une mauvaise subjectivité» (ricœur, HV, 38).
52 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

é a da pesquisa ou moi de recherche, tal como a definimos acima (julgamento


de importância, pertença do historiador à mesma história e à mesma humani-
dade dos homens do passado, transferência para uma outra subjetividade ado-
tada como perspetiva), e a má é a subjetividade passional, tendenciosa, dos
ódios e paixões e ressentimentos, em suma, o moi pathétique. compreender não
é julgar, fazer juízos críticos de valor não é missão do historiador, defendia
marc Bloch. o velho adágio sine ira nec studio (sem cólera nem favoreci-
mento), que deve regular a atividade do historiador e do juiz, não se deve apli-
car somente ao estudo crítico dos documentos, mas, de forma mais subtil e pre-
ciosa, também à atividade de síntese ou redação. o sujeito patético não é
apenas aquele que mantém uma postura tendenciosa fulminante, pode ser aquele
que permanece apático perante os factos que analisa, denegrindo toda a gran-
deza reputada e depreciando todos os valores que encontra. Não há, pois, his-
tória sem suspensão (epoche) da subjetividade quotidiana e sem a entrada em
cena do eu de pesquisa que dá bom nome à história. o historiador é alguém
que está disponível e aberto à surpresa do passado. só deste modo a má sub-
jetividade pode ser vencida:
Pas d’histoire donc sans une ἐποχή de la subjectivité quotidienne, sans l’institution
de ce moi de recherche duquel l’histoire tire son beau nom. car l’ἰστορία c’est
précisément cette «disponibilité», cette “soumission à l’inattendu”, cette “ouverture
à autrui”, où la mauvaise subjectivité est surmontée [ricœur, HV, 39].

Noutro ensaio de Histoire et Vérité («Histoire de la philosophie et histo-


ricité») ricœur reitera os limites do conhecimento histórico, desta feita pondo
a ênfase sobre a distância temporal que se intromete entre historiador e história,
a inexatidão do método e a impossibilidade de restabelecer o acontecido. mas
estes limites do discurso histórico não o invalidam, não são vícios, são equí-
vocos bem fundamentados que justificam o ofício do historiador. citamos o
passo na íntegra, em jeito de conclusão:
l’histoire est réellement le royaume de l’inexacte. cette découverte n’est pas
vaine; elle justifie l’historien. elle le justifie de tous ses embarras. la méthode
historique ne peut être qu’une méthode inexacte. [...] toutes les difficultés de la
méthode historique sont justifiées, à partir de cette limite du discours philoso-
phique. l’histoire veut être objective, et elle ne peut pas l’être. elle veut rendre
les choses contemporaines, mais en même temps il lui faut restituer la distance et
la profondeur de l’éloignement historique. [...] cette réflexion tend à justifier toutes
les apories du métier d’historien, celles que marc Bloch avait signalées dans son
plaidoyer pour l’histoire et le métier d’historien. ces difficultés ne tiennent pas à
des vices de méthode, ce sont des équivoques bien fondées [HV, 90-91].
capítulo i – soB o sigNo Da VerDaDe 53

2.  INTERPRETAÇÃO E VERDADE

sob a denominação canónica de “subjetividade vs objetividade”, o ensaio


de ricœur acentua o envolvimento do historiador no processo de conhecimento
e o seu envolvimento social/institucional. este duplo envolvimento é fruto da
dimensão de intersubjetividade do conhecimento histórico enquanto província do
conhecimento de outrem. os homens do passado que o historiador pretende
conhecer mantêm uma dupla condição: a de seres estrangeiros e a de seres do
passado. a esta dupla alteridade Dilthey acrescenta uma terceira formada pela
mediação da inscrição, que especifica a interpretação entre as modalidades de
compreensão. É esta tripla alteridade que coloca o conhecimento histórico na
região das ciências do espírito. o argumento de Dilthey (que é também o de
max Weber e de Karl Jaspers) faz eco nas teses de raymond aron e Henri-
-irénée marrou. Para aron, a compreensão implica uma objetivação dos factos
psíquicos mas, ao mesmo tempo, envolve sempre o intérprete, na sua dupla con-
dição de homem e de sábio, por isso a objetivação é sempre imperfeita. acima
de tudo, porque a história não é estática e acabada, mas está sempre em aberto,
é livre e imprevisível como o próprio homem e sujeita-se a equívocos e inter-
pretações várias. o mesmo jogo entre subjetividade e objetividade se assiste em
marrou. o historiador não é alguém que se limite a conferir uma determinada
ordem a um conjunto de documentos. ele interroga-os e, nesse sentido, a sua
arte começa por ser hermenêutica e continua como compreensão – essencial-
mente, interpretação de signos que o ajudam a ir ao encontro do outro, à reci-
procidade de consciências. a compreensão de outrem torna-se assim no farol do
historiador, com a condição de uma epoche ou suspensão do eu quotidiano num
verdadeiro esquecimento de si próprio. Por conseguinte, a implicação subjetiva
constitui quer a condição quer o limite do conhecimento histórico.
No entanto, alguns anos mais tarde, ricœur considera que o binómio é
insuficiente para dar conta da intenção que anima o texto histórico, que é dizer
a verdade, porquanto ele apenas salienta a psicologização e a moralização da
intenção do historiador, sublinhando os seus interesses pessoais, os seus precon-
ceitos e as suas paixões. a reflexão sobre subjetividade vs objetividade ganha
valor com uma revisão do conceito de interpretação em La mémoire, l’histoire,
l’oubli40. Nesta obra, publicada quase meio século depois do ensaio Objectivité

40
«l’amplitude du concept d’interprétation n’est pas encore pleinement reconnue dans
une version que je tiens pour une forme faible de la réflexion sur elle-même, et ordinairement
placée sous le titre «subjectivité vs objectivité»» (ricœur, MHO, 437).
54 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

et subjectivité en histoire, ricœur começa por sublinhar que a interpretação não


é uma etapa da operação historiográfica como a fase documental, a fase de
compreensão/explicação ou a fase da representação, mas encontra-se presente
nelas todas, indo neste ponto muito além da conceção estrita de Dilthey41. só
salvaguardando esta amplitude do conceito se pode livrar o binómio subjetivi-
dade/objetividade, tal como ricœur o concebe no ensaio supracitado, da acusa-
ção de psicologismo e sociologismo:
[...] présumer et assumer la solidarité entre interprétation et vérité en histoire, c’est
dire plus que simplement adosser l’objectivité à la subjectivité, comme il était dit
naguère; si l’on ne veut pas seulement psychologiser ou moraliser l’intention his-
torienne, par exemple en soulignant les intérêts, les préjugés, les passions de
l’homme historien, ou en célébrant ses vertus d’honnêteté et de modestie, voire
d’humilité, alors il faut marquer le caractère épistémique de l’interprétation
[ricœur 2000b: 746].

a interpretação entendida como operação epistémica é um complexo ope-


ratório que pode constituir a face subjetiva correlativa da face objetiva do
conhecimento histórico. este complexo operatório integra os enunciados objeti-
vantes do discurso histórico e revela várias facetas que vão do enunciado
(enquanto atos de linguagem) ao enunciador (o sujeito dos atos de interpreta-
ção). em primeiro lugar, o cuidado de clarificar, de explicitar um conjunto de
questões consideradas obscuras com vista a uma melhor compreensão por parte
do interlocutor. em seguida, o reconhecimento de que há várias interpretações
possíveis para o mesmo complexo e a admissão de um grau inevitável de con-
trovérsia, de conflito de interpretações. Depois, a defesa da interpretação com
argumentos plausíveis, possivelmente prováveis, submetidos à parte adversa. Por
fim, o reconhecimento de que por trás da interpretação subsiste sempre um
fundo opaco impenetrável, inesgotável, de motivações pessoais e culturais.
É precisamente esta correlação entre a face subjetiva e objetiva do conhe-
cimento histórico que ricœur deteta em cada um dos estádios da operação his-
toriográfica, de acordo com o trajeto epistemológico por ele definido em La

41
loin de récuser l’importance de la notion d’interprétation, je propose de lui donner
une aire d’application beaucoup plus vaste que celle que lui assignait Dilthey; il y a, selon
moi, de l’interprétation aux trois niveaux du discours historique, au niveau documentaire, au
niveau de l’explication/compréhension, au niveau de la représentation littéraire du passé. en
ce sens, l’interprétation est un trait de la recherche de la vérité en histoire qui traverse les
trois niveaux: c’est de l’intention même de vérité de toutes les opérations historiographiques
que l’interprétation est une composante (ricœur, MHO, 235).
capítulo i – soB o sigNo Da VerDaDe 55

mémoire, l’histoire, l’oubli. a começar pela fase documental, a interpretação


atua não só no momento da consulta dos arquivos mas já antes aquando da sua
constituição. De facto, uma escolha ou uma seleção presidiu ao estabelecimento
dos arquivos por uma instituição. Nem todos os traços e nem todos os teste-
munhos se tornam arquivos, a instituição guarda uns e rejeita outros. Na fase
da consulta, novas dificuldades de interpretação se apresentam. os arquivos são
submetidos a um conjunto de questões que guiam a sua consulta por parte do
historiador, logo, nem tudo o que eles transmitem tem interesse, havendo nova
seleção ou delimitação. o próprio questionário não é infinito, podemos pergun-
tar-nos o que é que guia o espírito do historiador para determinadas perguntas
em detrimento de outras, o que o leva a estudar uma época e não outra. rela-
tivamente à crítica dos testemunhos, ponto nevrálgico da fase documental, tam-
bém ela deriva de uma lógica do provável. ainda assim, a prova documental
é o que em história se aproxima mais do critério que Karl Popper definiu como
verificação e refutação. com um largo acordo entre especialistas, podemos dizer
que uma interpretação factual foi verificada se, com a documentação atualmente
disponível, ela não foi refutada.
Na fase de explicação/compreensão, que ricœur coloca, por uma questão
meramente didática e não cronológica, depois da fase documental, a interpreta-
ção aparece como a face subjetiva da explicação. sobressai o cuidado de cla-
rificação que pusemos à cabeça da operação de interpretação. a interpretação
tem que ver com a imbricação, ao nível da linguagem corrente, de usos logi-
camente heterogéneos do conector causal “porque”. alguns desses usos aproxi-
mam-se mais de uma regularidade de lei própria das ciências naturais, outros
estão mais próximos das explicações por razões ou motivos. esta matéria tem
que ver com o debate, que exporemos a seguir, entre explicação (da ordem das
ciências naturais, propõe um modelo explicativo único para todas as ciências,
inclusive a história) e compreensão (da ordem das ciências do espírito, defende
uma separação entre o método explicativo das ciências naturais e o das ciências
humanas). max Weber e Henrik von Wright propõem um modelo misto que
equivale a clarificação ou explicitação. mais uma vez, não é clara a razão que
leva um historiador a optar por um ou por outro modelo explicativo. Porquê
preferir uma abordagem micro-histórica em vez de uma macro-histórica?
Por fim, a fase de representação escriturária dispensa grandes comentários,
é onde é mais óbvia a interpretação. a narrativa comporta necessariamente uma
imensa parte de interpretação, podemos narrar sempre de outro modo, devido
ao caráter seletivo de qualquer composição narrativa. Podemos ainda escolher
entre vários tipos de intriga, entre vários estratagemas retóricos, podemos optar
por mostrar em vez de narrar. as várias obras históricas que constantemente
56 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

surgem sobre um determinado período da história são bem o testemunho


disso42.
Por conseguinte, podemos tentar uma definição de interpretação como
operação epistémica:
clarification des concepts et des arguments, l’identification des points de contro-
verse, la mise à plat des options prises, par exemple en posant telle question à tel
document, en choisissant tel mode d’explication plutôt que tel autre, en termes de
cause ou bien de raison d’agir, en privilégiant tel jeu de langage plutôt que tel
autre. c’est à tous les stades de l’opération historiographique que l’interprétation
qualifie le désir de vérité en histoire [ricœur 2000b: 747].

toda a operação historiográfica, em todas as suas ramificações, exibe a


correlação entre subjetividade e objetividade em história. todavia, ricœur pro-
põe que se renuncie a esta fórmula equívoca e se fale antes da correlação entre

42
as lições de antoine Prost (1996) dão bastante relevo a esta componente seletiva da
operação historiográfica e vão ao encontro das afirmações de ricœur. se a constituição de
uma intriga histórica implica o recorte de um objeto particular na trama infinita dos aconte-
cimentos da história, ela implica duas escolhas fundamentais: a escolha do início e do termo
do período a estudar; e a escolha da perspetiva de abordagem. a seleção do início e do fim
do assunto a estudar é uma escolha interpretativa com consequências no sentido e no tipo de
intriga: «le découpage chronologique est aussi un parti interpretatif» (ibid.: 245). Não é a
mesma coisa estudar a guerra de 1914 começando em 1871 e terminando em 1933 ou estudar
a mesma entre as datas de 1914 e 1919. «la mise en intrigue porte aussi sur les personnages
et les scènes. elle est choix des acteurs et des épisodes. toute histoire comporte, implicite,
une liste des personnages et une suite de décors. Pour rester dans la guerre de 1914, on ne
construira pas la même intrigue si l’on prend en compte l’arrière, les femmes, les vieux, les
enfants, ou si l’on se limite aux soldats. De même, l’intrigue des généraux n’est pas celle des
simples soldats. et l’histoire prendra un sens un peu différent si l’on décide de visiter les
hôpitaux et les cimetières, ou si l’on se limite aux tranchées et aux ministères» (ibid.: 246).
Posto isto, reitera-se um princípio fundamental da filosofia da história: a de que não há factos
isolados já constituídos. É estudando um facto que ele é isolado e construído como facto par-
ticular, sob um aspeto particular. «l’événement n’est pas un site que l’on va visiter, il est au
croisement de plusieurs itinéraires possibles, et l’on peut de ce fait l’aborder sous divers
aspects, en lui donnant une importance variable» (ibid.). a escolha do período e do ponto de
vista dependem totalmente do tipo de intriga desejado e do enfoque que se pretende dar ao
facto estudado: «le même fait, pris dans des intrigues différentes, change de valeur, de sig-
nification et d’importance» (ibid.: 246-247). uma história militar da guerra difere de uma his-
tória demográfica ou de uma história social e política da mesma. o objeto é o mesmo, mas
um tipo de intriga dará relevo a factos que outra descurará ou deixará para segundo plano.
assim: «la sélection du fait, sa construction, les aspects qu’on en dégage, l’importance qu’on
lui accorde dépendent de l’intrigue choisie. l’événement, dit P. ricœur, est une variable de
l’intrigue» (ibid.).
capítulo i – soB o sigNo Da VerDaDe 57

interpretação e verdade em história, pois que a implicação da interpretação em


todas as fases da operação historiográfica comanda o estatuto da verdade em
história (MHO, 445)43.
ora, a verdade em história está sob o signo da poética, como bem o
demonstra Jacques rancière em Les noms de l’histoire. a verdade está presa à
polissemia das palavras, a começar pela homonímia da palavra história, que em
francês como em português tanto pode significar o curso dos acontecimentos
passados como o relato que deles se faz. sendo a história escritura de uma
ponta à outra, toda a operação historiográfica é abrangida pela polissemia. a
história é, então, ciência ou narrativa? ou é algo intermédio entre os dois?
rancière (1992: 21) coloca o discurso histórico entre a inadequação da narra-
tiva e da ciência e a anulação dessa inadequação, entre uma exigência e a sua
impossibilidade. o modo de verdade do saber histórico consiste neste jogo
entre a indeterminação e a sua supressão. Por conseguinte, a história está obri-
gada a um triplo pacto: científico, narrativo e político. ou seja, ela deve, ao
mesmo tempo, dizer o mais fielmente possível o que conhece do passado, ir ao
encontro do gosto do público pela narrativa histórica e contribuir – de acordo
com as instruções oficiais prescritas aos docentes – para a transmissão de um
património cultural.
mas, acima de tudo, ela deve cada vez mais dizer a verdade, nada mais
do que a verdade, como testemunha diante dos tribunais, como regente da
memória ou como colaboradora com a sua perícia nas celebrações comemora-
tivas. o legislador pede-lhe que oriente as suas pesquisas para determinados
acontecimentos e os qualifique do ponto de vista judicial ou moral (holocausto,
massacres na arménia, no ruanda, na Bósnia, crimes da guerra civil espa-
nhola, etc.). a reconstrução do passado não pode ser, pois, senão um honesto
compromisso.

43
leduc identifica, em toda esta série de escolhas no plano da operação historiográfica,
outros fatores que não têm que ver com a busca da verdade: a ideologia do historiador, a sua
sensibilidade, a sua permeabilidade a pressões sociais ou à moda, a sua carreira académica
ou editorial, etc. estes fatores impossibilitam o projeto de objetividade, enquanto restituição
total e imparcial do passado, mas há algumas garantias que impedem a história de cair na
fantasia, a saber: o profissionalismo (o ofício de historiador exige escolarização superior); a
crítica dos colegas do historiador, a que Karl Popper designa de intersubjetiva; por fim, o
facto de a história não ser um discurso autorreferencial, o seu paratexto (notas, inventário de
fontes, bibliografia) faz dela uma construção verificável. «a défaut de “vérité” – mot au par-
fum d’absolu – la construction historique est en recherche de vraisemblance, une vraisem-
blance que des nouvelles recherches pourront toujours, selon une autre formule de K. Popper,
falsifier» (2008: 6).
(Página deixada propositadamente em branco)
CAPÍTULO II
EXPLICAÇÃO HISTÓRICA E COMPREENSÃO NARRATIVA

expliquer plus c’est comprendre mieux [ricœur, TR ii, 14].

alterando um pouco a ordem dos fatores seguida por ricœur – por uma
questão de equilíbrio na estrutura desta exposição; por causa do peso que esta
matéria assume quer no contexto geral da reflexão histórico-epistemológica do
autor (transcendendo Temps et Récit) quer no nosso estudo; e devido ao facto
de se poder ler, sem prejuízo, separada do tema maior ao qual aparece subor-
dinada (a relação tempo e narrativa) – decidimos apresentar este capítulo iso-
lado do itinerário argumentativo em que aparece embutido em Temps et Récit
e que tem que ver com a poética do tempo, assunto a que dedicaremos o pró-
ximo capítulo. ou seja, na obra em causa, a meditação sobre a relação entre
história-ciência e narrativa, sem deixar de estar relacionada, obriga à suspensão
da argumentação que o autor vem trazendo em torno da dialética tempo e nar-
rativa, que só encontrará continuidade no terceiro volume da obra. Depois de
demonstrar especulativamente essa simbiose – dando-nos conta da aporia agos-
tiniana do tempo, da teoria poética aristotélica, que recobre a aporia temporal,
e da sua própria teoria geral da narrativa, assente no círculo mimético formado
pela tríplice mimese – o filósofo parte para a consideração específica do modo
narrativo história-ciência. De facto, inicialmente, a inteligência narrativa é
caracterizada uniformemente com base na operação dinâmica da “mimesis” ii
ou mise en intrigue, cuja configuração inteligível traça uma ponte entre o
mundo da ação temporal e o do leitor. Parte-se do pressuposto que essa espiral
hermenêutica se adequa de modo igual à historiografia e à ficção, os dois
ramos maiores que constituem atualmente a narrativa. todavia, ricœur não quer
dar esse facto por adquirido, sobretudo porque as novas formas epistemológicas
e metodológicas de apreender o passado afastaram-se imenso da tradicional his-
tória narrativa, que é apenas mais um género dentro da gama da historiografia.
60 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

Por esse motivo, o filósofo não avança para a tese final do entrecruzamento
entre história e ficção na refiguração do tempo sem previamente deixar bem
claro que em toda a história dita sábia, mesmo na mais afastada da inteligência
narrativa, sobrevive uma marca de água narrativa, pois a inteligibilidade da
mise en intrigue faz dela mais do que uma simples crónica ou sequência des-
garrada de acontecimentos; a narrativa compõe-se de uma dimensão episódica-
-linear e outra configurante que é a base da sua inteligibilidade:
ma thèse est que le lien de l’histoire avec le récit ne saurait être rompu sans que
l’histoire perde sa spécificité parmi les sciences humaines. Je dirai d’abord que
l’erreur de base de ceux qui opposent histoire à récit procède de la méconnais-
sance du caractère intelligible que l’intrigue confère au récit, tel qu’aristote le
premier l’avait souligné. une notion naïve du récit, comme suite décousue d’évé-
nements, se retrouve toujours à l’arrière-plan de la critique du caractère narratif de
l’histoire. on n’en voit que le caractère épisodique et on en oublie le caractère
configuré, qui est la base de son intelligibilité. en même temps, on méconnaît la
distance que le récit instaure entre lui-même et l’expérience vive. entre vivre et
raconter, un écart, si infime soit-il, se creuse. la vie est vécue, l’histoire est
racontée [ricœur, TA, 15].

a questão que se impõe, então, é a de verificar a que ponto é possível


e legítimo radicar a história-ciência no solo da narrativa, preservando a sua
especificidade relativamente à ficção e às outras ciências naturais e humanas.
assim, ricœur pugna com dois fins aparentemente opostos: pretende assegurar
o gene narrativo da história e assegurar a sua autonomia científica.
ricœur nunca pretende denegar o caráter científico da história nem excluí-
-la do campo das ciências sociais e humanas, apenas trabalha no sentido de
marcar a sua especificidade, pela sua ligação umbilical à narrativa e desta ao
acontecimento temporal – peça fundamental sem a qual não existe narrativa.
.este facto leva-o a fazer uma revisão crítica do contributo da escola francesa
dos annales, da sua repugnância pelo acontecimento breve e, consequente-
mente, pela narrativa, bem como do modelo nomológico, que tenta inscrever a
história no círculo fechado das ciências. o filósofo francês analisa teorias da
história que fizeram furor num determinado período do século XX, marcado
pelo abandono da história política e factual e pela implementação de uma his-
tória de longa duração, tornada história social, económica, cultural, para con-
cluir que esta permanece unida ao tempo e dá conta de acontecimentos que
ligam uma situação inicial a uma situação final, pois não é a velocidade da
mudança que faz a história:
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 61

la vitesse du changement ne fait rien à l’affaire. en restant liée au temps et au


changement, elle reste liée à l’action des hommes qui, selon le mot de marx, font
l’histoire dans des circonstances qu’ils n’ont pas faites. Directement ou indirecte-
ment, l’histoire est celle des hommes qui sont les porteurs, les agents et les vic-
times des forces, des institutions, des fonctions, des structures dans lesquelles ils
sont insérés. a titre ultime, l’histoire ne peut rompre tout à fait avec le récit, parce
qu’elle ne peut rompre avec l’action qui implique des agents, des buts, des cir-
constances, des interactions et des résultats voulus et non voulus. or l’intrigue est
l’unité narrative de base qui compose ces ingrédients hétérogènes dans une totalité
intelligible [ricœur, TA, 15].

Neste sentido, um dos passos mais ousados e também mais admiráveis de


ricœur é a arguta e paciente análise da extensa obra histórica de F. Braudel,
La Méditerranée et le Monde méditerranéen à l’époque de Philippe II (1949),
no intuito de fazer emergir da sua estrutura tripartida as características de uma
intriga44.
ignorar a inteligibilidade de base da narrativa (a sua capacidade configu-
radora) impede de compreender como é que a explicação histórica pode encai-
xar na compreensão narrativa, de maneira que: «en expliquant plus on raconte
mieux» (ricœur, TA, 15). É este famoso adágio ricœuriano que se oferece
como solução à antinomia. ele serve de divisa aos estudos desenvolvidos pelo
filósofo em Temps et Récit i e ii, onde se trata de ligar explicação e compreen-
são ao nível, respetivamente, da historiografia e da ficção, mas assoma já nos
estudos hermenêuticos que encontramos reunidos em Du texte à l’action, Essais
d’herméneutique II. apesar de as análises de Temps et Récit serem mais deta-
lhadas, o resultado final é o mesmo. No que à história diz respeito, ricœur não
nega que a história possa recorrer a leis, que pode pedir emprestadas a outras
ciências sociais mais sofisticadas como a demografia, a economia, a linguística,
a sociologia ou que a explicação histórica possa ser constituída por leis, causas

44
«une des raisons du succès de cette appropriation historienne (certes inégale) tient
aussi au travail mené par ricœur (1983-1985, 2000) qui n’est pas un “méta-récit” philoso-
phique de plus sur l’histoire car il s’appuie sur une lecture approfondie des productions his-
toriennes elles-mêmes. son analyse de La Méditerranée de Braudel est devenue une référence
désormais classique pour démontrer que le récit n’avait pas vraiment disparu de l’historiogra-
phie française (Hartog, 1995). il y démontre comment une structure narrative complexe – un
récit donc – est maintenue par Braudel. celui-ci invente un nouveau type d’intrigue qui
conjugue des structures, des cycles et des événements pour rendre compte du déclin de la
méditerranée comme “héros collectif de l’histoire mondiale”» (Delacroix, Dosse, garcia 2007:
588).
62 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

regulares, funções, estruturas; questiona sim o seu funcionamento, o facto de


não funcionarem em história da mesma maneira que funcionam nas ciências da
natureza, e terem de se articular necessariamente com a compreensão narrativa
que lhes subjaz. as leis só por si não têm significado histórico, para o adqui-
rirem têm de estar inseridas numa narração de acontecimentos aos quais se
referem, pois é a compreensão narrativa que preserva o caráter irredutivelmente
histórico da história45. De facto, comenta ricœur, o historiador não estabelece
as leis, utiliza-as (1980, in tiffeneau 1980: 7).
Passa-se algo similar na ficção: como na história a explicação nomológica
não pode substituir a compreensão narrativa, mas apenas interpolar-se nela, em
virtude justamente do adágio “expliquer plus c’est comprendre mieux”, também
a semiótica só pode conservar o seu cariz narrativo articulando-se com a inte-
ligibilidade narrativa46.
sem querermos menosprezar as discussões em torno da ficção, neste capí-
tulo, por uma questão de pertinência, daremos prioridade à historiografia, cen-
trando a nossa atenção na incursão de ricœur pelas reflexões metodológicas da
escola dos annales, epistemológicas do positivismo lógico e, sobretudo, pelas
teses do narrativismo saído do linguistic turn, que merecem da nossa parte uma
dupla atenção: porque são fundamentais para perceber a construção do argu-
mentário de ricœur; mas também porque se trata de textos e autores que mar-
caram indelevelmente a discussão em torno de história e ficção ao longo do
século XX. a história é colocada numa posição delicada, entre paradigmas
científicos e teorias narrativistas, que se enxertam na velha questão hermenêu-
tica que opõe explicar e compreender, até que a imaginação histórica, atuante
na imputação causal, lhe estende uma ponte “quase-narrativa”. a despeito da
dissolução deste conflito ao nível da explicação histórica, o projeto de encon-
trar os laços profundos entre história científica e competência narrativa só ter-
mina com a descoberta dos genes narrativos das entidades e dos acontecimentos
próprios da história científica. É esta dialética entre história e narrativa – que

45
«l’erreur des tenants des modèles nomologiques n’est pas tant qu’ils se méprennent
sur la nature des lois [...] mais sur leur fonctionnement. ils ne voient pas que ces lois revê-
tent une signification historique dans la mesure où elles se greffent sur une organisation nar-
rative préalable qui a déjà qualifié les événements comme contribution au progrès d’une
intrigue» (ricœur, TA, 15).
46
«Faudra-t-il dire, ici aussi, que la sémiotique, dont le droit d’exister est hors de
question, ne conserve son qualificatif de narrative que dans la mesure où elle l’emprunte à
l’intelligence préalable du récit [...]» (ricœur, TR ii, 65).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 63

se confunde com explicação e compreensão – que preenche toda a segunda


parte de Temps et Récit i (pp. 163-396).
a abordagem de questões delicadas e complexas como o estatuto do acon-
tecimento, o apagamento da narrativa na história de tipo estrutural e a dialética
explicação histórica e compreensão narrativa revelam uma sagacidade e uma
competência intelectual fora de série. com admirável mestria, o filósofo francês
convoca e rege uma polifonia de autorizadas vozes, confronta e associa teorias,
recolhe ideias daqui e dacolá e formula as suas próprias respostas, produzindo
autênticos mosaicos, textos densos e, por vezes, difíceis de acompanhar para
um leitor leigo, mas indispensáveis para os propósitos que norteiam a nossa
investigação.

1.  EXPLICAR E COMPREENDER: TEXTO, AÇÃO E HISTÓRIA

a problemática compreensão/explicação não é nova na bibliografia de


ricœur. Para além de aflorar o assunto no ensaio por nós anteriormente comen-
tado sobre Objetividade e subjetividade em história (HV, 27-50), no qual expli-
cação é associada a análise e compreensão a síntese histórica, é num estudo
publicado em 1977, na Revue Philosophique de Louvain, sob o título «expli-
quer et comprendre. sur quelques connexions remarquables entre la théorie du
texte, la théorie de l’action et la théorie de l’histoire» que o autor inaugura um
percurso reflexivo mais profundo sobre o tema47. este artigo integra a compi-
lação, de 1986, Du texte à l’action. Essais d’herméneutique ii, cuja segunda
parte contém uma série de ensaios de hermenêutica, nos quais a dialética com-
preensão-explicação assoma constantemente, servindo o texto de paradigma para
a ação e para a história. como reconhecerá mais tarde o autor, trata-se de refle-
xão rudimentar, pelo que uma nova abordagem dá-lhe oportunidade para refinar
a sua análise ao nível da historiografia (TR i) e ao nível da narrativa ficcional
(TR ii)48.
Por trás do debate antigo entre explicação e compreensão está a questão
da homogeneidade-continuidade-unidade ou do corte epistemológico entre ciên-

47
o próprio autor, numa nota da página 168 de TR i, informa que a análise que con-
sagra à intencionalidade histórica (ponto de encontro, em história, de compreensão e expli-
cação) reaviva e dá continuidade a este ensaio.
48
«le cas de l’explication historique m’a au contraire donné l’occasion de raffiner la
dialectique expliquer-comprendre, dont j’avais traité sous une forme plus rudimentaire sous le
couvert de la notion de texte, ou dans le cadre de la théorie de l’action» (ricœur, RF, 69-70).
64 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

cias naturais e ciências humanas, como bem no-lo explica antoine Prost49.
Neste duelo primário, explicação designa a tese da não diferenciação, da con-
tinuidade epistemológica entre ciências da natureza e ciências do espírito, e
compreensão a reivindicação da especificidade irredutível das ciências do
homem. este dualismo epistemológico é fundado pelo pressuposto de que a
ordem dos signos e das instituições é inconciliável com a dos factos cobertos
por uma lei, ou seja, que existe um modo de ser da natureza e um modo de
ser do espírito. ricœur, no artigo supracitado, põe em causa esta dicotomia
entre duas modalidades irredutíveis. É nos níveis do texto, da ação e da história
que o filósofo vê uma semelhança ou, nas suas palavras, uma homologia que
autoriza uma dialética assente na interpretação como via alternativa50. a inter-
pretação é enriquecida com a explicação, consistindo precisamente na alternân-
cia de fases de compreensão e de fases de explicação «ao longo de um único
eixo hermenêutico» (ricœur 1987: 7). ora, em termos epistemológicos, uma
implicação mútua entre os métodos significa que entre as ciências da natureza
e as ciências do espírito deve existir tanto continuidade como descontinuidade,
parentesco e especificidade metodológica. se não existe dualismo epistemoló-
gico, também não poderá haver dualismo ontológico. abolida a diferença de
métodos, a filosofia não privilegiará umas disciplinas em detrimento de outras,
mas deve abraçá-las todas sob o teto do conceito fundamental e superior de
verdade.

49
«l’opposition entre le mode d’intelligibilité des hommes et celui des choses a été
théorisée par Dilthey et reprise en France par r. aron, dans sa thèse. Bien qu’il soit daté, ce
débat épistémologique reste important. il pose une différence radicale entre les sciences de l’es-
prit ou sciences humaines (Geisteswissenschaften) et celles de la nature (Naturwissenschaften),
celles-ci étant la physique et la chimie de la fin du siècle dernier. les sciences de la nature
expliquent les choses, les réalités matérielles; celles de l’esprit font comprendre les hommes
et leurs conduites. l’explication est la démarche de la science proprement dite; elle recherche
les causes et vérifie les lois. elle est déterministe: les mêmes causes produisent toujours les
mêmes effets, et c’est précisément ce que disent les lois. la rencontre d’un acide et d’un
oxyde donne toujours un sel, de l’eau et de la chaleur. manifestement, les sciences humaines
ne peuvent viser ce type d’intelligibilité. ce qui rend les conduites humaines intelligibles,
c’est qu’elles sont rationnelles, ou du moins intentionnelles. l’action humaine est choix d’un
moyen en fonction d’une fin. on ne peut l’expliquer par des causes et des lois, mais on peut
la comprendre. c’est le mode même d’intelligibilité de l’histoire» (1996: 151).
50
«Je voudrais tirer argument de la ressemblance ou, pour mieux dire, de l’homologie
qu’on peut aujourd’hui établir entre trois problématiques, celle du texte, celle de l’action et
celle de l’histoire. [...] Par dialectique, j’entends la considération selon laquelle expliquer et
comprendre ne constitueraient pas les pôles d’un rapport d’exclusion, mais les moments rela-
tifs d’un processus complexe qu’on peut appeler interprétation» (ricœur, TA, 162).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 65

antes de explicitarmos a dialética ricœuriana nos três campos acima refe-


ridos, importa compreender como a teoria do “Verstehen” (compreender) resul-
tou na dicotomia entre explicar e compreender e que deficiências suas permitem
a ricœur criticá-la e reformulá-la. este trabalho exige que evoquemos Dilthey,
o representante máximo da teoria do “Verstehen”, na alemanha do início do
século XX51. Para este filósofo, a questão não estava em opor um obscuran-
tismo romântico ao espírito científico saído de galileu, Descartes e Newton,
mas sim em conferir à compreensão o mesmo estatuto científico da explicação.
explicação e compreensão designam para Dilthey duas esferas opostas da rea-
lidade: respetivamente, a das ciências da natureza e a das ciências do espírito.
a região das ciências da natureza é a dos objetos oferecidos à observação cien-
tífica e submetidos, desde galileu, a uma matematização e, desde John stuart
mill, aos cânones da lógica indutiva. a região do espírito é a das individuali-
dades psíquicas para as quais cada psiquismo é capaz de se transportar. logo,
a compreensão consiste numa transferência ou transporte para o psiquismo de
outrem. se todo o modelo de explicação provém das ciências naturais e da sua
lógica indutiva, é necessário preservar a autonomia das chamadas ciências do
espírito (Geisteswissenschaften), reconhecendo o caráter irredutível da com-
preensão que se tem da vida psíquica de outrem com base nos signos através
dos quais ela se exterioriza. mas, se a compreensão está separada da explicação
por este abismo lógico, em que sentido as ciências humanas podem ser ditas
científicas?52 a existência de ciências do espírito fica dependente da possibili-
dade de se poder alcançar um conhecimento científico dos indivíduos, ou seja,
da possibilidade de se conseguir um conhecimento objetivo e universalmente
válido da inteligência do singular. Para Dilthey isso é possível, porque o inte-
rior manifesta-se em signos exteriores sensíveis que podemos captar e com-
preender. a compreensão não se limita, pois, à capacidade de nos transferirmos
para o vivido psíquico de outro com base nos signos que ele oferece à nossa
compreensão – sejam eles signos diretos como gestos e palavras ou indiretos

51
W. Dilthey, «origine et développement de l’herméneutique», 1900, in Le Monde de
l’Esprit, i, Paris, 1974.
52
«Dilthey n’a cessé de se confronter avec ce paradoxe. il a découvert, principalement,
après avoir lu les Recherches logiques de Husserl, que les Geisteswissenschaften sont des
sciences dans la mesure où les expressions de la vie subissent une sorte d’“objectification”
qui rend possible une approche scientifique quelque peu semblable à celle des sciences natu-
relles, en dépit de la coupure logique entre Natur et Geist. De cette façon, la médiation
offerte par ces “objectifications” paraît être plus importante, du point de vue scientifique, que
la signifiance immédiate des expressions de la vie au niveau des transactions quotidiennes»
(ricœur, TA, 198).
66 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

como a escrita, os monumentos e as inscrições – ela quer ser um verdadeiro


saber que, para além de preservar essa marca da sua origem na compreensão
dos signos, tenha o caráter organizativo, estabilizador e coerente de um verda-
deiro saber. ora, dentre os signos, só os fixados por escrito são passíveis de
objetivação científica e a vida psíquica, para passar ao estado escrito, tem de
comportar encadeamentos estáveis, uma espécie de estrutura institucional53. o
problema é que esta teoria leva Dilthey a introduzir características do espírito
objetivo, teorizado por Hegel, numa filosofia que permanece marcadamente
romântica, pois a vida exprime-se por signos e a partir daí interpreta-se a si
mesma. a partir destas dificuldades internas à teoria da compreensão, ricœur
esboça uma dialética geral entre compreender e explicar ao nível do texto,
da ação e da história, ligadas pela fórmula “explicar mais é compreender
melhor”54.

53
as manifestações escritas do psiquismo de outrem ficam a cargo da interpretação,
província da compreensão que tem como tarefa específica compreender os signos escritos que
manifestam a interioridade de outrem e marcar a diferença fundamental que existe entre as
ciências do espírito e as ciências da natureza: «l’interprétation est ainsi l’art de comprendre
appliqué à de telles manifestations, à de tels témoignages, à de tels monuments, dont l’écri-
ture est le caractère distinctif» (ricœur, TA, 143). assim sendo, no binómio compreender-
-interpretar, a compreensão fornece o fundamento, a saber, o conhecimento através de signos
do psiquismo de outrem, a interpretação fornece o grau de objetivação, graças à fixação e à
conservação que a escrita confere aos signos. e, para Dilthey, só há duas hipóteses, mutua-
mente exclusivas: «ou bien vous “expliquez”, à la manière du savant naturaliste, ou bien vous
“interprétez”, à la manière de l’historien» (ibid.: 142). É por isso que ricœur, avesso que é
a oposições exclusivistas e apelando ao seu espírito dialéctico, tenta demonstrar, no artigo que
antecede o que estamos a analisar (TA, 137-159), que o conceito de interpretação já não serve
para fazer a oposição entre explicação e compreensão, no intuito de salvaguardar a especi-
ficidade das ciências do espírito, na medida em que, atualmente, essa oposição é despropo-
sitada, já que a explicação que se aplica às ciências do espírito não é uma extensão das ciên-
cias da natureza («ce n’est pas un modèle naturaliste étendu après coup aux sciences de
l’esprit» [ibid.: 146]), mas provém, por analogia, da própria esfera da linguagem, como é o
caso do modelo estruturalista saído da linguística («il est en effet possible de traiter les textes
selon les règles d’explication que la linguistique applique avec succès aux systèmes simples
des signes qui constituent la langue-parole» [ibid.]). assim sendo, a interpretação já não tem
de se confrontar com um modelo exterior às ciências humanas; o seu debate é com um
modelo de inteligibilidade que pertence ao mesmo domínio das ciências humanas, a linguís-
tica. mais uma vez, o objetivo de ricœur é tornar menos antinómica a relação entre expli-
cação e interpretação, orientando a sua pesquisa no sentido de «uma estreita complementari-
dade e reciprocidade» (ibid.: 142) entre as duas, no momento chave da leitura.
54
«Je résumerai ces trois débats partiels par une même formule. expliquer plus c’est
comprendre mieux. autrement dit, si la compréhension précède, accompagne et enveloppe
l’explication, celle-ci, en retour, développe analytiquement la compréhension» (ricœur 1987a: 8).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 67

apesar de a teoria da história ser aquela que de momento mais nos inte-
ressa, muito do que se disser sobre texto e ação serve também para história,
devido à sua correlação e reenvio mútuo.

Ao nível do texto, ricœur concentra-se especificamente no género narra-


tivo do discurso. uma leitura puramente dicotómica de explicação e compreen-
são leva a uma separação radical entre uma análise estrutural do texto e uma
compreensão na linha da tradição hermenêutica romântica. os estruturalistas
partidários de explicação sem compreensão, têm uma visão mecânica e fechada
do texto, ao qual não se pode perguntar nem pela intenção do autor nem pelo
leitor nem pelo sentido ou mensagem. os hermeneutas românticos têm uma
conceção oposta. Para eles, compreender é estabelecer uma comunicação, um
face-a-face, entre a mente do leitor e do autor: «ainsi, d’une part, au nom de
l’objectivité du texte, tout rapport subjectif et intersubjectif serait éliminé par
l’explication, d’autre part, au nom de la subjectivité de l’appropriation du mes-
sage, toute analyse objetivante serait déclarée étrangère à la compréhension»
(ricœur, TA, 165).
contra esta mútua exclusão, ricœur propõe a conceção mais dialética de
«interpenetração entre compreensão e explicação» (ibid.)55. a compreensão
necessita da explicação porque a feitura e a leitura de um texto é regulada por
códigos narrativos que a análise estrutural dá a conhecer, dos quais dependem
a compreensão das frases: «on ne saurait donc dire que le passage par l’expli-

55
a dialética ricœuriana entre compreensão e explicação ao nível do texto retoma as
conclusões de um ensaio anterior: «the model of the texte: meaningful action considered
as a text», in Social Research, 38/3 (1971), pp. 529-562 [retomado em TA, sob o título «le
modèle du texte: l’action sensée considerée comme un texte», pp. 183-211]. aí, tal como
aqui, o autor, movido pelo mesmo desejo de conciliação, busca a explicação do lado do texto,
logo, das ciências do espírito, e não como uma expansão das ciências naturais. a leitura, fun-
cionando como réplica da escrita, permite estabelecer um diálogo entre compreensão e expli-
cação, fornecendo uma solução ao paradoxo metodológico das ciências humanas: «il y a une
dialectique entre expliquer et comprendre parce que le couple écrire-lire développe une pro-
blématique propre qui n’est pas seulement une extension du couple parler-entendre constitutif
du dialogue» (ricœur, TA, 198). É neste ponto que a hermenêutica ricœuriana se afasta cla-
ramente da tradição romântica da hermenêutica, que tinha como modelo de análise não o
texto mas o diálogo. o texto exibe características próprias que lhe conferem a objetividade
da qual deriva a possibilidade de explicar. a explicação não é importada de um domínio
estrangeiro, o dos acontecimentos naturais, mas é retirada dos próprios signos linguísticos.
É, pois, no campo dos signos que explicação e compreensão se confrontam. o paradigma da
leitura é depois estendido por ricœur a toda a esfera das ciências humanas.
68 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

cation est destructeur de la compréhension intersubjective. c’est une médiation


exigée par le discours lui-même» (ibid.: 166).
também a explicação precisa da compreensão («il n’est pas d’explication
qui ne s’achève par la compréhension» [ibid.: 166]), uma vez que uma narra-
tiva não se limita a ser uma variável de um sistema de códigos de permissão
e de interdição. É preciso fazer o percurso inverso do virtual para o atual, do
sistema para o acontecimento, da língua para a palavra, ou mais precisamente,
para o discurso56.
Não é assim que o estruturalismo entende este processo. concentrando-se
exclusivamente na tessitura verbal, recusa qualquer tipo de psicologia do nar-
rador e do ouvinte e toda a sociologia do auditório, mantendo como sagrada a
regra básica da imanência do texto. No entanto, se o analista estrutural procura,
dentro da estrutura fechada do texto, os signos do narrador e do ouvinte é por-
que deseja compreender os vários procedimentos analíticos que lhe subjazem e
o lugar da narração, enquanto transmissão de uma narrativa de alguém para
outrem, dentro de uma tradição viva e de uma comunidade cultural, que se
interpreta a si própria por via narrativa: «la narration – au sens opératoire du
mot – est ainsi l’action qui ouvre le récit sur le monde où il se défait et se
consume, et cette ouverture est la contrepartie de ce que le sémiologue ne con-
naît que comme fermeture du récit» (ricœur, TA, 167).
esta passagem da explicação à compreensão não significa, de modo
algum, que ricœur tome o partido da teoria psicologista de Dilthey. Pelo con-
trário, ele é o primeiro a admitir que o maior prejuízo para teoria da compreen-
são proveio da identificação diltheiana entre compreensão e compreensão de
outrem, crente na possibilidade de se apreender a vida psicológica estrangeira
por trás do texto. No artigo sobre a «função hermenêutica da distanciação»
(ibid.: 101-117), ricœur deixa bem claro o seu afastamento face a esta teoria
com laivos de romantismo, que vê a hermenêutica como uma tentativa do
sujeito leitor se igualar à genialidade do autor e se tornar seu contemporâneo.
a mais-valia do estruturalismo foi ter-nos chamado a atenção para a impossi-
bilidade desta aproximação, da distância insuperável entre autor e leitor e entre
texto e mundo real. o texto está fechado, separado da realidade e do autor, sus-
tentam os partidários da análise estrutural. apesar de reconhecer a justeza e a

56
relativamente à famosa antinomia saussuriana entre “langue” e “parole”, que funda-
menta o estruturalismo, podemos dizer que o discurso está do lado da “palavra” em oposição
à “língua”. esta não tem ligação alguma com a realidade, as palavras reenviam simplesmente
umas às outras no circuito fechado do dicionário. o discurso, por seu turno, visa as coisas,
aplica-se à realidade, exprime o mundo.
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 69

fecundidade das teses estruturalistas, ricœur também lhes denuncia os excessos.


a tarefa hermenêutica principal escapa à alternativa entre genialidade e estru-
tura, o filósofo francês liga-a à noção de “mundo do texto”. o mundo do texto
não é o da linguagem quotidiana, é uma proposta de mundo, de um mundo que
nós, leitores, poderíamos habitar. Por conseguinte, o mundo do texto não é o
mundo das intenções de outrem, dissimuladas por trás do texto, que Dilthey
acreditava poder recuperar-se mediante a interpretação; o mundo de que fala
ricœur é o que se desdobra diante do texto, é um mundo das possibilidades do
ser-no-mundo, acessíveis à interpretação57. esta posição exige que, contraria-
mente ao que propõe o estruturalismo, o texto tenha, para além do sentido, tam-
bém uma referência, como sugere Frege58 e ricœur corrobora: «son sens, c’est
l’objet idéal qu’elle vise; ce sens est purement immanent au discours. sa réfé-
rence, c’est sa valeur de vérité, sa prétention à atteindre la réalité» (TA, 113).
Posto isto, o que há a compreender numa narrativa não é, em primeiro
lugar, aquele que fala por trás do texto, mas aquilo que é dito, ou seja, a coisa
do texto, o tipo de mundo que a obra desdobra diante de si [cf. ricœur, TA,
168]. a mimese poética não é cópia, é, como a entende aristóteles, uma imi-
tação criativa da ação dos homens, que resulta num mythos, numa intriga. Do
mesmo modo, uma lógica das possibilidades narrativas, tal como são abordadas
por uma análise formal dos códigos narrativos, tem o seu fim na função mimé-
tica, pela qual a narrativa refaz o mundo humano da ação. então, não faz sen-
tido negar o caráter subjetivo da compreensão no qual se completa a explica-

57
«si nous ne pouvons plus définir l’herméneutique par la recherche d’un autrui et de
ses intentions psychologiques qui se dissimulent derrière le texte, et si nous ne voulons pas
réduire l’interprétation au démontage des structures, qu’est-ce qui reste à interpréter? Je
répondrai: interpréter, c’est expliciter la sorte d’être-au-monde déployé devant le texte»
(ricœur, TA, 114).
58
g. Frege, Écrits logiques et philosophiques, Éd. du seuil, Paris, 1971. ao falar de
referência, ricœur não está, obviamente, a pensar numa referência primária, imediata, pois
essa é abolida pela ficção e pela poesia, ele fala de uma outra, metafórica, que se ergue sobre
as ruínas desta e que atinge o ser-no-mundo. É assim que qualquer discurso poético ou fic-
cional se reporta sempre à realidade, não à realidade visada pela linguagem corrente, mas
àquela onde se desdobra a verosímil e provável essência humana. «et pourtant, il n’est pas
de discours tellement fictif qu’il ne rejoigne la réalité, mais à un autre niveau, plus fonda-
mental que celui qu’atteint le discours descriptif, constatif, didactique, que nous appelons lan-
gage ordinaire. ma thèse est ici que l’abolition d’une référence de premier rang, abolition
opérée par la fiction et par la poésie, est la condition de possibilité pour que soit libérée une
référence de second rang, qui atteint le monde non plus seulement au niveau des objets mani-
pulables, mais au niveau que Husserl désignait par l’expression de Lebenswelt et Heidegger
par celle d’être-au-monde» (ricœur, TA, 114).
70 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

ção. «É sempre alguém que recebe, faz seu e se apropria do sentido» (ibid.).
em suma, não há conflito ou incompatibilidade entre a análise objetiva estru-
tural e a apropriação do sentido pelos sujeitos. entre as duas desdobra-se o
mundo do texto e o significado da obra, constituído pelo “mundo dos trajetos
possíveis da ação real” (ibid.): «si le sujet est appelé à se comprendre devant
le texte, c’est dans la mesure où celui-ci n’est pas fermé sur lui-même, mais
ouvert sur le monde qu’il redécrit et refait» (ricœur, TA, 168).
a dialética compreensão/explicação ao nível do texto será alvo de uma
profunda e mais ampla análise em Temps et Récit ii. Nós, por agora, voltamo-
-nos para a teoria da ação, onde salientamos apenas as ideias principais. ainda
que se possa estabelecer alguma conexão entre a teoria do texto e a teoria da
ação, os autores e as problemáticas são outras bem distintas.

A teoria da ação, aquando da redação do artigo por ricœur, década de


setenta, era uma especialidade anglo-saxónica. É curioso que o debate sobre a
ação conduziu às mesmas aporias e às mesmas tentativas de uma solução dia-
lética que o debate sobre o texto, como testemunha o próprio título da obra de
g. H. von Wright, Explanation and Understanding (1971).
entre os anos 1955-1960, sob a influência do pensamento de Wittgens-
tein (teoria dos jogos de linguagem59) e de austin (teoria dos atos de fala), a
discussão sobre esta matéria conduziu, com um vocabulário diferente, à mesma
dicotomia entre compreender e explicar que encontrámos, cinquenta anos antes,
em Dilthey e nos seus partidários de língua alemã. a fratura deveu-se, em pri-
meiro lugar, à noção de causa. Na ciência de Hume, causa e efeito são logi-
camente independentes, podendo descrever-se os antecedentes e os consequentes
de forma separada. o mesmo não se passa entre intenção e ação, motivo e pro-
jeto, entre os quais existe um vínculo lógico e não causal, na aceção de Hume.
existe uma implicação entre motivo e projeto que não cabe no esquema de
heterogeneidade lógica de causa e efeito. o mesmo conector causal “porque”
pode significar uma causa num jogo de linguagem e um motivo ou razão nou-

59
o argumento dos jogos de linguagem, que sustentava a sua irredutibilidade, consiste
no seguinte: «ce n’est pas dans le même jeu de langage que l’on parle d’événements se pro-
duisant dans la nature ou d’actions faites par des hommes. car, pour parler d’événements, on
entre dans un jeu de langage comportant des notions telles que cause, loi, fait, explication,
etc. il ne faut pas mêler les jeux de langage, mais les séparer. c’est donc dans un autre jeu
de langage et dans un autre réseau conceptuel que l’on parlera de l’action humaine. car, si
on a commencé à parler en termes d’action, on continuera à parler en termes de projets, d’in-
tentions, des motifs, de raisons d’agir, d’agents, etc.» (ricœur, TA, 169).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 71

tro jogo de linguagem. em segundo lugar, foi a noção de agente que contribuiu
para acender ainda mais o debate. Podemos considerar um agente causa dos
seus atos se estivermos a pensar num modelo de causa não-humiano, isto é, em
que causa não signifique antecedente constante. ricœur considera esta dicoto-
mia insustentável, na medida em que ela retira à filosofia a sua missão de arti-
culadora, hierarquizadora, organizadora do saber, para a reduzir a preservadora
da diferença entre jogos de linguagem heterogéneos. Por isso, reage contra ela
com dois argumentos fundamentais: o primeiro relativo ao debate entre motivo
e causa e o segundo relativo à forma como a ação se insere no mundo. No pri-
meiro demonstra como não é possível manter motivo e causa separados, como
se cada um fosse específico de um só jogo de linguagem. Na verdade, eles
misturam-se, interferem entre si. o fenómeno humano situa-se entre os extre-
mos de uma causalidade sem motivação (como as constrições e os motivos
externos que atuam no inconsciente) e uma motivação sem causalidade, pura-
mente racional, onde os motivos se confundem com as razões (como nos jogos
de estratégia). o mais frequente, na realidade humana da motivação, é o motivo
ser, ao mesmo tempo, movimento suscitado pelo querer e justificação. Daí, a
afirmação de ricœur: «l’homme est tel précisément qu’il appartient à la fois
au régime de la causalité et à celui de la motivation, donc de l’explication et
de la compréhension» (TA, 172).
Para a construção do segundo argumento, ricœur socorre-se do filósofo
finlandês von Wright, que propõe uma reformulação das condições de explica-
ção e das condições de compreensão, de modo a combiná-las na noção de
“intervenção intencional” no mundo. Wright contesta a noção de determinismo
universal, reconhecendo ao homem o poder para desencadear uma ação e inter-
ferir no curso das coisas60. através do entrecruzamento de uma teoria dos sis-
temas com a teoria da motivação, Wright anula a dicotomia entre explicar e
compreender61. o curso das coisas e a ação humana recobrem-se na noção de
intervenção. este sentido de intervenção resulta numa ideia de causa sinónima
da iniciativa de um agente e, logo, muito diferente da de Hume. assim, pode-
mos concluir: «action humaine et causalité physique sont trop entrelacées dans
cette expérience tout à fait primitive de l’intervention d’un agent dans le cours

60
«Par l’exercice d’un pouvoir, je fais arriver tel ou tel événement comme état initial
d’un système» (ricœur, TA, 173).
61
«D’une part, il n’est pas de système sans état initial, pas d’état initial sans interven-
tion, pas d’intervention sans l’exercice d’un pouvoir. agir, c’est toujours faire quelque chose
en sorte que quelque chose arrive dans le monde. D’autre part, il n’est pas d’action sans rela-
tion entre le savoir-faire (le pouvoir faire) et ce que celui-ci fait arriver» (ricœur, TA, 174).
72 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

des choses pour que l’on puisse faire abstraction du premier terme et porter le
second à l’absolu» (ricœur, TA, 174-175).

A teoria da história permite-nos fazer a ponte com o assunto que temos


vindo a tratar sob a alçada de Temps et Récit i. a história suscita os mesmos
problemas que já encontrámos na teoria do texto e da ação porque a história
é, por um lado, um tipo de narrativa (tendo a verdade como elemento diferen-
ciador face às narrativas míticas e ficcionais) e, por outro, reporta-se às ações
dos homens no passado. logo, não estranhamos o facto de o método histórico
acumular as características da narrativa e da ação. também a teoria da história
revela as duas tendências que verificámos nos modelos anteriores: a oposição
entre explicação e compreensão e a neutralização da unilateralidade operada por
ricœur em vista de um antagonismo menos extremado, mais dialético.
uma vez que nos capítulos seguintes prestaremos uma maior atenção aos
argumentos e aos autores que ricœur cita em TA e retoma – de forma mais
desenvolvida e pormenorizada – em TR i para ilustrar a oposição e a dialética
entre compreensão e explicação, limitamo-nos a apresentar, abreviadamente,
apenas os conteúdos que consideramos elementares e que servem de preâmbulo.
No artigo que temos vindo a ler (1986) e que integra a compilação Du
texte à l’action... (TA, 161-182), o filósofo francês indica como partidários do
modelo compreensivo e opositores da história positivista, os historiadores fran-
ceses raymond aron e Henri marrou, continuadores da sociologia compreen-
siva alemã, e os historiadores de língua inglesa, entre os quais se destaca col-
lingwood, de quem falaremos com mais propriedade adiante. as reflexões de
aron e marrou sublinham, principalmente, duas marcas do método histórico:
a) a história debruça-se sobre as ações humanas regidas por intenções, projetos,
motivos, que importa compreender através de uma intropatia análoga à que no
dia-a-dia usamos para compreender as intenções e os motivos de outra pessoa
e, neste sentido, considera-se a história uma extensão da compreensão de
outrem; b) esta compreensão, diferentemente do conhecimento objetivo das
ciências naturais, faz-se implicando o próprio historiador, a sua subjetividade.
collingwood, por sua vez, na sua famosa obra The Idea of History, diz apro-
ximadamente o mesmo: a) a história capta acontecimentos que têm uma face
interna e outra externa, a externa exprime o seu lado científico de ocorrência
no mundo, a interna exprime o seu significado, o pensamento que os aconte-
cimentos transportam consigo, sendo que a união destas duas faces forma a
ação; b) a função da história consiste em reativar ou repensar o pensamento
passado na mente presente do historiador. Nisto se resume a posição da com-
preensão (do “Verstehen”) em história, aproximando-se muito das teorias do
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 73

texto e da ação. mas, tal como nelas, também na teoria da história esta posição
fraturante revela aporias e embaraços. uma teoria assente no transporte ime-
diato para a vida psíquica de outra pessoa não deixa lugar para a postura crí-
tica, por outras palavras, a imediatez da intropatia não deixa lugar para a
mediação crítica que caracteriza a operação historiográfica enquanto atividade
científica: «l’histoire commence quand on cesse de comprendre immédiatement,
et qu’on entreprend de reconstruire l’enchaînement des antécédents selon des
articulations différentes de celle des motifs et des raisons allégués par les
acteurs de l’histoire» (ricœur, TA, 177).
a questão está em saber como é que a explicação se acrescenta, sobrepõe
ou substitui a compreensão imediata do curso da história passada. a tentação
de transpor o modelo explicativo das ciências naturais para a epistemologia his-
tórica pode afastar-nos do trabalho original e específico do historiador,
impondo-lhe um esquema artificial que só ao epistemólogo é capaz de satisfa-
zer. Foi isso que aconteceu com o positivismo lógico saído da escola analítica
de língua inglesa, depois da publicação do famoso artigo de carl Hempel, The
Function of General Laws in History, em 1942. mais à frente, exporemos com
maior detalhe a proposta de Hempel, que se resume no chamado “modelo
nomológico” (“covering law model”), de subsunção ou lógico-dedutivo. Basica-
mente, o que esta teoria defende é que a explicação histórica não tem nada de
específico e original, pois segue o mesmo esquema que a explicação de um
acontecimento físico, como, por exemplo, a rutura de um radiador de automó-
vel, uma avalanche ou uma erupção vulcânica. a explicação de um facto his-
tórico tem por base o cruzamento de dois tipos de enunciados: um que reporta
as condições iniciais singulares (acontecimentos anteriores, circunstâncias, con-
textos) e outro que relata hipóteses universais (alegadas ou verificadas). a fra-
queza científica da história provém da fraqueza epistemológica das leis gerais
alegadas ou tacitamente admitidas. o modelo hempeliano é demasiado ambi-
cioso, apresentando um ideal epistemológico inatingível para o historiador. Por
ter consciência disso, Hempel baixa um pouco a fasquia e propõe o “esquisso
explicativo” (explanation-sketch) como satisfatório para a história, que deve ser
completado e elevado a um maior grau de cientificidade por uma explicação
cada vez mais fina. apesar desta concessão, o seu modelo epistemológico con-
tinua a ser estranho à prática história, o que leva ricœur a ensaiar, mais uma
vez, uma conciliação entre explicação e compreensão.
Para começar, o filósofo francês, na senda dos autores narrativistas, par-
ticularmente W. gallie (1964), dá-nos a sua definição de compreensão, a qual
assenta, fundamentalmente, numa competência específica, a competência para
seguir uma história que se narra:
74 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

suivre une histoire, en effet, c’est comprendre une succession d’actions, de pen-
sées, de sentiments présentant à la fois une certaine direction mais aussi des sur-
prises (coïncidences, reconnaissances, révélations, etc.). Dès lors, la conclusion de
l’histoire n’est jamais déductible et prédictible. c’est pourquoi il faut suivre le
déroulement. mais, non plus, l’histoire ne doit pas être décousue: non déductible,
son issue doit être acceptable. il y a ainsi, en toute histoire racontée, un lien de
continuité logique tout à fait spécifique, puisque l’issue doit être à la fois contin-
gente et acceptable [ricœur, TA, 179].

esta ideia de compreensão difere da noção intropática, porquanto essa


negligencia a especificidade do elemento narrativo de qualquer história. uma
teoria que baseie a compreensão no elemento narrativo facilita a passagem da
compreensão à explicação. em que medida? Na medida em que raramente uma
narrativa é totalmente autoexplicativa e a ação de seguir uma história exige o
recurso à explicação para que melhor se perceba a diegese. Pergunta-se pelas
razões, motivos, causas: «le récit a ainsi une structure lacunaire telle que le
pourquoi procède spontanément du quoi. mais en retour l’explication n’a pas
d’autonomie. elle a pour vertu et pour effet de permettre de suivre mieux et
plus loin l’histoire quand la compréhension spontanée de premier degré est
mise en échec» (ricœur, TA, 180).
ricœur não põe em causa a afirmação de Hempel de que a explicação se
obtém com recurso a leis gerais, apenas critica a falta de menção da função da
explicação. a explicação é o que permite seguir de novo a história quando a
sua compreensão foi interrompida. a explicação pode ter vários graus de gene-
ralidade, regularidade e de cientificidade, mas a intenção do historiador não é
colocar um caso sob a generalidade de uma lei, é sim interpolar a lei ou a
generalidade ou a causa na narrativa, de molde a desbloquear e relançar a sua
compreensão.
la particularité principale de la connaissance historique, en ce qui concerne le sta-
tut de l’explication, n’est pas tant que les explications en histoire restent des
esquisses d’explication et par conséquent des lois de rang inférieur, mais le fait
qu’elles ne fonctionnent pas en histoire de la même façon que dans les sciences
de la nature. l’historien n’établit pas des lois. il les utilise. c’est pourquoi elles
peuvent rester implicites et surtout peuvent appartenir à des niveaux hétérogènes
d’universalité et de régularité [ricœur, 1980, 7].

É assim que ricœur vê, neste artigo que será aprofundado em Temps et
Récit i, a alternância e convivência de compreensão e explicação na tessitura
histórica.
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 75

2.  HISTÓRIA E NARRATIVA

em Temps et Récit i, ricœur começa por esclarecer que não partilha da


convicção de alguns teóricos narrativistas ingleses, nomeadamente gallie62, que
consideram a história como mais um subgénero narrativo, indistinto da ficção;
history não é um subgénero do género story. também não cede à solução fácil
de a considerar ambígua, semiliterária e semicientífica. o seu desejo é demons-
trar a história na vizinhança da narrativa e, ao mesmo tempo, fazer emergir os
traços distintivos que lhe conferem autonomia explicativa. É que ricœur tanto
recusa qualquer identificação da história com o subgénero literário história nar-
rativa, como se empenha em sustentar o caráter narrativo da mesma. a história
requer competências narrativas de base para ser redigida, seguida e compreen-
dida, e é essa filiação que assegura o laço da história com a narrativa. o pro-
blema está em determinar a natureza desse laço63.
a tese que avança de antemão é a de que a história, mesmo aquela que
parece ter perdido qualquer proximidade com a forma narrativa, deriva da com-
preensão narrativa, sendo possível reconstituir esta derivação mediante um
método apropriado – o método utilizado por Husserl noutra área do conheci-
mento designado de “questionnement à rebours”. este não provém da metodo-
logia das ciências históricas, empenhadas em apagar qualquer marca de com-
preensão narrativa, mas de uma reflexão de segundo grau sobre as condições
últimas da inteligibilidade de uma disciplina que, por causa da sua ambição
científica, tende a esquecer a sua origem. a intencionalidade do pensamento
histórico, revelada pelo método husserliano de questionamento às arrecuas, per-
mitirá concluir que as configurações narrativas próprias da historiografia, inde-
pendentemente de desenvolverem parâmetros temporais apropriados ao seu
objeto e ao seu método e de manterem, com legitimidade, a sua ambição cien-
tífica, derivam indiretamente das configurações narrativas próprias da mimese
de nível ii e através destas vinculam-se à temporalidade característica do texto

62
«[...] every work of history displays two features which strongly support the claim
that history is a species of the genus story» (gallie 1964: 66).
63
À cet égard, ma thèse concernant le caractère ultimement narratif de l’histoire ne
se confond aucunement avec la défense de l’histoire narrative. ma seconde conviction est
que, si l’histoire rompait tout lien avec la compétence de base que nous avons à suivre une
histoire et avec les opérations cognitives de la compréhension narrative [...] elle perdrait son
caractère distinctif dans le concert des sciences sociales: elle cesserait d’être historique. mais
de quelle nature est ce lien? là est la question (ricœur, TR i, 165).
76 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

e da ação. isto significa que a historiografia, ainda que de um modo “indireto”,


“oblíquo” ou “derivado” (para usar predicativos do próprio autor), se inscreve,
em última análise, no círculo mimético/hermenêutico: ao manusear os aconte-
cimentos que sucedem no tempo, enraíza-se na competência pragmática da
mimesis i; configura o campo prático através de construções temporais de nível
superior aprendidas no tempo narrativo da mimesis ii; e atinge o seu fim na
refiguração do campo prático, contribuindo para a recapitulação da existência
em que culmina a mimesis iii.
Note-se, ricœur não defende nem um corte intransponível entre história e
narrativa que fizesse do tempo histórico uma construção desenraizada do tempo
da narrativa e do tempo da ação nem uma ligação direta ou contínua entre o
tempo da ação e o tempo histórico. o que defende é a existência «de um laço
indireto de derivação através do qual o saber histórico procede da compreen-
são narrativa sem perder nada da sua ambição científica» (TR i, 166 – itálico
nosso).
Para pôr de pé estas teses finais, o filósofo faz-nos passar por um prévio
e longo processo dialético que visa ligar obliquamente a explicação histórica à
compreensão narrativa e daí ao tempo humano64. Durante esta extensa prepara-
ção epistemológica teremos, de um lado, a supremacia científica com a valo-
rização da explicação histórica, a crítica do acontecimento e da compreensão e
o consequente eclipse da narrativa; do outro, a valorização da compreensão,
desvalorização da explicação científica e o consequente resgate e entronização
da narrativa. a relação indireta entre historiografia e narrativa assomará depois
de as teorias narrativistas e nomológicas revelarem as suas virtudes e fraquezas,
sob a pressão da argumentação ricœuriana.

2.1.  O eclipse da narrativa

ricœur abre a segunda parte de Temps et Récit i com a análise do apa-


gamento da forma narrativa em duas correntes modernas e bem distintas de
pensamento: a historiografia francesa e o neopositivismo inglês. este “eclipse”
– palavra sua – decorre da rejeição de qualquer laço entre a história e a nar-
rativa, ou seja, da separação radical entre a construção do tempo histórico e os
tempos subjacentes da narrativa e da ação.

64
«la présente investigation s’emploie à relier, sur le mode de l’oratio obliqua, l’ex-
plication à la compréhension narrative décrite sous le titre de mimésis ii» (ricœur, TR i,
167).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 77

a historiografia francesa, representada na escola dos annales, caracteriza-


-se mais pela prática histórica que pela meditação filosófica, sendo mais meto-
dológica que epistemológica65. mas nem por isso deixou de refletir sobre a
metodologia do seu ofício com ensaios teóricos de enorme valor e rigor. Nada
devendo à filosofia, de facto acaba por lhe oferecer muito. a sua desconfiança
relativamente a todo e qualquer discurso filosófico sobre a história, que tende
a identificar equivocamente com a filosofia da história de tipo hegeliano,
leva-a ao menosprezo dos dois outros historiadores e filósofos convocados
por ricœur para a seleção da historiografia francesa. raymond aron e Henri
marrou são os representantes franceses da filosofia crítica da história, surgida
na alemanha por influência de Dilthey, rickert, simmel e max Weber, em
torno da problemática da compreensão (Verstehen). É o alvo comum, ontoló-
gico-metodológico, da história factual que leva ricœur a juntar as duas escolas
sob o teto da historiografia francesa; sendo que a responsabilidade pelo eclipse
da narrativa deve-se, fundamentalmente, aos historiadores da escola dos anna-
les. aron e marrou atacam, sobretudo, a conceção positivista do objeto da his-
tória, tal como marc Bloch e lucien Febvre, fundadores da escola dos annales.
o neopositivismo, por seu turno, saído das teses do positivismo lógico da
filosofia analítica, é mais epistemológico que metodológico, pecando pela não
inclusão da prática histórica na discussão dos modelos de explicação. apesar
das diferenças – com particular incidência na argumentação – neopositivismo e
historiografia francesa convergem na negação do caráter narrativo da história:
os historiadores franceses contestam o primado da história política nas suas
duas vertentes principais (o primado do indivíduo e o primado do aconteci-
mento pontual); o positivismo lógico abre uma fissura entre explicação histó-
rica e compreensão narrativa. centraremos, na senda de ricœur, a nossa aten-
ção sobre a convergência deste duplo ataque.

2.1.1.  Historiografia francesa: contra o acontecimento e a narrativa

a rejeição do caráter narrativo da história na historiografia francesa66 está


intimamente relacionada com a crítica da chamada “histoire événementielle” –
designada, entre nós, por “história factual”, mas também conhecida por “metó-

65
«ce que l’école historique française offre de meilleur est une méthodologie d’hom-
mes de terrain» (ricœur, TR i, 172).
66
ricœur retoma, de forma abreviada, algumas das análises apresentadas num estudo
anterior: «the contribution of French Historiography to the theory of History», The Zaharoff
Lecture (1978-1979), oxford, clarendon Press, 1980.
78 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

dica”, “positivista”,67 “historicizante”, “política”, “tradicional” e até “batalha”.


esta tendência historiográfica, iniciada pela escola alemã de leopold ranke,
dominou em França entre 1870 e 1930, tendo como figuras mais proeminentes
os historiadores franceses charles-Victor langlois, charles seignobos e Fustel
de coulanges. os primeiros são os autores da célebre obra destinada aos estu-
dantes de história, Introduction aux études historiques, onde definem para a his-
tória um método crítico de duas faces: uma externa voltada para a análise e
autentificação dos documentos e outra interna, de cariz hermenêutico, que
visava representar os estados psicológicos experimentados pelo autor do docu-
mento68. os historiadores da escola metódica praticaram e pugnaram por uma
história de tipo metódico-descritivo, alérgica aos “micróbios literários” e à espe-
culação filosófica, voltada essencialmente para a observação e transposição
objetiva dos acontecimentos singulares. a escola dos annales acusa-os de redu-
zirem a história ao conjunto dos acontecimentos a extrair dos documentos, onde
está latente mas já real, mesmo antes de intervir o trabalho inquiridor do his-
toriador, como se a história, em vez de começar no documento, estivesse no
documento; ou que, em nome da ciência e do respeito pela verdade, buscaram
a imparcialidade e abominaram o subjetivismo69.

67
esta designação é muito contestada, até pelo próprio ricœur; aplica-se com mais jus-
teza àquele tipo específico de história determinista, influenciada pela doutrina filosófica de
comte, preocupada com o estabelecimento de leis universais e a busca de um sentido (cf.
mendes 1987: 66-68 e Delacroix, Dosse, garcia 2007b: 96-98). as noções de “facto positivo”
ou de “estudo positivo” não significava, de modo algum, para os historiadores desta escola,
concordância com a teoria de comte, o facto positivo é aquele cuja existência é atestada por
uma documentação também ela autentificada e assegurada pela crítica.
68
langlois, charles-Victor; seignobos, charles, Introduction aux études historiques,
Hachette, 1898; reed. Kimé, 1992.
69
apesar de algumas ingenuidades, nomeadamente, ao nível da conceção do facto his-
tórico e da ausência de questionário sobre os documentos, e, apesar do excesso didático, tem-
se chegado ultimamente à conclusão que estas acusações dirigidas pelos annales, particular-
mente por lucien Febvre, contra a escola metódica são exageradas e injustas (vide Delacroix,
Dosse, garcia 2007b: 96-98). atentemos nas palavras de Dosse: «les historiens de l’école
méthodique n’ont pas été les naïfs pour lesquels on les a fait passer. on ne peut plus dire
qu’ils cultivaient un fétichisme du document et qu’ils niaient la pertinence de la subjectivité
historienne [...] simplement, l’école méthodique voyait la grandeur de l’historien dans sa
capacité à contrôler sa subjectivité, à la tenir en bride» (2000: 27-28). De facto, langlois e
seignobos são frequentemente citados, quer por aron e marrou quer por Prost e outros
historiadores como pessoas cientes da interferência da subjetividade do historiador no ato de
historiar e cientes do conhecimento histórico como indireto, assente nos documentos, ao invés
das ciências experimentais. simplesmente, a busca do rigor levou-os a ignorar as origens lite-
rárias da história e a execrar as formas de eloquência, porque «escondem a realidade», «des-
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 79

a historiografia francesa posterior reage abertamente contra este tipo de


história, começando pela crítica ao estatuto do acontecimento. os historiadores
do século XiX privilegiaram um tipo de acontecimentos com as seguintes
características: “grandes acontecimentos” ligados a “grandes homens”70; aconte-
cimentos de curta duração, “explosivos”; acontecimento como determinação do
tempo que regula de maneira não crítica a periodização do tempo histórico pelo
historiador. a depuração e a erradicação de falsos pressupostos relativamente ao
conceito de acontecimento causam o “eclipse” da narrativa71.

viam a atenção dos objetos para as formas», e «enfraquecem o esforço de representar as coi-
sas e compreender as suas ligações» (Dosse 2000: 27). É infundada a crítica de que seigno-
bos concebia a história como restituição de documentos: «l’histoire n’est pas non plus pour
seignobos, comme on a pu le dire plus tard, la simple restitution des documents présentés
comme les faits dans leur authenticité, mais tout au contraire un procédé de connaissance
indirect, hypothético-déductif [...]» (ibid.: 28). No entanto, afirma Dosse, se há historiador a
quem se possa imputar as ingenuidades denunciadas pelos annales esse é Fustel de coulan-
ges, que se mostra um idólatra do documento, comparando a análise em história com a aná-
lise em química, uma operação delicada que, atenta ao mais ínfimo detalhe, deve extrair do
documento tudo o que aí encontrar. «Fustel réduit la lecture et l’interprétation de l’historien
à une simple restitution du document comme vérité: «il n’est pas besoin de dire que la vérité
historique ne se trouve que dans les documents» [coulanges, De l’analyse des textes histo-
riques, 1887, p. 349]» (Dosse 2000: 29). Na teoria de coulanges, a análise histórica fica
dominada pelo método filológico e a prática histórica reduz-se a um cientismo reacionário
contra os textos, à recusa de toda e qualquer forma literária e ao apagamento do historiador.
Há, pois, que saber distinguir no interior da escola metódica os contributos por vezes dís-
pares dos vários historiadores, evitando todo o tipo de sincretismo, e reconhecer, para além
dos defeitos, também as virtudes desta escola: «história com limitações e deficiências, sem
dúvida. mas justo é reconhecer, igualmente, que algumas das particularidades da metodologia
atual – entre outras, o rigor da crítica, a exatidão das referências, a fidelidade na transcrição
de textos e a indicação precisa das fontes – entroncam, precisamente, na história da escola
metódica» (mendes 1987: 71). Foi preciso esperar pela década de 70 do século XX para que
os trabalhos de charles-olivier carbonell, de gérard Noiriel e de antoine Prost sobre os his-
toriadores da escola metódica reabilitassem a sua reputação e recuperassem muito do seu
valor, que a escola dos annales deitara fora.
70
«D’abord, il s’agit des «grands événements», liés le plus souvent aux rôles des
«grands hommes» – les «grands hommes historiques de l’histoire mondiale» dont parlait
Hegel –, qui prévalent en histoire politique, militaire, diplomatique, ecclésiastique: a savoir
guerres, traités, mariages royaux, changements de règne, etc. le déplacement de l’histoire
politique vers l’histoire sociale et économique, soulignent ces critiques, implique un moindre
intérêt pour les grands hommes et les grands événements. même en histoire politique les
historiens contemporains s’attachent plus à l’évolution des institutions qu’aux événements
politiques soudains et contingents. en d’autres termes, le porteur de l’histoire est moins l’in-
dividu et ses actions que les entités collectives qui les englobent» (ricœur 1980, in tiffeneau
1980: 14).
71
cf. François Furet, «De l’histoire-récit à l’histoire-problème» (1982: 73-90).
80 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

o uso não crítico da noção de acontecimento histórico, tal como era


entendido pelo senso comum e pela história factual, assenta em duas séries de
postulados, três de ordem ontológica e outros três de ordem epistemológica. em
termos ontológicos, considera-se facto histórico “o que ocorreu efetivamente no
passado”. esta definição tem algumas implicações inerentes: 1) o “ter já acon-
tecido” é uma propriedade absoluta do passado, radicalmente diferente do
“ainda não ter acontecido”, ou seja, o facto histórico é um dado absoluto e aca-
bado, ocorrido no passado e passível de ser apreendido tal como realmente
aconteceu, independentemente das interferências de construção ou reconstrução
do historiador, não se distinguindo nisso do mero acontecimento físico; 2) os
factos históricos são aqueles que se podem imputar a agentes humanos, daqui
deriva a definição comum de história como “conhecimento das ações dos
homens do passado”; 3) o passado humano, como passado, é visto como um
obstáculo que afeta a nossa capacidade de comunicação, pois envolve uma alte-
ridade ou uma diferença absoluta. a estes pressupostos de ordem ontológica
(ter-sido absoluto, ação humana absolutamente passada, alteridade absoluta) cor-
respondem outros tantos de ordem epistemológica: 1) habitualmente, opõe-se a
singularidade não repetível do acontecimento físico ou humano à universalidade
da lei, a uma frequência estatística que seja; 2) a suposição de que o evento
é o que poderia ter acontecido de outro modo opõe a contingência prática da
ação humana à necessidade lógica ou física; 3) a contrapartida epistemológica
da alteridade absoluta é o afastamento relativamente a qualquer modelo ou
invariante.

i)  Raymond Aron: “dissolução do objeto”

como objeção ao primeiro pressuposto acima enunciado, ricœur cita o


contributo de raymond aron, mais concretamente, o seu axioma respeitante à
dissolução do objeto72. refletindo acerca dos limites da objetividade histórica,
aron conclui que o facto histórico, se for considerado um acontecimento abso-
luto do passado, imune a construções e reconstruções, não pode ser atestado
pelo discurso histórico: «il n’existe pas une réalité historique, toute faite avant
la science, qu’il conviendrait simplement de reproduire avec fidélité» (aron
1948: 147).
De facto, o historiador está sempre implicado na compreensão e explica-
ção do seu objeto. e um dos princípios fundamentais de aron é a de que não

72
Introduction à la philosophie de l’histoire: Essai sur les limites de l’objectivité his-
torique (1948), pp. 147-148.
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 81

existe nenhum historiador em estado puro, ideal ou neutro, uma espécie de


sujeito transcendental kantiano. o conhecimento histórico é um prolongamento
do conhecimento de si e de outrem. conhecendo a história, o homem conhece-
-se a si próprio. o historiador é ao mesmo tempo espetador e ator, busca a par-
tir do passado, de si mesmo e doutro que não ele. Por conseguinte, o passado
está sempre determinado pelo presente coletivo e individual do historiador: cada
época seleciona o seu passado, bebendo-o na fonte coletiva; cada existência
nova transfigura a herança que recebeu, dando-lhe um outro futuro e uma outra
significação73. Posto isto, é lícito concluir que qualquer compreensão não é
nunca uma intuição direta, mas sempre uma reconstrução. a compreensão é
sempre mais do que simples simpatia. a enunciação de um facto jamais é uma
mera constatação, o historiador reconstrói-o e não o reproduz. Daí o erro de
supor uma realidade histórica acabada antes da ciência, passível de reprodução
fiel. a realidade histórica, porque é humana, é equívoca e inesgotável. eis por-
que o passado, concebido como soma do que efetivamente aconteceu, está fora
do alcance do historiador.

ii)  H. I. Marrou e a compreensão do outro

a objeção de marrou vai ao encontro da de aron. a sua obra De la con-


naissance historique (1954), tal como a de aron (1948), está numa linha de
continuidade com a matriz alemã da filosofia crítica da história, ao refletir a
dialética compreensão explicação. Da reflexão de marrou sobre a compreensão
do outro, interessa reter as implicações metodológicas que reforçam a tese de
aron sobre a dissolução do objeto. Quanto a nós, alargaremos um pouco mais
o espetro das análises de ricœur, enquadrando-as na estrutura da obra.
o conhecimento histórico apoiado no testemunho do outro não é uma
ciência propriamente dita, mas antes um voto de confiança, diz marrou74. con-
trariamente ao objetivismo estrito do positivismo, que tentou reduzir o trabalho
do historiador a um olhar gelado e indiferente sobre um passado morto, a his-

73
«les idées que l’on cherche, on veut les intégrer au système actuel, les monuments
transmis sont appelés à enrichir notre culture, les existences que l’on reconstitue doivent ser-
vir d’exemples ou de références, puisque l’homme ne se reconnaît et ne se détermine que par
la confrontation» (aron 1948: 148).
74
«[...] la connaissance historique, reposant sur la notion de témoignage, n’est qu’une
expérience médiate du réel, par personnage interposé (le document), et n’est donc pas sus-
ceptible de démonstration, n’est pas une science à proprement parler, mais seulement une
connaissance de foi» (marrou 1954: 143).
82 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

tória surge-nos na sua obra como resultado de uma ação, de um esforço em


sentido criador, que coloca em jogo as forças vivas do espírito, tal como é defi-
nido pelas suas capacidades, pela sua mentalidade, pelo seu equipamento téc-
nico, pela sua cultura; a história é uma aventura espiritual na qual a persona-
lidade do historiador se empenha inteiramente; em suma, ela é dotada por ele
de um valor existencial, e é daí que recebe a sua seriedade, o seu significado
e o seu valor. assim, a compreensão envolve todo o trabalho do historiador.
os positivistas tentaram aplicar à história a bitola das ciências da natu-
reza, fazendo da objetividade o critério supremo da verdade, porém, o historia-
dor está condenado a contaminar o seu conhecimento histórico com aspetos
pessoais (cf. marrou 1954: 222-244). todo o problema histórico resulta da
questão levantada pelo historiador necessariamente situado no seu meio, no seu
tempo, na sua vida presente. o sujeito conhecedor não parte nunca vazio ou
ideologicamente neutro para o conhecimento, tem uma intervenção ativa, cons-
trutiva e criadora. No entanto, esta intervenção do fator “subjetivo” ou da com-
preensão na história não significa a erradicação da objetividade nem esta sub-
jetividade é sinónimo de arbitrariedade ou relativismo75. De igual modo, marrou
considera perigoso opor, como dois dados irredutíveis, ciências da natureza
(explicação) e ciências do espírito (compreensão) como se a verdade histórica
nada tivesse que ver com estas duas disciplinas.
marrou censura ainda a ambição positivista de um conhecimento univer-
sal, único, válido para todos, o que significaria, inevitavelmente, a mutilação da
história, a perda da sua riqueza humana, da sua profundidade, da sua fecundi-
dade. se assim fosse, à história interessaria apenas o que era comum ao conhe-
cimento de todos os historiadores acerca de determinado assunto, ou seja, de
todas as perceções diversas restaria muito pouco. assim, a solução do problema
da verdade histórica deve fugir quer do objetivismo puro quer do subjetivismo
radical. a história é, simultaneamente, apreensão do objeto e aventura espiritual
do sujeito cognoscente, numa relação entre o passado e o presente do historia-
dor, atuando e pensando na sua própria perspetiva existencial, com a sua orien-
tação, as suas antenas, as suas atitudes e os seus limites. Pelo facto de neste
conhecimento haver necessariamente algo de subjetivo, qualquer coisa relativa
à minha situação no mundo, não impede que ele possa ser ao mesmo tempo
uma apreensão autêntica do passado76: «en fait, lorsque l’histoire est vraie, sa

75
esta mesma posição é partilhada por ricœur no ensaio já analisado: «objectivité et
subjectivité em histoire» – ricœur, HV, 27-50.
76
«connaissance de l’homme par l’homme, l’histoire est une saisie du passé par, et
dans, une pensée humaine, vivante, engagée ; elle est un complexe, un mixte indissoluble de
sujet et d’object» (marrou 1954: 232).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 83

vérité est double, étant faite à la fois de vérité sur le passé et de témoignage
sur l’historien» (marrou 1954: 229).
em face disto, ricœur comenta que deste modo a compreensão é vincu-
lada à verdade histórica possível. ela não é a face subjetiva da qual a face
objetiva seria a explicação, como se a primeira fosse a prisão e a segunda a
sua libertação. longe de se digladiarem ou excluírem, subjetividade e objetivi-
dade complementam-se (TR i, 177). a história é capaz de uma verdade autên-
tica mas parcial, limitada pelas constrições impostas à condição humana: pode-
mos saber coisas acerca do passado humano, mas não podemos saber o todo
desse passado, o que inviabiliza a pretensão de uma história universal. Não há
quem possa reunir no microcosmo do seu conhecimento o macrocosmo dessa
matéria inequívoca e inesgotável que é o passado ou o presente.
uma vez que o historiador está implicado no conhecimento histórico, este
não pode ser entendido como uma tarefa de “re-atualização” do passado, pois
há que distinguir realidade histórica de conhecimento histórico: a primeira
designa o passado realmente vivido pelos homens; a segunda corresponde à
humilde tentativa de reconstituição dos factos pelo historiador. Para esta distin-
ção concorrem dois fatores. Por um lado, a história só se torna conhecimento
através da relação estabelecida entre o passado vivido pelos homens de outrora
e o historiador de hoje. consequentemente, o passado realmente vivido pela
humanidade só pode ser postulado, tal como o númeno kantiano. o passado é
apreendido como conhecimento, e nesse instante já ele sofreu uma grande
metamorfose, encontra-se remodelado pelas categorias do sujeito cognoscente,
ou melhor, pelas constrições lógicas e técnicas que pesam sobre a ciência his-
tórica (marrou 1954: 40-41). caso contrário, se o passado nos fosse acessível,
não seria objeto de conhecimento, pois aparecer-nos-ia, como todo o presente,
confuso, multiforme, ininteligível, uma rede intrincada de causas e efeitos,
campo de forças imensamente complexo, que a consciência do homem, quer
como ator quer como testemunha, se mostra necessariamente incapaz de captar
na sua realidade autêntica, capacidade só acessível a Deus. mas o historiador
não se pode satisfazer com uma visão tão fragmentária e superficial das coisas.
ele deseja e tenta saber mais do que soube ou pôde saber qualquer dos con-
temporâneos da época estudada, não no sentido do pormenor e da precisão da
experiência vivida, mas do ponto de vista da inteligibilidade. elevando-se acima
da poeira dos factos menores e da desordem do presente, persegue uma visão
ordenada, que faça sobressair linhas gerais, orientações suscetíveis de com-
preensão, cadeias de relações causais ou finais, significações, valores: «l’histo-
rien doit parvenir à jeter sur le passé ce regard rationnel qui comprend, saisit
et (en un sens) explique» (ibid.: 48).
84 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

mais do que estabelecer factos, importa ao historiador compreendê-los.


este argumento, que interdita a história de ser concebida como reminiscência
do passado, condena também o positivismo contra o qual se debate a nova his-
toriografia francesa. se a história consiste na relação entre historiador e pas-
sado, não é legítimo tratar o historiador como um intruso a eliminar. contra o
mito da objetividade, que preconiza a existência do facto histórico em estado
latente nos documentos, é preciso afirmar que a iniciativa na história não per-
tence ao documento, mas à questão colocada pelo historiador. esta tem priori-
dade lógica na investigação histórica. Deste modo, a teoria de marrou junta-se
à da «dissolução do objeto» de aron, e reforça a sua luta contra o preconceito
da existência do passado enquanto tal77. ao mesmo tempo, assegura a ligação
com a orientação antipositivista da escola dos annales. mas, enquanto as refle-
xões de aron e marrou são claramente marcadas pelo problema da compreen-
são histórica, a escola dos annales afasta-se dessa problemática, dando prefe-
rência ao ofício de historiador.

iii)  A escola dos Annales e a nova história

Histoire économique, démographique, histoire des techniques et des mœurs et pas


seulement histoire politique, militaire, diplomatique. Histoire des hommes, de tous
hommes, et pas uniquement des rois et des grands. Histoire des structures et non
des seuls événements. Histoire en mouvement, histoire des évolutions et des trans-
formations, et non histoire statique, histoire tableau. Histoire explicative, et non
histoire purement narrative, descriptive – ou dogmatique. Histoire totale enfin...
[le goff 1978, 223].

a escola dos annales domina a historiografia francesa ao longo de todo


o século XX, sofrendo, com as reviravoltas do próprio século, crises e muta-
ções. ricœur, para além de ler as obras dos seus historiadores, conhece os seus
ensaios empíricos, dialoga com os seus intelectuais e chega mesmo a publicar
na revista Annales78. Na época em que redigiu a trilogia Temps et Récit, o filó-
sofo francês concentra o seu olhar, fundamentalmente, no trabalho da segunda
geração, a de Braudel e labrousse: o período da história económico-social de
cariz estrutural. em La mémoire, l’histoire, l’oubli, terá como alvo a crise das

77
o próprio marrou cita na sua obra (1954: 50-51) o axioma de aron relativo à dis-
solução do objeto.
78
Paul ricœur, «l’écriture de l’histoire et la représentation du passé», Annales 4, vol.
55, 2000, pp. 731-747.
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 85

mentalidades e a emergência da representação na geração da chamada “Nova


história”79.
a escola dos Annales surgiu como reação à história dita événementielle,
dominante em França até cerca de 1930, fascinada pelo acontecimento único,
pontual, e pela história como crónica oficial. em 1929, marc Bloch e lucien
Febvre fundam, em estrasburgo, uma revista com o nome de Annales d’histoire
économique et sociale, anunciando no próprio título as duas bases programáti-
cas desta nova escola80. Depois de várias alterações, devido às condicionantes
da guerra e à ocupação nazi, a revista encontrará o seu nome definitivo em
1946: Annales. Economies. Sociétés. Civilisations. o plural do título anuncia a
intenção de estudar, globalmente, os homens – na pluralidade das suas ações e
manifestações –, as sociedades, os grupos e não o homem enquanto entidade
abstrata. manifesta igualmente um voto expresso por marc Bloch, no seu tes-
tamento metodológico – Apologie pour l’histoire ou Métier d’historien: «Nous
avons reconnu que, dans une société, quelle qu’elle soit, tout se lie et se com-
mande mutuellement: la structure politique et sociale, l’économie, les croyances,
les manifestations les plus élémentaires comme les plus subtiles de la menta-
lité» (Bloch 1952: 106).
Bloch e Febvre desejavam universalizar o campo da investigação histórica,
superando as divisões que separavam a história das novas ciências sociais e
humanas. até este momento, a história estava acantonada no domínio das ati-
vidades conscientes, voluntárias, orientadas pela decisão política, pela propa-
gação de ideias, pela conduta dos homens e dos acontecimentos. a história
tradicional ou metódica restringia o seu campo de investigação quase exclusi-
vamente aos indivíduos das classes sociais mais elevadas, às elites (constituídas
pelo rei, pelos homens de estado, pelos grandes revolucionários) e às institui-
ções (políticas, económicas, religiosas, etc.) dominadas por essas mesmas elites.
a nova história social emergente, pelo contrário, manifesta preferência pela
massa social, na sua atividade multifacetada. esta mesma orientação suscitara já
o surgimento de novas ciências humanas – nomeadamente, a sociologia, a psi-
cologia, a etnologia e a antropologia, que se vieram juntar à já existente eco-
nomia – voltadas não para o passado, mas para os que no presente eram domi-

79
sobre a presença da escola dos Annales na obra de ricœur, veja-se o estudo de
christian Delacroix, em Delacroix, Dosse, garcia 2007: «ce que ricœur fait des annales:
méthodologie et épistémologie dans l’identité des annales», pp. 209-230.
80
Para um conhecimento mais aprofundado e desenvolvido do surgimento e evolução
desta escola consulte-se le goff, chartier e revel 1978; allegra e torre 1977; cedronio et
alii 1945.
86 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

nados e negligenciados pelas elites, para uma massa anónima na qual se reco-
nhecia a verdadeira força de mutação histórica.
outra mudança fundamental adveniente do surgimento desta nova história
dá-se ao nível do questionário e do documento. a iniciativa passa do docu-
mento para a questão colocada pelo historiador. o novo historiador não se
limita a reproduzir os documentos, mas seleciona e questiona os dados, confere
a validade e a autenticidade dos documentos, contribuindo para uma história de
tipo problemático, que busca a compreensão dos factos. assim, os factos não
são dados pelos documentos, mas os documentos são selecionados em função
de um questionário. o questionário tradicional colocava como questão prioritá-
ria: o que se passou durante determinado período, em determinado local? Pro-
curava-se o novo, o extraordinário, o inesperado, para depois inferir as causas
pertinentes que, por sua vez, também deveriam ser singulares. ora, este tipo de
questionário viciava à partida a investigação do historiador, uma vez que o
orientava apenas para os factos pontuais e acidentais que se destacavam do
fundo rotineiro da ação humana. Por esta ordem de ideias, nas épocas em que
nada de assinalável se passava nada havia a historiar. antes, a atividade do his-
toriador centrava-se nas fontes narrativas, depositárias dos factos mais relevan-
tes e agitadores do passado. os historiadores eram como antiquários, colecio-
nadores de curiosas preciosidades, recusando tudo o que era banal, quotidiano,
habitual. a própria arqueologia selecionava o que era rico, belo e raro, pondo
de parte vestígios materiais da vida do comum dos mortais. Praticada desta
forma, a história divergia das ciências sociais que, a partir da segunda metade
do século XiX, começaram a ganhar relevo e prestígio – particularmente, a
sociologia, a economia e a geografia. apesar de continuar a reclamar para si o
estatuto de científica, a distância entre a sua prática e as suas pretensões era
abissal. alguns historiadores tentaram ultrapassar esse abismo, desistindo do
estatuto de ciência e remetendo a história para a categoria da narrativa literária.
outros tentaram enquadrá-la num regime especial através da conjugação entre
o privilégio que tinham para eles os factos singulares e uma certa cientifici-
dade, concebendo a história como ciência idiográfica, isto é, tendo por objeto
específico o que não se repete, o singular. seria, portanto, uma ciência única,
oposta às ciências ditas nomotéticas, que tentam deduzir leis a partir da veri-
ficação de repetições e constâncias81. outros havia, por fim, que desejavam a

81
esta famosa distinção entre ciências idiográficas e nomotéticas é da autoria de Win-
delband, «geschichte und Naturwissenchaft», Discours de strasbourg, 1984, reproduzido em
Präludien: Aufsätze un Reden zur Philosophie uns ihrer Geschichrte, vol. ii, tübingen,
J.B.c., 1921, pp. 136-160.
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 87

história convertida em ciência social e lançaram ataques violentos contra a his-


tória factual da escola metódica.
momento assinalável neste conflito foi a publicação, em 1903, do artigo
do sociólogo François simiand, Méthode historique et Science Social, que teve
como reação a criação da revista Annales d’histoire économique et social.
a orientação durkheimiana que inspira o desafio de simiand à história torna-
-se também na matriz teórica do programa da escola dos annales82. mas os pri-
meiros sinais de rutura com a tradição, não apenas nos manifestos escritos, mas
até mais na metodologia do próprio ofício de historiador, datam de 1911, ano
em que lucien Febvre defende na sorbonne a sua tese Philippe II et la Fran-
che-Comté. esta obra pode considerar-se a precursora da nova história, na
medida em que confere aos factos um novo significado: eles são, na opinião de
Pomian, os sintomas de uma clivagem, ou seja, podem ser ditos como perten-
centes à estrutura daquela sociedade do século XVi (Pomian 1978: 536). são
preciosos enquanto revelam as variações conjunturais das relações entre duas
classes sociais, em conflito constante, ao longo do período temporal visado.
o anacronismo dos termos “estrutura” e “conjuntura” é justificado pela estru-
tura da própria obra. a primeira parte é consagrada ao estudo do meio geo-
gráfico e às instituições políticas; a segunda aborda o conflito entre a nobreza
e a burguesia. Nisto o historiador manifesta uma consciência nova: todos
estes fenómenos se inscrevem no que mais tarde será conhecido como “longa
duração”.

82
a sociologia de Durkheim conhece um enorme êxito nos finais do século XiX e iní-
cios do século XX, contribuindo para revolucionar as ciências sociais e humanas ao reunir a
geografia, a história e psicologia à volta do conceito de causalidade social. os princípios epis-
temológicos desta sociologia fundam-se sobre o objectivismo do método (com exclusão da
subjetividade do investigador); sobre a realidade do objeto (os factos sociais devem ser ana-
lisados como coisas e estes factos exercem uma constrição exterior sobre o indivíduo); e
sobre a independência da explicação, que permite reduzir o facto social à sua causalidade
sociológica (a explicações puramente sociológicas), a única que se considera eficiente. a his-
tória não ficou indemne, pelo contrário, é sob a pressão do novo método científico instaurado
por Durkheim que ela se vê obrigada a trabalhar em torno de uma física social, de uma
sociedade encarada como uma coisa da qual o historiador pode extrair os sistemas de cau-
salidade. o manifesto de François simiand («méthode historique et sciences sociales») foi
publicado na Revue de synthèse historique. claramente influenciado pela sociologia de Durk-
heim, o artigo denunciava uma história que não tinha nada de científico, que se limitava a
descrever fenómenos contingentes, ocasionais, enquanto a sociologia pode ter acesso aos fenó-
menos repetíveis, regulares, estáveis e deduzir a partir deles a existência de leis. simiand
denuncia, objetivamente, os três ídolos que adoram os historiadores: o ídolo político, o ídolo
individual e o ídolo cronológico (cf. Dosse 2000: 45, 46).
88 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

o novo questionário dos historiadores dá prioridade ao que se repete, às


retomas periódicas, ao que é constante, ou quase, durante um longo intervalo
de tempo. o olhar desloca-se, assim, do excecional para o regular, do extraor-
dinário para o quotidiano, dos factos singulares para os que ocorrem em massa.
esta mudança de perspetiva provoca um certo desinteresse pela história política,
onde os acontecimentos aparecem alinhados uns após os outros e um interesse
crescente pela história económica e social.
embora a história tradicional francesa continuasse a ignorar a economia,
na alemanha e em inglaterra, esta ciência já merecia o respeito e a atenção dos
historiadores. a história dos preços esteve muito em voga entre as duas grandes
guerras. além do mais, a história económica mereceu, desde o início, uma aten-
ção especial por parte dos fundadores dos Annales, pois era a primeira história
científica coletiva. os dados sobre os quais trabalhava (preços, salários, impos-
tos, crédito, mercado) eram o reflexo da vida quotidiana da massa popular e
anónima e possibilitavam um tratamento matemático. a aplicação de métodos
quantitativos e cálculos estatísticos importados da economia viria dar novo
fôlego à prática histórica. Não se tratava de recuperar transações comerciais
particulares tal como ocorreram entre determinados indivíduos, em locais e
datas precisas, pois, nesse caso, bastaria os livros de contas, mas ficaria ainda
no âmbito do singular, do não repetível; o escopo seria os fenómenos regulares,
os que se repetem, logo, recorre-se às mercuriais – listas de preços praticados
no mercado público – que permitem encontrar médias representativas (cf.
labrousse 1943: 12-13, 170-171). a Revista trimestral de história social e eco-
nómica, publicada na alemanha, e a Revista de síntese histórica, dirigida por
Henri Berr, publicada em 1921, refletiam esta tendência e serviram de inspira-
ção aos impulsionadores da Nova história.
Depois deste apontamento introdutório, em que tentámos caracterizar bre-
vemente algumas das preocupações e inovações trazidas pela escola dos anna-
les, de molde a introduzir uma entidade que, doravante, será nossa companhia
regular, impõe-se o regresso à problemática capital da nossa investigação: a
denegação do caráter narrativo da história. Para isso, descemos com ricœur aos
trabalhos e ensaios de dois dos maiores vultos desta nova corrente historiográ-
fica francesa: marc Bloch e Fernand Braudel, cada um deles protagonista de
um período diferente dentro da própria escola. Na senda de ricœur, relembra-
mos que o objetivo principal não é abranger nem aprofundar todas as opções
ideológicas e metodológicas da escola dos Annales ou dos seus membros, mas,
preferencialmente, aquelas que nos ajudem a elucidar a recusa do caráter nar-
rativo da história.
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 89

iv)  Marc Bloch: testemunho e análise

tal como já acontecera em Histoire et Vérité, o filósofo francês volta à


companhia de marc Bloch e ao seu testamento empírico, desta feita para nele
detetar virtudes e defeitos relativamente ao tema em causa. Por nossa parte,
tentamos enquadrar as análises críticas de ricœur no contexto mais alargado da
obra.
um dos pilares fundamentais da Apolologia da história ou o ofício do
historiador surge no capítulo segundo onde se enuncia uma indiscutível parti-
cularidade da observação histórica: a dita “connaissance par traces” (Bloch
1952: 34). citando a feliz expressão de François simiand, Bloch opina que o
conhecimento de todos os factos humanos no passado e o conhecimento da
maior parte deles no presente, é, necessariamente, um conhecimento por vestí-
gios. segundo o próprio, vestígio é toda a «marca, percetível aos sentidos, dei-
xada por um fenómeno impossível de captar em si mesmo»83.
esta asserção impele o autor a alicerçar a observação histórica e a crítica
do método histórico (temas do segundo e terceiro capítulos) sobre os testemu-
nhos. Distingue duas grandes classes por onde se distribui a massa imensa-
mente variada dos documentos que o passado pôs à disposição do historiador:
à primeira pertencem os chamados testemunhos voluntários (“témoins volontai-
res”) e à segunda os involuntários ou “témoins malgré eux”. relembramos que
a história factual privilegiava os testemunhos voluntários e praticamente igno-
rava os não voluntários ou materiais. testemunhos voluntários são as fontes
ditas narrativas, ou seja, relatos deliberadamente destinados à informação dos
leitores, por exemplo: as Histórias de Heródoto, livros de memórias, crónicas,
jornais, legislação, relatórios, registos de tipo diverso. os testemunhos involun-
tários correspondem àqueles que nos foram transmitidos sem intenção informa-
tiva ou testemunhal. Nesta categoria, colocamos papiros, cerâmica, inscrições,
moedas, guias, documentos secretos, relatórios confidenciais, iconografia e pai-
sagens, entre outros. o alargamento do campo do documento histórico constitui
pois uma novidade. a história à maneira de langlois e seignobos era, essen-
cialmente, fundada sobre os textos, sobre o documento escrito. o que marc
Bloch propõe é uma história fundada sobre uma multiplicidade enorme de

83
«[...] qu’entendons-nous en effet par documents sinon une «trace» c’est-à-dire la
marque, perceptible aux sens, qu’a laissée un phénomène en lui-même impossible de saisir»
(Bloch 1952: 34). ricœur retomará esta definição, em Temps et Récit iii, aquando da análise
ontológica do real passado. De momento trata apenas de tecer algumas considerações episte-
mológicas sobre a matéria.
90 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

documentos: documentos escritos de todos os tipos, mas também documentos


figurativos, orais, arqueológicos.
a aproximação do historiador ao passado faz-se, pois, através de docu-
mentos, mas o facto de estarmos limitados ao conhecimento do passado pelos
vestígios deixados não nos impede de saber muito mais a seu respeito do que
aquilo que esse passado achou bem por bem dar-nos a conhecer, graças aos tes-
temunhos involuntários. os testemunhos involuntários são tidos por mais segu-
ros e preciosos, não porque sejam irrepreensíveis ou fidedignos, mas porque a
deformação, se existir, não é intencional. Para além disso, estes indícios não
premeditados do passado permitem preencher lacunas, verificar e atestar os
relatos voluntários e, fundamentalmente, eliminar preconceitos, falsas prudências
e miopias com as quais as narrativas do passado podem contaminar os histo-
riadores e que são reflexo da época em que foram escritos.
Depois de uma análise geral da observação histórica – de que já demos
conta a propósito de «objetividade e subjetividade em história» – Bloch inau-
gura um novo capítulo com a questão do método crítico usado pelo historiador.
Fazendo a transição entre as duas secções, o testemunho servirá de modelo
único, obrigado a passar pelo crivo psicológico da verdade e da mentira, do
erro e da fiabilidade.
a leitura crítica de Paul ricœur (TR i, 180-181) deteta nesta apologia
duas fraquezas: por um lado, as narrativas são relegadas, por Bloch, para a
categoria dos testemunhos ditos “voluntários” ou “intencionais”, sujeitos à crí-
tica do historiador, destinados a informar o leitor e jamais reconhecidos como
forma literária da obra escrita pelo historiador; por outro, a noção de testemu-
nho, que engloba a de documento, é elevada ao estatuto de modelo para toda
a observação por traços, sendo alvo de uma crítica psicossociológica, onde o
que importa é apurar a verdade, a mentira, o engano, a impostura, numa linha
claramente determinada pelo caráter psíquico dos fenómenos históricos, em
detrimento das questões de causa e de lei que, nessa mesma época, ocupava a
epistemologia de língua inglesa, que já abandonara a crítica do testemunho.
No entanto, ricœur reconhece a mais-valia desta obra no capítulo iV, um
dos mais inspiradores e influentes para a nova metodologia histórica. aí se
medita acerca da análise crítica e se argumenta em favor de uma história pro-
blemática. marc Bloch advoga o primado da análise sobre a síntese, atribui à
explicação histórica a constituição de cadeias de fenómenos semelhantes e o
estabelecimento de suas interações, pois o conhecimento dos fragmentos, estu-
dados sucessivamente e isolados, não propicia o conhecimento do todo, nem
mesmo dos próprios fragmentos. o trabalho de recomposição só pode vir
depois da análise e dela deriva. o discernimento das ligações depende da aná-
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 91

lise distintiva das coisas. a delicada rede que constitui um facto histórico só
pode revelar-se depois de classificados os factos por categorias específicas. este
primado da análise sobre a síntese permitiu ao autor distinguir vários fenóme-
nos dentro do fenómeno histórico global, como o político, o económico, o artís-
tico, dando origem à chamada história comparativista, herdeira do método ins-
tituído pela sociologia de Durkheim. este corolário começa com a tomada de
consciência de que é mais fácil julgar do que compreender e de que a com-
preensão é uma paixão que domina e ilumina o trabalho dos historiadores84.
opondo-se às teorias da história factual, crente numa observação histórica obje-
tiva e imparcial, o historiador sustenta que os documentos constituem uma pri-
meira barreira entre o historiador e o passado, quase nunca se apresentam
organizados de acordo com as necessidades de entendimento de quem os per-
ceciona. Por isso, não basta percecionar os documentos em bruto, há que sele-
cionar algumas informações e apartar outras, ou seja, analisar. o historiador
descobre as semelhanças a fim de as aproximar. a tarefa do historiador não
consiste em reconstituir as coisas tal como aconteceram. a compreensão não é
uma atividade passiva. ela tem atrás de si a análise, que consiste na descoberta
de semelhanças entre fenómenos diversos. em vez de reproduzir – sem selecio-
nar e estabelecer contiguidades – uma panóplia de atividades diferentes tal
como nos são apresentadas no intrincado de um documento ou de uma vida
particular ou coletiva, o historiador procura o parentesco entre determinados
fenómenos, de modo a encontrar uma tendência particular, e até certo ponto,
estável, do indivíduo ou da sociedade. Daqui resulta necessariamente que sem-
pre se compreenderá melhor um facto humano, qualquer que ele seja, se pos-
suirmos já a inteligência de outros factos da mesma espécie, ocorridos anterior-
mente85. Na medida em que os fenómenos humanos se determinam dos mais

84
«un mot, pour tout dire, domine et illumine nos études: “comprendre”. Ne disons
pas que le bon historien est étranger aux passions; il a du moins celle-là. mot, ne nous le
dissimulons pas, lourd de difficultés; mais aussi d’espoirs. mot surtout chargé d’amitié. [...]
comprendre, cependant, n’a rien d’une attitude de passivité. Pour faire une science, il faudra
toujours deux choses: une matière, mais aussi un homme» (Bloch 1952: 83).
85
«aussi bien, quand, dans le cours de l’évolution humaine, nous croyons discerner
entre certains phénomènes ce que nous appelons une parenté, qu’entendons-nous par là, sinon,
que chaque type d’institutions, de croyances, de pratiques ou même d’événements, ainsi dis-
tingués, nous paraît exprimer une tendance particulière, et jusqu’à un certain point, stable, de
l’individu ou de la société? Niera-t-on, par exemple, qu’à travers tous les contrastes il n’y ait
entre les émotions religieuses quelque chose de commun? il en résulte nécessairement qu’on
comprendra toujours mieux un fait humain, quel qu’il soit, si on possède déjà l’intelligence
d’autres faits de même sorte» (Bloch 1952: 84).
92 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

antigos para os mais recentes, eles ordenam-se, em primeiro lugar, por cadeias
de fenómenos semelhantes. ordená-los racionalmente por géneros é, portanto,
pôr a nu linhas de força de uma eficácia capital. estas distinções e classifica-
ções só existem na inteligência do investigador e não na própria realidade, onde
tudo aparece mesclado, logo, ela é fruto de um processo de abstração e de ima-
ginação, concluindo Bloch que nenhuma ciência pode dispensar a abstração
nem tão pouco a imaginação86.
relacionado com o tópico da classificação dos factos, surge o problema
da nomenclatura e do anacronismo. Bloch reflete acerca do tipo de linguagem
a usar para nomear os factos do passado. Por um lado, a terminologia patente
nos próprios documentos deve merecer uma crítica, na medida em que ela pró-
pria é um testemunho de uma época. Por outro, aplicar aos documentos do pas-
sado uma terminologia atual pode levar à perda, por anacronismo, da especifi-
cidade dos fenómenos passados e à eternização prepotente das categorias do
presente. ricœur comenta que a mesma dialética do semelhante e do disseme-
lhante patente na crítica histórica rege também a análise histórica.
o verdadeiro manifesto da escola dos annales – comenta ricœur (TR i,
182) – vamos encontrá-lo em Fernand Braudel e na sua obra-prima sobre
O Mediterrâneo e o mundo mediterrânico.... autor e obra são um marco na
historiografia francesa do século XX e também na argumentação de ricœur em
prol da matriz narrativa dissimulada na história estrutural. Por esse motivo,
antepomos à análise e comentário de ricœur uma nota informativa que visa
contextualizar e caracterizar as novidades introduzidas por Braudel, passando
em revista alguns dos seus comentários empíricos mais importantes.

v)  Fernand Braudel e a “longa duração”

Já tivemos oportunidade de dizer que uma das propostas do grupo dos


annales, na sua reação contra o individualismo dominante na história factual, é
a deslocação do objeto formal da história do indivíduo para o facto social total,
em todas as suas facetas de interação: económica, social, política, cultural, espi-
ritual, entre outras. À noção de evento ou facto singular, concebido como ins-
tante temporal súbito e breve, opõe-se a noção de tempo social, cujas categorias
maiores são retiradas do campo de trabalho da economia, da demografia e
da sociologia: conjuntura, estrutura, tendência, ciclo, crescimento, crise, etc.

86
«Pourquoi avoir peur des mots? aucune science ne saurait se dispenser d’abstraction.
Pas plus, d’ailleurs, que d’imagination» (Bloch 1952: 85).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 93

a dupla contestação do primado do indivíduo como fim da investigação histó-


rica e do primado do acontecimento, como fundamento último da mudança
social, é, pois, uma consequência direta da transferência do eixo principal da
investigação da história política para a história social. De facto, é na história
de caráter político, militar, diplomático, eclesiástico que sobressaem os indiví-
duos como fautores de história, sejam eles chefes de estado, generais, diploma-
tas ou prelados. Neste tipo de história, predomina a descrição de acontecimen-
tos ditos explosivos, devido à sua ocorrência surpreendente e breve, típicos das
batalhas87. eis porque os cognomes de “histoire de batailhes” e “histoire évé-
nementielle” se correspondem semanticamente.
esta crítica dirigida pela escola dos Annales à história factual praticada
pela escola metódica não resulta de uma crítica filosófica contra uma conceção
filosófica de história, mas de um combate contra uma metodologia que traba-
lhava a partir dos grandes acontecimentos já dados pelos arquivos, que, por sua
vez, apareciam já instituídos e constituídos em torno de peripécias e de aciden-
tes que afetaram a distribuição do poder. esta história dita de “batalhas” ou de
“acontecimentos” seria, inevitavelmente, criticada por aqueles que, seguindo a
proposta de Bloch, optaram por uma história do fenómeno humano total, colo-
cando a tónica nas condições económicas e sociais. os trabalhos mais impor-
tantes surgidos nesta nova corrente são consagrados à história social, cujos
heróis coletivos são, a partir de agora, grupos, categorias e classes sociais,
vilas, aldeias, burgueses, artesãos, homens do campo e da cidade.
Neste contexto, surge a obra chave de Fernand Braudel, La Méditerranée
et le Monde méditerranéen à l’époque de Philippe II, iniciada durante os anos
vinte, redigida durante a segunda guerra mundial e publicada em 194988. Neste
como noutros escritos do autor89 gizam-se as grandes diretrizes que deram novo
impulso à escola dos annales – e à revista homónima, na direção da qual suce-
deu a lucien Febvre, depois do desaparecimento deste em 1956 – e reforçam
o afastamento crítico da tradição positivista que prevalecia nos estudos históri-
cos em França, no primeiro terço do século XX. as duas grandes novidades

87
«c’est là aussi que règne l’événement assimilable à une explosion» (ricœur, TR i,
184).
seguimos a tradução portuguesa de 1995.
88

os principais: Écrits sur l’histoire, Flammarion, Paris, 1969; «Leçon inaugurale» au


89

collège de France (1950); e o famoso artigo publicado na revista Annales, subordinado ao


tema «la longue durée» (1958). estes dois últimos aparecem reunidos numa coletânea de tex-
tos do autor traduzida para português: Fernand Braudel, História e ciências sociais, Presença,
lisboa, 1976.
94 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

introduzidas por Braudel são o reforço e ampliação da ideia de uma história


global e o estudo da longa duração. compreende-se, pois, que ricœur dedique
ao historiador um tempo e uma atenção redobrada ou não fosse ele capital para
se justificar o eclipse quase total da narrativa no campo da história90.
É da autoria de Braudel um dos mais profícuos contributos da historiogra-
fia francesa à epistemologia histórica, o escalonamento tripartido das durações,
– correspondente aos três planos sobrepostos em que se decompõe a história do
mediterrâneo: tempo individual, tempo social, tempo geográfico. a história
mais superficial é a que se confina à dimensão do indivíduo e do aconteci-
mento; uma história de curto prazo, feita de “vagas” breves, rápidas, nervosas;
é a mais rica em humanidade, mas a mais perigosa91. No plano intermédio, está
o tempo social, o das conjunturas. as várias conjunturas abordadas na segunda
parte da sua obra (económica, cultural, política, social, militar) são oscilações
(“marés”) cíclicas, em articulação com as transformações lentas e profundas das
estruturas. o tempo geográfico tem por base o célebre e imprescindível con-
ceito de “longa duração” 92. este surge por oposição ao de acontecimento enten-
dido como duração breve. a história avança mais ou menos veloz, mas as for-
ças profundas da história só atuam e se deixam apreender num tempo longo,
onde subsistem estruturas que se podem delimitar e identificar. consideremos a
explicação metafórica do próprio autor.
mas abaixo das vagas há as marés. abaixo destas estende-se a massa fantástica da
água profunda. tais comparações são familiares aos historiadores da economia:

90
relativamente a este eclipse da narrativa na obra de Braudel e, de um modo geral,
nos trabalhos dos historiadores da escola dos annales, Hayden White estabelece uma interes-
sante comparação. Diz ele que «uma historiografia científica (ou cientificista) do tipo da con-
cebida pelos Annalistas, que versa sobre as forças físicas e sociais anónimas e em grande
escala, [...] produz o equivalente historiográfico de um drama que é todo cena e carece de
atores, ou uma novela que é toda tema e carece de personagens. esta historiografia é toda
fundo e carece de primeiro plano» (1992b: 184).
91
«troisième partie, enfin, celle de l’histoire traditionnelle, si l’on veut de l’histoire à
la dimension non de l’homme, mais de l’individu, l’histoire événementielle de François
simiand: une agitation de surface, les vagues que les marées soulèvent sur leur puissant mou-
vement. une histoire à oscillations brèves, rapides, nerveuses» (Braudel 1969: 12; vide, etiam,
pp. 45-47).
92
la découverte de toute une nouvelle dimension de l’histoire, de l’histoire structurale,
très lente, «quasi immobile», «faite bien souvent de retours insistants, de cycles sans cesse
recommencés», est un des plus grands apports de «méditerranée» à la pensée et à la pratique
historiques de notre temps (Pomian 1978: 542).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 95

para eles, há a sobreposição das vibrações curtas, das conjunturas e, em profun-


didade, das estruturas. as vibrações curtas é aquilo a que eu chamo factual: há um
acontecimento político, mas também económico, mas também cultural, mas tam-
bém social... a conjuntura, também ela polivalente, são fases mais ou menos lon-
gas [...]. as conjunturas não representam toda a espessura do tempo vivido ou do
tempo presente. em profundidade, uma história estagna, desfila lentamente, a mais
longa das longas das histórias, algo como o trend secular, ou melhor, multissecular
dos economistas [Braudel 1991: 301].

um sistema económico e social muda lentamente (cf. le goff 1978: 228).


a longa duração é ensinada pelo economista ao historiador. a história econó-
mica introduz a seriação dos fenómenos de acordo com os diversos ritmos da
sua evolução e separa-se, deste modo, do tempo superficial e linear da história
factual. ernest labrousse, na senda da história dos preços de François simiand,
foi o primeiro a adotar os conceitos de estrutura e de conjuntura. Distingue três
tipos de movimentos: um movimento de longa duração; outro composto por
oscilações cíclicas; e um último feito de variações sazonais (labrousse 1932:
147). em 1943, na sua segunda obra, desenvolve um modelo da crise econó-
mica de tipo antigo com o intento de elucidar as causas que provocam as flu-
tuações conjunturais. todavia, este modelo não é aplicado aos movimentos
seculares, sobretudo, por falta de dados que testemunhem as flutuações de pre-
ços, da produção agrícola ou mesmo das populações antes do século XVi.
a convicção de que o historiador deveria interessar-se não apenas pelo que se
altera mas também pelo que se mantém constante, ou quase, durante épocas
que podem ser muito longas, induz uma nova mudança epistemológica, que se
reflete ao nível do questionário. Desloca-se a atenção das flutuações cíclicas, ou
conjunturais, para os “trends” seculares, de forma a integrá-los numa evolução
mais lenta.
Fernand Braudel, cujo herói é o mediterrâneo e o mundo mediterrânico,
inaugura uma maneira diferente da de labrousse de estudar as repetições,
extraindo-as do campo económico a que pareciam confinadas. afastando-se do
programa de história económico-social de simiand, Braudel, tutelado por l.
Febvre, vai além da história organizada em torno das flutuações de preços e de
retomas, num determinado país, durante uma época bem delimitada. a sua his-
tória é económica, social, mas também geográfica, demográfica, cultural, polí-
tica, religiosa e militar, não num espaço e num tempo curtos, mas em vastas
áreas geográficas e períodos longos. Braudel desenvolve uma forma original de
encarar o mar mediterrâneo e o mundo envolvente, descortinando neste espaço
e no tempo a ele ligado «histórias mil vezes repetidas» (Braudel 1995: 173;
96 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

cf. Pomian 1978: 540-542) 93. trata-se, pois, de identificar, no nível mais pro-
fundo e duradouro – o da longa duração – as repetições e de evidenciar o seu
caráter constante, para a partir daí se constituir um elemento de estrutura.
o estudo da evolução biológica da humanidade em perspetiva temporal, a
cargo da demografia histórica, assume um papel preponderante, pois faz apare-
cer ritmos mundiais de população num longo período de tempo. assim, a
demografia histórica assegura a transição da história serial ou quantitativa de
nível económico para uma história serial de nível social, depois de nível cul-
tural e espiritual, de acordo com os três níveis estipulados por labrousse (cf.
ricœur, TR i, 193-194).
Numa sociedade polimorfa, em constante mutação superficial, não será o
que dura e perdura a sua essência, o que permanece sob a capa do social? –
indaga Braudel:
[...] a sua biologia profunda, as suas condições de base, os seus constrangimentos,
o seu ritmo respiratório? esta procura do permanente, do quasi-permanente, é o
que caracteriza o estruturalismo dos historiadores da chamada escola dos Annales
que nada tem que ver com o estruturalismo sofisticado, à moda dos belos espíritos
de Paris ao longo dos anos sessenta [Braudel 1991: 278].

a estrutura não é, pois, um sistema de relações abstratas94. Para o histo-


riador, ao invés, a estrutura compreende coisas bem concretas e reais, é o que
na «massa de uma sociedade, resiste ao tempo, perdura, escapa aos acasos,
sobrevive com obstinação e sucesso» (Braudel 1991: 290; cf. Braudel 1969:
50). a história de longa duração é, na verdade, uma maneira de abordar o pas-
sado, omitindo uma enorme parte da história vivida. elimina-se o que é breve,
o que é individual, episódico, o que é oscilação simples, «para recriar uma pai-
sagem de história segundo perspetivas intermináveis, multisseculares» (id. 1991:
290). a esta história que é assim privilegiada sob o signo da duração, da repe-
tição, da insistência, chama o autor de estrutural. No entanto, o mesmo adverte-

93
De facto, a escolha da personagem mediterrâneo é singular e pertinente, na medida
em que não possui data de nascimento ou de óbito e na medida em que obrigou o historiador
francês a sair dos ritmos históricos vulgares praticados pelos seus colegas historiadores.
94
«a esta história profunda chamei estrutural – mas por favor entenda-se, e de uma
vez por todas, que o meu estruturalismo não tem nada a ver com o estruturalismo (aliás, pas-
sado de moda) dos linguistas. Para mim, é estrutura tudo o que resiste ao tempo da história,
o que dura e até perdura – algo, pois, de bastante real, e não a abstração da relação ou da
equação matemática» (Braudel 1991: 302).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 97

-nos, com insistência, para o que ele considera ser um mal-entendido da sua
teoria da longa duração: esta não pressupõe a imobilidade histórica.
a estrutura não é imobilidade rigorosa. ela só parece imóvel em relação a tudo
o que, à sua volta, se move, evolui mais ou menos rapidamente. mas ela gasta-
-se a si própria, ao longo do tempo. Diminui-se. está mesmo sujeita a ruturas,
mas muito distanciadas umas das outras no tempo e que, por mais importantes que
sejam, nunca incidem sobre toda a arquitetura estrutural de uma sociedade. Nada
se quebra de uma só vez [Braudel 1991: 290]

Digo história profunda, não imóvel como diz repetidamente emmanuel le roy
ladurie, de acordo com um exemplo que eu próprio devo ter dado outrora. com
efeito, a imobilidade não é a palavra conveniente: a imobilidade é a morte,
enquanto a história profunda está viva; na verdade, ela é repetição. assim, dando
como exemplo o mediterrâneo antigo, os rebanhos que vão para as pastagens de
verão sobem regularmente, todos os anos, a partir das planícies e voltam a essas
baixas regiões quando se aproxima o inverno, eis uma história longa. o mesmo
se passa com os mares agitados de inverno, em que a navegação no mediterrâneo
é suspensa pelas regras de precaução das cidades. e isto durante séculos. Para
durar, essas realidades repetem-se. Há evidentemente muitas outras repetições,
muitas outras permanências: mais não seja a continuidade das civilizações (as reli-
giões, os falares), dos equilíbrios económicos, das hierarquizações sociais e eco-
nómicas inevitáveis – realidades que se substituem lentamente, diferentes nas suas
formas, mas análogas nas suas razões de ser e de durar [ibid.: 301].

É histórico o que muda e também o que não muda. a mudança deve con-
ciliar-se necessariamente com a não mudança, pois a história global resulta de
uma dialética permanente entre estrutura e a conjuntura, entre permanência e
mudança95. Na longa duração o mediterrâneo permanece inalterado, repetitivo e,
aparentemente, «mas só aparentemente» – adverte o autor (ibid.: 289) – imóvel,
pois acima deste, oscilações cíclicas de mais ou menos longa duração fazem a
história mover-se: são as conjunturas.

95
a partir da década de quarenta do século XX, o novo questionário dos historiadores
organiza-se em torno da oposição entre estrutura e conjuntura. as estruturas designam fenó-
menos geográficos, ecológicos, técnicos, económicos, sociais, políticos, culturais, psicológicos,
que permanecem constantes durante um longo período ou que evoluem de um modo quase
impercetível. as conjunturas designam flutuações de amplitudes diversas que se manifestam
no contexto das estruturas. Por outras palavras, a estrutura é um conjunto de constrições e
barreiras que impedem as diferentes variáveis, cujas oscilações constituem a conjuntura, de se
elevar acima de um determinado teto.
98 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

acima dele, uma história de lentas pulsações, uma sequência de conjunturas que,
nas suas vagas sucessivas, levantam, depois abandonam, constroem e depois des-
troem, e continuamente movem as economias, as civilizações, as formas políticas,
as realidades sociais, os vaivéns da história das ideias, as correntes artísticas e lite-
rárias que evoluem de geração em geração, ou ainda os costumes, ou as maneiras
de pensar... [Braudel 1991: 289.].

todavia, uma história de curto prazo é incapaz de apreender e explicar as


permanências e as mudanças: «[...] a história que avança por cima destas len-
tidões sob o signo vivo dos acontecimentos do dia-a-dia, das “notícias sonan-
tes”, como se dizia no século XVi: muito barulho, muita angústia, muitos alar-
mes, mas no dia seguinte, se tudo decorre normalmente, não se pensará mais
nisso...» (ibid.)
apesar de o tempo das estruturas ser muito lento, quase estacionário, é na
sucessão destas que se notam transformações irreversíveis e profundas, denomi-
nadas revoluções. Neste contexto da afinidade com a estrutura, revolução não
significa mutação violenta e espetacular ou dramática, pois ela é, na maior parte
das vezes, silenciosa, subreptícia, mesmo para os seus agentes96. É o caso da
revolução agrícola ou da revolução demográfica. Nem sequer tem de ser rápida,
pode durar séculos. uma revolução não é uma sucessão de acontecimentos úni-
cos, é mais uma onda de inovações, que se propaga a partir de um ponto inicial
através de inumeráveis repetições. Percebe-se este caráter repetitivo no caso do
processo de alfabetização, que pode levar séculos: foi um a um que os indiví-
duos aprenderam a ler97: «[...] c’est justement cette cascade de répétitions qui
est intéressante dans la perspective de l’histoire structurale, et non pas quelques
faits spectaculaires mais isolés, sinon uniques» (Pomian 1978: 551).
a ideia de longa duração permite superar, simultaneamente, os primados
do indivíduo e do acontecimento singular, próprios da história tradicional. Brau-
del prefere estudar o que muda lentamente: as estruturas. uma história política
apenas interessada em mudanças de trono ou de governo não capta o essencial:
o aumento do tamanho do ser humano devido a mudanças profundas nos hábi-

96
«tudo muda verdadeiramente quando a história profunda começa a correr, pouco a
pouco, num outro sentido, quando uma rutura profunda entra lentamente em ação, enorme
fenda onde submerge a história ardente que os homens vivem no dia-a-dia» (Braudel 1991:
303).
97
o mesmo se pode verificar no exemplo descrito por le goff (1963), em Le Temps
du travail dans la “crise” au XIVe siècle: du temps médiéval au temps moderne: foi cidade
a cidade, vila a vila que, paulatinamente, se foram multiplicando os relógios, alterando a con-
ceção temporal dos habitantes que originou uma verdadeira revolução económica e social.
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 99

tos alimentares e na medicina; a mudança no relacionamento com o espaço


devido à revolução ocorrida nos transportes; as transformações do conhecimento
provocadas pelo aparecimento de novos meios de comunicação social. estas
premissas concretizam-se numa história anónima, profunda e silenciosa. ao lado
do tempo que passa, há o tempo que permanece, aquele tempo profundo, por
vezes, inconsciente, onde moram as nossas memórias. um tempo que recebe-
mos dos nossos antepassados e que determina as nossas histórias98.

esta forma de fazer a história tem implicações profundas na forma de nar-


rar a história. ao ameaçar o acontecimento, a personagem e a mudança, ameaça
também a inteligibilidade própria da narrativa. É a partir desta constatação que
ricœur tece os seus apontamentos críticos. Dos ensaios de Braudel e dos seus
discípulos, ele foca, em primeiro lugar, o que ataca o segundo postulado da his-
tória factual sobre o facto histórico: que os acontecimentos são o que os seres
humanos fazem acontecer ou suportam. o que é contestado por Braudel é o
modelo de ação implicado nas próprias noções de “fazer acontecer” e de
“suportar”. De acordo com este modelo implícito, a ação pode ser sempre atri-
buída a agentes individuais, autores ou vítimas de acontecimentos. mesmo
incluindo o conceito de interação no de ação, não invalidamos o preceito de
que o autor da ação deve ser sempre um agente identificável. ora, Braudel
anula este postulado e, simultaneamente, outros dois axiomas preconizados pela
história positivista: o indivíduo é o portador último da mudança histórica e as
mudanças mais significantes são pontuais, as que afetam os indivíduos de
forma breve e surpreendente. Destes dois corolários depreende-se ainda um ter-
ceiro que nunca foi discutido abertamente por Braudel: uma história de factos
é equivalente a uma história-narrativa. História política, história factual e histó-
ria-narrativa são tomadas como expressões quase sinónimas. ricœur critica este
tratamento depreciativo da categoria narrativa da história como efeito secundá-
rio de uma reação violenta contra a história dita política, à qual foi associada
a narrativa99. Braudel refere-se à história tradicional como a «história-narrativa,

98
«somos herdeiros de uma água profunda na qual navegamos mal, às cegas. esta
superfície da história é-nos propícia, sem dúvida: julgamo-nos livres no interior dela e a liber-
dade é, no essencial, a ilusão feliz de se ser livre, de se pensar que “o homem faz a história”,
quando o contrário – “a história faz o homem” – é infelizmente mais verdadeiro» (Braudel
1991: 303).
99
chateaubriand (1831), um dos precursores avant la lettre da Nova história, manifesta
este desprezo pela narrativa que deve implicar uma história moderna. No prefácio dos seus
Études historiques, criticando duramente a história assente em factos e personagens principais
e clamando já por uma história moderna abrangente e total, reconhece que este novo modo
100 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

querida a ranke» (1969: 13). ricœur estranha o facto de nenhum dos funda-
dores dos Annales ter notado que estavam a aproximar a realidade histórica da
narrativa de ficção, como criação de um narrador, ao tecerem críticas veemen-
tes ao facto histórico dado totalmente nas fontes para defenderem uma realidade
histórica construída pelo historiador (TR i, 183-184)100.
ricœur valoriza o conceito braudeliano de “longue durée” mas assinala,
mais uma vez, a ausência da discussão em torno das ideias de causa e lei. Para
além disso, constata que não há grande rigor epistemológico na referência à
pluralidade temporal. Braudel não fala simplesmente de diferenças quantitativas
entre extensões temporais, como tempo curto e tempo longo, mas também de
medidas de tempo que implicam velocidade e movimento, como tempo rápido
e tempo lento. o recurso a imagens e metáforas do mundo marítimo, por exem-
plo, para dizer a rapidez dos movimentos que percorrem intervalos de tempo
têm como finalidade depreciar o acontecimento, sinónimo de tempo breve: «une
agitation de surface, les vagues que les marées soulèvent de leur puissant mou-
vement. une histoire à oscillations breves, rapides, nerveuses» (Braudel 1969:
12). Já as metáforas que caracterizam o tempo longo enaltecem o seu valor
excecional.
sob esta vontade de tornar visível e audível o que o clamor do drama
eclipsou e reduziu ao silêncio subjazem duas perceções adversas, mas mantidas
em equilíbrio: a permanência e a mudança. Por um lado, a defesa da longa
duração, por permitir à história aceder a um tipo de inteligibilidade único, pró-
prio dos equilíbrios duráveis, que se traduz numa espécie de estabilidade na
mudança, que Braudel identifica com a estrutura. À espuma do facto opõe-se
a rocha da duração, sobretudo, quando o tempo se inscreve na geografia ou se
recolhe na perenidade das paisagens. um exemplo disso é o conceito de civi-
lização que por diversas vezes o historiador aflora nos seus escritos (Braudel

de fazer história implica o sacrifício de historiadores como tucídides, tito lívio e tácito.
apesar de reconhecer que este sacrifício é um inconveniente, acha-o necessário e inevitável
(apud le goff 1978: 223-224). No comentário a esta passagem, le goff é mais incisivo:
«histoire globale à nouveau où l’économique, l’artistique, l’anthropologique sont au premier
plan. Histoire des prix et de l’économie politique (et non histoire politique). Histoire prête,
enfin, à renoncer au prestige du style, à la conception de l’historien écrivain et artiste s’il faut
payer de ce prix la rigueur scientifique...» (ibid.: 224).
100
«il n’y a pas de réalité historique toute faite, et qui se livrerait d’elle-même à l’his-
torien. comme tout homme de science, celui-ci doit, selon le mot de marc Bloch, “face à
l’immense et confuse réalité”, faire “son choix” – ce qui, évidemment, ne signifie ni arbitraire
ni simple cueillette, mais construction scientifique du document dont l’analyse doit permettre
la reconstitution et l’explication du passé» (le goff 1978: 216). cf. l. Febvre 1953: 7.
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 101

1991: 302-305). mas quando a matemática social tenta aplicar à longa duração
as suas estruturas acrónicas, os seus moldes intemporais, o autor vê-se na obri-
gação de sublinhar que mesmo a permanência inclui mudança, pois sem ela não
pode haver história (Braudel 1969: 42-83). É que a longa duração, mesmo a
muito longa duração, continua a ser duração, logo, inseparável do tempo. os
modelos são de duração variável, porque apenas «são válidos, enquanto é válida
a realidade que registam. [...] mais significativos que as estruturas profundas da
vida são os seus pontos de rutura, a sua brusca ou lenta deterioração, sob o
efeito de pressões contraditórias» (Braudel 1976: 52-53).
com esta chamada de atenção, Braudel tenta salvar a história estrutural de
se confundir com as matemáticas qualitativas, como a antropologia ou a socio-
logia. estas não podem servir de modelo à história, pois limitam-se a circular
por uma só das inúmeras rotas do tempo – a rota da extrema lentidão, monó-
tona e tranquila, quase intemporal – ignorando os acidentes, as conjunturas e as
ruturas. ao historiador, nas suas viagens pelo tempo, interessam, de sobrema-
neira, os momentos mais significativos, logo, uma duração muito longa, exces-
sivamente longa, é incapaz de «reencontrar o jogo múltiplo da vida, todos os
seus movimentos, todas as suas durações, todas as suas ruturas, todas as suas
variações» (ibid.: 58).
o teorizador da longa duração envolve-se assim num duplo combate: con-
tra o acontecimento episódico, breve e explosivo e contra a duração demasiado
longa. mais à frente ricœur dirá como é que esta apologia da longa duração
com a sua dupla recusa se pode conciliar com o modelo da configuração nar-
rativa.

Depois de Braudel, o conceito de longa duração tornou-se o paradigma de


toda a escola dos Annales. ricœur (TR i, 190) detém-se num dos desenvolvi-
mentos mais significativos da historiografia francesa: a introdução massiva em
história de métodos quantitativos, importados da economia e estendidos à his-
tória demográfica, social, cultural e até espiritual (cf. le goff 1978: 233-234).
Facto iniludível do abandono do acontecimento histórico como algo único e
irrepetível. a história quantitativa é uma história serial, de acordo com a ter-
minologia criada por Pierre chanu (1978), consiste na elaboração de séries
homogéneas de dados repetíveis, suscetíveis de tratamento informático. Deste
modo, a conjuntura, que passara da história económica à história social, é
estendida à história geral, como método capaz de integrar num dado momento
o maior número possível de correlações entre séries afastadas. igualmente, a
estrutura, entendida pelos historiadores no seu duplo sentido estático e dinâ-
mico, é usada enquanto método capaz de dar conta da interseção de numerosas
102 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

variáveis que em conjunto pressupõem uma ordenação serial. conjuntura passa


a designar o tempo curto e estrutura o tempo muito longo, sempre numa pers-
petiva de história serial.
De um modo geral, os historiadores, sobretudo os especialistas de história
económica e graças ao conceito de longa duração, conseguiram, por um lado,
preservar a componente temporal da estrutura, evitando a sua transformação no
modelo acrónico das ciências sociais e, por outro, combater o fascínio pelo
acontecimento catastrófico e isolado característico da história tradicional. a his-
tória serial, para se manter fiel à longa duração, foi obrigada a distanciar-se da
história puramente quantitativa dos economistas, uma vez que esta última sacri-
ficou às ciências exatas essa categoria maior do tempo histórico.
o que importa reter desta incursão pela história da nova história, segundo
ricœur (TR i, 195), resume-se a dois aspetos fundamentais: em primeiro lugar,
verificar o combate da historiografia francesa contra a história dita factual ou
episódica e, consequentemente, contra um modo diretamente narrativo de escre-
ver história; em segundo, notar como essa repulsa obrigou a um vínculo com
uma disciplina quantitativa, a economia, para a qual o tempo não é uma preo-
cupação maior. Vimos como a história de longa duração nasce do relaciona-
mento com a geografia; ao passo que a história quantitativa, enquanto história
de longa duração, surge do enlace com a economia. Podemos questionar em
que medida é que a história permanece histórica neste casamento com outras
ciências. É impressionante que a resposta está sempre, de uma forma apro-
priada, relacionada com o acontecimento.
Na obra de antropologia histórica de le goff sobre o fenómeno do tempo
na longa duração da idade média (1977), a evolução da representação temporal
e as transformações de ordem social e económica que ela implicou é entendida
como um dos maiores acontecimentos da história mental desses séculos, vendo-
-se aí a génese ideológica do mundo moderno. tomando o tempo como acon-
tecimento mutável, o historiador antropólogo assegura a duração na longa dura-
ção e, consequentemente, a permanência de algo histórico na própria história,
evitando que ela descambe para a antropologia estrutural, acrónica101. este
exemplo leva ricœur a questionar se, para se manter histórica, a história não
deve constituir em quasi-acontecimentos as mutações lentas que abrevia na sua

101
«o historiador está sempre atento à mudança, a «longa duração» é sempre «dura-
ção». Na própria dialética de «conjuntura» e «estrutura» – como na «história serial» de P.
chanu – há sempre uma coloração temporal da estrutura; neste aspeto os historiadores da
«história económica», por exemplo, distinguem-se dos economistas e dos sociólogos» (tei-
xeira, i, 194).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 103

memória, por um efeito de aceleração cinematográfica (TR i, 196). esta inter-


rogação fica para já sem resposta até ao momento em que ricœur volta à obra
de Braudel para conferir um estatuto epistemológico ajustado ao que proviso-
riamente designa de quasi-acontecimento (cf. ricœur, TR iii, 365-385). antes
disso, impõe-se confrontar e reconciliar compreensão e explicação, narrativa e
ciência.

2.1.2.  Modelo nomológico: contra a compreensão narrativa

o ataque contra a compreensão dirigido pelos partidários do modelo


nomológico – saído do positivismo lógico – tem o mesmo efeito, «sinon le
même enjeu» (ricœur, TR i, 201) que o ataque levado a cabo pela historiogra-
fia francesa contra a história factual, a saber, o eclipse da narrativa. o alvo é
novamente a noção de acontecimento histórico e o seu presumido primado
como átomo de mutação histórica; todavia, agora não vamos encontrar uma
argumentação sustentada pela prática de historiadores profissionais, mas o
desejo de estabelecer as normas que levem à unidade da ciência, na boa tra-
dição do círculo de Viena, que encontra na filosofia analítica inglesa sucessores
à altura102.

i)  Carl Hempel e as leis gerais em história

Paul ricœur toma como ponto de partida para esta discussão a clássica
tese de carl Hempel sobre a função de leis gerais em história103, que consiste,
essencialmente, na apologia da função análoga das leis gerais em história e nas
ciências naturais104, assente no princípio fundamental de que uma explicação
científica deve ser tal que dela logicamente se possa inferir aquilo que se
explica. este modelo que ficou conhecido como “covering-law model of expla-

102
a unificação das ciências é incompatível com a dissociação de Windelband entre
método idiográfico e método nomotético. esta distinção, prolongada pela filosofia crítica
alemã, torna inconciliáveis compreensão e explicação e, logo, a possibilidade de fazer derivar
a história a partir da narrativa. cf. aron 1938.
103
artigo publicado pela primeira vez no Journal of Philosophy, em 1942, tendo sido
reeditado in Patrick gardiner, Theories of History, New York, the Free Press, 1959, 344-356.
104
«[...] general laws have quite analogous functions in history and in natural sciences,
[...] they form an indispensable instrument of historical research, and [...] they even constitute
the common basis of various procedures which are often considered as characteristic of the
social in contradistinction to the natural sciences» (Hempel 1942, in gardiner 1959: 345).
104 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

nation”105 (ricœur designa-o de “nomológico” ou também “hempeliano” [TR i,


203]) foi originalmente formulado por Karl Popper e depois elaborado e modi-
ficado por Hempel, que lhe deu a sua forma final. em traços gerais, de acordo
com este modelo, o ponto forte de qualquer explicação consiste em demonstrar
que a ocorrência de um determinado acontecimento que se quer explicar pode
ser deduzida e, por isso, também pode ser predita, a partir do conhecimento de
leis gerais e condições prévias. Por outras palavras, uma explicação completa
consiste em dispor o explanandum – uma proposição atestando a ocorrência do
evento – como consequência dedutível de proposições acerca das leis gerais (a
premissa maior) e de proposições acerca das condições iniciais (a premissa
menor)106. estabelecidas corretamente estas duas premissas, podemos dizer que
a ocorrência do acontecimento visado foi logicamente deduzida e, por isso,
explicada. Não obstante, esta explicação pode ser viciada de três maneiras: os
enunciados empíricos que estabelecem as condições iniciais podem conter lacu-
nas; as generalidades alegadas podem não ser autênticas leis; o nexo lógico
entre premissas e consequência pode ser viciado por um sofisma ou um erro de
raciocínio.
a vantagem deste modelo de explicação reside na preservação da unidade
formal do conhecimento: um único modelo é aplicável a qualquer contexto de
explicação, sustentando, desse modo, uma visão única e unificada da compreen-
são científica. a desvantagem é que poucas explicações são explicitamente
expostas de uma forma dedutiva, nem tão pouco expõem ou aludem a genera-
lizações que autorizem a inferência. além do mais, para as ciências sociais a
validade deste modelo não é tão evidente como para as ciências naturais, uma
vez que poucas leis gerais de sociologia, por exemplo, são conhecidas. No
entanto, este modelo encoraja a uma investigação contínua no sentido de com-
pletar as ainda inconsistentes leis sociais.
No que concerne a história, o modelo de subsunção mostra-se adverso a
qualquer tipo de compreensão. Hempel valoriza, claramente, a objetividade

105
W. Dray designa-o de covering law model, modelo segundo o qual uma lei cobre
os casos particulares que se tornam exemplos da própria lei. em português, tal como em fran-
cês “subsomption”, o termo que melhor definirá este modelo será o de “subsunção”, reme-
tendo para a relação paralela entre espécie e género.
106
«l’occurrence d’un événement d’un type spécifique peut être déduite de deux pré-
misses. la première décrit les conditions initiales: événements antérieures, conditions préva-
lantes, etc. la seconde énonce une régularité quelconque, c’est-à-dire une hypothèse de forme
universelle qui, si elle est vérifiée, mérite d’être appelée une loi» (ricœur, TR i, 202).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 105

científica e desconfia da subjetividade compreensiva, o que acarreta a denega-


ção do estatuto narrativo do acontecimento histórico, pois não leva em consi-
deração o seu enquadramento inicial, a saber, o de fazer parte de uma crónica
ou de um testemunho, seja ele ocular ou indireto. a omissão da especificidade
deste primeiro nível de discurso faz-se em favor da relação direta entre a sin-
gularidade (do facto) e a universalidade (da lei)107. Para albergar sob uma lei
científica geral eventos históricos e eventos físicos, o autor uniformiza os dois
tipos de eventos, não distinguindo um acontecimento histórico da rutura do
radiador de um automóvel. alçado a este novo estatuto, o facto histórico é tão
passível de explicação e previsão como qualquer outro evento sujeito à lei
humiana de causa-efeito, ou, segundo o modelo explicativo de Hempel, do qual
seja possível enunciar e verificar positivamente as condições ou causas deter-
minantes e as hipóteses universais ou leis gerais em que se baseia. Destas duas
premissas deduz-se, por raciocínio lógico, a explicação científica.
a estrutura epistemológica deste modelo explicativo assenta em três prin-
cípios fundamentais criticáveis. em primeiro lugar, os conceitos de “causa”,
“lei” e “explicação” recobrem-se. a explicação de um acontecimento acontece
quando ele está coberto por uma lei (decorrente de regularidades verificadas) e
os seus antecedentes são legitimamente considerados as suas causas108. aqui
ricœur observa que o autor não faz distinção entre causas e condições deter-
minantes e questiona se uma explicação causal em história não pode existir
independente ou antes da regularidade verificada de uma lei. esta questão ante-
cipa a crítica do modelo feita por William Dray, que ricœur evocará a seguir.
a primeira falha apontada por Dray é, justamente, esta implicação necessária
entre explicação e lei. em segundo lugar, neste modelo nomológico, explicação
e previsão aparecem em necessária conexão. se uma ocorrência de tipo c pro-
voca necessariamente uma outra de tipo e, partindo de c é possível prever e.

107
«ce n’est pas que Hempel ignore l’intérêt de l’histoire pour les événements parti-
culiers du passé: au contraire, sa thèse concerne précisément le statut de l’événement. mais
elle ne tient pas pour important, sinon pour décisif, qu’en histoire les événements tirent leur
statut proprement historique d’avoir été initialement inclus dans une chronique officielle, un
témoignage oculaire, ou un récit base sur des souvenirs personnels. la spécificité de ce pre-
mier niveau de discours est complètement ignoré, au bénéfice d’une relation directe entre la
singularité de l’événement et l’assertion d’une hypothèse universelle, donc d’une forme quel-
conque de régularité» (ricœur, TR i, 202).
108
«a set of events can be said to have caused the event to be explained only if gen-
eral laws can be indicated which connect “causes” and “effect” [...]» (Hempel 1942, in gar-
diner 1959: 346).
106 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

Diz Hempel: «Previsão, numa ciência empírica, consiste em deduzir uma afir-
mação acerca de um certo evento futuro»109.
a estrutura lógica de uma previsão científica é, pois, a mesma de uma
explicação científica, uma vez que a previsão implica sempre, nas ciências
empíricas, uma referência a hipóteses universais empíricas. Hempel salvaguarda,
contudo, uma diferença pragmática: no caso da explicação científica, o evento
já ocorreu e é necessário procurar as suas condições determinantes; relativa-
mente à previsão, passa-se o inverso – temos as condições iniciais e há que
determinar o seu efeito, que ainda não ocorreu110. acrescenta ainda que o cará-
ter preditivo da explicação é critério de validade da própria explicação, sendo
a sua ausência sinal de incompletude.
curiosa é a extensão destas considerações à história. segundo ele, a expli-
cação histórica deveria demonstrar que determinado evento não foi fruto do
acaso, mas era previsível, em virtude de certos antecedentes ou condições
simultâneas e adverte que não se trata de profecia ou adivinhação, mas de ante-
cipação científica racional assente em leis gerais. Por último, este modelo expli-
cativo só serve para acontecimentos de um tipo específico, os repetíveis, e não
abrange a classe dos singulares. Hempel justifica a exclusão dos acontecimentos
singulares – o terramoto de lisboa ou o assassinato de Júlio césar, por exem-
plo – pela impossibilidade de se descrever exaustivamente todas as proprieda-
des manifestadas pela região espacial ou pelo objeto individual em causa,
durante o tempo em que se manifestou o ocorrido. tarefa tão impossível para
o historiador como para o físico. uma explicação só pode ser precisa e apu-
rada, não tem nem pode dar conta de todas as particularidades de um evento
singular, logo, nenhum evento singular pode ser explicado cientificamente. Per-
cebe-se, pois, que a singularidade do acontecimento é, consequentemente, «um
mito para afastar do horizonte científico» (ricœur, TR i, 204).
ao elaborar este modelo universal, Hempel ambiciona colocar a história
sob o mesmo teto, outorgando-lhe um estatuto similar, das ciências empíricas,
pois ela deve ser ciência e não arte. todavia, reconhece que a história é uma
ciência não totalmente desenvolvida, já que, na maior parte das vezes, as suas
explicações não incluem uma afirmação explícita das regularidades gerais que
pressupõem; por outras palavras, as explicações históricas não oferecem nem

109
«Quite generally, prediction in empirical science consists in deriving a statement
about a certain future event [...]» (Hempel 1942, in gardiner 1959: 347).
110
«if the final event can be derived from the initial conditions and universal hypothe-
ses stated in the explanation, then it might as well have been predicted, before it atually hap-
pened, on the basis of a knowledge of the initial conditions and the general laws» (Hempel
1942, in gardiner 1959: 348).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 107

pressupõem claramente generalizações acabadas e precisas a partir das quais se


possa de facto inferir os próprios eventos narrados: quer porque as hipóteses
gerais em causa derivam do foro psicológico individual ou social, supostamente
comuns a toda a gente, através da experiência quotidiana, e, logo, tacitamente
subentendidas; quer porque as alegadas regularidades carecem de comprovação
empírica; ou ainda porque provêm da sabedoria popular ou do senso comum e
são pseudoleis. logo, a história lida sobretudo com hipóteses aproximadamente
universais ou probabilidades, mas as probabilidades não são leis gerais, por-
tanto, a análise histórica não permite obter uma explicação científica igual à
das ciências empíricas. as explicações históricas oferecem-nos, isso sim, esbo-
ços de explicações (Hempel 1942, in gardiner 1959: 351) aos quais é neces-
sário acrescentar sempre mais pormenores para que eles nos permitam real-
mente deduzir os eventos em causa. significa isto que as generalizações destes
esboços não são totalmente explícitas e comprovadas, mas suficientes para abrir
caminho a afirmações mais específicas e a novas pesquisas empíricas que per-
mitam alcançar gradualmente uma explicação científica mais completa. É neste
sentido que se pode afirmar que o esboço de explicação cientificamente acei-
tável aproxima-se mais de uma explicação autêntica do que de uma pseudoex-
plicação. esta é a única concessão que Hempel faz à especificidade epistemo-
lógica da ciência história. Fora dela, o autor recusa qualquer processo de
empatia, de interpretação ou de compreensão na explicação científica. este
método, segundo o autor, não constitui, por si só, uma explicação; é, essencial-
mente, um processo heurístico, que leva o historiador a “pôr-se na pele” das
personagens para tentar imaginar como é que ele próprio agiria nessas circuns-
tâncias, com as mesmas motivações dos seus heróis. em história, argumenta
Hempel, a explicação de um fenómeno faz-se somente pela sua classificação
segundo leis empíricas gerais «e o critério da sua exatidão não é ver se ela
agrada à nossa imaginação, se se apresenta em analogias sugestivas [...], mas,
pura e simplesmente, se ela se fundamenta em hipóteses empiricamente bem
fundadas, relativas a condições iniciais e leis gerais» (ibid.: 353).
ricœur conclui, em jeito de síntese crítica:
rien, donc, dans la construction du modèle, ne se réfère à la nature narrative de
l’histoire ou au statut narratif de l’événement, encore moins à une quelconque spé-
cificité du temps historique par rapport au temps cosmologique. ces distinctions,
comme on l’a dit plus haut, sont tacitement exclues dès lors que nulle différence
de principe n’est admise entre un événement historique et un événement physique
qui simplement arrive, dès lors qu’on ne tient pas comme pertinent pour le statut
historique de l’événement qu’il ait été raconté dans des chroniques, des récits
légendaires, des mémoires, etc. [TR i, 206].
108 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

Posteriormente, os partidários do modelo nomológico empenharam-se em


reformular o modelo “forte” de Hempel, com o intuito de conciliar os seus
requisitos com as características distintivas da investigação histórica, o que teve
como consequência positiva o seu enfraquecimento. Positiva porque, para além
de o ter tornado mais flexível, provocou a emergência de traços do conheci-
mento histórico que, efetivamente, derivam da explicação e podem ser usados
como arma de defesa contra teorias antagónicas, nomeadamente narrativistas,
que pretendem uma ligação direta entre história e narrativa. ricœur reconhece
por um lado que este enfraquecimento vai ao encontro do trabalho dos histo-
riadores franceses e, por outro, é para ele próprio uma «razão suficiente para
não ceder à tese diretamente narrativista e recorrer a um método mais indireto
de reenvio da explicação à compreensão» (TR i, 207: nota 4).
a escola de Hempel, divergindo do seu mentor, começou por reconhecer
a diferença entre as explicações causais da história e das ciências naturais: a
história não estabelece as leis dedutíveis consoante o método proposto por
Hempel, limita-se a aplicá-las111. ressalva a heterogeneidade dos níveis de
imprecisão que admite a noção de regularidade em história. P. gardiner (1952)
aceita no grupo das regularidades admitidas em história o que ele designa de
lawlike explanations, isto é, regularidades de tipo “disposicional” às quais g.
ryle (1949) concede um papel principal na explicação do comportamento, ao
dizer que uma das funções do conector “porque” é, com efeito, colocar a ação
de um agente no quadro do seu comportamento “habitual”. este caso é bem
significativo da heterogeneidade de níveis de explicação, heterogeneidade que é
perfeitamente aceitável pelo leitor de obras históricas. De facto, o leitor das
obras históricas não as lê à espera de encontrar um modelo único, monolítico,
monótono, de explicação, o seu leque de expetativas é bastante amplo. contra-
riamente ao que se passa no modelo nomológico, a questão “porquê” em his-
tória admite uma série de respostas possíveis, é bem mais flexível. Não obs-
tante, para evitar que o modelo “forte” ficasse demasiado fraco e a sua
explicação causal não cedesse demasiado perante o amplo leque das respostas
causais da explicação histórica, os seus seguidores continuam a propô-lo como
referência, como ideal, apelando a uma aproximação gradual das formas da his-
tória às da ciência exata.

111
«l’histoire n’établit pas les lois qui figurent dans la majeure de la déduction hem-
pelienne. elle les emploie. c’est pourquoi elles peuvent rester implicites. mais c’est pourquoi
surtout elles peuvent relever de niveaux hétérogènes d’universalité et de régularité» (ricœur,
TR i, 208)
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 109

ii)  Charles Frankel e a interpretação

charles Frankel [1957, in gardiner 1959, 408-427] foi o que forçou mais
o modelo nomológico até ao limite da sua flexibilidade. a razão prende-se com
a admissão da interpretação – entendida de forma muito similar à ideia alemã
de compreensão na filosofia crítica da história de Dilthey (cf. aron 1964) –
como um momento necessário do conhecimento histórico. Frankel admite que
o historiador tende a emitir juízos de valor e de sentido sobre eventos. isto
acontece quer na escolha e delimitação da história que narra e nos juízos
morais que profere quer na imputação concreta de conexões causais, orientadas
por consequências terminais (Frankel 1957, in gardiner 1959: 417-418).
apesar desta concessão, Frankel cuida de não abrir demasiadas brechas no
tecido nomológico112. ao conciliar a interpretação com a explicação causal, sub-
mete a primeira às exigências limitativas da segunda. É um facto que as gene-
ralizações históricas se inscrevem em esboços de explicação, mas isso é mais
uma contingência gnosiológica do historiador do que uma limitação da própria
história. Por conseguinte, nada a impede de se aproximar das outras ciências,
devendo acrescentar às generalizações em esboço os muitos factos que o his-
toriador ignorou, para conseguir explicações objetivas e geralmente aceites.
Quanto à incapacidade preditiva ou retroditiva das explicações históricas, esta
deve-se ao facto de exprimirem as condições essenciais, mas não suficientes
para a ocorrência de um evento. são insuficientes, mas nem por isso deixam
de satisfazer as nossas exigências de explicação, contanto que nos deem conta
das diferentes fases do processo evolutivo que deu origem a determinado fenó-
meno que suscitou a nossa curiosidade. Perante estes considerandos, Frankel
não hesita em considerar a explicação histórica um tipo normal de explicação
causal: primeiro, porque esta espécie de explicação típica da história ocorre
noutras ciências que tratam do desenvolvimento ou da evolução, como a
embriologia; segundo, a descrição das fases do processo ou das condições
essenciais para a ocorrência de um evento funda-se tanto como uma explicação
inteiramente preditiva em generalizações tácitas ou expressas (ibid.: 411-412),
que asseguram um nexo causal entre as várias fases. observação crítica de
ricœur: «la frontière, dès lors, tend à s’effacer entre l’explication scientifique,

112
Frankel, apesar de reconhecer as especificidades da explicação histórica, nomeada-
mente, o elemento subjetivo da interpretação, acha que estas características distintivas da
explicação histórica não são suficientes para marcar uma descontinuidade em relação à lógica
da investigação científica (cf. Frankel 1957, in gardiner 1959: 410).
110 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

l’explication de sens commun, et la sorte de jugement prudentiel que nous por-


tons d’ordinaire sur les affaires humaines» (TR i, 213).
o último aspeto distintivo do conhecimento histórico que é incompatível
com o modelo nomológico prende-se com a questão das generalizações em his-
tória. estas, manifestando mais uma frequência significativa do que relações
constantes, oferecem uma enorme resistência a contraprovas, pelo facto de a
imputada frequência da relação em causa ser extremamente indefinida. assim,
quando o historiador é confrontado com contraexemplos que invalidam as suas
generalizações, em vez de as abandonar, defende-as acrescentando-lhes porme-
nores reais, que funcionam como restrições, da situação concreta a que está a
aplicá-la, com o intuito de nos convencer da veracidade da sua explicação.
estas cláusulas restritivas reduzem de tal forma o campo de aplicação que aca-
bam por demonstrar a ineficácia das contraprovas para a classe de eventos em
causa. Deste modo, as restrições tornam as afirmações progressivamente mais
nítidas.
levando o modelo nomológico até ao seu limite da sua elasticidade, Fran-
kel aceita que a explicação e a interpretação em história estão inextricavelmente
entrelaçadas. No entanto, para não invalidar o modelo, defende que, para se
manterem aceitáveis, as interpretações mais englobantes devem partir sempre de
explicações parciais rigorosas, pois não se pode atribuir valor a algo sem que
esse algo esteja assente em imputações causais fixas ou inflexíveis. o contrário
também se verifica: a asserção de uma relação causal – quer em casos da vida
prática quer na história – assenta, muitas vezes, ou numa conjetura de facto ou
numa estipulação de valor.
apresenta três exemplos típicos de interpretação em história, incompatí-
veis com o ideal de explicação. a menos compatível é que faz uma leitura
teleológica da história. mais aceitável é a proposta da “causa mais importante”
– por exemplo, a económica – que consiste em oferecer uma teoria compreen-
siva como esquema elucidativo do que tem acontecido em questões humanas.
a interpretação aqui é compatível com a explicação desde que ela se limite a
fornecer à investigação um guia de pesquisa e a assinalar os seus graus de
importância. torna-se incompatível a partir do momento em que se assuma
como única explicação válida, em detrimento de qualquer outra.
a interpretação mais profícua é a que tem por missão narrar uma série de
eventos de uma era, de uma cultura ou de uma instituição, relacionados por
causalidade com o que designa de “consequências terminais”, apreciadas em si
mesmas, segundo critérios de valor ou de não-valor. citamos as palavras do
próprio Frankel:
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 111

Broadly, when an historian provides an “interpretation” of an age or a culture or


a institution, he is doing something like the following. He is telling a story of a
sequence of causally related events that have consequences of value or disvalue:
in other words, he is showing that certain events are causally related to what i
shall call “terminal consequences”. to state the “meaning” of an historical process
is to state these terminal consequences. and it is the question of the choice of ter-
minal consequences that raises most of the issues concerning the possibility of
objectivity in history. For it is plain that no historian, insofar as he wishes merely
to delimit his problem, let alone pass judgment on the events he is recording, can
avoid selecting certain terminal consequences as the frame of his story [1957, in
gardiner 1959: 421].

ricœur observa o quanto este argumento se avizinha da conceção narra-


tivista: «the frame of his story»; «he is telling a story of a sequence of causally
related events». uma história é escrita em função de um determinado fim ao
qual o historiador atribui valor. Por outras palavras, nenhum historiador pode
deixar de selecionar certas consequências terminais para constituir a estrutura
da sua história. os compromissos morais ou sociais do historiador afetam as
explicações causais que ele apresenta no ato de imputar causas em história,
pois esta imputação é subjetiva, podendo divergir da de outro historiador. os
historiadores podem fazer leituras discordantes do curso dos acontecimentos, se
os mesmos eventos forem vistos em ordem a consequências terminais diferen-
tes. Por terem interpretações diferentes, não significa que ambos não sejam ver-
dadeiros e objetivos quanto às sequências causais sobre as quais são edificados.
De acordo com este princípio, quando os historiadores de eras posteriores rees-
crevem a história dos seus predecessores é porque estão em desacordo quanto
aos factos. mas quando a escrevem em função de consequências terminais que
são diferentes daquelas que interessavam aos seus predecessores, então, não se
pode considerar que reescrevem a história, eles escrevem uma outra história.
Por conseguinte, podem ser verdadeiras e legítimas mais do que uma interpre-
tação de um mesmo período histórico, contanto que não se apresentem narra-
tivas incompatíveis de exatamente os mesmos factos. contra as críticas dos
céticos, salvaguarda-se assim a possibilidade da objetividade em história, ape-
lando-se a um pluralismo crítico que, embora admita vários pontos de vista,
não os considera todos igualmente válidos ou legítimos.
ricœur comenta que não é possível ir mais longe na aceitação do ponto
de vista adverso sem romper com a hipótese de base que norteou o artigo de
Frankel: a explicação em história não difere fundamentalmente da explicação
das outras ciências (TR i, 216). a manutenção deste princípio tem como fina-
112 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

lidade defender a ciência histórica das críticas dos céticos e justificar a sua luta
pela objetividade. Foi assim que a apologia da objetividade e do modelo nomo-
lógico se tornaram indissociáveis.

2.1.3  Críticas e alternativas ao modelo nomológico

alguns partidários da proposta de Hempel lutaram pela sua sobrevivência.


alargando o seu espartilho, tornaram-na mais flexível em função da diferença
da ciência histórica, indo, numa escala descendente, do extremo da exigência
dedutiva mais rigorosa até ao extremo da “quase-lei”. Deste enfraquecimento
resultou o chamado “modelo fraco”, cuja boa intenção era preservar a aplica-
bilidade do modelo “forte”, respeitando as reconhecidas especificidades da ciên-
cia histórica. autores houve, porém, que viram no afastamento insuperável entre
o modelo nomológico e a explicação histórica o sintoma de uma deficiência
lógica no seio do próprio modelo.
ricœur comenta que a particularidade maior do conhecimento histórico,
no que ao estatuto da explicação diz respeito, não é que as explicações em his-
tória sejam simples esboços ou leis de nível inferior, mas antes a forma como
elas funcionam em história que não é a mesma que nas ciências da natureza,
porque o historiador não estabelece as leis, utiliza-as. elas podem, por isso,
estar implícitas e, sobretudo, pertencer a níveis heterogéneos de universalidade
e regularidade, como no-lo ensinam Dray e Wright.

i)  William Dray e a explicação fora da lei

a obra de William Dray, Laws and Explanations in History (1957), foi


das que mais contribuiu para o declínio do paradigma nomológico. ciente
disso, ricœur não pode ignorar o seu contributo para esta reviravolta na epis-
temologia da história (vide TR i, 217-234). Dray desenvolve três teses funda-
mentais: uma de ataque ao modelo de subsunção – ou «modelo de lei global»113
– e duas alternativas ao mesmo.

a)  a primeira parte da sua obra consiste numa análise crítica que conduz
à dissociação das ideias de explicação e de lei. ao efetuar esta separação, o
filósofo contesta também que a noção de explicação obrigue a lei a justificar

113
tradução de Vítor matos e sá de covering law model, in gardiner, Teorias da His-
tória, Fcg, 20045, 494.
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 113

todos os casos particulares que ela supostamente cobre. a explicação por leis
não é, pois, suficiente nem tem caráter necessário. Para explicar um aconteci-
mento, não basta conhecer as leis físicas que o regem, é preciso estabelecer a
cadeia detalhada dos acontecimentos que tiveram lugar entre o princípio despo-
letador e o seu efeito final, defende o autor. Não sendo suficiente, a explicação
por leis também não é necessária. enquanto um lógico da escola de Hempel,
para explicar determinado acontecimento histórico, se limita a evocar um con-
junto de leis implícitas, vagas e de caráter geral, para o historiador é preciso
uma lei que contemple as condições específicas que conduziram ao aconteci-
mento, ou seja, uma lei tão detalhada que se torna de um só caso. Nesta situa-
ção, já não se trata de uma lei explicativa de acordo com o modelo de sub-
sunção. Nem lei se pode chamar, ainda que a reformulação operada pelo
raciocínio do historiador lhe dê uma aparência de lei empírica. o historiador,
de forma pragmática e análoga à do mecânico que procura explicar uma avaria
num automóvel, explica um acontecimento enumerando um conjunto de fatores
específicos que o causaram114; o lógico – confiante no modelo da lei global –
perante a ocorrência de determinados fatores predirá o evento, socorrendo-se de
uma lei. Dray classifica esta última equivalência de falaciosa, pois a hipótese
de determinado acontecimento se dar a partir de um conjunto de fatores é ape-
nas provável e não totalmente segura, logo, o facto de ser hipotética significa
que não é necessariamente empírica. ela apenas permite predizer ou inferir um
resultado com alguma razoabilidade. Nesta confusão entre lei empírica e prin-
cípio de inferência, na opinião de Dray, reside a falha do modelo nomológico.
Desta tese ricœur retira, provisoriamente, duas conclusões que incorporará
na sua análise futura da dialética entre compreender e explicar em história.
a primeira diz respeito à noção de acontecimento, já abordada no contexto da
historiografia francesa. a rejeição do modelo nomológico parece implicar o
regresso à conceção de acontecimento único. esta asserção é evidentemente
falsa se entendermos o conceito de unicidade de acordo com a tese metafísica
de que o mundo é constituído por elementos radicalmente distintos. Neste caso,
não é possível qualquer tipo de explicação. a afirmação é verdadeira se com
ela pretendemos manifestar o desejo do historiador de descrever e explicar, em
pormenor, o que realmente aconteceu, demarcando-se das constrições epistemo-
lógicas do método nomológico. Neste caso, a noção de único para o historiador

114
«Prenons l’exemple d’un accident mécanique: le grippage d’un moteur. Pour attri-
buer la cause à une fuite d’huile, il ne suffit pas que l’on connaisse les diverses lois phy-
siques mises en jeu; il faut encore que l’on puisse considérer une série continue d’incidents
entre la fuite et la détérioration du moteur» (ricœur, TR i, 220).
114 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

significa um objeto de estudo singular, não confundível com qualquer outro. a


unicidade é relativa ao nível de precisão que ele elegeu para o seu estudo.
obviamente, o historiador não fica impedido de aplicar termos mais gerais
como «revolução» ou «conquista de um país por outro», por exemplo. a dife-
rença é que estes conceitos gerais não o obrigam a formular leis gerais, mas
antes a procurar os motivos pelos quais os acontecimentos considerados e as
suas circunstâncias diferem daqueles que normalmente seriam agrupados sob
um mesmo termo classificatório. Para o historiador, as revoluções não são todas
iguais, logo, quando fala da revolução Francesa ele está interessado não em
narrar o que ela teve de comum com outras revoluções ou a lei geral, mas o
que nela foi distinto ou a explicação das diferenças. a segunda conclusão
prende-se com a própria explicação das diferenças. uma vez que este tipo de
explicação assenta na seleção de acontecimentos únicos do tipo atrás referido,
é legítimo afirmar-se que ela resulta de um julgamento equivalente ao de um
juiz, e não de uma dedução. De acordo com a mesma analogia, o historiador,
quando explica, pode comparar-se ao advogado de defesa que defende a sua
posição contra um adversário que argumenta contrariamente. Neste tipo de jul-
gamento, não se explicam os casos particulares evocando supostas leis aos
quais estariam sujeitos, o que se faz é reunir todos os dados e avaliar o seu
peso no ocorrido, tal como o juiz delibera depois de ter ponderado os argumen-
tos e as provas115. este exercício de julgamento, porque se afasta da dedução
científica, permite obter um outro tipo de explicação diferente da explicação
por leis, trata-se da explicação causal, que Dray propõe em alternativa ao
modelo explicativo de subsunção.

b)  a segunda tese de Dray, embora relativamente independente da crítica


ao modelo de explicação por subsunção, ergue-se no campo aberto pela crítica
ao modelo, revelando-se extremamente útil para a reconciliação que ricœur
opera entre explicação e compreensão, no capítulo da intencionalidade histórica.
a apologia de um tipo de explicação causal irredutível à subsunção das leis só
é possível depois de se ter dissolvido o laço entre explicação e lei. mas a aná-

115
«entendons par jugement la sorte d’opération auquel se livre un juge quand il pèse
des arguments contraires et prend une décision. De la même façon, expliquer, pour un his-
torien, c’est défendre ses conclusions contre un adversaire qui invoquerait un autre ensemble
de facteurs pour soutenir sa thèse. cette manière de juger sur des cas particuliers ne consiste
pas à placer un cas sous une loi, mais à regrouper des facteurs éparpillés et à peser leur
importance respective dans la production du résultat final. l’historien, ici, suit la logique du
choix pratique plutôt que celle de la déduction scientifique» [ricœur, TR i, 223].
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 115

lise causal é, antes de mais, uma alternativa à explicação dedutível de leis


gerais. a recusa deste tipo de explicação não significa a erradicação de qual-
quer explicação causal do discurso histórico. apesar de todas as ambiguidades
e dificuldades decorrentes da polissemia do conceito de causa, é inevitável e
legítimo o uso de linguagem causal no discurso histórico, devido à sua força
explicativa. os historiadores tendem a dar explicações causais, mas, entenda-se,
de acordo com Dray, estas explicações não estão diretamente relacionadas com
leis causais. assim: «se pusermos de parte o caso em que por causa se entende
lei causal, uma discussão sobre a análise causal em história só tem interesse se
existir conexões causais singulares cuja força explicativa não depende de uma
lei» (ricœur, TR i, 225).
uma análise causal, segundo o pensador canadiano, é uma análise,
essencialmente seletiva, que visa verificar a capacidade ou o grau de influência
de determinados fatores na explicação de um evento. Para poderem figurar na
cadeia da explicação causal, os vários candidatos são sujeitos a dois testes cri-
teriosos: um indutivo e outro pragmático. a prova pragmática averigua a razão
pela qual a condição em causa se destaca dentre as outras. a prova indutiva
visa comprovar a absoluta necessidade do fator para a ocorrência do evento,
fora de qualquer lei geral. o historiador, valendo-se da sua capacidade de jul-
gamento atrás referida, deve proceder por indução: põe mentalmente de parte a
alegada causa para apreciar ou julgar que diferenças a sua hipotética não-ocor-
rência teria produzido no curso dos eventos. Deste modo, elimina da lista de
candidatos ao papel de causa os fatores cuja ausência não alteraria o curso das
coisas. em suma, o que convém salientar, mais uma vez, é que a imputação de
uma causa a respeito dum evento particular não deriva de uma lei causal. Na
verdade, é o inverso que frequentemente se observa: muitas leis causais surgem
de generalizações secundárias formuladas a partir da verificação de tendências
comuns a casos particulares, como o comprovam os exemplos seguintes:
«la tyrannie est cause de révolution», est sans doute de cet ordre. De même: «la
cause de la guerre est l’envie.» une telle loi suppose qu’on dispose d’explications
particulières de guerres particulières, puis qu’on observe une tendance commune à
ces cas particuliers. c’est cette tendance commune que l’on résume dans ladite loi
(ricœur, TR i, 227].

a propósito da análise causal proposta por Dray e da sua ambição de


separar radicalmente a explicação em história do modelo nomológico, ricœur
relembra, uma vez mais, que é errada qualquer pretensão de agrupar todas as
explicações históricas sob um modelo de explicação único ou exclusivo, pois,
como bem reconheceu o pensador canadiano, as explicações encontradas nas
116 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

obras de história formam uma coleção logicamente díspar116. No fundo, trata-se


de prevenir a passagem de um extremo ao outro. obviamente, o modelo nomo-
lógico não cobre todas as explicações em história, pois há análises causais que
não são explicáveis pela lei. contudo, adverte ricœur, desta discussão não se
pode concluir que a análise causal é a explicação dominante em história, em
detrimento de toda e qualquer explicação por leis. Por este facto, ricœur pre-
fere afastar-se desta discussão em torno do caráter inapropriado das leis e apro-
veitar o que contribui para franquear a dialética mais subtil entre explicar e
compreender, a saber: que as leis estão interpoladas no próprio tecido narra-
tivo (TR i, 227); que os procedimentos de justificação da atribuição causal
aproximam-se dos procedimentos jurídicos (ibid.). esta analogia entre a argu-
mentação histórica e a argumentação jurídica, muito cara a ricœur, precisaria,
porém, de ser mais explicitada117.
outro reparo de ricœur incide sobre a restrição da explicação aos factos
singulares – precisamente, os que foram repudiados pela historiografia francesa.
a análise causal particular até é passível de ser aplicada às mudanças na curta
ou na longa duração, desde que o historiador considere a particularidade das
mudanças que estuda. Faltou a Dray estender a noção de acontecimento único
a outras mudanças que vão para além da curta duração.

c)  a terceira tese desenvolvida por Dray incide na explicação através de


razões. o modelo de explicação através de razões é, em certa medida, uma
alternativa coerente ao modelo nomológico, porém a análise causal, por cobrir
uma diversidade mais ampla de casos, oferecia uma melhor alternativa à expli-
cação através de leis118. a explicação por razões restringe-se às ações indivi-
duais119.

116
«a logically miscellaneous lot» (Dray 1957: 85; apud ricœur, TR i, 221).
117
«la recherche de “garants”, la “pesée” et l’ “appréciation” des causes, l’ “épreuve”
des candidats au rôle de cause, toutes ces activités de jugement relèvent d’une analogie entre
l’argumentation historique et l’argumentation juridique qui demande à être explicitée»
(ricœur, TR i, 228). ricœur retoma o tema aquando da imputação causal, que estabelece um
vínculo entre compreensão e explicação, mas só o explicitará de forma aprofundada e deta-
lhada em La mémoire, l’histoire, l’oubli («l’historien et le juge», pp. 413-436).
118
a análise causal aplica-se a acontecimentos ou a condições históricas em grande
escala («fairly large-scale historical events or conditions» [Dray 1957: 118; apud ricœur,
TR i, 229]).
119
«l’explication par des raisons s’applique à «un éventail de cas plus réduit», à savoir
«la sorte d’explication que les historiens donnent en général des actions des individus qui
sont suffisamment importants pour être mentionnés au cours du récit historique» (ricœur,
TR i, 229).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 117

o nome dado pelo autor a este modo de explicação resume o seu pro-
grama. Por um lado, aplica-se às ações de agentes semelhantes a nós, abrindo,
positivamente, caminho para a interseção da teoria histórica com a teoria da
ação da mimesis I. todavia, o risco inerente é de restringir a explicação his-
tórica ao domínio da história “événementielle”, repudiada pela nova historiogra-
fia francesa. Por outro lado, pretende-se que seja ainda um modelo de explica-
ção; pelo que o autor se coloca a meio caminho entre os positivistas, para
quem explicar consiste em cobrir um acontecimento com uma lei empírica, e
os idealistas, defensores da empatia, para quem compreender a ação é revivê-
-la, reatualizá-la, repensar as intenções, as conceções e os sentimentos dos
agentes. Dentre os idealistas, Dray aproxima-se, sobretudo, de collingwood e
da sua teoria de compreensão histórica, que foi vivamente criticada como não
científica pelos positivistas120. Dray tenta demonstrar que as operações propostas
por collingwood têm uma lógica que as distingue da psicologia ou da heurís-
tica e lhes confere um estatuto de explicativas.
explicar uma ação individual recorrendo às razões é reconstruir o cálculo
feito pelo agente, os meios que ele teve de adotar em vista de um determinado
objetivo que estabeleceu, tendo em conta as razões e as circunstâncias. explicar
é, pois, segundo Dray, demonstrar que o que se fez era o necessário, tendo em
conta as razões e as circunstâncias. No fundo, trata-se de justificar e avaliar até
que ponto a ação levada a cabo foi apropriada aos fins e às circunstâncias;
note-se que isto não implica ratificar a opção de acordo com os nossos critérios
morais121. a explicação racional é uma tentativa para atingir um tipo de equi-
líbrio lógico no termo do qual uma ação está em consonância com o cálculo
efetuado. Nós procuramos uma explicação justamente quando a ação do sujeito
não bate certo com aquilo que nós sabemos dele e, por isso, procuramos
reconstituí-la.
o conceito de equilíbrio lógico permite a Dray guardar a devida distância
da compreensão por empatia, por projeção ou por identificação e, simultanea-

120
Na sua teoria da história como re-apresentação da experiência passada, collingwood
defende que para apreender a verdadeira natureza dos acontecimentos históricos particulares
é necessário penetrar no interior dos eventos e discernir os pensamentos dos agentes histó-
ricos em causa. o historiador tem de repensar, em seu espírito, estes pensamentos, o que
acarreta uma reconstrução pessoal da situação em que os agentes se encontravam e o modo
como a encaravam. cf. collingwood 2001: 221-324 e 1946b, in gardiner 1959: 249-262.
121
«Justifier, ce n’est pas ratifier le choix selon nos critères moraux, et dire: «ce qu’il
a fait, je l’aurais fait aussi», c’est peser l’action en fonction des buts qui sont ceux de
l’agent, de ses croyances même erronées, des circonstances telles qu’il les a connues»
(ricœur, TR i, 231).
118 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

mente, subtrair a sua explicação à crítica hempeliana. Para atingir este ponto de
equilíbrio, é preciso todo um trabalho documental de reconstrução que passa
pela reunião por via indutiva das provas materiais que permitam ao historiador
apreciar o problema tal como o agente o viu. trata-se de um processo traba-
lhoso, aberto a retificações, tal como a análise causal.
ricœur verifica que Dray não estabeleceu quaisquer ligações entre a sua
análise e a construção narrativa e, no entanto, elas são evidentes. o autor
observa que uma explicação através de razões comporta um tipo de generali-
zação ou de universalidade diferente do de uma lei empírica, de acordo com a
seguinte fórmula: «se y é uma boa razão para A fazer x, y seria uma boa razão
para qualquer um suficientemente parecido com A fazer x em circunstâncias
suficientemente semelhantes» (apud ricœur, TR i, 232).
reconhece-se, nesta fórmula, a probabilidade de que falava aristóteles na
Poética: «o que um homem diria ou faria necessária ou verosimilmente». o
autor canadiano fixou-se de tal maneira na polémica contra o modelo nomoló-
gico e na distinção do princípio de uma ação de uma generalização empírica
que descurou este entrecruzamento da teoria da história com a teoria da narra-
tiva; o mesmo não sucedeu com a teoria da ação, como já vimos.
o maior entrave que ricœur encontra nestas propostas de Dray é a difi-
culdade deste modelo de explicação através de razões, na medida em que cruza
a teoria da história com a teoria da ação, dar conta da razão de ações atribuídas
a agentes não individuais, isto é, agentes coletivos. este é o ponto fraco de
toda a teoria narrativista, como a seu tempo teremos oportunidade de constatar.
as três respostas sugeridas por Dray para tentar resolver este problema são cla-
ramente insuficientes, pois obrigam a considerar o processo social equivalente
à soma dos processos individuais analisados em termos intencionais e a consi-
derar por simplesmente irracional a brecha que os separa. De facto, o que
parece distinguir a explicação histórica da explicação da ação através de razões
é, em primeiro lugar, a dimensão dos fenómenos que a primeira estuda, fenó-
menos relativos a entidades de caráter social, irredutíveis à soma dos seus indi-
víduos; em segundo, o surgimento de efeitos irredutíveis à soma das intenções
dos seus membros, logo, dos seus cálculos; por fim, as mudanças históricas
irredutíveis às variações do tempo vivido por cada um dos indivíduos.
a teoria da ação desenvolvida por W. Dray não vai além da que ricœur
desenvolveu sob o título de mimesis I. o filósofo francês termina esta incursão
pela obra do autor canadiano a franquear a via para uma reflexão futura em
torno das quase-personagens, ao questionar-se se um tratamento “narrativista”
da compreensão histórica, que se valesse dos recursos da inteligibilidade narra-
tiva da mimesis II, não poderia superar este fosso entre a explicação por razões
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 119

de agentes individuais ou quase individuais e a explicação dos processos his-


tóricos de grande dimensão através de forças sociais não individuais (TR i,
235).

ii)  A explicação histórica de Georg Wright

Wright (Explanation and Understanding, 1971) imprime um violento aba-


não ao modelo nomológico. ele não se limita, como Dray, a criticar a expli-
cação por leis e a propor dois modelos alternativos: a explicação causal e a
explicação através de razões. oferece-nos um modelo misto, a explicação quase
causal, que para além de conjugar no seu seio explicação causal e inferência
teleológica, responde aos requisitos do modo mais típico de explicação das
ciências humanas e da história. Nesta tese, o intencional e o teleológico, sem
se identificarem, recobrem-se.
Paul ricœur dá muito valor à proposta de Wright e dedica uma atenção
especial à análise e ao comentário da sua argumentação (TR i, 235-255). Desta
longa incursão de ricœur pela obra do filósofo finlandês, retemos apenas as
traves mestras para a compreensão desta problemática e para o entendimento de
algumas das teses que ricœur desenvolverá futuramente com a escora das con-
siderações epistemológicas de Wright. este propõe um modelo suficientemente
capaz de confinar com o domínio da compreensão histórica, ao qual não cessa
de reconhecer uma capacidade originária de apreensão do sentido da ação
humana122. a sua reflexão, bem enraizada no seio da filosofia analítica, visa a
reformulação lógica de toda a problemática da compreensão, reconhecendo à
compreensão histórica essa capacidade original de apreender o caráter intencio-
nal do comportamento humano. Para isso, o autor constrói uma estrutura de
base que consiste na análise das relações de condicionalidade entre estados
anteriores e estados ulteriores, implícitos em sistemas físicos dinâmicos, ultra-
passando assim o modelo nomológico que se limitava a sobrepor uma lei global
a dados sem ligação lógica interna. É esta extensão da lógica proposicional a

122
«l’intérêt, pour notre propre investigation, consiste très exactement dans cette
approximation sans annexion du domaine de la compréhension par un modèle issu de l’en-
richissement de la logique propositionnelle à l’aide de la logique modale et de la théorie des
systèmes dynamiques» (TR i, 236). ricœur já antes havia recorrido a von Wright, seja no
artigo por nós comentado sobre a dialética explicação/compreensão ao nível da teoria da ação
seja em «le discours de l’action», in D. tiffeneau (org.), La Sémantique de l’Action, Paris,
1977, 1-137. Dessa vez foi para criticar a generalização indiscriminada da oposição entre
“motivo” e “causa”.
120 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

sistemas físicos dinâmicos que gera condições propícias para acolher a reformu-
lação lógica de toda a problemática da compreensão.
esta aproximação faz-se por intermédio da explicação causal e não da
análise causal. considerando um estado terminal, a análise causal interroga-se
sobre as causas da vinda e da composição do dito estado terminal em termos
de condições necessárias e suficientes. É preciso distinguir condição necessária
de condição suficiente. Quando dizemos que p é a condição suficiente de q,
estamos a dizer que todas as vezes que p, então q (p é suficiente para assegurar
a presença de q). Dizer que p é a condição necessária de q, significa que todas
as vezes que q, então p (q pressupõe a presença de p). É a diferença de sen-
tidos, progressivo ou regressivo, que distingue os dois tipos de condições.
a explicação causal distingue-se da análise causal porque nesta última
exploramos as relações de condicionalidade no interior do sistema, ao passo
que na primeira é uma ocorrência individual de um fenómeno genérico (acon-
tecimento, processo, estado) que é dado e procuramos em que sistema este
fenómeno genérico – explanandum – pode ser ligado a um outro segundo uma
relação de condicionalidade.
ricœur sublinha em que medida a passagem da análise causal à explica-
ção causal e a aplicação a esta última da diferenciação entre condição neces-
sária e condição suficiente representa um passo significativo em direção das
ciências humanas.
la relation de condition suffisante régit la manipulation (en produisant p, on fait
arriver q); la relation de condition nécessaire régit l’empêchement (en écartant p,
on empêche tout ce dont p est une condition nécessaire). c’est en termes de
condition suffisante qu’on répond à la question: pourquoi tel type d’état est-il
arrivé nécessairement? en revanche, c’est en termes de condition nécessaire, mais
non suffisante, qu’on répond à la question: comment a-t-il été possible que tel type
d’état arrive? Dans l’explication du premier groupe, la prédiction est possible; les
explications du deuxième groupe n’autorisent pas la prédiction, mais la rétrodic-
tion, en ce sens que, partant du fait que quelque chose est arrivée, nous inférons,
à rebours du temps, que la condition antécédente nécessaire doit s’être produite et
nous en cherchons les traces du présent, comme c’est le cas en cosmologie, en
géologie, en biologie, mais aussi, comme on le dira plus loin, dans certaines expli-
cations historiques [TR i, 240].

este método permite a articulação da explicação causal com a ação; nesta


fase, teoria da ação e teoria da história recobrem-se. o fenómeno da interven-
ção, que se prefigura nos termos “produzir” ou “fazer acontecer”, “afastar” ou
“impedir”, requer esta articulação, porque a intervenção conjuga o poder-fazer,
do qual um agente tem uma compreensão imediata, com as relações internas de
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 121

condicionalidade de um sistema. a originalidade de Wright está, pois, «em bus-


car na própria estrutura dos sistemas a condição da intervenção» (ricœur, TR
i, 241).
a explicação teleológica, por si só, é insuficiente para distinguir história
de ação. É para dar conta do estatuto particular da explicação em história que
von Wright introduz o conceito de explicação quase causal. De um modo gené-
rico, a explicação quase causal resume-se na seguinte fórmula: “isto aconteceu
porque”. Por exemplo: o povo sublevou-se porque o governo era corrupto. o
equivalente lógico da relação da ação com o seu contexto (que, em história, se
faz de todas as circunstâncias e dos efeitos da ação não previstos e não dese-
jados) é a explicação quase causal. a explicação é dita causal – explica ricœur
(ibid.: 249) – porque o explanans refere-se a um fator que precedeu o expla-
nandum. mas ela é somente quase causal por dois motivos: porque a validade
dos dois enunciados não exige (como na explicação causal e na quase-teleoló-
gica) a verdade de uma conexão nómica e porque o segundo enunciado possui
uma estrutura teleológica implícita – o objetivo da sublevação do povo era
desembaraçar-se do mal sofrido.
a história, em termos explicativos, é um misto de explicação causal e
explicação teleológica. a explicação de tipo causal figura na história sob duas
formas principais: explicação em termos de condições suficientes (porquê) e
explicação em termos de condições necessárias (como). estas conjugam-se
entre si. tomemos o seguinte caso: uma cidade está em ruínas. Qual foi a
causa da sua destruição: uma inundação ou uma invasão? temos uma causa em
sentido humiano (um evento físico) e um efeito em sentido humiano, físico (a
conquista entendida como agente físico). ora, este tipo de explicação não
resulta, enquanto tal, da história, mas apenas indiretamente, na medida em que
por detrás da causa material se podem adivinhar rivalidades políticas entre cida-
des e para além do efeito material se podem descortinar consequências políti-
cas, económicas e culturais do desastre. a explicação histórica procura unir
entre si esta causa não humiana e este efeito não humiano. Quanto às condições
necessárias, vejamos o seguinte exemplo: como é que os habitantes de deter-
minada cidade conseguiram construir uma tão grande muralha? o explanandum
(os muros que estão de pé) é um efeito humiano; o explanans é uma causa
humiana (os meios materiais da construção). Não obstante, a explicação só é
histórica na medida em que fizer um desvio pela ação (urbanismo, arquitetura,
etc.) o explanandum passa a ser o resultado desta ação, no sentido em que dis-
semos que o resultado da ação não era um efeito humiano.
a explicação quase causal é singularmente mais complexa que estas, pois
a resposta à questão “porquê” é muito mais ramificada. tomemos o seguinte
122 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

exemplo: a Primeira guerra mundial deflagrou porque o arquiduque da Áustria


foi assassinado em sarajevo em julho de 1914. Que tipo de explicação se
assume neste enunciado? supondo que causa e efeito são logicamente indepen-
dentes, isto é, que os dois acontecimentos são considerados diferentes. Nesse
sentido, a explicação é, sem dúvida, de tipo causal. mas a verdadeira mediação
entre causa e efeito só nos pode ser fornecida por todos os percursos motiva-
cionais que afetam todas as partes em jogo, motivações esquematizadas por
inferências práticas, que geram sempre factos novos, em virtude do laço que
existe entre intenção e ação no silogismo prático.
a explicação quase causal revela-se mais complexa que a explicação por
razões de Dray. a explicação quase causal não se reduz à reconstrução de um
cálculo como na explicação por razões. No fim de contas, a explicação quase
causal restitui à história vários elementos da explicação. Desde logo, a conjun-
ção entre a explicação causal e a teoria da ação em favor do fenómeno de
intervenção permite incluir no modelo misto a referência da história às ações
humanas, cuja significação enquanto ação é confirmada pela convicção que o
próprio agente tem de poder fazer o que faz. além disso, os segmentos teleo-
lógicos do esquema explicativo testemunham como é razoável interrogar as
intenções dos atores da história em termos de uma inferência prática que releva
de uma lógica específica, a que foi inaugurada pela teoria aristotélica do silo-
gismo prático. Por fim, o modelo exprime a necessidade de coordenar os
núcleos do poder-fazer e os segmentos de inferência prática com os segmentos
não práxicos e não teleológicos do tipo propriamente causal.
mas falta a este modelo um fio condutor que ligue os segmentos nómicos
e teleológicos da explicação quase causal. este fio condutor seria a intriga,
enquanto “síntese do heterogéneo”.
Pour s’en tenir au modèle de l’explication quasi causale, dans sa présentation la
plus élémentaire, on put se demander ce qui assure l’unité entre les segments
nomiques et les segments téléologiques à l’intérieur du schéma d’ensemble: cette
discontinuité à l’intérieur du modèle, jointe aux autres facteurs de dispersion de
l’explication [...] conduit à se demander s’il ne manque pas un fil conducteur de
l’ordre de la compréhension, pour faire tenir ensemble des segments nomiques et
les segments téléologiques de l’explication quasi causales. ce fil conducteur, selon
moi, c’est l’intrigue, en tant que synthèse de l’hétérogène. l’intrigue, en effet,
«comprend», dans une totalité intelligible, des circonstances, des buts, des interac-
tions, des résultats non voulus [ricœur, TR i, 254].

com esta nota, ricœur abre caminho para as teses de tipo narrativista,
que propõem uma reabilitação da narrativa.
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 123

2.2.  Ressurgimento da narrativa: as teses narrativistas

a dupla incursão pela historiografia francesa e pela escola neopositivista


revelou um menosprezo latente pelo estatuto narrativo da história. subentende-
-se que a narrativa é uma forma demasiado elementar de discurso para fazer
face aos requisitos científicos. claramente insatisfeitos com as propostas limi-
tativas do modelo nomológico ou com a estreiteza metodológica da historiogra-
fia francesa, vários filósofos e historiadores criticaram o modelo e o método e
procuraram novas vias de conciliação da narrativa com a história. a crítica do
modelo nomológico e a consequente desvalorização da natureza do método
explicativo, por um lado, a revalorização dos recursos inteligíveis da narrativa
e da compreensão, por outro, conduziram ao aparecimento de um conjunto de
argumentos em prol da narrativa, conhecidos por narrativistas.
o corte epistemológico entre narrativa e história-ciência só pode ser
sanado com a recuperação dos traços compositivos da narrativa. resta saber se
a reconquista destes traços é suficiente para que a compreensão narrativa ganhe
valor explicativo, quando a própria explicação histórica deixa de ser avaliada
pela medida do modelo nomológico. com ricœur seremos levados a concluir
que nenhuma conceção narrativista da história pode fornecer um equivalente ou
um substituto narrativo da explicação. É por isso que o filósofo francês acabará
em busca de um laço indireto entre explicação histórica e compreensão narra-
tiva. antes de aí aportar, passa em revista cinco das principais teorias narrati-
vistas da história, não porque sejam uma solução final e completa para o pro-
blema em causa, mas porque revelam uma componente necessária do
conhecimento histórico: a configuração narrativa.
a filiação narratológica da história, desenvolvida particularmente no
mundo anglo-saxónico (com a honrosa exceção de Paul de Veyne), tornou-se
conhecida em França graças a estas recensões de ricœur123. as teses narrativis-
tas alimentam-se do chamado linguistic turn, da crítica ao modelo nomológico
e da conceção da narrativa como fonte de saber, como desdobramento de recur-
sos de inteligibilidade. estas reflexões tiveram um impacto considerável na teo-
rização ricœuriana da mise en intrigue ou mimesis ii, como teremos oportuni-
dade de verificar no próximo capítulo.

