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Título: Amor e Amizade.

Autor: Jane Austen.


Dados da Edição: Europa-américa, Mem martins, 2006.
Título original: Love and Friendship.
Gênero: Romance.
Digitalização: Dores Cunha.
Correção: Edith Suli.
Estado da Obra: Corrigida.
numeração de página: cabeçalho

Esta obra foi digitalizada sem fins comerciais e destinada unicamente à leitura de
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CLÁSSICOS
Amor e Amizade
JANE AUSTEN
Jane Austen (1775-1817), célebre escritora inglesa que em tempo de vida apenas viu
quatro das suas obras publicadas e, mesmo assim, anonimamente, é conhecida por
ser a autora de Sensibilidade e bom Senso e de Orgulho e Preconceito. Mas, na
realidade, é com Amor e Amizade que inicia a sua carreira aos 15 anos de idade.
Obra que trata dos amores de raparigas adolescentes, divide-se em duas novelas
epistolares e em cinco contos em forma de carta. Um dos grandes méritos desta obra
é a sua atualidade Jovens preocupadas exclusivamente com coisas de jovens - iguais às
jovens que conhecemos hoje -, monstros de hipocrisia enquanto fazem de tudo
para serem boas
- amuam, acusam, perdoam, choram, escarnecem, desmaiam, gritam de prazer ou de
ultraje, seduzem e rejeitam, são bondosas e cruéis, intuitivas e, contudo, obtusas.
Hoje em dia, usam os telemóveis para viverem a excitação do momento; há dois
séculos contentavam-se em escrever cartas. Mais uma vez, Jane Austen demonstra a sua
superior capacidade de observação, sendo que quando escreveu Amor e Amizade
estava, ela própria, na adolescência.
www.europa-america.pt

Imagem da capa: Pormenor do quadro Experiência com Uma Máquina Pneumática,


1768 (Tate Gallery, Londres)
151093061

JANE AUSTEN
AMOR E AMIZADE
PUBLICAÇÕES EUROPA-AMÉRICA
Título original: Love and Friendship
Tradução de Patrícia Xavier
Tradução portuguesa (c) de P. E. A., 2006
Capa: estúdios P. E. A.
Direitos reservados por Publicações Europa-América, Lda.
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Editor: Tito Lyon de Castro
PUBLICAÇÕES EUROPA-AMÉRICA, LDA.
Apartado 8
2726-901 MEM MARTINS
PORTUGAL
E-Mail: secretariado@europa-america.pt
Execução técnica: Gráfica Europam, Lda., Mira-Sintra - Mem Martins
Edição n.o: 1510938801 Maio de 2006
Depósito legal n.o: 24056306

Consulte o nosso site na Internet: www.europa-america.pt

JANEAUSTEN
(1775-1817)
Jane Austen nasceu em 1775, em Steventon, Hampshire, tendo sido a sétima criança
dos oito filhos do casal. O seu pai, o reverendo George Austen, era um homem culto
e com conhecimentos literários, e Jane recebeu a maior parte da sua educação em
casa. Já adulta, mudou-se com a família para Bath, cidade que surge muitas vezes
como cenário da sua ficção literária. Regressaria mais tarde a Hampshire, onde passou
os últimos anos da sua vida e onde veio a falecer da doença de Addison em 1817.
A vida de Jane Austen é quase invulgar pela ausência de acontecimentos - nunca casou
e raramente saía de casa -,
parecendo marcada apenas pela intensidade dos laços familiares que a rodeavam. A
linearidade biográfica é, no entanto, largamente compensada pela criatividade da
sua obra.
Amor e Amizade marca o início da sua carreira aos
14 anos de idade, seguindo-se A History ofEngland, aos dezasseis anos, e A Collection
ofLetters aos dezassete.
Jane Austen teve um olhar atento sobre a sociedade em
que se inseria, e uma postura crítica face ao excessivo sentimentalismo que
caracterizava a maior parte da literatura do seu tempo.
O ridículo que encontra nas tendências da época está bem patente em A Abadia de
Northanger (publicado postumamente em 1818) e em Sensibilidade e bom Senso
(1811).
Orgulho e Preconceito (1813) marca a transição para a fase de maturidade da sua
escrita, em que surgem os seus últimos e, possivelmente, melhores romances. Entre
estes encontra-se Parque Mansfield (1814), a par de Persuasão (também publicado
postumamente em 1818) e Ema (1816).
Nestas obras, apurando o seu estilo numa maior subtileza e numa rigorosa gestão da
ironia, Jane Austen retrata personagens que interagem em compartimentos rígidos
da sociedade, transformando a aparente trivialidade da sua existência numa impiedosa
comédia de costumes.
Apesar de não terem alcançado grande popularidade no seu tempo, as obras de Jane
Austen têm hoje um inequívoco lugar entre os grandes clássicos do século XIX, tendo
várias delas dado origem a filmes e séries televisas de grande qualidade. Sanditon, o
romance que estava a escrever por altura da sua morte, surgiu mais de cem anos
depois, em
1925.
ÍNDICE
Amor e Amizade
As Três Irmãs
Uma Coleção de Cartas
Pág.
9
61
85
Iludida na Amizade e Traída no Amor

Para Madame La Comtesse de Feuillide,


este romance é-lhe dedicado pela sua humilde serva,
a autora

1 Eliza de Feuillide (1761-1813) era prima de Jane Austen.


A PRIMEIRA CARTA
De Isabel para Laura

Quantas vezes, em resposta às minhas repetidas súplicas de que transmitisse à minha


filha um relato pormenorizado e regular das adversidades e aventuras da sua vida,
me retorquiu: "Não, minha amiga, não acederei ao seu pedido enquanto não me
encontrar longe do perigo de voltar a experimentar tão terríveis
episódios".
É certo que esse dia chegou. Completa hoje cinquenta e cinco anos. Se é que uma
mulher pode alguma vez encontrar-se a salvo da determinada perseverança de amantes
inoportunos e das cruéis perseguições de pais obstinados, certamente que será neste
momento da sua vida.
Isabel

A SEGUNDA CARTA
De Laura para Isabel
Apesar de não me ser possível concordar consigo, quando diz que não voltarei a estar
exposta a contrariedades tão imerecidas como aquelas por que passei, para evitar
que me culpem de obstinação ou mesquinhez, vou satisfazer a curiosidade de sua
filha; e que a coragem com que sofri as muitas aflições da minha vida passada lhe
possa servir
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como uma útil lição para enfrentar aquelas que se lhe depararem
na sua vida.
Laura

A TERCEIRA CARTA
Laura para Maríanne
Como filha da minha amiga mais íntima, penso que tem o direito de conhecer a minha
triste história, a qual a sua mãe tantas vezes me pediu que lhe contasse.
O meu pai era de nacionalidade irlandesa e habitava o País de Gales; a minha mãe era
filha de um nobre escocês
e de uma bailarina italiana - nasci em Espanha e fui educada num convento em França.
Quando completei dezoito anos fui chamada pelos meus pais para viver sob o tecto
paternal, no País de Gales. A
nossa mansão situava-se numa das zonas mais românticas
de Vale of Usk. Apesar de os meus encantos estarem hoje consideravelmente
atenuados e algo prejudicados pelas adversidades por que passei, a verdade é que fui,
em
tempos, bela. Mas, por muito encantadora que fosse, a beleza da minha pessoa era o
menor dos meus atributos. Eu dominava todos os talentos usuais do meu sexo.
Enquanto
me encontrava no convento, o meu progresso sempre excedeu as instruções que me
eram dadas, o meu conhecimento era
13
excelente para a minha idade e tinha rapidamente ultrapassado
as minhas mestras.
A minha mente reunia todas as virtudes que podiam adorná-la; era o encontro de
todas as qualidades e de todos os
sentimentos nobres.
Uma sensibilidade tão trémula e tão viva face às aflições dos meus amigos, das pessoas
das minhas relações e, particularmente, às minhas próprias era culpa minha,
se é que a isso se pode chamar de culpa. Infelizmente, como tudo mudou! Embora as
minhas desgraças não me causem uma menor impressão do que aquela que sempre
causaram,
hoje não
me condoo com a infelicidade dos outros. Também os meus
talentos começam a esmorecer-já não sou capaz de cantar tão bem ou dançar tão
graciosamente como em tempos que já lá vão - e esqueci por completo o Minuet Dela
Cour.
Adieu,
Laura

A QUARTA CARTA
De Laura para Marianne
A nossa vizinhança era pequena, pois consistia apenas na sua mãe. Provavelmente ela
própria já lhe terá contado que, tendo sido abandonada pelos seus pais em
circunstâncias
de indigência, ela se retirara para o País de Gales por motivos econômicos Foi então
que a nossa amizade teve início. Isabel tinha nessa altura vinte e um anos.
Ainda que fosse uma pessoa agradável e de boas maneiras, entre nós, ela nunca
possuiu a centésima parte da minha beleza ou dos meus talentos. Isabel viajara.
Passara
dois anos num dos primeiros colégios internos de Londres, passara duas semanas em
Bath e ceara uma noite em Southampton.
"Acautele-se, minha Laura", dizia-me ela tantas vezes.
"Acautele-se com as insípidas vaidades e a indolente libertinagem das metrópoles de
Inglaterra; tenha cuidado com os luxos desprovidos de sentido de Bath e com o
peixe de má qualidade de Southampton."
" Ai de mim!" , exclamava eu. " Como poderei evitar esses males aos quais nunca
estarei exposta? Que probabilidades existem de eu vir algum dia a provar da
libertinagem
de Londres, dos luxos de Bath ou do péssimo peixe de Southampton? Eu que estou
condenada a desperdiçar os meus dias e a minha juventude numa humilde casa em
Vale
of Usk?" Ah! Mal sabia eu então que estava destinada a deixar essa humilde e pequena
casa para ir ao encontro dos enganadores prazeres do mundo. Adieu, Laura 75