123
«l’attention aux procédures textuelles, narratives, syntaxiques par lesquelles l’his-
toire énonce son régime de vérité conduit à se réapproprier les acquis des travaux de toute
la filiation narratologiste particulièrement développée dans le monde anglo-saxon et connue en
France grâce à ricœur» (Dosse 2006: 27-28).
124 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

o problema maior do modelo hempeliano está em não distinguir um acon-


tecimento físico que simplesmente acontece de um acontecimento histórico que
recebe o seu estatuto das narrativas (crónicas e memórias) singulares que o
transmitem. Narrativas estas que, por sua vez, se conjugam num texto maior
que as engloba, e a posição delas nesta história maior também determina o
estatuto histórico dos acontecimentos. o que importa pois não é a natureza ou
a estrutura da explicação, a explicação pode ser a mesma em história e nas
ciências da natureza, mas em que tipo de discurso ela opera. todos os argu-
mentos dirigidos contra o modelo hempeliano, quando não se limitam a regredir
à intuição ou à empatia, prendem-se com o emprego e não com a estrutura dos
procedimentos explicativos. estes argumentos surgiram no mesmo contexto filo-
sófico do modelo nomológico e têm o seu valor quando dizem o modo como
os procedimentos explicativos são interpolados num modo narrativo do dis-
curso.
Danto, por exemplo, ensinar-nos-á que não é a natureza da explicação que
exclui a predição mas a natureza do discurso narrativo sobre o qual a explica-
ção assenta: a explicação de um acontecimento é feita à luz de outro ocorrido
posteriormente. É a própria estrutura da narrativa que prescreve as regras de
emprego da explicação e que engendra o nível das expetativas segundo as quais
uma ou outra explicação é exigida e aceite.

i)  A. Danto: as “frases narrativas” da história

surpreendentemente, é no seio da própria filosofia analítica que surge


o primeiro contributo para a apologia da interpretação narrativista da história.
arthur c. Danto, autor de Analytical Philosophy of History (1965), é pioneiro
na abordagem das frases narrativas e representa uma nova perspetiva na tradi-
ção da filosofia analítica, desde que essa vinculou a história com as ciências,
sob uma pretensão unificadora. a teoria de Danto não surge no quadro de uma
epistemologia da história, mas sim num âmbito específico da filosofia analítica,
que se ocupa a descrever os nossos modos de pensar e de falar acerca do
mundo e, correlativamente, descrever o mundo tal como esses modos no-lo
obrigam a conceber. a filosofia analítica, entendida deste modo, é fundamental-
mente uma teoria das descrições. o fio condutor de Danto é, pois, o quadro
conceptual que rege a nossa aplicação de um determinado tipo de frases que
designamos de narrativas. aplicada à história, esta conceção analítica da filoso-
fia questiona em que medida os nossos modos de pensar e de descrever o
mundo comportam frases com verbos no pretérito e enunciados irredutivelmente
narrativos. Visando a frase narrativa as mudanças produzidas pela ação humana
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 125

e sabendo que esta mesma ação pode ser alvo de várias descrições, a frase nar-
rativa é apenas uma das descrições possíveis da ação humana.
renunciando a qualquer “filosofia substantiva” da história, ou seja, qual-
quer filosofia da história de tipo hegeliano, devido à sua pretensão de apreender
o todo da história, devido ao seu caráter profético de tentar extrapolar o futuro
a partir do passado, Danto recusa qualquer história do futuro e do presente,
pois que as frases narrativas apenas redescrevem acontecimentos anteriores à
luz de acontecimentos posteriores, desconhecidos dos agentes ou pacientes da
primeira ocorrência124. trata-se de uma descrição post eventum, baseada na assi-
metria temporal entre um facto anterior que é descrito e o facto ulterior sob a
descrição do qual o primeiro é descrito.
esta teoria da frase narrativa desenvolvida por Danto começa por contes-
tar o preconceito de um passado determinado, fixo, eternamente parado no seu
ser, enquanto só o futuro seria aberto, não decidido, contingente. só um cro-
nista ideal poderia ser testemunha e transmissor absolutamente fiel e seguro de
um passado inteiramente terminado, na medida em que apenas ele poderia fazer
a transcrição instantânea, completa, definitiva e por ordem cronológica dos
acontecimentos testemunhados por si (cf. Danto 1965: 149). ainda assim, este
tipo de testemunho perderia eficácia, pois o seu desconhecimento do futuro não
lhe permite fazer descrições narrativas, já que a verdade integral acerca de
determinado evento só pode ser conhecida posteriormente (por vezes, muito
tempo depois) à sua ocorrência. isto faz com que nenhum evento possa ser
atestado por testemunhas imediatas, só os historiadores podem contar esta his-
tória (story)125.

124
em suma, o defeito das filosofias substantivas da história é escrever no futuro as
frases narrativas que só são possíveis no passado. mas não é seguro que aquilo que os filó-
sofos da história substantiva tentam fazer seja produzir acerca do futuro o mesmo tipo de
asserções que os historiadores fazem sobre o passado. ricœur observa muito bem que este
argumento de Danto só em parte se pode imputar à Filosofia da história, pois esta não está
limitada às descrições através de frases narrativas: «l’argument est impeccable aussi long-
temps qu’il est formulé en termes négatifs: si la philosophie de l’histoire est la pensée du tout
de l’histoire, elle ne peut être l’expression du discours narratif approprié au passé. mais l’ar-
gument ne peut éliminer l’hypothèse que le discours sur le tout de l’histoire ne soit pas de
nature narrative et constitue son sens par d’autres moyens. la philosophie de l’histoire n’est
assurément pas narrative. l’anticipation du futur dans une philosophie ou une théologie de
l’espérance, n’est pas non plus narrative. au contraire, la narration y est réinterprétée à partir
de l’espérance, certains événements fondateurs – l’exode, la résurrection – étant interprétés
comme jalonnant l’espérance» (TR i, 258).
125
«même un témoin idéal ne pourrait pas dire, en 1789 par exemple, que la révo-
lution Française commence. il ne pourrait non plus dire, en 1715, que l’auteur du “Neveu de
rameau” vient juste de naître» (ricœur 1980, in tiffeneau 1980: 10).
126 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

Podemos, então, definir a frase narrativa como aquela na qual um evento


ou uma pessoa é descrito por meio de conexões com algo que ocorreu mais
tarde. a sua verdade apenas pode ser conhecida por alguém que conhece a ver-
dade sobre o evento posterior e não por alguém que o conhece no tempo pre-
sente da ocorrência. as frases narrativas referem-se a pelo menos dois eventos
– e1 e e2 – distintos e temporalmente separados, ainda que descrevam somente
o primeiro a que se referem126. ambos os acontecimentos devem ser passados
em relação ao tempo da enunciação. a frase narrativa implica, deste modo, três
posições temporais: a do acontecimento descrito; a do acontecimento em função
do qual o primeiro é descrito; e a do narrador. as duas primeiras concernem
o enunciado, a terceira a enunciação.
o exemplo paradigmático ilustrador desta análise da frase narrativa é a
seguinte asserção: «em 1717 nasceu o autor de O Sobrinho de Rameau»
(Danto 1965: 12). Ninguém nesta data poderia pronunciar tal frase, que redes-
creve o acontecimento do nascimento de uma criança (Diderot) à luz de um
outro acontecimento posterior da sua autoria, a publicação da obra. Por outras
palavras, escrever O Sobrinho de Rameau é o acontecimento sob a descrição do
qual o primeiro acontecimento – o nascimento de Diderot – é re-descrito.
o que parece derivar desta definição de Danto é que existe na história um
tipo de causalidade que é anómala: se um acontecimento se torna significativo
à luz de acontecimentos ulteriores, a caracterização de um acontecimento como
causa de outro parece acontecer depois da ocorrência do próprio acontecimento.
isso pode criar a sensação de que um acontecimento posterior transforma um
acontecimento anterior em causa, logo, que uma condição suficiente do acon-
tecimento mais antigo se produz posteriormente ao próprio acontecimento.
Danto resolve este sofisma dizendo que o facto temporalmente posterior só
torna o anterior significativo e causal se houver uma descrição narrativa que
atribua ao facto mais antigo um predicado de causa (“é causa de”), pois ele não
tem valor causal inerente: «o que é correto dizer é que a ocorrência de e-2 é
uma condição necessária para que e-1 seja uma causa, ou mais precisamente,
a causa de e-2» (Danto 1965: 157) 127.

126
«[the] most general characteristic [of narrative sentences] is that they refer to at
least two time separated events though they only describe (are only about) the earliest event
to which they refer» [Danto, 1965, 143]. «the class of descriptions i am concerned with refer
to two distinct and time-separated events, e-1 and e-2. they describe the earliest of the
events referred to» (Danto 1965: 152).
127
«“Being a cause” may indeed be a special case of the sort of characterization of
events which narrative description affords. causes after all cannot be witnessed as causes:
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 127

repete-se, por outras palavras, que o predicado não é acessível ao cronista


ideal e é apenas característico das frases narrativas do historiador. os exemplos
de empregos retrospetivos da categoria de causa são numerosos na história. ao
historiador é lícito afirmar que a descoberta da teoria heliocêntrica de copér-
nico é a causa para que um facto muito anterior – a antecipação dessa mesma
teoria por parte de aristarco – ganhe relevo. uma grande parte do conceito de
significação deriva desta particularidade das frases narrativas. o lugar de nas-
cimento de uma pessoa célebre só ganha importância ou significado à luz de
acontecimentos futuros. Neste sentido, para o cronista ideal, apesar de ser tes-
temunha perfeita, a categoria de significação é vazia de sentido.
uma implicação epistemológica bastante mais interessante resultante desta
análise da frase narrativa tem que ver com o facto de ela permitir distinguir a
descrição propriamente narrativa da descrição ordinária da ação. em primeiro
lugar, este tipo de descrições narrativas usa verbos designados de “projeto”
(project verbs) que fazem mais do que descrever ações particulares. expressões
como “fazer a guerra”, “criar gado”, “escrever um livro” são disso exemplo, na
medida em que os seus verbos exprimem ações globais que subentendem imen-
sas ações de detalhe ou microações, que podem ser descontínuas e implicar
numerosos agentes numa estrutura temporal da responsabilidade do narrador. o
emprego destes verbos na história é muito comum, mas, no discurso quotidiano
sobre a ação, o sentido do verbo de projeto é independente da realização ou
não, do sucesso ou do fracasso da ação. a teoria da frase narrativa tem assim
um valor discriminativo em relação ao discurso da ação na linguagem comum.
o fator discriminativo reside no «realinhamento retroativo do passado»128, ope-
rado pela descrição propriamente narrativa da ação. este realinhamento consiste
numa perspetivação temporal do passado que dá preferência às consequências
não intencionais ou inesperadas da ação; consequentemente, tende a menospre-

Hume pointed this out long ago. to say of e-i that it caused e-2 is to give a description
of e-i by referring to another event (e-2) which stands as a necessary condition for e-i –
under the appropriate description. if e-2 fails to occur, if it is false that “e-2 takes place”,
then it would follow that “e-i caused e- is in turn false. From this it does not follow that
e-i is a sufficient condition for e-2. We would presumably not want to say in general that
every cause of an event is a sufficient condition for that event. Nor again would we want
necessarily to say that e-2 is a necessary condition for e-i. What it would be proper to say
is that the occurrence of e-2 is a necessary condition for e-i being a cause, or more pre-
cisely, a cause of e-2» (Danto 1965: 157).
128
«[...] retroactive re-alignment of the Past [..]» (Danto 1965: 168)
128 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

zar o caráter intencional da própria ação129. É esta diferença que contribui para
distinguir a teoria da ação da teoria da história, pois, como refere arthur Danto:
«for the whole point of history is not to know about actions as witnesses
might, but as historians do, in connection with later events and as parts of tem-
poral wholes» (1965: 183).
uma última consequência epistemológica desta análise dá conta de que
não existe história do presente, no sentido estritamente narrativo do termo.
escrever sobre o nosso presente não seria mais do que antecipar o que os his-
toriadores futuros poderiam, eventualmente, vir a escrever sobre nós, mas nós
não sabemos o que dirão de nós os historiadores do futuro. Não só não sabe-
mos que acontecimentos terão lugar, como também não sabemos que aconteci-
mentos serão considerados importantes. só sabendo de antemão os interesses
dos historiadores no futuro é que poderíamos prever as descrições nas quais
incluirão as nossas ações. comenta ricœur que a simetria entre explicar e pre-
dizer, característica das ciências nomológicas, é fraturada mesmo ao nível do
enunciado histórico (TR i, 262).
relativamente ao contributo da frase narrativa para o esclarecimento da
relação entre explicação histórica e compreensão narrativa não é possível adian-
tar muito, uma vez que Danto nunca trata o problema de forma assertiva e
aberta. sabe-se que esta análise das frases narrativas não esgota o problema da
teoria da história, uma vez que Danto nunca tem a pretensão de afirmar que
um texto histórico se resume a uma sucessão de frases narrativas. as constri-
ções impostas à descrição verdadeira de um acontecimento pela estrutura tem-
poral da frase narrativa constituem somente o que ele designa de «minimal cha-
racterization of history» (1965: 25). a escolha da frase narrativa como
constrição minimal poderia levar-nos a concluir que os enunciados acerca de
acontecimentos datados ou pontuais à luz de outros acontecimentos datados ou
pontuais constituem os átomos lógicos do discurso histórico. Na verdade, pelo
menos até ao capítulo X do livro, só se fala de «true descriptions of events in
their past» em oposição à pretensão dos filósofos da história de descrever tam-
bém «events in their future» (Danto 1965: 25). Fica implícita a ideia de que
explicação e descrição – no sentido da frase narrativa – são operações impli-
cadas uma na outra. Nada indica que o discurso histórico necessite de conec-
tores diferentes da estrutura da frase narrativa. Para ele, qualquer narrativa é já
explicativa, na medida em que estabelece conexões entre os factos que relata;

129
«[...] frequently and almost typically, the actions of men are not intentional under
those descriptions given of them by means of narrative sentences» (Danto 1965: 182).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 129

não é concebível que uma narrativa seja uma mera ordenação cronológica de
eventos. É por isso que explicar e descrever não se distinguem. a noção de
intriga ou de estrutura narrativa parece reger-se pela lógica da frase narrativa,
como se a descrição de um facto anterior em função de um posterior fosse já
uma intriga em miniatura. uma narrativa, ao selecionar factos, ao estabelecer
laços pertinentes entre eles, tornando-os significativos, parece ser uma expansão
da frase narrativa. mas a relação entre frase e texto nunca é claramente abor-
dada.
ricœur verifica que o assunto surge, mais tarde, quando se trata de ave-
riguar se há lugar na história para a aplicação do modelo explicativo nomoló-
gico, sendo que a narrativa é já naturalmente uma forma de explicação. Danto
parece não se opor totalmente a esta hipótese, apenas se limita a observar a
inutilidade da operação por redundância.
Danto, en effet, ne s’oppose pas de front à Hempel: il se borne à observer que
les partisans du modèle nomologique, si soucieux de la structure forte de l’expla-
nans, ne voient pas que cet explanans fonctionne dans un explanandum qui est
déjà un récit, donc qui est déjà “couvert” par une description qui vaut explication.
on ne peut couvrir un événement par une loi générale que s’il figure dans le lan-
gage comme un phénomène sous une certaine description, donc inscrit dans une
phrase narrative. Dès lors, Danto peut être beaucoup plus libéral et ambivalent que
William Dray à l’égard du modèle nomologique [ricœur, TR i, 265].

uma frase narrativa não é uma narrativa, na aceção de composição que


abarca uma série inteira de acontecimentos numa ordem específica. só esta
ordem específica nos permite falar de discurso narrativo e não somente de frase
narrativa. De facto, é esta ordem específica que fornece o fundo textual no
interior do qual as explicações históricas são interpoladas. W. B. gallie propõe
uma resposta parcial a esta questão da composição narrativa, constituindo o
segundo critério minimal do modo narrativo em geral.

ii)  W. Gallie – Story e history à luz do conceito de followability

o conceito de seguimento (followability) de uma história narrada, sobre o


qual se constrói a importante obra de W. B. gallie, Philosophy and the Histo-
rical Understanding (1964), preenche uma lacuna deixada em aberto pela aná-
lise de Danto, aproximando-nos um pouco mais do princípio estrutural da nar-
rativa. a dupla referência cronológica da frase narrativa é válida enquanto nos
permite discriminar vários tipos de descrição de ações, mas mostra-se insufi-
ciente para caracterizar uma narrativa enquanto conexão entre factos. ricœur
130 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

propõe que este hiato entre frase narrativa e texto narrativo seja coberto pela
noção de followability.
gallie advoga que qualquer que seja o conteúdo da compreensão ou da
explicação histórica este deve ser sempre avaliado pela sua relação com a nar-
rativa da qual provém e para o desenvolvimento da qual contribui130. Dado
importante a reter: a explicação histórica provém de um discurso que tem já
uma forma narrativa e existe em função dessa mesma forma narrativa. a forma
narrativa é pois, simultaneamente, a matriz e a estrutura de acolhimento da
explicação, mas esta tese não adianta nada acerca da estrutura da própria expli-
cação. em todo o caso, o autor desenvolve a sua tese assente em dois objetivos
fundamentais: por um lado, procura entender quais são os recursos inteligíveis
da compreensão que fundam a explicação; por outro, procura o que falta à
compreensão para que esta necessite do suplemento da explicação. o conceito
de followability tem o mérito de satisfazer as duas questões.
Para começar, interrogamo-nos sobre a natureza de uma história (story)
narrada e depois sobre o que é seguir uma história. atentemos na noção de
história:
every story describes a sequence of actions and experiences of a number of peo-
ple, real or imaginary. these people are usually presented in some characteristic
human situation, and are then shown either changing it or reacting to changes
which affect that situation from outside. as these changes and the characters’ reac-
tions to them accumulate, they commonly reveal hitherto hidden aspects of the
original situation and of the characters: they also give rise to a predicament, call-
ing for urgent thought and action from one or more of the main characters. [...]
Whether or not the main characters respond successfully to the predicament, their
response to it, and the effects of their response upon the other people concerned,
brings the story to within sight of its conclusion [1964: 22].

esta noção de história (story) não anda muito longe da noção de mise en
intrigue apresentada por ricœur. gallie unicamente não se refere à intriga e às
suas constrições estruturais, preferindo destacar as condições subjetivas sob as
quais uma história é aceitável e que conferem à história a aptidão para ser
seguida. seguir uma história significa compreender as sucessivas ações, pensa-
mentos e sentimentos dos carateres descritos enquanto seguem determinado

130
«i have tried to analyse what it means to follow a narrative and have argued that
whatever understanding and whatever explanations a work of history contains must be
assessed in relation to the narrative from which they arise and whose development they sub-
serve» (gallie 1964: 9).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 131

rumo (peculiar directness). a partir do momento em que respondemos às expe-


tativas criadas em função de um desenlace, o desenvolvimento da história
impele-nos para a frente (pulled forward). compreensão e explicação aparecem
inextrincavelmente incorporadas neste processo porque, em termos ideais, uma
história deveria poder explicar-se a si própria: «ideally, a story should be sel-
explanatory» (gallie 1964: 23). só quando este processo é interrompido ou blo-
queado é que se exige um suplemento de explicação131.
admitir que uma história se orienta e nos orienta para um fim é admitir
uma função teleológica inerente à própria história. em todo o caso, isto não
implica a necessidade de previsão ou de dedução defendida pelo modelo nomo-
lógico, pois tanto o desenrolar como o desenlace da narrativa deve ser inespe-
rado e surpreendente para captar a nossa atenção132. uma história contém sem-
pre acidentes, coincidências, acontecimentos inesperados de vários tipos –
encontros, reconhecimentos – que gallie subsume sob o conceito de contingên-
cias133 e é isso que atrai a nossa atenção e nos move a segui-la até ao desen-
lace – que não é a mesma coisa que seguir um argumento cuja conclusão é
obrigatória. mas se a conclusão não é previsível, deve ser, porém, aceitável ou
possível. um olhar retrospetivo sobre a história, partindo do último ponto final,
deve permitir justificar a importância dos acontecimentos e da cadeia de ações
para a ocorrência de determinado desenlace. a aptidão da história para ser
seguida (followability) desmente qualquer incompatibilidade entre a contingência
dos incidentes e a aceitação das conclusões, pois seguir uma história é reconhe-
cer as contingências intelectualmente aceitáveis após o desenlace134. Quase

131
«it is only when things become complicated and difficult – when in fact it is no
longer possible to follow them – that we require an explicit explanation of what the char-
acters are doing and why. But the more skilful the story-teller, the rarer will be the intrusion
of such explicit explanations» (gallie 1964: 22-23].
132
«[...] the conclusion of a story is essentially a different kind of conclusion form that
which is synonymous with “statement proved” or “result deduced or predicted”. the conclu-
sion of any worthwhile story is not something that can be deduced or predicted, nor even
something that can be seen at a later stage to have been revealed at some earlier stage» (gal-
lie 1964: 23).
133
explica gallie que, na linha da tradição filosófica, contingências são coisas que
indubitavelmente temos de aceitar, não sendo obrigatório que sejam intelectualmente aceitá-
veis, ou seja, por definição, o que é contingente está fora do nosso controlo intelectual (cf.
gallie 1964: 30).
134
«We should notice here that perhaps of greater importance for stories than the pre-
dictability relation between events is the converse relation which enables us to see, not indeed
that some earlier event necessitated a later one, but that a later event required, as its neces-
sary condition, some earlier one» (gallie 1964: 26).
132 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

todos os incidentes da história requerem, como condição necessária para a sua


inteligibilidade, a sua aceitabilidade. a inteligibilidade de qualquer história
digna desse nome não deriva de leis gerais, mas sim da conjugação dos fatores
de contingência e aceitabilidade.
a diferença maior entre esta proposta de gallie e a teoria aristotélica do
mythos – nomeadamente, o conceito de peripeteia, do qual ricœur aduziu a
teoria da concordância discordante – reside na importância dada ao fator sub-
jetivo introduzido pela noção de expetativa, de atração pelo desenlace, a deno-
minada por ricœur «teleologia subjetiva» (tR i, 268). Percebe-se, pois, que o
conceito de followability resulta mais de uma psicologia da receção do que de
uma lógica de configuração. a corroborar esta análise está o lugar de destaque
que gallie concede ao binómio simpatia/antipatia na teleologia subjetiva.
segundo ele, o que regula a nossa expetativa não é uma verdade qualquer de
natureza indutiva, mas os nossos mais elementares sentimentos de simpatia ou
de antipatia para com determinadas personagens, que devem ser estrategica-
mente colocadas em situações que suscitem o nosso interesse e nos façam
embarcar na história.
Following não pode ser entendido como uma operação puramente intelec-
tual, como seguir o funcionamento de determinado mecanismo ou um mapa
geográfico, geológico ou uma forma biológica através das suas variações mor-
fológicas.
em suma, podemos resumir a reflexão de gallie em dois tópicos princi-
pais: primeiro, o desenvolvimento crucial de qualquer história é essencialmente
contingente, isto é, apresenta eventos surpreendentes e estimulantes e não regu-
lares; e, segundo, o ato de seguir esse desenvolvimento depende do seu inte-
resse humano, do seu poder para atrair os sentimentos humanos de simpatia/
/antipatia. É esta característica que vai servir para aproximar história (history)
e ficção (story). antes, sublinhou-se a descontinuidade epistemológica entre os
géneros com base na prova (evidence); agora, gallie, sem descurar o corte epis-
temológico, reaproxima-os pelo comum interesse narrativo135.
assim, a partir do capítulo iii, o autor está em condições de testar o cru-
zamento da sua reflexão anterior com o tema novo da historiografia, no intuito

135
«si cette continuité narrative entre “story” e “history” a été si peu remarqué dans
le passé, c’est parce que les problèmes posés par la coupure épistémologique entre fiction et
histoire, ou entre mythe et histoire, on fait porter toute l’attention sur la question de la preuve
(évidence), aux dépens de la question plus fondamentale de savoir ce qui fait l’intérêt d’un
ouvrage d’histoire. or c’est cet intérêt qui assure la continuité entre l’histoire au sens de
l’historiographie et le récit ordinaire» (ricœur, TR i, 269).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 133

de verificar até que ponto o que foi dito para o género story vale também para
history. e o que foi dito para story, recapitulamo-lo, é que seguir uma história
«is a teleologically guided form of attention. We are pulled along by our sym-
pathies towards a promised yet always open conclusion, across any number of
contingent, surprising events, but always on the understanding that these will
not divert us hopelessly from the vaguely promised end» (gallie 1964: 65).
Da história narrativa – a única que gallie toma como paradigma – diz-
-se que ela deve lidar com ações humanas, projetos e resultados que podemos
reconhecer como sendo semelhantes aos nossos (cf. ibid.: 52). logo, nem todo
o conhecimento do passado humano pode ser considerado história; e não pode
haver história de seres humanos ou de sociedades que nos sejam totalmente
alheias, que nos sejam impermeáveis ou que não pertençam connosco a um
único sistema de comunicação, do qual qualquer história é sempre apenas um
fragmento ou um segmento. Para serem estudadas como história, um conjunto
de ações humanas passadas devem ser sentidas pelos membros de um determi-
nado grupo humano como pertencentes ao seu passado, e devem ser inteligíveis
e bem compreendidas do ponto de vista dos seus interesses presentes. É este
facto, por exemplo, que dá origem ao muito discutível axioma que proclama
que toda a história é contemporânea.
Voltando ao conceito de story, questiona-se se esta, de algum modo, pode
contribuir para perceber o que é específico da compreensão histórica; porém,
antes, é preciso averiguar se a narrativa é indispensável em qualquer história e,
se sim, qual o seu lugar e função face a outros aspetos e características da his-
tória, como as discussões, as explicações e as análises.
as histórias que interessam abordar são aquelas que visam apreender
«some major achievement or failure of men living and working together, in
societies or nations or any other lastingly organized groups» (ibid.: 65).
são assuntos típicos destas histórias a unificação ou a desintegração de
um império, a ascensão e a queda de uma classe, de um movimento social, de
uma seita religiosa ou de um estilo artístico, a invenção de algo muito influente
ou a realização de uma reforma moral.
mesmo admitindo que cada trabalho genuinamente histórico deve conter
exercícios da razão, de julgamento, hipóteses e explicações, ainda assim não
pode dispensar duas classes de características fundamentais que qualificam a
historiografia como uma espécie do género narrativo: «history is a species of
the genus story» (ibid.: 66). Primeiro, a leitura das obras históricas deriva da
nossa competência para seguir narrativas: apreciar e, em certo sentido, usar um
livro ou um capítulo de história significa lê-lo do princípio ao fim, segui-lo de
lés a lés, à luz do seu prometido e entrevisto desfecho, através de uma suces-
134 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

são de contingências, de forma diferente de estar simplesmente interessado no


resultado que pode ser inferido ou deduzido de determinadas condicionantes
iniciais. estes resultados são próprios das ciências naturais e sociais, cuja pre-
visibilidade e necessidade lógica permitem verificar a validade das leis e das
hipóteses. as ciências sistemáticas não procuram dar-nos uma exposição “sequí-
vel” (followable) do que aconteceu em qualquer processo social ou natural.
o que elas oferecem são modelos idealizados ou simplificados de acontecimen-
tos, com base em leis e teorias gerais. mas a história (history), tal como todas
as histórias (stories) e fábulas, «é tanto uma partida como uma chegada, uma
aproximação como um resultado» (ibid.: 67). todo o genuíno trabalho de his-
tória deve ser entendido deste modo, sendo o seu assunto digno de ser seguido
através de contingências, acidentes, reveses e de todos os multifacetados deta-
lhes do seu desenvolvimento. segundo, o tema destas histórias merece ser nar-
rado e as suas narrativas merecem ser seguidas, pois o tema desperta o nosso
interesse e atenção, ao expor o que outros como nós efetuaram com sucesso ou
fracasso, mesmo que não convirja com os nossos sentimentos do momento.
acentua-se, novamente, a ideia de que é o “interesse” que autoriza a ver um
laço de parentesco entre o género narrativo e o género historiográfico.
ainda a propósito da relação entre story e history, pergunta-se também se
os trabalhos históricos – cujas temáticas são na maior parte das vezes extensís-
simas, abrangendo gerações e grupos e não indivíduos singulares – possuem o
tipo de unidade característico das narrativas ficcionais, que nos permitem segui-
-las como um todo ou como unidades complexas de ação e reação humana,
através de multiformes peripécias, até ao aguardado desfecho. gallie responde
que todo o trabalho de história bem sucedido deve ser “sequível” (followable)
como uma unidade do mesmo tipo de qualquer história ficcional136. o tipo de
unidade que encontramos em trabalhos históricos bem sucedidos revela uma
analogia parcial com o tipo de unidade característico da saga – cuja marca é
a ausência de conclusão definitiva e a passagem de testemunho de geração a
geração – e das histórias dos ciclos épicos transgeracionais e transfamiliares da
antiguidade, como o de orestes e de Jacob, por exemplo. toda a história (his-
tory), tal como a saga, é basicamente uma narração de acontecimentos nos
quais o pensamento e a ação humana desempenham um papel predominante.
sabemos que a historiografia tende a tratar, preferencialmente, temas concernen-
tes aos interesses, às ações e às vidas de grupos ou gerações, usando e descar-

136
«[...] every successful work of history (of the kind that interests us all most) must
be followable, as a unity, in the way that a story is» (gallie 1964: 68).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 135

tando personalidades singulares com relativa indiferença. todavia, neste caso, a


diferença entre indivíduo e grupo não é importante. o ato de seguir uma his-
tória confere unidade orgânica a qualquer história, seja ela de um grupo ou de
um indivíduo, de correntes ou de tendências (trend), pois também estas só se
manifestam na sucessão dos acontecimentos que seguimos137.
conclui-se, pois, que as narrativas históricas são “sequíveis” ou inteligí-
veis do mesmo modo geral que todas as outras histórias. evidentemente, para
ser histórica uma narrativa deve ter sempre em conta a prova (evidence), isto
é, os factos que narra devem ter data e locais assinalados e confirmados. este
estudo preliminar acerca da relação entre os géneros só ficará concluído com
a análise do modo como as características do género story podem ser aplicadas
ao género específico da history. enfrentando esta questão estaremos a enfrentar
dois problemas epistemológicos principais da compreensão histórica.
o primeiro diz respeito à forma como as obras históricas abordam o
“interesse humano”. a tese de gallie é que a compreensão histórica significa
sempre ou, pelo menos, tem como elemento predominante, a apreciação de
objetivos, escolhas, avaliações, esforços e feitos humanos, imputáveis exclusiva-
mente a um único homem, agindo individualmente ou cooperando com outros,
em seu nome ou em nome de um grupo, causa ou nação. muitos historiadores
e filósofos não defendem esta posição e alguns dos que a adotaram tenderam
a identificá-la com a perspetiva mais extrema do nominalismo: que as propo-
sições gerais não têm lugar na história, exceto se forem premissas maiores da
explicação de acontecimentos particulares. contra esta perspetiva, gallie per-
gunta se é possível conceber um trabalho de história política que não contenha
um conjunto de sentenças que tenham por sujeito expressões do género “a polí-
tica do governo”, “o progresso da reforma”, “as condições da classe operária”,
“o crescimento da oposição”, “a constituição”, etc. Frases deste tipo não se
referem, obviamente, a ações ou indivíduos concretos, como exigem os nomi-
nalistas, mas têm a sua utilidade para factos institucionais (cf. ibid.: 76). toda-
via, parece razoável argumentar que estes factos institucionais são entendidos,
isto é, são seguidos através de mudanças e desenvolvimentos no seu interior, de

137
«a trend or tendency is something that we see gradually disclosed through a suc-
cession of events; it is something that belongs to the events which we are following and no
others; it is, so to speack, a pattern-quality of those particular events. it would thus seem that
our appreciation of any historical trend must depend upon, or be a result of, our following
a particular narrative, a narrative of events which happen to be arranged in such a way that,
roughly speaking, they move in some easily described relation to some fixed point of refer-
ence» (gallie 1964: 70).
136 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

um modo que é completamente diferente do de seguir pensamentos, sentimentos


e ações de pessoas concretas. mas também parece legítimo afirmar que se, por
um lado, constatamos uma mudança geral ou uma tendência em direção a uma
legislação ou período, por outro, compreendemos ou apreciamos os motivos
e as razões que inspiraram os reformadores e os argumentos que impelem as
suas causas. assim sendo, torna-se fundamental decidir qual dos campos de
“following” é mais importante para a história: seguir tendências gerais ou
seguir motivos e razões individuais.
este dilema coloca gallie perante duas escolas de pensamento: a nomina-
lista e a realista. Nenhuma delas por si só é totalmente aceitável, mas o con-
fronto das duas fornece uma estrutura dentro da qual podemos destacar o que
sustenta a reivindicação de que o interesse humano é um fator essencial «quer
para seguir histories como para seguir stories» (ibid.: 77).
o Nominalismo defende que só existem coisas singulares, incluindo pes-
soas. as instituições humanas, as doutrinas, etc., só podem ser ditas a partir dos
pensamentos, das crenças, das ações de homens e mulheres singulares. Por isso,
tudo o que se diz acerca destes factos institucionais é uma espécie de abrevia-
tura intelectual. Falar de uma doutrina, por exemplo, equivale a falar, resumi-
damente, acerca dos meios através dos quais determinados indivíduos mudaram
a sua forma de pensar; e falar do crescimento de uma nação equivale a falar,
resumidamente, do facto de um maior número de pessoas terem começado a
obedecer e a pagar taxas a um governador.
Para o realismo, qualquer ação caracteristicamente humana é realizada e
interpretada como expressão de instituições, crenças, rotinas e normas no seio
das quais os agentes individuais se inserem. Neste caso, as instituições e todos
os fenómenos coletivos comparáveis são entidades reais, que têm uma história
própria, irredutível aos fins, aos esforços, às iniciativas imputáveis a indivíduos
agindo sozinhos ou em grupo, em seu nome ou em nome de grupos que repre-
sentam138. logo, não tem interesse o que fazem os indivíduos enquanto indiví-
duos.
o que o Nominalismo tem de positivo é o ataque à tendência para reificar
e, por vezes, para deificar abstrações. o realismo tem o mérito de atacar a
visão da história como uma coisa a seguir à outra e de pôr por terra a presun-
ção ingénua de que a ação humana equivale à soma dos atos que estão ads-
critos a diferentes indivíduos.

138
«[...] these real (although abstract) entities have histories; and historians can trace
out these histories and can render them followable even when the names and separate indi-
vidualities of all concerned in them are entirely lost» (gallie 1964: 78).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 137

mas depois de reconhecer a virtude de cada uma das disciplinas, gallie


passa ao ataque. critica as várias insuficiências do Nominalismo: não explica
por que os historiadores optam ou são forçados a adotar expressões abstratas
ou comuns que encobrem e abreviam as ações individuais, subordinando-os à
abstração de um facto institucional, quando seria mais lógico referir nomes e
detalhes individuais para compreender a evolução de uma instituição; não se
apercebem da estreita relação entre o emprego de abstrações e o caráter emi-
nentemente seletivo do interesse histórico; também descuram o facto de, em
grande parte, as ações imputáveis aos indivíduos não serem realizadas por eles
na qualidade de indivíduos, mas enquanto desempenham um papel institucional;
por último, os nominalistas não percebem que para compreender fenómenos
globais tais como o “descontentamento social” ou as “instituições económicas”,
é preciso recorrer às chamadas “dummy variables”.
a este propósito, ricœur observa o quanto esta crítica de gallie ao Nomi-
nalismo se aproxima da metodologia defendida pela escola dos Annales, por
entender a compreensão histórica não fundada sobre factos individuais ou sin-
gulares, mas sobre mudanças em determinada sociedade cujo sentido pode ser
visto à luz do nosso conhecimento geral acerca do funcionamento das institui-
ções (TR i, 272: nota 1).
se a prática histórica desmente a tese nominalista segundo a qual só exis-
tem coisas singulares e entre elas as pessoas, também não justifica a tese rea-
lista segundo a qual toda a ação tipicamente humana envolve uma referência
tácita a um facto social ou institucional de caráter geral e fica suficientemente
explicada quando explicitarmos esta referência institucional. a tese nominalista,
apesar da sua inadequação epistemológica, indica o objetivo do pensamento his-
tórico, que é fornecer uma exposição “sequível” das mudanças sociais que inte-
ressam ao ser humano, porque elas dependem das ideias, das escolhas, dos
lugares, dos esforços, dos sucessos e dos insucessos de homens e de mulheres
singulares. a realista acerta na maneira como a história realiza esse objetivo,
a saber, recorrendo a todo o conhecimento disponível sobre a vida em socie-
dade, desde os truísmos tradicionais até aos teoremas e modelos abstratos das
ciências sociais (cf. gallie 1964: 83-84). Por isso, gallie não recusa nem per-
filha nenhuma das duas perspetivas, antes combina a epistemologia da tese rea-
lista com a ontologia fundamentalmente individualista da tese nominalista.
entenda-se que esta conciliação só é possível com base no pressuposto de que
os momentos cruciais de uma grande obra histórica consistem em indicações,
o mais exatas possível, de como é que este ou aquele indivíduo ou grupo de
indivíduos adotou, manteve, abandonou ou fracassou no cumprimento de certos
papéis institucionais. Nesses momentos, vemos e sentimos o que gallie designa
138 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

de “true growing-points or dying-points-of history» (ibid.: 85). Para contraba-


lançar, entre estes momentos cruciais contentamo-nos com proposições sumárias
e gerais, formuladas em termos institucionais; nestes intervalos o anonimato
geral dos factos prevalece e é aceite até que alguma rutura digna de referência
venha alterar o curso do fenómeno social ou institucional. o ato capaz de inter-
ferir neste curso é habitual e corretamente identificado com algum indivíduo ou
grupo de indivíduos. Verifica-se, por exemplo, na história económica e social,
onde reina o anonimato generalizado de forças, correntes, estruturas. mas
mesmo uma história deste tipo que, no limite, se escreve sem datas nem nomes
próprios não pode evitar narrar iniciativas, escolhas e ações de homens singu-
lares.
o segundo problema epistemológico abordado prende-se com a função
das leis na explicação histórica. o tema é suscitado pela questão das con-
tingências em história: «[...] are the main events in any historical narrative [...]
always presented as contingencies, as essentially unpredictable although accept-
able stages in a followable, historically intelligible whole?» (gallie 1964: 88).
Para se avançar nesta questão não podemos perder de vista duas verdades
características da compreensão histórica: em primeiro lugar, seguimos uma nar-
rativa histórica – de modo análogo ao seguimento de um jogo de críquete ou
de uma história ficcional – através de uma panóplia de contingências e surpre-
sas do mundo real em direção a uma entrevista conclusão; segundo, é bem pos-
sível que ocorram acidentes que obstruam o nosso percurso até à conclusão,
sendo necessário recorrer, por vezes, a explicações constituídas por argumentos
e considerações gerais e não apenas por provas, para iluminar o nosso caminho.
estas explicações não podem ser as do modelo nomológico, pois eliminariam
o caráter contingente da narrativa. gallie, já o dissemos antes, vê um tipo de
explicações especialmente relevantes na narrativa. retomando a analogia com o
jogo de críquete, podemos dizer que estas explicações são equivalentes às
regras do jogo e às informações contextuais que permitem a um leigo na maté-
ria seguir e entender as jogadas, ao ponto de as poder comentar. estas gene-
ralizações que visam tornar compreensível o acompanhamento de uma história
ou de um jogo não se confundem com as que permitem fazer deduções ou pre-
visões139. o seguimento e a avaliação dos factos narrados numa obra histórica
exigem «optimum understanding» e «fullest possible sense of their intelligibi-

139
«applying generalisations so as to be able to follow a developing performance or
game or story or history is thus basically different from applying them with a view to deduc-
ing, and in a particular predicting, some future event» (gallie 1964: 90).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 139

lity» (ibid.: 90). No caso das narrativas ficcionais, as explicações servem ape-
nas para evitar que a narrativa deslize para a obscuridade e para a incoerência.
mas na historiografia, tal como nas ciências, as explicações têm um papel posi-
tivo: «Not only do they enable the historian to classify and clarify and endorse
facts which at first seem puzzling or improbable, they help him to enlarge his
vision of the context and potential relevance of particular actions and episodes»
(ibid.).
o historiador não espera que as explicações eliminem as contingências,
mas o ajudem a melhor compreender o contributo das contingências para o
desenrolar da história. o seu interesse não é, pois, deduzir nem predizer, mas
compreender melhor a complexidade dos encadeamentos que, ao cruzarem-se,
concorreram para a ocorrência do evento em causa. Nisto o historiador distan-
cia-se do físico. enquanto este procura aumentar o campo das generalidades,
reduzindo as contingências, o historiador apenas quer compreender melhor o
que aconteceu140. Há mesmo campos de estudo onde as contingências assumem,
para o historiador, um interesse primaz: conflitos entre estados ou nações, lutas
sociais, descobertas científicas ou inovações artísticas. o interesse pelas contin-
gências não significa que o historiador dá primazia ao sensacional. De um
modo análogo ao que foi descrito no âmbito da peripeteia aristotélica, a preo-
cupação do historiador consiste em incorporar estes acontecimentos acidentais
numa narrativa aceitável, logo, inscrever a contingência num todo. só assim um
facto suscetível de figurar numa narração pode ser “sequível”141.
tendo definido o exercício da capacidade para seguir uma história como
o fundamento da compreensão histórica, importa esclarecer o contributo ancilar
das leis que o historiador pede emprestadas às ciências para essa atividade: «to
follow an historical narrative always requires the acceptance, from time to time,

140
«[...] there is a clear and indispensable distinction between studies in which our pre-
dominant interest is to increase the range and accuracy of our generalisations and studies in
which our predominant interest is in how things atually went, atually developed, in teaching
some already broadly know result. Now it seems to me quite clear that the distinction
between these two types of study is equivalent to the distinction between studies in which
contingencies are unimportant either because they cancel each other out or for some other
reason, and studies in which, as in history, certain contingencies are seized upon because they
help us to see how other things atually worked out the way they did» (gallie 1964: 92-93).
141
«the basic and constant aim of the historian is to present an acceptable, because
evidenced and unified, narrative: chance developments, creative developments, necessary or
foreseeable developments must alike be woven into the whole design, and their categorical
diversity is indeed liable to be lost under the even texture of a great historical style» (gallie
1964: 103).
140 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

of explanations which have the effect of enabling one to follow further when
one’s vision was becoming blurred or one’s credulity taxed beyond patience»
(ibid.: 105). ou ainda: «[...] the characteristic function of explanations in his-
tory is an ancillary one. it is, to repeat, to enable us to follow a narrative when
we have got stuck, or to follow again more confidently when we had begun to
be confused or bewildered (ibid.: 107).
as explicações em história desempenham o papel de auxiliar no segui-
mento da narrativa, quando se obscurece a nossa visão do seu encadeamento ou
quando a nossa capacidade de aceitar a visão do autor é solicitada até ao ponto
de rutura142. a explicação histórica não é uma versão enfraquecida do modelo
dedutivo das ciências naturais. Não se trata de aplicar o modelo nomológico de
“covering-law” à história.
toda a narrativa é self-explanatory, isto é, explica-se por si mesma, no
sentido de que contar o que sucedeu é já explicar por que sucedeu. Nesse sen-
tido, seguir uma história implica conhecimento e aceitação de generalizações do
comportamento humano, sejam elas de ordem classificatória, causal ou de
outras teorias da ação humana, generalizações que podemos encontrar já nas
histórias quotidianas sobre situações, funções, motivos, fins, provações e saídas.
Nada obsta, então, a que generalizações e explicações cada vez mais complexas
e importadas de outras ciências se venham interpolar na textura histórica; sig-
nificando que, se por um lado, qualquer narrativa se explica por si própria, por
outro, nenhuma narrativa histórica se explica apenas por si própria; está sempre
em demanda da explicação a interpolar no seu tecido textual, porque fracassou
a explicar-se a si mesma e, por isso, precisa de ser de novo colocada sobre os
carris143. mas aceitar estas generalizações não equivale a pôr um caso sob a
alçada de uma lei, é sim relançar o processo de seguir uma história quando há
um bloqueio ou um obscurecimento. Deste modo, o critério de uma boa expli-
cação é pragmático, já que a sua função é altamente corretiva. a explicação por
razões proposta por W. Dray é a mais apropriada para esta exigência; recons-
truímos o pensamento de um agente quando uma ação nos surpreende, nos
intriga, nos deixa perplexos.

142
«this, i maintain, is the peculiar and all-important role of explanations in history:
they are essentially aids to the basic capacity or attitude of following, and only in relation
to this capacity can they be correctly assessed and construed» (gallie 1964: 105).
143
«[...] no historical narrative is self-explanatory, every historical narrative stands in
need of the kind of explanation which is intruded into it because it has failed to be self-
explanatory, because it needs to be righted, needs to be got back on the rails again, so that
we can follow its progress as before» (gallie 1964: 109).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 141

o papel da explicação em história não difere muito do comentário filoló-


gico e da crítica textual: reordena os detalhes para tornar um texto, que nos
aparece discordante relativamente a outros factos conhecidos, de novo inteligí-
vel. o objetivo é afastar-se do texto recebido para o reescrever e tornar mais
legível. Por conseguinte, escrever é reescrever. Para o historiador, qualquer
enigma ou facto inexplicável é um desafio para os critérios que tornam uma
história sequível e aceitável. É neste trabalho de revisão das histórias anteriores
que o historiador se aproxima mais do modelo hempeliano: confrontado com
um curso estranho de eventos, o historiador procura construir o modelo do que
seria o curso normal da ação, tentando averiguar a distância entre o compor-
tamento dos atores em questão e o seu curso normal. Por isso, os escritores
passam a vida a rever as histórias anteriormente escritas pelos seus pares e a
procurar novas explicações para os factos sem resposta.
le cas le plus fréquent et le plus remarquable de refonte est celui où un historien
essaie une explication qui non seulement n’était pas accessible aux acteurs, mais
diffère des explications offertes par les histoires antérieures devenues pour lui
opaques et énigmatiques. expliquer, dans ce cas, c’est justifier la réorientation de
l’attention historique, qui conduit à une ré-vision générale de tout un cours d’his-
toire. le grand historien est celui qui réussit à rendre acceptable une nouvelle
manière de suivre l’histoire [ricœur, TR i, 276].

todavia, a explicação nunca vai além desta função ancilar e corretiva rela-
tivamente à compreensão aplicada à followability da narrativa histórica.

iii) L. O. Mink: compreensão histórica como configuração ou apreen-


são

a reflexão de mink dá um passo decisivo rumo à conceção narrativista


das narrativas como totalidades altamente organizadas, exigindo, a partir de
uma visão sinótica dos factos, um ato específico de compreensão, da ordem do
julgamento. ricœur diz que «ninguém foi tão longe quanto mink no reconhe-
cimento do caráter sintético da atividade narrativa»144. o filósofo francês passa
em revista os principais artigos e as mais importantes teses deste autor, cujo
contributo para a sua filosofia narrativa é indiscutível. Devido a essa notória e
constante influência em toda a trilogia Temps et Récit, expomos algumas das

144
«reste que nul n’est allé aussi loin que mink dans la reconnaissance du caractère
synthétique de l’activité narrative» (ricœur, TR i, 276).
142 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

reflexões mais relevantes de mink, com o fito de explicitarmos muitos dos con-
ceitos e ideias-chave que formam o substrato da filosofia ricœuriana.
a apologia de uma autonomia da compreensão histórica baseada no ato
do julgamento surge pela primeira vez no artigo The autonomy of historical
understanding (1966). o autor começa por refutar as teses do modelo nomoló-
gico e do seu método hipotético-dedutivo, que concebe a história como uma
protociência a caminho do estatuto de ciência145. em ordem a instaurar a auto-
nomia histórica, resgatando-a da sombra da protociência, mink precisa de lhe
encontrar um método alternativo de explicação. Propõe-se para isso examinar
seis características fundamentais da prática e da descrição histórica, comum-
mente aceites entre os historiadores.
em primeiro lugar, os historiadores questionam por que podem ambicionar
explicar factos do passado, mas não prever o futuro, nem sequer no nível de
incompletude e de generalidade com que explicam o passado. a resposta é que
método histórico e método científico são necessariamente divergentes: explicar
em história não equivale a subsumir factos sob leis gerais, o que esclarece a
incapacidade de previsão dos historiadores. em história, explicar é amiúde esta-
belecer coligações, o que significa explicar um acontecimento descrevendo as
suas relações intrínsecas com outros acontecimentos e situá-los no seu contexto
histórico146. a descrição de explicações como coligativas significa que para a
compreensão histórica de um facto deve conhecer-se os seus antecedentes e os
seus consequentes; o historiador deve olhar para o antes e para o depois; sig-
nifica ainda que de certa forma podemos compreender um facto particular loca-
lizando-o corretamente numa sequência narrativa, da mesma forma que pode ser
classificado como exemplo de uma lei. a narrativa pode, pois, resultar de uma
resposta narrativa à questão “e depois, o que aconteceu?”.
Questiona-se também por que é que as hipóteses não são falsificáveis em
história como o são nas ciências. É que os historiadores tendem a ver as hipó-

145
«Bemused by the contradictions and ambiguities of “common sense” and ordinary
language, history as we know it is in the chrysalid stage of proto-science; and the apparent
differences between historical and scientific methods can be reconciled theoretically by analy-
sis and practically by increased methodological sophistication on the part of historians» (mink
1966: 66).
146
«it is to describe such mode that W. H. Walsh has revived Whewell’s term “col-
ligation”, by wich Walsh intends to describe “the procedure of explaining an event by tracing
its intrinsic relations to other events and locating it in its historical context.” explanation by
colligation, he suggests, is appropriate in cases where a purpose or policy has found expres-
sion in a series of actions each “intrinsically” related to the others in the series» (mink 1966:
71).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 143

teses não como potenciais leis mas como guias. Para o historiador, uma hipó-
tese não é uma lei experimentável mas um indicador para formular questões,
uma regra para delimitar o campo de inquirição e para determinar a relevância
da evidência. Para o cientista, a hipótese é o alvo, para o historiador é um sinal
de orientação.
em terceiro lugar, tenta explicar-se a necessidade de os historiadores
recorrerem à reconstrução imaginativa dos eventos que investigam, atividade
que definem como “insight” ou intuição147. contra este método de empatia psi-
cológica, defendido por Dilthey, croce e collingwood, que entendiam as ações
humanas como expressões de estados da mente que podiam ser re-experiencia-
dos pelos historiadores, insurge-se o ponto de vista da protociência, argumen-
tando que este método de compreensão (“insight”) não é suficiente quando se
investigam leis históricas. Para os críticos do método de compreensão, qualquer
exemplo que esteja sob uma lei é um exemplo anónimo, isolado do rico e deta-
lhado contexto com o qual o historiador trabalha. Na perspetiva da protociência,
o conceito de compreensão é equivalente ao de explicação e este, por sua vez,
identifica-se com o de predição. Para mink uma elucidação do conceito de
compreensão passa pela sua inclusão no contexto. uma visão global dos factos
passa pela sua compreensão num ato de julgamento que os apreende em con-
junto e não em série148. uma família é apreendida como um conjunto de pes-
soas interrelacionadas e não como uma série de pessoas mais as suas relações
individuais. É verdade que só se pode descrever uma família de acordo com o
último caso enunciado, ou seja, pessoa a pessoa, mas trata-se de uma conse-
quência acidental proveniente da discursividade da linguagem, que só pode
nomear individualmente cada um dos elementos do grupo passível de ser
apreendido simultaneamente como um todo. salvaguarda mink que esta visão
de conjunto não é um método nem uma técnica de prova ou um sistema lógico
de descoberta, mas um tipo de julgamento reflexivo (cf. 1966: 77).
mink constata também que, normalmente, os historiadores não aceitam
quaisquer conclusões, a menos que estejam ligadas a um argumento por eles

147
Devido à falta de correspondente em português, mantemos o termo no original
inglês. o termo português que me parece ter o significado mais próximo é o de “intuição”,
entendido literalmente como “ir dentro”.
148
«the minimal description of historical practice is that the historian deals with com-
plex events in terms of the interrelationship of their constituent events (leaving open entirely
the question whether there are “unit events” in history). even supposing that all of the facts
of the case are established, there is still the problem of comprehending them in an act of
judgement which manages to hold them together rather than reviewing them seriatim» (mink
1966: 77).
144 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

verificado. a justificação está no facto de a narrativa ter de ser tomada como


um todo, pois é o todo que sustenta as conclusões. a história não é uma ciên-
cia cumulativa em que um investigador possa usar os resultados de uma outra
investigação sem repetir o processo inteiro dessa mesma investigação. em ciên-
cia é possível usar conclusões destacáveis por causa da sua estrutura teorética.
em história, as conclusões não se podem separar do argumento, porque a nar-
rativa é compreendida como um todo coeso, logo, devem estar inseridas – e
não simplesmente disseminadas – de acordo com uma ordem narrativa e não de
forma científica ou demonstrativa. Neste aspeto, a história é parente da poesia.
a argumentação de mink põe em primeiro plano a noção de síntese compreen-
siva – objetivo final de toda a investigação histórica – ou de julgamento sinóp-
tico, semelhante à operação que nos permite interpretar uma frase como um
todo.
Pergunta-se porque é que os acontecimentos históricos podem ser únicos
e semelhantes a outros. geralmente, os historiadores concordam que existem
semelhanças entre acontecimentos complexos mas insistem na ideia de que não
existem dois acontecimentos iguais. a similitude e a unicidade são dependentes
dos contextos disponíveis. a irredutível singularidade dos factos pode ser um
erro se for tomada como teoria dos factos, porém, pode ser defendida como
reveladora indireta de uma característica distintiva do julgamento histórico –
«[...] there is reason to believe that the recognition of resemblances is a kind
of terminal judgement [...]» (mink 1966: 81).
a característica distintiva da compreensão histórica consiste em compreen-
der um acontecimento complexo através da visão de conjunto dos factos num
julgamento sinóptico e total que não pode ser substituído por nenhuma técnica
analítica149. Deste modo, a teoria do julgamento sinóptico como componente
essencial da competência do historiador e como objetivo final da compreensão
histórica passa para primeiro plano. mas, se assim é, interroga-se o autor, por
que é o julgamento sinóptico tem sido ignorado e mal entendido? Porque o his-
toriador é obrigado a dispor por ordem sequencial uma narrativa que ele
apreende como um todo; porque o historiador é capaz de sumariar as suas con-
clusões, causando a impressão, tal como nas conclusões avulsas da ciência, de
que o posterior é deduzido da prova; e, acima de tudo, porque há a tendência
para desviar a atenção do julgamento histórico, como um ato reflexivo, para a
explicação histórica, como uma série de afirmações interligadas por conexões

149
«What is here called “synoptic judgment” is, i think, both a characterization of the
type of historical thought in the process of research and also a description of its final aim»
(mink 1966: 82).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 145

causais. todavia, são duas operações bem distintas: «the logic of confirmation
is appropriate to the testing of detachable conclusions, but ingredient meanings
require a theory of judgment» (ibid.: 84). o facto de todos os eventos ocorre-
rem sequencialmente no tempo não significa que o historiador tenha de os
reproduzir na mente por ordem sequencial para os compreender, mas deve, num
ato de julgamento, reunir na mente os factos que ninguém poderia vivenciar de
uma só vez150.
Por último, verifica-se que os historiadores se dirigem a um público uni-
versal e não apenas a uma elite de eruditos. isso explica-se pelo teor da sua
comunicação que é um julgamento mais próximo da phronesis aristotélica
(conhecimento prático ou do senso comum) do que da ciência: o problema do
historiador torna-se inteligível se for entendido como uma «tentativa para
comunicar a sua experiência de ver-as-coisas-em-conjunto no necessário estilo
narrativo de uma coisa-após-a outra» (mink 1966: 85)151.
mesmo que tivéssemos a possibilidade de visionar, através de um ecrã, o
desenrolar detalhado dos acontecimentos passados, precisaríamos da compreen-
são histórica para tornar inteligível este confuso panorama.
um aspeto é comum às seis características da historiografia sobre as quais
centrámos a nossa atenção: a ideia de síntese histórica ou de história interpre-
tativa. É esta especificidade como modo de compreensão que uma teoria do
conhecimento histórico deve reconhecer se quer justificar e preservar a autono-
mia metodológica da história. tentou demonstrar-se que a história difere da
ciência não só porque lida com diferentes tipos de factos e de modelos de
explicação, mas porque o historiador cultiva um hábito muito próprio: «[...] it
cultivates the specialized habit of understanding which converts congeries of
events into concatenations, and emphasizes and increases the scope of synoptic
judgement in our reflection on experience» (ibid.: 88).
Do mesmo modo que a empatia não substitui a prova, também o julga-
mento sinóptico não pretende substituir uma metodologia. mink reconhece que
deixa em aberto questões epistemológicas como a de saber se as sínteses inter-

150
«But this is the same type of synoptic judgment by which a critic “sees together”
the complex of metaphor in a poem, by which the clinical psychologist “sees together” the
responses and history of a patient, or by which the leader of a group “sees together” the
mutually involved abilities, interests, and purposes of its members. [...] success in any of
these enterprises depends at least as much on the ability to make synoptic judgments as on
the correctness of theory» (mink 1966: 84).
151
«[...] an attempt to communicate his experience of seeing-things-together in the nec-
essarily narrative style of one-thing-after-another».
146 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

pretativas podem ser logicamente comparadas, se há razões gerais para preferir


uma à outra e se estas podem ser tidas como critérios de objetividade e de ver-
dade histórica. mas este tipo de questões pressupõe que tenhamos identificado
o que distingue o pensamento histórico elaborado quer das explicações quoti-
dianas do senso comum quer das explicações teóricas das ciências naturais.

mink procura responder a este problema no artigo de 1968, Philosophical


Analysis and Historical Understanding, partindo da crítica aos limites do con-
ceito de followability de gallie. refere que ele é perfeitamente válido enquanto
o desfecho ou a conclusão da história for desconhecida do ouvinte ou do leitor,
tal como acontece quando seguimos uma partida de um jogo, em que o conhe-
cimento das regras é inútil para a previsão do resultado final. É preciso seguir
o desenrolar das contingências até ao fim. as contingências, para uma com-
preensão fenomenológica, reportam-se a incidentes surpreendentes e inesperados
em determinadas circunstâncias152. espera-se uma conclusão, mas ignora-se qual
seja, entre tantas possíveis. É por isso que é preciso seguir a história de uma
ponta à outra e é por isso também que os nossos sentimentos de simpatia ou
de hostilidade devem manter o dinamismo de todo o processo. mas, observa
mink, esta condição de ignorância e a consequente atividade irrefletida de
seguir a história não são características da prática histórica. a escrita da história
já é em si mesma uma reescrita de histórias e o leitor segue-a de modo refle-
xivo, correspondendo à situação do historiador enquanto este reconta e rees-
creve. a história escreve-se depois de acontecida153. Há aqui resquícios da frase
narrativa de Danto154.

152
«gallie does not define “contingent” but he remains stoutly phenomenological in
using it: it always means for him “surprising” or “unexpected in the circumstances”, rather
than “not subject to law” or “not predictable in principle”. so events can be contingent in
his sense which in fact we [...] do not believe to be uncaused or even unpredictable, given
knowledge which just happens not to be available in the circumstances» (mink 1968: 134).
153
«[...] gallie’s account is based entirely on the experience of following a story for
the first time. But history is not the writing but the rewriting of stories, and the reflective
reading of history depends on knowing that this is the case. Here the analogy with following
a game in progress is most misleading. Forth historian the game is over (although it may be
a problem to say just when and how it ended); writing history, or reading it reflectively, is
not like watching a game with a “promised but open” outcome but rather like going over and
over our records of it and writing and rewriting our stories of it to reduce rather than to
exploit the contingencies of the events narrated» (mink 1968: 136).
154
«cette sorte de redescription est, comme celle de Danto, une description post even-
tum. mais elle met l’accent sur le processus de reconstruction à l’œuvre plutôt que sur la
dualité des événements impliqués par les phrases narratives (ricœur, TR i, 279: nota 2).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 147

a função do historiador, ao invés do que propunha gallie, não é a de


acentuar os incidentes, mas a de os reduzir. o seu método é regressivo; o his-
toriador avança para as pistas retrocedendo no tempo, e não há contingência
nesta progressão regressiva155. só no momento de recontar a história, num
movimento inverso se volta a passar pelo caminho já percorrido pela marcha à
ré, o que faz com que a contingência não passe dos factos para a narração156.
Normalmente, quem lê obras históricas é entendido na matéria, ou seja,
conhece de antemão o desfecho bem como o desenrolar dos acontecimentos.
uma questão impõe-se: o que leva o leitor a seguir com interesse a narração
de factos que já conhece? mink responde: «to see as intelligible a pattern of
relationships» (1968: 137). ele segue o rumo da história a fim de ver de que
forma é que uma série de factos se tornou uma configuração inteligível de
interrelações. a peculiaridade desta inteligibilidade é que ela é possível unica-
mente na reconstrução histórica; para além disso, nenhuma testemunha poderia
realizar esta inteligibilidade retrospetiva no momento da ocorrência dos factos,
pela razão de que a revisão lhe era nesse momento inacessível, por não conhe-
cer ainda o desfecho. mink desloca, desta forma, a lógica da narrativa da noção
de “seguir uma história” para a de “ter seguido” uma história157. com este des-
locamento, o autor acaba por pôr em perigo a temporalidade específica do ato
narrativo, ao abolir traços da operação narrativa que contar e recontar têm em
comum e que são inerentes à própria estrutura da narrativa, a saber, a dialética
entre contingência e ordem, entre episódio e configuração, entre discordância e
concordância. esse risco ganha consistência, sobretudo, em mais dois reparos
que mink faz à fenomenologia de gallie.
o primeiro é justo ainda que não inofensivo. Verifica que no modelo
defendido por gallie, o “seguimento” de uma história pela primeira vez, a fun-
ção da explicação é reduzida, retórica e meramente acessória, uma vez que se
limita a preencher lacunas ou a iluminar pontos obscuros que obstruem o fluxo
da narrativa, perdendo o caráter substantivo que tem na ciência. mas, sublinha
mink, a explicação ganha relevo substantivo se entendermos a escrita da his-
tória como um processo regressivo, no qual não há contingências. Nesse caso,

155
«[...] tracing the lines backwards is exactly what an historian does, and there are
no contingencies going backwards [...]» (mink 1968: 136).
156
«and when we tell the story, we retrace forward what we have already traced back-
ward. thus what may be contingent in the occurrence of events is not in their narration [...]»
(ibid.).
157
«[...] it is not following but having followed which carries the force of understand-
ing» (mink 1968: 47, nota 9).
148 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

«a lógica da explicação deveria ter alguma coisa que ver com a fenomenologia
da compreensão; a primeira, espera-se, deveria servir para corrigir a segunda e
a segunda para enriquecer a primeira»158.
este comentário é uma pista preciosa para ricœur conciliar explicação e
compreensão.
outra falha assinalada é bem mais discutível e representa um risco muito
maior para a neutralização da categoria temporal da narrativa. mink censura
gallie por não distinguir categoricamente passado e futuro, ao conceber o pas-
sado como futuro passado e o futuro como passado futuro. a explicação para
o facto está no desejo de gallie de transferir a abertura e a contingência do
nosso futuro presente para a narrativa de eventos passados, pois parece-lhe que
não há outro modo de pensar esses eventos senão como tendo sido alguma vez
futuros. ricœur discorda desta análise por achar que futuros passados e passa-
dos futuros não são categoricamente a mesma coisa. o passado não é tão aca-
bado que não permita uma de re-significação retroativa, para a qual Danto cha-
mou – e muito bem – à atenção. Por fim, argumenta ricœur [TR i, 281], o
processo que consiste em percorrer de novo de trás para a frente o percurso
que já tínhamos feito de frente para trás pode dar azo à redescoberta de con-
tingências pertencentes ao passado quando era presente, ou seja, «pode restituir
uma espécie de admiração instruída, graças à qual as “contingências” encontram
uma parte da sua pujança inicial de surpresa» (ricœur, TR i, 281).
o filósofo francês tem interesse em acentuar esta ideia, na medida em que
ela lhe permite antecipar a hipótese, que confirmará mais à frente, deste poder
das contingências estar de algum modo associado ao caráter ficcional da com-
preensão histórica. Pode estar ligado, especula ele, ao aspeto da ficção que
aristóteles identifica como mimesis da ação. É ao nível das contingências ini-
ciais que determinados factos gozam da condição de terem sido futuros no
curso da ação que é reconstruída retrospetivamente. Nesse sentido, também
deve haver lugar para os futuros passados numa ontologia do tempo, na medida
em que o nosso tempo existencial é construído pelas configurações temporais
da história e da ficção em conjunto.
É, pois, sem surpresa, que ricœur constata na obra de mink uma tendên-
cia para despojar de qualquer traço temporal o ato da “apreensão de conjunto”,
característico do processo de configuração. a própria recusa de atribuir aos
acontecimentos narrados a condição temporal de terem sido futuros no passado

158
«the logic of explanation should have something to do with the phenomenology of
understanding; the former, one hopes, should serve to correct the latter and the latter to enrich
the former» (mink 1968: 135).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 149

já deixava antever esta orientação, que é reforçada pela insistência no ato de


recontar em detrimento do de contar/seguir uma história pela primeira vez.

No artigo de 1970, History and Fiction as modes of comprehension, este


propósito fica explícito. reiterando uma vez mais a sua crítica ao conceito de
followability de gallie, que substitui pelo de having followed, mink concorda
com a ênfase que o seu homólogo dá à narrativa, mas discorda da ideia de que
as características essenciais e determinantes de uma narrativa assentam na sua
capacidade de ser seguida. evoca o argumento já conhecido: «What he has pro-
vided is a description of the naive reader, that is, the reader who does not know
the story ends, and who is “pulled along” by interest, sympathy, and curiosity»
(1970: 47).
Na tese de gallie, os factos contingentes tornam-se aceitáveis e inteligí-
veis conquanto a história os encaminhe para um desfecho esperado mas desco-
nhecido. mas esta é uma experiência que nenhum historiador ou leitor com
conhecimentos razoáveis de história pode ter. esta diferença entre “seguir” e
“ter seguido” uma história é mais do que uma diferença acidental entre expe-
riência presente e experiência passada. esta diferença entre presente e passado
no contexto das mudanças e das ações humanas é crucial, é a diferença – diz
ele – entre conhecer um acontecimento por retrospeção ou conhecê-lo por pre-
dição/antecipação. No primeiro caso, a descrição do acontecimento é governada
pela história onde este se insere; relativamente ao segundo caso, sentencia que
não há nenhuma história do futuro. Para conferir alguma plausibilidade à sua
tese, o autor disserta acerca do que entende por “to have followed a story”
(mink 1970: 48).
Nesta dissertação, apresenta aquele que para ricœur é o ponto forte do
artigo: a teoria acerca da elaboração do modo de configuração, apresentado
como um dos três modos da compreensão, em sentido lato, situado entre os
modos teórico e categorial. o modo teórico está associado a um tipo de com-
preensão característico das ciências naturais, o categorial da filosofia e o con-
figurativo da história. a compreensão aplica-se tanto a um complexo de rela-
ções como a inferências teóricas e a determinações categóricas. o modo de
compreensão configurativo é o único relevante para os conceitos da história e
é independente dos outros dois, mas não pode ser claramente definido sem o
contraste com eles159. segundo o modo teórico, os objetos com características
comuns são compreendidos a título de exemplos ou casos de uma teoria geral.

159
Para uma caracterização mais detalhada dos vários modos, vid. mink 1970: 51-53.
150 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

este modo teorético de compreensão é também conhecido por hipotético-dedu-


tivo e o seu tipo ideal é representado pelo sistema de laplace. relativamente
ao modo categorial, por vezes confundido com o anterior, é um meio de com-
preender um determinado número de objetos como exemplos de uma mesma
categoria. a compreensão categorial permite determinar a que tipo pertence
determinado objeto, que sistema de conceitos dá forma a uma experiência que,
na sua ausência, seria caótica. a este tipo de compreensão aspirou Platão e os
filósofos mais sistemáticos. o modo configurativo tem como especificidade a
colocação dos elementos num complexo único e concreto de relações. uma
carta queimada pode ser compreendida não apenas como uma substância infla-
mável (compreensão teórica) mas também como um elo afetivo com um antigo
amigo. ela pertence a uma história, a uma narrativa de acontecimentos que
seria ininteligível sem a referência a essa relação. Para explicar o facto de ela
ter ardido, não é necessário construir uma teoria acerca de cartas e amizades,
basta-me mostrar de que modo este facto encaixa numa particular configuração
de acontecimentos, como a peça de um puzzle. o mais alto grau de compreen-
são configurativa seria aquele que Boécio atribui a Deus, o totum simul.
os três modos visam um mesmo objetivo, compreender, no sentido literal
e etimológico do termo de apreender em conjunto; apreender, num ato mental
único, coisas não experienciadas em conjunto e separadas por critérios de
espaço, tempo e lógica160: «comprehension is an individual act of seeing-things
together, and only that» (mink 1970: 55).
Neste sentido, a compreensão não se confina ao conhecimento histórico
nem a atos temporais. compreender uma conclusão lógica como resultado de
duas premissas é um ato de compreensão que não inclui qualquer traço narra-
tivo. inclui alguns pressupostos temporais, na medida em que o que tentamos
compreender são relações complexas de partes que só podem ser experimenta-
das numa sequência temporal161. mas estas marcas temporais são irrelevantes
para o caso, tratando-se apenas do reconhecimento da temporalidade de qual-
quer ação.
toda a compreensão, latu sensu, tem por finalidade, ao seu mais alto
nível, a apreensão do mundo como totalidade. este objetivo, que parece fora do

160
[...] grasping together in a single mental act things which are not experienced
together, or even capable of being so experienced, because they are separated by time, space,
or logical kind. and the ability to do this is a necessary (although not a sufficient) condition
of understanding (mink 1970: 49).
161
«[...] the complicated relationships of parts which can be experienced only seriatim»
(mink 1970: 50)
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 151

alcance de qualquer compreensão humana, está ao alcance de Deus. todavia,


ele faz todo o sentido porquanto o projeto humano é pôr-se no lugar de
Deus162. esta referência teológica não é inocente. mink tem em mente a afir-
mação de Boécio sobre o conhecimento que Deus tem do mundo como totum
simul: uma perceção única que tem copresentes os momentos sucessivos de
todo o tempo, como uma paisagem de acontecimentos.
este entendimento da compreensão como totum simul transposto para o
caso específico da configuração revela-se, obviamente, incompatível com a teo-
ria da followability, defensora da forma sequencial das histórias. em síntese,
afirma-se que ação e acontecimento, tradicionalmente representados como se
fossem produzidos numa ordem temporal, podem ser apercebidos em conjunto,
num apanhado geral, numa ordem de significação, com a consequente abolição
dos traços temporais. ricœur, ainda que encontre valor no argumento que subs-
titui o ato de “seguir” uma história pelo de “ter seguido”, questiona-se se este
não foi levado demasiado longe e até enfraquecido por esta última tese que
pretende ver no ato de compreensão configurativa uma aproximação ao totum
simul de Deus, operação que para os humanos será sempre parcial (TR i, 284).
De facto, este nível superior de compreensão configurativa pode implicar a sua
própria abolição. Para evitar esse desastre para a teoria narrativa, é necessário
limitar a ambição da compreensão de abolir o caráter sequencial do tempo sub-
jacente à vertente episódica da composição narrativa. o totum simul deve ser
visto antes como uma ideia limite – no sentido kantiano do conceito – e não
como um guia ou um objetivo.
a ricœur interessa, sobretudo, verificar a justeza da asserção de que na
compreensão de uma narrativa a ideia de sucessão temporal tende a desvane-
cer-se ou a retardar-se: «in the understanding of a narrative the thought of tem-
poral succession as such vanishes – or perhaps, one might say, remains like the
smile of the cheshire cat» (mink 1970: 56). o filósofo francês discorda dos
argumentos de mink, segundo os quais, na compreensão configurativa de uma
história que seguimos, a necessidade de referências regressivas anula a contin-
gência das referências progressivas. De acordo com este princípio, compreender
a sucessão temporal significa abarcar de uma só vez com o pensamento o
tempo nos dois sentidos; o tempo deixaria de ser como o fluxo do rio que é
preciso acompanhar, mas todo o rio visto do céu, de uma só vez. o argumento

162
«of course this is an unattainable goal, but it is significant as an ideal aim against
which partial comprehension can be judged. to put it differently, it is unattainable because
such comprehension would be divine, but significant because the human project is to take
god’s place» (ibid.).
152 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

de que na historiografia corrente a cronologia está a perder relevância e que o


uso de datas não passa de mero artifício de mnemónica163 – comprovando assim
a ausência do tempo da essência das narrativas – é perfeitamente razoável,
admite ricœur. resta saber até que ponto a superação da simples cronologia
implica a abolição de qualquer forma de temporização. De agostinho a Heideg-
ger toda a ontologia do tempo tem como objetivo extrair do tempo puramente
cronológico propriedades temporais construídas sobre a sucessão, mas irredutí-
veis, por sua vez, à simples sucessão e à cronologia.
Posto isto, mink argumenta que a compreensão está completa quando se
apreende determinada ação como resposta a um acontecimento; por exemplo,
“enviar um telegrama” seria a resposta ao acontecimento “receber uma oferta
de promoção na empresa”. assim, generalizando, conclui-se o seguinte: «the
actions and events of a story comprehended as a whole are connected by a net-
work of overlapping descriptions (mink 1970: 58). esta generalização é criti-
cada por ricœur, pois entre o ato de enviar um telegrama e o de o receber há
um termo mediador, constituído pela aceitação da oferta, o qual origina uma
mudança do estado de coisas inicial para o estado de coisas final. Para o filó-
sofo francês, a abolição de frases marcadas por tempos verbais nesta rede de
descrições imbricadas umas nas outras é o sinal de que a qualidade narrativa
da história desapareceu com o laço temporal. e, apoiando-se novamente no
cânone aristotélico, remata contra a compreensão configurativa de mink:
on peut bien dire que, dans la rétrospection, tous les incidents qui se sont produits
dans l’histoire d’œdipe peuvent être saisis ensemble dans le portrait d’œdipe.
mais ce portrait est équivalent à la “pensée” de la tragédie d’œdipe. or, la “pen-
sée”, qu’aristote dénommait dianoia, est un aspect dérivé de l’intrigue au même
titre que les caractères [TR i, 286].

em síntese, o modo compositivo da compreensão proposto por mink, em


nome da sua ambição pelo totum simul divino, tende a dissolver a sua quali-
dade temporal, pondo em risco a dialética real entre concordância e discordân-
cia, entre sucessão e configuração ou entre caráter episódico e caráter configu-
rativo, próprios da inteligibilidade narrativa. a transferência do conceito de
intriga da crítica literária para a epistemologia da história aclara a dialética do
texto narrativo obscurecida por mink.

163
«the more one comes to understand the atual relations among a number of events,
as expressed in the story or stories to which they all belong, the less one needs to remember
dates» (mink 1970: 57).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 153

iv)  Hayden White: explicação por composição da intriga

o autor de referência agora é Hayden White, um dos pensadores que mais


marcou a discussão sobre a prática histórica no último terço do séc. XX.
É também um dos mais citados por ricœur, assumindo um lugar de destaque
em La mémoire, l’histoire, l’oubli, onde o filósofo francês de novo reconhece
o valor das suas teses, mas mostra sobretudo muito cuidado e muitas reservas,
ao contestar e repudiar as suas posições relativistas, que colocam em causa a
fronteira entre história e ficção face ao revisionismo. H. White, por seu turno,
mostra-se um leitor assíduo e profundo conhecedor do pensamento de ricœur,
pelo menos até à publicação de Temps et Récit, a julgar pelo ensaio que lhe
dedicou em The content of the form164. após a publicação dos dois primeiros
volumes da trilogia Temps et Récit, mas conhecendo já o programa do terceiro,
o pensador canadiano redige um comentário à obra de ricœur, considerando-a
«magistral, [...] a mais importante síntese de teoria literária e histórica produ-
zida neste século» (1992b: 180).
apesar de manter sempre uma postura crítica – podemos mesmo dizer
desconfiada – diante das teses de White, que basicamente são as responsáveis
pela construção do conceito de representância, como forma de salvaguardar a
fronteira entre história e ficção e a certeza de que a história se dirige ao campo
do real e tem como objetivo dizer a verdade, o filósofo francês reconhece ao
pensador canadiano o mérito de ser o primeiro a associar os procedimentos pró-
prios da configuração narrativa, que ricœur designa de mimesis ii, à estrutura
narrativa da historiografia (TR i, 286). Fá-lo, na sua obra chave de 1973165,
onde se propõe fazer a análise da estrutura profunda da imaginação histórica,
a partir do estudo de quatro importantes historiadores e de quatro filósofos da
história do século XiX europeu: michelet, ranke, tocqueville, Burckhardt;
Hegel, marx, Nietzsche e croce. começa a sua dissertação com a apresentação
de uma teoria formal da obra histórica que haveria de fazer correr muita tinta.
esta resulta numa grelha de leitura, análise e identificação do estilo historiográ-

164
título original: The content of the form. Narrative discourse and historical repre-
sentation, the Johns Hopkins university Press, Baltimore/london, 1987. seguimos a tradução
espanhola: El contenido de la forma: narrativa, discurso y representación histórica, Paidos,
Barcelona/Buenos aires/mexico, 1992.
165
Metahistory: The Historical Imagination in nineteenth-century Europe, the Johns
Hopkins university Press, Baltimore and london, 1973. seguimos a tradução espanhola:
Metahistoria: La imaginación histórica en la Europa del siglo XIX, Fondo de cultura eco-
nómica, méxico, 1992.
154 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

fico das referidas figuras e da história de qualquer historiador. a despeito de a


sua teoria resultar num «formalismo demasiado sistemático para ser plenamente
convincente, a reflexão abre perspetivas iluminantes para a epistemologia da
história» (Prost 1996: 258). esta tem como ponto de partida o conceito, para
White mais evidente, de obra histórica como «uma estrutura verbal em forma
de discurso de prosa narrativa» (1992: 14). trata-se, como o próprio tem o cui-
dado de informar, de um estudo de caráter formalista, que aborda as obras his-
tóricas desses autores do ponto de vista puramente verbal166. Hayden White
constata que toda a obra histórica combina conceitos teóricos, que visam expli-
car os dados históricos que se narram, e uma estrutura narrativa com a função
de apresentar esses mesmos dados. sustém, por isso, que todas as histórias pos-
suem uma estrutura profunda de natureza poética e linguística, que serve de
paradigma pré-crítico para a interpretação da própria história. Justifica-se, pois,
o título “poética da história”, que encabeça a introdução teórica da Meta-his-
tória. estes considerandos de White partem da constatação de que as obras his-
tóricas têm uma personalidade, uma originalidade que as distingue umas das
outras. É tão difícil confundir guizot e michelet como James Hadley chase e
agatha christie. Não é apenas uma questão de estilo que distingue entre eles
quer as obras de história quer os romances policiais, mas a própria conceção,
a intriga. este facto leva o autor canadiano a interrogar-se sobre os pressupos-
tos da intriga, sobre o que preside à feitura da intriga histórica pelo historiador.
aprofundando a teoria de louis o. mink, que expusemos anteriormente,
White começa por reorganizar a relação entre história e ficção com critérios
diferentes de os de uma epistemologia que tem a objetividade e a prova como
cânones de base para a classificação dos modos de discurso. o primeiro pres-
suposto de uma “poética” do discurso histórico consiste na afirmação de que
ficção e história pertencem à mesma classe quanto à estrutura narrativa. White
pressupõe, em segundo lugar, que esta reaproximação entre história e ficção
implica, consequentemente, uma segunda entre história e literatura. o que
afirma, em última análise, é que a escrita da história é inerente à conceção e
à composição da história; não é uma operação secundária, fruto da retórica da
comunicação e, por isso, confinada ao âmbito insignificante da redação. ela é
constitutiva do modo histórico de compreensão. a história é intrinsecamente
historiografia ou, usando um termo mais provocador, ela é um artefato literário

166
«mientras leía a los clásicos del pensamiento europeo del siglo XiX me pareció evi-
dente que para considerarlos como formas representativas de la reflexión histórica hacía falta
una teoría formal de la obra histórica. esa teoría es lo que he tratado de presentar en la intro-
ducción» (White 1992: 9).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 155

(a literary artifact)167. o terceiro pressuposto consiste na afirmação de que a


fronteira traçada pelas epistemologias entre a história dos historiadores e a filo-
sofia da história deve também ela ser posta em causa, na medida em que, por
um lado, qualquer grande obra histórica expõe uma visão de conjunto do
mundo histórico e, por outro, as filosofias da história socorrem-se dos mesmos
recursos de articulação das grandes obras históricas. eis a razão pela qual
White ousa associar, na sua obra, nomes tão díspares como os referidos ante-
riormente.
estes três pressupostos exigem um deslocamento e uma reclassificação
desta problemática. a atenção exclusiva dada até agora às competências cien-
tíficas da história é considerada responsável pelo desconhecimento das estrutu-
ras que aproximam a história da ficção narrativa. a Meta-história tem como
missão específica encarar as narrativas históricas como ficções verbais, asso-
ciando-as pelo conteúdo e pela forma. esta similitude gera de imediato alguma
desconfiança em Paul ricœur: «[...] s’il est possible de reclasser ainsi l’histoire
comme artifice littéraire, sans la déclasser comme connaissance à prétention
scientifique» (TR i, 288).
este procedimento implica a transferência para a historiografia de catego-
rias importadas da crítica literária. a ironia da situação, para ricœur, está no
facto de estas categorias terem sido retiradas de autores que se opuseram a essa
colagem da história com a ficção (TR i, 288). como sabemos, aristóteles
exclui a história da teoria do mythos168. o filósofo grego não se limitou a cons-
tatar que a história era demasiado episódica para satisfazer as exigências da
Poética. ele explica por que a história é episódica: porque ela narra o que na
realidade aconteceu e não, como a poesia, o que poderia ter acontecido. o real
visado pelo historiador difere do possível visado pelo poeta na medida em que
implica particularidades que não entram na poesia. além do mais, o poeta,
sendo o autor da sua intriga, tem legitimidade para se separar do real contin-
gente e elevar-se ao domínio do possível verosímil. a transferência da história
para o círculo da poética não é, pois, um ato anódino, acarretando consequên-
cias para o tratamento da contingência do real.

167
um dos artigos mais provocadores de White é justamente The Historical Text as
Literary Artifact, publicado inicialmente em Clio 3, 1974, e incluído na compilação de 1978:
The Tropics of Discourse, 81-100.
168
«o historiador e o poeta não diferem pelo facto de um escrever em prosa e o outro
em verso [...]. Diferem é pelo facto de um relatar o que aconteceu e o outro o que poderia
acontecer. Portanto, a poesia é mais filosófica e tem um caráter mais elevado do que a His-
tória. É que a poesia expressa o universal, a História o particular» (aristóteles, Poética:
1451b 1-5 [2004]).
156 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

esta transgressão do modelo aristotélico também encontra oposições na


crítica literária da qual a obra de H. White está mais próxima. Para críticos lite-
rários como auerbach, Wayne Booth, scholes e Kellogg, o imaginário define-
-se por contraste com o real e o modelo próprio da história continua a ser o
do realismo da representação. Northrop Frye, autor a quem White vai buscar o
maior número de conceitos, é um dos defensores mais acérrimos desta fronteira.
segundo ele, a ficção concerne o possível, ao passo que a história diz respeito
ao real. retomando aristóteles, Frye diz que o poeta opera a partir de uma
forma de unificação, o historiador opera em direção da mesma. assim sendo,
a Meta-história de White tem de defrontar dois obstáculos principais: o dos his-
toriadores que defendem que o corte epistemológico entre a história e a narra-
tiva tradicional e mítica afasta radicalmente a primeira do campo da ficção; e
o dos críticos literários para quem a distinção entre imaginário e real é inques-
tionável.
Paul ricœur opta por dividir a teoria meta-histórica de White em duas
partes, separando a teoria tropológica (metáfora, metonímia, sinédoque e ironia)
– que reserva para a quarta parte da obra (TR iii, 272-283), onde se equaciona
a prefiguração tropológica e a representância do real passado em história169,
mais afim da mimesis iii – da reflexão relacionada com os mecanismos de con-
figuração ou mimesis ii.
White distingue story de crónica porque story, sendo já um modo de
organização em função de motivos ou de temas, é capaz de produzir algum
“efeito explicativo”. os elementos do campo histórico, diz White, começam por
se organizar numa crónica, mediante a ordenação dos factos por ordem crono-
lógica de ocorrência, sem preocupação de princípio, meio e fim170. Story, por
sua vez, constitui-se a partir da seleção e arranjo dos episódios da crónica
como componentes de um processo de acontecimentos com princípio, meio e

169
White postula um nível profundo de consciência, através do qual o historiador rea-
liza um ato essencialmente poético, o da prefiguração do campo histórico, prefiguração esta
associada a quatro tropos literários: metáfora, metonímia, sinédoque e ironia. a teoria da pre-
figuração tropológica, que determina a forma como o historiador apreende os factos do campo
histórico, fica fora desta primeira incursão de ricœur pela obra de White por não contribuir
para o efeito explicativo da composição narrativa, objetivo primordial desta análise.
170
«las crónicas, hablando estrictamente, son abiertas por los extremos. en principio
no tienen inauguraciones, simplemente “empiezan” cuando el cronista comienza a registrar
hechos. Y no tienen culminación ni resolución, pueden proseguir indefinidamente. los relatos,
en cambio, tienen una forma discernible (aun cuando esa forma sea una imagen de un estado
de caos) que distingue los hechos contenidos en ellos de los demás acontecimientos que pue-
den aparecer en una crónica de los años cubiertos por su desarrollo» (White 1992: 17).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 157

fim171. Por outras palavras, a transformação da crónica em story realiza-se atra-


vés da codificação de alguns factos da crónica em termos de motivos inaugu-
rais, outros em termos de motivos finais e outros em termos de motivos de
transição. Factos que até agora eram meros acontecimentos passam a ganhar
valor explicativo e a contribuir como motivos para o desenrolar de uma
intriga172. uma simples crónica de episódios dá lugar a um processo diacrónico
completo, sobre o qual podemos fazer uma série de perguntas, como se estivés-
semos perante uma estrutura sincrónica de relações. assim entendida, a obra
histórica faz a mediação entre um campo real da história e um público.
o campo histórico é assim o limite inferior, pré-conceptual. a crónica, como
primeira recolha pouco criteriosa de dados por ordem cronológica, está aberta
aos processos de seleção e de ordenação do historiador que quer construir uma
narrativa (story). estes processos construtivos são dirigidos por perguntas do
género: “que se passou a seguir?”, “como sucedeu isso?”, “porque é que as coi-
sas aconteceram deste modo e não doutro?”, “como é que tudo terminou?”, etc.
são estas perguntas que determinam as técnicas narrativas que o historiador
deve utilizar na construção da sua story. Não obstante, tais perguntas que esta-
belecem conexões entre elementos de uma história sequível (followable) devem
distinguir-se das perguntas que instituem outras formas narrativas de explicar,
pois a história combina outros modos de explicação. são perguntas como “que
significa tudo isso?”, “qual o sentido de tudo isso?”, as quais exigem um juízo
sinóptico com outros enunciados passíveis de se ter extraído da crónica e ape-
lam a outros tipos de explicação: 1) por composição da intriga ou emplotment;
2) por argumentação; 3) por implicação ideológica173.

171
los relatos históricos presentan las secuencias de sucesos que llevan de las inau-
guraciones a las terminaciones (provisionales) de procesos sociales y culturales de un modo
como no se espera que lo hagan las crónicas (White 1992: 17).
172
«en la crónica el hecho simplemente está “ahí” como elemento de una serie; no
“funciona” como elemento de un relato. el historiador ordena los hechos de la crónica en una
jerarquía de significación asignando las diferentes funciones como elementos del relato de
modo de revelar la coherencia formal de todo un conjunto de acontecimientos, considerado
como un proceso comprensible con un principio, un medio y un fin discernibles» (White
1992: 18).
173
«estas preguntas tienen que ver con la estructura del conjunto completo de hechos
considerado como un relato completo y piden un juicio sinóptico de la relación entre deter-
minado relato y otros relatos que podrían ser “hallados”, “identificados” o “descubiertos” en
la crónica. se pueden responder de varias maneras. llamo a esas maneras 1) explicación por
la trama, 2) explicación por argumentación, y 3) explicación por implicación ideológica»
(White 1992: 18).
158 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

a explicação através da composição da intriga (emplotment) tem um


efeito explicativo diverso do da história narrada (story), uma vez que explica
não os acontecimentos da história narrada, mas a própria história, pela identi-
ficação do paradigma literário a que pertence174. De facto, o fio da história nar-
rada permite identificar uma configuração única, ao passo que a composição
narrativa (emplotment) permite o reconhecimento de uma classe tradicional de
configurações175. Permite a identificação do tipo (kind) ou da categoria de con-
figuração ao qual pertence a história narrada (story). a composição da intriga,
segundo H. White, tem uma função de categorização, ou seja, a sua capacidade
explicativa traduz-se num guia para a identificação progressiva da classe de
composição da intriga. ao permitir classificar o tipo de história que é narrada,
deixa encontrar o sentido de uma história, por isso é que um historiador deve
necessariamente escrever a sua história de acordo com um determinado arqué-
tipo. White, na linha de Northrop Frye176, identifica quatro modos diferentes de
compor intrigas: o romance, a tragédia, a comédia e a sátira. Pode haver outros
e é possível que alguns sejam uma mistura; o que importa ressalvar é que um
historiador tem necessariamente de compor todo o conjunto de histórias narra-
das (story’s) que formam a sua narrativa (plot) de acordo com determinado
arquétipo – «lo importante es que toda historia, hasta la más “sincrónica” o
“estructural”, está tramada de alguna manera» (White 1992: 19).
estas quatro formas arquetípicas de composição da intriga proporcionam-
-nos um instrumento de caracterização dos diferentes tipos de efeitos explica-
tivos que um historiador pode tentar alcançar ao nível da composição da nar-
rativa. michelet deu a todas as suas histórias uma coloração de romance, ranke

174
«se llama explicación por la trama a la que da el “significado” de un relato
mediante la identificación del tipo de relato que se ha narrado. si en el curso de la narración
de su relato el historiador le da la estructura de trama de una tragedia, lo ha “explicado” de
una manera; si lo ha estructurado como comedia, lo ha “explicado” de otra. el tramado es
la manera en que una secuencia de sucesos organizada en un relato se revela de manera gra-
dual como un relato de cierto tipo particular. [...] un historiador determinado está obligado
a tramar todo el conjunto de relatos que forman su narrativa en una forma de relato general
o arquetípica» (White 1992: 18).
175
White distingue dois modos de explicação: a explicação da história e a explicação
do acontecimento. ricœur explica esta separação com a intenção de White de escapar aos
argumentos antinarrativistas dos partidários do modelo de Hempel: deixa para eles a organi-
zação da história em termos de causas e de leis e tira-lhes a explicação categorial ou arque-
típica própria da composição da intriga (TR i, 292, 293).
176
Northrop Frye, The Anatomy of Criticism: Four Essays, Princeton, 1957.
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 159

enveredou pela forma cómica, tocqueville usou o modo trágico e Burckhardt


empregou a sátira. No tipo romanesco, conta-se a história de um herói que
acaba por triunfar e fazer triunfar o bem sobre o mal. o tipo cómico caracte-
riza as histórias que acabam bem; o seu desenlace feliz reconcilia o homem
com o homem, com o mundo e com a sociedade. No tipo trágico, não há vitó-
ria nem herói, nem reconciliação geral. Não quer dizer que o ambiente da nar-
rativa seja sombrio, trágico é tomado aqui no seu sentido literário, em que o
desenlace da história é anunciado desde o início e em que a história tem como
objetivo revelar as forças em conflito. o tipo satírico mostra o homem cativo
do universo e não seu mestre; o leitor fica frustrado, pois a história e a expli-
cação ficam em suspenso.
Na Meta-história, a explicação pela intriga (emplotment) não é a única
capaz de dar algum sentido ao ocorrido, a explicação por argumentação e a
explicação por implicação ideológica também respondem de forma distinta às
perguntas do sentido e do significado do acontecido. o autor distingue quatro
tipos de argumentação formal: formista, organicista, mecanicista e contextua-
lista. consagra algumas páginas da introdução da sua obra (1992: 24-31) à
caracterização de cada um deles, ilustrando-os com grandes nomes da historio-
grafia e da filosofia da história do século XiX. a argumentação formista põe
a tónica sobre o caráter único dos diferentes atores e o que os diferencia; pri-
vilegia a cor, o caráter vivo e diversificado do campo histórico. michelet e a
história romântica, de um modo geral, derivam deste tipo de argumentação. a
argumentação de tipo organicista é mais sintética e integradora; vê os indiví-
duos agregarem-se para formarem todos; a história torna-se a consolidação ou
a cristalização de um conjunto inicialmente disperso; é orientada assim para um
determinado fim. a argumentação mecanicista é a mais redutora: os factos
manifestam mecanicismos, obedecem a causas, ou seja, a leis; os dados eviden-
ciam as regularidades. marx encarna este tipo de argumentação, mas H. White
também o encontra em tocqueville, onde os mecanismos são de natureza dife-
rente e têm que ver antes com os princípios das instituições. Por fim, a argu-
mentação contextualista procura relacionar cada elemento com todos os outros
e mostrar a sua interdependência; ela está atenta ao espírito da época.
ricœur (TR i, 293) observa que a fronteira entre intriga (plot) e argumen-
tação (argument) não é muito clara. o argumento designa tudo em torno do qual
a história gira, no fundo, a tese ou o tema da narrativa. aristóteles incluía-o
na narrativa, dependente da necessidade e da probabilidade. a historiografia, ao
invés de outros géneros literários, exige esta distinção em nome dos efeitos
explicativos. Precisamente, porque a explicação através de argumentos pode ser
diferenciada da explicação através da composição da intriga, os lógicos inven-
160 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

taram o modelo nomológico177. o historiador argumenta de modo formal, explí-


cito, discursivo. o que os partidários do modelo nomológico não viram é que
o campo da argumentação é consideravelmente mais vasto que o das leis gerais
importadas das ciências exatas, já constituídas fora do campo histórico. o his-
toriador tem um modo próprio de argumentar, que pertence ainda ao domínio
do narrativo. cada modo de argumentar exprime ao mesmo tempo um pressu-
posto de caráter meta-histórico sobre a própria natureza do campo histórico e
sobre o que será expectável da explicação histórica178. White identifica quatro
paradigmas de descrição e explicação da realidade histórica179.
cada um destes modelos de argumentação representa uma forma típica de
generalizar acerca do campo histórico, evidente na forma como descrevem e
interpretam os objetos, agentes e ações desse mesmo campo; porém, uma visão
sinóptica destes modelos explicativos da história dá conta de uma discrimina-
tiva marca ideológica que os orienta. cada um deles pretende ter discernido
algum tipo de coerência formal no registo histórico, dando origem a uma teoria
sobre a natureza do mundo histórico e do próprio conhecimento histórico, que
têm implicações ideológicas na compreensão do próprio presente.
Devemos, pois, ter em conta os tipos de implicação ideológica, quer dizer,
as atitudes gerais dos historiadores face à sociedade. este tipo de explicação
distingue-se da anterior pela tomada de posição ética, característica de uma
determinada maneira de escrever história. Neste caso, o posicionamento parti-
cular do historiador não incide, como a argumentação formal, sobre o campo
histórico, mas sobre a natureza da consciência histórica e sobre as implicações
que podem derivar do estudo de acontecimentos passados para a compreensão
dos factos presentes180. com base na obra Ideologia e Utopia, de Karl man-
nheim, o autor postula quatro posições ideológicas básicas: o anarquismo, o

177
«Pero aquí distingo entre la trama de los hechos de una historia considerados como
elementos de un relato y la caracterización de esos hechos como elementos de una matriz de
relaciones causales que se presume existieron en provincias específicas del tiempo y del espa-
cio» (White 1992: 23).
178
«lo que está en juego aquí, por lo menos en un nivel de conceptualización, son
diferentes nociones de la naturaleza de la realidad histórica y de la forma apropiada que un
relato histórico, considerado como una argumentación formal, debe adotar» (White 1992: 24).
179
«siguiendo el análisis de stephen c. Pepper en su World Hypoteses, he distinguido
cuatro paradigmas de la forma que puede adotar una explicación histórica, considerada como
argumento discursivo: formista, organicista, mecanicista y contextualista» (White 1992: 24).
180
«con el término “ideología” quiero decir un conjunto de prescripciones para tomar
posición en el mundo presente de la praxis social y actuar sobre él (ya sea para cambiar el
mundo o para mantenerlo en su estado atual) (White 1992: 32).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 161

conservadorismo, o radicalismo e o liberalismo. estes termos são empregues


não tanto em sentido político, mas antes para designar preferências ideológicas
gerais. salvaguarde-se também que esta marca ideológica que o historiador con-
fere à forma como compõe a sua intriga ou a explica por argumentação formal
não tem de ser forçosamente consciente. Porém, ela existe e há de corresponder
a uma das quatro posições ideológicas referidas, porque, diz White: «así como
cada ideología va acompañada por una idea específica de la historia y sus pro-
cesos, sostengo también que cada idea de la historia va acompañada por impli-
caciones ideológicas específicamente determinables» (1992: 34)181.
os liberais refletem sobre o ajustamento dos indivíduos à sociedade no
seio de uma relação estrutural estável por intermédio das instituições; estão
direcionados para o futuro, mas reportam a utopia a um horizonte o suficien-
temente longínquo para não ter de se realizar agora. tocqueville é a figura do
liberalismo. os conservadores pensam a evolução a partir da analogia com o
mundo natural; estão voltados para o passado e centram-se na elaboração pro-
gressiva da sociedade presente. os radicais e os anarquistas são propensos a
aceitar ou a querer mudanças drásticas, mas os primeiros julgam iminente a
realização da utopia, ao passo que os segundos a veem num passado longínquo,
ainda que ela se possa realizar novamente a qualquer momento. Neste sentido,
michelet seria para White um anarquista, não que ele sonhe com a desordem
revolucionária, mas porque nenhuma sociedade vindoura é suscetível de poder
realizar o seu ideal.
ricœur reconhece que o benefício maior que se pode extrair desta distin-
ção entre os três níveis de que se socorrem os historiadores para conseguir um
efeito explicativo nas suas narrações é a construção de uma teoria do estilo his-
toriográfico, entendido como uma combinação particular dos modos de compo-
sição, de argumentação e de implicação ideológica (TR i, 297). No entanto, a
combinação destes três modos que definem um estilo historiográfico não pode
ser feita de forma indiscriminada numa determinada obra. uma intriga cómica
não é compatível com uma argumentação mecanicista, do mesmo modo que
uma ideologia radical é inconciliável com uma intriga satírica. Há afinidades de
eleição entre os vários modos, que se baseiam em homologias estruturais dis-
cerníveis entre os mesmos. White propõe uma representação gráfica das afini-

181
ricœur salienta que esta dimensão da compreensão histórica é fortemente subli-
nhada, em França, por marrou e aron. relembremos que estes autores defendiam, justamente,
a implicação do historiador no fazer da história, a consideração dos valores, e o laço entre
a história e a ação no mundo presente.
162 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

dades que regulam a sua própria leitura dos quatro grandes historiadores e dos
quatro grandes filósofos da história aos quais é consagrada a sua obra (cf.
1992: 39). todavia, estas afinidades não devem ser consideradas como combi-
nações necessárias dos modos para um determinado historiador. ao invés, a
tensão dialética que caracteriza a obra de qualquer historiador importante
advém geralmente do esforço em conciliar um modo de composição com um
modo de argumentação ou de implicação ideológica que não se coaduna bem
com ele. No entanto, esta tensão dialética deve evoluir dentro do contexto de
uma visão coerente do campo histórico completo182. só assim o estilo historio-
gráfico particular do historiador ganha a consistência e a coerência que definem
os seus atributos estilísticos distintivos. a base dessa coerência e dessa consis-
tência é, de acordo com H. White, de natureza poética e especificamente lin-
guística (1992: 39).
ricœur chama a atenção para o facto de esta tripla tipologia que carac-
teriza cada um dos modos e sobre a qual assenta a teoria do estilo historiográ-
fico não reivindicar nenhuma autoridade lógica. No caso particular dos quatro
modos de composição da intriga (romântico, trágico, cómico e satírico), são
produtos de uma tradição de escrita que lhes outorgou a configuração que o
historiador põe em prática ao escrever a sua obra. este aspeto da tradição é o
mais importante, porque o historiador, ao escrever, dirige-se a um público sus-
cetível de reconhecer as formas tradicionais da arte de narrar. Por conseguinte,
as estruturas não são regras inertes, não são classes resultantes de uma taxino-
mia a priori, são formas de uma herança cultural. se se pode dizer que
nenhum facto em si é à partida trágico ou cómico e que é a forma como o his-
toriador o codifica que o faz parecer trágico ou cómico, é porque a arbitrarie-
dade da codificação tem limites, impostos não pelos próprios factos mas pela
expetativa dos leitores que deverão reconhecer, através dos códigos, as figuras
da tradição literária. Diz H. White que a codificação dos factos em função de
uma determinada estrutura de intriga é um dos processos de que dispõe uma

182
P. ricœur vê nesta tensão dialética o germe da dialética concordância discordância,
gerada quer pela oposição entre os três modos que, tomados em conjunto, conferem às estru-
turas narrativas uma função explicativa quer pela conciliação de opostos nas várias formas de
compor intrigas, verificável não apenas entre vários escritores, mas mesmo no seio de uma
grande obra de história, como no caso da obra de Hegel (TR i, 299). o filósofo francês
comenta ainda, a propósito da Meta-história de H. White, que a noção de estrutura narrativa
é muito mais abrangente neste autor do que em qualquer outro autor narrativista e que a
noção de intriga ganha uma precisão pouco comum graças à sua posição de contraste entre
a história narrada e o argumento (TR i, 299).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 163

cultura para atribuir sentido a um passado pessoal ou público183. Daí o comen-


tário de ricœur: «l’encodage est ainsi réglé plus par les effets de sens attendus
que par le matériau à encoder» (TR i, 300).
o efeito de sentido conseguido pela codificação dos factos numa narrativa
consiste em tornar familiar o não-familiar184. a codificação contribui na medida
em que o historiador partilha com o seu público a inteligência das formas que
devem tomar as situações humanas significativas, em virtude da participação do
historiador no processo de formação do sentido específico de determinada
herança cultural que o identifica enquanto indivíduo185. Deste modo, através do
seu caráter de tradicionalidade, é restituído à composição da intriga o seu cará-
ter dinâmico. Emplotment não é um mero nível de explicação entre outros, é
o nível que faz a transição entre a narração e a explicação. a explicação pela
composição da intriga – colocada entre o fio da história (story-line), que se
desdobra em crónica e cadeia de motivos, e a argumentação, desdobrável em
argumentos formais e implicações ideológicas – exerce a função dinâmica de
pivô: «l’explication par mise en intrigue (emplotment) prend chez H. White un
sens strict et limitatif, qui permet de dire à la fois qu’elle n’est pas le tout de
la structure narrative et pourtant qu’elle en est le pivot» (TR i, 295). esta posi-
ção da intriga como operação que dinamiza todos os níveis de articulação nar-
rativa reforça a definição de intriga como síntese do heterogéneo ou como con-
cordância discordante, síntese de narração e explicação, concordância da
narrativa com a ciência186.

183
«[...] the encodation of events in terms of such plot structures is one of the ways
that a culture has of making sense of both personal and public pasts» (The Historical Text
as Literary Artifact, in White 1985: 85).
184
«the effect of such encodations is to familiarize the unfamiliar» (ibid.: 86).
185
«the historian shares with his audience general notions of the forms that significant
human situations must take by virtue of his participation in the specific processes of sense-
making which identify him as a member of one cultural endowment rather than other» (ibid.).
186
«ainsi est restitué, à travers son caractère de traditionalité, le caractère dynamique
de la mise en intrigue, même si son caractère générique est seul considéré. au reste, ce trait
se trouve compensé par la continuité que la notion de style historiographique rétablit entre
chronique, chaîne de motifs, intrigue, argument, implication idéologique. c’est pourquoi il est
permis – un peu contre H. White, mais beaucoup grâce à lui – de tenir la mise en intrigue
pour l’opération qui dynamise tous les niveaux d’articulation narrative. la mise en intrigue
est beaucoup plus qu’un niveau parmi d’autres: c’est elle qui fait la transition entre raconter
et expliquer» (ricœur, TR i, 300-301).
164 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

v)  Paul Veyne: a escrita da história

ricœur justifica o regresso à historiografia francesa, particularmente à


obra de Paul Veyne (Comment on écrit l’histoire, editada pela primeira vez em
1971187), singular no panorama historiográfico francês, dizendo que ela tem a
vantagem de «conjugar uma diminuição científica da história com uma apologia
da noção de intriga» (TR i, 301). embora não provenha da corrente narrativista
anglo-saxã e mantenha com o positivismo lógico uma ligação que o narrati-
vismo quebrou, ricœur situa a obra de Paul Veyne na confluência dessas duas
correntes de pensamento. ainda segundo o filósofo francês, esta pode ser lida
como o hábil cruzamento de duas ideias principais: a história nada mais é do
que uma narrativa verídica e a história é uma ciência demasiado sublunar para
ser explicada através de leis. trata-se, pois, de um justo equilíbrio entre o bai-
xar da pretensão explicativa e o elevar da capacidade narrativa.
a elevação da capacidade narrativa faz-se através do vínculo com a
intriga, afirmada insistentemente ao longo da obra: «a história é uma noção
livresca e não existencial; ela é a organização pela inteligência de dados que
se reportam a uma temporalidade que não é a do Dasein» (Veyne 1983: 94);
«a história é uma atividade intelectual que, através das formas literárias con-
sagradas, serve fins de simples curiosidade» (ibid.: 103).
Paul Veyne quer deixar bem claro que o conhecimento do passado não é
um dado a priori ou intuitivo, mas uma atividade que exige reconstrução. a
consciência espontânea não possui a noção de história, esta exige uma elabo-
ração intelectual, tudo o que a consciência sabe é que o tempo passa, logo, o
tempo do eu não se confunde com o da história.
ao optar pelo termo narrativa em vez de reconstrução, usado por aron e
marrou, Veyne pretende associar a compreensão histórica à atividade de com-
posição narrativa, indo assim mais longe na descrição do objeto histórico. o
acontecimento, enquanto ocorrência individual e não repetível, não é objeto da
história nem da física, pois não há nenhuma diferença radical entre os factos
estudados pela história e os estudados pela física: todos são individualizados
num espaço e num tempo e, logo, passíveis de serem tratados cientificamente.
Não se pode opor história e ciência com base no argumento de que uma estuda
o singular e outra o universal, quer porque os objetos das ciências físicas não
são menos individualizados que os da história, quer porque o conhecimento de

187
seguimos a tradução portuguesa: Paul Veyne, Como se escreve a história, edições
70, lisboa, 1983.
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 165

uma individualidade histórica supõe o seu relacionamento com o universal. os


factos não se repetem, o que se repete são as abstrações sem data nem local
que o físico deles extrai sob a forma de leis. Posto isto, conclui que «a ver-
dadeira diferença não se encontra entre factos históricos e factos físicos, mas
sim entre historiografia e ciência física. a física é um corpo de leis e a história
é um corpo de factos» (Veyne 1983; 21).
a física não se ocupa de factos descritos e explicados, ela procura as leis
que explicam os factos; ao passo que a história integra factos em intrigas. ade-
mais, os factos do passado só ganham valor histórico nas intrigas, só «aí
tomam a importância relativa que lhe impõe a lógica humana do drama» (ibid.:
71)188. toda a espécie de factos é digna de ser estudada pelo historiador, não
há razão para considerar uns mais dignos que outros. «Dado que qualquer
acontecimento é tão histórico como qualquer outro, podemos cortar o campo
acontecimental com toda a liberdade» (ibid.: 84), não se justificando, de acordo
com o autor, as divisões segundo o tempo e o espaço, como por exemplo: “his-
tória do século XVi” ou “história de França”. além disso, a história é um
conhecimento cheio de lacunas, pois nenhuma narrativa exaure tudo o que
aconteceu em determinado período ou local, por outras palavras, a história não
é a reconstituição integral do passado. Há factos ocorridos que não deixaram
vestígios para a posteridade. a história só conta o que é possível saber sobre
determinado acontecimento. os documentos não dizem tudo, também eles são
lacunares. mas o campo histórico é completamente indeterminado; a única con-
dição necessária é a veracidade dos factos.
ao unir o acontecimento à intriga, Paul Veyne desvaloriza a polémica
levantada pela escola dos annales entre événementiel e non-événementiel. tanto
a longa como a curta duração são fatuais (événementielles). a única diferença
está na distinção entre aquilo que já foi alvo das narrativas do historiador
(o factual) e aquela parte do campo histórico que nunca foi explorada (o não-
-factual)189.
os factos não existem isoladamente, mas apenas reunidos ou agenciados
numa intriga, que é «uma mistura muito humana e muito pouco “científica” de

188
ao afirmar que um facto histórico não é só o que acontece, mas o que pode ser
contado ou o que já foi contado em crónicas, P. Veyne aproxima-se dos narrativistas ingleses
que temos vindo a estudar.
189
«[...] o não-acontecimental são os acontecimentos ainda não saudados como tais:
história dos solos, das mentalidades, da loucura ou da procura de segurança através dos tem-
pos. chamaremos portanto não-acontecimental à historicidade da qual não temos consciência
enquanto tal» (Veyne 1983: 32).
166 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

causas materiais, de fins e acasos, numa palavra, uma fatia de vida, que o his-
toriador recorta a seu bel-prazer e onde os factos têm as suas ligações objetivas
e a sua importância relativa» (ibid.: 48).
Não é obrigatório que esta intriga se organize de acordo com uma ordem
cronológica. ricœur reconhece que esta definição de intriga como combinação
de factos díspares está próxima da sua noção de síntese do heterogéneo190.
mesmo a história quantitativa que, preterindo as sequências cronológicas, opta
por séries de itens, precisa da intriga, o que faz com que pertença ao campo
da história. ao associar a história quantitativa à intriga, através do entrecruza-
mento de séries, o autor estende a noção de intriga até ao ponto em que a
dimensão temporal perde toda a importância. a noção de intriga de P. Veyne,
tal como a de aristóteles, acaba por ignorar a dimensão temporal, apesar de
conceberem ambos a intriga com princípio, meio e fim. a acronicidade em
aristóteles justificava-se pelo caráter universal que defendia para a Poética; em
Paul Veyne a razão é idêntica, expressa num aparente paradoxo entre individual
e específico.
Depois de negar que a história é uma relação de valores, o autor francês
afirma que o objetivo da história não é o individual mas o específico. com isto
o filósofo quer dizer que a história procura compreender os acontecimentos,
isto é, encontrar neles uma espécie de generalidade ou mais precisamente de
especificidade. específico significa assim, ao mesmo tempo, “geral” e “particu-
lar”. esta passagem da singularidade individual à especificidade equivale à pas-
sagem ao indivíduo como inteligível, já que o específico é a individualidade
compreensível:
a história propõe-se descrever as civilizações do passado e não salvar a memória
dos indivíduos; ela não é uma imensa recolha de biografias. [...] ela não se ocupa
dos indivíduos, mas do que eles têm de específico, pela simples razão de que,
como se verá, não há nada a dizer da singularidade individual [...] Que o indiví-
duo seja personagem principal da história, ou figurante entre milhões de outros, só
conta historicamente pela sua especificidade [Veyne 1983: 75].

em suma, a história é a descrição do que é específico, do que é com-


preensível, nos acontecimentos humanos. Para que um indivíduo seja compreen-
dido é preciso retirar-lhe a singularidade e desmembrá-lo em intrigas, afastando
as verdades universais, porque o conhecimento é diferença. É digno de memó-
ria o que é coletivo sem ser universal, o que é específico sem ser individual191;

190
«À mon avis, cette définition est tout à fait compatible avec la notion de synthèse
de l’hétérogène proposée dans notre première partie» (ricœur, TR i, 303)
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 167

no fundo, o que é representativo, o que mantém uma relação de continuidade


ou contribui para a história de uma espécie, de uma tradição, de um grupo, de
um estilo, de um comportamento. só o que é singular ou particular é incom-
preensível, pois querem que Dupond não seja Dupont e que os indivíduos exis-
tam um por um. saber da existência de um indivíduo singular com o nome de
georges Pompidou não interessa à história, pois, de acordo com aristóteles,
não podemos dizer o que ele fez e o que lhe aconteceu, mas, se o podemos
dizer, é mesmo a partir daí que nos elevamos à especificidade.
esta tese liga-se às da descrição por itens e cruzamento de séries. o pri-
meiro cuidado do historiador é apagar a singularidade de cada indivíduo de um
determinado grupo para o reagrupar de acordo com itens (nível de vida, hábitos
matrimoniais); em vez de uma justaposição de biografias, obtemos uma justa-
posição de itens, cujo conjunto constitui a vida desse grupo de indivíduos em
estudo. o indivíduo é assim transformado numa encruzilhada de séries de itens;
na condição de que um conjunto de itens seja ainda uma intriga.

A diminuição da pretensão explicativa parte da negação do método histó-


rico. a história é basicamente uma questão de entendimento; as dificuldades por
ela apresentadas não passam de pormenores: «ela não tem método, o que quer
dizer que o seu método é inato: para compreender o passado, basta olhá-lo com
os mesmos olhos que nos servem para compreender o mundo que nos rodeia
ou a vida de um povo estranho» (ibid.: 135).
compreendemos de forma inata o mundo que nos rodeia e o passado por-
que existem neles três espécies de causas que reconhecemos desde que abrimos
os olhos: a natureza das coisas, a liberdade humana e o acaso. estas são, de
acordo com os peripatéticos, as três espécies de causas eficientes que governam
o mundo vivido e sublunar; são as três espécies de causas motrizes da história
universal.
esta ausência de método significa ausência de regra para reunir em intriga
os factos. o campo histórico é indeterminado e imensas são as possibilidades
de abordagem e de reconstrução. a arte de reconstrução dos acontecimentos
históricos nasceu com o próprio género e adaptou-se às suas transformações ao
longo dos séculos. a única lógica compatível com a noção de intriga é a lógica
da probabilidade, que governa a região sublunar, tomando de aristóteles os

191
«É histórico o que não é universal e o que não é singular. Para que isso não seja
universal, basta que haja nisso diferença; para que isso não seja singular, basta que seja espe-
cífico, que seja compreendido, que remeta para uma intriga» (Veyne 1983: 78).
168 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

conceitos. Para este filósofo e também para os da academia, o mundo dividia-


-se em duas regiões bem distintas, a terra e o céu. a região celeste ou supra-
lunar é a do determinismo, da lei, da ciência, porque os astros não nascem, não
mudam, não morrem e o seu movimento apresenta uma regularidade constante,
perfeita. Já o nosso mundo sublunar é dominado pelo devir e tudo aí é acon-
tecimento. Deste devir não pode haver ciência fixa ou exata, pois as leis são
apenas prováveis e é preciso contar com as contingências. Neste mundo, «o
homem é livre, o acaso existe, os acontecimentos têm causas cujo efeito per-
manece duvidoso, o futuro é incerto e o devir é contingente» (ibid.: 43).
Para melhor perceber esta oposição aristotélica entre celeste e sublunar
pode estabelecer-se um paralelo com a oposição que normalmente se estabelece
entre as ciências físicas e as ciências humanas, convictos de que o homem não
pode ser objeto de ciência e os acontecimentos não são coisas. a conceção aris-
totélica, acredita P. Veyne, é o instrumento mais cómodo para descrever a his-
tória tal como ela é e como será enquanto se puder chamar história, isto porque
«no mundo sublunar, cada um reconhecerá o mundo onde vivemos e agimos,
o mundo que os nossos olhos veem e que é descrito nos romances, nos dramas
e livros de história, por oposição ao céu das abstrações onde reinam as ciências
físicas e humanas» (ibid.).
a história não é uma ciência humana, pois não pode sair do sublunar,
substituindo o acaso e a liberdade – que a ciência repudia – pelo determinismo.
sendo a probabilidade uma característica da própria intriga, não se pode
fazer a distinção entre narrativa, compreensão e explicação. a história não ultra-
passa um nível muito básico de explicação «e o que chamamos explicação não
é mais do que o modo que a narração tem de se organizar numa intriga com-
preensível» (ibid.: 115).
a explicação, entendida no seu sentido forte de consignação de um facto
a uma lei ou de uma teoria a uma teoria mais geral, como fazem as ciências
ou a filosofia, é inapropriada para a história. À história convém uma explicação
no seu sentido fraco e familiar, isto é, a que é inerente ao discurso compreen-
sível do quotidiano, que usamos quando tentamos, simplesmente, explicar a
alguém algo que aconteceu. Nesta segunda aceção do termo, qualquer página de
história é explicativa, «a partir do momento em que ela não se reduz a uma
simples algaraviada ou a uma lista cronológica e que tem algum sentido para
o leitor» (ibid.: 116).
conclui-se que não há explicação histórica no sentido científico do termo,
apenas no seu sentido familiar, que é o que decorre da compreensão quer de
um livro de história quer de um romance ou de uma notícia. «Dito de outro
modo, explicar, da parte dum historiador, quer dizer “mostrar o desenvolvi-
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 169

mento da intriga, fazer compreendê-la”. tal é a explicação: toda sublunar e


nada científica; nós reservar-lhe-emos o nome de compreensão» (ibid.).

a indistinção entre compreensão e explicação sublunar anula o problema


teorizado por raymond aron da relação entre compreensão e explicação. em
suma:
a história não explica, no sentido em que ela não pode deduzir e prever (só o
pode um sistema hipotético-dedutivo); as suas explicações não são o reenvio para
um princípio que tornaria o acontecimento inteligível, elas são o sentido que o
historiador empresta à narrativa. [...] a explicação da revolução [Francesa] é o
resumo dela [a ascensão da burguesia] e nada mais [Veyne 1983: 118].

Do mesmo modo, a causalidade histórica difere da causalidade científica,


pois a causa histórica é independente de uma lei. em história, as causas são os
acontecimentos que antecedem determinado acontecimento que se procura expli-
car, são, nas palavras do próprio autor, «os diversos episódios da intriga» (ibid.:
119). «o historiador não encadeia as causas cujo concurso produziria o efeito,
o historiador desenvolve uma narrativa cujos episódios se sucedem e na qual os
atores e fatores estimulam os seus atos» (ibid.: 120). seria artificial recortar
causas discretas de uma narrativa histórica, uma vez que «essa narrativa é logo
à primeira vista causal, compreensível; simplesmente a compreensão que pro-
cura é mais ou menos aprofundada» (ibid.: 122).
Por conseguinte, procurar as causas é narrar um facto de forma mais pro-
funda, é fazer emergir os aspetos não-fatuais. explicar mais resume-se, pois, a
contar melhor192. o progresso da história não consiste em passar da narração à
explicação, uma vez que toda a narração é já explicativa, mas levar a narração
mais longe, ao não-factual. se a explicação parece ir mais longe do que a com-
preensão imediata é porque ela pode explicitar os fatores da narrativa de acordo
com as três linhas do acaso, da causa material e da liberdade, que constituem
o mínimo facto histórico, se ele for humano193. assim sendo, a história não se

192
«expliquer plus, c’est raconter mieux, et de toute manière on ne peut pas raconter
sans expliquer» (Veyne 1971: 132) ; «explicar mais é contar melhor, e de qualquer modo não
se pode contar sem explicar» (Veyne 1983: 122).
193
«[...] a explicação histórica leva mais ou menos longe a explicação dos fatores; por
outro lado, neste mundo sublunar, estes fatores são de três espécies. um é o acaso, a que
chamamos também causas superficiais, incidente, génio ou ocasião. outro chama-se causas,
ou condições, ou dados objetivos; nós chamar-lhe-emos causas materiais. o último é liber-
dade, a deliberação, a que nós chamaremos causas finais. o mínimo “facto” histórico com-
porta estes três elementos, se é humano; [...]» (Veyne 1983: 125).
170 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

explica só por incidentes ou ocasiões nem por causas económicas nem por
mentalidades, projetos ou ideias. Não existe nenhuma regra de ordenação destes
três aspetos, ou seja, reitera-se a ideia de que a história não tem método pró-
prio.
Paul ricœur entende o processo de retrodicção, teorizado por P. Veyne no
capítulo Viii (1983: 179-210), como uma exceção a esta tese que entende a
explicação em história como uma forma de fazer compreender, de descrever as
coisas tal como se passaram. Porque a retrodicção põe em jogo uma explicação
causal para um facto do passado cuja causa se desconhece, a explicação e a
compreensão aparecem como dois processos distintos. P. Veyne define o con-
ceito de retrodicção como uma operação indutiva de preenchimento de uma
lacuna da narrativa histórica por analogia com um enchimento análogo mas sem
falha numa outra série. No fundo, trata-se de tentar encontrar ou presumir a
melhor explicação para um problema acontecido, sempre que o documento seja
omisso, partindo da explicação de um acontecimento similar. No caso da pro-
posição «luís XiV tornou-se impopular porque os impostos eram demasiado
pesados», não tendo o historiador um documento que afirme que os impostos
foram realmente a causa da impopularidade do rei e sabendo somente que os
impostos eram pesados e que, por outro lado, o rei se tornou impopular no
final do seu reinado, só lhe resta raciocinar por retrodicção, isto é, remontar da
impopularidade (efeito) a uma causa hipotética. esta retrodicção tem de apoiar-
-se em casos paralelos da época e nas mesmas circunstâncias que evidenciam
o descontentamento e a reação negativa dos povos a impostos demasiado pesa-
dos194. raciocinamos assim por comparação com o semelhante, mas sem a
garantia de que num caso particular esta analogia não falhe; não podemos
esquecer que estamos a lidar com a causalidade sublunar, irregular e confusa.
a retrodicção é um raciocínio muito próximo da seriação, raciocínio típico dos
epigrafistas, filólogos e iconografistas:
[...] quando um epigrafista, um filólogo ou um iconografista quer saber o que sig-
nifica a palavra rosa ou o que faz, nesse baixo-relevo, um romano que é repre-
sentado deitado num leito, recolheu todas as outras ocorrências da palavra rosa e
de romanos deitados e tira, da série assim constituída, a conclusão de que rosa
quer dizer rosa e que o romano dorme ou come; a fundamentação dessa conclusão
é que seria surpreendente que uma palavra não tivesse sempre pouco mais ou
menos o mesmo sentido e que os romanos não tivessem comido e dormido como
queriam os hábitos da sua época [Veyne 1983: 188].

194
«subentendido: se as coisas se passaram regularmente; a retrodicção aparenta-se por
aí ao raciocínio por analogia ou a essa forma de profecia racional, porque condicional, a que
chamamos predição» (Veyne 1983: 186).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 171

Porque a espécie humana ou, no mínimo, cada época apresenta hábitos e


costumes muito próprios, é possível fazer retrodicções. mas há setores onde a
retrodicção é arriscada: o equívoco, a excentricidade, a boémia, o génio e a
loucura. Daí que P. Veyne afirme que «uma escultura de má qualidade entre em
série, uma obra-prima, dificilmente; os textos poéticos prestam-se menos a ela
do que os formulários administrativos» (1983: 189).
obviamente, a grande dificuldade em todo este processo é sabermos
quando estamos perante um setor no qual a repetição funciona ou não, até por-
que há épocas que ficaram marcadas, justamente, pela transgressão e pela ori-
ginalidade. em suma, podemos concluir que «a história de uma determinada
época reconstitui-se por seriações, por idas e vindas entre os documentos e a
retrodicção» (ibid.: 190).
Não obstante, os conhecimentos alcançados pela retrodicção situam-se
sempre no campo do sublunar, não têm nada que ver com as leis gerais do
modelo de subsunção ou das ciências hipotético-dedutivas195. as pretensas leis
da história ou as ktema es aei de tucídides (as lições para sempre válidas da
história) não podem separar-se do contexto concreto factual a que se referem,
isto é, não admitem as abstrações com que lidam as leis científicas196. a retro-
dicção está mais próxima da explicação causal de Dray e de mandelbaum e P.
Veyne faz questão de o deixar bem claro: «a explicação histórica não é nomo-
lógica, é causal; como causal ela contém o geral» (ibid.: 203).
a explicação histórica difere da explicação científica porque a história é
descritiva, limita-se a contar o que aconteceu e como aconteceu, ao passo que
a ciência explica o porquê do acontecimento, enunciando leis das ciências físi-
cas ou humanas. insiste o autor francês que «a história descreve o que é ver-
dadeiro, o que é concreto, vivido, sublunar; a ciência descobre o que está
escondido, abstrato e, de direito, formalizável» (ibid.: 203).
tentar conciliar a causalidade do vivido com a causalidade científica é
negligenciar o abismo que desde a antiguidade clássica grega separa a doxa da
episteme. História e ciência não se podem misturar, salvo nalguns casos em que
a ciência é convocada pelo próprio sistema da história. ora, Paul Veyne não é

195
Daí que o autor afirme: «estudar a síntese histórica, ou retrodicção, é estudar que
papel desempenha em história a indução e em que consiste a “causalidade histórica”, por
outras palavras, dado que a História não existe, a causalidade na nossa vida quotidiana, a
causalidade sublunar» (Veyne 1983: 180).
196
«[...] conceitos e “leis” histórico-sociológicos não têm sentido nem interesse senão
através de trocas subreptícias que continuam a manter com o concreto que governam; é pre-
cisamente nessas trocas que reconhecemos que uma ciência ainda não o é» (Veyne 1983:
202).
172 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

muito explícito relativamente a esta exceção, apenas diz que a ciência pode ser
útil à história para explicar o intervalo entre as intenções e os acontecimentos.
as nossas intenções nunca coincidem totalmente com os efeitos, e este inter-
valo é o lugar reservado para as explicações científicas, na escrita e na prática
histórica. só recorremos à ciência quando as intenções não bastam, ou seja,
fazemos apelo à ciência unicamente para explicar um efeito incompreensível ou
imprevisto, porém esta exceção não é suficiente para derrubar a barreira que
separa história e ciência197.

uma outra tese de Veyne é a de que a história não tem método, mas uma
crítica e uma tópica, as quais não substituem o método mas são-lhe equivalen-
tes. a explicação histórica é inata e familiar, por isso se pode qualificar de
compreensão, e o método histórico que atualmente possuímos é o mesmo desde
Heródoto e tucídides198. «o que progrediu consideravelmente, em contrapartida,
foi a crítica histórica e sobretudo [...] a tópica histórica» (ibid.: 137).
Por crítica histórica o autor entende a vigilância que o historiador exerce
sobre os conceitos que emprega. Depois de refutar o valor das teorias históricas
e a criação de uma tipologia em história (que até pode ter algum valor heu-
rístico, mas nada acrescenta à explicação histórica,) e de optar pelo nomina-
lismo (porque as abstrações não existem e não podem, por isso, ser causas
eficientes: não existe a França, somente os franceses; não existem forças pro-
dutivas, apenas homens que produzem), P. Veyne acaba por reconhecer que os
historiadores não podem deixar de utilizar teorias, tipos ou conceitos, que são
uma única e mesma coisa – «resumos de intrigas já prontos» (ibid.: 155) –,
ainda que estes sirvam apenas para abreviar uma descrição199. a partir do

197
«as ciências físicas e humanas podem realizar todos os progressos possíveis: a his-
tória não será mudada do seu assento; com efeito, ela não fará uso das suas descobertas
exceto num caso muito preciso: quando essas descobertas permitem explicar um intervalo
entre as intenções dos agentes e os resultados» (Veyne 1983: 210).
198
todas as tentativas de descoberta de um método ou de uma conceção geral que
explicasse o funcionamento da história e da sociedade, como o materialismo económico,
nunca resultaram e os filósofos e teóricos que praticaram uma metodologia histórica viram-
-se obrigados, assim que se tornaram historiadores, a regressar às evidências do bom senso.
o ofício dos historiadores é de fazer compreender o sublunar, por isso a compreensão não
aceita nenhum outro tipo de explicação ao seu lado. «a explicação histórica não pode apelar
para nenhum princípio, para nenhuma estrutura permanente (cada intriga tem o seu dispositivo
causal particular)» (Veyne 1983: 137).
199
«o tipo ou a teoria só podem servir para abreviar uma descrição; fala-se de des-
potismo esclarecido ou de conflito cidade-campo para ser breve, como se diz “guerra” em vez
de “conflito armado entre potências”» (Veyne 1983: 154).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 173

momento em que os historiadores não podem evitar o uso de palavras, também


não podem evitar o uso de conceitos. mas estes não são explicativos, apenas
heurísticos. tanto a história generalizante como a história comparada não vão
mais longe nem conseguem ser mais gerais ou científicas que a história
comum, porque os conceitos que utilizam são sublunares, remetem sempre para
intrigas particulares e porque tal como a história tradicional se limitam a com-
preender e a fazer compreender. No fundo, há apenas uma história que consiste
unicamente em compreender e que se escreve com palavras: «Que fazemos nós
mais do que compreender intrigas? e não há duas maneiras de compreender»
(Veyne 1983: 160).
a “tópica”, para P. Veyne também não constitui um modelo de explica-
ção, mas aplica-se ao questionário ideal, tratando-se de um alargamento da lista
de questões que o historiador deve colocar aos seus documentos. o termo é
retirado da retórica aristotélica, onde topoi designa a lista de “lugares-comuns”
e de “verosimilhanças” que o orador deveria usar nos seus discursos, não para
resolver as dificuldades, mas para enumerar todas as dificuldades possíveis nas
quais era necessário refletir. estas listas correspondem ao que na atualidade os
sociólogos denominam de check-lists. o prolongamento do questionário que a
tópica permite é o único progresso de que a história é capaz, implicando um
enriquecimento paralelo dos conceitos200. É a tópica que permite à história
estrutural ou não-factual lutar contra a ótica imposta pelas fontes, conceptuali-
zar os acontecimentos de forma diferente dos próprios atores ou dos seus con-
temporâneos e, logo, racionalizar a leitura do passado. o progresso conceptual
faz com que a visão do historiador moderno seja muito mais rica que a de
Heródoto e tucídides ou de qualquer outro historiador da antiguidade. Há
questões que estes historiadores antigos nunca fariam e que hoje são imprescin-
díveis, questões que levam o historiador a concentrar-se em factos que na anti-
guidade passaram despercebidos. todavia,
o único progresso possível da história é [este] alargamento da sua visão e a sua
perceção mais fina da originalidade dos acontecimentos, e esse género de pro-

200
«o enriquecimento dos reportórios de lugares é o único progresso que o conheci-
mento histórico pode fazer, a história não poderá nunca dar mais lições do que dá presen-
temente, mas ela poderá multiplicar ainda as questões. ela é definitivamente narrativa e
reduz-se a contar o que alcibíades fez e o que aconteceu. longe de desembocar numa ciência
ou numa tipologia, ela não deixa de confirmar que o homem é matéria variável sobre a qual
não se pode fazer um juízo fixo; não sabe melhor do que no primeiro dia como se articulam
o económico e o social e é ainda mais incapaz do que no tempo de montesquieu de afirmar
que, tendo-se produzido o acontecimento a, o acontecimento B se produzirá igualmente»
(Veyne 1983: 270).
174 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

gresso todo em delicadeza não é tonitruante, fora desse crescimento de um tesouro


de experiência, tudo o resto são avatares das convenções do género, modas do dia
ou acasos heurísticos. a história não progride, alarga-se; o que significa que ela
não perde para trás o terreno que conquista para a frente [...] a maneira que
tinham tucídides ou codefroy de escrever história é sempre nossa contemporânea
[Veyne 1983: 273].

em suma: o que há a compreender em história são as intrigas e o alar-


gamento do questionário equivale a uma progressiva conceptualização. estas
duas teses, aparentemente incompatíveis, admitem que a noção de intriga se
aplica também ao campo da história estrutural, não-factual; que a conceptuali-
zação não se confunde com a ciência do mundo supralunar e se restringe ao
conhecimento sublunar. a tópica histórica é apenas heurística, não explicativa
«pois a dificuldade da historiografia é menos encontrar respostas do que encon-
trar questões» (Veyne 1983: 269) e não altera o caráter fundamental da com-
preensão, que é compreender intrigas. ricœur termina com o seguinte comen-
tário: «Pour être tout à fait convaincant, Paul Veyne devrait expliquer comment
l’histoire peut rester un récit quand elle cesse d’être événementielle» (TR i,
309). ou, por outras palavras, o que o filósofo francês questiona é a ausência
de limites para a noção de intriga: «la question que pose le livre de Paul
Veyne est de savoir jusqu’où l’on peut étendre la notion d’intrigue sans qu’elle
cesse d’être discriminante» (TR i, 309). Questão com que podemos confrontar
todos os defensores da teoria narrativista da história, não tanto os de língua
inglesa porque apresentavam exemplos que não iam muito além da história évé-
nementielle; porém, a dificuldade acentua-se quando a intriga deixa de ser apli-
cada apenas à história do acontecimento. o filósofo francês reconhece como
ponto forte da obra de P. Veyne o ter conduzido até este limite crítico a ideia
de que a história é só construção e compreensão de intrigas: «c’est lorsque
l’histoire cesse d’être événementielle que la théorie narrativiste est véritable-
ment mise à l’épreuve. la force du livre de Paul Veyne est d’avoir conduit
jusqu’à ce point critique l’idée que l’histoire n’est que construction et compré-
hension d’intrigues» (TR i, 310).

2.3.  Explicação e compreensão: um balanço

Fizemos desfilar, na senda de ricœur, uma série de teorias sobre a epis-


temologia da história. impõe-se, agora, um balanço crítico, ressalvando os con-
tributos e as insuficiências de cada uma. Porque reconhece virtudes e defeitos
em qualquer das propostas apresentadas, o filósofo francês não toma partido
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 175

absoluto, mas recolhe de cada uma as mais-valias para a construção de uma


dialética entre explicação histórica e compreensão narrativa, com a vantagem de
que nos estudos anteriores (por nós já comentados) essa dialética se circunscre-
via ao nível da imputação causal e agora abrange também as entidades e o
tempo da história-ciência. Que balanço podemos fazer então destas leituras, por
vezes dispersas e aparentemente fortuitas, levadas a cabo por ricœur? res-
ponde o próprio: «Qu’un tel lien [entre l’historiographie et la compétence nar-
rative] doit être préservé, mais que ce lien ne puisse être direct, c’est le bilan
de la confrontation [...]» (ricœur, TR i, 311).
Da passagem pela teoria nomológica de Hempel e pelas críticas da escola
francesa dos annales, ricœur realça um corte epistemológico entre a nova his-
tória científica surgida no dealbar do século XX e a inteligência narrativa,
mesmo depois de fortalecida pelas teses narrativistas que se ergueram no seio
da filosofia analítica contra o modelo hempeliano. este corte reflete-se a três
níveis interdependentes na narrativa histórica: ao nível dos procedimentos, das
entidades e do tempo.
No que aos procedimentos diz respeito, a história enquanto ciência de
investigação nasce do uso específico e autónomo que faz da explicação. isto
acontece tão simplesmente porque, na narrativa, a explicação assenta sobre
conexões inerentes ao próprio ato de composição, daí que gallie e Veyne pos-
sam afirmar que a narrativa é autoexplicativa e, de facto, narrar já é explicar,
mas a história exige um outro tipo de explicação que não a da simples conexão
causal permitida pela conjunção subordinativa “porque”. a narrativa histórica
precisa de autenticação e de justificação, logo de uma explicação que é externa
ao texto, assente nas provas documentais. o historiador exerce um papel seme-
lhante ao do juiz (analogia que já Dray notara), porquanto, tal como ele, sub-
mete as provas a julgamento em busca da melhor explicação, que terá de
defender perante a possível contestação dos seus pares. Já ao escritor de ficções
ninguém pedirá provas do que diz, pois: «une chose est d’expliquer en racon-
tant. une autre est de problématiser l’explication elle-même pour la soumettre
à la discussion et au jugement d’un auditoire, sinon universel, du moins réputé
compétent, composé d’abord des pairs de l’historien» (ricœur, TR i, 312).
o filósofo francês encontra nesta autonomia da explicação histórica três
corolários específicos que acentuam o hiato entre história e narrativa: concep-
tualização, procura de objetividade, reflexividade crítica201. um exercício de

201
«conceptualisation, recherche d’objectivité, redoublement critique marquent les trois
étapes de l’autonomisation de l’explication en histoire par rapport au caractère «auto-explica-
tif» du récit» (ricœur, TR I, 314)
176 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

explicação implica um exercício de conceptualização, que muitos têm por cri-


tério principal da historiografia. a conceptualização é um problema antigo que
anda associado ao debate em torno da nomenclatura – abordado também por
marc Bloch – e à querela dos universais históricos entre realismo e nomina-
lismo. o historiador usa universais. o próprio P. Veyne, que se recusa a aceitar
um método histórico, não se furta a salvaguardar uma crítica e uma tópica,
ainda que, no seu entender, elas se restrinjam a uma função meramente heurís-
tica, que visa o alargamento do questionário e não o alargamento das respostas,
ou seja, a explicação. embora o narrador de uma obra de ficção também utilize
conceitos gerais, não está obrigado, como o historiador, a submetê-los a uma
crítica permanente. Quanto à procura de objetividade, ela resulta do próprio
estatuto crítico da história como pesquisa. a história procura uma objetividade
ideal, onde a verdade de um facto implique a falsidade do oposto. Deparando
constantemente com inevitáveis limites à objetividade, não deixa, porém, de a
procurar. ricœur regista duas “crenças” associadas a esta pretensão: em pri-
meiro lugar, o desejo de que os factos relatados por diferentes historiadores
possam interligar-se a uma mesma escala; e em segundo, a vontade que os
resultados das suas histórias se complementem. É assim que a história pode
assumir como seu problema específico o dos limites da objetividade, questão
naturalmente estranha ao narrador de uma obra ficcional, que conta sempre com
a suspensão da descrença por parte do seu público. todavia, o historiador
dirige-se a leitores desconfiados, que esperam a autenticação dos factos que
narra. só o facto de o historiador reconhecer uma implicação ideológica dife-
rente de um modo argumentativo (H. White) é por si só elucidativo da cons-
ciência crítica que tem quanto aos limites da objetividade histórica. a submis-
são da ideologia a uma crítica das ideologias é o que ricœur designa de
reflexividade crítica da operação histórica.
também as entidades visadas pela nova história económica, social e cul-
tural são autónomas, servindo para aumentar a brecha entre história e ficção.
Na narrativa tradicional ou mítica e até mesmo nas crónicas que antecedem a
historiografia como ciência, os agentes são sujeitos identificados, têm nome
próprio e são responsáveis por determinadas ações, ao passo que as entidades
da história científica são anónimas, sejam elas nações, sociedades, civilizações,
classes sociais ou mentalidades. a rutura opera-se através da revolução que a
escola dos annales faz da história política para a história económica, social e
cultural. o lugar antes ocupado por grandes nomes da história é agora ocupado
por forças sociais irredutíveis a indivíduos concretos. esta exclusão das perso-
nagens da nova história difere da narrativa tradicional, que tem nas personagens
singulares e nomeadas uma categoria essencial.
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 177

o estatuto epistemológico do tempo histórico, resultante dos procedimen-


tos e das entidades, marca uma terceira rutura com a categoria temporal própria
da narrativa ficcional. o tempo histórico surge separado do tempo da memória,
da expetativa e da circunspeção dos agentes individuais e não aparece referido
ao presente vivo de uma consciência subjetiva. a sua estrutura está intimamente
ligada aos procedimentos e às entidades da história científica. tempo definido
por uma sucessão de intervalos homogéneos, portadores de explicação causal ou
nomológica e tempo disperso na multiplicidade dos tempos, cuja escala se ade-
qua à das diversas entidades: o tempo curto para o acontecimento, o semilongo
para a conjuntura, o longo para as civilizações e o muito longo para os sím-
bolos fundadores do estatuto social. este tempo parece não ter ligação com o
tempo da ação, com a “intra-temporalidade”.
uma vez demonstrada a rutura epistemológica, não é possível continuar a
defender a tese de history como uma espécie do género story. uma continui-
dade direta entre história e narrativa é insustentável. Por outro lado, a história
não pode cortar totalmente com a narrativa sem perder o seu caráter histórico.
a crítica do modelo nomológico e a argumentação narrativista aumentaram a
exigência de uma nova dialética entre a pesquisa histórica e a compreensão nar-
rativa.
a diversificação da explicação histórica torna-a menos estranha à inteli-
gência narrativa, sem com isso renunciar à vocação explicativa que mantém a
história no círculo das ciências humanas. o enfraquecimento do modelo nomo-
lógico desempenha um papel essencial no reconhecimento das suas virtudes
para a epistemologia histórica, porque leva à admissão de níveis mais diversi-
ficados de cientificidade para as generalidades alegadas, desde as leis dignas
deste nome até às generalidades do senso comum que a história partilha com
a linguagem quotidiana, passando pelas generalidades de caráter “disposicional”
invocadas por g. ryle e P. gardiner. Neste domínio, ganha também particular
relevância os contributos de Dray e Wright. estes criticam o modelo hempe-
liano e propõem formas menos normativas e universais de explicação, mais
articuláveis com a compreensão histórica. refletem sobre a natureza da expli-
cação histórica mas nada avançam relativamente ao modo como esta se articula
com a narrativa histórica. Dray critica o modelo nomológico, dizendo que em
história não dá para subordinar factos a leis. em alternativa, apresenta a expli-
cação causal e a explicação por razões. esta última reforça-se com as mesmas
exigências de conceptualização, de autentificação e de vigilância crítica de qual-
quer outro modo de explicação. como ponto fraco, Dray não tem em conta o
caráter narrativo da história. ainda em reação contra o modelo nomológico, g.
H. Wright propõe um modelo misto, a explicação quase causal, composto de
178 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

explicações causais e inferências teleológicas, que resulta da passagem da aná-


lise causal para a explicação causal. todavia, também lhe falta o fio condutor
que ligue os segmentos nómicos e teleológicos da explicação quase causal. Pelo
que estes novos modos de explicação aproximam-na da narrativa, mas não a
consideram; por outro lado, separam a explicação histórica da explicação ima-
nente à narrativa202.
cabe às teses narrativistas definirem o discurso histórico onde se enxer-
tam os procedimentos explicativos, elevando com isso os recursos explicativos
da narrativa, num movimento de convergência com o movimento anterior da
explicação para a narração. Passamo-las rapidamente em revista. Danto diz que
é próprio da frase narrativa ligar dois acontecimentos sob duas condições: pri-
meira, que o segundo acontecimento seja posterior ao primeiro; segunda, que os
dois acontecimentos sejam anteriores à narrativa do historiador. alargando o
discurso histórico ao modelo nomológico, Danto parece ser mais liberal que
Dray ao não se opor à inserção de explicações nomológicas na história, apenas
observa que qualquer acontecimento histórico que se pretenda explicar está já
coberto por uma descrição que equivale a uma explicação. só podemos cobrir
um acontecimento com uma lei geral se ele estiver já inscrito numa frase nar-
rativa. Não obstante, a relação entre a frase narrativa e a narrativa, enquanto
composição que abarca uma série de acontecimentos numa determinada ordem,
nunca é claramente discutida. É esta ordem específica que nos permite falar de
discurso narrativo e nos fornece a estrutura do discurso que acolhe as explica-
ções históricas.
o conceito de followability teorizado por gallie define a compreensão nar-
rativa. compreender uma história (enquanto descrição direcionada para um fim
de uma sequência de ações, pensamentos e sentimentos experimentados por per-
sonagens reais ou fictícias que provocam mudanças ou reagem a elas) consiste
em segui-la através de uma série de contingências (surpresas, coincidências,
reencontros, revelações, reconhecimentos, etc.) em direção a um desenlace. este
desenlace funciona como ponto de atração, mas não é previsível, apenas acei-
tável depois de conhecido. Por conseguinte, uma história combina contingência
com aceitabilidade. esta fórmula aplica-se a story e a history, pois history é um
subgénero de story, logo, tirando a prova material ou documental (evidence),
nada mais distingue história de ficção. a história, tal como a ficção, fala sobre
realizações e fracassos de homens em interação. a leitura das histórias provém

202
«sur ces trois voies, l’explication propre à la recherche historique paraît bien faire
une partie du chemin qui la sépare de l’explication immanente au récit» (ricœur, TR i, 316).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 179

da nossa competência para seguir ficções. seguimos histórias como ficções,


porque as primeiras, tal como as segundas, apresentam um tema que desperta
o nosso interesse e, por isso, merece ser seguido através de contingências. se
as histórias dos historiadores se fundam nas ficções, os traços distintivos da
explicação histórica devem ser considerados como expansões ao serviço da
aptidão da história de base para ser seguida. ou seja, as explicações não têm
outra função que não seja ajudar o leitor a ir mais avante. as explicações his-
tóricas não são, pois, formas atenuadas das explicações científicas, elas limitam-
-se a desenvolver generalizações que podemos encontrar já nas histórias do quo-
tidiano relativamente a situações, papéis, motivos, fins, provações e saídas. Pelo
que, aceitar estas generalizações não significa colocar um caso sob uma lei mas
sim relançar o processo de seguir uma história quando ele foi interrompido ou
obscurecido. as explicações devem ser integradas no discurso narrativo. o
papel da explicação em história não difere grandemente do comentário filoló-
gico. Nos dois casos, a crítica nasce da necessidade de ganhar distância face ao
texto recebido e de reescrever o texto de forma a torná-lo mais legível.
a reflexão de louis o. mink acentua outra característica fundamental da
compreensão narrativa: o julgamento sinóptico ou a sua capacidade para
apreender, num todo simultâneo, factos dispostos sequencialmente. esta carac-
terística confere autonomia à compreensão histórica e afasta qualquer modelo
explicativo com pretensões hipotético-dedutivas. a explicação em história faz-
-se relacionando os acontecimentos uns com os outros, dentro de um contexto
histórico. mas esta teoria vai também contra o conceito de followability de gal-
lie, que dava prioridade à sequência dos acontecimentos contingentes. a ideia
de que na compreensão de uma narrativa a sucessão temporal se desvanece põe
em causa as contingências, depositárias dos traços cronológicos. o mais impor-
tante da tese de mink é a perceção de que a arte de seguir uma história requer
a capacidade de sacar uma configuração de uma sucessão. esta operação con-
figuracional é um trunfo que ricœur apresentará contra os que têm da narrativa
a ideia errada de uma mera sequência cronológica ou episódica de acontecimen-
tos. a estrutura narrativa consegue combinar sequência e configuração, apresen-
tando uma dimensão episódica e outra configuracional, uma sequência e uma
figura. No que concerne a história, enquanto narrativa verdadeira, esta estrutura
complexa implica que a narrativa seja sempre mais do que uma série cronoló-
gica de acontecimentos e, ao invés, que a dimensão configuracional não eclipse
a dimensão episódica sem abolir a própria estrutura narrativa. todavia, mink só
acentua a dimensão configurante, deixando moribunda a dimensão episódica-
-temporal-linear. Para aclarar a dialética concreta entre discordância e concor-
dância na narrativa, ricœur transfere a sua pesquisa do conceito de intriga da
180 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

crítica literária para a epistemologia da história. É aí que encontra as teses de


Hayden White.
H. White pensa a operação de mise en intrige no âmbito da estrutura nar-
rativa da historiografia. o autor coloca a composição da intriga (emplotment)
entre várias operações, cuja enumeração varia de obra para obra. em Metahis-
tory, a sua separação de story (história narrada), leva à dissociação de explica-
ção da história e explicação do acontecimento, dependendo a primeira da cate-
goria da própria mise en intrigue (emplotment) e a segunda da organização da
história (story) em termos de causas e de leis. outras fronteiras difíceis de
entender delimitam a intriga (plot) de outros modos de explicação. uma com
o argumento (a tese ou ponto de vista da narrativa), que aristóteles incluía na
intriga, e outra com a ideologia. a maior vantagem desta teoria é a construção
de um estilo historiográfico, resultado da combinação particular dos modos de
composição, de argumentação e de implicação ideológica e a conceção da com-
posição da intriga (emplotment) como uma operação que dinamiza os vários
níveis de articulação narrativa, que faz a transição entre a narração e a expli-
cação. Deste modo, vai ao encontro da ideia que ricœur pretende salientar de
intriga como síntese do heterogéneo, como jogo de concordância e discordân-
cia, compreensão e explicação.
a obra de Paul Veyne combina um afrouxamento do poder explicativo da
história com uma elevação da sua capacidade narrativa. a história é antes de
mais uma reconstrução que faz uso de uma intriga. a noção de intriga como
síntese do heterogéneo apraz a ricœur, mas a sua aplicação à história quanti-
tativa e estrutural e a sua extensão até ao limite da atemporalidade e do não-
-ocorrencial deixa-a no limite da descaracterização. o que distingue história das
ciências naturais não é o objeto de estudo, ambas se debruçam sobre objetos
individualizados ou específicos, a diferença reside em que a ciência física,
enquanto disciplina supralunar, integra factos sob leis e a história, sendo uma
disciplina sublunar, integra factos em intrigas. Porém, porque a história não tem
método, não há nenhuma regra para reunir os factos em intriga. ela recorre ao
mesmo tipo inato de explicações que nós usamos no quotidiano para explicar
um acontecimento qualquer que presenciámos. a partir do momento em que
uma história se apresenta com sentido, isto é, seja compreensível, pode consi-
derar-se explicativa, não havendo diferença alguma entre explicação, compreen-
são e narrativa. Narrar é explicar, explicar mais é narrar melhor. a explicação
em história, seja ela de que tipo for, é sempre causal, no sentido em que não
admite qualquer tipo de abstração do contexto factual a que se refere e, por isso,
nunca pode ser nomológica. a história deve contar o que aconteceu e como
aconteceu. a ciência explica o porquê dos acontecimentos, enunciando leis das
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 181

ciências físicas ou humanas. mas história e ciência, salvo raras exceções (não
especificadas), para explicar um efeito incompreensível, não se podem misturar.
salva-se a ideia forte de história como compreensão de intrigas, com as reser-
vas atrás apontadas sobre os limites pouco claros do conceito de intriga.
ricœur reconhece sucesso e fracasso às teorias narrativistas203. Não fazem
justiça à especificidade da história, dentro do leque da narrativa; as suas con-
siderações valem apenas para as formas historiográficas com ligação direta e
visível à narrativa, ignorando as transformações que a historiografia entretanto
foi sofrendo; e não conseguem integrar a explicação através de leis no tecido
narrativo da história. Por outro lado, perceberam bem que a qualidade propria-
mente histórica da história só pode ser preservada por meio do elo que liga a
explicação histórica à compreensão narrativa, contra a rutura epistemológica que
pretende dissociá-las. independentemente do triplo corte epistemológico exigido
pela nova história científica, a história não pode ser radicalmente desligada da
narrativa sem sacrificar o seu caráter histórico.
os narrativistas conseguiram demonstrar que narrar é já explicar. o
famoso conceito aristotélico do “um por causa do outro” (di’allela), que faz a
conexão lógica de qualquer intriga, aplica-se não só à narrativa ficcional como
à histórica. esta tese tem várias consequências. Por um lado, a conexão causal
ativada em qualquer narrativa pela composição da intriga representa uma vitória
sobre a simples cronologia e torna possível a distinção entre história e crónica,
uma vez que nesta última os factos são apresentados uns a seguir aos outros
e não uns por causa dos outros. Por outro, se a construção da intriga resulta
de um julgamento, é porque há necessariamente um narrador implicado na nar-
ração. o narrador mantém um ponto de vista distante e diferente do dos agen-
tes ou personagens envolvidos na própria ação narrada, que possuem uma com-
preensão dos acontecimentos e do seu contributo para o desenrolar da intriga
mais confusa e limitada. este distanciamento permite passar do narrador ao his-
toriador. Por fim, se é possível à narrativa integrar, num todo coeso e signifi-
cante, aspetos tão díspares como as circunstâncias, os cálculos, as ações, as aju-
das e os obstáculos, os resultados, então, também é possível à história incluir
os resultados não intencionais ou inesperados da ação e produzir descrições da
ação distintas da sua descrição em termos simplesmente intencionais (Danto).
um segundo aspeto positivo das teses narrativistas tem que ver com o
facto de responderem a uma diversificação e a uma hierarquização dos modelos

203
«J’ai dit plus haut que le demi-succès des théories narrativistes était aussi un demi-
échec» (TR i, 316).
182 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

explicativos com uma diversificação e uma hierarquização análoga dos recursos


explicativos da narrativa. Danto adapta a estrutura da frase narrativa a um tipo
específico de narrativa histórica, nomeadamente, a que se baseia em documen-
tação datável. mink, por sua vez, confere um estatuto explicativo ao ato con-
figurador, associando-o a outros dois tipos de explicação: a categorial e a teo-
rética. White, numa primeira fase, coloca o efeito explicativo da composição da
intriga entre a argumentação e a story-line; numa segunda fase, dissocia-o da
explicação inerente à história narrada (story) e liga-o à explicação através do
argumento e à explicação através da implicação ideológica. esta diversificação
explicativa resulta do esforço dos narrativistas em aproximarem o mais possível
a explicação narrativa do plano da explicação histórica.
No fim de contas, subsiste um hiato intransponível, aberto pela investiga-
ção e daí pela autonomia explicativa da história, entre explicação narrativa e
explicação histórica e nenhuma tese narrativista ou mesmo quase antinarrativista
seria capaz de substituir um modelo explicativo.

3. INTENCIONALIDADE HISTÓRICA: DIALéCTICA EXPLICAÇÃO/


/COMPREENSÃO

o desfile de autores e respetivas teses sobre a historiografia tem o mérito


de pôr a descoberto os benefícios e as insuficiências quer do modelo nomoló-
gico quer das teses narrativistas. esta estratégia antitética só ganha sentido à
luz da ulterior reativação das fontes narrativas da historiografia. Depois da ava-
liação dos contributos destas leituras, é preciso demonstrar que a história, pela
sua matriz narrativa, está intencionalmente direcionada para o campo temporal
da praxis humana e é essa ação que ela representa nas suas intrigas204. com
esse fim, ricœur desenvolve a tese da ligação indireta da história à competên-
cia narrativa. a intencionalidade histórica, título do terceiro capítulo da
segunda parte da trilogia Temps et Récit, é a ferramenta que lhe permite recons-
truir os laços indiretos da história com a narrativa: «reconstruire les liens
indirects de l’histoire au récit, c’est finalement porter au jour l’intentionnalité
de la pensée historienne par laquelle l’histoire continue de viser obliquement le
champ de l’action et sa temporalité de base» (TR i, 167).

204
a intenção oblíqua que o autor vê, especulativamente, na escrita da história, permi-
tir-lhe-á inscrever a historiografia no grande círculo mimético de que falámos anteriormente
e daí alcançar o objetivo principal e final: a construção do tempo histórico. estamos, por isso,
ainda na antecâmara dos aposentos onde história e ficção colaboram pela narrativa do tempo.
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 183

É a aliança entre explicação e compreensão que ricœur pretende demons-


trar a partir do método husserliano da Rückfrage, ou seja, do questionamento
analéptico ou às arrecuas da intencionalidade histórica205. esta expressão signi-
fica, segundo o autor, a orientação ou o sentido do intento noético da história,
a qual garante a sua autonomia e o seu valor, preservando-a da dissolução nas
ciências com as quais se tem vindo a aproximar, como a economia, a geografia,
a demografia, a etnologia, a sociologia das mentalidades e das ideologias206.
o questionamento às arrecuas da intencionalidade histórica reenvia para
um mundo da ação já narrativamente configurado por uma atividade narrativa,
de acordo com o ciclo da tríplice mimese, e anterior em sentido à historiografia
científica. Por outras palavras, esta atividade narrativa tem já a sua dialética
própria, que percorreu os estádios sucessivos da mimesis, desde as prefigura-
ções inerentes à ordem da ação, passando pelas configurações constitutivas da
mise en intrigue, até às refigurações suscitadas pelo encontro entre o mundo do
texto e o mundo do leitor. tendo esta premissa como base, ricœur estabelece
as coordenadas da sua investigação: «Je me propose d’explorer par quelles
voies indirectes le paradoxe de la connaissance historique transpose à un degré
supérieur de complexité le paradoxe constitutif de l’opération de configuration
narrative» (ricœur, TR i, 319).
o paradoxo constitutivo da mimesis ii de que fala ricœur resulta da sua
posição simultânea de rutura e de continuidade entre mundo pré-narrativo da
ação efetiva a montante e o mundo do texto a jusante. o conhecimento histó-
rico duplica este contraste207. Por conseguinte, a questão que se coloca é a de

205
a expressão que traduzimos por “questionamento analéptico” pretende equivaler à
francesa “questionnement à rebours”, com a qual o filósofo francês designa o método de
questionar utilizado por Husserl a propósito das ciências clássicas, ditas de galileu e de New-
ton. «la solution du problème relève de ce qu’on peut appeler une méthode de questionne-
ment à rebours. cette méthode, pratiquée par Husserl dans la Krisis, ressortit à une phéno-
ménologie génétique, au sens non d’une genèse psychologique, mais d’une genèse de sens»
(ricœur, TR i, 318).
206
Nous nous interrogeons à notre tour sur ce que j’appellerai désormais l’intentionna-
lité de la connaissance historique ou, par abréviation, l’intentionnalité historique. J’entends
par là le sens de la visée noétique qui fait la qualité historique de l’histoire et la préserve
de se dissoudre dans les savoirs auxquels l’historiographie vient à se joindre par son mariage
de raison avec l’économie, la géographie, l’ethnologie, la sociologie des mentalités et des
idéologies (ricœur, TR i, 318).
207
«en vertu de sa position médiane entre l’amont et l’aval du texte poétique, l’opé-
ration narrative présente déjà les traits opposés dont la connaissance historique redouble le
contraste: d’un coté, elle naît de la rupture qui ouvre le royaume de la fable et le scinde de
l’ordre de l’action effective; de l’autre, elle renvoie à la compréhension immanente à l’ordre
de l’action et aux structures pré-narratives de l’action effective» [ibid., 319].
184 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

discernir por que derivações indiretas a tripla cesura epistemológica (procedi-


mentos, entidades, temporalidade), que faz da história uma investigação, pro-
cede da cesura instaurada pela atividade própria da mimesis ii, sem perder de
vista, pelo menos de forma oblíqua, a ordem da ação, de acordo com os recur-
sos de inteligibilidade, de simbolização e de organização pré-narrativos, pró-
prios do plano da mimesis i. o autor visa demonstrar deste modo a derivação
indireta da história a partir da configuração narrativa e o seu consequente,
ainda que afastado, reenvio ao campo da praxis – derivação e reenvio sacrifi-
cados e recalcados pela conquista da autonomia científica da história.
apesar desta tentativa de apagamento dos vestígios do campo prático e
dos seus recursos narrativos, ricœur descobre no conhecimento histórico uma
série de elos que lhe permitem reconstruir a derivação do texto histórico do
mundo da ação, consignado à mimesis i. essa reconstrução segue a ordem por
que foram apresentadas acima as modalidades do corte epistemológico: autono-
mia dos procedimentos, autonomia das entidades, autonomia dos tempos.

3.1.  Imputação causal e imaginação: quasi-intriga

Quanto aos procedimentos explicativos, o elo indireto com a narrativa está


no nexo imposto pela imputação causal singular, método que tem reflexos sig-
nificativos das teorias da análise causal de W. Dray208 e da explicação quase-
-causal de von Wright, mas é sobretudo fruto das reflexões mais consistentes
e elaboradas de max Weber e raymond aron209. É este nexo causal, típico de
qualquer explicação histórica, que permite fazer a ponte entre a explicação de
tipo narrativo (o um-por-causa-do-outro aristotélico) ou compreensão e a expli-
cação de tipo nomológico, normalmente identificada com a explicação:

208
a dupla prova indutiva e pragmática de que fala Dray, através das quais se verifica
a capacidade ou o grau de influência de determinados fatores na explicação de um evento,
aproxima-se muito da lógica da imputação causal desenvolvida por Weber e aron.
209
r. aron, Introduction à la philosophie de l’histoire. Essai sur les limites de l’ob-
jectivité historique, gallimard, Paris, 1948, pp. 195-330; m. Weber, Essais sur la théorie de
la science, librairie Plon, Paris, 1965, (trad. fr., Julien Freund, de Gesammelte Aufsatze zur
Wissenschaftslehre, 2.ª ed., tubingen, mohr, 1951). Da tradução francesa, que reúne quatro
dos dez ensaios que constituem o original alemão, salientamos o segundo ensaio “Études cri-
tiques pour servir à la logique des sciences de la culture” (1906). Nesse mesmo ensaio, o
segundo ponto, intitulado “possiblité objective et causalité adéquate en histoire” (Weber 1965:
290-323) é a peça chave de que ricœur se socorre para estabelecer o paralelo e a diferença
entre explicação por imputação causal e explicação narrativa.
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 185

en ce sens, l’imputation causale singulière ne constitue pas une explication parmi


d’autres, mais le nexus de toute explication en histoire. a ce titre, elle constitue
la médiation recherchée entre les pôles de l’explication et de la compréhension,
pour conserver un vocabulaire maintenant vieilli; ou mieux, entre l’explication
nomologique et l’explication par mise en intrigue [ricœur, TR i, 320].

a lógica da imputação causal singular nasce do seguinte raciocínio: para


se apurar se determinado fator, entre muitos outros fatores concomitantes, foi
significativo para a ocorrência de determinado acontecimento, pergunta-se o que
teria acontecido se ele não tivesse intervindo ou tivesse ocorrido de modo dife-
rente. No fundo, consiste em avaliar o peso ou a influência causal que um
determinado fator efetivo e singular teve num fenómeno histórico, imaginando-
-se, por um processo de abstração do real, um curso alternativo de aconteci-
mentos, a partir da supressão desse fator causal. esta operação, segundo max
Weber, visa destrinçar as relações causais reais, através da construção de outras
irreais: «[...] nous créons – n’ayons pas peur des mots – des tableaux imagi-
naires par abstraction d’un ou plusieurs éléments de la “réalité” donnés effec-
tivement dans le réel et par construction idéelle d’un cours des choses modifié
relativement à une ou plusieurs “conditions” (Weber 1965: 303).
a reflexão de aron vai no mesmo sentido: «tout historien, pour expliquer
ce qui a été, se demande ce qui aurait pu être» – e explicita:
si nous cherchons la cause d’un phénomène, nous ne nous bornons pas à addi-
tionner ou à rapprocher les antécédents. Nous nous efforçons de peser l’influence
propre de chacun. Pour opérer cette discrimination, nous prenons un des antécé-
dents, nous le supposons, par la pensée, disparu ou modifié, nous tâchons de
construire ou d’imaginer ce qui se serait passé dans cette hypothèse. [...] si les
grecs étaient tombés sous la domination perse, la vie grecque postérieure aurait
été partiellement autre qu’elle n’a été. la victoire de marathon est une des causes
de la culture grecque» [aron 1948: 202].

trata-se, pois, da tentativa de apurar a significação causal de um determi-


nado acontecimento para o desenrolar de todo um conjunto de ações, supondo
a sua não ocorrência ou alteração. max Weber justifica assim o recurso a este
método:
[...] il n’y a absolument rien de “oiseux” à poser la question: qu’aurait-il pu arri-
ver si Bismarck n’avait pas pris la décision de faire la guerre? elle concerne, en
effet, le point décisif pour la structuration historique de la réalité, à savoir: quelle
signification causale faut-il au fond attribuer à cette décision individuelle au sein
de la totalité des éléments infiniment nombreux qui devaient précisément être
186 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

agencés de cette manière-là et non d’une autre pour amener ce résultat-là, et


quelle est la place de cette décision dans l’exposé historique? si l’histoire prétend
s’élever au-dessus d’une simple chronique des événements et des personnalités, il
ne lui reste d’autre voie que celle de poser des questions de ce genre. et pour
autant qu’elle est une science, elle a toujours procédé de cette manière [1965:
291].

a história só recorre à imaginação para aí discernir melhor o necessário


e excluir o desnecessário ou não influente. Pretende-se saber o que poderia ter
acontecido à cultura grega se os gregos não tivessem vencido os Persas em
maratona ou se teria havido segunda guerra Púnica sem a decisão de aníbal
ou guerra dos sete anos sem Frederico, o grande. se o historiador concluir
que o fenómeno estudado poderia ter conhecido um curso diferente na ausência
ou na alteração de determinado acontecimento singular de um complexo de
condições históricas, então, pode concluir que este antecedente é uma das cau-
sas duma parte do fenómeno. trata-se, pois, de um julgamento de imputação
causal que atribui significado histórico ao dito acontecimento singular210.
a imputação causal considera-se singular quer se refira à decisão de um indi-
víduo, por exemplo Bismarck na guerra de 1866, quer a um acontecimento
coletivo, como a vitória dos gregos em salamina. e não é preciso reduzir este
acontecimento à soma de ações individuais nele envolvidas. ele é único na
medida em que pode ser objeto de uma imputação causal singular, ou seja,
quando se pode demonstrar que foi determinante entre duas possibilidades cuja
probabilidade pode ser avaliada sem ser quantificada211. Neste caso, falamos da
alternativa entre uma cultura teocrática religiosa, que seria imposta pelo império
Persa se os gregos não tivessem ganho a batalha – resultado este que se pode
constituir mentalmente a partir de outros fatores conhecidos e outras situações
similares – e uma cultura helénica livre e criativa, como se veio realmente a
desenvolver. a vitória dos gregos em salamina pode ser considerada a causa
adequada deste desenvolvimento cultural e humanístico, pois, se suprimirmos
este acontecimento, suprimimos toda uma cadeia de outros fatores daí decorren-

210
«si l’historien peut affirmer que, en modifiant ou en omettant en pensée un événe-
ment singulier dans un complexe de conditions historiques, il s’en serait suivi un développe-
ment différent d’événements “concernant certaines relations historiques de cet événement”,
alors l’historien peut poser le jugement d’imputation causale qui décide de la signification
historique dudit événement» (ricœur, TR I, 325).
211
«la bataille de salamine est pour l’historien, dans un certaine situation de discours,
un événement unique, dans la mesure où elle peut faire en tant que telle l’objet d’une impu-
tation causale singulière» (ricœur, TR i, 336).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 187

tes, como a construção da frota ática, o desenvolvimento de lutas pela liber-


dade, a curiosidade historiográfica, entre outros. É o valor que nós atribuímos
aos factos culturais insubstituíveis do espírito helénico livre que desperta o
nosso interesse pelas guerras médicas. mas é a construção do “quadro imagi-
nário”, criado pela abstração, e a ponderação das consequências do aconteci-
mento supostamente suprimido, que constituem a estrutura lógica do argumento
causal212.
Nesta atividade imaginativa, ricœur descortina uma dupla afinidade: com
a construção da intriga, que também é fruto da imaginação probabilística, e
com a explicação por leis.
ainda que nada na obra de max Weber refira explicitamente esta primeira
afinidade, ricœur, socorrendo-se dos recursos contemporâneos da narratologia,
estabelece essa conexão com segurança e fiabilidade a partir de duas pistas dei-
xadas pelo pensador alemão. a primeira concretiza-se na semelhança e dife-
rença entre o historiador e o agente da história. o historiador põe-se no lugar
do agente que, antes de agir, pesa as maneiras possíveis de agir, de acordo com
o objetivo e os meios que tem à sua disposição. ambos formulam a mesma
questão, mas o historiador goza de uma posição privilegiada porque, ao invés
do agente, conhece o resultado final, é por isso que ele a formula com um con-
junto de probabilidades bem mais favoráveis. são estas “chances plus favora-
bles” que ricœur diz remeterem para esse «extraordinário laboratório do pro-
vável que são os paradigmas de “mise en intrigue”» (TR i, 326). mas o autor
nota ainda que o historiador tem uma tarefa paralela à do criminalista e à do
juiz e difere deles. ambos fazem uma pergunta semelhante: em que condições
se pode afirmar que pela sua ação um indivíduo provocou (foi a causa) de um
específico efeito exterior? esta questão tem manifestamente a mesma estrutura
lógica – antropocêntrica, porque direcionada para o homem e para o significado
das suas ações – da causalidade histórica. o problema da causalidade em his-
tória orienta-se também e sempre para uma imputação de efeitos concretos a
causas concretas; ou seja, ao pesquisar a culpabilidade de um suspeito, o que
faz o criminalista é, sobretudo, procurar apurar a sua causalidade. No entanto,

212
Prost, na lição consagrada a “imaginação e imputação causal” (1996: 169-187)
sublinha o papel insubstituível da imaginação na identificação das causas: «en effet, toute
histoire est contre-factuelle. il n’y a pas d’autre moyen, pour identifier les causalités, que de
se transporter en imagination dans le passé et de se demander si, par hypothèse, le dérou-
lement des événements aurait été le même au cas où tel ou tel facteur considéré isolément
aurait été différent. l’expérience imaginaire est la seule possible en histoire [...]» (ibid.: 178).
188 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

a divergência instala-se no objetivo final. a imputação causal do criminalista


orienta-se para uma imputação ética de acordo com as leis do código penal; já
o historiador é alheio a qualquer imputação de teor ético. mas esta divergência
acentua a afinidade com a narrativa: «Qu’est-ce que l’imputation causale
dépouillée de l’imputation éthique, sinon la mise à l’essai des schèmes d’intri-
gues alternatifs?» (ibid.).
a imputação causal singular estabelece também uma relação de contigui-
dade com a explicação científica. em primeiro lugar, este tipo de raciocínio
explicativo exige uma seleção ou isolamento rigoroso de fatores, já que a
curiosidade histórica orienta o interesse do historiador apenas para uma deter-
minada classe de resultados. Por exemplo, na morte de césar, o historiador
interessa-se somente pelas consequências consideráveis desse acontecimento no
desenvolvimento da história mundial, pois é isso que ele tem como historica-
mente mais significativo. isto significa que se a história tem por missão com-
preender causalmente a realidade concreta de um acontecimento na sua singu-
laridade, não pode explicar causalmente nem reproduzir integralmente todos os
traços singulares à volta desse acontecimento, o que seria uma tarefa hercúlea
e absurda. a história apenas procura explicar causalmente os fatores e os aspe-
tos do acontecimento em questão que têm um significado geral sobre determi-
nados pontos de vista (o desenvolvimento da história mundial, no exemplo
anterior) e que oferecem por essa mesma razão um considerável interesse his-
tórico. Do mesmo modo, o juiz não avalia o curso total e singular de uma
ação, mas somente os elementos que são essenciais para a subsunção sobre nor-
mas éticas. a imputação histórica elimina, tal como a imputação jurídica, uma
infinidade de fatores, porque não têm nenhuma importância causal213. Voltando
ao exemplo da morte de césar, o que neste caso interessa ao historiador não
são as questões criminalistas ou médicas, nem tão pouco os detalhes do assas-
sinato, na medida em que não foram importantes. a preocupação maior do his-
toriador é o facto de esta morte ter ocorrido num tempo muito específico, no
meio de uma constelação política muito concreta, o que faz com que daqui
tenham decorrido consequências consideráveis para o posterior desenrolar da
história mundial.

213
«on le voit, un fait singulier est donc insignifiant pour l’historien non seulement
lorsqu’il n’a eu aucun rapport avec l’événement en discussion, de sorte qu’on peut l’omettre
en pensée sans qu’une quelconque modification n’intervienne dans le cours réel des événe-
ments, mais déjà lorsque les éléments essentiels in concreto et seuls intéressants semblent
n’avoir pas été en relation causale avec lui (Weber 1965: 300).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 189

em segundo lugar, a construção imaginária de consequências expectáveis,


devido à supressão ou modificação do fator previamente suprimido, leva a que
a consequência assuma um papel determinante na estrutura lógica do argumento
causal. De acordo com Weber, para que essas consequências imaginadas sejam
válidas, é preciso inseri-las no que o autor designa de regras da experiência;
regras que dizem respeito à maneira como os homens habitualmente reagem a
determinadas situações – ou seja, um saber nomológico ou generalizações. este
“savoir nomologique” empírico adquire-se com a nossa experiência individual e
com o conhecimento do comportamento dos outros. como sublinha ricœur, as
ditas regras da experiência têm o condão de demonstrar de que forma as leis
se podem integrar na história, mesmo quando não são estabelecidas pela histó-
ria (cf. TR i, 327).
Isolamento dos fatores e generalizações (ou recurso a regras de experiên-
cia) são, assim, dois processos que Weber identifica como essenciais para a
construção dos chamados “julgamentos de possibilidade”, referindo-se aos enun-
ciados que exprimem o que poderia ter acontecido em caso de eliminação ou
modificação de determinadas condições. todavia, mais do que estas duas mar-
cas científicas que não são, apesar de tudo, totalmente estranhas à inteligibili-
dade narrativa, porquanto ela também tem uma gramática profunda, a aplicação,
neste tipo de construção simultaneamente irreal e necessária, da chamada teoria
da possibilidade objetiva confere-lhe uma marca exclusivamente científica,
que leva ricœur a afirmar: «c’est ce troisième trait qui marque la véritable dis-
tance entre l’explication par le récit et l’explication par imputation causale»
(ibid.).
Weber pretende com este conceito retirado do campo da fisiologia conferir
à imputação causal uma precisão que a probabilidade invocada por aristóteles
na Poética ignora. o problema é simples: introduzindo a possibilidade e a ima-
ginação em considerações de ordem causal, não se corre o risco de deixar o
arbitrário subjetivo invadir a historiografia? Nesse caso, pode continuar a falar-
-se de conhecimento causal e pode a história continuar a ser entendida como
uma ciência? um exame aprofundado da categoria de “possibilidade objetiva”
permite distinguir vários níveis de validade dos “julgamentos de possibilidade”,
ou seja, para cada questão hipotética – chamemos-lhes assim – existem respos-
tas com graus diferentes de probabilidade, que oscilam entre um nível inferior,
o de uma causalidade acidental, e um nível superior, o de uma causalidade
adequada. entre estes extremos pode falar-se da influência mais ou menos
favorável de um determinado fator. Para fazer a distinção entre o que é cau-
salmente essencial e o que é insignificante, Weber diz que é preciso determinar
o grau de “hipótese favorável”. ora, esta determinação não pode ser matema-
190 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

ticamente quantificável, pois trata-se de uma probabilidade relativa e não abso-


luta, mas, comparando, através da imaginação, as várias condições modificadas
pelo pensamento, é possível chegar a um grau aproximado de influência de
uma possibilidade objetiva:
enfin, s’il ne nous est pas possible d’évaluer de façon équivoque, même par le
calcul des probabilités, le degré de chance favorable que certaines “conditions”
exercent sur un effet déterminé, nous sommes néanmoins en mesure d’évaluer le
“degré” relatif de cette chance générale favorable, grâce à la comparaison avec la
manière dont certaines autres conditions, modifiés en pensée, l’ “auraient” favori-
sée; et lorsque nous faisons en “imagination” cette comparaison grâce à un nom-
bre suffisant de modifications concevables des constellations, il est toujours pos-
sible, au moins en principe, de concevoir une proportion assez importante de
déterminabilité pour établir un jugement sur le “degré” de possibilité objective [...]
[Weber 1965: 316 – 317).

só após este processo de confrontação ou oposição é que é possível atri-


buir a um fator o estatuto de causa adequada. este estatuto é objetivo, no sen-
tido em que não resulta de um processo psicológico de descoberta de hipóteses,
mas porque constitui a estrutura lógica do conhecimento histórico.
em síntese, o que assegura uma ponte entre a composição da intriga e a
imputação causal singular é a imaginação; ao passo que a descontinuidade é
imposta pela análise dos fatores, pela inserção das regras da experiência ou
generalizações e, sobretudo, pelos graus de probabilidade que regulam a deter-
minação da causalidade adequada. o historiador é, sem dúvida, bem mais do
que um simples narrador, pois está obrigado a justificar a escolha de um fator
em detrimento de outros como causa suficiente de determinada cadeia de even-
tos214. a narrativa ficcional, por seu turno, é autoexplicativa, dispensa a argu-
mentação, pois a narração é suficiente como explicação. o historiador precisa
de argumentar as suas escolhas porque sabe que é possível encontrar outras
explicações, tal como o juiz em situação análoga se vê obrigado a fundamentar
e a justificar racionalmente os seus julgamentos.
Paul ricœur alerta que mesmo neste caso não se quebra o elo entre expli-
cação histórica e explicação narrativa, na medida em que a causalidade ade-
quada é irredutível à necessidade lógica do modelo nomológico forte. entre

214
«l’historien n’est pas un simple narrateur: il donne les raisons pour lesquelles il
tient tel facteur plutôt que tel autre pour la cause suffisante de tel cours d’événements»
(ricœur, TR i, 329).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 191

imputação causal singular e explicação nomológica vigora a mesma relação de


continuidade e descontinuidade que entre imputação causal singular e configu-
ração narrativa215.

a reflexão de aron acerca da causalidade e do acaso (cf. 1948, 218-224)


acentua mais que Weber a descontinuidade, mas também a relatividade da sua
teoria probabilística. o acidente não é apenas o extremo oposto da probabili-
dade adequada, pois um facto pode ser considerado acidental para um conjunto
de antecedentes e adequado para outro. todo o acontecimento deriva de várias
séries de causas e o grau de causalidade de um antecedente pode variar de
série para série.
também a continuidade entre explicação causal singular e explicação cau-
sal nomológica é bem marcada por aron, através do confronto entre história e
sociologia. a sociologia esforça-se por estabelecer leis ou generalizações e a
história limita-se a narrar os acontecimentos singulares216. Neste sentido, a his-
tória centra-se no estudo dos antecedentes de um facto singular, ao passo que
a sociologia pesquisa as causas de um facto passíveis de se reproduzir. Para os
sociólogos, a causa é sinónimo de antecedente constante. todavia, aron salienta
mais as interferências entre as duas modalidades de causalidade do que as divi-
sões. a construção da probabilidade retrospetiva de uma constelação histórica
inclui generalizações empíricas, que suscitam a procura de regularidades, logo,
são provenientes de um saber nomológico. a obra de aron mostra quer a ori-
ginalidade da causalidade sociológica quer a sua conexão com a causalidade
histórica, através da imputação causal singular. a investigação histórica fica
aquém da sociológica no que à pesquisa de regularidades e leis diz respeito,
mas supera-a por não fazer as abstrações típicas da sociologia217. a causalidade
histórica impede a história de cair numa explicação determinista.

215
«et, pourtant, redisons-le, la filiation de l’explication historique à partir de l’expli-
cation narrative n’est pas rompue, dans la mesure où la causalité adéquate reste irréductible
à la seule nécessité logique. le même rapport de continuité et de discontinuité se retrouve
entre explication causale singulière et explication par des lois qu’entre la première et la mise
en intrigue» (ricœur, TR i, 329).
216
«[...] la sociologie se caractérise par l’effort pour établir des lois (ou du moins des
régularités ou des généralités), alors que l’histoire se borne à raconter des événements dans
leur suite singulière» (aron 1948: 235).
217
Prost, nas suas lições sobre a história (1996) vê vantagem na alternância e na inte-
ração entre a história narrativa, fundada no acontecimento, e a história quadro de tipo socio-
lógico, fundada na estrutura. a imputação causal é a forma de explicação mais adequada para
a história narrativa dos acontecimentos e a explicação comparativa, quantitativa e estatística,
192 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

esta perspetiva fortalece a originalidade de aron relativamente a Weber e


tem que ver com a própria perspetiva filosófica que atravessa e dá unidade a
toda a sua obra. a epistemologia da Introdução à filosofia da história é gover-
nada pela luta contra a ilusão de fatalidade e determinismo, suscitada pela
retrospetiva histórica, e pela defesa da contingência do presente: «[...] la rétros-
pection crée une illusion de fatalité qui contredit l’impression contemporaine de
contingence. Ni l’une ni l’autre n’est a priori vraie ou fausse, l’avenir rectifie
souvent le jugement des acteurs» (1948: 224).
enquadrada neste princípio filosófico de fundo, a lógica da probabilidade
retrospetiva contribui grandemente para fortalecer a tese ricœuriana da tempo-
ralidade histórica, ao defender a representação das três dimensões do tempo nas
obras históricas e as construções ficcionais como partes integrantes da própria
ciência: «[...] l’enquête causale de l’historien a moins pour sens de dessiner les
grands traits de relief historique que de conserver ou de restituer au passé l’in-
certitude de l’avenir» (ibid.). e ainda: «les constructions irréelles doivent rester
partie intégrant de la science, même si elles ne dépassent pas une vraisem-
blance équivoque, car elles offrent le seul moyen d’échapper à l’illusion rétros-
pective de fatalité» (ibid.: 228).

de tipo sociológico, adequa-se às estruturas ou quadros. algumas formas de história, que se


centram sobretudo na análise de conexões, privilegiam mais a narrativa. a história política,
a das guerras ou revoluções, a história dos grandes acontecimentos do passado seguem uma
série de imputações causais. o grande contributo do modelo sociológico, do qual a quanti-
ficação é um dos elementos mais significativos, é permitir pensar com rigor as coerências que
dão consistência a uma sociedade, as suas estruturas. obviamente que a explicação socioló-
gica não é apropriada para a história dos acontecimentos propriamente ditos, mas pode por
vezes ser usada para confirmar ou infirmar determinada imputação causal. Por exemplo, para
averiguar se a miséria é a causa das greves, podemos recorrer, de um lado, às quantificações
dos níveis de salários e de desemprego e, do outro, à frequência das greves, e confirmar se
existe alguma relação entre estes dois tipos de indicadores. em todo o caso, o que obtemos
é uma causa material, nunca uma causa final, essa só pode ser obtida mediante imputação
causal. as causas finais, diz Prost, escapam por completo ao modo quantitativo, nunca uma
estatística nos poderá dizer se a decisão de Bismarck é ou não responsável pela guerra de
1866. Não obstante, daqui resulta claro que há dois modos explicativos em história, se bem
que um não possa substituir o outro, nada impede que se cruzem «pois qualquer problema
histórico concreto resulta simultaneamente da narrativa causal e do quadro estrutural»: «il en
résulte très clairement qu’il existe deux modes de raisonnement historique. Pour simplifier, on
dira que le premier s’intéresse aux enchaînements dans le déroulement du temps, et le second
aux cohérences au sein d’une société donnée dans un temps donné. le premier traite des évé-
nements et s’organise selon l’axe du récit, le second s’attache aux structures et relève du
tableau. Naturellement, l’un et l’autre s’entrecroisent car tout problème historique concret
relève simultanément du récit causal et du tableau structural» (Prost 1996: 207).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 193

a consideração retrospetiva das probabilidades excede a significação pura-


mente epistemológica, pois ela lembra aos leitores de história que o passado do
historiador foi o futuro das personagens históricas. Daí que ricœur afirme:
«l’historien se comporte ici en narrateur qui redéfinit par rapport à un présent
fictif les trois dimensions du temps» (TR i, 332). Devido ao seu caráter pro-
babilístico, a explicação causal introduz no passado a imprevisibilidade do
futuro e insere na retrospetiva a incerteza do acontecimento.

Posto isto, podemos afirmar com solidez que a imputação causal singular
desempenha a função de mediadora entre a composição narrativa e a explicação
por leis. No termo desta reflexão que associou causa e imaginação ao nível dos
procedimentos da investigação histórica, adivinha-se a complexidade que
envolve uma mesma mediação para o nível das entidades da história estrutural.
Pode objetar-se que os exemplos que max Weber apresenta para ilustrar a
imputação causal singular – os quais legitimam a filiação entre composição nar-
rativa e imputação causal singular – estão confinados à esfera política e, por
isso, confundem-se com a história factual ou com uma variante da “explicação
através de razões”, uma vez que põem em cena decisões de personalidades
influentes como a decisão de Bismarck de atacar o império austro-Húngaro.
esta objeção perde sentido se se puder estender a imputação causal singular a
acontecimentos históricos de grande envergadura, cuja causa não seja um indi-
víduo. e de facto, já o dissemos antes, a imputação causal singular pode, sem
perder o seu caráter singular, ser aplicada a acontecimentos históricos irredutí-
veis a indivíduos, como a batalha de salamina ou a influência da ética protes-
tante no espírito capitalista (exemplos também apresentados por max Weber),
onde não é possível discernir, separadamente, nem as decisões individuais nem
os acontecimentos pontuais218. ora, aparentemente, esta extensão parece provo-
car uma fratura total com a narrativa. contra esta aparência, ricœur assevera
que a analogia se mantém, mas deve ser entendida em termos de quasi-intriga.
intriga, segundo Paul Veyne, é a conjugação de fins, causas e acasos. este
mesmo critério é aplicado por ricœur à configuração narrativa: síntese do hete-
rogéneo: um todo coeso e uno formado por elementos tão díspares como as cir-
cunstâncias, as intenções, as interações, as adversidades, a fortuna e o infortú-

218
«l’historien peut s’interroger sur la portée historique de la bataille de salamine,
sans décomposer cet événement en une poussière d’actions individuelles. la bataille de sala-
mine est pour l’historien, dans une certaine situation de discours, un événement unique, dans
la mesure où elle peut faire en tant que telle l’objet d’une imputation causal singulière»
(ricœur, TR i, 336).
194 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

nio. É este critério que nos autoriza a falar, por transferência analógica, de
intriga no quadro das imputações causais singulares, na medida em que todas
as imputações causais singulares consistem numa síntese do heterogéneo. No
entanto, para salvaguardar a analogia da extensão da imputação causal singular
a partir do individual e para permanecer fiel ao argumento do laço indireto
entre explicação histórica e compreensão narrativa, Paul ricœur usa o conceito
de quasi-intriga219. esta analogia é extremamente importante para estabelecer o
paralelo entre as entidades de base do conhecimento histórico e as personagens
narrativas.