A QUINTA CARTA De Laura para Marianne


Numa noite de Dezembro, eu, o meu pai e a minha mãe estávamos reunidos em redor
da lareira a conversar, quando, subitamente,
nos espantamos ao ouvir um bater violento na porta da frente da nossa casa rústica. O
meu pai sobressaltou-se. - Que ruído é este? - perguntou. - Parece que estão
a bater à porta com toda a força replicou minha mãe. - É realmente o que parece -
gritei eu. - Sou da vossa opinião - disse o meu pai. - O som parece certamente advir
de uma violência invulgar exercida contra a nossa inofensiva porta. - Sim - exclamei eu.
- Não posso deixar de pensar que se trata de alguém que quer ser recebido.
- Essa é outra questão - retorquiu ele. - Não devemos pretender determinar o motivo
que leva a pessoa a bater, mas estou em parte convencido de que alguém efetivamente
bate com força à porta. Nesse mesmo instante, uma segunda e tremenda série de
pancadas interrompeu o discurso de meu pai, deixando-me a mim e a minha mãe algo
alarmadas.
- Não será melhor irmos ver quem é? - sugeriu ela. - Os criados saíram.
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- Penso que será melhor - repliquei. - Certamente - acrescentou meu pai -, sem dúvida.
- Vamos, então? - insistiu minha mãe. - Oh! Não percamos tempo - gritei. Uma terceira
e ainda mais violenta pancada na porta tomou de assalto os nossos ouvidos.
- Estou certa de que alguém está a bater à porta disse minha mãe. - Penso que isso é
certo - replicou meu pai. - Parece-me que os criados já regressaram - disse
eu. - Acho que estou a ouvir Mary ir à porta. - Fico contente por sabê-lo - declarou o
meu pai -, pois desejo saber de quem se trata. Eu estava certa na minha conjectura,
pois Mary, que nesse mesmo instante entrou na sala, informou-nos de que se
encontravam à porta um jovem cavalheiro e o seu criado; tinham-se perdido, estavam
cheios
de frio e imploravam que os deixassem vir aquecer-se junto da nossa lareira. - Não vai
recebê-los? - perguntei. - Não tem objecções, minha querida? - inquiriu o
meu pai. - Absolutamente nenhuma - replicou a minha mãe. Mary, sem esperar por
mais instruções, saiu imediatamente da sala, regressando rapidamente, apresentando-
nos
o jovem mais belo e amável que eu alguma vez contemplara. O criado não foi
apresentado.
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A minha sensibilidade natural fora já grandemente afetada pelas aflições
do infeliz estranho, e no preciso momento em que nele pousei os meus olhos senti
que a felicidade ou a miséria da minha vida futura só dele poderiam depender. Adieu,

Loura A SEXTA CARTA De Laura para Maríanne


O jovem nobre informou-nos de que o seu nome era Lindsay (no entanto, por razões
particulares, ocultá-lo-ei sob o nome
de Talbot). Disse-nos ser filho de um baronete inglês, e contou-nos que perdera a sua
mãe havia muitos anos e que tinha uma irmã de estatura média. - Meu pai -
prosseguiu ele - é um infeliz perverso e mercenário... E apenas revelaria os seus
defeitos a amigos especiais como os que agora me receberam. As suas virtudes,
meu bondoso Polydore*2 - disse, dirigindo-se a meu pai -, as vossas, cara Claudia, e as
vossas, encantadora Laura, chamam-me a depositar em vós a minha confiança.
*2 Em Cymbeline, de Shakespeare, Polydore é o nome adotado por Guiderius
enquanto se encontra na floresta do País de Gales.
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Inclinamos a cabeça. - Meu pai, seduzido
pelo falso brilho da fortuna e pelo ilusório esplendor do título, insistiu em dar a minha
mão a Lady Dorothea. " Não, nunca!" , exclamei. " Lady Dorothea é adorável
e sedutora, não há mulher que eu prefira em seu lugar, mas saiba, senhor, que me
recuso a casar com ela para obedecer aos vossos desejos. Não! Jamais alguém poderá
dizer que satisfiz a vontade de meu pai." Todos ficamos admirados com a nobre
coragem da sua resposta. - Sir Edward ficou surpreendido - prosseguiu ele -;
possivelmente
não esperara uma tal ardente oposição à sua vontade. " Edward, valha-me Deus, onde
foi buscar todo este palavreado sem sentido?" , perguntou-me. " Suspeito que tem
andado a ler romances." Respondi, com desprezo, que isso estaria abaixo da minha
dignidade. Montei o meu cavalo e, seguido pelo meu fiel William, parti com destino
à casa de minha tia. " - A casa de meu pai situa-se em Bedfordshire, a de minha tia em
Middlesex e, apesar de me orgulhar de ter razoáveis conhecimentos de geografia,
não sei dizer como aconteceu, mas dei por mim a entrar neste belo vale que julgo
situar-se no sul do País de Gales, quando esperava chegar à casa de minha tia.
" - Depois de ter vagueado algum tempo pelas margens do Usk, sem saber que
caminho seguir, comecei a lamentar
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o meu cruel destino da forma mais amarga e mais
patética. Escurecera, então, por completo, sem uma única estrela que pudesse guiar os
meus passos, e não sei que teria sido de mim se não tivesse distinguido, ao
longe, através das solenes trevas que me rodeavam, uma luz distante, a qual, à medida
que me aproximava, descobri ser o alegre fulgor da vossa lareira. Impelido
pela combinação das aflições contra as quais combatia, nomeadamente o medo, o frio
e a fome, ainda hesitei em pedir guarida, mas resolvi-me a
faze-lo. E, agora,
minha encantadora Laura - continuou ele, pegando na minha mão -, quando poderei
esperar receber a recompensa por todos os dolorosos tormentos por que passei no
caminho que me trouxe até si, que é o que sempre aspirei? Oh! Quando me
recompensará com a sua pessoa? -Neste preciso instante, meu querido e bondoso
Edward - repliquei
eu. Fomos imediatamente unidos pelo meu pai que, apesar de nunca ter ingressado
numa ordem, fazia parte da Igreja.
Adieu,
Laura
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A SÉTIMA CARTA De Laura para Maríanne
Depois do casamento, ficamos apenas alguns dias em Vale of Usk. Depois de uma
despedida comovente de meu pai, de minha mãe e da minha Isabel, acompanhei
Edward até
casa da sua tia, em Middlesex. Philippa recebeu-nos a ambos com todas as
demonstrações de adecto A minha chegada foi, na verdade, uma surpresa maravilhosa
para
ela, uma vez que não só ignorava por completo que eu me tinha casado com o seu
sobrinho, como nem sequer tinha qualquer ideia da minha existência. Augusta, a irmã
de Edward, estava de visita à sua tia na altura em que chegamos Pareceu-me
exatamente como o seu irmão a descrevera: de estatura média. Recebeu-me com a
mesma
surpresa de Philippa, embora não com igual cordialidade. Senti uma desagradável
frieza e uma hostil reserva no modo como me recebeu, o que foi simultaneamente
perturbante
e inesperado: quando nos conhecemos, não encontrei qualquer sensibilidade
interessante, nem qualquer preocupação amistosa nos seus modos e na forma como se
me dirigiu,
como seria de esperar que acontecesse na nossa apresentação. A sua linguagem não foi
calorosa, nem afetuosa, as suas expressões de cumprimento não foram animadas,
nem cordiais; não abriu os seus braços para me receber junto ao seu coração, apesar
de os meus 21 braços se encontrarem estendidos para a apertar junto ao meu peito.
Uma breve troca de palavras entre Augusta e o seu irmão, que ouvi acidentalmente,
fez-me gostar ainda menos dela e convenceu-me de que o seu coração não estava mais
receptivo aos suaves laços do amor do que à estima da amizade. - Mas será que pensas
que o meu pai alguma vez se conformará com esta irresponsável união?-disse Augusta.
- Augusta - replicou o nobre jovem -, pensei que tinhas uma melhor opinião de mim.
Não sei como pudeste imaginar que eu alguma vez me humilharia de uma forma tão
abjeta, aceitando a interferência de meu pai em qualquer assunto que tivesse
consequências ou importância para mim. Diz-me, Augusta, sinceramente: alguma vez
tiveste
conhecimento de que eu consultasse a opinião de meu pai ou seguisse o seu conselho,
na mais banal questão que fosse, desde os meus quinze anos de idade? - Edward
- retorquiu ela -, sem dúvida que és modesto no modo como te vanglorias. Desde que
tinhas quinze anos, dizes tu! Meu caro irmão, desde que tinhas cinco anos de
idade que te absolvo de alguma vez teres contribuído para o contentamento de teu