3.2.  As entidades da história: quasi-personagens

Diretamente implicada na imputação causal singular, que estabelece a


mediação entre a explicação científica e a explicação narrativa, está a segunda
modalidade responsável pelo corte epistemológico: as entidades próprias da his-
toriografia. Paul ricœur não escamoteia o pressuposto já enunciado, causador
da rutura epistemológica, de que uma personagem ficcional pode ser identifi-
cada e designada por um nome próprio, pode-se-lhe imputar a responsabilidade
de ações que lhe são atribuídas; é autor ou vítima dessas ações, que o podem
tornar feliz ou infeliz. Por sua vez, as entidades históricas a maior parte das
vezes não são personagens, são forças sociais que englobam ações individuais
anónimas220. Não obstante, à imagem do que aconteceu ao nível dos procedi-
mentos históricos com a imputação causal, também no caso das entidades é
possível, partindo dos pontos de contacto (“relais”) que a própria historiografia
oferece ao trabalho de reconstrução da intencionalidade histórica, estabelecer
um laço indireto entre as entidades historiográficas e as personagens da ficção,
por intermédio do que ricœur designa de “entidades de pertença participativa”.

219
«toutefois, pour rester cohérent avec mon argument du rapport indirect de l’expli-
cation historique à la structure du récit, je parlerai de quasi-intrigue, pour marquer le carac-
tère analogique de l’extension de l’imputation causale singulière, à partir de son exemple
princeps, l’explication causale des résultats d’une décision individuelle» (ricœur, TR i, 339).
Veremos como em La mémoire, l’histoire, l’oubli, ricœur não terá mais necessidade de man-
ter o “quasi”, pois estaremos já longe da macro-história de labrousse e Braudel. a história
das representações introduzida pela micro-história autoriza uma ligação direta com a narrativa
e as suas entidades de base que são, justamente, singulares.
220
o autor mostra-se avesso à teoria do “individualismo metodológico”, segundo a qual
é possível reduzir qualquer mudança social a ações individuais ou elementares, como se fosse
possível e legítimo identificar cada um dos autores responsáveis pela mudança social.
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 195

Falamos de entidades de primeira ordem do conhecimento histórico ou entida-


des ditas sociétales, que não se podem decompor numa “poeira de ações indi-
viduais”, mas que, apesar disso, remetem na sua constituição e na sua definição
para indivíduos passíveis de serem considerados como personagens de uma nar-
rativa. estas entidades de primeira ordem têm a particularidade de serem as
destinatárias preferenciais das imputações causais singulares de que se falou
anteriormente. aos procedimentos explicativos (sob o título de imputação causal
singular) que medeiam entre a explicação científica e a explicação narrativa
equivalem as personagens da narrativa que, na qualidade de objetos transicio-
nais, fazem a mediação entre as entidades próprias da historiografia e as enti-
dades narrativas221.
a tese de ricœur tem por base a importante reflexão levada a cabo por
maurice mandelbaum, em The Anatomy of Historical Knowledge, nomeada-
mente, acerca do conceito de “sociétal”. a epistemologia de mandelbaum, que
podemos situar a meio caminho entre as teses narrativistas e os defensores do
modelo de subsunção, preconiza que o objeto específico da história é de ordem
“sociétal”; querendo com isto dizer que a história compreende os pensamentos,
os sentimentos e as ações dos indivíduos no contexto específico do seu
ambiente social: «c’est seulement dans la mesure où les individus sont consi-
dérés par référence à la nature et aux changements d’une société existant en un
temps et en un lieu particuliers qu’ils intéressent les historiens» (apud ricœur,
TR i, 343).
a noção de sociedade como referência última da historiografia é funda-
mental para mandelbaum e a sua oposição à noção de cultura fará dela um
objeto transicional entre o plano da narrativa e o plano da história explicativa:
une société, dirai-je, consiste en individus vivant dans une communauté organisée,
maitresse d’un territoire particulier; l’organisation d’une telle communauté est
assurée par des institutions qui servent à définir le statut assumé par différents
individus et leur assigne les rôles qu’ils sont tenues de jouer, tout en perpétuant
l’existence ininterrompue de la communauté [apud ricœur, TR i, 344].

convém salientar os três traços característicos da sociedade que se desta-


cam nesta definição: em primeiro lugar, relaciona-se a comunidade e a sua
duração com os lugares que habita; em segundo, com os indivíduos que a com-

221
«l’appartenance participative est aux entités ce que l’imputation causale singulière
est aux procédures de l’historiographie» (ricœur, TR i, 341).
196 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

põem, atribuindo-lhes funções institucionais; por último, caracteriza-se a comu-


nidade pela sua existência contínua, através do renovamento geracional – este
último traço é fundamental para a oposição entre sociedade e cultura.
a cultura é alvo de uma história especializada que investiga todas as aqui-
sições abstratas, resultantes da criatividade social, implicadas no uso individual
e transmitidas por uma tradição, como são os casos das línguas, das técnicas,
das artes, das crenças religiosas, ideológicas e filosóficas. a sociedade, pelo
contrário, é alvo de uma história geral que se ocupa, exatamente, do estudo das
sociedades particulares (povos, nações) cuja existência é contínua.
tal como a imputação causal singular apresenta uma afinidade com a
composição da intriga, que permite falar dela como uma quasi-intriga, também
a sociedade, entendida, na senda de mandelbaum, como uma entidade singular,
pode ser considerada como uma quasi-personagem do discurso histórico. esta
analogia é justificada quer pela teoria narrativa quer pela própria estrutura do
fenómeno “sociétal”.
Do ponto de vista da teoria narrativa, personagem é quem age, mas não
é obrigatório que seja um indivíduo. esta função pode ser assumida por qual-
quer entidade, desde que corresponda ao sujeito gramatical de um predicado de
ação. Neste sentido – diz ricœur – a história não faz mais do que prolongar
e ampliar a dissociação operada pela composição da intriga entre a personagem
e o agente real do campo da praxis. Pode mesmo dizer-se que ela contribui
para conferir à personagem a sua dimensão narrativa total (cf. TR i, 347). isto
porque o indivíduo responsável é apenas o primeiro de uma série de outras per-
sonagens análogas, compostas por povos, nações, classes e todas as comunida-
des que cabem dentro da noção de sociedade singular.
em segundo lugar, a própria noção de sociedade, de acordo com a con-
ceção de mandelbaum, comporta uma marca característica que fundamenta esta
analogia com o papel da personagem. Falamos da referência necessária e oblí-
qua aos indivíduos que a constituem. trata-se de uma referência oblíqua na
medida em que não é obrigatório que entidades individuais entrem no discurso
direto do historiador, que pode contemplar unicamente entidades coletivas222.
No entanto, esta referência oblíqua está inscrita na definição de sociedade de
mandelbaum, nos seus três traços constituintes, pois tanto a organização terri-

222
Não é tarefa de uma história que se quer científica explorar este laço oblíquo entre
a sociedade e os indivíduos que a compõem, cabe porém à fenomenologia genética a missão
de estudar a origem desta ligação. esta encontra-o no chamado fenómeno de pertença par-
ticipativa, que une as entidades históricas de primeira ordem à esfera da ação.
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 197

torial como a estrutura institucional como a continuidade temporal se referem


a indivíduos que habitam o território, que desempenham papéis sociais e que
asseguram a continuidade da sociedade a que pertencem pela renovação das
gerações. É esta referência que permite falar da sociedade como um grande
indivíduo, comparável aos indivíduos que a formam.
a referência oblíqua do fenómeno “sociétal” aos indivíduos justifica a
extensão analógica do papel de personagens às entidades de primeira ordem da
história. esta analogia permite que as entidades históricas de primeira ordem
sejam designadas como sujeitos lógicos de verbos de ação e de paixão. toda-
via, esta transferência de vocabulário do indivíduo para as entidades de pri-
meira ordem da historiografia não implica nunca que a entidade coletiva em
causa seja reduzida aos indivíduos que a compõem ou que as suas ações pos-
sam ser atribuídas distributivamente a cada um dos seus membros. esta trans-
ferência é apenas analógica e está bem assente no fenómeno de pertença par-
ticipativa estudado pela fenomenologia genética.
em suma, é porque cada sociedade é composta por indivíduos que elas se
comportam do ponto de vista histórico como um grande indivíduo e assim o
historiador pode legitimamente tratá-las como sujeitos de ação e imputar-lhes a
responsabilidade histórica de determinados resultados, mesmo não intencionais.
Nisto se funda a analogia patente na noção de quasi-personagem adotada por
ricœur. mas é por intermédio da categoria narrativa de personagem que as
entidades de primeira ordem do historiador visam as entidades do campo real
da ação, ou seja, a noção narrativa de personagem assegura, ao nível da con-
figuração, a mediação entre as entidades de primeira ordem da historiografia e
os indivíduos agentes do campo prático:
[...] c’est parce que la technique du récit nous a appris à décrocher le personnage
de l’individu, que le discours historique peut opérer ce transfert sur le plan syn-
taxique. en d’autres termes, les entités historiographiques de premier ordre ne
constituent un relais entre les entités de second, voire de troisième ordre, et le
plan de l’action réelle que parce que la notion narrative de personnage constitue
elle-même un relais au plan de la configuration entre ces entités de premier ordre
dont traite l’histoire et les individus agissants qu’implique la pratique réelle [TR
i, 351].

a obra de mandelbaum fornece ainda a ricœur um elemento essencial


para o estabelecimento de uma correlação entre as entidades de primeira ordem
do conhecimento histórico e o procedimento de imputação causal: a existência
contínua da sociedade, que permite distingui-la da cultura. De facto, uma fun-
ção essencial da imputação causal é a de restabelecer a continuidade de um
198 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

processo cuja unidade de desenvolvimento parece interrompida ou até inexis-


tente. De acordo com mandelbaum, a causalidade traduz a continuidade de um
processo singular, pois a causa é o processo inteiro, o efeito apenas o seu ponto
final. assim, não é correto separar o remate do golo nem a má colheita da
intempérie. contrariando Hume, o autor preconiza que a análise da causa de
uma ocorrência particular consiste em remontar aos fatores variáveis responsá-
veis pela singularidade dessa ocorrência, o que é muito diferente de explicar
um fenómeno por uma lei geral sobre uma conexão invariável entre fatores tipi-
ficados e discretos. a explicação causal tem como finalidade a reconstituição
dos aspetos de um processo singular cujo curso sofreu algures uma interrup-
ção223.
Daqui resultam duas consequências fundamentais para a epistemologia his-
tórica. a primeira é relativa à inserção de regularidades numa imputação causal
singular. mesmo que no curso da explicação de um processo singular se recorra
às generalidades das leis, estas não substituem, de modo algum, a singularidade
da explicação causal. ricœur dá o seguinte exemplo, que é bastante elucidativo:
se dissermos que o indivíduo x foi morto por uma bala que lhe perfurou o
coração, as leis fisiológicas relativas à circulação sanguínea preenchem os fato-
res abstratos, mas não as fases concretas do processo efetivo, ou seja, elas for-
necem a argamassa, mas não os tijolos. a segunda consequência prende-se com
o facto de a explicação fazer aparecer o efeito de um processo contínuo como
necessariamente determinado. Depois de se conhecer o estado inicial do sis-
tema, o resultado é necessariamente um. Não obstante, isto não significa que o
acontecimento foi abstratamente determinado, pois a sua determinação só é pos-
sível quando se analisa a sua ocorrência dentro de um sistema fechado, deli-
mitado num tempo e num espaço concreto224. importa ter bem presente que a
necessidade causal é sempre uma necessidade condicional: «Étant donné l’en-
semble complet des conditions causales qui ont eu lieu (et non d’autres), il a
été nécessaire que l’effet effectivement produit advienne» (ricœur, TR i, 354).
em suma, a explicação causal tal como mandelbaum a define assenta em
três pilares fundamentais: a causalidade é a conexão interna de um processo
contínuo; as generalizações em forma de lei têm lugar na explicação causal sin-
gular; a necessidade causal é condicional e não implica nenhuma crença ou
determinismo.

223
«[...] to constitute aspects of a single ongoing process» (apud ricoeur, TR i, 353).
224
«les conditions initiales ne peuvent être dites entraîner logiquement leur effet,
puisque ce dernier résulte du fait contingent que chacune des occurrences prises au point de
départ ont pris place à tel moment et en tel lieu» (ricœur, TR i, 354).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 199

3.3. Tempo histórico e tempo narrativo: quasi-acontecimento

Depois de ter descortinado, nos procedimentos explicativos e nas entida-


des de primeira ordem provenientes do corte epistemológico da ciência histó-
rica, ecos da explicação e das personagens da compreensão narrativa, ricœur
procura uma aproximação equivalente entre tempo histórico e tempo narrativo:
«Peut-on démontrer que le temps construit par l’historien est issu, par une série
d’écarts, de la temporalité propre au récit?» (TR i, 363).
o elemento que permite estabelecer a relação encontra-se na própria
noção de acontecimento e no uso ambíguo que dela fazem os historiadores,
nomeadamente, os do círculo da historiografia francesa.
Normalmente, associamos à ideia de acontecimento os atributos de contin-
gência, singularidade e afastamento. segundo Paul ricœur, a mise en intrigue
reformula esta noção: os acontecimentos são inteligíveis pois provocam uma
mudança de rumo na história e fazem-na progredir, ou seja, o acontecimento
é uma variável da intriga. as próprias intrigas, por um lado, narram aconte-
cimentos únicos, mas, por outro, inserindo-se em arquétipos de configuração,
universalizam o acontecimento; além disso, as intrigas combinam contingência
com necessidade e verosimilhança, dando sentido e legibilidade à história,
como no-lo recordaram gallie e mink; e ainda combinam a submissão aos
paradigmas com a fuga à tradição narrativa ou sedimentação com a invenção:
«Du fait qu’ils sont racontés, les événements sont singuliers et typiques, con-
tingents et attendus, déviants et tributaires de paradigmes [...]» (ricœur, TR i,
365).
Posto isto, a tese de ricœur é a de que os acontecimentos históricos não
divergem radicalmente dos acontecimentos narrativos. a mesma derivação indi-
reta verificada anteriormente, dos procedimentos explicativos e das entidades a
partir das estruturas de base da narrativa, leva-nos a crer que é possível,
mediante ações apropriadas, estender à noção de acontecimento histórico a
reformulação que a noção de acontecimento narrativo (événement-mis-en-intri-
gue) impôs aos conceitos de singularidade, contingência e afastamento abso-
lutos.
as ações apropriadas encontra-as ricœur nos escritos de Fernand Braudel,
principalmente na sua obra maior sobre o mediterrâneo e Filipe ii, com os
quais o filósofo francês tenta mostrar como a própria noção de história de
longa duração deriva de um acontecimento dramático, na aceção de événement-
mis-en-intrigue. a divisão tripartida do tempo social teorizada por Braudel serve
200 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

de ponto de partida para esta premissa225. o que torna a distinção entre as três
modalidades temporais de La Méditerranée et le Monde méditerranéen... pen-
sável é a própria unidade da obra que mantém a coesão entre as três partes em
que se subdivide. mesmo o título, ao fazer referência quer ao mediterrâneo
quer a Filipe ii, interpela-nos sobre a forma como a longa duração opera esta
transição da estrutura para o acontecimento, ou seja, do meio físico para a
figura histórica do rei. a compreensão do papel mediador da longa duração dos
fenómenos civilizacionais, que ocupa a secção intermédia, permite a ricœur o
reconhecimento do caráter narrativo que se cola ao todo constituído pelas três
partes da obra. Por isso, concluirá que o papel relevante das estruturas de tran-
sição que asseguram a unidade e coerência do texto permitem considerar o seu
agenciamento unificador em termos de quasi-intriga, na aceção mais abrangente
de Paul de Veyne226.
mesmo na primeira parte onde, sob a batuta de uma duração muito lenta
(quase imóvel) se descreve o meio geográfico, é possível detetar um ténue
cunho histórico, preservado, justamente, pelas referências económico-políticas
que vão preparando o terreno para a ação da segunda e da terceira partes,
dominadas pelos conflitos entre a espanha e a turquia. as montanhas, os mares
e as planícies são descritas sempre em função dos homens que aí habitam,
antecipando os acontecimentos do segundo nível temporal227. a polaridade dos
impérios turco e espanhol é avançada na própria polaridade geográfica, as
zonas marítimas transformar-se-ão em zonas políticas. É assim que a geo-his-
tória do primeiro nível dá lugar à geopolítica do segundo.
oscilando entre o registo da estrutura e da conjuntura, a segunda parte
constitui-se em torno de três grandes princípios estruturadores: as economias, a
geopolítica, as civilizações. todavia, a exposição de um conjunto de factos his-
tóricos, devidamente datados, comprovam a constante interferência do nível iii
no nível ii. ricœur termina mesmo a análise das duas primeiras partes da obra

225
«il faut se demander ce qui rend pensable la distinction même entre une «histoire
quasi immobile», une «histoire lentement rythmée» et une «histoire à la dimension de l’in-
dividu», a savoir cette histoire événementielle que l’histoire de longue durée doit détrôner»
(ricœur, TR i, 365).
226
Por estrutura de transição ricœur entende «toutes les procédures d’analyse et d’ex-
position qui font que l’œuvre doit se lire d’avant en arrière et d’arrière en avant» (TR i, 366).
227
«répétons-le: ce ne sont pas les espaces géographiques qui font l’histoire, mais bien
les hommes, maîtres ou inventeurs de ces espaces» (Braudel, La Méditerranée et le Monde...;
apud ricœur, TR i, 368).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 201

de Braudel, dizendo o seguinte: «tout, donc, conspire, dans les deux premières
parties, à couronner l’édifice par une histoire des événements qui met en scène
«la politique et les hommes» (TRi, 373).

a terceira parte põe em cena os acontecimentos, porém não se trata de


uma concessão à história dita tradicional ou factual, pois os acontecimentos que
o historiador escolhe são aqueles que dão testemunho das massas profundas da
história. o critério de eleição do acontecimento vai ao encontro da imputação
causal singular de max Weber e aron, pois o historiador só retém os mais
importantes, isto é, aqueles cujas consequências os tornaram importantes.
a segunda tese de ricœur é a de que «é em conjunto que os três níveis
da obra constituem uma quasi-intriga, uma intriga no sentido largo de Paul
Veyne». Dito isto, o autor reconhece que seria um erro cingir ao terceiro nível
o parentesco da obra com o modelo narrativo da composição narrativa. um dos
benefícios maiores desta análise é justamente criar condições para a reformula-
ção do conceito de intriga e daí para o conceito de acontecimento. se o texto
de Braudel pode ser considerado como quasi-intriga, não é somente porque
comporta um terceiro nível mais factual e por isso mais identificável com o
modelo tradicional da narrativa. Do mesmo modo, o segundo nível, só por si,
não é suficiente para fundamentar a nova forma de intriga, mas a história eco-
nómica presta-se a ser uma intriga pelo facto de apresentar um termo inicial e
um termo final, uma vez que qualquer intriga, de acordo com aristóteles, deve
comportar uma ordem inteligível e uma extensão não excessiva, que possa ser
abarcada como um todo. ora, a intriga do mediterrâneo é delimitada pelo declí-
nio do mediterrâneo como herói coletivo na cena da história mundial. o fim
da intriga não é a morte de Filipe ii, mas o fim das rivalidades entre os dois
grandes impérios, espanhol e turco, e a deslocação da história para o atlântico
e europa do Norte. Para esta intriga concorrem as três partes distintas ou níveis
temporais da obra e o que assegura a imagem implícita do todo são as inter-
ferências, de que atrás se falou. o resultado do trabalho de Braudel é uma
quasi-intriga virtual, dividida em várias intrigas menores que, ainda que explí-
citas, são parciais e, nesse sentido, abstratas. o próprio Braudel ao dizer que
não são os espaços geográficos que fazem a ação, mas os homens, mestres ou
inventores dos espaços, coloca a sua obra sob o signo da mimesis da ação.
Por conseguinte, pode dizer-se que tal como Homero recortou no vasto
campo da guerra de troia algumas histórias que narrou na Ilíada, do mesmo
modo Braudel seleciona no vasto campo do grande conflito que opôs o oci-
dente ao oriente o conflito que tem como protagonistas a espanha e a turquia,
na época de Filipe ii, e cuja trama consiste no declínio do mediterrâneo como
202 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

zona histórica. Para ricœur, Braudel, com o seu método analítico e disjuntivo,
inventou um novo tipo de intriga, que designa de intriga virtual, uma intriga
onde as três temporalidades diferentes aparecem separadas: «s’il est vrai que
l’intrigue est toujours à quelque degré une synthèse de l’hétérogène, l’intrigue
virtuelle du livre de Braudel, en conjuguant des temporalités hétérogènes, des
chronologies contradictoires, nous apprend à conjuguer des structures, des
cycles et des événements» (TR i, 382).
Depois de fundamentar a atribuição do caráter de quasi-intriga ao texto de
Braudel, ricœur mostra-se em condições de realizar uma depuração semântica
no conceito de acontecimento tal como o entende a escola dos annales. Para
ricœur, o acontecimento não tem de ser necessariamente breve, nervoso, explo-
sivo. Não é específico apenas do terceiro nível temporal, mas pode aparecer em
qualquer um dos outros, com funções diversas: no terceiro nível ele guarda a
sua característica explosiva, nos restantes ele assume-se como um sintoma ou
testemunho. o acontecimento do historiador, diferentemente do usado pelo
sociólogo e pelo economista, resulta dos desacordos ou discordâncias entre os
vários ritmos temporais que envolvem as pessoas e as civilizações. o historia-
dor, ao invés do sociólogo, está atento aos pontos de rutura pontuais das estru-
turas, à sua brusca ou lenta deterioração, em suma, à perspetiva da sua extin-
ção. Braudel, como qualquer historiador tradicional, é dominado pela
caducidade dos impérios; na obra em causa, pela perda da influência histórica
do mundo mediterrânico. Daqui conclui ricœur: «c’est à nouveau la fragilité
des œuvres humaines qui passe au premier plan et avec elle la dimension dra-
matique dont la longue durée était censée délivrer l’histoire» (ibid.: 384).
De facto, o que o trabalho de estruturação da história, levado a cabo por
Braudel, acaba por fazer é atribuir uma nova qualidade ao acontecimento, ao
mostrar-nos que mesmo as estruturas mais estáveis não estão livres de sofrer
mudanças228. e o que lhes acontece é a morte. Daí que a sua obra termine com
o quadro de uma morte, não a do mediterrâneo, mas a de Filipe ii229.

228
Num artigo de 1992 («le retour de l’Événement»), ricœur dirá o quanto o exemplo
da obra de Braudel lhe permitiu fazer a transição apropriada para o “regresso do aconteci-
mento” (ricœur 1992: 31), na medida em que a história “non événementielle” pôs em evi-
dência estruturas e conjunturas instáveis que dão lugar ao imprevisível, ao contingente, per-
mitindo colocar o acontecimento como terceiro elemento da tríade constituída já por estrutura
e conjuntura. com esta promoção, o acontecimento muda o seu estatuto epistemológico. o
acontecimento é construído mas não por uma narrativa, antes por uma estrutura ou uma con-
juntura, que por sua vez também são construções. em todo o caso, continua a ser uma cate-
goria inexpugnável, permitindo chamar revolução aos acontecimentos súbitos da estrutura
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 203

Finalmente, podemos sintetizar dizendo que as discordâncias de ritmo das


múltiplas temporalidades, embutidas no devir geral das sociedades, revelam a
analogia profunda das mudanças históricas menos pontuais com as mudanças
bruscas de fortuna que, na narrativa, são consideradas acontecimentos.

a engenhosa estratégia de ricœur para conciliar de novo a história


enquanto ciência com a narrativa não se fica por aqui. tendo-se detido demo-
radamente sobre a obra de Braudel, um dos patriarcas da nova história cientí-
fica, não se coíbe de estender o olhar para as obras dos seus correligionários,
nomeadamente Jacques le goff, georges Duby e François Furet, para anular
definitivamente a tese que incompatibiliza estruturas e ideologias com aconte-
cimentos e narrativa.
muito sucintamente, mesmo na obra Un autre Moyen Âge de le goff,
escrita ao ritmo de uma muito longa duração e sob os auspícios da antropologia

(revolução demográfica, industrial) e às mudanças de tendência no âmbito das conjunturas. o


regresso do acontecimento, propalado por Pierre Nora antes de ricœur, não é nenhuma
regressão ao acontecimento da história “événementielle” assente na singularidade não repetí-
vel, no primado abusivo da história política e no primado também excessivo dos grandes
homens da história mundial. ele resulta da transformação do campo histórico impulsionada
pela escola dos annales e pelas teorias estruturalistas da linguística e da antropologia, que
desclassificam por completo este tipo de acontecimento. o “regresso do acontecimento” passa
por uma reformulação do conceito em três frentes. a noção narratológica de personagem, cor-
relativa da de intriga, permite dar um âmbito muito mais vasto à noção de agente da história,
que não é mais o grande homem nem, necessariamente, os indivíduos, mas grupos, forças,
classes em conflito. a história política não é mais “événementielle”, mas engloba, a par do
factual, o estrutural e o conjuntural. Por fim, relativamente ao caráter singular e irrepetível
do acontecimento, aposta-se numa dialética sistémico-ocorrencial (“systémo-événementielle”),
em que o acontecimento, longe de ser um resíduo que não se deixa sistematizar, é o iniciador
de sistemas, eles próprios abertos ao improvável, ao aleatório, ou seja, ao acontecimento.
229
ricœur interroga-se sobre a opção de terminar a obra com a morte de Filipe ii, em
13 de setembro de 1598, porque, do ponto de vista da história do mediterrâneo, essa morte
é insignificante. a justificação é que essa morte foi muito significativa para os protagonistas
da época, sobretudo para os adversários de Filipe ii, para quem o seu reinado pareceu inter-
minável. ou ainda que esta morte confere um caráter humano/mortal a uma história que
extravasa em larga escala o tempo mortal. Jacques rancière tem ainda outra leitura. Para ele,
o facto de Braudel guardar para o fim o relato da morte do rei, apresentando-o deslocado da
ordem normal dos acontecimentos narrados, tem um significado alegórico e metafórico, o da
morte da história factual e política: «la mort déplacée de Philippe ii, nous comprenons
qu’elle métaphorise la mort d’une certaine histoire, celle des événements et des rois. l’évé-
nement théorique sur lequel se clôt le livre est ceci: que la mort du roi ne fasse plus évé-
nement. la mort du roi signifie que les rois sont morts comme centres et forces d’histoire»
(rancière 1992: 26-27).
204 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

e da história, o filósofo francês não deixa de ver quasi-acontecimentos. É ver-


dade que as mentalidades mudam muito lentamente, mas ainda assim são datá-
veis e sujeitas a uma evolução histórica. a longa duração como que se abrevia
em quasi-acontecimentos. o conflito entre o tempo da igreja e o tempo dos
comerciantes, representado no confronto entre os sinos e os relógios, é um dos
acontecimentos maiores da história mental dos séculos compreendidos pela
idade média, onde radica a ideologia do tempo moderno.
a análise sociológica que georges Duby leva a cabo em Trois Ordres ou
l’imaginaire du féodalisme permite chegar às mesmas conclusões, vindo corro-
borar a tese de ricœur de que mesmo no quadro das estruturas ideológicas,
sobretudo, em momentos críticos ou de rutura, se infiltram acontecimentos ou,
para ser mais preciso, quasi-acontecimentos, cujo veículo é, como em Braudel,
a quasi-intriga230. Duby dramatiza uma estrutura ideológica através da elabora-
ção de uma quasi-intriga delimitada por princípio, meio e fim. a estrutura em
causa é a representação imaginária da sociedade inteira sob a forma de uma
hierarquia dividida em três ordens: os que rezam; os que combatem; e os que
alimentam os anteriores pelo seu trabalho. esta imagem trifuncional é a perso-
nagem central da quasi-intriga que o historiador constrói para o funcionamento
do sistema ideológico em questão: o feudalismo emergente.
o regresso ao acontecimento torna-se inevitável no campo da história
política. François Furet, em Penser la Révolution Française, questiona como se
pode pensar um acontecimento como a revolução Francesa. o acontecimento
revolucionário, a partir do momento em que eclode, transforma radicalmente a
situação anterior e institui uma nova ordem de ação histórica. também aqui,
como em Braudel, o acontecimento é um resíduo de cada tentativa de explica-
ção, é uma dissonância entre estruturas explicativas, que marca a própria vida
e morte das estruturas.

Posto isto, impõem-se algumas considerações finais. se a longa duração,


em qualquer uma das suas três modalidades, não remeter para o acontecimento,
dissolve-se o laço entre temporalidade humana e tempo histórico e o tempo his-
tórico deixa de o ser se se desligar da maneira como o ser humano vive o
tempo. Disso nos dá conta o próprio ricœur: «un temps long peut être un
temps sans présent, donc aussi sans passé ni futur: mais alors il n’est plus un

230
«c’est tout ce que je voulais démontrer: les quasi-événements qui marquent les
périodes critiques des systèmes idéologiques s’encadrent dans des quasi-intrigues, qui assu-
rent leur statut narratif» (TR i, 391).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 205

temps historique, et la longue durée reconduit seulement le temps humain au


temps de la nature» (TR i, 394-395).
a longa duração de Braudel, ao esquecer o presente, corre, por vezes, o
risco de esvaziar o tempo histórico de qualquer humanismo. Para o evitar, é
preciso manter uma analogia entre o tempo dos indivíduos e o tempo das civi-
lizações, analogia que, de acordo com ricœur, incide no crescimento e no
declínio, na criação e na morte, no destino. trata-se, pois, de uma analogia que
está para a temporalidade como a analogia entre imputação causal e configu-
ração narrativa está para os procedimentos e a analogia entre sociedades e per-
sonagens narrativas para as entidades próprias da história, o que leva ricœur
a sentenciar: «tout changement entre dans le champ historique comme quasi-
événement» (TR i, 395).
o filósofo francês insiste que esta revalorização do acontecimento não
equivale à defesa da sua qualidade breve e súbita que a história de longa dura-
ção repudiou. o quasi-acontecimento (quasi-événement) de que fala tem uma
extensão que ultrapassa a imediatez confusa do momento, pois é correlativa à
extensão própria da intriga e da personagem. ele reside onde de viés se puder
descortinar uma quasi-intriga e quasi-personagens231. No contexto da história, o
acontecimento corresponde ao que aristóteles, na Poética, chamava de metabole
ou mudança no rumo dos acontecimentos. logo, um acontecimento não é o que
apenas contribui para o desenrolar de uma intriga, mas também o que lhe con-
fere a marca dramática de uma mudança de fortuna.
este parentesco entre quasi-acontecimento e quasi-intriga faz com que a
pluralidade dos tempos históricos de Braudel seja uma expansão do tempo nar-
rativo e da sua aptidão para combinar em proporções variáveis a cronologia dos
elementos episódicos com a cronologia da configuração. o filósofo francês
afirma que cada um destes níveis temporais usados pela explicação histórica
pode ser visto como uma extrapolação desta dialética. em termos comparativos,
podemos dizer que o acontecimento fugaz faz prevalecer o caráter episódico,
mesmo em narrativas altamente complexas, ao passo que a longa duração asse-
gura a presença da configuração (cf. ricœur, TR i, 396).
saliente-se a pertinência e a sagacidade na forma como ricœur conseguiu
aproximar a história da narrativa através dos conceitos de quasi-intriga, quasi-
-personagem, quasi-acontecimento, que permitem justamente respeitar a forma

«il y a quasi-événement là où nous pouvons discerner, même très indirectement, très


231

obliquement, une quasi-intrigue et des quasi-personnages» (ricœur, TR i, 395).


206 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

muito indireta de filiação pela qual a historiografia, mesmo a mais afastada


da narrativa no seu estilo de escrita, se revela tributária da inteligência narra-
tiva232. utilizando estes termos, o filósofo tem consciência de ter levado os con-
ceitos, que inicialmente elaborou sob o signo da mimesis ii, até ao extremo da
sua flexibilidade (TR i, 403). a intriga que ele descortina implícita na obra de
Braudel fica no limite do que podemos considerar uma intriga e vimos como
ela é muito ténue e de difícil reconstrução. De igual modo, o manuseio de
nomes próprios, quando aplicados às entidades de primeiro nível da história,
exige muita prudência. mesmo os acontecimentos, para serem equiparados às
discordâncias e às ruturas que pontuam a vida das estruturas económicas,
sociais, ideológicas de uma sociedade singular, tiveram de perder o seu caráter
breve e súbito. mas só assim, como afirma o próprio, foi possível demonstrar
a analogia que preserva o elo entre história e narrativa:
le quasi des expressions quasi-intrigue, quasi-personnage, quasi-événement, atteste
le caractère hautement analogique de l’emploi des catégories narratives dans l’his-
toire savante. Du moins, cette analogie exprime-t-elle le lien ténu et dissimulé qui
retient l’histoire dans la mouvance du récit et ainsi préserve la dimension histo-
rique elle-même (ricœur, tr i, 403-404).

232
a análise de ricœur é justa, a obra de Braudel é ainda uma narrativa, possui uma
intriga muito ténue e diluída, mas tem os traços constitutivos da narrativa. todavia, até como
escrita é diferente. se partirmos, como rancière (1992: 32-33) da distinção efetuada por Ben-
veniste entre tempo da diegese que se relata por si própria e tempo do discurso no qual o
locutor está envolvido, chegamos à conclusão que a arquitectura narrativa do texto de Braudel
distancia-se da tradicional nos tempos verbais empregues, dando, atrevidamente, primazia ao
presente e ao futuro, conferindo-lhe objetividade e força assertiva, em vez dos tradicionais
perfeito, imperfeito e mais-que-perfeito, cuja distância temporal e neutralização da pessoa nar-
radora davam ao relato uma objetividade não assumida. Jacques rancière vê nesta revolução
gramatical operada por Braudel no emprego dos tempos verbais uma manifestação da revo-
lução sábia da nova história contra a história tradicional, factual. admira-se que muito poucos
e até mesmo ricœur não se tenham dado conta deste facto, embora entenda que a análise do
filósofo francês depende da sua perspetiva fenomenológica. ricœur virá a reconhecer a jus-
teza e a complementaridade da análise de rancière: «rancière complète ma propre analyse
de la structure narrative dissimulée de l’ensemble de l’ouvrage par un examen de l’usage
grammatical des temps verbaux [...]» (MHO, 447); mas também reconhece que a distinção
entre tempo do discurso que se relata a si próprio e tempo do discurso no qual o locutor está
implicado não é assim tão funcional no texto de Braudel: «la distinction n’est peut-être pas
aussi opératoire qu’on le voudrait dans le cas du texte braudélien» (ibid.).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 207

4.  REPERCUSSõES DAS TESES DE RICœUR

Por esta época da publicação de Temps et Récit, dá-se o retorno da histó-


ria política e do acontecimento233 e surge um novo objeto histórico, as represen-
tações, com a redução para uma escala micro-histórica. estas mutações trouxe-
ram consigo o legítimo regresso da narrativa, porém, a análise de ricœur
reporta-se a formas anteriores de escrever história, com particular incidência na
história social, a que conjuga acontecimento e estrutura, se processa a uma
escala macro-histórica e se lê no tempo longo, por vezes muito longo, onde a
narrativa e o acontecimento se diluem e quase desaparecem. Por isso, o esforço
e a perspicácia da leitura de ricœur influenciaram indelevelmente os escritos
posteriores sobre a prática histórica, sendo alvo de constantes citações, e con-
duziu à afirmação inexorável do caráter narrativo da história. François Dosse
(2006: 49) afirma que «a composição narrativa se impõe a todos os historiado-
res, mesmo àqueles que se distanciam mais da narrativa clássica do aconteci-
mento político-diplomático». Philippe carrard diz algo muito similar234. este
conclui que desde o positivismo ortodoxo até às suas variantes mais flexíveis,

233
«l’événement revient avec le politique avec des aspects proches de la péripétie dra-
matique: comme instauration et comme destruction. Dans le politique, quelque chose com-
mence: un nouveau pouvoir, ou mieux une nouvelle domination; et quelque chose finit: des
guerres sont perdues, des hommes sont massacrés, parce qu’incarnant telle race, des empires
s’écroulent ou se décomposent. c’est peut-être dans la politique que l’on est au plus près de
l’apparaître et du disparaître, du commencer et du finir qui définissent l’événement brut.
mais, encore une fois, l’événement ne s’ajoute pas du dehors et comme par surcroît à la
structure et à la conjoncture, qui seraient à chercher hors de la sphère politique, laquelle ne
serait qu’événementielle. la politique est lui-même le lieu de conjonction du structurel, du
conjoncturel et de l’événementiel» (ricœur 1992: 32).
234
Philippe carrard, apresenta, em 1992, um interessante estudo com o título de Poe-
tics of the New History, que parte, justamente, também, de uma análise do discurso histórico
na França do pós-guerra, de Braudel a chartier, nomeadamente, o produzido pelos historia-
dores que se identificam com a escola dos annales. analisa os seus diversos modos de escrita
a partir de critérios como a personificação ou não de entidades abstratas, a utilização dos
tempos verbais, a projeção do “eu” no discurso, as modalidades da prova (citações, séries,
quadros, gráficos, etc.). o interessante desta análise é constatar que historiadores que comun-
gam dos mesmos princípios ideológicos da história-ciência e se debruçam sobre um mesmo
objeto de análise conseguem ser extremamente díspares na forma de escrever e nas provas
apresentadas. isto equivale ao reconhecimento da dependência da história relativamente às
técnicas retóricas da narração e as possibilidades, conscientemente controladas ou não, das
variações no seio da matriz que partilham.
208 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

a história nunca deixou de ser narrativa. e adverte: «não existe esperança de


reforma» para aqueles historiadores que, quixotescamente, «pensam que os tex-
tos podem ser expurgados, se não da própria “linguagem”, pelo menos das
estratégias literárias» (carrard, apud Bebiano s/d: 12).
Jacques rancière, alguns anos depois da publicação de Temps et Récit,
retoma e complementa a análise de ricœur. rancière enaltece Braudel (e tam-
bém lucien Febvre) por terem sabido, com as suas obras, fazer o entrecruza-
mento poético do novo objeto da história com a língua do saber e, deste modo,
resistir às seduções do cientismo radical, impedindo a história de se diluir no
seio das ciências humanas, reduzida a uma função meramente secundária, for-
necedora de dados estatísticos:
le propre de la révolution historienne alors n’est pas simplement d’avoir su défi-
nir les objets nouveaux de la longue durée, de la civilisation matérielle et de la
vie des masses et leur adapter les instruments nouveaux de la langue des chiffres.
il est d’avoir su reconnaître, dans le chant des sirènes de l’âge scientiste, la
menace de sa perte, le dilemme caché sous les propositions de sa scientifisation;
ou l’histoire ou la science» (rancière 1992: 18).

souberam contornar a armadilha da disjunção – ou pela ciência ou pela


história – e reagiram com inteligência, tentando conjugar as duas, optando por
articular as estruturas de longa duração com os nomes e os acontecimentos
diplomáticos. a ligação entre os interesses e as investigações da nova história
com os nomes próprios dos reis não é um efeito retórico, assegura rancière.
antes, é a resposta à tentação disjuntiva: «le génie particulier de lucien
Febvre est d’avoir intuitivement compris ceci: l’histoire ne pouvait faire une
révolution qui fût la sienne qu’à jouer de l’ambivalence de son nom, à récuser,
dans la pratique de la langue, l’opposition de la science et de la littérature»
(ibid.: 19).
Não é fácil conciliar os rigores da ciência com os charmes da literatura.
No entanto, só a língua das histórias é apta a marcar a cientificidade própria
da ciência histórica. Para isso foi preciso constituir em língua de verdade a lín-
gua tanto verdadeira como falsa das histórias ficcionais; é esse processo de lim-
peza e transformação gramatical que rancière estuda sob o título de poética do
saber: «Étude de l’ensemble des procédures littéraires par lesquelles un dis-
cours se soustrait à la littérature, se donne un statut de science et le signifie»
(ibid.: 21).
antoine Prost também valoriza, reflete e amplifica a leitura de ricœur. o
autor das “lições de história” tem como princípio que não há história sem
intriga e sem narratividade, seja ela de que tipo for.
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 209

[l’histoire] n’est pas seulement faits, questions, documents, temporalités, concep-


tualisation, compréhension, recherche des causes et exploration des structures, elle
se compose aussi comme une intrigue et s’écrit avec des phrases, faites de mots.
toute histoire présente une dimension littéraire, ou linguistique, disons rhétorique
et langagière [...] (Prost 1996: 236).

No quadro de uma reflexão acerca das mutações científicas e literárias da


própria ciência histórica, o historiador francês disserta sobre o contributo da
sociologia, a sua boa influência sobre a história social, a conjugação da expli-
cação por imputação causal com a explicação comparativa, quantitativa e esta-
tística, oriunda da sociologia de Durkheim, bem como as vantagens de se cru-
zar acontecimentos e estruturas, narrativas e quadros. É esta solidariedade entre
dois modelos históricos que se verifica na história social235. a obra de Braudel
é bem o exemplo da interação harmoniosa entre acontecimento e estrutura, nar-
rativa e quadro, que concorrem para formar um todo essencialmente diegé-
tico236. Já a história das mentalidades, toda feita de nuances e subtileza, oferece
mais resistência à introdução do método robusto mas grosseiro da quantificação.
De ricœur, Prost parece extrair, entre outras, a noção reformulada de
acontecimento, como aquilo que contribui para uma mudança, no sentido aris-
totélico de metabole – «[...] est événement tout ce qui arrive, tout ce qui
change, dans quelque ordre de réalité que ce soit» (Prost 1996: 255) – noção
esta que acaba com a oposição entre acontecimento e estrutura, quanto aos
fenómenos históricos a que apareciam associados: «l’événement et la structure
ne sont plus associés à deux ordres de phénomènes, le politique d’une part,
l’économique et le social de l’autre, qui commanderaient chacun un mode d’ex-
posé» (ibid.).
o que constitui o acontecimento e a estrutura é o tipo de pergunta. o
acontecimento é construído pela narrativa em resposta à questão “o que se pas-
sou?” e a estrutura é construída pelo quadro em resposta à questão “como eram
as coisas?”. o mesmo facto pode ser reconstruído pelo historiador como acon-

235
«l’histoire sociale constitue un bon exemple si l’on veut comprendre comment
s’unissent, dans une démarche concrète, la structure et l’événement, l’analyse des cohérences
et la recherche des causes» (Prost 1996: 213).
236
«Quelques-unes des plus fortes œuvres historiques de ce siècle, à commencer par La
Méditerranée, s’organisent autour de ces solidarités, de ces cohérences. [...] la dévalorisation
de l’événement et le désintérêt pour la question des causes s’accompagnent ici d’une valo-
risation du temps long des structures géographiques, économiques et techniques. le raisonne-
ment sociologique est à sa place, même si Braudel affirme quelque défiance envers les sys-
tèmes trop déterministes (Prost 1996: 207, 208).
210 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

tecimento ou como elemento de uma estrutura, dependendo da pergunta que


comanda a investigação e do tipo de intriga escolhido.
Nesse sentido, Prost considera que há três formas de exposição histórica:
as narrativas, os quadros e os comentários. atentemos nas duas primeiras.
a narrativa guarda a marca cronológica da passagem de um acontecimento ou
situação a outro ou outra. a política ou o acontecimento singular não gozam de
privilégio algum, qualquer objeto histórico pode ser alvo da narrativa237. Por
conseguinte, é absurdo falar do retorno da narrativa, pois ela nunca desapare-
ceu238. a narrativa convém à explicação dos acontecimentos (“porque é que isto
aconteceu?”), implicando, naturalmente, uma procura de causas e intenções. os
quadros são descrições situadas num tempo por vezes muito longo e no espaço.
Pretendem pôr a descoberto as coerências, respondem à pergunta do “como
foi?” e centram-se não sobre as mudanças, como a narrativa, mas sobre as par-
ticularidades do seu objeto e sobre o que assegura a sua unidade. também não
têm um objeto histórico específico239. Posto isto, é normal que algumas narra-
tivas comportem quadros (sequências descritivas e estruturais) e alguns quadros
comportem narrativas240. o que define uma narrativa histórica para Prost é o
seu recorte no contínuo temporal e o seu fechamento ou acabamento em torno
de uma questão que apela à construção de uma intriga sobre um qualquer
objeto de história241.
a despeito de concordar genericamente com a análise de ricœur, Prost
pretende complementar a sua reflexão. começa por reconhecer, em consonância

237
«l’histoire économique, comme celle des pratiques culturelles ou des représentations
peuvent appeler le récit aussi bien que l’histoire politique» (Prost 1996: 240).
238
Prost está claramente a referir-se ao artigo emblemático de lawrence stone, «retour
au récit ou réflexions sur une nouvelle histoire» (1980), que propalava com euforia o regresso
da narrativa, depois de um longo período de aridez dominado pelos números e pelas estatís-
ticas.
239
«Pas plus que le récit, le tableau n’est nécessairement associé à un type d’objet his-
torique. Naturellement, il convient à la présentation d’une société donnée, ou d’un groupe
social précis à un moment déterminé de l’histoire [...]. on peut consacrer des tableaux à des
événements, et même à ces événements les plus événementielles que sont les batailles. tout
dépend de la question privilégiée» (Prost 1996: 241).
240
«Plus profondément, l’explication causale du récit fait appel à des régularités qui
relèvent de structures, tandis que la description des structures recourt à des personnalisations
qui les transforment en acteurs de récits d’un autre type. les deux catégories se distinguent
sans s’exclure» (Prost 1996: 242).
241
«Qu’une histoire soit un récit, un tableau ou une forme mixte, c’est un texte clos,
un élément arbitrairement découpé dans l’ensemble indéfini du continuum illimité de l’his-
toire. toute entreprise historienne se définit par une clôture» (Prost 1996: 243).
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 211

com ricœur, que apesar de haver narração nos três níveis temporais em que
subdivide a obra de Braudel, só em conjunto os três formam uma intriga, cujo
desenlace é o declínio do mundo mediterrânico – «on ne comprendrait rien au
dénouement, si l’on n’intégrait pas les trois parties du livre entre elles et à l’in-
térieur de cette grande intrigue (Prost 1996: 253). Daí a conclusão epistemoló-
gica de que pode haver narrativa mesmo no interior de uma estrutura desde que
o objeto construído seja dinâmico: «toute histoire est narrative, parce qu’elle
inclut toujours du changement» (ibid.: 253). esta constrição deixa de fora da
intriga a marca mais genuína do quadro: a sua dimensão sincrónica. ora, Prost
pretende demonstrar que a sincronia também faz intriga e narrativa, na medida
em que está sempre, de algum modo, referida à diacronia. Desse modo, pode-
mos falar de narrativa na explicação de estruturas, correndo o risco consciente
de enfraquecer a própria noção de narrativa, ao reduzi-la às temporalidades
mútuas que ela inclui nos seus próprios enunciados, como exemplifica a frase
narrativa de Danto: «en 1717 naquit l’auteur du Neveu de Rameau». É que,
segundo o autor, «descrever uma coerência ou analisar uma estrutura supõe
uma intriga» (ibid.). No cinema não são apenas os filmes que estão construídos
sobre uma intriga, para Prost os documentários também têm intriga. Dois argu-
mentos militam neste sentido.
em primeiro lugar, a explicação sincrónica e a explicação diacrónica fun-
dam-se no mesmo tipo de raciocínio natural. ou seja, narrar-explicar um aci-
dente rodoviário que se presenciou é o mesmo que descrever a um amigo uma
família numerosa, explicando quem é quem e os laços que unem os seus ele-
mentos: «une description de ce type met en œuvre les mêmes choix que celle
d’un récit. les questions posées sont certes différentes, mais on retrouve le
même découpage, ici territorial ou setoriel plus que chronologique, le même
choix de personnages – au sens large – et de niveaux d’analyse» (ibid.: 255).
a partir do momento em que um relato tenha um fio condutor que lhe confira
sentido, lhe permita estruturar a montagem e hierarquizar as sequências, temos
uma intriga.
o segundo argumento passa por «prolongar a análise de P. ricœur liber-
tando a dimensão narrativa presente em qualquer quadro enquanto quadro»
(ibid.: 254). o quadro, do mesmo modo que a narrativa, está sempre delimitado
e estruturado por questões, sendo uma delas relativa à mudança temporal:
comme le récit, le tableau est toujours délimité et structuré par des questions, et,
parmi ces questions, figure toujours celle du changement dans le temps. on le voit
bien dans la vie courante. Quand un grand-père «explique» à ses petits-enfants
comment était son village avant la guerre, il leur dit tout ce qui a changé depuis:
son tableau est construit à partir de la différence entre hier et aujourd’hui. l’his-
torien n’est guère différent du grand-père (ibid.).
212 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

o importante é que a descrição seja feita com base na comparação implí-


cita com o presente ou com outra data histórica, assegurando, assim, o dina-
mismo cronológico de que falava ricœur e, consequentemente, a estrutura da
intriga – «sans point de comparaison diachronique, l’analyse synchronique est
impossible: la spécificité de la réalité, ce qui la rend intéressante à étudier
s’évanouit. il n’y a pas de tableau historique possible sans temporalité: l’in-
trigue minimale du tableau est le passage du passé au présent» (ibid.).
ricœur teve o cuidado de falar de quasi-intriga a propósito da obra de
Braudel, salvaguardando a analogia, evitando o risco de identificação direta
com o processo mimético de construção da narrativa literária ficcional – a qual,
não o esqueçamos é a matriz, o modelo de base – e lembrando-nos o quanto
a história do mediterrâneo era uma história no limite daquilo que se pode con-
siderar narrativa. ora, Prost ultrapassa o limite. a nosso ver, a sua conceção de
intriga não é já compatível com qualquer definição que ricœur tenha dado de
mise en intrigue (“mimesis” ii). Nem o prefixo quasi nos parece legítimo. Per-
deu-se tudo: personagens, acontecimentos, a causalidade específica, definida por
aristóteles como “um-por-causa-do-outro” e não “um-após-o-outro”. resta ape-
nas uma suposta e impercetível temporalidade, mudança sem acontecimentos
explícitos, apenas pontos de comparação temporais, uma reformulação da frase
narrativa de Danto. a premissa de que explicação diacrónica e explicação sin-
crónica obedecem ao mesmo tipo de raciocínio é muito discutível. Não vemos
que seja a mesma coisa explicar um acidente e apresentar uma família, contar
uma história e descrever uma paisagem, compreender um filme e um documen-
tário, compreender uma obra de história e um ensaio. em suma, parece-nos
insuficiente estabelecer a mudança temporal como elemento suficiente de
intriga, se essa mudança não for impulsionada por acontecimentos, ligados por
um nexo causal, atribuíveis a personagens, mesmo que sejam apenas aconteci-
mentos e personagens do tipo daqueles que ricœur descortinou na obra de
Braudel. Não estranhamos, pois, que Prost considere que toda a história é nar-
rativa, mesmo aquela que é composta de quadros sem acontecimentos e num
ritmo temporal muito lento, só porque esses quadros estão dispostos por ordem
cronológica e mantêm uma certa continuidade lógica242.

242
a obra de ariès serve de exemplo, ela comporta quatro quadros sucessivos, corres-
pondendo cada um a uma época, sendo que cada um retém traços dessa época que se ligam
em sentido e cronologia às configurações anterior e posterior. o que estrutura e orienta a des-
crição é a análise global da mudança de atitudes face à morte até à atualidade e isso faz com
que os quadros estejam organizados como uma narrativa. «un bon exemple en est le livre de
Philippe ariès, La Mort en Occident, qui s’articule en quatre chapitres successifs, consacrés
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 213

em suma, tanto faz que predominem as sucessões cronológicas ou as


coerências sincrónicas, ou que se misturem narrativas e quadros, a história é
sempre configuração, ou seja, “mimesis” ii. ela é definida, modelada e estru-
turada por uma intriga que comporta uma dimensão temporal irredutível. em
última instância, a narrativa sobrepõe-se sempre ao quadro e o acontecimento
vence sempre a estrutura, pois esta é sempre precária, provisória, minada por
dentro pelo acontecimento, «como o fermento dentro da pasta ou o bicho den-
tro da maçã», dependendo as metáforas de uma visão otimista ou pessimista243.
com estas considerações Prost entra em terrenos muito instáveis, onde é
muito fácil resvalar para uma indiferenciação entre história e outras ciências
sociais. No entanto, apercebe-se do perigo e toma as devidas cautelas. como já
vimos, a história e outras disciplinas como a sociologia e a antropologia, apesar
de privilegiarem modos de explicação diferentes, têm em comum o facto de
esses modos assentarem no mesmo tipo de raciocínio natural, seja ele diacró-
nico ou sincrónico, um acidente ou um agregado familiar; poderíamos dizer que
o próprio da história é procurar uma explicação diacrónica. só que isso não
chega para a distinguir das outras disciplinas, pois ela, ao incluir quadros na
sua narrativa, recorre à explicação sincrónica saída da sociologia. a diferença
reside em que os quadros do historiador não são do mesmo tipo do sociólogo,
pois ao historiador
é-lhe impossível pensar uma estrutura, por mais robusta que seja, sem se interro-
gar sobre o que a vai fazer mudar, transformar a curto ou a longo prazo. a pró-
pria estabilidade de uma estrutura coloca questões: ela é uma suspeita para o his-
toriador que indaga que forças, que atores estão já a trabalhar, por vezes sem que
se saiba, no seio da própria estrutura, para a modificar. o acontecimento está por
todo o lado, à espreita, senão em ação (Prost 1996: 256).

Neste ponto, Prost volta a aproximar-se do comentário de ricœur à obra


de Braudel (cf. TR i, 383). Para ele, também é o acontecimento que distingue
o conceito de estrutura do historiador do do sociólogo ou do economista e o

chacun à la mort à une époque donnée [...]. il s’agit bien d’un récit, puisque nous passons
d’une situation à une autre. le plan est d’ailleurs chronologique. mais c’est un récit sans évé-
nements, au rythme très lent» (Prost 1996: 243).
243
«en dernière instance, le récit prend donc le pas sur le tableau, ou, si l’on préfère,
l’événement (au sens de ce qui change et dont on fait le récit) sur la structure. ou, pour le
dire autrement, la structure, telle que les historiens l’appréhendent, est toujours précaire, pro-
visoire. elle est comme minée de l’intérieur par l’événement. l’événement est au cœur de la
structure, comme le levain dans la pâte ou le ver dans la pomme – je laisse chacun choisir
la métaphore suivant qu’il est optimiste ou pessimiste» (Prost 1996: 255).
214 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

acontecimento não cessa de minar a estrutura por dentro. o acontecimento é


originado pela diferença de ritmos com que as estruturas se alteram e pelo
olhar atento do historiador que, diferentemente do sociólogo, procura não as
constâncias mas os pontos de rutura nas estruturas, a sua brusca ou lenta dete-
rioração, a perspetiva da sua extinção.
Para ricœur, Braudel tinha inventado um novo tipo de intriga. conside-
rando esta como síntese do heterogéneo, a intriga virtual de Braudel conjuga
temporalidades heterogéneas, cronologias contraditórias, ensina-nos a conjugar
estruturas, ciclos e acontecimentos (TR i, 382). este comentário terá inspirado
Prost. o autor observa que a história é narrativa, mas não por inteiro, pois
inclui sequências que o não são: a argumentação, enquanto desenvolvimento
analítico das razões que justificam a explicação e que integram naturalmente
o texto, é uma delas. mas a intriga, na sua qualidade de concordância discor-
dante ou configuração do heterogéneo assume com coerência este conjunto. ela
pode-o fazer porque todos os elementos do texto derivam do modo natural de
raciocinar ou de procurar explicações (“raisonnement naturel”), independente-
mente das provas que venham sustentar os argumentos. Neste aspeto, o autor
apropria-se, voluntariamente, do conceito de intriga formulado por ricœur:
«l’intrigue assure ainsi ce que P. ricœur appelle une “synthèse de l’hétéro-
gène”. elle “comprend”, écrit-il, dans une totalité intelligible, des circonstances,
des buts, des interactions, des résultats non voulus» (ibid.: 257).
É por ser síntese do heterogéneo que a intriga se mantém unificada, ape-
sar do material díspar que reúne. mas a intriga também define o tipo de his-
tória que o historiador constrói e, nesse sentido, como configuração geral do
texto do historiador, ela fornece por si mesma uma explicação. ela é mais do
que uma simples trama ou fio da história (“story-line”). uma mesma questão
posta a um mesmo facto histórico por dois historiadores resulta em duas res-
postas diferentes. cada um constrói uma intriga diferente e original. Já nos
apercebemos, por estes considerandos, que Prost está a deixar o terreno culti-
vado por ricœur e a enveredar pelas vias exploradas por Hayden White. É por
aí que segue a sua argumentação (cf. ibid.: 257-262).

outro tópico que Prost partilha com ricœur é a dialética compreensão/


/explicação, oferecendo uma excelente síntese da dialética trabalhada pelo filó-
sofo francês. Na senda de ricœur, Prost começa por afirmar que a compreensão
é o modo de inteligibilidade próprio da história. Porque a história não pode ser
uma ciência como a química – aliás, essa não é a sua pretensão – a noção de
compreensão visa especificar o modo de conhecimento próprio da história, o
qual «não é menos legítimo, nem menos rigoroso, nem menos verdadeiro, na
capítulo ii – eXPlicação Histórica e comPreeNsão NarratiVa 215

sua ordem, que o conhecimento objetivo das ciências da natureza» (Prost 1996:
153). o que torna uma história compreensível é o encadeamento dos factos,
não a sua ordenação cronológica, critério que distingue uma narrativa de uma
crónica. o que o historiador, o sociólogo e o antropólogo procuram compreen-
der é o sentido das vidas e dos comportamentos humanos, apelando à compe-
tência narrativa de seguir uma história. compreender uma história implica
seguir o desenrolar dos acontecimentos para apreender o seu sentido e perceber
as suas causas. a história é narrativa e a compreensão visa assegurar-lhe res-
peitabilidade científica, uma legitimidade igual à das ciências naturais, pois a
história quer ser um saber verdadeiro e não uma opinião. Para isso, a com-
preensão empática ou intuitiva por si só é insuficiente, devendo ser complemen-
tada com a explicação “não científica”. Para ricœur, não se compreende o
acontecido apenas por meio de intropatia ou amizade, esta forma de compreen-
são deve ser equilibrada por elementos menos intuitivos, mais racionais e segu-
ros. obviamente, esta exigência não invalida que as teorias da compreensão de
Dilthey, marrou, collingwood tenham a virtude de nos despertar para a subje-
tividade e intersubjetividade que animam a atividade historiadora: o historiador
é movido por um impulso de amizade ou mesmo amor que o não deixa indi-
ferente aos homens que estuda. a atividade de historiar não é fria, assética,
insensível, mas é viva e afetiva. No entanto, a história exige ir mais além da
busca dos motivos, sentimentos e pensamentos pessoais, quer explicações, não
explicações iguais às das ciências naturais, mas imputações causais244. a com-
preensão enquanto procura de causas assume uma força explicativa que a apro-
xima das ciências e a afasta da empatia, tirando sentido à oposição entre com-
preensão e explicação. Nesse sentido, a explicação histórica prolonga a
compreensão. todavia, convém recordar que as condutas humanas, objeto da
história, inscrevem-se na ordem do sentido e não da ciência. e também que o
complexo encadeamento das causas em história é inesgotável. a história não se
explica totalmente, é verdade, mas explica-se; se se explicasse perfeitamente,
seria previsível como as ciências deterministas. mas ela não é nem totalmente
determinada nem totalmente aleatória, os seus prognósticos, baseados em diag-
nósticos, devem reservar uma boa margem para o contingente, para o inespe-
rado. Daí que o raciocínio imaginativo da imputação causal goze de grande pri-

244
«[...] en histoire, la compréhension ne suffit pas, et elle risque d’être fautive, si l’on
ne se soucie pas de construire à partir d’elle une explication plus systématique, en analysant
la situation initiale, en identifiant les divers facteurs et en pesant les causes» (Prost 1996:
172).
216 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

vilégio, na medida em que permite à história conciliar a liberdade dos atores


com a imprevisibilidade do futuro, através do levantamento e da hierarquização
das causas que condicionam a sua ação. respeitando a incerteza do aconteci-
mento, a história permite pensar, simultaneamente, na liberdade dos homens e
na constrição das situações.
Prost, em consonância com ricœur, reconhece que as construções irreais
ou imaginárias probabilísticas que a imputação causal origina são ficções, mas
não são fantasias, porque estão ancoradas no mundo real. o historiador mobi-
liza múltiplos conhecimentos para as fundamentar e defender em caso de con-
testação. ele faz uso da sua experiência social, das regularidades ou das regras
de experiência que conhece, mas não só, porque pode recorrer também aos con-
tributos da história e da própria sociologia. assim, o historiador descobre no
passado um conjunto de probabilidades objetivas. «ainsi ancrée dans le réel et
armée d’un savoir social, l’expérience imaginaire conduit l’historien à repérer,
dans le passé, des possibilités qui étaient objectives, mais qui ne se sont pas
réalisées, qui n’étaient donc pas nécessaires, mais seulement probables» (Prost
1996: 186). o difícil é determinar o grau de plausibilidade adequada de cada
possibilidade objetiva e fundar uma hierarquia de causas. mas aí o historiador
apresenta e argumenta em favor das razões pelas quais ele considera determi-
nado fator e não outro como causa suficiente de uma sucessão de aconteci-
mentos.
sabemos que o historiador não conta o que quer que seja, que ele argu-
menta com factos construídos a partir da análise de documentos; compreende-
mos que a experiência imaginária da construção de cenários irreais lhe permite
pesar as causas a partir de dados objetivos; contudo, trata-se de uma operação
fictícia, dominada pela imaginação, os pesos que usa na balança com que pesa
as causas não são universais e rigorosos, deixando o historiador desprotegido e
pouco confortável face a acusações de subjetividade. Não obstante, ricœur
parece confortar-se com a inevitabilidade da componente subjetiva, ficcional e
imaginativa da história, sendo ela a face humana/espiritual do processo de com-
preensão/explicação. antes isso do que enveredar por uma história de tipo
sociológico positivista, que perdesse o contacto com a realidade temporal, com
o acontecimento, com o concreto.
CAPÍTULO III
HISTÓRIA E FICÇÃO: POR UMA POéTICA DO TEMPO

le temps devient temps humain dans la mesure où il est articulé


de manière narrative; en retour le récit est significatif dans la
mesure où il dessine les traits de l’expérience temporelle
(ricœur, TR i, 17).

Ninguém duvida que história e tempo estão intimamente ligados. estamos


prontos a admitir que não há história sem tempo, desde logo porque o passado
é uma categoria temporal. talvez nos surpreendamos se nos disserem que
também não há tempo sem história. ricœur di-lo. Da mesma maneira que a
história é a narração dos homens no tempo – e “no tempo” é redundante, por-
que ser-no-tempo, segundo Heidegger, é a nossa forma de estar-no-mundo –
também são as histórias ficcionais e científicas que nós contamos que nos
revelam poeticamente ou de modo indireto a dimensão temporal da vida
humana. sem tempo não há narração e sem narração não percebemos o tempo,
porque o tempo pede para ser narrado; tempo e narração são interdependen-
tes245. mas o que é o tempo? e o que é a história/narrativa? e como se gera
esta relação circular entre ambos? estas são questões a que procuramos respon-
der neste capítulo, com base nas considerações de ricœur. É daqui que deve
partir qualquer dialética ou confrontação entre história-ciência e ficção, na

245
«mon hypothèse de base est à cet égard la suivante: le caractère commun de l’ex-
périence humaine, qui est marqué, articulé, clarifié par l’acte de raconter sous toutes ses
formes, c’est son caractère temporel. tout ce qu’on raconte arrive dans le temps, prends du
temps, se déroule temporellement; et ce qui se déroule dans le temps peut être raconté. Peut-
être même tout processus temporel n’est-il reconnu comme tel que dans la mesure où il est
racontable d’une manière ou d’une autre. cette réciprocité supposée entre narrativité et tem-
poralité est le thème de Temps et Récit» (ricœur, TA, 12).
218 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

medida em que ambas partilham a mesma estrutura narrativa que nos dá o


tempo246.
Na verdade, a primeira e, podemos dizer, mais conhecida meditação que
ricœur empreende na sua vasta bibliografia acerca do binómio história e ficção
encontra-se na segunda metade do terceiro volume de Temps et Récit, a propó-
sito de uma questão mais abrangente que ocupa o seu pensamento ao longo dos
três volumes: a articulação entre tempo e narrativa. a tese dominante em Temps
et Récit é a de que a temporalidade é a estrutura da existência que a linguagem
alcança na narratividade e a narratividade é a estrutura da linguagem que a
temporalidade tem como seu referente último. o cotejo de história e ficção, que
vai da divergência ao paralelismo e finalmente ao entrecruzamento, é, de facto,
construído em nome de uma poética do tempo que tem no momento refigurador
da narrativa a etapa imprescindível, na qual história científica e ficção coope-
ram para dar ao leitor uma imagem do tempo que escapa ao raciocínio feno-
menológico. todavia, sendo esta a última etapa de todo um percurso realizado
por ricœur, seria contraproducente avançar diretamente para a meta sem a
enquadrar na marcha intelectual que a precede e fundamenta. É que na estra-
tégia desenvolvida por ricœur, só chegamos à história e à ficção partindo da
narrativa e da sua capacidade para configurar a temporalidade humana. Daí que
tenha sido obrigatório identificar as duas modalidades em que se subdivide a
narrativa, pois há a história ficcional e a história científica; e se dizemos que
as duas prefiguram, configuram e refiguram o tempo, é preciso demonstrar que
a história científica, apesar de não se confundir com a ficção, não perdeu os
laços que a unem à sua matriz narrativa. Foi este desafio, do qual demos conta
no capítulo anterior, que levou o filósofo francês a retomar um antigo debate
moderado por si entre compreensão e explicação, sendo o seu rumo definido da
oposição para a dialética, como é habitual no programa argumentativo da filo-
sofia ricœuriana.
seguindo de perto o itinerário argumentativo do próprio ricœur (por-
quanto o entrecruzamento de história e ficção nos parece inextricável de tempo
e narrativa), este terceiro capítulo da nossa exposição estrutura-se em duas par-
tes. a primeira visa pôr em marcha a dialética tempo-narrativa; a segunda
separa, aproxima e entrecruza história e ficção nos modos como superam a
dicotomia tempo cosmológico/tempo fenomenológico e constituem uma resposta
poética à aporética do tempo.

246
«en traitant la qualité temporelle de l’expérience comme référent commun de l’his-
toire et de la fiction, je constitue en problème unique fiction, histoire et temps» (ricœur, TA,
12).
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 219

1.  NARRATIVA: A GUARDIÃ DO TEMPO

Não é por acaso que a reflexão acerca da história radica no subsolo do


tempo. Desde os primeiros ensaios, reunidos em Histoire et Vérité, que ricœur
tem bem presente a dimensão temporal que é o fundamento da história, assu-
mindo como divisa a máxima de marc Bloch que a história é «a ciência dos
homens no tempo» (Bloch 1952: 18). em Temps et Récit, o tempo humano é
o escudo de todos os seus embates pela história e pela narrativa. Não pode
haver história sem tempo-ação-mudança, em suma, sem homens agindo no
tempo. este ternário, que constitui o código genético da ficção e da história-
-ciência, permite-lhe enfrentar criticamente os trabalhos que a história trouxe à
luz em meados do século XX, sob a égide de uma quase acronologia, de uma
descrição apática e quase estática. a narrativa (histórica e ficcional) é a guardiã
do tempo, e este não pode ser pensado se não for narrado pelo ficcionista e
pelo historiador247. mas a questão do tempo não surgiu pela via direta da his-
toriografia, antes pela via indireta da narrativa. apesar de ser uma inquietação
antiga, cujas aporias eram discutidas em aulas e em seminários, só se sentiu
impelido a escrever sobre ela quando detetou na narrativa uma entrada e uma
saída248: «Je suis entré dans la question du temps par le biais de mon intérêt
pour le récit [...]. Je n’ai pu écrire sur le temps que lorsque j’ai pu apercevoir
une connexion significative entre la “fonction narrative” et “l’expérience
humaine du temps” (ricœur, RF, 63). a narrativa é uma saída para o beco em
que desemboca a reflexão fenomenológica sobre o tempo, na medida em que
permite uma articulação poética com a experiência temporal249.

247
«sous forme schématique, notre hypothèse de travail revient ainsi à tenir le récit
pour le gardien du temps, dans la mesure où il ne serait de temps pensé que raconté»
(ricœur, TR iii, 435).
248
em 1977, Paul ricœur dirigiu um seminário na universidade de missouri-columbia,
consagrado à Narratividade, ao jogo de linguagem da narração comum à história dos histo-
riadores e à narrativa ficcional. os resultados deste seminário (designado em inglês “Brick
lectures”) foram publicados em França, sob a direcção de Dorian tiffeneau, com o título de
La Narrativité, em 1980. os três capítulos da primeira parte [1) «Histoire comme récit»; 2)
«le récit de fiction»; 3) «la fonction narrative»] constituem o núcleo do que haveria de ser
Temps et Récit.
249
Para uma análise mais detalhada desta dialética entre tempo e narrativa veja-se o
nosso trabalho anterior: soares, martinho, Tempo, mythos e praxis: o diálogo entre Ricœur,
Agostinho e Aristóteles, Fundação eng. antónio de almeida, 2013; vide., etiam, teixeira
2004, vol. ii: 9-51.
220 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

ricœur chega à sua matéria-prima através da leitura criativa, pertinente e


sagaz de uma das mais antigas e célebres meditações sobre o tempo, a de
agostinho nas Confissões (livro Xi). Deste filão extrai o díptico elementar da
intentio e distentio animi e o inspirador exemplo da recitação do salmo que o
encaminha para a senda da narrativa (TR I, 21-65).
a meditação de santo agostinho sobre a natureza do tempo termina num
impasse difícil de ultrapassar ao (in)conciliar duas atividades contraditórias,
uma ativa e outra passiva, uma de tensão e outra de distensão, remetendo o
tempo para o domínio do inescrutável250. consequentemente, ricœur observa
que não existe uma fenomenologia pura do tempo em agostinho, isto é, uma
apreensão direta do tempo, independente de argumentação e livre de se enredar
em novos paradoxos. e, provavelmente, depois de agostinho, nunca terá havido
uma fenomenologia pura do tempo251. Para o comprovar, ricœur passa em
revista as meditações sobre o tempo de aristóteles, de Husserl, de Kant e de
Heidegger, que desembocam todas no mesmo beco.
contraposta à visão extremamente “psicológica” e subjetiva do tempo teo-
rizada por agostinho, ricœur lê, na definição clássica da Física aristotélica, um
tempo ligado ao movimento e escrutinável por operações matemáticas, uma
visão que acentua a propriedade cosmológica do tempo: o instante de um movi-
mento contínuo que a alma pode medir (TR iii, 21-42). esta bipolaridade é o
gérmen das duas linhas de pensamento dentro das quais podemos, de um modo
geral e imperfeito, situar as conceções subsequentes, marcadas quer por uma

250
a alma, cuja atividade em tensão consiste em abreviar a expetativa e alongar a
memória, fazendo esse “trânsito” pela atenção presente, à medida que faz passar, passa tam-
bém, sofrendo o efeito negativo da sua própria ação. esta intentio ou tensão única da alma
para aspetos múltiplos pretende explicar a possibilidade de se medir o tempo, não o tempo
em si, mas as impressões deixadas na memória e na expetativa pelos eventos passados e
pelos eventos futuros, respetivamente. mas é, justamente, por este ato mensurável que a pas-
sividade das impressões provoca a chamada distentio animi, deixando patente um antago-
nismo insolúvel entre distentio e intentio animi e explicada a supremacia da ação do tempo
sobre o ser humano.
251
«il n’y a pas, disons-nous, de phénoménologie pure du temps chez augustin. Nous
ajoutions: peut-être n’y en aura-t-il jamais après lui. [...] Par phénoménologie pure, j’entends
une appréhension intuitive de la structure du temps, qui, non seulement puisse être isolée des
procédures d’argumentation par lesquelles la phénoménologie s’emploie à résoudre les apories
reçues d’une tradition antérieure, mais ne paie pas ses découvertes par des nouvelles apories
d’un prix toujours plus élevé. ma thèse est que les authentiques trouvailles de la phénomé-
nologie du temps ne peuvent être définitivement soustraites au régime aporétique qui carac-
térise si fortement la théorie augustinienne du temps» (TR i, 156).
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 221

tendência fenomenológica quer por uma tendência cosmológica252. De um lado


teríamos agostinho, Husserl e Heidegger, do outro aristóteles e Kant (tr III,
21-187). a ambição husserliana de fazer aparecer o tempo enquanto tal esbarra
de frente na tese kantiana da invisibilidade do tempo físico ou objetivo (cf. TR
iii, 43-82). Para Kant (TR iii, 82-109), o tempo objetivo não passa de um pres-
suposto, não permite nenhuma observação nem asserção direta porque o tempo
é em si mesmo invisível. o tempo não aparece, ele é uma condição do apa-
recer.
aparentemente, a interpretação heideggeriana de Ser e Tempo parece
resolver ou, pelo menos, dissolver as aporias sobre o tempo geradas pelo pen-
samento de agostinho e Husserl, na medida em que o solo do qual irrompem
é abandonado para dar lugar a um novo questionamento (ricœur, TR iii, 110-
-178). Não é mais possível opor um tempo da alma, na aceção de agostinho,
a um tempo do mundo, no sentido aristotélico (algo do movimento). Por um
lado, a analítica existencial não tem como referência uma alma mas um ser-aí
(Dasein), invalidando qualquer distinção ôntica entre a região do psíquico e a
do físico. Por outro lado, para a analítica existencial, a natureza não pode cons-
tituir um polo oposto, muito menos um tema estranho à consideração do
Dasein, na medida em que o mundo é ele próprio um momento constitutivo do
ser-aí. Por conseguinte, a questão do tempo só pode ser estudada depois da
pergunta pelo ser-no-mundo, que revela a constituição fundamental do ser-aí.
De acordo com ricœur (TR iii, 116), devemos a Heidegger três admirá-
veis descobertas: em primeiro lugar, a questão do tempo como totalidade está
sediada na estrutura fundamental do Cuidado; em segundo, a unidade das três

252
Nenhuma das duas teorias (de agostinho e de aristóteles), tomada isoladamente, é
capaz de explicar cabal e totalmente a experiência temporal, de tal forma que o aprofunda-
mento de cada uma das posições antagónicas resulta na descoberta de uma temporalidade
transcendente à sua definição e cada uma delas encontra sempre como resíduo a sua expres-
são inversa. se aprofundamos o tempo da alma, acabamos por chegar à conclusão que o
tempo a circunscreve, a envolve e a domina, sem que ela jamais o possa engendrar. se, por
outro lado, sublinharmos a prioridade cosmológica do tempo, deparamos com um instante
físico, mensurável, que implica uma alma que o meça, sem que, todavia seja possível iden-
tificar os instantes do mundo e a presença que torna “presente” a alma a si mesma. Há uma
separação intransponível entre o instante aristotélico e o presente agostiniano. É que o ins-
tante aristotélico, para ser pensável, requer apenas um corte efetuado pela alma na continui-
dade do movimento, porque este é numerável. mas este instante pode ser qualquer um, qual-
quer instante é digno de ser o presente. Num movimento há apenas a sequência na qual a
alma pode distinguir os dois instantes do antes e do depois, sem que se possa dizer que um
é passado e o outro futuro.
222 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

dimensões do tempo – futuro, passado, presente – é uma unidade ex-tática, em


que a exteriorização mútua dos ex-tases procede da sua própria implicação; por
fim, o desdobramento desta unidade ex-tática revela por sua vez uma constitui-
ção estratificada do tempo, isto é, uma hierarquização dos níveis de tempora-
lização, que requer denominações distintas: temporalidade, historialidade, intra-
temporalidade. a fenomenologia hermenêutica do tempo tem por alvo a
unidade articulada dos três momentos do futuro, passado e presente. agostinho
fazia derivar esta unidade do tríplice presente; mas, para Heidegger, o presente
não pode assumir esta função de articulação e dispersão, porque é a categoria
temporal menos apta para uma análise original e autêntica, devido ao seu
parentesco com as formas decaídas da existência. Não podendo ser o presente
a modalidade apropriada para esta procura da totalidade, entra em cena a ideia
de ser-para-a-morte, como existencial que veicula a marca da sua própria clau-
sura interna. o fim do ser-aí é a morte, pelo que “findar”, no sentido de mor-
rer, constitui a totalidade do ser-aí.
a originalidade de Heidegger está em ter buscado no próprio Cuidado o
princípio de pluralização do tempo em futuro, passado e presente. esta deslo-
cação coloca o futuro no lugar tradicionalmente ocupado pelo presente e pro-
voca uma reorientação total das relações entre as três dimensões do tempo,
permitindo discernir, entre elas, relações inusitadas de íntima implicação mútua.
a temporalidade é a unidade articulada do “por-vir”, do “tendo-sido” e do “tor-
nar-se-presente”, que são dados a pensar em conjunto. apesar do suporte tem-
poral ter passado do presente para o futuro, ricœur não deixa de ver neste pro-
cesso temporal feito de unificação e dispersão o enigma agostiniano da distentio
animi253. além do mais, o fracasso do conceito vulgar do tempo (tempo univer-

253
«ce qui demeure aussi opaque chez Heidegger que chez augustin, c’est la triplicité
interne à cette intégralité structurale: les expressions adverbiales [...] signalent au niveau
même du langage la dispersion qui mine de l’intérieur l’articulation unitaire. le problème
augustinien du triple présent se trouve simplement reporté sur la temporalisation prise dans
son ensemble» (TR iii, 129). No entanto, as modalidades de temporalização que Heidegger
define em Ser e Tempo servem para a hermenêutica da condição histórica do homem:
«l’“être-dans-le-temps” est la façon temporelle d’être-au-monde» (ricœur, MHO, 498). Nós
representamos o passado porque existimos no tempo. É no tempo que existimos e é no tempo
que as coisas acontecem. todavia, ricœur demonstra alguma desconfiança relativamente ao
ser-para-a-morte de Heidegger, preferindo pôr a tónica no estar-em-dívida como laço possível
entre passado e futuro. Para ele, é essencial que o ter-sido suplante o simples e negativo ter-
-passado. o passado existe ainda no presente (cf. ricœur, MHO, 501). Neste ponto ele coin-
cide com Jankélévitch, de quem retira a epígrafe que serve de pórtico à sua obra La mémoire,
l’histoire, l’oubli: «celui qui a été ne peut plus désormais ne pas avoir été: désormais ce fait
mystérieux et profondément obscur d’avoir été est son viatique pour l’éternité».
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 223

sal da astronomia, das ciências físicas, da biologia e das ciências humanas)


eleva a aporia temporal ao seu cúmulo, porque resume o fracasso de toda e
qualquer tentativa de pensar o tempo (cf. ricœur, TR iii, 170-177). Deste
modo, fica claro que «a temporalidade não se deixa dizer no discurso direto de
uma fenomenologia» – «[...] les tentatives le plus exemplaires pour exprimer le
vécu du temps dans son immédiateté même multiplient les apories à mesure
que s’affine l’instrument d’analyse» (ricœur, TR iii, 435) – impelindo ricœur
para a «mediação indireta da narração» (ibid.), a única capaz de desfazer os
nós que a fenomenologia multiplicou254.
o enigma agostiniano mais impenetrável é aquele que pretende resolver
o problema da medição do tempo: como é que a alma se pode distender à
medida que tende? eis a aporia suprema, comenta ricœur (TR i, 48). o mesmo
não deixa de ver nesta resolução enigmática «la trouvaille inestimable de saint
augustin» (ibid.: 49), precisamente porque, ao reduzir a extensão do tempo à
distensão da alma, ligou esta distensão à falha que não cessa de se insinuar no
seio do tríplice presente. a distensão, entende ricœur, está na falha ou na não
coincidência das três modalidades da ação – entre o presente do futuro, o pre-
sente do passado e o presente do presente. a discordância nasce e renasce da
própria concordância entre as (in)tenções da expetativa, da atenção e da memó-
ria. esta aporia gerada pelo exemplo da recitação de um salmo põe em evidên-
cia, simultaneamente, o paradoxo do tempo e a pista para a solução do mesmo,
faltou a agostinho descobrir que o próprio ato narrativo comporta em si con-
cordância e discordância. mas para isso seria preciso convocar a Poética de
aristóteles, onde, ao contrário do que se passa na experiência temporal de
agostinho, a concordância predomina sobre a discordância255. este confronto é
o ponto de partida para a extrapolação da tese de que «o tempo torna-se tempo
humano na medida em que é articulado de um modo narrativo e a narrativa
alcança a sua significação plena quando se torna uma condição da existência
temporal» (ricœur, TR i, 105).
Depois de verificar a unilateralidade e a insuficiência de qualquer teoria
cosmológica e a incapacidade de qualquer fenomenologia pura do tempo para
alcançar uma resposta cabal e limpa de aporias, que permita compreender, de
forma transparente e especulativa, o fenómeno temporal em toda a sua ampli-

254
ce sont ces apories que précisément la poétique du récit traite comme autant de
nœuds qu’elle s’emploie à dénouer (ricœur, TR iii, 435).
255
«il va de soi que c’est moi, lecteur d’augustin et d’aristote, qui établis ce rapport
entre une expérience vive où la discordance déchire la concordance et une activité éminem-
ment verbale où la concordance répare la discordance» (ricœur, TR i, 66).
224 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

tude e profundidade, ricœur mergulha na Poética de aristóteles, à procura de


um mediador poético entre a compreensão humana e a experiência temporal
(tr I, 66-104). Daí extrai dois conceitos fundamentais que opõe ao par agos-
tiniano: contra a sobreposição da distentio sobre a intentio animi, da desordem
sobre a ordem ou da dispersão sobre a atenção, o autor propõe a força do
mythos sobre a peripécia, da ordem sobre a desordem ou da síntese sobre o
heterogéneo.
No modelo aristotélico de mythos, a concordância vence a discordância
porque a mimesis opera a síntese de factos discordantes e heterogéneos da ação
humana (praxis) num objeto narrativo coeso, total e unitário, segundo as leis da
verosimilhança e da necessidade. Partindo destas considerações poéticas, o filó-
sofo francês infere que ao representar numa totalidade significante o que no
tempo agostiniano era disperso e episódico, o mythos pode ser entendido como
réplica invertida da distentio animi de agostinho; já a mimesis, enquanto ativi-
dade mimética (re)criadora e estilizadora da realidade prática, permite a confi-
guração da experiência temporal humana pelo desvio ou corte próprio da intriga
em relação ao campo do real. se a concordância do mythos trágico se deve ao
seu caráter duplamente unificador e ordenador, segundo a lógica da necessidade
e da verosimilhança, a sua discordância provém de inversões bruscas e inespe-
radas no rumo dos acontecimentos (as chamadas peripécias) e do reconheci-
mento, que despertam temor e compaixão. a estes ricœur acrescentará os tra-
ços temporais que aristóteles não considerou, mas que entende diretamente
implicados no dinamismo constitutivo da configuração narrativa, dando pleno
sentido ao conceito de concordância-discordante e à relação tempo-narrativa. só
assim é possível afirmar que a mimesis ou operação narrativa reflete o para-
doxo do tempo suscitado por agostinho e resolve-o de um modo não especu-
lativo, mas poético. reflete-o na medida em que combina segundo proporções
variáveis duas dimensões temporais: uma cronológica, referente à dimensão epi-
sódica e factual da narrativa e outra não cronológica, referente à sua dimensão
configurativa, responsável pela conversão de factos díspares numa história una
e inteligível, permitindo que se extraia uma configuração a partir de uma suces-
são ou uma unidade temporal a partir de um conjunto plural de eventos. ao
fazer a articulação entre facto e história, a mimesis oferece ao paradoxo do
tempo como resolução o próprio ato poético. em suma, a solução poética do
paradoxo agostiniano do tempo está no arranjo configurativo que transforma
uma sucessão linear de eventos numa totalidade significante, permitindo a uma
história ser seguida por um ouvinte ou leitor e possibilitando a sua tradução
numa ideia, tema ou pensamento. Porém, para consolidar este vínculo original
entre a atividade narrativa e o caráter temporal da experiência humana, ricœur
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 225

teve de constituir a função mediadora da construção da intriga entre um estádio


da experiência prática que a antecede e um estádio da receção que lhe sucede,
indo contra os conceitos da semiótica narrativa, característica da abordagem
estrutural.

1.1.  Teoria geral da narrativa: mimesis, mythos e praxis

Para ricœur, a atividade de composição narrativa supõe três momentos


miméticos distintos mas interligados; imprescindíveis como fundamento da ideia
de imitação criadora e de cesura que instaura novo espaço de ficção. os três
níveis miméticos têm como elo a praxis temporal e como elemento desviante
ou de cesura o mythos. a rutura operada pelo mythos é fundamental para que
a atividade mimética possua a liberdade necessária para criar ficção; a continui-
dade, assegurada pelo laço da praxis, permite que essa mesma atividade mimé-
tica opere a transposição metafórica do campo ético para o campo poético, o
que pressupõe que o mythos se liga a um referência externa ou, como diz
ricœur, uma referência a montante e outra a jusante da configuração poética.
este conceito hermenêutico de tríplice mimese é imprescindível para escorar a
mediação entre tempo e narrativa e para armar a crítica às teorias semióticas
do texto, que se concentram exclusivamente sobre a mimese dita de nível ii.
contrariamente ao teorizado pelos estruturalistas franceses, ricœur defende
uma hermenêutica que contemple o texto literário não apenas como uma estru-
tura ou objeto abstrato isolado e reduzido às suas leis internas, mas como um
objeto situado, com o campo real ou ético da praxis a montante (mimese i)
e o campo da receção a jusante (mimese iii), já que só construindo uma rela-
ção entre os três modos miméticos se pode constituir a ponte entre a vida, a
ação, o sofrimento e a narrativa: «c’est, en revanche, la tâche de l’herméneu-
tique de reconstruire l’ensemble des opérations par lesquelles une œuvre s’en-
lève sur le fond opaque du vivre, de l’agir et du souffrir, pour être donnée par
un auteur à un lecteur qui la reçoit et ainsi change son agir» (ricœur, TR
i, 107).

A mimese de nível I refere-se ao campo real da praxis, que serve


de referência para a feitura de um enredo, seja ele histórico ou ficcional. este
é constituído por estruturas inteligíveis, recursos simbólicos e traços temporais
que o poeta deve dominar antes de transportar (recriando) este mundo para o
texto – atitude que ricœur designa como pré-compreensão do mundo da ação.
226 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

identificar a ação pelos seus traços estruturais ou pela sua rede concep-
tual exige uma semântica da ação256. esta semântica permite distinguir a ação
do mero movimento físico. a ação implica fins (o quê da ação) cuja antecipa-
ção não significa previsibilidade ou adivinhação; reporta-se a motivos (porquê)
que explicam as razões de determinado ato de um agente – diferente de um
evento físico que dá origem a outro; tem agentes (quem) que podemos consi-
derar autores e responsáveis pelos seus atos; os agentes agem e são vítimas de
determinadas circunstâncias (como) favoráveis ou desfavoráveis que estão fora
do seu controlo; agem em interação (com ou contra quem) com outros agentes
numa postura de cooperação ou de competição tão contingentes quanto as cir-
cunstâncias; mas toda a ação visa uma saída ou desenlace que pode ser uma
mudança de sorte em direção à felicidade ou à infelicidade. todos estes traços
estruturais que compõem a semântica da ação estão numa estreita relação de
intersignificação. Dominar esta rede conceptual no seu conjunto e cada um dos
seus elementos em particular como membro do conjunto significa possuir a
competência que ricœur designa de compreensão prática (TR i, 110). a relação
entre a compreensão prática e a compreensão narrativa é dupla: de pressupo-
sição e de transformação. Pressupõe-se que quer o narrador quer o seu audi-
tório conheçam bem termos como agente, fim, meio, circunstância, socorro,
hostilidade, cooperação, conflito, sucesso, fracasso, que compõem a rede con-
ceptual da ação. mas a narrativa não recorre apenas à nossa competência prag-
mática – ou paradigmática segundo a terminologia semiótica – ela utiliza traços
discursivos sintáticos, próprios da compreensão narrativa, que permitem distin-
guir a narrativa de uma simples sucessão de frases de ação. Falamos de regras
de composição que governam a ordem diacrónica da intriga (ficcional ou his-
tórica) e que se situam na ordem sintagmática. a intriga, entendida como reu-
nião e organização de factos numa ação total constituinte da história narrada,
é o equivalente literário da ordem sintagmática que a narrativa introduz no
campo da ação (ibid.: 112). Nesta transposição da ordem paradigmática da ação
para a ordem sintagmática da narrativa os termos da semântica da ação adqui-
rem integração e atualidade. atualidade, pelo facto de termos que apenas pos-
suíam um significado virtual ou potencial na ordem paradigmática receberem
um significado efetivo graças ao encadeamento sequencial que a intriga confere
aos agentes, ao seu agir e ao seu sofrer; integração, pelo facto de elementos tão
díspares como agentes, motivos, circunstâncias, se poderem harmonizar e coo-
perar em totalidades temporais efetivas.

ricœur socorre-se aqui de um estudo seu anterior: Sémantique de l’Action, Éd. du


256

cNrs, Paris, 1977, pp. 21-63.


capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 227

Quanto aos recursos simbólicos do campo da praxis, eles revelam que


aspetos do fazer, do poder-fazer e do saber-fazer derivam da transposição poé-
tica. ricœur diz que a ação só pode ser narrada porque é já simbolicamente
mediatizada por signos, regras e normas. o filósofo apoia-se no estudo de cas-
sirer sobre a função mediadora do símbolo (Philosophie des formes symboli-
ques) para definir as formas simbólicas como «processos culturais que articu-
lam a experiência inteira» (ibid.: 113). o simbolismo é uma significação
inerente à própria ação e decifrável nela por outros atores do jogo social. os
símbolos estão estruturados num sistema simbólico dentro do qual estabelecem
sinergias ou interações. antes de serem texto, têm uma textura. Para compreen-
der uma cultura é preciso conhecer a rede semiótica que a constitui. um sis-
tema simbólico fornece assim um contexto de descrição para ações particulares.
só podemos interpretar o significado, por exemplo, do gesto de levantar a mão,
se conhecermos a convenção simbólica que veicula e o contexto onde ocorre.
antes de serem submetidos a uma interpretação, os símbolos são já interpretan-
tes internos da ação e conferem à ação uma primeira leitura257. reconhece-se,
pois, um simbolismo implícito ou imanente na ação e um simbolismo explícito
ou autónomo que integra o texto. Por sua vez, o termo símbolo introduz a ideia
de regra, não apenas no seu sentido descritivo e interpretativo, mas também no
seu sentido normativo, que nos dá conta da substância ética de uma sociedade.
É em função destas normas imanentes da cultura que as ações podem ser ava-
liadas, apreciadas ou julgadas de acordo com uma escala de preferência moral.
o que é válido para as ações vale também para os agentes que, como afirma
aristóteles na Poética, podem ser melhores ou piores do que os homens atuais.
isto significa que a compreensão prática que os autores partilham com o seu
auditório comporta necessariamente uma avaliação dos carateres e da sua ação
segundo as categorias do bem e do mal (ibid.: 116). Não há, pois, ação alguma
que não suscite aprovação ou reprovação em função de uma hierarquia de valo-
res que tem como polos o bem e o mal. É por isso que a poética não cessa
de recorrer à ética. e a própria qualidade inevitavelmente ética da ação é uma
consequência do caráter maior da ação, a de ser sempre simbolicamente media-
tizada.
Por fim, a ação que é transposta pela atividade mimética de nível ii pos-
sui no seu seio traços temporais nos quais o tempo narrativo ficcional enxerta
as suas configurações. estas estruturas temporais da ação são elas mesmas soli-
citadoras de narração, pois as articulações simbólicas das nossas ações veiculam

257
«[...] le symbolisme confère à l’action une première lisibilité» (TR i, 115).
228 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

marcas temporais que não só nos permitem narrá-las como demandam narração.
Não é só o texto da ficção que é narrativo, a própria experiência exibe já uma
qualidade narrativa ou, no mínimo, pré-narrativa, como se pode concluir seja
pela análise fenomenológica da intratemporalidade (ou do ser-no-tempo) seja
por algumas experiências maiores reveladas pela linguagem quotidiana, como é
o caso de uma história de vida258. Percebe-se, pois, qual o valor e o sentido da
mimesis i: imitar ou representar a ação é, antes de mais, pré-compreender o que
aí há de agir humano, na sua componente semântica, simbólica e temporal.
sobre esta pré-compreensão, que é partilhada pelo poeta e pelos seus leitores,
ergue-se a mise en intrigue e, com ela, a mimética textual e literária. Por

258
Para ricœur, a estrutura da intratemporalidade é a que melhor caracteriza a tem-
poralidade da ação. É sobre ela que se edificarão conjuntamente as configurações narrativas
e as formas mais elaboradas da temporalidade que lhe correspondem (ricœur, TR i, 124-125).
De acordo com m. Heidegger a forma mais originária da experiência do tempo é a tempo-
ralidade, composta pela dialética entre “por-vir”, “tendo-sido” e “tornar-se-presente”, dialética
na qual o tempo é totalmente dessubstancializado. termos como futuro, passado e presente
desaparecem para dar lugar a um tempo como unidade deflagrada destes três êx-tases tem-
porais. esta dialética constitui o tempo do Cuidado (Sorge). em seguida, num nível inferior
ao da temporalidade, Heidegger apresenta a historicidade, caracterizada por dois traços: a
extensão do tempo entre nascimento e morte e a deslocação do acento do futuro para o pas-
sado. em favor de um terceiro traço – o da repetição – o filósofo alemão tenta “re-unir” o
conjunto das disciplinas históricas. No terceiro e último nível, o filósofo coloca a intratem-
poralidade. esta é colocada na última posição porque é a mais apta a ser nivelada pela repre-
sentação linear do tempo como uma sucessão regular de instantes abstratos. Porém, ricœur
manifesta o seu interesse por ela, curiosamente, em função dos traços pelos quais esta estru-
tura se distingue da representação linear do tempo e resiste ao nivelamento que a reduziria
a esta representação a que Heidegger chama conceção vulgar do tempo (TR i, 121). a intra-
temporalidade revela um caráter estrutural do Cuidado do Dasein: o estar-lançado entre as
coisas (da ocupação e da pré-ocupação). Estar-no-tempo é antes de mais contar com o tempo
e, consequentemente, calcular. estas características existenciais não são dedutíveis da simples
representação linear do tempo. É porque contamos com o tempo e fazemos cálculos que
recorremos à medida do tempo ou ao tempo como medida e não ao contrário. o contar com
está antes da medição. expressões como “ter tempo”, “agarrar o tempo”, “ganhar tempo”,
“perder tempo”, “então”, “depois”, “mais tarde”, “até que”, “enquanto”,”desde que”, “agora
que”, etc., orientam-nos já para o caráter datável e público da preocupação existencial e
antropológica. Não são as coisas do Cuidado que determinam o sentido do tempo, mas o pró-
prio Cuidado. ao romper assim com a representação linear do tempo, a análise da intratem-
poralidade representa um benefício para a pré-compreensão da temporalidade da ação. cf. m.
Heidegger, Sein und Zeit, §§78-83, tübingen, 196310, particularmente o último capítulo da
secção ii: «temporalidade e intratemporalidade como origem do conceito vulgar de tempo»;
e o prefácio de Paul ricœur a H. arendt, La Condition Humaine, Paris, 19832.
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 229

conseguinte, ricœur pode afirmar: «[...] la littérature serait à jamais incompré-


hensible si elle ne venait configurer ce qui, dans l’action humaine, fait déjà
figure» (TR i, 125).

com a mimese de nível II abre-se o reino da ficção ou, como diz


ricœur, o reino do “comme si” (TR i, 125). No entanto, para se referir ao
segundo nível mimético, sem colocar em risco a pretensão de verdade da nar-
rativa histórica, opta por usar os termos “configuração” e “composição” – na
aceção do mythos aristotélico – em vez de usar indiscriminadamente “ficção”
para se referir à intriga da história-ciência e da história ficcional (cf. TR i,
126).
a posição intermédia e a função intermediária da mimesis II resultam do
caráter dinâmico ou operativo da configuração que faz dela mediadora entre o
campo da pré-compreensão e o da pós-compreensão da ordem da ação e dos
seus traços temporais259. Justamente, o dinamismo da mise en intrigue é incom-
patível com os conceitos estáticos e abstratos de intriga e sistema e advém da
sua função de tripla mediação/integração ao nível do campo textual. ou seja,
a mimesis ii é mediadora entre dois estádios miméticos que contribuem para a
mediação maior entre tempo e narrativa porque ela integra no corpo textual três
tipos de elementos260.
concentremo-nos no primeiro nível de integração/mediação: a intriga liga
acontecimentos ou incidentes individuais a uma história completa e com sen-

259
«en plaçant mimèsis ii entre un stade antérieur et un stade ultérieur de la mimèsis,
je ne cherche pas seulement à la localiser et à l’encadrer. Je veux mieux comprendre sa fonc-
tion de médiation entre l’amont et l’aval de la configuration. Mimèsis ii n’a une position
intermédiaire que parce qu’elle a une fonction de médiation» (ricœur, TR i, 126-127).
260
a intriga é duplamente mediadora: não só entre a narrativa e a ação temporal por-
tadora de mudança, mas entre dois estádios miméticos, um a montante e outro a jusante,
sendo que esta segunda mediação está ao serviço da primeira, servindo-lhe de fundamento
teórico, porque o objetivo principal de ricœur é estabelecer uma mediação entre tempo e nar-
rativa: «[...] en passant de la question nouvelle de la médiation entre temps et récit à la ques-
tion nouvelle de l’enchaînement des trois stades de la mimèsis, je base la stratégie entière de
mon ouvrage sur la subordination du second problème au premier. c’est en construisant le
rapport entre les trois modes mimétiques que je constitue la médiation entre temps et récit.
ou, pour le dire autrement, pour résoudre le problème du rapport entre temps et récit, je dois
établir le rôle médiateur de la mise en intrigue entre un stade de l’expérience pratique qui
la précède et un stade qui lui succède. en ce sens l’argument du livre consiste à construire
la médiation entre temps et récit en démontrant le rôle médiateur de la mise en intrigue dans
le procès mimétique» (TR i, 107).
230 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

tido. De um conjunto diversificado de acontecimentos ela saca uma história


com sentido ou, por outras palavras, transforma acontecimentos aleatórios em
história261. Por conseguinte, um acontecimento deve ser mais do que uma sim-
ples ocorrência singular. «ele define-se pela sua contribuição para o desenrolar
da intriga» (ibid.: 127) 262. o acontecimento é a pedra de toque da construção
da narrativa, com a qual desenvolve uma relação de simbiose. ele contribui
para o avanço da narrativa e ela confere-lhe o sentido que lhe permite sair da
casualidade insignificante. o acontecimento tem a virtude de fazer avançar a
história porque é de natureza temporal, representa uma mudança de um antes
para um depois, condensa uma ação humana decorrida no tempo – que é onde
decorrem necessariamente todas as ações humanas. Daí que os acontecimentos
históricos, ao invés dos acontecimentos naturais, exibam uma estrutura narra-
tiva, e este facto justifica por si só que o historiador os represente em forma
de narrativa. em suma, uma história faz mais do que enumerar sequencialmente
os factos, ela deve organizá-los numa totalidade inteligível, de tal modo que se
possa concluir o tema do seu argumento e de uma simples sucessão surja uma
configuração: «la mise en intrigue est l’opération qui tire d’une simple succes-
sion une configuration» (ibid.: 127).
em segundo lugar, a mise en intrigue congrega num corpo textual um
conjunto de fatores heterogéneos, como os agentes, os fins, os meios, as intera-

261
Num ensaio posterior a Temps et Récit, no qual ricœur tenta dar a conhecer ao
público os traços gerais da sua filosofia, dirá que a mise en intrige tem essa virtude extra-
ordinária de reunir ações dispersas e ilógicas (que em si não são princípio nem meio nem
fim de nada) num organismo textual coeso e significante, com princípio, meio e fim: «com-
prenons par là qu’aucune action n’est un commencement que dans une histoire qu’elle inau-
gure; qu’aucune action n’est non plus un milieu que si elle provoque dans l’histoire racontée
un changement de fortune, un «nœud» à dénouer, une «péripétie» surprenante, une suite d’in-
cidents «pitoyables» ou «effrayants»; aucune action, enfin, prise en elle-même, n’est une fin,
sinon en tant que dans l’histoire racontée elle conclut un cours d’action, dénoue un nœud,
compense la péripétie par la reconnaissance, scelle le destin du héros par un événement
ultime qui clarifie toute l’action et produit, chez l’auditeur, la katharsis de la pitié et de la
terreur» (ricœur, TA, 13-14).
262
esta definição de acontecimento, que ricœur reitera no artigo de abertura da com-
pilação Du texte à l’action [TA], é fulcral para corroborar, como vimos, o caráter narrativo
da história de tipo estrutural. «l’intrigue est le médiateur entre l’événement et l’histoire. ce
qui signifie que rien n’est événement qui ne contribue à la progression d’une histoire. un
événement n’est pas seulement une occurrence, quelque chose qui arrive, mais une compo-
sante narrative» (ricœur, TA, 14).
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 231

ções, as circunstâncias, os imprevistos, as reviravoltas, os “pathoi”263. a intriga


pode reunir no eixo sintagmático tudo o que é passível de figurar no eixo para-
digmático estabelecido pela semântica da ação. esta transição, operada pela
configuração, do eixo paradigmático para o eixo sintagmático equivale à pas-
sagem da mimesis i para a mimesis ii.
Por fim, temos a mediação que nos permite dizer que a teoria poética
definida por ricœur com base na Poética de aristóteles é uma resposta não
especulativa à aporética do tempo, na medida em que reflete e inverte o enigma
agostiniano da discordância sobre a concordância. a intriga faz a mediação de
traços temporais que reforçam a ideia de uma síntese do heterogéneo. aristó-
teles, na Poética, não considerou estes traços temporais implicados no dina-
mismo constitutivo da configuração narrativa, mas eles são basilares na econo-
mia da tese ricœuriana, dando pleno sentido ao conceito de concordância
discordante. o ato de composição poética combina em proporções variáveis
duas dimensões temporais, uma cronológica e outra não cronológica. a primeira
constitui a dimensão episódica e factual da narrativa; a segunda constitui a
dimensão configurante, pela qual a narrativa transforma os acontecimentos em
história. o conceito de ato configurante (configurational act) como capacidade
para captar/compor num conjunto elementos discordantes é adotado de louis
o. mink (1966), que o emprega no âmbito da compreensão histórica. ricœur
estende-o a todo o campo da inteligência narrativa: «cet acte configurant
consiste à «prendre ensemble» les actions de détail ou ce que nous avons
appelé les incidents de l’histoire; de ce divers d’événements, il tire l’unité
d’une totalité temporelle» (ricœur, TR i, 129).
o ato configurante extrai uma configuração ou figura de uma sucessão,
revelando-se ao leitor ou ao ouvinte na followability da história ou na sua apti-
dão para ser seguida264. seguir uma história, segundo ricœur, «é avançar pelo
meio de contingências e de peripécias sob a orientação de uma expetativa que
encontra o seu cumprimento na conclusão» (ibid.: 130).
esta conclusão, apesar de ser plausível e coerente com o que a antecede,
deve ser imprevisível e dar à história um ponto final a partir do qual se pode

263
«[...] je dirai que l’intrigue est l’unité intelligible qui compose des circonstances, des
buts et des moyens, des initiatives, des conséquences non voulues» (ricœur, TA, 14). Paul
ricœur deve esta ideia a Paul Veyne [1971], que define a intriga como uma combinação em
proporções variáveis de fins, causas e imprevistos e faz deste princípio o fio condutor da sua
obra de reflexão histórica.
264
o conceito de followability aparece na teoria histórica de W. B. gallie, Philosophy
and the Historical Understanding (1964), e, tal como a teoria de Veyne e de mink, foi apre-
sentada por nós, no capítulo anterior, no quadro das teses narrativistas.
232 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

aperceber a história como um todo. Deste modo, compreender a história é com-


preender como e porquê os episódios sucessivos conduziram a determinado
desenlace congruente com a intriga265. Finalmente, a capacidade da história de
ser seguida constitui a chave poética do paradoxo da distensão-intensão agos-
tiniana: «Que l’histoire se laisse suivre convertit le paradoxe en dialectique
vivante» (ibid.).
a dimensão episódica da narrativa constrói o tempo narrativo sobre a
representação linear, facto que se comprova na sucessão sequencial dos episó-
dios, de acordo com a ordem irreversível do tempo comum aos acontecimentos
físicos e humanos. a dimensão configurante, ao invés, apresenta os traços tem-
porais de forma inversa aos do tempo linear. transforma a sucessão dos even-
tos numa totalidade significante e faz com que a história se deixe seguir266.
esta operação deixa-nos traduzir a história num pensamento ou tema. mas este
tema não é atemporal, o tempo da fábula é o tempo narrativo, que faz a media-
ção entre o aspeto episódico e o aspeto configurante. a dimensão configurante
impõe ainda à sucessão indefinida dos incidentes o sentido de um ponto final,
de acordo com a célebre expressão de Kermode (1967). Não nos referimos ao
desenlace de que falámos anteriormente, a partir do qual uma história pode ser
vista ou apercebida como um todo. a função estrutural deste ponto final dis-
cerne-se melhor no ato de re-narrar que no de narrar. Quando uma história é
bem conhecida – como é o caso de grande parte dos contos, histórias tradicio-
nais e crónicas nacionais – seguir a história é mais apreender como é que os
episódios já conhecidos levam à conclusão prevista do que descobrir com sur-
presa os vários acontecimentos inesperados do argumento. esta forma de seguir
uma história revela-nos uma outra face do tempo. a recapitulação de uma his-
tória (do fim para o início) constitui uma alternativa à representação do tempo
fluindo do passado para o futuro, segundo a famosa metáfora da “flecha do
tempo”, porque inverte a ordem habitual do tempo. o raconto reduz ao silêncio
os paradoxos que emergem da reflexão agostiniana sobre o tempo267.

265
«[...] la compétence à suivre l’histoire constitue une forme très élaboré de compré-
hension» (ricœur, TA, 14).
266
Vimos no capítulo anterior que a apologia da narrativa como entrelaçada de uma
dupla dimensão episódico-linear e configurante é essencial para fundamentar o parentesco da
história com a narrativa. muitos historiadores desconfiam ou recusam este parentesco porque
veem na narrativa uma mera sucessão sequencial ou cronológica de acontecimentos, o que a
tornaria inapta para a nova história.
267
«[...] bref l’acte de raconter, réfléchi dans l’acte de suivre une histoire, rend pro-
ductifs les paradoxes qui ont inquiété augustin au point de le reconduire au silence» (TR i,
131).
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 233

salientamos ainda duas características da mimesis ii que contribuem para


estabelecer a ligação com a mimesis iii: o esquematismo e a tradição – ambas
com ligação particular ao tempo. o ato configurante deriva da imaginação
produtora e, segundo ricœur, a composição da narrativa é mesmo uma das
expressões mais notáveis do poder esquematizador que Kant atribui à imagina-
ção produtora268. este parentesco entre a estruturação narrativa e a imaginação
produtora implica, por seu turno, que a mise en intrigue se realize sempre
no quadro de uma tradição cultural viva que assenta num jogo de sedimentação
e inovação. Da sedimentação do trabalho de imaginação produtora procedem
os paradigmas, entendidos como modos típicos de composição narrativa, os
quais fornecem as regras para uma experimentação posterior no campo da nar-
rativa269. contudo, os paradigmas, já eles resultantes de uma inovação anterior,
mudam com a pressão de novas invenções dando lugar à inovação, mas mudam
lentamente e tentam resistir à mudança, em virtude do processo de sedimenta-
ção. Numa obra poética há sempre lugar para a inovação, porque cada obra é
singular. É por isso que os paradigmas constituem somente a gramática que
regula a composição de novas obras – novas antes de se tornarem típicas.
invenção e sedimentação estão igualmente implicadas na constituição de tra-
dições.

a explicação da relação entre tempo e narrativa só fica concluída com a


mimesis III, pois a narrativa atinge o seu sentido pleno quando é restituída ao
tempo do agir e do sofrer na mimesis iii. aristóteles dava a entender que o
percurso mimético da ação termina no ouvinte ou no leitor ao dizer-nos que a
poesia ensina o universal e ao mencionar os efeitos da tragédia no auditório.
este último estádio da mimese representa, pois, a intercessão do mundo do
texto com o mundo do leitor ou do ouvinte, pelo que a leitura desempenhará
neste processo um papel imprescindível. ricœur expõe o seu pensamento acerca
desta intercessão em quatro etapas: 1) o círculo da mimese; 2) configuração,
refiguração e leitura; 3) narratividade e referência; 4) tempo narrado.

268
Vide «entre temps et récit: concorde/discorde» in aaVV, Recherches sur la philo-
sophie et langage. Cahier du groupe de recherches sur la philosophie et le langage de l’Uni-
versité de Grenoble, grenoble, 1982, 11.
269
«la constitution d’une tradition, en effet, repose sur le jeu de l’innovation et de la
sédimentation. c’est à la sédimentation, pour commencer par elle, que doivent être rapportés
les paradigmes qui constituent la typologie de la mise en intrigue. ces paradigmes sont issus
d’une histoire sédimentée dont la genèse a été oblitérée» (ricœur, TR i, 133).
234 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

aos que veem um círculo vicioso entre a mimese i e a mimese iii – o


ponto de chegada incluído no ponto de partida – o filósofo retorque que esta
circularidade não é viciosa, mas sim em espiral: o ponto de chegada retoma o
ponto de partida, é verdade, mas a outra altitude. a mimese ii não se limita
a restituir à mimese iii o que a mimese iii já teria dado à mimese i. Há uma
narratividade incoativa inerente à experiência, mas não procede da projeção da
literatura sobre a vida, constituindo, é certo, uma autêntica demanda de narra-
tiva, facto que nos leva ao reconhecimento de uma verdadeira estrutura pré-nar-
rativa da experiência. Digamos que a concatenação dos episódios da própria
experiência quotidiana nos faculta um modelo de histórias ainda não contadas
e que cada ser humano possui uma história potencial ou por contar. os exem-
plos do psicanalista e do juiz são bastante elucidativos da narratividade incoa-
tiva ou história não narrada e levam-nos a concluir que contamos histórias por-
que, em última análise, as vidas humanas têm necessidade e merecem ser
contadas, facto bem patente no caso de salvar a história das vítimas, pois toda
a história do sofrimento grita por vingança e apela à narrativa270.
Depois de rebater a crítica de circularidade viciosa, o filósofo francês des-
taca o papel do ato de leitura como vetor de transição entre a mimese ii (con-
figuração) e a mimese iii (refiguração). a leitura completa e atualiza o ato con-
figurante, permitindo à intriga modelar a experiência271. os dois traços próprios
da configuração – esquematização e tradicionalidade – ao criarem interação
entre o mundo da escrita e o mundo da leitura, ajudam-nos a desfazer a opo-
sição preconceituosa entre um “fora” e um “dentro” do texto. a leitura termina
a obra que não é senão um esboço para a leitura. só existe obra na interação
viva entre o texto e o seu recetor.
Na terceira etapa da análise da mimese iii, ricœur aborda a problemática
da narratividade e referência272. todo o discurso tem um referente extralinguís-

270
«Nous racontons des histoires parce que finalement les vies humaines ont besoin et
méritent d’être racontées. cette remarque prend toute sa force quand nous évoquons la néces-
sité de sauver l’histoire des vaincus et des perdants. toute l’histoire de la souffrance crie ven-
geance et appelle récit» (tr i, 143).
271
a noção de leitura será alvo de uma importante expansão crítica no terceiro volume
de Temps et Récit, para assegurar o entrecruzamento da história e da ficção.
272
este conceito de referência herdado de Metáfora viva sofrerá uma revisão crítica no
terceiro volume de Temps et Récit onde será substituído pelos de representância – para mar-
car a assimetria entre a realidade do passado visada pela história e a irrealidade da ficção
– e de refiguração – para dar conta da especificidade do referente ficcional, e fugir à noção
de redescrição, oriunda também de Metáfora viva.
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 235

tico; dizendo a alguém algo acerca de alguma coisa, ele aponta para o mundo
fora de si – «ce que reçoit un lecteur, c’est non seulement le sens de l’œuvre
mais, à travers son sens, sa référence, c’est-à-dire l’expérience qu’elle porte au
langage et, à titre ultime, le monde et sa temporalité qu’elle déploie en face
d’elle» (ricœur, TR i, 148).
esta tese vai contra as teorias da semiótica e da linguística, que recusam
qualquer referência do texto ao mundo externo, em nome da estrita imanência
da própria linguagem literária. mas negar o impacto da literatura na experiência
quotidiana é, por um lado, assumir uma atitude positivista e, por outro, negar
à ficção o seu caráter subversivo de afetar a ordem moral e social. as obras
de ficção alargam o nosso horizonte de existência273. Não obstante, a função da
hermenêutica não consiste tanto em restituir a intenção do autor por trás da
obra, mas muito mais em explicitar o movimento através do qual um texto
expõe ao leitor uma proposta de mundo que transfigura o mundo do próprio
leitor274. No texto literário ficamos perante um mundo não empobrecido mas
sobressignificado na sua dimensão temporal pela ação de um aumento icónico.
o aumento icónico em causa consiste no aumento da legibilidade ou da com-
preensão do mundo pré-narrativo da praxis. Por conseguinte, «a ação humana
pode ser sobressignificada, porque ela já está pré-significada por todas as
modalidades da sua articulação simbólica» (ibid.: 153).
o assunto da última etapa de teorização da mimese iii diz respeito ao
terceiro momento da mimese i, ou seja, ao tempo da ação convertido pela
configuração mimética (mimese ii) em tempo narrado. o tempo da ação,
mais ainda que os outros traços da mimese i, é intensificado ou aumentado
iconicamente pela mise en intrigue e refigurado pela mimese iii. a questão

273
«c’est en effet aux œuvres de fiction que nous devons pour une grande part l’élar-
gissement de notre horizon d’existence. loin que celles-ci ne produisent que des images affai-
blies de la réalité, des “ombres” comme le veut le traitement platonicien de l’eikon dans l’or-
dre de la peinture ou de l’écriture (Phèdre, 274e-277e), les œuvres littéraires ne dépeignent la
réalité qu’en l’augmentant de toutes les significations qu’elles-mêmes doivent à leurs vertus
d’abréviation, de saturation et de culmination, étonnamment illustrés par la mise en intrigue»
(ricœur, TR i, 151).
274
«Je n’ai cessé, ces dernières années, de soutenir que, ce qui est interprété dans un
texte, c’est la proposition d’un monde que je pourrais habiter et dans lequel je pourrais pro-
jeter mes pouvoirs les plus propres» (ricœur, TR i, 152). «la fiction a ce pouvoir de
«refaire» la réalité praxique, dans la mesure où le texte vise intentionnellement un horizon de
réalité nouvelle que nous avons pu appeler un monde. c’est ce monde du texte qui intervient
dans le monde de l’action pour le configurer à nouveau ou, si l’on ose dire, pour le trans-
figurer» (ricœur, TA, 23).
236 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

está em discernir a forma como a experiência vulgar do tempo, própria do


agir e do padecer humanos, é remodelada ao passar pela grelha da narrativa.
Porém, sendo este um tema complexo e fulcral na economia da obra, ricœur
reserva-o para o fim da trilogia Temps et Récit, onde o tempo narrado aparece
como corolário do entrecruzamento de história e ficção e como superação do
abismo entre tempo fenomenológico e tempo cosmológico. antes disso, entre a
introdução e a conclusão desta tese, o autor demonstra que a história-ciência
cabe no espetro narrativo, porque é um ato configuracional que partilha a inte-
ligibilidade narrativa da ficção (TR i, 165-396); que nenhuma fenomenologia
consegue dizer-nos o que é o tempo sem se enredar em aporias (TR iii, 19-
178); e que a ficção se liga ao mundo extratextual do tempo e da ação (cf. TR
ii)275. uma vez que já dissemos quanto baste sobre estas matérias, julgamo-nos
em condições de passar diretamente ao tempo narrado pela história sábia e pela
ficção.

275
este propósito – na continuidade da teoria narrativa que desenvolve sob a égide da
tríplice mimese – preenche as páginas do segundo volume de Temps et Récit, instigando
ricœur a diversificar a noção de temporalidade recebida da tradição agostiniana, procedendo
a um simultâneo alargamento, aprofundamento, enriquecimento e abertura para fora da noção
de mise en intrigue (mimesis ii) recebida da tradição aristotélica. Alargar a noção de mise
en intrigue significa, primeiramente, testar a capacidade do mythos aristotélico de se meta-
morfosear noutros géneros narrativos (como o conto popular, a epopeia, a tragédia e a comé-
dia, o romance) sem perder a sua identidade. Aprofundar a noção de “mise en intrigue” é
confrontar a inteligência narrativa que nos foi transmitida pelas narrativas da nossa cultura
com a racionalidade narratológica, muito particularmente com a semiótica narrativa de tipo
estruturalista. Enriquecer a noção de mise en intrigue e a que lhe é correlativa, a de tempo
narrativo, significa explorar os recursos da configuração narrativa que parecem próprios da
narrativa ficcional e isso implica distinguir enunciação de enunciado e, consequentemente,
tempo da narração e tempo das coisas narradas. Finalmente, abrir a mesma noção e a do
tempo que lhe é apropriado para fora, «é seguir o movimento de transcendência pelo qual
toda a obra de ficção, seja ela verbal ou plástica, narrativa ou lírica, projeta para fora de si
mesma um mundo a que podemos chamar mundo da obra». (ricœur, TR ii, 15). o mundo
da obra exibe ao leitor experiências fictícias do tempo. estes quatro objetivos levam ricœur
a entabular um diálogo com a crítica literária de Northrop Frye e Kermode, com o estru-
turalismo de roland Barthes, com a Morfologia do Conto de Propp e com os semióticos da
escola de greimas, como genette e günther müller, entre outros (tr II, 17-188). ilustra o
modo como a ficção lida com tempo do real a partir de três fábulas, três experiências
temporais da literatura contemporânea (tr II, 189-286): Mrs. Dalloway de Virgínia Woolf,
A Montanha Mágica de thomas mann e Em busca do tempo perdido de marcel Proust.
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 237

1.2.  O tempo narrado pela história e pela ficção

«la refiguration du temps par le récit est, selon moi,


l’œuvre conjointe du récit historique et du récit de
fiction» (ricœur, TR i, 169).

ricœur parte para as afinidades entre história e ficção, averiguando o


modo como cada uma das modalidades apreende, mimetiza e transmite o
campo da praxis temporal. De facto, se podemos considerar que história e lite-
ratura divergem nos referentes imediatos, que são, respetivamente, os aconteci-
mentos “reais” e os acontecimentos imaginários, na medida em que ambas pro-
duzem relatos dotados de intriga, o seu referente último é a experiência humana
de tempo ou as estruturas de temporalidade. a tese avançada por ricœur, no
primeiro volume da trilogia, de que a narrativa é a única capaz de exibir, de
um modo poético ou indireto, o tempo no qual estamos enredados, só fica
plena e cabalmente demonstrada com a entrada em cena dos papéis cruciais de
história e ficção. Não basta dizer que a narrativa prefigura, configura e refigura
o tempo, é preciso demonstrar como em cada uma das suas vertentes, historio-
gráfica e ficcional, ela executa este processo. com esta matéria atingimos o
ponto alto da tese ricœuriana e o cerne da nossa investigação. Para aqui con-
vergem as reflexões preparatórias de Paul ricœur levadas a cabo nos capítulos
e volumes anteriores da sua obra276. Não obstante, este corolário quer ser, fun-
damentalmente, uma resposta direta às questões deixadas em aberto no quadro
da mimese iii, a propósito da refiguração ou da referência cruzada entre his-
tória e ficção e do papel da leitura como mediadora entre o mundo do texto
e o mundo do leitor. o assunto preenche a quarta e última secção da trilogia,
a mais extensa, sob o título de “poética da narrativa: história, ficção e tempo”
(TR iii, 179-433). o ternário que compõe o título justifica a nossa opção de
antepor a este capítulo uma extensa nota explicativa sobre narrativa e história
e sobre tempo e narrativa, pois só à luz destas dialéticas é possível destrinçar
e fundamentar as afinidades entre história e ficção.

276
se é verdade que, de um ponto de vista epistemológico, a relação entre tempo e
narrativa e o parentesco entre história e narrativa já tinham ficado solidamente demonstrados
em Temps et Récit i, ricœur desde cedo admite que a dialética tempo narrativa não fica com-
pleta sem o confronto com a crítica literária (TR ii), donde extrai o conceito de “variações
imaginativas”, e a fenomenologia do tempo (TR iii, 21-178), onde põe a descoberto as apo-
rias da fenomenologia do tempo. só após esta conversação triangular, o filósofo fica em
posse dos instrumentos necessários para concluir o ciclo hermenêutico que pretende instaurar
entre uma poética da narratividade e uma aporética da temporalidade.
238 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

como a poética da narratividade não se pode satisfazer com uma reflexão


genérica acerca da narrativa enquanto tríplice mimese, considerou-se a sua
bifurcação maior em narrativa ficcional e narrativa histórica, por ambas contri-
buírem para a solução poética da aporética do tempo. Vimos como a historio-
grafia científica lida com a questão do tempo – recorde-se a pluralidade de
tempos históricos teorizada por Braudel – e, no segundo volume de Temps et
Récit, o autor expõe a forma como a narrativa de ficção incorpora e trabalha
o tempo, produzindo sobre ele variações imaginativas. No entanto, estas refle-
xões, mais fenomenológicas que ontológicas, não constituem uma resposta aca-
bada às aporias do tempo, antes explicam as estratégias metodológicas que his-
tória e ficção usam para configurar o tempo. só depois deste desvio estratégico
que conscientemente efetua pela epistemologia da história, pela crítica literária
e pela fenomenologia do tempo, ricœur reúne as condições necessárias para
confrontar e interligar história e ficção, com o intuito de formular uma resposta
poética completa às aporias reveladas pela fenomenologia pura do tempo. No
caso da história, este propósito exige que se vá além das considerações epis-
temológicas anteriormente apresentadas a propósito do acontecimento e da
longa duração e que se desenvolva em toda a sua amplitude a questão da
essência do tempo histórico. Por outras palavras, é na célula do tempo histó-
rico, o tempo construído pelo ofício do historiador, que encontramos uma forma
original de superar o abismo aporético que a reflexão filosófica instalou entre
o tempo interno subjetivo e o tempo externo objetivo. as operações seguintes
passam pelo apuramento do estatuto ontológico do passado histórico enquanto
ter-sido; a distinção, a partir daí, das “realidades” que são visadas pela história
e pela ficção; o questionamento do tradicional abismo intransponível entre o
passado “real” e a ficção “irreal”; em suma, o esclarecimento do estatuto onto-
lógico do objeto e do sujeito na historiografia e na narrativa ficcional e a fun-
damentação da relação entre esses dois polos e entre as duas modalidades nar-
rativas.
Não se nega nunca uma assimetria irredutível entre o real histórico e o
irreal da ficção, antes nos apoiamos sobre ela para perceber o quiasmo entre os
dois modos referenciais da ficção e da história. Por um lado, não se pode dizer
que a ficção não tem referência, por outro, também não vamos dizer que a his-
tória se refere ao passado histórico do mesmo modo que as descrições empí-
ricas se referem ao real presente. De uma maneira ou de outra, todos os sis-
temas de símbolos contribuem para configurar a realidade. De um modo
particular, as intrigas que nós inventamos ajudam-nos a configurar a nossa
experiência temporal confusa, informe, opaca.
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 239

É no entrecruzamento das referências sobre a temporalidade da ação


humana que se dá a refiguração do tempo humano pela história e pela ficção.
o mais curioso é que nem a história nem a ficção são capazes de levar a cabo
esta tarefa sem se socorrerem uma da outra. a intencionalidade histórica não se
realiza sem incorporar à sua intenção os recursos de ficcionalização que ema-
nam do imaginário narrativo; por seu turno, a intencionalidade da narrativa fic-
cional só produz os seus efeitos de detecção e transformação do agir e do
padecer assumindo os recursos de historicização que encontra nas tentativas de
reconstrução do passado efetivo, ou seja, nas construções históricas. É deste
intercâmbio entre historicização da ficção e ficcionalização da história que
nasce o denominado tempo humano, que mais não é que o tempo narrado.
este trabalho de aproximação gradual entre narrativa histórica e narrativa
ficcional é feito em três etapas; como duas linhas que partem afastadas e se
vão aproximando até a um afunilamento. Num primeiro momento, os dois
modelos narrativos são confrontados em oposição; numa segunda fase são pos-
tos lado a lado; e, no fim, são alvo de entrecruzamento. Partimos, assim, da
heterogeneidade para o paralelismo e, finalmente, para o entrecruzamento.

1.2.1.  Heterogeneidade: resposta às aporias do tempo

História e ficção têm formas distintas de apreender, tecer e exibir o


mundo da praxis temporal e, consequentemente, oferecem soluções heterogé-
neas às aporias da fenomenologia do tempo. a história responde às aporias com
a construção de um terceiro tempo invariante, o tempo histórico, que faz a
mediação entre o tempo vivido ou fenomenológico e o tempo cósmico ou obje-
tivo ou vulgar, através de conectores da metodologia histórica que permitem
inscrever acontecimentos do tempo vivido em grandezas do tempo cósmico.
ora, esta forma de abordar a filosofia da história é nova. No momento em
que ricœur redige a sua obra, havia duas pontas por onde pegar: ou pela espe-
culação sobre a história universal, à maneira de Hegel, ou pela epistemologia
da escrita da história, à maneira da historiografia francesa. ricœur descortina
uma terceira opção:
une troisième option, ouverte par la rumination des apories de la phénoménologie
du temps, consiste à réfléchir sur la place du temps historique entre le temps phé-
noménologique et le temps que la phénoménologie ne réussit pas à constituer,
qu’on l’appelle temps du monde, temps objectif ou temps vulgaire [ricœur, TR iii,
189].
240 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

Do lado da ficção, a mesma operação de religação do tempo vivido ao


tempo do mundo resulta em variações imaginativas sobre os temas maiores da
fenomenologia, que se apresentam como soluções para as aporias geradas pela
mesma fenomenologia do tempo277. assim, ainda que a oposição seja a domi-
nante, há um denominador comum – a fenomenologia do tempo – sobre o qual
história e ficção trabalham e que permite confrontá-las.

1.2.1.1.  A poética do tempo histórico

o historiador, quando cruza o tempo vivido com o tempo cósmico, cria


um terceiro tempo (tiers-temps) – o histórico – que concilia os dois tempos
anteriores e vence as diferenças aporéticas. este cruzamento é possível graças
à invenção e uso de determinados instrumentos de pensamento próprios da
metodologia histórica, como o calendário; a ideia de sequência das gerações e
do triplo reino de antepassados, contemporâneos e sucessores; os arquivos,
documentos e traços278. o que estes ditos instrumentos de pensamento têm de
interessante é que são fruto da imaginação humana e, nessa qualidade, atestam
a função poética da história e trabalham para solucionar as aporias do tempo.
todavia, agora avançaremos sem prestar particular atenção às virtudes imagina-
tivas dos conectores, reservando-os para o momento em que defenderemos a
ficcionalização da história.
Normalmente, o historiador não se interroga acerca das condições de pos-
sibilidade destes instrumentos do pensamento que usa com toda a naturalidade,
porém estas revelam-se se confrontarmos o seu funcionamento com as aporias
do tempo. É isso que faz ricœur, para desvelar as sua estruturas narrativas.

277
Não dispensamos a mesma atenção às soluções que as variações imaginativas ofe-
recem às aporias da fenomenologia do tempo, cingindo-nos a um breve apanhado das con-
siderações que ricœur produz para o efeito, porque isso implicaria uma exposição mais deta-
lhada e técnica quer do pensamento filosófico de Kant, Husserl e Heidegger a propósito do
tempo (cf. ricœur, TR iii, 21-178 e 229-251) quer das três fábulas sobre o tempo e do con-
ceito de “variações imaginativas” que o autor francês desenvolve ao longo do segundo
volume de Temps et Récit. além disso, preferimos destacar os contributos do tempo cons-
truído pelo trabalho do historiador, porquanto nos parecem mais relevantes para os propósitos
que norteiam a nossa investigação.
278
«l’histoire révèle une première fois sa capacité créatrice de refiguration du temps
par l’invention et l’usage de certains instruments de pensée tels que le calendrier, l’idée de
suite des générations et celle, connexe, du triple règne des contemporains, des prédécesseurs
et des successeurs, enfin surtout par le recours à des archives, des documents et des traces»
(TR iii, 189).
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 241

i)  O tempo do calendário

o tempo do calendário é o primeiro instrumento utilizado pelo historiador


para fazer a ponte entre o tempo vivido e o tempo universal. sendo tributário
das duas perspetivas temporais e de nenhuma em exclusivo, origina um novo
tempo – o histórico. ou, citando ricœur: «a sua instituição constitui a invenção
de um terceiro-tempo»279.
a constituição de qualquer calendário tem na sua raiz o tempo mítico,
existente antes da divisão do tempo em mortal, histórico e cósmico e anterior
à fratura do tempo em histórico e ficcional. o tempo mítico, teorizado por Pla-
tão no Timeu e aristóteles na Física, envolve toda a realidade. este “grande
tempo” era usado para regular os ritmos temporais das sociedades e dos
homens que as compõem com base nas coordenadas do tempo cósmico; permi-
tia realizar uma escansão única e global do tempo, ordenando uns relativamente
aos outros os ciclos de duração variável, os grandes ciclos celestes, as recor-
rências biológicas e os ritmos da vida social. Foi desta forma que as represen-
tações míticas (magia, religião...) contribuíram para a instituição do tempo do
calendário. a este nível, o calendário, mais do que medir o tempo, tem por fun-
ção ritmá-lo de acordo com as datas cíclicas das festas, dos dias fastos e nefas-
tos, dos tempos favoráveis e desfavoráveis. logo, toda a representação mítica
encerra o duplo aspeto do mito e do rito. Por intermédio do rito, o tempo
mítico tornou-se a raiz comum do tempo do mundo e dos homens. a periodi-
cidade marcada pelo rito exprime um tempo cujos ritmos são mais vastos que
os da ação ordinária. ao escandir deste modo a ação, ele enquadra o tempo
ordinário e cada vida humana num tempo de grande amplitude. enquanto o
mito tende a expandir o tempo e o espaço comuns, afastando-os para a alte-
ridade do sagrado, o rito tende a aproximar o tempo mítico da vida e da ação
profanas280. Não obstante o valioso acervo de informações transmitidas pela
sociologia religiosa e pela história comparada das religiões, ricœur apenas
retém do mito e do rito o que contribui para a integração do tempo ordinário
– centrado sobre a vivência dos indivíduos que agem e sofrem – no tempo do
mundo esboçado no firmamento, ou seja, interessa-lhe apurar as condições uni-
versais da instituição do calendário. É esta constituição universal que faz do
tempo do calendário um terceiro-tempo entre o tempo psíquico e o tempo cós-

279
«[...] son institution constitue l’invention d’un tiers-temps» (TR iii, 190).
280
«s’il fallait opposer mythe et rite, on pourrait dire que le mythe élargit le temps
ordinaire (comme aussi l’espace), tandis que le rite rapproche le temps mythique de la sphère
profane de la vie et de l’action» (TR iii, 193).
242 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

mico. ricœur procura as regras desta constituição na reflexão de Émile Benve-


niste, Le langage et l’expérience humaine, que dá ao tempo do calendário o
nome especial de tempo crónico, devido à originalidade da sua criação.
todos os calendários têm três traços comuns, cujo conjunto forma o
cômputo ou a divisão do tempo crónico: 1) um acontecimento fundador que dá
origem a uma nova era, ou seja, um momento axial a partir do qual todos os
acontecimentos são datados; 2) a possibilidade de se percorrer, a partir do
ponto de referência, o tempo nas duas direções, do passado para o presente e
do presente para o passado; 3) um conjunto de unidades constantes de medida
que servem para nomear os intervalos constantes entre as recorrências de fenó-
menos cósmicos e são determinados com a ajuda da astronomia: o dia (entre
o nascer e o pôr do sol); o ano (uma revolução completa do sol e das esta-
ções); o mês (duas conjunções da lua e do sol). estes três traços distintivos
do calendário comportam um parentesco explícito com o tempo físico, bem
conhecido dos antigos, e implícito com o tempo vivido, pouco reconhecido
antes de Plotino e agostinho.
Do tempo físico o calendário herdou as características de um contínuo
uniforme, infinito, linear, fraccionável. enquanto fraccionável, este tempo é
fonte de instantes neutros (o instante é o análogo temporal do ponto geomé-
trico), desprovidos de qualquer significado presente; enquanto ligado ao movi-
mento e à causalidade, este tempo comporta uma direção para um antes e um
depois, direção esta que ignorando o passado e o futuro, permite que o obser-
vador o percorra nos dois sentidos (bidimensionalidade do olhar e unidireccio-
nalidade do curso das coisas); enquanto contínuo linear, é mensurável. a men-
surabilidade permite fazer corresponder números aos intervalos iguais de tempo,
intervalos estes relacionados com a recorrência de fenómenos naturais. a astro-
nomia (através da observação do curso dos astros, particularmente do sol e da
lua) é a ciência que fornece estas leis de recorrência. Por conseguinte, são os
fenómenos astronómicos que dão um sentido à noção de tempo físico e deter-
minam o cômputo do tempo do calendário.
ainda que o cômputo do tempo do calendário assente sobre fenómenos
astronómicos que conferem um sentido à noção de tempo físico, o princípio da
divisão do tempo do calendário não deriva de fenómenos físicos ou astronómi-
cos, deriva sim do tempo vivido. a divisão procede da determinação do ponto
zero do cálculo. importa aqui já não a noção físico-matemática de instante, mas
o conceito fenomenológico do presente temporal. É o presente irredutível ao
instante que marca o “hoje” da presença, abre a um “ontem” e a um “amanhã”
e dá sentido à ideia de acontecimento novo que rompe com uma era anterior
e instaura um curso diferente de tudo o que o precedeu. o mesmo se pode
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 243

dizer quanto à bidirecionalidade: sem a experiência fenomenológica da retenção


e da protenção no presente – ou da memória e da expectação na atenção – não
teríamos ideia alguma do percurso de uma série de acontecimentos passados.
mais do que isso, se não tivéssemos a ideia de quase-presente (a ideia de que
todo o instante recordado se pode tornar um presente, dotado das suas próprias
retenções e protenções) não teríamos a noção de um percurso em duas direções,
do passado para o presente ou do presente para o passado. Não há presente e,
logo, nem passado nem futuro, enquanto um instante não for considerado um
“agora”, um “hoje”, um “presente”.
o tempo vivido e o tempo físico são dois pilares importantes do tempo
crónico, mas este é uma autêntica criação que vai além dos recursos de um e
do outro. o seu momento axial (embora os pressuponha) é mais do que um ins-
tante e do que um presente, é, como afirma Benveniste, um acontecimento tão
importante que dá às coisas um novo rumo. o momento axial confere aos aspe-
tos cósmicos e psicológicos do tempo um novo significado. Por um lado, serve
de ponto de referência para situar os acontecimentos no tempo; por outro, estes
mesmos acontecimentos que são datados a partir do momento axial servem de
ponto de referência temporal para os acontecimentos da vida de cada pessoa:
«ils nous disent au sens propre où nous sommes dans la vastitude de l’histoire,
quelle place est la nôtre parmi la succession infinie des hommes qui ont vécu
et des choses qui sont arrivées» (Benveniste, apud ricœur, TR iii, 197).
as datas permitem-nos organizar a vida pessoal, interpessoal e social,
cívica e religiosa. além disso, o tempo axial confere ao tempo do calendário
uma originalidade específica: permite considerá-lo “exterior” quer ao tempo
físico quer ao tempo vivido. Por um lado, todos os instantes são legítimos can-
didatos ao lugar de momento axial; por outro, qualquer dia do calendário, em
si mesmo, pode ser passado, presente ou futuro. uma mesma data tanto pode
designar um acontecimento passado, caso da crónica, como um acontecimento
futuro, caso da cláusula jurídica num tratado. Para que haja o presente é pre-
ciso que alguém fale, é preciso que o acontecimento que o assinala coincida
com um discurso vivo que o enuncie. Para que o tempo crónico alcance o
tempo vivido precisa da mediação do tempo linguístico, referido ao discurso.
uma determinada data, completa e explícita, não pode ser dita futura nem pas-
sada sem conhecimento da data de enunciação que a pronuncia. o tempo do
calendário, dito “exterior” aos eventos físicos e psicológicos, exprime a espe-
cificidade do tempo crónico como mediador entre os dois tipos de eventos:
«il cosmologise le temps vécu, il humanise le temps cosmique» (TR iii, 197).
e, deste modo, contribui para reinscrever o tempo da narrativa no tempo do
mundo.
244 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

ii)  A sequência das gerações

além de um suporte astronómico – tempo do calendário –, o tempo his-


tórico tem um suporte biológico – a sequência das gerações. esta constitui a
segunda mediação proposta pela prática histórica e entra no campo histórico por
intermédio de uma outra, de teor sociológico, que alfred schutz descreve na
sua obra281: a ideia da conexão formada por contemporâneos, antepassados e
sucessores, que correspondem, do ponto de vista da concatenação biológica e
sociológica, aos três “êxtases” temporais que compõem a temporalidade. ricœur
pretende usar a noção de sequência de gerações como réplica à aporia heideg-
geriana causada pela antinomia entre tempo mortal e tempo público – ou entre
temporalidade (mortal) e historialidade (pública) – e fá-lo ao designar a cadeia
dos agentes históricos em que os vivos vêm ocupar o lugar dos mortos. É esta
renovação geracional que constitui o terceiro tempo característico da noção de
sequência de gerações.
É inegável o enriquecimento que o conceito de geração trouxe ao de his-
tória. a substituição das gerações subentende a continuidade histórica, com o
ritmo da tradição e da inovação. De um ponto de vista positivo e até positi-
vista, a ideia de geração exprime algumas realidades cruas da vida humana: o
nascimento, o envelhecimento, a morte; possibilita o cálculo da média de idade
para a procriação (trinta anos) e consequentemente da renovação geracional.
Permite, em suma, obter um conjunto de dados matemáticos ou quantitativos.
Dilthey supera esta visão positivista ao prestar particular atenção aos aspetos
qualitativos do tempo social282. o seu objetivo juntamente com mannheim283,
como partidários da sociologia compreensiva, era a de incorporar o fenómeno
das gerações nas ciências humanas. constataram que de um facto biológico não
se pode inferir uma lei geral acerca dos ritmos da história, como se a juventude
fosse por norma progressista e os idosos conservadores e como se a média dos
trinta anos para substituição geracional comandasse automaticamente o tempo
do progresso num tempo linear.

281
ricœur diz-se devedor da obra de alfred schutz, The phenomenology of the social
world, Northwestern university Press, 1967, cap. iV: «the structure of the social World; the
realm of Directly experienced social reality; the realm of contemporaries, and the realm
of Predecessors», pp. 139-214.
282
W. Dilthey, «ueber das studium der geschichte, der Wissenschaften vom menschen,
der gesellschaft uns dem staat» 1875, Ges. Schriften, V, pp. 31-73.
283
Karl mannheim, «Das Problem der generationen», Kolner Vierteljahrshefte fur Sozio-
logie, Vii, munich et leipzig. Verlag von Duncker et Humblot, 1928, pp. 157-185, 309-330.
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 245

Dilthey é o primeiro a dar relevo aos carateres que fazem do conceito de


geração um fenómeno intermediário entre o tempo exterior do calendário e o
tempo interior da vida psíquica. encontra dois usos diferentes para o termo: um
indica a pertença à mesma geração e outro a própria sequência de gerações.
Pertencem à mesma geração os indivíduos contemporâneos que foram expostos
às mesmas influências, marcados pelos mesmos acontecimentos e pelas mesmas
mudanças. É um círculo mais amplo que o do nós e menor que o da contem-
poraneidade anónima; forma um todo onde se combinam quer o que é adqui-
rido quer uma orientação comum. a noção de sequência de gerações, que é
aquela que aqui mais nos interessa, constitui para Dilthey uma estrutura inter-
mediária entre a exterioridade física e a interioridade psíquica do tempo,
fazendo com que a história se configure como uma totalidade contínua. Por
conseguinte, a sequência de gerações ocupa um lugar intermédio entre o enca-
deamento de uma vida pessoal – na aceção psicológico-compreensiva de moti-
vação – e a história como totalidade contínua; ela é o equivalente histórico da
sequência contínua que faz de cada vida, na sua individualidade, uma totalidade
viva.
alfred schutz introduz a ideia do reino dos contemporâneos, dos antepas-
sados e dos sucessores, a qual funciona como complemento sociológico da
sequência de gerações; em contrapartida esta serve-lhe de suporte biológico. o
objetivo de ricœur nesta análise é o de discernir o significado do tempo anó-
nimo – próprio do reino de contemporâneos, predecessores e sucessores – que
se constitui a um nível intermédio, no ponto de articulação entre o tempo total-
mente outro do cosmos e o tempo totalmente meu da alma (fenomenológico)284.
schutz, influenciado pelas obras de Husserl e Weber, enriquece a sua sociologia
com o conceito de fenomenologia do ser social na sua dimensão anónima. Daí
que o interesse maior da fenomenologia do ser social consista na exploração
das transições que levam da experiência direta do “nós” ao anonimato caracte-
rístico do mundo social quotidiano. Da incursão pela sociologia fenomenológica
de schutz sobressai o princípio de que a tríade anónima do reino dos contem-
porâneos, dos antepassados e dos sucessores deriva da tríade presente, passado
e futuro, característica da relação interpessoal direta e que é o anonimato deste
triplo reino que fornece a ricœur a mediação que procura entre o tempo pri-
vado e o tempo público.

284
«l’enjeu, pour nous, est de discerner la signifiance du temps anonyme qui se consti-
tue à ce niveau médian, au point d’articulation entre temps phénoménologique et temps cos-
mique» (TR iii, 204).
246 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

relativamente à primeira figura do tempo anónimo, o reino dos contem-


porâneos, o seu fenómeno originário é a simultaneidade de vários e distintos
fluxos de consciência ou de várias durações (envelhecer em conjunto, crescer
juntos). Neste sentido, a idade não é um fenómeno primariamente biológico e
cronológico. a contemporaneidade assenta, pois, sobre esta simultaneidade de
fluxos distintos de consciência e, como tal, transcende a esfera das relações
interpessoais: à medida que diminui a imediatidade destas, aumentam as media-
ções simbólicas, permitindo assim o aparecimento da contemporaneidade anó-
nima. se desaparece a compreensão (direta) surge a interpretação (indireta).
Nesse sentido, os meus contemporâneos são qualificados pelos papéis tipifica-
dos que lhes são atribuídos pelas instituições (os “tipos-ideais” de que fala
Weber); são mais personagens do que pessoas. o funcionário dos correios
reduz-se a um “tipo”, a um papel ao qual eu correspondo esperando dele uma
distribuição correta do correio. a contemporaneidade perdeu a imediatez, a rela-
ção direta, a partilha de experiências. a imaginação substitui totalmente a expe-
riência de um mútuo compromisso. a inferência dá lugar à imediatez. Portanto,
a conclusão a tirar é a seguinte: «la relation de simple contemporanéité est une
structure de médiation entre le temps privé de la destinée individuelle et le
temps publique de l’histoire, en vertu de l’équation entre contemporanéité, ano-
nymat et compréhension idéale-typique» (TR iii, 207).
Posto isto, podemos definir o contemporâneo como alguém que eu sei que
existe comigo no tempo mas com quem não tenho relação direta ou experiência
imediata.
relativamente aos antepassados ou predecessores, não é tão fácil traçar
uma fronteira entre a memória individual e o passado histórico que a antecede.
os predecessores são aqueles que existiram antes do meu nascimento e que eu
não posso de modo algum influenciar. embora nenhuma das vivências dos
meus antepassados seja contemporânea de alguma minha, o passado histórico e
a memória recobrem-se parcialmente, o que contribui para a constituição de um
tempo anónimo, a meio caminho entre o privado e o público. o exemplo canó-
nico é o das narrativas ouvidas da boca dos nossos ascendentes que nos ligam
a pessoas que nunca conhecemos. a fronteira que separa o passado histórico e
a memória individual torna-se assim algo permeável. a memória do ascendente
está em interseção parcial com a dos seus descendentes e esta interseção ocorre
num presente comum que pode ele mesmo apresentar todos os graus, desde a
intimidade do “nós” até ao anonimato da reportagem. Deste modo, lança-se
uma ponte entre o passado histórico e a memória, através da narrativa ancestral,
que transporta a memória até ao passado histórico, concebido como o tempo
dos mortos e como o tempo anterior ao meu nascimento. se escalarmos esta
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 247

cadeia de memórias, a história tenderá para uma relação em termos de um


“nós” e de uma continuidade ininterrupta desde a origem da humanidade até
aos nossos dias. esta cadeia de memórias está para a escala do mundo dos pre-
decessores como a retenção das retenções para a memória individual; contudo,
a narrativa dos antepassados introduz já a mediação por signos e tende para o
lado da mediação muda do monumento e do documento, que faz do conheci-
mento do passado histórico algo muito diferente de uma memória individual
ampliada, exatamente do mesmo modo que o mundo dos contemporâneos se
distinguia de nós pelo anonimato das mediações. Por isso, podemos dizer com
schutz que «a corrente da história é feita de acontecimentos anónimos» (apud
ricœur, TR iii, 209).
schutz não dedica muita atenção ao fenómeno dos sucessores, porque
estuda o fenómeno social como algo já consolidado e, principalmente, porque
dá demasiada relevância ao caráter determinado e completo do passado, o que
é contestável. Por sua vez, para ele o futuro é algo de indeterminado e inde-
terminável, ideia igualmente discutível. É óbvio que o mundo dos sucessores é
um fenómeno não histórico, porém pode contestar-se que seja um mundo abso-
lutamente indeterminável. será r. Koselleck a refletir sobre o horizonte de
espera e expetativa e a formular uma conceção mais equilibrada e completa do
mundo dos antepassados, contemporâneos e sucessores.
Paul ricœur sublinha duas consequências do papel conector que a ideia
de sequência de gerações complementada pela do reino de predecessores, con-
temporâneos e sucessores desempenha entre o tempo fenomenológico e o tempo
cósmico. a primeira diz respeito ao lugar da morte na escrita da história, lugar
significativamente ambíguo, onde se misturam a referência à intimidade da
mortalidade de cada pessoa e a referência ao caráter público da substituição dos
mortos pelos vivos. Destas duas referências resulta a morte anónima. a morte,
horizonte secreto de cada vida humana vai-se diluindo na morte anónima
(morre-se); através do sinal desta última, o historiador visa-a obliquamente mas
apenas para logo a ultrapassar. Visada assim obliquamente, a morte é de facto
substituída pelo eufemismo da “substituição de gerações”, para significar que os
vivos vão substituindo os mortos, fazendo de cada um de nós vivos um sobre-
vivente; nesse sentido, a ideia de geração lembra-nos com insistência que a his-
tória é a história dos mortais. todavia, é próprio da história ultrapassar a morte
de cada indivíduo, tratando-a unicamente de forma alusiva, pois importa-lhe
mais as funções que os atores (eles passam, elas permanecem), em benefício
das entidades que se sobrepõem aos cadáveres: povo, nação, estado, civiliza-
ção. No entanto, o historiador não pode ignorar a morte, sob pena de a história
perder a sua qualidade histórica. Daí a noção mista e ambígua da morte anó-
248 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

nima, conceito aceitável para quem discerne no anonimato da morte o sinal


mesmo do anonimato postulado e mesmo instaurado pelo tempo histórico no
ponto da colisão entre o tempo público e tempo mortal: a morte anónima per-
mite compreender a rede nocional de predecessores, contemporâneos e sucesso-
res e, como seu suporte biológico, a noção de sequência de gerações.
a segunda consequência concerne sobretudo a dimensão simbólica da rede
de predecessores, contemporâneos e sucessores. os ancestrais e os sucessores
são os outros, revestidos de um simbolismo opaco, cuja figura vem ocupar o
lugar de um outro, completamente outro, diferente dos mortais. atestam-no,
por um lado, a representação dos mortos não somente como ausentes da his-
tória mas como que assediando com a sua sombra o presente histórico e, por
outro, a representação da humanidade futura como imortal, tal como aparece
em imensos pensadores iluministas. esta representação da humanidade imortal
indicia um funcionamento simbólico mais profundo, «em virtude do qual nós
visamos um outro mais que humano, cuja ausência nós colmatamos através da
figura dos antepassados, ícone do imemorial, e da figura dos sucessores, ícone
da esperança» (TR iii, 211).
a noção de traço vem elucidar este funcionamento simbólico.

iii)  Os arquivos, documentos e traços

o tempo histórico encontra nos arquivos, documentos e traços o último


conector prático entre as perspetivas sobre o tempo, dissociadas pelo pensa-
mento especulativo.
três características dão corpo à noção de arquivo. em primeiro lugar, o
arquivo aparece associado ao documento: os arquivos constituem um conjunto
organizado de documentos, de registos. em segundo, dependem de uma insti-
tuição: os arquivos resultam de uma atividade institucional ou profissional; são
produzidos ou recebidos por uma instituição. Por último, o objetivo dos arqui-
vos é conservar ou preservar os documentos produzidos pela instituição.
sobressai o caráter institucional dos arquivos. estes constituem o fundo docu-
mental de uma instituição; é ela que os produz, recebe, conserva.
etimologicamente falando, a noção de documento remete para a docência
ou ensino mas, neste caso, importa-nos mais sublinhar o seu caráter de suporte,
de garante (prova material) de uma história, narrativa ou debate. os documen-
tos garantem a veracidade da história e a sua pretensão factual.
a crítica da noção de documento aceita vários níveis de análise. Num
nível epistemológico elementar, não se coloca em causa o estatuto epistemoló-
gico do documento, mas amplia-se o seu campo. Qualquer traço ou vestígio
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 249

deixado pelo passado pode ser considerado um documento para o historiador


desde que ele saiba interrogá-lo. o interrogatório do historiador é orientado
pela temática que o próprio escolheu para guiar a sua pesquisa. assim, tudo o
que possa informar um investigador, cuja pesquisa é orientada por uma escolha
razoável de questões, ganha estatuto de documento. os mais valiosos são aque-
les que não estavam destinados a veicular uma informação, os chamados tes-
temunhos involuntários (témoins malgré eux) referidos por marc Bloch. uma
crítica de segundo nível do documento é contemporânea da história quantitativa,
crítica esta desencadeada pela relação entre documento e monumento. Durante
muito tempo designou-se os documentos de monumentos (Portugaliae Monu-
menta Histórica foram publicados em 1856 por alexandre Herculano). o desen-
volvimento da história positivista, em finais do século XiX e início do século
XX, marca o triunfo do documento sobre o monumento. Pôs-se em causa a
autenticidade do monumento, cuja finalidade preestabelecida era a de levar à
comemoração de eventos considerados dignos de integrarem a memória coletiva
pelo poder político. o documento, pelo contrário, parecia ter uma objetividade
que se opunha à intencionalidade do monumento. os escritos dos arquivos
adquiriram assim a reputação de serem mais documentos do que monumentos.
mas uma crítica ideológica ainda mais radical rapidamente põe em causa o
valor institucional dos documentos, descobrindo em cada documento uma
dimensão de monumento. ataca as condições de produção da história e a sua
intencionalidade dissimulada ou inconsciente. Depois de desmistificada a sua
significação aparente, um documento é um monumento. mesmo os dados dos
bancos de dados sobre os quais trabalha a historiografia contemporânea, com
tratamento informático e constituição de séries, não está isento do perigo de
autoridade que ameaçou os documentos e foi denunciado pela história positi-
vista. todavia, trata-se de uma imperfeição necessária, pois, segundo ricœur, a
história perdia todo o sentido a partir do momento em que deixasse de colocar
como prioridade a busca de documentos ou vestígios que permitam pagar a
dívida aos mortos, aos homens do passado285.
o documento só é significativo enquanto é considerado como um traço
deixado pelo passado. a sua função é a de informar sobre o passado e a de
alargar a memória coletiva. e esta funcionalidade nem a nova ciência histórica
com o seu tratamento informático pode substituir. se os arquivos podem ser

285
«[...] dès lors que l’idée d’une dette à l’égard des morts, à l’égard des hommes de
chair à qui quelque chose est réellement arrivé dans le passé, cesse de donner à la recherche
documentaire sa finalité première, l’histoire perd sa signification» (TR iii, 216).
250 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

institucionalizados e os documentos recolhidos e conservados, é porque se acre-


dita que o passado deixou um traço constituído por monumentos e por docu-
mentos que dele dão testemunho. mas o que significa deixar um traço, marca,
vestígio ou rasto, quando todos reconhecemos o paradoxo implicado? Por um
lado, o traço é visível aqui e agora; por outro, só há uma marca porque antes
passou por lá um homem, animal ou coisa. mesmo na linguagem o traço e a
marca indicam o passado da passagem, a anterioridade, mas não mostram, não
fazem aparecer o que passou por lá. a própria homonímia de “ter passado” no
sentido de passar por um local e “ter passado” no sentido de tempo volvido é
feliz e ajuda aperceber esta ambivalência. a explicação do tempo nas Confis-
sões de santo agostinho familiarizou-nos com esta noção do tempo como pas-
sagem. o paradoxo reside no facto de não existir mais passagem mas perma-
necer o vestígio. e os historiadores também não escapam a esta aceção mais
vulgar, pois a sua definição de traço situa-se a meio caminho entre uma defi-
nição inicial como rasto de homem ou animal e outra mais abrangente e está-
tica que se estende à marca deixada por algo. Para os historiadores, os homens
do passado, enquanto agentes, deixaram traços (dimensão dinâmica); mas os
produtos das suas atividades, das suas obras, a saber, os utensílios, habitações,
templos, sepulturas e escritos também constituem marcas (dimensão estática)286.
Daí a equivalência entre ter passado por lá e ter deixado uma marca. Na pri-
meira aceção, sugere-se que o traço indica num espaço (aqui) e no presente
(agora) a passagem passada de seres vivos, homens ou animais; ele orienta a
caça, a pesquisa, a busca. a história é tudo isto. Dizer que ela consiste num
conhecimento através de traços é, em última análise, enviá-la ao encontro da
significância de um passado volvido que, apesar disso, permanece preservado
nos seus vestígios. Na aceção mais lata, sugere-se a maior durabilidade da
marca, mais duradoura que a atividade transitória dos homens. os homens pas-
sam, as obras ficam; mas ficam enquanto coisas entre as coisas. aqui sobressai
uma relação de causa-efeito entre a coisa marcante e a coisa marcada. Podemos
concluir que o traço conjuga uma relação de significância, percetível na ideia
de rasto de uma passagem, e uma relação de causalidade, incluída no próprio

286
«o historiador prolonga a seu modo este dado familiar à linguagem, evidenciando
a profunda equivalência entre o caráter dinâmico da passagem (a atividade dos homens do
passado) e o caráter mais estático da marca (as obras enquanto produto dessa atividade): no
primeiro sentido (dinâmico), o passado é uma passagem e são os homens que são primaria-
mente visados como agentes ou autores (de que o traço é signo); no segundo sentido (está-
tico), o passado deixa uma marca e são as obras ou coisas que são primariamente visadas
como resultado dessa passagem passada (de que o traço é efeito)» (teixeira 2004, i: 260).
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 251

objeto da marca287. assim, o traço deixado é simultaneamente um efeito e um


signo, com dois sistemas cruzados de relações:
[...] d’une part, suivre une trace, c’est raisonner par causalité le long de la chaîne
des opérations constitutives de l’action de passer par là; d’autre part, remonter de
la marque à la chose marquante, c’est isoler, parmi toutes les chaînes causales
possibles, celles qui, en outre, véhiculent la signifiance propre à la relation du ves-
tige au passage [TR iii, 219].

esta ambivalência do traço transforma-o em conector entre dois regimes


de pensamento e, consequentemente, de duas perspetivas temporais: ao gravar
no espaço a passagem do objeto de pesquisa é no tempo do calendário e, para
além deste, no tempo cósmico, que ele grava a passagem. É assim que o traço
conservado se pode tornar um documento datado288. este elo entre traço e data-
ção permite a Paul ricœur retomar o problema não resolvido por Heidegger da
relação entre o tempo fundamental do Cuidado, ou seja, a temporalidade virada
para o futuro e a morte, e o tempo dito “vulgar”, concebido como uma suces-
são de instantes, e demonstrar de que modo o traço opera esta ponte que a
fenomenologia em vão tenta perceber e interpretar exclusivamente a partir da
temporalidade do Cuidado. Desta incursão pela filosofia do autor de Ser e
tempo resulta a conclusão de que o ato de seguir ou remontar um traço só pode
ser feito no contexto de um tempo histórico que não é um fragmento do tempo
astral nem um simples alargamento do tempo da memória pessoal às dimensões
comunitárias, mas um tempo híbrido, composto pelas duas perspetivas tempo-
rais: fenomenológica (ou tempo do cuidado) e cosmológica (ou vulgar, em ter-
minologia heideggeriana). o tempo do traço comunga do mesmo caráter híbrido
do tempo do calendário. o calendário e o traço são vistos por ricœur como
conectores que são autênticas criações nascidas no entrecruzamento prático e
real do tempo fenomenológico com o tempo cosmológico, entre a alma e o
mundo; logo, não se pode, como cria Heidegger, ter a historiografia como mal

287
«la trace combine ainsi un rapport de signifiance, mieux discernable dans l’idée de
vestige d’un passage, et un rapport de causalité, inclus dans la choiséité de la marque» (TR
iii, 219).
288
«cette double allégeance de la trace, loin de trahir une ambigüité, constitue la trace
en connecteur de deux régimes de pensée et, par implication, de deux perspectives sur le
temps: dans la mesure même où la trace marque dans l’espace le passage de l’objet de la
quête, c’est dans le temps du calendrier et, par-delà celui-ci, dans le temps astral que la trace
marque le passage. c’est sous cette condition que la trace, conservée et non plus laissée
devient document daté» (TR iii, 219-220).
252 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

fundada. esta conexão entre as duas perspetivas temporais, verificada nos dois
conectores do tempo histórico, permite suturar a fratura especulativa, pois há
entre eles uma mútua e recíproca intromissão.
Da meditação de emmanuel lévinas289, ricœur aprende que o traço ou
não é um signo como os outros que se organizam em sistemas; pelo contrário,
ele desarranja qualquer sistema ou ordem, pelo facto de indicar sempre uma
passagem, não uma presença possível. Daí, a frase chave de que o traço sig-
nifica sem fazer aparecer. Por conseguinte, podemos considerá-lo um dos ins-
trumentos mais enigmáticos através dos quais a narrativa histórica refigura o
tempo.

1.2.1.2.  Tempo ficcional: as variações imaginativas

a esta reinscrição do tempo vivido sobre o tempo cósmico, contrapõe-se


do lado da ficção uma resposta às mesmas aporias da fenomenologia do tempo,
desta feita recorrendo às variações imaginativas que a ficção elabora sobre os
temas maiores desta fenomenologia. o conceito de variações imaginativas foi
introduzido por ricœur em Temps et Récit ii para caracterizar as experiências
fictícias do tempo presentes nas obras literárias Mrs. Dalloway de Virgínia
Woolf, A Montanha Mágica de thomas mann e Em busca do tempo perdido
de marcel Proust. No entanto, nessa ocasião, o conceito foi utilizado sem ter
sido analisado: faltava o conceito de tempo histórico, que funciona como termo
fixo de comparação em relação ao qual as experiências fictícias com o tempo
são consideradas variações imaginativas; isto significa que o fenómeno de
reinscrição do tempo pessoal sobre o tempo universal é a invariante em relação
à qual as fábulas sobre o tempo aparecem como variações imaginativas; e fal-
tava ainda a esta oposição o denominador comum necessário, ou seja, as apo-
rias da fenomenologia do tempo. Nesta secção, teremos oportunidade de ver
quais são as aporias comuns às quais a constituição variável do tempo fictício
e a constituição invariável do tempo histórico oferecem uma resposta.

i)  A neutralização do tempo histórico

a neutralização do tempo histórico é a primeira característica salientada


por ricœur na oposição entre tempo fictício e tempo histórico. este facto rela-

289
«la trace», Humanisme de l’autre homme, Fata morgana, montpellier, 1972,
p. 57-63.
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 253

ciona-se diretamente com a maior liberdade do narrador que não tem, contra-
riamente ao historiador, de se submeter aos conectores específicos da reinscri-
ção do tempo vivido sobre o tempo cósmico. as personagens de uma obra de
ficção fazem uma experiência irreal do tempo, uma vez que as marcas tempo-
rais dessa experiência não exigem uma ligação à situação espácio-temporal que
caracteriza o tempo cronológico. a experiência temporal de um protagonista
não precisa de estar referida ao tempo do calendário e sabemos desde a epopeia
ao romance, passando pela tragédia e pela comédia antiga e moderna, que o
tempo da narrativa está livre das constrições que exigem uma relação com o
tempo do universo. Deste modo, não parece fazer qualquer sentido falar de
conectores entre o tempo fenomenológico e o tempo cosmológico no seio da
narrativa ficcional – «chaque expérience temporelle fictive déploie son monde,
et chacun de ces mondes est singulier, incomparable, unique» (TR iii, 231).
Não há um único mundo imaginário que serve de referência a todas as obras
ficcionais. Nenhuma experiência temporal fictícia pode ser absolutizada ou
tomada como modelo único.
Não obstante, o que parece ser uma desvantagem – a isenção das cons-
trições temporais do tempo cosmológico – revela-se, pelo contrário, uma van-
tagem: a ficção pode explorar à vontade os recursos do tempo fenomenológico
que a narrativa histórica está inibida de explorar, porque está obrigada a ligar
o tempo da história ao tempo cósmico através da reinscrição do primeiro sobre
o segundo. a exploração dos recursos escondidos no tempo fenomenológico e
as aporias que essa exploração suscita fazem a ligação secreta entre história e
ficção. ricœur entende a ficção como «uma reserva de variações imaginativas
aplicadas à temática do tempo fenomenológico e às suas aporias»290. Para o
demonstrar, o autor regressa aos três grandes textos literários (as três fábulas
sobre o tempo) e confronta-as com as aporias da fenomenologia do tempo.

ii) Variações imaginativas sobre a falha entre tempo vivido e tempo


cósmico.

o primeiro ponto de divergência entre história e ficção reside na forma


como ambas se comportam perante a fenda aberta pela reflexão especulativa
entre tempo do sujeito e tempo do mundo. a história responde com um tempo
fixo, o histórico. a ficção responde com variações imaginativas que concertam

290
«la fiction, dirai-je, est une réserve de variations imaginatives appliquées à la thé-
matique du temps phénoménologique et à ses apories» (TR iii, 231).
254 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

estas duas temporalidades através da combinação de personagens históricas,


acontecimentos datados ou datáveis e lugares conhecidos com personagens,
acontecimentos e lugares inventados. a ação dos três romances referidos
decorre, claramente, no período anterior e posterior à Primeira guerra mun-
dial291.
No entanto, a datação destes eventos não arrasta o tempo da ficção para
a esfera do tempo histórico. Pelo contrário, se o narrador e os seus heróis são
fictícios, todas as referências a acontecimentos históricos reais são despojadas
da sua função de “representância” do passado histórico e ganham o estatuto
irreal dos outros acontecimentos. ricœur esclarece que a referência ao passado
e a própria função de “representância” são mantidas, mas de forma neutrali-
zada. os acontecimentos históricos não são denotados, apenas mencionados (TR
iii, 233). Por conseguinte, a Primeira guerra mundial, que é o ponto de refe-
rência histórica comum aos três romances, perde o seu estatuto de referência
comum para se reduzir ao de citação idêntica em dois universos temporais dis-
tintos e incomunicáveis292. o próprio acontecimento da Primeira guerra mun-
dial é ficcionado de forma diferente nas três obras, tal como as personagens
históricas, pois gravitam em esferas temporais diferentes. também os conectores
específicos da história podem ser neutralizados e apenas mencionados. assim,
todos os instrumentos usados pela história na “representância” do passado
podem ser apropriados pela ficção e revertidos para o domínio do imaginário.
o modo como os acontecimentos históricos são integrados na experiência tem-
poral de personagens da ficção, através das variações imaginativas, constitui
uma réplica à aporia maior decorrente da especulação sobre o tempo.
a título ilustrativo, damos conta das variações imaginativas sobre o tempo
a partir do antagonismo entre o que ricœur designa de tempo mortal e tempo
monumental, no romance de Virgínia Woolf. Neste caso, o antagonismo é muito
mais do que um discurso especulativo entre duas entidades ou categorias tem-
porais, é o confronto de duas experiências-limite (a de septimus e a de cla-
rissa, cujos destinos estão inconscientemente interligados) marcadas pelo tempo,
pelas quais se repartem depois as restantes experiências singulares narradas na

291
Mrs. Dalloway situa-se claramente depois da Primeira guerra mundial, mais pro-
priamente em 1923, e desenrola-se numa londres, capital de um ainda poderoso império bri-
tânico. a ação de A Montanha Mágica decorre em 1914, no limiar da guerra e os episódios
de Em busca do tempo perdido antes e depois da Primeira guerra mundial.
292
«[...] citation identique à l’intérieur d’univers temporels non superposables et incom-
municables» (TR iii, 233).
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 255

história. a experiência-limite de septimus Warren smith resulta da impossível


reconciliação entre o tempo marcado pelo Big Ben e o seu incomunicável
sonho de integridade pessoal; o seu suicídio marca a integração do existencial
heideggeriano ser-para-a-morte numa experiência existencial singular. o tempo
cósmico é tratado apenas sob o aparato da monumentalidade e incarnado nas
figuras de autoridade, de intolerância, cúmplices da ordem estabelecida. Daqui
resulta que as pancadas do Big Ben não escrutinam de modo algum um tempo
neutro e comum, mas assumem um significado diferente para cada uma das
personagens deste romance.
em A Montanha Mágica, o confronto entre tempo vivido e tempo cós-
mico é posto noutros termos. É feito entre as gentes do quotidiano que habitam
o sopé da montanha e representam maioritariamente o tempo vulgar, e os habi-
tantes do alto da montanha que vivem um tempo mórbido e decadente, onde
o próprio erotismo é marcado pelos estigmas da corrupção. enquanto em Mrs.
Dalloway, clarissa tenta conciliar os dois extremos do tempo assumindo face
à morte um compromisso frágil entre o tempo mortal e o tempo monumental,
em A Montanha Mágica, o herói, Hans castorp, que aspira ao tempo do alto,
tenta resolver essa antinomia pela abolição do tempo cronológico, representado
nas medidas de tempo. todavia, esta tentativa de apagar as marcas do tempo
cósmico é ainda uma forma de se reportar ao tempo cósmico, por isso A Mon-
tanha Mágica propõe uma variação imaginativa que perverte a reinscrição que
a história faz do tempo vivido sobre o tempo do mundo.
a obra de marcel Proust também apresenta uma variante extremamente
peculiar da polaridade entre tempo da consciência e tempo do mundo. a figura
que caracteriza o tempo cosmológico é a dos diversos reinos onde se exerce o
que ricœur denomina de aprendizagem dos signos, referindo-se aos signos da
mundaneidade, do amor, das impressões sensíveis e da arte. uma vez que estes
quatro reinos são sempre representados pelos seus signos, a sua aprendizagem
é logicamente a do mundo e a da consciência. Daqui resulta uma outra cliva-
gem que opõe tempo perdido a tempo reencontrado. o tempo que se perde é
o tempo que passa e que está ligado à usura das coisas, por isso este romance
é uma incansável luta contra o apagamento das marcas, contra o esquecimento.
também se perde o tempo dissipado com os signos que ainda não foram reco-
nhecidos como signos e o tempo disperso entre as duas localidades de mésé-
glise e guermantes. Neste último caso, o tempo aparece como uma intermitên-
cia. o tempo perdido é de desorientação e desencanto; estes qualificativos só
desaparecem quando a obra se encaminha para o grande propósito de escrever,
porquanto a realização de uma obra de arte durável permite a fixação de um
momento fugitivo.
256 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

Demonstradas as variações imaginativas sobre a aporia maior do tempo,


ricœur avança para as aporias internas da fenomenologia, resultantes das medi-
tações filosóficas de Husserl e Heidegger, e começa por salientar que o maior
contributo que a ficção pode dar à filosofia não está na diversidade de soluções
que oferece à discordância entre tempo do mundo e tempo vivido, mas na
«exploração de traços não lineares do tempo fenomenológico que o tempo his-
tórico oculta por estar embutido na grande cronologia do universo» [TR, iii,
237].

iii) Variações sobre as aporias internas da fenomenologia

ricœur estabelece as várias etapas de libertação do tempo fenomenológico


das amarras do tempo histórico, pondo em evidência as variações sobre as apo-
rias internas da fenomenologia. considera três aporias e três modos de as fic-
cionar: a) o problema da unificação do curso temporal; b) a reviviscência do
tema agostiniano da eternidade em certas experiências-limite de extrema con-
centração temporal; c) as modalidades de remitificação do tempo não oriundas
da fenomenologia mas da ficção (TR III, 237-246).

a) Husserl tentou resolver a aporia agostiniana do triplo presente (presente


do passado, presente do futuro e presente do presente) conferindo ao presente
vivo uma espessura capaz de reter o passado recente ou primário (retenção) e
o futuro próximo (protenção), mas o preço a pagar por esta extensão do pre-
sente vivo foi o rasgo efetuado entre a lembrança primária ou retenção, incluída
no presente vivo, e a relembrança ou lembrança secundária, excluída do pre-
sente vivo. Para suturar esse rasgo, reconstitui o fluxo temporal através da uni-
ficação (“recouvrement”) contínua das retenções (e das retenções das retenções),
que formam como que a cauda do cometa do presente, e a série de quase-pre-
sentes para as quais o ser humano se transporta livremente por intermédio da
imaginação e que desdobram cada uma delas o seu sistema de retenções e pro-
tenções. as retenções e as protenções irradiadas do presente vivo sobrepõem-
-se como telhas formando o fluxo temporal.
Heidegger, por sua vez, dá mais atenção à hierarquização interior dos
níveis de temporalização (temporalidade, historialidade e intratemporalidade)
que à continuidade do fluxo temporal. Por isso propõe a repetição como ponto
de partida de todas as análises sobre o tempo. reunindo ao nível da historia-
lidade o “ter-sido”, o “por-vir” e o “tornar-presente”, a repetição junta neste
nível médio o nível profundo da temporalidade autêntica e o nível superficial
da intratemporalidade.
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 257

ricœur descobre nas variações imaginativas das três fábulas sobre o


tempo já referidas diversas formas de operar este duplo modo de unificação
horizontal e de repetição vertical do tempo. o “recouvrement” de que fala Hus-
serl (“tuilage de la durée” segundo a metáfora de ricœur [tr III, 241]) pode
ser entrevisto na forma como o romance de Virgínia Woolf se projeta ao
mesmo tempo para a frente na expetativa da festa que se avizinha e para trás
através das incursões constantes pelo passado dos protagonistas293. um exemplo
de aplicação do conceito heideggeriano de repetição é discernível na obra de
thomas mann, no momento em que o narrador opera «uma autêntica repetição
[...] ao relacionar a Busca constituída pela aprendizagem dos signos com a Visi-
tação prefigurada nos momentos felizes, culminando na grande meditação sobre
a arte redentora na biblioteca do príncipe de guermantes» (ricœur, TR iii,
241)294.

b) ao acompanhar esta passagem do “recouvrement” à repetição, a ficção


faz a fenomenologia entrar num tema caro a santo agostinho e abandonado
depois dele: o limite superior do processo de hierarquização da temporalidade,
ou seja, a eternidade. Para agostinho, seguidor dos ensinamentos neoplatónicos,
a alma percorre o tempo em busca da eternidade que lhe garante repouso e
estabilidade. No entanto, depois dele a fenomenologia pôs o tema de parte.
as três obras que servem a matéria-prima a ricœur produzem variações
imaginativas sobre a eternidade e atestam que esta, tal como diz aristóteles,
se diz de múltiplas maneiras. É possível entrever o tema ficcionado em Mrs.

293
De acordo com ricœur, a arte da autora inglesa está em conseguir «entrosar o pre-
sente, as suas praias de iminência e de passado recente, com um passado relembrado, e assim
fazer progredir o tempo retardando-o» (L’art de Virginia Woolf est ici d’enchevêtrer le pré-
sent, ses plages d’imminence et de récence, avec un passé ressouvenu, et ainsi de faire pro-
gresser le temps en le retardant) (TR iii, 239). ademais, este facto torna-se visível em todas
as personagens principais cuja consciência do tempo gravita em torno de dois polos: o pre-
sente vivo, inclinado para a iminência do futuro; e uma série de quase-presentes que irradiam
lembranças do passado. o próprio tempo contínuo do romance avança através de uma espécie
de vasos comunicantes entre os múltiplos fluxos de consciência das personagens, as proten-
ções de uma personagem dirigem-se para as retenções de outra.
294
a fórmula de Proust equivalente à “repetição” é a de “tempo perdido reencontrado”.
a repetição não é reviviscência, ela atinge o seu auge quando a tensão imediata, que ocorre
nos momentos felizes, entre duas sensações semelhantes, é suplantada pela longa meditação
sobre a obra de arte. Nos momentos ditos felizes ou bem-aventurados, dois instantes seme-
lhantes eram milagrosamente aproximados, mas na meditação sobre a obra de arte «o milagre
fugitivo é fixado numa obra durável. o tempo perdido iguala o tempo reencontrado» (ricœur,
TR iii, 241).
258 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

Dalloway a partir do suicídio de septimus, que, independentemente da sua


ambiguidade, permite perceber o tempo como um obstáculo que impede de ver
totalmente a unidade cósmica. Neste caso, já não é o tempo que é mortal, é
a eternidade que dá a morte. em A Montanha Mágica – a obra mais fértil em
variações imaginativas sobre o tema da eternidade e da morte – há uma eter-
nidade identitária, uma eternidade sonhada, a eternidade do carnaval, a eterni-
dade imóvel da circulação das estrelas, a eternidade extática do episódio de
schnee. curiosamente, devido à atração maléfica exercida pela montanha
mágica, a eternidade não é aqui o auge do tempo mais tendido ou concentrado,
mas sim do tempo distendido, decomposto, que faz da eternidade um engodo.
Na obra Em busca do tempo perdido, a eternidade – acessível no reino extra-
temporal das essências estéticas, referidas na longa meditação do Tempo reen-
contrado – também seria uma deceção e uma ilusão se a decisão de fazer uma
obra de arte não viesse fixar a fugaz iluminação e dar-lhe a reconquista do
tempo perdido. através da escrita, a eternidade transforma-se no dom de poder
reencontrar os dias antigos. mas o tempo reencontrado através da arte não
passa de uma trégua no combate entre a eternidade e a morte.

c) a ficção não se limita a explorar, através das suas variações imagina-


tivas, os aspetos da concordância discordante relativos à constituição horizontal
do fluxo temporal ou à hierarquização vertical dos níveis de temporalização ou
às experiências-limite que balizam os confins do tempo e da eternidade. a fic-
ção tem ainda o poder de explorar a fronteira entre a fábula e o mito. a feno-
menologia também nada diz sobre esta matéria. De facto, só a ficção, porque
é sempre ficção mesmo quando projeta e configura a experiência, se pode per-
mitir este tipo de devaneios.
No caso da obra de Virgínia Woolf, ricœur chama a atenção para as
badaladas do Big Ben, que lhe parecem ter uma ressonância «mais do que
física, mais do que psicológica, mais do que social» (TR iii, 245). os “círculos
de chumbo que se dissolvem no ar” emitem um eco quase místico. o mesmo
efeito tem o refrão da Cymbeline de shakespeare («fear no more the heat / Nor
the furious winter´s rages») que une secretamente os destinos paralelos de sep-
timus e clarissa. Há ainda a “ode imortal ao tempo” que atravessa a obra e
só pode ser escutada para lá do ruído da vida. em A Montanha Mágica nem
a ironia da obra consegue evitar uma certa mitificação do tempo. ricœur reco-
nhece-lhe uma faceta secretamente hermética que não cabe nas explicações
anteriores. todavia, marcel Proust é o que melhor consegue a remitificação do
tempo. em duas visões antitéticas do tempo – o tempo destruidor e “o artista,
o tempo” – o próprio mito duplica as variações imaginativas da ficção sobre
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 259

o tempo e a eternidade. cada um destes tempos – um que age apressadamente


e outro que trabalha lentamente – exterioriza-se e torna-se visível encarnado nas
personagens. a ambição estéril da fenomenologia de tornar o tempo visível é
conseguida pela ficção através de uma materialização semelhante à personifica-
ção do tempo nas prosopopeias antigas.
Para encerrar este assunto, ricœur chama a atenção para o facto de o
mito se ter intrometido por duas vezes numa investigação onde julgávamos
jamais haver lugar para ele295: uma primeira vez aquando da descrição do
tempo do calendário e uma segunda agora, a propósito do tempo da ficção.
também aristóteles tentou expulsá-lo do seu discurso, mas «o murmúrio da
palavra mítica continuava a ressoar sob o logos da filosofia. a ficção deu-lhe
um eco mais sonoro» (ricœur, TR iii, 246).

iv)  Variações imaginativas e “tipos-ideais”

ricœur encerra este capítulo das dissimetrias entre a história e a ficção,


na resposta às aporias do tempo, com uma reflexão sobre a tensão entre solu-
ção e aporia. enquanto o tempo histórico resolve as aporias do tempo através
de uma conciliação apaziguadora que lhes retira relevo e pertinência, a ficção,
pelo contrário, tende a aumentá-las a enfatizá-las. Nesse sentido, resolver poe-
ticamente as aporias consiste mais em dar-lhes visibilidade e em torná-las pro-
dutivas do que em dissolvê-las.
ora, a ficção põe a descoberto elementos não-ditos da e pela fenomeno-
logia. as variações imaginativas revelam que a fenomenologia designa com o
mesmo nome a aporia e a sua resolução ideal ou, diríamos nós no vocabulário
de max Weber, o “tipo-ideal” da sua resolução. o paradoxo reside no facto de
a mesma análise fenomenológica sobre o tempo revelar uma aporia e ocultar o
seu caráter aporético sob o “tipo-ideal” da sua resolução, a qual só se torna
visível através das variações imaginativas elaboradas sobre o tema dessa aporia.
recorde-se, por exemplo, que a dialética da intentio/distentio tanto servia de
regra para interpretar a recitação de um salmo como a história bem mais vasta
de toda uma vida e até a história universal. a concordância discordante é,
simultaneamente, o nome de um fenómeno a solucionar e a sua solução ideal.
Daí que se diga que a mesma análise descobre a aporia e dissimula-a sob o
“tipo-ideal” da sua solução.

295
«ainsi le mythe, que nous avons voulu écarter de notre champ de recherche, y aura
fait, malgré nous, deux fois retour [...]» [TR iii, 246]
260 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

Já as variações imaginativas tornam explícita esta relação da aporia com


o seu “tipo-ideal”. É na literatura de ficção que se explora as inúmeras formas
através das quais a intentio e a distentio se opõem e se concertam. a literatura
ficcional torna-se assim o meio privilegiado de exploração da concordância dis-
cordante que constitui a coesão de uma vida. No entanto, a ficção não se limita
a ilustrar os temas da fenomenologia nem a pôr a descoberto os “tipos-ideais”
da solução, dissimulados sob a descrição aporética, ela vai mais longe ao mos-
trar os limites da fenomenologia, através das experiências-limite que na narra-
tiva ficcional confrontam eternidade e morte. cabe às variações imaginativas a
missão de reabrir o campo das modalidades existenciais heideggerianas susce-
tíveis de tornar mais autêntico o “ser-para-a-morte”, como é o caso da eterni-
dade.

1.2.2.  Paralelismo: representância e leitura

Na secção anterior pusemos a tónica na forma como os dois modos nar-


rativos reinscrevem o tempo do sujeito sobre o tempo do mundo, oferecendo
desse modo respostas dicotómicas às aporias geradas pelo discurso especulativo
ou fenomenológico sobre o tempo. Nesta secção, recorta-se o processo em que
os dois modos de narração aparecem já não em oposição mas numa relação de
paralelismo. a convergência entre história e ficção radica na correlação entre a
função de représentance exercida pelo conhecimento histórico relativamente ao
passado [TR iii, 252-283] e a função de signifiance própria da narrativa ficcio-
nal, obtida pela conciliação que a leitura faz entre o mundo do texto e o
mundo do leitor [TR iii, 284-328].

1.2.2.1.  A realidade do passado histórico: noção de representância

a noção de représentance surge na economia do pensamento ricœuriano


para dar conta da especificidade ontológica do “real” passado que é visado pela
ciência histórica e relaciona-se diretamente com a questão ontológica, já assu-
mida, do traço, enquanto sinal e efeito296. o conceito de représentance constitui

296
o termo “représentance” é colhido por ricœur em F. Wahl, Qu’est-ce que le Struc-
turalisme?, Paris, 1968, 11. em La mémoire, l’histoire, l’oubli, o autor retoma o conceito, no
quadro da representação literária da história, dedicando-lhe uma longa nota onde nos explica
o significado que lhe atribui no contexto histórico, a partir da sua evolução lexical e semân-
tica fora da historiografia (vide MHO, 367-369).
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 261

uma das maiores conquistas de ricœur para a epistemologia da história, de tal


modo que o autor volta a ele, em La mémoire, l’histoire, l’oubli, para fazer
prevalecer a intenção noética da historiografia para um “ter-sido” e para dar
conta de uma nova aporia levantada pela dimensão representativa da represen-
tância, que empurra a reflexão do filósofo francês para um domínio que extra-
vasa as competências da epistemologia histórica e invade o campo da ontologia.
o interesse da representância, como reconhecem muitos dos leitores e comen-
tadores da obra de ricœur, está no facto de preservar a história como ciência
e como ficção, salvaguardando a sua intenção verídica297. a história é uma
construção que pretende ser a reconstrução de um objeto para o qual tende,
objeto que não é diretamente observável, mas apenas memorável, por isso a
história não pode ser representação mas representância. este conceito liberta a
história das cadeias da imanência discursiva e orienta-a para um referente
externo que não sendo já foi, tendo deixado algo de si nos traços que perma-
necem.
o caráter real do passado marca uma dissimetria fundamental entre his-
tória e ficção, porém é imprescindível apurar o seu significado:
la question de la représentance du passé “réel” par la connaissance historique naît
de la simple question: que signifie le terme “réel” appliqué au passé historique?
Que pouvons-nous dire quand nous disons que quelque chose est “réellement”
arrivé? cette question est la plus embarrassante de celles que pose l’historiogra-
phie à la pensée de l’histoire [ricœur, TR iii, 252].

Diferentemente do romancista, o historiador, por intermédio de um docu-


mento ou de uma prova documental, tenta reconstruir um passado que qualifi-
camos de real, algo que um dia aconteceu, mas que já não existe, a não ser
nas marcas que deixou. o historiador, pensa ricœur (TR iii, 253), é movido
pelo sentimento de dívida relativamente ao passado e aos mortos. este senti-
mento de dívida obriga-o a contactar com os testemunhos do passado que resu-
mimos, anteriormente, sob o conceito de traço. Vemo-nos de novo na pista da
noção de traço, desta feita para apurar o que pode constituir a sua função
mimética ou, de acordo com a terminologia empregue em mimesis iii, a sua
função de refiguração. Da noção de representância convém reter desde já dois
constituintes essenciais: remete para algo que já não existe em si, mas que

297
Dosse diz: «Par ce concept de représentance, ricœur rend hommage à l’apport des
narrativistes et en même temps il met en garde contre l’indistinction épistémologique entre
fiction et histoire, rappelant l’exigence véritative du discours historique» (Dosse 2001: 6). cf.
etiam Dosse 2000: 109.
262 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

aconteceu realmente e deixou um rasto; apela para um sentimento de dívida


para com o passado.
o rasto deixado vale por si próprio, exercendo relativamente ao passado
uma função de representância, por isso o filósofo francês tem o cuidado de dis-
tinguir representar (“représenter”), na aceção de “ter lugar” ou “estar na vez de
alguma coisa” de representar-se (“se représenter”), na aceção de “ter uma ima-
gem mental de algo exterior e ausente”. Representância designa a primeira ace-
ção e representação, associada à ideia de reduplicação, a segunda298. o traço
deixado pelo passado tem uma função de representância porque “está no lugar
de”, podendo dizer-se também que ocupa uma função de lugar-tenência.
a expressão “lugar-tenência”, equivalente à de representância, assinala a parti-
cularidade de uma referência indireta, própria de um conhecimento que se faz
através de traços, e distingue a referência da história ao passado de qualquer
outro modo referencial.
Nesta secção, o seu principal objetivo é explicar o enigma e o valor
mimético do traço que exerce uma função de representância ou de lugar-tenên-
cia. Que consistência ontológica tem o rasto do passado, enquanto revelador de
algo que existiu mas já não existe e que, de modo algum, se pode confundir
com o objeto para o qual remete? Que diferença existe entre algo que ocorreu
e já não existe e algo que nunca ocorreu? são estas as questões que guiam a
reflexão do autor francês.
De forma original, opta por analisar este enigma da “realidade” do pas-
sado a partir da dialética instaurada por Platão, no Sofista (254 b-259 d), entre
os grandes géneros do Mesmo e do Outro, aos quais acrescenta o do Análogo.
Para se precaver contra possíveis objeções que acusem a sua estratégia de ser
artificial, ricœur tem o cuidado de fundamentar cada um destes géneros com
conceituadas teorias da filosofia da história. a passagem de uma teoria a outra
revelará a impotência de cada uma para resolver “per se” o enigma da repre-
sentância, mas o autor está convencido que «nós dizemos qualquer coisa com
sentido acerca do passado pensando-o sucessivamente sob o signo do mesmo,
do outro e do análogo»299.

298
o conceito de representação, que fará o eixo de La mémoire, l’histoire, l’oubli, é
mencionado em Temps et récit, meramente, como contraste de representância, estando muito
longe da força e do protagonismo que adquirirá na obra posterior, como núcleo da revolução
epistemológica da micro-história.
299
«Je ne prétends pas que l’idée de passé soit construite par l’enchaînement même de
ces trois “grands genres”; je soutiens seulement que nous disons quelque chose de sensé sur
le passé en le pensant successivement sous le signe du même, de l’autre, de l’analogue»
(TR iii, 255).
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 263

a metodologia histórica, observa ricœur, não se confronta com este tipo


de questões de ordem filosófica ontológica. cabe ao filósofo ocupar-se delas:
cette problèmatique de lieutenance ou de représentance de l’histoire par rapport au
passé concerne la pensée de l’histoire, plutôt que la connaissance historique. [...]
Pour elle, la question ontologique, simplement contenue dans la notion de trace,
est immédiatement recouverte par la question épistémologique du document, à
savoir sa valeur de garant, d’appui, de preuve, dans l’explication du passé
[ricœur, TR iii, 254].

i) Sob o signo do Mesmo: Imaginação histórica e “reenactement” em


Collingwood

sob o signo do Mesmo ricœur situa a tese de collingwood da reconsti-


tuição ou representação (réeffectuation) do passado no presente através da anu-
lação da distância temporal: «a história não é mais do que a reconstituição [ree-
nactement] do pensamento passado no espírito do historiador» – declara o autor
inglês em A ideia de história (2001: 241). Nesta obra, mais precisamente no
capítulo final dos Epilegomena, collingwood desenvolve a sua teoria de “His-
tory as re-enactement of Past experience”, que dá fundamento a uma conceção
identitária do pensamento do passado: a operação histórica aparece como uma
identificação com o que outrora foi, pois pensar a “passeidade” do passado é
anular a distância temporal que separa o presente do passado. Por conseguinte,
o traço é ele próprio considerado presente; analisar o traço é fazer remontar ao
presente os acontecimentos passados para os quais remete e tornar os leitores
de história contemporâneos dos factos passados através de uma reconstituição
viva do seu encadeamento. em suma, é tomar consciência de que o passado só
é inteligível pela sua persistência no presente.
a conceção identitária do pensamento histórico exige que collingwood
dissocie a face interior (pensamento) da face exterior do acontecimento (mudan-
ças físicas)300; a considerar o pensamento do historiador, que reconstrói uma

300
Por exterior de um evento o autor entende tudo aquilo que, fazendo parte dele, é
passível de ser descrito como se de um corpo e seus movimentos se tratasse: a travessia do
rubicão por césar e seus soldados, numa certa data, ou o derramamento do seu sangue no
pavimento do senado, noutra data. Por interior entende-se aquilo que nele só pode ser descrito
em termos de pensamento: o desafio de césar à lei da república, ou o conflito da política
constitucional entre ele próprio e os seus assassinos. o trabalho do historiador pode iniciar-
-se na descoberta do exterior de um acontecimento – a sua faceta dinâmica – mas não pode
cingir-se ao mero evento: na medida em que todo o acontecimento foi uma ação, a sua mis-
264 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

cadeia de acontecimentos, como uma maneira de repensar o que foi já uma vez
pensado; e a conceber o repensar como numericamente idêntico ao primeiro
pensar. Por sua vez, cada um destes pressupostos corresponde a uma etapa de
análise do pensamento histórico, constante no capítulo V de A ideia de história:
o caráter documental do pensamento histórico301; o trabalho da imaginação na
interpretação da prova documental (evidence)302; o desejo de que as construções

são consiste, principalmente, em se colocar ou em se imaginar no interior dessa ação para


discernir o pensamento do seu agente. assim sendo, o objeto da história – diferente do da
ciência, que trabalha sobre os eventos físicos ou naturais – não é o evento, mas o pensamento
nele expresso. Descobrir esse pensamento é já compreendê-lo. Para tornar a sua teoria mais
credível, o autor tem o cuidado de precisar que, em primeiro lugar, a face exterior do evento
não é inútil, pois a ação é constituída pela união das faces interna e externa de um evento;
e, em segundo, o pensamento do passado deve ser entendido numa aceção mais ampla do que
o pensamento racional, pois abrange todo o campo das intenções e das motivações.
301
a noção de prova documental (evidence) abre caminho à distinção entre a faceta
interior e exterior do acontecimento histórico: marca a distinção entre história e ciência Natu-
ral e confere à primeira o estatuto de única ciência do conhecimento do homem.
302
Para evitar que o reenactement seja mal entendido como uma intuição, a passagem
da noção de interior de um acontecimento, tido por um pensamento, à de reconstituição do
passado na mente do historiador faz-se por intermédio da imaginação histórica, atividade
mediadora do repensar. a imaginação assinala a especificidade da ligação do pensamento his-
tórico ao passado enquanto tal. o pensamento histórico existe em relação a eventos e con-
dições não percetíveis aqui e agora, que só quando deixam de ser percetíveis é que se tornam
objetos do pensamento histórico. De resto, esta é uma das mais audaciosas e produtivas medi-
tações do autor, o qual começa por afirmar que o reenactement deve ser entendido como um
repensar e não como um reviver, justamente porque não é, de modo algum, uma intuição. o
passado não é nunca um facto que se possa apreender empiricamente através da perceção. o
conhecimento do passado é mediato ou indireto, nunca empírico. além disso, o historiador é
a sua própria fonte e autoridade, nenhum conhecimento do passado se apoia em testemunhos
orais ou escritos, porque não oferecem mais do que uma fraca crença tocada de improbabi-
lidade. rejeitado um conhecimento imediato e testemunhal dos factos do passado, de que
modo pode o historiador aceder ao ocorrido? – questiona-se collingwood. «the historian
must re-enact the past in his own mind» (1946: 282). Para conhecer o significado de deter-
minado documento do passado, o historiador deve descobrir o pensamento implícito, e isso
exige repensá-lo: «to discover what this tought was, the historian must think it again for him-
self» (ibid.: 283). De facto, o que se procura transpor para o presente é o significado his-
tórico de um acontecimento ou documento, pelo que o historiador deve reconstituir na sua
mente as motivações passadas na mente do autor de determinada ação; discerne os pensamen-
tos que procura descobrir repensando-os no seu próprio espírito. a história do pensamento –
e consequentemente toda a história – é a reconstituição do pensamento passado no próprio
espírito do historiador. Não a reconstituição de um objeto de possível perceção, uma vez que
já não existe, mas um objeto passível de se tornar, através da imaginação histórica, um objeto
do nosso pensamento presente.
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 265

da imaginação realizem a reconstituição (reenactment) do passado. É precisa-


mente esta última fase, tida como “telos” de todo um processo, que começa na
interpretação documental e passa pelas construções da imaginação, que dá
corpo à conceção identitária da história.

a conceção identitária da história começa a desenhar-se no momento em


que collingwood, para marcar a diferença entre a imaginação histórica e a ima-
ginação ficcional, coloca a primeira no contexto do reenactement, declarando a
reconstituição histórica como numericamente idêntica ao primeiro pensamento.
remontamos esse caminho intelectual, começando por definir o papel da cha-
mada imaginação a priori na atividade de construção histórica.
tal como a imaginação do romancista ou do artista em geral, a imagina-
ção do historiador é apriorística, quer isto dizer que o historiador interpola
entre as informações que extrai das provas documentais outras afirmações
implícitas, método este designado de construtivo pelo autor inglês303. este ato
de interpolação, apriorístico e imaginativo, designa collingwood de imaginação
a priori:
[...] É esta ação [imaginação a priori] que, preenchendo as lacunas entre os ele-
mentos que nos são fornecidos pelas fontes, dá continuidade à narrativa ou des-
crição histórica. Que o historiador deve servir-se da imaginação, isso é um lugar-
-comum [...]. É ela que, atuando não caprichosamente, como fantasia, mas sob a
sua forma apriorística, executa o trabalho da construção histórica [collingwood
2001: 252].

collingwood acrescenta ainda que a imaginação a priori, para além de


executar a construção histórica, fornece também os meios necessários para a
crítica histórica, porque
[...] se enchêssemos a narração dos feitos de césar com pormenores tão extrava-
gantes como os nomes das pessoas que encontrou pelo caminho, e aquilo que lhes
disse, a construção seria arbitrária; seria, de facto, a espécie de construção que é
feita por um romancista histórico. todavia, se a nossa construção não implica nada
que não seja exigido pela evidência [prova documental], é uma legítima constru-
ção histórica, pertencente a uma espécie sem a qual não poderia haver história
[collingwood 2001: 252].

303
«[...] as fontes dizem-nos que, num dia, césar estava em roma e, num outro dia,
estava na gália; não nos dizem nada sobre a sua viagem de um lugar para o outro, mas inter-
polamos isto com uma consciência perfeitamente clara» (collingwood 2001: 252).
266 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

o que passa a fazer parte do quadro imaginário que o historiador dá do


passado não é aceite passivamente pela imaginação do historiador mas exigido
ativamente por ela própria, ou seja, o produto da imaginação não é arbitrário.
muito embora neste ponto o historiador e o romancista estejam de acordo, a
verdade é que o historiador tem uma dupla tarefa: deve construir um quadro
imaginário coerente e dotado de sentido, como o do romancista, mas mais do
que disso, o quadro do historiador deve ter veracidade.
como obras da imaginação, o trabalho do historiador e o do romancista não dife-
rem. só divergem neste ponto: o quadro do historiador deve ter veracidade.
o romancista só tem uma tarefa: construir um quadro coerente, dotado de sentido.
o historiador tem uma dupla tarefa: tem de fazer isto e tem de construir também
um quadro das coisas, tal como elas eram realmente, e dos acontecimentos, tal
como eles ocorreram realmente [ibid.].

esta exigência de veracidade obriga o historiador a obedecer a três dita-


mes metodológicos dos quais estão livres o romancista e qualquer outro artista.
o quadro do historiador tem de estar situado no espaço e no tempo, ao passo
que o do artista pode estar referido a um lugar e a um tempo meramente ficcio-
nais. a história está obrigada a ser coerente consigo própria; logo, tudo nela tem
de estar referido ao único mundo histórico existente. mas o mais significativo
é que o quadro do historiador está relacionado especialmente com as provas
documentais e é esta relação que lhe confere veracidade. uma afirmação histó-
rica é verdadeira se puder ser comprovada, caso contrário, em termos históricos,
a verdade deixa de ser válida. o historiador crítico tem de justificar as fontes
usadas na sua construção e estas só merecem crédito na medida em que são jus-
tificadas, por isso exigem ser depuradas de qualquer espécie de erro ou falsi-
ficação e esta depuração faz-se verificando se o quadro do passado para o qual
a evidência conduz o historiador é um quadro coerente e dotado de sentido304.

304
sublinhe-se: as provas não são material prefabricado, destinado a ser tomado acri-
ticamente pelo historiador. Prova é tudo aquilo que o historiador pode usar como prova e tem
de ser alguma coisa percetível por ele aqui e agora. todo o mundo percetível é potencial-
mente uma prova, cabe ao historiador descobrir-lhe alguma validade a partir do seu próprio
conhecimento histórico que, quanto mais alargado for, mais possibilidade dá à prova de se
constituir enquanto tal. «a prova só é prova, quando alguém a observa historicamente. De
outro modo, não passa de um facto meramente percebido, historicamente mudo» [colling-
wood, 2001, 257]. este raciocínio leva collingwood a sustentar que «o conhecimento histó-
rico só pode desenvolver-se a partir de conhecimento histórico; por outras palavras, o pen-
samento histórico é uma atividade original e fundamental do espírito humano ou [...em termos
cartesianos] a ideia de passado é uma ideia “inata”» (collingwood 2001: 257).
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 267

ainda assim, estes três ditames são insuficientes para satisfazer a preten-
são à verdade das construções históricas; é fácil concluir que o quadro ou a
pintura imaginária do passado é outra diferente do passado.
o historiador, ainda que trabalhe muito tempo e com rigor, não pode nunca dizer
que o seu trabalho – mesmo sob a forma de simples esboço, ou neste ou naquele
mínimo pormenor – é definitivo. Não pode nunca dizer que o seu quadro do pas-
sado se adequa, em qualquer ponto, à sua ideia daquilo que ele devia ter sido
[ibid.: 259].

Para que seja a mesma, é imperioso que o “quadro do passado” seja


numericamente idêntico ao passado. Por conseguinte, repensar tem de ser uma
forma de anular a distância temporal. esta anulação constitui o cerne filosófico
do reenactment.
o tema é aflorado, genericamente, na primeira secção – consignada ao
estudo da relação entre “natureza humana e história humana” – sob a declara-
ção de que os pensamentos são, num sentido, «acontecimentos que ocorrem no
tempo»; mas, porque a única forma do historiador os distinguir é repensando-
-os para si próprio, há um outro sentido, segundo o qual «não se localizam no
tempo» (ibid.: 232). só na natureza o passado é separado do presente, pois,
num processo natural, o passado é um tempo ultrapassado e morto; na natureza
os instantes morrem e são substituídos por outros, mas um mesmo aconteci-
mento, conhecido historicamente, tem a faculdade de sobreviver no presente.
Por exemplo, a constituição republicana de roma e as modificações que nela
augusto introduziu é um objeto eterno como o triângulo retângulo ou o qua-
drado da hipotenusa de Pitágoras.
trata-se de um objeto eterno, porque pode ser apreendido pelo pensamento histó-
rico, em qualquer altura. o tempo não exerce qualquer influência sobre ele [...].
a particularidade que o torna histórico não é o facto de acontecer no tempo, mas
o facto de se tornar conhecido em relação a nós, por repensarmos o mesmo pen-
samento que gerou a situação que investigamos, chegando assim a compreender
essa situação [ibid.: 232].

Partindo deste pressuposto acerca da sobrevivência e da imunidade do


objeto no tempo, justifica-se a fórmula chave: «o conhecimento histórico é o
conhecimento daquilo que o espírito realizou no passado e, ao mesmo tempo, é
a reconstituição disto, a perpetuação de ações passadas, no presente» (ibid.: 218).
Por conseguinte, nada do passado sobrevive fora da reconstituição (“ree-
nactment”). o que tem sentido é a posse atual da atividade do passado. Foi
preciso que o passado deixasse uma marca ou vestígio intemporal para que o
268 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

historiador, como herdeiro, pudesse reconstituir os pensamentos passados. o


paradoxo reside na marca intemporal: uma marca só se torna marca do passado
no momento em que o seu caráter de passado é anulado pelo ato intemporal
de repensar o acontecimento. comenta ricœur: «la réefetuation, ainsi com-
prise, donne au paradoxe de la trace une solution identitaire, le phénomène de
la marque, de l’empreinte, et celui de sa perpétuation étant purement et simple-
ment renvoyés à la connaissance naturelle» (tr iii, 262).
No entanto, é na secção dedicada exclusivamente ao tema da “história
como reconstituição da experiência passada” (2001, 288-305), que collingwood
desenvolve e aprofunda a questão da identidade. Para precaver qualquer laivo
de ambiguidade que possam imputar à sua tese, o autor sujeita-a ao confronto
com duas hipotéticas objeções. Reconstruir ou repensar um pensamento pode
significar duas coisas: ou representar um ato de pensamento semelhante ao pri-
meiro ou representar um ato literalmente idêntico ao primeiro. a primeira obje-
ção implica que o historiador trate apenas de cópias de pensamentos passados
e não dos próprios pensamentos passados; a segunda, que o historiador não
pode nunca repensar um pensamento passado, uma vez que o ato de pensar
representa uma experiência única, e nenhuma experiência pode ser literalmente
idêntica a outra. collingwood argumenta que um ato de pensamento não é uma
mera experiência idêntica aos sentimentos e às sensações porque, embora ocorra
num tempo específico e no contexto de outros atos de pensamento, emoções,
sensações, apresenta a característica de ser capaz de sobreviver a uma alteração
de contexto e de reviver num contexto diferente. tomemos o seguinte exemplo:
se eu agora repensar um pensamento de Platão, é o meu ato idêntico ao de Pla-
tão ou diferente do dele? se não for idêntico, o meu suposto conhecimento de
filosofia de Platão é falso; mas se não for diferente, o meu conhecimento da
filosofia platónica implica o esquecimento da que me é própria. o que é pre-
ciso para que eu conheça a filosofia de Platão é, simultaneamente, repensá-la
no meu próprio espírito e também pensar outras coisas à luz das quais a posso
julgar. consideradas como experiências imediatas que são, organicamente uni-
das ao corpo da experiência de que resultam, o meu pensamento e o de Platão
são diferentes. todavia, na sua mediação, são o mesmo. e acrescenta: se ler no
Teeteto a argumentação de Platão contra a opinião de que o conhecimento não
passa de sensação, não sei que doutrinas filosóficas ele ataca; pelo que me seria
impossível expor essas doutrinas e dizer detalhadamente quem as defendeu e
com base em que argumentos. Na sua qualidade de fenómeno imediato – expe-
riência concreta e singular do próprio Platão – a sua argumentação formou-se
indubitavelmente a partir de uma discussão à qual esteve intimamente ligado e
que se desconhece. No entanto, para ir além da leitura da sua argumentação e
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 269

tentar compreendê-la – seguindo-a no espírito e rediscutindo-a – o processo de


argumentação que se percorre não é meramente semelhante ao de Platão, é,
tanto quanto foi apreendido, exatamente o do próprio Platão. a argumentação
em si, partindo destas premissas e conduzindo por este processo a esta conclu-
são, a argumentação tal qual se pode desenvolver tanto no espírito de Platão
como no de qualquer outra pessoa, constitui o que se designa por pensamento
na sua mediação. ele existiu no espírito de Platão num contexto específico de
discussão e teoria; e no espírito de outrem, porque desconhece o contexto ori-
ginal, existe num contexto diferente. Porque se trata de um pensamento e não
de um mero sentimento ou sensação, pode existir em ambos estes contextos
sem perder a sua identidade, embora não pudesse de modo algum existir sem
um contexto apropriado.

a tese profundamente idealista de collingwood suscita várias objeções a


Paul ricœur. Por um lado, dizer que o historiador apenas conhece o seu pró-
prio pensamento sobre o passado equivale a dizer que ignora o passado. Por
outro, afirmar que a história só faz sentido se o historiador tiver consciência de
que reconstitui um ato que não é seu significa admitir a alteridade. e colling-
wood até argumenta em favor da capacidade do pensamento de se distanciar de
si próprio, só que este distanciamento não equivale nunca à distância entre o
próprio e o outro. Daí a crítica de ricœur: «toute l’entreprise de collingwood
se brise sur l’impossibilité de passer de la pensée du passé comme mien à la
pensée du passé comme autre. l’identité de la réflexion ne saurait rendre
compte de l’altérité de la répétition (ricœur, TR iii, 263).

ricœur critica ainda a pressuposta transparência da consciência, que leva


a aceitar que reconstituir um pensamento equivale a repensá-lo, ignorando a
opacidade do ato original do passado e do ato reflexivo do presente. o ato ori-
ginal do passado nunca pode ser totalmente reconstituído num ato reflexivo do
presente, pela razão de que nenhuma consciência é totalmente transparente a si
própria ou capaz de reflexão total. Por outro lado, toda a reconstituição, como
indica o prefixo “re”, implica a alteridade da repetição e como tal não pode
anular a distância temporal. Poderíamos nós continuar a designar de recreação
um ato que em nada difere da criação original?305

305
«Que deviennent les notions de processus, d’acquisition, d’incorporation, de déve-
loppement et même de critique, si le caractère événementiel de l’acte de réeffectuation lui-
même est aboli? comment appeler encore recréation un acte qui abolit sa propre différence
par rapport à la création originale?» (ricœur, TR iii, 263).
270 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

esta anulação da distância temporal decorre da decomposição da ação em


exterior (movimento físico) e interior (pensamento), que dá origem à subdivisão
do tempo histórico em duas noções que o negam: de um lado, a mudança, onde
uma ocorrência dá lugar a outra – é o tempo inerente aos processos naturais,
próprios dos eventos das ciências da natureza; do outro, a intemporalidade do
ato de pensar – é o tempo dos processos históricos, próprios dos problemas
humanos visados pelo conhecimento histórico306. a crítica incide no facto de se
terem eliminado as próprias mediações que faziam do tempo histórico um misto
entre mudança temporal e intemporalidade do ato de pensar. estas mediações
que constituem o tempo histórico ficaram de fora do âmbito do mesmo e a sua
denegação implica a negação radical da história.
estas imprecisões e aporias da análise de collingwood impossibilitam que
o passado possa ser pensado exclusivamente sob o grande género do mesmo,
por isso ricœur volta-se para o género do outro, de molde a testar as suas
potencialidades para resolver o enigma ontológico do traço do passado.

ii) Sob o signo do Outro: Dilthey (o outro), Veyne (a diferença), De


Certeau (o afastamento)

sob o signo do outro, sobressai a ontologia negativa do passado, que se


opõe à teoria identitária de passado e presente307. contrapondo-se a colling-
wood, muitos historiadores veem na história um testemunho da alteridade, uma
restituição da distância temporal, mesmo uma apologia da diferença, levada até
ao extremo do exotismo temporal. todavia, não foram muitos os pensadores
que ousaram desenvolver teoricamente esta preponderância do outro no pensa-
mento da história – reconhece ricœur (TR iii, 264). ainda assim, é possível
isolar umas quantas tentativas que partilham esta tendência, apresentando-as por
ordem crescente de radicalidade.

No desejo de restituir o sentido do distanciamento temporal contra a ten-


tação da empatia, assume papel preponderante a ideia de investigação, oposta

306
«a história não é [...] uma narração de acontecimentos sucessivos ou um relato de
transformações. ao contrário do cientista que estuda a natureza, o historiador não tem nada
a ver com os eventos como tais. só lhe dizem respeito os eventos que são expressão externa
de pensamentos, e só na medida em que exprimem pensamentos» (collingwood 2001: 232).
307
«se, sob o signo do mesmo, a alteridade era reabsorvida na pura ipseidade (do) pre-
sente, agora é esta que se dilui na pura alteridade do passado» (teixeira 2004, i: 277).
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 271

à reconstituição. a história tende, sob este prisma, a afastar massivamente o


passado do presente, provocando um efeito de estranheza e de descentramento.
Neste sentido, há historiadores que se tornam numa espécie de “etnólogos dos
tempos volvidos”, que repudiam todo o etnocentrismo ocidental da historiogra-
fia tradicional. importa, pois, averiguar em que moldes se deve pensar este dis-
tanciamento.
ricœur volta-se, em primeiro lugar, para a categoria do Verstehen (com-
preensão) da tradição alemã, onde a compreensão de outrem funciona como
analogia da compreensão histórica. Para expor esta conceção o autor evoca
Dilthey: o primeiro que ambicionou fundar todas as ciências do espírito,
incluindo a história, sobre a capacidade que tem o espírito de se fazer trans-
portar pela vida psíquica alheia, com base em signos que exteriorizam a expe-
riência íntima do outro; pelo facto de a transcendência do passado ter por
modelo uma vida psicológica outra, exteriorizada numa conduta significativa.
assim, por um lado, supera-se o intervalo entre interioridade e exterioridade; e,
por outro, o transporte em imaginação e simpatia para uma vida outra supera
o intervalo entre o si-próprio e o outro. este “modelo da amizade” inspirou
pensadores da craveira de r. aron (Introduction à la philosophie de l’histoire
e Dimensions de la conscience historique) e H. i. marrou (De la connaissance
historique). a sua mais-valia reside no facto de não se limitar a pôr em
jogo a alteridade, mas, mais do que isso, de juntar o mesmo ao outro. o seu
defeito advém da abolição da diferença entre o outrem de hoje e o outrem de
outrora, o que leva ao esquecimento do paradoxo próprio da distância temporal
e à consequente elisão da diferença fundamental entre o conhecimento de
outrem na presença e conhecimento do passado na sobrevivência deste no pre-
sente.

também na noção de diferença se procurou um equivalente lógico da alte-


ridade do passado histórico relativamente ao presente. esta presta-se a múltiplas
interpretações. Passamos do binómio mesmo-outro ao de idêntico-diferente sem
variações sensíveis de sentido para além das contextuais. Não obstante, ricœur
sublinha dois usos distintos da noção de diferença: um uso lógico e outro onto-
lógico.
o uso lógico pode ser encontrado em Paul Veyne, no seu Inventaire des
différences (1976), onde o termo diferença aparece ligado ao de individualidade
ou individualização, que constitui o polo oposto da conceptualização histórica.
a individualidade ou individualização tende para o nome próprio (de pessoas,
lugares, acontecimentos singulares) e a conceptualização para as abstrações
272 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

(guerra, revolução, crise, etc.)308. a individualidade aparece como diferença por-


que a conceptualização histórica é uma investigação de invariantes, entendendo-
-se por este termo uma correlação estável entre um pequeno número de variá-
veis capazes de engendrar as suas próprias modificações ou variantes. o facto
histórico seria uma variante gerada pela individualização dessas invariantes.
mas uma diferença lógica é a mesma coisa que diferença temporal? Paul Veyne
não tem em consideração a componente temporal do facto histórico. a inves-
tigação do longínquo temporal é substituída pela do acontecimento pouco tem-
poral da individualização309. Neste caso, a epistemologia do indivíduo parece
ofuscar a ontologia do passado. De acordo com Paul Veyne, os factos históricos
são estudados sem serem postos num complexo espácio-temporal; a história
deixa de estudar o homem no tempo, mas os elementos humanos subsumidos
sob conceitos. então, se a conceptualização de uma invariante permite explicar
os acontecimentos, a explicação através de invariantes dispensa a narrativa, na
medida em que os acontecimentos, destemporalizados, são individualizados
independentemente de serem recentes ou remotos.
a individualização por variação de uma invariante e individuação pelo
tempo não são a mesma coisa: a primeira, de cariz lógico, não tem em conta
a história de indivíduos singulares (para explicar o casamento da classe cam-
ponesa durante o reinado de luís XiV não se narra o casamento de cada cam-
ponês, o casamento desta classe representa uma individualidade ou especifica-
ção relativa à problemática ou invariante escolhida: o reinado de luís XiV);
mas a segunda, de cariz ontológico, faz com que o inventário das diferenças
se afaste da catalogação intemporal e invista em narrativas.
Por esta porta, regressamos ao enigma particular da distância temporal:
«[...] énigme surdéterminée par l’éloignement axiologique qui nous a rendus
étrangers aux mœurs des temps passés, au point que l’altérité du passé par rap-
port au présent l’emporte sur la survivance du passé dans le présent» (TR iii,
268).
a curiosidade sobrepõe-se à simpatia e o estrangeiro torna-se estranho.
a diferença própria da alteridade do passado – uma diferença que separa –

308
a conceptualização histórica acentua o efeito de afastamento temporal, pois corta
com o ponto de vista, as ignorâncias, as ilusões e toda a linguagem dos homens do passado;
afasta-os de nós no tempo. conceptualizar é adotar o olhar de simples curiosidade do etnó-
logo.
309
«ainsi la conceptualisation d’un invariant permet d’expliquer les événements; en
jouant sur les variables, on peut recréer, à partir de l’invariant, la diversité des modifications
historiques» (Veyne, apud ricoeur TR iii, 268: nota 1).
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 273

sobrepõe-se à diferença lógica da individualização – uma diferença que une. a


noção de diferença perde a sua pureza transcendental de “grande género” bem
como a sua univocidade, uma vez que a distância temporal pode ser valorizada
em dois sentidos opostos, consoante predomine a ética da amizade (marrou) ou
a poesia do afastamento (Veyne).

Por fim, ricœur convoca michel de certeau para este debate310. o histo-
riador francês é o que vai mais longe no sentido de uma ontologia negativa do
passado (vide michel de certeau, L’opération historique, in le goff et Nora
1974, i: 3-41). No pensamento de michel de certeau, a diferença surge num
sentido diametralmente oposto ao que vimos anteriormente. a apologia da dife-
rença inscreve-se agora no contexto de uma «sociologia da historiografia», no
qual não se problematiza mais o objeto ou o método da história, mas o histo-
riador quanto à sua atividade (fazer história é produzir qualquer coisa) e o
lugar social da operação histórica311. ora, o seu lugar é o não-dito por exce-
lência da historiografia. a história científica pretende ser produzida a partir de
nenhum lugar, como se não precisasse de juiz. No entanto, De certeau contesta
esta ambição, denunciando toda a história com pretensão científica de ser domi-
nada por uma ideologia implícita, que é o desejo de dominar e de transformar
o historiador em árbitro do sentido. resta-nos apurar de que forma esta posição
intelectual conduz à teoria do acontecimento como diferença. a mesma crítica
ideológica à ambição de domínio que alimenta a historiografia científica pode
ser estendida à construção de modelos e à investigação de invariantes. uma
história menos ideológica não se limitaria a construir modelos, mas a dar um
significado às diferenças provocadas pelo afastamento relativamente aos mode-
los. Por outras palavras, o estatuto de uma história menos ideológica exige não
tanto uma conceção da diferença como variante individualizada de uma inva-

310
michel de certeau, menos vezes citado nesta trilogia, verá a sua obra L’écriture de
l’histoire (1975) ser alvo de amplas e frequentes citações por parte de ricœur em La
mémoire, l’histoire, l’oubli, nomeadamente, a propósito da visão tripartida da operação histo-
riográfica e da noção de “o ausente da história”; o autor terá ainda lugar de destaque, como
mestre de rigor, ao lado de Foucault e Norbert elias (MHO, 257-261). Dosse (2006) fez um
estudo comparativo das teorias defendidas por ricœur e michel de certeau sobre a história.
apesar de em vida raramente terem dialogado, desenvolveram inequívocos pontos de conver-
gência.
311
«envisager l’histoire comme une opération, ce sera tenter, sur un mode nécessaire-
ment limité, de la comprendre comme le rapport entre une place (un recrutement, un milieu,
un métier, etc.) et des procédures d’analyse (une discipline)» (De certeau le goff et Nora
1974, i: 4).
274 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

riante, mas sim a consideração da diferença como afastamento e separação em


relação aos modelos. ricœur verifica que esta noção de diferença como afas-
tamento até determinado ponto oferece uma melhor aproximação ao aconteci-
mento como “tendo-sido” (TR iii, 270). o que certeau designa de trabalho
sobre o limite coloca o acontecimento, na sua qualidade de “tendo-sido”, afas-
tado relativamente ao discurso histórico. Por conseguinte, este sentido da dife-
rença contribui para uma ontologia negativa do passado. o passado é o que
falta, é uma “ausência pertinente”.
apesar de tudo, ricœur encontra duas insuficiências nesta caracterização
do acontecimento histórico. em primeiro lugar, a noção de afastamento, relativa
ao trabalho de sistematização, é tão intemporal como a noção de modificação
de uma invariante. o afastamento é sempre em relação a um modelo como uma
variante em relação a uma invariante. Depois, não se vê que a diferença-afas-
tamento (différence-écart) seja mais apta para significar o ter-sido do passado
que a diferença-variante – «le réel au passé reste l’énigme dont la notion de
différence-écart, fruit du travail sur la limite, n’offre qu’une sorte de négatif,
dépouillé en outre de sa visée proprement temporelle» (TR iii, 271).
Não se ignora que a noção de diferença-desvio é um bom antídoto contra
leituras totalitárias da história, contra a conceção de um passado substancial ou
contra a ideia de representação do passado no sentido reduplicação mental;
todavia não se salvaguarda, com esta noção puramente negativa da diferença, o
que de positivo parece haver na permanência do passado no presente. É por
isso que, após este trabalho de recensão dos teóricos da diferença sob o signo
do outro, nos parece que o enigma da noção de distância temporal continua tão
opaco quanto antes. a noção de diferença destemporalizada e relativa a um sis-
tema abstrato é incapaz de exercer a função de “lugar-tenência” ou de “repre-
sentância” daquilo que, hoje, ausente e morto, outrora foi real e vivo312.

iii)  Sob o signo do Análogo: H. White e a teoria dos tropos

sob o signo do análogo, ricœur procura salvar e conciliar os resultados


já conseguidos nos dois géneros anteriores por intermédio de uma teoria dos
tropos. apesar de serem incapazes por si sós de dar uma resposta completa à
questão do último referente da história, as teorias postas sob os géneros do

312
«car comment une différence, toujours relative à un système abstrait et elle-même
aussi détemporalisée que possible, tiendrait-elle lieu de ce qui aujourd’hui absent et mort,
autrefois fut réel et vivant?» (ricoeur, TR iii, 271).
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 275

mesmo e do outro contêm elementos úteis para uma resposta final ao enigma
do “real” passado.
antes mesmo de descobrir a chave de representância ou lugar-tenência
que a virtude dialética ou simplesmente didática da série mesmo-outro-análogo
lhe permite alcançar para o problema exposto, ricœur é estimulado por algu-
mas «antecipações veladas desta categorização da relação de lugar-tenência ou
de representância em análises anteriores, onde não cessam de aparecer expres-
sões do tipo “tal como” (tal como foi)»313. Nesse sentido, a fórmula de leopold
ranke é paradigmática: define o ideal de objetividade histórica como uma ten-
tativa de “mostrar as coisas tal como efetivamente aconteceram” (“wie es
eigentlich war”). a expressão não afirma tanto a ambição de atingir o passado
ele-próprio, sem mediação interpretante, mas mais a obrigação do historiador se
despojar das suas preferências, de se apagar, para deixar falar as coisas. sem-
pre que se quer distinguir história de ficção, fala-se da exigência de uma certa
conformidade entre a narrativa histórica e o que realmente aconteceu. todavia,
sabemos que qualquer reconstrução histórica é necessariamente não coincidente
com o curso dos eventos que relata. muitos historiadores recusam até o termo
representação para designar o processo de reconstrução histórica, para desfazer
qualquer equívoco de uma reduplicação da realidade. simplesmente, uma
mudança terminológica não altera em nada o problema da correspondência com
o passado. se a história é uma construção, o historiador não abdica do seu ins-
tinto de reconstruir construindo. Quer seja sob o signo da empatia ou da curio-
sidade, ele é movido pelo desejo de fazer justiça ao passado. enquanto nosso
representante, está incumbido de pagar a nossa impagável dívida ao passado.
esta ideia lapidar de dívida para com o passado, que ricœur vai buscar à refle-
xão de michel de certeau (1975; cf. ricœur, TR iii, 283: nota 1), é comum
ao pintor e ao historiador: o primeiro procura dar-nos (rendre) a paisagem, o
outro o curso dos acontecimentos314.
Para além do motivo da dívida, um outro impele ricœur a entrar no
género do análogo: verificar até que ponto uma teoria dos tropos não poderá
revezar a articulação conceptual da representância, no ponto em que foi deixada
na análise das teorias anteriores. apesar de o género do análogo não vir con-
templado nas listas platónicas dos “grandes géneros”, ele surge na Retórica de

313
«[...] anticipations voilées de cette catégorisation du rapport de lieutenance ou de
représentance dans les analyses précédentes, où ne cessent de revenir des expressions de la
forme “tel que” (tel que cela fut)» (TR iii, 272).
314
«sous ce terme «rendre», je reconnais le dessein de «rendre son dû» à ce qui est
et ce qui fut» (ricœur, tr iii, 273).
276 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

aristóteles a título de metáfora proporcional, apelidada de analogia. Para con-


firmar a sua hipótese, ricœur regressa a Hayden White e à sua teoria dos tro-
pos, apresentada em Metahistory e em vários artigos publicados entre 1966 e
1976, posteriormente compilados em Tropics of Discourse315.
este recurso à tropologia é exigido pela estrutura peculiar do discurso his-
tórico em contraste com a simples ficção. o discurso histórico é fiel quer às
constrições impostas pelo tipo de intriga privilegiado quer ao próprio passado
e aos seus documentos. o trabalho do historiador consiste em fazer da estrutura
narrativa um modelo, um ícone capaz de representar o passado, mas como é
que a tropologia consegue responder a este desafio de ser fiel ao passado
expresso nos documentos? responde White que a base da coerência e da con-
sistência de uma obra histórica – que lhe conferem atributos estilísticos distin-
tivos – é de natureza poética, especificamente linguística e «para que um deter-
minado domínio possa ser interpretado, primeiro tem de ser construído como
terreno habitado por figuras discerníveis» (White 1992: 39).
antes mesmo de configurar conceptualmente os acontecimentos do pas-
sado transmitidos pelos documentos, o historiador deve prefigurá-los, isto é,
tem de constituir o campo histórico como objeto de perceção mental. Por outras
palavras, a função desta operação poética consiste em desenhar no campo his-
tórico itinerários possíveis e assim conferir um primeiro contorno aos possíveis
objetos de conhecimento316. logo, o historiador encara o campo histórico mais
ou menos como um gramático encara uma nova língua. Deve construir um pro-
tocolo linguístico completo, com dimensões lexical, gramatical, sintática e
semântica, do qual se servirá quer para caracterizar o campo histórico e seus
elementos com termos próprios (e não com os termos com que vêm qualifica-
dos nos próprios documentos) quer para preparar os ditos elementos para a
explicação e para a representação que deles dará a sua narração. Devido à sua

315
esta obra, que reúne alguns dos artigos mais marcantes de Hayden White, foi publi-
cada em 1978. Nós usamos a edição de 1985. Daremos particular atenção ao artigo «the his-
torical text as literary artifact» (White 1985: 81-100).
316
«Para figurar-se “lo que realmente ocurrió” en el pasado, por lo tanto, el historiador
tiene que prefigurar como posible objeto de conocimiento todo el conjunto de sucesos regis-
trado en los documentos. este ato prefigurativo es poético en la medida en que es precog-
noscitivo y precrítico en la economía de la propia conciencia del historiador. también es poé-
tico en la medida en que es constitutivo de la estructura que posteriormente será imaginada
en el modelo verbal ofrecido por el historiador como representación y explicación de “lo que
ocurrió realmente” en el passado [...] en el ato poético que precede al análisis formal del
campo, el historiador a la vez crea el objeto de su análisis y predetermina la modalidad de
las estrategias conceptuales que usará para explicarlo» (White 1992: 40).
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 277

natureza prefigurativa, trata-se de um protocolo linguístico preconceptual, que


se pode caracterizar em função do modo tropológico predominante na sua cons-
trução. transcrevemos um passo do autor que resume as principais caracterís-
ticas que temos vindo a salientar na teoria tropológica.
my own hunch [...] is that in any field of study which, like history, has not
yet become disciplinized to the point of constructing a formal terminological sys-
tem for describing its objects, in the way that physics and chemistry have, it is
the types of figurative discourse that dictate the fundamental forms of the data to
be studied. this means that the shape of the relationships which will appear to be
inherent in the objects inhabiting the field will in reality have been imposed on
the field by the investigator in the very act of identifying and describing the
objects that he finds there. the implication is that historians constitute their sub-
jects as possible objects of narrative representation by the very language they use
to describe them. and if this is the case, it means that the different kinds of his-
torical interpretations that we have of the same set of events, such as the French
revolution as interpreted by michelet, tocqueville, taine, and others, are little
more than projections of the linguistic protocols that these historians used to pre-
figure that set of events prior to writing their narratives of it. it is only a hypoth-
esis, but it seems possible that the conviction of the historian that he has “found”
the form of his narrative in the events themselves, rather than imposed it upon
them, in the way the poet does, is a result of a certain lack of linguistic self-con-
sciousness which obscures the extent to which descriptions of events already con-
stitute interpretations of their nature. as thus envisaged, the difference between
michelet’s and tocqueville’s accounts of the revolution does not reside only in
the fact that the former emplotted his story in the modality of a romance and the
latter his in the modality of tragedy; it resides as well in the tropological mode
– metaphorical and metonymic, respectively – with each brought to his apprehen-
sion of the facts as they appeared in the documents [White 1985: 95].

ricœur reage a esta teoria de White dizendo que se visa, de facto, o que
realmente aconteceu no passado, mas é paradoxal que não se possa descrever
este anterior a qualquer narrativa senão prefigurando-o (TR iii, 275)317.

317
a prefiguração de Hayden White nada tem que ver com a que é teorizada por
ricœur no quadro da mimesis i; trata-se de uma operação linguística que se desenrola ao
nível da massa documental ainda indiscriminada. No artigo «the historical text as literary
artifact», White é bem específico: [...] the only instruments that the [historian] has for endow-
ing his data with meaning, of rendering the strange familiar, and of rendering the mysterious
past comprehensible, are the techniques of figurative language. all historical narratives pre-
suppose figurative characterizations of the events they purport to represent and explain. and
this means that historical narratives, considered purely as verbal artifacts, can be characterized
278 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

o trabalho de prefiguração aproveita a variedade de figuras do discurso


oferecida pelos quatro tropos fundamentais da retórica clássica: metáfora, meto-
nímia, sinédoque e ironia318. estes tropos permitem a caracterização de objetos
em distintos tipos de discurso indireto ou figurativo. a equivocidade própria a
cada tropo e a multiplicidade de figuras que oferecem ajudam a preservar a
riqueza de sentido do objeto histórico. Dos quatro, o primeiro – a metáfora –
é o que tem maior poder representativo. Porém, White parece querer afirmar
que os restantes tropos, apesar de serem diferentes, são variantes da metáfora
e servem para corrigir a ingenuidade da metáfora, levada a ter por adequada a
semelhança afirmada (My love, a rose)319. a metonímia, por exemplo, tomando
o continente pelo conteúdo ou vice-versa, tende a fazer de um fator histórico
a simples manifestação do outro. apenas o percurso completo da apreensão
mais naive (metáfora) até à mais reflexiva (ironia) permite falar de uma estru-
tura tropológica da consciência. a teoria dos tropos, devido ao seu caráter lin-
guístico, pode integrar-se no quadro das modalidades da imaginação histórica,
mas não pode integrar os seus modos propriamente explicativos. Nesse sentido,
podemos dizer que ela constitui a estrutura profunda da imaginação histórica320.

by the mode of figurative discourse in which they are cast. if this is the case, then it may
well be that the kind of emplotment that the historian decides to use to give meaning to a
set of historical events is dictated by the dominant figurative mode of the language he has
used to describe the elements of his account prior to his composition of a narrative (1985:
94).
318
«Pero el número de estrategias explicatorias posibles no es infinito. Hay, en reali-
dad, cuatro tipos principales, que corresponden a los cuatro tropos principales del lenguaje
poético. [...] en suma, la teoría de los tropos nos proporciona una base para clasificar las for-
mas estructurales profundas de la imaginación histórica en determinado periodo de su evolu-
ción» (White 1992: 40).
319
«la ironia, la metonimia y la sinécdoque son tipos de metáfora, pero difieren entre
sí en los tipos de reduciones o de integraciones que efectúan en el nivel literal de sus sig-
nificados y por los tipos de iluminaciones a que apuntan en el nivel figurativo. la metáfora
es esencialmente representativa, la metonimia es reduccionista, la sinécdoque es integrativa
y la ironia es negativa» (White 1992: 43). Vide, etiam, White 1985: 91.
320
«la teoría de los tropos proporciona un modo de caracterizar los modos dominantes
del pensamiento histórico que tomaron forma en europa en el siglo XiX. Y como base para
una teoría general del lenguaje poético, me permite caracterizar la estructura profunda de la
imaginación histórica de ese periodo considerado como un proceso de ciclo cerrado. Porque
cada uno de los modos puede ser visto como una fase, o momento, dentro de una tradición
de discurso que evoluciona a partir de lo metafórico, pasando por comprensiones metonímica
y sinecdóquica del mundo histórico, hasta una aprehensión irónica del irreductible relativismo
de todo conocimiento» (White 1992: 47).
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 279

esta grelha tropológica da consciência representa um enorme benefício


para a ambição representativa da história, porque a retórica governa a descrição
do campo histórico do mesmo modo que a lógica governa a argumentação com
valor explicativo, tal como tivemos oportunidade de ver na discussão em torno
de explicação e compreensão. o historiador constitui, virtualmente, o assunto
do discurso através da figuração. a lógica ajuda a encontrar o tipo de intriga
(romântico, trágico, cómico, satírico); mas a tropologia ajuda a apreender, a
conferir uma forma mental (“forma mentis”), ao conjunto dos acontecimentos
que a história, enquanto sistema de signos, tenta descrever. a prefiguração tro-
pológica é mais específica e a explicação através da composição da intriga
(“emplotment”) mais genérica. esta repartição entre retórica dos tropos e lógica
dos modos de explicação (por composição da intriga, por argumentação e por
implicação ideológica) é equivalente à distinção mais básica entre facto (infor-
mação) e interpretação (explicação).
Não obstante, o valor icónico da representação do passado não pode ser
confundido com um modelo à escala, do tipo das cartas topográficas, pois não
há original com o qual possa ser comparado; é precisamente a estranheza do
original, tal como os documentos o fazem aparecer, que suscita o esforço da
história para prefigurar o estilo321. Por isso, não há nenhuma relação de repro-
dução, de reduplicação ou de equivalência entre uma narrativa e uma série de
acontecimentos. o que existe é uma relação metafórica: o leitor é orientado
para o tipo de figura que assemelha os acontecimentos narrados a uma forma
narrativa que nos é culturalmente familiar. a metáfora não reproduz ou
descreve uma coisa, ela funciona como símbolo: «[the metaphor] tell us what
images to look for in our culturally encoded experience in order to determine
how we should feel about the thing represented» (White 1985: 91). o mesmo
se pode dizer das narrativas históricas: «they succeed in endowing sets of past
events with meanings [...] by exploiting the metaphorical similarities between
sets of real events and the conventional structures of our fictions» (ibid.).

Face às análises «subtis e muitas vezes obscuras» de Hayden White,


ricœur (TR iii, 278) não hesita em reconhecer o seu prestimoso contributo

321
«this is what leads me to think that historical narratives are not only models of past
events and processes, but also metaphorical statements which suggest a relation of similitude
between such events and processes and the story types that we conventionally use to endow
the events of our lives with culturally sanctioned meanings. Viewed in a purely formal way,
a historical narrative is not only a reproduction of the events reported in it, but also a com-
plex of symbols which gives us directions for finding an icon of the structure of those events
in our literary tradition» (White 1985: 88).
280 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

para a exploração do terceiro momento dialético da ideia de lugar-tenência ou


de representância, através do qual o autor francês tenta explicar a relação entre
a historiografia e o passado por ela visado. De um modo geral, podemos dizer
que a proposta de White consiste na afirmação de que as coisas devem ter-se
passado como é dito (à imagem do que é dito) na narrativa presente; ou seja,
através dos tropos, é possível trazer para o texto o ser-como do acontecimento
histórico. ao propor a mediação da tropologia para o emparelhamento de uma
determinada estrutura convencional de ficção com um determinado curso de
acontecimentos, White confere credibilidade à sugestão ricœuriana de que a
referência à realidade do passado deve passar sucessivamente pela grelha do
mesmo, do outro e do análogo. e, assim sendo, a análise tropológica dá
fundamento à categoria do análogo: «l’analyse tropologique est l’explication
cherchée de la catégorie de l’analogue. elle ne dit qu’une chose: les choses ont
dû se passer comme il est dit dans le récit que voici; grâce à la grille tropo-
logique, l’être-comme de l’événement passé est porté au langage» (ricœur, TR
iii, 279).
É, pois, o cruzamento da teoria tropológica de White com a tese da refe-
rência e da redescrição metafórica desenvolvida por ricœur em A metáfora viva
que possibilita a formulação da representância.
De modo a preservar a fronteira entre história e ficção, o recurso à tro-
pologia não pode ser separado do contexto dos outros dois géneros e muito
menos do específico constrangimento historiográfico exercido sobre o discurso
pelo face-a-face do ter-sido do acontecimento passado. também a tónica no
procedimento retórico não pode acarretar o ocultamento da intencionalidade que
atravessa a trópica do discurso em direção aos acontecimentos passados (TR
iii, 279). o passado é sempre a referência. Por isso, o historiador deve estar
atento às incitações que o passado não cessa de lhe fazer para reescrever, cor-
rigindo, a história. Por outras palavras, uma certa arbitrariedade tropológica
não pode fazer esquecer o tipo de constrição que o acontecimento exerce sobre
o discurso histórico, através dos documentos conhecidos, exigindo deste uma
retificação sem fim. Neste sentido, a relação entre história e ficção é de facto
muito complexa, porquanto se entrecruzam mas não se identificam. apesar
disso, há que renunciar a dois preconceitos acríticos para os quais White cha-
mou corretamente à atenção. em primeiro lugar, a linguagem do historiador
nunca é totalmente transparente e capaz de deixar falar os factos por eles mes-
mos, estará sempre contaminada com as figuras da poesia. em segundo lugar,
é igualmente errado pensar que a literatura de imaginação, porque se socorre
constantemente da ficção, não tem nada que ver com a realidade. ambas pro-
curam oferecer uma imagem verbal da realidade.
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 281

a expressão de ranke “os factos tais como se passaram realmente” per-


mite-nos perceber o papel da tropologia como articuladora interna da noção de
representância. ricœur, apoiado em White, sustenta que na interpretação “ana-
lógica” da função de lugar-tenência ou de representância, o realmente só pode
ser significado pelo tal como. isto é possível porque o como funciona não ape-
nas de forma retórica mas também ontológica, como já propunha ricœur em
La métaphore vive (273-399). através do enfoque de um ser-como correlativo
de um ver-como, que resume o trabalho da metáfora no plano da linguagem,
a metáfora revela um alcance referencial, veículo de uma pretensão ontoló-
gica322. Quer isto dizer que o próprio ser é metaforizado sob as espécies do ser-
-como, para que a metáfora assuma uma função ontológica compatível com o
seu caráter vivo (metáfora viva) no plano linguístico, ou seja, a sua capacidade
de aumentar a polissemia inicial das palavras com a instauração de uma nova
pertinência semântica:
l’être-même doit être métaphorisé sous les espèces de l’être-comme..., si l’on doit
pouvoir attribuer à la métaphore une fonction ontologique qui ne contredise pas le
caractère vif de la métaphore au plan linguistique, c’est-à-dire sa puissance d’aug-
menter la polysémie initiale de nos mots. la correspondance entre le voir-comme
et l’être-comme satisfait à cette exigence [ricœur, TR iii, 281].

322
No 7.º estudo de A metáfora viva, onde se reflete acerca de «metáfora e referência»,
ricœur defende basicamente o seguinte: tal como o sentido metafórico resulta da emergência
de uma nova pertinência semântica sobre as ruínas da pertinência semântica literal, do mesmo
modo, a referência metafórica procede da dissolução da referência literal. esta tese de teor
retórico tem um alcance ontológico. ricœur faz corresponder ao “ver-como” do enunciado
metafórico um “ser-como” extralinguístico revelado pela linguagem poética. o “ser-como” faz
justiça às realidades inacessíveis da linguagem ordinária, direta e literal e, neste sentido, a
poesia deteta o que a prosa não consegue. a analogia funciona, pois, como marca da relação
da linguagem com o mundo. Por outro lado, a correlação entre o “ver-como” e o “ser-como”
permite a ricœur combater a tese estruturalista que a linguagem aponta para si própria, admi-
tindo apenas relações imanentes. contra esta conceção, o autor francês vê na linguagem poé-
tica as virtudes máximas para dizer o segredo das coisas, para redescrever o real. em Temps
et Récit, ricœur não renuncia a esta tese, apenas deteta uma lacuna, a ausência de um elo
entre a referência metafórica pertencente ao próprio enunciado metafórico e o “ser-como”
para o qual tende; este elo é a leitura. um enunciado em si mesmo não tem capacidade de
se referir, precisa de alguém que estabeleça a referência. essa é a missão do leitor. É ele que
capta a nova pertinência semântica e a atualiza como impertinente para o sentido literal. só
o leitor é capaz de estabelecer a correspondência entre um “ser-como” inédito e o “ver-como”
suscitado pelo enunciado metafórico, deixado pelo poeta. Finalmente, o real que é redescrito
é o que pertence ao mundo do leitor. «c’est le monde du lecteur qui offre le site ontologique
des opérations de sens et de référence qu’une conception purement immanentiste du langage
voudrait ignorer» (ricœur, RF, 48).
282 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

em suma, podemos dizer que, tal como o historiador, de acordo com a


opinião de White, confere um sentido aos factos que apreende vendo-os sob
uma determinada forma tropológica, também o poeta que recorre a uma metá-
fora olha um objeto como outra coisa, isto é, procurando contiguidades ou
semelhanças entre duas realidades distintas. Nos dois casos, a realidade é sem-
pre um como-se. apenas na ficção este “como-se” é livre; na história está obri-
gado a justificar-se, a explicar-se.
No contexto de La métaphore vive, o poder recreativo da metáfora é inti-
tulado de “redescrição”, agora, o conceito de redescrição metafórica dá lugar
ao conceito homólogo de refiguração, para acentuar o papel da figura e da lei-
tura. a narrativa refigura o tempo, constrói uma figura (tropo) do tempo que
se desdobra por intermédio da leitura. a refiguração do tempo só se efetua ou
concretiza no ato de leitura. mas enquanto o funcionamento retórico e ontoló-
gico da metáfora tem uma grande autonomia no quadro da linguagem poética,
o mesmo não se pode dizer do análogo, dependente que está dos outros dois
géneros, com os quais se deve articular para dar conta da função essencial-
mente temporal da representância, de um “ser-como” que, enigmaticamente, é
e não é:
Dans la chasse à l’avoir-été, l’analogie n’opère pas isolément, mais en liaison avec
l’identité et altérité. le passé est bien ce qui, d’abord, est à réeffectuer sur le
mode identitaire: mais il n’est tel que pour autant qu’il est aussi l’absent de toutes
nos constructions. l’analogue, précisément, retient en lui la force de la réeffectua-
tion et de la mise à distance, dans la mesure où être comme, c’est être et n’être
pas [ricœur, TR iii, 281].

as vantagens desta tese do análogo são igualmente válidas para o enigma


do traço e para o tema que estudaremos a seguir: a leitura. No caso do traço,
a noção de representância justifica-se na medida em que este possui a mesma
condição da analogia: significar sem fazer aparecer. Deste modo, a aporia da
função de lugar-tenência específica do traço – como algo que vale para o pas-
sado – fica parcialmente solucionada no “ver-como” do discurso metafórico.
esta articulação é admissível a partir do momento em que a análise da repre-
sentância – considerada nos seus três momentos do mesmo, do outro e do
análogo – acrescenta à problemática da reinscrição do tempo fenomenológico
no tempo cosmológico – da qual resulta o tempo histórico – o fenómeno da
distância temporal. o tempo histórico é também ele um tempo análogo – por-
que situado entre o tempo universal e o tempo individual – e é garante da dis-
tância temporal – sem a qual o passado não é passado. a distância temporal
não é acrescentada de fora, mas é ao fim e ao cabo o que o traço como tal
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 283

desimplica e faz aparecer. a relação de representância explicita a estrutura dia-


lética da travessia do tempo pelo traço, estrutura esta que converte em media-
ção o próprio espaçamento temporal.
ricœur tem consciência da incompletude da sua teoria, que considera ina-
cabada porque é abstrata; a abstração resulta da separação do passado da dia-
lética entre futuro, passado e presente. esta não passa, então, de uma tentativa
de melhor pensar o que permanece enigmático na “passeidade” do passado
enquanto tal. analisando-a, sucessivamente, nos âmbitos dos grandes géneros
do mesmo, do outro e do análogo, o filósofo admite que pelo menos preser-
vou o caráter misterioso da dívida que o historiador tem para com o passado
(cf. TR iii, 282-283).

1.2.2.2.  Mundo do texto e mundo do leitor: leitura e refiguração

um novo passo em direção ao ponto de entrecruzamento do tempo da his-


tória e do tempo da ficção é dado com a busca de uma contrapartida – na área
da ficção – do passado “real” da história. esta seria uma busca vã e insensata
se fosse posta nos termos tradicionais da referência, nos quais se entende que
só o historiador se refere a algo a que se pode chamar “real”, com base na pre-
missa de que as informações que transmite foram observadas por testemunhas
do passado. Por oposição, as personagens do romance são muito simplesmente
“irreais” e “irreal” é também a experiência que a ficção descreve. sob este
ponto de vista, sobressai uma assimetria total entre a “realidade do passado” e
“a irrealidade da ficção”.
ora, esta perspetiva já foi posta de parte quando se colocou em causa
o conceito de “realidade” aplicado ao passado. De nada vale dizer que os acon-
tecimentos trazidos pelo historiador foram observados por testemunhas; o pro-
blema é, justamente, o facto de o ter-sido de um acontecimento ou de uma tes-
temunha não ser observável, apenas memorável, como bem recorda ricœur:
«la passéité d’une observation au passé n’est pas elle-même observable, mais
mémorable» (TR iii, 284).
Para resolver este enigma e para dar conta, precisamente, da ambição das
construções da história de serem reconstruções que respondem à solicitação de
um face-a-face, elaborou-se a noção de representância ou de lugar-tenência.
Vimos também como esta solicitação é marcada por um sentimento de dívida,
que coloca os homens do presente diante da tarefa de restituir aos homens do
passado – aos mortos – o reconhecimento que lhes é devido. a estrutura obri-
gatoriamente dialética da categoria de representância (reforçada pelo sentimento
284 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

de dívida) – a qual implica uma redução ao mesmo, o reconhecimento da alte-


ridade e uma apreensão por analogia – extravasa em larga medida a categoria
da referência própria da linguagem da observação e da lógica extensional.
a crítica desta noção ingénua de “realidade do passado” exige que se faça
outro tanto relativamente à noção também ela ingénua de “irrealidade da fic-
ção”. a função da ficção, caracterizada como reveladora e transformadora da
prática quotidiana, é paralela à função de representância ou de lugar-tenência.
ela é reveladora porque traz à luz o que na prática quotidiana está dissimulado
mas implícito e é transformadora porque examina e gera uma nova realidade.
Devido à função reveladora e transformadora da ação do texto, descobrir e
inventar tornam-se indiscerníveis e a noção positivista de referência (tal como
a de redescrição) deixa de ter cabimento. assim, a problemática da refiguração
deve libertar-se definitivamente do vocabulário da referência e do referente,
ainda em uso n’A Metáfora Viva e adotar o de aplicação, retirado da obra de
gadamer, Verdade e Método.
a aplicação, segundo gadamer, não é um apêndice moralista ou episódico,
acrescentado aleatoriamente à compreensão e à explicação, mas é uma parte
orgânica de todo o projeto hermenêutico. H. g. gadamer inspira-se na distinção
estabelecida pelo pietismo da hermenêutica bíblica do séc. XViii entre três sub-
tilitates – subtilitas comprehendi, subtilitas explicandi, subtilitas applicandi – as
quais constituíam em bloco a interpretação. É num sentido muito próximo deste
que ricœur fala «do arco hermenêutico que se eleva da vida, atravessa a obra
literária e retoma à vida», sendo a aplicação (ou a apropriação) «o último
segmento deste arco integral» (TR iii, 286)323.
todavia, a aplicação à qual ricœur dá o nome de apropriação engendra,
no campo da ficção, dificuldades comparáveis às da sua contrapartida (a repre-
sentância do passado) no campo da historiografia; daí que seja necessário con-
vocar para a cena a leitura enquanto mediadora. Por meio dela, a obra literária
completa a sua significação, por isso a leitura está para a ficção como a repre-
sentância está para a história.

323
Paul ricoeur dá grande destaque a este assunto num estudo intitulado precisamente
«appropriation», in Hermeneutics and Human Sciences. Essays on Language, Action and
Interpretation, Paris/cambridge, 1981, 182-194. Neste estudo, o autor fala da via que um
texto segue quando se dirige a alguém, desenvolvendo a partir daí a dialética entre o “mundo
do texto” e o “mundo do leitor”. o conceito de apropriação é pensado não enquanto projeção
do sujeito no texto, mas antes como a configuração de identidade do sujeito a partir da
apreensão dos mundos propostos pelo texto, mundos estes que são o genuíno objeto da inter-
pretação.
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 285

a função da leitura dá continuidade ao assunto deixado em aberto aquando


da análise da mimesis iii. Dizíamos nós, na altura, que o terceiro nível mimé-
tico marca a intercessão entre o mundo do texto e o do leitor ou do ouvinte
e, logo, a interseção entre o mundo configurado pelo texto e o mundo dentro
do qual a ação efetiva se desdobra e desdobra a sua temporalidade específica.
Desta interseção provém o valor da obra de ficção. a obra literária tende para
fora. o mundo do texto sem a leitura é uma transcendência na imanência. o
seu estatuto ontológico fica suspenso, à espera da leitura: «c’est seulement dans
la lecture que le dynamisme de configuration achève son parcours. et c’est au-
delà de la lecture, dans l’action effective, instruite par les œuvres reçues, que
la configuration du texte se transmute en refiguration» (ricœur, TR iii, 287).
uma reflexão mais complexa sobre a noção de “mundo do texto” e uma
caracterização mais exata do seu estatuto de transcendência na imanência con-
venceram ricœur de que a passagem do texto à vida, da configuração à refi-
guração, exige «o confronto entre dois mundos, o mundo fictício do texto e o
mundo real do leitor», assumindo-se o fenómeno da leitura como «o mediador
necessário da refiguração» (TR iii, 288).
uma teoria da leitura parece derivar, em primeira análise, da poética – na
medida em que toda a leitura é regulada de antemão pela composição da obra
–, mas resulta também de outras disciplinas e estratégias persuasivas, como a
retórica, já que a comunicação ao leitor ou ouvinte assume também um papel
preponderante, sendo o objetivo final a persuasão do recetor por parte do escri-
tor. o leitor responde à estratégia de persuasão do escritor, acompanhando a
configuração e apropriando-se do mundo do texto. uma teoria da leitura terá,
pois, de contemplar o percurso completo desde o autor, passando pela obra, até
ao leitor. este último é, de facto, o mediador último entre a mimese ii e a
mimese iii, entre configuração e refiguração. Para melhor se compreender esta
dialética entre “mundo do texto” e “mundo do leitor”, bipolarizada nos dois
extremos do autor e do leitor, ricœur empreende uma visita rápida a algumas
teorias da leitura que ilustram os três momentos fundamentais: 1) a estratégia
do autor que se dirige ao leitor (da poética à retórica); 2) a inserção desta
estratégia na configuração literária (a retórica entre o texto e o leitor); 3) a res-
posta do leitor ou do público (fenomenologia e estética da leitura).

i)  Da poética à retórica

uma teoria da leitura centrada sobre a atividade do autor, nomeadamente,


das estratégias levadas a cabo pelo próprio para persuadir o seu público, terá
de se inclinar necessariamente para o campo da retórica. Nesse sentido, ricœur
286 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

parte da obra de Wayne Booth, The Rhetoric of Fiction (1961), para refletir
sobre as técnicas utilizadas pelo autor a fim de tornar a sua obra comunicável.
Não o faz sem previamente esclarecer que a sua análise não faz cedências nem
à psicografia nem à autonomia semântica do texto: não perfilha a tese nem do
autor real, objeto de biografia, nem a tese estruturalista do texto como seman-
ticamente autónomo, omitindo a ação do autor.
a primeira etapa consiste, então, em fundamentar a inclusão da categoria
de autor implicado (na e pela obra) numa retórica da ficção. o autor implicado
é resultado da dissimulação do autor real e é ele que o leitor descobre nas mar-
cas do texto. a categoria do autor implicado desempenha um papel fundamental
numa teoria englobante da leitura, na medida em que o leitor se apercebe da
sua presença quando apreende intuitivamente a obra como uma totalidade uni-
ficada. esta unificação da obra deriva não apenas das regras de composição
(poética), mas também daqueles artifícios e estratégias que fazem do texto a
obra de um enunciador (retórica).
ainda a propósito das estratégias retóricas do autor, ricœur tece algumas
considerações acerca de narrador digno de confiança (reliable) e narrador não
digno de confiança (unreliable). apenas salientamos algumas. a confiança que
o narrador deve conquistar ao leitor e este atribuir-lhe está para a narrativa fic-
cional como a prova documental está para a historiografia. Porque não possui
provas documentais do que narra, o romancista pede ao leitor que confie nele
e lhe conceda o direito de comentar ou formular juízos a propósito das situa-
ções ou personagens que descreve. Quando o autor introduz (dramatiza) um
narrador na sua obra, este goza do mesmo privilégio do autor implicado, de
poder aceder, se quiser, ao interior das personagens. este privilégio faz parte
dos poderes retóricos investidos ao autor implicado pelo acordo tácito que se
estabelece entre autor e leitor. o caso do narrador indigno de confiança, fre-
quente no romance moderno, é particularmente interessante porquanto ele apela
à liberdade e à responsabilidade do leitor:
À la différence du narrateur digne de confiance, qui assure son lecteur qu’il n’en-
treprend pas le voyage de la lecture avec des vains espoirs et de fausses craintes
concernant non seulement les faits rapportés, mais les évaluations explicites ou
implicites des personnages, le narrateur indigne de confiance dérègle ces attentes,
en laissant le lecteur dans l’incertitude sur le point de savoir où il veut finalement
en venir. ainsi le roman moderne exercera-t-il d’autant mieux sa fonction de cri-
tique de la morale conventionnelle, éventuellement sa fonction de provocation et
d’insulte, que le narrateur sera plus suspect et l’auteur plus effacé, ces deux res-
sources de la rhétorique de dissimulation se renforçant mutuellement [TR iii, 296].
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 287

a literatura moderna requer, pois, um novo tipo de leitor que possa cor-
responder à desconfiança do narrador. Neste ponto, uma retórica centrada sobre
o autor, como é a de Wayne Booth, revela os seus limites, na medida em que
ela só dá conta da iniciativa de um autor desejoso de comunicar a sua visão
dos factos. Falta-lhe a contrapartida dialética, um leitor de um novo género,
também ele desconfiado, porque a leitura deixou de ser uma viagem segura na
companhia de um narrador digno de confiança, mas transformou-se num com-
bate com o autor implicado.

ii)  A retórica entre texto e leitor

a segunda etapa dá destaque ao ato de composição literária na sua cor-


relação necessária com a leitura (a leitura no texto). a tese que serve de ponto
de partida é enunciada por ricœur nos seguintes termos: «sans lecteur qui l’ac-
compagne [la configuration] il n’y a point d’acte configurant à l’œuvre dans le
texte; et sans lecteur qui se l’approprie, il n’y a point de monde déployé devant
le texte» (TR iii, 297).
o texto não tem vida própria, o texto existe para a leitura e a leitura é
parte intrínseca do texto. esta ideia essencial de que a leitura faz parte do texto
onde está inscrita é corroborada mediante o recurso a m. charles, Rhétorique
de la Lecture (1977), que percorre alguns textos literários célebres, onde a lei-
tura surge explicitamente prescrita ou orientada. os exemplos conduzem a um
paradoxo. De um lado, apresenta-se o caso da “leitura no texto”, a leitura
imposta ao leitor, já não o leitor manipulado pelo narrador indigno de con-
fiança, mas o aterrorizado pelo decreto da predestinação da sua própria leitura.
Do outro lado, a perspetiva de uma leitura infinita, que permite uma infinidade
de interpretações e deste modo estrutura o texto que a prescreve, restitui à lei-
tura uma inquietante indeterminação. somos postos, pois, no centro de uma ten-
são entre constrição e liberdade. esta situação paradoxal coloca a obra de m.
charles numa posição intermédia no seio das teorias da leitura: a meio caminho
entre uma análise centrada sobre o local de origem da estratégia persuasiva (o
autor implicado na e pela obra) e uma análise que institui o ato de ler como
a suprema instância da leitura (o leitor fora do texto). Daqui resulta que a teo-
ria da leitura resvala da retórica para a fenomenologia ou para a hermenêutica.
É que, numa perspetiva puramente retórica, o leitor é, no limite, presa e vítima
da estratégia fomentada pelo autor implicado. a fenomenologia faz jus à res-
posta do leitor.
288 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

iii)  Fenomenologia e estética da leitura

Na terceira etapa, Paul ricœur abandona a perspetiva retórica para pôr a


tónica sobre a resposta do leitor às estratégias do autor implicado. este apelo
a uma teoria da leitura que se concentre na resposta do leitor encontra mais eco
numa “estética” (no seu sentido etimológico grego de aisthesis) do que numa
“retórica”. Pretende-se, pois, saber de que formas uma obra afeta o leitor, agindo
sobre ele. o “ser afetado” contém em si um sentido ativo e outro passivo, que
nos autorizam a dizer que a receção do texto é a própria ação de o ler.
Do que fica exposto, parece incontornável convocar à colação as maiores
autoridades em matéria de receção do texto literário e fundamentação do estudo
de história da literatura; falamos obviamente dos dois autores da chamada
escola da receção, Hans robert Jauss e Wolfgang iser, ambos da universidade
de Konstanz. a sua influência sobre a teoria da literatura, a estética e mesmo
os estudos de comunicação, foi determinante no último quartel do século XX.
afastando-se tanto da escola marxista, que reduz a arte a um “reflexo” da
sociedade, como da escola formalista americana, que tende a centrar-se exclu-
sivamente sobre a obra de arte como algo absolutamente fechado sobre si pró-
prio, a escola da receção acentua os aspetos comunicacionais da obra literária
e artística, dando atenção aos efeitos sobre o público e à mutação histórica des-
ses efeitos.
ricœur recorre aos textos de W. iser324 porque sublinham o efeito produ-
zido pela leitura sobre o leitor individual e a sua resposta e recorre aos de
Jauss325 porque enfatizam a resposta do público ao nível das suas expetativas
coletivas. a despeito de estas duas estéticas parecerem opostas, na medida em
que uma tende para a psicologia fenomenológica e outra para a reformulação
da história literária, na verdade, «pressupõem-se mutuamente», assegura ricœur
[TR iii, 304]. Por um lado, é através de um processo individual de leitura que
o texto revela a sua “estrutura de apelo”; por outro, só porque o leitor participa
nas expetativas sedimentadas no público é que ele é considerado um leitor
competente. o ato de ler torna-se assim um elo importante da história da rece-

324
W. iser, The implied Reader. Patterns of Communication in Prose Fiction from Bun-
yan to Beckett, Baltimore/london, 1975, cap. Xi, «the reading Process: a Phenomenological
approach»; idem, Der Akt des Lesens. Theorie aesthetischer Wirkung, münchen, 1976; trad.
fr. de evelyne sznycer: L’acte de lecture. Théorie de l’effet esthétique, Bruxelles, P. mardaga,
1985.
325
Hans robert Jauss, Literaturgeschichte als Provokation, Frankfurt, suhrkamp, 1974.
seguimos a tradução portuguesa: A literatura como provocação, Passagens, lisboa, 20032
(trad. e pref. de teresa cruz).
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 289

ção de uma obra pelo público. Deste modo, justifica-se plenamente a inclusão
da fenomenologia do ato de ler na história literária, entretanto renovada pela
estética da receção.

A)  Fenomenologia do ato individual de ler

ricœur aborda em primeiro lugar a fenomenologia do “ato de ler” indi-


vidual, pois é nesta que a retórica da persuasão encontra o seu primeiro limite,
que corresponde à sua primeira réplica. se a retórica da persuasão se apoia
sobre a coerência da estratégia do autor implicado, a fenomenologia apoia-se no
caráter inacabado do texto literário, enfatizado a primeira vez por roman ingar-
den326.
Para ingarden, um texto é inacabado, essencialmente, por duas razões: ora
porque contém diferentes vistas esquemáticas que o leitor, mediante a sua ima-
ginação, é chamado a concretizar, figurando as personagens e os acontecimen-
tos textualizados na sua mente; ora porque o mundo que ele propõe define-se
como o correlato intencional de uma sequência de frases, o qual é preciso com-
pletar, cabendo ao leitor a tarefa de fazer dele um todo, pois só deste modo o
mundo do texto pode ser, de facto, visado. Diversamente do objeto da perce-
ção, que preenche intuitivamente as expetativas do sujeito, o objeto literário só
as pode modificar. este processo móvel de modificações das expetativas do
sujeito constitui a referida concretização imaginadora e é o único que faz do
texto uma obra, resultando esta por conseguinte da interação entre o autor e o
leitor, como bem sublinha ricœur:
ce procès mouvant des modifications d’attentes constitue la concrétisation ima-
geante évoquée plus haut. il consiste à voyager le long du texte, à laisser «som-
brer» dans la mémoire, tout en les abrégeant, toutes les modifications effectuées,
et à s’ouvrir à de nouvelles attentes en vue de nouvelles modifications. ce procès
seul fait du texte une œuvre. l’œuvre, pourrait-on dire, résulte de l’interaction
entre le texte et le lecteur [ricœur, TR iii, 305, 306].

W. iser327 retoma e dilata estas considerações fenomenológicas com o inte-


ressante conceito de “ponto de vista viajante”, que exprime quer o facto de a

326
roman ingarden desenvolve este assunto em duas grandes obras: Das literarische
Kunstwerk (trad. ingl. The Literary Work of Art), Halle, 1931, tübingen, 19612 e A Cognition
of the Literary Work of Art, Northwestern university Press, 1974.
327
Paul ricoeur detém-se, particularmente, no terceiro capítulo de L’acte de lecture:
«Phénoménologie de la lecture, pp. 245-286.
290 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

totalidade do texto nunca poder ser captada de uma só vez, quer o facto de o
leitor, colocado dentro do texto literário, “viajar” com ele à medida que pro-
gride na leitura.
Há dois traços que marcam a resposta do leitor à retórica da persuasão.
estes traços são os que sublinham o caráter dialético do ato de leitura e os que
nos inspiram a falar do trabalho de leitura como se do trabalho do sonho se
tratasse.
Quanto às dialéticas que emergem do ato de leitura que trabalha o texto,
podemos apontar três. a primeira reflete-se na resposta que a leitura dá à estra-
tégia da deceção, que consiste em frustrar a expetativa criada por uma confi-
guração imediatamente legível, deixando ao leitor a responsabilidade de confi-
gurar a obra. Bom exemplo é o Ulisses de Joyce e muitos dos romances do
período moderno. Nos antípodas do leitor enfastiado por uma obra demasiado
didática, que não deixa espaço à imaginação criadora, o leitor do romance
moderno corre o risco de sucumbir sob o peso de uma tarefa impossível –
suprir a falta de legibilidade maquinada pelo autor, facto este que leva ricœur
a comentar: «la lecture devient ce pique-nique où l’auteur apporte les mots et
le lecteur la signification» (TR iii, 308).
a primeira dialética, que espelha a leitura como uma espécie de combate,
suscita uma segunda, que manifesta a leitura não apenas como uma falta de
precisão mas também como um excesso de sentido. todo o texto, mesmo
aquele que é sistematicamente fragmentário, «revela-se inesgotável à leitura,
como se, pelo seu caráter inelutavelmente seletivo, a leitura revelasse no texto
um lado não escrito» (ricœur, TR iii, 308).
É, precisamente, este lado não escrito que a leitura se esforça prioritaria-
mente por figurar. assim sendo, o texto revela-se para a leitura, pela primeira
dialética, defetivo e, pela segunda, excessivo.
a terceira dialética esboça-se no horizonte desta procura de coerência. se
esta procura resultar, o não-familiar torna-se familiar, a ponto de o leitor, sin-
tonizado com a obra, se perder nela, tornando-se a concretização numa ilusão,
um julgar que se está a ver. se, ao invés, esta procura de coerência falhar, o
não-familiar continua como tal e o leitor não entra no imaginário da obra.
Posto isto, ricœur define o que entende por uma “boa” leitura: «la “bonne”
lecture est donc celle qui tout à la fois admet un certain degré d’illusion [...]
et assume le démenti infligé par le surplus de sens, le polysémantisme de l’œu-
vre, à toutes les tentatives du lecteur pour adhérer au texte et à ses instruc-
tions» (TR iii, 308).
a “boa” leitura mantém o leitor a uma “boa” distância do texto – distân-
cia esta em que a ilusão é simultaneamente irresistível e insustentável, em que
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 291

à desfamiliarização do leitor corresponde a despragmatização do texto e do seu


autor implicado. Na verdade, o equilíbrio total entre estes dois impulsos é um
trabalho sempre incompleto.
estas três dialéticas no seu conjunto conferem à leitura um caráter dinâ-
mico e vivo e é nesta base que a teoria estética permite uma interpretação da
leitura sensivelmente diferente da que é dada pela retórica da persuasão. em
síntese:
l’auteur qui respecte le plus son lecteur n’est pas celui qui le gratifie au prix plus
bas; c’est celui qui lui laisse le plus de champ pour déployer le jeu contrasté
qu’on vient de dire. il n’atteint son lecteur que si, d’une part, il partage avec lui
un répertoire du familier, quant au genre littéraire, au thème, au contexte social,
voire historique; et si, d’autre part, il pratique une stratégie de défamiliarisation
par rapport à toutes les normes que la lecture croit pouvoir aisément reconnaître
et adopter [TR iii, 309].

Posto isto, será legítimo admitir que existe no texto sinais de um leitor
implicado (identificado com o destinatário virtual da obra e decifrável nas ins-
truções que o texto emite para o leitor real) em correlação perfeita com um
autor implicado (decifrável no estilo singular do texto), cada um deles correla-
tos ficcionais de entidades reais? ricœur denuncia a falácia da simetria. o
autor implicado é um disfarce do autor real, que desaparece ao transformar-se
no narrador imanente à obra (voz narrativa); pelo contrário, o leitor real é uma
concretização do leitor implicado, alvo da estratégia de persuasão do narrador;
face a ele, o leitor implicado permanece virtual enquanto não for atualizado. ou
seja, o processo é inverso, enquanto um pretende dissimular-se, o outro deve
aparecer: «tandis que l’auteur réel s’efface dans l’auteur impliqué, le lecteur
impliqué prend corps dans le lecteur réel» (TR iii, 311).
É por este último (o leitor real) que se interessa uma fenomenologia do
ato de ler. contrariando crenças demasiado textualistas, que defendem a auto-
nomia semântica do texto, ricœur salvaguarda a irredutibilidade do leitor real,
não o deixando coincidir totalmente com o leitor implicado (efeito variável da
estrutura do texto). e percebe-se porque é que ricœur insiste em defender a
existência de um leitor real que dá corpo ao leitor virtual, simplesmente porque
sem ele não há refiguração da obra, o leitor virtual não é suficiente para refi-
gurar a mensagem que o texto veicula. autor implicado e leitor implicado são
meras categorias literárias compatíveis com a autonomia semântica do texto.
são construtos do próprio texto e são correlatos ficcionais de seres reais, mas
a fenomenologia do ato de leitura, se quisermos dar toda a amplitude ao tema
da interação, tem necessidade de um leitor em carne e osso, que, ao efetivar
o papel do leitor pré-estruturado no e pelo texto, o transforma.
292 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

B)  Hermenêutica da receção pública de uma obra

a outra face da estética da receção que ricœur convoca para o seu estudo
é composta pela hermenêutica da receção pública de uma obra, núcleo da Esté-
tica da Receção de H. r. Jauss, autor fortemente influenciado por gadamer.
o intuito da sua obra não é o estabelecimento de uma teoria fenomenológica
do ato de ler, mas sim a renovação da história da literatura.
a tese principal da Estética da Receção de Jauss, da qual decorrem as
restantes, faz assentar o significado de uma obra literária sobre a relação dia-
lógica, que em cada época, ela estabelece com o seu público. esta tese, que
tem pontos de contacto com a de collingwood – segundo a qual a história é
a reconstituição do passado no espírito do historiador – consegue trazer para o
perímetro da obra o efeito que a mesma produz ou, para ser mais exato, o sen-
tido que lhe atribuiu o público. mais do que o efeito atual, é a “história dos
efeitos” – expressão central na hermenêutica filosófica de gadamer – que deve
ser considerada; por sua vez, esta exige a restituição do “horizonte de expeta-
tiva” (conceito husserliano) da obra literária considerada, ou seja, a restituição
de todo um sistema de referências complexamente estruturado por tradições
anteriores, concernentes ao género, ao tema, ao grau de oposição existente nos
primeiros destinatários entre a linguagem poética e a linguagem corrente. a
título de exemplo, seria impossível compreender o sentido da paródia do D.
Quixote se não pudermos reconstruir todo o sentimento de familiaridade do
público da época com os romances de cavalaria e, consequentemente, o choque
produzido por uma obra que frustra as expetativas do público. este fenómeno
da alteração do horizonte verifica-se com mais frequência em obras novas. Por
isso, «o fator decisivo para o estabelecimento de uma história literária consiste
em identificar os desvios estéticos (écarts esthétiques) sucessivos entre o hori-
zonte de expetativa preexistente e a nova obra, desvios que delimitam a receção
da nova obra. estes desvios constituem os momentos de negatividade da rece-
ção» (TR iii, 313). reconstituir o horizonte de expetativa de uma experiência
ainda desconhecida é reencontrar o jogo de questões às quais a obra propõe
uma resposta. a lógica da questão e da resposta significa que só podemos com-
preender uma obra depois de percebermos a que é que ela responde. esta
mesma lógica obriga-nos a corrigir a ideia errada de que a história é toda ela
uma história de desvios, ou seja, uma história da negatividade, porque enquanto
resposta, a receção de uma obra opera uma certa mediação entre o passado e
o presente, ou melhor, entre o horizonte de expetativa do passado e o horizonte
de expetativa do presente. Posto isto, é esta mediação histórica que possibilita
a história literária. Para Jauss – contrariamente a gadamer e a Hegel, para
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 293

quem o caráter clássico de uma obra provém da “fusão de horizontes”, que faz
a estabilização duradoira da sua significação – a perenidade das grandes obras
é apenas a «estabilização provisória da dinâmica da receção» (ricœur, TR iii,
314). aquilo que para nós é clássico não foi desde logo captado como sub-
traído ao tempo, mas como algo que abriu um novo horizonte. uma obra dita
“clássica” é uma obra aberta, com capacidade para prefigurar uma experiência
futura, contrariando a ideia de uma verdade intemporal. a história dos seus
efeitos não está concluída, pois toda a obra é não apenas uma resposta a uma
questão anterior, mas uma fonte de novas questões.
Quanto à influência social da obra de arte, Jauss recusa liminarmente as
teses estrábicas e antinómicas do estruturalismo extremo (que proíbe “sair do
texto”) e do marxismo dogmático (que vê as obras de arte como um reflexo ou
imitação natural da sociedade). Jauss situa a “função criadora da obra de arte”
ao nível do “horizonte de expetativa” de um público, coincidindo deste modo
com ricœur na crítica à estética da representação, na aceção de cópia –
recorde-se o papel de descoberta e de transformação atribuído à mimese ricœu-
riana. Jauss sublinha ainda que o “horizonte de expetativa” próprio da literatura
não coincide com o da vida quotidiana e que se uma obra nova pode criar um
desvio estético é porque existe um desvio prévio entre o conjunto da vida lite-
rária e a prática quotidiana. mas este não é o único desvio, há uma oposição
ainda mais indispensável entre linguagem poética e linguagem prática ou entre
mundo imaginário e realidade social328. a função de criação social da literatura
acontece exatamente neste ponto de articulação entre as expetativas específicas
da arte e da literatura e as expetativas que constituem a praxis quotidiana. É
por isso que só indiretamente a literatura influi sobre os costumes, criando des-
vios de segundo grau ou secundários relativamente ao desvio primário entre o
imaginário e o real quotidiano. cabe ao leitor formular as questões apropriadas
para a solução que a obra lhe oferece – questões constitutivas do problema
estético e moral suscitado pela obra. o momento em que a literatura atinge a
sua máxima influência social é, provavelmente, quando consegue colocar o lei-
tor nessa situação de interrogante.
o maior contributo da estética da receção é a constituição de uma her-
menêutica literária, que ultrapassa em larga escala o seu propósito inicial de
renovação da história literária. mas esta hermenêutica literária, que deveria

328
«c’est un trait fondamental de l’horizon d’attente sur lequel se détache la réception
nouvelle, qu’il soit lui-même l’expression d’une non-coïncidence plus fondamentale, a savoir
l’opposition, dans une culture donnée, “entre langage poétique et langage pratique, monde
imaginaire et réalité social”» (TR iii, 317).
294 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

igualar a hermenêutica teológica e jurídica, sob a égide de uma hermenêutica


filosófica parente da de gadamer, permanece como o parente mais pobre. Para
ser digna do seu título, ela tem de assumir a tripla função de compreender
(subtilitas intelligendi), de explicar (subtilitas interpretandi) e de aplicar (sub-
tilitas applicandi). a leitura não deve ficar confinada ao campo da aplicação,
ainda que este constitua o telos do processo hermenêutico, mas atravessar os
três estádios. a compreensão assume nesta estrutura triádica uma função pri-
mordial, pois é ela que regula o processo de um estádio ao outro, em virtude
do “horizonte de expetativa” que está imanente a toda a compreensão –«l’her-
méneutique littéraire est ainsi à la fois orientée vers l’application et par la com-
préhension» (ricœur, TR iii, 318).
a compreensão primária não é regulada pela lógica da pergunta e da res-
posta; a leitura, própria de uma compreensão primária, deixa o texto desenvol-
ver as suas próprias expetativas. apenas a releitura vai ao encontro das ques-
tões a que o texto é resposta. o primado atribuído à compreensão, orientadora
de uma primeira leitura do texto, explica-se pela relação primária entre conhe-
cimento e fruição, que assegura a qualidade estética da hermenêutica literária.
Jauss reconhece ao prazer estético o poder de abrir um espaço de sentido e de
compreensão onde, posteriormente, se desenrolará a lógica da questão e da res-
posta.
a aisthesis e a fruição (a dimensão estética), apesar de não se limitarem
à compreensão imediata e atravessarem os três estados da “subtilitas” herme-
nêutica – parecendo substituir a aplicação –, não são o critério final da herme-
nêutica literária. todavia, é possível reconhecer à aplicação um contorno dis-
tinto no termo de outra tríade evocada por Jauss e formada por poiesis,
aisthesis, catharsis. a experiência estética proporcionada pela aisthesis e pela
fruição da leitura abrange toda uma gama de efeitos estéticos, mas a aplicação
abrange os efeitos inerentes à catharsis. esta revela, em primeiro lugar, um
efeito mais moral do que estético, proveniente de novas avaliações e normas
inéditas que são propostas pela obra, as quais afrontam ou desafiam os costu-
mes estabelecidos. o efeito moral da catharsis deve-se, primeiramente, à sua
faculdade para exibir o poder de clarificação, de exame e de instrução exerci-
das pela obra em favor da distanciação relativamente aos nossos próprios afe-
tos. este efeito decorre, particularmente, da tendência do leitor para se identi-
ficar com o herói e se deixar guiar pelo narrador digno ou indigno de
confiança. o segundo efeito da catharsis é o poder de comunicabilidade da
obra. a catharsis constitui assim um momento diferente da aisthesis, concebido
como pura recetividade, trata-se do momento de comunicação da compreensão
que dá a perceber. Porque é depuração ou esclarecimento, a obra tem o poder
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 295

se comunicar e de ensinar. «l’aisthèsis libère le lecteur du quotidien, la cathar-


sis le rend libre pour des nouvelles évaluations de la réalité qui prendront
forme dans la relecture» (TR iii, 323). Deste modo, inicia-se um processo de
transição afetiva-cognitiva semelhante à antiga alegorese, própria da exegese
cristã e pagã. este efeito mais subtil da catharsis, que ricœur denomina de ale-
gorização (“allégorisation”), consiste em «traduzir o sentido de um texto do seu
primeiro contexto para um outro contexto, o que equivale a dizer: dar-lhe um
novo significado que ultrapassa o horizonte do sentido delimitado pela intencio-
nalidade do seu contexto original» (ibid.). É desta capacidade de alegorização,
ligada à catharsis, que o autor francês extrai a similitude entre a aplicação lite-
rária e a apreensão por analogia do passado própria da representância: «c’est
finalement cette capacité d’allégorisation, liée à la catharsis, qui fait de l’appli-
cation littéraire la réplique la plus approchée de l’appréhension analogisante du
passé dans la dialectique du vis-à-vis et de la dette» (ricœur, tr iii, 323).
termina assim o périplo por algumas teorias da leitura, escolhidas em
função do seu contributo para o problema da refiguração. resta-nos agora dis-
tinguir os traços maiores que sublinham a estrutura dialética da operação de
refiguração ficcional, postos a descoberto pelas teorias da leitura e a colocam
numa relação de paralelismo com a teoria da repesentância histórica.

1.2.2.3.  Dialéticas da refiguração: afinidades com a representância

a primeira tensão dialética emerge da comparação que não podemos dei-


xar de estabelecer entre o sentimento de dívida e de respeito científico que
acompanha a relação de representância relativamente ao passado, e a liberdade
das variações imaginativas da ficção sobre as aporias do tempo. o fenómeno
da leitura, tal como foi anteriormente analisado, permite-nos matizar esta com-
paração, impedindo uma oposição simplista. Desde logo, é preciso dizer que a
projeção de um mundo fictício consiste num processo criador complexo, que
pode ser tão orientado por um sentimento de dívida como o trabalho do his-
toriador329. o facto de a ficção não estar limitada por provas documentais não
significa que a sua liberdade seja totalmente arbitrária, pois também ela está
sujeita à dura lei da criação, que consiste em fornecer uma visão da mundivi-
dência do artista da forma mais perfeita possível. esta exigência equivale à

329
«[...] la projection d’un monde fictif consiste dans un processus créateur complexe,
qui peut n’être pas moins porté par une conscience de dette que le travail de reconstruction
de l’historien» (ricœur, TR iii, 324).
296 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

dívida do historiador e do leitor de história para com os mortos. a liberdade


das variações imaginativas só pode ser comunicada, paradoxalmente, sob o
poder constrangedor daquela visão do mundo que o autor implicado pretende
oferecer. este facto explica a angústia experimentada por inúmeros artistas
durante o processo de criação.
uma segunda tensão dialética resulta da estrutura do próprio ato de ler,
cuja dialética ternária anteriormente examinada – estratégia persuasiva fomen-
tada pelo autor implicado e dirigida ao leitor, inscrição desta estratégia na con-
figuração literária como forma de prescrever a leitura, sinergia entre leitor e
obra (estética da receção) – é comparável (mas não idêntica) à que pontua a
relação de representância, suscitada pelo enigma do caráter passado do passado,
a saber, a dialética do mesmo, do outro e do análogo. assim, a retórica da
ficção põe em cena um autor implicado que, através de uma estratégia sedutora,
tenta tornar o leitor idêntico a si próprio. todavia, esta mesma manobra de
charme sob o signo do mesmo conduz a uma reação de afastamento, sob o
signo do outro, quando o leitor se apercebe que a sua leitura está a ser pres-
crita pelo texto e se distancia dele, tomando, nesse momento, mais consciência
do afastamento existente entre as expetativas que o texto desenvolve e as suas,
enquanto indivíduo culto da quotidianidade e enquanto membro de um público
formado por toda uma tradição. esta oscilação entre o mesmo e o outro é
superada apenas pela operação que Jauss e gadamer caracterizam como fusão
de horizontes e que pode ser tida como o tipo-ideal da leitura. a convergência
entre escrita e leitura estabelece uma relação analogizante entre as expetativas
criadas pelo texto e as trazidas pela leitura330.
ricœur descortina uma outra tensão dialética, proveniente da relação entre
comunicabilidade e referencialidade (salvaguardando as devidas reservas que
este termo merece), no processo de refiguração operado pela leitura. esta dia-
lética pode ser abordada de dois pontos opostos. Por um lado, a estética da
receção não pode falar de comunicação sem falar de referência, uma vez que
aquilo que é comunicado, em última análise, é, para lá do sentido de uma obra,
o mundo que ela projeta e que constitui o seu horizonte. Por outro lado, a rece-
ção da obra só se livra da pura subjetividade do ato individual de ler se o leitor

330
«cette oscillation entre le même et l’autre n’est surmontée que par l’opération
caractérisée par gadamer et Jauss comme fusion des horizons et qui peut être tenue pour
l’idéal-type de la lecture. Par-delà l’alternative de la confusion et de l’aliénation, la mise en
convergence de l’écriture et de la lecture tend à établir, entre les attentes créés par le texte
et celles apportées par la lecture, une relation analogisante, qui n’est pas sans rappeler celle
dans laquelle culmine la relation de représentance du passé historique» (ricœur, TR iii, 326).
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 297

confrontar a sua leitura com a normatividade e a canonicidade instauradas pela


comunidade dos leitores em que está inserido. esta comunidade que lê confere
dimensão histórica à receção do texto. entre a “estrutura de apelo” própria do
mundo do texto que nos interpela e a comunicabilidade, característica de um
“ler-em-comum”, nasce uma relação de reciprocidade, intrinsecamente constitu-
tiva do poder de refiguração das obras de ficção.
uma quarta e última dialética concerne as duas funções divergentes que
pode assumir a leitura: ora aparece a interromper o curso da ação ora a relan-
çar para a ação. estas duas perspetivas sobre a leitura resultam diretamente do
seu papel de confronto e de ligação entre o mundo imaginário do texto e o
mundo efetivo do leitor. enquanto o leitor submete as suas expetativas às que
são apresentadas pelo texto, ele como que se irrealiza na proporção da irrea-
lidade do mundo fictício para o qual emigra. Neste caso, a leitura torna-se um
lugar irreal, que dispensa a reflexão. mas, se o leitor assimila – consciente ou
inconscientemente – os ensinamentos das suas leituras à sua visão pessoal do
mundo, a leitura é mais do que um lugar de fixação, é um meio que ele atra-
vessa. este confronto entre “mundo do texto” e “mundo do leitor” faz da lei-
tura ora um êxtase ora um envio. o tipo-ideal da leitura (fusão sem confusão
dos horizontes de expetativa do texto e do leitor) une estes dois momentos da
refiguração numa sempre frágil unidade de êxtase e envio. Para ricœur trata-
-se de uma unidade paradoxal, na medida em que quanto mais o leitor se irrea-
liza na leitura, mais profunda será a influência da obra sobre a realidade social.
o mesmo não se verifica na pintura minimalista e abstrata? «N’est-ce pas la
peinture la moins figurative qui a le plus de chance de changer notre vision du
monde?» (TR iii, 328).

1.2.3.  Entrecruzamento de história e ficção

refiguração efetiva do tempo, tornado assim tempo humano


através do entrecruzamento da história e da ficção (TR iii, 329).

a epígrafe da autoria de ricœur expressa a meta final deste percurso de


aproximação progressiva entre história e ficção e, podemos acrescentar, de todo
o itinerário intelectual dialético empreendido pelo autor em Temps et Récit331.

331
«avec ce chapitre, nous atteignons le but qui n’a cessé de régir la progression de
nos investigations, à savoir, la refiguration effective du temps, devenu ainsi temps humain, par
l’entrecroisement de l’histoire et de la fiction» (TR iii, 329).
298 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

Para atingir este ponto de confluência, explica o próprio, foi fundamental passar
pelas fases precedentes de heterogeneidade e de paralelismo. as aporias reve-
ladas pela fenomenologia do tempo foram o pretexto para reunir frente a frente
história e ficção, tendo a primeira respondido com o tempo histórico (resultante
da reinscrição do tempo vivido sobre o tempo cosmológico) e a segunda com
as variações imaginativas (resultantes da ficcionalização do tempo). respostas
diferentes – podemos dizer, mesmo opostas – mas que constituem um primeiro
ponto de atração, ou melhor, de confronto, entre as duas disciplinas. em
seguida, a teoria da leitura aproximou história e ficção, tendo criado um jogo
de espelhos entre a representância do passado histórico e a transposição do
mundo fictício do texto para o mundo efetivo do leitor. uma teoria alargada da
leitura mostrou o ato de ler não confinado à receção de textos literários, pois,
lembra-nos ricœur, não somos menos leitores de história do que de romances
– «toute graphie, dont l’historiographie, relève d’une théorie élargie de la lec-
ture» (ricœur, TR iii, 330). a leitura é a responsável pelo envolvimento mútuo
de história e ficção. e é, justamente, de uma teoria alargada da receção que
parte ricœur para as análises que consagra ao entrecruzamento de história e
ficção. Por entrecruzamento da história e da ficção ricœur entende «a estrutura
fundamental, tanto ontológica como epistemológica, em virtude da qual a his-
tória e a ficção só concretizam cada uma a sua respetiva intencionalidade
emprestando mutuamente à intencionalidade uma da outra» (TR iii, 330).
a referida concretização apela à teoria da narrativa, mormente, à noção
desenvolvida por ricœur em La métaphore vive do “ver-como”, com a qual
caracterizou a referência metafórica e depois, com a ajuda de H. White, tam-
bém a conexão da representância da consciência histórica com a referência do
passado, através de uma apreensão “analogizante”. mas o que ricœur demons-
tra neste capítulo final é que esta concretização só é alcançada quando a his-
tória se serve de algum modo da ficção para refigurar o tempo e a ficção se
serve da história com o mesmo intuito. «cette concrétisation mutuelle marque
le triomphe de la notion de figure, sous la forme du se figurer que...» (ricœur,
TR iii, 331).
a referência por traços ao real passado usa a imaginação que aprende na
referência metafórica comum a todas as obras poéticas, pois a reconstrução do
passado obriga ao uso da imaginação; porém, na medida em que é orientada
para e pelo real do passado, a referência por traços empresta à referência meta-
fórica uma parte do seu dinamismo referencial, pois toda a narrativa é narrada
como se tivesse tido lugar, como o atesta os tempos verbais do passado usados
para narrar o irreal. É nesse sentido que se pode dizer que a ficção deve tanto
à história como a história à ficção e que, por isso, existe uma referência cru-
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 299

zada entre historiografia e narrativa ficcional. ambas cruzam-se sobre a tempo-


ralidade da ação humana, e desse cruzamento dos modos referenciais resulta a
refiguração comum do tempo humano.

1.2.3.1.  Ficcionalização da história: imaginação, metáfora, imagem

anteriormente, por diversas vezes, referimos o papel da imaginação na


narrativa histórica, nomeadamente, nos processos de configuração e de imputa-
ção causal singular; agora importa salientar já não o papel da imaginação no
processo de explicação ou de configuração, mas sim o modo como o imaginá-
rio está presente e se incorpora no “real” passado, isto é, na intencionalidade
do “ter-sido”, do “já-não-agora”, sempre salvaguardando a radical disseme-
lhança entre passado real e mundo irreal332.
Quanto mais questionarmos o estatuto ontológico do passado histórico, as
suas características de base, de modo muito particular, o caráter inobservável do
“ter-sido”, mais nos daremos conta da presença do imaginário. como tal,
ricœur retoma as três aproximações que propôs anteriormente ao passado his-
tórico ou ao “ter-sido” tal como foi, para nelas descortinar o lugar da imagi-
nação.

a tese mais realista sobre o passado histórico diz-nos que a história


reinscreve o tempo da narrativa sobre o tempo do universo. trata-se de uma
tese realista na medida em que a história submete a sua cronologia à única
escala do tempo, comum à “história” da terra, dos astros, do sistema solar e
das galáxias, o que constitui a especificidade do modo referencial da historio-
grafia333. mesmo nesta tese realista o imaginário trabalha, como o comprovam
os conectores que ligam o tempo vivido ao tempo do mundo, dando origem ao
tempo histórico. o calendário, por exemplo, resulta do mesmo génio inventivo
que atua na construção do gnómon, o mais antigo instrumento astronómico de
que se tem conhecimento para medir o movimento do sol. J. t. Fraser diz que
se o gnómon conserva algo do seu significado etimológico de “conselheiro”, de
“inspetor”, de “conhecedor”, é devido a uma atividade de interpretação que
regula a construção deste aparelho tão simples334. Do mesmo modo que um

332
«[...] la question est justement de montrer de quelle façon, unique en son genre,
l’imaginaire s’incorpore à la visée de l’avoir-été, sans en affaiblir la visée “réaliste”» (TR iii,
331).
333
«cette réinscription du temps du récit dans le temps de l’univers, selon une unique
échelle, demeure la spécificité du mode référentiel de l’historiographie» (ricœur, TR iii, 331).
300 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

intérprete faz a tradução contínua de uma língua para outra, juntando dois uni-
versos linguísticos, o gnómon une dois processos, de acordo com determinadas
hipóteses sobre o mundo: um processo é o movimento do Sol, ao qual se junta
o da vida de quem consulta o gnómon; a hipótese diz respeito aos princípios
implícitos na construção e no funcionamento do quadrante solar. tal como o
calendário, o quadrante pertence a dois universos: por um lado, pertence ao
universo da vida humana, por outro, ao universo astronómico. só porque se
acredita que é possível fazer derivar sinais relativos ao tempo a partir do movi-
mento da sombra é que se põem estes dois mundos em relação. Por esta
crença, o homem organiza a sua vida em função dos movimentos da sombra;
porém, esta, porque é independente, não se dobra ao ritmo das necessidades e
dos desejos do homem. Para ler o gnómon tem que haver divisões horárias e
curvas concêntricas, que informam, respetivamente, sobre a hora (pela orienta-
ção da sombra sobre o quadrante solar) e sobre a estação do ano (através da
extensão da sombra ao meio-dia).
mettre en parallèle deux cours hétérogènes d’événements, former une hypothèse
générale sur la nature dans son ensemble, construire un appareil approprié, telles
sont les principales démarches inventives qui, incorporées à la lecture du cadran
solaire, font de celui-ci une lecture de signes, une traduction et une interprétation
[...] [TR iii, 333].

relativamente ao calendário, passa-se algo semelhante, mas a sua constru-


ção e leitura implica operações intelectuais singularmente mais complexas: cál-
culos numéricos aplicados às diferentes periodicidades implicadas, de forma a
torná-las mensuráveis; aspeto institucional e político que acentua o caráter sin-
tético da conjunção dos aspetos astronómicos com a vida social. independente-
mente das diferenças que possamos apontar entre o relógio e o calendário, ler
o calendário exige uma interpretação de signos comparável à leitura do qua-
drante solar e do relógio. sobre a base de um sistema periódico de datas, o
calendário permite identificar um acontecimento presente efetivo – que traz
coimplicados um passado e um futuro – com uma data neutra e abstrata. se a
datação consiste num fenómeno sintético, através do qual um presente vivo é
identificado com um instante qualquer no calendário perpétuo335, esta prática é
equivalente à identificação de um como-se presente a um instante qualquer, ou

334
The Genesis and Evolution of Time. A critic of Interpretation in Physics, the uni-
versity of massachusetts Press, amherst, 1982.
335
«la datation d’un événement présente ainsi un caractère synthétique, par lequel un
présent effectif est identifié à un instant quelconque» (ricœur, TR iii, 333).
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 301

seja, as datas são associadas a presentes potenciais ou a presentes imaginados.


Deste modo, todas as recordações acumuladas pela memória coletiva podem tor-
nar-se acontecimentos datados, graças à sua reinscrição no tempo do calendário.
ricœur estende este mesmo raciocínio a todos os outros conectores entre
o tempo narrativo e o tempo universal. também a sequência de gerações e o
fenómeno do reino de predecessores, contemporâneos e sucessores revestem um
caráter misto (biológico e social), que acentua o aspeto imaginativo336.
No fenómeno do traço é onde se torna mais visível o caráter imaginário
dos conectores que instauram o tempo histórico. a própria estrutura mista do
vestígio enquanto efeito-signo pressupõe a mediação imaginária, porque esta
estrutura exprime uma atividade sintética complexa que implica quer inferências
de tipo causal (efeito), aplicadas ao traço enquanto marca deixada, quer ativi-
dades de interpretação (signo) ligadas ao seu caráter significante, enquanto
marca presente de algo passado. Neste sentido, a atividade sintética que veri-
ficamos no traço é paralela à que está na origem do gnómon e do calendário.
a mediatização e a esquematização do vestígio acontecem por intermédio das
atividades de preservação, recolha, reunião, consulta e leitura de arquivos e
documentos, para fazer do vestígio o último pressuposto da reinscrição do
tempo vivido no tempo puramente sucessivo. o caráter imaginário das ativida-
des que mediatizam e esquematizam o traço verifica-se no trabalho de reflexão
que acompanha a interpretação de uma relíquia, de um fóssil, de uma ruína, de
uma peça de museu, de um monumento: «[...] on ne leur assigne leur valeur
de trace, c’est-à-dire d’effet-signe, qu’en se figurant le contexte de vie, l’envi-
ronnement social et culturel, bref, [...] le monde qui, aujourd’hui, manque, si
l’on peut dire, autour de la relique» (TR iii, 335).
Falar de “figura” e de “figurar-se” no contexto da atividade imaginativa
é fazer apelo às teorias que descrevemos no âmbito da representância. De facto,
a despeito de os conectores do tempo histórico revelarem uma inequívoca
faceta imaginativa, o papel mediador do imaginário discerne-se mais facilmente
na análise do caráter passado do passado (“passéité du passé”). Por um lado,
verificámos que o conceito de “representância”, porque exprime a reivindicação

336
«il est toujours possible d’étendre le souvenir, par la chaîne des mémoires ances-
trales, de remonter le temps en prolongeant par l’imagination ce mouvement régressif [...]. en
ce sens, le réseau des contemporains, des prédécesseurs et des successeurs schématise – au
sens kantien du terme – la relation entre le phénomène plus biologique de la suite des géné-
rations et le phénomène plus intellectuelle de la reconstruction du règne des contemporains,
des prédécesseurs et des successeurs. le caractère mixte de ce triple règne en souligne le
caractère imaginaire» (ricœur, TR iii. 334).
302 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

de um face-a-face (“vis-a-vis”) já (re)volvido, começa por constituir um entrave


ao realismo espontâneo do historiador. De facto, o conceito de representância,
pelo seu poder de incitação (resultante da ideia ricœuriana da dívida para com
os mortos) e de correção ou revisão da construção histórica, distancia-se da
mera representação ou reduplicação, o que significa que toda a construção his-
tórica é uma re-construção. Por outro lado, o caráter de elisão do “vis-a-vis” ou
da intencionalidade impeliu ricœur para o jogo lógico onde as categorias do
mesmo, do outro e do análogo dão coerência ao enigma sem o solucionar.
contudo, em cada uma destas fases do jogo lógico, o imaginário do “ter-sido”
impõe-se como «servidor obrigado da representância» («serviteur obligé de la
représentance» [ricœur, TR iii, 335]) e aí se aproxima da operação do “figu-
rar-se que”.
No caso dos defensores do Mesmo, representados por collingwood, acen-
tua-se, como tivemos oportunidade de sublinhar, a íntima conexão entre a ima-
ginação histórica e a “reconstituição” (“reenactement”) do passado. esta é o
“telos” ou o fim para o qual converge a imaginação histórica que, por sua vez,
constitui o “órganon” da “re-constituição”. Na categoria do Outro, «para expri-
mir o momento do revolvido na representância do passado, é ainda o imaginá-
rio que impede a alteridade de soçobrar no indizível» (ricœur, TR iii, 335,
336), ao evitar a alteridade absoluta. só por uma transferência de sentido do
mesmo para o outro, processada em simpatia e em imaginação o outro se
torna próximo. recordemos a ideia de emparelhamento (“Paarung”) de duas
consciências tematizada por Husserl e a ideia de Dilthey de que toda a inteli-
gência histórica se enraíza na capacidade de um sujeito se fazer transportar para
uma vida psíquica outra. É esta transferência “analogizante” que abre passagem
ao análogo e ao recurso à tropologia de Hayden White, da qual ricœur extraiu
um sentido que retira toda a carga positivista à expressão herdada de ranke:
conhecer o passado tal como (“wie”) efetivamente aconteceu. a função repre-
sentativa da imaginação histórica reside neste “tal como” que, interpretado
como metáfora, metonímia, sinédoque e ironia, ganha um valor tropológico.
o passado é o que eu teria visto se lá estivesse, do mesmo modo que o outro
lado das coisas é aquilo que eu veria se as visse do lugar onde está aquele que
vê. Deste modo, a tropologia de H. White transforma-se no imaginário da
“representância” 337. a chave da comparação entre perceção presente e conheci-

337
«[...] le passé, c’est ce que j’aurais vu, dont j’aurais été le témoin oculaire, si j’avais
été là, de même que l’autre côté des choses est celui que je verrais si je les apercevais de
là où vous les considérez. ainsi la tropologie devient l’imaginaire de la représentance»
(ricœur, TR iii, 336).
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 303

mento histórico, cujo objeto não é observado nem observável, reside neste “do
mesmo modo que” 338.

Depois de termos revisitado o passado datado e o passado reconstruído,


resta-nos agora o passado refigurado para nos interrogarmos acerca da sua figu-
ratividade específica. também no trabalho de refiguração ricœur encontra tra-
ços do imaginário, que relevam apenas da narrativa ficcional e por ela são
explicitados. estes vêm enriquecer as mediações imaginárias e colaboram no
entrecruzamento da ficção e da história na refiguração do tempo. referimo-nos
aos traços já aludidos na expressão “figurar-se”, que conferem ao enfoque do
passado (“visée du passé”) um preenchimento quase intuitivo. Dividem-se em
duas modalidades. uma primeira engloba os traços do imaginário que recorrem
diretamente à função metafórica do “ver-como”. uma segunda diz respeito à
vivacidade imagética que o historiador deve conferir a acontecimentos únicos
na história da humanidade e que urge não esquecer.
a partir do momento em que se admite que a escrita da história não se
acrescenta extrinsecamente ao conhecimento histórico, mas forma um só corpo
com ele, podemos admitir que a história imita na sua escrita os tipos de com-
posição narrativa herdados da tradição literária. É isso que propõe Hayden
White, quando toma de Northrop Frye as categorias literárias do trágico, do
cómico, do romanesco, da ironia e as emparelha com os tropos da tradição
retórica. estes subsídios que a história pede à literatura não se destinam apenas
à composição ou à construção da intriga, eles servem também para a função
representativa da imaginação histórica: «[...] nous apprenons à voir comme tra-
gique, comme comique, etc., tel enchaînement d’événements» (TR iii, 337). Daí
que muitas obras históricas, hoje claramente ultrapassadas em termos científi-
cos, mantenham a perenidade pela forma como a sua arte poética e retórica se
ajusta à sua maneira própria de ver o passado. Não admira, pois, que se possa
apreciar uma mesma obra como um grande livro de história e como um admi-
rável romance. ademais, diz ricœur: «l’étonnant est que cet entrelacement de
la fiction à l’histoire n’affaiblit pas le projet de représentance de cette dernière,
mais contribue à l’accomplir» (ibid.).

338
Joaquim teixeira, no seu estudo sobre ipseidade e alteridade em ricœur, observa que
também aqui (na aproximação ao passado histórico) ipseidade e alteridade não se opõem total-
mente, sob pena de caírem na pura indizibilidade e impensabilidade. e acrescenta: «esta com-
preensão lógica e analógica do outro em geral recebe, no caso específico do outro histórico
(dos outros homens passados com que estamos «em dívida»), um prolongamento afetivo, poé-
tico («em imaginação e simpatia») e ético («dívida» para com os mortos)» [2004, i: 267].
304 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

o efeito ficcional do “ver-como” encontra-se multiplicado por diversas


estratégias retóricas que as teorias da leitura analisadas anteriormente fazem
emergir. «Podemos ler um livro de história como um romance» – «on peut lire
un livre d’histoire comme un roman» (ibid.) – e, fazendo-o, aderimos ao pacto
de leitura resultante do acordo entre a voz narrativa e o leitor implicado, em
virtude do qual o leitor adere à ilusão e suspende a sua descrença. o leitor
concede ao historiador o direito exorbitante de conhecer as almas. cobertos por
este direito, os historiadores antigos colocavam na boca dos seus heróis discur-
sos inventados, que os documentos não comprovavam mas tornavam plausíveis,
como teremos oportunidade de constatar na obra de tucídides. estas incursões
fantasiosas estão vedadas aos historiadores modernos, mas eles não fazem um
apelo menor, sob formas mais subtis, ao génio romanesco, quando se esforçam
por reconstituir (“réefectuer”) ou repensar um determinado cálculo de fins e de
meios. esta maneira de pintar a cena ou de dar vivacidade a uma situação ou
a um discurso, como forma de obter um efeito discursivo, é mencionada por
aristóteles na Retórica. a elocução ou a “dictio” tem a virtude de “pôr sob os
olhos” e assim de “fazer ver”. semelhante “fazer ver” introduz-nos numa autên-
tica ilusão controlada339, uma ilusão de ordem estética, em que voluntariamente
se suspende a incredulidade e se permite que este “julgar ver” da crença ceda
o passo a uma espécie de perceção (do) presente340.
uma última modalidade de ficcionalização da história, muito cara a
ricœur, é composta por aqueles acontecimentos que, numa comunidade histó-
rica, são considerados fundadores ou refundadores e que formam a sua identi-
dade coletiva341. trata-se de acontecimentos que geram intensos sentimentos éti-
cos, seja de comemoração fervorosa seja de execração, de indignação,

339
«Je parlerais volontiers d’illusion contrôlée pour caractériser cette heureuse union
qui fait, par exemple, de la peinture de la révolution française par michelet une œuvre lit-
téraire comparable à Guerre et Paix de tolstoï, dans laquelle le mouvement procède en sens
inverse de la fiction vers l’histoire et non plus de l’histoire vers la fiction» (TR iii, 338).
340
em La mémoire, l’histoire, l’oubli, ricœur retomará este tema da imagem e do
“fazer ver”, dando-lhe um mais amplo destaque. com a ajuda das reflexões de louis marin,
ricœur desenvolve toda uma argumentação que visa pôr em relevo os privilégios retóricos da
imagem no momento mais específico da representação histórica (MHO, 339-358).
341
«Je pense à ces événements qu’une communauté historique tient pour marquants,
parce qu’elle y voit une origine ou un ressourcement. ces événements, qu’on dit en anglais
“epoch-making”, tirent leur signification spécifique de leur pouvoir de fonder ou de renforcer
la conscience d’identité de la communauté considérée, son identité narrative, ainsi que celle
de ses membres» (ricœur, TR iii, 339).
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 305

lamentação, compaixão, apelo ao perdão. Não pode o historiador ignorar estes


sentimentos, ainda que queira, sobretudo quando se trata de acontecimentos
recentes como auschwitz, cuja neutralização ética – que até pode convir ao
progresso da história que procura distanciar-se dos acontecimentos para melhor
os compreender e explicar – não é possível nem desejável. ricœur diz que,
neste caso, impõe-se a ordem bíblica do “Zakhor” (lembra-te), a qual não sig-
nifica necessariamente um apelo à historiografia (TR iii, 339). isto não significa
que o autor defenda que o historiador deva abandonar a regra da imparcialidade
e do distanciamento, apenas que deve ter sempre em conta o princípio ético.
Não obstante, ricœur desconfia das comemorações reverentes dos grandes
homens e dos grandes feitos históricos, porque, geralmente, este tipo de come-
moração anda aliado à história dos vencedores, mas salvaguarda que não é pos-
sível nem desejável ignorar a admiração, a veneração e o reconhecimento342.
relembra que o tremendum fascinousum de que fala r. otto e que constitui o
núcleo emocional do sagrado, que por sua vez é uma dimensão inexpugnável
da história, tem uma outra face que importa não esquecer: o horrendum. se o
horror é o negativo da admiração, a execração é o da veneração. os aconteci-
mentos do horror não podem nunca ser esquecidos. o horror, afirma ricœur,
constitui a motivação ética final da história das vítimas. as vítimas de aus-
chwitz representam na nossa memória todas as vítimas da história343.
a ficção pode desempenhar um papel importante na recordação do horror
e da admiração, cujo caráter de unicidade importa expressar. o horror, tal como
a admiração, exercem na nossa consciência histórica uma função específica de
individuação, que não pertence nem à lógica da especificação nem ao processo
de individuação lógica patente, por exemplo, na “lógica da individualidade” de
P. Veyne. Daí que ricœur prefira adotar os termos de acontecimentos unica-
mente únicos para distinguir esta individuação específica do horror da indivi-
duação lógica (produzida pela razão) e da individuação da história factual (feita
pelo tempo). enquanto as outras formas de individuação pertencem ao trabalho
de explicação, cuja tarefa consiste em religar, o horror isola, «tornando incom-

342
«ce qui rend suspecte la commémoration révérencieuse, c’est son affinité avec l’his-
toire des vainqueurs, bien que je tienne l’élimination de l’admiration, de la vénération, de la
pensée reconnaissante pour impossible et peu souhaitable» (ricœur, TR iii, 340).
343
como veremos no próximo capítulo, em que analisaremos as reflexões de ricœur
acerca de história, memória e esquecimento, este tema da comemoração associado aos abusos
da memória aparecerá como um dos motivos maiores de redação de La mémoire, l’histoire,
l’oubli.
306 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

parável, incomparavelmente único, unicamente único» (TR iii, 341). o horror é


a inversão, a face negativa da admiração: o Holocausto é uma revelação nega-
tiva, é um anti-sinai. o conflito latente entre a religação individuante da expli-
cação e o isolamento específico do horror não deve conduzir a nenhuma dico-
tomia perniciosa entre uma história que se limitaria a dissolver o acontecimento
na explicação e uma réplica puramente emocional, que dispensaria a reflexão
sobre o impensável. o ideal é haver uma valorização mútua, pois «quanto mais
explicamos historicamente, mais indignados ficamos; quanto mais tocados
somos pelo horror, mais procuramos compreender» (ricœur, TR iii, 341).
esta dialética assenta na própria natureza da explicação histórica, a qual
faz da retrodicção uma implicação causal singular. Posto isto, explicação his-
tórica e individualização de certos acontecimentos capazes de gerar horror ou
admiração não são posições antitéticas, devido à singularidade da explicação
autenticamente histórica.
o poder da ficção, neste caso específico, reside na criação da “ilusão da
presença”, mas ilusão controlada pela distância crítica. também aqui cabe ao
imaginário da “representância” pintar colocando sob os olhos. esta ilusão não
tem como função agradar ou distrair, mas estar ao serviço da individuação do
unicamente único, efeito do horror e da admiração.
l’individuation par l’horrible, à laquelle nous sommes plus particulièrement atten-
tifs, resterait aveugle en tant que sentiment, aussi élevé et profond soit-il, sans la
quasi-intuitivité de la fiction. la fiction donne au narrateur horrifié des yeux. Des
yeux pour voir et pour pleurer [ricœur, TR iii, 341].

tal facto pode comprovar-se na recente literatura sobre o Holocausto,


onde a explicação histórica se intercala entre a fria listagem dos cadáveres e a
legenda viva das vítimas – explicação difícil e talvez impossível de escrever de
acordo com as regras da imputação causal singular.
Fundindo-se com a história, a ficção fá-la remontar à sua origem comum
na epopeia. o que a epopeia tinha feito no domínio do admirável e do gran-
dioso, transmitindo e preservando a glória efémera dos heróis, a legenda das
vítimas – como uma espécie de epopeia negativa que preserva a memória do
sofrimento – fá-lo no domínio do horrível. Nos dois casos, a ficção coloca-se
ao serviço do inesquecível, permitindo à historiografia igualar a memória.
É legítimo que a historiografia não se interesse pela memória e apenas pela
curiosidade, enveredando pelo exotismo, mas há crimes que de modo algum se
podem esquecer, «há vítimas cujo sofrimento grita menos por vingança do que
por narração» (ricœur, TR iii, 342). somente a vontade de não esquecer pode
evitar que estes crimes se voltem a repetir.
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 307

reencontraremos estes temas no próximo capítulo. De apontamentos cir-


cunscritos à figuratividade do passado refigurado, em Temps et Récit, passarão
a protagonistas no programa de La mémoire, l’histoire, l’oubli, fornecendo as
grandes linhas de reflexão que ricœur estabelece para a sua obra.

1.2.3.2.  Historicização da ficção: tempo verbal e verosimilhança

Do mesmo modo que a historiografia é favorecida por traços do imaginá-


rio que vai buscar à ficção, também a ficção não pode negar os contributos da
historiografia. ricœur propõe-se examinar a hipótese segundo a qual a narrativa
ficcional imita, de uma determinada forma, a narrativa histórica, com base na
premissa de que contar o que quer que seja é contar como se passou (cf.
ricœur, TR iii, 343-348). tentemos apurar indícios que confirmem que este
“como se passou” é essencial à significação própria da narrativa. encontramos
dois. um primeiro é de ordem estritamente gramatical: as narrativas são con-
tadas no tempo passado; a própria fórmula inicial “era uma vez...” que marca,
no conto tradicional, a entrada na narrativa refere-se ao passado. É claro que
os tempos verbais formam um sistema infinitamente mais complexo do que a
representação linear do tempo, tempo este muitas vezes relacionado com a
vivência temporal expressa em termos de presente, passado e futuro; mas a
fenomenologia da experiência temporal também já demonstrou que há múltiplos
aspetos não lineares do tempo e há significados da noção de passado que dima-
nam destes aspetos não lineares. logo, o tempo dos verbos pode ser relacio-
nado com o tempo humano através de outras modalidades de temporalização
que não a linear. Justamente, um dos deveres da ficção é detetar e explorar
algumas destas significações temporais que a vivência quotidiana nivela ou
oblitera. assim sendo, não parece justo dizer que o pretérito assinala somente
a entrada da narrativa sem nenhuma significação temporal. Parece bem mais
produtivo admitir que toda a narrativa tem que ver com um passado fictício,
fictício porque quase-passado temporal. o quase-passado diz respeito àqueles
acontecimentos de uma narrativa ficcional que são factos passados para a voz
narrativa que os narra – voz que é o equivalente fictício do autor real impli-
cado. uma voz que conta o que para ela teve lugar.
selon cette hypothèse, les événements racontés dans un récit de fiction sont des
faits passés pour la voix narrative que nous pouvons tenir ici pour identique à
l’auteur impliqué, c’est-à-dire à un déguisement fictif de l’auteur réel. une voix
parle qui raconte ce qui, pour elle, a eu lieu. entrer en lecture, c’est inclure dans
le pacte entre le lecteur et l’auteur la croyance que les événements rapportés par
la voix narrative appartiennent au passé de cette voix [ricœur, TR iii, 344].
308 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

Descobre-se aqui uma relação circular: assim como a história é quase-fic-


tícia, também a ficção é quase-histórica. a história é quase fictícia, a partir do
momento em que a quase-presença dos acontecimentos postos “sob os olhos”
do leitor, por uma narrativa, suprime, pela sua intuitividade e vivacidade, a eli-
são própria do caráter passado do passado, bem ilustrada pelos paradoxos da
“representância”. Por sua vez, é enquanto quase-histórica que a ficção dá ao
passado esta vivacidade de evocação que faz de um grande livro de história
uma obra-prima literária. então, a ficção é quase-histórica na medida em que
os acontecimentos irreais que narra são como factos passados para a voz nar-
rativa que se dirige ao leitor; assemelhando-se deste modo a acontecimentos
passados e assemelhando-se a ficção à história.
um segundo motivo para acreditar na historicização da narrativa de ficção
(na influência do “como-se passado” sobre a narrativa ficcional), encontra-o
ricœur na regra de ouro da Poética aristotélica: toda a narrativa deve ser
necessária ou verosímil. o estagirita defende que a história narra o que é efe-
tivo e a poesia o que é verosímil, não atribuindo qualquer significado temporal
à verosimilhança, pois o filósofo não pretende fazer uma distinção entre pas-
sado e presente, mas antes entre geral e particular: «[o geral] é aquilo que
certa pessoa dirá ou fará, de acordo com a verosimilhança ou a necessidade, e
é isso que a poesia procura representar [...] o particular é, por exemplo, o que
fez alcibíades ou o que lhe aconteceu» (aristóteles 2004: 1451 b 6, 11).
apesar desta omissão temporal, a verosimilhança que se exige para o
geral ou para o universal não pode deixar de dizer respeito, mesmo para aris-
tóteles, ao que designamos de quase-passado. o próprio aristóteles corrobora
esta leitura ao dizer que os trágicos são louvados por se apoiarem em nomes
de homens reais, tornando as suas histórias mais persuasivas, pois o possível é
mais persuasivo. o que nunca aconteceu é mais difícil de acreditar, ao passo
que o que aconteceu é possível344. em suma, aristóteles, mesmo sem questionar
se ulisses, Édipo ou agamémnon são personagens reais do passado, sugere que
para ser persuasivo o provável deve ter uma relação de verosimilhança com o
“ter-sido”. a tragédia deve simular um mergulho na legenda, cuja primeira fun-
ção é religar a memória e a história com as camadas arcaicas do reino dos pre-
decessores.

344
«Na tragédia, porém, os poetas prendem-se a nomes reais e a razão disso é que o
possível é fácil de acreditar. Na verdade, nós não acreditamos que coisas que ainda não acon-
teceram sejam possíveis; ao contrário, pelo facto de terem acontecido, torna-se evidente que
eram possíveis, pois não teriam ocorrido se fossem impossíveis» (aristóteles 2004: 1451 b
15-18).
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 309

No entanto, a verosimilhança de que fala aristóteles não deve ser confun-


dida com uma forma realista de fazer literatura, que consiste na imitação ou
reprodução fiel do real, levando a uma aproximação demasiado perigosa da lite-
ratura ficcional com a história. a verdadeira “imitação da ação”, defende
ricœur, encontra-se naquelas obras de arte que não pretendem ser um reflexo
direto de uma época, pois «a imitação, no sentido vulgar do termo, é aqui a
inimiga por excelência da mimesis»345.
uma obra de arte cumpre a sua verdadeira função mimética quando corta
com este tipo de verosimilhança. só deste modo o quase-passado da voz nar-
rativa se distingue inteiramente do passado da consciência histórica, identifi-
cando-se com o verosímil, o provável. o verosímil é o que poderia ter acon-
tecido (no passado), e é isso que a ficção deve imitar – «telle est la note
«passéiste» qui résonne dans toute revendication de vraisemblance, en dehors
de toute relation de reflet avec le passé historique» (ricœur, TR iii, 346).
as afinidades encontradas por ricœur entre o caráter quase-fictício da his-
tória e o caráter quase-histórico da ficção permite a cada uma manifestar algu-
mas potencialidades escondidas. Quanto ao caráter quase-histórico da ficção,
ricœur reconhece-lhe a virtude de detetar o que de ficcionável existe no pas-
sado, isto é, o que não aconteceu mas podia ter acontecido: «le quasi-passé de
la fiction devient ainsi le détecteur des possibles enfouis dans le passé effectif»
(TR iii, 347).

assim, a verosimilhança (“o que podia ter acontecido”) que propunha


aristóteles abrange os factos possíveis do real e do irreal ou, como diz ricœur:
«les potentialités du passé “réel” et les possibles “irréels” de la pure fiction»
(TR iii, 347).
Por conseguinte, se, externamente, a ficção aparece separada da história,
devido às constrições impostas pela prova documental à investigação e à escrita
da história, internamente, o quase-passado serve de laço que une a ficção à his-
tória, quase-passado que identificamos com as constrições da verosimilhança:
«libre de..., l’artiste doit encore se rendre libre pour... si ce n’était pas le cas,

345
«ce n’est pas lorsque le roman exerce une fonction historique ou sociologique
directe, mêlée à sa fonction esthétique, qu’il pose le problème le plus intéressant quant à la
vérisimilitude. la véritable mimèsis de l’action est à chercher dans les œuvres d’art les moins
soucieuses de refléter leur époque. l’imitation, au sens vulgaire du terme, est ici l’ennemi par
excellence de la mimèsis. c’est précisément lorsqu’une œuvre d’art rompt avec cette sorte de
vraisemblance qu’elle déploie sa véritable fonction mimétique» (ricœur, TR iii, 346).
310 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

comment expliquer les angoisses et les souffrances de la création artistique?»


(ricœur, TR iii, 347).
encontramos, pois, a liberdade do artista limitada pelo quase-passado da
voz narrativa, que é para o criador tão ou mais constritiva do que a prova
documental para o historiador. além disso, a dura lei da criação, que impõe ao
artista a transmissão mais perfeita possível da cosmovisão que anima a voz nar-
rativa, é similar à dívida que o historiador tem para com os homens de outrora.
Posto isto, ricœur conclui que é sobre esta mútua intromissão da história
e da ficção – «le moment quasi historique de la fiction changeant de place
avec le moment quasi fictif de l’histoire (TR iii, 347) – que assenta o entre-
cruzamento de ambas na refiguração do tempo, que dá origem ao chamado
tempo humano, «onde se conjugam a representância do passado pela história e
as variações imaginativas da ficção, sobre o pano de fundo das aporias da feno-
menologia do tempo» (TR iii, 347, 348).

3.  NOTAS FINAIS

as obras de ricœur parecem interligar-se, parecem ser a continuação


umas das outras, havendo, mais do que revisão ou correção, uma progressão de
pensamento que procura responder às questões do seu tempo. e, nesse sentido,
sem dúvida, La mémoire, l’histoire, l’oubli retoma estes filamentos que assegu-
ram o entrecruzamento de história e ficção, muito particularmente os aflorados
a propósito da ficcionalização da história, e transforma-os em largas vias de
reflexão, cujo amplo espetro se inscreve na movência de história, memória e
esquecimento. a memória, que é aqui apenas esporádica e ligeiramente aludida,
será o eixo principal dessa reflexão que surge vinte e cinco anos depois de
Temps et Récit, levando consigo as questões que já agora inquietavam o autor:
a representação de algo ausente; a representação histórica do horror; comemo-
ração e execração; a capacidade figurativa da história; a narratividade/retórica
na escrita da história; e, fundamentalmente, a relação entre história e verdade.
a dialética história e ficção será feita já não diante do tempo mas da memória
e da sua marca genética, que é a representação (de algo ausente), a qual retoma
as questões abordadas em Temps et Récit sobre o estatuto epistemológico e
ontológico do traço. o tema da representância reaparece com novos matizes e
a prova documental ganha uma força que Temps et Récit não descurou mas tra-
tou com contenção. De facto, uma boa série de assuntos que ricœur desen-
volve em La mémoire, l’histoire, l’oubli não são novos, apenas tinham sido tra-
capítulo iii – História e Ficção: Por uma PoÉtica Do temPo 311

tados com sobriedade ou rapidez. De modo particular, os conceitos de memória


e de representação ganharão novos contornos e sentidos, deixando o binómio
história e ficção confrontado com questões que novas leituras procurarão solu-
cionar ou, pelo menos, tornar inteligíveis.
com a obra La mémoire, l’histoire, l’oubli, abre-se uma nova paisagem
no pensamento ricœuriano acerca da história; não só entra em cena a memória,
como a representação assume as rédeas do pensamento. algumas problemáticas
e conquistas de Temps et Récit transitam para este novo cenário; porém há
novos desenvolvimentos, porque o contexto social da epistemologia histórica
também sofreu uma reviravolta significativa. a partir das décadas de setenta e
oitenta, com a crise da Nova História e com as inovações trazidas de itália pela
micro-história, que substitui as mentalidades pelas representações, há um
regresso da história política, do acontecimento, da narrativa, num movimento
que ficará conhecido como tournant critique. este período da epistemologia his-
tórica já não encontra lugar em Temps et Récit. De molde a preparar a entrada
em La mémoire, l’histoire, l’oubli, concluímos esta parte com uma citação que
sintetiza as principais transformações trazidas pelo tournant critique, ocorrido
no seio da própria escola dos annales.
Deux éléments sont particulièrement remis en cause: la longue durée et le quan-
titavisme. la longue durée parce qu’elle a bloqué l’analyse du changement social
et la quantification parce qu’en donnant la priorité à l’étude des structures sur les
relations elle s’est accompagnée d’une réification des catégories; les descriptions
se faisant à partir de découpages sociaux prédéterminés. [...] c’est la tradition
d’histoire sociale à dominante objectiviste – celle de la primauté accordée aux
déterminations sociales – qui est remise en cause par les annales elles-mêmes.
D’autre part, la question des acteurs devient centrale; les notions de stratégies, de
négociation, de conventions, d’incertitude sont ainsi jugées “bonnes à penser”.
D’autres thèmes complètent ce renouvellement du programme annaliste proposé
par le “tournant critique”: la réhabilitation de la dimension interprétative de l’his-
toire, la prise en compte de certains acquis de l’anthropologie comme la méta-
phore du social comme texte, la complémentarité des “échelles d’analyse” (entre
micro et macro-analyse), la redéfinition de l’interdisciplinarité en rupture avec
“l’emprunt sauvage” et l’hégémonie d’une discipline.
le “tournant critique” permet aussi aux annales d’intervenir dans le débat
sur le type de scientificité pour l’histoire rouvert par stone et ginzburg: sont reje-
tés et le “positivisme plat” et “l’histoire rhétorique”. la réflexion souhaitée par les
annales sur l’écriture de l’histoire ne signifie pas l’acceptation de “l’histoire-rhé-
torique” et des thèses de partisans du linguistic turn anglo-américan qui réduisent
312 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

l’histoire à une activité d’interprétation de textes clos sur eux-mêmes. mais les
Annales rejettent également le “positivisme plat” (proche ici du labroussisme,
entendu comme une “fossilisation” des propositions de labrousse) qui ignore les
processus de construction sociale de la réalité et postule que les catégories sont
une copie du réel [Delacroix, Dosse, garcia 2007: 516-517].
CAPÍTULO IV
REPRESENTAÇÃO E FICÇÃO

l’histoire peut élargir, compléter, corriger, voire réfuter


le témoignage de la mémoire sur le passé, elle ne saurait
l’abolir. Pourquoi? Parce que, nous a-t-il semblé, la
mémoire reste le gardien de l’ultime dialectique constitu-
tive de la passéité du passé, à savoir le rapport entre le
“ne plus” qui en marque le caractère révolu, aboli,
dépassé, et l’ “ayant-été” qui en désigne le caractère ori-
ginaire et en ce sens indestructible. Que quelque chose
soit effectivement arrivé, c’est la croyance antéprédica-
tive – et même prénarrative – sur laquelle repose la
reconnaissance des images du passé et le témoignage
oral. À cet égard, les événements, tels la shoah et les
grands crimes du XXe siècle, situés aux limites de la
représentation, se dressent au nom de tous les événe-
ments qui ont laissé leur empreinte traumatique sur les
cœurs et sur les corps: ils protestent qu’ils ont été et à
ce titre ils demandent à être dits, racontés, compris.
cette protestation, qui nourrit l’attestation, est de l’ordre
de la croyance: elle peut être contestée, mais non réfutée
[ricœur, MHO, 647, 648].

entre as várias temáticas que é possível assinalar em La mémoire, his-


toire, oubli, uma sobressai pela sua constância e valor: «la notion de représen-
tation et sa riche polysémie traversent de part en part cet ouvrage (ricœur,
MHO, 236).
a noção polissémica de representação figura na obra de ricœur em três
contextos e aceções diferentes. começa por designar um enigma da memória,
em relação com a problemática grega da imagem (eikon). o fenómeno mnemó-
nico, quer seja entendido como o processo passivo da lembrança (mneme),
314 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

enquanto imagem que aparece, quer signifique o modo ativo de recordar-se


(anamnesis), enquanto objeto de uma busca, é sempre a representação na
memória de algo ausente mas ocorrido antes.
a categoria da representação surge ainda com dois sentidos distintos na
visão tripartida da epistemologia da história. É o objeto ou referente privile-
giado da explicação/compreensão, sucessora e substituta da noção volátil e
imprecisa de mentalidade, e designa, na terceira fase da operação historiográ-
fica, o ato de escrever/representar/publicar o trabalho que o historiador começou
nos arquivos. É justamente nesta fase que a escrita da história se torna literária,
levantando a questão que vai ao encontro do busílis da nossa investigação:
como é que a operação histórica preserva, neste estádio, a ambição de verdade
que a distingue da ficção346.
a historiografia repete, nesta fase final, o enigma gerado pela memória, a
representação de algo ausente. Por isso, um dos objetivos finais de ricœur é
esclarecer até que ponto a representação histórica do passado resolve ou, sim-
plesmente, transpõe as aporias relacionadas com a representação mnemónica.
a obra La mémoire, l’histoire, l’oubli (2000) divide-se em três partes,
sendo que a problemática comum da representação do passado percorre as
três347. a primeira parte é preenchida por uma fenomenologia da memória, a

346
«Poser cette question, c’est demander en quoi l’histoire reste ou plutôt devient
représentation du passé, ce que la fiction n’est pas, du moins en intention, si elle l’est en
quelque sort par surcroît» (ricœur, MHO, 240).
347
No preâmbulo da obra, ricœur aponta os três motivos principais que presidiram à
feitura da mesma. em primeiro lugar, a preocupação privada de preencher uma lacuna de
Temps et Récit, onde a relação direta entre experiência temporal e narrativa histórica e fic-
cional descurou os níveis intermédios da memória e do esquecimento. em segundo, uma con-
sideração profissional, que diz respeito à participação do autor em imensos colóquios e deba-
tes e seminários promovidos por historiadores profissionais em torno do problemático
relacionamento entre memória e história. Por fim, uma preocupação pública: o autor confessa-
-se perturbado quer pelo excesso de memória quer pelo excesso de esquecimento, bem como
pela influência das comemorações e dos abusos de memória e de esquecimento. Daí o seu
projeto de uma política da justa memória. «l’idée d’une politique de la juste mémoire est à
cet égard un des mes thèmes civiques avoués» (MHO, i; vide, etiam, ricœur 1998b: 17).
Dosse (200: 1-2) sublinha as circunstâncias favoráveis que tornam a publicação da obra de
ricœur extremamente oportuna e pertinente: crise de historicidade com uma consequente
febre das comemorações; recurso constante aos historiadores por parte de uma sociedade que
tem tendência para confundir os papéis da testemunha, do perito, do juiz e do historiador;
perda de valor estruturante dos grandes esquemas ideológicos de explicação histórica (funcio-
nalismo, estruturalismo, marxismo e outros -ismos) que gera um clima de incertezas acerca
do interesse da operação histórica.
capítulo iV – rePreseNtação e Ficção 315

segunda consagra-se à epistemologia da história e a terceira reflete acerca da


hermenêutica da condição histórica. sendo uma obra extensa, centraremos a
nossa atenção, de modo particular, na segunda secção, precisamente aquela
onde o filósofo, na tentativa de preservar e demarcar as competências da epis-
temologia da história face à memória, toca em cheio na questão que tem sido
alvo da nossa pesquisa: a relação entre história e ficção.
em Temps et Récit, o confronto da história era feito com a narrativa tra-
dicional e daí com a ficção. Devido ao imenso fosso que a historiografia fran-
cesa, hegemónica na primeira metade do século XX, cavou entre a prática his-
tórica e a fenomenologia da ação humana, ricœur tentou superar esse abismo
erguendo uma ponte entre história e narrativa, por intermédio da conciliação
entre compreensão e explicação. as narrativas ficcionais narram sempre ações
e padecimentos humanos no tempo e a história, indiretamente e com outros
modos, também os narra.
em MHO, o problema não se põe tanto a esse nível, porque o regresso
da narrativa à história348 e a entrada em cena da representação a uma escala
micro-histórica quase abole esse fosso, tanto que, desta vez, ricœur parece
mais preocupado em demonstrar a permanência do hiato entre história e narra-
tiva, exigido pelo corte epistemológico/metodológico anteriormente descrito349.
em MHO, o autor mostra-se inquietado com os usos e abusos da memória, a
verdade, o esquecimento e o perdão350. a problemática relação entre história e

348
cf. lawrence stone, «retour au récit ou réflexions sur une nouvelle histoire»
(1980); le goff, «comment écrire une biographie historique aujourd’hui» (1989); entre nós,
cf. Fátima Bonifácio: «o abençoado retorno da velha história» (1993); «a narrativa da época
pós-histórica» (1999); Apologia da história política (1999).
349
«les interactions humaines [...] survenant entre les agents et les patients de l’agir
humain, ne se prêtent aux processus de modélisation par lesquels l’histoire s’inscrit parmi les
sciences sociales qu’au prix d’une objetivation méthodique qui a valeur de coupure épistémo-
logique par rapport à la mémoire et au récit ordinaire. À cet égard, histoire et phénoméno-
logie de l’action ont intérêt à rester distinctes pour le plus grand bénéfice de leur dialogue»
(ricœur, MHO, 232).
350
o esquecimento e o perdão constituem o horizonte final da reflexão ricœuriana, per-
mitindo a unificação das três partes que formam o livro: «l’oubli et le pardon désignent,
séparément et conjointement, l’horizon de toute notre recherche. séparement, dans la mesure
où ils relèvent chacun d’une problématique distincte: pour l’oubli celle de la mémoire et de
la fidélité au passé; pour le pardon, celle de la culpabilité et de la réconciliation avec le
passé» (ricœur, MHO, 536). o esquecimento é um elemento do dever de memória e, ao
mesmo tempo, uma marca da vulnerabilidade da condição humana. De um modo geral, o
esquecimento é como que a sombra da memória infeliz projetada sobre a memória feliz.
a esse nível, o perdão desempenha a função de esquecimento feliz, que possibilita uma
316 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

ficção é suscitada por questões inerentes à representação em discurso histórico


da Shoah351, a saber, a dificuldade de encontrar uma forma literária capaz de
representar/exibir a monstruosidade indizível/irrepresentável perpetrada pelos
nazis sobre os judeus; e o problema do negacionismo, para o qual pode con-
tribuir uma forma post-modernista de pensar a operação historiográfica, que tem
em H. White uma das vozes mais influentes352. estes factos obrigam o autor
francês – que assimila algumas das ideias de White, pelas quais já em Temps
et Récit mostrara simpatia e reservas, chamando a atenção para as suas insu-
ficiências, nomeadamente, ao nível da explicação extranarrativa – a ser mais
cauteloso e a exigir que a operação historiográfica não se fique, como quer

memória apaziguada. memória e esquecimento são analisados em simetria: o esquecimento e


a memória impedida; o esquecimento e a memória manipulada; o esquecimento comandado
e a memória obrigada. É nesta última simetria que o conflito entre memória e história e
memória e justiça se torna mais problemático, na medida em que o dever de memória corre
o risco de ir contra o trabalho crítico da história. Nesse sentido, a justiça deve servir de
imperativo para o dever de memória e de resposta para os abusos de memória (ricœur,
MHO, 107). simetricamente, a amnistia e o direito de graça caracterizam o esquecimento
comandado, sem que se possa falar de “dever de esquecimento”, pois há um “esquecimento
de reserva” do qual se servem a história e a memória.
351
«la shoah oblige, en effet, à se poser le problème de la juste mémoire, du devoir
de mémoire en face de la recherche historique; elle amène le philosophe à s’interroger sur
la portée du témoignage en face de la preuve documentaire; C’est aussi la Shoah qui infléchit
la problématique de P. Ricœur lorsqu’il compare récit historique et récit de fiction [o itálico
é nosso]. Pression du négationnisme sur la réflexion qui entraine de la part des philosophes
et des historiens une vigilance telle qu’elle n’est pas sans conséquence pour l’imaginaire et
la pensée contemporains» (robin 2005: 39).
352
o potencial devastador da obra de White, centrada no fazer-crer da história, é
amplificado pela aliança com o movimento mais vasto do post-modernismo, que tratou a
racionalidade histórica como mais uma das convicções que tentou arrasar, herdadas da época
das luzes (tidas pela medida do modernismo). É, pois, de acordo com ricœur, «a autocom-
preensão de toda uma época que se joga por ocasião do debate em torno da verdade em his-
tória» (2000b: 743). ricœur refere-se ao debate ocorrido entre a publicação de Temps et Récit
e La mémoire, l’histoire, l’oubli (pesando na motivação de ricœur para a redação desta
última). H. White foi um dos protagonistas, ao ver a sua teoria meta-histórica, que não dis-
tingue história de ficção, confrontada com os limites da representação histórica da shoah e
as seduções do negacionismo. a polémica teve origem num colóquio, em 1992, organizado
por saul Friendländer, onde White é fortemente atacado, nomeadamente, por c. ginzburg,
que o acusa de defender uma teoria poética que é uma ameaça para a verdade histórica. É
acusado de radicalismo narrativista, formalismo, indiferença perante um referente que estava
a tomar estranhas proporções nos anos noventa. Damos conta do desenrolar e das implicações
deste debate mais detalhadamente no capítulo consignado ao tema da «representação e retó-
rica: a questão do referente».
capítulo iV – rePreseNtação e Ficção 317

White, pela configuração narrativa e pela retórica literária, mas seja obrigada a
cumprir o trajecto completo da epistemologia histórica, incluindo a prova docu-
mental e o processo de explicação/compreensão353. Para além disso, mostrando
um avanço relativamente a Temps et Récit, o filósofo francês tem o cuidado de
separar o que provém dos modelos explicativos do que provém da mise en
intrigue354. Deste modo, estabelece as bases de uma epistemologia histórica
capaz de restituir, até certo ponto, o passado e corresponder ao pacto de leitura,
assente num compromisso de verdade, entre historiador e leitor.
Não se pode pôr no mesmo plano de rigor científico história e memória,
mas a segunda é filha da primeira355. além do mais, a história precisa da
memória, da memória arquivada, ponto de partida da prova documental, capaz
de certificar ou invalidar determinada explicação. a memória procura ser fiável
e obter confiança; a história, verdadeira, crítica e obter ciência. É o lema da
verdade que ressurge no pensamento de ricœur com toda a vitalidade. a ques-
tão propriamente dita da ficção está implícita, ganhando proeminência na
segunda secção da obra e, dentro desta, de forma mais relevante, no momento
da redação do discurso histórico ou da representação literária.
À luz do que propõe michel de certeau em Faire de l’histoire (1974:
3-41), ricœur começa por estabelecer a análise epistemológica como historio-
grafia356. isto significa que a história é escrita de uma ponta à outra da ope-

353
a citação que transcrevemos a seguir é lapidar nesta obra de ricœur, porquanto ela
resume a sua posição relativamente às teses de H. White e a sua teoria epistemológica da his-
tória: «il faut patiemment articuler les modes de la représentation sur ceux de
l’explication/compréhension et, à travers ceux-ci, sur le moment documentaire et sa matrice
de vérité présumée, à savoir le témoignage de ceux qui déclarent s’être trouvés là où les
choses sont advenues. on ne trouvera jamais dans la forme narrative en tant que telle la rai-
son de cette quête de référentialité. c’est ce travail de remembrement du discours historique
pris dans la complexité de ses phases opératoires qui est totalement absent des préoccupations
de H. White» (ricœur, MHO, 328).
354
«[...] la crainte de confondre la cohérence narrative avec la connexité explicative
m’a conduit à ajourner le traitement du narratif en histoire jusqu’au moment de la prise en
compte des signes de littérarité» (ricœur 2000b: 742).
355
a ideia de memória como matriz da história é muito cara a ricœur, na medida em
que a história é herdeira das aporias e embaraços da memória: «si l’histoire a au plan du
savoir un commencement distinct, marqué de noms fameux, Hérodote, thucydide, voire des
sources plus anciennes, ses problèmes majeurs, et, pour le dire d’emblée, ses difficultés, ses
embarras lui viennent de plus loin qu’elle, de la mémoire précisément» (ricœur 1996: 7).
356
Historiografia não designa aqui, restritamente, nem a fase da pesquisa ou da prova
nem a fase da escrita, mas sim todo o processo tripartido que constitui a operação histórica,
logo, deve ser entendida na aceção que lhe dá certeau: operação em que consiste o conhe-
318 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

ração epistemológica: «l’histoire est de bout en bout écriture» (ricœur, MHO,


171). ricœur fala de três níveis do discurso histórico. Perfilhando a divisão
triádica de michel de certeau, o filósofo estabelece três momentos ou fases
principais na epistemologia da história, sendo o primeiro o da prova documen-
tal, o segundo da compreensão/explicação e o terceiro da representação357.
a primeira fase vai da declaração das testemunhas oculares à constituição dos
arquivos e visa o estabelecimento da prova documental. a segunda concerne os
variados usos do conector “porque” como resposta ao “porquê?”: porque é que
as coisas se passaram deste modo e não de outro? Note-se que não há mais
oposição entre explicação e compreensão, fruto do trabalho de conciliação que
já tivemos oportunidade de descrever anteriormente. a fase representativa diz
respeito à mise en intrigue ou configuração literária do discurso que se apre-
senta aos leitores. as três fases estão interligadas sem qualquer ordem sequen-
cial cronológica358, havendo escrita e interpretação em todas elas. Por conse-
guinte, não podemos desligar a escritura da história dos momentos de pesquisa
e explicação. cada um deles põe em evidência questões e aporias que concer-
nem a relação história-ficção. Há, no entanto, uma progressão da operação his-
tórica da primeira para a terceira fase, que diz respeito à manifestação da inten-
ção histórica de reconstrução verdadeira do passado: «ce n’est que dans la
troisième phase en effet que se déclare ouvertement [...] l’intention de représen-
ter en vérité les choses passées, par quoi se définit face à la mémoire le projet
cognitif et pratique de l’histoire telle que l’écrivent les historiens de métier»
(ibid.).

cimento histórico. É por isso que ricœur tem o cuidado de não chamar fase historiográfica
à fase de composição do texto histórico, mas antes “literária” ou “escriturária” para sublinhar
o modo de expressão ou “representativa”, se a tónica é posta na exposição ou na exibição
da intenção histórica, que consiste na representação presente das coisas ausentes do passado.
357
ricœur retoma em MHO a mesma divisão triádica (pesquisa, explicação, escrita)
que já tinha ensaiado num estudo anterior: «Philosophies critiques de l’histoire: recherche,
explication, écriture», in guttorm FlØistad (dir.), Philosophical Problems Today, i, Dordrecht-
Boston-londres, Kluwer academic Publishers, institut international de philosophie, 1994, pp.
139-201.
358
«on a proposé le mot “phase” pour caractériser les trois segments de l’opération
historiographique. il ne doit pas y avoir d’équivoque concernant l’usage du terme: il ne s’agit
pas de stades chronologiquement distincts, mais de moments méthodologiques imbriqués les
uns dans les autres; [...] nul ne consulte une archive sans projet d’explication, sans hypothèse
de compréhension; et nul ne s’emploie à expliquer un cours d’événements sans recourir à une
mise en forme littéraire expresse de caractère narratif, rhétorique ou imaginatif. toute idée de
succession chronologique doit être bannie de l’emploi du terme “phase opératoire”» (ricœur,
MHO, 170).
capítulo iV – rePreseNtação e Ficção 319

se voltarmos ao princípio anteriormente enunciado de que a história é


escrita do início ao fim, temos nos arquivos a primeira escrita, com a qual se
confronta a história mesmo antes de se tornar ela própria também uma forma
escrita sob o modo literário da escritura. Nesse sentido, a fase intermédia de
explicação/compreensão encontra-se enquadrada por duas escritas, uma a mon-
tante e outra a jusante. ricœur diz que ela «recolhe a energia da primeira e
antecipa a energia da segunda» (ibid.).

1.  REPRESENTAÇÃO MNEMÓNICA

ainda antes de passarmos à exposição tripartida da operação historiográ-


fica, deixamos aqui um breve apontamento sobre a reflexão que ricœur opera
em torno da problemática da representação no âmbito da fenomenologia da
memória, na medida em que os enigmas da memória, seja, na sua dimensão
cognitiva, a representação de algo ausente acontecido anteriormente seja na sua
dimensão prática, os usos e abusos a que se presta uma memória exercida, rea-
parecem ao longo da reflexão epistemológica359. a história é representação a
dois níveis, ao nível do objeto privilegiado da explicação/compreensão – que
visa o plano da formação de vínculos sociais e de identidades – e ao nível da
representação escrita, que corresponde à última fase da operação historiográfica,
a da redação do discurso histórico. ora estes dois tipos de representação não
são totalmente estranhos à representação mnemónica, de um modo muito espe-
cial a representação literária. o ícone do passado formado pela imagem mne-
mónica reaparecerá na máxima força no último estádio da operação historiográ-
fica, particularmente, ao nível representância.
antes de mais, convém ressalvar que ricœur vai contra a tendência de
muitos autores que abordam a memória pelo lado das suas deficiências, das
suas disfunções. a ele, interessa-lhe, fundamentalmente, abordar os fenómenos

359
ao começar a sua obra pela representação mnemónica, ricœur não tem intenção de
tomar partido pelos advogados da memória contra a história, ele fá-lo porque o problema da
representação, que é a cruz do historiador, já figura no campo da memória antes de chegar
à história. «l’histoire en ce sens est l’héritière d’un problème qui se pose en quelque sorte
en dessous d’elle, au plan de la mémoire et de l’oubli; et ses difficultés spécifiques ne font
que s’ajouter à celles propres à l’expérience mnémonique» (ricœur 2000b: 731). o estudo
que ricœur apresenta em MHO sobre a memória, e que ocupa a primeira parte do tríptico
em que se divide a obra, tem por base uma série de artigos que o autor foi apresentando em
colóquios ou em revistas. Destacamos «entre mémoire et histoire» (1996), «Histoire et
mémoire» (1998b) e «l’écriture de l’histoire et la représentation du passé» (2000b).
320 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

mnemónicos do ponto de vista das suas capacidades para a concretização de


uma memória feliz, ou seja, de uma memória que, guiada pelo desejo de fide-
lidade ao passado, atinge o reconhecimento360.
Dos gregos herdámos a ideia de recordação como imagem (eikon) do pas-
sado, imaginação e memória têm em comum a presença de uma ausência361.
Daqui decorre um primeiro enigma que é comum a memória e a imaginação:
a imagem é presente mas é signo, impressão de algo ausente362. No entanto, há
a imagem derivada do imaginário e a imagem-recordação derivada da memória.
Desfazer esta confusão implica distinguir memória de imaginação, uma distin-
ção que nos lembra a distinção entre história e ficção. memória e imaginação
são separadas por motivos de ordem eidética ou intencional: a imaginação visa
o fantástico, a ficção, o irreal, o possível, o utópico, ao passo que a memória
(tal como a história) tende para a realidade anterior, a anterioridade que cons-
titui a marca temporal por excelência do acontecimento ocorrido. Daqui resulta
a segunda parte da aporia, a imagem remete para algo efetivamente ocorrido no
passado.
a teoria platónica não cuida desta separação. ao considerar o “eikon” (a
imagem) simplesmente como um fenómeno de presença de uma coisa ausente,
sem consideração pela marca temporal da anterioridade, descura a especifici-
dade da função temporalizante da memória. aristóteles reconhece esta especi-

360
«À la mémoire est attachée une ambition, une prétention, celle d’être fidèle au
passé; à cet égard, les déficiences relevant de l’oubli [...] ne doivent pas être traitées d’em-
blée comme des formes pathologiques, comme des dysfonctions, mais comme l’envers d’om-
bre de la région éclairée de la mémoire, qui nous relie à ce qui s’est passé avant que nous
en faisons mémoire. si l’on peut faire reproche à la mémoire de s’avérer peu fiable, c’est
précisément parce qu’elle est notre seule et unique ressource pour signifier le caractère passé
de ce dont nous déclarons nous souvenir. Nul ne songerait à adresser pareil reproche à l’ima-
gination, dans la mesure où celle-ci a pour paradigme l’irréel, le fictif, le possible et d’autres
traits qu’on peut dire non positionnels [...] Pour le dire brutalement, nous n’avons pas mieux
que la mémoire pour signifier que quelque chose a eu lieu, est arrivé, s’est passé avant que
nous déclarions nous en souvenir» (ricœur, MHO, 26)
361
É como imagem presente de algo ausente que a memória se junta à história, pois
o passado que ambas buscam padece desse enigma de ausência-presença. a história é um
“motor de busca” que procura incessantemente o que michel de certeau chama o “ausente
da história”, isto é, a recordação reconhecida como passado.
362
«Voici l’énigme: le souvenir vient à l’esprit comme une image qui se donne spon-
tanément comme signe, non d’elle-même présente, mais d’une autre chose absente qui, dans
le cas précis de l’image-souvenir, est désignée comme ayant existé auparavant. trois traits par
conséquent: présence, absence, antériorité; trois traits assignés à des entités différentes. la
présence est celle de l’image même, mais d’une image qui se donne comme la trace, l’em-
preinte, le signe de la chose absente» (ricœur 1996: 8).
capítulo iV – rePreseNtação e Ficção 321

ficidade, por isso ricœur conduz a sua reflexão tendo como divisa a asserção
aristotélica «a memória é do passado», extraída do seu pequeno texto Acerca
da memória e da reminiscência, que integra o grupo das Parva Naturalia. Dife-
rentemente da fantasia ou da imaginação, com a memória, a marca do antes e
do depois está ligada à coisa evocada. a marca temporal é encontrada pela dis-
tinção que o estagirita estabelece entre mneme e anamnesis. a “mneme”
(memória) designa a impressão passiva surgida na memória e passível de invo-
cação espontânea; a “anamnesis” (reminiscência) designa a ação mais ou menos
laboriosa e produtiva de recordar-se de algo acontecido antes.
o acento temporal não resolve a aporia da imagem como presença do
ausente, mas estende-a para o tempo. aristóteles sabe que a imagem, tal como
a pintura de um animal, consiste em duas coisas ao mesmo tempo: ela é ela
própria e a representação de outra coisa. este enigma repete-se na representação
escriturária da história, porquanto também ela é em si mesma uma coisa e a
representação de outra ausente. Podemos dizer que a imagem é ao mesmo
tempo inscrição atual e signo do seu outro. É sobre esta alteridade do outro que
o tempo larga a sua marca distintiva ao nível da memória, dando azo ao con-
ceito de “anamnesis”. a recordação da coisa não é sempre dada, por vezes é
preciso procurá-la: a procura (“anamnesis”) é reminiscência, é recordação. as
duas faces da memória (presença da recordação e busca da recordação) lançam
as bases de uma fenomenologia e de uma definição de memória:
Quant à moi, après un long embarras, je suis arrivé à la conviction que la
mémoire, définie par la présence à l’esprit d’une chose du passé et par la
recherche d’une telle présence peut par principe être attribuée à toutes les per-
sonnes grammaticales: moi, elle/lui, nous, eux, etc. [...] la mémoire n’est plus alors
[...] que la réflexion de soi sur soi étalée dans le temps [ricœur 2000b: 734].

a memória é o que temos de melhor para nos certificarmos de que algo


aconteceu realmente. Do mesmo modo que a história procura ser verdadeira,
também a memória segue um regime de verdade específico: procura ser fiel.
mas como? através do reconhecimento, que tende a manifestar-se sob a forma
de um julgamento declarativo do género: «sim, é mesmo ela» ou «é mesmo
ele». Por meio da “anamnesis”, o passado regressa sob o modo de reconheci-
mento, constituindo uma primeira resolução para o enigma da memória363.

363
«et voici la première et provisoire résolution que la mémoire en propose. [...] la
reconnaissance des images, la survivance des images. la reconnaissance est, comme j’aime
dire, un petit miracle: c’est de ce bonheur de la reconnaissance que l’histoire sera privée et
à la recherche duquel elle est peut-être vouée» (ricœur 1996: 8).
322 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

Nenhuma outra experiência primária como o reconhecimento é capaz de nos


dar a presença atual da ausência do que, ainda que desaparecido e passado, se
anuncia como tendo sido. a autoapresentação do “eikon” como imagem do
ausente é a única garantia que temos. Podemos enganar-nos? Podemos, mas não
temos outro instrumento para além da memória para aceder ao passado, com
quem estabelece um pacto de fidelidade no momento do reconhecimento364.
cette requête de vérité spécifique la mémoire comme grandeur cognitive. Plus pré-
cisément, c’est dans le moment de la reconnaissance, sur lequel s’achève l’effort
du rappel, que cette requête de vérité se déclare elle-même. Nous sentons et
savons alors que quelque chose s’est passé, que quelque chose a eu lieu, qui nous
a impliqués comme agents, comme patients, comme témoins. appelons fidélité
cette requête de vérité. Nous parlerons désormais de la vérité-fidélité du souvenir
pour dire cette requête, cette revendication, ce claim, qui constitue la dimension
épistémique-véritative de l’orthos logos de la mémoire [ricœur, MHO, 66].

a representação mnemónica diz inteiramente respeito a esta dimensão


cognitiva que acabámos de expor, recorrendo às palavras do autor. No entanto,
ricœur diz que lembrar-se não é apenas acolher ou receber uma imagem do
passado, é também procurá-la. ou seja, para além da sua dimensão cognitiva
ou epistémica que é a operação de reconhecimento, a memória tem uma dimen-
são prática de pesquisa (“zetesis”), que provém do seu uso ou exercício. Na ati-
vidade de lembrar-se, estas duas facetas atuam em conjunto, atividade que o
autor francês designa de rememoração.
le fait remarquable est que les deux approches cognitive et pragmatique se recou-
pent dans l’opération du rappel; la reconnaissance, qui couronne la recherche réus-
sie, y désigne la face cognitive du rappel, tandis que l’effort et le travail s’inscri-
vent dans ce champ pratique. Nous réservons désormais le terme de remémoration
pour signifier cette superposition dans la même opération de l’anamnesis, de la
récollection, du rappel, des deux problématiques: cognitive et pragmatique»
[ricœur, MHO, 67].

a atividade de rememoração definida pelo filósofo francês é herdeira


direta do processo de “anamnesis” teorizado por aristóteles e, indiretamente, da

364
«mais – je le dis fortement – nous n’avons pas mieux que l’image-souvenir dans
le moment de la reconnaissance» (ricœur 2000b: 733). «la certitude est ici inexpugnable au
point de nous faire avouer: aussi douteux que soit le souvenir dans le moment de la recon-
naissance, nous n’avons pas mieux que lui pour nous faire éprouver, croire, dire, raconter, que
quelque chose a eu lieu auparavant tel que nous en faisons mémoire» (ricœur 1996: 8-9).
capítulo iV – rePreseNtação e Ficção 323

“anamnesis” platónica. É justamente nesta dupla vertente da memória que


ricœur descortina o essencial da confrontação entre a história e a memória.
a operação historiográfica é também ela conhecimento e prática365.
cette originalité du phénomène mnémonique est d’une importance considérable
pour toute la suite de nos investigations. en effet, elle caractérise également l’opé-
ration historiographique en tant que pratique théorique. l’historien entreprend de
“faire de l’histoire” comme chacun de nous s’emploie à “faire mémoire”. la
confrontation entre mémoire et histoire se jouera pour l’essentiel au niveau de ces
deux opérations indivisément cognitives et pratiques [ricœur, MHO, 68].

o exercício da memória, o seu uso e possível abuso366, acarreta alguns


perigos, podendo comprometer a ambição “veritativa” (“véritative”) da memó-
ria. Na sua dimensão epistémica, a “memória feliz” é a que alcança o reconhe-
cimento. Porém, alguns obstáculos de ordem pragmática podem interpor-se no
seu caminho e impedir a memória em exercício de ser feliz. ricœur examina
os abusos da memória artificial, particularmente os decorrentes da memoriza-
ção, relacionada com os processos de aprendizagem escolares ou profissionais,
e os da memória natural. estes últimos ramificam-se do seguinte modo: ao

365
a originalidade de ricœur está em não apresentar a memória e a história como
inconciliáveis, abolindo a tradicional dissociação entre ambas (maurice Halbwachs). a sua
relação é inseparável, intrincada. Discurso histórico e discurso mnemónico sofrem interferên-
cias mútuas. a memória serve de matriz à história. Na sua pesquisa rigorosa, o historiador
não pode reduzir os traços memoriais a resíduos falaciosos ou a ficções ilusórias. também
não pode confinar a memória ao domínio do psíquico, da impressão, do fluido. Há um aspeto
onde a memória leva a melhor sobre a história: a memória concede-nos a possibilidade do
reconhecimento. Porque a história não goza deste privilégio, o seu enigma de representação
revela outros contornos e as suas construções complexas só podem almejar ser reconstruções,
se quiser cumprir o pacto de verdade com o leitor. É por isso que a história não pode eman-
cipar-se totalmente da memória. mas se a memória é a sua matriz, cabe à história dominá-
-la, regulá-la, iluminá-la e traduzir-lhe o sentido. ao nível da epistemologia da história,
enquanto disciplina científica, é inquestionável a independência da história relativamente à
memória: «[...] l’autonomie de la connaissance historique par rapport au phénomène mnémo-
nique demeure la présupposition majeure d’une épistémologie cohérente de l’histoire en tant
que discipline scientifique et littéraire» (ricœur, MHO, 168,169). só no plano de uma her-
menêutica da condição histórica do homem, as afinidades entre o conhecimento e a prática
da história e a experiência da memória viva serão postas em confronto (vide MHO, 512-589).
366
«Disons-le d’un mot, l’exercice de la mémoire, c’est son usage; or l’us comporte
la possibilité de l’abus. [...] c’est par le biais de l’abus que la visée véritative de la mémoire
est massivement menacée» (ricœur, MHO, 68).
324 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

nível patológico-terapêutico, a memória impedida; ao nível prático, a memória


manipulada; ao nível ético-político, uma memória abusivamente comandada e
convocada (obrigada), quando comemoração casa com rememoração.
Posto isto, podemos afirmar que para ricœur a memória é processo e
representação. o enigma que ela transporta deriva, justamente, do facto de ser
representação presente de uma coisa passada, logo, ausente, abrindo caminho
para um problema que afeta igualmente a história: a verdade de algo que tendo
sido já não é367. a defesa de uma “política da justa memória” e do “dever de
memória” justifica-se plenamente na economia de uma obra que terça armas
contra o esquecimento (dos horrores do século XX) e o seu paroxismo, o nega-
cionismo, em nome da justiça e do reconhecimento. a memória é um meio
essencial para fazer jus às vítimas do passado. um acontecimento como aus-
chwitz está na memória coletiva antes de estar na história. Não se trata de des-
classificar a história perante a memória, a história tem autonomia e privilégios
únicos, nomeadamente a função de corrigir a verdade que a imediatez da
memória nos transmite368. todavia, a memória é a guardiã de algo que efetiva-
mente ocorreu no tempo e aproxima-se da história pela sua ambição de ver-
dade, sob o regime específico da fidelidade. além do mais, a memória decla-
rativa da testemunha é fundamental para o processo historiográfico: «le
témoignage en effet commence avec la mémoire elle-même prise à son niveau
déclaratif: la mémoire se dit et se raconte» (ricœur 1996: 10).
a memória arquivada tornada prova documental é o substrato da história,
estrutura fundamental de transição e de rutura entre a memória e a história.
o arquivo rompe com o “ouvi dizer” da tradição oral e a prova documental
marca a entrada em cena da disciplina científica, com metodologia própria, que
é a história.

367
«c’est la représentation de ce qui n’est plus présent qui pose de la façon la plus
tranchante la question de la vérité dans la représentation» (ricœur 1996: 7).
368
«en effet, il est un privilège qui ne saurait être refusé à l’histoire, celui non seu-
lement d’étendre la mémoire collective au-delà de tout souvenir effectif, mais de corriger, de
critiquer, voire de démentir la mémoire d’une communauté déterminée, lorsqu’elle se replie
et se referme sur ses souffrances propres au point de se rendre aveugle et sourde aux souf-
frances des autres communautés. c’est sur le chemin de la critique historique que la mémoire
rencontre le sens de la justice. Que serait une mémoire heureuse qui ne serait pas aussi une
mémoire équitable?» (ricœur, MHO, 650).
capítulo iV – rePreseNtação e Ficção 325

1.1.  O documento como prova científica

Na linha do que já vinha afirmando em Temps et Récit – ainda que


não de forma tão vincada e desenvolvida como o faz aqui – ricœur volta a
defender a prova documental como um dos constituintes essenciais da episte-
mologia histórica. ademais, a distinção entre história e ficção começa desde
logo pelas constrições que a prova documental impõe ao trabalho do historiador
– ideia que acentuámos quando falámos do entrecruzamento de história e
ficção.
o capítulo correspondente à prova documental subdivide-se em cinco tópi-
cos principais: i) o espaço habitado; ii) o tempo histórico; iii) o testemunho;
iV) o arquivo; V) a prova documental.
os dois primeiros dizem respeito ao espaço e ao tempo, elementos chave
da historiografia, na medida em que tudo o que a história narra está, obrigatória
e simultaneamente, referido a um espaço e a um tempo realmente existentes no
passado, por isso, eles são condições de possibilidade da operação historiográ-
fica. Na esteira da Estética transcendental de Kant, ricœur aborda o binómio
começando pelo espaço. a ideia dominante é a de que o espaço é um lugar de
inscrição da ação humana. o conceito nuclear é este mesmo de “inscrição”, na
medida em que ele é mais abrangente que o da simples escrita, na aceção de
fixação das expressões orais do discurso num suporte material. a inscrição
refere-se a qualquer marca exterior adotada como apoio e revezamento para o
trabalho da memória. ricœur põe como premissa que a inscrição tem como
condições formais as mutações que afetam o espaço e o tempo da memória
viva, seja ela coletiva ou privada. sendo a historiografia, em primeiro lugar,
memória arquivada (o que faz com que o arquivamento sirva de base às outras
operações da epistemologia histórica), é lógico que a mutação histórica do
espaço e do tempo seja tida por condição formal da possibilidade do gesto de
arquivamento.
Nenhum movimento (ou ausência dele) do corpo se diz, pensa ou
demonstra sem uma referência, ainda que alusiva, aos pontos, linhas, superfí-
cies, volumes, distâncias, inscritas sobre o espaço habitado pelo corpo. Falamos,
pois, de dois espaços sobrepostos: um habitado e vivido pelo corpo e um outro
neutro, geométrico. É no confim destes dois espaços que se situa o ato de habi-
tar, ato este que exige uma arquitetura: «or l’acte d’habiter n’est mis en place
que par celui de construire. c’est l’architecture, dès lors, qui porte au jour la
remarquable composition que forment ensemble l’espace géométrique et l’es-
pace déployé par la condition corporelle» (ricœur, MHO, 186).
326 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

tal como o tempo histórico resulta da intercessão do tempo vivido com


o tempo cósmico, também da intercessão de habitar e construir resulta um ter-
ceiro espaço, o espaço construído.
o que atrai a nossa atenção nesta reflexão em torno do espaço é a curiosa
relação que o filósofo estabelece entre a inteligibilidade que regula o ato de
construir e a que regula a composição narrativa configuradora do tempo. se
não vejamos: «Quant à l’acte de construire, considéré comme une opération
distincte, il fait prévaloir un type d’intelligibilité de même niveau que celui qui
caractérise la configuration du temps par la mise en intrigue» (ibid.).
este paralelismo põe a descoberto todo um conjunto de analogias entre o
tempo narrado e o espaço construído. Nenhum dos dois se reduz a frações do
tempo universal ou do espaço geométrico. Nos dois casos, a configuração
representa uma rutura e uma sutura: o espaço construído é também espaço geo-
métrico, mensurável e calculável; a sua qualificação como lugar de vida sobre-
põe-se e enleia-se nas suas propriedades geométricas, do mesmo modo que o
tempo narrado agencia num todo tempo cósmico e tempo fenomenológico. Por
conseguinte, a narrativa e a construção operam o mesmo tipo de inscrição, a
primeira na duração, a segunda na dureza do material: «chaque nouveau bâti-
ment s’inscrit dans l’espace urbain comme un récit dans un milieu d’intertex-
tualité» (ibid.: 187).
a ideia de espaço leva também ricœur a recapitular a influência que os
avanços alcançados pela geografia tiveram sobre a história praticada pela escola
dos annales, pondo o acento, por um lado, sobre as permanências, representa-
das pelas estruturas estáveis das paisagens, por outro, sobre a descrição
expressa no florescimento das monografias regionais. imediatamente, vem-nos
ao pensamento a geo-história de Braudel em torno do mediterrâneo e o mundo
mediterrânico e os seus escritos que associavam, frequentemente, o tempo ao
espaço, por exemplo, quando diz que o espaço refreia a duração. mas, nota
ricœur, mesmo o espaço de Braudel é um espaço civilizacional, ou seja, um
meio habitado, povoado. o espaço está em função do homem, é o lugar onde
o homem atua e inscreve as mais lentas durações que a história conhece.

a dialética do espaço vivido, espaço geométrico e espaço habitado é simi-


lar à dialética do tempo vivido, tempo cósmico e tempo histórico. ricœur vê
uma simetria entre a localização na ordem do espaço e a datação na ordem do
tempo. mas, desta vez, o filósofo não está interessado em conciliar o tempo
fenomenológico com o tempo cosmológico por intermédio dos conectores da
história. o seu objetivo é compreender a transição da memória viva à posição
“extrínseca” do conhecimento histórico. a noção de terceiro tempo (tempo his-
capítulo iV – rePreseNtação e Ficção 327

tórico) regressa como uma das condições formais de possibilidade da operação


historiográfica.
ricœur começa por recordar as características do tempo crónico teorizado
por Benveniste, sobre o qual desenvolve, em Temps et Récit (TR iii, 193-198),
a ideia de “tiers temps”369. Depois relaciona esta constituição do tempo com a
mutação histórica do tempo da memória. a datação, enquanto fenómeno de ins-
crição, aparece ligada a uma capacidade para datar, inerente à experiência viva
e, singularmente, ao sentimento de afastamento do passado e à apreciação da
profundidade temporal. a referência temporal como extensão aparece, necessa-
riamente, implícita nos acontecimentos que a memória declara ter vivido ou pre-
senciado, pois, como aristóteles, agostinho, Kant, Husserl e Bergson no-lo ensi-
nam, a extensão é uma propriedade primitiva da nossa noção de tempo. Por
conseguinte, o tempo do calendário consiste numa modalidade temporal de ins-
crição, ou seja, num sistema de datas extrínsecas aos acontecimentos. a memó-
ria recorre a estas datas do calendário para inscrever no tempo os acontecimen-
tos que recorda. o tempo do calendário serve de grelha temporal para as
distinções estabelecidas por economistas, sociólogos, politólogos, historiadores,
entre curto termo, médio termo, longo termo, ciclo, período, pois aí é possível
medir os intervalos entre acontecimentos datados. a própria brevidade da nossa
vida é afirmada por comparação com a imensidade do tempo crónico indefinido.
o tempo crónico ou do calendário funciona ainda no tempo da cronome-
tria (unidades circulares de tempo: dia, semana, mês, ano) e da cronologia (uni-
dades lineares de tempo longo: século, milénio), mas não tem lugar na crono-
grafia (registo de sucessões de acontecimentos únicos por relação com outros e
sem referência ao calendário) nem na cronosofia (vários modos opostos de con-
ceber o tempo: estacionário vs reversível, linear vs cíclico). são quatro maneiras
de visualizar o tempo, de o traduzir por signos, que vão além dos limites do
conhecimento impostos pela história dos historiadores ao ignorarem a distinção
entre mito e razão, filosofia e teologia, especulação e imaginação simbólica.
Não obstante, Pomian, teorizador destas quatro formas de representar o
tempo370, estabelece uma interessante correspondência entre a cronosofia, que

369
recapitulamos, sinteticamente, as três características principais do tempo crónico: 1)
a referência de todos os acontecimentos a um acontecimento fundador que serve de eixo do
tempo; 2) a possibilidade de percorrer os intervalos de tempo nas duas direções opostas de
anterioridade ou posterioridade relativamente ao ponto zero; 3) a constituição de um repor-
tório de unidades que servem para designar os intervalos de tempo: dia, mês, ano, etc.
370
Krzysztof Pomian, L’Ordre du temps, gallimard, coll. «Bibliothèque des histoires»,
Paris, 1984.
328 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

está nos limites do pensável, e a cronologia com que trabalha a história pen-
sante, mostrando a que ponto a primeira influenciou a segunda. as grandes
categorias que os historiadores usam para ordenar o seu discurso na fase de
explicação/comprensão, a saber, “acontecimentos”, “repetições”, “épocas”,
“estruturas”, são reflexos da cronosofia. Pomian entende por cronosofia as gran-
des periodizações da história, como as do cristianismo e do islão, e as suas
tentativas de correspondência com a cronologia. ricœur detém-se na sobrevi-
vência de cada uma destas categorias na historiografia e o impacto que conti-
nuam a ter na mentalidade histórica atual. Por influência da tipologia cronosó-
fica inventámos todo um conjunto de categorias temporais e fazemos deduções
acerca do tempo. a ela lhe devemos a oposição entre tempo estacionário (seja
cíclico seja linear) e tempo não repetível (seja progressivo ou regressivo). o
presente recebe um lugar significativo no todo da história, influenciado pelas
grandes orientações do tempo cronosófico. assim, falamos de idades, séculos,
períodos, estádios, épocas por sua influência. Periodizações como antiguidade,
idade média, renascimento, modernismo, contemporaneidade; expressões como
“regressar às fontes”, “avanços”, “recuos” “degradação de costumes”; ideias
como a de “progresso” ou de “tempo linear cumulativo e irreversível”; os
ciclos caros aos economistas ou os tempos sobrepostos de Braudel são exem-
plos que ricœur evoca para demonstrar os resíduos cronosóficos que se escon-
dem sob uma fachada científica. mas conclui:
[...] l’affranchissement de toute cronosophie, au bénéfice d’un certain agnosticisme
méthodique concernant la direction du temps, n’est pas achevé. Peut-être n’est-il
pas souhaitable qu’il le soit, si l’histoire doit rester intéressante, c’est-à-dire conti-
nuer de parler à l’espoir, à la nostalgie, à l’angoisse [MHO, 197].

com esta reflexão em torno do tempo histórico, ricœur pretende recordar


aos historiadores três coisas fundamentais: a primeira é que a operação histo-
riográfica resulta não apenas da experiência viva da memória, mas também da
especulação multimilenária sobre a ordem do tempo; a segunda é que o estru-
turalismo que fascinou várias gerações de historiadores provém, pela sua ver-
tente especulativa, de uma instância teórica que é herdeira das grandes crono-
sofias teológicas e filosóficas; por último, uma vez que o conhecimento
histórico não pôde nem poderá talvez libertar-se destas visões do tempo histó-
rico (tempo cíclico ou linear, estacionário, declínio ou progresso), ricœur ques-
tiona-se se não caberá à memória instruída pela história preservar a marca desta
história especulativa multissecular e integrá-la no seu universo simbólico.
capítulo iV – rePreseNtação e Ficção 329

o tema do testemunho faz-nos passar das condições formais (espaço e


tempo) ao conteúdo das coisas do passado, ou seja, das condições de possibi-
lidade ao processo efetivo da operação historiográfica. o testemunho abrange
todo um processo epistemológico que parte da memória declarada, passa pelo
arquivo e documentos e termina na prova documental.
entre as muitas funções que pode ter o testemunho – para além do arqui-
vamento tendo em vista a consulta posterior pelo historiador, o testemunho
pode ser empregado na vida quotidiana ou na vida judicial, sancionado pela
sentença de um tribunal – ricœur opta por se concentrar no testemunho arqui-
vado e sancionado pela prova documental. mas fá-lo consciente da pluralidade
de empregos e da partilha de elementos; por isso, termina a sua reflexão com
uma tentativa de isolar as características suscetíveis de serem comuns aos
vários tipos de testemunho371.
É no uso quotidiano do testemunho que melhor se discerne o núcleo
comum ao uso judicial e ao uso histórico do testemunho. uma conversa ordi-
nária preserva melhor os traços essenciais do ato de testemunhar, que se podem
resumir na seguinte definição de Dulong: «un récit autobiographiquement cer-
tifié d’un événement passé, que ce récit soit effectué dans des circonstances
informelles ou formelles» (apud ricœur, MHO, 203, 204).
ricœur vê nesta definição algumas das características essenciais do teste-
munho. a primeira tem duas faces: de um lado, a expressão verbal na primeira
pessoa, em forma narrativa, de uma cena vivida ou presenciada pelo próprio
narrador (a asserção da realidade factual do acontecimento narrado), do outro,
a certificação ou autentificação da declaração pela experiência do seu autor, isto
é, a sua presumível fiabilidade. a atestação dos factos narrados deve traçar uma
fronteira entre realidade e ficção. É aqui que a memória soçobra, pois esta
fronteira representa um problema para a fenomenologia da memória. É a este
propósito que ricœur declara ser este um problema que acompanha toda a epis-
temologia da história até à sua fase final de redação: «et le rapport entre réalité
et fiction ne cessera de nous tourmenter, jusqu’au stade de la représentation his-
torienne du passé» (ricœur, MHO, 204).
a segunda componente diz respeito à indissociabilidade entre a asserção
da realidade e a autodesignação do sujeito que testemunha. Desta união resulta
a fórmula tipo do testemunho: “eu estava lá” (“j’y étais”). atesta-se simultânea
e indistintamente a realidade do que aconteceu e a presença do narrador no

371
a obra que lhe serve de guia desta vez é a renaud Dulong, Le Témoin oculaire.
Les conditions sociales de l’attestation personnelle, eHess, Paris, 1998.
330 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

local da ocorrência. a testemunha, ao declarar-se testemunha dos factos,


nomeia-se a si própria. este tipo de asserções liga o testemunho pontual com
toda uma história de vida. mas, da mesma forma, a autodesignação faz emergir
a opacidade inextricável de uma história pessoal, porquanto esta aparece enre-
dada nas histórias que narra. este facto levanta um problema de objetividade/
/subjetividade: «c’est pourquoi l’empreinte affective d’un événement capable de
frapper le témoin à la façon d’un coup ne coïncide pas nécessairement avec
l’importance que lui attache le récepteur du témoignage» (ibid.: 205).
em terceiro lugar, verificamos que a autodesignação se insere numa per-
muta dialogal que exige acreditação. a testemunha atesta os factos que viven-
ciou enquanto sujeito ou vítima diante de alguém que o ouve, mas nesse
momento ele está numa posição de terceira pessoa relativamente aos interve-
nientes na ação. exige-se, pois, uma relação de confiança. a testemunha pede
crédito e o ouvinte deve conceder-lho. o ouvinte não só lhe concede certifica-
ção como vai além disso, ele acredita no que ouve. este acreditar é uma alter-
nativa à balança composta por confiança e suspeita. É a credibilidade testada
da testemunha que dá autenticidade ao seu relato: “eu estava lá, acreditem em
mim”.
a possibilidade de desconfiar, por seu turno, abre um espaço de polémica
onde diversos testemunhos e testemunhas podem ser confrontados. Há sempre
a possibilidade de perguntar a outra testemunha. o próprio declarante o admite
ao dizer: “eu estava lá, acreditem, mas se não acreditam perguntem a outro”.
a testemunha é aquele que aceita ser convocado e responder a um apelo even-
tualmente contraditório.
Por conseguinte, em nome do reforço da credibilidade e da fiabilidade, a
testemunha deve estar disposta a repetir as suas declarações. Para garantir fia-
bilidade, deve manter a sua palavra ao longo do tempo.
a disposição para testemunhar faz do testemunho um fator de segurança
nas relações sociais e este contributo da fiabilidade dos agentes sociais à con-
fiança geral que deve sustentar as relações sociais faz do testemunho uma ins-
tituição, uma instituição natural, como lhe chama ricœur (MHO, 206): «ce qui
fait institution, c’est d’abord la stabilité du témoignage prêt à être réitéré,
ensuite la contribution de la fiabilité de chaque témoignage à la sûreté du lien
social en tant qu’il repose sur la confiance dans la parole d’autrui» (ibid.: 207).
Paulatinamente, este laço fiduciário estende-se a todos os intercâmbios, contra-
tos e pactos e constitui o assentimento concedido à palavra de outrem, princípio
fundamental do laço social, ao ponto de se tornar um hábito comunitário, uma
regra de prudência que consiste, em primeiro lugar, em confiar na palavra do
outro e, em seguida, duvidar se houver razões para isso. esta é uma compe-
capítulo iV – rePreseNtação e Ficção 331

tência do que ricœur designa de “homem capaz”: «le crédit accordé à la


parole d’autrui fait du monde social un monde intersubjectivement partagé»
(ibid.). conclui ricœur: «en conclusion, c’est de la fiabilité, donc de l’attesta-
tion biographique, de chaque témoin pris un à un que dépend en dernier ressort
le niveau moyen de sécurité langagière d’une société» (ibid.: 208).
o arquivo marca a entrada da escrita na operação historiográfica. o tes-
temunho oral, ouvido e escutado é registado e transforma-se num arquivo
escrito, lido e consultado. a consulta dos arquivos faz do historiador um leitor.
Para além de lugares físicos e espaciais, onde se recolhem, conservam e clas-
sificam os traços documentais, os arquivos são também lugares sociais. este
atributo do arquivo é reconhecido por michel de certeau (1975) como o pri-
meiro dos três painéis que formam o tríptico da operação historiográfica.
segundo ele, a primeira tarefa de uma epistemologia histórica é reportar um
produto a um lugar, que pode ser uma profissão, um meio, um recrutamento.
ricœur retoma as notas de Temps et Récit consagradas ao arquivo (TR iii,
212-228), em busca dos traços que instauram uma rutura entre o arquivo e o
“ouvi-dizer” do testemunho oral, adaptando agora esta oposição à dialética entre
memória e história. a mudança de estatuto do testemunho falado ao de arquivo
constitui a primeira mutação histórica da memória viva. como toda a escritura,
um documento de arquivo está aberto a quem quer que saiba ler; não tem
nenhum destinatário específico, ao contrário do testemunho oral, que se dirige
sempre a um interlocutor preciso. além do mais, o documento depositado no
arquivo é mudo e órfão, na medida em que está separado do enunciador, mas
está sob os cuidados de quem tem competência para o interrogar, defender e
proteger.
ricœur relembra, mais uma vez, marc Bloch e a sua Apologia da histó-
ria, considerando-o o historiador que melhor compreendeu o lugar do testemu-
nho na construção do fazer histórico. o facto de a história versar sobre “os
homens no tempo”, torna o seu objeto de estudo necessariamente temporal,
implicando uma relação entre o presente e o passado. o testemunho entra na
cena histórica a título de traço do passado no presente. Já vimos anteriormente
como marc Bloch atribui ao traço uma função superior que subordina o próprio
testemunho, que se pode dividir em escrito e não escrito, voluntário e não
voluntário372. o traço é o operador por excelência de um conhecimento indireto,

372
«en effet, à part les confessions, les autobiographies et autres journaux, les chartes,
les pièces secrètes de chancellerie et quelques rapports confidentiels de chefs militaires, les
documents d’archives sont majoritairement issus de témoins malgré eux» (ricœur, HMO,
215).
332 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

é o veículo da observação histórica, e, nesse sentido, está para o conhecimento


histórico como a observação direta para as ciências naturais. todavia, é a crí-
tica que faz da história uma ciência, logo, os testemunhos escritos e os outros
traços não escritos devem ser postos à prova. a crítica nasceu no seio da his-
tória com o sentido de corroboração dos ditos de outrem. Há necessidade de
examinar as fontes a fim de distinguir o verdadeiro do falso.
os traços que marc Bloch designa de “vestígios” e assimila à noção de
testemunho não escrito merecem particular atenção373. Porque ricœur é de opi-
nião que eles desempenham um papel não negligenciável na corroboração dos
testemunhos, decide ampliar e complementar a escassa reflexão de Bloch com
o auxílio do método crítico de carlo ginzburg relativo ao “paradigma indiciá-
rio” 374. ginzburg fala de indício e paradigma indiciário por oposição ao para-
digma da ciência clássica, que consiste na observação direta de factos375. múl-
tiplas disciplinas se regem por indícios, ao ponto de toda a semiótica se revelar
indiciária. a história difere da ciência clássica, à maneira de galileu, na medida
em que o seu conhecimento é indireto, faz-se por meio de indícios e conjeturas.
o paradigma indiciário abre todo um leque de possibilidades:
si la réalité est opaque, des zones privilégiées existent – traces, indices – qui per-
mettent de la déchiffrer. cette idée, qui constitue le noyau du paradigme indiciaire
ou sémiotique, a fait son chemin dans les domaines le plus variés de la connais-
sance et modelé en profondeur les sciences humaines [ginzburg, apud ricœur,
HMO, 221].

373
os vestígios são traços muito caros à arqueologia e podem ser utensílios, moedas,
imagens pintadas, esculturas, mobiliário, objetos funerários, restos de habitações.
374
carlo ginzburg, «traces. racines d’un paradigme indiciaire», in Mythes, Emblèmes,
Traces. Morphologie et histoire, coll. «Nouvelle Bibliothèque scientifique», Paris, 1989, pp.
139-180.
375
«[...] au paradigme galiléen, défini par le rapport entre expérimentation, modélisa-
tion, vérification, s’oppose ce que carlo ginzburg appelle paradigme indiciaire de nature
sémiotique où le document d’archive est observé, interprété, soumis au jugement des experts;
il voisine alors avec le symptôme médical et les autres vecteurs d’une connaissance indirecte,
conjecturale, probable. ce caractère indiciaire de la médiation historienne n’est pas signe d’un
défaut d’objectivité: c’est le mode propre de l’objectivité de la connaissance historique: la
vérité documentaire, en vertu de sa qualification probabiliste, admet des degrés, en fonction
de la densité des indices, de leur cohérence, de l’amplitude de leur portée, de leur confirma-
tion par le moyen de la comparaison et de la discussion. ainsi la vérité en histoire s’est-elle
éloignée d’un degré de la fidélité de la mémoire par la grâce du document et de l’archive»
(ricœur 1996: 10).
capítulo iV – rePreseNtação e Ficção 333

a semiologia indiciária exerce uma função de complemento, de controlo


e de corroboração ao nível do testemunho oral ou escrito, na medida em que
os signos que ela decifra não são de ordem verbal, podendo ser impressões
digitais, arquivos fotográficos ou aDN – testemunhos silenciosos. o principal
contributo de ginzburg reside na abertura de uma dialética do indício e do tes-
temunho no interior da noção de traço, dando ao conceito de documento a sua
inteira envergadura. simultaneamente, a relação de complementaridade entre o
testemunho e o indício vem inscrever-se no círculo da coerência interno-externo
que estrutura a prova documental. o indício tanto pode ser o traço que teste-
munha a passagem de um animal, como um texto, por analogia entre as letras
impressas e as impressões deixadas pelo animal. mas o indício também merece
ser chamado “testemunho não escrito”, à maneira de marc Bloch; desde que
este intercâmbio entre indícios e testemunhos não impeça de preservar as res-
petivas diferenças de utilização. Quem ganhará com esta operação será o con-
ceito de documento, soma dos indícios e dos testemunhos, cuja amplitude final
se aproximará da amplitude inicial do traço. Note-se que ricœur parte da noção
de testemunho e termina com a elaboração da de documento, mais abrangente
do que o testemunho.
Para o fim, ricœur deixa a crise do testemunho gerada por aqueles tes-
temunhos (fundamentalmente orais) de uma dor indizível, como por exemplo os
dos sobreviventes do Holocausto. tratando-se de experiências limite, este
género de testemunhos levanta imensos problemas ao arquivamento, nomeada-
mente ao nível da receção, que parece limitada e incongruente, uma vez que
quem ouve não está capaz de compreender, de criar empatia, de tal forma a
experiência narrada é estranha e bizarra.
cette compréhension a été édifiée sur les bases d’un sens de la ressemblance
humaine au plan des situations, des sentiments, des pensées, des actions. or l’ex-
périence à transmettre est celle d’une inhumanité sans commune mesure avec l’ex-
périence de l’homme ordinaire. [...] Pour être reçu, un témoignage doit être appro-
prié, c’est-à-dire dépouillé autant que possible de l’étrangeté absolue qu’engendre
l’horreur. cette condition drastique n’est pas satisfaite dans le cas des témoignages
de rescapés [ricœur, HMO, 223].

esta é uma questão que transita do nível da inscrição e do arquivamento


para a terceira fase da epistemologia histórica, a fase da representação escritu-
rária, que será em grande parte uma tentativa de resposta a este problema.
como representar o indizível? Quais são os limites da representação; até onde
pode ir o historiador para transmitir uma imagem suficientemente ilustrativa e
334 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

convincente e, ao mesmo tempo, fiel ou fidedigna do horror?376 estas questões


tocam diretamente no âmago da problemática maior do nosso estudo, a fron-
teira entre história e ficção. em que medida a história precisa da ficção para
fazer justiça às vítimas do holocausto? É esta a questão que deixamos para já
em aberto.
a crise do testemunho agrava-se uma segunda vez se pensarmos nas difi-
culdades que a testemunha sente em comunicar o que viveu; é que ela não se
limitou a assistir, esteve envolvida, é uma vítima. um terceiro fator contribui
ainda para esta crise do testemunho. tem que ver com o dever que se impõe
ao historiador de, em semelhantes casos limite, ter de lutar contra a increduli-
dade (negacionismo) e a vontade de esquecer, ao invés do que normalmente
acontece, em que o historiador se empenha em combater a credulidade e a
impostura.
com esta crise do testemunho, ricœur abre as portas a uma das proble-
máticas centrais da sua obra: o esquecimento. a própria inclusão deliberada da
memória no ternário temático do seu livro tem, em parte, que ver com este
problema, como já tivemos oportunidade de referir.