pai. Mas, ainda assim, não deixo de me sentir apreensiva com o facto de vires em
breve a ter a necessidade de te humilhares aos teus próprios olhos, procurando
sustento para a tua mulher na generosidade de Sir Edward.
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-Jamais, jamais, Augusta,
me rebaixaria a um tal ponto - disse Edward. - Sustento! De que sustento precisará
Laura que não possa obter de mim? - Apenas aquelas insignificâncias que são os
víveres - respondeu ela. - Víveres! - replicou o meu marido, num tom nobre e altivo. - E
imaginarás tu que não existe outro sustento para uma mente elevada (como
é o caso da da minha Laura), para além da inferior e indelicada ocupação de comer e
beber? - Tanto quanto sei, não existe outra mais eficaz retorquiu Augusta. -
E nunca sentiste as intensas e agradáveis dores do amor, Augusta? - replicou o meu
Edward. - Será que para o teu vil e corrompido palato é impossível subsistir
apenas através do amor? Não conseguirás conceber o luxo de viver as provações que a
pobreza inflige, na companhia do objecto da nossa mais terna afeição? - És demasiado
ridículo - disse Augusta - para que valha a pena discutir contigo; talvez, no entanto,
venhas mais tarde a aperceber-te... A partir daqui foi-me impossível ouvir
o resto do seu discurso devido ao aparecimento de uma jovem muito bonita, que foi
conduzida até à sala através da porta junto à qual eu estivera à escuta. Ao ouvir
que a anunciavam pelo nome de Lady Dorothea, abandonei de imediato o meu
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posto e apressei-me a segui-la até à sala de visitas, pois lembrava-me bem que era ela
a jovem que o cruel e inflexível baronete queria que o meu Edward tomasse como
mulher. Ainda que a visita de Lady Dorothea se destinasse oficialmente a Philippa
e a Augusta, imaginei, por algum motivo, que, tendo sabido do casamento e da
chegada de Edward, um dos principais motivos que ali levavam Lady Dorothea fosse
ver-me.
Não foi preciso muito tempo para concluir que, apesar de encantadora e elegante, e
embora fosse agradável e polida na sua maneira de estar, no que dizia respeito
à delicadeza de percepção, aos sentimentos afetuosos e à sensibilidade refinada, Lady
Dorothea pertencia àquela inferior categoria de seres de que Augusta também
fazia parte. Não se demorou mais de meia hora e, no decurso da sua visita, não me
confidenciou nenhum dos seus secretos pensamentos, nem me solicitou que lhe
confiasse
algum dos meus. Facilmente depreenderá, minha querida Marianne, que não me foi
possível sentir um profundo adecto ou uma ligação sincera por Lady Dorothea. Adieu,
Laura
24
A OITAVA CARTA De Laura para Marianne, em continuação.
Havia pouco que Lady Dorothea nos deixara quando outra visita, tão inesperada como
a de sua senhoria,
se tez anunciar. Tratava-se de Sir Edward que, tendo sido informado por Augusta do
casamento do seu irmão, ali se encontrava, sem dúvida, para repreender o filho
pelo atrevimento de se ter unido a mim sem o seu conhecimento. Mas Edward,
antevendo o seu propósito, abordou-o com uma coragem heróica logo que o pai
entrou na
sala, dirigindo-sê-lhe da seguinte forma: - Sir Edward, sei o motivo que o traz aqui.
Veio com o vil propósito de me censurar por me ter comprometido com a minha
Laura numa união indissolúvel, sem o seu consentimento. Mas, senhor, rejubilo com
este ato; vanglorio-me de ter incorrido no desagrado de meu pai! Assim dizendo,
Edward pegou na minha mão e, enquanto Sir Edward, Philippa e Augusta refletiam,
sem dúvida com admiração, sobre esta destemida valentia, conduziu-me até à
carruagem
do seu pai, a qual permanecia à porta, e nela escapamos imediatamente à perseguição
de Sir Edward. Os condutores receberam, em primeiro lugar, instruções para tomarem
a estrada para Londres; mas, depois de alguma reflexão, ordenamos-lhes que nos
conduzissem a M**, o lugar onde morava o amigo mais querido de Edward, o qual
ficava
a apenas algumas milhas de distância.
25
Chegamos a M** em poucas horas e, tendo feito anunciar os nossos nomes, fomos
imediatamente conduzidos à presença de Sophia,
a esposa do amigo de Edward. Tendo sido privada durante três semanas da companhia
de uma verdadeira amiga (refiro-me à sua mãe), imagine como me senti ao encontrar-
me
na presença de alguém digno desse nome. Sophia era alta; tinha uma figura muito
elegante. Uma suave languidez dominava os traços do seu rosto, mas au- mentava a
sua beleza. Tratava-se de uma característica da sua mente: ela era toda sensibilidade e
intuição. Voamos para os braços uma da outra e, depois de termos trocado
votos de mútua amizade até ao fim das nossas vidas, confiá- mos instantaneamente
uma à outra os íntimos segredos dos nossos corações. Fomos interrompidas nesta
agradável atividade pela entrada de Augustus, o amigo de Edward, que acabava de
regressar de um passeio solitário. Nunca eu antes testemunhara uma cena tão
perturbante
como o encontro de Edward e Augustus. - Minha vida! Minha alma! - exclamou o
primeiro. - Meu adorável anjo! -replicou o segundo, enquanto se lançavam nos braços
um do outro. Era demasiado patético para os meus sentimentos, tal como para os de
Sophia: caímos ambas desmaiadas num sofá. Adieu, Laura
26
A NONA CARTA Da mesma para a mesma
Perto do final do dia, recebemos a seguinte carta de Philippa: Sir Edward ficou
profundamente enfurecido pela vossa abrupta partida; levou Augusta de
volta para Bedfordshire. Por muito que anseie pela vossa encantadora companhia, não
posso arrancar-vos da de tão queridos e merecedores amigos. Uma vez que tenham
terminado a vossa visita, acredito que regressarão aos braços da vossa Philippa