No encalce de ricœur, terminamos esta secção falando de prova docu-


mental. a prova documental designa, nesta etapa, a verdade histórica possível
para a operação historiográfica. a este propósito, impõem-se duas questões:
o que é que significa provar através de um documento ou um conjunto de
documentos e o que fica, deste modo, provado? a resposta à primeira questão
exige uma articulação da fase documental com a fase de explicação/compreen-
são e a fase ulterior de representação. os documentos só podem servir de prova
porque o historiador vem consultá-los com um conjunto de questões em mente
– «les notions de questionnement et de questionnaire sont ainsi les premières
à mettre en place dans l’élaboration de la preuve documentaire. c’est armé de
questions que l’historien s’engage dans une recherche d’archives» (ricœur,
MHO, 225).
Já vimos como o questionário defendido por marc Bloch provoca uma
rutura entre a sua metodologia histórica e a história de tipo positivista de
langlois e seignobos – que ricœur prefere chamar de “metódica” para não se
confundir com a herança de comte. Não há documento sem pergunta, é a
pergunta que delimita e, nesse sentido, institui o facto histórico no universo

376
cf. saul Friedländer, Probing the Limits of Representation, Nazism and the “Final
Solution”, cambridge, massachusetts, and london, Harvard university press, 1992.
capítulo iV – rePreseNtação e Ficção 335

ilimitado dos documentos377. os documentos servem para validar ou invalidar


determinada hipótese. Há uma interdependência entre factos, documentos e
questões. a questão não é nua, é formulada a partir de uma certa ideia prévia
das fontes documentais e dos procedimentos de pesquisa. Nesta fase podemos
já concluir que o conhecimento histórico assenta sobre um tripé constituído
pelo traço, documento e questão, como no-lo diz ricœur: «trace, document,
question forment ainsi le trépied de la base de la connaissance historique»
(ibid.).
Não há história sem traço, sem documento e sem questão. e mesmo os
registos orais, uma das categorias dos testemunhos não escritos, típicos da
micro-história e da história do tempo presente, só se tornam documentos depois
de registados por escrito. Nesse sentido, podemos dizer que a memória é arqui-
vada, documentada. o seu objeto deixa de ser uma recordação, isto é, deixa de
estar numa relação de apropriação e continuidade com o presente da cons-
ciência.
relativamente à segunda questão, o que pode ser dado como provado é
o facto ou os factos suscetíveis de serem afirmados em proposições singulares,
discretas, compreendendo, muito frequentemente, a menção de datas, lugares,
nomes próprios, verbos de ação ou de estado. saliente-se que o facto da asser-
ção de modo algum coincide com o facto realmente ocorrido e que, de algum
modo, sobrevive na memória viva das testemunhas oculares. Nunca é demais
lembrar que a história é uma reconstrução. os factos não vão intatos para os
documentos nem deles saem intatos para a história. Henri marrou (1954)
recorda-nos que facto empírico e facto histórico não são a mesma coisa. mas
se é verdade que o facto histórico se dissolve, até certo ponto, na representação
que dele dá o texto histórico, isso não nos pode deixar cair totalmente o facto
no domínio da ficção; o prejuízo seria perder de vista a verdade.
autant il faudra résister [...] à la tentation de dissoudre le fait historique dans la
narration et celle-ci dans une composition littéraire indiscernable de la fiction,
autant il faut refuser la confusion initiale entre fait historique et événement réel
remémoré. le fait n’est pas l’événement, lui-même rendu à la vie d’une
conscience témoin, mais le contenu d’un énoncé visant à la représenter. en ce

377
o documento, elaborado a partir da noção de testemunho, só ganha estatuto com a
questão. mesmo se qualquer resíduo do passado é, potencialmente, um documento, nada em
si é documento. «Pour l’historien, le document n’est pas simplement donné, comme l’idée de
trace laissé pourrait suggérer. il est cherché et trouvé. Bien plus, il est circonscrit, et en ce
sens constitué, institué document, par le questionnement» (ricœur, MHO, 226). cf. Prost
1996: 79-100.
336 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

sens, il faudrait toujours écrire: le fait que ceci ou cela est arrivé. ainsi compris,
le fait peut être dit construit par la procédure qui le dégage d’une série de docu-
ments dont on peut dire en retour qu’ils l’établissent [ricœur, MHO, 227].

a reciprocidade entre a construção e o estabelecimento do facto de que


ricœur nos dá conta neste texto resume o estatuto epistemológico específico do
facto histórico. o caráter proposicional do facto histórico (“facto é que isto ou
aquilo aconteceu”) rege a modalidade de verdade ou de falsidade ligada ao
facto. ricœur diz que a refutação do negacionismo a propósito do horror nazi
joga-se a este nível de verdade e falsidade dos factos narrados, que equivale ao
binómio verificável e refutável. É, pois, neste estádio da operação histórica que
deve haver um empenho máximo na averiguação da veracidade das provas
documentais, nas fases seguintes (explicação/compreensão e representação) a
verdade tornar-se-á cada vez mais difícil de elucidar, devido à intromissão cres-
cente da imaginação e da retórica ficcional.
Para vincar bem a distinção entre facto histórico e facto empírico e de
modo a preservar o estatuto intencional do discurso histórico (ou o seu “vis-à-
vis”) o filósofo francês distingue o facto enquanto “coisa dita”, o “quê” do dis-
curso histórico, do acontecimento enquanto “coisa acerca da qual se fala”, o
assunto ou o “quem” de que trata o discurso histórico. assim, a asserção do
facto histórico marca a distância entre o dito e a referência. Faz, por isso, sen-
tido perguntar pelo teor da relação entre o facto narrado e o acontecimento real,
mas esta questão encontrará melhor cabimento no estádio último da represen-
tação, com a entrada da representância em cena378.
outra das lutas de ricœur é contra a semiótica estrutural pelo referente do
discurso histórico, que salvaguarda o facto de se estar a falar de algo aconte-
cido no passado. caso contrário a história não passa de mera retórica ficcional.
auschwitz não é um efeito de linguagem, foi um acontecimento real. o acon-

378
É infundada qualquer crítica de “regresso ao positivismo”. existe um hiato entre o
real representado e a construção do historiador. o autor é explícito, não há coincidência entre
o acontecimento real e o facto proposicional. todavia, esta distinção não impede a história
de prosseguir o seu projeto de verdade. ricœur defende que é possível dar conta do acon-
tecimento construindo ou estabelecendo o facto. É por isso que o filósofo francês discorda da
indistinção defendida por H. White entre enunciado factual e narração, entre facto e interpre-
tação, quer dizer, discorda da sua recusa em autonomizar a operação documental de estabe-
lecimento/construção do facto relativamente ao trabalho de interpretação e de configuração
narrativa. esta recusa é, em certa medida, a tradução epistemológica do esquecimento do refe-
rente e do apagamento da fronteira entre a ficção e a história, que ricœur não se cansa de
combater.
capítulo iV – rePreseNtação e Ficção 337

tecimento é o referente último do discurso histórico. uma testemunha fala sem-


pre de um acontecimento; este é o “vis-à-vis” do relato da testemunha. ricœur
diz mesmo que ele é «o emblema de todas as coisas passadas (praeterita)»
(MHO, 229). obviamente, também insiste na ideia anterior de que não podemos
confundir o acontecimento com o dito (facto) testemunhado. mas o “que” que
é aposto à asserção do facto (“le fait que”) salvaguarda a intencionalidade a um
referente externo do discurso histórico. esta intencionalidade também se escla-
recerá à luz da representância, no último estádio da operação historiográfica.
a epistemologia histórica de ricœur, ainda que reconhecedora da narratividade,
da imaginação e da retórica no discurso histórico, não se deixa seduzir pela
sereia da semiótica estrutural (roland Barthes) ou do narrativismo (Hayden
White). o acontecimento é o referente real que extravasa a bipolaridade sim-
plista de significado e significante, muito característica de uma pós-moderni-
dade relativista que ameaça arrastar a história para um poço sem fundo379. Por
esse motivo, ricœur recusa, como veremos adiante, os conceitos de “efeito do
real” ou “ilusão referencial” elaborados pela semiótica estrutural, na esteira da
linguística saussuriana, que reduz o signo ao binómio significante/significado,
excluindo o referente. o historiador deve socorrer-se antes da linguística do dis-
curso, à maneira de Benveniste e Jakobson, que estabelecem a frase e não o
signo como unidade de sentido ao nível do discurso: «quelqu’un dit quelque
chose à quelqu’un selon les règles codifiées d’interprétation» (ricœur 2000b:
739). só assim se pode preservar a tríade constituída por significante, signifi-
cado, referente, designando, globalmente, o acontecimento o referente do dis-
curso documentado380.
De modo a evitar uma crise geral do testemunho, que se instalou pela
desconfiança generalizada relativamente a tudo e todos (será que a história pode
desligar-se totalmente da memória declarativa?), cabe à explicação/compreensão
aliviar esta crise, com um exercício controlado da contestação e um reforço da
atestação.

379
sobre a conceção historiográfica post-modernista e as questões que essa conceção
levanta ao nível do relativismo e da confusão entre história e ficção veja-se o estudo de ana
Paula arnaut, Post-Modernismo no Romance Português Contemporâneo. Fios de Ariadne.
Máscaras de Proteu (2002), particularmente o capítulo V: «a história contra-ataca».
380
À la conception binaire du signe héritée d’une linguistique saussurienne, peut-être
déjà mutilée, j’oppose la conception triadique du signifiant, du signifié et du référent. [...] le
discours consiste en ceci que quelqu’un dit quelque chose à quelqu’un sur quelque chose
selon des règles (ricœur, MHO, 229).
338 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

2. REPRESENTAÇÃO COMO OBJETO DE COMPREENSÃO/EXPLICA-


ÇÃO: VARIAÇÃO DE ESCALAS

a segunda etapa que ricœur consagra à epistemologia histórica recebe um


título que se nos tornou familiar no decorrer desta investigação, e ao qual dedi-
cámos muitas páginas: explicação/compreensão. Não vamos repetir o que para
trás ficou dito, de resto ricœur também não o faz. agora não impera o anta-
gonismo e a necessidade de conciliação de explicação e compreensão, em nome
da aproximação ou do enraizamento indireto da história na narrativa. a assimi-
lação que o autor faz dos dois conceitos, apenas separados por uma barra oblí-
qua, faz desta nova incursão pela matéria uma retoma do ponto em que a dei-
xou em Temps et Récit381.
o autor enceta esta segunda etapa da epistemologia histórica afirmando
que «é ao nível da explicação/compreensão que a autonomia da história rela-
tivamente à memória se afirma com mais força no plano epistemológico»
(MHO, 231). a preocupação que o acompanha desde o início da sua obra (mar-
car a fronteira entre memória e história) ganha um novo impulso ao nível da
fase explicativa. explicar, sabemo-lo, é responder à questão “porquê?”. Nessa
medida, esta fase já se encontrava imbricada na anterior; nessa altura, dissemos
que não há documento sem questão382. então, que traz de novo este estádio da
epistemologia histórica relativamente ao tratamento documental do facto histó-
rico? o que há de novo são as várias formas de concatenar os factos documen-
tados. Há muitas formas de empregar o conector “porque”. mas há limites, por-
que a história, enquanto disciplina científica, qualquer que seja o processo de
modelização que empregue, está sempre obrigada a justificar-se, a prestar pro-
vas. modelo e prova documental são interdependentes. a modelização é uma
operação que podíamos chamar de ficção científica ou de imaginário científico,
como no-lo dizem collingwood, W. Dray, max Weber e r. aron, falando da
imputação causal singular. Porém, o espírito que se afasta para o reino da pos-
sibilidade deve submeter o seu imaginário a uma disciplina específica, a um
recorte apropriado dos objetos de referência, se deseja permanecer no domínio

381
«[...] on peut tenir pour dépassée la querelle suscitée au début du XXe siècle autour
des termes, tenues pour antagonistes, d’explication et de compréhension. max Weber s’était
montré fort perspicace dans l’élaboration des concepts directeurs de sa théorie sociale en
combinant d’entrée de jeu explication et compréhension» (ricœur, MHO, 234).
382
«c’est par rapport à l’explication que le document fait preuve» (ricœur, MHO,
231).
capítulo iV – rePreseNtação e Ficção 339

da história e não se perder no da ficção. são dois os princípios que todo o his-
toriador deve respeitar quanto ao referente. em primeiro lugar, os modelos
explicativos usados em história têm em comum o facto de se dirigirem à rea-
lidade humana enquanto facto social. Deste ponto de vista, a história social não
é uma especialidade entre outras que a história cultive, mas sim o seu único
campo de trabalho. a história é, necessariamente, uma ciência social. mas é
dentro do concerto das ciências sociais que surge o segundo princípio limitativo
da prática histórica. a história tem como objeto formal de estudo não todo o
campo social, mas aquele que é delimitado pela mudança e pelas diferenças ou
desvios que afetam as mudanças. aqui, a história diverge das outras ciências
sociais, principalmente, da sociologia. este traço distintivo da história é válido
quer a história trate da realidade económica, de fenómenos sociais, de práticas
ou representações.
Porquê as mudanças ou as diferenças/desvios que afetam as mudanças?
Depois de se ler Temps et Récit, a resposta torna-se óbvia. a história, enquanto
compreensão-followability, depende do caráter temporal que a mudança e a
diferença necessariamente acarretam face às leis. a história – dizia marc Bloch
– «é a ciência dos homens no tempo». Por isso se pode falar de longa duração,
de tempo curto e de acontecimento quase pontual, como durações construídas
pelo historiador e, nesse sentido, bem distintas das durações propostas por uma
fenomenologia da memória383. as durações temporais da história variam con-
soante o tipo da mudança (económica, institucional, política, cultural ou outra),
a escala utilizada para apreender a mudança (macro-histórica ou micro-histó-
rica), e o ritmo temporal apropriado à escala. assim, faz todo o sentido que as
mudanças sociais (económicas e geográficas) estudadas pela escola dos annales
se ajustem a uma escala macro-histórica e à longa duração. esta correlação
entre escala e ritmo temporal é reforçada por uma correlação suplementar entre
a natureza específica do fenómeno social tomado por referente e o tipo de
documento privilegiado. a longa duração dá prioridade às séries de factos repe-
tidos sobre os acontecimentos singulares, únicos. os factos repetidos são pas-
síveis de um tratamento quantitativo ou matemático. este tipo de história, que
atingiu o seu auge em meados do século XX, entrou em crise nas décadas
seguintes, vindo a ser substituída por uma que dá mais atenção às representa-

383
«même si la mémoire fait l’épreuve de la profondeur variable du temps et ordonne
ses souvenirs les uns par rapport aux autres, esquissant par là quelque chose comme une hié-
rarchie parmi les souvenirs, il reste qu’elle ne forme pas spontanément l’idée de durées mul-
tiples. celle-ci reste l’apanage de ce que Halbwachs appelle “mémoire historique”» (ricœur,
MHO, 233).
340 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

ções e às práticas, fenómenos que admitem um tratamento qualitativo das dura-


ções e, deste modo, reconduzem a história à fenomenologia da ação e à dura-
ção que lhe convém. em todo o caso, esta história não cortou com a busca de
objetividade e a postura científica que caracterizou os trabalhos mais significa-
tivos da escola dos annales.
identificámos os referentes da explicação histórica. caracterizemos agora,
de forma mais precisa, a natureza das operações que resultam da explicação.
sabemos que há vários tipos de explicação, vários modos de engrenar a con-
junção subordinativa causal “porque”, e não há nenhum que seja melhor ou
mais privilegiado do que outro. aquando da análise de Temps et Récit, demos
conta de várias modalidades explicativas. os factos repetíveis da história quan-
titativa prestam-se melhor à análise causal e ao estabelecimento de regularida-
des que puxam a ideia de causa, na aceção de eficiência, para a de legalidade,
de acordo com o modelo “se... então...”. Já os comportamentos e as reações dos
agentes sociais face à pressão das normas sociais (que podem ser de negocia-
ção, de justificação ou de denúncia) puxam a ideia de causa para a explicação
através de razões, teorizada por William Dray (cf. ricœur, TR i, 217-235). Não
obstante, a maioria dos trabalhos históricos situa-se num meio-termo entre estas
duas modalidades explicativas, alternando e combinando, por vezes de forma
aleatória, modelos díspares de explicação. uma alternativa média entre estes
dois extremos é a proposta de H. von Wright, em Explanation and Understand-
ing, que resulta num misto que faz alternar segmentos causais (no sentido de
regularidade legal) e teleológicos (no sentido de motivações suscetíveis de
racionalização) (cf. ricœur, TR i, 235-255).
todavia, ricœur não está interessado em prolongar ou repetir o que já
deixou registado em Temps et Récit acerca das várias modalidades explicativas.
o seu objetivo é testar o tipo de inteligibilidade própria da explicação/com-
preensão dentro de uma classe de objetos da operação historiográfica a que dá
o nome de representação. a representação é um objeto recortado no campo da
mutação social, ao lado de outros como o económico, o social e o político.
aliás, ricœur escolhe-o para referente da explicação/compreensão, precisa-
mente, porque é extraído do «campo mais vasto da mudança social, considerado
objeto total do discurso histórico (ricœur, MHO, 237)».
este termo vem substituir o que no interior da “nova história” foi durante
algum tempo conhecido com o nome de “mentalidade”. ricœur colhe o con-
ceito na obra de Bernard lepetit: Les formes de l’expérience (1995). lepetit,
referindo-se às práticas sociais e às representações integradas a essas práticas,
concebe as representações como a componente simbólica que atua na estrutu-
capítulo iV – rePreseNtação e Ficção 341

ração do vínculo social e das identidades. o estabelecimento da representação


como objeto histórico obriga à construção de um novo método explicativo: um
novo tipo de mudança, uma nova escala, um novo ritmo temporal. implica,
pois, uma redistribuição dos valores de importância, dos graus de pertinência,
que afetam a classe dos fenómenos económicos, sociais, políticos, não só na
escala de importância, mas também na escala adotada pelo olhar histórico em
termos de macro ou de micro-história. conceitos como os de singularidade (de
indivíduos e de acontecimentos), repetição, seriação (“mise en série”) são pos-
tos à prova, dando lugar a noções novas como a de “apropriação” e “nego-
ciação”.

Dissemos que o conceito de representação é construído sobre as ruínas do


conceito de mentalidade. De modo a fundamentar esta alteração conceptual,
ricœur passa em revista os momentos fortes da historiografia francesa, nos dois
primeiros terços do século XX, até ao período que historiadores e analistas qua-
lificaram de crise no interior da escola dos annales; crise esta que se refletiu
ao nível dos objetos de estudo, atingindo as mentalidades, e ao nível dos múl-
tiplos estilos de abordagem384.
a escola dos annales forjou o seu conceito de mentalidade sobre o con-
ceito de “mentalidade primitiva”, introduzido em sociologia por lucien lévy-
Bruhl. mas este conceito, copiado de lévy-Bruhl por lucien Febvre, nunca foi
pacífico, tendo sido alvo de constantes ataques críticos – «la notion de men-
talité représente en effet une notion particulièrement vulnérable à la critique en
raison de son manque de clarté et de distinction ou, si l’on est charitable, de
sa surdétermination» (ricœur, MHO, 238).
com este conceito, Febvre pretendia alargar o campo de pesquisa da his-
tória para lá da economia e, sobretudo, da política, e contrapor à história das
ideias praticada pelos filósofos e a maioria dos historiadores das ciências uma
história ancorada no domínio social385. Durante muito tempo, a história das
mentalidades trilhou o seu caminho entre a história económica e a história não-
-histórica das ideias. o objeto de estudo da história das mentalidades proposto
por Febvre, ao referir a mentalidade ou o “utensílio mental” a um coletivo e
não a um homem em particular, corria o risco de pecar por indeterminação,
como reconhece ricœur: «ce que peut et ne peut pas se figurer sur le monde

384
sobre a ascensão e queda da história das mentalidades veja-se Delacroix, Dosse,
garcia, Les courants historiques en France (2007b), pp. 408-482; 501-505.
385
Vide l. Febvre, Combats pour l’histoire, armand colin, Paris, 1953.
342 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

de l’homme d’une époque donnée, voilà ce que l’histoire des mentalités peut
se proposer de montrer, quitte à laisser dans l’indétermination la question de
savoir qui pense ainsi par le moyen de cet “outillage mental”» (ibid.: 243).

a segunda geração dos annales, que teve como representantes máximos


Fernand Braudel e ernest labrousse, e teve o seu apogeu nas décadas de cin-
quenta e sessenta, foi seduzida pelas estruturas económicas e sociais. o huma-
nismo da primeira geração, a de Febvre e Bloch, é reprimido em detrimento da
quantificação aplicada aos factos repetíveis e às séries, tratados estatisticamente
em computador. a hierarquia temporal instaurada por Braudel, com preferência
pela longa duração, visa opor às estruturas invariantes da sociologia dominante
as estruturas históricas, enquanto entidades mutáveis. a longa duração é conju-
gada com o espaço dos geógrafos, cuja constância ajuda a refrear as durações.
a ligação entre a longa duração e a macro-história resume o contributo desta
segunda geração à história das mentalidades. a preferência pela longa duração
leva Pierre chanu a aplicar ao mental a mesma bitola que aplica ao económico
e ao social: a do repetitivo, do serial e do quantitativo. esta opção tem como
consequência a entrada na história de uma certa tendência para o fatalismo,
devido à pressão inexorável das forças económicas; o homem é visto como um
ser domado por forças superiores a si.
um outro momento determinante na historiografia francesa ficou conhe-
cido como “nova história”, título retirado do dicionário publicado por Jacques
le goff em 1978, no prolongamento dos três volumes coletivos de Faire de
l’histoire (le goff; Nora 1974). Nesta época, a história das mentalidades eman-
cipa-se como alternativa à história serial, ou seja, ganha autonomia, vindo ocu-
par o tomo iii de Faire de l’histoire, dedicado aos novos objetos: o corpo, os
modos à mesa, a vida amorosa, os rituais de passagem, as línguas, as imagens,
os mitos, o clima, o livro, a morte, a educação, os afetos, a vida privada, a
jovem. assim, passamos de uma história que privilegiava os dados objetivos da
condição humana (as forças de produção, a sucessão de bons e maus anos, a
partilha social de produção) para uma que dá primazia aos dados subjetivos
(cultural e historicamente inscritos) da presença dos homens no mundo. Há
também uma mudança significativa nos esquemas de referência temporal: a
aparente inércia das categorias fundamentais das culturas levou a que se pres-
tasse mais atenção à eficácia a longo prazo dos fenómenos resultantes de uma
história quase imóvel do que à sua evolução ou variação. a história abandona
as suas velhas alianças com a geografia, a economia e a sociologia, aproxi-
mando-se mais da antropologia a quem vai buscar o catálogo de objetos a estu-
dar. ao mesmo tempo cai por terra o projeto de uma história global. contra a
capítulo iV – rePreseNtação e Ficção 343

unidade de método vigente anteriormente, a nova história reivindicava a fecun-


didade de abordagens e de sistemas de explicação plurais, tal como a virtude
heurística da ambiguidade da própria noção de mentalidade. o alargamento do
leque de matérias a estudar, para além de aumentar a fluidez semântica do con-
ceito de mentalidade, agrava a ambiguidade da noção, que passa a significar
quer um objeto de estudo quer uma dimensão do laço social distinto do laço
económico e do político e ainda um modo explicativo. Daqui resulta um claro
fracionamento ao nível dos objetos de estudo e de estilos de análise386.
em 1979, por ocasião dos cinquenta anos da revista Annales, os seus
membros fazem um balanço do percurso feito ao longo das cinco décadas.
chama-se a atenção para a multiplicidade e fragmentação de uma história que
se quer global e federadora. Quanto ao ramo particular da história das menta-
lidades, é definido, por estas alturas, por robert mandrou, como tentativa de
reconstituir «os comportamentos, as expressões e os silêncios que traduzem as
concepções do mundo e as sensibilidades coletivas; representações e imagens,
mitos e valores, reconhecidos ou suportados pelos grupos ou pela sociedade
global, e que constituem os conteúdos de psicologia coletiva» (apud ricœur,
MHO, 247).
toda a obra de mandrou está sob a égide da psicologia histórica, cuja
influência se lê na definição transcrita. Nesta linha, mas à margem da escola
dos annales, surgira em 1965 a obra emblemática de Jean-Pierre Vernant, Mythe
et Pensée chez les Grecs, que apresenta o resultado de pesquisas consagradas à
história interior do homem grego, às mudanças que o afetaram, entre o século
Viii e o século iV a. c., enfim, um apanhado das suas atividades e funções psi-
cológicas, como o espaço e o tempo, a memória, a imaginação, a pessoa, a von-
tade, as práticas simbólicas e o uso de signos, formas de pensar e categorias de
pensamento. o autor acabará por reconhecer o parentesco da sua obra com a
análise estrutural já posta em prática por outros estudiosos do mito grego.
É um ensaio corrosivo de geoffrey e. r. lloyd (Demystifying Mentali-
ties), qualificando o conceito de mentalidade de inútil e prejudicial, que põe
termo às mentalidades, pelo menos enquanto modo de explicação, deixando-lhe
ainda uma via aberta como estudo do que o autor designa de “estilo de pes-
quisa”, ou o caráter diferencial, distintivo de um objeto relativamente a uma
prática comum em determinada época. a noção de mentalidade deixa de ser um
princípio de explicação e passa a designar um explicandum.

386
Vd. F. Dosse, L’Histoire en miettes. Des «Annales» à la nouvelle histoire, la
Découverte, Paris, 1987; reed. Pocket, cool. agora, 1997.
344 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

Posto isto, ricœur, para libertar de vez o conceito da influência da socio-


logia donde provém, prefere pô-lo de parte e trazer para o seu lugar o de repre-
sentação. esta substituição semântica é sustentada, como sempre em ricœur,
pelas teses de três mestres da epistemologia das ciências humanas que ele ape-
lida de “mestres de rigor” (MHO, 253-266). são eles michel Foucault, michel
de certeau e Norbert elias. Foucault faz a apologia de uma ciência sem pre-
cedentes, designada arqueologia do saber. N. elias propõe uma ciência das for-
mações sociais que, parecendo contrária à história, se desenvolve de um modo
verdadeiramente histórico. certeau situa-se entre Foucault e elias, propondo o
ausente como a marca distintiva do passado; nesse sentido, a história constitui
uma vasta “heterologia”, um percurso dos “traços do outro”.

a substituição da mentalidade pela representação obriga e deriva também


e, principalmente, de uma mudança de escala. os modelos heurísticos propostos
por labrousse e Braudel e a maioria da escola dos annales funcionavam na
escala macro-histórica. a sequência de labrousse, estrutura, conjuntura, aconte-
cimento, e a hierarquia das durações de Braudel assentavam sobre um jogo de
escalas, mas a preferência dada, por exemplo, a uma leitura de cima para baixo
na hierarquia das durações não era reflectida pelo historiador como uma opção
entre outras. o acesso a esta mobilidade do olhar do historiador representa uma
importante conquista da história do último terço do século XX. Deve-se a Jac-
ques revel a adoção do conceito de “jogo de escalas” para designar o exercício
desta liberdade metodológica387. este jogo de escalas está na origem da micro-
-história adotada por alguns historiadores italianos. a observação histórica faz-
-se agora ao nível da vila, da aldeia, de um grupo de famílias, de um indivíduo
envolvido no tecido social. No entanto, o que interessa aqui é a variação de
escala, e não o privilégio particular concedido à dimensão micro388.
a variação de escalas faz-nos tomar consciência de que a realidade per-
cebida varia consoante a amplitude da focagem. Há conexões não percetíveis na
escala macro-histórica389.

387
Vid. Jacques revel (org.), Jeux d’échelles. La micro-analyse à l’expérience, galli-
mard – le seuil, Paris, 1996. Nesta obra, revel (que contribui com o texto: «micro-analyse
et construction du social») e Bernard lepetit (que contribui com o texto: «De l’échelle en
histoire») reúnem ensaios de alguns dos mais ativos historiadores da micro-história.
388
«Notons d’emblée que la dimension “micro” ne jouit, à cet égard, d’aucun privilège
particulier. c’est le principe de la variation qui compte, non le choix d’une échelle particu-
lière» (revel 1996: 19).
389
«Faire varier la focale de l’objectif, ce n’est pas seulement faire grandir (ou dimi-
nuer) la taille de l’objet dans le viseur, c’est en modifier la forme de la trame. ou, pour
capítulo iV – rePreseNtação e Ficção 345

Na cartografia, a mudança de escala ou de proporção não impede uma


continuidade ao nível do espaço; o território é o mesmo, a mudança faz-se ao
nível da informação recolhida. Numa escala maior vemos as grandes estradas,
numa escala menor, apercebemo-nos da distribuição das casas pela povoação.
Não há, pois, oposição entre escalas. o terreno assegura a continuidade390.
o mesmo não se passa na história. Nesta, as dimensões não são mensuráveis
como nas ciências nas quais se inspirou: a cartografia, a arquitetura e a ótica.
mudando de escala não vemos as mesmas coisas aumentadas ou diminuídas.
Vemos coisas, literalmente, diferentes. Por isso, não é legítimo falar-se de redu-
ção de escala. são encadeamentos diferentes em configuração e em causalidade.
uma das falhas maiores da história das mentalidades foi precisamente não ter
operado uma mudança de escalas; tendo-se confinado à longa duração, a das
mentalidades em massa, não prestou atenção às condições da sua difusão para
escalas menores. Faltou-lhe estudar as tensões sociais que se operam entre as
camadas sociais que detêm o poder e legislam e as que recebem ordens.
De façon générale, l’histoire des mentalités, dans la mesure où elle a simplement
étendu des modèles macrohistoriques de l’histoire économique au social et aux
phénomènes de “troisième type”, a tenu à traiter le concept de pression sociale
dans son rapport à la réception des messages par les agents sociaux comme une
force irrésistible agissant de façon inaperçue. le traitement des rapports entre cul-
ture savante et culture populaire a été particulièrement affecté par cette présuppo-
sition solidaire d’une lecture menée du haut vers le bas de l’échelle sociale
[ricœur, MHO, 271].

Duas obras e dois historiadores considerados pioneiros da micro-história


detêm a atenção de ricœur, em virtude da introdução de uma nova escala no
seio da história. são eles carlo ginzburg, autor da famosa obra histórica de
1976, Il formaggio e i vermi: Il cosmo di un mugnaio del ‘500 e de giovanni
levi, autor de L’eredità immateriale: carriera di un esorcista nel Piemonte del
Seicento, publicada em 1985.

recourir à un autre système de références, jouer sur les échelles de représentation en carto-
graphie ne revient pas à représenter une réalité constante en plus grand ou plus petit, mais
à transformer le contenu de la représentation (c’est-à-dire le choix de ce qui est représenta-
ble)» (revel 1996: 19).
390
a esse nível, Braudel foi pioneiro no uso de escalas de observação, na sua obra
sobre o mediterrâneo e o mundo mediterrânico. mas o seu modelo macro-histórico era mais
cartográfico do que propriamente histórico, e isto devido a alguma hesitação no manusea-
mento da hierarquia das durações (cf. ricœur, MHO, 270-271).
346 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

a obra de carl ginzburg narra-nos o quotidiano, as ideias, os sentimentos,


sonhos e aspirações de um moleiro de Friuli, Domenico scandella, mais conhe-
cido por menocchio, julgado e condenado no tribunal da inquisição, no século
XVi. ginzburg seleciona um entre mais de dois mil processos de julgamento
da santa inquisição que existiram na região do Friuli. os documentos de base
utilizados são os dois processos que contra menochio dirigiu a santa inqui-
sição, aos quais se juntam outros documentos relativos à sua vida de artesão,
à sua família, e também às suas leituras. menochio sobressai pelo seu caráter
singular ou excecional, que espantou os próprios inquisidores. Daí que a
sua história não possa ser alvo de um tratamento serial, quantitativo. assim
sendo, não pode este género de história cair na anedota e na história de
tipo factual? Não. em primeiro lugar, porque não se trata de história política.
Depois, mais importante, é que são as propriedades latentes e dispersas da lin-
guagem histórica disponível, ignoradas pelo computador, que o historiador atua-
liza e agencia num discurso. ginzburg articula operações de leitura de um
homem do povo, influenciado pela leitura de almanaques, canções, livros de
piedade, vidas de santos, brochuras de todos os tipos que ele reformula à sua
maneira.
giovanni levi conta-nos a história de um exorcista do Piemonte italiano,
às voltas também com um processo da inquisição e, a pretexto deste, descreve-
-nos as relações sociais e económicas do povo de santena, à qual pertence o
protagonista da história. Para a reconstrução da vida pública e privada deste
povo durante os séculos XVii e XViii, o historiador levi teve que pesquisar
nos arquivos notariais, paroquiais e administrativos da região, reconstruindo
núcleos sociais e laços sanguíneos. em termos de escala, a ação decorre no rés-
-do-chão («l’histoire au ras du sol» é o título do prefácio de Jacques revel que
antecede a tradução francesa): na aldeia. Não se trata de massas nem de um só
indivíduo. também não se trata de indicadores quantificados, nem das regula-
ridades de uma história imóvel, estável, de normas ou de costumes comuns.
a aparição e a articulação dos fenómenos narrados resultam de uma mudança
de escala. em vez de agregados de longa duração, dá-se a conhecer todo um
complexo de interrelações e interações que são recolhidas e reconstruídas com
base em documentos. o que se vê na escala micro-histórica usada por levi é
o social em interação ao nível aldeia: as estratégias familiares e individuais de
aquisição de poder, confrontadas com as realidades económicas, as relações hie-
rárquicas, num jogo de intercâmbio entre o centro e a periferia. o jogo social
e político é fortemente marcado pela incerteza, em oposição à fixidez, à per-
manência, à segurança, em suma, à certeza que caracteriza as normas sociais
capítulo iV – rePreseNtação e Ficção 347

na grande escala, as quase-invariantes da história das mentalidades na longa


duração391.
Demonstrada que está a variação de escalas, resta-nos acompanhar ricœur
no passo final, que leva da crise das mentalidades à instauração de um novo
conceito, o de representação. a intenção do filósofo francês é contrariar a frag-
mentação que se instalou na historiografia francesa, no último terço do século
XX, operando uma reunificação do campo histórico, onde a história das men-
talidades desempenhe o papel federador, sob a condição de assumir o título e
a função de uma história das representações e das práticas (cf. ricœur, MHO,
278). Para isso socorre-se do conceito de variação de escalas, apropriado para
as representações, e da obra de Bernard lepetit, Les formes de l’expérience.
Une autre histoire sociale (1995), que define um novo objeto para a história:
as práticas sociais e as identidades.
os historiadores que colaboram nesta obra estabelecem como tema aquele
que para ricœur é o objeto pertinente do discurso histórico: a instauração do
vínculo social e das modalidades de identidade em determinadas sociedades392.
acentua-se uma abordagem pragmática cuja tónica incide sobre as práticas
sociais e as representações integradas nestas práticas. tendo como novo objeto
de estudo as identidades e as práticas sociais, os indivíduos deixam de ser vis-
tos como entidades estanques e estáticas na sociedade, valorizando-se a intera-
ção social. a sociedade deve ser analisada como uma categoria da prática
social, isto significa que as identidades sociais ou os vínculos sociais se defi-
nem pelos usos e não pela natureza393.

391
Delacroix diz que as obras de c. ginzbug e g. levi têm em comum o facto de
«romperem com a história social labroussiana, com a história quantitativa e serial e com a
história das mentalidades» (Delacroix, Dosse, garcia 2007b: 496).
392
Basta passar os olhos pelo índice da obra para constatarmos a diversidade de socie-
dades e problemas estudados: o exercício do poder no islão mediterrânico; a questão do
“droit de cuissage” (ou direito à primeira noite) no ocidente católico; o caso da indústria
naval entre os finais do séc. XiX e inícios do séc. XX; a construção da identidade social
entre os magnatas de Florença, em finais da idade média; os pequenos patrões da indústria
têxtil, num quarteirão de Paris, na atualidade; as configurações da sociedade francesa do séc.
XiX; e as curvas económicas do antigo regime. a disparidade de histórias e lugares evo-
cados justifica-se pelas semelhanças na forma de abordagem, no teor de algumas questões,
mas, fundamentalmente, as leituras e o vocabulário partilhados assinalam uma mudança cien-
tífica, a elaboração de novos modelos e a constituição de novas referências em história.
393
«on proposait d’abord de réordonner la hiérarchie des intérêts de la discipline en
posant comme problème prioritaire la question des identités et des liens sociaux. a une his-
toire des mentalités trop strictement entendue, il s’agissait de rappeler que les hommes ne
348 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

Há aqui, pois, um esforço deliberado de acompanhar os tempos. a história


segue as outras disciplinas que no ocaso do século XX se afastam do modelo
estruturalista e se aproximam de um novo objeto de estudo que tem na prag-
mática o seu interesse central.
la pragmatique est à la mode: les hommes, découvre-t-on, sont d’abord occupés
à régler des affaires. [...] Dans plusieurs disciplines s’élaborent ainsi les remises
en cause qui, rapprochés, manifestent la cristallisation d’un nouveau paradigme.
Faut-il pour autant que l’histoire participe au mouvement? Beaucoup de raisons
militent en ce sens. D’abord, tous ces schémas analytiques partagent avec l’his-
toire telle que nous l’entendons un postulat commun. ils trouvent dans les moda-
lités d’agencement du social et dans les pratiques interindividuelles et collectives
qui les font jouer la source de la compréhension du social. la société ne dispose,
pour organiser ses structures du moment où réguler ses dynamiques, d’aucun point
fixe extérieur et qui lui soit transcendant. elle produit ses propres références et
constitue pour elle-même son propre moteur. elle est, pour l’analyse, à la fois
objet et principe d’explication [lepetit 1995: 14].

melhor articulada com a prática ou com as práticas sociais, a ideia de


representação apresenta recursos dialéticos inerentes à própria sociedade que a
ideia de mentalidade não deixava ver. ora, a generalização do jogo de escalas
constitui para ricœur a via apropriada para fazer emergir a dialética patente na
ideia de representação em consonância com a de prática social. o mais impor-
tante no jogo de escalas não é tanto a opção por uma determinada escala, mas
sim a própria variação de cima para baixo e de baixo para cima, na medida em
que da variação resulta um conjunto de efeitos diversos. ricœur identifica três
tipos de efeitos em torno da temática das identidades e do vínculo social, sendo
que contribuem, cada um à sua maneira, para o «recentramento da historiogra-
fia do último terço do século XX» (MHO, 280). Das três linhas que convergem
na variação de escalas, aponta, em primeiro lugar, as variações que afetam os

sont pas seulement au monde mais qu’ils sont entre eux, et qu’on ne peut considérer qu’ils
vivent dans un univers de représentations indifférent aux situations dans lesquelles elles se
trouvent activées. contre une histoire quantifiée des structures sociales, il s’agissait d’opposer
[...] que les hommes ne sont pas dans les catégories sociales comme des billes dans des
boîtes, et que d’ailleurs les “boîtes” n’ont d’autre existence que celles que les hommes [...],
en contexte, leur donnent. on proposait donc, au point de départ d’un nouveau moment his-
toriographique, de recommencer à prêter une attention particulière à la société, et d’analyser
celle-ci comme une catégorie de la pratique sociale, c’est-à-dire de considérer que les iden-
tités sociales ou les liens sociaux n’ont pas de nature, mais seulement des usages» (lepetit
1995: 13).
capítulo iV – rePreseNtação e Ficção 349

graus de eficácia e de coerção das normas sociais394; em segundo, as que


modulam os graus de legitimação em curso em múltiplas esferas de pertença
pelas quais se distribui o vínculo social395; por fim, os aspetos não quantitativos
da escala dos tempos sociais396 (ricœur, MHO, 280-292). a ideia que preside
a estas três linhas de exame é a de mudança social. No termo deste triplo per-
curso, o autor sente-se em condições para, finalmente, encarar a estrutura dia-
lética que legitima a substituição da ideia de mentalidade pela de representação.
o primeiro benefício da variação de escalas, verificado na micro-história,
é o acento que se põe sobre as estratégias individuais, familiares ou de grupo,
que põem em causa a pressuposição (macro-histórica) de que os atores sociais
da camada mais baixa estão, inexoravelmente, submetidos a todas as pressões
sociais que lhes são impostas, sobretudo, as simbólicas. a abordagem micro-his-
tórica põe a descoberto as estratégias aleatórias, dentro das quais se valoriza os
conflitos e as negociações sob o signo da incerteza. mas estes emaranhados
entre a pressão exercida pelos modelos de comportamento percebidos como
dominantes e a sua receção ou apropriação vai para além das sociedades estu-
dadas pela micro-história. os termos dominantes são agora os de circulação,
negociação e apropriação em vez dos tradicionais binómios da macro-história,
como força/fraqueza, autoridade/resistência, que opõem uma cultura sábia a
uma cultura popular. Deste modo, apreende-se toda a complexidade do jogo
social. mas a visão macro-histórica não tem de ser necessariamente abolida.
uma análise em grande escala é sempre bem-vinda para averiguar fenómenos
de longa duração – «À cet égard, l’extension au domaine des représentations
des modèles d’histoire de longue durée reste légitime dans les limites du point
de vue macrohistorique: il y a un temps long des traits de mentalités» (ricœur,
MHO, 281).

394
sob o signo de escala de eficácia ou de coerção, ricœur coloca as instituições e
as normas, duas realidades que se prestam a uma variação da escala de eficácia. «sur le che-
min de la représentation, l’institution crée de l’identité et de la contrainte. cela dit, il faut
peut-être cesser d’opposer le côté coercitif, accordé de façon préférentielle à l’institution, au
côté présumé subversif reconnu à l’expérience sociale» (ricœur, MHO, 283).
395
os graus de legitimação são os graus de grandeza que os agentes sociais podem
ambicionar obter na ordem da estima pública. «on est rendu grand lorsque, dans un contexte
de discorde, on se sent justifié d’agir de la manière qu’on le fait. grandeur et justification
vont ainsi de pair» (ricœur, MHO, 284).
396
ricœur aplica a noção de escala e de variação de escalas às modalidades intensivas
(e não extensivas) do tempo histórico, tais como, ritmo, acumulação, recorrência, persistência.
No fundo, trata-se de fazer uma revisão dos conceitos temporais empregues na historiografia,
em função da mudança social.
350 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

o triplo desenvolvimento que ricœur propõe para a noção de variação de


escalas tem como principal objetivo demonstrar a insuficiência do conceito de
mentalidade, que em confronto com os efeitos referidos se revela ora unilateral
(omite a resposta dos recetores das mensagens sociais) ora indiferenciado
(carece de uma articulação plural do espaço social) ora massivo (privilegia as
estruturas de longa duração quase imóveis e as conjunturas cíclicas, em detri-
mento dos acontecimentos reduzidos à função de rutura). isso explica a legítima
opção pelo conceito de representação: «À l’encontre donc de l’idée unilatérale,
indifférenciée et massive de mentalité, l’idée de représentation exprime mieux
la plurivocité, la différenciation, la temporalisation multiple des phénomènes
sociaux» (ricœur, MHO, 292).
Neste sentido, ricœur não tem problemas em admitir que o campo polí-
tico é propício a uma exploração dos fenómenos que fazem sobressair a cate-
goria da representação, sem que isso lhe retire capacidade científica e concep-
tual. Pode mesmo combinar-se a representação com a tripla sequência de
estrutura, conjuntura e acontecimento. No entanto, para evitar qualquer deriva
semântica, nomeadamente a polissemia, o filósofo francês tem o cuidado de
aproximar a noção de representação enquanto objeto das duas outras aceções
que assume na sua obra. a fase de expressão literária ou de escritura só merece
o nome de representação porque o discurso histórico declara a sua ambição,
reivindicação, pretensão para representar em verdade o passado.
a questão que se põe é a de saber se existe uma relação mimética entre
a representação-objeto, enquanto momento de fazer história (“faire l’histoire”),
e representação-operação, enquanto momento de fazer a história (“faire de l’his-
toire”). Por outras palavras, será que o historiador, ao fazer a história, imita de
forma criativa, elevando-o ao nível do discurso sábio, o gesto interpretativo
pelo qual aqueles e aquelas que fazem história se tentam compreender a eles
próprios no seu mundo? ricœur responde: «l’hypothèse est particulièrement
plausible dans une conception pragmatique de l’historiographie qui veille à ne
pas séparer les représentations des pratiques par lesquelles les agents sociaux
instaurent le lien social et le dotent d’identités multiples» (MHO, 295).
Quanto à relação da representação-objeto com a representação mnemónica,
constata-se que o ato de fazer memória também é regido pela ambição, reivin-
dicação, pretensão de representar com fidelidade o passado. Platão e aristóteles
reconheceram à memória esse poder de tornar presente um coisa ausente ocor-
rida antes – «Présence, absence, antériorité, représentation forment ainsi la toute
première chaîne conceptuelle du discours de la mémoire. l’ambition de fidélité
de la mémoire précéderait ainsi l’ambition de vérité de l’histoire, dont il res-
terait à faire la théorie distincte» (ricœur, MHO, 296).
capítulo iV – rePreseNtação e Ficção 351

as características que detetámos na representação mnemónica e na literá-


ria definem a bipolaridade que caracteriza a representação, em geral, e a repre-
sentação-objeto, em particular: por um lado, é a evocação de uma coisa ausente
por intermédio de uma coisa substituída que a representa na sua ausência; por
outro, é a exibição de uma presença oferecida ao olhar, sendo que a visibili-
dade da coisa presente tende a ocultar a operação de substituição que equivale
a uma verdadeira substituição do ausente. esta conceção – similar à proposta
pelos gregos para a imagem mnemónica (eikon), à exceção da dimensão tem-
poral que não vem referida – presta-se a um alargamento ilimitado do lado de
uma teoria geral do signo. louis marin (1993) apresenta uma definição seme-
lhante, em que a representação é, por um lado, «présentification de l’absent ou
du mort» e, por outro, «autoprésentation instituant le sujet de regard dans l’af-
fect et le sens» (apud ricœur, MHO, 300). esta definição não só serve para a
representação enquanto expressão literária da historiografia como para a que
corresponde aos fenómenos sociais que antes eram designados de mentalidades.
O historiador procura representar o passado do mesmo modo que os agentes
sociais representam para si o vínculo social e o seu contributo para este vín-
culo. estes, fazendo-se implicitamente leitores do seu ser e do seu agir em
sociedade, são como historiadores do seu tempo presente.
Prevalece também na definição de marin a dimensão imagética e a sua
eficácia social enquanto representação do poder: «l’image est à la fois l’instru-
ment de la force, le moyen de la puissance et sa fondation en pouvoir» (marin;
apud ricœur, MHO, 300). ao ligar o poder à imagem, marin põe claramente
a tónica da teoria da representação na eficácia social397.
substituição e visibilidade (evocação da ausência e exibição da presença)
são, pois, as duas faces de qualquer representação. aqui, coloca-se-nos o pro-
blema da concorrência entre imagem e texto na representação do ausente. mas
esta questão leva-nos para o domínio da expressão literária da operação histo-
riográfica, onde marin terá a palavra principal. logo, a questão da representa-
ção-objeto não fica resolvida sem uma reflexão sobre a representação-operação.
ricœur di-lo explicitamente, ao convidar-nos a transitar para a última fase da
epistemologia histórica com uma perplexidade: «une histoire des représenta-
tions peut-elle atteindre par elle-même un degré acceptable d’intelligibilité sans
anticiper ouvertement sur l’étude de la représentation en tant que phase de
l’opération historiographique?» (MHO, 301).

397
este é um tema recorrente do pensamento de louis marin. Vide louis marin, Le
Portrait du roi, Éd. de minuit, Paris, 1981.
352 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

3.  REPRESENTAÇÃO LITERÁRIA

tendo como salvo-conduto o conceito polissémico de representação, tran-


sita-se para esta última fase do processo historiográfico. No capítulo anterior, a
representação foi entendida como objeto privilegiado de um novo modelo de
compreensão/explicação, assente na variação de escalas sobre o plano da forma-
ção dos vínculos sociais e das identidades, tendo ficado no ar a suspeita de que
a forma como os agentes sociais se compreendem está em consonância com a
forma como o historiador representa para si esta conexão entre a representação
e ação social. sugeriu-se mesmo que a dialética existente entre a evocação do
objeto ausente e a visibilidade da sua presença, já percetível na representação-
-objeto, é mais fácil de decifrar na representação-operação.
Para desfazer equívocos398, ricœur designa esta fase da representação his-
tórica com uma expressão que vai buscar a michel de certeau, representação
escriturária (“représentation scripturaire”)399. admite também a expressão repre-
sentação literária, para marcar a adjunção de signos de literariedade aos crité-
rios de cientificidade que regem a produção do discurso histórico. É por esta
inscrição final que a história se instala no domínio da literatura; pertença já
implícita no plano documental, mas que agora se torna manifesta. em todo o
caso, este facto não nos deve criar a falsa ideia de que a ambição de rigor foi
substituída por uma deriva estética. Não falamos de três fases cronologicamente
orientadas, mas de três níveis mesclados da operação historiográfica, a que só
por uma questão didática ricœur dá uma aparência de sucessão cronológica400.

398
Na abertura desta última fase da operação historiográfica, ricœur relembra mais
uma vez que a designação “escrita da história” não é correta, pois que a história é toda ela
escrita, desde o momento de redação dos documentos dos arquivos até ao momento de reda-
ção para publicação do discurso histórico. tal como os documentos tinham o seu leitor, o his-
toriador pesquisador, também o livro de história tem os seus leitores, o público que o lê. «en
tombant ainsi dans l’espace public, le livre d’histoire, couronnement du “faire de l’histoire”,
reconduit son auteur au cœur du “faire l’histoire”. arraché par l’archive au monde de l’action,
l’historien s’y réinsère en inscrivant son texte dans le monde de ses lecteurs; à son tour, le
livre d’histoire se fait document, ouvert à la suite des réinscriptions qui soumettent la
connaissance historique à un procès incessant de révision» (ricœur, MHO, 302).
399
Na terceira fase da operação historiográfica, a que dá o título de escritura, michel
de certeau define a operação que faz passar da prática de investigação à escrita de represen-
tação escriturária (cf. certeau, 1975, 119-12).
400
les trois phases de l’opération historique, faut-il le rappeler, ne constituent pas des
stades successifs, mais des niveaux enchevêtrés auxquels seul le souci didactique donne une
apparence de succession chronologique (ricœur, MHO, 303).
capítulo iV – rePreseNtação e Ficção 353

a escolha do termo representação não só permite estabelecer uma ligação


de continuidade com a representação-objeto como também com a representação
mnemónica, que, na senda de Platão e aristóteles, caracteriza a atividade da
memória como a recordação-imagem do que foi antes visto, ouvido, sentido,
aprendido, adquirido. a problemática do ícone do passado, enquanto presença
de uma ausência passada, reaparece aqui na sua máxima força, pois que a
representação literária da história está numa linha de continuidade com repre-
sentação mnemónica, herdando as suas aporias com novos contornos, relaciona-
dos com o facto de na história, ao invés da memória, não haver correspondên-
cia entre conhecimento e reconhecimento. É, por isso, que a representação
deverá dar lugar à representância, porquanto esta faz jus ao intento noético da
história e ao seu regime de verdade. Por outras palavras, para que seja possível
manter a continuidade homonímica, há que especificar os traços distintivos da
representação literária. Nesse sentido, ricœur vai buscar a Temps et Récit uma
das suas chaves hermenêuticas mais profícuas: a noção de representância. a
representância acentua o caráter ativo da operação histórica mas também o seu
intento noético, que faz da história a herdeira sábia (científica) da memória e
da sua aporia fundadora. De facto, a representação escriturária não se limita a
dar uma roupagem verbal a um conjunto de factos históricos que, suposta-
mente, já formariam um todo coerente antes da sua configuração literária, ela
é uma operação que tem o privilégio de fazer emergir a referência visada pelo
discurso histórico. esta é a meta para onde no encaminhamos. antes, temos de
percorrer com ricœur algumas etapas essenciais que põem a descoberto os
recursos específicos da representação, a começar pelas suas formas narrativas.
a estratégica de situar a narratividade da história no terceiro estádio da
operação historiográfica é uma opção muito pertinente. Deste modo, ricœur
livra-se da polémica, que pacientemente expôs em Temps et Récit, entre os
adeptos e os adversários da história narrativa: uns (narrativistas) a reivindicar a
configuração narrativa como modo de explicação alternativo à explicação cau-
sal; outros a pretenderem substituir a narrativa histórica pela história-problema.
se tanto uns como outros concordam que narrar já é, de algum modo, explicar,
é porque o problema está na posição em que colocaram a narração dentro do
processo historiográfico. situar a narratividade histórica na fase escriturária tem
a vantagem de a trazer para fora dessa polémica e do impasse gerado, pondo-a
no seu devido lugar, mas também permite a ricœur explorar o seu potencial
representativo. É por isso que à representação e narração se segue um capítulo
destinado à representação e retórica. segundo ricœur, há aqui alguns avanços
substanciais relativamente a Temps et Récit. aí, não se marcava a diferença
entre representação-explicação e narração, em parte devido à atenção exclusiva
354 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

dada à relação direta entre tempo e narrativa, omitindo a passagem pela memó-
ria, e em parte devido à ausência de uma análise detalhada dos procedimentos
de explicação/compreensão. mas a noção de intriga e de configuração narrativa
mantêm-se válidas. em Temps et Récit, os recursos retóricos também não eram
distinguidos dos da narratividade (MHO, 305: notas 3 e 4).
em La mémoire, l’histoire, l’oubli, o aspeto retórico da configuração nar-
rativa é analisado em três vertentes: o papel seletivo das figuras de estilo e de
pensamento na escolha das intrigas; a mobilização de argumentos prováveis na
trama da narrativa; a preocupação do escritor em convencer o seu público per-
suadindo-o. É a estas solicitações do narrador, expressas através dos recursos
retóricos empregues, que corresponde uma determinada postura do leitor na
receção da obra. o momento em que se reflete mais aberta e concretamente as
afinidades entre história e ficção surge a propósito desta última equação entre
a representação e os prestígios da imagem. Não se trata de um confronto entre
duas formas literárias, mas da exposição da análise mais ampla que louis
marin, figura tutelar desta matéria, dedica aos chamados “poderes da imagem”,
os quais definem os contornos de um vasto império que é o outro do real. com
esta problemática específica da composição imagética (“mise en images”) das
coisas ditas do passado põe-se a descoberto uma nova dimensão no trabalho de
representação. ao desejo e ao cuidado que já havia de tornar legível ou coe-
rente um texto vem juntar-se uma nova preocupação: a de dar visibilidade ou
tornar visível aquilo que se narra. ricœur resume-o do seguinte modo: «la
cohérence narrative confère lisibilité, la mise en scène du passé évoqué donne
à voir» (MHO, 305-306).

3.1.  Representação e narratividade

a narratividade comporta duas vertentes na arquitetura do saber histórico.


Por um lado, não constitui uma alternativa explicativa à explicação/compreen-
são, por outro, é propriedade autêntica da operação historiográfica, mas um
nível diferente da explicação/compreensão, ou seja, não entra em concorrência
com os vários usos (finais ou causais) do conector “porque”. No entanto, qual-
quer modalidade de explicação/compreensão necessita necessariamente da con-
figuração narrativa, e a representação sob o seu aspeto narrativo não se acres-
centa de fora à fase documental e à fase explicativa, mas acompanha-as e
sustenta-as.
Nesse sentido, ricœur dá por ultrapassada a querela que expôs em Temps
et Récit i, entre os historiadores franceses – críticos da história-narrativa, pro-
capítulo iV – rePreseNtação e Ficção 355

motores da história-problema – e os narrativistas americanos, que elevaram o


ato configurador da composição narrativa à categoria de explicação única entre
as explicações causais. Na verdade, se há coisa que não se pode esperar da nar-
ratividade é que ela preencha uma lacuna da explicação/compreensão. relem-
bramos que a luta dos historiadores franceses pôs no mesmo plano a sequência
acontecimento-narrativa-primado do político. assim, insurgiram-se contra a his-
tória dita factual (“événementielle”) que narrava acontecimentos breves, singu-
lares, explosivos, resultantes das decisões de figuras influentes do campo polí-
tico, militar, diplomático, eclesiástico (chefes de estado, chefes de guerra,
ministros, prelados). a associação entre duas noções pobres de acontecimento e
narrativa levou à rejeição dos dois por parte da escola dos annales – «À un
concept pauvre d’événement correspond un concept pauvre de récit» (ricœur,
MHO, 308). em lugar deste tipo de história dita metódica, política ou de bata-
lha, os historiadores franceses fomentaram uma história total, que abrangia todo
o campo social; com forte incidência, numa primeira fase, sobre as condições
económicas e sociais. É neste ambiente que surge a história praticada por Brau-
del, que opõe a longa duração ao acontecimento pontual. De uma teoria do
acontecimento único e irrepetível passa-se a uma teoria defensora do aconteci-
mento repetível, passível de se quantificar e seriar.
ao mesmo tempo, do outro lado do atlântico, a escola narrativista, con-
frontada com o modelo nomológico, reavalia os recursos da inteligibilidade da
narrativa, ao ponto de a considerar digna de competir com outras formas de
explicação causal que as ciências humanas têm em comum com as ciências
naturais, caindo no extremo oposto – «D’obstacle à la scientificité de l’histoire,
le récit devient son substitut» (ricœur, MHO, 310). os narrativistas não se
prenderam ao caráter episódico da narrativa que a escola dos annales tanto
havia criticado, mas esforçaram-se por valorizar o ato configurador. Para eles,
compreender uma narrativa é o mesmo que explicar os acontecimentos que ela
integra. Não consideraram a fenda epistemológica que se abre entre as histórias
que contamos (stories) e a história (history) que construímos com base em tra-
ços documentais. logo, em vez de se limitar a confrontar teorias contrárias
sobre a pertinência explicativa da narrativa enquanto ato configurador (mink),
ricœur considera mais útil interrogar-se sobre o modo como se pode conciliar
os dois tipos de inteligibilidade, a narrativa e a explicativa.
Quanto à inteligibilidade narrativa, uma aproximação das reflexões ainda
muito intuitivas da escola narrativista aos trabalhos mais analíticos da narrato-
logia ao nível da semiótica do discurso permite chegar à noção complexa de
coerência narrativa. esta noção não se confunde nem com a “coesão de uma
vida” de que falava Dilthey nem com a “conexão causal ou teleológica” da
356 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

explicação/compreensão. mas, segundo ricœur, «a coerência narrativa enraíza-


-se na primeira e articula-se com a segunda» (MHO, 313): «ce qu’elle apporte
en propre, c’est ce que j’ai appelé synthèse de l’hétérogène, pour dire la coor-
dination soit entre événements multiples, soit entre causes, intentions, et aussi
hasards dans une même unité de sens (ibid.).
De acordo com esta definição, resta-nos concluir que a forma literária da
coordenação é a intriga, que «consiste na condução de uma ação complexa de
uma situação inicial para uma situação final por meio de transformações regu-
ladas que se prestam a uma formulação apropriada no âmbito da narratologia»
(ricœur, MHO, 313). estas transformações são reguladas pelo critério que aris-
tóteles definiu como verosimilhança ou plausibilidade, que tem como função
persuadir ou convencer o leitor, ou seja, levá-lo a acreditar na coerência nar-
rativa da história que lê.
ricœur extrai duas implicações deste conceito de coerência narrativa. a
primeira diz respeito à definição de acontecimento. No plano narrativo, o acon-
tecimento é o que faz avançar a ação, ou seja, é uma variável da intriga. acon-
tecimento é tudo o que entra em discordância com a concordância da ação.
intriga e acontecimento formam, pois, uma dupla inseparável, sendo que esta
cumplicidade pode ser transposta, com benefícios consideráveis, para o campo
da historiografia, extravasando em larga escala a história factual, que apenas
fixa o caráter breve e súbito do acontecimento narrativo. também existem
acontecimentos de longa duração, à medida da amplitude e do alcance da his-
tória narrada: o renascimento, a reforma, a revolução Francesa são aconteci-
mentos de uma intriga multissecular.
a segunda implicação tem que ver com as personagens. a noção de iden-
tificação narrativa, correlativa da de coerência narrativa, também é passível de
uma transposição pertinente para o campo histórico. É nesse sentido que o
mediterrâneo da obra de Braudel pode ser considerado o quasi-personagem da
quasi-intriga que narra a ascensão e a queda deste mar na época de Filipe ii401.

401
Numa nota de rodapé (MHO, 314: nota 12), ricœur informa que no contexto desta
obra o prefixo restritivo “quase” que, em Temps et Récit, antepunha à intriga, às personagens
e aos acontecimentos, pode ser suprimido, uma vez que não se trata mais de estender ou
transpor as categorias da narrativa ficcional e tradicional ao discurso sábio da história. Nessa
altura, a tónica era posta sobre a derivação indireta da história a partir da narrativa tradicional
e ficcional. em La mémoire, l’histoire, l’oubli, as categorias narrativas operam de pleno
direito no plano historiográfico, na medida em que o vínculo pressuposto nesta obra entre a
história e o campo prático onde se desenrola a ação permite uma aplicação direta da categoria
aristotélica dos “agentes” no domínio da história. Não se fala mais em transposição ou exten-
são, mas sim de articulação entre a coerência narrativa e a conexão explicativa.
capítulo iV – rePreseNtação e Ficção 357

o autor francês ilustra a sua tese com dois exemplos onde a “coerência
narrativa” e a “conexão causal ou final” operam em conjunto. os dois exem-
plos visam dar uma resposta ao dilema e à aporia dele resultante, decorrentes
da reflexão de louis o. mink, nos seguintes termos: é vã toda e qualquer ten-
tativa para encontrar uma relação direta entre a forma narrativa e os aconteci-
mentos tal como aconteceram; esta relação só pode ser indireta através da
explicação e, ainda antes, através da fase documental, a qual, por sua vez,
remete para o testemunho e para a credibilidade atribuída à palavra de alguém.
o primeiro exemplo é sugerido pelo jogo de escalas, entendido como sín-
tese do heterogéneo ou como narrativização, decorrente da própria mudança de
escalas402. ricœur constata que, apesar de privilegiarem determinada escala,
nem a micro-história nem a macro-história se confinam ao uso contínuo de uma
só escala. a micro-história aponta, de preferência, o seu foco para a aldeia,
para os grupos de indivíduos e famílias que interagem nesse meio, onde se
desenrolam negociações e conflitos e se descobre a situação de incerteza que
este tipo de história põe em relevo. No entanto, não deixa de ler, de baixo para
cima, as relações de poder que se jogam a uma escala superior: «la discussion
sur l’exemplarité de ces histoires locales menées au ras du sol présuppose l’en-
chevêtrement de la petite histoire dans la grande histoire en ce sens, la micro-
histoire ne manque pas de se situer sur un parcours de changement d’échelle
qu’elle narrativise chemin faisant» (ricœur, MHO, 315).
com a macro-história passa-se algo similar. a narrativização é patente,
por exemplo, quando há o desejo de apurar o alcance (portée) ou a persistência
dos efeitos de um determinado acontecimento da grande escala (grandes
sequências temporais delimitadas por grandes narrativas) longe da sua fonte.
À imagem inversa do que acontece com a micro-história, a procura dos efeitos
– sob os quais se dissimula a causa – de um sistema, que opera a um plano
superior de produção, num plano inferior de efetivação concreta, obriga a uma
mudança de escalas (desta feita, de cima para baixo) que apela aos recursos
narrativos da macro-história – «comme l’illustre l’œuvre de Norbert elias, les
effets d’un système de pouvoir, tel que celui de la cour monarchique, se
déploient le long d’une échelle descendante jusqu’aux conduites d’autocontrôle
au niveau psychique individuel» (ibid.: 316).
o segundo exemplo que ricœur convoca mexe com a própria noção de
acontecimento. a noção de acontecimento tem duas aceções que parecem incon-

402
«Parmi toutes les sortes de synthèses de l’hétérogène que constitue la mise en
intrigue, ne pourrait-on pas prendre en compte le parcours narrativisé des changements
d’échelles?» (ricœur, MHO, 315).
358 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

ciliáveis: no plano da narrativa ele é o dinamizador da intriga, o que provoca


mudança; no plano da explicação, ele marca a diferença ou a separação rela-
tivamente à estrutura ou à conjuntura. ricœur põe a hipótese de vencer este
abismo semântico conferindo à ideia de intriga a sua máxima extensão como
síntese do heterogéneo. abarcando as intenções, as causas, os acasos, ela exe-
cuta um tipo de integração narrativa onde cabem também os três momentos da
estrutura, conjuntura e acontecimento, que a epistemologia dissocia. cada um
destes momentos resulta de escalas diferentes tanto ao nível da eficácia como
do ritmo temporal e, nesse sentido, a narrativização do jogo de escalas já
sugere esta teoria. ricœur comprova a sua teoria com um artigo de r. Kosel-
leck, onde o autor após ter defendido que as estruturas derivam, principalmente,
da descrição e os acontecimentos da narrativa, tomados como estratos temporais
identificáveis separadamente, sugere que a dinâmica que os entrecruza presta-
-se a uma narrativização que faz da narrativa a permutadora entre estrutura e
acontecimento403. É que a narrativa não se limita a relatar uma sucessão cro-
nológica de factos; enquanto unidade de sentido, ela é capaz de articular numa
mesma configuração estruturas e acontecimentos – «ainsi, l’évocation d’une
structure de domination peut être incorporée au récit de l’événement que cons-
titue une bataille. la structure, en tant que phénomène de longue durée, devient
par le récit condition de possibilité de l’événement» (ibid. 317). as estruturas
descritas em forma narrativa assumem o papel fundamental de iluminar e elu-
cidar os acontecimentos enquanto causas independentes da sua cronologia. mas
a relação é mútua: alguns acontecimentos são considerados marcantes porque
servem de indício para os fenómenos sociais de longa duração e parecem deter-
minados por estes – «tel procès en droit du travail peut illustrer de façon dra-
matique des phénomènes sociaux, juridiques ou économiques, de longue durée
(ibid.).
Por conseguinte, podemos concluir que a integração narrativa entre estru-
tura e acontecimento duplica a integração narrativa entre fenómenos situados
em níveis diferentes das escalas de duração e de eficácia.
os exemplos evocados têm, pois, o condão de comprovar quer a articu-
lação das formas escriturárias da operação historiográfica com as formas
explicativas da mesma, quer a forma como o intento noético da narrativa tran-
sita através da explicação em direção à realidade atestada. Porém, a própria
estrutura do ato de configuração ergue alguns entraves a esta transição. o pri-

403
r. Koselleck, «représentation, événement, structure», in Le Futur passé: contribu-
tion à la sémantique des temps historiques, eHess, Paris, 1990, pp. 133-144.
capítulo iV – rePreseNtação e Ficção 359

meiro vem da teoria literária. a apologia da separação entre estrutura interna de


um texto e o real extratextual afeta os textos literários e daí a própria histó-
ria404. a rejeição da dimensão referencial extratextual pela ortodoxia estrutura-
lista resulta da expansão do modelo saussuriano dos signos isolados às frases
e daí aos textos. o modelo proposto por saussure concebe o signo com uma
dupla face, significante e significado, sem consideração pelo referente. o sacri-
fício do referente visa tornar o signo o tema homogéneo da ciência linguística.
este modelo bipolar estendeu-se depois a todas as regiões da linguagem aces-
síveis à semiótica. se no caso da narrativa ficcional os efeitos deste modelo
não são graves, sendo contudo discutíveis, no caso da narrativa histórica, a sua
ação é devastadora, na medida em que esta, diferentemente da ficção, se funda
no enfoque referencial que a anima e que constitui a significância da represen-
tação. em La métaphore vive (1975), ricœur tenta contrariar a tese estrutura-
lista com a conquista da referencialidade a partir do nível da frase, na sua qua-
lidade de primeira unidade de discurso. com uma frase alguém diz alguma
coisa a alguém acerca de algo segundo uma hierarquia de códigos: fonológico,
lexical, sintático, estilístico. o mesmo processo ocorre num discurso e, por
extensão, num texto enquanto encadeamento de frases. todavia, o problema da
referencialidade específica do discurso histórico é diferente, na medida em que
o ato de composição da narrativa (mise en intrigue) mostra uma tendência para
o fechamento, que impede a pulsão extralinguística, extratextual, em suma,
referencial, pela qual a representação se faz representância. Desenvolveremos
este assunto quando analisarmos a relação entre representação e representância.
antes, é preciso levar mais longe o exame dos outros componentes da fase lite-
rária da operação historiográfica, componentes que vêm reforçar esta retração
do impulso referencial do discurso histórico que vimos dimanar da configuração
narrativa.

3.2.  Representação e retórica: a questão do referente

a dimensão retórica do discurso histórico merece de ricœur um trata-


mento à parte da narratividade. a tradição remonta a Vico, que nos deixou uma
dupla herança: descreve os tropos (metáfora, metonímia, sinédoque, ironia)
como figuras do pensamento e do discurso e sai em defesa dos modos de argu-

404
«Dans la mesure où le récit de fiction et le récit historique participent aux mêmes
structures narratives, le rejet de la dimension référentielle par l’orthodoxie structuraliste
s’étend à toute textualité littéraire» (ricœur, MHO, 318).
360 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

mentação que a retórica opõe às pretensões hegemónicas da lógica. ricœur,


partindo desta tradição, pretende não só alargar o campo de operações da repre-
sentação escriturária, mas também – na linha da nossa reflexão anterior – expor
as resistências que as configurações narrativas e retóricas opõem à pulsão refe-
rencial que dirige a narrativa em direção ao passado. trata-se, pois, de montar
uma contraofensiva de teor realista contra a tentação estetizante que seduz os
advogados da retórica narrativa. este debate toca muito diretamente o problema
surgido nas últimas décadas do século XX: a figuração de acontecimentos que,
pela sua monstruosidade, parecem transcender os limites da representação.
o estruturalismo francês contribuiu para este debate com a ideia – colhida
na oposição saussuriana “langue-parole” – de que as estruturas narrativas são
lógicas e acrónicas405. esta teoria estruturalista estava confinada, na esteira de
Vladimir Propp, à esfera da narrativa ficcional, e poderia, pois, jamais ter atin-
gido o discurso histórico. No entanto, a extensão do modelo da linguística saus-
suriana à semiótica geral é uma ameaça à pretensão referencial da história.
a omissão do referente na constituição do signo linguístico (significante-signi-
ficado) teve as consequências no discurso histórico de que já demos conta.
o estruturalismo atinge a história quando o cuidado científico e ideológico dos
seus paladinos os faz voltarem-se contra o humanismo implícito no conjunto
das práticas representativas, entre as quais, a história406. roland Barthes acusa
a história-narrativa de produzir um assunto adaptado ao sistema de poder que
lhe dá a ilusão de controlo sobre si própria, sobre a natureza e sobre a histó-
ria407. o estruturalista francês, apoiando-se na exclusão do referente do signo
linguístico, culpa a história-narrativa de semear uma ilusão referencial no seio
da própria historiografia408. a ilusão consiste em hipostasiar o referente – supos-

405
ricœur expõe detalhadamente as constrições estruturalistas impostas à narrativa, no
segundo capítulo de Temps et Récit ii, sob o título de «les contraintes sémiotiques de la nar-
rativité».
406
«l’histoire-récit se trouve alors placée sur le même banc d’accusation que le roman
réaliste hérité du XiXe siècle européen» (ricœur, MHO, 322).
407
cf. r. Barthes, «le discours de l’histoire», in Le Bruissement de la langue, Éd. du
seuil, Paris, 1984, pp. 153-166.
408
Para Barthes, o discurso histórico, pela sua estrutura, é essencialmente uma elabo-
ração ideológica ou imaginária. o enunciante de um discurso é uma entidade puramente lin-
guística, ao passo que o assunto da enunciação é uma entidade psicológica ou ideológica. Daí
até adotar a célebre afirmação de Nietzsche de que não existem factos em si mesmos e que
é preciso começar sempre pela introdução de um sentido para que possa haver um facto vai
um pequeno passo. a conclusão é que a existência do facto é unicamente linguística, asserção
que White escolheu para epígrafe da sua obra The content of the Form: «on arrive ainsi à
capítulo iV – rePreseNtação e Ficção 361

tamente exterior, fundador, regulador, tempo das “res gestae” – em detrimento


do significado, ou seja, do sentido que o historiador atribui aos factos que
relata. a fusão do referente e do significado para benefício do referente gera o
efeito do real, em virtude do qual o referente, transformado agora em signifi-
cado, é investido dos privilégios do “aconteceu”. Deste modo, o discurso his-
tórico, que procura apenas transmitir-nos o real, pensa ter poupado o termo fun-
damental das estruturas imaginárias, isto é, o significado409. É assim que a
história cria a ilusão de ter encontrado o real que representa:
comme tout discours à prétention «réaliste», celui de l’histoire ne croit ainsi
connaître qu’un schéma sémantique à deux termes, le référent et le signifiant; la
confusion (illusoire) du référent et du signifié définit, on le sait, les discours sui-
référentiels, tel le discours performatif; on peut dire que le discours historique est
un discours performatif truqué, dans lequel le constatif (le descriptif) apparent
n’est en fait que le signifiant de l’acte de parole comme acte d’autorité [Barthes
1984: 165].

Não nos surpreende, pois, que, a concluir o seu artigo, r. Barthes aplauda
a ascensão da história de tipo estrutural e o declínio da história narrativa, con-
siderando esta mutação uma transformação ideológica410.
No ensaio seguinte, «l’effet de réel»411, Barthes explica como é que o
referente reprime o significado. a culpa é atribuída às notas que acompanham
o romance realista e a história do mesmo período, porque são supérfluas, são
detalhes que não contribuem em nada para a estrutura e para o sentido da obra,
são “praias insignificantes” relativamente ao sentido imposto pelo curso da nar-

ce paradoxe qui règle toute la pertinence du discours historique [...]: le fait n’a jamais qu’une
existence linguistique [itálico nosso] (comme terme d’un discours), et cependant tout se passe
comme si cette existence n’était que la “copie” pure et simple d’une autre existence, située
dans un champ extra-structural, le “réel”» (Barthes 1984: 164).
409
«Dans un premier temps [...], le référent est détaché du discours, il lui devient exté-
rieur, fondateur, il est censé le régler: c’est le temps des res gestae, et le discours se donne
simplement pour historia rerum gestarum: mais dans un second temps, c’est le signifié lui-
même qui est repoussé, confondu dans le référent; le référent entre en rapport direct avec le
signifiant, et le discours, chargé seulement d’exprimer le réel, croit faire l’économie du terme
fondamental des structures imaginaires, qui est le signifié» (Barthes 1984: 164, 165).
410
«aussi, l’on comprend que l’effacement (sinon la disparition) de la narration dans
la science historique actuelle, qui cherche à parler des structures plus que des chronologies,
implique bien plus qu’un simple changement d’école: une véritable transformation idéolo-
gique; la narration historique meurt parce que le signe de l’histoire est désormais moins le
réel que l’intelligible» (Barthes 1984: 166).
411
«l’effet de réel», op.cit., pp. 153-174.
362 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

rativa. estas notas insignificantes, ao pretenderem conferir realismo referencial


ao discurso, provocam resistência ao sentido. Não obstante, o realismo (todo o
discurso creditado unicamente pelo referente) não passa de um novo tipo de
verosimilhança. Barthes transfere este traço marcante do romance realista do
século XiX para a história, pois na história passa-se o mesmo: o “ter-sido” das
coisas é um princípio suficiente da palavra.
Perante a posição de Barthes, ricœur questiona-se se este modelo linguís-
tico não é inapropriado para o discurso histórico e se não seria preferível arran-
jar um outro que contemplasse o referente como dimensão irredutível de um
discurso dirigido por alguém a outrem sobre alguma coisa412. o que ricœur
propõe é uma tese que dê conta da especificidade da referencialidade na his-
toriografia. esta não pode ser vista exclusivamente ao nível das figuras do dis-
curso histórico, mas deve realizar todo o percurso da epistemologia histórica,
que parte da prova documental, passa pelo estádio de explicação/compreensão
e termina na configuração literária413.

o filósofo francês volta a convocar para o debate Hayden White, consi-


derando que ele é o autor que mais contribuiu para a exploração dos recursos
retóricos da representação histórica (ricœur, MHO, 324). mas não este não é
o único motivo. os escritos e as opiniões de White foram arrastados para as
acesas e polémicas discussões sobre o holocausto nazi e a verdade histórica que
marcaram os últimos quinze anos do século XX, já depois da publicação do
último volume de Temps et Récit. ora, este debate, para além de questionar a
relação entre história e ficção, envolve de forma dramática o problema da
memória. Daí o duplo interesse de ricœur pelas teses de White. mas já lá ire-
mos. antes, centremo-nos na teoria retórica da história.

412
ricœur diz que o historiador não pode apoiar-se na linguística saussuriana que reduz
o signo ao par significante/significado com exclusão do referente. o seu socorro deve vir da
linguística do discurso à maneira de Benveniste e Jakobson, que têm como unidade de sen-
tido do discurso não a palavra ou signo, mas a frase: alguém diz alguma coisa a outrem
sobre algo de acordo com as regras codificadas da interpretação. «ainsi est préservée dans
le principe la triade: signifiant, signifié, référent, l’événement désignant globalement le réfé-
rent du discours documenté, réserve faite de la spécification ultérieure du terme événement
par rapport à structure et conjoncture» (ricœur 2000b: 739).
413
«ma thèse est que celle-ci ne peut être discernée au seul plan du fonctionnement
des figures qu’assume le discours historique, mais qu’elle doit transiter à travers la preuve
documentaire, l’explication causale/finale et la mise en forme littéraire. cette triple membrure
reste le secret de la connaissance historique» (ricœur, MHO, 323).
capítulo iV – rePreseNtação e Ficção 363

White integra-se no movimento intelectual que ficou conhecido como lin-


guistic turn. É imbuído desse espírito que desenvolve a sua poética sobre a
imaginação histórica. ora, para os partidários do linguistic turn, a imaginação
é apreendida nas estruturas do discurso. Não há dúvida, estamos no domínio
dos artefatos verbais. isto tem duas implicações maiores. considerados unica-
mente do ponto de vista da imaginação verbal, história e ficção pertencem à
mesma classe das ficções verbais. É a partir desta premissa que se reflete
acerca da dimensão referencial do discurso histórico. Depois, também as obras
de filosofia da história e de historiografia profissional do século XiX são pos-
tas, indistintamente, no mesmo plano. têm em comum a composição discursiva
da imaginação histórica, sob uma forma que deriva da retórica e mais precisa-
mente da retórica dos tropos. recapitulamos: à configuração narrativa da
memória histórica White dá o nome de emplotment.
a taxinomia que o autor expõe em Metahistory414 opera unicamente ao
nível das estruturas profundas da imaginação, originando uma oposição entre
estrutura profunda e estrutura manifesta, corroborada por semióticos e psicana-
listas. lembramos que esta oposição permite-lhe definir uma hierarquia, com-
posta por quatro tipologias, para as ficções verbais: história (“story”), argu-
mento, implicação ideológica e composição da intriga. as quatro tipologias e as
composições que resultam da sua associação formam as matrizes combinatórias
possíveis para a imaginação histórica ou os estilos de obra. Nas tipologias,
sublinha-se o fechamento dos recursos retóricos na própria estrutura da obra,
sem ligação alguma com o mundo da praxis, a não ser uma apreensão, sob o
modo tropológico, de um fundo desorganizado. assim, a dimensão histórica da
narrativa (story) explica-se a si própria; a argumentação própria do discurso
narrativo e histórico serve, principalmente, para persuadir e não para demons-
trar; as implicações ideológicas derivam de compromissos morais e políticos do
presente do historiador; a composição da intriga, o modo explicativo por exce-
lência, deriva de uma tipologia retórica (romance, tragédia, comédia, sátira).
ricœur considera a dinâmica deste estruturalismo – proveniente do laço
que a estrutura profunda da imaginação estabelece entre criatividade e codifi-
cação – perfeitamente plausível. separados do imaginário, os paradigmas que
White propõe para a taxinomia seriam entidades inertes. os paradigmas cons-
tituem matrizes que servem para engendrar inúmeras estruturas manifestas atra-
vés das combinações possíveis, marcando um estilo próprio. a discordância de

414
Metahistory: The Historical Imagination in nineteenth-century Europe, the Johns
Hopkins university Press, Baltimore and london, 1973.
364 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

ricœur, já o sabemos, vem antes do facto de White tratar as operações de com-


posição da intriga como modos explicativos indiferentes aos procedimentos
científicos do saber histórico ou, pior ainda, por se quererem substituir a estes.
o que perturba nesta teoria retórica de White é a impossibilidade de se dife-
renciar história e ficção. tanto é legítimo aceitar as estruturas profundas da
imaginação como matrizes comuns à criação de intrigas romanescas e à criação
de intrigas históricas – bem atestado por White com o entrecruzamento dos
géneros do século XiX – como «se torna urgente especificar o momento refe-
rencial que distingue a história da ficção» (ricœur, MHO, 328). esta especifi-
cação obriga-nos a sair da esfera das criações literárias. o filósofo francês não
se cansa de repetir: a delimitação de fronteiras entre história e ficção exige que
se articule os modos da representação com os da explicação/compreensão, com
os da prova documental, e com as suas matrizes de verdade pressuposta, ou
seja, o testemunho declarado das testemunhas oculares. É esta preocupação
epistemológica que não se encontra em H. White415. uma coisa é certa, jamais
encontraremos na forma narrativa enquanto tal a razão para pesquisarmos a
referencialidade.
a questão da referencialidade torna-se ainda mais provocadora quando se
trata da representação dos acontecimentos horríveis da chamada “solução final”
ou “shoah”. a representação do holocausto nazi esbarra com dois tipos de limi-
tes, um interno e outro externo416: por um lado, o esgotamento das formas de
representação disponíveis na nossa cultura para lhe dar visibilidade e legibili-
dade; por outro, do coração deste acontecimento (origem que a tradição retórica
classifica de extralinguística) brota um grito e uma demanda de verdade e de
representação. ora, o problema está na articulação precisa destes dois tipos de
limites. a “shoah” é um fenómeno marcado por uma singularidade no limite da
experiência e do discurso e por uma exemplaridade situacional que põe a des-
coberto não só os limites da representação, nas suas formas narrativas e retó-
ricas, como toda a operação historiográfica417.

415
«c’est ce travail de remembrement du discours historique pris dans la complexité
de ses phases opératoires qui est totalement absent des préoccupations de H. White» (ricœur,
MHO, 328).
416
Vide saul Friedlander (org.), Probing the Limits of Representation. Nazism and the
“Final Solution”, Harvard university Press, cambridge, mass., e londres, 1992.
417
«Demandera-t-on [...] en quoi les problèmes posés par l’écriture de l’événement
“aux limites” dénommé auschwitz sont exemplaires pour une réflexion générale sur l’histo-
riographie? ils le sont dans la mesure où ils sont eux-mêmes, en tant que tels, des problèmes
“à la limite”. on a rencontré en cours de route plusieurs illustrations de cette problématisation
extrême: impossibilité de neutraliser les différences de position des témoins dans les jeux
capítulo iV – rePreseNtação e Ficção 365

Perante uma questão tão complexa e sensível, a tropologia de H. White


não podia deixar de ser metida ao barulho418. a querela começara na alemanha
entre 1986 e 1988 e opusera historiadores respeitados do período nazi e um dos
maiores filósofos do nosso tempo, Habermas, em torno de problemas como a
singularidade do nazismo, a pertinência da comparação com o estalinismo, tes-
tando a consistência do conceito de totalitarismo formulado por Hannah arendt,
em suma, a questão da continuidade da nação alemã através e depois do holo-
causto. este debate, carregado de interrogações e paixões, serviu de pano de
fundo para um outro que se realizou nos estados unidos da américa sobre o
tema «History, Event and Discourse». Durante o colóquio, H. White e c. ginz-
burg, convidados como conferencistas, expuseram os seus pontos de vista opos-
tos acerca de verdade histórica. É neste contexto que surge a questão dos limi-
tes da representação, sob as suas formas narrativas e retóricas, de um
acontecimento da magnitude da “shoah”. a reclamação da verdade faz pesar
sobre a representação as suas exigências, as quais fazem emergir os limites
internos dos géneros literários. a opacidade dos factos moralmente inaceitáveis
ou ofensivos revela e denuncia a opacidade da própria linguagem. o caricato
da situação é o facto de esta opacidade e limitação da linguagem se ter tornado
visível num momento que ficou convencionalmente conhecido como pós-moder-
nidade, caracterizado pela crítica ao realismo mais ingénuo e ao seu apogeu, a
favor da polissemia do discurso, da autorreferencialidade das construções lin-
guísticas, que impossibilitam a identificação de qualquer realidade estável (cf.
ricœur, MHO, 331). Que argumentos poderia o post-modernismo opor à acu-
sação que lhe faziam de deixar o pensamento indefeso perante as seduções do
negacionismo? H. White esforça-se ao máximo por ir ao encontro do aconte-
cimento a partir dos recursos retóricos da representação verbal. todavia, con-
seguiria a sua tropologia do discurso histórico fazer justiça a um pedido de ver-
dade oriunda dos próprios acontecimentos? a argumentação de White é muito
desmembrada. ora reforça a relatividade inexorável de qualquer representação

d’échelles; impossibilité de sommer dans une histoire englobante les reconstructions gagées
par des investissements affectifs hétérogènes; dialectique indépassable entre unicité et incom-
parabilité au cœur même de l’idée de singularité. Peut-être toute singularité – tour à tour
unique et/ou incomparable – est-elle, à ce double titre, porteuse d’exemplarité» (ricœur,
MHO, 339).
418
Historiadores profissionais como momigliano, ginzburg, spiegel e Jacoby apontam
as suas baterias a dois artigos que aparecem incluídos na obra de 1987, The Content of the
Form (White: 1992b): «the value of narrativity in the representation of reality» e «the poli-
tics of historical interpretation».
366 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

histórica, devida ao caráter opaco da linguagem enquanto meio de representação


(incapaz de refletir de forma transparente a pressuposta realidade), ora começa
paulatina e gradualmente a admitir que há no acontecimento algo tão mons-
truoso que transcende todos os modos de representação disponíveis. este “algo”
do acontecimento não encontrara lugar em nenhuma das classes de intriga pro-
postas por White na sua tipologia retórica. mas não é fácil para o pensador
negar a sua própria doutrina. assim, vai erguendo obstáculos que lhe dificultam
a chegada ao acontecimento. Declara que é impossível distinguir entre o “enun-
ciado factual” (constituído por proposições existenciais singulares e argumentos)
e a narrativa que dá conta do facto. se os factos são só linguísticos, também
não é possível fazer uma distinção entre interpretação e facto. Deste modo, des-
faz-se a fronteira entre história verdadeira e falsa, imaginária e factual, figura-
tiva e literal. o mesmo é dizer que não faz sentido afirmar que há modalidades
inaceitáveis de composição de intriga para narrar acontecimentos da “solução
final”. Nenhum modo é à partida inaceitável, mas também nenhum é apro-
priado. White escuda-se dizendo que a distinção entre aceitável e inaceitável
não deriva da tropologia, mas de uma outra zona da nossa capacidade recetiva
que não foi educada pela cultura narrativa. reservar estes acontecimentos para
a crónica literal, desnarrativizando-os, metendo-os ao abrigo de qualquer adição
figurativa, não é solução. estaríamos a recuar novamente para o realismo ingé-
nuo que marcou os romances do século XiX e a historiografia positivista.
White crê ser uma ilusão acreditar que os enunciados fatuais podem fazer jus
à ideia de irrepresentabilidade, como se os factos pudessem em virtude da sua
representação literal ser dissociados da sua representação em forma de aconte-
cimentos na história. acontecimentos, história e intriga resultam de uma sim-
biose no plano da figuração. É a própria capacidade de se representar a reali-
dade – característica que para auerbach define a cultura ocidental – que se vê
posta em causa. Para sair deste abismo, H. White ainda sugere que algumas
modalidades post-modernistas de escrita exibem uma certa afinidade com a
opacidade dos acontecimentos, como é o caso da chamada, por roland Barthes,
de escrita “intransitiva”, próxima da voz média do antigo verbo grego419. esta
opção é suficiente para romper com a representação realista, mas será que basta
romper com o realismo para aproximar a linguagem da opacidade, e, sobretudo,

419
«[...] la voix moyenne correspond tout à fait à l’état de l’écriture moderne: écrire
c’est aujourd’hui se faire centre du procès de parole, c’est effectuer l’écriture en s’effectuant
soi-même, c’est faire coïncider l’action avec l’affection, c’est laisser le scripteur à l’intérieur
de l’écriture, non à titre de sujet psychologique [...] mais à titre d’agent de l’action» (Barthes
1984: 28-29).
capítulo iV – rePreseNtação e Ficção 367

do caráter inadmissível da “solução final”? ricœur diz que a crítica incondicio-


nal do realismo ingénuo, com que White encerra o seu ensaio, parece contri-
buir, paradoxalmente, para aumentar ainda mais o desejo de verdade, oriundo
de um ponto exterior ao discurso.
Face às considerações de White, carlo ginzburg faz a apologia, não do
realismo, mas da realidade histórica visada pelo testemunho de alguém. a argu-
mentação em prol da realidade do passado histórico depende de dois fatores: de
uma atestação incontestável e de um protesto moral, prolongamento do impulso
violento que leva o sobrevivente a testemunhar. este estatuto misto de atestação
e de protesto é fundamental no caso da literatura acerca da “shoah”: «sans
l’admission de ce statut mixte, on ne comprendrait pas pourquoi et comment la
représentation devrait intégrer à sa formulation la dimension “inadmissible” de
l’événement» (ricœur, MHO, 334). auschwitz, como acontecimento que atingiu
a camada mais profunda de solidariedade entre os homens, é um acontecimento
limite. antes de estar no discurso histórico, ele reside na memória individual e
coletiva. É desta morada que se eleva a atestação-protesto que coloca o histo-
riador e o cidadão numa situação de responsabilidade em relação ao acontecido.
o cidadão, tanto como o historiador, é solicitado pelo acontecimento; é cha-
mado a participar na memória coletiva, diante da qual o historiador é chamado
a prestar contas, utilizando para isso os recursos críticos próprios da sua com-
petência de historiador profissional. Perante os acontecimentos limite, a sua
missão não consiste só em detetar as falsidades, mas em discriminar os teste-
munhos em função da sua origem: há testemunhos de sobreviventes, há-os de
executores, há-os de espetadores implicados a vários níveis nas atrocidades em
massa; por isso, cabe à crítica histórica explicar porque é que não se pode
escrever uma história englobante, que anularia as diferenças das perspetivas.
além do mais, o historiador do holocausto não se deve deixar intimidar
pelo postulado segundo o qual explicar é desculpar, compreender é perdoar. o
julgamento moral em questão no julgamento histórico provém de um outro
nível do sentido histórico diferente da descrição e da explicação, não deve pois
conduzir o historiador à autocensura.
Para além das limitações internas e externas que se impõem naturalmente
à aplicação efetiva das formas retóricas, que se prendem com a retoma crítica
que a história faz da memória, há outros limites que lhe são impostos de fora.
se a pretensão de autossuficiência das formas retóricas da representação pro-
vém da teoria literária (estruturalista ou outra), que proclama o fechamento das
configurações narrativas e retóricas sobre si próprias com exclusão do referente
extralinguístico, então, neste caso, está sujeita ao limite externo oriundo dos
próprios acontecimentos limite, da experiência viva das fontes, dos protagonis-
368 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

tas que fizeram história. É neste sentido que os limites inerentes aos aconteci-
mentos limite refletem-se e prolongam-se na própria representação, pondo a
descoberto a sua própria limitação, a saber, «a impossível adequação das for-
mas de figuração disponíveis à solicitação de verdade que se eleva do seio da
história viva» (ricœur, MHO, 337). De um modo particular, podemos conside-
rar inapropriadas e esgotadas as formas herdadas da tradição naturalista e rea-
lista do romance e da história do século XiX; logo, é necessário procurar novos
modos de expressão alternativos ao livro, como por exemplo o teatro, o
cinema, as artes plásticas. as possibilidades são imensas para tentar suprir a
falha que se insinua entre a capacidade representativa do discurso e a demanda
do acontecimento, desde que não se caia no mesmo erro denunciado por White
como modernista, que é alimentar estilos de escrita que criem uma ilusão simi-
lar à da tradição realista.
em jeito de conclusão, podemos dizer com ricœur que o desafio de
escrever/representar a história do holocausto não está fora do nosso alcance,
desde que se tenha noção dos limites, dos riscos e dos requisitos epistemoló-
gicos e metodológicos.
De ces considérations résulte que tenter d’écrire l’histoire de la “solution finale”
n’est pas une entreprise désespérée, si l’on n’oublie pas l’origine des limites de
principe qui l’affectent. c’est plutôt l’occasion de rappeler le trajet que le critique
doit effectuer, remontant de la représentation à l’explication/compréhension et de
celle-ci au travail documentaire, jusqu’aux ultimes témoignages dont on sait que
le recueil est brisé, entre la voix des bourreaux, celle des victimes, celle des sur-
vivants, celle des spectateurs diversement impliqués [ricœur, MHO, 338].

3.3.  Representação e imagem: a dialética do ler e do ver

ao falar de representação enquanto imagem, ricœur retoma uma aporia


proveniente da constituição icónica da própria memória. Numa primeira apro-
ximação ao tema, o filósofo começa por constatar que, ao nível dos géneros
literários, o par narrativa histórica/narrativa de ficção é claramente um par anti-
nómico e enquanto nos mantivermos nesse plano a confusão não é admissível.
uma coisa é um romance, mesmo realista; outra, um livro de história. em que
é que eles se distinguem? No pacto implícito entre escritor e leitor: as expe-
tativas e as exigências do leitor e as promessas e as exigências do autor não
são obrigatoriamente as mesmas no género histórico e no ficcional. o leitor de
uma ficção deve suspender a sua incredulidade e desconfiança para entrar no
jogo ficcional e aderir à ilusão. o leitor de um livro de história, sob a orien-
capítulo iV – rePreseNtação e Ficção 369

tação dos arquivos, entra num mundo de acontecimentos que tiveram realmente
lugar. assumindo uma postura crítica, de alguém que está atento a falsidades,
exige, se não um discurso verdadeiro, equiparável a um tratado de física, pelo
menos um discurso plausível, honesto e verídico420. realidade e irrealidade,
enquanto modalidades referenciais heterogéneas, não permitem qualquer tipo de
confusão entre história e ficção ao nível dos géneros literários. a intencionali-
dade histórica implica que as construções do historiador ambicionem ser
reconstruções mais ou menos aproximadas do “real” ocorrido. independente-
mente desta fronteira inquestionável entre passado “real” e ficção “irreal” – que
uma teoria da representância ajuda a matizar e problematizar – o entrecruza-
mento dos efeitos exercidos por narrativas de história e ficções, ao nível do
mundo do texto (esse mundo onde poderíamos habitar e desenvolver as nossas
potencialidades próprias) decorrente de uma teoria da leitura, permite uma abor-
dagem dialética desta dicotomia elementar. lembramos que esta dialética foi
demonstrada por ricœur em Temps et Récit iii, capítulo V, a propósito da refi-
guração do tempo. os efeitos da narrativa histórica e da narrativa ficcional (vis-
tos unicamente da perspetiva dos géneros literários) eram alvo de entrecruza-
mento em função da refiguração efetiva do tempo vivido, sem qualquer
consideração pela mediação da memória. História e ficção só concretizam cada
uma a sua intencionalidade respetiva recorrendo à intencionalidade uma da
outra. Daí que se tenha falado de historicização da ficção, («quasi-passés sont
les quasi-événements et les quasi-personnages des intrigues fictives» [ricœur,
MHO, 341]) e de ficcionalização da história, justificada pela visão dos apare-
lhos de medição do tempo (gnómon, calendário e relógio) e de todos os ins-
trumentos da datação histórica como produtos da imaginação científica. ade-

420
«ils se distinguent par la nature du pacte implicite passé entre l’écrivain et son lec-
teur. Bien qu’informulé, ce pacte structure des attentes différentes du côté du lecteur et des
promesses différentes du côté de l’auteur. en ouvrant un roman, le lecteur se prépare à entrer
dans un univers irréel à l’égard duquel la question de savoir où et quand ces choses-là se
sont passés est incongrue; en revanche, ce lecteur est disposé à opérer ce que coleridge appe-
lait wilful suspension of disbelief, sous réserve que l’histoire racontée soit intéressante: c’est
volontiers que le lecteur suspend sa méfiance, son incrédulité, et qu’il accepte de jouer le jeu
du comme si – comme si les choses racontées étaient arrivés. en ouvrant un livre d’histoire,
le lecteur s’attend à rentrer, sous la conduite du pilier d’archives, dans un monde d’événe-
ments réellement arrivés. en outre, en passant le seuil de l’écrit, il se tient sur ses gardes,
ouvre un œil critique et exige, sinon un discours vrai comparable à celui d’un traité de phy-
sique, du moins un discours plausible, admissible, probable et en tout cas honnête et véri-
dique; éduqué à la chasse aux faux, il ne veut pas avoir affaire à un menteur» (ricœur,
MHO, 339, 340).
370 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

mais, a leitura dos documentos de arquivo só é possível guiada por hipóteses


interpretativas, engendradas pelo que collingwood chama imaginação histórica,
imaginação esta que evidencia um poder e uma tendência para “pintar” ou “dar
uma imagem” daquilo que narra. É aqui que se enxerta a atual reflexão de Paul
ricœur sobre os prestígios da imagem na representação literária ou escriturária
da história:
ce que nous appelions autrefois “fictionalisation du discours historique” peut être
reformulé comme entrecroisement de la lisibilité et de la visibilité au sein de la
représentation historienne. on est alors tenté de chercher du côté des effets rhé-
toriques évoqués plus haut la clé de cet imaginaire d’un genre nouveau [ricœur,
MHO, 341].

o facto de se chamar figuras aos tropos propostos por White para orna-
mentar e articular o discurso histórico na sua fase literária poderia ser enten-
dido como um indício para a teoria que ricœur pretende desenvolver sob o
signo da imagem. a sugestão é boa, mas não se pretende ir tão longe. o que
ele pretende mostrar-nos, como se tratasse de examinar uma tapeçaria, é a inter-
cessão entre legibilidade (leitura) e visibilidade ao nível da receção do texto
literário, ou a ligação entre sequência e imagem, narração e descrição. É que
o texto dá a compreender e a ver – «De fait, le récit donne à comprendre et
à voir» (ibid.). o historiador tem noção desta alternância entre descrição e nar-
ração. a construção do retrato de uma personagem, histórica ou ficcional, repre-
senta a hegemonia da visibilidade sobre a legibilidade. ora, uma das teses
constantes desta obra de Paul ricœur tem que ver com a teoria do retrato:
or, c’est là une thèse constante de ce livre: les personnages du récit sont mis en
intrigue en même temps que le sont les événements qui, pris ensemble, constituent
l’histoire racontée. avec le portrait, distingué du fil de la trame du récit, le couple
du lisible et du visible se dédouble franchement [ricœur, MHO, 342].

os intercâmbios que se dão entre o legível e o visível produzem efeitos


comparáveis aos que se verificam entre narrativa ficcional e narrativa histórica:
«on peut dire tour à tour de l’amateur d’art qu’il lit une peinture et du nar-
rateur qu’il dépeint une scène de bataille» (ibid.). mas a relação polar entre
visibilidade e legibilidade não se resume à descrição de um espaço, de uma
paisagem, de lugares, ou de um rosto, de uma postura, de uma maneira de ser;
em qualquer situação a narrativa coloca-nos algo diante dos olhos, dá a ver.
assim o defendia aristóteles, na Retórica (iii, 10, 1410 b 33), quando apontava
como uma das virtudes da lexis o “pôr diante dos olhos”. esta capacidade surge
aliada à marca distintiva da retórica, a capacidade de persuadir, que por sua vez
capítulo iV – rePreseNtação e Ficção 371

está na origem de todos os prestígios que a imaginação pode enxertar na visi-


bilidade das figuras da linguagem421.
com esta problemática, ricœur retoma a questão que deixara em aberto
no âmbito da história das representações sociais sobre a dialética da ausência
e da presença. Dialéctica que se torna explícita com o discurso do historiador
representando para si próprio a representação dos atores sociais. Nesse sentido,
a representação-operação não constituiu somente um complemento da represen-
tação-objeto, mas um acrescento, na medida em que pode ser considerada a
fase reflexiva da representação-objeto.
Para concretizar este plano, ricœur recorre aos trabalhos que louis marin
consagrou aos prestígios da imagem, postos em prática pelos exímios escritores
do século XVii, ao serviço da glória do poder monárquico e da sua figura
encarnada, o rei422. esta incursão pela obra de louis marin tem como principal
objetivo o de apurar se a historiografia atual eliminou da representação todo e
qualquer traço do discurso de louvor e de grandeza que era típico da monarquia
do antigo regime423. será que o costume de extrair da legibilidade do relato
a visibilidade de uma descrição narrativa (que consistia mais em pintar que nar-
rar, em fazer ver à imaginação tudo o que se colocava sobre o papel) se ficou
pela maneira absolutista de escrever a história absoluta do absolutismo?
a democracia moderna terá posto fim ao elogio do rei e à fantasmática posta
ao serviço desse elogio? É com estas questões na mente que ricœur entra em
“Portrait du roi” de louis marin.
marin acentua a dimensão transitiva da imagem, isto é, o seu efeito-poder
político enquanto substituto de algo que está ausente. o rei não é verdadeira-
mente rei, ou seja, monarca, a não ser nas imagens que lhe conferem uma pre-
sença reputada como real. marin levanta aqui a hipótese de o imaginário e o
simbólico político do monarca absoluto ser inspirado no motivo eucarístico424.
o enunciado “este é o meu corpo” governaria o discurso do poder no plano
político. a frase “o estado sou eu” seria o correspondente político da fórmula

421
cette définition de la rhétorique comme tekhne du discours propre à persuader est
à l’origine de tous les prestiges que l’imaginaire est susceptible de greffer sur la visibilité des
figures du langage (ricœur, MHO, 343).
422
a obra que ricœur segue é Portrait du roi (1981).
423
«la question pour nous sera de savoir si, avec la fin de la monarchie d’ancien
régime et le transfert sur le peuple de la souveraineté et de ses attributs, l’historiographie a
pu éliminer de la représentation toute trace du discours de louange. ce sera demander en
même temps si la catégorie de grandeur et celle qui lui est connexe de gloire peuvent dis-
paraître sans laisser de trace de l’horizon de l’histoire du pouvoir» (ricœur, MHO, 348).
372 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

eucarística da consagração. independentemente das ressonâncias políticas da


teologia da transubstanciação e do caráter desviante e potencialmente blasfe-
mante da operação, é notável que o discurso do poder, quando é explicitado ao
nível da representação histórica, assume simultaneamente as duas formas da
narrativa, evocadora da ausência e ícone portador de presença real. No caso do
“Projeto de história de luís XiV”, tanto a legibilidade do relato engendra visi-
bilidade num quase-retrato como, no tratamento da medalha histórica forjada à
imagem/efígie de luís XiV, como “hóstia real”, a visibilidade do retrato gera
a legibilidade de uma quase-récita de glória. Neste caso, a imagem é posta ao
serviço da grandeza e da glória425. Não cabe ao escritor dizer essa grandeza e
essa glória, que ele apenas dá a entender pelos factos que narra (ele louva sem
louvar)426, é o leitor que, sob a conduta hábil da narrativa, retira essas conclu-
sões. o panegírico é dissimulado, é da boca do leitor que ele deve sair aber-
tamente. este efeito dissimulado de louvor é conseguido pela mobilização de
vários recursos retóricos como a abreviação dos feitos, a lítotes, a pintura dos
atores e das cenas, e todos os simulacros de presença suscetíveis de suscitar o
prazer de ler. a hipotipose narrativa, ou seja, a descrição entusiástica e tocante,
é o recurso retórico que mais do que qualquer outro contribui para este efeito
de dar visibilidade a uma pessoa, acontecimento ou situação.
esta relação entre legibilidade e visibilidade passa-se ao contrário quando
se trata de retratar o rei em medalhas – «raconter l’histoire du roi dans un
récit, c’est la faire voir. montrer l’histoire du roi dans son icône, c’est la faire
raconter (marin 1981: 147). estabelece-se um quiasmo que faz com que o qua-
dro conte e que a narrativa mostre. assim, cada modo de representação encon-
tra o seu efeito próprio no campo do outro. a medalha é o processo mais mar-
cante de representação icónica, capaz de simular a visibilidade e, por
acrescento, a legibilidade, pois narra dando a ver. através da dureza, da dura-
ção e do brilho do metal ela transforma em perpétuo um acontecimento fugaz
e faz brilhar a glória do rei427.

424
Na obra anterior, sobre a lógica de “Port-royal” (1975), o autor demonstra o papel
central do motivo eucarístico.
425
«c’est au service de la grandeur et de la gloire que sont dispensés les prestiges de
l’image dont se recommande le “Projet de l’histoire de louis XiV”» (ricœur, MHO, 346).
426
«Il faut louer le Roi partout, mais pour ainsi dire sans louange, par un récit de tout
ce qu’on lui a vu faire dire et penser...» (marin 1981: 59).
427
«À la différence de l’enluminure qui illustre un texte, ou même de la tapisserie qui
le plus souvent ne représente qu’un instant d’histoire, la médaille est un portrait qui, comme
l’hypotypose, offre un abrégé en tableau. en donnant à voir le portrait du roi dans une ins-
capítulo iV – rePreseNtação e Ficção 373

após estas considerações, chega o momento de verificar até que ponto os


temas da grandeza – que marin desenvolve a partir dos Pensamentos de Pascal
dedicados à força e à justiça – e da retórica do elogio, na época da monarquia
absoluta, são extensíveis às democracias atuais e às representações históricas
que delas nos dão os historiadores:
De ces considérations procède la question par laquelle je termine notre enquête sur
les prestiges de l’image entremêlés à la représentation historienne. Que reste-t-il
du thème de la grandeur dans la narration du pouvoir après l’effacement de la
figure du roi absolu? or, s’interroger sur la possible pérennité du thème du pou-
voir, c’est en même temps s’interroger sur la persistance de la rhétorique de la
louange qui en est le corrélat littéraire, avec son cortège d’images prestigieuses.
la grandeur a-t-elle déserté le champ politique? et les historiens doivent-ils et
peuvent-ils renoncer au discours d’éloge et à ses pompes [ricœur, MHO, 354].

ricœur constata que estes temas subsistem, embora sob outras formas.
o estado-nação é agora o polo organizador dos referentes ordinários do dis-
curso histórico, logo, continua a ser celebrado como grandeza. a figura do
homem de estado substitui, até certo ponto, o retrato do rei. mas as figuras de
grandeza não se restringem ao homem de estado, há uma redistribuição da
grandeza por um espaço social mais vasto, como atesta o livro aparecido na
última década do séc. XX, com o título de “economias da grandeza” 428, que
estende a ideia de grandeza não apenas ao campo político mas ao campo mais
lato de justificação e de pedido de justiça429. as grandezas são as formas legí-
timas do bem comum em situações típicas de diferendos, a partir do momento
em que são legitimadas pelos argumentários típicos. o que é aqui fundamental
é que a grandeza seja tomada pela filosofia prática e pelas ciências humanas
relacionada com a ideia de justificação, como um dos regimes de apreensão do

cription spécifique, une gravure dans le métal, la médaille dépeint, par la vertu de l’or et de
sa brillance, l’éclat de la gloire. en outre, la médaille, comme une monnaie, peut être mon-
trée, touchée, échangée. mais surtout, à la faveur de la dureté et de la durée du métal, elle
fonde une permanence de mémoire, en transformant l’éclat passager de l’exploit en gloire
perpétuelle. un relai avec le récit est assuré par la devise inscrite au revers de la figure du
roi marquée en son effigie et en son nom; elle assure l’exemplarité potentiellement universelle
des vertus gravées dans l’or» (ricœur, MHO, 349).
428
luc Boltanski e laurent thévenot, De la justification: les économies de la gran-
deur, gallimard, Paris, 1991.
429
«c’est dans des situations de disputes que des épreuves de qualification ayant pour
enjeu l’évaluation des personnes font appel à des stratégies argumentatives destinées à justi-
fier leur action ou a soutenir les critiques au cœur des différends» (ricœur, MHO, 356).
374 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

bem comum no seio das relações comunitárias. ricœur explicita esta nova ace-
ção de grandeza e o seu alcance atual:
il s’agit bien encore de “formes politiques de la grandeur” (Le Portrait du roi, p.
107 seqq.), mais dans une acception si étendue du terme “politique” que le pres-
tige du roi dans son portrait s’y trouve entièrement exorcisé par la substitution à
la figure du roi de celle des personnes et de leurs prétentions à la justice. le
retour du thème de la grandeur n’en est que plus saisissant [MHO, 356].

Quanto ao tema da retórica do elogio, que é correlativo ao de grandeza,


importa averiguar se também ele é inexpugnável. ricœur evoca as histórias
escritas por ranke e michelet. Verifica-se que ranke, mesmo querendo fugir ao
subjetivismo e ao elogio seletivo, acaba por elogiar uma geração e uma época.
michelet é menos subtil nos elogios que tece às grandes figuras que fizeram a
França e ao próprio país. também os historiadores seguintes da revolução
Francesa, de guizot a François Furet, sem serem ostensivamente turiferários,
exalaram um charme discreto pela sua Nação-estado, repetindo de forma dissi-
mulada a estratégia do elogio patente no “Projeto da história de luís XiV”, no
sentido de arrancar da boca dos seus leitores os epítetos e os magníficos lou-
vores que os factos narrados suscitam.
Posto isto, ricœur admite que a questão é menos incongruente se em
lugar do elogio se puser o seu oposto, a reprovação (“blâme”), já que é de
reprovação que se trata quando falamos do holocausto nazi: «N’est-ce pas le
blâme extrême, sous la litote de l’inacceptable, qui a frappé d’infamie la “solu-
tion finale” et suscité plus haut nos réflexions “aux limites de la représenta-
tion”?» (ibid.: 358).
os acontecimentos limite evocados vêm, assim, ocupar o polo oposto aos
dos signos de grandeza do elogio. Nesta simetria, a reprovação moral dos infa-
mes atos do holocausto fica costas com costas com o elogio absoluto endere-
çado pelas pessoas ao rei no seu retrato.

3.4.  Representação como representância

se atentarmos bem, toda esta secção dedicada ao estudo da representação


literária tem sido marcada pela renúncia e pela busca do referente extratextual
da intencionalidade histórica. De um modo particular, as duas últimas etapas
agudizam o problema, pois tanto as figuras de retórica como a própria visibi-
lidade imagética decorrente da legibilidade não foram capazes de nos guiar para
fora do texto, pelo contrário, dão provas de uma oclusão e de um autotelismo
capítulo iV – rePreseNtação e Ficção 375

sem par. todavia, sem referente histórico é a própria verdade da história que
corre perigo, a ponto de não ser mais possível distinguir história de ficção. Por
isso, ricœur não desiste desta cruzada pelo referente, pela intencionalidade,
pela verdade. É com esse intuito que ele vai repescar o conceito de represen-
tância, que dá nome a este curto capítulo com que encerra os trabalhos em
torno da representação escriturária e da epistemologia da história. De facto, o
conceito de representância empurra-o para o campo metafísico da ontologia,
que está fora da circunscrição da epistemologia. a condição histórica do
homem é uma questão ontológica que precisa de uma hermenêutica e já não de
uma epistemologia, e o conceito de representância (pela sua natureza ambiva-
lente, epistemológica e hermenêutica) permite fazer essa ponte para a terceira
e última parte da obra, consagrada – sob o título de esquecimento – à resolução
da tensão história-memória, por meio de uma reflexão ontológica que procura
deslindar o mistério da nossa condição de seres históricos obrigados a conhecer
por mediação e interpretação; seres que, estando na história, fazem história e
fazem a história.
assim sendo, o conceito de representância concentra em si todas as expe-
tativas, exigências e aporias da intencionalidade histórica que fomos encon-
trando ao longo dos vários ciclos da representação literária430. Por conseguinte,
ricœur começa por recapitular o percurso feito, de modo a reunir todas as pon-
tas que foram ficando soltas pelo caminho. seremos levados à conclusão de
que a representação literária só poderá fazer justiça ao intento noético da his-
tória se se articular com a compreensão/explicação e a prova documental, onde
o testemunho desempenha um papel fundamental. só depois entra em cena a
verdade e com ela a questão da representância. mas, voltemos antes ao início
e sigamos o raciocínio de ricœur.

Dissemos lá atrás que, enquanto leitores, esperamos de um texto histórico,


em primeiro lugar, a narração de acontecimentos, conexões e personagens que
realmente existiram, só depois se acrescenta o prazer da leitura. a questão que
se coloca agora é a de saber se, como e em que medida o historiador pode cor-
responder a esta expetativa, cumprir esta promessa.
Pelas declarações que expusemos anteriormente pareceu-nos que, ao invés
do que seria expectável, o momento da representação literária, que pressupú-

430
«le mot “représentance” condense en lui-même toutes les attentes, toutes les exi-
gences et toutes les apories liées à ce qu’on appelle par ailleurs l’intention ou l’intentionnalité
historienne: elle désigne l’attente attachée à la connaissance historique des constructions
constituant des reconstructions du cours passé des événements» (ricœur, MHO, 359).
376 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

nhamos ser o mais adequado para honrar este compromisso de representar o


passado, nos pareceu ser o mais crítico e suspeito quanto à capacidade de cum-
prir o pacto de leitura entre leitor e historiador. De facto, tudo nos levava a
crer que a representação literária seria a mais capaz para corresponder a esta
expetativa, na medida em que representar é sempre representar algo, neste caso,
o passado. mesmo a intenção de reconstrução do passado que orienta as cons-
truções das fases explicativa/compreensiva e documental parece só poder con-
cretizar-se (dizer-se e mostrar-se) na fase da representação literária; não é nar-
rando, submetendo o relato aos contornos de um estilo e conferindo-lhe um
poder visual – como se o puséssemos diante dos olhos –, que se torna credível
o discurso histórico? como é que a intencionalidade histórica não havia de
atingir o seu cúmulo com modalidades de escrita que não se limitam a conferir
uma roupagem linguística a uma inteligência do passado, que estaria já total-
mente formada e preparada antes de se revestir das formas literárias? ricœur
reconhece: as coisas seriam bem mais simples se a operação histórica termi-
nasse na fase de compreensão/explicação (antes de ser comunicada por escrito
a um público de leitores) e a forma escriturária da historiografia não contri-
buísse para o valor cognitivo da história. mas, na senda de H. White e dos nar-
rativistas, recusa-se a considerar a expressão literária um manto neutro e trans-
parente, posto sobre uma significação completa em termos de sentido. esta foi
uma das razões pela qual ele decidiu convocar as teses destes dois autores
antes de apresentar a sua própria tese431. White, Barthes e, de um modo geral,
os narrativistas ensinaram-nos a encarar o pensamento e a linguagem como
inseparáveis; no caso da redação literária da história, a narratividade junta os
seus modos de inteligibilidade aos da explicação/compreensão, e as próprias
figuras de estilo dão visibilidade à legibilidade dos relatos. Podemos, pois, con-
cluir que todo o movimento que empurra a explicação/compreensão para a
representação literária e todo o movimento interno à representação, que desloca
a legibilidade para a visibilidade, confere energia transitiva à representação his-
tórica, remetendo-a para o “real” passado extratextual. logo, a representação
literária, enquanto tal, deveria ser suficiente para assegurar e garantir ao leitor
que o historiador está apto a cumprir o pacto de leitura. mas não é isso que
se verifica. Vimos com que resistência a forma literária se opôs a esta exterio-

431
a outra razão tem que ver com o fechamento que eles dão às formas narrativas,
mesmo as da representação histórica, o que representa um desafio para ricœur, na medida em
que o esforço por superar esta aporia conduzi-lo-á à elaboração de um modelo epistemológico
que dignifica a história enquanto ciência humana e literária.
capítulo iV – rePreseNtação e Ficção 377

rização para o mundo extratextual. as formas narrativas, ao encerrarem inter-


namente a intriga, produzem um efeito de fechamento que não diminui mesmo
quando o narrador moderno se dedica a frustrar a expetativa do leitor deixando
a história em aberto. Deste modo, até o próprio ato de narrar se distancia do
“real”, que é posto entre parênteses. as próprias figuras de estilo, sendo
comuns à história e à ficção, também são capazes de produzir um efeito simi-
lar, ao ponto de deixar indefinida a fronteira entre os géneros. o paradoxo
atinge o cúmulo com as estratégias que visam tornar visível o relato. Na
medida em que elas sustentam a verosimilhança, estão sujeitas a dar razão à
crítica de roland Barthes contra o “efeito do real”.
o fechamento que se verifica nas pequenas narrativas históricas (micro-
-história), devido à excessiva proximidade432, vale, pela razão contrária, para as
narrativas de grande escala (chamadas “narratios” por ankersmit) que procuram
cobrir longos períodos da história. estas tendem a fechar-se numa lógica circu-
lar, em virtude da qual o nome próprio (ex: “revolução Francesa”, “solução
final”) funciona como sujeito lógico para toda uma série de atributos que o
desenvolvem e qualificam em termos de acontecimentos, estruturas, personagens
e instituições. estas “narratios” tendem para a autorreferencialidade, na medida
em que o sentido do nome próprio só nos é facultado pelos atributos selecio-
nados pelos vários historiadores que estudam o mesmo assunto, arrastando esta
questão para o campo do subjetivismo.
em suma, as modalidades literárias que julgávamos mais apropriadas para
persuadir o leitor acerca da realidade, das conjunturas, das estruturas e dos
acontecimentos postos em formato narrativo tornam-se suspeitas de abusar da
confiança do leitor ao abolirem a fronteira entre persuadir e fazer crer.
uma vez postos em causa os modos representativos que deveriam dar
forma literária à intencionalidade histórica, como podemos dar credibilidade à
representação histórica do passado? ricœur propõe duas respostas, uma de cariz
epistemológico e outra nos confins de uma ontologia do ser histórico. em pri-
meiro lugar, argumenta que só há uma maneira responsável de fazer prevalecer
a atestação da realidade sobre a suspeita de não pertinência, que é articular a
fase literária com as fases da explicação/compreensão e da prova documental.
a representação literária não pode funcionar isolada – «c’est ensemble que

432
«À cet égard, s’agissant de la microhistoire, on peut d’abord se féliciter de l’effet
de crédibilité par proximité engendré par les récits en effet “proches des gens”, puis, à la
réflexion, s’étonner de l’effet d’exotisme que suscitent des descriptions que leur précision
même rend étranges, voire étrangères» (ricœur, MHO, 361).
378 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

scripturalité, explication compréhensive et preuve documentaire sont suscepti-


bles d’accréditer la prétention à la vérité du discours historique» (ricœur,
MHO, 363). Não basta escrever bem, a escrita deve operar em conjunto com
as técnicas de pesquisa e com os procedimentos críticos para dar ao protesto
o mesmo estatuto de uma atestação crítica. se é verdadeira a asserção de r.
Barthes, que o facto tem uma existência apenas linguística – recordemo-nos que
o próprio ricœur, a propósito do facto histórico, distingue claramente a propo-
sição enunciadora (“o facto que”) do acontecimento em si – o realismo crítico
que o filósofo francês aqui professa obriga-nos a recuar até antes da proposição
factual para invocar a dimensão testemunhal/ocorrencial do documento. a força
do testemunho, que constitui o núcleo da prova documental, não é negligenciá-
vel. Não podemos remontar para cá da tripla declaração da testemunha – 1) eu
estive lá; 2) acreditem em mim; 3) se não acreditam, perguntem a outro – mas
o gérmen da crítica está implantado no testemunho vivo. tal como a memória
é suficiente para assegurar a realidade das nossas recordações, o testemunho e
a crítica do testemunho são o melhor que temos para dar credibilidade à repre-
sentação histórica do passado433.
a segunda resposta vai ao encontro da espinhosa questão da verdade em
história, cumprindo uma promessa que vem desde o início da obra. chegamos,
assim, à dialética do referente e da representância. o termo verdade acrescen-
tado ao de representância aproxima o discurso histórico não só da memória,
mas também das ciências humanas e naturais, com quem a história partilha a
ambição de verdade, sendo que o alvo referencial desta pretensão que mobiliza
a história é o passado. isto dá azo a duas questões que servem de pretexto para
a matéria que ricœur pretende expor: primeira, será que podemos definir este
alvo referencial noutros termos que não os de correspondência e adequação?
e podemos chamar “real” ao momento escriturário da representação? a resposta
só pode ser negativa, se queremos manter a esperança de alcançar a verdade.
a representação tem um correspondente (un vis-a-vis) no terreno da praxis, que
não se deixa captar como reprodução ou reduplicação fiel mas como mimesis.
o modo de verdade próprio da representância, já o vimos em Temps et Récit,
é o de lugar-tenência. Não se trata, pois, de uma correspondência no sentido de
imitação-cópia («un récit ne ressemble pas à l’événement qu’il raconte» [ibid.:
366]), mas sim no sentido aristotélico de mimesis.

433
«il m’est arrivé de dire que nous n’avons pas mieux que la mémoire pour nous
assurer de la réalité de nos souvenirs. Nous disons maintenant: nous n’avons pas mieux que
le témoignage et la critique pour accréditer la représentation historienne du passé» (ricœur,
MHO, 364).
capítulo iV – rePreseNtação e Ficção 379

relativamente ao enigma da adequação por lugar-tenência, atinente à refi-


guração, ricœur revalida a articulação conceptual que apresentou em Temps et
Récit iii entre os géneros do mesmo, do outro e do análogo, culminando na
tese central de que a representância diz-se da história como redescrição meta-
fórica do passado. esta articulação tem como objetivo salvar a fórmula de
ranke, segundo a qual a tarefa da história não é julgar o passado mas mostrar
as coisas tal como efetivamente aconteceram. se bem nos lembramos, é este
“tal como” que regula a função de lugar-tenência ou de representância. o “real-
mente” passado permanece assim associado ao “tal como” efetivamente acon-
teceu. ricœur reafirma a validade desta teoria, dizendo que não tem nada a
alterar nesta tentativa de explicitação do conceito de representância.
Deseja antes deter-se num outro enigma que vê na relação de adequação
que supostamente existe entre a representação literária e o passado, relação esta
que tem de estar inevitavelmente afetada pela dialética de ausência presença
que é marca de toda e qualquer imagem que está em vez de algo (lugar-tenên-
cia). Por outras palavras, o autor, partindo da distinção aristotélica entre recor-
dação (mneme) e imagem (eikon) – a recordação é de algo acontecido outrora
– pretende apurar o que acontece à dialética característica do ícone ou da ima-
gem – a de ser simultaneamente presença e ausência – quando esta é aplicada,
em regime de história, à condição de anterioridade do passado relativamente ao
relato que dele se dá no presente. Podemos dizer que a representação literária
também é uma imagem presente de uma coisa ausente. mas a coisa ausente já
se desdobra ela mesma em ausência no presente e existência no passado, pois
o passado possui este duplo estatuto, que se expressa na linguagem por um
jogo subtil entre os tempos verbais e os advérbios de tempo; dizemos que algo
já não é mas foi, atestando que as coisas do passado já não existem, mas exis-
tiram: «les choses passées sont abolies, mais nul ne peut faire qu’elles n’aient
été» (MHO, 367). Não é assim descabido sugerir que o “ter-sido” é o referente
último que se procura através do “já não é”. Daqui podemos concluir duas for-
mas de ausência: a representação literária visa outra coisa que não ela (primeira
ausência), que, por sua vez, existiu no passado mas já não existe no presente
(segunda ausência) – «l’absence serait ainsi dédoublée entre l’absence comme
visée par l’image présente et l’absence des choses passées en tant que révolues
par rapport à leur “avoir été”» (ibid.). Deste modo, o advérbio de tempo
“outrora” refere-se à realidade, mas à realidade no passado. e é neste ponto
que a epistemologia confina com a ontologia do ser-no-mundo. a condição his-
tórica do ser humano caracteriza-se por este modo de existência colocado sob
o signo do passado como não sendo mais mas tendo sido. a força assertiva da
representação literária, na sua qualidade de representância, só se pode ligar à
380 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

positividade do “ter-sido” visado através da negatividade do “não ser mais”434.


mas a noção de representância não passa, por enquanto, de um conceito que,
mais do que solução é o nome de um problema435. É problema, em primeiro
lugar, porque extravasa as competências e a jurisdição da operação historiográ-
fica, invadindo já o campo da metafísica, ou mais propriamente da ontologia,
que é onde se pode discutir a condição de já não ser mas ter sido. Daí que
ricœur prefira dar por encerrado este capítulo, e transferir a mesma questão
para a terceira e última parte da obra, dedicada à hermenêutica da condição his-
tórica do homem. o filósofo tem consciência que deixa inacabada ou não total-
mente esclarecida a tese que tem como núcleo o conceito de representância e
que qualifica de “realismo crítico” –
Pour ma part, j’assume ce risque dans la pensée que le refus de prendre en
compte au moment opportun des problèmes relevant de l’herméneutique de la
condition historique condamne à laisser non élucidé le statut de ce qui s’énonce
légitimement comme un “réalisme critique” professé à la frontière de l’épistémo-
logie de la connaissance historique [ricœur, MHO, 369]

– porém, prefere fazê-lo do que correr o risco de ser acusado de regresso à


filosofia da história, ao trazer para o campo da epistemologia histórica questões
próprias da ontologia e da hermenêutica436. É problema, em segundo lugar,
porque a noção de representância, na forma como a entende ricœur, deriva
semanticamente do antigo conceito de representação-substituição, “représenta-
tion-suppléance”, tradução do termo alemão “Vertretung”, descendente do latino
“repraesentatio”, aplicado por gadamer («Verdade e método»), no contexto
da hermenêutica, às obras de arte, com o sentido de exibição, mostra, expo-
sição de um ser subjacente, e entra depois no contexto da historiografia para
designar a representação literária, pela mão da componente imagética da

434
«en ce point, l’épistémologie de l’histoire confine à l’ontologie de l’être-au-monde.
J’appellerai condition historique ce régime d’existence placé sous le signe du passé comme
n’étant plus et ayant été. et la véhémence assertive de la représentation historienne en tant
que représentance ne s’autoriserait de rien d’autre que de la positivité de “l’avoir été” visé
à travers la négativité du “n’être plus” (ricœur, MHO, 367).
435
«il faut l’avouer, les notions de vis-à-vis, de lieutenance, constituent plus le nom
d’un problème que celui d’une solution» (ricœur, MHO, 366).
436
«or les anticipations d’une ontologie de la condition historique, telle qu’elle sera
conduite dans la troisième partie, peuvent être dénoncées comme des intrusions de la “méta-
physique” dans le domaine des sciences humaines par des praticiens de l’histoire soucieux de
bannir tout soupçon de retour à la “philosophie de l’histoire”» (ricœur, MHO, 369).
capítulo iV – rePreseNtação e Ficção 381

recordação437. todavia, no contexto da história, a noção de representação não


tem o mesmo valor que no contexto de uma fenomenologia da memória.
a representação literária é opaca, porque não goza do privilégio singular que
assiste a memória de reconhecimento do passado. o enigma do passado reside,
exatamente, no facto de ser um conhecimento sem reconhecimento438. relativa-
mente ao reconhecimento alcançado pela memória, a representação ou a repre-
sentância histórica fica aquém. Porém, como reconhece ricœur, é um mal
menor: «l’idée de représentance est alors la moins mauvaise manière de rendre
hommage à une démarche reconstructive seule disponible au service de la vérité
en histoire» (MHO, 369).
Deste modo, ricœur dá por concluído o painel da epistemologia da his-
tória e avança para a terceira e última secção do tríptico que constitui a estru-
tura da obra em estudo. aí alcançará o objetivo que traz em mente desde o iní-
cio, juntar história e memória, contra o esquecimento, em defesa de uma
política do perdão.

4.  A HERMENÊUTICA DA CONDIÇÃO HISTÓRICA DO HOMEM

Para ricœur, memória e história podem ser representações porque nós


somos seres de memória e de história – «Nous faisons l’histoire et nous faisons
de l’histoire parce que nous sommes historiques» (MHO, 374). mas o facto de
sermos seres históricos não evita a crítica que ricœur faz ao excesso de his-
tória que esmaga a vida ou a sua negação, que se confunde na autocelebração
do presente (ibid.: 385-448)439. se somos seres históricos é porque existimos
numa temporalidade, entre um campo de experiência e um horizonte de expe-
tativa (Koselleck). uma abordagem ontológica da história deve explorar os
pressupostos existenciais (porque estruturam a maneira própria de existir ou de
ser-no-mundo) do saber historiográfico efetivo e do discurso crítico. Neste con-

437
Veja-se a longa nota que ricœur consagra à evolução semântica e lexical do termo
representação-substituição, que está por trás do de representância, em MHO, 367-369.
438
«l’énigme passé est finalement celle d’une connaissance sans reconnaissance»
(ricœur, MHO, 369).
439
a filosofia crítica da história combate, por um lado, a “hybris” histórica, ou seja,
põe limites à ambição totalitária do saber histórico, característica da filosofia romântica e pós-
-romântica alemã e, por outro, explora os títulos de validade de uma historiografia consciente
das suas limitações.
382 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

texto surge a análise que compara o historiador e o juiz (MHO, 413-436) e o


tema da interpretação em história (ibid.: 436-447), que expusemos no primeiro
capítulo. Historiador e juiz, movidos respetivamente por um desejo de verdade
e de justiça, ocupam o lugar de terceiros relativamente aos protagonistas da
ação social no espaço público. a mesma regra de imparcialidade guia ambos:
Nec studio, nec ira: nem favor, nem cólera. os dois usam o testemunho como
prova e fazem o exame crítico da credibilidade das testemunhas. É no julga-
mento que divergem. em primeiro lugar, um julgamento judicial não volta a
repetir-se. a função do juiz é julgar; é concluir com uma sentença que faça jus-
tiça ao culpado e à vítima. tudo isto está interdito ao historiador. a sua obra
está sujeita a revisões constantes e infinitas e, se ele faz um julgamento, é
consciente da sua parcialidade e militância, sabendo que este será avaliado
pelos seus pares e pelo público – «cette ouverture sur la réécriture marque la
différence entre un jugement historique provisoire et un jugement judiciaire
définitif» (ricœur, MHO, 421). além disso, o juiz julga pessoas com nome e
ações pontuais.
sobre a morte em história, ricœur (MHO, 471-480) desenvolve uma
fecunda e interessante reflexão que retoma as teses de Heidegger e de michel
de certeau e que resulta numa poética do ausente. É possível um diálogo entre
o filósofo e o historiador sobre o ser-para-a-morte, sobre a dialética da presença
e da ausência, inerente a qualquer representação do passado, seja ela mnemó-
nica ou histórica. o enfoque do passado como ter-sido sai reforçado a partir do
momento em que o ter-sido signifique ter-sido presente, vivo. o ter-sido sobre-
põe-se ao passado volvido: «le “ne... plus” du passé ne saurait, disions-nous,
obscurcir la visée historienne qui porte le regard vers des vivants qui furent
avant de devenir les “absents de l’histoire”» (MHO, 472).
a ponte entre futuro e passado é assegurada pelo conceito de “estar em
dívida”. o assumir desta dívida marca a nossa dependência do passado em ter-
mos de herança. Dívida-herança coloca-se sob o conceito de representância,
guardião da pretensão referencial do discurso histórico. o estar-em-dívida
constitui a possibilidade existencial da representância e do ter-sido: «c’est donc
sous le signe de l’être-en-dette que l’avoir-été l’emporte en densité ontologique
sur le n’être plus du passé révolu» (ibid.: 473-474).
a morte enquanto objeto de representação torna-se um dos novos e mais
explorados temas da história das mentalidades e das representações. mas o pró-
prio ato de fazer a história tem implícito o tema da morte. a morte mistura-
-se com a representação enquanto operação historiográfica, pois assinala de
algum modo o ausente da história, do discurso historiográfico (ibid.: 476).
capítulo iV – rePreseNtação e Ficção 383

a operação historiográfica torna-se o equivalente escriturário do enterramento,


da sepultura:
À première vue, la représentation du passé comme royaume des morts paraît
condamner l’histoire à n’offrir à la lecture qu’un théâtre d’ombres, agitées par des
survivants en sursis de mise à mort. reste une issue: tenir l’opération historiogra-
phique pour l’équivalent scripturaire du rite social de la mise au tombeau, de la
sépulture [ricœur, MHO, 476].

a sepultura não é só um lugar afastado da cidade onde depositamos os


mortos, o cemitério, é também o ato de enterramento. a sepultura não é um
gesto pontual, ela permanece porque permanece o gesto de sepultamento. o
luto transforma em presença interior o ausente físico. «a sepultura como lugar
material torna-se assim a marca durável do luto, a ajuda-memória do gesto de
sepultura» (ibid.). É justamente este gesto de sepultura que a historiografia
transforma em escrita. michel de certeau é o defensor mais eloquente desta
transfiguração operada pelo historiador. Diz ele que o morto é o que falta à his-
tória, é o outro que se esconde por trás do traço do que foi. Neste sentido, a
história é o discurso sobre o presente que falta, a morte calando o traço. a ima-
gem do cemitério é a imagem forte da ausência definitiva dos mortos, um
efeito da negação da morte, que vai ao ponto de se disfarçar na ficção da vero-
similhança. o discurso histórico é como os cemitérios, dá lugar ao ausente e
esconde-o: «l’écriture historienne fait place au manque et elle le cache, elle
crée ces récits du passé qui sont l’équivalent des cimetières dans les villes; elle
exorcise et avoue une présence de la mort au milieu des vivants» (certeau,
L’absent de l’histoire, apud ricœur, MHO, 477).
esta equação entre escritura e sepultura pode também ler-se em algumas
páginas magníficas de L’écriture de l’histoire (1975: 138-142). Fala-se da
sepultura em termos de lugar. este lugar no discurso está direcionado para o
lugar do leitor, a quem se dirige a escrita da história. Por um lado, a escrita,
como um rito de enterramento, exorciza o morto introduzindo-o no discurso e
colocando-o sobre o nosso olhar como se fosse um quadro. Por outro, a escrita
exerce uma função simbolizadora, que permite a uma sociedade situar-se
dando-se um passado a si mesma através da linguagem440. Nisto consiste a rela-
ção dinâmica entre o lugar do morto e o do leitor441.

440
«l’écriture historique joue le rôle de rite d’enterrement. instrument d’exorcisme de
la mort, elle l’introduit au cœur même de son discours et permet symboliquement à une
société de se situer en se dotant d’un langage sur le passé. le discours historien nous parle
384 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

Falando já da dialética de memória e história (MHO, 500-535), ricœur


afirma que o historiador não tem apenas como alvo os mortos para quem cons-
trói um túmulo escriturário, não se aplica somente a ressuscitar os vivos de
outrora (michelet) que não estão mais mas foram, ele re-presenta ações e pai-
xões. ricœur associa a ideia de que o referente último da representação histó-
rica é o antigo vivente que está por trás do ausente de hoje da história com
a mudança de paradigma, operada pelo “tournant critique” dos annales nos
anos oitenta, que promoveu o paradoxo do ator. assim sendo, a história visa
não somente o vivo de outrora, por detrás do morto de hoje, mas o ator da his-
tória passada: «ce que vise l’histoire, c’est non seulement le vivant d’autrefois,
à l’arrière du mort d’aujourd’hui, mais l’acteur de l’histoire échue, dès lors que
l’on entreprend de “prendre au sérieux les acteurs eux-mêmes”» (ibid. 502).
em revisão de percurso (MHO, 642-655), ricœur vai ainda mais longe na
analogia: «a sepultura escriturária prolonga ao nível da história o trabalho de
memória e o trabalho de luto» (ricœur, MHO, 649).

5. HISTÓRIA E FICÇÃO: SÍNTESE E OUTRAS PERSPETIVAS


(POMIAN E JAUSS)

um balanço crítico desta longa incursão pelo pensamento de Paul ricœur,


no encalce do conceito de ficção, teorizado pelo filósofo em confronto com o

du passé pour l’enterrer. il a, selon michel de certeau, la fonction du tombeau dans le double
sens d’honorer les morts et de participer à leur élimination de la scène des vivants (Dosse
2000: 55).
441
Fernando catroga, na sua obra Memória, História e Historiografia (2001: 40-44),
também se debruça sobre esta analogia estabelecida por michel de certeau entre os cemité-
rios e as narrações do passado. relembra mesmo a etimologia de signo, que remete para o
túmulo: «todo o signo funerário, explícita ou implicitamente, remete para o túmulo (signo
deriva de sema, pedra tumular), isto é, para uma sobreposição de significantes [...]. e, neste
jogo de negação da morte e da corruptibilidade do tempo, os signos “são assim dados em
troca do nada segundo uma lei de compensação ilusória pela qual, quanto mais signos temos
mais existe o ser e menos o nada” [...]. Por isso, o túmulo e o cemitério devem ser lidos
como totalidades significantes que articulam dois níveis bem diferenciados: um invisível e
outro visível. e as camadas semióticas que compõem este último têm o papel de dissimular
a corrupção (o tempo) e de simular a não morte, transmitindo às gerações vindouras a semân-
tica capaz de individuar e de ajudar à re-presentação, ou melhor, à re-presentificação do
ontologicamente ausente. É à luz destas características que é lícito falar, a propósito da lin-
guagem cemiterial – tal como do discurso historiográfico –, de uma poética da ausência”
(ana anais gomez, 1993; F. catroga, 1999» (catroga 2001: 43).
capítulo iV – rePreseNtação e Ficção 385

de história, mostra-nos dois tipos de aplicação do conceito. Numa primeira ace-


ção, puxámos o conceito de ficção para o âmbito da narratologia, donde extraí-
mos, da teoria mimética ricœuriana, a noção de “mimesis ii” ou mise en intri-
gue, que traduzimos por configuração narrativa ou composição da intriga e que
autorizou a inscrição da história no modo narrativo, que alberga também o
género ficcional. conduzidos pela dialética explicação/compreensão, concluímos
que não há história sem intriga. toda a história, independentemente dos seus
recursos críticos e explicativos que a aproximam de uma ciência verdadeira,
não pode recusar a sua componente compreensiva (defendida desde o início,
mas noutros termos, por Dilthey), que a aproxima da capacidade para seguir e
contar uma história. a história diz-se por meio de uma intriga, com princípio,
meio e fim, com uma conexão causal de tipo narrativo (que não substitui, mas
se coaduna com a explicação especificamente histórica), que permite segui-la
como um todo e assimilá-la e fixá-la na mente como uma imagem intemporal.
sob este prisma, história e narrativa têm dois tratamentos diferentes. em Temps
et Récit, devido ao triplo corte epistemológico instaurado pela historiografia
francesa da movência dos annales, apenas pudemos falar de derivação ou
transposição indireta da história a partir da inteligibilidade narrativa; as cate-
gorias narrativas que operam na historiografia são limitadas pelo prefixo quasi
(“como”): quasi-intriga, quasi-personagem, quasi-acontecimento. em La
mémoire, l’histoire, l’oubli, a noção de coerência narrativa e os novos modos
de explicação/compreensão saídos do tournant critique (conversão pragmática
dos annales em finais da década de oitenta [vide Delacroix, Dosse, garcia
2000b: 510-525]), que marcou a crise e o abandono dos modelos historiográ-
ficos, exclusivamente quantitativos, antinarrativos (para um entendimento pobre
do conceito de narrativa) e de longa duração, permitiu prescindir do prefixo
quasi e sustentar a articulação entre a coerência narrativa e a conexão expli-
cativa, considerando as categorias narrativas operadores de pleno direito na his-
toriografia. assim sendo, a estrutura narrativa é comum à história e à ficção.
No entanto, enquanto nos mantivermos no plano exclusivo dos géneros literá-
rios, uma assimetria incontornável, relacionada com modalidades referenciais
heterogéneas (realidade e irrealidade), vigora entre narrativa histórica e narrativa
ficcional, que se reflete ao nível das expetativas criadas no leitor pelas promes-
sas de um autor. Neste contexto narratológico, ricœur prefere dizer narrativa
ficcional em vez de ficção, exatamente para marcar a divergência dos referen-
tes. se passarmos ao plano dos efeitos exercidos por narrativas verdadeiras e
ficções, então o conceito de ficção ganha outro sentido.
É numa segunda aceção que o conceito de ficção é usado com toda a pro-
priedade. Quando se trata de identificar os elementos especificamente ficcio-
386 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

nais/retóricos que a narrativa ficcional empresta à escrita da história – a ima-


ginação, os tropos e as categorias literárias, a imagem –, empréstimo este que
resulta numa ficcionalização da história. Neste ponto, as reflexões de Temps et
Récit e de La mémoire, l’histoire, l’oubli convergem, sendo que as segundas
desenvolvem e complementam as primeiras. Na trilogia da década de oitenta, os
recursos ficcionais que a história inevitavelmente utiliza, ao nível dos conecto-
res do tempo histórico, da representância e da refiguração, têm como objetivo
a concretização da sua intencionalidade, voltada para o tempo. Na obra
seguinte, dando consistência a uma ideia que já aflorara em Temps et Récit,
ricœur vê a atuação da ficção na história como forma de dar visibilidade à
quase irrepresentabilidade do horror que marcou o século XX, e que ficou
conhecido como “solução final”. se antes história e ficção se entrelaçavam para
dar uma imagem poética do tempo, agora é para refigurar as imagens que a
memória (passada a documento) retém do passado. tal como anteriormente, é
da leitura de Hayden White que sai a intervenção da imaginação histórica, sob
uma forma que deriva da retórica, mais precisamente, da retórica dos tropos, e
que podemos designar de emplotment, que traduzimos por composição da
intriga. a composição da intriga, que é a forma verbal da imaginação, é uma
tipologia retórica e explicativa, à cabeça de outras três que lhe estão subordi-
nadas: story, argumento e ideologia. só que o facto de estas tipologias serem
simultaneamente retóricas e explicativas, indiferentes aos procedimentos expli-
cativos do saber histórico e, pior, querendo substituir-se a estes, torna a distin-
ção entre história e ficção impossível em H. White, deixando o horror do pas-
sado (a referência histórica) indefeso perante o negacionismo, devido ao
relativismo de qualquer representação historiográfica, pois nenhuma linguagem
é um meio transparente. a incidência sobre o caráter imagético de qualquer
representação literária, que é herdeira da própria iconicidade da memória, pro-
duz um entrecruzamento da legibilidade com a visibilidade, sucessor da ficcio-
nalização do discurso histórico. A narrativa dá a compreender e a ver. É neste
ponto em concreto que faz mais sentido falar de ficção histórica ou ficção cien-
tífica a propósito de história. uma narrativa histórica é uma tapeçaria, tem qua-
dro e sequência, imagem e história ou ainda descrição e narração. mas a visi-
bilidade não provém só deste entrecruzamento da faceta mais imagética com a
sequencial. a própria legibilidade só por si produz visibilidade, na medida em
que a narrativa dá a ler, põe sob os olhos para nos persuadir e tornar mais
convincente ou verosímil o que transmite. os prestígios da imagem descritos
por louis marin ajudam ricœur a desenvolver a ideia que lhe surgira já em
Temps et Récit, a propósito da ficcionalização da história, de que os prestígios
retóricos da imagem servem para criar uma ilusão controlada de presença
capítulo iV – rePreseNtação e Ficção 387

daqueles acontecimentos unicamente únicos que despertam numa comunidade


intensos sentimentos éticos, seja de comemoração fervorosa seja de execração.
a força (de)monstrativa do ícone está ao serviço da historiografia e, através
dela, do acontecimento que narra. em todo o caso, esta imagem nunca é uma
cópia do acontecimento, só a memória pode produzir cópias do acontecimento,
mas a memória arquivada sofre um distanciamento crítico que impede uma
recuperação exata do original. apesar de tudo, através do ter-sido do passado,
a intencionalidade histórica, sob a modalidade de representância ou reconstrução
narrativa, visa o que realmente aconteceu e capta-o, com ajuda da imaginação
e dos tropos da tradição literária, tal como aconteceu. Para isso, a operação his-
toriográfica não pode ficar nos modos representativos e figurativos que dão
forma literária e visibilidade à intencionalidade histórica, pois esses produzem
um efeito de fechamento que impede a narrativa histórica de alcançar a verdade
dos factos. Note-se o paradoxo, a história não pode prescindir da ficção (figuras
de estilo e estratégias imagéticas) que confere realismo e visibilidade aos fac-
tos, mas é ela que a impede de alcançar o real extratextual. Para ser verdadeira
e se aproximar do real estudado pelas outras ciências humanas e naturais, a his-
tória deve ser mais do que ficção; a arte de escrever deve articular-se obriga-
toriamente com as técnicas de pesquisa e com os procedimentos críticos. Por
outras palavras, a operação historiográfica não se esgota na escrita, está obri-
gada a concertar-se com a explicação/compreensão e, mais do que tudo, com
a prova documental ou a memória arquivada.

Feita a síntese da dialética história/ficção na filosofia de Paul ricœur,


gostaríamos de confrontar as posições do filósofo francês com duas outras opi-
niões sobre o mesmo assunto. Falamos dos artigos de Hans robert Jauss, «la
fiction en histoire»442 e de Krzystof Pomian, «Histoire et fiction»443.
Jauss começa por afirmar que a historiografia moderna deve fazer uma
reflexão em torno de dois pontos essenciais: por um lado, a oposição res fictae
e res factae; por outro, o facto de a história estar obrigada a uma ficção pers-
petivista da facticidade se quer restituir o passado decorrido. Jauss defende que
o fictício (res fictae) é uma propriedade efetiva da prática histórica a partir do
momento em que ela quer ser algo mais do que um arquivamento e deseja
reconstituir e tornar transmissível a experiência do passado (res factae). Por
conseguinte, o ideal do realismo histórico ingénuo é insustentável, pois não

442
Le Débat, n.º 54, mars-avril 1989, pp. 89-113.
443
ibid., pp. 114-137.
388 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

basta subtrair à configuração narrativa a exposição das res factae para chegar
à inteligência do que é objetivo nos factos narrados. Para ele, as res fictae con-
tribuem terminantemente para a constituição do sentido da experiência histórica,
são meios de conhecimento e de exposição. até aqui não há desacordo relati-
vamente ao dito por ricœur. a divergência começa quando o autor considera
preconceituosa qualquer separação entre res factae e res fictae. mas a sua argu-
mentação é, inicialmente, tal como a de White, muito correta; ambas tornam-
-se problemáticas quando não distinguem facto proposicional de relato ficcional
interpretativo. Jauss começa por sustentar que o ornamento retórico não se junta
de fora ao processo histórico, como se fosse possível chegar pura e objetiva-
mente aos factos estabelecidos a partir das fontes e só um ato segundo, a trans-
posição dos factos para uma narrativa, pusesse em jogo os meios estéticos que
o historiador científico utiliza, geralmente, com má consciência. a hermenêutica
desfez este preconceito e outorgou um estatuto ficcional aos factos, ao demons-
trar que as res factae não são um primeiro estádio: enquanto factos, eles pres-
supõem desde o momento da sua constituição as formas elementares da conce-
ção e da apresentação da experiência histórica.
[...] la mise en fiction de l’expérience historique est toujours déjà à l’œuvre, car
le quoi (Was) événementiel d’un processus (Geschehen) historique est toujours
déjà conditionné par le quand (Wann) perspectiviste de sa perception ou de sa
reconstruction, mais aussi par le comment (Wie) de son exposition et de son inter-
prétation, et il est donc constamment prolongé dans la détermination de sa signi-
fication [Jauss 1989: 90].

logo, Jauss não vê diferenças entre o romancista e o historiador: «Que le


romancier moderne raconte ce qui aurait pu se passer, ou que l’historien
moderne rende compte de ce qui s’est effectivement passé, tous deux en sont
réduits au moyen de la fiction dès que la narration commence [...]» (ibid.: 91).
Jauss não avança mais na epistemologia da história, sobretudo, não refere
a crítica científica e explicativa que deve acompanhar o trabalho do historiador,
fala apenas do momento que ricœur qualificou como configuração narrativa ou
representação literária. Não leva em conta as constrições da prova documental
e da explicação/compreensão sobre a representação. logo, a sua tese, na linha
da de H. White, desemboca numa indistinção entre verdadeiro e falso, história
e ficção. Para sair desse impasse, põe a tónica sobre o verosímil, fronteira
comum de ambas as disciplinas. subsistem diferenças entre história e ficção,
mas não quanto ao método, apenas quanto aos meios ficcionais e quanto à
receção por parte do leitor, ou não estivéssemos nós no campo da estética da
receção – «À la frontière commune du vraisemblable, création poétique et écri-
capítulo iV – rePreseNtação e Ficção 389

ture de l’histoire se distinguent beaucoup plus par la manière différente d’uti-


liser certains moyens de la fiction, et par l’attente différente qu’ils peuvent
éveiller chez leurs lecteurs» (ibid.).
todavia, é curioso que Jauss tinha em mãos matéria que o poderia ter aju-
dado a superar este relativismo, se tivesse dado mais valor à reflexão de Droy-
sen que cita apenas para censurar a cesura entre narração e investigação, didá-
tica e discussão, as quatro formas de exposição propostas por Droysen. em seu
lugar, Jauss limita-se a reafirmar o poder dos meios de ficção em história, o
seu potencial heurístico, compreensivo e expositivo/transmissivo – virtudes que
o próprio ricœur reconhece – sem consideração alguma pelo desejo de verdade
que deve animar a historiografia, pela prova documental e pelas várias formas
de explicação próprias da ciência histórica:
Dans l’écriture de l’histoire, l’emploi des moyens de la fiction ne sert donc pas
uniquement à communiquer les résultats que la recherche scientifique présente à
un destinataire, «le groupe lecteur situé de l’autre côté». il jette aussi un pont
entre présent et passé, un pont qui représente le meilleur moyen pour faire com-
prendre et donc rendre communicable l’altérité des mondes historiques devenus
lointains et étrangers, et ce grâce à la puissance de dévoilement de la fiction
[Jauss 1989: 93].

Numa perspetiva quase oposta, marcadamente mais científica que literária,


Pomian faz melhor justiça à operação historiográfica. começa por dizer que
não há história sem a noção de uma fronteira entre realidade e ficção. trata-
-se de uma fronteira móvel e por vezes de difícil delimitação, mas imperiosa
para os historiadores e para a história, se não quer perder a sua identidade
como ciência. Pomian critica os chamados ficcionistas (nos quais se pode
incluir Jauss, r. Barthes e H. White – acrescentamos nós), defensores da abo-
lição de fronteira entre história e ficção, que relegaram a primeira para o domí-
nio da retórica (1989: 114-115). Para estes, a história tem apenas uma dimen-
são, a da escrita, que tem como principal função convencer os leitores da
veracidade dos relatos que lhes propõem. o destino da história aparece asso-
ciado ao da ciência. também esta é atacada e desautorizada, como uma forma
de poder, de domínio sobre os homens, na qual não há lugar para a verdade,
enquanto adequação do saber ao real, e a própria ideia de verdade é relegada
à condição de mito. enquanto perdurar este estigma de ceticismo niilista contra
a história e a ciência em geral, a verdade manterá o rótulo vergonhoso e inu-
tilizável que lhe colaram nas últimas décadas do século passado e que perdura
até à atualidade, gerando um clima generalizado de desconfiança e insegurança,
não só entre as instituições e as ciências, mas também entre os indivíduos.
390 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

É por isso que o tema história e ficção, velho como a própria história, mantém
na atualidade uma renovada pertinência para o futuro da filosofia e do conhe-
cimento444.
a estratégia de Pomian, ao invés da de Jauss, passa não por denunciar o
pendor ficcional da história, mas sim o pendor realista e científico da ficção,
numa luta (velada) contra as teses semióticas do estruturalismo. se é inegável
que a história precisa da verdade, também a ficção a não pode dispensar
(Pomian 1989: 118). o romance enquanto género literário não se fecha comple-
tamente na ficção, porque a imaginação coabita quase sempre com o conheci-
mento, a ficção com a realidade, a invenção com a verdade. só uma ficção
pura pode fechar-se sobre si própria; sem qualquer referência temporal ou espa-
cial do mundo real, cria os seus próprios objetos, tempo e espaço, diferentes de
tudo o que conhecemos, absolutamente novos, portanto. mas, se a ficção aspira
a inscrever-se numa realidade, tem de escolher obrigatoriamente entre os mode-
los de conhecimento disponíveis, a saber, ou o realista, ou o naturalista, ou o
dos romances psicológicos, ou o da ficção científica ou o do romance histó-
rico445.
contra o ficcionalismo, Pomian declara uma fronteira intransponível entre
história e ficção, com base nas chamadas marcas de historicidade446 que o his-
toriador deixa no seu texto e que conduzem o leitor para uma realidade extra-
textual. estas marcas são signos e fórmulas, citações e notas de rodapé que
remetem para as fontes ou para os próprios objetos descritos, no caso da his-

444
Quem o diz é Pomian: «Histoire et fiction: vieux comme l’histoire même, le pro-
blème de leurs rapports porte de nos jours une interrogation fondamentale pour l’avenir de
la philosophie et de la connaissance» (1989: 115).
445
«Dès qu’elle aspire toutefois à s’inscrire dans une réalité, elle n’a de choix qu’entre
celles que rendent accessibles les modalités de la connaissance à notre disposition. ce sont:
la perception et le langage usuel invoqués par les auteurs des romans réalistes, l’approche sta-
tistique mise à contribution par les écrivains naturalistes, l’introspection qui alimente les
romans psychologiques, l’observation-expérimentation qui joue le même rôle pour la science-
fiction, et la reconstruction du passé qu’exploitent les romans historiques. il va de soi qu’un
même roman peut mobiliser les donnés de plusieurs modalités de la connaissance; au XXe
siècle cela est assez fréquent» (Pomian 1989: 118).
446
«une narration se donne donc pour historique lorsqu’elle comporte des marques
d’historicité qui certifient l’intention de l’auteur de laisser le lecteur en quitter le texte et qui
programment les opérations censées permettre soit d’en vérifier les allégations, soit de repro-
duire les actes cognitifs dont ses affirmations se prétendent l’aboutissement. en bref: une nar-
ration se donne pour historique quand elle affiche l’intention de se soumettre à un contrôle
de son adéquation à la réalité extratextuelle passée dont elle traite» (Pomian 1989: 121).
capítulo iV – rePreseNtação e Ficção 391

tória recente, e que permitem a um leitor qualificado ou interessado comprovar


os factos relatados. Posto isto, pode dizer-se que, de acordo com Pomian, as
narrações ficcionais do passado (romances históricos, por exemplo) distinguem-
-se das narrações propriamente históricas na medida em que «as primeiras não
permitem sair do texto e controlar a sua adequação a uma realidade extratex-
tual» (1989: 121), ao passo que o texto histórico não só o permite como o con-
vida a fazer. apesar de diferenças específicas, uma marca comum das narrações
históricas e das narrações científicas é precisamente o enviaram ambas para rea-
lidades extranarrativas, o que leva Pomian a interrogar-se se é «legítimo con-
siderar as marcas de historicidade e de cientificidade por simples procedimentos
retóricos postos em marcha a fim de ganhar a confiança do leitor?» (ibid.:
122). lembramos que Barthes abominava estas notações (marcas de historici-
dade), considerando que apenas contribuíam para dar verosimilhança ao relato
e criar um efeito do real, não passando também elas de meras ficções.
História e ficção não são, pois, apenas géneros literários diferentes, como
sustentam alguns praticantes dos estudos literários que, subservientes à matriz
saussuriana, isolam as narrações de qualquer realidade extratextual e se interes-
sam apenas pelas suas propriedades intrínsecas – facto muito discutível no caso
da ficção, inaceitável no caso da história e da ciência, «pois a sua pretensão
a estarem abertas para o exterior contradiz o postulado pseudosaussuriano»
(ibid.: 122). os críticos literários consideram sem fundamento este argumento
da pretensão das narrações históricas a estarem voltadas para fora, conside-
rando-a um procedimento retórico com o único intuito de fazer com que o lei-
tor acredite na narração. No entanto, é a própria objeção dos críticos literários
que carece de demonstração447. além do mais, Pomian defende que a fronteira
entre ficção, de um lado, e história e ciências, do outro, só pode tornar-se um
problema epistemológico se se admitir a existência de uma abertura possível
destas narrações para o exterior. É esta fronteira que permite falar da pretensão
da história e das ciências não só de abordarem uma realidade exterior, mas
sobretudo de enunciarem, ao invés da ficção, «as proposições suscetíveis de
serem controladas pelos leitores, e que, se elas satisfazem um tal controlo,
devem a este título ser recebidas por quem quer que lhes compreende o sen-

447
«[...] aucun argument contraignant, qu’il soit linguistique ou psychanalytique, n’in-
terdit de prendre au sérieux la prétention qu’a une narration historique ou scientifique de par-
ler d’une réalité extranarrative, voire extratextuelle, et d’essayer de la confronter à celle-ci
pour établir si et dans quelle mesure cette prétention peut être reconnue valable» (Pomian
1989: 123).
392 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

tido» (ibid.). os ficcionistas refutam esta tese, dizendo que os leitores de base
não têm tempo nem competências científicas para controlar a narração, confiam
simplesmente na autoridade da narração histórica. Neste caso, as marcas de his-
toricidade não são um programa das operações de controlo, são sim um reforço
da confiança no autor, que, deste modo, mostra como as suas afirmações se
prestam a ser submetidas à crítica dos conhecedores, cujo silêncio, por sua vez,
equivale a aprovação. Pomian contrapõe dizendo que esta teoria põe mais uma
vez a tónica na escrita da obra e na sua receção pelo leitor, reduzindo as mar-
cas de historicidade a procedimentos retóricos de persuasão. e se é verdade
que a maior parte dos leitores não tem tempo nem interesse nem competência
para averiguar a veracidade ou a falsidade das marcas de historicidade, há
muitos leitores que o fazem, sendo possível uma leitura passiva e uma leitura
crítica da obra e que é esta segunda leitura que valida ou invalida as afirma-
ções feitas.
reste qu’une même narration qui se donne pour historique peut faire l’objet de
deux lectures: d’une lecture passive et d’une lecture critique. et que, du point de
vue épistémologique, la seconde est supérieure à la première pour autant qu’elle
produit des effets cognitifs publics, surtout quand elle aboutit à infirmer ponctuel-
lement ou globalement la narration qui en fait l’objet [Pomian 1989: 123].

a despeito de os objetos ou vestígios por intermédio dos quais a história


apreende o passado remeterem para realidades já volvidas e, por isso, invisí-
veis448, Pomian considera que são eles que, de forma qualificada, tornam o
conhecimento do passado possível, são eles que fazem a ponte entre o agora
do historiador e o passado que representam – que é o da sua fabricação –,
entre o seu lugar atual – onde o historiador os consulta – e o lugar inicial da
sua produção, particularmente, «entre o visível e o que, depois de ter sido, não
o é mais e não o será jamais» (ibid.: 126).
todavia, Pomian não rejeita por completo a presença da ficção na his-
tória. uma obra de história, se quiser ser mais do que a transposição acadé-
mica e matemática de dados, deve satisfazer uma tripla exigência do público:
fazer saber, fazer compreender, fazer sentir e isso significa que é preciso
reconstruir a dimensão visível e vivida do passado para que o público o sinta
como seu: «et c’est ici qu’on retrouve la fiction. impossible sans elle, en effet,

448
«toute source historique virtuelle renvoie à des référents invisibles» (Pomian 1989:
126).
capítulo iV – rePreseNtação e Ficção 393

de reconstruire la dimension visible du passé et sa dimension vécue» (Pomian


1989: 131).
a ficção não provém de uma possível arbitrariedade na exposição dos fac-
tos – pois contra isso há sempre as provas e a crítica – mas antes de o passado
ser, necessariamente, fragmentário, lacunar e descontextualizado449, obrigando a
imaginação a entrar em jogo.
contrairement à la reconstruction de la structure ou des caractères mesurables d’un
objet, la reconstruction de son apparence visible ne saurait aboutir sans un apport
de l’imagination, seule capable de combler les lacunes des vestiges qui en restent;
autant dire que l’apparence visible reconstruite d’un objet comporte toujours une
part de fiction. celle-ci peut être plus ou moins grande. mais elle ne se laisse
jamais complètement éliminer [Pomian 1989: 132).

reconstruir a vivência interna, subjetiva, de alguém do passado, na sua


multiplicidade de estados afetivos, é um dos maiores desafios com que depara
o historiador, ainda que se apoie na introspeção ou sobre os dados do olhar clí-
nico. Para reconstruir a partir de textos e imagens este universo íntimo, o his-
toriador procede, necessariamente, por analogia e a imaginação é chamada a
preencher os silêncios inevitáveis das fontes, permitindo ao historiador pôr-se
na pele das suas personagens.
Nos restantes exemplos invocados por Pomian como incrustações fictícias
na textura das narrações históricas, trata-se sempre de fazer referência ao tra-
balho da imaginação. Por exemplo, as entidades supraindividuais, invisíveis e
outras análogas (espírito, espírito humano, cultura, civilização) são ficções por-
que apenas se imagina que atuem na história. só no fim o autor faz uma breve
menção aos efeitos da narração como ficção. refere o caráter individualizador
da obra histórica, capaz de criar em torno de um assunto um todo coeso, com
princípio e fim, eliminando o que não lhe diz respeito. este aspeto homogenei-
zador contribui para criar a ideia fictícia de continuidade numa matéria que é
sempre irremediavelmente lacunar. a partir do momento em que o historiador
decide fazer mais do que simplesmente descrever as fontes, indo além dos catá-

449
«car, tel qu’il donne prise à la connaissance par l’intermédiaire des vestiges qui le
représentent parmi nous, le passé est toujours fragmentaire, lacunaire et décontextualisé. Frag-
mentaire, parce qu’il nous arrive en morceaux. lacunaire, parce que ceux-ci, même réunis, ne
permettent jamais à eux seuls de reconstituer la totalité dont ils faisaient partie. Décontextua-
lisé, parce qu’ils se trouvent dans un environnement différent de celui qui fut le leur à l’ori-
gine» (Pomian 1989: 131-132).
394 Primeira Parte – História e Ficção em Paul ricœur

logos, dos inventários, dos anais, dicionários e cronologias, e decide reconstruir


o passado, fica automaticamente obrigado a introduzir elementos fictícios,
somente porque respeita a autonomia da narração.
Por fim, reconhece que a ficção não pode ser banida da oficina do his-
toriador porque ela desempenha um papel heurístico. os prolongamentos ou as
variações imaginárias sobre os dados do conhecimento dão origem a novas
questões, levam ao questionamento de resultados que se julgava incontestáveis,
suscitam controvérsias que se podem revelar fecundas. as ficções podem impul-
sionar a investigação de novos factos e darem origem a novas descobertas, por
isso a história não pode passar sem as ficções, mas só enquanto elas são os
andaimes que ajudam a construir o edifício e, uma vez este terminado, devem
ser desmontados e retirados para que a construção se tenha de pé por si só.
se Jauss, pondo a tónica na ficcionalidade da história, chama a atenção
para muitas questões que o próprio ricœur subscreve, é a argumentação de
Pomian que mais se aproxima das teses de ricœur, desde logo porque tem o
cuidado de traçar uma fronteira entre história e ficção, coisa que Jauss não faz,
admitindo, contudo, o historiador francês que a história precisa da ficção. Não
obstante, é claro que a argumentação de Pomian deixa algumas lacunas e inde-
terminações, que só a reflexão de ricœur pode fazer emergir. a mais óbvia é
talvez a questão da verdade. se a história alcança o real e está ao mesmo
tempo limitada pela ficção e pela reconstrução narrativa, que tipo de verdade
é a sua. ricœur diria que é uma representância, sem com isso querer solucionar
o problema. Depois há ainda a questão da narrativa. Pomian sabe que a história
se escreve, mas não diz que tipo de relação há entre narrativa e história ou
entre explicação e compreensão.

ao concluir a primeira etapa do nosso estudo, pareceu-nos oportuno


fechar esta secção em torno de Paul ricœur com a transcrição de um pequeno
texto, revelador da inequívoca importância de ricœur na história do pensa-
mento histórico francês. cita-se da obra conjunta de Delacroix, Dosse e garcia,
Les courants historiographiques en France (2007: 587-588).
la réception et la lecture des travaux de ricœur par des historiens commencent
véritablement à la fin des années 1980 [...]. cette appropriation a permis d’intégrer
à la réflexion des historiens le thème du récit sans adopter les positions relativistes
qui lui sont classiquement associés. ricœur (1983-1985, 1994, 2000), tout en affir-
mant que l’histoire est inséparable du récit (“l’identité narrative” de l’histoire),
défend en effet très clairement le projet d’objectivité de l’histoire et sa visée de
vérité contre l’assimilation de l’histoire à la fiction faite par Hayden White. il pro-
capítulo iV – rePreseNtação e Ficção 395

pose les notions de “représentance” ou de “lieutenance” pour penser le rapport


du récit historique au passé réel, à “l’avoir été” de l’événement passé et rétablir
pour l’histoire le primat de la visée référentielle. la notion de “réalisme critique”
de la connaissance historique qu’il avance peut servir aux historiens à qualifier
une épistémologie qui, tout en s’écartant de l’idée d’une coïncidence entre le réel
et sa connaissance, maintient la capacité de l’histoire à rendre compte de manière
scientifique d’une réalité extérieure au discours.
(Página deixada propositadamente em branco)
SEGUNDA PARTE

História e Ficção
em tucídides
(Página deixada propositadamente em branco)
PREÂMBULO
A PERENiDADE DA hiSTORiOGRAfiA cLáSSicA

une étude d’épistémologie historique peut se nourrir


exclusivement de quelques miettes tombées de la
table d’aristote et de thucydide [Veyne 1971: 47].

Vários fatores contribuem para que nos sintamos autorizados, sem receio
de sermos julgados por anacronismo ou enviesadas correspondências, a confron-
tar a História da Guerra do Peloponeso com as meditações de ricœur sobre
epistemologia da história, pois, pesem as incontestáveis e notórias disparidades,
para nós, a medula do espírito historiador da atualidade nasceu na Grécia, no
século V a. c. estamos convictos de que não são despropositados alguns para-
lelismos que tentamos estabelecer entre o trabalho de tucídides e o pensamento
histórico do filósofo francês, sobretudo em três domínios: a relação da narrativa
histórica com a verdade e a ficção; com o tempo e o acontecimento; o poder
retórico, ecfrástico ou iconográfico da narrativa histórica para dar visibilidade a
acontecimentos que não podem ficar esquecidos, que demandam louvor ou exe-
cração e demandam um envolvimento emocional e psicológico do leitor – con-
dição sine qua non da refiguração ou mimesis iii. inerente a esta última afi-
nidade está um facto assinalável. a reflexão de ricœur sobre os poderes da
imagem para fazer ver o horror e a luta contra o relativismo histórico surgem
no quadro de uma história contemporânea ou do tempo presente, onde as prin-
cipais fontes não são já escritas mas orais, decorrentes de testemunhas vivas.
ora, a história de tucídides é a primeira história do tempo presente de que
temos conhecimento, também ela tem como objeto os horrores de uma guerra
e como fonte a observação direta. e também ele teve de lidar com o problema
dos testemunhos orais.

esta ponte por cima de vinte e cinco séculos vem comprovar, uma vez
mais, a perenidade da cultura clássica, mesmo em matérias que alguns julgam
400 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

radicalmente modernas. em boa verdade, muitos dos temas de cariz historiográ-


fico sobre os quais se debruça ricœur pulsam já nos capítulos metodológicos
da obra de tucídides. É nosso intuito demonstrar que as grandes questões com
que se debateu nas últimas décadas a epistemologia da história, que vimos
repercutidas na bibliografia de Paul ricœur, estão já de forma embrionária na
obra do historiador grego. Verdade; história e ficção; ciência e arte; subjetivi-
dade e objetividade; indícios, provas e testemunhos; memória e história; confi-
guração narrativa e explicação; história e retórica são tópicos que podemos legi-
timamente explorar no magistral texto tucididiano. tanto assim é que a reflexão
epistemológica do século XX não deixou de trazer à liça a obra do historiador
ateniense, tendo o seu próprio trabalho sido avaliado de acordo com as tendên-
cias historiográficas do momento1. só assim foi possível falar de um tucídides
positivista, de um tucídides “mythistoricus” e até de um tucídides post-moder-
nista (connor 1977: «a Post-modernist thucydides?», in rusten 2009: 29-43).
Há algo que não podemos deixar de destacar. Não nos parece que tucí-
dides assuma uma atitude “post-modernista” (no sentido de crítico da história
científica), nem mesmo avant la lettre, mas não há dúvida que depois das refle-
xões de Hayden White e roland Barthes, de certeau e de Ginzburg e, princi-
palmente, de ricœur sobre a escrita da história, temos o direito de lançar um
olhar renovado sobre a obra de tucídides e ser muito mais contemporizadores
com a subjetividade, a parcialidade, a retórica e a construção artística da nar-
rativa tucididiana2. Não há mais lugar para uma crítica positivista assente na
distinção entre análise e síntese, ainda que a tucídides falte de forma evidente

1
rusten (2009), na introdução à compilação que reúne alguns dos mais significativos
ensaios sobre tucídides, passa em revista a receção da obra do historiador ateniense ao longo
dos séculos, e é curioso verificar como esta é alvo das mais variadas e controversas leituras,
sobretudo no século XX. o valor e a qualidade do trabalho de tucídides varia consoante o
enfoque e consoante a evolução que a própria historiografia foi alcançando. digamos que os
estudos que se foram produzindo são tão complexos e tão controversos quanto a sua própria
obra. No renascimento foi exaltado como modelo de retórica. Nos séculos XViii e XiX, foi
eleito por Hume, Kant, Niebuhr e ranke o único historiador antigo digno de imitação. Foi
traduzido por Lorenzo Valla no renascimento e thomas Hobbes, em 1629, expressa a sua
admiração pelo historiador e pelo escritor, assinando a primeira tradução para inglês da His-
tória da Guerra do Peloponeso e transportando para o seu Leviathan algumas marcas tuci-
didianas (1651).
2
«an increasing sophistification on the part of historians about the literary nature and
moral implications of their craft may have made it more difficult to accept uncritically the
old clichés about ‘letting the facts speak for themselves’, ‘the value of objectivity’, and writ-
ing ‘wie es eigentlich gewesen’. surely new tendencies in literary criticism have also had
their effect» (connor 1977, in rusten 2009: 30).
PreâmBuLo 401

qualquer tipo de crítica interna ou externa de fontes e esteja muito arredado da


erudição que a partir dos séculos XV, XVi e XVii, com a rutura operada pela
invenção da crítica de fontes de Lorenzo Valla e a disciplina diplomática de
mabillon, haveria de conduzir à elaboração do rigoroso método científico de
finais do século XiX3. a maior novidade do linguistic turn, na segunda metade
do século XX, foi a de ter chamado a atenção para o facto de toda a obra his-
tórica ser necessariamente relativa, parcial e provisória, porque sempre depen-
dente de um texto e de um contexto, sempre confrontada com outras interpre-
tações e passível de retificações. como nos informa ricœur, o historiador está
envolvido do princípio ao fim da operação historiográfica, não apenas em ter-
mos psicológicos mas também epistémicos; a implicação da interpretação em
todas as fases da operação historiográfica comanda o estatuto da verdade em
história. contudo, a interpretação é uma operação epistémica (para tucídides,
era uma operação de confiança na autoridade do historiador); por isso, ela tem
como missão esclarecer, clarificar, prestar contas, em suma, estar ao serviço da
verdade. concordamos com Prost: «a verdade, em história, é o que é provado»,
«[...] la vérité, en histoire, c’est ce qui est prouvé» (1996: 289); e o consenso
histórico não se encontra do lado das teses hipercríticas ou niilistas, «estabe-
lece-se a meio caminho entre a certeza cientista do início do século [XX] e o
relativismo [...] de hoje» (ibid.: 287).
muitas das questões que ricœur aborda dizem direta e unicamente res-
peito aos avatares historiográficos que se desenvolveram na europa ao longo do
século XX, com os quais a história narrativa e político-militar de tucídides
pouco tem que ver – dificilmente a sua história evenemencial seria apreciada
por um Braudel e pela escola dos annales em geral. todavia, outras questões
abordadas pelo filósofo francês surgiram com as primeiras histórias ditas sábias,
cujos pais, no ocidente, são Heródoto e tucídides, como reconhece o próprio4.
assim, apesar do profundo abismo metodológico e paradigmático (no sentido
que Kuhn dá ao termo paradigma – modo de ver e organizar conhecimento

3
sobre a separação entre história e erudição, a influência que esta separação tucidi-
diana teve sobre o desenvolvimento da historiografia e a relação entre a história de tucídides
e a história positivista da escola metódica, veja-se o esclarecedor estudo de momigliano
1984: 100-104.
4
ricœur atribui a paternidade da história sábia a Heródoto e tucídides, como se pode
depreender da seguinte distinção entre a origem da memória e a origem da história: «si l’his-
toire a au plan du savoir un commencement distinct, marqué de noms fameux, Hérodote,
thucydide, voire des sources plus anciennes, ses problèmes majeurs, et, pour le dire d’em-
blée, ses difficultés, ses embarras lui viennent de plus loin qu’elle, de la mémoire précisé-
ment» (ricœur 1996: 7).
402 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

científico), que separa a chamada história científica, filha do positivismo do


século XiX, de toda a produção historiográfica anterior, nomeadamente ao nível
da crítica das fontes e do rigor conceptual, seria errado fazer tábua rasa de lon-
gos séculos de prática histórica, como se a história positivista tivesse começado
do zero5. Nos séculos de história pré-científica, uma figura se destacou como
modelo de rigor, objetividade, imparcialidade, austeridade, tucídides, levando a
que muitos especialistas o considerem o primeiro historiador científico e o
coloquem, justamente, em linha direta com a história metódica. se Heródoto
era considerado o pai da história, tucídides foi considerado o pai da história
verdadeira, porque era um mestre da verdade. Foi o primeiro a apresentar um
programa metodológico baseado em critérios de rigor e conformidade com os
factos, para fundamentar a sua prática histórica. Não admira, pois, que os fun-
dadores da história analítica, metódica ou positivista do século XiX o tenham
adotado como figura tutelar6. «au XiXe siècle, trois historiens aussi différents

5
châtelet considera que não se pode falar de história científica antes do século XiX,
porque antes desse marco histórico não havia o cuidado de comprovar os factos com docu-
mentos e testemunhos nem de datar com precisão os acontecimentos; faltavam, portanto, as
técnicas ditas indispensáveis. e nunca se poderia falar de Heródoto (ou tucídides) pai da his-
tória, no mesmo sentido em que se diz que Galileu é o pai da física moderna. «L’histoire est
savoir. elle n’est savoir scientifique – on veut dire par là: savoir qui a la possibilité d’ap-
porter les preuves de sa véracité – que depuis le XiXe siècle. [...] avant les travaux de Nie-
buhr, de L. von ranke, de L’École historique française, il n’ya a pas, à proprement parler,
de science historique. [...] il faut que tout le discours parlant du passé puisse établir claire-
ment pourquoi – en fonction de quels documents, de quels témoignages – il donne, de telle
succession d’événements, telle version plutôt que telle autre. il convient, en particulier, qu’un
grand soin soit apporté à la datation de l’événement, puisque celui-ci n’acquiert son caractère
historique que dans la mesure où il reçoit de semblables déterminations. or, ce souci de la
précision dans l’étude de ce qui est arrivé jadis n’apparaît clairement qu’au début du siècle
dernier: jusqu’alors, il y a bien des récits sur le passé proche ou lointain et, en ce sens, une
certaine assomption de la temporalité profane; il y a aussi des efforts érudits – portant sur
des faits limités d’ailleurs: généalogiques des familles nobles, histoire des ordres religieux –
visant à établir les filiations exactes, des chronologies précises. mais les deux aspects se com-
binent mal et la pensée n’a pas encore à sa disposition les techniques indispensables» (châ-
telet 1962: 20, 22).
6
Não admira se pensarmos que a tucídides foram buscar inspiração teórica. mas é
estranho se pensarmos que tucídides só achava possível fazer história do tempo presente,
devido ao primado da autopsia (observação directa dos factos) e os historiadores da escola
metódica rejeitavam este tipo de história, em favor da história do passado. Hartog manifesta
da seguinte forma este paradoxo: «thucydide, pour qui seule l’histoire contemporaine est fai-
sable, va, de manière paradoxale, être promu au tout premier rang des historiens de l’anti-
quité (au XiXe siècle), par des hommes, pour qui l’histoire ne peut se faire qu’au passé: thu-
PreâmBuLo 403

que ranke, macauley et eduard meyer considéraient thucydide comme l’his-


torien modèle» – afirma momigliano (1992: 1). Niebuhr admirava-o e ranke
terá cunhado a divisa “os factos tal como realmente aconteceram” na expressão
tucididiana “os factos em si mesmos” (αὐτὰ τὰ ἔργα). Kurt von Fritz defendia
insistentemente a continuidade do desenvolvimento histórico e sustentava, con-
tra Wilamowitz e collingwood, que a história científica tinha começado, de
facto, com tucídides e que os historiadores modernos podiam receber «lições
do seu colega antigo» (apud Hartog 2005: 100)7. romilly, no seu marcante
estudo sobre a racionalidade da narrativa de tucídides, acredita que a análise
dos procedimentos empregues pelo historiador ateniense podem apresentar-se,
em certa medida, como um exemplo e uma aplicação para uma época em que
a história em geral se vê objeto de uma atenção excecional8. e o exemplo que
dá tucídides é o de como um historiador, neste caso «um dos primeiros dignos
deste nome» e «um dos maiores», desempenha um papel ativo e construtor na
elaboração da história, de como, «a partir dos diversos dados que lhe apresen-
tam as suas pesquisas, consegue elaborar este discurso eminentemente coerente
e pessoal que é o seu relato» (romilly 1956: 9). Virgínia Hunter reforça o
valor e a pertinência de um confronto entre a historiografia do passado (Heró-
doto e tucídides) e a do presente, sem receio de ler a do passado com uma

cydide historien du présent devient un modèle pour des gens, les historiens “positivistes”, qui,
par histoire, entendent histoire du passé» (1980: 276). também é paradoxal que uma escola
que, por esse motivo, dava tanto valor aos arquivos, aos dados linguísticos, às escavações
arqueológicas e às averiguações sistemáticas escolha como modelo um historiador que secun-
darizava ou mesmo dispensava essa erudição, que não era de modo algum uma autoridade no
estudo de fontes documentais, uma vez que tinha optado por uma história contemporânea,
logo, assente na visão e na memória do historiador, na recolha de testemunhos orais. Há
ainda outros factos paradoxais que causam estranheza a Momigliano: «La idealización de
Tucídides como el historiador perfecto, en el siglo XIX, marca el momento en el que la his-
toriografía moderna comenzó a crear verdaderamente tipos de investigación histórica desco-
nocidos por el mundo clásico (como historia económica, historia de las religiones y, más allá
de ciertos límites, historia cultural)» (1984: 21). Por conseguinte, talvez possamos concluir
que o que atraiu os modernos em tucídides foi mesmo a sua paixão pela política e a sua
obsessão pela verdade.
7
opinião contrária tem Nicole Loraux (1980): «thucydide n’est pas un collègue».
8
«À une époque où l’histoire en général se trouve l’objet d’une attention exception-
nelle, une telle étude peut donc revêtir un intérêt de plus. après tant de travaux traitant soit
de l’histoire elle-même, en tant que devenir humain, soit de la connaissance qui peut en être
prise et de ses limites, l’analyse des procédés employés en fait par un historien comme thu-
cydide peut se présenter, en quelque sorte, comme un exemple et une application» (romilly
1956: 10).
404 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

grelha de conceitos e teorias do presente, impossíveis na cena clássica: «it is


reasonable [...] that as contemporary historians become more conscious of their
methodology, one might, in the same spirit, begin to consider the analogous
intellectual and critical tools of the first historians» (Hunter 1982: 3). a própria
define como uma especificidade do seu estudo a análise das histórias de Heró-
doto e tucídides com «conceitos retirados da historiografia contemporânea e da
metodologia das ciências sociais» (ibid.). e, de facto, o movimento não se faz
só do passado para o presente, a história socioeconómica e de longa duração
de Braudel e Lucien Febvre pode ajudar-nos a tomar consciência de alguns
aspetos até agora ignorados da historiografia grega antiga. É possível rever o
processo histórico antigo à luz de nomenclaturas e ferramentas epistemológicas
que o século XX criou:
the fifth century B.c. had its own paradigm, quite distinct from that of either the
nineteenth or the twentieth century, even though there must be of necessity in his-
torical practice some areas of continuity. What the “new history” of the twentieth
century offers is a different measuring rod with which to approach the Greek his-
torians. We are now aware, for example, of totality and interrelationships, in addi-
tion to event and cause. more important, we do not disdain generalizations and
concepts – part of a theoretical framework, whether explicitly formulated or not
– but realize that concepts and even theories are among the most intellectual tools
of the historian [Hunter 1982: 252, nota 45].

Neste caminho, somos precedidos em determinados aspetos pela análise


ousada de Virginia Hunter, «Past and Process in Herodotus and thucydides»
(1982: 237-264). a helenista descobre interessantes e curiosas afinidades entre
Heródoto e tucídides e a história total, económico-social, estrutural, praticada
por Braudel, Febvre, e a generalidade da escola dos annales na primeira
metade do século XX. recorrendo às práticas historiográficas destes historiado-
res contemporâneos, Hunter, descontando as diferenças paradigmáticas, descobre
alguns paralelismos possíveis no processo historiográfico de Heródoto e tucí-
dides, nomeadamente ao nível da totalidade do objeto histórico, da inter-relação
entre as várias estruturas e a estratificação temporal:
[Herodotus and thucydides] employed their own particular concepts and their own
prescientific methodology, which by no means involved a billiard ball mentality.
thus they were able to see totality, to seek out interrelationships, and to perceive
and depict multiplicity of movement and of time [ibid.: 252-253].

No movimento inverso, do passado para o presente, considere-se ainda as


já citadas declarações de Paul de Veyne, o intelectual francês que afirma que
PreâmBuLo 405

a história não evoluiu em método desde Heródoto e tucídides, pois continua a


ser narrativa, sublunar e o seu método é a compreensão, que a torna incapaz
de subsumir factos sob leis hipotético-dedutivas. É sua a afirmação de que não
houve progresso metodológico, apenas alargamento: alargamento dos conceitos
e do questionário ou, se quisermos, da crítica e da tópica (Veyne 1971: 148)9.
É o mesmo Paul Veyne quem nos dá a epígrafe para esta investigação, ao dizer
que se pode alimentar uma epistemologia da história exclusivamente com as
migalhas deixadas por tucídides e aristóteles. e também por causa disso
haverá lugar neste estudo para confrontarmos a obra de tucídides com as céle-
bres declarações do estagirita sobre as diferenças entre história e poesis. mas
as palavras de incentivo não nos chegaram apenas de Paul de Veyne. a crítica
de moses Finley à estreiteza de horizontes com que por vezes os classicistas
se põem a analisar a historiografia clássica, munidos apenas dos rudimentares
instrumentos de análise que aprenderam na escola, foi para nós um poderoso
aguilhão10. um estudo sério das questões metodológicas e epistemológicas
implícitas na obra de tucídides exige conhecimentos específicos e abrangentes
de epistemologia histórica. Nesse sentido, ricœur foi um guia seguro e com-
pleto, na medida em que recolhe na sua bibliografia a quase totalidade das
perspetivas epistemológicas que ao longo do século XX entraram no debate
sobre o objeto e a escrita da história. É dele que retiramos o esquema opera-
tório a seguir. essencialmente, o nosso estudo sobre tucídides divide-se em

9
É claro que o alargamento da tópica, enquanto questionário, implica automaticamente
o alargamento das explicações ou das respostas, mas Veyne ignorou esse aspeto. como tive-
mos oportunidade de verificar na primeira parte deste estudo, de tucídides para cá multipli-
caram-se os métodos explicativos, métodos estes que quebraram com uma tradição iniciada
justamente em tucídides, que é a de ter cingindo o objeto da história ao político-militar ou
evenemencial, sem grande consideração por outras realidades sociais explicativas. No compar-
timentado panorama historiográfico do século XX, a obra de tucídides cabe apenas numa das
gavetas e das menos abertas. Já Heródoto podia ser uma fonte de inspiração para La médi-
terranée… de Braudel. Não obstante, as últimas duas décadas do século XX puderam nova-
mente ver em tucídides um precursor, devido ao regresso da história política e narrativa e
ao interesse pela história contemporânea.
10
«[...] les classicistes n’ont pas l’habitude de réfléchir sur l’histoire, ni sur des pro-
blèmes historiques autres que ceux sur lesquels ils se trouvent travailler immédiatement et, en
règle générale, ils ne font même pas de lectures historiques sérieuses hors du champ de l’an-
tiquité. Leurs idées générales en histoire tout comme leurs idées en économie ont été en gros
fixées au moment de leur scolarité; ce sont elles qui façonnent les postulats de base et les
généralisations implicites, dont ils partent pour classer et ordonner les événements et les ins-
titutions du monde ancien» (Finley 1981: 138).
406 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

duas secções. comecemos pela segunda. esta divide-se em três partes, em con-
sonância com cada um dos estádios da operação historiográfica demarcados por
ricœur. Na primeira, confrontaremos a História de tucídides com as medita-
ções ricœurianas sobre testemunhos, indícios e provas documentais; na segunda,
o confronto faz-se a partir de configuração narrativa, explicação, acontecimento
e tempo; na terceira, onde a convergência entre os autores é surpreendente e
onde história e ficção falam mais alto, falaremos de artifícios retóricos e do
poder iconográfico e persuasivo da narrativa histórica tucididiana. À imagem do
que fizemos para ricœur, a primeira secção é sobre história e verdade em tucí-
dides, enquadrando aí algumas reflexões sobre o modo como o historiador ate-
niense articula subjetividade e objetividade, arte e ciência. ricœur, ele mesmo,
dá o mote, ao referir-se a tucídides como mestre da verdade, expressão que
colhe (2000). em La Mémoire, l’histoire, l’oubli, o filósofo francês, referindo-
-se à estrutura da obra de dosse, assina a seguinte nota de rodapé: «La problé-
matique de la vérité commence moins par Hérodote, le premier histor, que par
thucydide et son “culte du vrai”» (MHO, 168, n. 2). Podemos dizer que esta
preocupação com a verdade é um fio condutor que começa em tucídides, atra-
vessa vinte e cinco séculos e acaba na mão de ricœur – o pensador contem-
porâneo que mais terá investido na questão da verdade historiográfica, esfor-
çando-se por salvar a história do aluvião relativista que a ameaça submergir.
mesmo sem querermos entrar, agora, demasiado na polémica sobre se
tucídides é um “colega” ou se a sua história pode ser considerada científica,
não podemos deixar de insistir na ideia de que entre o trabalho do historiador
ateniense e o dos historiadores da escola metódica existe um hiato considerá-
vel, que se resume numa certa mentalidade e na insuficiência técnica dos gre-
gos. tal não obsta a que consideremos frutuosa e pertinente esta anábase,
podendo assumir como nossas as dúvidas e as respostas de châtelet a esse pro-
pósito (La naissance de l’Histoire (1962: 33). Pode perguntar-se se não existe
um paradoxo em querer compreender o que quer que seja do espírito historia-
dor interrogando o pensamento helénico; se não é a visão grega do mundo
fechada ao reconhecimento da historicidade humana e não é por um abuso de
linguagem, anacronismo, que traduzimos ἱστορία por história. independente-
mente da classificação que se possa atribuir às histórias de Heródoto e tucídi-
des (descrições, explorações, investigações), trata-se de textos que tomam por
objeto o passado (passado próximo), mas não com as determinações próprias
que nós atualmente atribuímos a esta categoria temporal. É, pois, errado pensar
que os Gregos escreveram história porque tinham uma forte consciência histó-
rica ou porque acreditavam como nós na capacidade humana para transformar
o mundo ou no homem como autor da história. ora, estes não acreditavam ple-
PreâmBuLo 407

namente no homem como agente histórico11. reconheciam a capacidade de agir


sobre os outros – pelo menos, em termos políticos e morais, pois acreditavam
na capacidade de ensinar e persuadir – mas não sobre a história. estavam muito
longe de qualquer filosofia da história ou de qualquer conceção de história
enquanto processo. Não encaravam o homem como um ser capaz de originar
acontecimentos históricos revolucionários, pois os acontecimentos eram conse-
quência da tyche ou da moira. esta perspetiva só sofrerá alterações profundas
com a entrada na modernidade. de facto, a conceção grega do tempo, da natu-
reza e da ação humana estava muito longe da mentalidade que fundou os tem-
pos modernos12. Não obstante, impõem-se cautelas com generalizações e unifor-
mizações simplistas a propósito da mentalidade grega. No seio da visão grega,
conciliam-se e opõem-se correntes por vezes muito heterogéneas. afirmações
sobre a visão cíclica do tempo ou a ausência de consciência histórica dos Gre-
gos exigem prudência e ponderação. Não é completamente certo que o pensa-
mento grego era impermeável a qualquer ideia de um devir próprio da huma-
nidade e de uma ação do homem construindo livremente a sua própria
existência. os sofistas, por exemplo, esforçaram-se por demonstrar o estatuto
sensível-profano (o primeiro qualificativo pretende corrigir o que o segundo
possa conter de anacrónico, uma vez que o sagrado nunca deixou de imbuir a
mentalidade grega, mesmo nos períodos de maior laicização) do homem e,
nomeadamente, crítias entendeu-o como um ser cujo devir pode determinar o
rumo futuro dos acontecimentos. mesmo se os Gregos não tinham uma noção
de liberdade criadora como a nossa, tal não impede o racionalismo do século
V a. c. de insistir sobre o facto de a atividade do homem ser capaz de suscitar,
para lá da natureza submetida à lei da tyche, situações onde se manifestam a
superioridade do homem e o poder organizador do logos. Por conseguinte, a
opinião dos pensadores gregos relativamente à existência histórica do homem é
plural: uns tendiam para uma conceção histórica que não alcançaram, outros
rejeitaram-na (châtelet 1962: 40).