Retribuímos com uma resposta adequada a esta afetuosa mensagem e, depois de lhe
agradecermos o seu bondoso convite, asseguramos-lhe que dele certamente nos
faríamos valer quando nos víssemos sem outro lugar onde ficar. Embora, para
qualquer
pessoa razoável, nada pudesse parecer tão satisfatório como esta grata resposta ao seu
convite, não sei o que se passou, mas Philippa era certamente caprichosa
o bastante para ter ficado desagradada com o nosso comportamento, e, algumas
semanas mais tarde, quer tenha sido para se vingar da nossa conduta, quer para buscar
alívio para a sua solidão, casou-se com um
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jovem e analfabeto caçador de fortunas. Este ato imprudente (apesar de estarmos
conscientes de que provavelmente nos
privaria da fortuna com que Philippa nos garantira podermos contar) não conseguiu,
por aquilo que nos dizia respeito, despertar nas nossas elevadas mentes sequer
um único suspiro; porém, no receio de que pudesse revelar-se uma fonte de
interminável infelicidade para a iludida noiva, a nossa apurada sensibilidade foi
grandemente
afetada no momento em que soubemos do acontecimento. As afetuosas súplicas por
parte de Augustas e Sophia de que para sempre considerássemos a sua casa como
nosso
lar facilmente nos predispuseram a não mais os deixarmos. Na companhia do meu
Edward e deste amistoso casal passei os momentos mais felizes da minha vida:
passávamos
o nosso tempo deliciosamente, fazendo afirmações mútuas de amizade e votos de
amor inalterável, estando seguros de não ser interrompidos por visitantes intrometidos
e desagradáveis, uma vez que Augustus e Sophia se tinham encarregado, aquando da
sua chegada àquele lugar, de informar as famílias circundantes de que, uma vez
que a sua felicidade se centrava apenas em si próprios, não desejavam ter mais
companhia. Mas, ai de mim! Minha querida Marianne, uma tal felicidade como aquela
de que desfrutávamos era demasiado perfeita para ser duradoura. Um golpe tão severo
quanto inesperado destruiu de uma só vez toda e qualquer sensação
28
de prazer.
Como certamente estará convencida, por aquilo que lhe contei a respeito de Augustus
e Sophia, que nunca houve casal mais feliz, calculo que nem seja preciso contar-lhe
que a sua união fora contrária à vontade dos seus cruéis e mercenários pais, que em
vão se tinham esforçado, com obstinada perseverança, por obrigar os dois jovens
a casar com pessoas que abominavam; todavia, com uma coragem heróica digna de ser
relatada e admirada, eles tinham-se ambos recusado, com constância, a submeter-se
a um tal poder despótico. Depois de se terem, honradamente, libertado das correntes
da autoridade paternal através de um casamento clandestino, estavam determinados
a não perder a boa opinião que dessa forma tinham conquistado na sociedade
aceitando quaisquer propostas de reconciliação que lhes pudessem surgir por parte de
seus pais. Nunca se viram expostos, no entanto, a um teste à sua honrada
independência. Quando se deu a nossa visita, eles estavam casados havia apenas
alguns meses,
e durante esse tempo tinham-se mantido a partir de uma considerável quantia de
dinheiro que Augustus graciosamente roubara do indigno escritório de seu pai, alguns
dias antes da sua união com Sophia. com a nossa chegada, viram as suas despesas
consideravelmente aumentadas, enquanto os seus meios de subsistência estavam
praticamente
esgotados. Mas eles - excepcionais criaturas! - nem por um momento refletiram
29
sobre as suas preocupações financeiras, e teriam corado perante a ideia de pagarem
as suas dívidas. Ai de mim! Qual foi a sua recompensa por uma atitude tão
desinteressada? O belo Augustus foi preso e nós ficamos destroçados. Uma tão pérfida
traição
por parte dos impiedosos perpetradores desta ação certamente chocará a sua gentil
natureza, minha cara Marianne, tal como afetou a delicada sensibilidade de
Edward, de Sophia, da sua Laura e do próprio Augustus. Para completar esta
barbaridade sem paralelo, fomos informados de que a casa em breve seria penhorada.
Ah!
Que podíamos nós fazer, senão aquilo que fizemos! Suspiramos e desmaiamos no sofá.
Adieu, Laura A DÉCIMA CARTA Laura, em continuação Quando recuperamos, em
parte,
das esmagadoras efusões da nossa dor, Edward expressou o desejo de que
refletíssemos para decidirmos qual seria o passo mais prudente a dar na nossa infeliz
situação,
enquanto ele iria visitar o seu amigo detido para lamentar a sua triste sorte.
Prometemos que assim faríamos e ele partiu, então, rumo à cidade. Na sua ausência
cumprimos obedientemente o seu desejo
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e, depois da mais madura reflexão, concordamos que o melhor a fazer seria deixar a
casa, que a qualquer momento nos seria
tirada pelos oficiais de justiça. Assim, aguardamos impacientemente o regresso de
Edward, de forma a comunicar-lhe o resultado das nossas deliberações. Mas Edward
não apareceu. Contamos, em vão, os entediantes momentos da sua ausência... em vão
choramos.. em vão suspiramos.. Edward não voltou. Este era um golpe demasiado
cruel e demasiado inesperado para a nossa delicada sensibilidade... não podíamos
suportar o que estava a acontecer... podíamos apenas desmaiar. Por fim, reunindo
toda a determinação de que era capaz, ergui-me e, depois de ter feito as malas com a
roupa necessária para mim e para Sophia, arrastei-a para uma carruagem que
eu mandara chamar e partimos sem demora para Londres. Uma vez que a casa de
Augustus ficava a doze milhas da cidade, não demoramos muito a chegar, e mal
entramos
em Holbom, descendo um dos vidros da frente, comecei imediatamente a perguntar a