11
«torna-se preciso ter presentes todos estes argumentos para se evitar interpretações
anacrónicas, como a de pensar que – mesmo nos autores que mais se aproximaram do antro-
pocentrismo (os sofistas, por exemplo) – os gregos (e os romanos) podem ser elevados a
uma espécie de precursores do historicismo moderno e, em particular, do seu princípio
viquiano segundo o qual é o homem quem “faz” a história» (catroga 2009: 59).
12
«une analyse historique sérieuse [...] suppose qu’on accorde du poids, une “causa-
lité” à l’acte humain comme tel, qu’on le tient pour effectivement producteur d’ “originalités”
qui comptent; il faut, en quelque manière, croire à la liberté de l’homme comme puissance
négatrice pour reconnaître une importance à l’histoire de l’humanité. or, il paraît évident
qu’une telle notion est étrangère à la pensée hellène» (châtelet 1962: 35).
408 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

importa ressalvar que, de facto, a maneira como os Gregos concebiam o


devir e, particularmente, o devir humano impossibilitava-os de elaborar uma
ciência histórica; porém, tinham consciência do devir humano e achavam-no
digno de referência, nem que fosse para lhe negar a importância e o signifi-
cado. Não importa se viam uma determinada sucessão de eventos como algo
que teve lugar e se repetirá, ou que seja explicada pelo mito, ou se mantenha
como uma simples forma de demonstração ou de retórica; o que é importante
di-lo châtelet:
[...] c’est qu’il est impossible pour un homme qui réfléchit au Ve siècle, en Grèce,
de ne pas tenir compte de ce qui s’est passé dans la vie profane-sensible. La “phi-
losophie de l’histoire” des Grecs plonge ses racines dans le mythe; la science his-
torique grecque n’existe pas. mais il y a des conceptions du devenir humain qui
attestent la présence de ce devenir, son poids, et l’éventualité dans laquelle se
trouve l’esprit de compter avec lui (1962: 41).

a reflexão que adiante exporemos sobre história, grandiosidade e imorta-


lidade, com base nas meditações de Hannah arendt, ajudar-nos-á a aprofundar
esta forma de conceber a realidade descrita por châtelet. o mesmo autor não
se coíbe de apresentar tucídides e a sua História da Guerra do Peloponeso
como uma dessas realizações maiores que tornaram os gregos conscientes do
devir, ao conferir um sentido lógico e cronológico ao que já não é, afastando-
-se nesse sentido dos seus compatriotas do período arcaico; esses, sim, clara-
mente não sensíveis ao devir humano sensível-profano:
L’Histoire de la Guerre du Péloponnèse peut paraître insuffisante et étrangement
désinvolte: elle constitue cependant un moment capital de la pensée dans la
mesure où un homme décide – alors qu’aucune habitude de la pensée ne l’y
incline encore – d’intéresser ses semblables en leur racontant selon un ordre qui
est à la fois logique et chronologique ce qui n’est plus [1962: 41].

Para retomar o assunto que deixámos para trás: que contém, então, a nar-
rativa de tucídides (e também por inerência a de Heródoto) que nos faz voltar
a ela? «aspetos decisivos do espírito historiador» estão presentes nas suas
obras: um tipo de narrativa; um estilo de referência; uma visão de conjunto que
parte do reconhecimento da importância, do peso e do valor da res gestae; uma
determinada forma de conceber a existência humana13. entre estas virtudes há

13
«il demeure – c’est ce que l’on voudrait souligner et prouver par les textes – que,
malgré sa totale non-préparation à recevoir et à forger les notions permettant l’élaboration
d’une historia res gestarum sérieuse, cette pensée, à partir du Ve siècle, a été, en quelque
PreâmBuLo 409

que incluir a distinção crítica entre história e ficção – originalidade da histo-


riografia grega e contributo maior à historiografia:
ce qui, à mon sens, est typiquement grec, est l’attitude critique vis-à-vis de la
relation des faits, c’est-à-dire le développement de méthodes critiques nous per-
mettant de distinguer les faits des chimères. aucune historiographie n’a, à ma con-
naissance, développé ces méthodes critiques antérieurement ou indépendamment
des Grecs: c’est cela qu’ils nous ont légué [momigliano 1992: 35].

acima de tudo, estamos a falar de alguém que ajudou a inventar não só


a ideia, mas também a prática do que hoje chamamos história: «thucydides
helped invent not just the idea, but the practice, of composing what has come
to be seen as “history”» (crane 1996: 27).
em suma, não faltam motivos para que um curioso da epistemologia da
história, no século XXi, mergulhe nas histórias dos gregos do século V a. c.
mesmo sabendo que a historiografia contemporânea, assente mais na erudição
do que num modo de contar e compreender, deve talvez mais à herança do
século XiX que à História da Guerra do Peloponeso, não podemos deixar de
encontrar na historiografia antiga pistas para refletirmos a complexidade e a
variedade do trabalho histórico atual14.

sorte, contrainte par les res gestae à construire un type de récit, un style de référence, une
visée d’ensemble reconnaissant, par une décision d’une grande importance, le poids et la
valeur des res gestae et inaugurant, par là, une façon de considérer l’existence humaine. des
aspects décisifs de l’esprit historien sont présents dans l’œuvre d’Hérodote et de thucydide;
des dimensions capitales de la philosophie de l’histoire apparaissent chez Platon et chez aris-
tote; la liaison du politique et de l’historique est partout présente dans les siècles d’or de la
Grèce» (châtelet 1962: 55).
14
esta é também a opinião de uma autoridade como momigliano: «La variété et la
complexité de notre travail historique actuel accordent une importance accrue aux liens avec
le monde classique que l’on avait négligés jusqu’alors» (1992: 1).
(Página deixada propositadamente em branco)
cAPÍTULO i
TUcÍDiDES, MESTRE DE VERDADE

É em busca da verdade (ἡ ζήτησις τῆς ἀληθείας) que tucídides se lança


na árdua (epiponos) tarefa de compilar e pôr por escrito a guerra entre atenien-
ses e espartanos. a tarefa é árdua na medida em que procura dar-nos um relato
objetivo e fiável dos acontecimentos. de facto, desde as primeiras linhas da
História da Guerra do Peloponeso fica manifesto o desejo de realizar um tra-
balho inovador, que se pauta pelo rigor e pela conformidade com os factos
(akribeia)15. david Hume dizia: «a primeira página de tucídides é, para mim,
o início da história a sério» (apud Hartog 2005: 92). e Hartog comenta:
signe hautain d’une histoire austère, thucydide d’athènes marque le point de
départ de l’histoire entendue comme discours de vérité, de ce discours qui a
comme raison d’être et comme exigence de dire le vrai des rerum gestarum et
comme privilège de faire de ses praticiens des “maîtres de vérité” [2005: 92].

dosse, na sua obra L’histoire (2000), também introduz tucídides no capí-


tulo de «L’historien: un maître de vérité» e reserva-lhe o título de «thucydide
ou le culte du vrai», dizendo que este se distancia do seu antecessor por recu-
sar o elemento mítico (mythodes) e por insistir na procura da verdade, ao defi-
nir a atividade do historiador em analogia com a pesquisa judicial:
La vérité devient la raison d’être de l’historien et thucydide pose un certain nom-
bre de règles constitutives de la méthode à suivre. [...] Les premiers mots de la
préface de son Histoire du Péloponnèse établissent un souci d’objectivation du réel
historique [dosse 2000: 13].

15
o termo akribeia exprime o sentido de “conformidade com a realidade”, de “ajuste”,
e é uma metáfora proveniente do campo semântico da carpintaria e da joalharia. os sentidos
de objetividade e rigor que lhe estão associados terão sido acrescentadas pelo próprio tucí-
dides (vide Hornblower 1987: 37). Hartog afirma que «Akribes se diz, por exemplo, de uma
armadura que se adapta bem ao corpo» (2005: 95).
412 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

mesmo uma voz dissonante como a de Nicole Loraux reconhece, com iro-
nia, é certo, como escopo de tucídides a verdade e é sobre esse escopo que
ela se apoia para criticar o trabalho do historiador, porque este não tem cons-
ciência do ato de escrita e como este ato de escrita se interpõe entre os factos
e o leitor, impossibilitando o alcance da verdade:
or la vérité est ouvertement la visée de thucydide, comme s’emploie à le démon-
trer l’exposé de méthode, qui s’ouvre sur le navrant manque d’héroïsme avec
lequel la foule recherche le vrai et se clôt sur l’épiphanie de la “plus vraie cause
de la guerre”, que présente le “je”. Lire l’œuvre reviendra donc à rencontrer la
vérité: thucydide l’a cherché, et il l’a trouvée (1986: 150).

são notáveis e verdadeiramente inovadores os preciosos parágrafos onde o


autor expõe a sua metodologia (i. 22) e faz considerações de teor metodológico
(i. 20-21). estes são o melhor testemunho do ambicioso programa, pautado pela
verdade (aletheia) e pela exatidão (akribeia), que o historiador ateniense nos
legou16. estamos perante os primeiros passos da história como ciência17. mesmo
que a obra em si não consiga corresponder a tão elevada ambição – pois só a
partir do século XV, com Lorenzo Valla e a sua crítica filológica da Doação de
Constantino, se darão os primeiros passos a sério no sentido de satisfazer uma
tão alta aspiração, que só haveria de ser atingida em finais do século XiX –,
o programa do historiador grego permanece incólume e pode servir de mote a
qualquer historiador atual. o prólogo e estes capítulos que se situam entre a
chamada arqueologia e o episódio da querela entre corcira e corinto são cru-
ciais para o entendimento da sua metodologia e do seu desejo de verdade.
usando um discurso autorreferencial, que não é muito habitual na sua obra,
tucídides expõe perante o leitor o tema do seu trabalho, as suas motivações,
os procedimentos, as circunstâncias, as dificuldades; rejeita as crenças popula-
res; analisa provas; deduz com base em indícios; concebe um discurso despo-
jado de fantasias, em contraste com poetas e logógrafos; manifesta a consciên-
cia de não conseguir para os discursos (logoi) o mesmo rigor que consegue
para os factos (erga); desconfia da memória e dos testemunhos; filtra informa-
ções; acentua o primado do olhar; prima pela objetividade, pela exatidão e
imparcialidade; reclama utilidade para a sua história. Por tudo isto, é inevitável
que consagremos por inteiro este capítulo sobre a verdade em tucídides ao

16
«thucydides’ legacy to later historical writing was in many ways profoundly bene-
ficial, in that he set standards of research and accuracy for all time» (Hornblower 1987: 30).
17
«His true greatness, therefore, is that of a pioneer in scientific method» (cochrane
1929: 168).
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 413

estudo das suas declarações de teor metodológico, por onde perpassa um insis-
tente desejo de verdade e objetividade. centramo-nos, para já, principalmente,
em torno do prólogo e do capítulo 22. os capítulos 20 e 21 (cujos excertos se
apresentam aqui traduzidos) merecerão outra atenção da nossa parte na próxima
etapa deste estudo, onde abordaremos questões relativas a testemunhos, provas
e documentos18. após a exposição dos textos e respectivas traduções, passare-
mos a uma análise detalhada de alguns tópicos fundamentais.

tucídides, História da Guerra do Peloponeso, i. 1. 1-3


i. [1] Θουκυδίδης Ἀθηναῖος ξυνέγραψε τὸν πόλεμον τῶν Πελοποννησίων καὶ
Ἀθηναίων, ὡς ἐπολέμησαν πρὸς ἀλλήλους, ἀρξάμενος εὐθὺς καθισταμένου καὶ
ἐλπίσας μέγαν τε ἔσεσθαι καὶ ἀξιολογώτατον τῶν προγεγενημένων, τεκμαιρόμενος
ὅτι ἀκμάζοντές τε ᾖσαν ἐς αὐτὸν ἀμφότεροι παρασκευῇ τῇ πάσῃ καὶ τὸ ἄλλο
Ἑλληνικὸν ὁρῶν ξυνιστάμενον πρὸς ἑκατέρους, τὸ μὲν εὐθύς, τὸ δὲ καὶ
διανοούμενον. [2] κίνησις γὰρ αὕτη μεγίστη δὴ τοῖς Ἕλλησιν ἐγένετο καὶ μέρει
τινὶ τῶν βαρβάρων, ὡς δὲ εἰπεῖν καὶ ἐπὶ πλεῖστον ἀνθρώπων. [3] τὰ γὰρ πρὸ
αὐτῶν καὶ τὰ ἔτι παλαίτερα σαφῶς μὲν εὑρεῖν διὰ χρόνου πλῆθος ἀδύνατα ἦν, ἐκ
δὲ τεκμηρίων ὧν ἐπὶ μακρότατον σκοποῦντί μοι πιστεῦσαι ξυμβαίνει οὐ μεγάλα
νομίζω γενέσθαι οὔτε κατὰ τοὺς πολέμους οὔτε ἐς τὰ ἄλλα.

i. [1] tucídides de atenas pôs por escrito a guerra dos Peloponésios e dos ate-
nienses, como guerrearam uns contra os outros, começando a escrever logo aos
primeiros sinais, por ter pressentido que esta havia de ser a de maiores proporções
e mais memorável das guerras havidas até aí, deduzindo-o pelo facto de ambos os
lados irem para ela no auge das suas forças e totalmente apetrechados e por ver
o restante mundo grego aliar-se a um ou outro dos lados, uns de forma imediata,
outros em intenção. [2] Foi, de facto, a maior agitação que se deu entre os Gregos
e uma parte dos bárbaros e, pode dizer-se, entre a maior parte da humanidade.
[3] Na verdade, não era possível conhecer com clareza o que aconteceu antes nem
os acontecimentos ainda mais antigos, por se ter passado um longo período de
tempo, mas a partir dos indícios nos quais se baseia a minha confiança, quando
procuro ver até onde é possível alcançar, considero que não houve nada de gran-
des dimensões nem em guerras nem noutras coisas.

tucídides, História da Guerra do Peloponeso, i. 20. 3 – 21. 2


20 [3] πολλὰ δὲ καὶ ἄλλα ἔτι καὶ νῦν ὄντα καὶ οὐ χρόνῳ ἀμνηστούμενα καὶ οἱ
ἄλλοι Ἕλληνες οὐκ ὀρθῶς οἴονται, ὥσπερ τούς τε Λακεδαιμονίων βασιλέας μὴ

18
Para as citações da História da Guerra do Peloponeso no original grego seguimos
a seguinte edição: stuart Jones, H., Powell, J. e., Thucydidis, Historiae, 2 vols., oxford uni-
versity Press, oxford, 1942, reimp. 1963. as traduções para língua portuguesa são da nossa
autoria.
414 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

μιᾷ ψήφῳ προστίθεσθαι ἑκάτερον, ἀλλὰ δυοῖν, καὶ τὸν Πιτανάτην λόχον αὐτοῖς
εἶναι, ὃς οὐδ᾽ ἐγένετο πώποτε. οὕτως ἀταλαίπωρος τοῖς πολλοῖς ἡ ζήτησις τῆς
ἀληθείας, καὶ ἐπὶ τὰ ἑτοῖμα μᾶλλον τρέπονται.
21 [1] ἐκ δὲ τῶν εἰρημένων τεκμηρίων ὅμως τοιαῦτα ἄν τις νομίζων μάλιστα ἃ
διῆλθον οὐχ ἁμαρτάνοι, καὶ οὔτε ὡς ποιηταὶ ὑμνήκασι περὶ αὐτῶν ἐπὶ τὸ μεῖζον
κοσμοῦντες μᾶλλον πιστεύων, οὔτε ὡς λογογράφοι ξυνέθεσαν ἐπὶ τὸ
προσαγωγότερον τῇ ἀκροάσει ἢ ἀληθέστερον, ὄντα ἀνεξέλεγκτα καὶ τὰ πολλὰ ὑπὸ
χρόνου αὐτῶν ἀπίστως ἐπὶ τὸ μυθῶδες ἐκνενικηκότα, ηὑρῆσθαι δὲ ἡγησάμενος ἐκ
τῶν ἐπιφανεστάτων σημείων ὡς παλαιὰ εἶναι ἀποχρώντως. [2] καὶ ὁ πόλεμος
οὗτος, καίπερ τῶν ἀνθρώπων ἐν ᾧ μὲν ἂν πολεμῶσι τὸν παρόντα αἰεὶ μέγιστον
κρινόντων, παυσαμένων δὲ τὰ ἀρχαῖα μᾶλλον θαυμαζόντων, ἀπ᾽ αὐτῶν τῶν ἔργων
σκοποῦσι δηλώσει ὅμως μείζων γεγενημένος αὐτῶν.

20 [3] Há ainda muitas outras coisas – também no presente e não esquecidas no


tempo – sobre as quais os outros Gregos têm uma ideia errada: como a ideia de
que os reis Lacedemónios não dispõem de um voto cada um, mas de dois, ou de
que possuem um batalhão de nome “Pitana”, que nunca existiu. assim, indiferente
é para muitos a busca da verdade, e preferem voltar-se para o que têm mais à dis-
posição.
21 [1] No entanto, quem, tendo em conta as provas mencionadas, considerasse as
coisas que eu expus, não se equivocaria, não acreditaria tanto no que os poetas
compuseram acerca delas embelezando-as ao máximo, nem nos logógrafos, que
escreveram acerca delas mais para agradar ao auditório do que para fins de ver-
dade, pois, sendo coisas impossíveis de comprovar, muitas delas, devido ao tempo
transcorrido, passaram incrivelmente para o domínio do fabuloso; por fim, não se
equivocaria quem considera que se investigou suficientemente, tendo em conta a
antiguidade dos factos, a partir dos indícios mais evidentes. [2] e esta guerra –
apesar de os homens, quando estão em guerra, sempre considerarem a atual a
maior, e uma vez esta terminada admirarem mais as do passado – mostrará, aos
que a procuram ver a partir dos próprios acontecimentos, que foi de maior mag-
nitude do que as do passado.

tucídides, História da Guerra do Peloponeso, i. 22. 1-4


22 [1] καὶ ὅσα μὲν λόγῳ εἶπον ἕκαστοι ἢ μέλλοντες πολεμήσειν ἢ ἐν αὐτῷ ἤδη
ὄντες, χαλεπὸν τὴν ἀκρίβειαν αὐτὴν τῶν λεχθέντων διαμνημονεῦσαι ἦν ἐμοί τε ὧν
αὐτὸς ἤκουσα καὶ τοῖς ἄλλοθέν ποθεν ἐμοὶ ἀπαγγέλλουσιν: ὡς δ᾽ ἂν ἐδόκουν ἐμοὶ
ἕκαστοι περὶ τῶν αἰεὶ παρόντων τὰ δέοντα μάλιστ᾽ εἰπεῖν, ἐχομένῳ ὅτι ἐγγύτατα
τῆς ξυμπάσης γνώμης τῶν ἀληθῶς λεχθέντων, οὕτως εἴρηται. [2] τὰ δ᾽ ἔργα τῶν
πραχθέντων ἐν τῷ πολέμῳ οὐκ ἐκ τοῦ παρατυχόντος πυνθανόμενος ἠξίωσα
γράφειν, οὐδ᾽ ὡς ἐμοὶ ἐδόκει, ἀλλ᾽ οἷς τε αὐτὸς παρῆν καὶ παρὰ τῶν ἄλλων ὅσον
δυνατὸν ἀκριβείᾳ περὶ ἑκάστου ἐπεξελθών. [3] ἐπιπόνως δὲ ηὑρίσκετο, διότι οἱ
παρόντες τοῖς ἔργοις ἑκάστοις οὐ ταὐτὰ περὶ τῶν αὐτῶν ἔλεγον, ἀλλ᾽ ὡς ἑκατέρων
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 415

τις εὐνοίας ἢ μνήμης ἔχοι. [4] καὶ ἐς μὲν ἀκρόασιν ἴσως τὸ μὴ μυθῶδες αὐτῶν
ἀτερπέστερον φανεῖται: ὅσοι δὲ βουλήσονται τῶν τε γενομένων τὸ σαφὲς σκοπεῖν
καὶ τῶν μελλόντων ποτὲ αὖθις κατὰ τὸ ἀνθρώπινον τοιούτων καὶ παραπλησίων
ἔσεσθαι, ὠφέλιμα κρίνειν αὐτὰ ἀρκούντως ἕξει. κτῆμά τε ἐς αἰεὶ μᾶλλον ἢ
ἀγώνισμα ἐς τὸ παραχρῆμα ἀκούειν ξύγκειται.

22 [1] Quanto ao que disse cada um dos lados em discurso, estando para entrar
em guerra ou estando já nela, era difícil recordar a exatidão mesma do que foi
proferido, quer o que eu próprio ouvi quer o que me relataram outras fontes: eu
expus o que a meu ver cada um terá dito de acordo com o que seria mais con-
veniente para cada circunstância, mantendo-me o mais próximo possível do sen-
tido geral do que foi realmente afirmado. [2] relativamente aos acontecimentos
passados durante a guerra não me pareceu correto escrever qualquer informação
que me chegasse nem o que a mim me parecia ter acontecido, mas só o que eu
próprio presenciei ou o que acerca de cada um procurei saber junto de outras pes-
soas como o máximo de exatidão possível. [3] Foi uma árdua investigação, porque
os que estiveram presentes em cada acontecimento não diziam o mesmo acerca
deles, devido à simpatia que pudesse haver por um dos lados ou devido à memó-
ria. [4] Provavelmente, o caráter não fabuloso dos factos relatados fá-los-á parecer
menos agradáveis ao ouvido: mas julgue-os úteis quantos queiram ver claro nos
acontecimentos do passado e nos que, no futuro, em virtude do caráter humano
que é o seu, apresentarão similitudes ou analogias, e isso para mim será suficiente.
compôs-se um tesouro para sempre mais do que um recital para um auditório
momentâneo.

«indiferente é para muitos a busca da verdade (ἡ ζήτησις τῆς ἀληθείας),


preferindo confiar no que está mais à mão» (tucídides: i. 20. 3). Não assim
para tucídides. salta à vista, pela insistência, o desejo de rejeitar tudo o que
não possa ser comprovado e tudo o que só serve para embelezar e engrandecer
discursos destinados a declamação. em antítese com a fugacidade da oralidade
(τὸ παραχρῆμα ἀκούειν), tucídides coloca a perenidade das suas lições (κτῆμά
τε ἐς αἰεὶ). um conflito emerge entre prazer, oralidade e audição de um lado
e utilidade, escrita e visão do outro. tucídides, em nome da objetividade e da
verdade, opta por uma narrativa que durante muitos séculos foi considerada
desapaixonada e objetiva19. Geralmente, vê-se nestas declarações uma crítica
implícita a Heródoto, por ter introduzido nos seus relatos histórias de caráter

19
adam Parry, com a sua tese de doutoramento apresentada em 1957 Logos and Ergon
in Thucydides (1988) e o ensaio Thucydides’ historical perspective (1972), foi um dos primei-
ros a contrariar esta crença, demonstrando o pathos e a envolvência de tucídides na sua
escrita.
416 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

fabuloso, τὸ μυθῶδες, isto é, que se assemelham a mitos sem serem mitos, ou


seja, como eles fabulosos, indemonstráveis e verosímeis, para agradar aos seus
ouvintes20. considera-se que as Histórias de Heródoto, ainda com influências da
epopeia homérica, estão direcionadas para o ouvido do público e por conse-
guinte devem ser persuasivas e capazes de captar a atenção do auditório. tucí-
dides condena esta prática característica dos logógrafos: os que recolhem e
transcrevem logoi, histórias que circulam de boca em boca. Na sequência,
acusa-os de ceder ao prazer do auditório, agindo em função do curto momento
das suas performances públicas. o historiador ateniense não pretende ser agra-
dável ao ouvido, somente ser útil, por isso recusa narrar acontecimentos de
caráter fabuloso21. «À la séduction de la parole qui passe, thucydide oppose
son propre choix: être simplement et durablement vrai» (Hartog 2005: 93).
Hunter diz mesmo que em tucídides acontece uma mudança do ouvido
para o olho, devida à sua desconfiança relativamente à oralidade usada com
fins persuasivos. esta desconfiança pode ser comprovada em várias alusões
ao longo da História da Guerra do Peloponeso: ii. 35. 2, iii. 38, iii. 42-43,
iii. 82, Vii. 8. 2 (vide a análise e comentários de crane 1996: 209-258).
a mudança da oralidade para a visão executa-se por intermédio da escrita, que
permite uma atitude crítica e reflexiva que a oralidade, sujeita que está aos
limites do imediato e da fugacidade, não consegue22. através da escrita, parti-
cularmente da escrita dos discursos, tucídides estabelece uma epistemologia
que pretende ensinar os seus leitores a separar o logos da doxa e a fazer uma
pesquisa mais rigorosa da verdade.

20
«Now there is a general consensus that by the mythic (τὸ μυθῶδες) thucydides
meant the fabulous or storytelling element of his predecessors. He contrasts it with clarity (τὸ
σαφές), which seems to be closely bound up with the certainty of contemporary history, and
this suggests that ‘the mythic’ cannot be tested or inquired about, because of both the dis-
tance in time from the events, and the essentially fantastic nature of the material. it is a trib-
ute to the influence of thucydides that after him myth could only with difficulty be rescued
or redeemed. in later historians we can see only three possibilities: avoid myths altogether;
try to ‘rationalize’ or ‘de-mythologise’ them; or, as Lucian suggests, include them, but leave
their credibility to the reader to decide. if one include them, one had to defend oneself»
(marincola 1997: 117-118).
21
sobre a relação de tucídides com o prazer proveniente das palavras vide o interes-
sante trabalho de crane 1996: 215-235.
22
tucídides inclui na sua História um episódio que dramatiza muito bem este conflito
entre oralidade e escrita. o general ateniense Nícias recusa confiar nos seus próprios mensa-
geiros devido à falibilidade da oralidade e da memória, optando por escrever uma carta –
tucídides: Vii. 8. 2.
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 417

For writing allowed one not only to compose and recompose but to study, correct,
and revise, dwelling at length and in private on one’s manuscript until the eye was
satisfied with is product. it permitted “a different kind of scrutiny of current
knowledge, a more deliberate sorting of logos from doxa, a more thorough pro-
bing into the ‘truth’ ”. the result is a manuscript that yields far more to the eye
than to the ear, for the reader could study it closely and discern what the equally
close attention of the writer had implanted therein. He would discover an episte-
mology. and this thucydides effected through a skillful and original use of one
of the conventions of the oral performance since Homer, the speeches of the par-
ticipants [Hunter 1982: 290].

o rhetor joga com as emoções dos ouvintes, usa truques retóricos para
fins de convencimento do auditório, podendo mesmo enganá-lo, forjando as
mais variadas ilusões com as palavras. a questão que muito provavelmente se
colocava tucídides é onde fica a verdade no meio da ilusão (apate) produzida
pela retórica. as convenções da oralidade podem não ter outro fim que não seja
obscurecer a verdade. certamente, era isto que acontecia com a epideixis, a per-
formance pública do sofista ou rhetor. Para este, os logoi não tinham como fim
necessariamente a comunicação da verdade ou mesmo de uma qualquer men-
sagem. os logoi possuem o estranho poder de evocar sentimentos nos ouvintes
e de os guiar pelas emoções. tucídides ter-se-á apercebido que o rhetor, ins-
trumentalizando assim os logoi, podia tornar-se muito perigoso, por isso recusa
este tipo de figura. todavia, não recusa o seu instrumento de trabalho, o dis-
curso; pelo contrário, apropria-se dele e dá-lhe a máxima vitalidade. mais à
frente, verificaremos como os discursos políticos desempenham um papel vital
na obra de tucídides23. em todo o caso, percebe-se quem sustenta que a epis-
temologia de tucídides pode ser considerada como uma resposta a Górgias24.
Quem também ganhava a vida a declamar era o logógrafo, categoria onde
tucídides insere Heródoto. o logógrafo fascinava os seus ouvintes com as suas

23
«the orator and the text may aim at different groups, but, in a political document
such as thucydides’ History, the written logoi have much in common with those the orator
performs before a living audience» (crane 1996: 233).
24
m. untersteiner, The Sophists, trad. ingl. K. Freeman, oxford, 1954, explora esta
relação entre apate e logos e consagra o capítulo 5 à «epistemologia de Górgias». a secção
intitulada «o encómio de Helena», pp. 101-131, é particularmente interessante. Parte da sua
interpretação toma como ponto de partida tucídides, iii. 43. 2. crane (1996) também con-
sagra o último capítulo do seu livro, sob o título The Rhetoric of austerity, ao confronto da
obra de tucídides com os temas da retórica.
418 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

variegadas, coloridas e, por vezes, exóticas descobertas25. todavia, Heródoto


não pode ser confundido com a figura do sofista. o pater historiae distinguia-
-se deste desde logo porque era bem-intencionado e tinha uma sólida mensagem
a transmitir. Há até uma tradição, não comprovada, transmitida por marcelino,
autor de uma Vida de Tucídides, que diz que este se desfez em lágrimas ao
ouvir a recitação das Histórias feita pelo seu autor e que este facto terá sido
determinante para tucídides se pôr a escrever a sua História da Guerra do
Peloponeso. Heródoto também manifesta alguma preocupação com a parciali-
dade e a falibilidade da memória e terá influenciado positivamente tucídides
em vários aspetos, como adiante veremos26. a sua fraqueza reside na não sele-
ção da versão mais fidedigna, tarefa que deixa para o leitor. mais uma vez, o
que apoquenta tucídides é a questão da verdade. Heródoto emite opiniões, con-
fronta testemunhos, cita versões contraditórias e, por vezes, indica argumentos
em favor de cada versão e até a sua própria preferência, mas nunca é assertivo,
deixando-nos em estado de dúvida. Fazia-o pela necessidade de decorar e tornar
os seus relatos mais atrativos para o público ouvinte – isto a fazer fé no que
diz a maioria dos académicos, que dá como certo que as suas Histórias se des-
tinavam a declamação pública27. com esse fim, introduziu também toda uma

25
antes de Heródoto, os logógrafos eram genealogistas e arquivistas. ao serviço das
grandes famílias das cidades, tinham como missão recolher provas que atestassem a antigui-
dade e a nobreza de um genos, o seu direito ao reconhecimento público ou de consignar os
atos importantes – diplomáticos, militares ou religiosos – de uma pólis. Hecateu de mileto,
também ele logógrafo, já introduz as variantes geográficas e etnográficas no seu relato de fac-
tos históricos, vindo a influenciar o próprio Heródoto.
26
Hornblower, que refuta muitas das críticas que normalmente se fazem a Heródoto e
desmonta muitas das falhas que tradicionalmente se lhe apontam, reconhece três dívidas de
tucídides para com Heródoto, sendo a primeira delas a decisão de fazer um registo verda-
deiro e interpretativo do passado: «[...] the decision to record truthfully, and to interpret, the
past, confining himself to contemporary or near-contemporary events, i.e. knowledge he could
control» (1987: 26).
27
momigliano é dos poucos que contraria a ideia da leitura pública das obras de Heró-
doto, argumentando que não há dados concretos que o confirmem, e a alusão de tucídides
não é suficientemente fiável: «Puede ocurrir muy bien que tucídides se contraponga aquí
polémicamente a sí mismo frente a Heródoto en materia de lecturas públicas, pero sus pala-
bras no son explícitas en este sentido. Como máximo son ambiguas. Solo si estamos seguros
por un camino independiente del hecho de que Heródoto hizo lecturas públicas de sus obras,
podríamos buscar una confirmación a Tucídides. Éste es reticente incluso sobre su propia
obra; no excluye ni confirma que fuese leída o que pudiese leerse en público. Lo que quiere
expresar principalmente es la convicción de que una buena historia es una historia que las
futuras generaciones leerán para su instrucción» (1984: 112).
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 419

amálgama de distrações, curiosidades etnográficas e geográficas, que tucídides


dispensa. No fim de contas, o meio obscurece a mensagem.
assim sendo, fundamentalmente, a epistemologia de tucídides apresenta-
-se como uma crítica da oralidade. de facto, não é a mensagem transmitida por
Heródoto que tucídides rejeita, que ele terá assimilado por completo, o que ele
recusa é a adesão a convenções populares de exposição oral, que eram um obs-
táculo à seriedade, à exatidão e à verdade. Por isso, o historiador ateniense
decide dedicar-se a um modo de comunicação que apresente a verdade clara e
seja para sempre útil ao género humano.
em contraste com estes que critica, tucídides estabelece como propósito
fundamental do seu trabalho comunicar a verdade com clareza (to saphes).
mais do que isso – acrescenta Virginia Hunter (1982: 289) – pretende ensinar
os seus ouvintes e os seus leitores a chegar à verdade, particularmente, a sepa-
rar verdade de falsidade. isso implica pôr a descoberto a ilusão, o dolo (apate)
e mostrar como este se infiltrou nos ouvintes através dos logoi. É para cumprir
este propósito que ele deixa fora da sua composição histórias e outras diversões
atrativas para o ouvido, que eram o trunfo do declamador; recusa também
registar tudo o que lhe dizem, submetendo a informação recebida de terceiros
ao filtro da verdade e a critérios de relevância; não expõe os seus leitores ao
relativismo de múltiplas versões, numa clara demonstração de apreço pela ver-
dade. Perseguindo a exatidão, assume-se como o melhor juiz para avaliar a
credibilidade dos informadores e apurar a validade dos diferentes testemunhos.
o próprio admite ter tido uma tarefa árdua. mas, no fim, tendo seguido a dis-
ciplina destes princípios, está em condições de apresentar um trabalho (nem
sempre agradável de ler) despojado dos dados geográficos, climáticos e étnicos
que fizeram as delícias dos seus antecessores.

1. TUcÍDiDES E hERÓDOTO

tucídides nunca nomeia Heródoto diretamente, só faz isso com um outro


historiador, Helânico de mitilene, a quem critica a parcimónia das informações
e a falta de rigor cronológico (i. 97. 2). No entanto, quando censura a aceitação
indiscriminada de dados transmitidos pela tradição, citando especificamente «a
ideia de que os reis Lacedemónios não dispõem de um voto cada um, mas de
dois, ou de que possuem um batalhão de nome “Pitana”, que nunca existiu» (i.
20. 3), está a aludir às Histórias de Heródoto, imputando-lhe esses dois erros.
Gomme (1954) diverge daqueles que julgam que tucídides estava fre-
quente e deliberadamente a confrontar a sua obra (assunto e tratamento do
420 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

assunto) com a de Heródoto ou desprezava o seu antecessor, reconhecendo que


há pontos de encontro e algum consenso entre ambos. mas quando tucídides
manifesta um cuidado especial em testar as informações que colheu de tercei-
ros, quando assume a parcialidade e a falibilidade da memória, está a distan-
ciar-se concretamente de Heródoto, o qual aceitava facilmente tudo o que lhe
diziam que lhe parecesse verdade. Heródoto, diz Gomme (1954: 117), pensa
como um poeta, como Ésquilo, logo, mais como contador de histórias do que
como historiador. e quando tucídides afirma que o seu trabalho será menos
atrativo para o público porque pôs de parte to mythodes, está ainda a pensar
no texto do seu antecessor. com este termo, to mythodes, tucídides está a refe-
rir-se não ao mito mas às histórias fabulosas que Heródoto introduziu na sua
narrativa. em nome da verdade, o autor da História da Guerra do Peloponeso
rejeita perentoriamente este tipo de ficções. É por isso que Heródoto é sobre-
tudo um artista e tucídides o primeiro historiador científico28.
Hornblower, por seu turno, afirma que tucídides consegue ser ainda mais
incisivo que Heródoto na declaração de verificação de provas e que o faz, pro-
vavelmente, com o historiador de Halicarnasso embora a queixa de que muitos
não se preocupam com a busca da verdade seja uma convenção, acontece que
tucídides «pode ter usado linguagem convencional para assinalar o que, real-
mente, era um plano de trabalho não convencional»29.
É, pois, praticamente consensual que tucídides, ao querer demarcar-se dos
historiadores seus antecessores, tem em mente Heródoto30. se essa distância é
larga ou estreita depende muito das sensibilidades e das interpretações dos eru-
ditos, como pudemos verificar nas opiniões atrás transcritas. o que é certo é
que ele é o principal responsável pela fama de mentiroso que o historiador de

28
«such things thucydides reject in the interests of truth, and we say that Herodotus
was after all an artist, while thucydides was the first scientific historian» (Gomme 1954:
117).
29
«certainly, thucydides goes even further than Herodotus in claiming to have
checked his facts by original research: at the beginning, perhaps with Herodotus specifically
in mind, he remarks that most people do not take trouble over the search for the truth. But
even this remark belongs in a tradition, for aristophanes uses the same word in a similar
context. [...] But thucydides, like Herodotus in his programmatic statement about ‘speaking
of what he knew’, may have used conventional language to signal what was really an uncon-
ventional plan of work» (Hornblower 1987: 24).
30
«s’inscrit, en effet, à l’évidence dans les premières pages de l’Histoire de la guerre
du Péloponnèse une volonté de rupture avec les autres Histoires et, notamment, avec déjà les
plus célèbres d’entre elles, celles d’Hérodote» (Hartog 2005: 92).
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 421

Halicarnasso haveria de herdar31. ao reclamar um estatuto de verdadeira para a


sua história, tucídides está de forma indireta a desqualificar aquele que simul-
taneamente consideraria pai da história e pai de mentiras32. sem nunca se refe-
rir abertamente ao seu antecessor, este acaba por estar sempre latente nestes
excertos programáticos, quer como alvo das críticas quer como modelo de imi-
tação. Não podemos esquecer que tucídides está a dar continuidade a uma
forma literária praticada por Heródoto: a prosa; a um tema: a guerra; a uma
ética: não exagerar no elogio nem na repreensão; a um tipo de fontes: testemu-
nhos orais e observação direta; e de tal modo tucídides deveria considerar sufi-
ciente a exposição dos factos realizada pelo seu antecessor (apesar das alusões
críticas) que o próprio tem o cuidado de retomar a história onde Heródoto a
deixou. o historiador ateniense, antes de se atirar à guerra do Peloponeso,
começa por ligá-la com o passado, preenchendo o hiato de cerca de cinquenta
anos (Pentecontaeteia) que separa as guerras médicas da guerra do Peloponeso,
prestigiando, dessa forma, o seu predecessor.
assim, momigliano, por exemplo, dá-nos a entender que entre estes dois
historiadores não houve um corte tão abrupto (mas ainda assim, a nosso ver,
extremamente significativo) como às vezes se quer fazer crer ou como tucídi-
des nos fez crer:
Fundamentalmente, tucídides no ha hecho otra cosa que reforzar el rigor y la
coherencia de los criterios de Heródoto, prefiriendo la historia contemporánea a la

31
«thucydide raconte comment, enfant, il eut l’occasion d’entendre Hérodote en per-
sonne raconter ses Histoires à olympie. son émerveillement fut tel qu’il en pleura d’émotion.
malgré cet enchantement, à une seule génération de distance, le fils tu le père et Hérodote
subit une disqualification quasi immédiate de la part de son disciple. thucydide qui lui
reproche de rester encore trop près de la légende et trop éloignée des strictes règles d’éta-
blissement de la vérité. Hérodote passe alors pour un affabulateur, trop prompt à l’invention
pour combler les lacunes documentaires. Père de l’histoire, il devient également père des
mensonges» (dosse 2000: 13). Hartog reforça a mesma ideia: «il fallait thucydide pour
qu’Hérodote pût apparaître comme menteur [...]» (2005: 99).
32
momigliano retrata bem esta situação paradoxal: a fama de Heródoto como pai da
história e como mentiroso deve-se a tucídides. «Y sin embargo el padre de la historia no fue
nunca, o casi nunca, reconocido como un historiador modelo, porque no fue nunca tratado,
tampoco por sus admiradores, como digno de fe. Hasta su compatriota Dionisio de Halicar-
naso, que lo admiró en todo lo demás, calla sobre su veracidad. Esta situación parajódica se
explica fácilmente. Heródoto fue padre de la historia, porque Tucídides lo reconoce implíci-
tamente como tal; pero fue considerado como no digno de fe, porque fue tal el veredicto de
Tucídides. En otras palabras, la reputación de Heródoto en la antigüedad fundamentalmente
depende de la dirección que Tucídides imprimió a la historiografía» (1984: 97).
422 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

casi contemporánea y rehusando hablar de cualquier cosa que no fuese de credi-


bilidad cierta, en tanto que Heródoto había considerado legítimo referir con cautela
los hechos de los que no podía dar garantías diretamente [1984: 14].

utilizámos a expressão “fazer crer” porque o próprio momigliano, noutro


passo, com a repetição do verbo “persuadir”, pode dar a entender que este dis-
tanciamento foi sobretudo uma estratégia de tucídides para credibilizar e valo-
rizar o seu trabalho e influenciar toda a historiografia posterior na opção pelo
objeto político-militar:
indubitablemente, tucídides persuadió a la mayoría de sus lectores, al menos en
la antigüedad, de que en comparación con sus criterios de verdad de Heródoto no
merecía confianza. consiguió después también persuadir a sus sucesores de que la
única verdadera historia es la historia político-militar (ibid.: 98).

Guarde-se, como sentença final, o reconhecimento inequívoco de progres-


sos no campo metodológico, nomeadamente no que diz respeito ao apuramento
da verdade e isso não é escamoteável: «tucídides, pues, lleva a la victoria una
exigencia de veracidad más rigurosa que la de Heródoto [...]» (ibid.: 99)33.
mesmo a oposição entre deleite e utilidade é passível de ser atenuada,
mas não anulada. de facto, apesar de ter um discurso aparentemente despojado
e austero, veremos adiante que tucídides, para persuadir, envolver emocional-
mente e prender os seus leitores, não consegue prescindir desse deleite retórico
que começa por rejeitar – como característica de sofistas e logógrafos da estirpe
de Heródoto – em prol da utilidade. a diferença está em que este deleite pro-
vém de técnicas de composição e estratégias retóricas que nada têm que ver
com to mythodes (ficção), mas permanecem arreigadas ao real acontecido34.

33
Numa outra obra, Momigliano faz uma síntese das heranças e das ruturas entre os
dois historiadores: «Thucydide, à l’instar d’Hérodote, ne mettait pas en question la présupposé
selon lequel la tradition orale surpassait la tradition écrite. et comme lui, il croyait d’abord
ce qu’il voyait de ses yeux et ce qu’il entendait de ses oreilles avant de considérer ce que
disaient des témoins dignes de foi. [...] il se séparait cependant d’Hérodote de deux manières:
en premier lieu, il ne se satisfaisait jamais d’un honnête compte rendu sans prendre la res-
ponsabilité de ce qu’il rapportait. Le simple λέγω τὰ λεγόμενα n’était pas pour lui. en
deuxième lieu – il s’agit là, dans une certaine mesure, de la conséquence du premier point
– il a rarement indiqué le détail des sources de son information. il avait le sentiment qu’on
devait le croire sur parole» (1992: 49).
34
a nosso ver, estes dois tipos de deleite, um assente em mythodes e outro na capa-
cidade de conferir vivacidade (enargeia) ao relato, marca a diferença entre Hayden White e
Paul ricœur. os dois admitem a utilização de recursos retóricos ou da ficção enquanto forma
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 423

diferenças também muito assinaladas entre os dois historiadores são o


facto de a história de Heródoto ser quase contemporânea e a de tucídides total-
mente contemporânea (com a exceção da secção conhecida como arqueologia);
o facto de tucídides se concentrar exclusivamente num objeto político e militar,
deixando de fora qualquer tipo de consideração de âmbito etnográfico, folcló-
rico e geográfico35; todavia, a que é muitas vezes apontada como a divergência
maior é o facto de tucídides considerar o homem e não a divindade como
motor da história (cochrane 1929: 106-107)36. apesar de não haver uma inter-
venção direta dos deuses nas Histórias de Heródoto, consegue palpar-se a pre-
sença divina, já que este concebe o processo histórico como um estado de equi-
líbrio cuja rutura exige o restabelecimento da situação anterior. a hybris dos
homens provoca a phthonos da divindade, que pune impiedosamente aquele que
sobressai. tucídides, em linha com os filósofos jónios, é muito mais racional
e humanista, na sua obra não há lugar para a divindade, apenas para os
homens.
comme les philosophes ioniens, comme empédocle, anaxagore et Leucipe pour le
devenir physique, il cherche pour l’action humaine la source du mouvement dans

de comunicação com o leitor, mas para White estes recursos são deixados à deriva, entrando
na categoria de mythodes e para ricœur eles não podem perder o contacto com a res gestae,
ou seja, hão de ser necessariamente controlados pelas provas documentais. É uma ficção sem-
pre sujeita a controlo documental.
35
esta opção de tucídides pela história política haveria de prevalecer até ao século
XX, mais precisamente, até à História do Mediterrâneo e do mundo mediterrânico de Fer-
nand Braudel, que se pode considerar um regresso ao espírito historiador (etnográfico e geo-
gráfico) de Heródoto. Hornblower considera-a como uma das heranças negativas que tucí-
dides nos legou: «it was profoundly damaging because [...] it was thucydides who by his
influential practice ordained that history should henceforth be primarily a matter of war and
politics» (1987: 30). momigliano justifica assim esta eleição do historiador ateniense e a
rejeição da etnografia e da geografia: «tucídides se concentraba sobre la vida política, en ella
reencontraba el sentido al obrar humano. Comprendiendo la vida política del presente, y sus
consecuencias militares, consideraba haber comprendido la naturaleza del hombre en sus ele-
mentos perennes. Regularmente, si no siempre, dejaba de lado las descripciones de países
extranjeros, de experiencias insólitas (hecha excepción de la peste), de anécdotas sobre indi-
viduos notables, de mitos y cultos, de noticias sobre cosas conspicuas por su belleza o gran-
deza. Hacía hincapié en considerar la guerra del Peloponeso como la suma de la naturaleza
humana; tan obstinadamente que no tenía duda alguna sobre sus premisas metodológicas»
(1984: 98).
36
cf. Hornblower 1987: 29-30: «the first main difference between Herodotus and
thucydides is in their theology and view of causation. Herodotus is much readier than
thucydides to give a place in his causal scheme to oracles, and to see human fate in terms
of tisis, divine requital, although this does not exclude causation at the human level».
424 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

le monde réel et immanent en renonçant, comme eux le faisaient pour la nature,


à toute l’explication mythologique ou religieuse et en rejetant l’interférence des
dieux comme cause des phénomènes historiques [mugler 1951: 25].

ao retirar capacidade explicativa à intervenção das divindades, procura


explicações racionais para fenómenos que normalmente eram vistos como pro-
duzidos pelos deuses: oráculos, eclipses, fenómenos atmosféricos, epidemias,
etc. isto não impede que o historiador manifeste uma atitude de respeito pelas
normas morais e religiosas.
em suma, os contrastes com Heródoto serão inevitáveis ao longo deste
estudo, porquanto eles estão latentes no próprio texto tucididiano e nos ajudam
a perceber o quanto as tentativas de fazer diferente correspondem ao seu anseio
de verdade. comecemos, a propósito, pelo confronto e aprofundamento das pro-
postas expressas nos prólogos dos dois autores, onde encontramos denominado-
res comuns e divergências.

2. cONDiÇÕES DO SURGiMENTO DA hiSTÓRiA: GRANDiOSiDADE,


iMORTALiDADE E POLÍTicA

esta é a exposição das investigações [ἱστορίης ἀπόδεξις] de Heródoto de Halicar-


nasso, para que os feitos dos homens se não desvaneçam com o tempo, nem
fiquem sem renome [ἀκλεᾶ] as grandes e maravilhosas empresas [ἔργα μεγάλα τε
καὶ θωμαστά], realizadas quer pelos Helenos quer pelos Bárbaros; e sobretudo a
razão por que entraram em guerra uns com os outros [Heródoto 2002: 1.1].

tucídides de atenas reuniu por escrito [ξυνέγραψε] a guerra dos Peloponésios e


dos atenienses, como guerrearam uns contra os outros, começando a escrever
logo aos primeiros sinais, por ter pressentido que esta havia de ser a de maiores
proporções e mais memorável das guerras havidas até aí [μέγαν [...] καὶ
ἀξιολογώτατον τῶν προγεγενημένων] [tucídides: i. 1. 1].

Não é, como já vimos, uma intensa consciência histórica que leva Heró-
doto e tucídides a historiografar. tucídides não é, nesta fase, muito explícito
quanto aos seus propósitos. saberemos mais tarde que tem em mente deixar-nos
“lições para sempre”. Já Heródoto é muito claro: preservar aquilo que aos
homens deve a sua existência (τὰ γενόμενα ἐξ ἀνθρώπων), para que o tempo
o não apague e para não deixar sem renome (aklea) os gloriosos e admiráveis
feitos dos Gregos e dos Bárbaros. aquele que cícero apodou de pai da história
– pater historiae (De legibus i, 5; De oratore ii, 5) – propôs-se, deste modo,
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 425

resgatar as obras, feitos e palavras da fugacidade que vem com o esquecimento


e a corrosibilidade do tempo mortal, contribuindo para, em certa medida, as
inscrever no mundo da perpetuidade, permitindo aos mortais encontrar lugar
neste cosmos imortal. É que, de acordo com Hannah arendt:
No início da história do ocidente, a distinção entre a mortalidade dos homens e
a imortalidade da natureza, entre as coisas feitas pelo homem e as que existiam
por si mesmas, era assumida tacitamente pela historiografia. todas as coisas que
devem ao homem a sua existência, tais como obras, feitos ou palavras são pere-
cíveis, contaminadas, por assim dizer, pela mortalidade dos seus autores. No
entanto, se os homens lograssem dotar as suas obras, feitos ou palavras de alguma
permanência, detendo assim a sua transitoriedade, então, essas coisas poderiam,
pelo menos em certa medida, entrar no mundo da perpetuidade, e os próprios mor-
tais encontrariam o seu lugar neste cosmos onde tudo é imortal exceto o homem.
a aptidão do homem para alcançar tal coisa era a memória, mnemósine, a quem
por isso se considerava a mãe de todas as outras musas [2006: 57].

Há um elemento comum aos dois prólogos: a ideia de grandiosidade.


ambos os historiadores estão convictos da grandiosidade admirável dos feitos
que vão contar: Heródoto, «grandes e maravilhosas empresas»; tucídides, «a de
maiores proporções e mais memorável das guerras havidas». ora, este conceito
de grandiosidade não é desprezível, pelo contrário ele é o reflexo de toda uma
mentalidade no seio da qual surgem as obras de Heródoto e tucídides. a este
propósito, não podemos deixar de invocar a excelente reflexão que Hannah
arendt produz sobre o «conceito de história antiga e moderna», segundo capí-
tulo da obra Entre o passado e o futuro (2006: 55-103). esta abre-nos portas
para a mentalidade e consciência histórica dos Gregos, tendo por pano de fundo
a relação entre história e natureza, que assenta, por sua vez, nas traves mestras
de grandiosidade e imortalidade. ademais, a reflexão de Hannah arendt ajudar-
-nos-á mais tarde a perceber mais claramente alguns preceitos tucididianos,
como as famosas “lições para sempre da história” ou o tópico da permanência
da natureza humana, bem como a relação entre poesia, história e filosofia, a
partir da consabida declaração de aristóteles.
o prólogo de Heródoto deve ser lido à luz do conceito e da experiência
que os Gregos tinham da natureza (physis). Para estes só o que era natural pos-
suía estatuto de eternidade. a physis abarcava todas as coisas que existem por
si mesmas, independentes dos homens e dos deuses, e que como tal são imor-
tais. Porque as coisas da natureza se mantêm inalteráveis, a sua existência não
depende da memória dos homens. todos os seres vivos, incluindo o género
humano, participam desta condição de ser-para-sempre. aristóteles afirma expli-
426 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

citamente que o homem, porque é um ser natural e pertence à espécie humana,


possui a imortalidade: por meio do ciclo recorrente da vida, a natureza assegura
o mesmo tipo de existência-para-sempre às coisas que nascem e morrem e às
coisas que são e não mudam. deste modo, a metafísica grega não só não cor-
tou com a raiz mítica e aistórica da mentalidade arcaica como parece ter-lhe
conferido uma maior racionalização. Podemos perguntar-nos se a conceção
cíclica do tempo defendida por aristóteles não é uma racionalização de sobre-
viventes conceções míticas do eterno retorno. ora, este eterno retorno não é o
suficiente para garantir aos homens, individualmente considerados, a imortali-
dade. o homem distinguia-se, justamente, do cosmos imortal onde se insere
pela sua caducidade. até mesmo os animais eram considerados imortais, na
medida em que existem apenas como membros da sua espécie e não como
indivíduos. a vida retilínea do homem (bios), com uma história reconhecível
desde o nascimento até à morte, irrompe pelos movimentos circulares da vida
biológica (zoe)37. Nos termos da poesia e da historiografia antigas, a grandio-
sidade dos mortais era diferente da grandiosidade, indubitavelmente maior, da
natureza e dos deuses. talvez, por isso, os Gregos nunca tenham conseguido
reintegrar os grandes feitos e as grandes obras dos mortais, tema das narrativas
históricas, num todo circundante ou num processo histórico; pelo contrário, a
tónica incidia sempre nas circunstâncias e nos gestos singulares, esses que
«interrompiam o movimento circular da vida quotidiana no mesmo sentido em
que o βίος retilíneo dos mortais interrompe o movimento circular da vida bio-
lógica» (arendt 2006: 57). compreende-se, assim, que Heródoto e tucídides
elejam como tema estas interrupções no movimento circular da vida biológica,
estes acontecimentos extraordinários, que Heródoto qualifica de ἔργα μεγάλα τε
καὶ θωμαστά e tucídides μέγαν καὶ ἀξιολογώτατον.
apesar de filósofos como Platão e aristóteles não acreditarem ou darem
qualquer valor à imortalização do homem através de feitos e palavras, prefe-
rindo afastar-se da esfera dos assuntos humanos para melhor contemplarem as

37
«a mortalidade é isto: mover-se em linha reta num universo onde tudo o que se
move, se é que se move, o faz dentro de uma ordem cíclica. sempre que perseguem os seus
objetivos, lavrando a passiva terra, conduzindo o livre vento para o côncavo das suas velas,
sulcando as ondas que rolam sem cessar, os homens irrompem através de um movimento que
é sem objetivo e que gira dentro de si mesmo. Quando sófocles (no famoso coro da Antí-
gona) diz que não há nada que inspire mais terror do que o homem, exemplifica-o evocando
atividades humanas que violam a natureza porque perturbam o que, na ausência dos mortais,
constituiria a eterna quietude do ser-para-sempre que repousa ou volteia dentro de si mesmo»
(arendt 2006: 56).
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 427

coisas que existem para sempre, os historiadores e os poetas não deixaram de


aceitar o conceito de grandiosidade que era habitual entre os Gregos. Não obs-
tante, estas atividades humanas só eram dignas de serem consideradas históricas
se já fossem grandiosas por natureza, isto é, se possuíssem uma inerente qua-
lidade cintilante que as distinguia das demais e as catapultava para a categoria
das coisas que duravam para sempre. apenas estas mereciam a imortalidade,
como assevera Hannah arendt:
o louvor, de onde advinham a glória e depois a fama duradoura, só podia ser con-
cedido a coisas já “grandes”, ou seja, coisas que possuíssem uma qualidade
patente, cintilante, que as distinguia de todas as outras e tornava possível a glória.
o grande era aquilo que merecia a imortalidade, aquilo que devia ser admitido na
companhia das coisas que duravam para sempre, circundando com inexcedível
majestade a fugacidade dos mortais. através da história, os homens quase se con-
vertem em iguais da natureza, e só aqueles acontecimentos, feitos ou palavras que
se elevam por si próprios à altura do sempre presente desafio do mundo natural
é que eram propriamente aquilo a que chamaríamos históricos [2006: 61].

o que Heródoto e tucídides fazem é através da escrita histórica concate-


nar num enredo as ações e as palavras grandiosas e admiráveis, que interrom-
pem o curso normal dos acontecimentos e marcam a individualidade do
homem, permitindo a sua cristalização contra a corrupção temporal, garantindo
a sua fama contra a precariedade de tudo o que resulta da praxis, aproximando-
-se da eternidade das coisas naturais. Graças à memória poética e histórica,
conserva-se o rasto da palavra falada, das ações e dos feitos humanos, as pra-
xeis ou pragmata, distintos de poiesis, que tem o sentido de fabricação ou pro-
dução. se o fabricado pelo homem (poiesis) ainda comunga da eternidade do
mundo natural, pelo facto de a sua matéria-prima ser colhida na natureza ou
nos mitos, já o mesmo não se pode dizer relativamente à praxis e à lexis (fala),
condenadas que estão à efemeridade, enquanto expressão da individualidade de
uma existência que, com tais obras e feitos, se subtrai à eternidade da espécie
humana, necessitando da mediação de práticas anamnésicas para que os seus
ditos e feitos sobrevivam ao momento da sua realização. Que práticas anamné-
sicas – para usar a expressão de Fernando catroga (2006: 8) – são estas? a his-
tória e a poesia. de facto, a ars memoriae e a imortalização de τὰ γενόμενα
ἐξ ἀνθρώπων não era um exclusivo da história. canto e memória aparecem
associados desde a epopeia. a épica dá disso o primeiro sinal, quando apresenta
ulisses, na corte do rei dos Feaces, a escutar do sábio aedo a história da sua
vida, tornada exterior a ele próprio, enchendo de comoção o nobre herói de
ítaca (Odisseia Viii, 83-103). Pela primeira vez, aquilo que fora puro aconte-
428 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

cimento transitório convertia-se em história. Pela primeira vez, graças às lágri-


mas da recordação, produzia-se a catarse, que, mais tarde, será também a essên-
cia da tragédia e que para Hegel era o fim último da história. ainda a propó-
sito deste episódio da Odisseia, pondo a tónica no efeito catártico do
reconhecimento, diz Hannah arendt:
a mais profunda motivação humana para a história e para a poesia surge aqui
numa pureza sem igual: uma vez que o ouvinte, o ator e aquele que sofre são
aqui uma e a mesma pessoa, todas as motivações relacionadas com a pura curio-
sidade ou o gosto por notícias [...] estão naturalmente ausentes em ulisses, que se
teria aborrecido mais do que emocionado se a história se reduzisse a notícias e a
poesia a entretenimento [arendt 2006: 59].

os poetas concediam fama imortal às palavras e aos feitos dos heróis e


dos deuses, pois aí residia a verdadeira grandiosidade humana para os Gregos
pré-platónicos, independentemente de considerarem essa grandiosidade das
menos duradouras entre as atividades humanas, ao contrário da perenidade apre-
sentada pela grandeza das coisas naturais38. com o canto da memória vinham
a fama e o reconhecimento público. Na cultura helénica, o canto da memória
era visto como um dom de inspiração divina, que permitia ao homem reviver
as suas grandezas e saber que elas sobreviverão ao negro Hades que o espera.
o ethos do herói ganha dimensão palpável na sua ação como guerreiro, mas
apenas quando reconhecido pelos seus, em honras, e pelo poeta, na sua poiesis,
que o arrebata para a memória do público. Nesse sentido, canto e memória
enleiam-se nos Poemas Homéricos, nas odes de Píndaro, nas composições de
Baquílides e de tantos outros poetas e tragediógrafos gregos39.

38
este é o grande paradoxo que Hannah arendt encontra na cultura grega, que terá
contribuído grandemente para o seu pendor trágico e terá perseguido poetas e historiadores
gregos, tal como inquietou os filósofos. a grandeza é entendida em termos de permanência,
mas a grandeza humana é vista precisamente nas menos duradouras das atividades humanas.
Por outras palavras: por um lado, «tudo era visto e mensurado contra o pano de fundo das
coisas que existem para sempre, [por outro,] a verdadeira grandeza humana era entendida,
pelo menos entre os gregos pré-platónicos, como residindo nos feitos e nas palavras, sendo
melhor representada por aquiles, “o herói dos grandes feitos e das grandes palavras”, do que
pelo fazedor ou o fabricador, ou até do que pelo poeta ou pelo escritor» (2006: 59).
39
Píndaro apresenta uma particularidade que merece atenção, na medida em que utiliza
o mito como instância fundadora e amplificadora de sentido e, a nosso ver, como forma de
inscrever na esfera do eterno a glória pontual do humano. «cristalizando o mito aquela expe-
riência humana que a sentença (gnome) enuncia como validade universal, ele acolhe o par-
ticular da vitória nessa universalidade em que se inscreve o sentido dos próprios Jogos, reno-
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 429

a imortalidade é o que história, a poesia e physis têm em comum. a imor-


talidade é o que a physis possui sem esforço e por si própria e é aquilo que
os mortais devem tentar alcançar se querem ser dignos do mundo em que nas-
ceram. Por conseguinte, não há oposição entre história e physis, pois a «história
acolhe na sua recordação aqueles mortais que através de palavras e feitos
demonstraram ser dignos da natureza» (arendt 2006: 62) e cuja perpétua fama
os faz vencer a mortalidade e os eleva à companhia das coisas perpétuas40.
assim sendo, uma vez que a memória dos acontecimentos passados não
era um exclusivo da história, podemos interrogar-nos sobre o que provoca o
surgimento da historiografia, em rutura com a epopeia e a poesia. a ficção
lidava com acontecimentos míticos do passado, mas cronologicamente inde-
terminados. a história lida com acontecimentos humanos e cronologicamente
datados. Que acontecimentos são estes que fazem Heródoto e tucídides interes-
sarem-se pelo passado dos homens e já não dos deuses e dos heróis. aconte-
cimentos políticos. o que provocou a transformação do logógrafo – ainda às
voltas com a componente lendária, mas já virado para a etnografia e, parale-
lamente, para a positividade dos factos passados, capazes de justificar as ambi-
ções públicas de determinada genealogia familiar – no historiador, ou a passa-
gem de Hecateu a Heródoto, foi um interesse novo pelo homem, pelo seu
passado e pela sua ação política. a tomada de consciência do caráter decisivo
da ação de um indivíduo e do seu impacto sobre o curso dos acontecimentos
e sobre os outros indivíduos, gerando uma cadeia de reações e de acontecimen-
tos que serão fonte de novas decisões e que guia o curso dos eventos num
determinado sentido é o que sublinha a história. Veja-se a cadeia de reações a
que deu origem a invasão da corcira pelos atenienses. o que assoma é a

vado e atuante em cada competição» (Fialho 2003: 131). os seus epinícios em honra dos
vencedores nos jogos Pan-Helénicos tomam como ponto de partida a vitória histórica de um
determinado atleta mas concedem pouco espaço aos elementos factuais, recusando ficar-se
pela particularidade e pela individualidade. Píndaro guinda esta grandeza humana e passageira
ao nível da imortalidade imutável, amplificando-o com recurso a um mito associado ou ao
herói fundador ou protovencedor dos Jogos ou ao herói tutelar da polis do vencedor cele-
brado. o tempo caduco da vitória é, por esta via, revestido pelo tempo do mito e arrebatado
para a esfera das grandezas imortais (cf. Hornblower 2004).
40
É interessante verificar a inversão de paradigmas que se deu sob influência da reli-
gião judaico-cristã e que abrirá caminho para a consciência historicista que marca a idade
moderna. a partir do momento em que o indivíduo é o único ser imortal e sagrado e tudo
o resto, o cosmos, a natureza, é perecível, alteram-se profundamente os cânones clássicos da
história, a começar pelo enfoque no interesse pessoal, que domina a filosofia política moderna
(cf. arendt 2006: 66).
430 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

necessidade inteligível que habita este devir sensível-profano. esta necessidade


é feita do conflito de vontades múltiplas que se opõem num confronto impie-
doso. a vontade dos indivíduos ou da comunidade já não produz o mesmo
efeito necessário e unilateral que suscitava o desejo ou a vontade dos deuses,
antes a reação antagonista de um outro indivíduo ou de uma outra comunidade.
o peso do passado não é mais o de um Fado que regulava minuciosamente as
peripécias e o desenlace da tragédia, é o de uma situação que impele para um
drama imprevisível até ao seu desfecho. o próprio interesse pelo passado ins-
creve o homem num novo contexto. o homem arcaico exorcizava o tempo.
o que caracteriza este mundo novo que começa com os Gregos das guerras
médicas é o nascimento do homem grego para a vida política e a consciência
do seu estatuto de cidadão – afirma châtelet:
désormais, l’homme existe, non plus comme descendant d’un héros ou comme
initié d’un rituel, mais comme citoyen; c’est dans l’État qu’il se retrouve comme
réalité vivante, État qui a réuni en lui les dimensions juridiques, sociales, écono-
miques et religieuses du groupe [1962: 78].

o cidadão é integrado pela sua pertença à unidade política num devir pro-
fano no qual vê desenrolar-se o seu destino. Não lhe é mais possível ignorar
a sua historicidade, pois a realidade na qual se encontra mergulhado manifesta-
-se a ele forçosamente como histórica. se ele conquistou, graças à vida política,
o seu estatuto de homem atuante, o seu projeto, no entanto, só tem sentido no
interior de uma situação histórico-política. Homem político – cidadão de uma
polis – e homem histórico – situado no e pelo devir sensível-profano – reco-
brem-se mutuamente e marcam a génese do pensamento histórico no mundo
helénico41.

41
moses Finley partilha da mesma opinião de châtelet. Para ele, também foi a política
a condição decisiva do surgimento da história entre os gregos: «À la génération suivante,
thucydide alla encore beaucoup plus loin [qu’Hérodote] en mettant l’accent sur la continuité
d’un récit organisé selon une chronologie stricte, sur une laïcisation rigoureuse des analyses,
et, avec non moins d’insistance et de rigueur, sur l’action politique. L’impulsion nouvelle
venait de la polis classique, et en particulier de la polis athénienne qui, pour la première fois,
du moins dans le monde occidental, fit de la politique une activité humaine, et ensuite en fit
la plus fondamentale des activités sociales. un regard neuf sur le passé s’imposait. cela ne
signifie pas qu’aucun autre point de départ n’eût pu produire l’idée de l’histoire, mais que
chez les Grecs – si on y ajoute le scepticisme et l’habitude d’enquêter, déjà mentionnés – ce
fut la condition décisive» (Finley 1981: 36-37).
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 431

3. HISTORIE E SYNGRAPHO

Pesem embora as similitudes das propostas de trabalho (e são várias,


como pudemos observar), a primeira frase de ambos os historiadores é extre-
mamente sintomática do percurso independente seguido por cada um e abre
uma fenda considerável entre os dois projetos. a asserção «tucídides de atenas
reuniu por escrito a guerra» representa um passo em frente na história da his-
toriografia. Nesta frase, o autor acaba por dizer muito mais do que aparenta.
ao enunciar o seu nome, em nominativo, assina o trabalho e denuncia,
indiretamente, a subjetividade de todo o processo historiográfico. Heródoto já
tinha dado a deixa, ao assinar também ele na terceira pessoa, e ao referir o seu
lugar de origem, seguindo a tradição. a inscrição do nome próprio do historia-
dor e do seu lugar de origem é vista por Hartog como o surgimento do his-
toriador enquanto figura “subjetiva”, marca específica da historiografia grega
que o leva a declarar, em sintonia com Wilamowitz: «aussi les Grecs sont-ils
moins les inventeurs de l’histoire que de l’historien comme sujet écrivain»
(2005: 39). Na verdade, já existia história muito antes dos Gregos, pelo menos
na mesopotâmia e no israel antigo, mas deve-se a Heródoto a iniciativa do
historiador como figura independente do poder político, consciente da sua ação
na construção da história42. todo o discurso histórico tem por trás a intervenção

42
«un tel mode d’affirmation de soi et de production d’un discours n’a nullement été
le fait de la seule historiographie. il est, tout au contraire, la marque, proprement la signature
de cette époque de l’histoire intellectuelle grecque (entre le Vie et le Ve siècle av. J.-c.), qui
a vu au même moment chez les artistes, les philosophes de la nature, les médecins, la montée
de l’“égotisme” (Hartog 2005: 39-40). antes de Heródoto, já Hecateu de mileto, autor de
umas Genealogias e de uma Descrição da Terra em duas partes (europa e Ásia), acompa-
nhada com um mapa ilustrativo, assinara de modo similar as suas Genealogias, nos inícios
do século V: «Hecateu de mileto fala assim». a consciência autoral de Hecateu, que trans-
forma o narrador num escritor consciente da sua subjetividade, é um primeiro passo da his-
toriografia neste novo espaço político e intelectual de que fala Hartog, onde o historiador vem
substituir o aedo, e a que Heródoto dará continuidade: «si l’aède était le porte-parole de la
muse, l’historien, qui recourt à l’écriture, se revendique comme écrivant» (Hartog 2005: 47).
a obra de Hecateu aproxima-se no conteúdo à do seu sucessor, pois mistura considerações
de ordem geográfica e etnográfica com dados históricos. Para além disso, criou uma crono-
logia por gerações de quarenta anos e brindou-nos com uma célebre frase reveladora de espí-
rito crítico: «escrevo de acordo com o que me parece ser a verdade; pois as histórias dos
Gregos são, em meu entender, muitas e ridículas» (fr. 1a Jacoby, apud rocha Pereira 1998:
285). a prática da escrita, na qual Hecateu é um dos pioneiros, permitiu aos gregos dos finais
432 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

ativa de um sujeito que recolhe, seleciona e apresenta dados. todavia, há aqui


uma nuance: Heródoto autodesigna-se em genitivo, dando lugar de sujeito à
“exposição das investigações”. onde tucídides começa por se demarcar clara-
mente da tradição é na escolha do verbo syngrapho e no seu emprego na ter-
ceira pessoa, em ligação com o complemento «como guerrearam uns contra os
outros». desse modo, põe a tónica na objetividade e impessoalidade da narra-
ção, num certo apagamento e distanciamento crítico relativamente aos factos e
na transparência do discurso. esta retirada do autor depois da sua autoapresen-
tação tem como finalidade fazer-nos crer no autoapagamento do sujeito histo-
riador e da sua prática escriturária, para dar ao leitor a impressão que os factos
falam por si próprios. Pura transitividade, a atividade historiadora simula anu-
lar-se no relato constitutivo do seu objeto.
Nicole Loraux (1986: «thucydide a écrit la Guerre du Péloponnèse»)
reage com ironia e acutilância contra esta articulação da autoapresentação do
sujeito historiador com a transitividade que leva ao apagamento do ato de
escrita, em nome de «la plus grande gloire de la vérité» (ibid.: 140). segundo
ela, a primeira frase põe em cena dois momentos de escrita: um de autoapre-
sentação e outro de autoapagamento. o principal objetivo do seu ensaio é des-
mascarar a autoridade instituída por tucídides, através dos capítulos metodoló-
gicos, como forma de colmatar a ausência de provas e omitir o trabalho de
investigação. critica ainda, severamente, o excesso de confiança na narrativa,
tida como um syngraphe inequívoco, transparente e definitivo da totalidade da
guerra. a sua crítica desenvolve-se, essencialmente, em torno da frase que
temos vindo a analisar e que inaugura a História da Guerra do Peloponeso:
[...] comment la phrase institue l’historien comme ce sujet absolu et héroïque qui
serait en même temps le seul garant de la vérité de son propre discours; et com-
ment, pour assurer la réussite de l’entreprise de vérité, ces textes travaillent déjà
à préparer l’effacement du discours en tant que tel derrière les erga – ces “actes”
ou ces “faits” dont le récit veut passer pour la pure exposition transparente
[Loraux 1986: 142].

do século Vi tornar percetível a distância entre o mythos e a historia e, correlativamente,


entre o passado e o presente. «inventorier le monde et mettre de l’ordre dans les récits des
Grecs relève d’un même projet intellectuel, prenant appui sur l’écriture» (Hartog 2005: 57).
a transcrição de logoi de tradição oral permitiu perceber incongruências e contradições entre
as várias versões. os escritos genealógicos são os primeiros a sofrer este tipo de crítica de
que fala Hecateu. a palavra grega que transcrevemos como “ridículas” significa, na verdade,
risíveis, que provocam risos. o que dá vontade de rir a Hecateu são as discrepâncias entre
os logoi, que lhes retiram credibilidade.
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 433

apesar do tom, porventura, excessivo de Loraux, há que reconhecer jus-


teza às suas observações. Não podemos deixar de lhe dar razão quando critica
tucídides pelo fechamento dos dossiês históricos, quando este sugere que a sua
história da guerra do Peloponeso é a história da guerra do Peloponeso, ponto
final, é a definitiva e nada mais há a acrescentar ou a corrigir43. esta ilusão foi
largamente partilhada pelos historiadores durante séculos. também constata que
tucídides contradiz constantemente, com marcas de subjetividade e parcia-
lidade, a sua ambição inalcançável de objetividade e imparcialidade. todavia
– perguntamos nós – não é justamente nesta tensão bipolar que se revela o ver-
dadeiro historiador? Não é este conflito entre o ideal e o possível que nos dá
fecunda matéria de reflexão acerca da condição do historiador antigo e contem-
porâneo? É certo que o historiador ateniense, à falta de provas ou à falta de
sensibilidade para as provas e à falta de crítica de fontes, tende a fundar a ver-
dade dos factos sobre a sua autoridade, como mestre de verdade, ocultando-nos
o seu ateliê: «nous n’aurons pas – ou si peu – accès à l’atelier de l’historien.
cela signifie que ce qui, dans la communauté historienne, s’appelle les sources
a purement et simplement été refoulé» (Loraux 1986: 151). Podemos ainda per-
guntar: havia alternativa? Não terá tucídides, à luz da mentalidade da época e
mediante as circunstâncias, feito o melhor que estava ao seu alcance? seria
mais objetivo e verdadeiro se, na linha de Heródoto, apresentasse todas as ver-
sões, mesmo as mais ridículas, deixando-nos num incessante estado de dúvida?
Que historiador, antes de Lorenzo Valla, fez melhor do que tucídides? É certo
que ele tende a entender a obra como espelho da guerra, sem consideração pelo
ecrã da escrita («la guerre se révélant elle-même, comme si le lieu de cette
révélation n’était pas une œuvre écrite» (ibid.: 149). o leitor é convidado a
acreditar que encontrará no texto os factos e nada mais do que os factos (αὐτὰ

43
a crítica de Loraux tem por base a seguinte afirmação de tucídides: «comecei por
indicar em primeiro lugar a razão pela qual romperam o tratado, as causas e os diferendos,
para que ninguém tenha um dia de procurar donde surgiu tão grande guerra para os gregos»
(tucídides: i. 23. 5). «en un mot, l’histoire de la guerre est faite, et il n’y a plus à s’inter-
roger il est même interdit de rouvrir la recherche après thucydide – aussi bien la recherche
était-elle pour l’historien le premier temps du parcours et peut-être le plus important, mais,
de cette étape fondatrice, une fois les faits “trouvés”, aucune trace de devait demeurer. il n’y
a plus à chercher, puisque le procès d’écriture a eu lieu, moment ultime de la démarche
historiographique, mais le seul qui doive laisser sa marque. [...] il n’y a rien à chercher
au sujet de la guerre du Péloponnèse en dehors de ce que thucydide en a écrit, parce
que l’œuvre a pleinement accompli sa visée d’être la guerre muée en texte [...]» (Loraux
1986: 159).
434 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

τὰ ἔργα), como se entre factos e discurso houvesse transparência44. mas será


justo censurar tucídides por uma ambição cuja inatingibilidade só ficará patente
na segunda metade do século XX, por ação do linguistic turn? Não nos parece
justo avaliar o trabalho do historiador ateniense com base nos mesmos critérios
académicos com que se avalia o de um historiador moderno. Por muito inova-
dora e notável que seja a sua História da Guerra do Peloponeso para a época,
ela tem lacunas que a afastam da erudição metodológica instituída no século
XiX e da forte consciência historicista que se implementou na europa a partir
do século XViii. No entanto, não deixa de representar, à sua escala, um esforço
tremendo pela busca da verdade, do rigor, da imparcialidade e da objetividade.
Nesse sentido, ela pôde e pode ser fonte de inspiração e manancial de profun-
das reflexões epistemológicas, literárias, históricas, geopolíticas, militares e até
sociológicas. Pergunta final: isto que lhe apontam como fraquezas não serão,
afinal, as suas grandezas, as que nos permitem desenvolver uma epistemologia
da história, nem que seja, por vezes, por contraste?
a partícula que introduz a completiva integrante – “tal como guerrearam”
– exprime a vontade de conformar o texto com os factos. embora seja insen-
sato, depois da crítica do linguistic turn, aceitar o paradigma “tucididiano”,
modelo da futura história “positivista”, de espelhar no texto histórico os factos
do passado, pois toda a história é mediata e mediada (catroga 2009: 55-131),
ou, como diz ricœur, toda a história é representância, convém salientar que
tucídides doseia ou equilibra esse ideal com a contrapartida da subjetividade,
tal como mais tarde acautelará Langlois e seignobos. ademais, tendo em conta
a liberdade com que se tem interpretado o texto de tucídides, ajustando-o a
sensibilidades de época, parece-nos perfeitamente aceitável tomar a conjunção
ὡς, que abre caminho à completiva, e operar o mesmo raciocínio que ricœur
leva a cabo para a construção da teoria da representância, tomando a célebre
expressão de ranke: «os factos tal como realmente aconteceram». Não só legi-
tima como reforça este exercício o facto de a expressão de ranke ter sido
cunhada sobre a de tucídides. Nesse caso, poderíamos interpretar a frase de
tucídides da mesma forma que ricœur interpretou a de ranke e concluir que
o historiador ateniense não vê no texto uma mimesis-cópia, uma reduplicação
ou coincidência com os acontecimentos mas sim uma redescrição metafórica,
uma representância ou lugar-tenência do passado. Podemos ainda fortalecer esta
tese com a dicotomia logos e ergon que percorre o texto de tucídides e que

44
«mais, parce que ce qui est écrit a été éprouvé comme relevant vraiment de l’ordre
des erga, le lecteur est invité à se convaincre que, dans le texte, il trouve les faits, rien que
les faits» (Loraux 1986: 149).
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 435

leva Parry a concluir que o historiador tinha consciência de a sua história ser
uma interpretação dos factos: «and so the History is an interpretation of reality
which also interprets the possibilities of interpretation» (1988: 10)45.
o historiador, nomeando-se, não se autoexclui do processo historiográfico,
logo, a seu ver, não há contradição entre reunir por escrito os factos tal como
aconteceram e a presença organizadora e compositora do sujeito. Na senda
deste ideal de verdade especular, o historiador está obrigado a articular subje-
tividade e objetividade, parcialidade e imparcialidade, arte e ciência, ficção e
história. e, como veremos, na parte final deste estudo, uma das maiores preo-
cupações de tucídides foi escrever da forma mais realista e pictórica possível,
com o claro intuito de transpor iconograficamente a realidade para o discurso.
e não é isto que propõem ricœur e rancière? e não sabemos nós que a his-
tória herdou da memória as aporias da imagem, não se podendo falar de res-
surreição do passado (michelet) ou de coincidência entre o representado e a
representação?
Na primeira asserção, rica de elementos epistemológicos, a diferença
maior, que determina indelevelmente os trabalhos dos dois historiadores em
cotejo, reside na diferença entre historie e syngrapho (vide edmunds 1993, in
rusten 2009: 91-114). Heródoto expõe as suas investigações (ἱστορίης
ἀπόδεξις), empregando para “investigações” o mais afortunado dos termos da
história da historiografia, histories, do qual a mesma haveria de herdar a sua
identidade – termo que, curiosamente, tucídides nunca utiliza. Heródoto expõe,
mas tucídides reúne por escrito (sunegrapse) e a diferença é mais do que
lexical.
comecemos pela conceção arcaica da figura do histor. Historie é a forma
iónia de historia. termo abstrato formado a partir do verbo historein, que sig-
nifica investigar, inicialmente com o sentido de investigação judicial, historia
deriva de histor. este, por sua vez, deriva do radical indo-europeu *wid-, a par-
tir do qual se formaram os termos gregos idein – aoristo radical temático por
supletivismo do verbo orao, que significa “ver” – e eido, cujo perfeito, oida,
assume a aceção de “saber” como resultado de ter visto. originariamente, histor

45
sobre a relação do texto de tucídides com a realidade descrita veja-se a curiosa
reflexão de edmunds que parte da comparação feita por richard dawkins entre genes e com-
plexos genéticos e programas de computador. «His example is of great use in understanding
thucydides’ claims for the writing, because in dawkins we see how a new technology of
communication is, with the greatest enthusiasm, equated absolutely with a subject matter that
is categorically different from the technology. thucydides, i submit, saw in writing a tech-
nology that could completely appropriate the subject he chose, to the extent that the writing
and the subject became indistinguishable» (edmunds 1993, in rusten 2009: 106).
436 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

era a “testemunha ocular”; posteriormente, passou a designar “aquele que exa-


mina testemunhas e obtém a verdade, através da indagação”, ou seja, o juiz.
a evolução parece subtil, mas é substancial. o histor é um sujeito que julga
e confirma no presente um conhecimento que se reporta a um acontecimento
que teve lugar no passado, mas que ele poderá não ter visto. sauge (1992) e
Hartog (2005) chamam a atenção para esta particularidade: «L’histor est moins
“celui qui sait pour avoir vu ou appris” que celui même de se porter garant»
(Hartog 2005: 72). de acordo com sauge, o histor era chamado para arbitrar
um litígio no qual os dois litigantes dão versões diferentes de um aconteci-
mento, movidos pelo interesse pessoal. o histor designa, então, de um modo
geral, aquele que faz ver a verdade, discernindo, pela ação historizadora que
põe em confronto as duas versões apresentadas, quem diz a verdade. Não
importa se o histor viu ou não o que se passou. era-lhe reconhecida a auto-
ridade e o saber para deliberar de forma justa e correta, quando a verdade era
posta em causa por uma situação conflituosa. Pedia-se-lhe que deliberasse a
favor de uma perceção do acontecimento, como se ele o tivesse visto:
L’histor est, donc, celui qui atteint la vérité non exactement parce qu’il a vu ce
qui s’est passé, mais parce qu’il le fait voir, en discernant qui dit vrai et qui dit
faux. Grâce à cette découverte de la vérité concernant les faits, l’histor, par son
arbitrage et judicature, atteste alors la légitimité qui classifie les prétentions con-
flictuelles selon un ordre dû et établi [Pires 2003: 133].

a figura do histor também aparece várias vezes na epopeia, sendo cha-


mado não como testemunha direta de um acontecimento, mas como alguém que
se toma como testemunha. Hartog constata que Heródoto não é nem aedo nem
histor. Não possui a autoridade natural de um histor como agamémnon, “mes-
tre de verdade”, nem a visão divina de um aedo, cantor e porta-voz da musa,
que tudo vê e tudo conhece, e da qual o aedo extrai o seu conhecimento.
a Heródoto, para ver mais longe e saber mais, resta-lhe recorrer à historie,
isto é, à investigação, que é o ponto de partida da sua operação historiográfica.
a sua historie começa como uma forma de substituir a musa da epopeia, a que
garantia o canto do poeta, para se tornar depois em algo análogo à visão
omnisciente da musa, que presenciou tudo. Num primeiro momento, a historie
de Heródoto, na medida em que se dirige aos grandes feitos dos homens,
começa por evocar e simultaneamente romper com o saber do aedo, que tinha
por competência cantar as gestas de heróis e de deuses e, num segundo, apro-
xima-se da arte divinatória do adivinho46. É que Heródoto não se limita a pro-
curar informações (historein), ele também faz conjeturas e deduções (semainei).
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 437

Hartog explica que o verbo semainein aplica-se àquele que viu o que os outros
não veem ou não puderam ver, pertencendo ao campo do saber oracular. a pri-
meira vez que Heródoto diz “eu” é com intenção de semainein, isto é, de
designar, revelar e atribuir significado a alguma coisa. a primeira vez ocorre no
prólogo e designa aquele que teve a iniciativa de ofender os Gregos, creso da
Lídia, o responsável pelo desencadear do conflito. Heródoto não se faz passar
por adivinho, mas, pelo seu saber, assume um estilo de autoridade oracular:
«Par cette recherche et cette désignation en responsabilité, Hérodote ne se pré-
sente pas en devin ou ne joue pas au devin, mais il reprend, au titre de son
propre savoir, un style d’autorité de type oraculaire» (Hartog 2005: 73).
em suma, desta abordagem filológica, podemos concluir, em primeiro
lugar, que a historiografia surgiu «sob o signo do olhar e, logo, da perceção»
e, em segundo, que historein «refere-se tanto a testemunhar como a investigar
e conjeturar» (catroga 2009: 60). a obra de Heródoto é um exemplo claro de
como em historein e semainein se cruzam e concentram os saberes antigos e
os novos. são dois gestos que marcam a prática do primeiro historiador e lan-
çam a “evidência da história”, pois permitem-lhe ver claro mais longe, para lá
do visível, no espaço e no tempo (cf. Hartog 2005: 73).
tucídides também coloca o olhar no centro da sua atividade, a sua epis-
temologia está fundada na autopsia, mas rejeita a palavra historia em favor do
verbo syngraphein47. Historein e semainein não são pretensões suas. Não almeja
ser como o aedo nem como o adivinho ou o histor e, no entanto, ele dá origem
a um novo tipo de histor, um novo “mestre da verdade”48. a sua obra não se

46
o aedo e o adivinho eram dois dos “mestres de verdade”, na Grécia arcaica. o outro
era o rei que administrava a justiça (vide marcel detienne, Les Maîtres de Vérité dans la
Grèce archaïque, Le livre de Poche, Paris, 2006).
47
a recusa do termo historein e seus derivados lexicais tende a ser vista como uma
forma de afastamento relativamente à prática de Heródoto. Na verdade, o facto de tucídides
não se referir à sua obra como historia e ao seu ofício como histor pode ter uma outra jus-
tificação: é que na época os termos ainda não existiam como nomenclaturas técnicas para
classificar o tipo de trabalho a que tucídides se devota. Logo, se a sua intenção era evitar
qualquer associação com a obra de Heródoto, não há provas que o corroborem. certo é que
o termo só veio a adquirir por completo o significado técnico que lhe conhecemos com Pla-
tão e, sobretudo, com aristóteles, responsável pela distinção genológica entre poesia e história
e pela cunhagem técnico-semântica do termo.
48
«L’héritage légué par thucydide avec son insistance sur le contrat de vérité est resté
au cœur de la vocation historienne ainsi que son souci de la démonstration qui anime le récit
factuel, véritable opérateur d’un choix conscient pour étayer l’hypothèse à vérifier auprès du
lecteur» (dosse 2000: 15).
438 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

apresenta como a exposição de uma historia, mas como uma inscrição, uma
redação ou composição para sempre49. connor (1984), Loraux (1986), edmunds
(1993) e crane (1996) realçam o valor semântico deste verbo e o que ele
representa como reivindicação de autoridade e como mudança de paradigma.
o verbo syngrapho concentra as ideias de “organizar por escrito” algo que já
existia noutra forma, e era usado para descrever a composição de um trabalho
em prosa. connor, na senda de edmunds (1993), especifica o tipo de trabalhos
a que se refere este verbo: «contemporary uses of this verb and its cognates
refer for the most part to technical works or those with few literary preten-
sions» (1984: 28). No seu sentido literal, o verbo não remetia para as ideias de
criação ou imaginação. usava-se para referir acordos diplomáticos, documentos
legais ou constitucionais, contratos, obras de caráter técnico – como tratados de
medicina, planos arquitetónicos, tratados de retórica e narrativas históricas.
a linguagem escrita não tinha no século V o mesmo prestígio que haveria
de conhecer no século seguinte, mas o seu papel na sociedade estava a mudar
rapidamente50. duas formas de escrita influenciaram indelevelmente a prosa
tucididiana. a primeira e mais evidente foi a retórica, cujas técnicas permitiram
a tucídides compor os diálogos. o poder de abstração e de argumentação deste
tipo de discurso permitiu-lhe converter os seus discursos em explorações gene-
ralistas do poder, do risco e da oportunidade. Questões como a justiça, o medo,
o interesse próprio, a reputação, a intimidação, a conquista do poder, os cál-
culos de risco ganham um significado universal. No entanto, crane (1996: 8)
deteta uma outra importante influência discursiva. os documentos administrati-
vos que proliferavam na atenas democrática do século V serviram de arquétipo
para a narrativa51. estes documentos forneceram-lhe um modelo narrativo que

49
«thucydides thus chose to write about things that would be useful (ôphelima) to
later readers. For a topic to retain its future usefulness, however, it must lend itself to rep-
resentation in written prose, because the text must stand by itself and, as much as possible,
contain its own evidence» (crane 1996: 7).
50
sobre o prestígio da linguagem escrita e a sua proeminência na atenas do século V
sugerimos a leitura de crane 1996: 9-26.
51
«the burgeoning rhetoric of administrative documents provided thucydides with an
additional model. if the speeches drew upon openly tendentious rhetorical techniques, thucy-
dides could find a model for others aspects of his history in the growing number of state
documents, some of which were beginning to find their way onto stone inscriptions. the con-
servative “old oligarch” saw the administrative energy at athens as a profoundly democratic,
and thus politicized, activity, designed to enrich the common people (Pseud-Xen., Const. of
the Athenians 3.1-3)» (crane 1996: 8).
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 439

se arrogava de neutralidade e objetividade. Nestes registos e decretos oficiais


do estado ateniense, tucídides encontrou não apenas um meio para descrever os
grandes acontecimentos de um império, mas também a “subtil retórica da obje-
tividade” (ibid.), segundo a qual o texto apresenta “apenas os factos” (“just the
facts”) e assim se autoproclamava uma transparente (e autorizada) representação
do mundo. com efeito, enquanto procurava desenvolver a sua própria visão do
discurso histórico, os documentos oficiais do estado não só serviram de fontes
documentais para tucídides como de modelos de representação de informação
“factual”. este tipo de documentos oficiais, que pululavam na atenas do século
V, tinha a particularidade de tentar reduzir a experiência humana (aparente-
mente) a inequívocas formas burocráticas.
a História de tucídides é mais do que um brilhante exemplo de firme e
penetrante análise, é uma exploração da forma que essa análise deveria assumir.
o historiador deve decidir que tópicos merecem consideração. Por conseguinte,
tucídides faz mais do que simplesmente estabelecer uma determinada forma de
autoridade que se apresenta como uma representação transparente dos factos;
ele estabelece também a relevância dos factos, por inclusão ou exclusão. ou,
como diz crane: «he established a kind of discourse that shaped historical ana-
lysis by exclusion as well inclusion» (1996: 22). além do mais, é este o núcleo
de tese de crane, esta exclusão é expressa na metáfora do “olho cego” que dá
título à sua obra: tucídides excluiu da sua narrativa as mulheres e os laços
familiares, entre outros: «thucydidean narrative systematically excludes from
historical discourse not only women, but all kinship ties, not only references to
gods and divine causality, but descriptions of sanctuaries as political centers
and of sacred space as inviolate [...]» (ibid.). operando assim, tucídides estava
apenas a adaptar o seu objeto de estudo às potencialidades e limitações do seu
meio de expressão: «the abstractions of rhetoric and the cold facts of adminis-
trative documents can, in part, justify the selection of some topics and not
others» (ibid.).
o texto de tucídides pretende ser uma “aquisição para sempre” (κτῆμά τε
ἐς αἰεὶ), mas, para que o seu valor perdure, o autor deve jogar com os limites
da escrita. o seu texto deve florescer não apenas sob o alcance da sua própria
voz, mas até sem o dinamismo da performance em público. as epopeias de
Homero e Heródoto podem sobreviver no palco entre o oral e o escrito, tendo
o texto como suporte para a performance oral. os seus textos podem apenas ser
lidos, mas um rapsodo treinado acrescentar-lhe-á uma carga emocional e inte-
lectual que agradará ao público e tornará a audição mais aprazível. isto não
440 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

pode acontecer com o texto de tucídides. Por isso, ele o criou apenas para ser
completamente compreendido pelo leitor reflexivo52.
expondo a sua investigação, Heródoto não tem como objetivo primordial
a verdade, o que não significa que tenha intenção de mentir, apenas está livre
para reproduzir fielmente as várias versões que ouviu (atrekeia), ao passo que
tucídides ao “escrever para sempre” excluía os testemunhos não comprovados
(akribeia) e concentrava-se sobretudo na apresentação final do produto da sua
investigação53. É errado concluir que o historiador de Halicarnasso acreditava
em tudo o que relatou ou pretendia que o seu público acreditasse, mas julgava
que o seu dever de narrador é relatar o que se diz, o que significa, por vezes,
privilegiar (até pela ordem da exposição) a versão que lhe parece mais credível.
uma das provas que frequentemente dá do seu saber, logo, da sua credibili-
dade, é o número de versões que conhece do mesmo acontecimento, conten-
tando-se, por vezes, em dizer que recolheu outras mas não as expõe, ou seja,
sabe mais do que o que diz, deixando essa reserva de saber como meio de con-
ferir credibilidade ao narrador. ele é, portanto, o garante dos vários logoi que
apresenta. Quando a história se torna ἡ ζήτησις τῆς ἀληθείας, o narrador retira-
-se. contrariamente a tucídides, que se esconde para deixar os factos falarem
por si próprios, o narrador das Histórias é omnipresente. sendo direta ou indi-
retamente o único sujeito de enunciação, assume-se como a garantia única dos
seus múltiplos dizeres, pois ele é o que faz ver e dá a saber o que do passado
estava oculto, logo, aquele que semainein.
diferença não negligenciável entre a escrita de Heródoto e a de tucídides
é que uma é vocacionada para a recitação oral e a outra para a leitura privada:
Herodotus composed a massive script, a book that could be read but that appeared
in an oral world, and that was designed for performance. Herodotus’ Histories
belong, like svenbro’s Phrasikleia inscription, to a world in which the text does
not “speak”, but still looks for the reading voice to give it expression. thucydides
composed a book far better suited to stand by itself, to exist as a separate and
independent artifact [crane 1996: 3].

Heródoto também se coloca por trás do seu trabalho, escrutinando, dete-


tando contradições, criticando e apresentando hábeis argumentos assentes em

52
Nesse sentido, o historiador ateniense terá sido extremamente sensível ao texto
enquanto artefacto: «thucydides, more than any author who had preceded him, was sensitive
to his text as a written artifact – as marks scratched on a papyrus, unrolled and scanned by
the eye» (crane 1996: 7).
53
Vid. crane, 1996, 50-65: «Herodotus’ Atrekeia versus thucydidean Akribeia».
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 441

provas. as suas Histórias são uma poderosa afirmação do tipo de desenvolvi-


mento em lógica e racionalidade que a escrita viabilizou. Não importa quão
labiríntica a sua obra possa parecer, ela é realmente coerente e intencional,
composta para transmitir uma mensagem aos seus ouvintes (Hunter 1982: 294).
escrever permitiu a Heródoto algum nível de abstração. mas não totalmente.
sempre teve implícito, no processo de composição, o cenário, o contexto da
recitação. Não podia ignorar os ouvintes virtuais, as suas expetativas e neces-
sidades. Na verdade, o seu trabalho, sendo eminentemente oral, aparece sob a
forma de escrita e, nesse sentido, representa um avanço na evolução da prosa
histórica. tucídides herda as qualidades do seu antecessor – ceticismo, lógica,
racionalidade –, o seu texto é igualmente coerente e intencional, transmitindo
uma mensagem para sempre aos seus leitores e à posteridade. todavia, conse-
gue um nível de abstração ou de descontextualização muito superior, por colo-
car fora do horizonte da escrita a audiência. o estudo da sua obra permite aos
seus leitores encaminharem-se para a verdade. os homens podem ser enganados
pelos dotes de oratória de oradores que apelam às suas emoções e desejos e
recorrem a todos os truques que a retórica lhes oferece. tucídides ter-se-á aper-
cebido de como a retórica pode ter efeitos perversos se usada em função de
interesses e ambições pessoais ou com outras más intenções, por isso se aplica
na descoberta de um meio para distinguir verdade de ilusão54. esse meio encon-
tra-o na redação dos discursos, como já antes tivemos oportunidade de frisar.
ao partilhar com os seus leitores as decisões dos protagonistas da sua História,
tenta mostrar-lhes como aprender com as experiências do passado. os seus lei-
tores aprenderão que a base do conhecimento não está em palavras ou discursos
que podem tanto iludir como persuadir, mas em discursos que têm em consi-
deração as anteriores experiências (paradeigmata) do género humano que a sua
História dá a conhecer. No fundo, a mensagem que tucídides pretende trans-
mitir é a seguinte: “leiam a minha obra e aprenderão a não se deixarem iludir
pelos artifícios da retórica; leiam a minha obra e aprenderão a distinguir a ver-
dade da ficção”. «Here is a deliberate epistemology» – conclui Hunter (1982:
295). mesmo aqui não há uma rutura total com Heródoto, porquanto este já
tivera como preocupação ensinar os seus ouvintes a extrair o logos da doxa e
a aprender por analogia com os exemplos do passado. Veja-se o exemplo do
conselho de artabano a Xerxes. ou seja, de certa forma, Heródoto também

54
«Having experienced the devastating effects of rhetoric, used by the epigones to fur-
ther their own private interests and ambitions, the rhetoric that led to bad decisions, thucy-
dides concerned himself with the way in which it was possible to distinguish truth from
deception» (Hunter 1982: 295).
442 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

estava preocupado com a verdade. só que entretanto a retórica entrou em cena


e revelou-se demasiado ameaçadora da verdade para tucídides. a má utilização
da palavra tornou patente as potencialidades e limitações da oralidade. contra
este perigo não bastava apenas ensinar com recurso a exemplos, era preciso
ensinar os seus leitores a raciocinar e a fazer previsões corretas, imunizá-los
conta a ilusão. Para levar a cabo esta tarefa, transformou o modo comunicativo
(«he transformed the communicative mode» [ibid.: 296]). «o resultado é um
nível de consciência epistemológica que é equivalente a uma disciplina cogni-
tiva» (ibid.). a sua História é, pois, o testemunho das possibilidades da escrita,
possibilidades que ele explorou ao máximo. Hunter termina dizendo que tucí-
dides podia ter dedicado o seu trabalho a Heródoto, porquanto o seu propósito
de rigor metodológico visava assegurar que a mensagem do seu antecessor não
se perdia.
e, de facto, se as primeiras frases de ambos mostram alguma rutura, tam-
bém são eloquentes na demonstração de continuidade. ambos os historiadores
escolheram como tema um acontecimento extraordinário, uma guerra, tema que
foram beber à epopeia homérica. Heródoto pretendia fazer para a guerra entre
Gregos e Bárbaros o que Homero tinha feito para a guerra de troia. inspirado
pela musa, o aedo que relata a Ilíada “via” o que se passava entre os aqueus
e os troianos. Heródoto, exilado, também se dá por missão narrar os feitos
bélicos dos dois oponentes. tucídides, depois de uma campanha desastrosa,
encontra no exílio essa mesma possibilidade de assistir aos acontecimentos nos
dois campos.
Pela minha parte, sempre me lembro, desde o início da guerra e até ao seu fim,
ser afirmado por muitos que ela devia durar três vezes nove anos. Vivi-a do início
ao fim, em idade de me dar bem conta dela e devotando o meu pensamento à
obtenção de informações exatas; aconteceu-me, pois, ser exilado da minha pátria
durante vinte anos, após ter sido general contra anfípolis, e ao assistir às ações
de ambas as fações e não menos às dos Peloponésios, graças ao meu exílio, com
calma pude aperceber-me um pouco mais das coisas [tucídides: V. 26. 4-5]55.

o preço desta disponibilidade e desta abertura para o aedo, a fazer fé na


tradição, era a cegueira, para os historiadores o exílio. a cegueira para um era

55
[4] αἰεὶ γὰρ ἔγωγε μέμνημαι, καὶ ἀρχομένου τοῦ πολέμου καὶ μέχρι οὗ ἐτελεύτησε,
προφερόμενον ὑπὸ πολλῶν ὅτι τρὶς ἐννέα ἔτη δέοι γενέσθαι αὐτόν. [5] Ἐπεβίων δὲ διὰ
παντὸς αὐτοῦ αἰσθανόμενός τε τῇ ἡλικίᾳ καὶ προσέχων τὴν γνώμην, ὅπως ἀκριβές τι εἴσομαι:
καὶ ξυνέβη μοι φεύγειν τὴν ἐμαυτοῦ ἔτη εἴκοσι μετὰ τὴν ἐς Ἀμφίπολιν στρατηγίαν, καὶ
γενομένῳ παρ᾽ ἀμφοτέροις τοῖς πράγμασι, καὶ οὐχ ἧσσον τοῖς Πελοποννησίων διὰ τὴν φυγήν,
καθ᾽ ἡσυχίαν τι αὐτῶν μᾶλλον αἰσθέσθαι.
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 443

sinónimo de imparcialidade, o exílio para outros era condição de imparciali-


dade56.
esta imparcialidade é sobejamente enaltecida por Hannah arendt, que vê
nela «o mais elevado tipo de objetividade que conhecemos»57.uma objetividade
de fazer inveja a quase todas as historiografias nacionais da idade moderna,
por estas não conseguirem, como as gregas, evitar o favorecimento do próprio
povo, evitar a alternativa entre vitória e derrota (como se desse arbítrio depen-
desse a objetividade histórica) e evitar a interferência da vitória com o que se
acredita ser digno de louvor e imortalização. arendt reconhece, depois, que em
tucídides a objetividade herdada de Homero e Heródoto conquista um novo e
elevado patamar pela introdução dos discursos, na medida em que estes permi-
tem o confronto dos vários pontos de vista e uma maior abertura à opinião do
outro: «os discursos nos quais tucídides expõe as posições e os interesses das
partes em conflito constituem ainda um testemunho vivo do extraordinário
alcance desta objetividade» (2006: 65).
ainda segundo arendt, a falta das condições da imparcialidade homérica
e da objetividade tucididiana na época moderna foi a principal razão para o
obscurecimento da moderna discussão sobre a objetividade nas ciências histó-
ricas. a imparcialidade homérica assentava no pressuposto de que tudo o que
é grandioso é autoevidente, possui um fulgor próprio que o poeta e, depois o
historiador, apenas têm de preservar, evitando a sua corrupção temporal58. este
conceito de grandeza dificilmente poderia ter sobrevivido na era cristã, pela
razão de que para os cristãos «nem o mundo nem o sempre recorrente ciclo da
vida são imortais, apenas o indivíduo isolado o é. o que passa é o mundo, os

56
a lista de historiadores gregos importantes que se exilaram de forma voluntária ou
forçada das suas cidades para escrever é extensa: para além de Heródoto e tucídides, há que
nomear Xenofonte, ctésias, teopompo, Filisto, timeu, Políbio, dionísio de Halicarnasso e
Posidónio. era certamente mais fácil obter informações exatas sobre um tema vasto e ser
imparcial quando se tinha a liberdade de movimento de um exilado.
57
«a imparcialidade, e com ela toda a historiografia, surgiu no mundo quando Homero
decidiu cantar tanto os feitos dos troianos como os dos aqueus, e exaltar tanto a glória de
Heitor como a grandeza de aquiles. Nesta imparcialidade homérica, a que Heródoto deu
seguimento quando se abalançou a impedir que “os grandes e admiráveis feitos dos gregos
e dos bárbaros ficassem sem o seu justo tributo de glória”, reside ainda o mais elevado tipo
de objetividade que conhecemos» (arendt 2006: 65).
58
«durante a sua breve existência, os grandes feitos e as grandes palavras eram, na
sua grandeza, tão reais como uma pedra ou uma casa: quem quer que estivesse presente não
podia deixar de os ver ou de as ouvir. a grandeza era facilmente reconhecida como aquilo
que por si mesmo aspira à imortalidade» (arendt 2006: 66).
444 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

homens viverão para sempre» (ibid.: 66). a objetividade tucididiana, pelos


motivos evocados – a deslocação do foco central da história para o interesse
pessoal, predominante na filosofia política moderna –, foi, assim, votada ao
abandono59.

4. KTEMA ES AEI

Heródoto herda da epopeia a economia do kleos, renome, que fixava o


estatuto e a função da palavra épica. retomando o tema do kleos, o historiador
estava a prolongar o canto do aedo num mundo política e socialmente bastante
mudado, mas o seu objetivo não é, como o aedo, oferecer com o seu canto, aos
deuses e aos mortos heroicos, um kleos imortal, é, segundo Hartog, um pouco
menos ambicioso, consistindo somente em impedir que o esquecimento produ-
zido pelo tempo deixe sem renome (aklea) as erga grandiosas e admiráveis de
homens que nenhuma palavra autorizada toma já a seu cargo. Há, pois, conti-
nuidade e rutura entre as Histórias e a epopeia: «dans le glissement de la posi-
tivité du kléos au simple adjectif privatif aklea se marquent en même temps la
référence et l’appel à la parole épique et une rupture par rapport à elle» (Har-
tog 2005: 68).
escolhendo como tema a maior de todas as guerras, tucídides já não tem
em mente kleos mas ktema. e Hartog descortina o quanto esta passagem é sig-
nificativa.
du kléos au ktêma le déplacement est sensible. Le temps de l’épopée est bien ter-
miné. il ne s’agit plus désormais de préserver de l’oubli les actions valeureuses,
mais de transmettre aux hommes de l’avenir un instrument d’intelligibilité de leur
propre présent: la guerre du Péloponnèse, constituée par son premier (mais aussi,
en un sens, dernier) historien en idéal-type. elle n’est nullement un instrument de
prévision de l’avenir, mais elle se veut outil de déchifrement des présents à venir,
car, compte tenu de ce que sont les hommes (to anthropinon), d’autres crises ana-
logues ne manqueront pas d’éclater dans le futur. Pour thucydide, cette perma-

59
«No nosso contexto, isto significa que o modelo de objetividade praticada por tucí-
dides, por muito admirada que possa ser, não possui já qualquer fundamento na vida política
real. uma vez que fizemos da vida a nossa suprema e principal preocupação, deixou de haver
espaço para qualquer atividade baseada no desprezo pelo nosso próprio interesse vital. o
desapego pode ainda ser uma virtude religiosa ou moral, mas dificilmente pode ser uma vir-
tude política. sob tais circunstâncias, a objetividade deixou de ser validada pela experiência,
divorciou-se da vida real e converteu-se nesse assunto académico, “sem vida”, que droysen
acertadamente denunciou como objetividade do eunuco» (arendt 2006: 66).
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 445

nence de la nature humaine fonde en effet l’exemplarité de ce conflit (commencé


en 431 et achevé en 404, entrecoupé de périodes de trêve), mais nommé par lui
– pour toujours – La guerre du Péloponnèse [ibid.: 74-75].

a citação é longa; justifica-se, porém, a sua transcrição integral pela con-


centração de informações que contém, as quais pretendemos agora esmiuçar.
o que está em causa é uma das mais célebres e discutidas expressões de tucí-
dides e que vai ao encontro do que dissemos anteriormente sobre a forma como
os Gregos entendiam a natureza e a história. comecemos por recordar o con-
texto da expressão que traduzimos – em linha com a tradução para francês de
Jacqueline de romilly – por “tesouro para sempre” – sabendo que, em vez de
tesouro, há quem diga “aquisições” ou “lições”:
Provavelmente, o caráter não fabuloso dos factos relatados fá-los-á parecer menos
agradáveis ao ouvido: mas julgue-os úteis quantos queiram ver claro nos aconte-
cimentos do passado e nos que, no futuro, em virtude do caráter humano que é
o seu, apresentarão similitudes ou analogias, e isso para mim será suficiente. com-
pôs-se um tesouro para sempre [κτῆμά τε ἐς αἰεὶ] mais do que um recital para um
auditório momentâneo [tucídides: i. 22. 4].

a conceção utilitária de história (κτῆμά τε ἐς αἰεὶ), que fundamenta o tra-


balho de tucídides, permite-nos abrir aqui um espaço de reflexão em várias
frentes, todas faces do mesmo objeto poliédrico: a conceção grega da natureza
humana; a história como magistra vitae; a espinhosa questão das generalizações
em tucídides; e, por fim, associada a esta e às anteriores, a conceção tucidi-
diana e grega de tempo.
a obra de tucídides é, em primeiro lugar, uma aquisição para sempre no
sentido em que, tratando-se de uma história do presente, está escrita para sem-
pre e, por conseguinte, não admite reescrita, pelo menos uma reescrita agarrada
ao presente; em segundo lugar, sendo a história dos homens mutável e forço-
samente a mesma, este relato verídico permitirá não predizer mas ver claro (τὸ
σαφὲς σκοπεῖν), quando no futuro outras crises como esta sobrevierem.
os Gregos não concebiam nenhuma espécie de logos imanente aos acon-
tecimentos ou uma qualquer lógica autossuficiente que comandasse do futuro a
irreversibilidade do devir universal, como defenderão as futuras filosofias da
história. Não obstante, este facto não invalida que tucídides atribua à escrita da
história uma eminente função social. assistindo ao declínio do império ate-
niense, o historiador pretende retirar daí ensinamentos políticos e bélicos que
possam ajudar os vindouros a perceber o seu próprio presente, consciente que
está que no futuro os acontecimentos, em virtude do seu caráter humano, apre-
446 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

sentarão similitudes ou analogias com os acontecimentos do passado. tucídides


não está a pensar, obviamente, em leis científicas, como aquelas que perseguiu
a história do século XX, nem numa sociologia da guerra, mas simplesmente em
semelhanças intemporais, em generalidades que, segundo Jacqueline romilly,
não se podem enunciar adequadamente fora da narrativa histórica e, por isso,
não possuem estatuto de lei (romilly 2005: 28).
ricœur, numa das vezes em que se refere a tucídides, integra estas lições
tucididianas na categoria de “estados de coisas”. Nós recordamos o que fize-
mos, sentimos ou aprendemos em determinada circunstância particular. mas há
todo um leque de casos típicos que se estende entre os dois extremos das sin-
gularidades evenemenciais e das generalidades, que se designam por “estados
de coisas”. os estados de coisas não se cingem a generalidades abstratas nem
a noções. são factos adquiridos e aprendidos, ou, de acordo com o desejo de
tucídides, factos elevados ao estatuto de “aquisições para sempre”. É assim que
«os acontecimentos tenderão, sob o regime do conhecimento histórico, a inte-
grar a categoria de “estados de coisas”» (ricœur, MHO, 29) e a transformar os
factos que a memória reteve numa sabedoria intemporal acerca do ser humano,
nas suas relações com os outros, o poder e a morte.
as proposições de tucídides são de um valor incomensurável. Para além
de corroborarem as meditações de Hannah arendt sobre a utilidade da história
como móbil de imortalização dos feitos humanos; remetem-nos para um outro
tema, intimamente associado ao anterior, que marca indelevelmente toda a his-
toriografia ocidental até ao século XViii. Falamos da função pedagógico-social
da história, consumada no famoso aforismo ciceriano historia magistra vitae60.

60
«Historia vero testis temporum, lux veritatis, vita memoriae, magistra vitae, nuntia
vetustatis, qua voce alia nisi oratoris immortalitati comendatur» (cícero 2002, ii c. 9, c. 36
e c. 12, c. 51). Para uma história do conceito “historia magistra vitae” vide Koselleck, 1990:
37-62. segundo Koselleck, o uso da fórmula ciceriana, que foi quase ininterrupto até ao
século XViii, tem como pressuposto uma compreensão anterior e universal das possibilidades
humanas numa continuidade histórica geral. Quer isto dizer a crença que «a história pode
conduzir os contemporâneos ou as gerações seguintes a tornarem-se mais inteligentes ou rela-
tivamente melhores» (ibid.: 38), desde que se mantenham as condições. ou seja, até ao século
XViii, o emprego desta fórmula é um «sinal infalível da permanência da natureza humana,
cujas histórias se prestam perfeitamente a servir de provas sempre reutilizáveis de ensinos
morais, teológicos, jurídicos e políticos» (ibid.: 39). mas a polivalência da sentença advém
ainda da crença numa semelhança potencial entre os eventos terrestres: «Quando um aconte-
cimento social tinha lugar, ele fazia-se tão lentamente, sobre um tão longo termo, que a uti-
lidade dos exemplos passados continuava inteiramente válida. a estrutura temporal da história
traçava os limites de um campo contínuo de aprendizagens possíveis» (ibid.).
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 447

Na verdade, a célebre fórmula greco-romana segundo a qual a história é


mestra da vida só se entende à luz dos fundamentos da mentalidade grega que
atrás expusemos: o ritmo do cosmos, a raiz aistórica da natureza humana e a
fama perpetuada pela escrita; em suma, a constância dos comportamentos
humanos ao longo da história. mas que pretendia cícero ao certo revelar com
esta afirmação? Que a história, na qualidade de testis temporum, lux veritatis,
vita memoriae, devia fornecer à oratória uma compilação de exemplos pedagó-
gicos de molde a obter o mesmo efeito retórico desta. cícero resumia nestes
três vetores, estreitamente ligados entre si, a expressão dos ensinamentos de
Heródoto e a utilidade que tucídides outorgou à sua História da Guerra do
Peloponeso ou a convicção de que, independentemente dos indivíduos concre-
tos, vivos ou por vir, a “ideia-tipo” que estrutura a sua obra continuará válida,
pois a natureza humana mantém-se constante.
o livro de tucídides não se limita a descrever acontecimentos do século
V a. c., é também seu propósito servir de modelo para a compreensão dos que,
no futuro, e em virtude da repetição cíclica e da eternidade da natureza
humana, virão a ser semelhantes ou análogos. estes princípios são claramente
referidos em ii. propósito da desordem moral provocada pela guerra civil. aí,
o historiador introduz uma importante nuance: apesar de conceber a estabilidade
da natureza humana, deixa uma margem para os imprevistos (tyche) e para as
possíveis variações que no futuro poderão ocorrer, salvando o ser-humano do
fatalismo absoluto61.
abateram-se muitos males sobre as cidades durante a guerra civil, males que
acontecem e sempre acontecerão enquanto a natureza dos homens for esta, piores
ou mais brandos e cambiando de forma consoante as mudanças que ocorram em
cada circunstância [ii. 82. 2]62.

61
«ela contava o que já foi, com o fito de lembrar, à luz dos ritmos cíclicos, ou da
repetição do que é característico da natureza humana, o que poderá vir a acontecer, mos-
trando que, não obstante ao homem só ser dada uma pequena margem para fugir ao destino,
a tyche não conduziria ao fatalismo absoluto, e o fado que preside à vida humana só teria
um poder destruidor, porque, tal como se mostrava na tragédia, o homem é habitualmente
cego em relação aos seus ditames, não sabendo formular as opiniões corretas que, sem se cair
na hybris, permitem evitar os seus golpes decisivos (catroga 2006: 14)».
62
«[2] καὶ ἐπέπεσε πολλὰ καὶ χαλεπὰ κατὰ στάσιν ταῖς πόλεσι, γιγνόμενα μὲν καὶ αἰεὶ
ἐσόμενα, ἕως ἂν ἡ αὐτὴ φύσις ἀνθρώπων ᾖ, μᾶλλον δὲ καὶ ἡσυχαίτερα καὶ τοῖς εἴδεσι
διηλλαγμένα, ὡς ἂν ἕκασται αἱ μεταβολαὶ τῶν ξυντυχιῶν ἐφιστῶνται. ἐν μὲν γὰρ εἰρήνῃ καὶ
ἀγαθοῖς πράγμασιν αἵ τε πόλεις καὶ οἱ ἰδιῶται ἀμείνους τὰς γνώμας ἔχουσι διὰ τὸ μὴ ἐς
ἀκουσίους ἀνάγκας πίπτειν: ὁ δὲ πόλεμος ὑφελὼν τὴν εὐπορίαν τοῦ καθ᾽ ἡμέραν βίαιος
διδάσκαλος καὶ πρὸς τὰ παρόντα τὰς ὀργὰς τῶν πολλῶν ὁμοιοῖ».
448 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

este excerto está em consonância com a descrição que Hannah arendt fez
da mentalidade grega. Podemos ler nas suas entrelinhas que a natureza é
cíclica, por isso sempre ocorrerão males e haverá guerras, mas o movimento
humano é retilíneo e, por isso, cada mal e cada guerra trará consigo aconteci-
mentos diferentes. No entanto, indo do presente para o futuro, o intuito não era
a previsibilidade, mas antes a compreensão e explicação dos presentes por vir
depois de ocorridos, pois, em virtude da “coisa humana” (κατὰ τὸ ἀνθρώπινον),
não faltarão no futuro crises análogas às do presente63. a natureza humana
(φύσις ἀνθρώπων) acaba por ser a fundamentação para esta capacidade de aná-
lise futura e, ao mesmo tempo, a explicação mais geral para os acontecimen-
tos64. No contexto da peste, e antes de avançar para a descrição da epidemia,
o historiador insiste novamente na margem de imprevisibilidade do futuro. Por-
que a natureza é repetitiva, ele sabe que a epidemia poderá sobrevir novamente,
por isso deixa uma série de indicações para o seu conhecimento em caso de
nova ocorrência, mas não garante a sua repetição. a conjunção condicional “se”
(εἴ) faz aqui toda a diferença: «eu direi como é que esta doença se apresentou;
os sinais a observar, para melhor se poder, se ela voltar a aparecer, aproveitar
um saber prévio e não ficar diante do desconhecido» (tucídides: ii. 48. 3)65.
estas sentenças são, a nosso ver, a melhor ilustração da utilidade (e da
inerente ambiguidade) que tucídides pretende atribuir à sua obra: descrevendo
a epidemia da guerra, o historiador parece estar a fornecer aos vindouros um

63
The human thing é o título da obra de marc cogan (1981) e pretende ser a tradução
da expressão tucididiana τὸ ἀνθρώπινον, a qual, de acordo com o autor, relaciona a utilidade
da história com a apresentação de princípios universais que foram a causa dos acontecimentos
humanos: «the ultimate utility of his history, according to thucydides himself, lay in its pre-
sentation of a universal principle which was the cause, and explanation, of human events. His
history, he says, will be useful because the same actions or ones much like them will occur
again, κατὰ τὸ ἀνθρώπινον – in accordance with “the human thing”. as the significance of
the history (in thucydides’ terms) and its utility depend on this, so must our goal be the
understanding of that “human thing” which was for thucydides both the principle of the his-
tory he wrote and the principle of all human action» (ibid.: xvii).
64
«ainsi, la lecture de l’Histoire de la Guerre du Péloponnèse constitue un véritable
enseignement philosophique qui permet de saisir les principes les plus généraux qui gouver-
nent la nature humaine. thucydide ne manque jamais d’insister sur ce fond commun qui unit
tous les hommes dans un même destin; il multiplie les expressions telles que: «l’homme est
par nature…», «les hommes ont coutume de…». il y a une nature humaine et il est possible
d’en dégager les caractères» (châtelet 1962: 233).
65
«ἐγὼ δὲ οἷόν τε ἐγίγνετο λέξω, καὶ ἀφ᾽ ὧν ἄν τις σκοπῶν, εἴ ποτε καὶ αὖθις
ἐπιπέσοι, μάλιστ᾽ ἂν ἔχοι τι προειδὼς μὴ ἀγνοεῖν, ταῦτα δηλώσω αὐτός τε νοσήσας καὶ αὐτὸς
ἰδὼν ἄλλους πάσχοντας».
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 449

guia que lhes permitirá reconhecer uma guerra presente, mas não diz para que
serve esse reconhecimento: para prevenir, para prever, para curar a “doença” da
guerra? em 1969, adam Parry publicou um ensaio fundamental sobre este
assunto (The language of Thucydides’ description of the plague), onde, para
além de fazer um apanhado das principais teses publicadas sobre a utilidade da
descrição da epidemia, refuta os que defendem o cariz técnico e científico da
linguagem tucididiana com base na tese de que o historiador emprega termos
médicos retirados dos escritos hipocráticos. deixando para já esta segunda
questão de parte, convém dizer que os estudiosos de tucídides não eram con-
sensuais quanto ao que o historiador terá querido dizer com este prólogo à
peste. Basicamente, eles dividem-se em dois grupos. os otimistas sustentavam
que tucídides queria formular leis gerais sobre o comportamento humano, que
permitissem a um futuro homem de estado desempenhar bem a sua missão. os
pessimistas defendiam que tucídides estava apenas interessado em revelar aspe-
tos permanentes da condição humana, sem com isso pensar que o sofrimento
e a destruição que a sua obra com tanto realismo narra pudessem no futuro ser
evitados. eles são uma doença para sempre, sem cura. Parry também não
encontra nenhuma intenção terapêutica ou prática nas proposições de tucídides.
a utilidade da sua obra consiste em oferecer ao leitor uma imagem clara dos
factos.
Jacqueline romilly, apesar de ser um dos alvos “otimistas” visados por
Parry, assume uma posição que se pode considerar “pessimista”. Num famoso
artigo publicado em 1956, L’utilité de l’histoire selon Thucydide (2005: 15-30),
põe de parte qualquer interpretação que vá no sentido da previsão ou de apli-
cação prática, pondo a tónica no simples conhecimento:
[...] il faudrait mettre à part deux idées, qui, en réalité, ne trouvent nullement
place dans le “programme” de thucydide: ce sont celles d’une prévision de l’ave-
nir et d’une utilité pratique. thucydide ne mentionne ni l’une ni l’autre. il parle
bien d’utilité dans le domaine de la seule connaissance; il parle bien d’événements
“à venir” – mais qu’il s’agit seulement de comprendre une fois qu’ils seront révo-
lus [2005: 15-16].

Hornblower também rejeita qualquer intenção curativa ou moral na utili-


dade que tucídides outorga à sua História, mas reconhece-lhe uma função de
previdência66. todavia, romilly não tem dúvidas: as únicas previsões que a

66
explorando as semelhanças entre as utilidades dos ofícios do historiador e do
médico, começa por acentuar as variações circunstanciais de que fala tucídides: «it is true,
though, that there are assumptions in common between thucydides and the doctors about the
450 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

História de tucídides permite são as veiculadas pelos discursos, que são «ver-
dadeiros modelos de previsão» (ibid.: 17), na medida em que mostram os ora-
dores jogando em antecipação, isto é, raciocinando no sentido de prever ou cal-
cular o futuro desenvolvimento dos factos. Nós compreendemos por quê
atenas, esparta, corinto, Nícias, demóstenes agiram da forma como agiram em
determinada circunstância: diante de uma determinada conjuntura e de uma
finalidade – independência, vitória – quase evidente, a decisão resulta de um
cálculo67. a narração posterior virá confirmar ou infirmar os cenários previstos

purpose of their activities. the doctors did not merely gather together case-histories; they
hoped that their collection of materials would be useful in identifying and treating disease,
and that the technê would thus slowly advance. ([...] the physician must practice pronoia,
‘forecasting’; he ‘will carry out the treatment best if he knows beforehand from the present
symptoms what will take place later’.) all this resembles thucydides’ famous sentence about
the plague [ii. 48.3.] ‘i shall describe its character and shall provide information to enable
anybody to recognize the symptoms beforehand if it should ever break out again’. Like the
medical writers [...] thucydides is aware that a phenomenon may vary in its character accord-
ing as attendant circumstances change; he says that the eidê (forms) of stasis vary with
changes in the accompanying phenomena (Hussey compares this to ‘boundary conditions’ in
modern physics)» (2009: 83). depois enfatiza uma diferença significativa: as descrições de
tucídides não têm qualquer intenção moral ou curativa, ao contrário das do médico: «But if
the job of the doctor is to ‘help or at least not to harm’, as Nikias puts it, does thucydides
see it as is job to improve the reader? the answer must be an emphatic ‘no’. there is no
moralizing tendency of his kind in thucydides; and this sets him apart from most other his-
torians of Greco-roman antiquity» (ibid.). Finalmente, a utilidade da sua história é puramente
intelectual, e isso significa que é um instrumento para auxiliar homens de estado a prever e
interpretar; instrumento válido para sempre, desde que se tenha em conta as mudanças cir-
cunstanciais: «thucydides’ idea of ‘usefulness’ is, by contrast, purely intellectual (tough medi-
cal diagnosis is of course a largely intellectual business also). statesmen need to be able to
predict and to interpret. thucydides’ account of the Peloponnesian war will be useful for such
men, and for anybody who wishes to be clear about the past; and about future events,
because the constancy of the human condition means that patterns are likely to recur. that
is all. there is no program of moral education here, no suggestion that thucydides sees his
job as the improvement of the soul or (to put it less grandly) the behavior of human beings,
in a way analogous to the improvement of the body at which the doctor aims [...] all that
thucydides aims to do by his writing is to enable the politician to predict and to interpret.
in that sense his work has the permanent value which he claims for it: provided that
allowance is made for changes in attendant circumstances, thucydides’ subject-matter (human
affairs) will never go out of date, and the material which he supplies and interprets will
always stand as the basis for rational prediction» (ibid.: 84).
67
aron, em sintonia com romilly (Histoire et raison chez Thucydide [1956]), salienta
a inteligibilidade dos combates devido à sua interdependência com os cálculos dos estrategas:
«thucydide s’efforce de rendre les combats intelligibles en les rapportant aux plans des stra-
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 451

pelos oradores, e sempre se terá de contar com a tyche: «a estas coisas juntou-
-se ainda o acaso, que se opôs a nós de forma nada meiga» (tucídides: ii. 87.
2).68 o acaso intervém de diversas formas na guerra do Peloponeso relatada
pelo historiador ateniense («incertas são as guerras» – ἄδηλα γὰρ τὰ τῶν
πολέμων [ii. 11. 4; cf. etiam i. 78, iii. 59]), deixando impotente o estratega:
veja-se, a título de exemplo, a perda de controlo sobre os soldados no ardor da
luta, no primeiro ataque noturno executado pela armada de demóstenes em
socorro de Nícias, que começou por ser um sucesso e descamba para o desastre
na obscuridade e na confusão. os combates que tucídides infatigavelmente des-
creve tanto confirmam como desmentem os cálculos dos estrategas.
Le récit, en effet, vérifie les prévisions. Les termes qu’il emploie sont tels qu’ils
viennent ratifier – soit totalement soit partiellement – le raisonnement d’un orateur
ou celui de son adversaire. ils indiquent qui a eu raison, en quoi, pourquoi. Le
bon calcul et le mauvais, l’adresse et la faute deviennent ainsi clairement lisibles,
sans que thucydide ait à intervenir en son nom personnel» [romilly 2005: 17-18].

só no interior da História da Guerra do Peloponeso se pode passar de τὸ


σαφὲς σκοπεῖν a γνῶναι. exclui-se a previsão fora do texto, mas quando tucí-
dides afirma, explicitamente, esperar fornecer uma ajuda para a compreensão de
outros acontecimentos futuros similares à guerra do Peloponeso, tem subjacente
uma tendência para a generalização. as lições para sempre que tucídides pre-
tende transmitir são sintomas da aspiração ao geral que atravessa a sua obra.
romilly dá-nos conta desta constante aspiração ao universal, negando-lhe uma
vez mais qualquer poder preventivo e previdente.
[…thucydide] veut que son œuvre elle-même dégage, par tous les moyens, l’élé-
ment susceptible de se répéter et d’avoir un rapport avec d’autres époques. et,
pour exceptionnel qu’il soit, ce souci ne saurait surprendre chez un esprit aussi
porté que le sien à l’abstraction [romilly 2005: 19-20].

este gosto pela abstração e pelo geral em detrimento do particular e do


individual que romilly deteta na prosa tucididiana verifica-se, por exemplo, na
sua recusa em narrar os aspetos aberrantes (ἀτοπίας) e as variações individuais
(ὡς ἑκάστῳ ἑτύγχανέ τι διαφεόντως ἑτέρῳ γιγνόμενον) da peste, para reter ape-
nas a forma (τὴν ἰδέαν). do mesmo modo, na análise das perturbações morais

tèges, au jeu des intelligences aux prises. mais il rend intelligible en même temps l’événe-
ment lui-même qui a déçu les espoirs de l’un ou de l’autre stratège, parfois de deux» (aron
1961: 136).
68
ξυνέβη δὲ καὶ τὰ ἀπὸ τῆς τύχης οὐκ ὀλίγα ἐναντιωθῆναι.
452 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

decorrentes da peste, exclui deliberadamente os aspetos individuais relativos às


circunstâncias, agrupando numa exposição de teor puramente abstrato tudo o
que concerne uma série de insurreições e violências. também se reflete na sua
tendência para pôr de parte as ἰδιότητες dos indivíduos e na propensão para
fundir os indivíduos no coletivo. Neste ponto tucídides destaca-se claramente
de Heródoto, com o seu gosto pelo concreto e pelo pitoresco, e de todos os
outros historiadores do período clássico69.
É da filtragem de todos os detalhes que tucídides chega ao miolo, à
“causa mais verdadeira” (ἀληθεστάτη πρόφασις) da guerra: o temor que o
aumento do poder de atenas inspirou a esparta. toda a narrativa está cons-
truída em torno desta causa e de princípios gerais subsequentes e complemen-
tares que são enunciados nos discursos: coragem, surpresa, desordem, temor
e ardor, inovação e conservadorismo, justiça e violência, nomos e physis
(Nogueira 2000), etc. tudo o que é narrado contribui para dar corpo a estas
noções gerais, sendo possível ler a sua obra seguindo linhas temáticas.
c’est par ce double effort, de simplification et d’analyse, que thucydide, éliminant
un grand nombre de renseignements particuliers, prend soin de rattacher tous ceux
qu’il retient à des notions plus générales, et retrouve dans les faits quelques gran-
des forces fondamentales, aisément reconnaissables, parce que bien mises à jour et
cernées d’un trait précis. de là vient que l’on peut suivre dans son œuvre un cer-
tain nombre de thèmes [romilly 2005: 21].

o resultado é que nada parece deixado ao acaso. cada ato particular


remete para temas gerais e regras de verosimilhança e é neste sentido que os
episódios relatados por tucídides podem ambicionar um significado válido para
outros tempos e para outras ações, permitindo reconhecer na sua obra um sis-

69
«mais ce qui est le plus étonnant est que ce même refus du particulier puisse appa-
raître dans le récit. un récit, normalement, a pour fonction de rapporter le particulier; et le
prédécesseur immédiat de thucydide, Hérodote, montre assez que l’histoire grecque, dès ce
moment, s’engageait résolument dans cette voie. Hérodote, toujours curieux et dans tous les
domaines (géographique, ethnographique, psychologique, logique), Hérodote à l’affût du
concret et du pittoresque, avec son goût des mœurs curieuses, des aventures, des particularités
biographiques, des noms propres, Hérodote a le goût de savoir et de s’enquérir; et ce goût
se retrouve toujours plus ou moins après lui, soit qu’il s’agisse du pittoresque, comme chez
le Xénophon de l’Anabase, soit qu’il s’agisse des particularités individuelles, comme chez les
biographes ou même chez un tacite. Le goût de thucydide le porte juste à l’opposé; et,
comme si l’histoire essayait dès ses débuts, par un grand mouvement de pendule, ses deux
directions les plus opposées, il veut se débarrasser de tous ces détails, simplifier, élaguer,
décanter» (romilly 2005: 20-21).
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 453

tema de constâncias. todavia, desengane-se quem julga que estas constâncias


têm caráter de lei70. romilly chama-lhes “probabilidades sugeridas”: «au lieu
de lois formulées, l’œuvre de thucydide présente seulement des vraisemblances
suggérées» (ibid.: 26)71. estas verosimilhanças ou probabilidades não aparecem
isoladas ou autossuficientes, mas combinadas umas com as outras. e tucídides
nunca as formula diretamente, fugindo à tentação do pensador político, deixa
essa tarefa aos oradores. os discursos dos atores permitem a tucídides formular
proposições gerais sem que este tenha de intervir pessoalmente.
descartando a hipótese de leis gerais, o que encontramos na obra de tucí-
dides é um sistema complexo e coerente de plausibilidades sugeridas, depen-
dentes umas das outras e todas dependentes da narrativa:
[...] ce à quoi tend l’histoire de thucydide, c’est [...] à présenter un système de
vraisemblances indiscutable, rigoureux et complet; c’est, si l’on veut, à faire coïn-
cider intégralement le récit des faits et l’analyse des vraisemblances. il n’y a pas
de connaissance générale indépendante du récit, ni passage de l’un à l’autre. Les
deux se recouvrent; et thucydide s’emploie seulement – mais avec tout l’art pos-
sible – à mettre cette connaissance bien en lumière, en écartant tout ce qui gêne
et en soulignant tout ce qui compte [ibid.: 28].

tudo o que tucídides pretende afirmar não é abertamente afirmado, está


implícito nos factos narrados, porque acreditava que uma narrativa bem estabe-
lecida poderia veicular em si o seu significado, que a realidade poderia falar

70
esta advertência pode aplicar-se a châtelet: «son Histoire est moins un récit qui tend
à rendre impérissables les événements passés qu’une démonstration qui vise à dégager les lois
générales d’une évolution historique. [...] il n’est pas besoin de lire entre les lignes pour
découvrir le message transhistorique de l’historien: il se pose lui-même immédiatement
comme un penseur qui recherche des constantes et dévoile les structures profondes de l’acte
historique humain – du drame individuel ou collectif» (1962: 204).
71
as “probabilidades sugeridas” que romilly atribui a tucídides aproxima o historiador
ateniense da prática dos sofistas. J. H. Finley (1942) apercebeu-se das analogias existentes
entre a tendência de tucídides para formular princípios gerais e os argumentos usados pelos
sofistas. estes, em consonância com a prática dos filósofos jónios que os precederam, pro-
tagonistas de uma revolução antropocêntrica, tentam definir leis do comportamento humano
com uma formulação similar à das leis da física. esta evolução antropocêntrica é fruto da
implementação da democracia e o consequente desenvolvimento da retórica enquanto arte de
persuadir. os sofistas, na qualidade de mestres na arte de persuadir, tentaram estudar e fixar
as leis do comportamento humano como forma de prever as reações do auditório e explicar
através dessas leis as próprias ações que, se se coadunam com essas leis gerais, entram dentro
do provável (to eikos). a lista das probabilidades é muito ampla, tanto quanto possa ser a dos
“lugares-comuns” num manual de retórica.
454 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

por si própria72. o que há a inferir no seu texto deve ser feito pelo leitor, a
partir da relação entre narração e discursos. tucídides contava seguramente com
a inteligência dos seus leitores (vide connor 1984: 13 e romilly 1956: 105).
Não só contava com a inteligência dos seus leitores como esperava
ensiná-los a serem inteligentes – é o que se depreende da análise de Virginia
Hunter. Hunter, alguns anos depois de Thucydides the artful reporter, retoma a
teoria dos paradeigmata – a autora não fala de generalizações mas de modelos
(paradeigmata)73. Na senda de romilly, também reconhece nos discursos a
faculdade de concentrar a narrativa em torno de um tema central e a faculdade
de antecipar acontecimentos que a narrativa posterior virá confirmar. todavia,
Hunter acrescenta que a conexão dos discursos com os factos narrativos não se
faz só para a frente mas também para trás («these links backward and forward
characterize an oral work» [1982: 293]), mostrando se o falante aprendeu
alguma coisa com experiências anteriores, suas ou de outros: «the link back-
ward to the narrative that preceedes can also be important, revealing whether
the speaker has learned from his own or others’ experiences (from empeiria or
paradeigma)» (ibid.: 291). esta observação de Hunter permite aprofundar o
nosso entendimento da utilidade dos discursos e do seu contributo metodológico
para o apuramento da verdade. o que surpreende, nesta leitura de Hunter, é que
tucídides tenha aproveitado o que considerava como maior ameaça à verdade
para o transformar no maior auxiliar da verdade, através do método ponderado
e refinado da escrita de discursos74. Hunter verifica que não só os oradores e

72
«[...] it becomes possible to discover the general truths of action thucydides has felt
would be conveyed, not by any abstract statement separated from specific occasions and
actions, but by the representation of those concrete actions and statements in which they
operate and through which they are manifested» (cogan 1981: xvi).
73
Hunter, Thucydides the artfull reporter (1973), constrói a sua tese muito com base
na teoria da pedagogia dos paradeigmata, quer para as personagens quer para os leitores:
«each instance of a pattern we call a paradeigma. For the reader earlier events exist as
paradeigmata, model situations, the outcome and possibilities of which he knows. By bring-
ing this knowledge of the past with him into the present, he is equipped to compare and
judge, even to predict. [...] if the characters in the History are represented as learning from
their own and others’ experiences, the reader himself learns from the example of others,
paradeigmata in the sense of history» (1973: 180).
74
«[...] it must be noted that thucydides effected this shift without breaking with the
past entirely or discarding all the techniques of composition for oral performance. rather he
transformed these techniques, refining them in such a way as to take full advantage of a text
composed for readers. For interrelated sets of logoi and erga were already present in
Herodotus’ Histories. Herodotus too composed many of his speeches to form the nucleus of
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 455

os ouvintes aprendem com os modelos do passado (paradeigmata), mas o pró-


prio leitor é ensinado a distinguir a verdade da ficção dos discursos, na medida
em que viu como os acontecimentos deram ou não razão aos cálculos proba-
bilísticos dos oradores, corroborando ou frustrando as suas expetativas e na
medida em que é ensinado a aprender com a empeiria do passado. assim, o
leitor é ensinado a separar o logos da mera doxa, a separar o trigo do joio.
explicitemos melhor a tese de Hunter. Perante dois discursos igualmente per-
suasivos, emotivos e assentes em probabilidades, que propunham ao auditório
políticas e estratégias de ação, os ouvintes viam-se confrontados com o dilema
de escolher o mais razoável, o mais verdadeiro, distinguir o mais forte do mais
fraco75. era normal que ficassem à deriva sem conseguir entrever a verdade no
relativismo retórico da antilogia. «in a word, they are prey to the deception of
the logos» – afirma Hunter (1982: 291). cabe aos acontecimentos posteriores
mostrar onde está a verdade. «the listeners learn, perhaps too late, who pre-
dicted correctly» (ibid.). aprendem os ouvintes e os leitores. «meanwhile, the
readers also learns» (ibid.). os leitores, trazendo para o presente este conheci-
mento de situações modelo do passado (paradeigmata), ficam aptos a comparar
e julgar, até predizer. Para o leitor, a História de tucídides representa então um
repositório de experiências, experiências de vida e experiências metodológicas
que o ajudarão a orientar melhor a sua vida, prevendo perigos, prevenindo más
decisões, e a não se deixar enganar pelo dolo dos logoi, sabendo ver onde está
a verdade.
as a set of paradeigmata, completely accurate by the historian’s standards, it is
the basis of a logos, if the process of history should recur in his lifetime. Having
shared so often in correct intellectual activity in the pages of History, he should
himself be able to predict the stages of process see dangers, perhaps even prevent
bad decisions. Least of all should he have deception perpetrated on him. For he
understands the clear truth in the way thucydides intended (1. 22. 4) [ibid.: 292].

o conceito de paradeigma teorizado por Hunter é muito próximo da


noção de ideia-tipo apresentada por raymon aron. o ensaio do historiador

an unfolding process. they established a link both backward and forward, directing the lis-
teners to the true meaning of what has transpired and of what will transpire. they thus antic-
ipate in the manner of thucydides» (Hunter 1982: 292).
75
«this logos we call the “stronger” (κρείττων) on the principle that life itself, the
erga, confirme it as true. on the same principle the other logos is the “weaker” (ἥττων)»
(Hunter 1973: 178). Veja-se, a este propósito, o estudo de Nogueira (2000) cujo fio condutor
é precisamente a dicotomia fraco-forte na obra de tucídides.
456 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

francês, «thucydide et le récit historique» (1961: 124-167), faz uma curiosa


aproximação entre o conceito weberiano de idea-tipo e o preceito tucididiano
do κτῆμά τε ἐς αἰεὶ, tendo, também, por pano de fundo a tese de romilly, «his-
toire et raison chez thucydide». aron constata que tucídides tem tendência
para elevar um determinado acontecimento – conforme ou não às intenções dos
atores – acima da particularidade histórica, iluminando-o com o emprego de
termos abstratos, sociológicos ou psicológicos. e dá o exemplo das causas que
levaram os aliados de atenas a juntarem-se a esta potência: justiça (δίκη),
parentesco racial (ξυγγένεια), interesse (ξυμφέρον), necessidade (ἀνάγκη). Basta
generalizar acerca dos motivos que levam uma cidade a aliar-se a uma potência
em detrimento de outra para que as interpretações de casos singulares se pos-
sam aplicar noutros séculos. e isto é possível na medida em que a guerra do
Peloponeso que tucídides apresenta, mesmo seguindo presa às singularidades
dos sucessivos episódios, é uma guerra estilizada, racionalizada, idealizada («La
guerre du Péloponnèse est d’elle-même stylisée et pour ainsi dire idéalisé»
[aron 1961: 138]) em que as duas potências em confronto representam cada
uma um tipo: atenas, o poder naval, a democracia, a audácia, o espírito de
aventura; esparta, o inverso – poder militar terrestre, a oligarquia, a prudência,
o conservadorismo. e esta lista de antíteses podia ser estendida muito mais.
tucídides não formula leis e não se afasta nunca do concreto, mas a sua
narrativa não cai nunca no anedótico. Para aron, esta originalidade de tucídi-
des que faz oscilar a sua narrativa entre o episódico e o estilizado não deve ser
analisada com conceitos vagos e inadequados à prática de tucídides como os
de particular e geral, que redundam em paradoxo, paradoxo este que se desfaz
contra a metodologia de max Weber:
celui-ci ne formule pas des lois, il ne s’écarte pas de ce qui s’est passé à tel
endroit, à tel moment, et pourtant la signification du récit ne s’épuise jamais dans
l’anecdote. une analyse, inspirée de la méthodologie de max Weber, dissipe, me
semble-t-il, l’impression de paradoxe [ibid.: 133].

a metodologia de max Weber permitirá a aron desenvolver uma intensa


reflexão acerca da história da Primeira Guerra mundial e o papel que nela
desempenhou a cumplicidade entre a política e a economia, tomando como
modelo intemporal ou ideia-tipo a guerra do Peloponeso.
or, aux yeux de thucydide, la guerre du Péloponnèse est une guerre parfaite,
idéale [au sens où max Weber aurait pris le mot], parce qu’elle manifeste, plei-
nement réalisées, les potentialités de la guerre et que tous les termes opposés y
paraissent et s’y épanouissent [ibid.: 132].
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 457

a conclusão é um apelo a olhar para a história de tucídides como para


um modelo que deve ser retomado num século cuja historiografia, divorciada
do acontecimento político, passou ao lado dos dois acontecimentos mais mar-
cantes, as duas grandes guerras76. e que apesar do forte impacto da economia,
da indústria e da técnica nas guerras do século XX, é da política e das riva-
lidades entre os estados, das lutas entre os partidos no interior dos estados e
dos regimes no poder que saíram as grandes decisões, as grandes revoluções da
primeira metade do século XX.
tant que dure la guerre, la politique règne et les personnes agissent. comment
ignorer les héros qui font l’histoire au temps de Lénine, staline, churchill, Hitler?
thucydide reste notre contemporain, lui qui fut le témoin de la guerre tragique,
de l’événement qui se fait, nous qui ne sommes pas encore prêts à regarder avec
détachement les faits accomplis, ni à laisser les souffrances et les exploits des
combattants sombrer dans l’oubli [ibid.: 167].

Posto isto, resta-nos abordar a questão do tempo. as declarações de tucí-


dides sobre a utilidade intemporal da sua obra e a permanência da natureza
humana têm acarretado consigo imensa especulação em torno da sua conceção
de tempo. as opiniões dividem-se entre os que veem na sua obra uma clara
atualização da visão cíclica do tempo e da história e os que a negam, incli-
nando-se mais para um misto de tempo circular e irreversível, em que as coisas
se repetem, mas não exatamente como antes. depois da paráfrase que fizemos
do ensaio de Hannah arendt e da nossa própria análise das sentenças de tucí-
dides, julgamos que fica claro que não há em tucídides uma conceção comple-
tamente circular e repetitiva do tempo, uma vez que a iniciativa humana é
capaz de romper com essa circularidade, desafiando a imutabilidade da natureza
e a própria Tyche não deixa que tudo seja um eterno retorno.
em favor deste parecer, evocamos a ajuda de um especialista em historio-
grafia antiga, arnaldo momigliano, que recusa terminantemente a noção de um
tempo cíclico aplicada aos historiadores gregos.
L’historien grec croit presque toujours que le passé qu’il rapporte revêt un sens
valable pour le futur. Les événements n’auraient pas d’importance en eux-mêmes
s’ils n’enseignent quelque chose à ceux qui en lisent le récit. L’histoire doit four-
nir un modèle, elle doit montrer ce que pourraient être un modèle d’évolution

76
momigliano também acentua esta ideia da retoma da história política, que deve
encontrar no estudo da História de tucídides um incentivo: «Le fait que l’historiographie
politique pure soit à présent discréditée et généralement considérée comme fastidieuse nous
invite à réévaluer notre dette à l’égard des historiens grecs» (1992: 2).
458 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

future des affaires humaines. on ne trouve pas chez les historiens grecs l’idée
d’une répétition inévitable des événements à intervalles réguliers. La notion d’un
temps cyclique, qui leur est souvent attribué, est une invention moderne [momi-
gliano 1992: 20].

Numa outra obra (1984: 79), momigliano recorre também às três passa-
gens mais emblemáticas por nós já comentadas – da permanência da natureza
humana, do aproveitamento das informações sobre a peste para aplicações futu-
ras e da recorrência dos efeitos morais da guerra civil com a salvaguarda da
singularidade das circunstâncias futuras – para rejeitar categoricamente que se
possa ver implícito no pensamento de tucídides um entendimento do tempo
como eterno retorno. ademais, noutro passo, adota um argumento eficaz:
se habrían podido evitar muchas discusiones aburrías sobre la «circularidad del
tiempo» en la historiografía griega si se hubiese señalado que el espacio de tiempo
con el que tiene que tratar generalmente la investigación histórica es demasiado
breve para poder ser definido como lineal o circular (1984: 18).

o historiador grego não se limitava a expor os factos, procurava relações


de causa-efeito entre eles. Para obter uma sequência temporal correta, sem a
qual não pode haver explicação, ele via-se na necessidade de datar os aconte-
cimentos. a cronologia foi uma preocupação da historiografia grega desde o iní-
cio, mas também é errado pensar que a pesquisa cronológica dos Gregos teve
como único fim suportar a explicação causal. a cronologia era igualmente
necessária devido à importância dada aos critérios de antiguidade e longevidade.
No caso de tucídides, a cronologia adotada é reveladora do seu afã de
precisão. em V. 20, tucídides chega mesmo a criticar por falta de rigor o cál-
culo dos anos baseado exclusivamente nos magistrados epónimos, pois esse
método não permite determinar se um acontecimento se dá no início, no meio
ou no fim da magistratura. Heródoto foi o primeiro a efetuar um cômputo do
tempo, que empregou de forma esporádica (i. 77.3, Vi 31. 1, Vii 37. 1). tucí-
dides é o primeiro a empregá-lo de modo sistemático. Basta lembrar que os
acontecimentos são narrados por blocos correspondentes a um ciclo de estações,
do verão ao inverno:
aqui começa, então, a guerra entre atenienses e Peloponésios e os seus respetivos
aliados [...] narra-se cada um dos acontecimentos pela ordem em que ocorreram,
por verão e inverno [tucídides: ii. 1. 1].

o próprio tucídides de atenas pôs por escrito estes factos, pela ordem em que
cada um ocorreu, por verões e invernos, até ao momento em que os Lacedemónios
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 459

e seus aliados puseram fim ao domínio dos atenienses e se apoderaram dos Lon-
gos muros e do Pireu. até esse momento a duração total da guerra foi de vinte
e sete anos [tucídides: V. 26. 1].

este modelo de cálculo temporal já fora utilizado por Hesíodo nos Tra-
balhos e dias e era típico do Corpus Hippocraticum, que terá exercido forte
influência sobre tucídides. Não podemos ficar indiferentes à escolha das esta-
ções como marcador temporal e ao quanto esta opção pode ser reveladora da
conceção temporal de tucídides. as estações formam um círculo, são uma lei-
tura interpretativa da repetição cíclica da natureza; não obstante, os aconteci-
mentos humanos dentro das estações acarretam sempre novidades. em cada ano
de narração há sempre combates, mas também vicissitudes; há batalhas, deci-
sões, estratégias militares e comportamentos que se assemelham a anteriores (de
acordo com o género humano), porém, nenhum ciclo anual narrado por tucí-
dides é exatamente igual a outro. dentro desta eterna repetição da natureza, há
sempre novidades.
dito isto, podemos pôr-nos ao lado de momigliano contra aqueles que
defendem a mentalidade aistórica dos Gregos (Hegel, collingwood, reinhold
Niebuhr). a ideia de que os Gregos eram desprovidos de sentido histórico por-
que pensavam inspirados em modelos regulares e periódicos, em termos de leis
naturais, de substância intemporal é uma generalização apressada que pode
assentar bem a Pitágoras, Platão e Zenão mas não a Heródoto, tucídides e
Políbio. No entanto, nem os filósofos nem os historiadores gregos tinham uma
conceção única de tempo (momigliano 1992: 33-34).
Gomme também discorda dos que acreditam que tucídides tem uma visão
cíclica e determinista da história. o facto de tucídides acreditar na ocorrência
futura do mesmo tipo de eventos que ele presenciou não significa, necessaria-
mente, que ele pensasse na sua recorrência cíclica, muito menos que, por causa
disso, fosse possível prever a sua ocorrência77.
É verdade que tucídides diz que a natureza humana se mantém e que o
mesmo tipo de acontecimentos se repetirá no futuro e isso faz da sua História
um laboratório de vivências e paradeigmata para a posteridade, uma verdadeira
magistra vitae. e quem o pode negar? Quantas guerras já se fizeram depois da

77
«But to say that he believed that similar events would recur is not to say that he
believed that events go round in cycles, still less that he thought they were in consequence
predictable by anyone sensible enough to read his History of the Peloponnesian War»
(Gomme 1954: 156).
460 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

do Peloponeso? Vimos aron atestar que a primeira metade do século XX dá


razão a tucídides. É verdade que nas guerras do século XX tiveram mais peso
a economia e a técnica militar do que as intervenções e decisões humanas;
porém, na essência, o fator determinante continua a ser político, é humano, é
o imperialismo ateniense atualizado, o eterno desejo que os mais fortes têm de
dominar sobre os mais fracos (Nogueira 2000), o consequente fenómeno de
bipolarização e satelitização, em suma, o realismo político. Violência, mortes,
crimes hediondos, sofrimentos, todo o tipo de barbaridades contra a dignidade
humana, todo o tipo de perversões morais, em suma, o horror da guerra de que
dá testemunho tucídides (iii. 82-83) sempre se verificará enquanto a natureza
humana for esta. o historiador grego aparece-nos hoje como um verdadeiro
profeta para o nosso tempo, mais do que ele algum dia ele julgaria possível.
É por isso que Gomme diz, no rescaldo das grandes guerras, que ninguém na
atualidade deveria lidar com política internacional sem ter lido em detalhe a
obra de tucídides e que, por sua vez, os acontecimentos trágicos do nosso
tempo ajudam-nos a melhor entender o drama bélico tucididiano:
sometimes in my arrogant way i think that no one should deal with present-day
international politics who has not studied thucydides, and when i say “studied”
i include every detail of language and history; sometimes in reverse i think that
the gods arranged the flow of events in the first half of this century expressly so
that we may understand thucydides and the ancient Greek world [1954: 156].

também o secretário de estado norte-americano, George marshall, no


mesmo ambiente de pós-guerra faz, na universidade de Princeton, a seguinte
declaração:
i doubt seriously whether a man can think with full wisdom and with deep con-
victions regarding certain of the basic international issues today who has not at
least reviewed in his mind the period of the Peloponnesian War and the fall of
athens [apud connor 1984: 3].

e o próprio connor, a quem pedimos emprestada a citação anterior, reconhece


a validade intemporal das lições de tucídides –
For me, and i believe for many other students of the classics in my generation,
thucydides possessed an immediate applicability. [...] our own historical situation
provided ample confirmation of his claim to have written a possession for all time
[ibid.: 3-4].

–, pois, também ele, inspirado por uma notícia sobre a guerra do Vietname,
decidiu regressar à História da Guerra do Peloponeso em busca de novas
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 461

leituras sobre objetividade e envolvimento do historiador; afeção emocional


do leitor.
No século XX, o interesse pela obra política e militar de tucídides reco-
nheceu grande incremento no ambiente da Guerra Fria, quando as pessoas
encontraram nela um modelo do que estava a acontecer entre o bloco formado
pelos e.u.a e os aliados da Nato contra o bloco formado pela u.r.s.s. e os
aliados do Pacto de Varsóvia. mas o colapso da união soviética e o fim do
confronto com os estados unidos não diminuíram o interesse pela obra de
tucídides ou a convicção de que a sua obra pode iluminar a nossa compreen-
são dos políticos e da política internacional. os devotos das escolas “realista”
e “neorrealista” de relações internacionais veem tucídides como um fundador78.
a sua obra continua a ter presença obrigatória nas academias e colégios mili-
tares norte-americanas, onde todos os anos milhares de estudantes a leem, e
nenhum curso de relações internacionais ou de história da guerra pode dis-
pensá-la. Quem o diz é um dos maiores especialistas norte-americanos em tucí-
dides, donald Kagan (2009: 1-2). É com as suas palavras que encerramos esta
secção, provando como as lições de tucídides são um monumento perene das
ciências políticas e da filosofia política (cf., etiam, Gustafson 2000):
the study of thucydides and his famous History of the Peloponnesian War has
never been as intense, as widespread, or as influential as it is in our time. thu-
cydides claimed that his work was “a possession forever” that was meant to be
useful to “such men as might wish to see clearly what has happened and what
will happen again, in all human probability, in the same or a similar way”
(1.22.4). more than twenty-four years later political leaders and students of politics
approach it in just that manner [ibid.: 1].

78
Vide «the influence of thucydides in the modern World», in http://www.hri.org/por/
thucydides.html. Neste artigo, alexander Kemos faz um interessante balanço da influência das
teses políticas de tucídides no quadro das relações internacionais ao longo do século XX,
não hesitando em atribuir ao historiador ateniense a paternidade da história científica e do
“realismo” político. entende-se por realismo político, a escola de pensamento segundo a qual
as relações interestatais se baseiam mais no poder do que no direito. No período Pós-segunda
Guerra mundial, a obra de tucídides influenciou diretamente a escola realista e a própria fun-
dação da diplomacia americana durante a Guerra Fria: «in fact, while his Peloponnesian War
is chronologically distant from the present, thucydides’ influence upon realist scholars in the
post-1945 period, andin turn upon american diplomacy, is direct. specifically, the foundations
of american diplomacy during the cold War with regard to the struggle between the two
superpowers and the ethical consequences or problems posed for smaller states caught in the
vortex of bipolar competition are derived from his work» (ibid.: 1).
462 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

5. OS DiScURSOS

Quando falamos de ficção em tucídides, os discursos são paragem obri-


gatória79. Quase um terço (vinte e seis discursos políticos e um diálogo) da His-
tória da Guerra do Peloponeso está preenchida com discursos que apresentam
com vigor e intensidade os pontos de vista e os preconceitos, as esperanças e
os receios, os planos, os ideais, as vilezas dos intervenientes. com os discursos
e os debates, tucídides dava continuidade a uma tendência geral do seu tempo
e quase uma moda: o ἀγὼν λόγων ou debate oratório. a disputa jurídica era a
forma mais comum e simples, mas todos os géneros literários, de um modo
geral, praticavam este tipo de agon – desde a epopeia homérica, que já mis-
turava discursos com narrativas, passando pelas Histórias de Heródoto, pela tra-
gédia e pela comédia, onde os debates ocupam um lugar nuclear80.
as relações diplomáticas entre as várias cidades desempenham um papel
decisivo na economia da História da Guerra do Peloponeso. Não há, propria-
mente dito, um direito internacional explícito, mas nestes discursos os estados
têm oportunidade de justificar as suas posições. tal como a guerra manifesta a
essência da conduta humana, assim também as palavras diplomáticas revelam
esta essência no plano do discurso. aí se exprime ao mesmo tempo a violência,
as paixões e os interesses. este género de conflito dialético entre diplomatas ou
embaixadores das cidades é o melhor exemplo do chamado realismo político.
mas na História da Guerra do Peloponeso pontua ainda um outro tipo de dis-
cursos: os que os governantes dirigem aos seus concidadãos e os chefes mili-
tares aos seus soldados. trata-se de exortações ou de deliberações que permi-
tem perceber melhor o curso dos acontecimentos e fornecem informações úteis.
tanto estes discursos deliberativos como os diplomáticos são a exposição de
motivações diversas que levam a tomar uma decisão em detrimento de outra.
Para châtelet, eles manifestam «uma verdadeira filosofia da ação histórica,
pondo o leitor a par dos sentimentos e das razões que guiaram os homens»
(1962: 228-229). os discursos deliberativos têm o interesse maior de exibirem

79
marta Várzeas, «entre a história e a ficção: os discursos na obra de tucídides»
(2004).
80
«thucydides includes speeches because Homer and Herodotus included speeches, and
individual ‘warners’ like Herodotus artabanus and thucydides’ Nikias, who in Book vi tries
to dissuade the athenians from sending the expedition against sicily, have Homeric
antecedents. again, thucydides can sometimes use his speeches as ‘pause points’ in the nar-
rative» (Hornblower 1987: 66).
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 463

o confronto de opiniões de pessoas que defendem o interesse de uma mesma


cidade. cléon e diodoto, alcibíades e Nícias por atenas, arquidamo e estene-
laidas por esparta, Hermócrates e atenágoras por siracusa encarnam pontos de
vista opostos. muitas vezes, estes debates têm como finalidade ver quem con-
segue captar a adesão da massa popular para uma de duas estratégias: uma ten-
dencialmente mais moderada, que apela à paz, e outra mais radical que apela
à guerra e à violência.
em tucídides, a composição dos debates obedece a um método intelectual
preciso e apresentam-se de uma forma particularmente rigorosa. romilly (1956:
182) vê na raiz deste método de compor debates a herança de Protágoras, o
qual estabeleceu os dois princípios básicos da metodologia: primeiro, para qual-
quer questão existem sempre dois discursos ou pontos de vista diferentes;
segundo, a arte da discussão consiste em encontrar argumentos para contradizer
o adversário procurando ser mais convincente. Α antilogia era uma forma pri-
vilegiada de sabedoria e compreensão entre os Gregos, que tinham por hábito
não tomar partido sem ouvir as duas teses em confronto, preferindo a plurali-
dade à unilateralidade81.
os discursos são, pois, um sinal do ambiente cultural que se respirava na
pólis de tucídides. com a introdução da democracia dá-se a “laicização da
palavra” (detienne 2006: 10). os cidadãos atenienses puderam usar democrati-
camente da palavra para questionar e investigar tudo com a luz da razão. os
discursos provam a familiaridade de tucídides com estas novas ideias. châtelet
sublinha as importantes transformações culturais e sociais que se deram a partir
do fim das guerras contra os Bárbaros. Nesta época eclode o racionalismo que
se repercute em todos os níveis da ação e da cultura. Houve uma revolução
técnica que se fez sentir ao nível da agricultura, da medicina, da ciência e do
urbanismo. todas as aquisições do século anterior encontram-se em todos os
domínios reunidas e mobilizadas. tudo o que os navegadores, os comerciantes,
os artesãos do século Vi descobriram ou inventaram ganha um novo significado
e entra na vida quotidiana dos Gregos. a técnica (techne) manifesta-se como o
que distingue os homens dos animais. ora, a mais eminente, revolucionária,
secularizante e democrática das técnicas é a palavra:
[...] la parole elle-même est conçue comme la τέχνη τῶν τεχνῶν, grâce à laquelle
il est permis – au-delà de la distribution naturelle des talents, des pouvoirs et des

81
«Le principe de l’antilogie a toujours paru aux Grecs la condition même de la
sagesse et de la compréhension. L’antilogie, c’est la délibération. c’est peser le pour et le
contre. [...] ceux qui critiquent un peu sommairement l’éristique oublient, en effet, que le but
de l’antilogie est en définitive la confrontation des deux thèses» (romilly 1956: 222, 223).
464 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

situations – d’enseigner à autrui ce qu’il convient de faire dans une circonstance


déterminée, qu’il s’agisse de tisser un vêtement ou de soutenir un procès devant
l’aréopage. Le discours sensé qui cherche – ou feint chercher – dans les faits la
preuve de ce qu’il avance se substitue à l’affirmation nue, à l’invention religieuse,
au discours poétique. il n’est plus simplement dire, il devient manière de dire, de
soutenir et de prouver ce qui est dit; il s’oppose au μῦθος comme s’oppose, à la
simple présence d’un ordre, la volonté de justifier l’ordre qui est ou de découvrir
une organisation plus profonde qui rende compte de la structure du donné [châ-
telet 1962: 68].

esta operação atinge o seu apogeu nos diálogos socráticos de Platão, onde
se tende para a submissão das contradições e das diferenças à universalidade do
logos.
É preciso entender como na génese dos debates e da própria história se
encontra uma raiz comum – a política, no duplo sentido de pertença a e exer-
cício de cidadania – e como a obra de tucídides ao introduzir os discursos
políticos acaba por ser o espelho da sua própria génese e da sua própria época.
É no ambiente político favorável que se vive na polis de Péricles que se desen-
volve e consolida este género novo que é a historia rerum gestarum. ademais,
esta é a tese principal de châtelet, que vê na vida política e no assumir do
estatuto político pelo homem um móbil para a tomada de consciência da exis-
tência humana como existência sensível-profana e como devir efetivo onde se
dão acontecimentos que vale a pena anotar e apresentar às gerações futuras.
[...] c’est par la médiation de la vie politique que s’effectue la prise de conscience
du caractère “temporel” de l’existence humaine et c’est d’abord en tant que
citoyen que l’homme peut se penser comme volonté agissante au sein de la réalité
sensible-profane. Les structures des sociétés plus anciennes ne permettaient pas
une telle saisie et l’homme se tournait immanquablement, quoique selon des
modalités diverses, vers le mythe et le sacré. Le fait de se reconnaître dans une
réalité dont la vie est tout entière liée au monde profane détermine l’homme à
prendre en charge son destin temporel et la culture à fixer dans un discours les
événements qui la scandent [...]. une hypothèse en effet se précise: celle selon
laquelle la vie politique et l’assomption du statut politique de l’homme constituent
l’élément majeur dans lequel peut et doit se développer, sous des formes diverses,
une prise en considération de l’existence comme existence sensible-profane,
comme devenir effectif où se produisent des faits valant la peine d’être notés et
présentés comme événements aux générations présentes et futures. cette hypo-
thèse, seule la lecture des ouvrages d’histoire est susceptible de la confirmer»
[châtelet 1962: 82-83].
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 465

deixar os protagonistas falar foi, então, a forma que os historiógrafos


encontraram para fazer o leitor assistir ao passado sem terem que intervir para
fazer comentários ou análises. Hannah arendt enaltece os discursos como
reflexo do modelo democrático vivido na pólis e qualifica esta forma de apre-
sentar os factos como um “poderoso elemento” de objetividade histórica
algo depois, e encontrando a mais magnífica expressão em tucídides, desponta na
historiografia grega um outro poderoso elemento que contribui para a objetividade
histórica. este só podia ter avançado para primeiro plano após uma longa expe-
riência de vida na polis, experiência essa que em grande medida consistia, inacre-
ditavelmente, no simples facto de um conjunto de cidadãos conversarem entre si.
Nesse incessante diálogo, os Gregos descobriram que o mundo que temos em
comum é normalmente encarado a partir de uma infinita diversidade de posições
a que correspondem os mais diferentes pontos de vista. Num inesgotável fluxo de
argumentos, tal como os que os sofistas apresentavam aos cidadãos de atenas, o
grego aprendeu a intercambiar as suas perspetivas, as suas próprias “opiniões”
– o modo como o mundo lhe aparecia ou se lhe abria (δοκεῖ μοι, “parece-me”,
de onde vem provém δόξα, “opinião”) – com as dos seus concidadãos. os Gregos
aprenderam a compreender – não a compreenderem-se uns aos outros enquanto
indivíduos, mas a olhar para um mesmo mundo a partir da posição do outro, a
ver a mesma coisa sob perspetivas muito diferentes e frequentemente antagónicas.
os discursos nos quais tucídides expõe as posições e os interesses das partes em
conflito constituem ainda um testemunho vivo do extraordinário alcance desta
objetividade [2006: 65].

No entanto, romilly observa que a historiografia grega não os punha a


falar mas falava por eles, o que é uma coisa bem diferente82. segundo a hele-
nista francesa, os discursos desempenham uma função explicativa, revelam o
vínculo que o historiador estabelece entre os políticos e os acontecimentos,
implicando, desse modo, o sacrifício da objetividade material em favor da ver-
dade de conjunto: «Les discours sont un procédé d’explication; et leur agence-
ment entre eux révèle la parenté des politiques et des événements, au gré de
l’historien qui les présente. ils sacrifient l’objectivité matérielle à la vérité d’en-
semble» (2005: 35). conhecemos a tese de romilly acerca da conexão entre
discursos e acontecimentos e o modo como contribuem para a formulação de
proposições gerais, por isso, evitamos repetir o que atrás ficou dito sobre a
forma como os discursos validam ou invalidam os cálculos dos oradores e ele-
vam a particularidade dos episódios ao nível das ideias-tipo.

82
«mais il se trouve qu’en agissant de la sorte, l’historiographie grecques ne les lais-
sait pas parler: elle les faisait parler, ce qui est différent» (romilly 2005: 35).
466 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

Nenhum leitor consegue ficar indiferente à riqueza humana, moral e polí-


tica e à força destes textos dialéticos83. dão colorido e diversidade à narrativa
e fazem-nos sentir espetadores das disputas intelectuais. onde um historiador
moderno optaria seguramente pelo discurso indireto, tucídides decide pôr os
seus protagonistas a falarem em nome próprio. todavia, os discursos tendem,
de um modo geral, a conformar-se com o estilo singular do historiador, as pala-
vras não são as dos oradores mas as de tucídides e resultam da sua interpre-
tação do que deve ter sido dito tendo em conta as circunstâncias. isto explica
por que nenhuma parte da História da Guerra do Peloponeso suscite tantas
dúvidas e seja tão controversa acerca da fidelidade do texto quanto os discur-
sos. É, em grande parte, por causa deles que comentadores e historiadores têm
posto em causa a veracidade da obra, insistindo na ideia de que alguns foram
totalmente inventados por tucídides e outros não terão sido proferidos nos mes-
mos moldes com que aparecem na obra84. o próprio tucídides tem o cuidado
de nos alertar para as diferenças entre a akribeia dos discursos (logoi) e a akri-
beia dos acontecimentos (erga), dando-nos a entender que os discursos são par-
cialmente fictícios. recordemos as suas palavras:
Quanto ao que disse cada um dos lados em discurso, estando para entrar em
guerra ou estando já nela, era difícil recordar a exatidão mesma do que foi dito
(χαλεπὸν τὴν ἀκρίβειαν αὐτὴν τῶν λεχθέντων διαμνημονεῦσαι), quer as que eu
próprio ouvi quer as que me relataram outras fontes: eu expus o que a meu ver
cada um terá dito de acordo com o que seria mais conveniente (τὰ δέοντα) para
cada circunstância, mantendo-me o mais próximo possível do sentido geral do que
foi realmente dito (τῆς ξυμπάσης γνώμης τῶν ἀληθῶς λεχθέντων). relativamente

83
«ce qui frappe le plus, à la lecture de l’œuvre de thucydide, c’est l’existence et la
teneur des discours» (romilly 1956: 21).
84
a posição mais radical é a de collingwood que, por causa dos discursos, desqualifica
tucídides como historiador: «tomem-se em consideração os seus discursos. o hábito embo-
tou a nossa sensibilidade; mas perguntemos a nós próprios, só por instantes: um homem
imparcial, dotado dum espírito verdadeiramente histórico, seria capaz de tolerar o emprego de
tal convenção? observa-se, em primeiro lugar, o estilo deles. sob o ponto de vista histórico,
não será um ultraje pôr a falar, exatamente do mesmo modo, toda uma série de figuras dife-
rentes? Quando é que alguém poderia ter falado, desse modo, ao dirigir-se às tropas, antes
duma batalha, ou ao interceder pelas vidas dos prisioneiros? Não será evidente o facto de o
estilo denunciar uma falta de interesse pela questão de se saber o que disse realmente um
certo homem, em certa ocasião? em segundo lugar, observe-se o conteúdo deles. Podemos
dizer que – apesar de o seu estilo não ser histórico – a sua substância é histórica? [...] os
discursos parecem-me ser, quanto ao conteúdo, não história mas comentários de tucídides
sobre os seus próprios móbeis e intenções» (1989: 43-44).
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 467

aos acontecimentos passados durante a guerra, não me pareceu correto escrever


qualquer informação que me chegasse nem o que a mim me parecia ter aconte-
cido, mas só o que eu próprio presenciei ou o que acerca de cada um procurei
saber junto de outras pessoas como o máximo de exatidão possível (ὅσον δυνατὸν
ἀκριβείᾳ) [i. 22. 1-2].

estas declarações deram azo a imensas especulações, aos mais distintos e


distantes estudos. inumeráveis trabalhos académicos se consagraram a refinadas
análises de sintaxe e de vocabulário das frases do historiador e propuseram bri-
lhantes comparações e contrastes entre estas sentenças programáticas e os dis-
cursos. Normalmente, andou-se em torno da veracidade e da ficção, da objeti-
vidade ou da subjetividade dos discursos. acentuou-se as constrições literárias
que levaram tucídides a escrever todos os discursos no seu estilo inconfundí-
vel, ou os problemas de memorização que, na tradução de alguns, o terão
levado a admitir a apresentação de um apanhado geral (τῆς ξυμπάσης γνώμης)
ou resumo do que foi dito.
swain (1993) apresenta uma interpretação das palavras de tucídides que
toma como ponto de partida a desconfiança de tucídides relativamente à lin-
guagem, desconfiança nascida da constatação de que alguns oradores mais
hábeis manipulam os seus ouvintes através da manipulação dos referentes con-
vencionais das palavras (cf. tucídides: iii. 82. 4). estamos no domínio da pro-
blemática correspondência entre linguagem e realidade, logos e ergon, que foi
tema recorrente no século V a. c. segundo ele, o historiador ateniense não está
preocupado com a akribeia dos discursos, no sentido de transmitir tal e qual o
que foi dito, mas pretende antes exprimir o sentido, os valores e as referências
por trás das palavras dos oradores:
Having in his mind this potential sliping and sliding of meaning, it was proper for
him to think hard about how to convey the values and references that the speakers
has wished to present to their audiences. it was his job as historian to get behind
the words of the speakers to their meanings and to try to present their arguments
as he believed they intended them [sway 1993: 38].

e
[...] he himself is avowedly not concerned with the original language of the spea-
kers but is concerned about getting across to us their ideas [ibid: 39].

Por conseguinte, de acordo com swain, a akribeia a que se refere tucí-


dides não é a lexical mas a hermenêutica. o que era difícil e o que ele queria
fazer era apresentar o verdadeiro sentido dos discursos ou a interpretação exata.
468 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

since the interpretation of words is different for different readers or hearers, it was
the ideas expressed and the way they confronted a particular situation that were
the crucial things for the historian to include, however difficult (χαλεπόν) that task
might be [ibid.: 41].

assim sendo, τῆς ξυμπάσης γνώμης não se traduziria por sentido geral,
mas sentido total. É uma interpretação; vai ao encontro da marcante tese de
doutoramento de adam Parry: Logos and Ergon in Thucydides (1988)85.
Hornblower encontra na afirmação programática com que o historiador
anuncia os critérios tidos em conta para a redação dos discursos um confronto
entre a objetividade e a subjetividade que atravessa toda a parte narrativa86.
reconhecendo a dificuldade de reproduzir com exatidão os debates, tucídides
opta por reescrever o que achou conveniente, à letra, “o que era necessário” (τὰ
δέοντα) que os oradores tivessem dito naquelas circunstâncias específicas, man-
tendo-se o mais próximo possível do sentido geral (ξυμπάσης γνώμης) do que
foi verdadeiramente dito (ἀληθῶς λεχθέντων). o confronto entre τὰ δέοντα,
ξυμπάσης γνώμης e ἀληθῶς λεχθέντων resulta numa contradição entre os cri-
térios de subjetividade e de objetividade. o critério para ἀληθῶς λεχθέντων é
a verdade, o critério para τὰ δέοντα é a conveniência.

85
a dicotomia logos e ergon, que se traduz no conflito entre linguagem e realidade ou,
se quisermos, a conceção humana das coisas e a forma como as coisas são em si mesmas,
atravessa de um modo geral a obra de tucídides e, de um modo particular, os discursos. esta
antinomia nunca dá azo a considerações abstratas por parte do historiador mas ela está
patente no significado que atribui aos acontecimentos que narra, forçando uma certa interpre-
tação intelectual das suas narrações. É a tendência para dar relevância à sua visão dos factos
e do mundo. Parry constata que o historiador ateniense, no excerto metodológico que temos
vindo a comentar, divide o seu trabalho em duas categorias – logos e ergon, discursos e
ações – que definem as duas categorias da experiência histórica. Por sua vez, estas duas cate-
gorias relacionam-se com outras duas: Erga diz respeito à guerra; logos refere-se à escrita da
história. tucídides manifesta consciência de que logos, sendo o que o homem pensa e diz,
é também uma força vital no ato da guerra; não só porque as palavras dos homens afetam
a realidade, mas porque o historiador vê a linguagem como um esforço para organizar e con-
trolar o mundo exterior.
86
o autor encontra uma tensão em tucídides entre o desejo de registar todas as ações
(erga) particulares da guerra (por impossível que seja) e a tendência para omitir e selecionar
até ao extremo, com o intuito de extrair daí as implicações gerais dos acontecimentos. temos,
pois, uma espécie de tucídides repórter que grava tudo e uma espécie de tucídides soció-
logo, este último mais interessado nos padrões gerais que regem a sociedade humana. os dis-
cursos ampliam este dualismo: «the speeches offer further evidence that two hearts beat in
thucydides’ breast» (Hornblower 1987: 34-44).
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 469

Há um equilíbrio impossível entre as duas partes da frase. os historiado-


res tendem a resolver este paradoxo pondo maior peso em “o que foi verda-
deiramente dito” e menos em “o que era conveniente”. cochrane tenta conciliar
as duas facetas de uma forma algo estranha e confusa, agudizando ainda mais
o paradoxo. diz ele que os discursos são palavras e pensamentos de tucídides,
mas que resultam de uma análise genuinamente objetiva, na medida em que
transmitem a atitude de indivíduos ou grupos representativos dos factos em dis-
cussão87. os aficionados dos estudos literários, acentuando mais o conveniente
ou necessário, verificam que a expressão τὰ δέοντα coloca o historiador ate-
niense dentro da tradição retórica. Górgias, no seu Encómio de Helena, diz que
se deve dizer justamente o que é apropriado (τὸ δέον), ou seja, o que está
determinado no manual de fórmulas retóricas para determinado tema e situação.
esta análise da influência da retórica no texto de tucídides contribuiu para
aprofundar enormemente a nossa compreensão dos discursos. Foram postos a
descoberto vários paralelismos entre os discursos proferidos pelos falantes de
tucídides e aqueles dos praticantes e teóricos da retórica grega – tragediógra-
fos, autores de oratória forense, diálogos filosóficos e manuais de retórica no
século iV (vide Hornblower 1987: 45-72). Podemos encontrar, no livro iV, um
surpreendente paralelo entre o discurso dos espartanos que vieram a atenas em
demanda de paz e a secção da Retórica a Alexandre, – tratado anterior ao
século iV, cujo autor poderá ser anaxímenes – onde se dão conselhos às pes-
soas que procuram pôr termo a uma guerra na qual se envolveram. Não obs-
tante, não sabemos quem influenciou quem: terá sido tucídides a influenciar o
autor do tratado ou terá sido ao contrário? Não é possível ser assertivo. tucí-
dides, é quase certo, terá conhecido alguns dos tratados rudimentares de orató-
ria que circulavam pela atenas do século V, mas isso não significa, na opinião
de Hornblower, que «o que tucídides diz nos discursos tenha sido determinado
pela teoria» (ibid.: 50). Pode, sim, ter sido determinado pela própria prática dos
diplomatas seus contemporâneos. se assim fosse, seria um sinal de que o his-
toriador estava a cumprir o seu programa, ao tentar aproximar-se o mais pos-
sível do retoricamente apropriado (τὰ δέοντα)88.

87
«the Funeral Speech then, and all the other speeches, represent the thought of
thucydides just as they are expressed in language which is unquestionably his own. But in
another sense they are genuinely objective, in so far as each of them constitutes an analysis
conveying to the reader the attitude of representative individuals or groups in relation to the
facts which came up for discussion» (cochrane 1929: 26).
88
em «intellectual affinities» (1987: 110-131), Hornblower estuda prováveis influências
da medicina e da tragédia e influências óbvias da retórica no trabalho tucídides. todavia,
470 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

o primeiro dos três ensaios de Finley (1967) sobre tucídides foi um


importante contributo para se perceber o quanto o historiador foi fiel ao pen-
samento e à arte retórica da época que retrata nos discursos, não podendo ser
acusado de anacronismo89. como é que Finley chegou a esta conclusão? com-
parou os discursos da História da Guerra do Peloponeso com as primeiras
peças de eurípides, que se reportam à mesma época. e que descobriu ele? Que
as ideias e o estilo argumentativo, conhecido como formal, que tucídides põe
na boca dos seus falantes, aparece também nas tragédias de eurípides. tal não
significa que a argumentação emprestada por tucídides às suas personagens foi
exatamente aquela mas que poderia ter sido e que, logo, o historiador está a
dar-nos um retrato possível da atitude do homem face a acontecimentos que
tiveram lugar, alguns deles mais de um quarto de século antes do momento
provável da sua redação90. este estudo sinóptico da bibliografia dos dois autores
gregos permite também a Finley concluir que o historiador sofreu influências
das ideias que estavam em voga em atenas, antes do seu exílio:
thucydides attributes to the statesman ideas which were apparently commonplaces
in the contemporary discussion of democracy and which, as such, Pericles must
have know. if euripides offers further resemblances of the same kind, then these
should give further proof that the historian at the end of the century is not entirely
rephrasing in his own way what he conceived to have been the issues of the past,
but that he does in fact keep the echo of ideas and arguments once used when
those issues were before men. similarly, resemblances in thought between the

alerta-nos para um problema. Possuímos um volumoso conjunto de escritos hipocráticos e


chegaram até nós trinta e quatro tragédias, algumas integrais, outras incompletas. todavia, a
oratória da época de tucídides não conheceu a mesma fortuna. Não há discursos preservados
anteriores aos finais do século V. supõe-se que terão existido tratados teóricos, mas perde-
ram-se. o mesmo se passa com a dívida de tucídides com uma quarta influência, sócrates,
o filósofo mais influente da sua época, cujo pensamento podemos conhecer unicamente por
intermédio dos diálogos do seu discípulo Platão e de Xenofonte. Não temos o mesmo tipo
de acesso direto aos ensinamentos do grande filósofo que tucídides poderá ter tido. Hornblo-
wer não tem dúvidas em considerar tucídides um pensador socrático. Para além de todas
estas dificuldades, a maior é que tucídides muito raramente menciona explicitamente o nome
de um intelectual que o tenha influenciado.
89
«[...] these parallels tend to show that the speeches of thucydides are not anachro-
nistic but that, on the contrary, they expound ideas which the historian knew to have been
familiar at the time when the speeches were delivered» (Finley 1967: 51).
90
recorde-se que na antiga polémica entre analistas e unitaristas, Finley se destacou
como unitarista. o seu terceiro ensaio sobre tucídides, onde defende exatamente a tese de
que a obra de tucídides foi redigida toda de uma vez, depois da guerra (404 a.c.), põe pra-
ticamente fim à chamada “questão tucididiana”.
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 471

early plays of euripides and parts of the History other than the speeches would
suggest that the historian was himself influenced by ideas current in athens before
his exile [Finley 1967: 4].

também conclui que ambos os autores empregaram expressões linguísticas


que deviam ser lugares-comuns da retórica do século V. a argumentação formal
ensinada por Górgias, praticada por antifonte e criticada por sócrates no Fedro
de Platão consistia exatamente num vademecum de estereótipos argumentativos.
Há, pois, motivos para acreditar que tucídides pôs os oradores a falar de
acordo com uma certa quantidade de regras fixas de retórica e linhas de argu-
mentação que os próprios oradores deveriam conhecer e usar. É interessante
verificar que a expressão empregue por tucídides τὰ δέοντα μάλιστ᾽ εἰπεῖν é
muito parecida e tem o mesmo significado daquela que sócrates refere no
Fedro (234e6) para caracterizar o velho tipo de argumentação formal: ὡς τὰ
δέοντα μάλιστ’ εἰρηκότος. em suma, tucídides e eurípides empregaram as cos-
tumeiras regras da oratória do século V. o facto de esta oratória ser em grande
medida convencional torna credível que os discursos de tucídides fossem
simultaneamente criação sua e refletissem formas de pensamento e de argumen-
tação amplamente utilizados entre os seus contemporâneos. ora, se como
defende Finley, um unitarista, tucídides escreveu parte ou a quase totalidade da
sua História depois de 404, tem o mérito de reproduzir com alguma fidelidade
o “outlook” e a atitude dos anos de guerra. Não transcreveu ipsis verbis as
falas das figuras que cita mas as que poderiam ter sido ditas em função do
ambiente em que foram pronunciadas, por onde circulavam convenções que
encontram também lugar nas tragédias de eurípides91.
a investigação de Finley demonstra a inequívoca influência da retórica
sobre a obra de tucídides e a plausibilidade do conteúdo dos debates, mas não
nos resolve totalmente o problema latente do conflito entre “o que foi verda-
deiramente dito” e “o que era conveniente” ou, por outras palavras, entre sub-
jetividade e objetividade, que é o da veracidade dos discursos.
Neste capítulo, as opiniões também se dividem. Há os que, como Wallace,
pura e categoricamente defendem que os discursos são uma completa invenção

91
«it seemed therefore to follow that although thucydides wrote some, perhaps most,
of this History after 404, he nevertheless reflects with some fidelity the outlook and attitude
of earlier years. one could not, to be sure, assert on such evidence that given speakers actu-
ally spoke as thucydides said they did, but it was at least clear that they might well have
spoken so, since the ideas were then so much in the air as to find expression in tragedy»
(Finley 1967: 55).
472 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

de tucídides, na forma e no conteúdo: «[...] speeches which they [the actors]


never spoke, speeches which are patently thucydidean both in matter and in
expression» (1964: 251). Há os que, como cogan, argumentam longamente não
tanto em favor da objetividade mas mais da sua historicidade. Para este autor,
pôr em causa a veracidade dos discursos é pôr em causa toda a obra de tucí-
dides, uma vez que o historiador selou os discursos com o mesmo selo de
garantia com que selou todas as outras partes da sua história.
inasmuch as thucydides presents the speeches simply as speeches, and gives no
indication that he has fabricated them in any material way, he has given to the
speeches the same guarantee of their historicity that he has given to every other
aspect of his history, every other event in his narrative [cogan 1981: xi].

Por conseguinte, se defendemos que tucídides forjou os discursos, devemos


admitir que forjou todos os restantes factos históricos que nos apresenta, o que,
em última análise, pode significar a destruição total da credibilidade de toda a
obra de tucídides. tal postura é classificada de niilista e inaceitável por cogan.
if we believe thucydides will invent speeches (yet attempt to pass them off as
genuine events and declarations), what is to have prevented him from inventing
events, battles, or the details of the progress of battles? to question the veracity
of the speeches has the ultimate consequence of undermining – if no utterly des-
troying – the credibility of all of thucydides’ history. such a nihilistic position is
unacceptable [cogan 1981: xi].

de facto, argumenta o mesmo, destruir a credibilidade da obra seria des-


truir a credibilidade da mais importante fonte de informação de que dispomos
acerca da guerra do Peloponeso. Por outro lado, não há provas que sustentem
a falsidade ou a falta de credibilidade do trabalho de tucídides. Pelo contrário,
cada indicação interna reforça a nossa crença na verdade fundamental do seu
relato. Na medida em que julgamos a narrativa dos factos essencialmente digna
de confiança, devemos manter a mesma confiança relativamente aos discursos,
pois tucídides declara ter procurado tratar ambos com o mesmo rigor.
a avaliar pelas palavras de tucídides, o problema dos discursos tem que
ver com akribeia (exatidão, precisão) e não com historicidade. se os discursos
fossem inventados, não faria grande sentido falar na dificuldade de os reprodu-
zir com exatidão. a akribeia só se torna motivo de preocupação quando se tenta
fazer um registo fiel do que foi proferido nas diversas ocasiões. daí que cogan
encontre nesta mostra de preocupação a prova da veracidade da sua história.
os que defendem a falsidade histórica dos discursos veem sobretudo os
seus aspetos retóricos, a sua apresentação e ornamentação estilística, e, negando
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 473

a sua historicidade, falam dos discursos como meios para exibir (epideixis) cau-
sas e princípios, abstraídos de um particular contexto histórico e enunciados em
termos universais. sugerem que tucídides utiliza os discursos para propor aná-
lises políticas gerais, quando a função do historiador é expor e explicar os
eventos na sua particularidade. cogan ataca esta interpretação dos discursos,
que designa de epidíctica (ibid.: xiv), sustentando que o que torna tucídides um
grande cientista político é justamente o facto de ele cumprir tão bem a sua mis-
são, preocupando-se mais com as particularidades da política do que com abs-
tratas formulações políticas.
com base na seletividade de tucídides – os acontecimentos que omitiu,
as prioridades que deu a uns em detrimento de outros – é possível, hoje em
dia, especular acerca dos princípios seletivos empregues pelo historiador relati-
vamente aos eventos da guerra e a partir daí inferir a sua interpretação da
guerra, ainda que essa especulação seja sempre incompleta devido à falta de
outros relatos alternativos da guerra do Peloponeso. Já no caso dos discursos a
realidade é outra. devem ter sido pronunciados milhares de discursos políticos
durante o tempo que durou a guerra, mas tucídides apenas transcreve vinte e
sete. mesmo sem conhecer os discursos que o historiador omitiu, cogan acre-
dita que tucídides selecionou «os mais representativos daqueles processos e
forças que ele sentiu serem o verdadeiro sentido da guerra» e os mais repre-
sentativos em «exibição e explicação» da matéria que compõe a sua história
(cogan 1981: xv). cogan acredita ainda que esta seleção é mais um argumento
a favor da autenticidade dos discursos (com tão grande quantidade de discursos,
tucídides não teria necessidade de inventar) e que o alto nível de seletividade
assegura que uma interpretação da informação neles contida e das razões para
a inclusão destes discursos em particular permite inferir os princípios de sele-
tividade que estruturam a composição da história composta por tucídides.
Brunt adota uma posição intermédia. dizer que se manteve o mais pró-
ximo possível do sentido geral do que foi realmente dito implica que teve
algum contacto com o real, logo, os discursos não serão uma invenção total.
Nuns casos, o historiador deu-nos o que terá recordado anos mais tarde e o que
achou apropriado (τὰ δέοντα). Noutros, deve ter-se dado o caso de o historiador
ter os discursos ainda frescos na sua memória. contudo, mesmo nesta situação,
não se pode evitar as parcialidades da memória. a alegação de Brunt resume-
-se em poucas linhas:
manny of the speeches seem plausible enough in their content, but even here can-
not be sure that they are historic; for in so far as thucydides’ inventions were dra-
matically true to the speaker and the occasion, we cannot hope to distinguish them
from “what was actually said”.
474 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

We can reasonably suppose that when the importance of a speech was immedia-
tely evident, he will have set down a version of it while recollection was still
fresh. in this category we may put most, if not all, of the speeches recorded on
the eve of the war or of the sicilian expedition. even here is memory might
unconsciously have selected those parts of a speech which he thought most
cogent, and he may have added or elaborated arguments which refleted his own
turn of mind. But in other cases the relevance of certain speeches to his theme
may dawned on him long after memory had faded [1993: 151].

Hornblower também considera que os discursos não podem ser tratados


nem como meras imposições de conveniência retórica nem, ingenuamente,
como sínteses ou amplificações de uma transcrição áudio do que foi realmente
dito. Lembremo-nos que é o próprio tucídides que nos alerta para a impossi-
bilidade de uma transposição fidedigna, prometendo apenas o sentido geral do
que foi dito. alguns detalhes circunstanciais que tucídides emprega em deter-
minados discursos, como os patronímicos, fazem-nos crer que a ficção não deve
ter sido tanta como muitas vezes se supõe. todavia, os argumentos a favor da
autenticidade e da falta de autenticidade total ou parcial dos discursos são
vários e têm sido uma preocupação constante dos estudiosos de tucídides
(Hornblower 1987: 52-65). demonstradas ficaram a seleção, compressão e
omissão a que os discursos foram sujeitos pelo autor, onde o desfavorecimento
de cléon e o favorecimento de Hermócrates de siracusa são exemplos comum-
mente apontados. No entanto, Hornblower não encontra argumentos suficiente-
mente convincentes da artificialidade dos discursos – «none of the arguments
for artificiality are so strong that we are forced to think wholly in terms of
‘what was appropriate’ rather than ‘what was really said’ (ibid.: 65) – pelo
que o melhor é concluir: era intenção de tucídides dar-nos um relato fidedigno,
mas confrontou-se com a necessidade de omitir, selecionar e concentrar e, por
isso, teve que se contentar com dar-nos o relato apropriado: «[...] thucydides’
aim in speeches, as in narrative, was to record truthfully – to give ‘what was
really said’; but again there was present an opposite and inconsistent aim, to
omit, select and concentrate, giving instead ‘what was appropriate’» (ibid.: 71).
crane, defendendo que, «estranhamente, os discursos são a única porção
da sua história na qual a “precisão” pode, num sentido, ser absoluta» (1996:
69), chama-nos a atenção para o papel que desempenhava à época de tucídides
a transmissão oral de discursos, onde as tradições orais estavam ainda extrema-
mente arreigadas e havia uma grande confiança na “spoken-word” (vide ibid.:
69-70).
como conclusão, parece-nos boa a síntese de Gomme (1954). Podemos
dizer que nos discursos intervêm as duas facetas do historiador enquanto artista
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 475

e cientista. alguns dos discursos recreados por tucídides serão fiéis à argumen-
tação real, não só porque ele próprio os terá ouvido mas porque a argumenta-
ção devia ser conhecida do público em geral e, a fazer fé no profissionalismo
confesso do historiador, acreditamos que o mesmo se tenha realmente empe-
nhado na recolha de informações. outros devem contar com uma margem
maior de arbitrariedade e originalidade, não só porque tucídides dificilmente os
terá ouvido, mas porque não seria fácil obter informações suficientes e seguras
sobre eles. Para ilustrar os dois extremos, tomemos dois exemplos. existem
provas de que os argumentos empregues por Péricles no seu primeiro discurso,
no final do livro i, exortando os seus compatriotas a manterem-se firmes e a
rejeitar o ultimato dos Peloponésios, são reais; sabe-se que Péricles os terá pro-
ferido em várias ocasiões e que, muito provavelmente, tucídides os ouviu ou,
mesmo que não os tivesse ouvido pessoalmente, não seria difícil ouvi-los de
terceiros. Já não podemos dizer o mesmo acerca dos discursos dos Plateienses
e dos tebanos, depois da rendição de Plateias, acerca dos quais não seria mais
difícil conseguir informações com alguma fidelidade. e mesmo que tivesse sido
informado acerca do tom e dos argumentos evocados, estaria sempre em melho-
res condições para reproduzir sensu latu o discurso de Péricles do que os destes
últimos. o discurso de Plateias entra mais facilmente naquela categoria que
aristóteles define como o provável (οἷον ἂν γένοιτο), e que define o poético
e o de Péricles adequa-se mais ao que realmente aconteceu (οἷον ἐγένετο), que
define o histórico. ainda assim, nenhum discurso é precisamente como aconte-
ceu (ὄπερ ἐγένετο), por muito que tucídides os introduza com τοιάδε ἔλεξεν,
como se citasse as palavras dos próprios oradores. se, por hipótese, tucídides
tivesse tido acesso aos registos escritos dos discursos, como têm atualmente os
historiadores, poderia ser mais fidedigno, mais exato, mais cientista, mais his-
toriador? sem dúvida que sim, mas isso não nos deve fazer esquecer que,
mesmo nessa situação ideal, ele se veria confrontado com um conjunto de
opções de caráter subjetivo, como, ademais, se veem confrontados os historia-
dores da atualidade: selecionar discursos, integral ou parcialmente, textual ou
indiretamente, de forma detalhada ou em síntese. selecionar e apresentar são
sempre atividades subjetivas, sujeitas que estão ao julgamento do próprio his-
toriador. selecionando e apresentando, tucídides está a obedecer às leis que
governam a escrita da história e, ao mesmo tempo, governam a arte. o trabalho
do historiador está sujeito às limitações espaciotemporais; e não pode ser de
outro modo; ninguém pode escrever fora do mundo. o que se lhe pede é que
seja inteligente, isto é, que não seja ingénuo acerca da sua época e das suas
preferências; que se empenhe a fundo na procura de provas documentais que
476 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

corroborarem as suas interpretações dos factos; que vise como única meta irre-
dutível a verdade; por fim, mas não menos importante, que tenha competências
de escrita.

6. TUcÍDiDES, ciENTiSTA OU ARTiSTA? ENTRE OBJETiViDADE E


SUBJETiViDADE

os discursos são um bom exemplo da duplicidade que afetou tucídides e


todos os historiadores de todos os tempos: cientista e artista, objetivo e subje-
tivo.
como já tivemos oportunidade de mencionar, na introdução a este estudo,
a apreciação sobre tucídides alterna muito entre o elogio e a censura. mesmo
na antiguidade era bastante admirado por salústio e foi severamente criticado
por dionísio de Halicarnasso, que lhe dedicou um tratado, De Thucydide. o seu
momento de maior glória foi a sua adoção como modelo da história metódica.
todavia, logo a partir do dealbar do século XX, abrem-se duas correntes: uma,
iniciada por cornford, retomada por Glen Bowersock (1965), por Parry (1969,
1972), Grant (1974), Loraux (1980, 1986), Hunter (1973), acentua o escritor em
detrimento do sábio, o pathos em detrimento da objetividade, fundando a ver-
dade tucididiana sobre a singularidade de uma atitude eminentemente subjetiva;
e outra, cujo representante máximo no século XX é cochrane (1929), continua-
dor de uma tradição iniciada pelos historiadores positivistas do século XiX, que
exalta sobretudo o cientista, a sua objetividade, fiabilidade e imparcialidade. o
livro que Francis cornford publica em 1907, Thucydides Mythistoricus, é ino-
vador e reacionário, na medida em que rompe com a convicção, iniciada no
século XiX, de tucídides como o sagrado defensor da objetividade e do rigor.
cornford chama a atenção para o lado essencialmente literário e pouco fiável
da História da Guerra do Peloponeso, dizendo, entre outras coisas, que o his-
toriador grego se apoiou em Ésquilo e que de cientista não tem nada. como
contrarreação a esta tese surge em 1929 o estudo de cochrane, Thucydides and
the science of history, onde faz a apologia de um tucídides cientista, cujo tra-
balho é comparável ao de Hipócrates na medicina, na medida em que a des-
crição da peste se faz com a mesma atitude, o mesmo tipo de análise, até a
mesma terminologia técnica92.

92
«the true is that thucydides had the assured faith of a scientist because he was a
scientist, because, in fact, he was inspired by contact with a department of positive science
which in his day had succeeded in extricating itself from the coils of cosmology, and which
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 477

de facto, cada um destes autores – a quem podem ser imputadas falhas


de análise mas também justeza – representa uma das facetas de tucídides.
a maioria dos estudiosos do historiador tem conciliado estas duas facetas, numa
harmonização do artista e do cientista, da subjetividade e da objetividade.
É esta conciliação que nos importa aqui realçar, porquanto ela é o fado de todo
o historiador sério. da nossa leitura de ricœur ficou claro que nenhum histo-
riador digno desse nome é totalmente objetivo e nenhum é totalmente subjetivo.
se outorgamos o termo “cientista” a tucídides, não é com o mesmo valor
semântico que este granjeou nos séculos XiX e XX, nem tão pouco poderemos
colocar tucídides em pé de igualdade com um historiador profissional do
século XX, que lida com notas de rodapé reguladas por precisas convenções de
citação, bibliografia, fontes primárias e secundárias. além disso, tucídides está
muito longe da febre historicista, positivista, progressista e profissional da
escola metódica, que, em finais do século XiX, impulsionada pelo contributo
de ciências auxiliares como a antropologia, a filologia comparada, a numismá-
tica, a epigrafia, a paleografia e a diplomática, revolucionou a história como
ciência. mas também está distante da história estrutural e sincrónica do século
XX – ainda que essa diferença possa ser esbatida, mas nunca completamente
anulada (Hunter 1982). de igual modo, a sua tendência para generalizar não
pode ser confundida com o modelo nomológico-dedutivo do neopositivismo,
por muito que alguns especialistas entendam as suas κτῆμά τε ἐς αἰεὶ como leis
universais. mesmo que tucídides andasse atrás de leis científicas, os métodos
de generalização de um e de outros é incomparável. estatística e métodos quan-
titativos são termos tão estranhos a tucídides como televisão e foguetão.
Quando falamos de objetividade e subjetividade, no contexto grego,
impõem-se cautelas. Hornblower explica que não há notícia, até à Poética de
aristóteles, de que estas duas realidades devessem ser separadas:

by means of a method adequate to the most rigid modern demands was already advancing
to conclusions which were recognized as valid and immensely significant for human life. on
the other hand, biological and medical science deals directly with humanity in its normal and
pathological conditions. and, in the second half of the fifth century, biology and medicine
were already established as fruitful sciences in the hands of the Hippocratic school. the intel-
lectual and spiritual affiliations of thucydides were with this school. [...] specifically, how-
ever, his inspiration comes from Hippocrates, along with the principles of method which
determined the character of his work. the Histories of thucydides represent an attempt to
apply to the study of social life the methods which Hippocrates employed in art of healing,
and constitute an exact parallel to the attempts of modern scientific historians to apply evo-
lutionary canons of interpretation derived from darwinian science» (cochrane 1929: 3).
478 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

to the objection that thucydides cannot have been such a fool as to utter such
a flagrant contradiction, we can reply that the contradiction is far from flagrant:
it requires language like ‘objective’ and ‘subjective’, and more important a cons-
cious distinction between the historian as recorder of fact, on the one hand, and
the writer of the dramatically plausible on the other, which as we have seen is a
distinction not formulated until aristotle – though thucydides’ own admirable
practice may have contributed to its formulation [1987: 46].

o mesmo deteta em tucídides uma tensão entre totalidade e seletividade,


entre o desejo de registar todas as ações (erga) particulares da guerra e a ten-
dência para omitir e selecionar até ao extremo, com o intuito de extrair daí as
implicações gerais dos acontecimentos. temos pois uma espécie de tucídides
repórter, que grava tudo, e uma espécie de tucídides sociólogo, este último
mais interessado nos padrões gerais que regem a sociedade humana; consciente,
porém, de que os sintomas variam consoante os casos particulares. as coisas
que omite são normalmente tão cuidadosamente escolhidas como as que sele-
ciona (ibid.: 42). o exemplo mais comum, amplamente analisado por crane
(1996), é a omissão de mulheres93. Hornblower acrescenta a ausência de
embriagados. tucídides oscila, assim, entre a tendência para narrar de forma
objetiva e, por vezes, excessivamente pormenorizada, todos os factos que lhe
pareçam dignos de menção, e a tendência subjetiva para selecionar e estilizar
incidentes e figuras chave. Hornblower (ibid.: 43) chama-lhe «flutuação entre
subjetividade massiva e totalidade massiva, ou talvez entre extrema subjetivi-
dade e extrema objetividade», encontrando na obra de tucídides uma contradi-
ção entre dois programas distintos, o subjetivo e o objetivo, entre o desejo de
selecionar e construir paradigmas e o desejo de registar todos os factos. cléon
é composto como um demagogo e Hypérbolo ignorado. a guerra civil (stasis)
em corcira é descrita com rigor, e nenhuma outra guerra civil posterior recebe
a mesma atenção da parte do historiador ateniense. o cerco de Plateias, irre-
levante em termos militares, é um exemplo do que pode acontecer, a saber,
uma ilustração daquilo de que esparta libertadora era realmente capaz. do
mesmo modo, a Pentecontaeteia é uma série altamente seletiva de exemplos de
agressões provocadas por atenas. Hornblower vê nesta faceta de tucídides um
poeta no sentido aristotélico do termo: «[...] the thucydides who treated dema-
gogues and stasis so selectively was exploring general phenomena and sear-
ching for ‘general ideas’» (ibid.: 42).

93
crane (1996) denuncia outras exclusões vocabulares na História da Guerra do Pelo-
poneso, como laços de parentesco, oikos, genos, polis.
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 479

romilly, no seu ensaio sobre L’objectivité dans l’historiographie grecque


(2005: 31-40) chama-nos a atenção para as nuances entre o conceito de obje-
tividade da historiografia moderna e o conceito de objetividade da historiografia
grega. apesar de a objetividade constituir uma grande preocupação do raciona-
lismo grego, estes acabam por não conseguir ultrapassar um conjunto de difi-
culdades – que se prendem com a falta de meios de informação ao seu dispor –
realizando um conceito de objetividade muito mais vago e condescendente que
o nosso. Basta ver a liberdade com que tucídides transcreve os discursos.
atualmente, ninguém ousaria transcrever discursos a não ser a partir de um
registo áudio real ou a partir de documentos originais. os discursos de tucí-
dides são um exemplo do sacrifício da objetividade material à verdade do con-
junto, porque, trabalhando como processo explicativo que põe em relevo o
parentesco dos políticos com determinados acontecimentos, eles resultam de
uma construção subjetiva do historiador. sem embargo, como contrapartida à
falta de objetividade dos discursos pode-se citar aquele extraordinário testemu-
nho da objetividade, que se vivia na pólis democrática de atenas – basta recor-
dar as palavras de Hannah arendt. romilly diz ainda que o que se verifica nos
discursos pode-se estender a todo o texto histórico. se o discurso resulta de
uma análise ou construção subjetiva, ele liga-se a toda uma interpretação da
verdade que se traduzirá igualmente na escolha de factos a relatar ou a omitir
e na explicação do seu sucesso ou insucesso.
L’historiographie grecque visait donc délibérément à une vérité qui était fort éloig-
née de la simple objectivité. cette vérité était analyse; elle était interprétation; elle
était pensée. et le souci principal des auteurs n’était pas de raconter mais d’ex-
pliquer [ibid.: 35-36].

romilly talvez não estivesse desperta para o assunto, mas tudo o que diz
neste excerto sobre as limitações da historiografia grega podia aplicar-se à his-
toriografia moderna. Neste aspeto em concreto, a sua objetividade não era dife-
rente da atual, pois toda a historiografia é sempre análise, interpretação e pen-
samento. um historiador não cessa de escolher. Quando define o seu domínio,
delimita a sua pesquisa, informa-se, escolhe. escolhe também entre os dados,
mesmo incompletos, que reuniu, entre os documentos, mesmo limitados, que
conheceu e reteve. a verdadeira historiografia é aquela que procura explicar, e
isso herdámo-lo dos Gregos: sem explicação não há história, há crónica. Não
é aí que tucídides fracassa. o mesmo tom acusatório se encontra nos seguintes
termos:
480 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

Pour des Grecs, l’information de l’historien n’est pas simplement contrôle entre
vrai et le faux: elle est déjà intelligence et tri entre ce qui compte et ce qui ne
compte pas. Les efforts de l’enquêteur impliquent une perpétuelle activité d’esprit,
une comparaison, un choix, une mise en ordre intelligente [ibid.: 33].

o que romilly aqui diz dos historiadores gregos se pode dizer de todos os his-
toriadores, de todos os tempos, como ficou demonstrado das reflexões de
ricœur. a partir do momento em que o historiador dirige uma questão ao pas-
sado, já está a limitar a sua pesquisa, a orientá-la num certo sentido, a sele-
cionar, a omitir, a racionalizar.
se, de facto, havia um distanciamento dos gregos relativamente à objeti-
vidade, ele não implicava nenhum compromisso ideológico, como sucederá pos-
teriormente com toda a historiografia até à atualidade. se há coisa que se deve
reconhecer aos historiadores gregos, é a sua isenção ideológica – «mais le pro-
pre de l’historiographie grecque est que cette distance par rapport à l’objectivité
n’y implique aucun engagement doctrinal» (ibid.: 36).
também de parcialidade é injusto acusar os historiadores gregos:
certes, nous n’avons pas beaucoup d’éléments pour critiquer les historiens grecs;
et leurs fautes sont peut-être beaucoup plus graves qu’il n’y paraît. mais on peut
remarquer que leurs critiques mutuelles (jusqu’à Plutarque) ne visent pas en géné-
ral la partialité ni la règle du sine ira aut studio. comme pour la philosophie, le
problème essentiel n’est donc pas là: il est dans la forme et le but qu’ils assignent
à l’histoire [ibid.: 34].

Há um ponto em que romilly (ibid.) e Hunter (1973) estão de acordo, e


que põe realmente em causa a objetividade tucididiana, sendo um bom exemplo
daquela objetividade grega menos escrupulosa ou mais condescendente. ambas
as autoras concordam que, em tucídides, os discursos se organizam em siste-
mas que se opõem, se correspondem, se medem uns pelos outros. além do
mais, estes discursos estão estreitamente ligados com a narração, cujas peripé-
cias eles aclaram de antemão. cada discurso prevê, bem ou mal; e é a narração
que vem dizer qual das previsões estava correta. «Par là, le récit se transforme
en un ensemble intelligible, qui laisse au lecteur un impression de nécessité. La
raison organise et modèle l’objet de l’histoire» (romilly 2005: 37). a inteligi-
bilidade do discurso histórico assim estabelecida é vista como um atentado à
objetividade e à verdade. Por um lado, gera-se a sensação de que a história é
inteligível e que os acontecimentos podem ser compreendidos em função de um
cálculo racional. em boa verdade, todo o discurso histórico se tenta apresentar
como racional e impõe determinada ordem. o discurso histórico é por natureza
coerente. cabe à literatura e à arte em geral brincar com as incoerências da
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 481

vida e da história. excluído deve ficar o paradigma da ligação calculista pre-


vidente entre discursos e narração. mas não porque criem a ideia inflexível de
necessidade – estas previsões não têm caráter de lei. Nem todos os factos com-
provam ou infirmam as previsões feitas, há lugar para a imprevisibilidade, para
o acaso (tyche), como já antes demonstrámos. censurável é este artifício de
tucídides: empresta às suas personagens previsões ex eventu que eles não fize-
ram e que modificam a nossa perceção da realidade histórica. Por isso, Virginia
Hunter deita por terra qualquer tentativa de ver em tucídides um historiador
objetivo, se por isso entendermos alguém que não deixa a sua perspetiva con-
taminar a apresentação dos factos:
Factual accuracy and objectivity have long been considered the major qualities of
thucydides’ History. this is a one-sided, if not totally distorted view of the his-
torian and his method of composition. [….] thucydides “facts” cannot be consi-
dered in isolation from the schema or pattern which informs them. “truth” then
is not just the erga but the erga (and the logoi too) as they conform to a coherent
and meaningful pattern. in other words more important than the facts themselves
are the preconceptions about history, the historical process, and the purpose of the
historian with which thucydides approached his task of recording “the war bet-
ween the Peloponnesians and the athenians” (1.1.1) [Hunter 1973: 177].

Nesse sentido, tucídides é o menos objetivo dos historiadores.


What emerges most clearly from our analysis of the historiographic methods thu-
cydides used to achieve this purpose is the intensity and artistic skill of the man,
and the almost architectonic quality of his mind, which grasped in a single vision
not just the war which he claimed to recorded but all of human history, as it
were. [...] We was thus no scientist in the 19th century sense, but rather a scientist
enquirer, even as Herodotus was before him. and if objective means not to allow
one’s own outlook, philosophical or otherwise to obtrude, then thucydides was
surely the least objective of historians [ibid.: 183, 184].

romilly, a nosso ver, bem, deita um pouco de água nesta fervura levan-
tada por Hunter: «cela est vrai; et pourtant je ne saurais, cette fois encore,
prendre la chose au tragique. thucydide a en effet plus de rigueur qu’un tel
résumé ne ferait croire» (2005: 38). Não escamoteia de modo algum o artifício
inventado por tucídides, sinal mais visível da sua interferência, apenas o sua-
viza, explicando que ele assenta numa visão muito particularmente grega da
natureza humana:
Pourtant, cette prévision, à laquelle se livrent ses orateurs, et ces vraisemblances,
qu’il tente de mettre en lumière, cachent une autre originalité, d’une portée plus
482 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

grande, et peut-être, pour nous, plus inquiétante. en effet, les prévisions des ora-
teurs se fondent sur l’idée d’une constance de la nature humaine, sur des compor-
tements sujets à se reproduire, soit en vertu de la logique du raisonnement qui les
inspire, soit du fait de l’entraînement qu’exercent sur l’homme des émotions mal
contrôlées et subies de façon passive. Les arguments de vraisemblance supposent
une certaine universalité. or ces prévisions des orateurs, par leur rôle dans le récit,
reçoivent à chaque fois le double contrôle d’une prévision opposé et d’une mise
à l’épreuve concrète: elles deviennent donc à leur tour des leçons dans l’art de
prévoir. et cette orientation nous révèle l’existence, derrière de procédé, d’un troi-
sième postulat sur l’histoire, qui est que certains traits s’y répètent [ibid.: 39].

a objetividade grega existia, apenas tem que ser entendida dentro da visão
que os Gregos tinham do devir humano, baseado no conflito entre doxa e epis-
teme, particular e geral: «L’objectivité grecque existe, mais, même en histoire,
elle s’atteint par l’esprit et se réfère à l’universel» (ibid.: 40). os Gregos não
viam a história como algo sempre em mutação em direção ao progresso. de um
ponto de vista prático, a visão grega do devir humano e da história convida a
uma purga das singularidades e das particularidades para reter apenas o geral.
o objeto da história é, pois, a ideia ou forma no sentido platónico do termo.
a história deve procurar o verdadeiro para lá da aparência e o eterno para lá
do mutável.
Posto isto, diremos que, se falamos de tucídides cientista, é no sentido de
alguma akribeia que não podemos deixar de reconhecer: rigor, precisão, impar-
cialidade, objetividade. Falamos de alguém que imita um modelo de linguagem
técnica ou que, pelo menos, se reclamava de objetiva e neutra para escrever a
sua história; alguém que, eventualmente, recorre a métodos de leitura importa-
dos das ciências do seu tempo; sobretudo, alguém que rompe, definitivamente,
com a explicação mítico-religiosa ou a racionaliza, procurando sempre razões
humanas e naturais para os acontecimentos; alguém que estabelece uma episte-
mologia, um programa metodológico, e orienta o seu trabalho por critérios de
verdade; em suma, alguém que estabelece como prioridade separar história de
ficção. Já o dissemos, em tucídides a prática fica consideravelmente aquém da
ambiciosa (mas ainda válida) teoria. Por isso, se falamos de tucídides artista,
falamos do oposto de todas estas características enunciadas. do que fomos
dizendo sobre tucídides não restam dúvidas que nele se conjugam as facetas do
artista e do cientista, da subjetividade e da objetividade, da parcialidade e da
imparcialidade, em suma, da história e da ficção. É assim que o veem muitos
dos seus conhecedores. cornford teve o mérito de assinalar fortemente os traços
que aproximam a história de tucídides da tragédia, mas não foi capaz de per-
ceber, como Lamb (1914), Finley (1942), Gomme (1954), romilly (1956, 86)
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 483

que «estes traços podem aliar-se com a exatidão e a preocupação pela ver-
dade», ou que é um erro supor que o recurso literário é incompatível com o
relato verdadeiro. Pelo contrário, a forma literária pode ser uma forma estili-
zada de apresentar a verdade94. esta é no fundo a tese maior que aqui preten-
demos expor.
onde o conflito entre objetividade e subjetividade se torna mais evidente
é na sentença programática relativa aos discursos. aí, o historiador ateniense
tenta conciliar em si duas tendências: uma objetiva, o historiador que regista “o
que foi verdadeiramente dito” (ἀληθῶς λεχθέντων); outra subjetiva, o escritor
de um drama verosímil que regista “o que poderia ter sido dito” (τὰ δέοντα).
ainda que admitamos, com Hornblower, que tucídides não tinha consciência
desta diferença entre subjetividade e objetividade, nem tão pouco conhecia os
termos que aristóteles mais tarde categorizará, podemos ao menos partir das
palavras do próprio tucídides para dizer que ele tinha consciência da diferença
entre o seu trabalho (que nós designamos de história) e τὸ μυθῶδες, verdade
e retórica, akribeia e poesia. Para chegar a esta conclusão, não é preciso mais
do que reler o seu programa metodológico. Por um lado, manifesta-se cético
relativamente aos artistas: os poetas que compõem hinos (ποιηταὶ ὑμνήκασι)
acerca de acontecimentos do passado que não conhecem e que engrandecem
embelezando-os (τὸ μεῖζον κοσμοῦντες μᾶλλον); os logógrafos (λογογράφοι)
que procuram mais agradar ao auditório com τὸ μυθῶδες do que dizer a
verdade (προσαγωγότερον τῇ ἀκροάσει ἢ ἀληθέστερον); os bem-falantes (εὖ
εἰπόντων) que enganam os ouvintes com belas palavras, persuadindo-os das
piores ideias (iii. 38). contra este comportamento artístico, tucídides adota
uma atitude objetiva de cientista: é seu intento que ninguém fique mal infor-
mado (οὐχ ἁμαρτάνοι), por isso procura a verdade (ἡ ζήτησις τῆς ἀληθείας);
faz investigação (ηὑρῆσθαι) do passado com base nos indícios mais evidentes
(ἐκ τῶν ἐπιφανεστάτων σημείων); e do presente com base no que o próprio
presenciou (αὐτὸς παρῆν) ou no que procura saber junto de terceiros (παρὰ τῶν
ἄλλων), com o máximo de rigor possível (ὅσον δυνατὸν ἀκριβείᾳ); porque da
tendenciosidade dos testemunhos e da parcialidade da memória desconfia
(ἑκατέρων τις εὐνοίας ἢ μνήμης); tem o cuidado de narrar cada acontecimento
por ordem cronológica e datados por estações (γέγραπται δὲ ἑξῆς ὡς ἕκαστα
ἐγίγνετο κατὰ θέρος καὶ χειμῶνα); revela meticulosidade científica na descrição

94
cf. Hornblower 1987, 79: «With thucydides, as with Herodotus, it is a mistake to
suppose that a literary device is somehow inconsistent with a truthful account; it may rather
be a stylized way of presenting what is true».
484 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

de alguns acontecimentos como a peste (ἐγὼ δὲ οἷόν τε ἐγίγνετο λέξω, καὶ ἀφ᾽
ὧν ἄν τις σκοπῶν); revela atitude objetiva ao querer apagar-se da narrativa e
deixar os acontecimentos narrarem-se por si próprios, ou serem apresentados
por terceiros em discurso direto; por fim, guarda imparcialidade, não favore-
cendo ou desfavorecendo nem espartanos nem atenienses nem quaisquer
outros; resistindo mesmo à tentação de falar de si, enquanto interveniente na
guerra, ou aproveitar para censurar os responsáveis pelo seu desaire. Por outro
lado, tucídides, ele mesmo, admite não ser rigoroso na transcrição dos discur-
sos (χαλεπὸν τὴν ἀκρίβειαν αὐτὴν τῶν λεχθέντων διαμνημονεῦσαι); e manifesta
uma clara contradição entre objetividade e subjetividade – τῆς ξυμπάσης
γνώμης τῶν ἀληθῶς λεχθέντων; ao mesmo tempo que tenta apagar-se da nar-
rativa, deixa bem evidente a sua marca autoral, ao autoenunciar-se em nomina-
tivo (Θουκυδίδης Ἀθηναῖος ξυνέγραψε); se demonstra uma imparcialidade
exemplar com cada um dos lados em conflito, nota-se parcialidade relativa-
mente a determinadas figuras – excesso de louvor a Péricles, excesso de cen-
sura a cléon; a sua escrita, imitadora do modelo documental, que reclama neu-
tralidade e objetividade, afinal, tem subjacente imensas influências de modelos
artísticos como a tragédia, a epopeia e a retórica; seleciona, concentra e omite
– omite factos, omite causas, omite figuras, omite fontes. relativamente a estes
dois últimos aspetos, salvaguarde-se já que nenhum historiador escreve sem
influências; pois que a escrita já é em si uma arte, e todos os historiadores
selecionam, condensam e omitem informação.
Nada disto nos deve escandalizar. desde a antiguidade que tucídides era
visto como um artista cheio de pathos, conciliando em si as duas facetas de
artista e cientista. connor (1977, in rusten 2009: 29-43) dá-nos conta do sur-
gimento de um novo tucídides, a partir da década de sessenta do século XX,
muito influenciado por uma onda de criticismo retórico que acentua de sobre-
maneira o envolvimento emocional do escritor nos factos que relata em detri-
mento da precisão, da neutralidade, do distanciamento.
to be sure, some of the new wave of thucydidean criticism may have more new
rhetoric than new perception. thucydides the artist is no new discovery; the
ancients often stressed the quality of pathos in his work; and certainly many clas-
sicists in the 50s and early 60s were attracted to thucydides by the feeling of his
superb mastery of his material and the intense, if largely explicable, power of his
work [connor 1977, in rusten 2009: 31].

a propósito, é marcante o ensaio de Parry, Thucydides’ historical perspec-


tive (1972), que se reconhece devedor do trabalho de cornford:
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 485

thucydides’ History of the Peloponnesian War is an intensely personal and a tra-


gic work. a careful reader feels this from the very first sentence: ‘… i began writ-
ing the History from the moment the war broke out’; [...] its intensity of feeling
everywhere reminds us of thucydides personal involvement. [...] the sense of the
tragic, which exists as a fine suffusion in parts of Herodotus’ work, dominates the
whole History of thucydides. this sense of tragic is something quite different
from the clinical objectivity which has been so often, and often so thoughtlessly,
ascribed to him» [ibid.: 47-48].

conhecemos também as opiniões de Hunter, em Thucydides the Artflul


Reporter, e de Loraux, em Thucydide n’est pas un collègue e Thucydide a écrit
la Guerre du Péloponnèse. centrando-se, é verdade, noutros aspetos, Wallace e
Grant acabam por afinar pelo mesmo diapasão. Vale a pena enunciar, sucinta-
mente, o programa de ambos.
Wallace (1964) foi um dos pioneiros, depois de cornford, a assumir uma
postura crítica para com o trabalho de tucídides, apontando-lhe omissões, a sua
fixação exclusiva no evento militar, o caráter dramático da obra:
[...] it is hard to read the History of the Peloponnesian War without feeling that
one is reading the tragedy of athens. if the book is history, it is certainly also
literature [...]
i have no doubt that the study of the fifth-century inscriptions, and of thucydides’
own text, will persuade any careful student that while his facts are extremely
accurate as far as they go, his omissions are shocking and incredible, that he has
recorded only that seemed to him important on some principle quite different from
any which an historian would adopt to-day, for it involves the omission for almost
everything not directly connected with atual military events. curiously enough this
military fixation is not incompatible with a strong sense of drama, and i think that
too little attention has been paid to cornford’s view that thucydides has select
and arranged his facts to present what every reader recognizes as The Tragedy of
Athens [ibid.: 256 e 259].

algumas lacunas que Wallace imputa a tucídides são fruto da visão his-
tórica do seu tempo. Não se pode pedir a tucídides a mesma consciência do
valor das causas económicas de um historiador do século XX; o objeto político-
-militar foi a sua opção, por isso, tentou manter-se o mais próximo possível da
sua escolha95. em todo o caso, um historiador sempre terá que selecionar e

95
sobre os fatores económicos na história de tucídides, veja-se romilly 2005: 109-
114, que refuta algumas das críticas que apontam para a total negligência das causas econó-
micas na História de tucídides.
486 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

omitir, jamais poderá oferecer um relato completo de todas as causas e de


todos os acontecimentos. ainda assim, Wallace não consegue deixar de reco-
nhecer o lado científico de tucídides: «i have no doubt that cochrane is per-
fectly right in considering thucydides a natural scientist in his recording of
facts, and a political scientist in his interpretation of them» (ibid.: 259-260). No
fim de contas, mais vale chamar-lhe cientista e tragediógrafo do que histo-
riador:
thucydides took greater pains to discover the truth than any other ancient histo-
rian (except, no doubt, Polybios), and infinitely greater pains to set that truth
clearly and convincingly before his readers. But he has a better right, i think, to
be called a true scientist, a great tragedian, and a brilliant writer, than to be called,
quite simply and strictly, an historian [ibid.: 261].

Grant é ainda mais acutilante e radical nas críticas que faz a tucídides:
[...] it is generally recognized that thucydides was a great artist. it does not seem
so certain, however, that the prominence of the artist in thucydides as compared
with the scientist has been sufficiently recognized, and so i propose, in the first
part of this paper to consider briefly some aspects of his work [...] which seem
more consonant with the artistic than the scientific, in the hope that his may con-
tribute something to our knowledge of thucydides and his work.
We may, to start, say that the artist is intensely, emotionally involve in his subject,
whereas the scientist is expected to show a more objective coolness and restraint
[id. 1974: 83].

com este programa em mente, Grant começa por sublinhar a proeminên-


cia de superlativos e hipérboles no trabalho de tucídides, marca do seu envol-
vimento emocional, que o desqualifica como cientista. apetece perguntar a
Grant: a) o que é que entende por uma escrita “cool” e “restraint”; b) em que
é que isso favorece o historiador ou torna o relato mais fiel e científico, c) em
se tratando de factos tão violentos e marcantes do ponto de vista físico, emo-
cional e psicológico, qual o estilo de escrita mais apropriado, “cool” ou “emo-
tionally intense”? Neste sentido, será útil relembrar o episódio da notícia sobre
a guerra do Vietname, partilhado por connor na introdução ao estudo de Thu-
cydides, que o fez reconsiderar a sua opinião sobre objetividade e subjetividade
na obra do historiador: «But above all it was the shattering experience of the
Vietnam War that made me reconsider the Histories» (1984: 7). Por muito que
um jornalista ou historiador prometa neutralidade, objetividade, imparcialidade,
distanciamento, os factos são de tal modo dramáticos que nem precisam da
emoção ou comoção do escritor. ainda assim, porque este terá necessariamente
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 487

de selecionar informação, organizá-la e apresentá-la de uma determinada


maneira, acaba por dar-lhes o seu cunho pessoal. dois repórteres de guerra não
relatam da mesma forma um mesmo acontecimento. o texto veicula sempre, de
modo implícito ou explícito, um julgamento moral que atinge o leitor. se for
implícito, como o de tucídides e o do jornalista citado por connor, o impacto
sobre o leitor é maior do que se fosse explícito. Por conseguinte, pode con-
cluir-se com connor que a «objetividade é uma meta inalcançável para o his-
toriador, mas um meio legítimo de ajudar o leitor a compreender os aconteci-
mentos narrados» (ibid.: 8). depois de perceber isto, connor pode olhar para
a História de tucídides de uma nova perspetiva, exatamente a mesma que nós
aqui tentamos ter:
as i tried to test this new approach to thucydides, i was no longer troubled by
the feeling that there was something wrong in using objectivity as an authorial
stance rather than as a principle or goal. it now became possible to give passages
their full emotional force and to recognize the role of suffering in the work. i
could read thucydides with an understanding and a fullness of response that hit-
herto had seemed impossible [ibid.].

stahl, por sua vez, diz que reconhecer a subjetividade da história tucidi-
diana – e de toda e qualquer produção historiográfica – permite-nos redescobrir
e apreciar mais intensamente os modos como tucídides seleciona e apresenta
os factos.
mere narration of any set of historical facts already implies a subjective element
(because presentation includes judgment, evaluation, selection, in short: interpreta-
tion) – to recognize, i say, the inherent subjective character of any historical nar-
ration at the same time allows us, in this field too, to rediscover and appreciate
more fully the categories which thucydides applied for selecting and presenting
events [apud cogan 1981: xv].

dos ensaios “post-modernistas” citados por connor no seu artigo resultou


que o discreto historiador científico, cuja principal característica era o frio dis-
tanciamento e cujo objetivo final era a “objetividade”, acaba substituído por um
apaixonado e comprometido escritor, tendo começado a sua “contenção senti-
mental e ideológica” a ser vista como “quase alarmante” por alguns escritores.
desculpa-se as suas faltas de historiador e exalta-se as suas virtudes de filósofo
político e de artista literário. assim, tucídides passa de modelo de uma histo-
riografia científica a crítico desta atitude científica para com a história. eis a
razão do famoso dístico, A Post-Modernist Thucydides: «the base failures of the
historian become the golden nobility of the artist» (connor 1977: in rusten
488 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

2009: 33). connor termina o seu ensaio com estas significativas palavras que
tomamos como guia: «as we open our eyes wider it may be possible to behold
in thucydides the fusion of an historian of integrity with an artist of profound
intensity» (ibid.: 42).
a fusão entre o “historiador íntegro” e o “artista de profunda intensidade”
é uma característica chave para a nossa leitura de tucídides e para a tese que
aqui advogamos.

6.1.  O historiador íntegro e o artista intenso

É possível e legítimo, na esteira de cornford, apontar algumas semelhan-


ças entre a obra do historiador grego e o género trágico. Hornblower (1987)
observa que alguns especialistas têm seguido essa via; fazem-no, porém, de
forma mais rigorosa que cornford. É preciso verificar antes de mais se é tucí-
dides o devedor e de que forma pode ele ter sido influenciado. Na verdade,
tucídides e os tragediógrafos têm em comum o facto de serem influenciados
pelo género épico. tucídides é influenciado por Heródoto, o mais homérico dos
prosadores. a relação de tucídides com a poesia, especialmente com a tragédia
e a epopeia deve vir, essencialmente, por intermédio de Heródoto, também ele
um historiador trágico. a própria escolha de uma grande guerra para tema cen-
tral da sua obra vai ao encontro das opções de Heródoto e Homero96.
de um modo geral, podemos dizer que os agentes humanos de tucídides
e de Homero habitam um mundo de sofrimento em grande escala, levados à
perdição pela fortuna e pelo orgulho. mas isso não nos deve espantar, pois os
valores homéricos impregnavam a cultura grega do século V, daí que seja nor-
malíssimo que o historiador grego seja tão influenciado por eles como os res-
tantes escritores do seu tempo.
Não foram só os valores da epopeia homérica que influenciaram tucídi-
des, também a própria forma de apresentar o seu material, que vai para além

96
crane observa que tucídides acaba por imitar muitos dos clichés da tradição poética
de Homero e Hesíodo que logo no início da obra se propõe ultrapassar. «Like the poets
whose work he seeks to transcend, thucydides thus claims that he too will confer immortality
upon his subject, that his subject matter is grander, that he avoids the favoritism of Homeric
poetry, and that he, unlike the poets and prophets, truly does offer his audience an under-
standing of the past as well as the future. the Peloponnesian War subtly claims to have been
all that the trojan expedition was not. thucydides replaces Homer as the true giver of undy-
ing fame» (1996: 215).
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 489

dos empréstimos linguísticos e que Hornblower sintetiza no conceito de simpli-


city (1987: 114) referindo-se, de modo particular, ao uso de palavras quotidia-
nas em determinados contextos. eurípides é reconhecidamente o maior especia-
lista da antiguidade na exploração do poder devastador da linguagem corrente
em contextos apropriados. tucídides não é conhecido por recorrer a essa estra-
tégia. todavia, Hornblower demonstra o quanto o historiador grego usa essa
técnica euripidiana em contextos de pathos: «Nevertheless i think that some of
thucydides’ best effects are the product of this ‘euripidean’ device of using
ordinary language where the context invests it with special pathos» (ibid.: 115).
um exemplo elucidativo encontra-se no final do livro Vii, quando, para
exprimir a desastrosa expedição à sicília, o historiador diz literalmente isto:
«dos muitos, poucos foram aqueles que regressaram a casa» (ὀλίγοι ἀπὸ
πολλῶν ἐπ᾽ οἴκου ἀπενόστησαν [Vii. 87. 6]). o verbo empregue para dizer
“regressaram” (ἀπενόστησαν) é homérico, e aparece raramente na tragédia e na
prosa. Hornblower repara, sobretudo, na combinação da expressão coloquial
“poucos dos muitos” com o erudito ἀπενόστησαν, que a seu ver pode querer
sugerir os sofrimentos de ulisses na sua viagem de regresso (nostos) a ítaca.
a expressão “poucos de muitos” é usada também nos livros i e iii para des-
crever o desastre egípcio e a derrota dos ambraciotas.
a descrição da derrota dos coríntios em mégara, incluída na Pentecon-
taeteia, é um outro exemplo de pathos conseguido através de uma linguagem
desconcertantemente simples, podendo ser considerado um exemplo elucidativo
de “akribeia trágica”. Neste passo, a contenção da descrição é uma marca
homérica.
Não só com a epopeia é possível estabelecer pontos de contacto; há
influências claras da tragédia na obra do historiador grego. a forma como está
construído o diálogo entre os mélios e os atenienses (V. 87-111) lembra a fór-
mula que na tragédia é conhecida como stichomythia, que consiste no jogo
de pergunta resposta, feito de forma rápida, alternada verso a verso e direta.
a cena de reconhecimento ou tomada de consciência da verdade a partir da
contemplação das armas dos mortos, descrita em iii. 113, também faz lembrar
o reconhecimento trágico que aristóteles define como elemento tradicional de
qualquer tragédia bem construída e que podemos encontrar nas principais obras
dos grandes tragediógrafos e, antes, na Odisseia. No entanto, este tipo de reco-
nhecimento através do método de questionário traz-nos imediatamente à mente
a célebre cena das Bacantes de eurípides, em que agáve recupera a consciên-
cia e se apercebe do seu hediondo ato mediante interrogatório. isto comprova
tucídides como um homem do seu tempo, influenciado pela cultura e pelos
490 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

métodos intelectuais do seu século e não, especificamente, pelo género trágico


– importa notar que este método de pergunta resposta foi celebrizado por
sócrates e devia ser muito comum entre os Gregos do século V, que adoravam
argumentar de forma dialética.
mas, para Hornblower, tucídides também é um cientista e, nesse âmbito,
claramente influenciado pela técnica medicinal do seu tempo. Hornblower
(ibid.: 132) sublinha as similitudes entre os propósitos das atividades de tucí-
dides e dos físicos seus contemporâneos97. ambos não se limitam a recolher as
histórias clínicas dos pacientes; esperam que a sua recolha de sintomas possa
servir para identificar e tratar outras doenças e que a techne paulatinamente
evolua. o mesmo autor entende que a técnica que entre a escola hipocrática se
denominava de pronoia, que podemos traduzir por prognóstico – capacidade de
prever, a partir dos sintomas atuais, o desenvolvimento da doença e de acordo
com essa previsão escolher o tratamento mais eficaz – parece ecoar na sentença
de tucídides acerca da peste: «eu direi como é que esta doença se apresentou;
os sinais a observar, para melhor se poder, se ela voltar a aparecer, aproveitar
um saber prévio e não ficar diante do desconhecido» (ii. 48. 3). Não obstante,
a atividade do historiador diverge da dos físicos, na medida em que não pro-
cura curar o leitor, isto é, não há nenhuma intenção moralizadora na obra de
tucídides. Por fim – conclui Hornblower – independentemente de todas as afi-
nidades intelectuais de tucídides com a poesia, a prosa e a medicina do século
V, ele é essencialmente original e único.
o impressionante relato da peste é o que melhor ilustra a união («se é
que se pode chamar união a dois aspetos da mesma coisa»)98 entre o particular
e o geral, entre a ciência e a arte em tucídides. É pura ciência a exposição
detalhada que o historiador faz dos sintomas da epidemia, «para que possa ser
previamente reconhecida, caso surja novamente», ele que possui um conheci-
mento privilegiado, pois também foi vítima dela. É pura arte o efeito dramático
da descrição impressiva (quase plástica) dos sofrimentos físicos, dos efeitos psí-
quicos, dos cadáveres amontoados ou dispersos pelas ruas, dos funerais escan-
dalosos, das desordens morais em contraste com o optimismo reinante no dis-

97
relembramos que os estudiosos, atualmente, dão mais valor às diferenças entre tucí-
dides e Hipócrates do que às semelhanças. Veja-se, por exemplo, Parry 1969.
98
«this narrative of the pestilence is, in fact, the one which illustrates best the union
of the particular and the general, of which thibaudet speaks, and of science and art in thucy-
dides (if “union” is the right word to apply to two aspects of the same thing)» (Gomme
1954: 144).
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 491

curso fúnebre de Péricles, que antecede na diegese o flagelo desmoralizador da


peste.
tucídides, obviamente, não transformou a sua História numa série de con-
trastes dramáticos e a sua preocupação pela verdade não nos permite, como faz
cornford, pôr a sua obra a par da de Ésquilo. Não há um padrão estrutural no
texto de tucídides, ele é multiforme, adequando a sua estrutura aos aconteci-
mentos que narra. todavia, há uma série de episódios cujo contraste produz um
intenso efeito dramático. Vale a pena, a este respeito, parafrasear o trabalho de
Gomme (1954) e os vários exemplos que o estudioso analisa, que o levam a
concluir:
the “dramatic” character of thucydides’ History is thus, fundamentally, implicit in
the events: they were dramatic, and a true history, that is, a scientific history, if
well written, that is, if a work of art, will reveal them so. that thucydides, furt-
hermore, was conscious of their dramatic character is true; that is only to say that
he was an intelligent man (Gomme 1954: 148).

Gomme começa por nos advertir que para os Gregos e para os romanos
a história, por muito distinta que fosse da crónica, era sempre um produto artís-
tico e que alguns escritores modernos ignoraram essa dimensão. mesmo para
tucídides, a forma literária é indissociável da composição histórica. Lívio diz,
a dado momento, numa das suas obras, que não cita documentos oficiais por-
que se o fizesse estaria a violar os cânones artísticos da antiguidade que reque-
riam que o estilo da história fosse uniforme e não fosse desfigurado pela inter-
polação de documentos oficiais, leis e material do género. e acrescenta que até
tucídides, de um modo geral, se conformou com esta prática. seria interessante
saber se a referência a tucídides nestes termos significa que ele era menos
artista ou menos cientista do que os outros historiadores.
Gomme acredita que tucídides quis ser um verdadeiro artista. Fez todo
um imenso trabalho de bastidor como recolha de documentos e registo de notas
e ao público apresentou somente o resultado final. como pintor que apresenta
o quadro acabado sem os rascunhos ou o arquiteto a obra terminada sem as
plantas. se possuíssemos as suas notas podíamos testar melhor a sua credibi-
lidade e a sua exatidão. Neste particular, Heródoto é mais cientista, se é que
assim se pode dizer, pois amiúde nos revela as suas notas, diz-nos onde esteve,
o que viu ele próprio, quem o informou. tucídides só por duas vezes nos
informa dos locais onde esteve: em atenas durante a peste e no comando de
um exército na trácia, em 424. também sabemos que entre esta data e o fim
da guerra, vinte anos depois, não esteve em atenas nem contactou com as for-
492 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

ças atenienses. e que tirou proveito do seu exílio para contactar com outras
fontes, sobretudo, inimigas dos atenienses.
uma das maiores lições que tucídides nos pode ensinar é que arte e ciên-
cia não são incompatíveis. Para começar não nos podemos esquecer que tucí-
dides escreve história contemporânea e que essa é uma tarefa extremamente
delicada, que o obrigou a recolher todo o material dos dois lados em conflito
e escrever a história antes de morrer. claro que tucídides gozou do privilégio,
nas suas palavras, do exílio, que lhe permitiu estar mais à vontade ou ter tempo
para fazer o seu trabalho.
tucídides não evita o dramatismo que os eventos já possuem em si mes-
mos, pelo contrário, consciente dele, utiliza-o para estabelecer contrastes dramá-
ticos na sua narrativa. assim, é verdade que o cinismo da conquista e do cruel
tratamento de melos (incluindo a conferência entre mélios e atenienses) e o ili-
mitado e poderoso optimismo da expedição contra siracusa contrastam com o
desastre daí resultante. No entanto, este contraste é real. os dois episódios
sucederam-se no tempo, sem nada de relevante entre eles. outros contrastes
podem ser encontrados em tucídides, um deles ainda mais dramático entre o
idealismo da feliz e confiante atenas do discurso fúnebre no final do primeiro
ano de guerra e o relato da peste que sobreveio, com a devastação e a desmo-
ralização que sabemos. No livro iii, podemos encontrar um outro tipo de con-
traste. a história da secessão de mitilene de atenas e a consequente guerra, a
queda de mitilene e a cruel sentença de matar todos os homens e vender todas
as mulheres e crianças como escravas e a posterior revogação de pena que dá
origem a um dos mais emocionantes e dramáticos episódios, onde se relata a
empolgante viagem de barco dos mensageiros, que sem descanso navegaram
para arribar antes dos companheiros, que levavam um dia de avanço, a fim de
evitar a execução da funesta sentença. a seguir a este episódio, tucídides
coloca o impressionante debate entre Plateienses e tebanos, onde se decide por
uma guerra de palavras a sorte dos prisioneiros de Plateias que se renderam
a esparta, não tendo seguido os seus compatriotas para o refúgio em atenas.
a ação dos espartanos é implacável e impiedosa. os Plateienses não são pou-
pados. Nesta estratégia de composição o leitor é levado a comparar a atitude
de atenas para com mitilene e a de esparta para com Plateias. tucídides
limita-se a narrar o sucedido sem comentários pessoais; mas nem precisava, a
ênfase que dá aos discursos e a forma como dispõe estrategicamente os episó-
dios, que de um ponto de vista do desenrolar da guerra são quase irrelevantes,
falam por si: aos que acham que atenas é indigna de governar as outras cida-
des, vejam se os do Peloponeso são mais dignos, eles que trataram deste modo
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 493

os prisioneiros de Plateias que se lhes renderam. mas o contraste já lá estava,


nos acontecimentos e a partir daí na narrativa de tucídides99.
o contraste dramático entre as várias cenas referidas é conseguido com a
ajuda dos discursos. estes contribuem para aumentar o efeito dramático dos
acontecimentos. sem o diálogo, o caso dos mélios ficaria reduzido ao nível da
sua inerente irrelevância militar; sem os discursos, a derrota de mitilene e a
rendição de Plateias seriam acontecimentos menores e obrigariam tucídides, na
linha da história moderna, a explicar, por palavras suas, o significado dos fac-
tos; utilizando os discursos, ele pode deixar os acontecimentos explicarem-se a
si próprios, à maneira do artista.
o efeito dramático que tucídides confere aos eventos que narra é forne-
cido pelo próprio dramatismo dos eventos, mas, para que esse dramatismo seja
transposto dos factos para a própria narrativa, o historiador desenvolve algumas
técnicas de efabulação. atentemos, por exemplo, no método empregue para nar-
rar acontecimentos sucessivos, que ele faz pela ordem cronológica de verões e
invernos, revelando as suas facetas de artista e de cientista. o livro ii, que
cobre os primeiros três anos de guerra, ilustra a estrutura genérica da estratégia
de guerra: o poder naval contra o poder terrestre. os primeiros trinta e três
capítulos, que antecedem o discurso fúnebre, relatam uma série de acontecimen-
tos que se sucedem no tempo, onde se pode notar a exploração do efeito dra-
mático conciliado com o rigor da datação e a veracidade dos factos. o sur-
preendente ataque de tebas a Plateias, aliada de atenas, desencadeia a guerra,
e este acontecimento é datado com algum cuidado, registando-se não apenas o
ano do ataque, mas também os acontecimentos que o antecederam. durante
quatro capítulos, relata-se as peripécias da investida e o seu desastroso desfe-
cho. a partir do capítulo oitavo temos os preparativos de ambas as fações para
a guerra; a procura de aliados; a lista dos aliados; e depois (capítulos 9, 11,
12), as movimentações finais dos Peloponésios e dos seus aliados Beócios para
a fronteira com a Ática; no capítulo 13, um relatório em discurso indireto dos
recursos militares e financeiros de atenas, apresentado por Péricles aos seus
conterrâneos, que serve para nos fazer compreender a estratégia, inevitável,
adotada posteriormente pelos atenienses: atenas não pode defender a sua terra,
as suas tropas são um terço das do exército inimigo, mas pode refugiar-se den-
tro dos muros da cidade. dentro da fortaleza estariam a salvo e, como o porto
também estava envolvido pelas extensas muralhas, podiam sair daí para com-

«the dramatic contrast is there, in the events and therefore in thucydides’ narrative»
99

(Gomme 1954: 125).


494 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

prar comida para os sitiados. tucídides não gasta muitas palavras a explicar o
que se passou, não só porque os factos eram sobejamente conhecidos, mas
sobretudo porque aqui, tal como noutros pontos da sua História, ele deixa a sua
narrativa de acontecimentos dizer-se a si própria. o que ele faz é pôr em cena
as figuras e os dados militares e financeiros. seguindo o conselho de Péricles,
exposto anteriormente, os camponeses recolhem-se às muralhas com o máximo
de provisões, deixando para o inimigo o mínimo possível. Vêm – diz-nos tucí-
dides – de corações destroçados, habituados que estavam a viver no campo e
a vir à cidade apenas em ocasiões especiais, políticas ou religiosas. No início
do verão, chegam as tropas inimigas, oriundas do Peloponeso, e começam a
devastar as terras atenienses. os camponeses assistem do alto das muralhas;
revoltados e inflamados pela ira, juntam-se em grupos na disposição de sair em
defesa das suas terras, mas são demovidos por Péricles, que, em paga, recebe
acusações de cobardia. este mantém o controlo da população e permite apenas
que a cavalaria faça algumas investidas nas fações inimigas que se encontravam
mais próximas das muralhas. o capítulo 23 dá conta da retirada dos Peloponé-
sios. entretanto, os atenienses enviam para o Peloponeso cem navios de guerra,
com mil hoplitas e quatrocentos archeiros. os capítulos 24 a 27 narram várias
investidas atenienses em redor do Peloponeso. o capítulo 28 informa-nos sobre
a ocorrência de um eclipse, que, está comprovado, se deu no dia cinco de
agosto, à tarde. a aliança de atenas com o poderoso rei da trácia aparece des-
crita no capítulo 34. em seguida, continua a aventura dos soldados atenienses
em redor do Peloponeso, com a captura de uma praça-forte pertencente aos
coríntios e de mais duas outras localidades. os navios atenienses tomam final-
mente o rumo de casa. No regresso têm ainda tempo para invadir alguns ter-
ritórios afetos ao inimigo, nomeadamente mégara. o capítulo 33 descreve a
tentativa levada a cabo pelos coríntios durante o inverno para recuperar alguns
dos territórios que caíram em mãos inimigas. este primeiro ano de guerra ter-
mina com os rituais e cerimónias fúnebres em honra dos soldados atenienses
mortos durante a peleja (capítulo 34) e o célebre discurso (epitaphios) de Péri-
cles (capítulos 35-47). Gomme acredita que temos nestes relatos um exemplo
do que aristóteles quer dizer quando afirma que o historiador regista tudo o
que aconteceu durante um determinado período de tempo e pela ordem em que
ocorreu. Neste caso, a maior parte dos acontecimentos narrados por tucídides
são de pouca monta para o desenrolar da guerra, excetuando, quando muito, a
invasão da Ática pelas tropas do Peloponeso. todavia, vão ao encontro dos
objetivos que tucídides persegue, ao deixar a história falar por si própria. em
primeiro lugar, expõem o quadro do que será uma guerra entre uma potência
naval e uma potência terrestre – com as constantes escaramuças e impasses até
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 495

que um dos lados consiga a proeza de um golpe mais decisivo. o resto do


livro ii, que cobre os primeiros três anos de guerra, continua esta linha de
exposição de uma série de acontecimentos militares (ou quase militares, como
a peste) quase todos – na opinião de Gomme (ibid.: 126) – irrelevantes ou
pouco determinantes para o decurso da guerra, mas veiculando uma mensagem
implícita: atenas foi considerada moralmente a agressora, por causa do seu
domínio por vezes arbitrário sobre as outras cidades gregas e esparta e os seus
aliados foram vistos como os libertadores. aliás, o próprio tucídides di-lo cla-
ramente, no capítulo 8 do livro ii: a maior parte do mundo grego nutria ódio
por atenas, uns porque queriam escapar ao seu jugo, e outros porque temiam
ser submetidos pela pólis grega; as simpatias do povo grego recaíam assim
sobre os espartanos, em quem viam os libertadores da Grécia. mas os aconte-
cimentos narrados pelo historiador ateniense mostram-nos que o responsável
técnico pela guerra foi esparta, pois foi ela, com os seus aliados, que declarou
guerra e ignorou as propostas dos atenienses para um pacto.
tucídides deixa os acontecimentos falarem por si próprios; evita comentar
ou dar explicações, limita-se a contar os factos pela ordem em que acontece-
ram. Gomme (ibid.: 137) diz que o historiador não podia ser mais exato, mais
científico, mesmo que tivesse ao seu dispor o calendário gregoriano e um
moderno cronómetro ou se, em vez de dizer “um pouco antes das vindimas”,
tivesse dito o dia e a hora exata. mas ele é também um grande artista quando
parece não fazer mais do que narrar exatamente os eventos pela sua ordem real,
deixando ao leitor a tarefa de inferir as suas próprias conclusões. Não podemos,
pois, concordar com collingwood quando sustenta que tucídides não tinha,
como Heródoto, interesse pelos factos mas apenas, como Platão, pelas leis
gerais, pelo imutável, e era como o filósofo grego aistórico100. Gomme (ibid.:
138) considera tucídides mais repórter do que filósofo, ainda que possamos
aceitar que, no fundo, o historiador grego tem sempre em mente leis gerais,
mas prefere pensar nelas do que formulá-las e dá-las a conhecer ao mundo.

100
«o seu objetivo principal é estabelecer leis – leis psicológicas. a lei psicológica não
é um evento, nem sequer um conjunto de eventos: é uma regra imutável que dirige as rela-
ções entre os eventos. segundo julgo, todas as pessoas que conheçam ambos os autores esta-
rão de acordo comigo, ao afirmar que são os próprios eventos que interessam principalmente
a Heródoto; e que, a tucídides, interessam fundamentalmente as leis, segundo as quais eles
se verificam. mas estas leis são precisamente essas formas eternas e imutáveis que, de acordo
com a principal tendência do pensamento grego, são as únicas coisas cognoscíveis. tucídides
não é sucessor de Heródoto no pensamento histórico, mas o homem em quem o pensamento
histórico de Heródoto foi encoberto e sufocado por motivos anti-históricos» (collingwood
1989: 43).
496 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

Gomme (ibid.: 140) é de opinião de que na boa história, tal como na poesia
(embora de uma forma diferente), o geral está incorporado nos exemplos par-
ticulares, e aristóteles erra na distinção especial que faz das duas disciplinas.
Na boa história há, inevitavelmente, ciência e arte, e os estudiosos modernos
erram quando dizem ou supõem que as duas são incompatíveis. a partir do
momento em que a história é mais do que a recolha e apresentação de provas
e necessita de se organizar como narrativa, o historiador deve vestir a pele do
artista. antes do produto final do artista tucídides está o imenso trabalho do
historiador cientista:
thucydides, not because he was an “ancient” writer, but cause he was a sen-
sible man and clearheaded, did his work in the right order, and then presented the
finished work to the public, as the architect presents the building, not only without
the many first sketches and plans, but without the scaffolding [Gomme 1954:
140].

outra característica que mostra a vertente científica de tucídides é a sua


imparcialidade. ainda que, porventura, tenha sido injusto para cléon e tenha
exagerado no louvor de Brásidas, a sua imparcialidade é quase intocável.
a forma isenta com que apresenta os inimigos de atenas mostra como corres-
pondeu bem à exigência que lhe era posta pela sua profissão de historiador.
a sua paixão pela contenção e pela verdade são notáveis, nomeadamente,
quando narra a desastrosa campanha na trácia, na qual participou como general
de um esquadrão ateniense e que lhe valeu o exílio. Não tenta defender-se nem
justificar-se. É fiel ao seu método, evitando biografias individuais e, acima de
tudo, autobiografia. Não exagera a importância da campanha militar na qual
tomou parte, não enfatiza sequer o acontecimento. tucídides podia ter-nos con-
tado mais acerca da campanha de anfípolis, poderia ter aumentado a escala,
mas não o faz, para manter a proporcionalidade da narrativa. a sua paixão pela
verdade reflete-se, assim, indistintamente, enquanto cientista e enquanto artista.
Neste particular, tucídides faz jus ao espírito artístico dos Gregos. se noutros
campos da vida social a imparcialidade não era um valor considerado, na arte
a imparcialidade era sagrada: de Homero a tucídides, aristófanes ou Platão,
passando por Ésquilo e Heródoto, de todos podemos tirar lições de isenção101.

101
«[...] as artist at least, thucydides shares this quality with all of his countrymen
worthy of the name. the Greeks were obstinate, foolish, and cruel enough in their politics,
greedy of power, fierce; at best “helping their friends and doing harm to their enemies”, just
like other civilized peoples; but in their art – put a pen into their hands or a brush or a
chisel, and they do not know what partiality means; here at least they hardly took a step
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 497

Não é infundado dizer que o povo ateniense é o herói trágico da História


da Guerra do Peloponeso: heróis de caráter nobre, “homens bons” nas palavras
de aristóteles. assim sendo, é possível estabelecer um paralelismo com a tra-
gédia e se aplicarmos a grelha de Hayden White à História da Guerra do Pelo-
poneso, sair-nos-á, sem dúvida, o género dramático. tal como o dramaturgo,
tucídides agencia, põe em cena atos e palavras. e é por isso que muitas vezes
se comparou a sua obra com a tragédia. as duas têm como princípio a mise
en scène de atos e palavras. têm em comum também a unidade de ação, exer-
cendo uma simplificação profunda em benefício desta unidade. só conhecemos
de Péricles os atos e as palavras que têm traços de conflito, como não conhe-
cemos de antígona e de Édipo nada que saia fora do debate em que se envol-
veram. de igual modo, para permitir ao leitor ou ao espetador seguir, ao
mesmo tempo, os atores, a sua ação, para marcar os tempos, as peripécias, as
razões profundas, a história de tucídides e a tragédia recorrem as duas a pro-
cessos de disposição, de contrastes, de alusões, muitas vezes comparáveis,
tendo como resultado final um mesmo interesse pelo desenrolar da ação.
apesar destas semelhanças, nunca é demais sublinhar as diferenças: o his-
toriador só pode narrar atos e palavras realmente acontecidos, procurando ser o
mais objetivo possível. a história tem como matéria, tal como a tragédia, atos
e palavras, mas também deve pautar-se pela observação científica. e a subtileza
dos meios literários que emprega pode estar ao serviço da verdade.
cornford teve o mérito de nos chamar a atenção para as similitudes entre
a História da Guerra do Peloponeso, tal como a escreveu tucídides, e as peças
dramáticas da tragédia grega, mas não foi capaz de perceber, como Lamb e tan-
tos outros que a arte não é incompatível com a exatidão e a preocupação pela
verdade.
Lamb, que publicou o seu livro sete anos depois de cornford e, de certa
forma, para refutar as teorias do anterior, que defendia, basicamente, ter tucí-
dides sacrificado a verdade dos acontecimentos às exigências do drama, recusa-
-se a separar a inteligência de tucídides do seu estilo, sustentando que o estilo
do historiador grego reflete a sua inteligência. o autor analisou o método esti-
lístico de tucídides, como dos prosadores seus contemporâneos e antecessores,
para concluir que tucídides ambiciona produzir não apenas um simples docu-

wrong. in this world of art there is no wicked enemy, no contest between white and black;
the trojans are not wicked in Homer, nor is Helen, nor the Persians and egyptians, the
βάρβαροι, in aeschylus, the contemporary, who also, like thucydides, had taken part in
events, or in Herodotos, nor the spartans or some particular athenian faction in thucydides,
nor in aristophanes» (Gomme 1954: 162).
498 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

mento verídico, mas um impressivo e vigoroso testemunho da verdade. Na dis-


posição do seu material e no estilo, tucídides usa a arte, de forma nem sempre
perfeita, mas sempre inteligente e deliberada. e a arte é assim como a serva do
intelecto, dispondo a verdade, sem a distorcer ou dissimular. Lamb fala de uma
história artística que pode transmitir a verdade de forma tão fiável como uma
proposição de euclides102.
em linha com esta tradição de Lamb e Gomme, romilly destaca a capa-
cidade de tucídides para estabelecer um nexo de causa-efeito entre os proce-
dimentos “trágicos” e a objetividade histórica. a forma de escrever, os recursos
estilísticos e compositivos empregues correspondem à forma como o historiador
entendeu a realidade:
Le désir de se retirer de son histoire, d’en être seulement l’ordonnateur, de laisser
parler les faits avec une rigueur toute scientifique, – ce désir exigeait de thucy-
dide le recours à de tels procédés [tragiques]. ses jugements, ses opinions, ses
théories ont pénétré tout le récit, mais parce que thucydide n’a pas douté qu’ils
fussent dans les faits, et n’a pas admis de les dire si on ne devait les y voir
[1956: 86-87].

em jeito de síntese a esta primeira parte, relembramos o que dissemos no


início deste estudo, a propósito da reflexão de ricœur sobre subjetividade e
objetividade em história. a objetividade alcançada pelo historiador é mais limi-
tada do que a alcançada pelos cientistas, mas não perde valor por isso. o que
poderia ser considerado como um obstáculo à verdade, a saber, a interferência
subjetiva-interpretativa-seletiva-explicativa do historiador, é de facto um limita-
dor da verdade objetiva/científica, mas não da verdade subjetiva filosófica –
essa que tucídides tanto valoriza. Pelo contrário, é a intervenção do historiador
no desconexo material histórico que permite concluir e salientar verdades sig-
nificantes do passado dos homens e dos homens do passado – a História da
Guerra do Peloponeso não podia ser melhor exemplo.
Lembremos que para ricœur não há objetividade sem historiador, ou seja,
sem subjetividade. a subjetividade aparece implicada na própria objetividade
e não pode ser procurada fora do trabalho do historiador. a subjetividade do
historiador afeta a objetividade histórica sem dissolver o seu objeto, mas tor-
nando-a mais incompleta do que a conseguida por outras ciências. seja porque
o historiador escolhe ou seleciona acontecimentos e fatores através de um jul-

102
«We may be able, however, to conceive of an artistic history which shall be as reli-
able for the conveyance of truth as a proposition of euclide» (Lamb 1914: 66).
capítulo i – tucídides, mestre de Verdade 499

gamento de importância; seja porque a história é tributária a vários níveis de


uma conceção pobre de causalidade, segundo a qual a causa tanto pode desig-
nar um acontecimento breve e excecional como uma conjuntura de lenta dura-
ção ou ainda uma estrutura permanente; seja por causa da chamada distância
histórica, que o tempo cava entre o historiador e o objeto do seu conhecimento,
que obriga o historiador a recorrer à imaginação para vencer a distância tem-
poral. a imaginação histórica intervém, então, como meio heurístico essencial
da compreensão, abrindo uma fenda entre a história e as outras ciências. Por
isso, não nos deve escandalizar o imenso papel que a imaginação desempenha
na obra de tucídides. onde o historiador ateniense pode ser censurado é na
qualidade da sua subjetividade. ricœur estabelece dois tipos de subjetividade:
uma boa, aquela que é educada pelo próprio ofício do historiador e outra má,
a pathétika103. a subjetividade boa é a da pesquisa ou moi de recherche – não
há história sem suspensão (epoche) da subjetividade quotidiana e sem a entrada
em cena do eu de pesquisa que dá bom nome à história. a má subjetividade
é passional, tendenciosa, influência de ódios, paixões e ressentimentos, em
suma, o moi pathétique. a nossa tentação podia ser incluir imediatamente tucí-
dides dentro da má subjetividade, a do moi pathétique – e talvez uma parte de
si aqui caiba. Porém, consideremos a outra face da má subjetividade: o sujeito
patético não é apenas aquele que mantém uma postura tendenciosa fulminante,
pode ser aquele que permanece apático perante os factos que analisa, dene-
grindo toda a grandeza reputada e depreciando todos os valores que encontra.
Perante isto, atrevemo-nos a catalogar tucídides com o historiador da má sub-
jetividade?

103
«La subjectivité d’historien, comme toute subjectivité scientifique, représente la vic-
toire d’une bonne subjectivité sur une mauvaise subjectivité» (ricœur, HV, 38).
(Página deixada propositadamente em branco)
cAPÍTULO ii
PREfiGURAÇÃO, cONfiGURAÇÃO E REfiGURAÇÃO
DA HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO

«en effet l’opération historiographique peut être insérée dans la


séquence des trois phases de mimésis impliquée par toute mise
en discours: préfiguration (du temps et de l’espace) dans la per-
ception et par l’intermédiaire des témoignages, sinon des docu-
ments; configuration (en passé historique) par des moyens dis-
cursifs et rhétoriques qui ne se limitent pas au narratif;
refiguration, avec son impact pragmatique, dans la réception et
l’interprétation (des actions passées non pas mises en intrigue,
mais mises en discours dans la monographie d’histoire)»
[calame 2007: 2].

1. PREfiGURAÇÃO: TESTEMUNhOS E DOcUMENTOS

terminámos a secção anterior a perguntar se tucídides faz uso de uma má


ou boa subjetividade. Para o panorama atual da história científica, a subjetivi-
dade de tucídides apresenta uma vertente boa e outra má. Boa, se considerar-
mos que tem como principal finalidade evitar a indiferença perante factos inten-
samente dramáticos. se a História da Guerra do Peloponeso tem traços de
tragédia é porque a guerra é em si um acontecimento violento e doloroso ou,
como diz tucídides, “um professor violento” (βίαιος διδάσκαλος) (iii. 82. 2).
tucídides nada mais faz do que tentar transpor de forma realista esse drama-
tismo e essa violência para a narrativa, para que o leitor seja emocionalmente
afetado e, por conseguinte, se sinta mais próximo do pathos real da res gestae.
objetividade, segundo ricœur, não significa apatia. Logo, não é por isso que
podemos qualificar a sua subjetividade de má. também não cremos que algu-
mas possíveis interferências do moi pathétique cheguem para apagar a imagem
502 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

positiva da imparcialidade que o historiador ateniense tanto se empenhou em


promover. Nenhum historiador consegue neutralizar ou suspender por completo
a sua ideologia, o seu lugar. Por conseguinte, a faceta negativa do trabalho de
tucídides, que o afasta inexoravelmente de qualquer verdadeiro historiador
científico, resulta da não apresentação de provas: da não revelação das suas
fontes nem das suas opções interpretativas e explicativas. Para tucídides, a
interpretação não é a operação epistémica e controlável de que fala ricœur. a
História de tucídides não é uma construção plenamente verificável e refutável
e a ausência deste binómio basta para a separar irremediavelmente de todas as
produções historiográficas sérias que surgiram a partir de finais do século XiX.
a lacuna mostra-se desde o estádio que ricœur estabelece como basilar em
toda a operação historiográfica: a fase documental. o filósofo francês insiste na
imbricação dos três momentos metodológicos e na coerção incessante do impe-
rativo documental que opera tanto ao nível da explicação/compreensão como da
escrita da história. este acento na prova documental visa recordar que a fase
de representação/escritura, ainda que exposta à clausura discursiva, tem de obe-
decer ao impulso de verdade que emana das provas documentais, se quer pre-
servar a fronteira entre história e ficção. assim, a prova documental não só é
um constituinte essencial da epistemologia histórica como é fundamental para a
divisão de história e ficção. É neste estádio da operação histórica que deve
haver um empenho máximo na averiguação da veracidade das provas documen-
tais, nas fases seguintes (explicação/compreensão e representação) a verdade
tornar-se-á cada vez mais difícil de elucidar, devido à intromissão crescente da
imaginação e da retórica ficcional.
tucídides, como já antes Heródoto, manifesta consciência de que é a este
nível que se joga essencialmente a identidade da historiografia, por isso os
podemos considerar, se não historiadores de pleno direito, pelo menos os pais
da história. É na crítica do indício e do testemunho que a historiografia
se separa de todas as outras produções escritas e pode reclamar para si o esta-
tuto de discurso verdadeiro. a quase totalidade das declarações epistemológicas
de tucídides só tem um intuito: dar-nos garantias da credibilidade do seu
trabalho ao nível da análise crítica dos indícios e dos testemunhos, o que
demonstra plena consciência da importância desta fase para a credibilidade da
história.

[...] quem, tendo em conta as provas mencionadas, considerasse as coisas que eu


expus não se equivocaria [...] não se equivocaria quem considera que se investigou
suficientemente, tendo em conta a antiguidade dos factos, a partir dos indícios
mais evidentes [tucídides: i. 21.1].
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 503

relativamente aos acontecimentos passados durante a guerra não me pareceu cor-


reto escrever qualquer informação que me chegasse nem o que a mim me parecia
ter acontecido, mas só o que eu próprio presenciei ou o que acerca de cada um
procurei saber junto de outras pessoas como o máximo de rigor possível [id., i.
22. 2].

e, de facto, não podemos dizer que tucídides não apoia as suas informações
em provas documentais, no sentido amplo que ricœur dá a esta expressão, que
engloba indícios e testemunhos. tucídides é o primeiro historiador a afirmar
explicitamente que a sua investigação histórica é feita a partir de provas: ἐκ δὲ
τεκμηρίων [...] σκοποῦντί μοι πιστεῦσαι (i. 1. 3). mas o facto de não revelar
as suas fontes e os critérios usados na análise crítica das fontes torna difícil
verificar a veracidade dos acontecimentos que relata e avaliar a qualidade da
sua seleção e interpretação de documentos e explicações. só na secção intitu-
lada arqueologia o historiador é mais explícito quanto às fontes usadas e
quanto ao raciocínio seguido104.
Várias podem ser as explicações para esta falta. a primeira, defendida por
crane, é que as circunstâncias não favoreciam este tipo de prática, podendo
comparar-se as condições de trabalho de tucídides às dos etnógrafos do século
XX105. Perante um manancial informativo, e de modo a evitar uma obra exten-
síssima (que, mesmo inacabada, corresponde em tamanho a cinco sextos das
Histórias de Heródoto), tucídides estava obrigado a sintetizar informações e a
omitir o vasto arquivo documental, preferindo antes criar nos leitores uma ima-

104
«thucydides, unlike his predecessor, is singularly reticent about how he proceeded,
where he travelled and what he saw, what he rejected and why and how he came to his con-
clusions. on the other hand, he is certainly more explicit in the archaeology than in other
parts of the History about what he accepted as evidence and how he reasoned» (Hunter 1982:
100).
105
«it is easy to criticize thucydides for his silent and omniscient editorial control and
manipulation of the evidence, but his practice does not compare unfavorably with that of
more recent genres operating under similar constraints. i will, for example, consider the rela-
tionship between twentieth-century ethnography and thucydidean history» (crane 1996: 27).
«thucydides’ practice, in fact, compares favorably with that of twentieth-century ethnogra-
phers, who, despite vastly superior technology of publication, face the problem of distilling
months or years of personal experience into a three-hundred page manuscript. only now, with
the advent of massive storage devices such as cd rom or multigigabyte hard drives that can
store thousands of pictures and tens of thousands of pages, can fieldworkers begin to imagine
publishing large bodies of data as well as their own conclusions» (ibid.: 36).
504 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

gem de confiança e de competência106. entra aqui a segunda provável explica-


ção para a omissão de fontes. o autor não sentiu necessidade de apresentar pro-
vas, julgando que o leitor tinha a obrigação de acreditar na sua palavra107; não
só porque não era um procedimento normal – nenhum historiador grego proce-
derá de forma diferente – mas porque tucídides age, possivelmente, com a
autoridade de um histor ou de um phronimos108. como é que tucídides instaura
a sua autoridade e reclama um voto de confiança no seu trabalho? apagando-
-se, deixando os factos falar por si próprios e, acima de tudo, através das decla-
rações de teor metodológico, onde afiança ao leitor ter perseguido, infatigavel-
mente, com rigor e objetividade, a verdade (i. 21). o historiador dá-nos a sua
palavra de que não sucumbiu à tentação da ficção típica de poetas, oradores e
logógrafos, que analisou criticamente as suas fontes, não aceitando sem verifi-
cação crítica qualquer informação que lhe chegasse, e procurou desfazer parcia-
lidades. Posto isto, Hunter interroga-se se é seguro confiar na operação crítica
e nos critérios que tucídides disse ter usado, tendo em conta que ele não nos
dá acesso às fontes:
How are we to proceed, given thucydides’ wall of silence about his sources, a
wall rendering a study of his critical method almost impossible. it is easy enough
to repeat the historian’s statement of methodology in Book 1.22.2-4 with its expli-
cit emphasis on accuracy and laboriousness, its awareness of the dangers of par-
tiality and the imperfections of memory, and its avoidance of the “mythical” ele-
ment, with all that may imply of romantic or exotic tales or even anecdotes. But
can we, without knowing thucydides’ sources, ever appreciate the extent of his
critical reflection or his internal criteria of truth? [Hunter 1982: 120].

106
«unable to provide his readers with all the evidence upon which his conclusions are
based, thucydides resorts, in fact, to the same device that malinowski later employed. He
offers the reader the image of the “heroic researcher”, wading through conflicting evidence
and indefatigably pursuing the truth» (crane 1996: 36).
107
«[...] il a rarement indiqué le détail des sources de son information. il avait le sen-
timent qu’on devait le croire sur parole. il pensait qu’ayant imposé des limites géographiques
et chronologiques très sévères à son entreprise, il pouvait s’adresser à son lecteur et lui deman-
der de le croire. il n’imagina jamais qu’il eût pu être autrement» (momigliano 1992: 49).
108
murari Pires (2003) interroga-se acerca do vazio informativo, mais propriamente
acerca do silêncio metodológico de tucídides sobre a transição da diversidade discordante dos
testemunhos à versão única: «Par quels procédés d’une (supposée) critique méthodologique
l’historiographie thucydidéenne passe alors de la diversité des récits à l’appréhension de l’uni-
cité du fait, thucydide ne le dit pas; bien au contraire, il le passe sous silence» (ibid.: 130).
segundo o autor, esta lacuna pode explicar-se se tucídides fez suas as competências de duas
reconhecidas figuras de autoridade: o phronimos como o define aristóteles – o homem dotado
de uma sageza prudente; o histor – tal como o definimos anteriormente.
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 505

de facto, esta forma de encarar a prática histórica está em contradição


com as exigências atuais da história científica e não passou incólume aos olhos
dos críticos:
the historian should give such background as is necessary for the understanding
of the events which he records. and surely no historian should ask others to
accept on faith and without question what he himself believes to be the true
account, however sure he may be that he is right [Wallace 1964: 261].

Loraux, por seu turno, não entende como é que alguns historiadores con-
temporâneos apreciam e valorizam uma produção historiográfica que ofende os
mais sagrados valores da metodologia histórica:
Peut-être s’étonnera-t-on (pour ma part, j’avoue m’en étonner à chaque lecture de
La Guerre du Péloponnèse) de ce que l’historien fondateur dont des générations
d’universitaires admirent la puissance d’objectivité soit précisément celui qui
refuse au lecteur tout accès à ses sources. or il va de soi que ces modernes his-
toriens de la Grèce qui considèrent thucydide comme le premier d’entre eux se
sentent, eux, impérativement tenus de légitimer chacune de leurs propositions par
un système très complet de notes de bas de page. Partageant l’idée que le savoir
historique est de ceux qui doivent exhiber des preuves, je ne sais, dès lors, ce
qu’il faut le plus admirer en cette conjoncture paradoxale, de la force persuasive
du sujet thucydide ou de la puissance de l’investissement d’objectivité qui veut
que l’historien exemplaire ait été exemplairement objectif [1986: 151].

a mesma autora entende que a exposição metodológica tem como única


intenção iludir o leitor, levando-o a uma confiança ilimitada no historiador:
ainsi l’exposé de méthode est une très efficace machine à obtenir le crédit. L’im-
portant est que le lecteur fasse confiance (pisteuein) et la figure du juge est pré-
cisément là pour le convaincre qu’il aura toujours raison de s’accorder toute con-
fiance à thucydide (et tort de croire autrui) [ibid.: 153].

No fundo, tucídides faz equivaler a verdade à sua autoridade: «comme


s’il suffirait de dire “je” pour dire le vrai, le “je” de thucydide est une caution
morale, un sûr garant de vérité» (ibid.: 154).
a força persuasiva do historiador é bem evidente no seguinte: por um
lado diz que «não [lhe] pareceu correto escrever qualquer informação que [lhe]
chegasse nem o que a [si] parecia ter acontecido mas só o que [ele] próprio
[presenciou]» (i. 22. 2) ou o que apurou mediante crítica rigorosa; por outro
lado, o mesmo só refere duas experiências de guerra presenciadas por si: a
peste de atenas e a campanha de Brásidas na trácia, na qual participou
506 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

enquanto general. Para a restante narrativa ou partimos do pressuposto de que


assistiu aos acontecimentos mas entendeu por bem não o dizer, ou que possuía
informações, criticamente filtradas por si, mas não revelou as suas fontes. diz,
por exemplo, sobre a tirania de Hípias que tinha à sua disposição uma tradição
melhor que todas as outras, mas não revela a sua origem. o que falta à verdade
de tucídides é a verificação. de igual modo, não sabemos que critérios usou
para escolher dentre as várias versões escutadas de um mesmo acontecimento
a verdadeira. tucídides apresenta-nos, salvo raras exceções, a versão final109.
Parry critica esta forma extremamente subjetiva e autoconfiante de escre-
ver história. Quando as fontes não são reveladas, exige-se que o leitor veja a
realidade pelos olhos do historiador, que tenha uma confiança cega no seu
conhecimento e no seu discernimento:
His very reluctance to speak of himself, his way of stating all as an ultimate truth,
is, if we must use the word, one of his most subjective aspects. When you can
say, ‘so-and-so gave me this account of what happened, and it seems a likely ver-
sion’, you are objective about your relation to history. But when, without discuss-
ing sources, you present everything as αὐτα τὰ ἔργα (Ι. 21. 2), the way it really
happened, you are forcing the reader to look through your eyes, imposing your
own assumptions and interpretations of events. to say all this is of course not to
cast doubts on thucydides’ veracity or on the validity of his methods of inquiry,
little as we know of them [1972: 48].

1.1.  Supremacia da observação direta e das testemunhas oculares

a historiografia praticada por tucídides está em linha com a de Heródoto


no que às fontes diz respeito. ambas apoiam-se não na erudição dos arquivos,
da arqueologia, da filologia, mas na observação direta (autopsia) – seja a do
historiador seja a de testemunhas oculares – e na tradição oral.

109
momigliano afirma que os historiadores gregos não possuíam regras precisas para
a recolha e seleção dos factos. Por esta razão, Heródoto passou muito tempo por impostor.
«El punto débil más evidente de los historiadores griegos era su forma de acercarse a los tes-
timonios, esto es, los criterios de los que se servían para establecer los hechos. La ausencia
de reglas precisas sobre el modo de recoger y elegir los datos creaba confusiones tanto en
los autores como en sus lectores. Heródoto podía ser considerado ya como el padre de la his-
toria ya como un embustero, porque nadie estaba en condiciones de controlar las historias
contadas por el [...] Únicamente la moderna investigación orientalista ha estado en condicio-
nes de demostrar que Heródoto era un cronista fiable (dentro de los límites de su informa-
ción) [...]» (1984: 19).
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 507

Hartog sublinha, por diversas vezes, a supremacia do “ver” como meio


fundamental do conhecimento histórico relativamente ao “ouvir”, entendendo
por ouvir o que era transmitido da tradição oral mítica por poetas e logógrafos:
Le savoir doit se fonder sur l’autopsie et s’organise sur la base des données
qu’elle procure. des deux moyens de la connaissance historique, l’œil (opsis)
et l’oreille (akôe), seul le premier peut conduire à une vision claire et distincte
(saphos eidenai) [2005: 76].

e, de facto, tucídides, em consonância com o que temos dito sobre os


seus pruridos relativamente à oralidade dos poetas, logógrafos e oradores, é
muito explícito quanto à aceitação acrítica de qualquer informação que lhe che-
gasse ao ouvido. mesmo ao nível da observação direta momigliano acredita
que tucídides confiava mais no que via ou ouvia ele próprio do que no que
lhe diziam as testemunhas: «[… thucydide] croyait d’abord ce qu’il voyait de
ses yeux et ce qu’il entendait de ses oreilles avant de considérer ce que disaient
des témoins dignes de foi» (1992: 48) 110. No entanto, tucídides parece conferir
a mesma credibilidade ao que viu e ao que outros viram e lhe contaram, sendo
que estas duas fontes de informação são ambas consideradas opsis: «Pour thu-
cydide, le savoir historique se fonde avant tout sur l’opsis (ou bien j’ai moi-
même vu, ou bien j’interroge quelqu’un qui a vu, et, dans les deux cas, on peut
parler d’opsis)» (Hartog 1980: 282).
a valorização da visão como fonte de informação é particularmente rele-
vante nos comentários que tucídides faz a propósito de uma batalha que se
desenrolou durante a noite (ao luar) e acerca da qual «por conseguinte, era bas-
tante difícil saber em detalhe, em qualquer uma das fações, o que se passou»:
ἣν οὐδὲ πυθέσθαι ῥᾴδιον ἦν οὐδ᾽ ἀφ᾽ ἑτέρων ὅτῳ τρόπῳ ἕκαστα ξυνηνέχθη
(Vii. 44. 1). Já de dia – acrescenta tucídides – só é possível saber o que se
passa se os indivíduos envolvidos têm um conhecimento de conjunto que ultra-
passa a individualidade. sendo de noite, «pode haver um conhecimento claro do
que quer que seja?»: πῶς ἄν τις σαφῶς τι ᾔδει; (ibid.). mesmo ao luar, não se

110
marincola exprime uma opinião contrária: «concerned as he is with underlying real-
ities that are not always apparent or easily perceived, he does not suggest that autopsy is
superior to inquiry, and in at least one place casts doubt on autopsy’s validity for non-con-
temporary history. in the archaeology (i. 2-19) [...]» (1997: 68). a posição de momigliano
sobre esta matéria, que diverge claramente da de marincola, funda-se numa nota fortuita na
qual se manifesta consciência dos limites dos testemunhos de visu nas batalhas (vide tucí-
dides: Vii. 44).
508 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

consegue entrever mais do que o vulto da pessoa que está à nossa frente, e,
portanto, em tais circunstâncias, não conseguimos reconhecer o que a distingue
de outra pessoa. estes comentários são coerentes com as anteriores declarações
de tucídides sobre a dificuldade de confiar nas testemunhas oculares da guerra
(i. 22. 3) 111. daqui decorre que a autopsia nem sempre é uma fonte segura de
informação, devendo ser submetida a uma filtragem crítica. todavia, o ouvido,
esse nunca é seguro, porque as informações adquiridas por essa via não são
comprováveis.
ainda assim – diz momigliano – em tucídides, como em Heródoto, a
tradição oral prevalece claramente como fonte histórica sobre a tradição escrita.
apesar de se distanciar de Heródoto no rigor e na exigência de verdade e de
atrair a história para a esfera da política, tucídides não consegue romper com
a tradição eminentemente oral da documentação historiográfica112. tinha à sua
disposição alguns testemunhos escritos (cartas, inscrições e tratados) que encai-
xavam nos seus critérios de credibilidade, porém optou maioritariamente pela
oralidade113. momigliano observa a que ponto esta preferência influenciou os
seus sucessores: «en definitiva dejó en sus sucesores la impresión de que la
observación direta y los relatos orales de testigos diretos en conjunto fuesen
preferibles a los testimonios escritos» (1984: 14). ainda assim, é bom que se
note que, apesar da existência de alguns documentos aproveitáveis à época de
tucídides, os relatos escritos de batalhas e assembleias eram escassos e não
existiam ainda os documentos oficiais e as cartas que se multiplicarão no
período helenístico e que teriam, aí sim, criado condições para uma história à

111
romancistas modernos, como stendhal na Cartuxa de Parma, tolstoy em Guerra e
Paz, tackeray em Vanity Fair, também testemunham a confusão sentida pelas pessoas que
tomaram parte nas batalhas, e a dificuldade em escrever um relato baseado nos seus teste-
munhos. mas esta desconfiança, nota Hornblower, não impede tucídides de ser extremamente
confiante nas opiniões factuais que emite: «thucydides is on the whole remarkable for the
confidence with which his factual opinions are expressed» (1987: 156).
112
«Tucídides, pues, lleva a la victoria una exigencia de veracidad más rigurosa que
la de Heródoto e incita a sus sucesores a limitar sus propios intereses a la esfera política,
pero no cambia la base de la documentación historiográfica que permanece en la antigüedad
de carácter oral principalmente y sólo secundariamente de carácter archivístico» (Momigliano
1984: 99).
113
«Tucídides aceptó el presupuesto de Heródoto de que la historia está hecha princi-
palmente de tradiciones orales. No será nunca suficientemente acentuada la importancia de
esta concordia fundamental. Los documentos escritos son marginales para Tucídides, como lo
son para Heródoto» (Momigliano 1984: 97).
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 509

moda moderna, não fosse ter-se continuado a preferir a observação visual e a


tradição oral114.
apesar da predominância das fontes orais, é possível encontrar outros
tipos de documentação na História da Guerra do Peloponeso: oráculos, fontes
escritas, mitos, inscrições, arqueologia (vide Hornblower 1987: 73-109). Horn-
blower situa os oráculos a meio caminho entre as provas orais e as provas
escritas. tucídides cita alguns, mas Hornblower considera insuficiente o trata-
mento que o historiador faz destas fontes. Quanto às fontes escritas, Hornblo-
wer divide-as em dois grupos: as não explícitas – Heródoto, antíoco de sira-
cusa, os compiladores de listas e, talvez, Hecateu de mileto – e as explícitas
– Helânico e os poetas, especialmente, Homero. Neste capítulo, convém assina-
lar que o facto de tucídides rejeitar o elemento mítico ou fabuloso na constru-
ção do seu texto histórico não significa que rejeite os poetas ou o mito como
fontes. À falta de melhores provas, tem de recorrer a eles para fundamentar a
sua arqueologia. e no final do livro iii transcreve o hino homérico a apolo,
com o intuito de demonstrar o caráter e a antiguidade do festival de delos.
assinale-se, a propósito, que tucídides é o primeiro historiador a copiar docu-
mentos como se proviessem de arquivos.
Hornblower situa, depois, as inscrições entre as provas escritas e a
arqueologia. tucídides cita poucas. Há três no livro Vi, quando se narra a his-
tória da família dos Pisístratos. curiosamente, as inscrições são as fontes mais
valiosas de que dispõem os historiadores atuais para a reconstrução da história
do século V.
Por fim, o historiador recorre algumas vezes às provas materiais ou arqueo-
lógicas, mas só quando faltam provas orais. Neste particular, os historiadores
gregos, tucídides incluído, tinham condições para terem ido bem mais longe.
moses Finley observa que não o fizeram por falta de interesse no passado115.

114
«En el siglo V los griegos poseían muchos documentos que mencionaban a sacer-
dotes, magistrados, atletas victoriosos, pero poquísimos relatos escritos de batallas y asam-
bleas. Más tarde los que nosotros llamamos documentos oficiales y cartas privadas se mul-
tiplicaron, y en el período helenístico habría sido posible, sin más, escribir historia como
hacemos nosotros, yendo a los archivos o usando cartas privadas, memorias, y así sucesiva-
mente. Pero se continuaba prefiriendo la tradición oral y la observación visual, como queda
claro en Polibio, aun cuando esa preferencia no estaba mayormente justificada por las con-
diciones que prevalecían» (Momigliano 1984: 84).
115
«ce serait cependant une grave erreur d’expliquer notre meilleur connaissance de
mycenes uniquement par le progrès de la science. sur le plan technique, schliemann et sir
arthur evans utilisaient peu de moyens qui ne fussent déjà à la disposition des athéniens du
cinquième siècle. Les anciens Grecs possédaient déjà les techniques et la main-d’œuvre néces-
510 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

Hornblower indica ainda dois tipos de provas que tucídides não utiliza:
a etimologia e as moedas. os argumentos aduzidos a partir de nomes e étimos
eram frequentes entre os seus antecessores, contemporâneos e posteriormente
em Platão. tucídides evita usar este tipo de prova. a numismática é muito
usada pelos historiadores modernos mas não mereceu qualquer atenção da parte
de tucídides.
as provas mais utilizadas são mesmo as orais. Pena foi que tucídides não
tenha revelado a sua origem. No livro Vi ainda alude a isso, declarando ter
obtido de uma testemunha a informação de que Hípias era o filho mais velho
de Pisístrato. supõe-se que as informações acerca de demóstenes e eurime-
donte, na expedição à sicília, terão chegado a tucídides via cónon, mas não
podemos ir além da suposição. de igual modo, o debate entre Nícias e alci-
bíades acerca da sicília deve ter tido como fonte testemunhal andócides. ape-
sar do anonimato, a pesquisa tem vindo a comprovar a fidedignidade de algu-
mas informações. outras há que permanecem envoltas em mistério. o que o
historiador diz acerca de cléon vai muito além daquilo que poderia saber, uma
vez que não era seu confidente. este tipo de consideração deu origem à tese
de que, salvo raras exceções, os motivos e intenções das suas figuras históricas
são inventados. Não é fácil rebater esta tese, visto o anonimato das fontes. mas
há motivos para dar mais crédito à tese de inferência ou dedução do que de
invenção. os documentos que nos têm chegado preenchem algumas lacunas
mas também confirmam a versão tucididiana dos factos. as próprias comédias
de aristófanes, por vezes, corroboram e complementam o seu relato. No caso
de cléon, visto o ressentimento e a parcialidade com que foi tratado, é certo
que o seu retrato foi pintado pela imaginação de tucídides. Já os motivos que
atribui a temístocles, aristogíton, Nícias e Pausânias devem ser uma inferência
do próprio historiador. No caso de Pausânias, limita-se a usar a expressão “diz-
-se que” antes de revelar os comportamentos e pensamentos do líder.
em suma, podemos admitir que tucídides frequentemente adivinha os
motivos por trás das ações, não se afastando, nesse domínio, da prática dos his-
toriadores modernos. a diferença é que tucídides é tão assertivo nas informa-
ções que deduz por hipótese como nas outras sobre as quais não tem dúvidas.
Por conseguinte, o mais justo é evitar os extremos de pensar que tucídides ou
inventa todos os motivos ou não inventa nenhum.

saires pour découvrir les tombes à fosse de mycènes et le palais de cnossos, et ils étaient
assez intelligents pour associer les pierres enfouies – s’ils les avaient mises au jour – avec
les mythes d’agamemnon ou de minos. ce qui leur manquait, c’est l’intérêt: voilà l’immense
fossé qui sépare leur civilisation de la nôtre» (Finley 1981: 25).
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 511

1.2.  história do presente e história do passado: testemunhos e indícios

a preferência pelo contacto visual e pelos testemunhos oculares explica-


-se pela opção por uma história do presente ou do passado próximo, a única
que permitia um mínimo de objetividade116. e o contrário também é verdadeiro.
a desconfiança de tucídides relativamente aos indícios do passado, em grande
parte transmitidos pela tradição oral, empurra-o para uma história do presente.
Na verdade, tucídides, devido ao desinteresse dos seus antepassados pelo
“tempo dos homens”, pelo passado e pela história dos homens, não dispunha de
documentos nem de arquivos em que se pudesse apoiar para a reconstrução dos
dois séculos anteriores à guerra do Peloponeso. assim sendo, foi obrigado a
voltar-se para a tradição oral (vide Finley 1981: 30-31).
só do presente pode haver história científica. Para tucídides, o passado
longínquo não representava mais do que a origem da situação política do pre-
sente e o presente era a base da compreensão do passado. compreendendo o
presente, compreende-se a obra da natureza humana. as experiências presentes
podem ser chaves de leitura para o futuro ou, ao invés, para o passado. No
essencial, a natureza humana perpetua-se de forma imutável, porém, como o
presente é o único período que fornece informações dignas de confiança, a pes-
quisa histórica deve começar pelo presente e daí remontar ao passado, tão
longe quanto o permitam os testemunhos. momigliano e Hartog comentam
assim a «centralidade do presente» na pesquisa histórica levada a cabo por
tucídides:
La centralité du présent dans la recherche historique est une conviction si pro-
fonde chez thucydide qu’il n’éprouve pas le besoin d’examiner à fond la propo-
sition connexe selon laquelle il n’y a d’information vérifiable que pour le présent.
La position unique de l’histoire contemporaine repose sur la double hypothèse sui-
vante: la nature humaine comporte quelque chose d’immuable; l’histoire contem-
poraine est la seule qui soit fiable [momigliano 1992: 47].

Le passé, lui, n’est pas véritablement connaissable. c’est ce que vont démontrer
ses premiers chapitres, connus sous le nom d’«archéologie», où thucydide réussit
le tour de force de présenter à la fois l’exposé le plus clair sur les temps anciens
et la démonstration la plus nette qu’on ne peut en faire véritablement l’histoire
[Hartog 2005: 76].

116
«du passé proche: il faut insister sur cet aspect; les relations qui disent avec une
certaine fidélité ce qui s’est produit, portent, en général, sur des événements qui sont presque
contemporains des auteurs: c’est seulement à leur propos que la narration possède un mini-
mum d’objectivité» (châtelet 1962: 37-38).
512 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

a secção conhecida como arqueologia, que integra os capítulos iniciais da


obra, é um caso à parte na História da Guerra do Peloponeso, na medida em
que constitui o único segmento dedicado por inteiro à história do passado e é
a única secção onde temos acesso aos bastidores: vemos tucídides a selecionar
informações, a submetê-las a análise lógica e a reconstruir um período do qual
não teve conhecimento direto nem testemunhal, aproximando-se muito do papel
arcaico do histor: «[...] thucydide retrouve ainsi quelque chose du sens ancien
d’histôr, comme garant dans un litige» (Hartog 2005: 95)117. Por isso mesmo,
tucídides vê-se na obrigação de estabelecer um método diferente para o estudo
desta época remota, cujo conhecimento considera difícil:
Na verdade, não era possível conhecer com clareza o que aconteceu antes nem os
acontecimentos ainda mais antigos por se ter passado um longo período de tempo,
mas a partir dos indícios [ἐκ δὲ τεκμηρίων] nos quais se baseia a minha confiança,
quando procuro ver até onde é possível alcançar, considero que não houve nada de
grandes dimensões nem em guerras nem noutras coisas [tucídides: i. 1. 3].

enquanto baseia a sua reconstrução do presente numa colecção de expe-


riências pessoais e entrevistas, o período histórico da Grécia arcaica é recons-
truído com base em conjecturas e indícios (ἐκ δὲ τεκμηρίων) – retirados da
poesia épica, tradições locais, escavações tumulares, observação de monumentos
do período heroico – que eram do conhecimento público118. tucídides não des-
creve o passado como descreve o presente. alterna entre a certeza no que diz
– “é claro” (phainetai); as deduções pessoais – “parece-me” (δοκεῖ μοι); as pro-
babilidades – “como parece provável” (ὡς εἰκός); e a conjetura – (εἰκάζειν δε
χρή). Por isso, Hartog insiste que o conhecimento por indícios aproxima a ati-
vidade de tucídides da do juiz: «thucydide, comme le juge dans l’établisse-
ment de la preuve, fait témoigner les indices qu’il rassemble et ne reçoit rien
pour vrai qu’il n’ait soumis à la question» (2005: 97). Não obstante, este tipo
de conhecimento indiciário não permite ao historiador ateniense a mesma “evi-
dência” que a autopsia ou a exatidão que o mesmo método – conjugado com
os depoimentos testemunhais – permite aos juízes e historiadores da atualidade.

117
«significant for the present study, the archeology allows one to see what is all too
rare elsewhere in the History – the historian selecting data, submitting them to the logical
analysis, and ultimately reconstructing the events of a period far in the past to which he was
not witness and about which he could have no firsthand evidence» (Hunter 1982: 17).
118
«For example, he must have seen mycenae and Lakedaimon, he at least knew of
the contents of the graves uncovered in the purification of delos, and he could describe the
manner of bearing arms in various parts of Greece in his own day» (Hunter 1982: 100).
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 513

a akribeia fica assim confinada à história do presente, a história do passado


fica-se pela convicção: «À l’histoire du passé est interdite l’«acribie», à cette
obscure vision est seulement réservée, si on l’exerce avec rigueur, la pistis, la
conviction, à l’instar du juge qui, dans une affaire, arrive à une (intime) con-
viction» (Hartog 2005: 97)119.
esta forma pouco objetiva de investigar ilustra bem a impreparação téc-
nica e a própria mentalidade dos historiadores gregos para abordar o passado.
Quando não encontra provas que considere suficientes para explicar um deter-
minado facto, o historiador não procura outras vias, abandona-o com a afirma-
ção de que não é possível saber nada de tempos tão recuados120. ainda assim,
tucídides termina a sua incursão pelo passado garantindo a fiabilidade da sua
interpretação: não seguiu o senso comum na aceitação acrítica de tradições anti-
gas; teve o cuidado de examinar a veracidade das provas (i. 20. 1). Pode, por
isso, vangloriar-se de apresentar análises corretas que não induzem em erro os
seus leitores. Por serem coisas impossíveis de comprovar, devido à sua antigui-
dade, algumas passaram para o domínio do maravilhoso pelas mãos de poetas
e logógrafos, mas o historiador afasta-se desta via e pede que confiemos na sua
investigação, feita a partir dos indícios mais claros:
No entanto, quem, tendo em conta as provas mencionadas, considerasse as coisas
que eu expus não se equivocaria, não acreditaria tanto no que os poetas compu-
seram acerca delas embelezando-as ao máximo, nem nos logógrafos que escreve-
ram acerca delas mais para agradar ao auditório do que para fins de verdade, pois,
sendo coisas impossíveis de comprovar, muitas delas, devido ao tempo transcor-
rido, passaram incrivelmente para o domínio do maravilhoso; por fim, não se
equivocaria quem considera que se investigou suficientemente, tendo em conta a
antiguidade dos factos, a partir dos indícios mais evidentes [tucídides: i. 21. 1].

119
as palavras de Hartog podem gerar algum equívoco relativamente ao trabalho do
juiz. convém fazer aqui a seguinte ressalva: o juiz não se fica pelos indícios. Para uma deli-
beração final – a menos que os indícios sejam de tal modo evidentes e conclusivos – ele há
de apoiar o seu julgamento em testemunhos que os indícios corroboram. a tese do paradigma
indiciário de Ginzburg também não se funda apenas em indícios como elemento de prova.
indícios e testemunhos complementam-se. sobre esta matéria, veja-se Ginzburg 1989.
120
«[...] lorsqu’il est question des temps anciens, la place est laissée aux récits
mythiques et à la tradition; quand ces derniers sont écartés comme insuffisants – c’est ainsi
que procède thucydide –, aucun effort résolu n’est fait pour substituer au vide ainsi crée une
leçon plus correcte: l’écrivain déclare alors que l’on ne peut rien savoir sur des temps aussi
reculés. en fait, l’introduction presque constante de la vraisemblance, du mythe, des “recons-
tructions” historiques, des digressions, du pittoresque traduisent cette impuissance radicale de
la pensée grecque à considérer avec le sérieux indispensable cet objet qu’est le passé humain.
La défaillance des œuvres s’explique par la structure de la mentalité et par l’insuffisance
technique qui lui est liée» (châtelet 1962: 37-38).
514 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

Nesse sentido, crane compara a arqueologia tucididiana ao exercício retó-


rico conhecido como epideixis, que pretende ser uma demonstração de poder e
uma amostra ilustrativa da metodologia aplicada:
the archaeology resembles the epideictic exercises published by rhetors of the
fifth and fourth century. Like the Helens of Gorgias and isokrates, the archaeo-
logy is both exceptional and a tour de force. thucydides’ primary concern is with
the events of his own lifetime, and he clearly understands how tenuous must be
the conclusions which he bases on the evidence for the distant past. the profes-
sional rhetorician used an epideixis, “show-piece”, to demonstrate his methodo-
logy. thucydides’ archeology served precisely this function, at the same time
introducing Greek history as a whole and thucydides’ historiographic methodo-
logy. [...] the opening of the History parades the human instrument of analysis in
action for all to observe [1996: 32].

Por conseguinte, na medida em que as suas fontes são enunciadas, é pos-


sível verificar a validade dos argumentos elaborados por tucídides na arqueo-
logia:
readers may not be able to compare thucydides’ conclusions on contemporary
events with the oral reports and personal observations with which he worked, but
even now we still have access to much of the source material upon which the
archaeology depends, and we can thus, in this particular case, see thucydidean
practice at work» [ibid.: 34].

crane acredita que, na arqueologia, tucídides não só transmite um con-


junto de ideias centrais para a sua visão da história, como também nos convida
a observar a forma como pratica análise histórica. Nesse sentido, a opção de
abrir a História da Guerra do Peloponeso com a arqueologia justificar-se-ia
com o objetivo não só de dar a conhecer o assunto em causa como fornecer
ao leitor um “case study” que contrasta com as «suavemente polidas narrativas
históricas que se seguem» (ibid.).
este método de pesquisa que combina dados arqueológicos, etnografia
comparativa e interpretação histórica de textos literários parece-nos tão perti-
nente que nos podemos questionar acerca dos motivos pelos quais tucídides
limitou a sua aplicação à arqueologia. Na verdade, o que a nós nos parece o
método mais seguro para a pesquisa histórica não passa para ele de um mal
menor para substituir a observação direta, quando o conhecimento certo e deta-
lhado se revela impossível. Para que este método de conhecer o passado se tor-
nasse seguro, tucídides precisava de ter acesso às disciplinas auxiliares da crí-
tica de fontes que o século XiX trará para o ateliê do historiador: arqueologia,
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 515

literatura comparada, linguística. sem elas, é obrigado a aceitar – se não acri-


ticamente, pelo menos, baseado, somente, no seu próprio julgamento – as pro-
vas transmitidas por poetas e tradições orais, a partir das quais produz racio-
cínios de probabilidade121. a falta de verificação da genuinidade das provas
provenientes da poesia, dos mitos e demais tradições orais e a falta de meios
para o fazer leva a que não se estabeleça uma fronteira entre mythos (poético
e mítico) e história, entre tempo dos homens e tempo dos deuses. tucídides
investiga o tempo dos deuses como se tempo dos homens se tratasse, mas sem
provas que o ajudem a descobrir a verdade122. a sua reconstrução do passado
é mais especulativa do que a de Heródoto, porquanto depende completamente
do seu próprio julgamento para decidir o que é facto e o que é ficção na tra-
dição grega, e o que constitui uma prova a partir da qual possa tirar conclusões
prováveis. onde os dois historiadores convergem é na não diferenciação entre
o que é histórico e o que é mítico, pois ambos consideram o período mitoló-
gico tempo dos homens, um tempo real de personagens históricas. tucídides
diz, por exemplo, sem questionar a existência de minos, que ele foi, de acordo
com a tradição, o primeiro indivíduo a possuir uma armada; ou que a guerra
de troia teve lugar, mas foi engrandecida pela voz dos poetas. revista e cor-
rigida por tucídides, a guerra adquire uma igualdade, uma plausibilidade e um
enquadramento político que a crítica aceitará facilmente como verdade histórica.
o que estes historiadores fazem, por vezes, é encontrar uma explicação racional

121
«He thus reconstructs the past. What is lacking in his reconstructions, however, is
the contribution of the nineteenth century to the discipline of history, source criticism. No
matter how painstaking he considered his pursuit of truth, how reliable his evidence, or how
reasonable the conclusions he drew from it; no matter how much he understood that caution
was necessary in the face of poetic exaggeration, he must nonetheless accept both the poets
and oral tradition as his factual basis. He just did not have at his disposal the tools of source
criticism or the means of evaluating documents used by the contemporary professional his-
torian. uncertainty and doubt he might express, but without ancillary disciplines like archae-
ology, comparative literature, or linguistics his efforts to criticize his sources, or even his
opportunities to verify them, remain minimal» (Hunter 1982: 37-38).
122
«thus, in his own terms, he did not have a source he believed was the truth, that
is, an objective means of distinguishing truth from fabrication in the mythoi of the poets or
in other forms of oral tradition [...]. Perhaps, like Herodotus, he believed that the poets dis-
torted Greek history and fabricated many of the stories of gods, heroes, and men, but he felt
no compulsion to demonstrate how and why they did so. instead, he took for granted a length
of historical time that preceded the events of the epic cycle and differed from them because
it was a temps des homes rather than a temps des dieux. in addition, he accepted the pos-
sibility of human knowledge of that time, even though he possessed no superior source to
assist him in discovering the truth» (Hunter 1982: 102).
516 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

para factos míticos. assim, a guerra de troia não pode ter sido tão grande
como dizem os poetas porque, se fizermos a média entre os navios grandes e
os navios pequenos referidos na Ilíada, chegamos à conclusão que as tropas
não eram muito numerosas. e a expedição não pôde ser muito grande, mais por
falta de dinheiro do que por escassez de homens. outro exemplo é quando
tucídides diz que agamémnon reuniu os aliados contra troia graças ao poder
adquirido e não pela obrigação imposta aos pretendentes de Helena pelos jura-
mentos feitos a tíndaro (vide Hunter 1982: 107-115 – o capítulo intitulado
“rationalism, rationalization, and rationality”).
devemos ainda reiterar que tucídides não considerava o passado interes-
sante nem significativo em si mesmo; que este não é mais do que o prelúdio
do presente; que a única maneira de conhecer o passado é a partir do presente,
já que o passado conduz por simples progressão (não linear) ao presente123.
esta é uma outra diferença relativamente a Heródoto, para quem o passado
tinha valor próprio (momigliano 1992: 50). tucídides acreditava que o passado
é similar ao presente, não só porque é um tempo humano, mas porque os está-
dios do progresso civilizacional e os seus pontos altos bem como a forma como
este pode progredir e regredir seguem um padrão idêntico: «muitas outras coi-
sas mostrariam que o mundo grego antigo vivia de forma análoga ao mundo
bárbaro atual» – πολλὰ δ᾽ ἂν καὶ ἄλλα τις ἀποδείξειε τὸ παλαιὸν Ἑλληνικὸν
ὁμοιότροπα τῷ νῦν βαρβαρικῷ διαιτώμενον – (tucídides: i. 6. 6). com esta
teoria civilizacional em mente, tucídides crê-se livre para ir além da simples
seleção das informações que lhe parecem mais racionais ou além da simples
atribuição de motivos a indivíduos no passado. ele toma a liberdade de gerar
factos para os quais não possuía provas e que eram anacronismos derivados do
mundo presente: «in other words, thucydides interpreted his data in such a
way as to make it useful to the present and the future by isolating similarity
of process in the past, permanence amidst change» (Hunter 1982: 103).
o que encontramos, pois, em tucídides, segundo Hunter, não é só conje-
tura, é uma forma de imputação causal por analogia, a explicação de factos do
passado por paralelismo com os do presente, partindo do pressuposto que o
padrão se mantém. a analogia funciona como princípio racional de reconstrução

123
«au legetai (on dit que) des logographes et d’Hérodote, qui rapportent ce qui se dit,
thucydide oppose le phainetai (il apparaît, il devient visible que). mais cette lumière incer-
taine est toujours à produire à partir du présent, en mesurant les événements du passé à
l’aune des événements contemporains et en se fondant sur le repérage et le rassemblement
d’indices (semeia) convergents» (Hartog 2005: 77).
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 517

especulativa do passado. analogia e probabilidade são ambas baseadas na per-


ceção de similitudes, na crença de que os indivíduos agiram no passado ou agi-
rão no futuro em grande parte como agem no presente124.

1.3.  história e memória

uma história do tempo presente pretende ter a vantagem da concomitância


entre a atualidade dos factos e a atualidade do seu registo. assim, a História
tucididiana, enquanto composição narrativa, pode reivindicar plenamente a sua
pretensão à verdade, fazendo valer o princípio epistemológico da presença cog-
nitiva das testemunhas como condição para estabelecer o seu relato dos acon-
tecimentos. Na verdade, quando se faz história contemporânea ou do presente,
e isto é válido para a historiografia do tempo de tucídides como para a da
atualidade, tem-se a possibilidade de entrevistar testemunhas diretas dos factos,
no fundo, de lidar com a memória viva dos factos. mas esta vantagem não é
tão segura como possa parecer à primeira vista, pois a autopsia não é nunca
um dado imediato125. Há a irredutível distância gnosiológica entre o objeto
acontecido e o objeto rememorado; a distância entre a testemunha e o historia-
dor; e a distância temporal entre o passado do acontecimento arquivado (ou a
memória documental do objeto) e o presente da narração. tucídides tem cons-
ciência de que a memória (da testemunha ou do historiador-testemunha) deve
ser filtrada por um processo de análise crítica antes de se transformar em his-
tória, pois, mesmo na sua qualidade de pivô entre a autópsia e a história, ela
é lacunar e subjetiva: ora esquece, ora seleciona, ora engrandece, ora diminui
os factos. Logo na exposição metodológica esse fator é posto em relevo: «Foi
uma árdua investigação, porque os que estiveram presentes em cada aconteci-
mento não diziam o mesmo acerca deles, devido à simpatia que pudesse haver

124
«Both probability and analogy are used by the historians [Herodotus and thucy-
dides] in their rationalizations. in the case of thucydides, one can go even further. analogical
reasoning is at the heart of his evolutionist theory of civilization. For uniform development
and uniform stages of growth also imply similarities and parallels. thus such a theory also
affords the means to approach data, to rationalize, and to reconstruct events in the past by
using the analogy of the present. in a word, analogy serves as a kind of rational principle
in thucydides’ speculative reconstruction of the past» (Hunter 1982: 112-113).
125
«[...] l’autopsie n’est pas une donnée immédiate, il convient de la filtrer par toute
une procédure de critique des témoignages pour établir les faits avec autant d’exactitude qu’il
est possible» (Hartog 2005: 76).
518 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

por um dos lados ou devido à memória» (i. 22. 3). mas também dá testemunho
das fragilidades da memória noutros passos. o caso mais notório ocorre quando
Nícias, o chefe da expedição ateniense à sicília, quer avisar a cidade da sua
situação crítica e envia, como é normal, mensageiros. Porém, receando que eles
acabassem por ter alguma falha de memória ou que contassem não a realidade
mas o que a multidão queria ouvir, decide redigir uma carta (cf. tucídides: Vii.
8. 2). Neste contexto, vale a pena referir também o comentário do historiador
a propósito da forma como os atenienses adaptaram um oráculo de que se
recordavam à realidade da peste, lendo loimos (peste) onde o oráculo dizia –
de acordo com tucídides – limos (fome): «os homens usam a memória em
consonância com o que lhes acontece»: οἱ γὰρ ἄνθρωποι πρὸς ἃ ἔπασχον τὴν
μνήμην ἐποιοῦντο (tucídides: ii. 54. 3)126.
saber historicamente é ter um conhecimento claro e distinto, é também
ver claro (saphes skopein). mas ver não é garantia imediata de saber. É a akri-
beia que deve, na medida do possível, transformar o ver em saber ou em “ver
claro”, é ela que deve assegurar a conformidade da narrativa ao real, ou
melhor, fazer com que a narrativa diga as coisas na sua evidência. Por conse-
guinte, «a akribeia é o outro nome da verdade» (Hartog 2005: 95). a história
não se limita a ser memorial, mais do que isso é investigação da verdade127.
Não só o que o historiador viu, mas mesmo o que as testemunhas dizem ter
visto deve ser submetido a crítica cerrada. isto traz à liça a problemática que
já tivemos em mãos a propósito de La mémoire, l’histoire, l’oubli: a relação
entre o historiador e a testemunha e a história e a memória. Não vamos repetir
as extensas e convincentes reflexões de ricœur sobre a matéria. tentemos ape-
nas circunscrever esta problemática ao âmbito da História da Guerra do Pelo-
poneso e veremos emergir algumas das questões que mobilizaram a reflexão do
filósofo francês. Podemos começar por dizer que tucídides faz apelo implícito,
nas suas declarações metodológicas acima citadas, a uma das condições funda-
mentais que ricœur impunha a qualquer crítica de testemunhas: a possibilidade
de desconfiar. relembramos que a possibilidade de desconfiar abre um espaço

126
«thucydides, i suggest, repudiates the traditional function of memory along with the
poets, the logographers, and oral performance. thucydides’ veridicality rests on mental oper-
ations of another sort. the archaeology, a display of reasoning from evidence and probability,
rejects nor only the poets’ account but also their traditional authority, namely, memory»
(edmunds 1993, in rusten 2009: 111).
127
«et l’histoire «véritable» est non pas mémorial ou historia, mais zetèsis tès alè-
theias, recherche et quête de la vérité, c’est-à-dire aussi enquête, au sens judiciaire du mot»
(Hartog 2005: 95).
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 519

de polémica onde diversos testemunhos e testemunhas podem ser confrontados.


Há sempre a possibilidade de perguntar a outra testemunha. o próprio decla-
rante o admite ao dizer: “eu estava lá, acreditem, mas, se não acreditam, per-
guntem a outro”. a testemunha é aquele que aceita ser convocado e responder
a um apelo eventualmente contraditório.
continuando a descortinar este paralelismo entre o filósofo francês e o
historiador ateniense, parece-nos que ambos admitem (o filósofo explicitamente)
que o historiador só começa a ser historiador a partir do momento em que
opera um afastamento crítico relativamente à testemunha e à memória. a his-
tória tem autonomia e privilégios únicos, nomeadamente a função de corrigir a
verdade que a imediatez da memória nos transmite. e o primeiro a manifestar
consciência desta separação foi tucídides, no prólogo metodológico. em ambos,
o testemunho aparece como estrutura de transição entre a memória (proveniente
da autopsia) e a história, com a consequência de uma fronteira nítida entre tes-
temunha e historiador. este é também um tema caro a Hartog:
Le témoin n’est pas un historien et l’historien, s’il peut être, le cas échéant, un
témoin, n’a pas à l’être, et surtout ce n’est qu’en prenant ses distances par rapport
au témoin (tout témoin, y compris lui-même) qu’il peut commencer à devenir his-
torien. Être témoin n’a ainsi jamais été ni une condition suffisante ni même une
condition nécessaire pour être historien. mais cela, thucydide déjà, nous l’avait
appris [2005: 236].

a memória, para além de gozar do privilégio único do reconhecimento, é


a guardiã de algo que efetivamente ocorreu no tempo, por isso a memória
declarativa da testemunha é fundamental para o processo historiográfico: «Le
témoignage en effet commence avec la mémoire elle-même prise à son niveau
déclaratif: la mémoire se dit et se raconte» (ricœur 1996: 10). No entanto, ape-
sar de imprescindível e valiosa, a presença da memória e do testemunho na
operação historiográfica não é um facto pacífico. Já não o era para tucídides.
o tema do testemunho está na ordem do dia desde há três décadas a esta
parte. durante muito tempo, a história foi história do passado, assente sobre-
tudo em memória arquivada. o Holocausto nazi aproximou novamente os his-
toriadores daquele tipo de história praticada por tucídides: uma história do pre-
sente, que tem como principais fontes de informação testemunhos orais
provenientes de testemunhas oculares128. os historiadores, que estavam habitua-

128
«Qui veut réfléchir sur le phénomène du témoignage ne peut en effet que partir de
la centralité présente d’auschwitz et donc, aussi ou d’abord, de la centralité de l’Holocauste
(pour lui donner son nom anglais) dans l’espace américain, où le phénomène peut être saisi,
520 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

dos a lidar com arquivos mortos do passado, viram-se subitamente confrontados


com testemunhas vivas, que clamavam por justiça e que narravam experiências
horríveis, difíceis de compreender e de representar. este facto gerou uma dupla
crise: dos testemunhos e da própria história.
duas questões capitais se afiguram neste contacto com a história do pre-
sente. a primeira, que também constituiu uma preocupação para tucídides, tem
que ver com a crítica de testemunhos. É que o historiador não tem através do
testemunho ou da memória declarativa um conhecimento imediato nem seguro
do passado. só a partir da sua análise e comparação com outros testemunhos
o historiador o transforma em prova, a qual lhe permite inferir factos ou modos
de compreensão dos atores de uma dada realidade social. esta forma de lidar
com as testemunhas é uma das glórias maiores da historiografia grega, declara
collingwood:
o trabalho de Heródoto ou tucídides dependia, principalmente, das declarações e
testemunhas oculares, com quem o historiador tinha contacto pessoal. e a sua
habilidade de investigador consistia em ter de interrogar uma testemunha de acon-
tecimentos passados, até conseguir que o espírito daquela evocasse um quadro his-
tórico daqueles acontecimentos, mais completo e mais coerente do que qualquer
outro que ele pudesse oferecer a si próprio. o resultado deste processo era criar
no espírito da testemunha, pela primeira vez, um autêntico conhecimento dos
eventos passados, que ela tinha apreendido como doxa acerca deles e não como
episteme. [...] em vez da negligente convicção, por parte da testemunha, de que
as suas recordações espontâneas se ajustavam aos factos, podia desenvolver-se, no
seu espírito, uma recordação apurada e criticada, que aguentasse o ataque de per-
guntas como: «tem a certeza de que se lembra exatamente disso? Não está a con-
tradizer o seu relato desse acontecimento com um relato tão diferente como o que
foi feito por fulano?» este método de usar testemunhas oculares é, indubitavel-
mente, aquele que sublinha a extraordinária solidez e consistência das histórias que
Heródoto e tucídides escreveram acerca da Grécia do século V [1989: 37-38].

No fundo, entre o que aconteceu e aquilo que se disse que aconteceu vai
uma grande distância. o uso de testemunhas implica, por conseguinte, que se

si j’ose dire, dans sa force et sa netteté» (Hartog 2005 : 239). Há uma infinidade de artigos
e livros sobre esta matéria. No entanto, quem quiser fazer uma reflexão séria sobre o teste-
munho não pode ignorar três livros aparecidos em finais dos anos 90: o do sociólogo renaud
dulong, Le témoin oculaire; o da historiadora annette Wieviorka, L’ère du témoin; e o do
filósofo Giorgio agamben, Ce qui reste d’ Auschwitz. sugerimos ainda a leitura do artigo de
maria inés mudrovcic: «el debate en torno a la representación de acontecimientos limite
del pasado reciente: alcances del testimonio como fuente», Diánoia 59, ii, novembro 2007,
127-150.
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 521

distinga o facto acontecido do facto rememorado. ricœur dizia que o facto da


asserção não coincide nunca com o facto realmente ocorrido que, de algum
modo, sobrevive na memória viva das testemunhas oculares. Nunca é demais
lembrar que a história é uma reconstrução. os factos não vão intactos para os
documentos nem deles saem intactos para a história129. aqui se compromete
uma outra dimensão da memória: a memória arquivada. É que mesmo os regis-
tos orais só se tornam documentos depois de registados por escrito. Nesse sen-
tido, podemos dizer que a memória é arquivada, documentada. o seu objeto
deixa de ser uma recordação, isto é, deixa de estar numa relação de apropriação
e continuidade com o presente da consciência. a memória arquivada tornada
prova documental é o substrato da história, estrutura fundamental de transição
e de rutura entre a memória e a história. o arquivo rompe com o “ouvi dizer”
da tradição oral e a prova documental marca a entrada em cena da disciplina
científica, com metodologia própria, que é a história.
Não sabemos como procedeu tucídides, porém, a hipótese mais plausível
é que, à falta de registo áudio, tenha anotado por escrito os relatos das teste-
munhas, ou seja, terá constituído documentos, a menos que possuísse uma
supermemória e os registasse mentalmente. esses mesmos registos não foram
transcritos verbatim para a História, pois também neste processo se instala um
desnível crítico. sobre esta transposição tucídides nada nos diz. tal como tam-
bém não sabemos em que momento operou a sua crítica de testemunhos, antes
ou depois da sua anotação por escrito. ainda assim, o mais lógico é que tenha
sido depois, como fazem os historiadores atuais.
a segunda questão que anda enredada na problemática dos testemunhos
tem que ver com a representação de acontecimentos limite, como tivemos opor-
tunidade de refletir com ricœur. É uma questão central para a dicotomia his-
tória e ficção e tem sido alvo de acesas polémicas entre historiadores e filóso-
fos. Basta recapitular o debate entre Haydem White e Ginzburg. o problema
levantado pela questão do testemunho, particularmente do testemunho de expe-
riências limite, consiste, numa primeira instância, em saber como recolher tes-
temunhos de acontecimentos de tal modo estranhos e bizarros que ultrapassam

129
«[...] il faut refuser la confusion initiale entre fait historique et événement réel remé-
moré. Le fait n’est pas l’événement, lui-même rendu à la vie d’une conscience témoin, mais
le contenu d’un énoncé visant à la représenter. en ce sens, il faudrait toujours écrire: le fait
que ceci ou cela est arrivé. ainsi compris, le fait peut être dit construit par la procédure qui
le dégage d’une série de documents dont on peut dire en retour qu’ils l’établissent» (ricœur,
MHO, 227).
522 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

a nossa capacidade de compreensão e de empatia130. em segunda instância,


como representar/exibir historiograficamente estes acontecimentos extremos do
passado recente, mantendo fidelidade aos testemunhos dos sobreviventes e, ao
mesmo tempo, fazendo-lhes justiça? tucídides, em situação muito idêntica à
refletida por ricœur, isto é, tendo de lidar com sobreviventes de uma guerra
descrita como extremamente violenta e traumática, não aborda diretamente o
assunto. mas também não precisava de o fazer. a sua obra fala por si. a forma
como o historiador ateniense representa/exibe com vividez retórica (enargeia)
acontecimentos limite será para nós um caso de estudo e uma exemplificação
prática das teses de Paul ricœur. em harmonia com as opções estratégicas do
filósofo francês, em L’histoire, la mémoire, l’oubli, reservamos este tema para
o terceiro momento da operação historiográfica, que corresponde ao último capí-
tulo da nossa exposição. concentremos, por agora, a nossa análise nos indícios.

1.4.  Semeion e tekmerion

temos dito à saciedade que o testemunho, que se funda na memória


(mneme), requer a intervenção do historiógrafo por uma exigência de exatidão
(akribeia) e que esta evidência metodológica teve em tucídides o seu primeiro
mentor. usando terminologia ricœuriana, diremos que tucídides percebe que há
dois estádios diferentes da operação historiográfica: o da prefiguração consti-
tuído pelos traços do passado (indícios e testemunhos); e o da configuração ou
reformulação semiótica do passado:
il y a donc au-delà des siècles une leçon à tirer des remarques méthodologiques
formulées par thucydide sur le métier de l’historiographe: impossible pour qui
envisage les marques du passé dans leur disparité non pas en philosophe, mais en
praticien de la reformulation de ce passé, d’éluder la mise en forme d’ordre
sémiotique [calame 2007: 5].

os traços do passado permitem estabelecer a mediação entre o espaço e


o tempo da enunciação e o hic et nunc extradiscursivo. No fundo, fazem a
ponte entre o texto e a realidade do passado, entre configuração e prefiguração.

130
«or l’expérience à transmettre est celle d’une inhumanité sans commune mesure
avec l’expérience de l’homme ordinaire. [...] Pour être reçu, un témoignage doit être appro-
prié, c’est-à-dire dépouillé autant que possible de l’étrangeté absolue qu’engendre l’horreur.
cette condition drastique n’est pas satisfaite dans le cas des témoignages de rescapés»
(ricœur, HMO, 223).
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 523

calame, cruzando a teoria narrativa ricœuriana com a pragmática linguís-


tica e a historiografia grega praticada por Heródoto e tucídides, estuda «a
questão do papel desempenhado pelos traços, indícios e testemunhos visuais ou
orais entre a prefiguração e a configuração, numa historiografia que se nos
apresenta como contendo uma forte componente ficcional» [2007: 2].
entre estes dois estádios da prefiguração e da configuração, o historiador
constitui o documento, isto é, deve selecionar e analisar dentre a disparidade
das marcas do passado as que têm valor de indício para as questões que mobi-
liza o seu espírito interpretante:
entre préfiguration et configuration, cette fabrication transforme toute trace en
indice ou, pour employer le terme consacré par la discipline, en document appe-
lant lecture et interprétation. [...] Foucault nous a rappelé que la constitution des
traces du passé en documents fait partie intégrante du travail d’élaboration de
l’histoire [calame: 5].

esta ideia de “trace” fundadora do documento tem em tucídides um pre-


cursor, nomeadamente, no indício (semeion) e na marca de reconhecimento
(tekmerion) que o mesmo concebe para a história131. estes são dois conceitos
usados por tucídides profusamente nos dois primeiros livros da obra, aqueles
onde o emprego de linguagem técnica é mais frequente. É possível encontrar-
mos nos dois primeiros livros termos como semeion (indício), tekmerion
(prova), martyrion (testemunho), termos raros na restante obra. este facto
explica-se principalmente pela forte presença da arqueologia no livro i, pelas
proposições metodológicas, pela incursão na vida de Pausânias, temístocles, e
na topografia ateniense, e pela digressão antiquária no início do livro ii.
os manuais de retórica aristotélica distinguem semeion de tekmerion com
base na seguinte diferença: semeion é um indício, que pode ser falível, apon-
tando para um resultado; tekmerion aponta para um resultado que necessaria-
mente ocorrerá. Por exemplo, se uma mulher tem os peitos cheios de leite, isto
é sinal (tekmerion) de que tem um bebé. em tucídides, a expressão tekmerion
de surge com o sentido de “uma prova disso é o seguinte”. É usada várias
vezes. tucídides sabe que a guerra do Peloponeso é maior do que as anteriores,
porque deduziu-o (tekmairomenos) da situação atual da Grécia, bem como da
investigação acerca do passado, erigida a partir de uma prova (tekmerion) que

131
«L’idée de «trace» fondant le document en histoire trouve en quelque sorte un pré-
curseur dans le semeion, dans l’indice et dans le tekmérion, la marque de reconnaissance tels
que les conçoivent thucydide» (calame 2007: 4).
524 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

ele considerou fiável (i. 1. 1). a melhor prova (tekmerioi de malista) para o
surgimento tardio do nome “Helenos” é fornecida pela sua ausência nos poemas
homéricos (i. 3. 3). Na arqueologia, a imagem dos tempos antigos baseada em
provas (ton tekmerion) é oposta à imagem baseada em elementos fantasiosos (to
mythodes) fornecida por poetas e logógrafos (i. 21. 1 e i. 20.1). Para explicar
porque é que acredita que a acrópole e a zona sul de atenas foram em tempos
a cidade, tucídides diz: «e a prova disso (tekmerion de) é que há inúmeros
templos na encosta sul» (ii. 15. 4). No relato da peste, também usa a mesma
expressão para provar que os animais que normalmente se alimentam de carne
humana putrefacta a recusam desta vez, porque se o fizessem morriam. e a
prova (tekmerion de) é que as aves necrófagas desapareceram (ii. 1. 2).
e ainda, no discurso de Péricles, a prova (tekmerion de) de que os atenienses
conseguiam conciliar uma vida descontraída com o ardor guerreiro é que os
espartanos tiveram que juntar reforços para os atacar, não o conseguindo fazer
sem a ajuda de aliados (ii. 39. 2).
Partindo destes exemplos podemos dizer que o emprego que tucídides faz
do termo tekmerion não corresponde à definição aristotélica nem ao uso que
dele fizeram os precursores da filosofia aristotélica. o que o historiador faz é
inferir a causa do desaparecimento das aves ou do ardor bélico dos atenienses,
mas não descarta a hipótese doutras explicações alternativas ou complementa-
res. o termo não possui, pois, um sentido técnico em tucídides. e também não
é possível na sua obra fazer qualquer distinção entre semeion e tekmerion, pois
estes são usados indistintamente, como se pode comprovar na digressão pela
vida de Pausânias, no livro i. os éforos espartanos dizem não possuir nenhuma
prova (semeion) clara contra Pausânias, sem a qual se recusam a agir contra um
homem da realeza. apenas quatro parágrafos depois reiteram a vontade de não
agir contra o espartano sem provas claras, usando para “provas claras” a
expressão tekmeria (tucídides: i. 132).
Não obstante, há uma outra passagem onde o historiador grego parece dis-
tinguir os conceitos. dizer que micenas deve ter sido insignificante porque é
fisicamente pequena é usar, segundo tucídides, uma prova (semeion) inexata.
aqui o conceito semeion parece assumir aquele traço de falibilidade que aris-
tóteles mais tarde lhe reconhecerá, o que leva Hornblower (1987: 104) a con-
cluir que há passagens como a de micenas em que de facto a distinção entre
semeion e tekmerion é observada e outras como a de Pausânias onde essa dis-
tinção não é mantida.
Por sua vez, observa Hornblower, o termo martyrion (testemunho) é usado
para dizer o mesmo que tekmerion, podendo considerar-se o primeiro uma
variação do segundo. Já paradeigma é usado, por vezes, no contexto arqueo-
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 525

lógico. o facto de as pessoas se terem refugiado na Ática é uma prova (para-


deigma) de que a Ática era uma região mais segura do que qualquer outra da
Grécia. Na Retórica de aristóteles e na Retórica a Alexandre, o termo tem o
significado de “exemplo”. Não é com esse sentido que tucídides o emprega,
apenas como prova. Logo, pode concluir-se, não há correspondência entre o uso
que tucídides faz destes termos e a sua posterior categorização retórica; porém,
o facto de, por vezes, essa categorização parecer presente de forma incoativa,
deixa-nos crer que tucídides terá inconscientemente contribuído para ela:
to sum up, thucydides’ language about his use of evidence does not fit the later
oratorical and rhetorical categories, though sometimes the later distinctions (to
whose formulation thucydides may have himself unconsciously contributed) seem
be inchoately present. His vocabulary for intellectual inquiry has affinities with
that of the sophocles of the Oedipus Tyrannus [Hornblower 1987: 108].

No fim de contas, o que não podemos ignorar é que tucídides reconstrói


os tempos antigos (ta palaia) a partir de tekmeria, isto é, de marcas de reco-
nhecimento e de identificação verbais e visuais/espaciais – o próprio termo tek-
mar remete para a ideia de “ver”. estes indícios são transformados em provas
(pisteis) pela argumentação interpretante do historiador ateniense. os indícios de
ordem visual e espacial do presente (ex: os templos na encosta sul de atenas
e o tamanho atual de micenas) podem corroborar ou infirmar, para o passado
longínquo, o que os versos dos poetas como Homero são suscetíveis de revelar.
cabe ao historiador observar e ajuizar o que é digno de fé ou não, cabe-lhe a
ele a importante tarefa de contrastar a desconfiança gerada pela visão com a
confiança habitualmente atribuída aos indícios provenientes da tradição132.

Não podemos fechar este capítulo sobre as provas em tucídides sem evo-
car as meditações de carlo Ginzburg acerca de «História, retórica e prova»
(1999), que têm na História de tucídides e na Retórica de aristóteles preciosos
aliados133. o historiador, autor do paradigma indiciário e impulsionador da

132
«dans cette combinaison souvent contradictoire de signes visuels présents et d’in-
dices verbaux transmis par la tradition (ho lógos), le travail d’observation (skopeîn) et d’éva-
luation (nomízein) de la part de celui qui rédige par écrit est essentiel. c’est de lui que
dépend la défiance (apistía) que suscita en général la vue en contraste avec la confiance (pis-
teúein) à accorder aux indications données par les vers épiques d’Homère» (calame 2007: 4).
133
«my focus on proof leads to a much greater emphasis on thucydides’ bold use of
archaeological or literary clues as evidence for a conjectural reconstruction of a distant past»
(Ginzburg 1999: 48). Na verdade, era inevitável que mais dia, menos dia Ginzburg acabasse
526 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

micro-história, encontra na Retórica de aristóteles, e na secção em que esta


apela às tekmeria, um poderoso instrumento de combate contra o relativismo
histórico e uma forma de demonstrar como retórica e prova se podem conciliar:
i believe, instead, that any discussion about history, rhetoric, and proof must set
out from the text that Nietzsche, after he had studied and translated it for his
Basel classes, then set aside: aristotle’s Rhetoric [Ginzburg 1999: 21].

Para Ginzburg, é de evitar os extremos do positivismo e do post-moder-


nismo: seja o de ver nas fontes um acesso imediato (“open windows”) ao pas-
sado, seja o de ver nelas um muro impenetrável. Podemos comparar as fontes
a “distorting mirrors” (ibid.: 25). a análise de uma distorção específica de cada
fonte específica já implica um elemento construtivo. mas esta construção, como
tenta demonstrar Ginzburg, não é incompatível com a prova: «[...] the projec-
tion of desire, without which there is no research, is not incompatible with the
refutations inflicted by the principle of reality. Knowledge (even historical
knowledge) is possible» (ibid.).
aristóteles repudia quer a aceção sofística de retórica, enquanto técnica
persuasiva através da moção dos afetos, quer a de Platão no Górgias, que pura
e simplesmente rejeita a retórica. o estagirita encontra nas provas o coração
racional da retórica. É nestas provas que o historiador italiano encontra a cone-
xão entre a historiografia dos tempos modernos e a retórica tal como é inter-
pretada por aristóteles, por muito que a conceção aristotélica de prova seja
diferente da nossa (1999: 39).
a discrepância entre os significados que aristóteles e tucídides atribuem
aos conceitos de semeion e tekmerion são provas suficientes de que o estagirita
não define os termos com base na leitura da obra de tucídides (cf. Ginzburg
1999: 44-45). No entanto, a atividade dedutiva ou conjetural levada a cabo por
tucídides na arqueologia corresponde à noção aristotélica de entimema134.
Nesse caso, talvez as famosas considerações de aristóteles na Poética acerca da
diferença entre história e poesia não visassem tucídides – deduz Ginzburg:

por pegar no trabalho conjetural ou indiciário desenvolvido por tucídides na arqueologia, de


tal modo ele corresponde ao paradigma indiciário que o historiador italiano propôs para as
ciências semióticas, por oposição às ciências exatas. apenas Ginzburg estabeleceu os indícios
como corroborantes dos testemunhos e tucídides opera apoiado exclusivamente nos indícios.
Por outro lado, é de estranhar que Ginzburg nunca se refira ao facto de tucídides considerar
o conhecimento por indícios fundamentalmente insuficiente, quando comparado com o conhe-
cimento que os testemunhos permitem alcançar.
134
sobre a utilização de entimemas por tucídides vide romilly 1990: 73-77.
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 527

thucydides (especially thucydides the archaeologist), who repeatedly used argu-


ments based on enthymemes, “which are the body of proof” (Rhetoric i. i.3),
might have appeared to aristotle to be a different and less problematic case
[ibid.: 46].

Para já, deixamos de parte esta nota que será alvo de atenta análise no
próximo capítulo. das reflexões de Ginzburg importa-nos reter os princípios
identificativos da historiografia que o historiador italiano extrai da Retórica
aristotélica e que colocam tucídides no grupo dos verdadeiros historiadores –
distintos daqueles que aristóteles desqualifica na Poética e que praticam uma
historia semelhante à de Heródoto. em primeiro lugar, a história humana pode
ser reconstruída com base em traços, pistas, semeia. em segundo, estas recons-
truções implicam uma série de conexões, simultaneamente naturais e necessárias
(tekmeria) que podem ser vistas como certas, até que alguém prove o contrário.
terceiro, fora desta esfera de conexões naturais, os historiadores lidam com o
provável ou verosímil (eikos), nunca lidam com certezas.
a expressão hos eikos é típica de tucídides, mas não é fácil perceber se
se refere ao natural ou ao verosímil. todavia, desde tucídides que os historia-
dores sempre procuraram preencher os vazios das suas fontes com provas natu-
rais ou necessárias, certas135. assim, é possível reunir dentro da mesma catego-
ria aqueles que na Grécia antiga usam provas e entimemas, como tucídides (o
arqueólogo), aristóteles (o antiquário), o juiz, o médico, o orador, mas já não
Heródoto136.
com base nestes indícios literários, Ginzburg conjetura sobre o provável
conhecimento que o aristóteles da Retórica tinha de tucídides arqueólogo.
in this reading of the Rhetoric, it seems likely that the archaeological (that is,
antiquarian) dimension of thucydides’ work might have found a sympathetic rea-
der in aristotle, whose general attitude toward history could be reconsidered in the
light of the references to an inferential knowledge of the past included in this
writing [Ginzburg 1999: 48].

135
«[...] from thucydides’ time until today historians have tacitly filled the gaps in
their evidence with what is (or what they regard as) natural, self-evident and therefore cer-
tain» (Ginzburg 1999: 47).
136
«the judicial orator who reconstructed an event of the past by scrutinizing clues
and witnesses was closer to thucydides the archaeologist (and to aristotle the antiquarian)
than to Herodotus, a historian who was not particularly concerned either with proofs or with
enthymemes» (Ginzburg 1999: 47).
528 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

Voltaremos a esta tese de Ginzburg no próximo capítulo, quando incidir-


mos sobre as polémicas declarações de aristóteles na Poética, a propósito de
história e poesia. a riqueza da leitura de Ginzburg está em demonstrar que, na
antiguidade clássica, aristóteles conciliou retórica com provas, apresentando
um esquema onde a historiografia, tal como a praticou tucídides na arqueolo-
gia e o próprio aristóteles na redação de listagens, tem lugar. assim, é possível
conciliar história com ficção. as provas impedem a história de esbarrar total-
mente para a retórica ficcional, a retórica evita que a história seja apenas um
museu137.

2. cONfiGURAÇÃO NARRATiVA E EXPLicAÇÃO

No capítulo anterior, vimos que a atividade do historiador não termina


com a recolha de informações em bruto, mas inicia-se aí. o historiador deve
joeirar as informações, escrutiná-las e purgá-las de erros e parcialidades, e
depois analisá-las para preencher lacunas e avaliar a sua importância. a história
de tucídides é, pois, muito mais do que uma simples crónica. Por isso, o autor
tem o cuidado de nos informar da dificuldade de registar palavras e factos, de
como estava consciente dos problemas com que deparou na recolha e análise
dos dados e de como os tratou com o máximo de rigor.
Neste capítulo, passamos a um outro estádio da operação historiográfica,
o da configuração narrativa e explicativa. dentre os vários objetos que é pos-
sível recortar dentro do campo da mutação social (objeto da história enquanto
ciência social), tucídides opta pelo político-militar. Normalmente, este tipo de
objeto, de caráter eminentemente factual, é propenso a análises temporais de
curta duração, a explicações através de razões (William dray), imputáveis a
indivíduos singulares. aparentemente, a história de tucídides parece fundar a
trilogia idólatra (do acontecimento político, da curta duração e dos líderes) que
séculos mais tarde levará a história económico-social a divorciar-se da narrativa
e da história metódica. No entanto, a tendência de tucídides para generalizar,
para se concentrar nas constantes e nas estruturas do comportamento humano,
fugindo constantemente das particularidades e elevando por vezes a explicação

137
«the fashionable reduction of history to rhetoric cannot be rejected by claiming that
the relationship between history and rhetoric has always been tenuous and marginal. in my
view, that reduction can and must be rejected by rediscovering the intellectual richness of the
tradition started by aristotle, particularly its central argument: that proofs, far from being
incompatible with rhetoric, are its fundamental core» (Ginzburg 1999: 50).
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 529

histórica a um nível muito próximo da lei epistémica, dá-nos licença para espe-
cular sobre um tipo de modelo explicativo misto que concilia o modelo regular
(generalidades) com um modelo de tipo teleológico (motivos pessoais). esta
combinação está em consonância com a conceção tucididiana de tempo e de
natureza humana, com o seu desejo de transcender o mundo sensível e instável
das opiniões e fixar a sua história no plano imutável que aristóteles reservará
para a ciência e para a poesia. a harmonizar estes dois tipos de explicação
(nomotética e idiográfica) num todo inteligível e coeso está a mise en intrigue
ou mimesis ii, no sentido ricœuriano do termo. É ela que confere ao texto a
followability ou a inteligibilidade que nos permite compreendê-lo à medida que
o vamos seguindo. isto significa que, mesmo que no extremo queiramos ver na
História de tucídides um conjunto rudimentar e necessariamente precoce de
leis e estruturas psicológicas e sociológicas, esta nunca deixa de ser narrativa.
o que faz dela narrativa são os mesmos fatores que ricœur explora na história
estrutural e de longa duração praticada por Braudel: a intriga, as personagens,
os acontecimentos. mas ainda que admitamos algumas similitudes, com base
nas reflexões de Virginia Hunter, não podemos deixar de notar que a distância
que separa tucídides de Braudel é tão extensa como a que vai de tucídides aos
historiadores da escola metódica. estamos sempre no plano das parecenças e
não da igualdade.
descontando o facto de a imputação causal em tucídides não obedecer
aos critérios metodológicos que se impõem atualmente aos historiadores profis-
sionais – tanto lhe falta exibir as provas documentais dos motivos alegados,
como ter acesso aos métodos quantitativos e estatísticos que lhe permitissem
generalizar com segurança ou às ciências sociais a quem pudesse pedir empres-
tadas as leis –, é possível encontrar em tucídides uma forma paralela do jogo
de compreensão/explicação que ricœur define como típico da ciência histórica,
baseado nas teorias da imputação causal singular de collingwood, max Weber,
raymond aron. mantendo, então, as reservas que se prendem com ferramentas
e técnicas acessíveis só aos historiadores do século XX, parece-nos totalmente
legítimo realizar este exercício intelectual que continua a aprofundar a História
de tucídides à luz da história moderna e que acentua ainda mais não só o cará-
ter incoativo e precursor da História da Guerra do Peloponeso como possíveis
semelhanças na consciência de tempo. de facto, subtraindo o vertiginoso
avanço tecnológico do mundo contemporâneo, após o abandono da visão pro-
gressista do devir e da história, o tempo não é mais, para os ocidentais, um
devir acumulativo, parecendo tender mais para um modelo quase cíclico e
quase estacionário. a própria concentração quer nas estruturas e ciclos, quer no
tempo presente e nas testemunhas são indícios fortes de que a forma como nós
530 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

encaramos o devir histórico e a natureza humana terá mudado ao longo do


século XX, apresentando agora traços que nos fazem lembrar a mentalidade
grega do século V a. c. talvez o nosso tempo tenha deixado de ser um tempo
de promessa e de salvação para passar a ser um tempo de repetição cósmica.
mas não é aqui o espaço para explorar esta tese digna de sério e amplo estudo.
a hibridez do modelo explicativo, que conjuga acontecimento e processo
ou motivo e “probabilidade sugerida”, reflete-se na forma como a própria nar-
rativa está estruturada138. Por um lado, tucídides narra a guerra de maneira que
esta nos parece estilizada e racionalizada; por outro, o relato não deixa de estar
preso à singularidade dos episódios sucessivos. tucídides não constitui leis, não
se afasta do que se passou num determinado local, em determinado momento,
e, no entanto, o significado da narração não se esgota nunca no anedótico, no
particular. Não há aqui nenhum paradoxo. o historiador narra ações imputáveis
a agentes. Não é preciso recorrer a leis para se perceber os motivos que leva-
ram determinado chefe de estado a falar de um modo ou um soldado a agir de
outro. Nós podemos compreender os seus motivos diretamente sem passar pelas
leis ou pelas proposições gerais. isto porque se trata de ações que max Weber
designa de zweckrational, ou seja, as que comportam um cálculo de meios
tendo em vista um fim. mesmo quando um acontecimento é inesperado, tucí-
dides procura torná-lo tão inteligível como os previstos:
L’intelligibilité de la conduite, instrumentale et aventureuse, se communique, aux
yeux de l’observateur, à l’événement qui n’a été voulu ou prévu par aucun acteur,
soit qu’il soit le résultat «accidentel» d’un chaos d’actions individuelles (cas de la
bataille de nuit), soit que la ruse d’un des partis ait jeté l’autre dans la confusion,
soit, enfin, que les phénomènes naturels, la nuit, le vent, l’éclipse de lune, aient
précipité des réactions que l’on comprend par référence à, et négation de, la déci-
sion adoptée [aron 1961: 136].

a passagem do acontecimento individual ao acontecimento supra-indivi-


dual faz-se através da narrativa, sem quebras de continuidade, sem necessidade
de substituir a reconstituição dos factos por proposições gerais, pelo simples
confronto de intenções e resultados. mas ao mesmo tempo que estende, gra-
dualmente, a inteligibilidade da ação desejada ao acontecimento inesperado,
tucídides eleva o acontecimento, querido ou não pelos atores, acima da parti-
cularidade histórica, iluminando-o com o emprego de termos abstratos, socioló-

138
«au lieu de lois formulées, l’œuvre de thucydide présente seulement des vraisem-
blances suggérées» (romilly 2005: 26).
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 531

gicos ou psicológicos. um exemplo é o caso já mencionado dos motivos que


levam os aliados de atenas a unirem-se a esta potência na expedição contra
siracusa: justiça, parentesco racial, interesse e obrigação (aron 1961: 137). o
relato não é interrompido e, no entanto, assoma uma análise que aron qualifica
de sociológica: «Le récit ne s’arrête pas et pourtant l’analyse que nous appe-
lerions sociologique affleure à la surface» (ibid: 138). Basta generalizar um
pouco mais para que estas interpretações tucididianas dos motivos singulares
que determinam as alianças sejam aplicáveis em qualquer século (ibid.). Neste
sentido diz-se que a guerra do Peloponeso é estilizada e idealizada. atenas e
esparta representam como que figuras tipo.
as reflexões de aron, precedidas pelas de romilly, fazem sobressair três
paralelos entre as epistemologias de tucídides e de ricœur: a articulação das
explicações com a narrativa; a utilidade das explicações; o caráter nomológico
das explicações.
a forma como tucídides entrelaça compreensão (explicação narrativa, o
um-por-causa-do-outro aristotélico) e explicação (proveniente do corte epistemo-
lógico que faz da história uma ciência social) corresponde à forma como o filó-
sofo francês articula narrativa e leis ou coerência narrativa e conexão explica-
tiva. a narrativa, enquanto síntese do heterogéneo, tem a capacidade e a
elasticidade de incorporar em si acontecimentos e leis sem perder followability.
assim, as explicações (independentemente dos seus graus de regularidade e de
universalidade) articulam-se com a compreensão narrativa. as leis só por si não
têm significado histórico, para o adquirirem têm de estar inseridas numa nar-
ração de acontecimentos regidos por elas, pois é a compreensão narrativa que
preserva o caráter irredutivelmente histórico da história. romilly não diz outra
coisa ao afirmar que tucídides nunca separa o conhecimento geral da narração.
as probabilidades estão plenamente integradas no relato dos factos139.
depois, podemos estabelecer uma correspondência entre a função que o
historiador ateniense atribui às generalizações (explicar um acontecimento
imprevisto ou incompreensível) com a função que ricœur atribui às explica-
ções: «expliquer plus pour comprendre mieux». a explicação tem como finali-

139
«[...] ce à quoi tend l’histoire de thucydide, c’est [...] à présenter un système de
vraisemblances indiscutable, rigoureux et complet; c’est, si l’on veut, à faire coïncider intégra-
lement le récit des faits et l’analyse des vraisemblances. il n’y a pas de connaissance générale
indépendante du récit, ni passage de l’un à l’autre. Les deux se recouvrent; et thucydide
s’emploie seulement – mais avec tout l’art possible – à mettre cette connaissance bien en
lumière, en écartant tout ce qui gêne et en soulignant tout ce qui compte» (romilly 2005: 28).
532 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

dade desbloquear e relançar a compreensão da narrativa quando um facto se


torna incompreensível; a explicação é o que permite seguir de novo a história
quando a sua compreensão foi interrompida.
Por fim, apesar de as generalizações tucididianas não terem a abrangência
de leis científicas nem resultarem de análises científicas, têm o gene de um
saber nomológico (probabilidades sugeridas, regras de comportamento) que nos
permite usá-las em dialética com a compreensão narrativa (esta mais voltada
para o acontecimento e para a explicação por razões). a explicação para a qual
tende sempre, de perto ou de longe, a história de tucídides é a que faz apelo
ao comportamento frequente ou habitual das pessoas, ao verosímil, diz romilly
(1956: 48). um entre muitos exemplos é o comentário que a dado momento o
historiador faz durante a campanha contra siracusa: «como era natural entre
gentes em dificuldade e mais estreitamente cercadas que outrora [...]»: οἶα δὲ
εἰκὸς ἀνθπώπων ἀπορούντων [...] (Vi. 103. 4). Portanto, são explicações que se
coadunam mais com aquele tipo de generalidades do senso comum – menos
universais e deterministas do que as leis – que a história partilha com a lin-
guagem quotidiana, no fundo, as regras de experiência de que fala max Weber.
também a margem que tucídides reserva ao imprevisto, ao acaso (tyche), no
devir histórico, livra a história do fatalismo e do determinismo, e deixa apro-
ximar as suas generalizações explicativas do tipo de explicação proposto por
aron para história: «[...] l’enquête causale de l’historien a moins pour sens de
dessiner les grands traits de relief historique que de conserver ou de restituer
au passé l’incertitude de l’avenir» (aron 1948: 224).

2.1.  Unidade narrativa e causalidade

desde o início da História da Guerra do Peloponeso fica patente a hie-


rarquia explicativa que leva tucídides a distinguir as causas profundas das
causas superficiais (ou pretextos) da guerra. a causa imediata da guerra entre
atenienses e espartanos é o diferendo entre corcira e epidamo e outros acon-
tecimentos secundários. mas há uma causa mais profunda e menos reconhecida,
a expansão ateniense e o medo que essa expansão inspirou aos espartanos,
impelindo-os para a guerra:
com efeito, a causa mais verdadeira [ἀληθεστάτη πρόφασις], mas menos manifes-
tada de palavra, creio que foi o facto de os atenienses com o seu engrandeci-
mento inspirarem temor aos Lacedemónios, empurrando-os assim para a guerra
[tucídides: i. 23. 6].
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 533

esta distinção causal foi enaltecida pelos comentadores modernos. Horn-


blower (1987: 30) reconhece que a maior inovação de tucídides foi a de desen-
volver, pela primeira vez na história do pensamento europeu, uma consciente e
secular teoria causal, dividindo-a entre causas superficiais e causas profundas.
momigliano, apesar de louvar a boa intenção de tucídides nesta discriminação
de causas, relembra que se há algo que o historiador não consegue é apontar
as razões mais remotas da guerra:
si hay algo que tucídides no logra hacer, es explicar los orígenes remotos del
conflicto entre esparta y atenas. toda la historia diplomática y social de los
treinta años precedentes a la guerra del Peloponeso está quizás irremediablemente
perdida para nosotros justamente porque no interesaba a tucídides. Hay tantas
cosas que no sabemos porque tucídides no procuró estudiarlas [1984: 157].

também subscreve as habituais críticas feitas ao historiador de não ter


prestado a devida importância às causas económicas e espirituais, a que outros
acrescentam as sociais, como se tucídides fosse um historiador do século XX
ou os fatores económicos e sociais fossem tão preponderantes e compreensíveis
na Grécia do século V a. c. como são atualmente140. tucídides refere amiúde,
sobretudo no primeiro livro, os fatores económicos, mas não lhes dá o relevo
que os historiadores modernos gostariam, pois omite um dos motivos mais
influentes para o desencadear da guerra, que foi a concentração do tesouro da
liga de delos nas mãos de atenas141. Há quem tente defender tucídides argu-
mentando que o económico está subsumido sob uma causa mais abrangente e
determinante: o interesse que mobiliza cada estado. o interesse engloba «souci
du bien-être, la sauvegarde de l’indépendance et la volonté d’être puissant»
(châtelet 1962: 254). aron defende tucídides com base no argumento de que
«la victoire militaire est le but» e esta não depende, em primeira instância, de
fatores económicos – embora estes não sejam descartáveis – mas do desejo de
liberdade (1948: 143-144). romilly não só demonstra que há imensas referên-

140
«[...] the kinds of explanations employed by the ancient historian are quite different
from those employed by the modern. the latter takes, or at least should take, account of the
social and economic, as well as the political, military, or diplomatic conditions that intersect
at a certain juncture to produce an historical event or series of events. thucydides neither
described social and economic conditions nor understood social and economic causes»
(Hunter 1982: 142-143).
141
este tesouro era constituído pelas contribuições monetárias dos aliados que não for-
neciam barcos aquando da guerra contra os Persas. após 450 a. c., já em período de paz, ate-
nas continua a exigir destes aliados, que consigo formaram a Liga de delos, o pagamento do
tributo, dando origem à ameaça imperialista que terá desencadeado verdadeiramente a guerra.
534 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

cias a elementos de ordem económica como justifica alguns silêncios de tucí-


dides pela necessidade de não interromper o curso da narrativa com comentá-
rios pessoais e pelo seu hábito de deixar de lado as variações e as oscilações
para procurar sempre o que dura e se repete, as grandes linhas142.
É uma característica do historiador ateniense, dada a conhecer ao mundo
pelo clássico estudo de romilly (Histoire et raison chez Thucydide), afastar
tudo o que é individual e pontual para reter apenas as causas profundas e as
constantes, cujo desenvolvimento se pode perceber, independentemente de qual-
quer responsabilidade individual, num longo prazo. É por isso que omite tudo
o que os historiadores modernos gostariam de saber sobre os indivíduos
daquela época, sobre os lugares, as surpresas e os segredos. os oradores que
intervêm na sua História apenas falam daquilo que é geral, deixando de parte
as singularidades. Falam, essencialmente, de natureza humana e, desse modo,
projetam sobre o acontecimento uma significação universal. só assim tucídides
podia cumprir o objetivo de deixar para a posteridade uma obra útil para quem
quisesse ver claro nos acontecimentos passados e nos que no futuro, em virtude
do caráter humano, apresentarão similitudes ou analogias.
a dissecação que romilly faz do texto tucididiano põe a descoberto uma
verdadeira síntese do heterogéneo, um agenciamento de factos díspares agluti-
nados em torno de temas gerais (generalizações), que nos trazem de imediato
à mente as teorias literárias de aristóteles e ricœur. de facto, a inteligibilidade
que o historiador confere ao seu relato consiste na transformação de um con-
junto solto de acontecimentos num todo coeso, causalmente aglutinados em
torno de proposições gerais que fazem da sua obra uma ciência do homem.
a tese que percorre o estudo de romilly insiste nesta unidade profunda da obra
de tucídides ou no que, em termos ricœurianos, designamos de configuração
narrativa, com as suas duas componentes essenciais: episódico-linear e configu-
rante. os vários acontecimentos e episódios interligam-se como vasos comuni-
cantes e vão-se expandindo gradualmente para dar corpo às ideias gerais ou aos
fios condutores que enformam o seu texto – tendo à cabeça o imperialismo ate-
niense. Não se trata de uma unidade explícita ou declarada por tucídides, mas
resulta de opções compositivas:

142
«Le silence sur l’augmentation du tribut peut s’expliquer dans cette perspective.
thucydide répétera dix fois, s’il le faut, que le tribut, et les ressources qu’il apporte, sont la
clef de la puissance athénienne; mais il ne s’arrêtera pas aux chiffres ni aux variations qui
passionnent les historiens modernes, penchés sur les listes retrouvés dans les «a. t. L.», ou
Athenian Tribute Lists. il cherche ce qui durera. il cherche, comme il dit, «la cause la plus
vraie». il élague. il ne retient que les grandes lignes» (romilly 2005: 114).
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 535

cette unité qui, de proche en proche, relie les événements entre eux, n’est jamais
exprimée directement; et aucune interprétation ne semble s’ajouter à la stricte
mention des faits. mais le choix effectué par l’historien impose cette unité: les
faits qu’il retient sont tels qu’ils en portent témoignage. thucydide part du désor-
dre des faits bruts, ou plus exactement – puisqu’il est difficile de faire intervenir
une notion objective aussi suspecte – du désordre qui peut se manifester quand
parviennent à l’historien des relations diverses, toutes incomplètes, et établissant
des points de vue divers; sur ce désordre, on dirait qu’il pose une grille; cette
grille dissimule tout ce qui à ses yeux est adventice pour ne laisser transparaître
que des éléments liés entre eux par un rapport interne: à ce moment-là, comme
un message s’exprime par une série de lettres quand on cache celles qui ne comp-
tent pas, l’ensemble devient lisible, prend un sens [romilly 1956: 33].

segundo a classicista francesa, o método de tucídides consiste em reter


apenas o que é contínuo, o que confere followability ao texto – dizemos nós –,
e em deixar esta continuidade desenrolar por si própria, aos olhos do leitor, os
parentescos de que o historiador se apercebeu143. É deste modo que o conjunto
se torna legível, ganha sentido e pode ser compreendido. Por conseguinte, tucí-
dides escolhe só os acontecimentos que possam contribuir para o progresso da
narrativa, deixando de fora tudo o que é adventício, acidental144. esta caracte-
rística faz com que na sua obra não haja nada a mais:
comme thucydide élimine tout ce qui est adventice, pour ne retenir que ce qui
sert à la progression d’une action, et inversement il s’attache à cette action sans

143
esta rede estende-se também ao vocabulário, ao paralelismo entre expressões e ter-
mos. «desde os elementos vizinhos de uma narrativa simples até às articulações distantes de
uma narrativa complexa» pode dizer-se que a obra de tucídides está cheia de ecos, de asso-
ciações, de correspondências» (romilly 1956: 39). em cada página é possível encontrar uma
frase que sugere, pela forma ou pelo conteúdo, uma outra frase de uma outra página. as
similitudes verbais contribuem grandemente para a unidade da obra. tucídides talvez até nem
tivesse consciência desta similitude verbal de que fala romilly e foi preciso esperar pelas lei-
turas de L. Bodin e J. H. Finley para notarmos estas aproximações, correspondências e com-
binações curiosas. Não obstante, salienta a mesma autora, os Gregos eram muito subtis e
nada nos garante que este sistema verbal quase matemático, tal é a sua precisão, não fosse
fruto de um método deliberado e intencional para atingir determinado efeito. os ensinamentos
dos sofistas forneceram aos Gregos um conjunto de ferramentas de composição literária que
lhes permitia explorar simbolismos, efeitos sonoros e imagéticos.
144
como sempre, no que diz respeito à obra de tucídides, é possível encontrar um
ponto de vista oposto. Hornblower é de opinião que na obra de tucídides há muito material
repetitivo e fortuito: «[...] there is in thucydides much adventitious and repetitive material»
(1987: 34). Portanto, não se pode aceitar a análise de romilly de tucídides como um escritor
que ignora tudo o que é fortuito: «[...] it is better just to accept that the view of thucydides
as a writer who ‘ignores everything adventitious’ is simply wrong» (ibid.: 9-10).
536 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

en négliger aucun élément, il semble que son récit s’érige en démonstration. Les
conditions retenues par lui sont, par rapport au résultat, nécessaires et suffisantes.
on ne peut rien ôter, rien changer. et la cohérence même qu’affecte le récit – des
prémisses aux conclusions – prend un air de nécessité [romilly 1956: 48].

são por demais evidentes as correspondências com o modelo trágico que


mais tarde aristóteles descreverá na Poética. Não resistimos a citar um dos
vários excertos onde o estagirita põe a tónica na ideia de intriga trágica como
um corpo unificado, cujos acontecimentos são aglutinados por laços de verosi-
milhança ou necessidade:
Portanto, assim como nas outras artes imitativas a um só objeto corresponde uma
só imitação, também o enredo, como imitação que é de uma ação, deve ser a imi-
tação de uma ação una, que seja um todo, e que as partes dos acontecimentos se
estruturam de tal modo que, ao deslocar-se ou suprimir-se uma parte, o todo fique
alterado e desordenado [2004: 1451a 30].

É cruzando estes argumentos com a teoria narrativista de Gallie que


ricœur define a compreensão narrativa como a capacidade para seguir uma his-
tória, história esta que deve estar de tal modo agenciada que o seu desenlace,
sendo aceitável, não pode ser previsível. o que mantém a história legível e
sequível é o eixo lógico (verosímil ou necessário) que a percorre:
suivre une histoire, en effet, c’est comprendre une succession d’actions, de pen-
sées, de sentiments présentant à la fois une certaine direction mais aussi des sur-
prises (coïncidences, reconnaissances, révélations, etc.). dès lors, la conclusion de
l’histoire n’est jamais déductible et prédictible. c’est pourquoi il faut suivre le
déroulement. mais, non plus, l’histoire ne doit pas être décousue: non déductible,
son issue doit être acceptable. il y a ainsi, en toute histoire racontée, un lien de
continuité logique tout à fait spécifique, puisque l’issue doit être à la fois contin-
gente et acceptable [ricœur, TA, 179].

No caso de tucídides, é a tyche que impede a sua história de se revelar


previsível, e os temas gerais que asseguram a sua continuidade. Nesse sentido,
as estações do ano não passam de meros marcadores cronológicos exteriores,
sem influência alguma na construção da narrativa. tucídides preocupa-se, fun-
damentalmente, com o tempo lógico, o tempo da intriga. a divisão temporal
escolhida pelo historiador não tem outra função que a de contribuir para a vera-
cidade dos factos, ligando-os ao mundo extratextual. Por vezes, chega mesmo
a interromper a ação narrativa de forma um pouco artificial. o historiador pre-
fere isolar dentro destas séries cronológicas unidades temáticas com um
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 537

começo, um meio e um fim próprios, criando episódios independentes, com


unidade dramática, que transcendem as próprias divisões cronológicas mas não
desrespeitam a cronologia:
on peut donc dire que la longueur des épisodes, leurs commencements, leurs fins,
semblent choisis en vertu d’une véritable composition, qui, sans porter la moindre
atteinte à la rigueur chronologique, l’organise cependant au rythme d’analyses tou-
tes personnelles [romilly 1956: 69].

a constituição de unidades temáticas implica a seleção de alguns aconte-


cimentos e causas e a consequente omissão de outros. os hábitos de escolha e
de interpretação verificam-se tanto na narração em geral como nos relatos de
batalhas. estes caracterizam-se também pela sua unidade em torno de uma
gnome, isto é, uma intenção que preside às operações. somente, aqui, esta
intenção assume um caráter extremamente preciso e determinado: ela é o plano
de um general que tem um dado problema para resolver, limitado num espaço
e num tempo. tucídides faz intervir já não as intenções de um grupo, mas um
juízo preciso sobre os meios a utilizar (romilly 1956: 123). esta intenção não
é inferida a partir da exposição dos atos, mas é explicitamente expressa, sob a
forma de um projeto que os factos concretizarão ou não, e com a ajuda de um
raciocínio que os factos confirmarão ou não. os factos virão dar razão ao pro-
jeto e ao cálculo de um dos oponentes em confronto:
Le récit de bataille se distingue dès lors du récit en général. il présente certes la
même unité, la même absence de tout ce qui est anecdotique, individuel, ou acces-
soire. mais sa trame est plus solidement élaborée encore, et l’opposition des deux
intentions y est aussi plus évidente, car le récit se compose de deux temps: pré-
vision et épreuve, calcul et vérification, entre lesquels thucydide n’a pas manqué
de tisser ces liens verbaux, qui donnent à la confrontation plus de rigueur
[romilly 1956: 124].

todos os aspetos dos factos narrados nas batalhas estão numa relação de
necessidade e causalidade com o todo, tudo deve ter um significado aos olhos
do leitor, tudo deve ser visto por ele como verdadeiro e necessário, tudo con-
corre para confirmar ou infirmar os cálculos elaborados pela inteligência; só
entra na narrativa aquilo a que a inteligência deu forma e ossatura. a batalha
perde todo o caráter acidental, o que de patético e particular possa haver está
ligado ao todo e com uma função específica: suscitar emoção, envolver o leitor,
despertar a sua atenção. tucídides emprega as mesmas estratégias da tragédia
grega. a batalha de siracusa ilustra bem o que acabámos de dizer.
538 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

o conjunto dos capítulos onde se narra a tentativa gorada dos atenienses


para cercarem siracusa com um muro, que marca o início da desastrosa cam-
panha na sicília (Vi. 116 – Vii. 9), é um ótimo exemplo de componente dra-
mática e de coesão narrativa. a frenética e emocionante luta estratégica de
muro contra muro entre atenienses e siracusanos pelo controlo do espaço em
redor da cidade é um pequeno drama, plenamente coerente, onde reina uma
perfeita unidade de ação. todos os acontecimentos narrados concorrem para o
tema nuclear do cerco de siracusa, sendo este o fator de unidade e encadea-
mento dos diversos acontecimentos satélite. tudo o que é episódico e anedótico
é posto de parte, ficando apenas aquilo que contribui necessariamente para o
avanço e compreensão da narrativa145. tucídides não liga importância aos com-
bates singulares nem às particularidades militares, mas salienta a intenção
tática, pois é esta que permite perceber o progresso das batalhas. À medida que
os exércitos vão aprendendo com os erros e vão retificando a estratégia militar,
a narrativa avança para um desfecho.

2.2.  Processo e causalidade

estes blocos temáticos que romilly deteta na prosa tucididiana são ana-
lisados, de forma refinada por Hunter como processos históricos. Processos
constituídos por uma série de generalizações de caráter psicológico em torno
das quais se organizam os factos de forma inteligível, selecionados não pelo
seu valor efetivo ou pelo impacto que tiveram no desenrolar da guerra mas
pelo valor semântico e demonstrativo do processo.
this process and Brasidas’ success he explained, in turn, by a series of genera-
lizations, which he employed to link events in a meaningful way. the key word,
of course, is process, for it implies an approach wherein the facts of the narrative
are not related in isolation for their own sake but are unified by a central pur-
pose» [1982: 161].

eis porque Hunter manifesta escrúpulos em usar o termo “causa” ou


“quase causa” para designar uma forma de explicação que se baseia numa série
de regras imutáveis que governam as relações entre os acontecimentos. Prefere,
por isso, dizer simplesmente “explicação”, porque é mais abrangente do que
conexão causal; porque, ao explicar os eventos, tucídides não descreve uma

145
as muralhas «eram uma prova física de physis» (Nogueira 2000: 12).
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 539

relação de causa e efeito, tal como é entendida no mundo das ciências, mas usa
generalizações imutáveis acerca da natureza humana e do comportamento
humano, em ordem a ligar factos num processo inteligível. defendendo esta
perspetiva, Hunter está a ir ao encontro de collingwood e de cornford. col-
lingwood sustenta que as leis de ordem psicológica dominam as ações dos ato-
res da História da Guerra do Peloponeso, assim se justificando o epíteto de
história psicológica, e que os eventos não têm qualquer importância para tucí-
dides. este pode considerar-se aistórico, devido ao fascínio, que partilha com
Platão, pelas leis gerais, pelo imutável146. a crítica de collingwood é claramente
excessiva e em vários aspetos incorreta, nomeadamente na defesa de um tucí-
dides nomológico. as explicações usadas por tucídides, embora não possam ser
consideradas leis, são, maioritariamente, de ordem psicológica: móbeis da ação
são frequentemente o medo, a esperança, o desejo, o interesse ou a ambição.
cornford, por sua vez, rejeita que se possa falar de causalidade em tucí-
dides no mesmo sentido em que se falava de causalidade histórica no início do
século XX, quando a história importou de teorias como o evolucionismo e o
naturalismo a ideia de que todo o curso dos eventos humanos ou não-humanos
consiste numa enorme concatenação de causas e efeitos que se estendem para
trás e para a frente no tempo infinito147.

146
«Heródoto pode ser o pai da história. mas tucídides é o pai da história psicológica.
mas o que é a história psicológica? Não é, de modo algum, história, e sim uma ciência natu-
ral de tipo especial. Não relata os factos como um fim em si mesmo. o seu objetivo prin-
cipal é estabelecer leis – leis psicológicas. a lei psicológica não é um evento, nem sequer
um conjunto de eventos: é uma regra imutável que dirige as relações entre os eventos.
segundo julgo, todas as pessoas que conheçam ambos os autores estarão de acordo comigo,
ao afirmar que são os próprios eventos que interessam principalmente a Heródoto; e que, a
tucídides, interessam fundamentalmente as leis, segundo as quais eles se verificam. mas estas
leis são precisamente essas formas eternas e imutáveis que, de acordo com a principal ten-
dência do pensamento grego, são as únicas coisas cognoscíveis. tucídides não é sucessor de
Heródoto no pensamento histórico, mas o homem em quem o pensamento histórico de Heró-
doto foi encoberto e sufocado por motivos anti-históricos (collingwood 1989: 43).
147
discordando da expressão com que Gomperz classifica a causalidade na obra de
tucídides, “causalidade inexorável”, cornford contesta que se possa comparar a causalidade
tucididiana com a vigente no mundo das ciências naturais: «Human affairs have, for thucy-
dides, not even an analogy with processes of nature; much less are they identified with one
of the processes of nature; much less, again, is their course informed by inexorable causality»
[1971: 69]. acrescenta ainda que devemos acautelar-nos de pensar que tucídides procurou
entidades como “fatores políticos”, “relação de forças”, “a fundação natural de fenómenos
históricos”, “forças universais que animam o homem”. são categorias e conceitos e modos
540 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

Neste caso, a resposta, retiramo-la de châtelet. o intelectual francês, tal-


vez influenciado pela leitura de cornford, num primeiro momento (mais pro-
priamente no artigo de 1956, «Le temps de l’histoire et l’évolution de la fonc-
tion historienne»), não ousa falar de causa, mas apenas de quase-causa, a
propósito do texto tucididiano. contudo, mais tarde, na obra de 1962 que temos
vindo a citar (La naissance de l’histoire), não impõe qualquer reserva ao uso
do termo “causa”. antes pelo contrário, numa extensa e convincente nota de
rodapé, critica a análise de cornford e justifica o emprego do termo “causa”
dizendo que tucídides se apoia em acontecimentos reais e que a sua obra é
racional e positiva:
il s’efforce de déceler des causes, c’est-à-dire des faits réels, repérables – moti-
vations individuelles et collectives, institutions puis, plus profondément, nature
humaine avec sa dimension essentiellement “impérialiste” – qui, selon lui, déter-
minent le cours des événements et lui confèrent l’intelligibilité. ainsi, il rompt
avec la tradition épique et présente autre chose qu’un drame; s’il y a un aspect
dramatique, c’est que le déroulement des affaires humaines dans cette guerre
“typique” révèle le drame même de l’existence humaine. Que la πρόφασισ (ou
l’ἀιτία) ne doive pas être conçue comme la comprennent aujourd’hui les sciences
enseignées par la théorie et la pratique de l’objectivité, que la nature de cette
cause soit insuffisamment approfondie par thucydide et que nous, finalement
mieux informés et surtout plus “éduqués” scientifiquement, puissions en dire plus
à ce sujet, cela est une chose; autre chose est de refuser à thucydide cette décou-
verte décisive: l’idée d’un ordre propre au devenir sensible-profane de l’homme et
le projet de dévoiler au-delà des légendes, des on-dit qui circulent dans les états-
majors ou sur place publique, des “prétextes”, précisément, invoqués par les poli-
tiques, une verissima causa [châtelet 1962: 288].

Já antes, em 1951, mugler publicara um artigo «sur la méthode de thu-


cydide», no Bulletin de L’association Guillaume Budé, onde estuda a possível
influência de rigorosos sistemas explicativos da causalidade física, provenientes
de múltiplas correntes filosóficas que vigoravam na Grécia do século V, no sis-
tema causal desenvolvido por tucídides. apesar de a representação da constân-
cia do caráter humano restringir muito o leque de afinidades de pensamento e
de influências possíveis, mugler acaba por encontrar bastantes ressonâncias.
tucídides parece deixar-se guiar pelos filósofos jónios como empédocles, ana-
xágoras e Leucipo, procurando a fonte do movimento para a ação humana no

de pensamento só acessíveis à historiografia moderna e que foram importados da biologia


darwiniana, de ramos da matemática e das ciências físicas desconhecidos dos Gregos do
século V a. c.
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 541

mundo real e imanente, recusando qualquer tipo de explicação mitológica ou


religiosa. mugler acredita que tucídides transpõe para a história o esquema
explicativo que estes filósofos encontraram para a natureza, o qual se baseia
num nexo de causa efeito:
comme eux dans leur domaine, il entend, enfin, concevoir la suite des phénomè-
nes suivant une causalité rigoureuse, où chaque fait historique apparaît à la fois
comme l’effet d’un fait ou d’une chaîne de faits antérieures et comme le commen-
cement et la cause d’une série de faits et d’événements ultérieures: un événement
historique modifie une situation donnée telle qu’elle résulte, par exemple, de la
distribution, à un moment donné, des forces et du potentiel matériel entre deux
groupes hostiles; ce déplacement du centre de gravité suscitera la réaction d’un
personnage ou d’une collectivité qui mobilisera des forces pour remédier à la
situation ou pour l’utiliser à ses fins, et ces mesures auront à leur tour pour effet
des décisions et des changements de plan se terminant par des actions immédiates
ou préparant des événements futurs, et ainsi de suite. dans le développement
général de son histoire de la guerre du Péloponnèse comme dans sa description
des épisodes particuliers, la trame du devenir historique est articulée par les faits
marquants qui jalonnent la série causale de ces phénomènes humains, et c’est pré-
cisément cette adaptation de la logique de la présentation à la causalité qu’il aper-
cevait dans la réalité, qui donne à la composition et au style de thucydide la
rigueur d’une déduction où la catastrophe est donnée dès les prémisses et l’énergie
d’un large fleuve qui avance de cascade en cascade, suivant des lois inexorables
de la pesanteur, vers la cataracte qui l’engloutit [mugler 1951: 25-26].

Hunter não só vai em sentido totalmente oposto à leitura de mugler, como


também não se deixa persuadir pela argumentação de châtelet, retorquindo que
as causas a que este se refere são na verdade motivos e que tucídides, na falta
de uma noção moderna de causa, usa os conceitos de physis, tyche e ananke
como propulsores ou desencadeadores dos processos por si construídos148.
o termo que muitos analistas, historiadores e filósofos quiseram afastar da His-

148
Note-se que mugler considera uma originalidade de tucídides a capacidade de ini-
ciativa que este atribui aos líderes. os acontecimentos deixam de ocorrer por mando de uma
lei divina e passam a ser da responsabilidade de agentes humanos. citamos alguns passos:
«[...] le chef, au lieu d’être le mandataire de puissances anonymes telles que la destinée ou
la volonté des dieux, apparaît comme le commencement absolu d’une série d’actions. [...]
cette idée de placer la force motrice du devenir historique dans la personnalité du chef,
constituerait à elle seule une découverte très féconde et une des initiatives les plus auda-
cieuses de l’antiquité, même si thucydide y avait limité son analyse. [...] L’initiative de
thucydide était d’autant plus hardie que jamais avant lui on n’avait pris conscience, dans la
littérature, que la personnalité humaine pût être considérée comme le commencement possible
542 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

tória da Guerra do Peloponeso, torna-se a chave de leitura da obra: «process


is the key to thucydides’ History» (Hunter 1982: 163)149. como método de sin-
tetizar informação, acaba por ser bastante distinto da narrativa histórica
moderna – prossegue Hunter. a narrativa histórica moderna é linear e relata os
factos consecutivamente, em função de si próprios, ao passo que para tucídides
os factos não têm valor próprio nem são provocadores de ação, marcam apenas
o início da ação (daí a relutância em falar em causas); estes são selecionados
em função de um processo que é despoletado ou pela physis ou pela tyche ou
pela ananke; por conseguinte, a sua narrativa histórica é sobretudo cumulativa
e pouco linear150. a historiografia moderna explica os factos através da recons-
trução das circunstâncias, das condições ou das causas que os tornaram possí-

d’une série nouvelle d’actions» (1951: 29). «À cette conception épique, dont Hérodote a
conservé de nombreuses survivances, thucydide substitue une représentation de l’histoire où
la cause efficiente par excellence du devenir historique est l’homme et où des séries entières
d’événements prennent leur origine dans la décision d’un personnage» (ibid.: 31). isto não
significa, obviamente, que tucídides tenha da personalidade a mesma conceção que será
desenvolvida nos séculos XVii e XViii sob a influência do idealismo: «Les protagonistes de
l’histoire chez thucydide n’agissent donc pas librement dans le sens de Kant et de ses pré-
décesseurs, et la découverte du grand athénien n’est pas équivalent à celle du livre arbitre
par descartes et corneille. il faudra, pour que la pensée occidentale soit mûre pour cet élar-
gissement de la personnalité, la redécouverte de la philosophie idéaliste après vingt siècles de
destinées tourmentées. mais dans le cadre de l’antiquité grecque, dans la période présocra-
tique en particulier, la découverte de l’efficacité personnelle telle que la conçoit thucydide
n’en marque pas moins une des initiatives les plus hardies de l’esprit grec» (ibid. 35-36).
149
contudo, há que distinguir processo narrativo ou retórico de processo histórico, no
sentido em que a filosofia da história o empregará. catroga pode elucidar-nos quanto a esta
distinção fundamental: «se, com esta afirmação, se pretende sustentar que os Gregos não pos-
tulavam a existência de qualquer logos imanente aos eventos humanos, que se explicitasse
num finalismo sobredeterminado pela ideia de futuro, a tese é aceitável. todavia, convém fri-
sar que o uso da exemplaridade narrada pelos historiadores obedecia a propósitos de conven-
cimento, exigência que levava à inserção dos acontecimentos em totalidades finitas e sem a
existência de qualquer pretensa lógica autossuficiente a comandar a irreversibilidade do devir
universal, como será apanágio das futuras “filosofias da história”» (catroga 2006: 12-13).
150
«modern narrative is linear, that is, it begins at the beginning and proceeds consec-
utively to the end, relating events for their own sake, and explaining them by reconstructing
the circumstances, conditions, or causes that made them possible, and dating each with pre-
cision, not merely relative to one another, but in terms of an absolute time-scale, measured
in years, months, and days. in process, on the other hand, there are no details related in iso-
lation for their own sake or no causes provided to explain events per se. Nor is the narrative
linear, so much as cumulative, with threads of meaning stretching back into earlier passages,
which do not yield causes, but do reveal similarities and thus link one process to another»
(Hunter 1982: 163).
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 543

veis, datando cada um com extrema precisão. Na História de tucídides, os fac-


tos não são datados nem explicados isoladamente, mas apenas em função da
relação que estabelecem uns com os outros, com o processo no qual decorrem
e com os outros processos. os processos unem-se uns aos outros pelas simili-
tudes entre os factos, não porque uns desencadeiem outros. cria-se uma ilusão
de causa quando um processo se inicia, mas, na verdade, os acontecimentos ou
as circunstâncias são frequentemente uma simples repetição de algumas situa-
ções prévias ou a confirmação dos julgamentos do historiador ou dos oradores.
através desta técnica, tucídides estabelece laços de contiguidade entre os
vários processos. Hunter cita alguns exemplos:
Stasis at Kerkyra, followed by an analysis of the general phenomenon of stasis
and its role in the political and moral breakdown of the Hellenic world; stasis at
megara, a particular instance of the general phenomenon, which ends in the capi-
tulation of the city to Brasidas; stasis at akanthos and the example of megara,
employed by Brasidas to persuade the city to revolt; amphipolis and Brasidas’
daring and persuasion and thucydides’ judgment linking certain revolts to decep-
tion about megara [1982: 163].

2.2.1.  Tempo e acontecimento

Posto isto, torna-se claro que facto e cronologia têm em tucídides um


sentido muito diferente do que têm na historiografia moderna. Hunter converge
novamente com a posição de collingwood: os acontecimentos em si não têm
qualquer valor para o historiador ateniense, que os via como degraus num pro-
cesso.
events per se held no interest for thucydides, nor did he isolate events in his nar-
rative. rather he saw them as stages in a process, linked together in an inexorable
unfolding, and essentially without meaning outside process [1982: 165].

a capitulação de mégara, a revolta de acanto e a rendição de anfípolis


são acontecimentos aos olhos do historiador moderno, mas para tucídides
representavam o início de um processo, simplesmente o ponto de partida, por-
que o processo continuará levado por uma espécie de necessidade inerente. e
o processo interessa-lhe na medida em que está ligado a outros processos e
todos juntos levam ao declínio de atenas. Não lhe importa tanto a causa do
declínio, mas como começou e quem começou. Brásidas iniciou-o em acanto
e anfípolis, logo tudo o que Brásidas disse e fez é reportado ao pormenor, tal
como as reações emocionais dos habitantes das cidades submetidas.
544 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

Quanto à cronologia, Hunter também partilha algumas perplexidades:


Why did he consciously reject Hellanikos’ chronological system, which would
seem to approximate rather closely modern systems of dating by year, and which
also accorded with ancient practice, as far as records were concerned? Why did
he choose summers and winters, which are shifting entities and impossible to esta-
blish with precision on any calendar, and which, in any case, afford only a rela-
tive chronology within any given year? [1982: 166].

depois de refutar as habituais respostas às suas perguntas, a autora con-


clui que tucídides não tinha a mesma preocupação que têm os modernos pela
datação dos eventos: «thucydides did not have a modern concern for precise
dates, and that chronology per se did not interest him» (ibid.: 167). as impre-
cisões cronológicas, as omissões e as repetições rítmicas dos processos, feitos
de apogeus e declínios, explicam a indiferença de tucídides relativamente a
uma escala cronológica linear151. No entanto, observe-se, o historiador tinha ao
seu dispor ferramentas de medição do tempo tão precisas quanto o calendário.
mas se o mesmo não sentiu necessidade de isolar os acontecimentos, preferindo
embuti-los em processos repetitivos, também não teria necessidade de usar um
esquema cronológico para datar eventos com a precisão de dias ou até de
horas. assim – conclui Hunter – o seu método de datação representa não um
esquema cronológico no sentido moderno mas um interesse no tempo relativo
dentro de um processo inteligível152. Note-se que esta posição de Hunter con-
traria a análise de châtelet, que nos dava conta de um tucídides consciente do
valor do tempo sensível-profano e das ações políticas do homem como causas
de acontecimentos.

151
«in the present too he saw and attempted to describe the same process, a civiliza-
tion at its peak, entering the stage of decline and moving on a downward path. in such
process, which repeats itself, and which has an implicit circularity, what import could dates
on a linear scale have? if he recorded events only within a process and provided abundant
narrative detail merely to show how the process began or what stage it had reached, dates
recording such embedded events, mere links in a chain, are meaningless. it does not really
matter what year or day an event occurred, but rather what is its relative place in the process
as a whole» (Hunter 1982: 168).
152
além do mais, a prova de que esta forma de operar era típica da época é que Heró-
doto segue o mesmo esquema, que se pode identificar com base em três características:
«First, their greatest concern is psychology or human behavior. For it is at the psychological
level that release occurs. at the same time, some kind of superhuman force or forces usually
play a role in this release. and finally, the process that is set in motion has an inherent
necessity: it is inevitable» (Hunter 1982: 232).
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 545

Que podemos, pois, concluir destas considerações de Virginia Hunter rela-


tivamente ao tema que investigamos? Que, aos olhos de hoje, a história de
tucídides se comporta mais como ficção do que como história. de facto, ela
corresponde inteiramente aos cânones que aristóteles e ricœur definem para a
construção narrativa mas não aos que ricœur estabelece para a história. a obra
de tucídides é plenamente uma configuração narrativa que: de um conjunto
diversificado de acontecimentos saca uma história com sentido ou, por outras
palavras, transforma acontecimentos aleatórios em história; que congrega num
corpo textual um conjunto de fatores heterogéneos, como os agentes, os fins,
os meios, as interações, as circunstâncias, os imprevistos, as reviravoltas, os
pathoi; que combina em proporções variáveis duas dimensões temporais, uma
cronológica e outra não cronológica: a primeira constitui a dimensão episódica
e factual da narrativa; a segunda constitui a dimensão configurante, pela qual
a narrativa transforma os acontecimentos em história. Não é pelo facto de tucí-
dides ligar pouca importância aos acontecimentos históricos ou de os consignar
a um processo que o acontecimento deixa de ter na sua composição a utilidade
que ricœur lhe atribui, de fazer avançar a história, de ser a variável da intriga.
Há seguramente na História da Guerra do Peloponeso toda uma dimensão fac-
tual e cronológica e uma dimensão configurante, caso contrário não seria pos-
sível seguir a história com sentido. e mesmo que tucídides tenda para uma
conceção não linear do tempo e tenha uma visão estática da natureza humana
e ricœur diga que a dimensão episódica da narrativa deve ser linear e irrever-
sível, a verdade é que a intriga de tucídides, embora inacabada, vence o
âmbito da crónica e apresenta-se como uma narrativa linearmente estruturada e
inteligível, que parece encaminhar-se de um início para um desfecho – a der-
rota de atenas. ou seja, por mais espirais – ou até mesmo repetições advenien-
tes de processos – que haja na sua obra, a sua leitura deixa-nos a sensação de
uma ação que progride de um início para uma conclusão, por meio de cálculos,
contratempos e surpresas. afinal de contas, trata-se de um devir humano (sen-
sível-profano) e não de um devir cosmológico. a guerra é um assunto de
homens que nascem e morrem e não gozam do estatuto imutável da natureza.
É o próprio tucídides que no fim de cada ciclo de estações tem o cuidado de
marcar a transição, em jeito de comentário subjetivo, para um novo ano de
guerra.
onde a narrativa de tucídides nos levanta mais objeções e demonstra as
suas fragilidades é no ténue corte epistemológico com a ficção. a fazer fé na
análise aturada de Hunter, há uma prevalência do tempo lógico ou do tempo
cronológico da estrutura narrativa sobre o tempo histórico; uma prevalência da
causalidade narrativa sobre a causalidade histórica; uma prevalência do aconte-
546 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

cimento narrativo sobre o acontecimento histórico e, possivelmente, uma preva-


lência das personagens narrativas sobre as personagens históricas. a nosso ver,
tucídides tinha todo o direito de organizar os factos que relata em unidades
temáticas ou em processos, podendo ser igualmente objetivo e verdadeiro (não
é isso que fizeram Braudel e a escola dos annales?); porém, para isso, preci-
sava de ter ao seu dispor todo um conjunto de ferramentas técnicas e intelec-
tuais que só nos séculos XiX e XX surgiram na oficina do historiador153.
a falha mais declarada que lhe podemos imputar é de certeza a construção
do tempo histórico. sabemos que a prefiguração, configuração e refiguração do
tempo pela narrativa acontece tanto na ficção como na história, que ambas têm
uma forma poética de superar a fenda aporética entre tempo fenomenológico ou
subjetivo e tempo cosmológico ou objetivo. apenas ambas têm modos diferentes
de o fazer. É que história e ficção têm dois modos referenciais distintos, o real
e o irreal, que instauram uma assimetria inegável entre elas. Para que essa assi-
metria se mantenha, o tempo histórico deve ser construído pelo historiador com
base num conjunto de conetores da metodologia histórica, que permitem inscre-
ver acontecimentos do tempo vivido em grandezas do tempo cósmico: o calen-
dário; a ideia de sequência das gerações e do triplo reino de antepassados, con-
temporâneos e sucessores; os arquivos, documentos, e traços. É precisamente
esta prática que se observa como insuficiente e rudimentar no ateliê tucídides.