todas as pessoas de aspecto decente por quem passávamos se tinham visto o meu
Edward.
Mas, visto que avançávamos demasiado depressa para que tivessem tempo de
responder às minhas sucessivas perguntas, obtive pouca informação, ou mesmo
nenhuma, acerca
do seu paradeiro. -Para onde devo dirigir-me?-perguntou o condutor.
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- Para Newgate, caro jovem - repliquei -, para visitarmos Augustus. - Oh, não! Não! -
exclamou
Sophia. - Não posso ir para Newgate. Não suportaria ver o meu Augustus num tão
cruel confmamento... os meus sentimentos estão já suficientemente chocados pelo
relato
da sua aflição, mas contemplá-la seria insuportável para a minha sensibilidade. Uma
vez que concordei plenamente com ela, tendo em conta os seus sentimentos, o
condutor
recebeu instantaneamente instruções para regressar ao campo. Talvez esteja algo
surpreendida, minha querida Marianne, que, no tormento em que me encontrava, sem
meios de sustento e sem qualquer habitação, não me tenha lembrado de recorrer a
meu pai e minha mãe, nem à pequena casa paterna em Vale of Usk. Para justificar
este aparente esquecimento devo informá-la de um detalhe respeitante aos meus pais,
que até agora ainda não mencionei. Refiro-me à morte de meus pais algumas semanas
após a minha partida. com o seu falecimento, eu era a legítima herdeira da sua casa e
da sua fortuna. Mas, ai de mim! A casa nunca lhes pertencera, e a sua fortuna
consistira apenas numa anuidade vitalícia. Tal é a perversão deste mundo! Para junto
da sua mãe, eu teria regressado com todo o gosto, e ficaria muito feliz por
lhe apresentar a minha encantadora Sophia, permanecendo o resto da minha vida
nesta alegra sociedade em Vale of Usk, não tivesse advindo um obstáculo
32
à concretização de tão agradável plano: tal
foi o casamento e partida da sua mãe para uma região distante da Irlanda. Adieu, Laura
A DÉCIMA PRIMEIRA CARTA Laura, em continuação
- Tenho um contato na Escócia - disse-me Sophia, quando saíamos de Londres -, o
qual, estou certa, não hesitaria em receber-me. - Dou instruções ao rapaz para nos
levar até lá? disse eu, mas instantaneamente, refletindo, exclamei: Infelizmente, receio
que seja uma viagem demasiado longa para os cavalos. No entanto, não querendo
agir com base no meu parco conhecimento a respeito da resistência e das capacidades
dos cavalos, consultei o condutor, que partilhava inteiramente da minha opinião
sobre o assunto. Assim sendo, decidimos trocar de cavalos na vila seguinte e seguir o
resto do percurso. Quando chegamos à última estalagem onde era suposto pararmos,
a qual ficava a apenas poucas milhas da casa do parente de Sophia, não querendo
impor-lhe a nossa presença de forma inesperada e irreflectida, enviámos-lhe uma
33
mensagem elegante e bem escrita, expondo a nossa situação de pobreza e melancolia,
e dando a conhecer a nossa intenção de passar alguns meses na sua companhia,
na Escócia. Assim que enviámos esta mensagem, preparámo-nos para a seguir
pessoalmente, e estávamos precisamente a entrar na carruagem para esse efeito
quando a
nossa atenção foi atraída por uma carruagem puxada por quatro cavalos que entrava
no jardim da estalagem. Dela desceu um cavalheiro de idade avançada. Mal os meus
olhos pousaram nele, a minha sensibilidade foi encantadoramente despertada e, ao
olhá-lo uma segunda vez, uma instintiva afinidade sussurrou ao meu coração que
se tratava do meu avô. Convencida de que não podia estar enganada na minha
conjectura, desci imediatamente da carruagem em que acabara de entrar e, seguindo o
venerável
estranho até à sala onde o tinham conduzido, prostrei-me de joelhos a seus pés e
implorei-lhe que me reconhecesse como sua neta. Em sobressalto, e depois de ter
cuidadosamente examinado os traços do meu rosto, fez-me levantar do chão e,
lançando os seus braços de avô em redor do meu pescoço, exclamou: - Reconhecer-te!
Sim,
querida imagem de minha Laurina e da filha de Laurina, doce imagem de minha
Claudia e da mãe de minha Claudia, reconheço-te como sendo filha de uma e neta de
outra.
Enquanto ele me abraçava ternamente, Sophia, espantada pela minha precipitada
partida, entrou na sala à minha
34
procura. Mal ela encontrou o olhar do venerável
senhor, ele exclamou, verdadeiramente admirado: - Outra neta! Sim, sim, bem vejo
que és a filha da rapariga mais velha de minha Laurina; a tua parecença com a bela
Matilda prova-o só por si, - Oh! - replicou Sophia. - Logo que o vi, o instinto da
natureza segredou-me que tínhamos uma qualquer relação de parentesco. Mas, quanto
a avós ou a avôs, não tive a pretensão de determinar. Ele recebeu-a nos seus braços e,
enquanto se encontravam assim abraçados, a porta abriu-se e um belo jovem
entrou. Ao vê-lo, Lorde St Clair sobressaltou-se e, recuando alguns passos, ergueu as
mãos e disse: - Mais um neto! Que inesperada felicidade esta! Descobrir, num
espaço de três minutos tantos dos meus descendentes! Estou certo de que se trata de
Philander, o filho da terceira filha de minha Laurina, a bondosa Bertha; falta
apenas Gustavus, para que se complete a união dos netos de minha Laurina. - E aqui
está ele - disse um elegante jovem, que nesse preciso instante entrava na sala.
- Aqui está o Gustavus que desejava encontrar. Sou o filho de Agatha, a quarta e mais
nova filha da sua Laurina. - Vejo que o é, realmente - replicou Lorde St Clair.
- Mas, digam-me, será que estão nesta casa mais netos meus?
35
- Mais nenhum, senhor. - Então, recompensá-los-ei sem mais demora. Aqui estão
quatro notas de cinquenta
libras. Fiquem com elas e lembrem-se de que cumpri o meu dever de avô. Saiu