2.2.2.  Processo e estrutura

uma vez que a nossa missão passa por confrontar e comparar a historio-
grafia arcaica e a moderna, e até fazer novas aproximações à arcaica à luz de
conceitos e ferramentas intelectuais da atualidade, é por demais conveniente
referir as várias analogias que assomam na análise de Hunter entre o paradigma
científico de Heródoto e tucídides (paradigma como forma de ver e organizar
conhecimento científico) e o de Braudel e da história económico-social de um

153
«in fact, whatever form of reflection one studies, whether critical method or expla-
nation, thucydides’ approach remains that of a historian writing in the fifth century B.c. this
is understandable, since he did not have at his disposal the techniques or concepts, nor did
he have the concerns, of a modern professional historian – the tools of source criticism and
means of evaluating documents, a concern for events or chronology per se, or even an under-
standing of causation derived from the sciences. in a word, his methodology throughout the
History, including his concepts and generalizations, is a uniform one, whether he recon-
structed contemporary events or events far in the past» (Hunter 1982: 175).
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 547

modo geral. Não se trata de correspondências perfeitas, apenas de traços de


semelhança. Primeira analogia, a rejeição do acontecimento como núcleo da
história. outra, o abandono da narração cronológica da história em favor da
compreensão de uma totalidade de estruturas inter-relacionadas. totalidade e
inter-relações são aqui conceitos chave, como se pode depreender das conside-
rações da própria Hunter: «For i would contend that the perception of a totality
and interrelationships is characteristic of ancient historiography» (1982: 148).
No entanto, há que salvaguardar as devidas diferenças:
this is not to suggest that their totality involves social and economic structures,
demographic progressions, or the movement of wages. at the simplest level, their
world remains one of politics, in the broad sense of the world, the polis with its
politai, debating and striving, erring and succeeding. they have no concept of the
economy or of social classes in the modern sense, nor do they think to isolate
levels or structures or divide reality in any way into the economic, the political,
the intellectual, etc. in this they reflect the reality of the polis, which knew no ins-
titutionalized compartments such as politics, economics, war, or religion. all these
were integrated in one life, one view of the world [1982: 248-249].

o mundo da pólis de Heródoto e tucídides é um mundo total com o seu


próprio conjunto de inter-relações, a sua própria interação de forças e o seu
próprio movimento. tudo isto é abrigado sob o conceito de processo, que apre-
senta sérias semelhanças com o conceito braudeliano de estrutura.
Process, viewed as a totality, has a beginning, certain predictable stages, and an
end. it is objective, in the sense that it its movement is not planned by the sub-
jects of history: it is rarely even observed by them. it is semi-autonomous and
ultimately beyond their control. at the same time it is propelled by their positive
achievements or their failures. thus the subject, whether despotes or polis, is not
ignored, just never pictured as the embodiment of free will, isolated from other
forces [ibid.]

do mesmo modo, o conceito de tempo histórico partilhado por Heródoto


e tucídides pode ser comparado a um ciclo económico: «Historical time for
Herodotus and thucydides is processual time. Like an economic cycle of three
years’ duration, it may move through all its stages in a very brief period»
(ibid.).
Na medida em que Heródoto e tucídides empregaram conceitos e meto-
dologia pré-científica própria – que é muito diferente do paradigma ou da men-
talidade científica do século XiX, da forma como estes entendiam o aconteci-
mento, o tempo e a causalidade (“billiard ball mentality”) – estavam mais aptos
548 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

a ver a totalidade, a procurar inter-relações e a perceber a multiplicidade de


movimentos e de tempo. mas este paralelismo também serve para lançar
alguma luz sobre a conceção de tempo destes historiadores, nomeadamente,
saber se era cíclica ou linear. tão cíclica como os ciclos de Braudel e a eco-
nomia de engels, comenta Hunter:
do cycles necessarily return to their point of departure? clearly not, if one thinks
of kind of cycles or intercycles that are the subject of Braudel’s new kind of nar-
rative history. the answer is also no in the case of the recurrent industrial crisis
so vividly described by engels, using the metaphor of the steeplechase. [...]. i
would contend that cycle and change, cycle and new situations, are no more anti-
thetic in Greek historiography than they are in economic history or economic
theory [1982: 257-258].

o que Hunter não diz é que para Braudel a história de tucídides seria
sempre uma história evenemencial, política, de líderes, de batalhas e de curta
duração. independentemente de terem ou não o mesmo valor que o paradigma
do século XiX lhes havia de reconhecer, independentemente de estarem depen-
dentes de processos e aglutinados em torno de proposições gerais, qualquer lei-
tor de tucídides não deixará de ver, em primeira instância, na sua obra, um
relato de acontecimentos (erga) e discursos (logoi)154. a ninguém que leia a
História da Guerra do Peloponeso e o Mediterrâneo e o mundo mediterrânico
na época de Filipe II, ocorrerá dizer que há similitudes. Narrativa, discursos,
descrição de batalhas, guerras civis, intrigas, peripécias, atos violentos, política
abundam em tucídides, escasseiam em Fernand Braudel. a História de tucídi-
des é uma história política e não há história política sem os seus três ídolos:
individualidades, acontecimentos breves e, claro está, política. Vale a pena reler
e reter as lúcidas lições de aron:
Quels que soient les compléments ou les rectifications que comporterait le récit de
thucydide, celui-ci ne changerait pas de caractère. Le sociologue, l’historien des
cultures, des classes, des prix, de l’industrie ou des idéologies, ne pourrait pas, s’il
s’intéresse à la grande guerre 1914-1918, éviter le récit avec l’intelligibilité des
actions par référence aux acteurs, l’intelligibilité des faits accomplis ou des grands
ensembles par confrontation aux intentions contradictoires des acteurs. L’histoire
des événements est irréductible à celle des sociétés, des classes et des économies.
elle était irréductible au Ve siècle avant notre ère, elle l’est toujours au XXe siècle
après Jésus-christ» [1961: 145-146].

154
«L’événement singulier demeure plus intéressant que les abstractions» (aron 1961:
152).
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 549

La guerre elle-même, stylisée par l’historien, a la beauté d’une œuvre de l’esprit,


l’événement y est éclairé par les concepts sans perdre sa singularité. enfin, la
guerre a la grandeur d’une tragédie dont on connaît la fin sans se lasser d’en revi-
vre les péripéties [ibid.: 158].

conquanto seja uma história de factos, estes estão, como bem notou
romilly e Hunter, enredados ao serviço das generalizações de caráter psicoló-
gico e sociológico que estruturam a narrativa. o que mais afasta, na índole, a
História de tucídides da história política como atualmente se pratica é esta
subserviência dos factos a princípios gerais. as sentenças gnómicas, o geral,
aquilo que dá continuidade e permanência à história e a tenta catapultar para
o mundo da episteme sobrepõe-se à res gestae, exatamente no campo da his-
toriografia onde os acontecimentos deveriam falar mais alto, deveriam valer por
si próprios.

2.3.  Tucídides e Aristóteles, a propósito de história e poiesis

as generalizações, em tucídides, são herdeiras diretas das gnomai, de


uma tendência característica de Homero, de Hesíodo, dos poetas líricos e dos
tragediógrafos para pensamentos gerais ou máximas sobre a vida humana (cf.
romilly 1990: 61-99). No último quartel do século V, as sentenças gnómicas
são sobretudo usadas como armas de argumentação, são usadas para demonstrar
e convencer. os sofistas, como mestres de retórica, procuravam fortalecer os
seus argumentos com reflexões gerais e, como pensadores racionalistas, procu-
ravam conhecer melhor o homem e prever as suas reações. Não espanta, pois,
encontrá-las em tão grande número na obra de tucídides. «en fait, elles sont
chez lui plus fréquentes que n’importe où et, si l’on peut dire, plus résolument
générales» (romilly 1990: 65).
a tendência de tucídides para generalizar é tão forte e constante que se
torna difícil isolar as reflexões gerais e expô-las. muitas vezes, a fronteira entre
o geral e o particular é ténue: «on est dans le domaine du particulier, et puis
le glissement se fait, par l’intermédiaire d’un mot qui généralise: ce peut être
l’expression «les gens de ce genre», ou «les situations de ce genre» (toioutoi)»
(ibid.: 68). romilly enumera todo um conjunto de expressões típicas que intro-
duzem as generalizações, circunscreve uma série de temas e acompanha-os de
vários exemplos. a premissa que permite generalizar é sempre a mesma: a
identidade da natureza humana. esta marca de universalidade que se dissemina
pela obra do historiador ateniense tem deixado intrigados muitos dos estudiosos
550 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

da obra tucididiana quando a confrontam com as declarações de aristóteles na


Poética, que parecem ser injustas para o mais sério e filosófico dos historia-
dores.
Pelo exposto se torna óbvio que a função do poeta não é contar o que aconteceu
mas aquilo que poderia acontecer, o que é possível, de acordo com o princípio da
verosimilhança e da necessidade. o historiador e o poeta não diferem pelo facto
de um escrever em prosa e o outro em verso (se tivéssemos posto em verso a
obra de Heródoto, com verso ou sem verso ela não perderia absolutamente nada
o seu caráter de História). diferem é pelo facto de um relatar o que aconteceu e
outro o que poderia acontecer. Portanto, a poesia é mais filosófica do que a His-
tória. É que a poesia expressa o universal, a História o particular. o universal é
aquilo que certa pessoa dirá ou fará, de acordo com a verosimilhança ou a neces-
sidade, e é isso que a poesia procura representar, atribuindo, depois, nomes às per-
sonagens. o particular é, por exemplo, o que fez alcibíades ou o que lhe acon-
teceu [aristóteles 2004: 145a 36 145b 12].

No que respeita à imitação através da narração e em verso, é necessário, como nas


tragédias, construir enredos dramáticos e em volta de uma ação única e completa
que tenha princípio, meio e fim, para que, tal como um ser vivo único e inteiro,
produza um prazer próprio, e, evidentemente, a sua estrutura não deve ser igual
à das narrativas históricas, nas quais é forçoso que se faça a exposição não de
uma só ação mas de um período de tempo, de tudo o que, nesse tempo, aconteceu
a uma ou a várias pessoas, cada uma das quais se liga às outras como o acaso
determinou [ibid.: 1459a 17-24].

aristóteles foi o primeiro de que temos conhecimento a distinguir clara-


mente história de ficção, entendendo-se por ficção o que o autor designa de
poesis (e não mimesis) referindo-se quer à tragédia quer à epopeia e à lírica155.
o mais célebre e comentado pronunciamento meta-histórico na antiguidade é
da sua autoria e surge na Poética, capítulos iX e XXiii. No entanto, como é
fácil observar, a distinção feita pelo filósofo não só é depreciativa para a his-
toriografia em geral como está em contradição com os trabalhos desenvolvidos
por Heródoto (a quem cita direta e indiretamente) e, particularmente, tucídides
(a quem só cita indiretamente). daí que se continue insistentemente a pergun-
tar: terá aristóteles lido a obra de tucídides?; tê-la-á lido e não se terá aper-

155
Para um aprofundamento da relação poesis, mimesis e ficção na Poética de aristó-
teles, veja-se o interessante estudo de Bérenger Boulay (2005), «Histoire et narrativité. autour
des chapitres 9 et 23 de La Poétique d’aristote», in http://www.fabula.org/atelier.php?Histo-
ria_et_Poiesis.
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 551

cebido das generalizações, do caráter verosímil dos discursos e do caráter


mimético ou configurador da narrativa?; não coloca tucídides na categoria de
historiador, tal como ele próprio o não fez a si próprio?; ou, colocando-o nessa
categoria, pretende abrir uma exceção para ele? são várias as tentativas de res-
posta a estas questões. damos aqui conta de alguns dos mais significativos
ensaios, de forma a que possamos também nós entrever uma resposta, avan-
çando desde já que a mais plausível é que aristóteles errou nos critérios adu-
zidos para a separação entre historia e poiesis.
começamos por dizer que o rigor do paradigma poético de aristóteles é
herdado de uma tradição que distinguia, escrupulosamente, género dramático,
épico e histórico. em boa verdade, a Poética aristotélica não é totalmente ino-
vadora, visto que o autor conviveu com toda uma tradição de importantes refle-
xões e investigações na área, provenientes já da atenas do século V a. c. (vide
López eire 2002: 132-138). muito antes do estagirita, poetas e sofistas efetua-
ram estudos sobre a poesia e as suas potencialidades, sobre a invenção poética,
a relação entre poesia e realidade, a natureza verdadeira ou falsa da poesia,
assim como sobre os seus propósitos, funções e efeitos. relevantes são os tra-
tados teórico-técnicos dos sofistas, intitulados Artes (Technai), sobre o discurso
comunicativo, retórico e poético. estes foram os primeiros a ensinar a poesia
e a prosa não como produto da inspiração divina, mas como artefato que se
pode estudar e trabalhar como qualquer outro objeto. Partindo desta conceção
funcional e objetiva, os sofistas desenvolvem os seus tratados gramaticais;
daqui deriva o lado mais pragmático e empírico da Poética aristotélica, que se
confirma na reutilização de muitos conceitos marcadamente sofistas e plató-
nicos.
mas se os conceitos asseguram uma certa continuidade, já ao nível do
pensamento há uma clara inversão: o que para Platão era transcendente para
aristóteles é imanente. o académico entendia toda a realidade ou mundo sen-
sível como réplica imperfeita (eidola) do mundo inteligível, logo, sendo a arte
imitação dessa mesma realidade sensível, redundava numa cópia em terceiro
grau. este distanciamento torna toda a arte falsa porque imitadora de uma pseu-
dorrealidade. aristóteles contorna este problema com a imanência das formas,
argumentando que a poesia não imita o particular das ações humanas, mas o
universal que está nelas, as “ideias” (eide) ou as “formas”. o mythos, intriga
ou argumento, que é a base, o conteúdo e a “forma” da obra poética é a repre-
sentação mimética de uma ação ou paixão humana ao nível do universal. esta
teoria conduz ao reconhecimento da superioridade do poeta-filósofo em relação
ao indivíduo comum. o poeta e o filósofo, na opinião de aristóteles, intuem as
verdadeiras essências dos entes, ou seja, os seus universais, coisas que escapam
552 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

à sensibilidade dos homens vulgares e sem formação. entre poeta e historiador


a distância não é tão grande mas é percetível.
a prova de que poeta e historiador desempenham atividades claramente
distintas é que mesmo quando tratam um tema comum – por exemplo Ésquilo
e Heródoto escrevem sobre as guerras médicas – os seus trabalhos resultam
necessariamente em duas formas distintas de abordar o assunto: um dirige-se ao
universal ou ao plausível, o outro ao particular e ao factual. aristóteles tem
razões para distinguir as duas disciplinas, já os traços distintivos evocados são
dificilmente justificáveis e representam um sério desafio para os académicos
que ao longo dos tempos se foram debruçando sobre o seu tratado literário.
Não é pois surpreendente que o capítulo iX da Poética tenha sido o alvo pri-
vilegiado das habituais recriminações sobre o que se conhece como “as omis-
sões de aristóteles na Poética”. o próprio ricœur sabe que a obra de tucídides
põe em causa as afirmações de aristóteles156.
o que distingue o poeta e o historiador, segundo o estagirita, não é o
facto de um escrever em verso e o outro em prosa – as Histórias de Heródoto
em verso não deixariam de ser história –, é o facto de um fixar-se no que
poderia acontecer (τὸν δὲ οἷα ἂν γένοιτο) e, com isso, poder ascender ao uni-
versal ou, no mínimo, ao verosímil ou provável, e o outro fixar-se no que
aconteceu (τὸν μὲν τὰ γενόμενα) e, com isso, ficar preso ao particular e ao
contingente157. além disso, o capítulo XXiii agrava esta distinção ao acrescen-

156
«aristote ne se borne pas à constater que l’histoire est trop “épisodique” pour satis-
faire aux exigences de la Poétique (après tout, ce jugement est aisément révocable, dès l’œu-
vre de thucydide)» (ricœur, TR i, 288).
157
ricœur sugere que não é o material de referência que confere universalidade ou
verosimilhança ao mythos, mas sim a construção literária, isto é, a mise en intrigue. «Le pos-
sible, le général ne sont pas à chercher ailleurs que dans l’agencement des faits, puisque c’est
cet enchaînement qui doit être nécessaire ou vraisemblable» (TR i, 84). ou seja, é universal
aquilo que é total, que é coeso, que está unido por causas. a história, entendida por aris-
tóteles como uma crónica não pode apresentar este tipo de coesão e totalidade porque está
obrigada a narrar todos os acontecimentos ocorridos num determinado período de tempo.
como bem viu ricœur, para aristóteles, a universalização começa no estabelecimento de um
laço de causalidade entre acontecimentos, mesmo singulares (TR i, 85). os comentários de
Boulay reforçam e clarificam as ideias de aristóteles e ricœur. «L’agencement poétique est
par essence généralisant puisqu’il lie les parties par des lois (nécessaires ou probables) quant
la structure de l’historia n’est autre que celle du catalogue. aristote reproche à l’historia sa
fonction d’enregistrement, d’être rivée à la contingence phénoménale, de passer à côté des
causes nécessaires ou probables (vraisemblables) en faisant fi du souci de légalité causale
constitutif de ce que ricœur, dans sa lecture magistrale d’aristote, appelle «mise en intrigue».
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 553

tar ainda como traços distintivos a matéria que representam e a estrutura ou


intriga (mythos): o poeta constrói o seu enredo a partir de uma ação única e
a sua estrutura prima pela unidade e coerência; o escritor de histórias habituais
(ἱστορίαις τὰς συνθέσεις) narra todos os acontecimentos ocorridos durante um
determinado período de tempo, sem conexão lógica entre eles (1459a 22). este
tipo de história é confinado aos limites da crónica – mero registo de uma
sequência temporal de eventos –, circunscrito ao domínio do contingente, do
incoerente e do irracional, por oposição à poesia que rege os seus encadeamen-
tos por ordem lógica e causal. recordando as palavras de Paul Veyne, a his-
tória, na aceção aristotélica, tira a sua matéria do mundo sublunar, do mundo
da doxa, do acidental, do singular, do fortuito e, por vezes, ininteligível. a poe-
sia está do lado da ciência. estas encontram o seu objeto no mundo supra-
lunar, na episteme, no inteligível, no que permanece eternamente nas mesmas
condições. daí a conclusão: a poesia é mais filosófica (philosophoteron) e mais
elevada (spoudaioteron) do que a história. aristóteles parece, assim, negar à
história a capacidade de alcançar o universal, que é um traço distintivo das
criações do espírito grego e que historiadores como tucídides e Políbio se
esforçaram por atingir nas suas obras. assim, este rebaixamento da história
perante a poesia justifica-se se aristóteles entende a história na aceção de cró-
nica. Já não é justo se, nessa aceção de história, inclui as obras de Heródoto
e de tucídides, como os exemplos aduzidos pelo autor parecem indicar, nomea-
damente as batalhas de salamina e de sicília, no capítulo XXiii, e a evocação
da figura de alcibíades no capítulo iX. a coesão narrativa e a conexão lógica

La valeur philosophique de la poésie n’est pas relative au caractère imaginaire de ses objets,
par opposition à l’historia qui traite de «ce qui a eu lieu réellement» (chapitre 9, 51 a 36-
37), mais bien à leur légalité fondatrice de totalité, à leur configuration au sein d’une
intrigue. ceci peut éclairer la suite du chapitre 9 où aristote affirme (51 b 29-33) qu’ «à sup-
poser même qu’il [le poète] compose un poème sur des évènements réellement arrivés, il n’en
est pas moins poète, car rien n’empêche que certains événements réels ne soient de ceux qui
pourraient arriver dans l’ordre du vraisemblable et du possible, moyennant quoi il en est le
poète.
Les «universaux» de la poésie ne peuvent être jugés tels non pas parce qu’ils sont
inventés, encore moins parce qu’ils empruntent à des «mythes» (au sens de récits transmis
par la tradition et porteurs d’une signification universelle) mais relativement à leur enchaîne-
ment causal: c’est l’intrigue qui est universalisante; les objets de la poésie mimétique ne sont
pas généraux, sinon universaux, par eux-mêmes, par exemple parce qu’ils seraient imagi-
naires, mais parce qu’ils sont mis en intrigue. aristote n’exclut dès lors pas qu’on puisse
composer un poème en établissant des liens logiques (nécessaires et à défaut probables et
vraisemblables) entre des événements réellement arrivés» (2005: 7-8).
554 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

entre os vários episódios narrados por Heródoto podem não ser evidentes à pri-
meira vista; todavia, a sua obra é seguramente mais do que uma simples cró-
nica ou uma manta de retalhos158. No caso de tucídides, há ainda menos mar-
gem para dúvidas. É evidente que a sua obra, ainda que siga uma ordem
cronológica, se apresenta como um todo bem organizado, causalmente unificado
e pleno de generalizações que transcendem o particular e apontam para o uni-
versal159. o que nos leva à seguinte questão: os juízos que a Poética expõe
sobre a história permitem-nos concluir que aristóteles desconhecia ou conhecia
mal a obra de tucídides, a qual, como vimos, é rica em generalizações e refle-
xões político-filosóficas?
Já vimos anteriormente que carlo Ginzburg nos aconselha a procurar mais
do lado da Retórica do que do lado da Poética as apreciações de aristóteles
sobre historiografia: «this will be an effort to demonstrate that the work in
which aristotle dealt most extensively with historiography, or at least with
those essentials that are in a sense close to our own, is not the Poetics but the
Rhetoric» (1999: 38). o próprio historiador italiano, havemos concluído, crê
que as críticas de aristóteles na Poética não visavam tucídides mas apenas
Heródoto, pois há razões para considerar que tucídides corresponde ao modelo
de historiador gizado por aristóteles na Retórica, nomeadamente, no que ao uso
de entimemas e de raciocínio conjetural diz respeito. seguindo por outras vias,
Pippidi, autor de um dos mais conhecidos ensaios sobre esta matéria, também
defende que tucídides não era visado por aristóteles, que o consideraria não
um historiador, mas sim um filósofo de política.

Pippidi (1948), seguro de que aristóteles conhecia a História da Guerra


do Peloponeso aquando da redação da Poética, tenta encontrar uma explicação

158
indo contra a opinião de muitos comentadores – de aristóteles a roland Barthes –
Hartog, em Le miroir d’Hérodote, demonstra que as Histórias de Heródoto formam uma nar-
rativa coesa, que mesmo as várias digressões e episódios aparentemente anedóticos estão liga-
dos ao tema central das guerras médicas e contribuem para o avanço da narrativa (vide Har-
tog 1980: 11-30).
159
como relato acabado de um acontecimento histórico contemporâneo, a História da
Guerra do Peloponeso deve ser quase única, comenta Gomme (1954: 122), tal como a tra-
gédia de Ésquilo, Persai, é quase única no tratamento de um acontecimento contemporâneo,
sendo claramente filosófica, no sentido aristotélico do termo, e um bom exemplo para a teoria
exposta na Poética. ela é quase única, como história contemporânea, porque não é a com-
pilação de materiais documentais para uma história futura, mas é um produto acabado (ibid.:
122). Por isso, também para Gomme, o julgamento de aristóteles parece injusto para tucí-
dides.
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 555

para o aparente paradoxo da apreciação aristotélica da história. No seu enten-


dimento, o filósofo grego refere-se a um conceito de história que era dominante
na Grécia até ao século iV a. c. e do qual, provavelmente, exclui a historio-
grafia tucididiana. História entendida como procura e acumulação de materiais
geográficos, etnográficos e históricos. a própria atividade historiográfica aristo-
télica, em determinado período da sua vida, resumiu-se à recolha e organização
de documentos epigráficos e literários destinados a futuras sínteses. sabe-se que
terá recolhido as constituições de cento e cinquenta e oito estados – infeliz-
mente perdidas – como substrato para a redação da sua Política, e são famosas
as suas listas de vencedores nos concursos dramáticos e gímnicos; as coleções
de provérbios e de costumes; as edições críticas e comentários160. Na opinião
de Pippidi, aristóteles deveria considerar a obra de tucídides um ensaio de
filosofia política e não uma crónica de guerra. esta dedução é feita com base
na valorização que aristóteles faz quer da atividade política quer da história
como sua auxiliar, no capítulo i. 4 da Retórica – obra posterior à Poética. aí,
o filósofo grego estabelece as ligações da política com a história, concedendo
a esta última um papel bem mais relevante do que aquele que lhe outorga na
Poética. Neste caso, os acontecimentos históricos não são mais vistos como
impedimento para atingir uma verdade superior à verdade empírica ou a con-
clusões universais. Pelo contrário, à história cabe a missão de fornecer os dados
a partir dos quais o político, informando-se sobre o passado, pode fundar as
suas opiniões sobre um determinado assunto do presente. o conhecimento his-
tórico confere-lhe autoridade e credibilidade. Para obter competência militar é
indispensável que o político estude não apenas as guerras travadas pela sua
pólis, mas também as guerras em que se envolveram outros estados, pois «é
natural que causas semelhantes tenham efeitos semelhantes»161. esta afirmação,
de matiz eminentemente tucididiano, demonstra a confiança de aristóteles na
capacidade da política, enquanto ciência das sociedades humanas, para abstrair
do conhecimento aprofundado do passado as leis da sua evolução futura. toda-
via, esta capacidade para generalizar é-lhe fornecida por uma outra disciplina,
a história, na sua dupla aceção de ciência do passado nacional e ciência dos
povos estrangeiros. Logo, por detrás da incoerência e da irracionalidade que, na
Poética, pareciam afetar os acontecimentos que o historiador estuda é possível
– de acordo com a Retórica – discernir racionalmente as leis de desenvolvi-
mentos futuros. em todo o caso, salvaguarde-se, não é ao historiador que cabe

160
sobre Aristóteles e a história veja-se raymond Weil 1960.
161
«Ἀπὸ γὰρ τῶν ὁμοίοων τὰ ὅμοια γίγνεσθαι πέφυκεν» (Retórica i. 4, 1360a 5).
556 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

a missão de generalizar, mas sim ao pensador político. os materiais que um


reúne são interpretados pelo outro. É por isso que Pippidi defende que aristó-
teles não poderia considerar tucídides um historiador, mas sim um pensador
político, pois que a sua obra «está dotada de todas as qualidades que um espí-
rito filosófico podia desejar encontrar numa apresentação do passado» (Pippidi
1948: 489). Para esta interpretação concorre o facto de tucídides nunca consi-
derar a sua obra uma história nem o seu ofício o de historiador – termos que,
como bem sabemos, nunca emprega. Pippidi justifica ainda a ausência destes
vocábulos por considerar que tucídides queria desse modo distanciar-se dos
seus antecessores, a quem critica por se preocuparem mais com a beleza do
discurso do que com a verdade.
ao excluí-lo do grupo dos historiadores, aristóteles não só cumpria um
desejo do próprio tucídides como lhe prestava, indiretamente, homenagem,
incluindo-o no grupo dos pensadores políticos. Para aristóteles, conclui Pippidi,
a história de tucídides seria a única digna deste nome: «[...] celle qui, par delà
les faits nus, aspire à ressusciter une personnalité ou une époque; celle à
laquelle, jusqu’à ce jour, la connaissance du passé n’a cessé d’insuffler l’espoir
– ou l’illusion? – d’entrevoir l’avenir» (ibid.: 490).

esta tese apresenta várias fragilidades, sendo a primeira e mais evidente


a alusão que aristóteles faz à História da Guerra do Peloponeso na Poética,
ao dizer que a história não se interessa pelo universal mas sim pelo particular,
dando como exemplo para o particular “o que fez alcibíades ou o que lhe
aconteceu”162. curiosamente, Pippidi (ibid.: 490) cita esta mesma expressão para
dizer o contrário, que a obra de tucídides estava fora do grupo dessas que se
limitam a narrar o particular, justificando, desse modo, o estatuto que aristó-
teles lhe outorgaria.
raymond Weil (1960) também discorda desta tese de Pippidi, mas não
pelo motivo que evocámos. aliás, estranhamente, este autor também não con-
segue desvendar a proveniência da referência a alcibíades. começa por obser-
var que aristóteles nunca se refere aos acontecimentos históricos protagoniza-
dos por alcibíades e que, portanto, serve-se do exemplo de alcibíades na
Poética por ser muito conhecido do público (Weil 1960: 163-164). considera
igualmente a comparação entre a poesia e a história reveladora de uma falta de

162
«[...] we must admit that his disparagement of history is not entirely justified on his
own principles, at any rate in so far as it refers to the historian whom he is likely to have
had most in mind when describing history as “what alcibiades did or had done to him”:
namely, thucydides» (ste. croix 1992: 24).
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 557

amor pela história, facto paradoxal não só porque o próprio filósofo se consa-
grou amiúde à arte de clio, mas também porque este comentário da Poética
parece incompatível com a leitura da História de tucídides.
aristote n’aimerait alors vraiment ni ne comprendrait l’histoire. comment en effet,
dit-on, a-t-il pu s’exprimer ainsi, s’il a lu thucydide – et comment n’aurait-il pas
eu au moins quelque contact avec l’historien de la Guerre du Péloponnèse, s’il
s’intéresse à l’enregistrement des πράξεις? [ibid.: 165].

Já antes de Weil e Pippidi, Barthélemy saint-Hilaire (Paris, 1858) mani-


festa a mesma perplexidade, no seu comentário à Poética:
cette théorie n’était peut-être pas déjà très juste en présence de l’histoire telle que
la concevait et l’écrivait thucydide. La philosophie de l’histoire est beaucoup plus
générale encore que la poésie ne peut être [apud Weil 1960: 165].

raymond Weil recusa a hipótese sugerida por Pippidi por não conseguir
explicar, por um lado, como é que aristóteles se pode ter consagrado a uma
disciplina que desprezava e, por outro, colocar tucídides em tão elevada con-
sideração e praticar uma história tão diferente da sua. Que tucídides nunca
emprega os termos “história” e “historiador” para caracterizar a sua atividade
parece ser uma convenção linguística da época, pois só a partir de Platão o
termo historia assume os valores de “pesquisa metódica” e “produto dessa
mesma pesquisa”. Logo, nada nos permite deduzir com segurança que a ausên-
cia dos termos tinha como intenção despromover a história à classe da crónica.
a distinção entre os termos ἱστορία – empregado por aristóteles na Poética –
e ξυγγραφή – utilizado por tucídides para se referir à sua obra – não é sufi-
cientemente clara e estável para que daí se possa inferir algum tipo de discri-
minação. se existe para o estagirita alguma diferença entre a história tucidi-
diana e as outras histórias, não é a distinção entre estes dois vocábulos que a
pode comprovar. ademais, nada há nos escritos aristotélicos que, inequivoca-
mente, conceda um lugar de eleição a tucídides. tudo nos leva a crer que para
o filósofo grego tucídides era um historiador como qualquer outro.
Para além disso, defende o mesmo autor, se aristóteles entende historia
como crónica de acontecimentos cronologicamente datáveis, então tucídides, ao
datar os acontecimentos por verões e invernos, é mais um cronista do que his-
toriador. mas em vez de procurarmos adivinhar em que categoria aristóteles
colocaria o historiador grego, talvez seja mais útil verificar se o conceito de
historia para o estagirita se reduz sempre a uma crónica – diz Weil. e, depois
de uma meticulosa análise filológica que visa validar uma edição do texto
558 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

grego em detrimento de outra, o autor consegue deslindar no texto aristotélico


uma exceção para os historiadores filósofos como tucídides – que entra na
categoria daqueles que não escrevem as histórias habituais ou comuns (ἱστορίας
τὰς συνήθεις).
Quanto a nós, concordamos com ste. croix: aristóteles tem tucídides em
mente quando cita a figura de alcibíades. e isso significa que tinha lido ou
pelo menos conhecia a obra de tucídides. alcibíades é a figura central dos
livros V, Vi e Viii, cujas atividades são descritas ao longo de um período de
cerca de dez anos, de 421 a 411. referindo-se ao “que fez alcibíades”, é mais
plausível que aristóteles tenha em mente este período da vida do general ate-
niense do que os restantes sete anos, metade dos quais passados no exílio, que
são descritos escassamente por outros historiadores – um deles é Xenofonte,
nas Helénicas. o que causa estranheza é que tucídides seja o historiador
menos apropriado para ilustrar a conceção aristotélica de história como relato
do particular. ste. croix comunga desta mesma perplexidade.
We are left, then, with the probability that in his selection of a characteristic
example of history aristotle chose to speak of events the main source for which
in his day (as in ours) can only have been thucydides, the one historian who, in
the opinion of most of us, is least open to the charge of merely relating particular
events and failing to deal with universals, with “what might happen” [ste. croix
1992: 27].

ademais, o autor demonstra, a partir da análise da expressão to hos epi


to polu (“o que está de acordo com a regra geral”, “o normal” “o habitual”)
em várias obras de aristóteles, que o exemplo citado pelo filósofo grego, na
medida em que faz apelo à obra de tucídides, não está em conformidade com
os seus próprios princípios científicos. de facto, tem-se muito aquela ideia que
aristóteles concebe a episteme como algo universal e necessário em contraste
com o particular e o acidental e, nesse caso, as declarações do capítulo iX
seriam consistentes com esse sistema. a verdade é que ler a episteme aristoté-
lica só dessa forma pode ser redutor e desvirtuante: «in fact, however, the con-
ception of episteme as being appropriate only to “the universal” and “the neces-
sary” oversimplifies and seriously misrepresents the main stream of aristotle’s
thinking» (ibid.: 25). em muitas passagens, aristóteles também inclui na cate-
goria de episteme “o que está de acordo com a regra geral”. Por conseguinte,
também “o que está de acordo com a regra geral” da natureza humana, na obra
de tucídides, deveria ter sido considerado como ciência por aristóteles. ste.
croix conclui que o exemplo apresentado por aristóteles para ilustrar o que é
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 559

a história é errado e injusto, e não está de acordo com os seus próprios prin-
cípios de pensamento.
the poet, according to aristotle, speaks of “what is possible according to proba-
bility or necessity”. But what the poet actually says is concerned with a particular
action: if we are to derive episteme from it, in aristotle’s sense, we have to take
the further step of recognizing the general (the universal or the necessary) in the
particular. is there any difference in what we make of the History of thucydides?
i believe not, once we are allowed to introduce the concept of to hos epi to polu
and take account of the fact that that is precisely what thucydides often offers us
[ste. croix 1992: 28-29].

a visão da historia como simples crónica que dispõe os factos uns a


seguir aos outros e não uns por causa dos outros, como faz o mythos trágico,
épico e cómico, ignora a procura e exposição das causas e a construção his-
tórica ou mimesis de que a obra de Heródoto e ainda mais a de tucídides é
um bom exemplo. Nós sabemos que em coesão e conexão causal a História da
Guerra do Peloponeso em nada se distingue de um mythos, encaixando perfei-
tamente no modelo de intriga que aristóteles descreveu como sendo próprio da
tragédia e que ricœur estendeu aos géneros ficcionais e historiográficos163. ade-
mais, no caso de tucídides, este agenciamento vai muito acima do desejável,
com risco de o seu trabalho perder o laço com o fundo real dos acontecimentos
e se deixar confundir totalmente com poesia. ao selecionar conjuntos limitados
de factos para os explicar mediante um princípio geral e aglutiná-los num todo
narrativo, o historiador separa os acontecimentos do contexto real, e até aqui
tudo bem, pois esta é uma operação comum a todos os historiadores. o pro-
blema é quando se perde a ligação com o real cronológico e documental e se
faz depender a inteligibilidade dos acontecimentos unicamente da intriga e de
uma teoria que a estrutura. com isso, o discurso historiográfico acaba por
transcender seguramente o seu cariz doxográfico, com o prejuízo de ficar refém
do mundo supralunar da filosofia e da poesia164.

163
Já antes de ricœur, châtelet falara abertamente da dimensão configurante da intriga
histórica, curiosamente motivado pelo texto tucididiano: «il suffit de remarquer que, nécessai-
rement, le discours sur la réalité historique doit s’ordonner autour de pôles qui, d’une part,
confèrent à l’expression une certaine unité et, d’autre part, permettent de subsumer la diver-
sité des événements sous des perspectives déterminées qui transforment la simple consécution
en connexion significative» (châtelet 1962: 217).
164
«como alguma história da historiografia clássica tem sublinhado, comummente, as
“investigações” selecionavam conjuntos limitados de factos, que se tinham sucedido no
tempo, para os explicar mediante uma ordenação que lhes dava forma, inserindo-os num todo
560 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

mas será que em tucídides todos os factos estão ao serviço de um pro-


cesso ou de uma unidade narrativa estimulada por uma constante do compor-
tamento humano? Não se terá dado o caso de aristóteles ter excessivamente
valorizado a assumida dimensão cronológica e contingente da historiografia
tucididiana – «aqui começa, então, a guerra entre atenienses e Peloponésios e
os seus respetivos aliados [...] narra-se cada um dos acontecimentos pela ordem
em que ocorreram, por verão e inverno» (tucídides: ii. 1. 1) – e não se ter
dado conta da profunda unidade narrativa, tomando por espúrios e irrelevantes
muitos dos episódios e dos factos narrados pelo historiador? romilly (1956)
garante-nos que tucídides não narra todos os acontecimentos ocorridos entre
uma estação e outra, e os que narra estão todos intimamente ligados a uma
ideia estruturadora da narrativa. mas Hornblower contraria esta leitura, argu-
mentando que na obra de tucídides há muito material repetitivo e fortuito, isto
é, que escapa ao todo coeso e necessário de uma narrativa poética («[...] there
is in thucydides much adventitious and repetitive material» (1987: 34]) e que,
portanto, não se pode aceitar a visão que romilly tem de tucídides como um
escritor que ignora tudo o que é fortuito: «[...] it is better just to accept that
the view of thucydides as a writer who ‘ignores everything adventitious’ is
simply wrong» (ibid.: 9-10).
algumas repetições como as campanhas militares e as invasões anuais da
Ática podem explicar-se pelo desejo de criar pausas, como na epopeia, com
digressões e repetições que aumentam a tensão. alguns detalhes, aparentemente
triviais e sem significado, também se podem explicar pela função de provocar

coerente. contra o caos, a narração construía uma totalidade, conquanto finita e fechada, mas
que, tal como na tragédia, era tecida por uma trama com um princípio, um centro e uma con-
clusão. assim, é explicável que os historiadores gregos (e romanos), mesmo os mais factua-
listas, não se tivessem preocupado muito com a descrição dos eventos tal qual eles aconte-
ceram; estes só ganhavam sentido desde que fizessem parte de um enredo. com isso, e ao
invés do que pensou aristóteles, o discurso historiográfico acabava por ultrapassar o particular
(as situações únicas e as ações individuais), pois a verdade do narrado não estaria tanto na
adequação dos enunciados à realidade, mas residiria, sobretudo, na sua correlação e corres-
pondência com um modelo de virtudes – pressuposto que muitos, como Plutarco, não deixa-
rão de explorar –, ou com uma teoria, principalmente com aquela que apontava para a exis-
tência de oscilações cíclicas nos negócios humanos (Políbio), ou a que acreditava na eterna
identidade da natureza humana (tucídides). deste modo, a narração, apesar do seu aparente
cariz doxográfico, veiculava um ideal de verdade que era sinónimo de construção de conjun-
tos harmoniosos, em consonância, aliás, com o que também se encontrava objetivado no ideal
epistémico e estético da Hélade» (catroga 2009: 62-63).
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 561

efeitos emocionais, deixando de ser triviais ou insignificantes. Não obstante, há


muito pormenor repetitivo e trivial sem cabimento165. Veja-se, por exemplo, a
profusão de nomes e números no combate travado entre corinto e corcira, nar-
rado a partir de i. 46.
Hornblower observa ainda que alguns episódios têm realmente um caráter
paradigmático, dos quais se pode extrair ideias gerais166. este facto põe em evi-
dência uma tensão entre totalidade e seletividade: entre o desejo de registar
todas as ações particulares da guerra, qual repórter, e a tendência para omitir
e selecionar até ao extremo, com o intuito de extrair daí as implicações gerais
dos acontecimentos. Não será, pois, a faceta totalitária de tucídides e a con-
sequente aridez e austeridade da escrita que provoca a definição aristotélica de
historiador e de história como registo do que acontece e de tudo o que acon-
tece num determinado período de tempo?
so there are items and statements in thucydides which seem to imply that his aim
in the narrative was to be comprehensive and other items and statements which
imply that he was selective. it is the first aim, comprehensiveness, which is the
problem. it goes with another feature: the dryness and austerity which thucydides’
narrative can sometimes assume. it was perhaps the ‘comprehensive’ aspect of
thucydides which made aristotle speak of history as concerned with ‘what hap-
pened’ (that is, everything that happened?) rather than with the sort of things that
might happen, which implies that what is being looked at is a sample [ibid.: 38].

Por outro lado, a sua faceta seletiva e sociológica aproxima-o do poeta e


do filósofo e a sua História da ciência aristotélica. tucídides seria visto simul-
taneamente como historiador e como poeta e nessa dupla condição consegue a
proeza de ser trágico e tocar as emoções dos leitores.

165
«there remains much in thucydides which is inexplicably repetitious and trivial
(i.e. not ‘historically important’ items, as we should say) and for which it is hard to find
explanations in terms of emotional effectiveness» (Hornblower 1987: 36).
166
«as well as providing detail, recorded in a spare and unemphatic way, thucydides
sometimes operates differently, taking certain ‘paradigmatic’ episodes or individuals and build-
ing them up because they are typical in some way of phenomena which he wants to illustrate.
[...] it has been said that there is not one thucydides but two: one is ‘the thucydides who
restricted Kleon to three appearances; the other is the historian who solemnly put down the
names and patronymics of endless obscure commanders and ship captains’: the thucydides
who treated demagogues and stasis so selectively was exploring general phenomena and
searching for ‘general ideas’» (Hornblower 1987: 41, 42).
562 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

[...] thucydides can select, abridge and build up themes in a way that aristotle
would call ‘poetic’ not ‘historical’. and this too is a departure from Herodotus, for
all that both are certainly ‘tragic’ historians. thucydides can achieve emotional
effects as well by the dry precision of the aristotelian ‘historian’ as by more
obviously poetic techniques [ibid.: 33].

Posto isto, a sentença final de Hornblower, a qual subscrevemos, é a


seguinte: «the conclusion must be that thucydides conforms only partly to
aristotle’s idea of a ‘historian’; other parts of his work look more like ‘poe-
try’» (ibid.: 10).
Na verdade, temos de reconhecer no texto de tucídides esta dialética
entre o geral e o particular, entre a história e a poesia e isso pode justificar a
consideração de aristóteles. esta parece ser também a opinião de Hartog:
L’historien est du côté du particulier, soutient aristote; vous avez tout à fait rai-
son, répondent les commentateurs, d’ailleurs thucydide est à la fois du côté du
général et du particulier, ce qui montre bien qu’il est un historien «véritable». on
joue sur tous les tableaux à la fois [2005: 104].

isto não faz com que a História de tucídides não seja minimamente filo-
sófica e séria. Historia e poiesis são ambas filosóficas e sérias, pois ambas imi-
tam ações e palavras convertendo-as em mythoi. ste. croix relembra-nos, jus-
tamente, que aristóteles não desqualifica ou despromove completamente a
história, apenas a coloca num degrau mais abaixo: é menos filosófica e menos
digna que a poesia. Na verdade é preferível que assim seja, em nome da fron-
teira que separa história de ficção.
Historia e poiesis assemelham-se por ambas concatenarem num enredo os
eventos e as palavras que marcam a individualidade do homem, permitindo a
sua cristalização contra a corrupção temporal, garantindo a sua fama contra a
precariedade de tudo o que resulta da praxis, aproximando-se da eternidade das
coisas naturais. todavia, a falta de unidade de ação e de tempo, a menor con-
tenção, a maior extensão, a prevalência do discurso indireto e, acima de tudo,
a mimesis de um real prefigurado por testemunhas e indícios submetidos a pro-
cesso crítico impede de confundir a História da Guerra do Peloponeso com um
qualquer produto do género dramático. os dois géneros, historiográfico e poé-
tico, têm capacidade para formular juízos universais, mas a poesia, ao contrário
da história, não precisa de conformar os factos com a realidade narrada. além
do mais, os poetas trágicos lidam com matéria universal, os mitos, ao passo
que «a especificidade do novo discurso historiográfico terá residido na sua sen-
sibilidade perante a vida concreta dos indivíduos e dos povos, isto é, do par-
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 563

ticular em detrimento do geral» (catroga 2009: 62). e talvez também fosse isto
que aristóteles tinha em mente quando separou os dois géneros.
No fundo, o que o estagirita poderá ter querido dizer é que não podemos
pôr no mesmo plano uma figura mitológica e intemporal como Édipo e uma
figura histórica e irrepetível como alcibíades, ainda que o seu comportamento
social e político se possa vir a manifestar, de forma parecida, noutras figuras
históricas, ao longo da história da humanidade. então, talvez seja este confronto
entre história e mito que faça aristóteles dizer que a poiesis é mais elevada.
a história também é séria e elevada, mas não tanto como a poesia.
Para além do eventual confronto entre o mythos histórico e o mythos trá-
gico, o que parece estar aqui em causa, segundo moses Finley (1981) é um
confronto entre mito e história, confronto este que é explicável à luz do con-
texto cultural da época. a subalternização da história relativamente à poesia
lírica, trágica e épica (todos os géneros que punham em cena grandes aconte-
cimentos do passado) é explicável pelo pouco valor, quase desconsideração, que
os Gregos nutriam pela historiografia em oposição à grande consideração que
tinham pelo mito. o próprio aristóteles fundou um grande número de ciências
e, de uma maneira ou de outra, fez suas todas as outras, exceto a economia e
a história – a de tipo tucididiano ou narrativa, uma vez que, como bem sabe-
mos, ele próprio se dedicou intensamente a outro género de história que pode-
mos designar de “antiquária” (Ginzburg 1999) ou “crónica” (Weil 1960).
tirando os escassos comentários da Poética e da Retórica, aristóteles não faz
mais qualquer referência à história no vasto corpus textual que chegou até nós.
moses Finley (1981: 10) diz-nos que todos os filósofos gregos, até ao último
dos neoplatónicos, partilharam a mesma indiferença pela história. Pelo menos é
o que sugere o seu silêncio sobre o assunto. diz-se que teofrasto, discípulo de
aristóteles terá escrito uma obra com o título De historia e um outro peripa-
tético de nome Praxífanes, amigo do anterior, terá feito o mesmo, mas de um
e de outro nos chegaram apenas os títulos. a única obra antiga sobre a matéria
que chegou até nós vem da área da retórica, é um tratado de Luciano, com data
de 165 d. c., sobre a história, com o título de «como se deve escrever a his-
tória». Não vai além de uma sistematização de lugares-comuns sobre a escrita
da história, regras e máximas que faziam parte da educação retórica; daí, o seu
valor irrisório – a não ser o de nos confirmar que o cânone aristotélico pro-
posto na Poética ainda vigorava na altura. cinco séculos depois, era contra a
poesia que se continuava a medir a história. e isto porque – garante-nos moses
Finley – o desafio fundamental da universalidade e das grandes verdades sobre
a vida do ser humano só estava ao alcance do mito e o mito dominava o
564 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

ambiente no qual surgiram os historiadores167. antes da história, o mito dava


uma resposta a tudo. ele tornava o passado inteligível através de elementos que
adquiriam permanência, pertinência e significação universal. No tempo de Heró-
doto, Édipo, agamémnon e teseu, figuras de um passado longínquo, eram mais
reais para os atenienses do que qualquer personagem histórica anterior ao
século V, exceto sólon, que entretanto assumira contornos míticos. todos os
anos, estes heróis míticos eram trazidos à cena pela tragédia e pela lírica coral,
no contexto das festas religiosas, e isto «era sério e verdadeiro, literalmente
verdadeiro»168.
o mito era, para os Gregos, o grande mestre do espírito. era no mito que
fundamentavam a moral e a conduta de vida, as virtudes da nobreza e do justo
equilíbrio, ou a ameaça da hybris; de lá tiravam ensinamentos sobre a raça, a
cultura e a política. assim, não é de estranhar que a história tivesse sido ava-
liada por comparação com a poiesis. No essencial, eram duas formas distintas
e rivais de redizer o passado. e mesmo tucídides não se inibe de recorrer à tra-
dição mítica e epopeica nos capítulos introdutórios da sua História, conferindo
a estas fontes estatuto histórico169. No entanto, nenhum grego ousaria considerar
a epopeia uma obra de história, ela era muito mais do que isso, era mítica.
«como todo o mito, a epopeia era intemporal» (Finley 1981: 14). as datas e
um sistema coerente de datação serviam a história, mas os factos narrados pelo
mito, também eles concretos, não estavam ligados a nenhum acontecimento

167
«L’atmosphère dans laquelle les Pères de l’Histoire se sont mis au travail était satu-
rée par le mythe» (Finley 1981: 12).
168
«tous les ans, lors des grandes fêtes religieuses, les héros mythiques réapparais-
saient dans la tragédie et la lyrique chorale, et recréaient pour leurs auditoires la trame inin-
terrompue de la vie, en remontant par-delà les générations humaines jusqu’aux dieux; car les
héros du passé, et même bien des héros du présent, étaient d’ascendance divine. et tout cela
était sérieux et vrai, littéralement vrai» (Finley 1981: 13).
169
«Fondamentalement, c’étaient deux manières différentes de redire le passé qui riva-
lisaient l’une avec l’autre. car il ne faut pas s’y méprendre: tous acceptaient la tradition
épique comme fondée sur des faits réels, même thucydide. il nous le dit clairement aussitôt
après s’être présenté lui-même. La guerre du Péloponnèse, dit-il, mérite, plus qu’aucune des
guerres précédentes, d’être racontée, car «ce fut bien la plus grande crise qui émut la Grèce
et une fraction du monde barbare», plus grande même, précise-t-il, que la guerre de troie.
il argumente assez longuement sur ce point, et, parmi les personnages “historiques” qu’il
introduit dans ses pages d’ouverture, figurent Hellen, fils de deucalion (l’ancêtre éponyme
des Hellènes), minos, roi de crète, agamémnon et Pélops. Les détails demeurent incertains,
dit-il, tant pour le passé lointain que pour la période qui a précédé la guerre du Péloponnèse
– et c’est là une association très significative – mais les lignes générales sont claires et
dignes de foi» (Finley 1981: 14).
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 565

anterior nem posterior. o mito é um acontecimento intemporal, isolado, aistó-


rico. a cronologia utilizada na narração dos mitos é estilizada, simbólica. Não
há na epopeia nenhum interesse pela cronologia, relativa ou absoluta, ela cum-
pre aí uma função de escala ou grandeza. os trágicos revelam o mesmo desa-
preço pela cronologia. Édipo, ifigénia, orestes, todos agem ou são afetados por
acontecimentos como se fossem históricos, mas que se perdem num indistinto
passado longínquo, sem qualquer ligação a um tempo ou contexto cronológico.
Finley observa ainda que esta mesma intemporalidade atingia as personagens
individuais. eles só vivem no tempo porque morrem e cumprem um destino,
mas o tempo não tem qualquer outro efeito sobre eles. ilustra com o episódio
de ulisses e Penélope, os quais, após um desencontro de vinte anos, se mantêm
inalteráveis, pois em lado algum o poeta diz que eles envelheceram170.
também o mito das cinco idades ou raças (gene) cantado por Hesíodo é
um sinal por demais revelador, porquanto a sucessão dos metais, que identifica
cada uma delas, não corresponde a uma deterioração progressiva. cada raça é
destruída e substituída por outra, não há continuidade entre elas, são tão intem-
porais como a guerra de troia. a forma um pouco tosca como, posteriormente,
Hesíodo intercala a raça dos heróis entre a do bronze e a do ferro, perfazendo
as cinco, demonstra bem a falta de preocupação que havia pela lógica tem-
poral171.
a preocupação com o tempo real nasceu com a história. Foi Heródoto
quem pela primeira vez uniu o passado a uma forma de cronologia, ainda que
com bastantes limitações que o próprio soube reconhecer. em todo o caso, foi
capaz de estabelecer uma espécie de sequência temporal que abrange quase dois
séculos. entretanto, nem Heródoto nem tucídides foram capazes de mudar os
gostos e os interesses dos seus conterrâneos. um século mais tarde, no século
iV, ainda os oradores gregos continuam a preferir as tradições míticas e as his-

170
«Les maris et les femmes qui appartiennent à l’histoire vieillissent, mais le fait évi-
dent est que ni ulysse ni Pénélope n’ont le moins du monde changé; ils ne se sont modifiés
ni en bien ni en mal, pas plus qu’aucun autre personnage de l’épopée. des hommes et des
femmes de cette espèce ne peuvent faire des personnages historiques: ils sont trop simples,
trop enfermés en eux-mêmes, trop rigides et trop stables, trop détachés de leur arrière-plan.
ils sont intemporels comme le récit lui-même» (Finley 1981: 16).
171
«il le fit le plus facilement du monde, grâce à l’absence totale de l’élément tem-
porel. il n’avait pas à affronter de problèmes chronologiques, à synchroniser des dates, à tra-
cer ou à expliquer une évolution. La race des héros n’avait pas ce commencement dans l’his-
toire: Zeus la créait tout simplement. elle n’avait pas de fin non plus; pas de transition vers
l’étape suivante, contemporaine» (Finley 1981: 17).
566 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

tórias populares, completamente indiferentes ao novo saber histórico. o mito


era suficiente, e nada havia na sociedade grega que exigisse o seu abandono ou
a sua substituição.

3. REfiGURAÇÃO E RETÓRicA: DO “VER-cOMO”


AO “fAZER VER”.

depois da prefiguração e da memória, da configuração e da explicação,


chegamos ao derradeiro capítulo deste estudo comparativo do pensamento his-
tórico-epistemológico de ricœur e da prática historiográfica de tucídides. Já
vimos como a ficção e a imaginação se enredam na fase documental e prefi-
gurativa e na fase de explicação/configuração da operação historiográfica levada
a cabo por tucídides. de acordo com o plano que temos vindo a seguir, decal-
cado dos estádios operativos definidos por ricœur para a narrativa e para a
operação historiográfica, resta-nos pôr a tónica na componente refigurativa e
retórico-ficcional da representação histórica. É nesta fase, em concreto, que
notámos uma empatia extraordinária na forma como ricœur pensa e tucídides
aplica a ficção na história. Para mais facilmente contextualizarmos o nosso
raciocínio, recuperamos a cada passo as meditações de ricœur sobre refigura-
ção e o papel (pat)ético da ficção na historiografia.

3.1.  Refiguração e leitura

aristóteles, com o conceito de katharsis, sugere que o mythos é uma ati-


vidade estruturada, na medida em que é orientada para um destinatário, encon-
trando a sua plenitude no prazer suscitado no espetador ou leitor. Quando diz
que a poesia ensina o universal; que a tragédia, representando o temor e a com-
paixão, realiza uma depuração deste género de emoções; ou, ainda, quando fala
do prazer que este tipo de representações suscita no público, corrobora esta
ideia de que é no ouvinte ou no leitor que se conclui o percurso da mimesis.
do mesmo modo, quando fala do caráter persuasivo que o mythos deve ter, está
implicitamente a pensar no efeito que deve produzir sobre o recetor. ricœur
apoia-se nesta ideia da Poética e no conceito de aplicação de Gadamer para
extrapolar o conceito de refiguração, que caracteriza a mimesis iii. com este
conceito, ricœur pretende precisamente defender a referencialidade extratextual
da narrativa, contrariando teorias estruturalistas e semióticas do texto, mas tam-
bém reforçar a ideia de que o mythos, ficcional ou histórico, mediante a uni-
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 567

versalização de determinadas situações particulares do mundo, afeta e inova o


universo imaginário, pático e prático do leitor com a força do seu próprio uni-
verso imaginário. assim, o dinamismo da mimesis não busca unicamente a lite-
rariedade do texto poético, mas também o efeito (pat)ético sobre o leitor. No
fundo, o mythos só atinge o seu pleno sentido quando é devolvido ao tempo
da ação efetiva e da paixão pela mimesis iii. esta visão pressupõe, necessaria-
mente, uma estética da receção, onde se faz sentir a eficácia da epoche ou sus-
pensão de todo o real, operada obrigatoriamente pela mimesis ii para abrir o
espaço da ficção. É através desta estética da receção que leitores, ouvintes,
espetadores se podem converter em agentes diferentes e novos, mas sobretudo,
que se pode cicatrizar o passado da vítima inocente. dito isto, torna-se evidente
que a atividade fundamental da mimese iii é a leitura, pois assume um papel
estratégico na atividade de refiguração, servindo de intermediária entre o mundo
do texto e o mundo do leitor. a leitura permite a transição da mimese de nível
ii à mimese de nível iii, assumindo-se como vetor fundamental da aptidão da
intriga para modelar a experiência, porque retoma e conclui o processo de con-
figuração. através da leitura, a obra atinge a sua significação plena, é nela que
o dinamismo da configuração termina o seu percurso. Não há ato configurante
em ação no texto sem leitor que o acompanhe, do mesmo modo que sem leitor
que se aproprie do texto não há mundo desdobrado diante do texto. convém
ainda relembrar que não somos menos leitores de história do que de romances.
«toute graphie, dont l’historiographie, relève d’une théorie élargie de la lec-
ture» (ricœur, TR iii, 330).
o texto tucididiano não é exceção, também ele se dirige claramente a um
público e conta com a leitura como instrumento de refiguração:
the involvement of the reader in the work is an essential part of its strategy and
makes possible an alliance between the author and the reader. the reader becomes
the voluntary participant in the creation of the work, its co-shaper and fellow
craftsman. the tension between the attitude of the author and those of the
audience thus never need turn to confrontation. rather by witnessing and assessing
the events and characters described by the author the readers are led to tune their
own reactions to those of the text, and eventually to assimilate their attitudes to
those of the author [connor 1984: 18].

o tom impessoal e frio da narrativa tucididiana não chega para apagar a


intencionalidade natural do texto para um recetor, pelo contrário, a ilusão de
uma narrativa objetiva, imparcial, despojada e pouco preocupada com a estética
da receção pode considerar-se uma estratégia retórica muito eficaz de katharsis,
porque quanto mais verosímil e objetivo for o que se escreve maior é a depu-
568 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

ração das emoções de temor e compaixão dos leitores. Para convencer e sen-
sibilizar os seus leitores, tucídides não recorre a sentenças explícitas ou a jul-
gamentos morais diretos; para fazer os seus leitores reexperienciarem a guerra,
serem arrastados para o meio dela, sem desviarem o olhar dos episódios mais
desagradáveis ou reveladores, o historiador socorre-se de estratégias de compo-
sição desenvolvidas pelos antigos oradores, pelos retóricos e por Heródoto.
they are the familiar ones of author-based criticism – selection of episode and
detail, choice of word and phrase, careful determinations of when to draw close to
events and characters and depict them with fullness and vividness, and when to
draw away and leave them vague or impressionistic. selection, shaping, shading –
all have their place in a proper assessment of thucydides’ work [connor 1984: 16].

romilly refletiu longamente sobre estas técnicas de composição, sobre a


forma subtil e inteligente que tucídides tem de comunicar com os seus leitores
e de fazer passar a sua mensagem. a maneira como expõe os factos guia o lei-
tor com autoridade para um mundo posto em ordem, repensado, recreado. este
mundo tem a enganadora aparência de objetividade, mas os mínimos detalhes
aí presentes são reveladores de uma intenção ou pelo menos de uma reflexão,
que é a do compositor. É por isso que não é fácil distinguir, como alguns
fazem, a narrativa pura e as partes de interpretação. estas últimas compreendem
já, com os discursos, toda uma série de análises, de comentários, de digressões.
o texto de tucídides é estruturado em torno de uma série de fios condutores,
um largo número de temas recorrentes iluminam e ligam o avanço da narrativa.
se olharmos de perto, apercebemo-nos de que não há uma parte da narrativa
que não esteja organizada com vista à produção de um determinado efeito e ao
realce de determinadas relações. a narração mais simples conduz diretamente às
interpretações mais pessoais; mas, por outro lado, não podemos reconstruir a
interpretação sem levar em conta cada palavra da narração. como é que tucí-
dides faz isto? em primeiro lugar, com grande subtileza estilística, carrega de
significado cada detalhe para fazer passar a sua opinião. depois, o facto de
estas opiniões e teorias decorrerem dos próprios factos, e não serem expressa-
mente ditas pelo historiador, aumenta o campo de possibilidades: elas podem
entrecruzar-se, recobrir-se, combinar-se, segundo o autor leve mais longe a sua
reflexão e a minúcia. assim, compreende-se que, onde os factos são mais cla-
ros e minuciosos, escasseiam os comentários, onde são mais obscuros, os
comentários pessoais ganham relevo. a elaboração torna o comentário supér-
fluo. e é um facto consensual que tucídides tende a deixar o mais possível os
factos falarem por si próprios. o historiador evita, na medida do possível, aná-
lises e explicações. e mesmo os capítulos de exposição metodológica falam
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 569

apenas de atos e palavras, não comentam figuras ou episódios históricos. o que


ele faz mesmo é agenciar, pôr em cena atos e palavras. daí que muitas vezes
se tenha comparado a sua obra com a tragédia172.
uma leitura atenta e profunda da sua História traz ao de cima uma série
de ecos, de reminiscências, de contrastes, de sugestões, de relações semânticas
e similitudes verbais, das quais se podem inferir interpretações precisas e com-
plexas (romilly 1956: 87). mas não é fácil separar interpretação pessoal de
facto, de tal modo historiador e história estão interligados. É sabido que os
Gregos eram muito reservados na transmissão de opiniões pessoais; era típico
da cultura grega dos séculos V e iV a transmissão de pensamentos próprios
através da mise en scène de personagens em ação, tendência esta que deu ori-
gem, no século V, a um belíssimo corpo de tragédias, mas que se refletiu tam-
bém na epopeia – muitas vezes alvo de declamações mais ou menos mimadas
e expressivas – e até nos diálogos políticos, morais e filosóficos que, no século
iV, ocuparam Xenofonte e Platão. a esta idiossincrasia alia-se o hábito sibilino,
de que nos dá conta romilly (1956: 89-10)], comparando os trabalhos de
Ésquilo, Píndaro, sófocles, Platão e tucídides, de passar aos espetadores ou aos
leitores informações suplementares através de uma data de recursos de compo-
sição e de disposições múltiplas como as já citadas similitudes verbais, mas
também símbolos, paralelismos, contrastes, pausas, que só os espetadores ou
leitores mais atentos e perspicazes conseguiam alcançar.
[...] il suffit de constater que non seulement chez un poète aristocratique comme
Pindare, mais chez un dramaturge soucieux d’émouvoir la foule, et, qui plus est,
chez un philosophe tout pénétré de clarté, on retrouve les mêmes subtilités de
composition remplaçant l’exposé direct, le même appel à l’esprit du lecteur ou du
spectateur, chargé de parvenir seul au sens profond [romilly 1956: 102].

tucídides situa-se dentro desta tradição que desenvolvera um gosto refi-


nado pelos enigmas e cultivara, com esmero, o gosto pela subtileza e pela
sugestão, sem com isso pôr em causa o rigor dos factos e a objetividade
externa. os autores impunham-se a si próprios a obrigação de encerrar nas suas
obras sentidos que em lado nenhum eram explicitamente formulados. a subti-
leza do autor exigia a subtileza compreensiva do leitor para ascender à intenção

172
«La tendance à représenter les faits par la mise en scène de personnages en train
d’agir est la donnée même de la tragédie; or, la tragédie est bien pour les Grecs l’œuvre lit-
téraire par excellence» (romilly 1956: 89).
570 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

do autor. tal não nos deve suscitar compaixão, pois os leitores e os espetadores
Gregos estavam educados e bem treinados para este tipo de subtilezas:
mais ces différentes conditions aboutissent toujours à un art également complexe
et subtil, à une confiance également exigeante dans la perspicacité du lecteur. et
il faut bien en conclure que cette perspicacité existait, qu’il était naturel de comp-
ter avec elle et de ne pas tout dire, puisqu’elle était habituée à comprendre, même
sans que l’on eût tout dit [romilly 1956: 105].

de facto, não é à superfície que reside a mensagem do texto de tucídi-


des. É preciso mergulhar e descer até a um nível mais profundo. romilly diz
que é sob a enunciação reconhecidamente difícil e obscura de tucídides que
assenta a clareza, proveniente da nitidez com que organiza e do racionalismo
com que elabora a matéria histórica. o significado histórico a extrair do seu
texto é exatamente aquele a que alude e sugere. ele é claro para quem sabe
ler nas entrelinhas da sua obra173:
dans la mesure où les athéniens pratiquaient l’allusion et la suggestion, la signi-
fication historique devient, chez thucydide, ce à quoi les faits, dans leur objec-
tivité, font allusion, ce qu’ils suggèrent. elle est, nettement visible à qui sait lire,
la solution de leur énigme [romilly 1956: 106].

Por conseguinte, connor tenta, a partir das pistas deixadas pelo próprio
texto de tucídides, fazer deduções acerca do público-alvo da História da
Guerra do Peloponeso. conclui, com base nos primeiros capítulos do livro i,
que o público a que se destinava a obra devia ser inteligente, bem-educado,
sofisticado, cosmopolita, rico, permitindo-lhe qualificar o texto de tucídides de
elitista, em linha com os textos dos sofistas, da medicina hipocrática e de
outros que surgiram durante este período apodado de “iluminismo grego”174.

173
Por exemplo, no relato da expedição a siracusa, lê-se bem nas entrelinhas a ideia
que tucídides pretende transmitir sem o dizer diretamente: a Gylipo pertence o mérito da
resistência e vitória dos siracusanos. «en fait, thucydide n’a rien dit de ce genre; il n’a pas
eu un mot, pas eu une remarque. mais Plutarque ne s’est pas trompé: le jugement porté par
l’historien se lit aussi clairement dans son récit que s’il l’y avait exprimé en son nom per-
sonnel; et l’objectivité de l’exposé lui confère même un caractère d’évidence encore plus
affirmé» (romilly 1956: 79).
174
«approaching the problem in this way we can speak at least in general terms about
the audience envisioned by the Histories. although the opening chapters, as we shall see, are
special revealing, the work throughout evokes a fiercely intellectual readership, one that is
intolerant of cliché and of all that is maudlin or old-fashioned. its readers, then and now,
must be exceptionally willing to struggle with a difficult style, to dispense with the story-
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 571

dissemos que tucídides se socorre de técnicas compositivas que eram


prática comum de oradores. Não obstante, os oradores aplicavam estas técnicas
em ocasiões muito próprias e com objetivos muito específicos: uma assembleia
de voto, no tribunal, num festival ou em outro momento cerimonial. em tucí-
dides esta prática é recorrente e mantém-se ao longo de todo o texto, indepen-
dentemente de ocasiões ou do assunto, o que leva connor a dizer que o obje-
tivo de tal prática pode ser designado com uma expressão que colhe em Henry
James e que, para nós, diz bem a função que ricœur atribui à refiguração:
“enlargement of experience” 175. Nesse sentido, tucídides procura algo mais do
que buscavam a antiga oratória e a retórica: «the work thus demands some-
thing more than is to be found in ancient oratory or rhetoric» (connor 1984:
16). o que ele procura, acredita connor, é um maior envolvimento do leitor no
texto – «a much greater involvement of the reader in the text» (ibid.). mas o
maior contraste com a antiga oratória reside no facto de tucídides não emitir
opiniões nem emitir juízos de valor, o que ajudou a criar a aura do historiador
isento e objetivo, que escreve o passado tal como aconteceu, sem preconceitos
ou julgamentos. romilly mostrou-nos que, de facto, tucídides é discreto, subtil
e, aparentemente, menos subjetivo, mas nem por isso deixa de ser eficaz na
transmissão de juízos pessoais. connor corrobora esta opinião:

telling element, divine interventions and diverting excursuses, to contemplate a radical rein-
terpretation of the past, to rethink old certainties. they are expected to be tough-minded and
unsentimental in their approach to questions of conduct and value. if we cannot be sure of
the exact geographical distribution and economic status of this audience, we can as least rec-
ognize that the work avoids addressing a mass readership or one that is restricted to the
viewpoint of a single city. it leaves as little room for chauvinism as for sentimentality. Both
in antiquity and today the readership of the Histories has been cosmopolitan, sophisticated,
well-educated, and affluent. We can call this text “elitist” in a much stricter sense than we
can apply that term to the Homeric poems, Greek tragedy, or indeed to almost any archaic
or classical Greek poetry» (connor 1984: 13). a originalidade do trabalho de connor está,
justamente, em analisar a obra de tucídides concentrando-se não no autor mas nos leitores
a quem a obra se dirigia. «if we wish to speak more systematically about the complexity of
the work, we are forced to concentrate not on the author but on the work itself and on the
responses it evokes from its readership» (ibid.: 12). a pesquisa não é feita a partir de infor-
mações externas sobre a comunidade leitora visada pela História de tucídides, pois esse tipo
de informação é muito escasso, mas antes a partir das pistas fornecidas pelo próprio texto.
175
«the occasion for thucydides’ work is not momentary or specific but recurrent in
an undefined future (1.22.4); the subject is a twenty-seven-year war, and the audience not
limited to one city or to one time, nor even, as it turns out, to one culture. Nor is his goal
a vote, a verdict, a nod of approval or a burst of applause, but something much closer to
Henry James’ “enlargement of experience”» (connor 1984: 16).
572 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

if, for example, we study the account in the third book of the athenian decision
to spare mytilene (3.36-50), the absence of explicit evaluation will not be con-
fused with the avoidance of judgment or feeling. thucydides does not in his own
voice deplore the original athenian decision to execute the citizenry. But he
reports in great detail the reconsideration of the original decision when, on the fol-
lowing day, the athenians came to feel that their resolution had been “savage and
excessive” [1984: 17].

além do mais, não há nada que nos convença tanto e mexa tanto com as
nossas emoções como um relato pormenorizado, objetivo e imparcial de um
acontecimento dramático. É ainda connor que nos chama à atenção para o
facto de o poder retórico de uma narrativa, seja ela uma história do Peloponeso
ou uma peça jornalística sobre a guerra do Vietname, que prima pela objetivi-
dade, pelo apagamento e pela impessoalidade do narrador poder ter no leitor
um impacto superior ao de uma outra com forte carga retórica e denunciados
artifícios sensacionalistas176. a citação de meinecke (1970) que connor trans-
creve e da qual também nós nos apropriamos não podia ser mais eloquente
acerca do tipo de história que tucídides escreveu.
the presentation and exposition of culturally important facts is utterly impossible
without a lively sensitivity to the values they reveal. although the historian may,
in form, abstain from value judgments of his own, they are there between the
lines, and act as such upon the reader. the effect, then, as in ranke, for example,
is often more profound and moving than if the evaluation were to appear directly
in the guise of moralizing, and therefore it is even to be recommended as an arti-
fice. the historian’s implicit value judgment arouses the reader’s own evaluating
activity more strongly than one which is explicit [apud connor 1984: 8].

176
crane, justamente, compara o sensacionalismo de Heródoto e a contenção emocional
de tucídides, que consegue transmitir pathos de forma sóbria, sem cair nos excessos retóricos
que ele próprio condenou. «thucydides reacted directly and forcefully against such emotion-
alism. He banishes the marvelous from his narrative. the adjectives thaumasios and thaumas-
tos (which both mean “marvelous, amazing”) appear thirteen times in Herodotus, but only
once in thucydides. [...] Herodotus largely seeks to evoke, through the medium of language,
the experience of wonderment that so many of his characters experience, as they dash from
one part of the earth to another, gazing in fascination at the marvelous sights before them.
thucydides is, of course, not above playing to the emotions of his audience – many critics
have remarked upon the pathos he elicits in his description of the Plague, of stasis of cor-
cyra, of the athenian debacle at sicily, and other less famous passages. But thucydides
shows fastidious, stylistic restraint in eliciting these affects. He eschews open sensationalism,
and exploits minimalism to evoke strong emotions» (1996: 241).
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 573

estas técnicas retóricas que o historiador tão delicadamente aplica na con-


figuração narrativa tendo em vista o envolvimento do leitor e a transmissão de
uma mensagem são o que nós designamos de ficção na representação histórica.
ao historiador cabe a missão de preencher o seu texto com a necessária e verí-
dica intensidade moral e emocional; ao leitor cabe a tarefa de concluir o pro-
cesso de configuração narrativa através da leitura, que leva a uma refiguração
dessa intensidade moral e emocional que o autor implantou no texto. assim, é
na leitura que se conclui o envolvimento mútuo de história e ficção. e é, jus-
tamente, de uma teoria alargada da receção que parte ricœur para as análises
que consagra ao entrecruzamento de história e ficção. se o historiador põe
tanto cuidado e esforço na construção da sua narrativa, tendo em vista a leitura,
é porque quer que o seu leitor veja como ele, que acredite e se sinta emocio-
nalmente afetado pelo que diz. mas para isso não basta dizer, é preciso mostrar,
é forçoso fazer ver.

3.2.  “Ver-como” trágico

ao nível da refiguração, que é o que agora nos interessa, a história pede


ajuda à ficção para dois fins: para “ver-como” e para “fazer ver”. a primeira
modalidade diz respeito aos traços do imaginário que recorrem diretamente à
função metafórica do “ver-como”. a segunda diz respeito à vividez imagética
que o historiador deve conferir a acontecimentos únicos na história da huma-
nidade e que urge não esquecer. em ambos os casos trata-se de conferir ao
enfoque do passado (“visée du passé”) um preenchimento quase intuitivo. Por-
que estas duas modalidades estão bem presentes em tucídides, impõe-se a sua
explicitação.
a primeira modalidade tem a vantagem de ter, implicitamente, tucídides
como um exemplo ilustrativo nas palavras de ricœur. a partir do momento em
que se admite que a escrita da história não se acrescenta extrinsecamente ao
conhecimento histórico, mas forma um só corpo com ele, podemos admitir que
a história imita na sua escrita os tipos de composição narrativa herdados da tra-
dição literária. É isso que propõe Hayden White, quando toma de Northrop
Frye as categorias literárias do trágico, do cómico, do romanesco e do satírico
e as emparelha com os tropos da tradição retórica. estes subsídios que a his-
tória pede à literatura não se destinam apenas à configuração ou à construção
da intriga, servem também para a função representativa da imaginação histórica:
«[...] nous apprenons à voir comme tragique, comme comique, etc., tel enchaî-
nement d’événements» – diz ricœur (TR iii, 337). daí que muitas obras his-
574 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

tóricas, entre elas a de tucídides, hoje claramente ultrapassadas em termos


científicos e documentais, mantenham a perenidade pela forma como a sua arte
poética e retórica se ajusta à sua maneira própria de ver o passado. Não
admira, pois, que se possa apreciar uma mesma obra como um grande livro de
história e como um admirável romance. e o que é mais espantoso – observa
ricœur – é que a introdução da ficção não enfraquece o projeto de represen-
tância, pelo contrário ajuda a concretizá-lo177. Logo, todos aqueles que criticam
tucídides por apresentar uma história de pendor e forma trágica (cornford,
Parry, Loraux) apontam ao alvo errado178. todos os historiadores conformam as
suas histórias a uma determinada forma literária que está mais de acordo com
a maneira como veem os acontecimentos que investigam. a História da Guerra
do Peloponeso lembra-nos uma tragédia porque foi assim que tucídides a viu
e quis que nós, os leitores, a víssemos. e isso não põe em causa a objetividade
e a verdade da sua exposição, antes dá relevo ao que deve ser relevado: a vio-
lência, o sofrimento, a ironia trágica, a desordem moral e social causada pela
guerra.
entre les procédés “tragiques” de thucydide et son objectivité historique, il y a
plus qu’une coïncidence et plus même qu’une cohésion intime: il y a, si l’on peut
dire, un lien de cause à effet. Le désir de se retirer de son histoire, d’en être seu-
lement l’ordonnateur, de laisser parler les faits avec une rigueur toute scientifique,
– ce désir exigeait de thucydide le recours à de tels procédés. ses jugements, ses
opinions, ses théories ont pénétré tout le récit, mais parce que thucydide n’a pas
douté qu’ils fussent inscrits dans les faits, et n’a pas admis de les dire si on ne
devait les y voir [romilly 1956: 86-87].

Hornblower oferece-nos uma excelente sinopse dos traços trágicos e das


ressonâncias de outras tragédias no episódio de siracusa. Vale a pena transcre-
ver o passo na íntegra.

177
«L’étonnant est que cet entrelacement de la fiction à l’histoire n’affaiblit pas le pro-
jet de représentance de cette dernière, mais contribue à l’accomplir» (ricœur, TR iii, 337).
178
«F. m. cornford avait eu le mérite de signaler avec force les traits qu’apparentent
l’histoire de thucydide à la tragédie, et la distingue des autres; mais cela l’avait amené à
oublier que ce trait peut s’allier avec l’exactitude et le souci du vrai. Lamb, Finley, Gomme
ont été de ceux qui ont pris soin de le rappeler. Le premier est ainsi amené à parler d’une
histoire artistique pouvant transmettre la vérité de façon aussi sûre qu’une proposition d’eu-
clide; et, tout récemment, a. W. Gomme, après avoir parlé d’union entre la science et l’art,
pense qu’il s’agit, avec thucydide, non pas d’une union à proprement parler, mais de deux
aspects d’une même réalité» (romilly 1956: 86).
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 575

that tone of gloom is kept up for most of the two books; they end with the
solemn claim that sicily was the greatest ergon of the war, and that the athenian
defeat was total [...]. every conceivable tragic device is used to bring out the
depth of suffering and the magnitude of the reversal. in particular, the splendor
and arrogance of athenian resources and aims, at the beginning of Book vi, is
brought out by vague superlatives rather than by the precise enumeration of detail
which is thucydides’ more normal method. this is the method of grand tragedy
(oedipus is the ‘famous oedipus’, agamemnon is ‘king and conqueror’); the
athenian force in sicily, like oedipus and agamemnon, will be brought down in
the end, and the fall will be described in matching superlatives of suffering, in
language which specifically suggests the destruction of troy. thucydides draws
on the full range of emotional devices, including pathetic or tragic akribeia, and
a very euripidean portrayal of the effects of the battle on spectators. aeschylus’
Persai is verbally echoed at a couple of points. i have suggested elsewhere
that is because thucydides’ whole approach to the sicilian disaster is essentially
literary and tragic that he has exaggerated its atual importance for effect [1987:
148].

a História de tucídides não entra naquela categoria de histórias que


ficará conhecida como história trágica e que tem em Políbio um iniciador, his-
tórias marcada e exacerbadamente trágicas, em que a ciência e a objetividade
são claramente sacrificadas no altar da ficção e da arte. No entanto, tucídides,
tal como historiadores mais fidedignos da estirpe de ranke ou michelet, não
pôde evitar ler os acontecimentos da guerra com as lentes que a cultura literária
do seu tempo lhe forneceu. de facto, é difícil ler a História da Guerra do
Peloponeso sem sentirmos que estamos a ler a tragédia de atenas:
and yet it is hard to read the History of the Peloponnesian War without feeling
that one is reading the tragedy of athens. if the book is history, it is certainly
also literature; one can hardly deny that in some sense Kleon and alkibiades
embody the arrogant delusion of their city; and the defeat of athens, when it
comes, has the inevitability of tragedy [Wallace 1964: 256].

Fazendo agora a ligação com o tema da refiguração ou da mimesis iii,


diremos que o efeito ficcional do “ver-como” não depende apenas da configu-
ração, cabe ao leitor, mediante a sua cultura literária, identificar e dar pleno
seguimento à estratégia retórica do historiador. somos nós, leitores de tucídi-
des, que lemos a sua obra como se uma tragédia fosse e, fazendo-o, aderimos
ao pacto de leitura resultante do acordo cúmplice entre a voz narrativa e o
leitor implicado, em virtude do qual o leitor adere à ilusão e suspende a sua
576 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

descrença. o leitor concede ao historiador o direito exorbitante de conhecer as


almas. ricœur comenta, a propósito, que cobertos por este direito, os historia-
dores antigos colocavam na boca dos seus heróis discursos inventados, que os
documentos não comprovavam mas tornavam plausíveis, e é aqui que tucídides
entra claramente como exemplo, ainda que não nomeado de forma explícita.
ricœur acrescenta que estas incursões fantasiosas estão vedadas aos historiado-
res modernos, mas eles não fazem um apelo menor, sob formas mais subtis, ao
génio romanesco, quando se esforçam por reconstituir ou repensar um determi-
nado cálculo de fins e de meios. com esse fim, o historiador não se abstém
de “pintar” a cena, de fornecer um fio de raciocínio e de lhe conferir a viva-
cidade de um discurso interior. No fundo, opera da mesma forma que tucídi-
des, apenas tem ao seu dispor um conjunto de provas e meios que tornam o
seu “romance” mais fiável e científico do que a História da Guerra do Pelo-
poneso. ademais, esta maneira de pintar a cena ou de dar vivacidade a uma
situação ou a um discurso, como forma de obter um efeito discursivo, já era
mencionada por aristóteles na Retórica. a elocução ou a “dictio” tem a virtude
de “pôr sob os olhos” e assim de “fazer ver”. com esta deixa passamos à
segunda modalidade ficcional da refiguração histórica, ou seja, passamos do
“ver-como” para o “fazer ver”.

3.3.  “fazer ver” o passado

“Fazer ver” era a qualidade mais importante do histor na Grécia antiga.


Lembramos o que dissemos acima: mais do que ter visto o histor devia “fazer
ver” 179. É esta qualidade que Hartog denomina “evidência da história” –
rappeler ces premiers partages, c’est rouvrir la question des relations entre voir et
savoir, telles que le grec, comme nous l’avons vu, les a nouées, puis affronter
celle du faire voir, du montrer et du persuader, c’est-à-dire entrer dans le dossier,
jamais refermé depuis aristote, du récit historique et de la mimêsis, du récit
comme imitation de ce qui s’est passé, comme exposé ou comme poièsis. retom-
ber donc en plein sur l’évidence de l’histoire [itálico nosso] [2005: 237].

179
«Être témoin n’a jamais été ni une condition suffisante ni même une condition
nécessaire pour être historien. mais cela, thucydide déjà, nous l’avait appris. L’autopsie elle-
même devait passer par le filtre préalable de la critique. si l’on se déplace maintenant de
l’historien vers son récit, la question devient: comment raconter comme si je l’avais vu (pour
le faire voir au lecteur) ce que je n’ai pas vu et ne pouvais pas voir?» (Hartog 2005: 236).
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 577

– aristóteles institui como efeito retórico da dictio e ricœur estabelece como


elemento fulcral da representação histórica, sobretudo, em se tratando de acon-
tecimentos que demandam admiração ou execração. É esta característica que
encontramos magnificamente trabalhada na obra de tucídides, da qual extraire-
mos uma série de estratégias e de exemplos. antes, recuperamos a tese que
ricœur aborda levemente em Temps et récit iii e desenvolve demoradamente
em La mémoire, l’histoire, l’oubli.
o filósofo francês crê que, mais do que qualquer outra, a história do
sofrimento e do horror grita por justiça e apela para a narração. Há aconteci-
mentos, como auschwitz, que são únicos na história da humanidade e aos quais
o historiador deve conferir vividez imagética para que não fiquem esquecidos.
cabe ao imaginário de representância “pintar”, “colocando diante dos olhos”,
esses acontecimentos horríveis, configurando a narrativa das vítimas, preser-
vando a memória do sofrimento. a historiografia pode ser sem memória,
quando a simples curiosidade a anima; com o auxílio da ficção ao serviço do
inesquecível, a historiografia iguala-se à memória, na medida em que produz
uma imagem do passado. acontecimentos que geram numa comunidade inten-
sos sentimentos éticos, seja de comemoração fervorosa seja de execração, não
podem ser objeto de uma neutralização ética, com base no argumento técnico
de que o historiador se deve distanciar do objeto para melhor o compreender
e explicar. obviamente, tal não implica abdicar da regra da imparcialidade e da
objetividade, apenas que se tenha em conta o princípio ético. o valor da ficção,
neste caso específico, reside no seu poder de quase-intuição, na criação da “ilu-
são da presença”, ilusão controlada pela distância crítica. esta ilusão não tem
como função agradar ou distrair, antes, estar ao serviço da individuação do uni-
camente único, efeito do horror ou da admiração:
L’individuation par l’horrible, à laquelle nous sommes plus particulièrement atten-
tifs, resterait aveugle en tant que sentiment, aussi élevé et profond soit-il, sans la
quasi-intuitivité de la fiction. La fiction donne au narrateur horrifié des yeux. des
yeux pour voir et pour pleurer [ricœur, TR iii, 341].

o que ricœur diz, e nós vemos acontecer em tucídides, é que, fundindo-


-se com a história, a ficção fá-la remontar à sua origem comum na epopeia. o
que a epopeia tinha feito no domínio do admirável e do grandioso, transmitindo
e preservando a glória efémera dos heróis, a legenda das vítimas – como uma
espécie de epopeia negativa que preserva a memória do sofrimento – fá-lo no
domínio do horrível. É, precisamente, este esforço que encontramos em tucí-
dides e que leva o próprio ricœur a admitir um ponto de contacto entre o aedo
578 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

e o histor180. Por muito que recuse engrandecer os feitos que narra com um tipo
de ficção ilegítima, to mythodes, o historiador ateniense não evita o recurso a
um outro tipo de ficção legítima, a retórica, para acentuar e engrandecer o pen-
dor trágico-pessimista que se reconhece na sua obra e fazem dela uma epopeia
negativa da guerra. tucídides mostra-se particularmente impressionado pelas
reviravoltas da guerra, pelo caráter dramático de um conflito que devia terminar
com a aniquilação de um dos adversários, mas que até ao fim reservará sur-
presas. impressiona-o a sucessão ininterrupta de acontecimentos violentos cau-
sados pelo antagonismo das duas potências em conflito, a destruição das cida-
des, a escravização das mulheres e das crianças e a execução dos homens, as
revoluções que sucedem os golpes de estado, a dispersão e o esboroamento das
famílias, os assassinos que passam por heróis e os imprudentes aventureiros que
são tidos por chefes audaciosos. a guerra provoca uma total inversão dos valo-
res conhecidos: as paixões vencem e o patriotismo que suscitou o combate não
resiste à loucura dos assassinatos e da violência. são muitos os passos que
poderíamos citar, tantas são as referências às crueldades e perversões da guerra,
mas em nenhum outro ponto da sua obra tucídides se detém tão longamente
nas censuras e na reprovação dos esquemas e consequências da guerra (neste
caso a guerra civil, stasis, na corcira) como em iii. 81-84. transcrevemos ape-
nas um curto excerto.
a maior parte dos suplicantes, todos os que não se tinham deixado convencer, ao
ver o sucedido, mataram-se uns aos outros, ali, no templo; alguns enforcaram-se
em árvores e outros suicidaram-se como puderam. durante os sete dias que per-
maneceu eurimedonte, desde a sua chegada com os sessenta navios, os corcireus
assassinaram quem lhes parecia ser seus inimigos, sob a acusação de quererem
derrubar a democracia, mas alguns morreram vítimas de ódios pessoais e outros,
que tinham contraído empréstimos de dinheiro, morreram às mãos daqueles a
quem deviam; houve todo o género de mortes e, tal como costuma acontecer em
tais circunstâncias, não se recuou diante de nada, pior ainda. o pai matava o seu

180
Numa nota de rodapé, onde discute as diferenças entre o aedo e o histor, ricœur
sustenta que Heródoto, ao eleger como tema principal das suas Histórias a preservação do
kleos (renome) dos Gregos e Bárbaros e tucídides a grandeza da guerra do Peloponeso, a
maior de todas as guerras, aproximam-se ambos do aedo que compõe epopeias. apenas as
epopeias dos historiadores são manifestos contra o esquecimento e contra o elogio, são epo-
peias da reprovação. «on ne saurait toutefois parler d’une franche et définitive coupure entre
l’aède et l’historien, ou, comme on dira plus loin, entre l’oralité et l’écriture. La lutte contre
l’oubli et la culture de l’éloge, face à la violence de l’histoire, sur fond de tragédie, mobi-
lisent toutes les énergies de la diction» (ricœur, MHO, 173, nota 5).
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 579

filho e os suplicantes eram arrancados dos santuários ou eram mortos aí mesmo,


alguns, inclusivamente, morreram emparedados no santuário de dionísio.
tal foi, com efeito, o grau de crueldade que atingiu a guerra civil, e ainda o pare-
ceu mais porque esta foi a primeira [...]. abateram-se muitos males sobre as cida-
des durante a guerra civil, males que acontecem e sempre acontecerão enquanto
a natureza dos homens for esta, piores ou mais brandos e cambiando de forma
consoante as mudanças que ocorram em cada circunstância. Na verdade, em tem-
pos de paz e de prosperidade as cidades e os indivíduos têm melhores pensamen-
tos por não terem de enfrentar necessidades forçadas; a guerra, que suprime o
bem-estar quotidiano, torna-se um professor violento e acomoda às circunstâncias
os sentimentos da maioria [iii. 81. 3 – 82. 2].

Não é só o destino da Grécia que se encontra revelado na narração de


tucídides, é também a própria essência da guerra e da violência coletiva:
mesmo sem intenção o historiador faz-se moralista (châtelet 1962: 201-202).
tucídides não abdica da regra da imparcialidade e não deixa de perseguir a
objetividade, mas também não fica impávido e sereno perante os horrores da
guerra, por isso, empenha-se em transmitir com realismo figurativo e vividez
imagética os factos. imagem e vividez (enargeia) são aqui palavras-chave, mas
antes de expormos a forma como tucídides confere visibilidade ao seu relato,
retomemos de novo as considerações de ricœur, desta feita já não sob o título
de “ficcionalização do discurso histórico” mas sob o de legibilidade e visibili-
dade. a incidência sobre o caráter imagético de qualquer representação literária,
que é herdeira da própria iconicidade da memória, produz um entrecruzamento
da legibilidade com a visibilidade.
com a ajuda das reflexões de Louis marin, ricœur expõe em La
mémoire, l’histoire, l’oubli (pp. 339-358) a sua tese sobre os privilégios retó-
ricos da imagem no momento mais específico da representação histórica. o pre-
texto continua a ser o mesmo de Temps et Récit, mas desta feita de forma mais
contundente e com um novo desafio pela frente. de facto, a problemática rela-
ção entre história e ficção continua a ser suscitada por questões inerentes à
representação em discurso histórico da Shoah, mas desta vez põe-se em relevo
a dificuldade de encontrar uma forma literária capaz de representar, exibindo,
a monstruosidade indizível e quase irrepresentável testemunhada pelos sobrevi-
ventes do horror nazi; ligado a esta questão vem o problema do negacionismo,
para o qual pode contribuir uma forma post-modernista (Hayden White e
roland Barthes são simultaneamente criticados e louvados por ricœur) de pen-
sar a operação historiográfica.
as questões com que se debatem os historiadores contemporâneos (a pro-
pósito da segunda Guerra mundial) terão passado, provavelmente, pela cabeça
580 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

de tucídides ao confrontar-se com os testemunhos dramáticos dos sobreviventes


da guerra do Peloponeso: como representar experiências de vida que extrava-
sam os limites da compreensão narrativa? até onde pode ir a representação his-
tórica sem deslizar para o campo ilimitado da ficção? até onde pode ir o his-
toriador para transmitir uma imagem suficientemente ilustrativa e convincente e,
ao mesmo tempo, fiel ou fidedigna do horror? estas questões, como é óbvio,
tocam diretamente o âmago da problemática maior do nosso estudo, a fronteira
entre história e ficção. em que medida a história precisa da ficção para fazer
justiça às vítimas da guerra, mantendo a sua função crítica? tucídides não
tinha, no seu tempo, um Hayden White ou um roland Barthes, mas tinha um
Górgias e um Protágoras, que, pondo a tónica no efeito retórico da linguagem,
defendiam o mesmo tipo de ideias dos post-modernistas: basicamente, tudo é
relativo e a linguagem mais do que tudo. o Encómio de Helena de Górgias é
bastante explícito: porque entre linguagem e realidade existe uma relação pura-
mente arbitrária, a linguagem está à mercê dos retóricos para criar imagens ilu-
sórias da realidade e para persuadir alguém do que quer que seja. eurípides
explorará de forma brilhante esta tese de Górgias na sua tragédia Helena.
a principal vítima destas teorias é a verdade. se a linguagem é um mero exer-
cício retórico e arbitrário, não é possível conhecer a verdade. Górgias e Protá-
goras são os responsáveis pelo total descrédito da linguagem para dizer a ver-
dade com objetividade. a linguagem não passa de um instrumento retórico de
diversão e convencimento, sem qualquer relação com a realidade que procura
transmitir. É muito provável que a metodologia cuidadosamente estabelecida por
tucídides; os comentários que vai tecendo em nome próprio, ou pela boca
de outros (veja-se a oração fúnebre proferida por Péricles (tucídides: ii. 41.
3-4])181, contra os que têm da linguagem uma visão eminentemente retórica e
enganadora; a constante defesa da verdade e da objetividade tenham como
intenção contradizer as teorias de Górgias e dos sofistas182. assim, muitos dos

181
a mensagem fundamental da crítica de Péricles é a de que o poder ateniense não
é uma miragem linguística, é real. «athenian power is not a linguistic mirage. rather, thucy-
didean language provides us with a clearer picture of what actually happened. thucydides’
History is not an end in itself, but a lens through which we may more clearly study the
facts» (crane 1996: 210-211).
182
«[...] Gorgias was a somewhat older contemporary of thucydides, and his flashy
new rhetoric made a sensation when he visited athens on an embassy in 427. smooth, often
vapid, sentences characterize the surviving fragments of Gorgias’ prose. thucydides’ language,
twisted, defiantly idiosyncratic, and often nearly incomprehensible, at once imitated and
rejected Gorgias’ brilliant, but superficial, style. the Praise of Helen, Gorgias’ most famous
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 581

investimentos intelectuais de ricœur têm como alvo o estruturalismo (que vê a


linguagem numa relação fechada de significado-significante, desgarrada da refe-
rência do mundo) e o relativismo narrativista (que despromove completamente
a narrativa histórica como instrumento científico e credível para dar conta do
passado). auschwitz, e antes corcira, melos e Plateias não são efeitos de lin-
guagem, foram acontecimentos reais. o discurso histórico tem sempre um acon-
tecimento real por referente último, ainda que necessariamente ele venha media-
tizado pela memória do documento ou da testemunha. acontecimento e facto
nunca coincidem, mas por trás de um facto testemunhado ou documentado há
um acontecimento real.
Não obstante, nem tucídides nem ricœur atiram fora o bebé com a água
do banho. Nenhum dos dois é destrutivo e sempre procuram razões válidas e
ideias recicláveis nas teorias que tentam refutar. É assim que podem ambos
afastar da história crítica os abusos da retórica e da ficção (to mythodes)
(relembre-se que tucídides rejeita os excessos retóricos de poetas, oradores e
logógrafos, construindo uma retórica da austeridade183, e ricœur denuncia as
insuficiências do linguistic turn), abrindo uma fronteira clara entre história e
ficção, mas não rejeitam por completo a entrada da retórica ficcional na histó-
ria; pelo contrário, descobrem-lhes virtudes excecionais para conferir visibili-
dade ao passado, de modo a convencer o leitor e aproximá-lo da res gestae.
esta atitude é extremamente sensata. Ninguém os levaria a sério ou daria cré-
dito intelectual aos seus trabalhos se pura e simplesmente defendessem uma
narrativa histórica totalmente isenta de recursos estilísticos e artifícios retóricos.
isso não existe, toda a narrativa ficcional ou histórica é retórica, a diferença
está em que o texto histórico está sujeito ao controlo crítico, proveniente do
imperativo documental. está completamente fora de questão um enunciado
meramente factual, desnarrativizado, um acumular de datas, nomes e número.
Não há lista ou crónica capaz de fazer justiça às vítimas de uma guerra, é pre-
ciso narrar as suas histórias, dando-as a ver.

surviving work, is a classic epideictic composition: the orator defends an untenable position
(praise of the adulterous Helen) to demonstrate that “language” (logos) is more powerful than
“reality” (ergon). Gorgias, in fact, champions the very practice that thucydides condemns, for
it is thucydides who insists that language simply represents the erga, the real facts of the
case» (crane 1996: 218).
183
«[thucydides] develops a revolutionary new rhetoric of authority, one that rejects
the claims of poets and orators alike, while setting the stage for tremendously successful
boasts of later scientific discourse. Where previous authors had insisted upon the charm and
emotional power of their work, thucydides rejects the paradigm of language as enchantment,
constructing instead a self-denying rhetoric of austerity» (crane 1996: 215).
582 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

ricœur assenta as suas reflexões na intercessão entre legibilidade e visi-


bilidade ao nível da receção do texto literário. É neste ponto em concreto que
faz mais sentido falar de ficção histórica ou ficção científica a propósito de his-
tória. uma narrativa histórica é uma tapeçaria, tem quadro e sequência, imagem
e história ou ainda descrição e narração. ricœur afirma que «a narrativa dá a
compreender e a ver» – «de fait, le récit donne à comprendre et à voir»
(MHO, 341). contudo, a visibilidade não provém só deste entrecruzamento da
faceta mais imagética com a sequencial, por outras palavras, a simbiose entre
visibilidade e legibilidade não se resume à descrição de uma situação, de uma
paisagem, de uma batalha, de lugares, de uma figura, de um comportamento ou
de um caráter. em qualquer situação a narrativa coloca-nos algo diante dos
olhos, dá a ver. assim o defendia aristóteles quando, na Retórica (iii. 10,
1410b 33), apontava como uma das virtudes da lexis o “pôr diante dos olhos”.
esta capacidade surge aliada à marca distintiva da retórica, a capacidade de
persuadir, que por sua vez está na origem de todos os prestígios que a imagi-
nação pode retirar da visibilidade produzida pelas figuras de estilo. a própria
legibilidade só por si produz visibilidade, na medida em que a narrativa dá a
ler, põe sob os olhos, para nos persuadir e tornar mais convincente ou vero-
símil o que transmite. os prestígios da imagem descritos por Louis marin aju-
dam ricœur a desenvolver a ideia que lhe surgira já em Temps et Récit, a pro-
pósito da ficcionalização da história, de que os prestígios retóricos da imagem
servem para criar uma ilusão controlada de presença daqueles acontecimentos
unicamente únicos que despertam numa comunidade intensos sentimentos éti-
cos, seja de comemoração fervorosa seja de execração. a força (de)monstrativa
do ícone é posta ao serviço da historiografia e, através dela, do acontecimento
que narra. em todo o caso, esta imagem nunca é uma cópia do acontecimento,
só a memória pode produzir cópias do acontecimento, mas a memória arqui-
vada sofre um distanciamento crítico que impede uma recuperação exata do ori-
ginal. apesar de tudo, através do ter-sido do passado, a intencionalidade histó-
rica, sob a modalidade de representância ou reconstrução narrativa, visa o que
realmente aconteceu e capta-o, com ajuda da imaginação e dos tropos da tra-
dição literária, tal como aconteceu.

3.3.1.  A vividez do discurso de Tucídides: enargeia e ekphrasis

marin demonstra como os exímios escritores de Port royal exploravam os


prestígios da imagem textual para glorificar o poder monárquico e amplificar o
retrato do rei (Le portrait du roi). eles não elogiavam de forma direta a gran-
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 583

deza do rei nem o glorificavam abertamente, apenas sugeriam, através de factos


que narravam; no fundo, louvavam sem louvar184. Preparavam o texto para que
o leitor, sob a conduta hábil da narrativa, retirasse as suas conclusões. Não é
isto que tucídides faz, por exemplo, com Péricles ou com Gylipo? Não vimos
atrás como é próprio de tucídides usar de subtileza e estabelecer uma via de
comunicação com os seus leitores assente na sugestão e na alusão? tal como
nos escritores de Port royal, o panegírico de tucídides é dissimulado, é da
boca do leitor que ele deve sair abertamente. marin constata que este efeito dis-
simulado de louvor é conseguido pela mobilização de vários recursos retóricos
como a abreviação dos feitos, a lítotes, a pintura dos atores e das cenas, e
todos os simulacros de presença suscetíveis de suscitar o prazer de ler. a hipo-
tipose narrativa, ou seja, a descrição entusiástica e tocante, é o recurso retórico
que mais do que qualquer outro contribui para este efeito de dar visibilidade a
uma pessoa, acontecimento ou situação. são as mesmas estratégias retóricas que
tucídides tão profusamente utiliza para enaltecer uns e reprovar ou censurar
outros – como, por exemplo, alcibíades, cléon ou o comportamento de ate-
nienses e espartanos em vários contextos de guerra. relembramos que ricœur
propõe que em lugar do elogio se possa colocar o seu oposto, a reprovação
(“blâme”), já que é de reprovação que se trata quando falamos do holocausto
nazi ou, neste caso, da guerra do Peloponeso185. elucidativas e providenciais
são as suas palavras, já citadas anteriormente, onde a propósito justamente de
Heródoto e tucídides afirma que, face à violência da história, o histor se deve
aproximar do aedo e mobilizar todas as energias da dicção (da dictio ou lexis
de que fala aristóteles) para lutar contra o esquecimento e a cultura do elogio:
«La lutte contre l’oubli et la culture de l’éloge, face à la violence de l’histoire,
sur fond de tragédie, mobilisent toutes les énergies de la diction» (ricœur,
MHO, 173, nota 5).

os historiadores antigos, a começar pelos considerados pais da história


– Heródoto e tucídides – à falta de instrumentos e hábitos de análise crítica,
indispensáveis na oficina do historiador moderno, como sejam, por exemplo, as
provas documentais, primárias e secundárias, tinham por hábito conferir asser-
tividade e autoridade às suas narrativas históricas insuflando-lhes vividez pictó-

184
«Il faut louer le Roi partout, mais pour ainsi dire sans louange, par un récit de tout
ce qu’on lui a vu faire dire et penser…» (marin 1981: 59).
185
«N’est-ce pas le blâme extrême, sous la litote de l’inacceptable, qui a frappé d’in-
famie la “solution finale” et suscité plus haut nos réflexions “aux limites de la représenta-
tion”?» (ricœur, MHO, 358).
584 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

rica, de modo a gerar impacto emocional e visual na mente dos ouvintes ou lei-
tores. este processo é frequentemente mencionado nos antigos manuais de retó-
rica sob a designação de enargeia, sendo esta a alma da ekphrasis, e era
comum não só entre historiadores como entre poetas e oradores. É da epopeia
homérica que nos vêm os exemplos mais antigos. ora, no caso da historiogra-
fia, longe de minar a confiança do leitor, a enargeia contribuía para aumentar
a credibilidade do relato, na medida em que aproximava a observação indireta
do leitor da observação direta (autopsia) do historiador ou da testemunha. tucí-
dides, como veremos a seguir, era citado como o mais exímio cultor deste arti-
fício retórico.
com o advento da historiografia moderna, também dita científica, a enar-
geia, enquanto estratégia retórico-ficcional que tinha feito as delícias de suces-
sivas gerações de historiadores até ao século XiX, é categoricamente repudiada
como atentatória da objetividade e seriedade do trabalho do historiador. Nas
últimas décadas, porém, o conceito de enargeia tem aparecido, sobretudo, em
abordagens de teor literário e filológico186. Já o conceito de ekphrasis, pelo
facto de ser uma técnica extensiva a todos os géneros literários e não conotado,
especificamente, com a história, teve melhor sorte, nunca caiu em desuso.
sofreu, sim, uma mutação restritiva: deixou de ser uma descrição que colocava,
com vividez (enargeia) imagética, sob os olhos do espetador ou leitor o objeto,
qualquer que fosse, ou ação, e passou a significar, de forma limitada, uma des-
crição poética de uma obra de arte escultórica ou pictórica. ainda assim, ekph-
rasis é tema que tem despertado, nos últimos anos, uma atenção revigorada nos
estudos Literários e nos estudos clássicos187.

186
Zanker (1981): “enargeia in the ancient criticism of Poetry”; calame (1991):
“Quand dire c’est faire voir: l’évidence dans la rhétorique antique”; Walker (1993): “enargeia
and the spectator in Greek Historiography”; Kemman (1996): “evidentia”; Ginzburg (1989):
“montrer et citer: la verité de l’histoire”; Zangara (2007): Voir l’histoire. Théories anciennes
du récit historique, IIe siècle avant J.-C. – IIe siècle après J.-C.
187
o assunto tem sido alvo de múltiplas e amplas abordagens, sendo extremamente
difícil concentrar aqui uma lista bibliográfica substantiva. em todo o caso, pondo de parte a
área mais vasta dos estudos Literários, deixamos aqui nota de alguns dos mais significativos
trabalhos que têm vindo a lume na área dos estudos clássicos. em janeiro de 2007, a revista
Classical Philology dedica um número inteiro ao tema da ekphrasis, abrindo com o impor-
tante artigo de simon Goldhill, “What is ekphrasis for?”. o mesmo autor foi coeditor, com
robin osborne, em 1994, da obra Art and Text in Ancient Greek Culture, que consagra vários
artigos ao tema, sendo um deles o de Froma Zeitlin, ‘the artful eye: vision, ekphrasis and
spectacle in euripidean theatre’. em 2002, surge o trabalho de tim Whirthmarsh, ‘Written on
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 585

Há historiadores e pensadores da envergadura de c. Ginzburg (1999), c.


calame (2007), Jacques rancière (1992), a. Prost188 e mesmo mais insuspeitos,
F. Braudel189 e c. seignobos190, que, sem invocarem diretamente os termos
específicos de ekphrasis ou enargeia, não se inibem de dizer que a história
deve mostrar, deve “fazer ver”, deve evidenciar. conscientes de que a história
possui uma dimensão narrativa inalienável, estes reconhecem-lhe o potencial
descritivo que torna os acontecimentos do passado visíveis para a mente. No
entanto, ninguém, nas últimas décadas, foi mais consistente, sistemático e con-
vincente no tratamento da faceta visível da narrativa historiográfica do que Paul
ricœur. a propósito de questões éticas, o filósofo francês reflete sobre proces-
sos de representação histórica que no contexto da Historiografia e retórica
clássicas eram identificáveis como ekphrasis e enargeia e que tucídides soube
aplicar como ninguém na sua História da Guerra do Peloponeso. Veremos,
neste capítulo, como uma epistemologia histórica para o século XXi, uma epis-
temologia que supera e concilia as duas posições extremas que se digladiaram

the body: ekphrasis, perception and deception in Heliodorus’ aethiopica’, inserido numa cole-
tânea de textos consagrados à relação entre o verbal e o visual: Jaś elsner (ed.), The Verbal
and the Visual: Cultures of Ekphrasis in Antiquity. todavia, a autora que, a nosso ver, mais
passos tem dado dentro deste campo é ruth Webb, que em 2009 publica Ekphrasis, imagi-
nation and persuasion in ancient rhetorical theory and practice, sendo que esta publicação
é antecedida de uma série significativa de trabalhos, publicados em revistas, compilações e
atas, em torno da mesma temática.
188
Prost (2006) é um dos que destaca a importância da visibilidade literária do texto
historiográfico, dizendo que o historiador deve procurar que o leitor consiga representar men-
talmente aquilo que diz. como? “Fazendo apelo à sua imaginação e não somente à sua
razão” (273).
189
rancière (1992: 25-54) oferece-nos um bom exemplo de como os historiadores con-
temporâneos não podem evitar apelar à imaginação do seu leitor. Basta lembrar o capítulo
que dedica à análise da morte do rei Filipe ii, narrada por Braudel no capítulo final do Medi-
terrâneo e o mundo mediterrânico…aí, constata rancière, Braudel pega no leitor pela mão,
fá-lo entrar no escritório do rei e fá-lo sentar-se na sua cadeira, para depois lhe mostrar por-
menores íntimos, como a escrita do monarca.
190
Já em finais do século XiX, charles seignobos chamava a atenção para a neces-
sidade de ultrapassar o caráter abstrato e por vezes vazio de sentido, para a maioria dos lei-
tores, dos conceitos empregues pelos historiadores. dizia ele que o que é preciso é dar vida
imagética ao texto, permitindo, antes de mais, que quem o leia consiga figurar mentalmente
os homens e os acontecimentos narrados, desde o seu aspeto exterior até ao seu universo
interior. a função primeira do historiador deveria consistir, antes de mais, em “fornecer repre-
sentações”; in ch. seignobos, «L’enseignement de l’histoire comme instrument d’éducation
politique», p. 117; apud Prost (1996: 274).
586 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

ao longo do século XX (neopositivismo e narrativismo) se nutre de princípios


similares aos que um historiador clássico e pré-científico como tucídides tão
bem utilizou e transmitiu a sucessivas gerações de historiadores.

o conceito atual de ekphrasis tem um significado diferente do que tinha


na antiguidade, mormente, nas escolas gregas do império romano. a crítica
literária moderna entende ekphrasis ou écfrase como um texto comprometido
com as artes visuais. tanto pode ser uma descrição poética de uma obra de arte
pictórica ou escultórica como a representação verbal de uma representação
visual ou, muito simplesmente, palavras acerca de imagens. todavia, na sua
aceção original, a função central de ekphrasis era fazer o ouvinte “ver” o
assunto com os olhos da mente ou usar a linguagem de modo a que o auditório
conseguisse imaginar a cena e se sentisse emocionalmente tocado. este conceito
de ekphrasis como força persuasiva, atuante sobre o ouvinte, consolidou-se a
partir do Encómio de Helena, de Górgias, e manteve-se com este significado ao
longo de toda a antiguidade até à era Bizantina. a ekphrasis depende, essen-
cialmente, do efeito sobre o ouvinte ou leitor, e não de um determinado
assunto, referente ou género literário. o que importava era convencer e emo-
cionar o auditório, ou, segundo dionísio de Halicarnasso (Lys. 7; i.14, 17) tor-
nar “os ouvintes espetadores”. Na sua aceção antiga, a ekphrasis não dependia
de nenhuma qualidade formal ou referencial; fundamental era, nas palavras de
Quintiliano, a disposição do assunto sob os olhos: sub oculos subiectio (Inst.
Or. 9. 2. 40). o que definia intrinsecamente ekphrasis era o efeito sobre o
ouvinte ou leitor, e o que a distinguia de uma simples narração (diegesis) era
a vividez, dita enargeia. segundo o retórico Nicolau (numa clara alusão a tucí-
dides), um texto é considerado ecfrástico quando é vívido e é vívido quando
é detalhado. uma narração simples (diegesis) limita-se a informar que os ate-
nienses e os espartanos entraram em guerra; mas um texto ecfrástico faz mais:
informa sobre os preparativos e os equipamentos militares de cada uma das
fações e a forma como se desenrolaram os combates (Prog. 68; ii 9-10). Por
conseguinte, podemos dizer que a finalidade da ekphrasis era a enargeia. daí
que os dois termos fossem muitas vezes usados de forma indistinta191.

191
Na sua investigação, Zanker (1981), apesar de reconhecer a utilização indiscriminada
dos dois termos, conclui que o conceito de enargeia é anterior ao de ekphrasis e seus equi-
valentes (“descriptio”) e que um dos seus usos mais antigos se dá no campo da poesia:
“’Ενάργεια can therefore safely be said to have been current as technical term in the criticism
of poetry in the second century B.c. just as its use in historiography is attested for that cen-
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 587

de acordo com os Progymnasmata, os antigos retóricos, como theon e


Hermógenes, definiam a enargeia como a arete da descrição pictórica (Prog. 2;
ii. 119, 27 sP e Prog. 10; ii.16, 32 sp). o étimo enarges significa “visível”,
“palpável”, “claro”, “distinto”. o seu traço semântico essencial é a ligação
ao sentido da visão, do “fazer ver”. dionísio de Halicarnasso (Lys. 7; i.14, 17
us.-rad.) é quem nos apresenta a definição mais completa, declarando que
enargeia é um efeito estilístico que apela aos sentidos do ouvinte, pelo facto
de determinadas circunstâncias serem descritas de um modo tal que o ouvinte
é convertido em espetador. o crítico grego demetrius (Eloc. 209), por sua vez,
enfatiza a descrição pormenorizada que o conceito de enargeia implica. a enar-
geia resulta de uma narração rigorosa que não omite detalhe. Para este, toda a
representação contém uma parte de enarges. Finalmente, os correlatos latinos de
enargeia contribuem todos para esclarecer e reforçar o feixe de sentidos do
termo: demonstratio, evidentia, illustratio, repraesentatio, sub oculos subiectio.

os retóricos retiravam a maior parte dos exemplos que citavam para ilus-
trar ekphrasis e enargeia de poetas e historiadores. desses, Homero, Heródoto
e tucídides eram os mais nomeados. e, de facto, há uma associação clara entre
a hipotipose narrativa, outro sinónimo para ekphrasis, e a História de tucídi-
des. desde cedo, o historiador ateniense ganhou reputação de habilidoso recons-
tituinte de cenas; de notável explorador do poder figurativo e dramático da lin-
guagem, pela forma como confere relevo a determinadas ações ou personagens
que atraem e envolvem as emoções do leitor. desde cedo, os leitores reconhe-
ceram em tucídides uma dupla faceta: o historiador objetivo, distante e desa-
paixonado e o talentoso relator de cenas entusiásticas e emocionantes, que são
autênticos simulacros de presença. Nesta arte do realismo, não diverge do seu
congénere, Heródoto; ambos foram capazes de recriar memoráveis experiências
visuais que transportam o leitor, pela imaginação e pela emoção, para o teatro
dos acontecimentos. este facto chamou a atenção de muitos dos admiradores
de tucídides, e tornou-se praticamente um lugar-comum mencioná-lo como
um exemplar artífice de ilustração narrativa (a par de um compatriota tão
ilustre como Homero). disso mesmo nos dá testemunho Plutarco (Glor.
Athen. 347a-c.), ao comentar a descrição da batalha no porto de siracusa
(thuc. 7. 71):

tury in Polybius and agatharchides as we have seen; it thus seems to predate all the other
literary terms for “visual description”; specifically relevant to poetry, as well as being central
to all later literary and rhetorical theory on the subject” (307).
588 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

[...] o melhor historiador é aquele que através de emoções e das personagens com-
põe a sua história como uma pintura. tucídides esforça-se sempre na sua escrita
por alcançar esta vividez [ἐνάργειαν], ávido por fazer do leitor um espetador e por
gerar nos leitores as mesmas sensações de espanto e de consternação sentidas
pelos que assistiram aos acontecimentos. [...] há uma marca de pictórica vividez
[γραφικῆς ἐναργείας] na composição e na modelação dos acontecimentos.

o objetivo de tucídides é duplicar no leitor o espetador real dos aconte-


cimentos, levando o leitor a experimentar as mesmas emoções de assombro e
comoção daqueles que assistiram ou intervieram diretamente (deduz-se) nos ter-
ríveis eventos da guerra192. e – Plutarco é bastante explícito – essa ressonância
só é possível através da γραφικῆς ἐναργείας. É a forma como compõe o seu
texto que lhe dá esse caráter pictórico que leva a compará-lo a uma pintura.
a comparação entre história e pintura, destacada por Plutarco como habi-
lidade própria de tucídides, recorta-se de uma tradição que acentua as simili-
tudes entre literatura e pintura. Vem-nos à mente o consabido aforismo do poeta
grego simónides de céos: “a pintura é poesia muda e a poesia é pintura
falante” – também citado por Plutarco nas linhas que antecedem o excerto
acima transcrito (347a). Na República (10.605a), Platão apresenta o poeta asso-
ciado ao pintor, acusando um e outro de defraudarem a verdade. são célebres
também as declarações de aristóteles, na Poética (1448a5, 1450a27, 1450b1),
a propósito das semelhanças e diferenças entre pintura e poesia ou na Retórica
(3.10, 1410b 33), onde indica como uma das virtudes da lexis ou da elocução
o “pôr diante dos olhos”, para “fazer ver”. depois dele, Horácio, na Epistola
ad Pisones (vv. 361-364), cunha uma das mais conhecidas divisas sobre o
assunto: ut pictura poiesis. Já na contemporaneidade, ricœur acentua esse pen-
dor figurativo da linguagem histórica evocado por Plutarco: “on peut dire tour
à tour de l’amateur d’art qu’il lit une peinture et du narrateur qu’il dépeint une
scène de bataille” (mHo, 342).
relativamente a tucídides, não é difícil encontrar quem subscreva a leitura
de Plutarco. Já no século XX, P. a. Brunt junta a sua voz à de Kurt von Fritz,
de quem faz a recensão da obra – Die griechische Geschichtsschreibung –, e
não hesita em afirmar que, de todos os historiadores antigos, tucídides foi o
mais vívido e empolgante contador de uma história, podendo-se comparar cada
frase sua a um disparo de máquina fotográfica. “thucydides was of all ancient

192
a propósito desta relação entre leitor e espetador em tucídides, decorrente da téc-
nica de mise en abîme, veja-se a interessante reflexão de Walker (1993: 357-361).
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 589

historians the most vivid and exciting teller of a story – each phrase can be
like a camera shot” (1993: 403). outro especialista em tucídides, Hornblower,
também constata o talento do filho de oloros para “fazer ver” e, por conse-
guinte, envolver emocionalmente o leitor e conferir vividez e akribeia trágica
à sua obra. assim, alguns detalhes que parecem fortuitos explicam-se pelo seu
efeito emocional. a numeração, por exemplo, para além de ser uma resposta à
precisão (akribeia) que tucídides promete no livro i, cumpre uma função retó-
rica e trágica – a de facilitar a visualização e aumentar o pathos: “the precision
here makes it easier to visualise, and the enumeration adds pathos” (1987: 34).
Nas escolas gregas do império romano, os manuais de exercícios por
onde os alunos aprendiam os fundamentos da retórica, os Progymnasmata,
apontavam tucídides como um dos maiores cultores dessa técnica literária que
identificámos como ekphrasis e que era definida, nesses mesmos manuais,
como um discurso que põe de forma vívida, sob os olhos, determinado assunto.
os episódios de tucídides mais frequentemente citados eram a batalha noturna
(7.43.4), a fortificação de Plateias (3.21), a peste (2.49-54) e a construção da
máquina de guerra (2.75-78 e 4.100). No entanto, muitos outros passos podem
servir de exemplo. selecionámos alguns que julgamos particularmente ilustrati-
vos e significativos no desenrolar da intriga. o ataque de Plateias, porque
marca o início a sério do conflito armado entre as duas potências. a descrição
da peste, pela força trágica, emocional e imagética do discurso, mas também
pelo seu simbolismo no desenvolvimento e desenlace da História da Guerra do
Peloponeso. o episódio da corrida de barcos é um dos mais memoráveis da
intriga tucididiana, pelo que representa de peripécia, movimento, aventura,
empolgamento e dramatismo. os cercos de Plateias (2.75-78) e de siracusa são
dois exemplos magníficos de ekphrasis. dentre eles, optámos por traduzir algu-
mas linhas do cerco de siracusa, não só pelo que contém de vividez imagética
mas por ser o acontecimento que marca o início do desaire ateniense. Na
impossibilidade de transcrever na íntegra todos estes episódios, decidimos apre-
sentar alguns excertos mais representativos. as traduções são nossas.
o assalto de surpresa dos tebanos a Plateias, que marca o início formal
da guerra do Peloponeso, é narrado entre os capítulos 2 e 4 do livro 2. tucí-
dides conta com grande precisão de movimento, ação e realismo, como os
tebanos se fizeram infiltrar, de noite, dentro das muralhas da cidade, apa-
nhando todos os habitantes desprevenidos; como agiram com boa-fé e paci-
fismo, ao propor um tratado de paz em vez de passar logo à chacina da popu-
lação; como os Plateienses aproveitaram esse período de negociações para se
inteirarem do número de soldados invasores; como, ao perceberem a escassez
numérica dos seus adversários, se reuniram às escondidas e planearam um ata-
590 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

que; como bloquearam todas as saídas e encurralaram os tebanos, procedendo


depois à sua perseguição e chacina pelas labirínticas ruas da cidade; como mui-
tos tebanos desorientados e atacados de todos os lados pela população em fúria
foram selvaticamente aniquilados. toda a perseguição é fértil em ekphrasis, de
tal modo os movimentos, as ações e as reações são descritas pormenorizada-
mente, como se uma câmara de filmar, do alto das muralhas, acompanhasse
toda a cena ao longo das ruas. É do contexto desta violenta perseguição que
extraímos o seguinte excerto:
Na perseguição pela cidade, alguns subiram às muralhas e precipitaram-se daí
abaixo, a maioria desses morreu; outros encontraram uma porta que não estava
guardada e, tendo-lhes uma mulher dado um machado, eles puderam, sem serem
vistos, cortar a tranca e sair, não muitos porque foram logo descobertos; entre-
tanto, outros eram mortos aqui e ali ao longo da cidade. No entanto, o grupo mais
numeroso e que se mantinha mais unido desembocou numa grande casa que
estava junto da muralha e cujas portas se encontravam abertas, julgando que essas
portas eram as da cidade e que davam acesso direto ao exterior. Vendo-os lá tran-
cados, os Plateienses interrogaram-se se deviam lançar fogo à casa ou recorrer a
outro meio [ii. 4. 4].

a cena da peste é das mais memoráveis, comentadas e glosadas (albert


camus, A peste) da obra de tucídides. Ninguém consegue ficar indiferente ao
seu caráter pathético. mais uma vez, a descrição é realista, pormenorizada,
emocionalmente impressionante e de um notável efeito visual. Ficou célebre a
análise de cochrane, que comparou a descrição das doenças do corpo político
ateniense à forma como Hipócrates descrevia as doenças da anatomia física.
adam Parry contraria esta visão num importante ensaio consagrado ao estudo
da linguagem empregue na construção desta cena: The language of Thucydides’
description of the Plague (1969). essencialmente, refuta as teses dos que
encontram na construção da cena influências da linguagem técnica ou do
modelo hipocrático193. com algumas influências vocabulares dos géneros épico
e trágico, a descrição da peste é, sobretudo, em termos de léxico e de estrutura,

193
Parry desmonta os argumentos de cochrane, Finley, romilly e Gomme a favor da
descrição da peste como um exercício científico inspirado pela medicina hipocrática ou como
registo técnico de grande observação e precisão. afirma claramente que na descrição da peste
tucídides nem segue o modelo hipocrático nem usa linguagem técnica. «i hope enough has
been said to show that the vocabulary of the description of the Plague is not entirely, is not
even largely, technical. i should like to suggest a directly contrary conclusion, that thucy-
dides, like Plato, had something of an abhorrence, or an aristocratic disdain, for technical ter-
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 591

uma peça poética original de tucídides. a peste, tal como a guerra, é pathos,
é uma catástrofe alimentada por sofrimento e destruição. É o pior de todos os
desastres descritos por tucídides, por isso é relatada com uma linguagem poé-
tica de intensidade apocalíptica194. os termos que relatam a sua aparição na
cidade sugerem um ataque militar: são verbos como ἐπιπίπτειν, ἑσπίπτειν,
νικᾶν, ξυναιρεῖν. tucídides apresenta-nos a doença como uma invasora não
humana ou supra-humana, um inimigo demoníaco contra o qual nada pode a
força humana. a peste é também o mais violento desafio à tentativa de Péricles
para exercer qualquer espécie de controlo racional do processo histórico, uma
vez que ela ocorre logo após o seu discurso otimista acerca do futuro. assume,
assim, um papel metafórico e dramático, uma imagem concentrada da guerra,
significando em termos metonímicos a futura derrota dos atenienses e a própria
desordem e perversão moral da guerra: «strong verbal echoes confirm our
sense that the Plague is presented as a kind of concentrated image of the War
(Parry 1972: 56). a cena ocupa seis capítulos. transcrevemos aqui um excerto
que não dispensa a leitura integral do episódio.
o caráter desta epidemia é superior ao que se possa contar e, de um modo geral,
atacou cada um mais duramente do que consegue suportar a natureza humana. [...]
como não havia casas e eram obrigados a viver em cabanas sufocantes devido ao
calor, o flagelo atacava sem controlo: os cadáveres jaziam uns por cima dos
outros, os moribundos arrastavam-se pelas ruas e em direção a todas as fontes,
movidos pelo desejo de água. os lugares sagrados onde acampavam estavam
cheios de cadáveres que tinham morrido aí mesmo. extremamente pressionados
pelo mal, os homens, sem saber o que fazer, deixavam de ter respeito seja pelo
divino seja pelo humano. Foi assim que ficaram alterados todos os ritos fúnebres
antes observados: cada um enterrava como podia; e muitos prestaram-se a funerais
escandalosos, perante a falta do necessário, devido aos contínuos enterros já efe-
tuados antes; uns, depois de depositar o seu morto em piras alheias, antecipando-
-se aos que as haviam erguido, pegavam-lhe fogo, e outros, enquanto um corpo
era consumido, atiravam-lhe para cima o que eles transportavam e desapareciam
[ii. 50. 1, 52. 2-4].

a revogação da pena de morte dos mitilenos (tucídides: iii. 49. 2-4) dá


origem a um episódio de forte pendor dramático e visual. inicialmente, os ate-

minology, either of his own or of others’ making. the evidence for such a conclusion is that
thucydides succeeds in giving us so physically precise a description without using the quasi-
technical vocabulary which we in fact find in the early medical treatises» (Parry 1969: 170).
194
«it is in short the most sudden, most irrational, most incalculable, and most demo-
niac aspect of war in thucydides’ view of history» (Parry 1969: 176).
592 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

nienses tinham decidido destruir mitilene, executar todos os homens e escravi-


zar todas as mulheres e crianças. com esse fim, enviam um barco à ilha com
soldados encarregados de aplicar a sentença. No dia seguinte, arrependidos da
dureza da pena, decidem revogá-la. Nesse momento, enviam outro barco de
emissários com a finalidade de chegar à ilha a tempo de evitar a matança.
imediatamente, enviaram outra trirreme a toda brida, temendo encontrar a cidade
destruída se a anterior, que levava cerca de um dia e uma noite de avanço, che-
gasse primeiro. como os embaixadores de mitilene lhes puseram vinho e farinha
na embarcação e prometeram-lhes grandes recompensas se chegassem antes, segui-
ram viagem com tal rapidez que os homens remavam ao mesmo tempo que
comiam farinha amassada com vinho e azeite e, enquanto uns dormiam, os outros
continuavam a remar. Por sorte, porque não soprava nenhum vento contrário, e a
primeira embarcação ia sem pressa por causa da infeliz missão, ao passo que a
segunda se apressava do modo referido, a primeira chegou apenas com o avanço
suficiente para Paques ler o decreto e se preparar para cumprir a sentença, mas
então a segunda atracou logo atrás e impediu a destruição. a que ponto mitilene
esteve próxima do perigo!

connor, comentando este episódio, observa o quanto a corrida de barcos,


pela sua vividez imagética e pela forma como envolve emocionalmente o leitor,
contribui para que a objetividade ou a ausência de juízos do historiador seja
mais uma estratégia de persuasão do que propriamente um objetivo, pois, sob
a capa da objetividade, tucídides acaba por fazer passar o seu próprio juízo:
a sentença era injusta e excessiva. a técnica para fazer o leitor ler o que não
está lá consiste em atrair o espetador para dentro da cena, despertar as suas
faculdades críticas e avaliativas e suscitar nele uma resposta que contribua para
a força dramática do texto195. Por consequência, connor distancia o trabalho de
tucídides da antiga oratória e aproxima-o da novela moderna, nomeadamente,
de Jane austen, pela forma como a autora inglesa lida com emoções muito
mais profundas do que as que aparecem à superfície do texto, pela forma como
esta estimula o leitor a ler mais do que o que está escrito.

195
«the race of the two triremes is told with such vividness and involvement and the
attitudes of the participants themselves provide such a clear assessment of the situation that
the evaluation is inescapable. Here again “objectivity”, or the avoidance of explicit judgments,
is a technique rather than a goal. But now we can also see that part of the technique is to
draw the reader in, to awaken our critical and evaluative faculties, and to make the energy
of our own response contribute to the power of the text» (connor 1984: 17).
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 593

Por fim, o cerco de siracusa é um entre tantos episódios onde se descreve


com fulgurante realismo as estratégias militares, os avanços e recuos, vitórias
e derrotas no assalto e defesa de uma fortaleza. mais uma vez, o pormenor, a
vividez, o movimento, a ação-reação, a tensão dramática, o suspense são as tin-
tas usadas para dar vida a uma cena que desperta automaticamente a imagina-
ção do leitor e apela à sua capacidade de refiguração. Quem lê não pode deixar
de ver a cena com os olhos da mente. o cerco de siracusa estende-se por
vários capítulos (Vi. 96-104) e o mais difícil é escolher um excerto, sendo
todos eles ótimos exemplos de ekphrasis. No curto passo que transcrevemos,
destacamos o emprego da lítotes, como forma de reforçar a influência de Her-
mócrates na decisão dos siracusanos de construir um muro.
No dia seguinte, uma parte dos atenienses trabalhava no muro a norte da forti-
ficação circular e os outros, acarretando pedras e madeira, empilhavam-nas, sem
interrupção, em direção ao lugar chamado de tróguilo, por onde ficava mais curto
para eles a passagem do Grande Porto ao outro mar. os siracusanos – e dos gene-
rais não era Hermócrates quem menos influenciava a sua decisão – já não queriam
mais correr o risco de defrontar com todos seus efetivos os atenienses, mas pare-
cia-lhes que a decisão mais acertada era ir erguendo um muro que cortasse a
direito por onde o inimigo pretendia passar com o seu e, se conseguissem adian-
tar-se, cortarem-lhes a passagem [Vi. 99. 1-2].

todos estes recortes do texto tucididiano têm como finalidade demonstrar


o quanto tucídides é um mestre na produção de enargeia, causando no leitor
o mesmo sentimento de espanto e de pasmo que sentiram aqueles que presen-
ciaram os acontecimentos (Goldhill 2007: 5). Numa história assente, essencial-
mente, no testemunho do olhar (opsis), era normal que a ekphrasis fosse um
instrumento privilegiado para fazer ver196. Nesse sentido, é curiosa a observação

196
com o regresso do acontecimento, da história política e da história contemporânea,
o “ver” (opsis) e o “fazer ver” voltam a estar na ordem do dia, tal como o papel fundamental
da testemunha, com novas complexidades resultantes do protagonismo dos media. No que
concerne a este assunto, veja-se a dissertação de Hartog em Le miroir d’Hérodote, no capítulo
intitulado «L’œil et l’oreille (1980: 271-316): «mais l’événement ainsi exorcisé, fait “retour”
aujourd’hui, autre, produit par les mass media, et la question de l’histoire contemporaine se
trouve donc à nouveau posée. or “le retour de l’événement”, n’est-ce pas aussi le retour de
l’œil? [...] mais précisément, cet événement qui fait retour, est mis en scène, et en se donnant
à voir, il construit son propre champ de visibilité: “il n’est jamais sans reporter-spectateur ni
spectateur-reporter, il est vu se faisant, et ce ‘voyeurisme’ donne à l’actualité à la fois sa spé-
cificité par rapport à l’histoire et son parfum déjà historique”; donc l’autopsie si l’on veut,
594 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

de Webb, de que a ekphrasis não procurava representar a realidade mas a per-


ceção que se teve da realidade, ou seja, a forma como se vê a realidade197.
através da ekphrasis, o orador, poeta ou historiador procurava partilhar com o
seu auditório ou leitores a imagem que lhe ficou na retina ou na mente de uma
determinada realidade. a palavra procurava assim estimular um ato de ver, não
com olhos mas com a mente. em suma, a ekphrasis está em consonância com
o programa de tucídides, quando promete fornecer uma imagem clara (τὸ
σαφὲς σκοπεῖν) ou um conhecimento claro (σαφῶς εἰδέναι) dos acontecimentos.
a ekphrasis está também em consonância com a ideia de mimesis. tucí-
dides pode afetar emocionalmente os seus leitores porque representa emoções e
carateres reais. representando carateres e emoções reais, o historiador obtém,
correspondentemente, um efeito ético e pathético sobre os leitores198. Vivienne
Gray (1987: «mimesis in Greek historical theory») demonstra como o conceito
de mimesis é usado enquanto termo técnico na teoria da história por críticos
literários como dionísio de Halicarnasso, no ensaio Sobre Tucídides, e Longino,
Sobre o Sublime. Para estes autores, que têm sempre por base a história de
Heródoto e, acima de tudo, a de tucídides, a definição de mimesis é a seguinte:
«the meaning of mimesis in history is the recreation of reality, encompassing
recreation of both character and emotion» (Gray 1987: 469). Põem a tónica
mais na imitação ou recreação da realidade do que na construção da intriga,
mas não se afastam do sentido aristotélico do termo. a mimesis da natureza e

mais une autre autopsie: construite» (ibid.: 276-277). mais recentemente, calame, o filósofo
que reflete a partir do pensamento de ricœur, da pragmática linguística de Benveniste e da
historiografia de tucídides, faz eco das novas implicações e desafios que os mass media e
as testemunhas dos campos de extermínio trouxeram à história do presente: «À l’égard de ce
partage entre historie ancienne et histoire récente, la multiplication des médias a rendu la
situation de l’historiographie moderne particulièrement délicate. ainsi en va-t-il en particulier
des termes du débat sur les camps d’extermination et sur ses sinistres prémisses politiques.
[...] Le rôle qu’y jouent les témoins oculaires et, par images interposées, les témoignages
visuels est encore déterminant. L’intervention nouvelle de la photographie, de l’archive filmée
et de l’enregistrement du témoignage oral laisse supposer qu’il en sera ainsi au-delà de la dis-
parition des derniers rescapés d’un plan d’anéantissement qui fut conçu et appliqué de
manière d’autant plus cynique et systématique que sa réalisation a précisément bénéficié des
moyens techniques de l’ère industrielle. certains d’entre eux ont d’ailleurs permis, de manière
subséquente, d’en maintenir la mémoire visuelle et auriculaire» (2005: 30).
197
«What is imitated in ekphrasis and enargeia is not reality, but the perception of
reality. the word does not seek to represent, but to have an effect in the audience’s mind that
mimics the act of seeing (Webb 2009: 38).
198
«the effect of such mimesis could be ethical or pathetic, depending on whether it
involved representation of character or emotion» (Gray 1987: 473).
capítulo ii – PreFiGuração [...] da HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO 595

da vida envolve a mimesis do caráter e da emoção. e este tipo de mimesis é


o que é usado tanto pela história como pela retórica e permite o efeito persua-
sivo e emocional sobre os ouvintes ou leitores:
so mimesis of nature and life involved mimesis of character and emotion. this
sort of mimesis was required of both rhetoric and history, and, within history,
of both speeches and narrative, in the first of which the character and emotion
belonged to the speaker, and in the second of which the character and emotion
belonged to the historian himself [ibid.: 473].

Para recrear os carateres e as emoções reais, os oradores e os historiado-


res deviam usar os artifícios linguísticos que melhor permitissem essa identifi-
cação, ou seja, a linguagem devia imitar a própria vida, o texto devia organi-
zar-se de tal modo que fizesse ver, como uma lente, os acontecimentos tal
como aconteceram199. era nisto que consistia a mimesis. e é assim que a vemos
trabalhada com mestria por tucídides e por todos os historiadores que daí em
diante representam o passado ou o presente. a retórica, a ficção, mais do que
um obstáculo torna-se um precioso instrumento de representação do passado,
fazendo com que a história se aproxime da capacidade imagética e reconhece-
dora da memória.
Por fim, o estudo da ekphrasis e da enargeia constitui uma ótima forma
de tentar obter informações sobre os hábitos de leitura e a personalidade dos
leitores da Grécia do século V. Neste aspeto, Webb acaba por dar razão ao pro-
grama de pesquisa efetuada por connor (1984), que parte justamente das soli-
citações que o texto de tucídides dirige à imaginação e às emoções dos leitores
para tentar definir o perfil desses leitores200.

199
«Where Gorgias’ language is its own reality, and creates its own erga, thucydides
seeks to render language invisible, to make it a transparent lens directly onto the erga that
are its subject. it is easy now to dismiss thucydides’ fascination with objectivity as hopeless,
even disingenuous, but thucydides courageously championed a difficult, but essential, type of
writing» (crane 1996: 220).
200
«the study of ekphrasis and enargeia provides important information about ancient
habits of reading and deeply rooted attitudes towards texts, which are seen as inviting ima-
ginative and emotional involvement. these ancient modes of reading can be surprisingly dif-
ferent to our own: in the case of thucydides’ history, ancient readers saw not a dispassionate
and objective account of events but a window onto the violent and turbulent events of the
past. in these rhetorically oriented readings, the text opens up to the reader’s imagination: the
words on the page dissolve into images as they impact upon the mind» (Webb 2009: 195).
(Página deixada propositadamente em branco)
cONcLUSÃO

Perante o emprego tão frequente da ekphrasis, elemento ficcional por


excelência da prosa tucididiana, Goldhill clama que este não é o «objetivo e
frio tucídides», mas «o retórico»: «this is not the objective and cold thucy-
dides, but thucydides the rhetorician, blinding the reader with his science, lead-
ing the reader away from analysis into passion and confusion» (2007: 6).
em parte tem razão, em parte não. Não cremos que o objetivo de tucí-
dides seja cegar ou distrair os leitores da análise. tucídides é reconhecido
assim: por um lado, o escritor objetivo, imparcial, desapaixonado, austero; por
outro lado, um mestre na arte de envolver emocionalmente o leitor e apelar à
sua imaginação, através da construção de episódios plenos de intensidade dra-
mática, realismo, detalhes, vividez, numa palavra, ekphrasis. tucídides, historia-
dor no sentido grego (histor), é aquele que vê e faz ver. a opsis é ponto de
partida e ponto de chegada, é ponto de prefiguração e de refiguração. Pelo
meio, fica a mimesis configuracional, mobilizada pela escrita, como elo entre o
olho do historiador e a visão interior do leitor. a retórica da visão e da imagem
perpassa o seu pensamento e o seu texto. dominam, aliás, o pensamento dos
Gregos da época, apaixonados pelo que se dá a ver: o teatro, as máscaras, os
vasos, a retórica. a retórica ensina a fazer ver com os olhos da mente, ensina
a construir imagens com as palavras, a pôr sob os olhos de forma intensamente
real, para persuadir, sensibilizar e mobilizar o auditório. mas do poder figura-
tivo da linguagem ao poder ilusório e fraudulento da mesma e daí ao relati-
vismo foi um passo muito curto. a reflexão de Górgias, Protágoras, mais tarde
de isócrates, sócrates, Platão e aristóteles é bem o espelho de um problema
que inquietou filósofos, sofistas, dramaturgos e poetas, do classicismo ao hele-
nismo. e assombra agora os ocidentais do século XX e XXi, às voltas com
uma crise de confiança na linguagem, nas testemunhas e nas instituições, de um
modo geral, devido a um certo relativismo que impregnou a maioria dos setores
da sociedade, da religião à filosofia, às artes, à política, à economia, à história,
ao jornalismo, ao direito. as perguntas que hoje se colocam não são muito
598 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

diferentes das que se colocou tucídides e os Gregos do seu tempo: que pode-
mos fazer com a linguagem, que andamos a fazer com a linguagem? afinal, o
que andam historiadores, jornalistas, homens do direito e políticos a fazer com
a linguagem? a retórica verbal tem sido usada para o bem e para o mal: para
justificar guerras, para obter poder, para cometer crimes, para manter tiranias,
para defender ideologias, para manipular o passado, para montar fraudes, para
vender jornais, para fazer comércio, para alimentar fantasias, para convencer
maiorias. em suma, para nos afastar da realidade, para criar um clima de sus-
peita, para instalar um ambiente de esquizofrenia.
a história enquanto arte, enquanto literatura, enquanto recreação mimética,
não pode escapar ao problema da retórica verbal ou da ficção. É Hayden White
e roland Barthes, entre outros, quem no-lo relembra. É ricœur e Ginzburg,
entre outros, quem nos relembra também que com as provas, os documentos e
a interpretação, enquanto atividade epistémica, em suma, com a crítica, a his-
tória e o direito podem sobreviver firmes na anarquia relativista; e ainda que
história e retórica não têm que se dar mal. Que história e retórica sempre anda-
ram de boas relações, demonstra-o uma análise da Retórica aristotélica e uma
leitura da arqueologia tucididiana. mas esta simbiose não significa uma sub-
missão ou dissolução da história na retórica ficcional. transpondo para a atua-
lidade, dissemos que as provas impedem a história de submergir completamente
no campo da retórica ficcional, ao passo que a retórica evita que a história seja
apenas um museu, uma crónica ou um glossário. as provas são o coração da
retórica, propõe Ginzburg, com base nas suas leituras de aristóteles e tucídi-
des201. ricœur e tucídides vão ainda mais longe. a retórica ficcional, em vez
de ser um empecilho, pode ser um precioso auxiliar para fazer ver ou exibir
acontecimentos que demandam justiça, reconhecimento, memória. tucídides
fá-lo recorrendo à ekphrasis e à enargeia, estratégias desenvolvidas pela retó-
rica. significa isto que, tal como ricœur, tucídides recusa deixar a história ren-
der-se à ficção, mas aproveita da ficção o que pode dar valor ético à história
e dignificar ainda mais o trabalho do historiador. Por diversas vezes, tucídides
insurge-se contra as manipulações dos hábeis manejadores de palavras, mas
quando toca a transmitir a violência e o horror da guerra, nada melhor do que

201
«the fashionable reduction of history to rhetoric cannot be rejected by claiming that
the relationship between history and rhetoric has always been tenuous and marginal. in my
view, that reduction can and must be rejected by rediscovering the intellectual richness of the
tradition started by aristotle, particularly its central argument: that proofs, far from being
incompatible with rhetoric, are its fundamental core» (Ginzburg 1999: 50).
coNcLusão 599

explorar os recursos da retórica para criar pathos e induzir refiguração. mani-


festa-se também contra os discursos e tradições de transmissão oral, pelo que
têm de fugaz, de incerto, de enganador. Porém, ele, na posse de uma nova tec-
nologia, a escrita, vai ensinar-nos como se podem construir discursos verdadei-
ros que, ademais, nos ajudam a distinguir a verdade da ficção e a gravar no
papiro “lições para sempre”. Lições humanas e políticas hoje ainda tão válidas
que continuam a ser estudadas com o mesmo interesse e empenho de sempre
por sociólogos, historiadores, politólogos. Para tucídides, a escrita é um pode-
roso instrumento para transcender a doxa, a particularidade e a caducidade dos
factos humanos e alcandorar a história no pedestal da episteme, do universal e
do imortal. Por conseguinte, são injustas e difíceis de compreender as declara-
ções de aristóteles na Poética. sobre essa problemática discorremos ampla-
mente, confrontando teses e ensaiando a nossa própria explicação.
com o abandono do modelo positivista da história e a intervenção do lin-
guistic turn, tornou-se inevitável que historiadores e epistemólogos começassem
a assumir, com toda a naturalidade, a presença da retórica na história. e, com
isso, muitas das críticas que foram dirigidas ao trabalho de tucídides ao longo
do século XX deixaram de fazer sentido. sobre ricœur já dissemos que reco-
nhece a figuratividade e a persuasão retórica como elemento indispensável do
texto histórico, como operador transitivo de factos que demandam reconheci-
mento e justiça e que, por conseguinte, a mente do leitor precisa de ver para
não esquecer. Neste caso, a ficção deve ser contrabalançada com um rigoroso
aparato documental e explicativo que garanta credibilidade à representância.
depois de ricœur, outros historiadores e pensadores vieram pôr a ênfase no
papel fundamental da literariedade da história, porquanto ela não só quer fazer
ver como quer ser vista, isto é, quer sair do gueto dos eruditos e dar-se a ler
com prazer ao público em geral.
eis, pois, um elemento que a historiografia moderna, dita científica, não
conseguiu escamotear. dando seguimento a uma tradição que começa em Heró-
doto e tem em tucídides o seu expoente máximo, o historiador moderno preo-
cupa-se tanto em inquirir como em “fazer ver”.
L’historien moderne imite ainsi thucydide, assumant la mission qu’il s’était origi-
nalement imposée: «dire le fait en nous faisant voir comment les choses se sont
effectivement passées» [itálico nosso]. on ambitionne à appréhender le fait histo-
rique, ainsi conçu en tant que perception dépurée de toute faille de contradiction,
d’ambigüité et d’incertitude quant à ses aspects de réalité constitutifs. Pour ce
faire, on élimine du récit certaines données factuelles, pour y imposer d’autres,
(ré)construites juste à ce propos. on peut alors nier, dans l’appréhension du fait
historique, certains sens pour en affirmer d’autres (Pires 2003: 141-142).
600 segunda Parte – História e Ficção em tucídides

e está obrigado, como eles, a selecionar, interpretar, relacionar, compor, escre-


ver, mostrar; em suma, a prefigurar, configurar, refigurar. a retórica discursiva,
o “fazer ver”, é uma consequência do próprio ato de mise en intrigue, e é a
melhor forma de aproximar a história da memória202.

202
«c’est ainsi que les discours des historiens s’offrent désormais à nous comme des
représentations configurantes de l’espace et du temps par le moyen d’opérations de sélection,
de schématisation, de focalisation spatiale, de mise en séquence chronologique, de mise en
intrigue et de description modélisante, de logique causale et argumentative insérant l’événe-
ment dans une conjoncture multiforme, de rhétorique discursive enfin dans un “faire voir” qui
coïncide sans doute avec les images évoquées par la mémoire individuelle et collective»
(calame 2005: 37).
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(Página deixada propositadamente em branco)
ÍNDICE ONOMÁSTICO

Agamben (G.): 520


Agostinho (S.): 152, 220, 221, 223, 224, 232, 242, 250, 257, 327
Alcibíades: 173, 308, 463, 510, 550, 553, 556, 558, 563, 583
Allegra (L.): 85
Anaxágoras: 540
Anaxímenes: 469
Andócides: 510
Aníbal: 186
Ankersmit (F. R.): 377
Antifonte: 471
Arendt (H.): 228, 365, 408, 425, 428, 429, 443, 446, 448, 457, 465, 479
Ariès (P.): 212
Aristogíton: 510
Aristófanes: 496, 510
Aristóteles: 17, 24, 28, 35, 68, 118, 132, 139, 148, 155, 156, 159, 166, 167, 168, 180,
181, 189, 201, 205, 212, 219, 220, 221, 224, 227, 231, 233, 241, 257, 259, 276,
304, 308, 309, 321, 322, 327, 350, 353, 365, 370, 379, 405, 409, 425, 426, 437,
475, 477, 483, 489, 494, 496, 497, 504, 524, 525, 526, 527, 529, 534, 536, 545,
549, 552, 560, 562, 563, 566, 576, 577, 582, 583, 588, 594, 597, 598, 599
Arnaut (A. P.): 337
Aron (R.): 24, 51, 53, 64, 72, 77, 78, 81, 84, 103, 109, 161, 164, 169, 184, 185, 191,
192, 271, 338, 450, 455, 456, 460, 529, 531, 532, 533, 548
Arquidamo: 463
Artabano: 462
Atenágoras: 463
Auerbach (E.): 156, 366
Austen (J.): 592
Austin (J. L.): 70
Barthes (R.): 236, 337, 361, 362, 366, 376, 378, 389, 391, 400, 554, 579, 580, 598
622 ÍNDICE ONOMÁSTICO

Bebiano (R.): 31, 36, 208


Benveniste (E.): 206, 242, 243, 327, 337, 362, 594
Bergson (H.): 327
Berr (H.): 88
Bismarck: 185, 186, 192, 193
Bloch (M.): 46, 48, 49, 52, 77, 85, 88, 89, 92, 176, 219, 249, 331, 333, 334, 339, 342
Bodin (L.): 535
Boécio: 150
Boltanski (L.): 373
Bonifácio (F.): 37, 315
Booth (W.): 156, 286, 287
Boulay (B.): 550, 552
Bowersock (G.): 476
Brásidas: 496, 505, 543
Braudel (F.): 49, 61, 84, 88, 92, 103, 194, 199, 201-209, 211, 212, 214, 238, 326, 328,
342, 344, 355, 356, 401, 404, 405, 423, 529, 546, 548, 585
Bruhl (L.): 341
Brunt (P. A.): 473, 588
Burckhardt (J.): 153, 159
Calame (C.): 501, 583, 585, 584, 594, 600
Camus (A.): 590
Carbonell (C.-O.): 79
Carrard (P.): 207, 208
Cassirer (E.): 227
Catroga (F.): 37, 44, 384, 407, 427, 434, 437, 447, 542, 560, 563
Cedronio (M.): 85
Certeau (M.): 24, 37, 270, 273, 275, 317, 320, 331, 344, 352, 382, 383, 400
Chanu (P.): 101, 342
Charles (M.): 287
Chartier (R.): 37, 38, 85, 207
Chase (J. H.): 154
Châtelet (F.): 24, 402, 406-409, 430, 431, 448, 453, 462-464, 513, 533, 540, 541, 544,
559, 579
Chateaubriand: 99
Christie (A.): 154
Cícero: 424, 447
Cléon: 463, 474, 478, 484, 496, 510, 561, 575, 583
Cochrane (C.N.): 25, 412, 423, 469, 476, 477, 486, 590
Codefroy (E. F.): 174
ÍNDICE ONOMÁSTICO 623

Cogan (M.): 448, 454, 472, 473, 487


Coleridge (S.): 369
Collingwood (R. G.): 24, 72, 117, 143, 215, 263, 270, 292, 302, 338, 370, 403, 459,
466, 495, 520, 529, 539, 543
Comte (A.): 78, 334
Condorcet: 30
Connor (W. R.): 400, 438, 454, 460, 484, 487, 567, 568, 570-573, 595
Cónon: 510
Corneille: 542
Cornford (F.): 25, 476, 482, 484, 485, 488, 491, 497, 539, 540, 574
Coulanges (F.): 78
Crane (G.): 409, 416, 417, 438-440, 474, 478, 488, 503, 504, 514, 572, 581, 582, 595
Crítias: 407
Croce (B.): 143, 153
Danto (A.): 124, 125-130, 146, 148, 178, 182, 211, 212
Dawkins (R.): 435
Delacroix (C.): 37, 42, 43, 47, 61, 78, 85, 312, 341, 347, 385, 394
Demóstenes: 450, 510
Descartes (R.): 56, 542
Detienne (M.): 437, 463
Diderot: 126
Dilthey (W.): 24, 53, 54, 64, 65, 68, 70, 109, 143, 215, 244, 270, 271, 302, 355, 385
Diodoto: 463
Dionísio de Halicarnasso: 421, 443, 476, 586, 587, 594
Dosse (F.): 24, 29, 31, 35, 37, 39, 41, 47, 61, 78, 85, 87, 183, 207, 261, 312, 314, 341,
343, 347, 384, 385, 394, 405, 411, 421, 437
Dray (W.): 104, 105, 112, 113-119, 122, 129, 140, 171, 175, 178, 184, 338, 340, 528
Droysen (J. G.): 389, 474
Duby (G.): 204
Dulong (R.): 329, 520
Durkheim (E.): 87, 91, 209
Edmunds (L.): 435, 438, 518
Eire (A. L.): 551
Elias (N.): 273, 344, 357
Empédocles: 540
Engels: 548
Ésquilo: 420, 476, 491, 496, 552, 554, 569
Estenelaidas: 463
Euclides: 498, 574
624 ÍNDICE ONOMÁSTICO

Eurimedonte: 510, 578


Eurípides: 470, 471, 489, 575, 580
Febvre (L.): 46, 48, 77, 78, 85, 87, 93, 95, 100, 208, 341, 404
Fernandes (R.): 18
Fialho (M.C.): 18, 429
Filipe II: 199-201, 203, 356, 585
Finley (J. H.): 453, 470, 471, 482, 535, 574, 590
Finley (M.): 405, 430, 509, 511, 563, 564, 565
Fløistad (G.): 318
Foucault (M.): 273, 344, 523
Frankel (C.): 109, 110
Fraser (J. T.): 299
Frege (G.): 69
Friendländer (S.): 316, 334, 364
Fritz (K.): 403, 588
Frye (N.): 156, 158, 236, 303, 573
Furet (F.): 79, 203, 374
Gadamer (H. G.): 284, 292, 296, 566
Galileu: 65, 189, 332, 402
Gallie (W.): 73, 75, 129, 140, 146-149, 175, 178, 179, 199, 231, 536
Garcia (P.): 47, 61, 78, 85, 312, 341, 347, 385, 394
Gardiner (P.): 103, 105, 107, 109, 111, 177
Genette: 236
Ginzburg (C.): 31, 311, 316, 332, 338, 346, 347, 365, 367, 400, 513, 521, 525, 526,
528, 554, 563, 585, 598
Goldhill (S.): 584, 593, 597
Gomez (A.): 384
Gomme (A. W.): 420, 459, 460, 474, 482, 490, 491, 493, 494, 496-498, 554, 574, 590
Gomperz: 539
Górgias: 417, 469, 471, 514, 580, 586, 595, 597
Grant (J. R.): 476, 485, 486
Gray (V.): 554
Greimas (A. J.): 236
Guizot (F.): 154, 374
Gustafson: 461
Gylipo: 570, 583
Habermas (J.): 365
Halbwachs (M.): 323, 339
Hartog (F.): 24, 61, 403, 411, 416, 420, 431, 436, 444, 507, 512, 513, 516, 518-520,
554, 562, 576, 593
ÍNDICE ONOMÁSTICO 625

Hecateu de Mileto: 418, 429, 431, 432, 509


Hegel: 66, 153, 162, 239, 292, 428, 459
Heidegger (M.): 69, 152, 217, 220, 222, 228, 240, 244, 251, 256, 382
Helânico de Mitilene: 419, 509
Hempel (C.): 73, 74, 103-108, 112, 113, 124, 129, 158, 175
Hermócrates: 463, 474
Heródoto: 23, 24, 38, 39, 49, 89, 172, 173, 317, 402, 403, 405, 406, 408, 409, 415,
418, 419, 427, 429-433, 435-437, 439-443, 447, 452, 458, 459, 462, 483, 488, 491,
495, 496, 503, 506, 508, 509, 515, 516, 520, 523, 527, 542, 544, 547, 552, 553,
559, 564, 565, 568, 572, 578, 583, 587, 594, 598
Hesíodo: 459, 488, 548, 565
Hípias: 506, 510
Hipócrates: 476, 490, 590
Hobbes (T.): 480
Homero: 201, 439, 442, 443, 462, 488, 496, 509, 525, 548, 587
Horácio: 588
Hornblower (S.): 411, 412, 418, 420, 423, 429, 449, 462, 468, 469, 474, 477, 478, 483,
488, 489, 490, 508, 509, 524, 525, 535, 561, 562, 574, 589
Hume (D.): 70, 71, 198, 400, 411
Hunter (V.): 404, 417, 419, 441, 442, 454, 455, 476, 477, 480, 481, 485, 503, 504, 512,
515, 516, 529, 533, 538, 539, 541-544, 547, 548, 549
Husserl: 27, 39, 65, 69, 75, 182, 183, 220, 221, 240, 245, 256, 257, 302, 327
Hypérbolo: 478
Ingarden (R.): 289
Iser (W.): 288, 289
Isócrates: 514, 597
Jacoby: 365
Jakobson (R.): 337, 362
James (H.): 571
Jaspers (K.): 53
Jauss (H. R.): 288, 292, 294, 296, 385, 387-390, 394
Jones (H.): 413
Joyce (J.): 290
Kagan (D.): 461
Kant (I.): 230, 231, 233, 240, 325, 327, 400, 542
Kellogg (R.): 156
Kemmann (A.): 584
Kemp (P.): 25
Kermode (F.): 232, 236
626 ÍNDICE ONOMÁSTICO

Koselleck (R.): 247, 358, 381, 446


Kuhn (T): 401
Labrousse (E.): 84, 88, 95, 194, 312, 342, 344
Ladurie (E.): 97
Lamb (W. R.): 482, 497, 574
Langlois (C. V.): 78, 89, 334, 434
Le Duc (J.): 57
Lepetit (B.): 340, 344, 347, 348
Leucipo: 540
Lévinas (E.): 252
Levi (G.): 346
Lloyd (G.): 343
Le Goff (J.): 31, 37, 38, 47, 49, 85, 95, 98, 100, 102, 203, 273, 315, 342
Longino: 594
Loraux (N.): 403, 412, 433, 438, 476, 485, 505, 574
Luciano: 563
Luís XIV: 272, 374
Mabillon: 401
Macauley: 403
Mandelbaum (M.): 171, 195-198
Mandrou (R.): 343
Mann (T.): 236, 252, 257
Mannheim (K.): 160, 244
Marcelino: 418
Marchetti (F.): 25
Marin (L.): 304, 351, 354, 371, 372, 386, 579, 583
Marincola (J.): 416, 507
Marrou (H.-I.): 24, 51, 53, 72, 77, 78, 81-84, 161, 164, 215, 271, 273, 335
Marshall (G.): 460
Marx (K.): 61, 153, 159
Meinecke (F.): 572
Mendes (J.): 44, 78, 79
Meyer (E.): 403
Michelet: 153, 158, 161, 277, 304, 374, 384, 435, 575
Mink (L. O.): 141-158, 179, 182, 199, 231, 355, 357
Momigliano (A.): 365, 401, 403, 409, 418, 421-423, 457-459, 504, 506, 507, 509, 511,
516, 533
Montesquieu: 30, 173
Mudrovcic (M.): 520
ÍNDICE ONOMÁSTICO 627

Mugler (C.): 424, 541,


Müller (G.): 236
Newton (I.): 65, 183
Nícias: 416, 450, 463, 510, 518
Nicolau: 586
Niebuhr (R.): 400, 402, 459
Nietzsche (F.): 153, 360, 526
Nogueira (A.): 18, 452, 455, 460, 538
Noiriel (G.): 79
Nora (P): 203, 273, 342
Otto (R.): 305
Parry (A.): 415, 435, 449, 468, 476, 484, 490, 506, 574, 590, 591
Pausânias: 510, 523, 524
Pepper (S. C.): 160
Pereira (M. H. R.): 431
Péricles: 470, 475, 484, 491, 494, 497, 524, 580, 583, 591
Píndaro: 428, 569
Pippidi: 554, 555, 557
Pires (M.): 436, 504, 599
Pisístrato: 509, 510
Pitágoras: 459
Platão: 150, 241, 262, 268, 269, 350, 353, 409, 426, 437, 459, 470, 471, 495, 496, 510,
526, 539, 551, 557, 569, 588, 590, 597
Plotino: 242
Plutarco: 480, 560, 570, 588
Políbio: 38, 443, 459, 509, 553, 560, 575, 586
Pomian (K.): 30, 87, 94, 96, 98, 327, 385, 387, 389-394
Popper (K.): 55, 57, 104
Portocarrero (M. L.): 28
Powell (J.): 413
Praxífanes: 563
Propp (V.): 236, 360
Prost (A.): 46, 56, 64, 78, 79, 153, 187, 191, 208-216, 335, 401, 585
Protágoras: 463, 580, 597
Proust (M.): 236, 252, 255, 257, 258
Quintiliano: 586
Rancière (J.): 37, 57, 203, 206, 208, 435, 585
Ranke (L.): 24, 37, 78, 100, 153, 158, 275, 302, 374, 379, 400, 402, 403, 434, 572, 575
Revel (J.): 85, 344-346
628 ÍNDICE ONOMÁSTICO

Rickert: 77
Ricœur (P.): 23-394, 399-401, 405, 406, 422, 434, 435, 446, 477, 480, 498, 499, 502,
503, 518, 519, 521, 529, 531, 534, 536, 545, 552, 559, 566, 567, 571, 577-579, 581,
583, 585, 588, 594, 598, 599
Robin (R.): 316
Romilly (J.): 403, 445, 446, 449, 451, 453, 454, 456, 463, 465, 479, 480-482, 498, 526,
530, 531, 533-538, 549, 560, 569, 570, 574, 590
Rusten (J.): 401, 435, 484, 487, 518
Ryle (G.): 108, 177
Saint-Hilaire (B.): 557
Salústio: 476
Sauge (A.): 436
Saussure (F.): 68, 359, 360, 391
Scholes (R.): 156
Schutz (A.): 244, 245, 247
Seignobos (C.): 51, 78, 89, 334, 434, 585
Shakespeare: 258
Simiand (F.): 48, 87, 89, 95
Simmel (G.): 77
Simónides (de Céos): 588
Soares (M.): 17, 219
Sócrates: 470, 471, 490, 597
Sófocles: 426, 525, 569
Sólon: 564
Spiegel: 365
Stahl (H.-P.): 487
Ste. Croix: 556, 558, 559, 562
Stendhal: 508
Stone (L.): 210, 311, 315
Stuart Mill (J.): 65
Swain (S.): 467
Tácito: 99, 452
Tackeray: 508
Teixeira (J.): 102, 219, 251, 270, 303
Temístocles: 510, 523
Teofrasto: 563
Thévenot (L.): 373
Thibaudet (A.): 490
Tiffeneau (D.): 28, 29, 36, 62, 79, 119, 125, 219
ÍNDICE ONOMÁSTICO 629

Timeu: 38, 343


Tito Lívio: 99, 491
Tocqueville: 153, 159, 161, 277
Tolstoï (L.): 304, 508
Torgal (L. R.): 44
Torre (A.): 85
Tucídides: 24, 25, 29, 38, 39, 99, 171-174, 304, 317, 399-600
Untersteiner (M.): 417
Valla (L.): 401, 412, 433
Várzeas (M.): 462
Vernant (J. P.): 343
Veyne (P.): 23, 24, 37, 123, 164-176, 180, 199, 201, 231, 270, 271, 273, 306, 399, 405,
553
Vico (G.): 359
Voltaire: 30
Wahl (F.): 260
Walker (A. D.): 584, 588
Wallace (W. P.): 471, 485, 505, 575
Walsh (W. H.): 142
Webb (R.): 585, 594, 595
Weber (M.): 53, 55, 77, 185, 187-193, 201, 245, 246, 259, 338, 456, 529, 530, 532
Weil (R.): 555, 557, 563
Whirthmarsh (T.): 584
White (H.): 24, 41, 94, 153-164, 176, 180, 182, 214, 274-282, 298, 302, 303, 316, 317,
327, 362-363, 370, 376, 386, 388, 389, 395, 400, 422, 497, 521, 573, 579, 580, 598
Wieviorka (A.): 520
Wilamowitz (U.): 403, 431
Windelband (W.): 86, 103
Wittgenstein (L.): 70
Woolf (V.): 236, 252, 254, 257
Wright (G.): 55, 70, 71, 112-119, 121, 177, 184, 340
Xenofonte: 443, 452, 558, 569
Zangara (A.): 584
Zanker (G.): 584, 586
Zenão de Eleia: 459
Zeitlin (F.): 584
(Página deixada propositadamente em branco)
ÍNDICE DE ASSUNTOS

Ação: 27, 59, 64, 67, 70, 72, 74, 76, 82, 118, 181, 223, 287, 297, 382, 562, 569, 584,
587, 589, 590
Acontecimento: 30, 41, 44, 49, 57, 60-63, 68, 72, 73, 76-80, 94, 95, 99, 102, 105, 106,
111, 113, 114, 116, 117, 124, 126-128, 131, 134, 136, 139, 142, 144, 149-152, 157,
160, 164, 166, 167-174, 177-181, 186-188, 191-193, 199-206, 207-210, 212-214,
216, 230-233, 237, 238, 249, 263, 264, 267, 271, 273, 274, 276, 279, 283, 289,
304-306, 307, 327, 336, 337, 339, 350, 355-358, 366-368, 372, 374-378, 387, 399,
402, 406, 407, 411, 415-416, 426, 428, 429, 436, 439, 440, 442, 446, 447, 448, 454,
456-457, 458-460, 462, 464-466, 468, 470, 473, 478-480, 483, 486, 487, 491, 493,
507, 517, 520-522, 528, 530, 531, 534-541, 543-545, 547-549, 552, 553, 559, 560,
563, 572-574, 577, 578, 581, 582, 583, 585, 587, 589, 593-595, 598
Akribeia: 24, 411, 412, 440, 466, 467, 472, 482, 483, 489, 513, 518, 520, 589
Análise: 48, 49, 63, 67-70, 76, 89-92, 115, 120, 178, 184, 382, 400, 568
Analogia: 107, 161, 170, 175, 194-197, 205, 206, 212, 271, 275, 282, 284, 333, 393,
411, 415, 441, 445, 516, 546
Análogo: 41, 42, 182, 190, 262, 275, 280, 282, 283, 296, 302, 379, 436, 447, 516
Anamnesis: 314, 321, 427
Annales: 30, 46, 60, 62, 77-78, 84-89, 92, 93, 100, 101, 137, 165, 175, 176, 202, 203,
207, 311, 312, 326, 339, 344, 355, 384, 385, 401, 404, 546
Apate: 417, 419
Arqueologia: 86, 344, 412, 423, 503, 509, 514, 523-528
Arquivo: 55, 93, 240, 248, 249, 301, 314, 318, 319, 325, 329, 331, 346, 352, 369, 370,
503, 506, 509, 519, 546
Atenas: 439, 450, 452, 456, 463, 465, 469, 470, 478, 479, 491-496, 505, 524, 525, 531,
533, 543, 545
Atrekeia: 440
Autopsia (observação): 402, 437, 506, 508, 512, 517, 519
Calendário: 241-243, 251, 252, 259, 299, 300, 327, 369, 544, 546
Causa: 49, 61, 70, 71, 74, 105, 158, 169, 171, 180, 187, 191, 198, 209, 215-216, 250,
484, 537, 538, 540-542, 544, 559
632 ÍNDICE DE ASSUNTOS

Causalidade: 23, 49, 71, 87, 171, 187-191, 198, 212, 345, 532, 537, 540, 545, 547, 552
Ciência: 24, 27, 30, 31, 35, 38, 43, 55, 57, 65, 72, 73, 78, 82, 85, 103, 107, 171, 172,
175, 208, 209, 239, 355, 389, 391, 400, 406, 408, 412, 435, 443, 463, 477, 529
Compreensão: 24, 27, 35, 38, 42, 43, 47, 49, 53-55, 61-67, 68, 70-74, 76, 77, 81-84,
86, 91, 103, 115, 117, 120, 123, 128, 130-131, 135, 138-139, 142-145, 148-149,
152, 154, 160, 164, 169, 170, 172, 174, 175, 177, 178-181, 182, 184, 194, 199, 200,
214-216, 231, 246, 271, 279, 284, 294, 303, 314, 315, 317-319, 328, 334, 336,
337-340, 352, 354, 356, 362, 364, 394, 405, 448, 502, 520, 522, 529-532, 536,
538, 547
Concordância: 147, 152, 162, 163, 179, 180, 223, 231, 259, 356
Configuração: 40, 59, 123, 132, 141, 147, 149-151, 153, 162, 179, 184, 191, 199, 205,
213, 233, 285, 290, 296, 299, 318, 336, 345, 347, 353, 358, 360, 363, 367, 385,
388, 400, 405
Conjuntura: 87, 94, 97, 101, 102, 177, 200, 202, 350, 358, 377
Corinto: 450, 561
Crítica: 40, 44, 48, 51, 55, 60, 76, 77, 79, 81, 112-118, 141, 152, 155, 156, 172, 176,
177, 180, 225, 234, 236, 265, 332, 365, 367, 393, 401, 402, 405, 415, 432, 433,
539, 583, 586
Crónica: 60, 85, 156, 157, 176, 181, 215, 232, 243, 366, 479, 491, 528, 545, 552, 555,
557, 559
Cuidado: 47, 54, 55, 222, 228, 251, 262, 354, 394, 402, 466, 483, 513, 573
Dasein: 164, 221, 228
Dialética: 24, 27, 43, 47, 50, 59, 63, 64, 66, 67, 70, 72, 76, 81, 147, 152, 162, 175,
177, 179, 183, 203, 205, 214, 217, 218, 228, 275, 280, 283, 284, 287, 290, 291,
295, 296, 310, 326, 331, 333, 352, 369, 371, 379, 382, 387, 490, 532
Discordância: 147, 152, 168, 179, 180, 202, 223, 231, 256, 356
Discurso: 23, 24, 30, 31, 54, 57, 67, 68, 80, 129, 154, 196, 206, 207, 234, 279, 280,
316, 318, 319, 325, 328, 336, 337, 340, 341, 350, 352, 353, 359, 362, 364, 365,
367-371, 373, 378, 381, 382, 386, 403, 412, 415, 416, 432, 434, 435, 438, 441-443,
434, 452-454, 462, 466-475, 476, 479-481, 483, 492-494
Distentio animi: 220, 224
Dívida: 261, 275, 283, 284, 295, 302, 303, 310, 382
Documento: 41, 42, 48, 50, 52, 53-55, 78, 84, 86, 240, 248, 249, 261, 276, 279, 301,
304, 329, 331, 333-335, 338, 339, 346, 352, 370, 386, 402, 413, 479, 491, 510, 516,
521, 523, 546, 555
Doxa: 171, 417, 441, 455, 482, 520, 553, 599
Eikon: 235, 313, 320, 351, 379, 527
Ekphrasis: 582, 584-587, 589, 590, 593-598
Enargeia: 422, 522, 579, 582-587, 593, 595, 598
Entidade: 43, 62, 85, 194-197, 205, 207, 393
ÍNDICE DE ASSUNTOS 633

Epideixis: 417, 473, 514


Episteme: 24, 54, 56, 171, 322, 323, 401, 411, 482, 520, 549, 553, 559, 599
Epistemologia: 24, 25, 35, 41, 43, 44, 45, 47, 54, 59, 62, 64, 73, 77, 80, 112, 113, 124,
127, 128, 132, 135, 137, 145, 152, 154, 155, 174-177, 180, 181, 184-195, 211, 261,
272, 298, 311, 314-318, 319, 323, 325, 329, 331, 333, 336-338, 344, 351, 355, 358,
362, 368, 375, 377, 380, 385, 388, 391, 400, 404, 405, 416-419, 434, 435, 437, 442,
482, 502, 517, 531, 545, 585
Epitaphios: 494
Epoche: 52, 53, 499, 567
Ergon: 434, 467, 575
Espaço habitado: 325, 326
Esparta: 450, 452, 456, 463, 478, 492, 495
Esquecimento: 27, 38, 53, 310, 315, 375, 578, 583
Esquematismo: 73, 233
Estética da receção: 288, 292, 293, 296, 567
Estrutura: 43, 49, 59, 62, 68, 69, 81, 87, 94, 97, 102, 128, 144, 147, 153, 155, 157,
178, 179, 191, 197, 199-204, 206, 207-209, 211, 213, 218, 225, 227, 237, 291, 298,
301, 324, 350, 358, 359, 361-363, 377, 381, 385, 404, 405
Estruturalismo: 25, 67-69, 96, 293, 314, 328, 360, 363, 390, 581
Explicação: 24, 27, 35, 38, 42-44, 47, 49-50, 53, 55, 61-67, 70-74, 76, 77-83, 106-109,
110, 114, 115, 120-122, 128, 130, 131, 138-143, 144, 148, 157, 159, 160, 162, 168-
172, 174-177, 180-182, 184, 190, 195, 198, 205, 211, 212, 214, 216, 218, 279, 284,
314, 315, 317-319, 328, 334, 336, 338, 340, 352, 502, 528-531, 538, 566, 568
Facto: 30, 31, 41-44, 48, 53, 64, 73, 78-81, 83, 86, 87, 105, 135, 137, 141, 142, 147,
157, 160, 164, 165, 167-170, 180, 181, 336, 358, 366, 374, 378, 387, 388, 391, 393,
402, 403, 405, 411, 412, 414, 432, 433, 434, 439, 440, 446, 450, 453, 454, 465,
469, 472, 476, 478-481, 484, 493, 510, 515-517, 520, 521, 530, 536, 537, 581, 523,
599
Fazer ver: 304, 440, 566, 573, 576, 585-588, 589, 593, 599
Fenomenologia: 148, 196, 197, 218, 222, 223, 236, 238, 239, 245, 291, 298, 307, 310,
315, 319, 321, 329, 339, 381
Ficcionalização: 239, 240, 298-299, 304, 310, 369, 386, 549, 582
Filosofia da história: 77, 125, 155
Followability: 129, 130, 131, 141, 146, 149, 151, 178, 179, 231, 339, 529, 531
Fontes: 182, 367, 388, 390, 393, 399-402, 415, 433, 439, 484, 502, 504, 506, 507, 509,
510, 514, 526, 527
Frase narrativa: 124, 127, 129
Generalização: 140, 189-191, 551
Grandiosidade: 425-428
Hermenêutica: 284, 287, 292, 294, 315, 353, 375, 380, 381, 388, 467
634 ÍNDICE DE ASSUNTOS

Histor: 23, 406, 435, 437, 504, 512, 576, 578, 583, 597
História das mentalidades: 341-343, 345, 377, 382
História económica: 88, 95, 101, 102, 176, 342
História estrutural: 101, 180, 193
História factual: 77, 80, 87, 89, 93, 95, 99, 102, 193, 306, 346, 355, 366
História política: 77, 88, 93, 98, 135, 176, 207, 311, 346, 355
Historicização: 239, 307, 308, 369
Historie: 136, 435, 436
History: 117, 132, 133, 134, 135, 355, 409
Ideia-tipo: 447, 455, 456, 465
Ilusão: 290, 442, 567, 577
Imagem: 218, 299, 304, 313, 319-322, 343, 351, 353, 368-372, 379, 386, 387, 399, 524,
577, 579-581, 586, 591, 594, 597
Imaginação: 31, 50, 51, 62, 193, 216, 263, 265, 289, 291, 302, 320, 337, 343, 364, 370,
371, 386, 387, 390, 393, 573, 582, 585, 587, 593, 597
Imortalidade: 426, 427, 429
Imputação causal: 175, 184, 186-195, 195-198, 201, 205, 209, 215, 299, 338, 516, 529
Indício: 358, 370, 400, 406, 412-414, 502, 511-513, 522, 523, 525-527, 529, 562
Intencionalidade: 239, 337, 369, 374, 375, 377, 386, 387, 582
Interpretação: 109, 110, 124, 246, 336, 366, 382, 401, 514, 568, 569
Intriga: 26, 37, 55, 69, 122, 130, 154-168, 172-174, 180-181, 187, 190, 194, 196, 199-
201, 205, 206, 208, 210-214, 224-226, 228-232, 234, 237, 279, 354-358, 363, 364,
366, 377, 385, 529, 536, 545, 551, 558, 559, 567, 573, 589, 594
Intropatia: 72, 215
Juiz: 114, 175, 188, 190, 234, 273, 314, 382, 449, 436, 512, 527
Julgamento: 141-144, 175, 181, 186, 189, 190, 321, 367, 382, 499, 513, 515, 568, 571
Katharsis: 230, 566, 567
Ktema es aiei: 23, 171, 444
Legibilidade: 235, 364, 371, 372, 374, 376, 386, 599, 582
Lei: 105, 112-116, 118, 132, 142, 143, 159, 164, 165, 168, 169-171, 177-181, 187-189,
191, 198, 405, 446, 449, 453, 459, 495, 529-531, 539, 555
Leitor: 159, 168, 176, 179, 183, 199, 218, 224, 228, 231, 233-237, 261, 263, 283, 285,
287, 288, 290, 291, 293, 294, 304, 308, 317, 318, 323, 331, 352, 354, 356, 368,
372, 374-377, 383, 388-392, 399, 412, 416, 418, 419, 422, 423, 432, 433, 440, 441,
449, 454, 455, 461, 462, 465, 466, 487, 490, 492, 495, 497, 501, 504, 505, 513,
514, 535, 537, 548, 566, 568-574, 576, 581-589, 592-597, 599
Leitura: 178, 182, 203, 207, 233, 234, 260, 274, 281,-287, 290, 294-308, 311, 317, 347,
375, 386, 392, 400, 454, 459, 511, 542, 545, 557, 560, 567, 569, 573, 588, 591, 595
Lexis: 370, 427, 582, 583, 588
Linguistic turn: 30, 42, 62, 123, 312, 363, 401, 434, 581, 599
ÍNDICE DE ASSUNTOS 635

Logos: 407, 417, 434, 441, 445, 455, 467


Longa duração: 87, 92-102, 204, 205-208, 238, 385, 404, 529
Macro-história: 194, 207
Mégara: 489, 494, 543
Melos: 492, 581
Memória: 246, 306, 310, 311, 313, 315-317, 319-324, 326-329, 331, 334, 337-339, 343,
350, 353, 362, 367-369, 378, 381, 384, 386, 387, 400, 401, 412, 415, 418, 427, 428,
429, 435, 483, 517-522, 566, 577-581, 582, 595, 598, 600
Mesmo: 262, 270, 271, 275, 280, 282-284, 296, 302, 379
Metáfora: 156, 234, 278-282, 284, 298, 299, 302
Meta-história: 154-156, 159, 160, 316, 339
Método: 142, 167, 172, 180, 183, 202, 273, 284, 380, 388, 401, 405, 542, 544
Metodologia: 315, 401, 404, 405, 412, 422, 463, 521, 522, 529, 546, 580
Micro-história: 194, 207, 262, 311, 315, 335, 339, 357, 377, 526
Mimese: 59, 69, 75, 76, 183, 225, 234, 235, 237, 285, 293, 367
Mimesis: 24, 40, 59, 76, 117, 118, 123, 148, 153, 156, 183, 201, 206, 212, 224, 228-
233, 378, 385, 399, 434, 529, 550, 559, 562, 567, 575, 577, 594-597
Mise en intrigue: 40, 60, 61, 123, 130, 180, 183, 187, 199, 212, 229, 233, 235, 317,
318, 359, 385, 529, 552, 600
Mitilene: 492, 493
Mito: 343, 389, 408, 416, 420, 427, 428, 515, 562-565
Mneme: 321, 379
Modelo nomológico: 73, 103-105, 108, 110, 112-119, 123, 124, 129, 131, 138, 140, 142,
160, 175, 177, 178, 182, 210, 355
Mythodes: 411, 420, 422, 578, 581
Mythos: 69, 132, 155, 214, 225, 229, 236, 432, 515, 551-553, 559, 563, 566
Narrativa: 72, 75, 76, 99, 103, 108, 118, 122-131, 133, 135, 138-144, 147, 148, 149,
151-155, 157-159, 161-166, 168-170, 175-182, 184, 190, 191-197, 199, 202, 203,
205-208, 209-215, 218-220, 223, 224, 226, 229-234, 236-238, 246, 247, 253, 260,
265, 272, 279, 280, 286, 298, 299, 303, 304, 307, 308, 314, 315, 326, 329, 336,
355-360, 361-367, 369-372, 377, 385, 386, 394, 399-403, 405, 406, 408, 415, 420,
426, 432, 438, 446, 452-454, 456, 462, 466, 468, 472, 484, 492, 493, 496, 501, 506,
518, 528-538, 542, 545, 548, 553, 554, 560, 563, 566, 568, 572, 573, 581-583, 585,
587
Narratividade: 208, 218, 219, 229, 234, 238, 310, 337, 353, 355, 359, 376
Narrativismo: 108, 118, 123, 141, 162-164, 174, 175, 177, 178, 181, 182, 337, 355, 376,
581, 586
Negacionismo: 316, 324, 334, 336, 365, 386, 579
Neopositivismo: 76, 77, 474, 586
Nova história: 88, 176, 181, 206, 208, 232, 340, 342
636 ÍNDICE DE ASSUNTOS

Objetividade: 111, 176, 400, 406, 412, 415, 433-435, 443, 461, 465, 467, 468, 471, 476,
482, 486, 498, 501, 511, 575, 592
Objeto: 114, 180, 207, 208, 210, 273, 289, 392, 404, 405
Observação: 332
Odisseia: 489
Opsis: 507, 593
Outro: 248, 262, 270, 271, 274-275, 280, 282, 283, 296, 302, 379
Paradigma: 199, 231, 233, 238, 332, 363, 384, 401, 429, 434, 438, 478, 481, 513, 525,
546, 548, 551, 561
Paradigma indiciário: 332
Passado: 228, 246, 249, 250, 257, 260, 262, 263, 266, 267-271, 282, 283, 292, 293,
295, 298, 299, 301-303, 314, 317, 318, 321, 322, 325, 329, 353, 354, 360, 361, 376,
379, 382, 386-391, 392, 393, 403, 404, 414, 429, 430, 434, 435, 440, 441, 445, 489,
511-517, 522-526, 555, 556, 564, 565, 567, 571, 573, 576, 577, 581, 582, 595, 598
Pathos: 476, 484, 489, 501, 572, 589, 591, 599
Peloponeso: 399, 400, 408, 409, 411, 445, 448, 451, 456, 460, 462, 470, 485, 489, 492,
494, 497, 498, 548, 554, 556, 559, 562, 570, 572, 574, 575, 576, 578, 580, 583,
585, 589
Pentecontaeteia: 421, 478, 489
Peripécia: 224, 230, 231, 430, 548, 589
Personagem: 99, 181, 194-199, 203-205, 212, 254, 255, 257, 259, 283, 286, 289, 308,
356, 375, 377, 393, 454, 470, 481, 529, 546, 550, 569, 587, 588
Peste: 448, 449, 451, 476, 484, 491, 492, 505, 524, 589, 590
Phronimos: 504
Plateias: 475, 478, 492, 493, 581, 589
Poética: 23, 116, 154-155, 189, 205, 218, 224, 227, 231, 233, 237, 238, 285, 308, 477,
526, 528, 536, 550-552, 555, 557, 563, 566, 588, 599
Poiesis: 294, 405, 427, 428, 549-551, 562, 577
Política: 135, 555
Positivismo: 402, 434, 526, 599
Pós-modernismo: 316, 377, 365, 366, 526
Pragmática: 226, 323, 348, 385, 523, 551, 594
Prática social: 339, 347, 348
Praxis: 182, 184, 196, 224, 225, 227, 363, 427
Prefiguração: 156, 183, 277-279, 523, 546, 566, 597
Presente: 222, 223, 256, 263, 264, 270, 283, 292, 351, 379, 381, 382, 414, 445, 448,
483, 511, 512, 516, 519, 525, 555, 595
Processo: 107, 134, 140, 157, 198, 294, 295, 317, 323, 388, 403, 404, 407, 435, 473,
543, 576, 548
Progymnasmata: 587, 589
ÍNDICE DE ASSUNTOS 637

Pronoia: 450, 490


Prova documental: 295, 309, 310, 317, 318, 325, 329, 333-336, 338, 362, 364, 377,
387-389, 406, 476, 502, 503, 521, 529, 583
Prova indutiva: 115
Prova pragmática: 115
Questão: 86, 292, 334, 335, 338, 347, 351, 371, 377, 380, 394, 400, 401, 405, 413, 463,
551, 554
Racionalismo: 463, 570
Realismo crítico: 380
Realismo político: 461, 462
Reenactement: 263, 265, 267, 382
Referente: 196, 234, 261, 284, 314, 316, 336, 337, 339, 340, 359-362, 367, 373, 374,
378, 384, 385, 467, 581, 586
Refiguração: 183, 233, 234, 237, 239, 261, 282, 284, 285, 291, 295, 296, 303, 311, 369,
379, 386, 399, 546, 566, 567, 571, 573, 576, 593, 597, 599
Representação: 194, 207, 261, 263, 275, 276, 279, 293, 302, 307, 310, 311, 314, 315,
316, 318, 319, 321, 324, 333-335, 336, 339, 341, 343, 347-351, 352-355, 359, 360,
362, 364, 365, 370, 372, 373, 374, 376, 377, 379, 381, 382, 384, 439, 573, 577,
511, 580
Representância: 153, 156, 234, 254, 261, 262, 275, 280, 283, 284, 295, 296, 298, 302,
306, 310, 319, 337, 353, 359, 369, 375-382, 386, 387, 394, 434, 574, 577, 582, 599
Res: 361, 387, 388, 408, 549
Retórica: 154, 173, 275, 278, 279, 285-291, 304, 336, 337, 353, 360, 362-366, 370, 372-
274, 386, 389, 399, 400, 408, 417, 438, 441, 453, 469-471, 474, 483, 503, 523, 525-
528, 549, 554, 555, 563, 566, 571, 575, 578, 581-583, 588, 589, 598, 600
Semeion: 516, 522
Semiótica estrutural: 225, 227, 235, 236, 336, 337, 359
Ser-como: 280-282
Shoah: 313, 316, 364, 365, 367, 579
Simpatia: 50, 51, 81, 132, 146
Síntese: 144, 193, 194, 224, 400
Siracusa: 463, 474, 492, 531, 532, 538, 570, 574, 587, 589, 593
Sociologia: 209, 213, 216, 273, 339, 341, 342, 343, 446
Stasis: 543, 572, 578
Story: 75, 125, 129, 130, 133-136, 156-158, 177-180, 355, 363, 386
Subjetividade: 177, 215, 400, 406, 433-435, 467, 468, 471, 476, 477, 478, 486, 498, 501
Syngrapho: 431, 432, 435, 438
Tebas: 493
Tekmerion: 522, 527
638 ÍNDICE DE ASSUNTOS

Tempo: 148, 151, 177, 184, 204-206, 207, 217-220, 223, 232, 233, 235-239, 326-237,
240, 242, 251-258, 299, 301, 335, 343, 351, 390, 399, 406, 407, 459, 492, 515, 516,
519, 523, 529, 537, 543-545, 547, 562
Tempo cosmológico: 152, 223, 236, 251, 253, 255, 282, 298, 326, 546
Tempo histórico: 102, 177, 199, 238-240, 244, 248, 251-256, 259, 270, 282, 298, 299,
301, 325, 328, 349, 545-547
Tempo humano: 204, 219, 223, 239, 297, 307, 310
Ter-sido: 80, 222, 228, 238, 256, 261, 274, 280, 299, 302, 308, 362, 379, 380, 382, 387,
582
Testemunha: 147, 283, 318, 329, 330, 335, 337, 364, 378, 399, 506, 517, 519, 520, 529,
562, 581, 584, 593, 597
Testemunho: 89, 90, 105, 201, 202, 261, 264, 325, 329-334, 337, 357, 364, 367, 375,
378, 399, 402, 406, 412, 418, 419, 442, 465, 483, 498, 502, 508, 511, 513, 519,
521-523, 526, 579
Texto: 128-130, 141, 183, 200-202, 206, 214, 225, 227, 233, 234, 237, 260, 283, 285-
288, 289-294, 296-298, 318, 333, 335, 351, 359, 369, 370, 374, 375, 393, 394, 401,
433, 434, 439-441, 451, 454, 466, 469, 487, 522, 534, 566, 567, 570-573, 581, 583,
588, 592, 593, 595, 597, 599
Tópica: 172-174, 176
Tournant critique: 311, 385
Traço: 90, 108, 123, 147, 150, 151, 179, 188, 195, 196, 206, 212, 282, 283, 290, 298,
301, 303, 307, 310, 323, 329, 331-335, 353, 355, 362, 371, 383, 482, 522, 527, 530,
546, 552, 553, 573, 574
Tradição: 196, 199, 233, 324, 511, 515
Tragédia: 158, 233, 236, 430, 447, 462, 469-471, 482, 484, 489, 497, 537, 559, 560,
566, 569, 574, 575
Tyche: 407, 417, 451, 457, 532, 536, 541, 542
Universalização: 552, 564, 567
Variação de escalas: 252, 336, 344, 347, 349, 352
Variações imaginativas: 296, 298, 310, 394
Ver-como: 281, 282, 298, 303, 566, 573, 575
Verdade: 146, 284, 380, 400, 401, 402, 406, 411-417, 419, 420, 422, 433-436, 440, 441,
454, 468, 471, 472, 479, 480, 482, 483, 496-498, 502-506, 515-519, 574, 580, 588,
598
Verificação: 55, 57
Verosímil: 173, 224, 308, 309, 386, 388, 416, 483, 527, 532, 536, 551, 552, 567, 582
Visibilidade: 259, 351, 352, 354, 364, 370-372, 376, 386, 387, 399, 579, 581-585
(Página deixada propositadamente em branco)
PRÉMIO
DOUTORA MARIA HELENA
DA ROCHA PEREIRA
2007

instituído pela
FUNDAÇÃO ENG. ANTÓNIO DE ALMEIDA

na área de estudos clássicos


FACULDADE DE LETRAS
DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA

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