imediatamente da sala e em seguida abandonou a estalagem. Adieu, Laura
A DÉCIMA SEGUNDA CARTA Laura, em continuação
Poderá imaginar a nossa surpresa perante o repentino desaparecimento de Lorde St
Clair. - Ignóbil avô! - exclamou Sophia. - Indigno avô!
- disse eu, e instantaneamente, desmaiámos nos braços uma da outra. Quanto tempo
assim permanecemos não sei dizer, mas, quando recuperámos, estávamos sozinhas,
sem Gustavus, Philander ou dinheiro. Enquanto lamentávamos a nossa miserável sorte,
a porta abriu-se e Macdonald surgiu. Era o primo de Sophia. A pressa com que
veio em nosso auxílio, tão pouco tempo após ter recebido o nosso recado, abonou de
tal
forma em seu favor que hesitei em não o considerar, à primeira vista, um
amigo dedicado e solidário. Ai de mini! Ele não merecia
36
esse nome, pois apesar de nos ter dito que estava consumido em preocupação pela
nossa infelicidade, bem
se via que testemunhá-la não arrancava dele um único suspiro, nem o levava a proferir
uma maldição contra as nossas estrelas castigadoras. Ele disse a Sophia que
a sua filha contava que ela regressasse com ele para Macdonald Hall e que, sendo eu
amiga de sua prima, tinha muito gosto em receber-me também. Assim, partimos
para Macdonald Hall, onde fomos acolhidas com grande simpatia por Janetta, filha de
Macdonald e senhora da mansão. Janetta tinha, então, apenas quinze anos; com
uma boa disposição natural, um coração susceptível e uma atitude solidária, Janetta
poderia, fossem estas características devidamente encorajadas, tornar-se um
ornamento para a natureza humana; mas, infelizmente, o seu pai não possuía uma
alma suficientemente elevada para admirar uma tal predisposição e esforçou-se, com
todos os meios ao seu alcance, por impedir que esta se desenvolvesse com o passar
dos anos. Na verdade, ele tinha já extinguido a nobre e natural sensibilidade
do coração dela, levando-a a aceitar casar-se com um jovem que ele próprio
recomendara. Casar-se-iam dentro de poucos meses, e Graham encontrava-se lá em
casa quando
chegámos. Nós rapidamente vimos o seu carácter. Era exactamente o tipo de homem
sobre o qual se esperaria que recaísse a escolha de Macdonald. Disseram que
37
ele era sensato, conhecedor e afável; não tivemos pretensões de julgar tais
pormenores, mas como estávamos convencidas de que ele não tinha alma, de que
nunca
lera
Sorrows of Werther* e de que o seu cabelo não tinha qualquer resquício de
acobreado, ficámos certas de que Janetta não poderia sentir afecto por ele, ou, pelo
menos,
não deveria senti-lo. O simples facto de ele ser a escolha de seu pai não abonava em
seu favor; ainda que ele fosse digno dela em todos os restantes aspectos, esse
facto em si mesmo deveria ser razão suficiente aos olhos de Janetta para que ela o
rejeitasse. Estávamos determinadas a apresentar-lhe todas estas questões devidamente,
e não tínhamos dúvidas de ser bem sucedidas, tratando-se de alguém com uma tão boa
predisposição, cujos erros em toda esta situação tinham derivado apenas da falta
de uma adequada confiança na sua própria opinião, e do necessário desdém face à
opinião do seu pai. Descobrimos nela, efectivamente, tudo o que os nossos melhores
desejos tinham esperado; não nos foi difícil convencê-la de que era impossível que ela
amasse Granam, ou de que era seu dever desobedecer ao seu pai; Janetta pareceu
discordar de nós apenas quando lhe dissemos que devia sentir afeição por alguma
outra pessoa. Durante algum
* A obra The Sorrows ofYoung Werther, de Goethe, foi
publicada em 1774, cerca de dezasseis anos antes de Austen escrever Amor e Amizade.
38
tempo, insistiu em declarar que não conhecia nenhum outro jovem por quem sentisse
o mínimo afecto; mas, assim que lhe explicámos que um tal estado de coisas era
impossível, ela disse que julgava gostar do Capitão M"Kenrie mais do que de qualquer
outro. Esta confissão deixou-nos satisfeitas e, depois de termos enumerado as boas
características de M"Kenrie e de lhe termos garantido que tinha uma violenta
paixão por ele, expressámos o desejo de saber se ele tinha alguma vez, de alguma
forma, declarado o seu afecto por ela. - Para além de nunca o ter declarado, não
tenho razões para imaginar que ele sinta algo por mim - disse Janetta. - Ele adora-a -
replicou Sophia. - Disso não resta dúvida alguma. A afeição tem de ser recíproca.
Ele alguma vez a olhou com admiração... Ou tocou delicadamente a sua mão... Ou
derramou uma lágrima involuntária, tendo saído abruptamente da sala? - Nunca -
retorquiu
a jovem. - Que eu me lembre, sempre saiu da sala quando a sua visita estava
terminada, mas nunca saiu abruptamente ou sem fazer uma vénia. - Certamente, meu
amor
- disse eu -, deve estar enganada... Pois é absolutamente impossível que ele nunca a
tenha deixado evidenciando um estado de confusão, desespero e precipitação.
Reflicta por um momento, Janetta, e certamente ficará convencida de como é absurdo
pensar que ele nunca deixou de fazer a vénia e que sempre se comportou como
qualquer
outra pessoa.
39
Tendo resolvido esta questão satisfatoriamente, dedicámo-nos em seguida a decidir de
que forma deveríamos dar a conhecer a M" Kenrie a opinião favorável
que Janetta tinha a seu respeito. Por fim, decidimos informá-lo através de uma carta
anónima que Sophia elaborou da seguinte forma: Ó feliz amado da bela Janetta;
ó bondoso possuidor do seu coração, estando a sua mão prometida a outra pessoa,
por que se demora a confessar a sua afeição ao bondoso objecto da mesma? Oh! Tenha
em mente que dentro de poucas semanas será posto um fim a toda a lisonjeira
esperança que agora entretém, sendo a infeliz vítima da crueldade de seu pai unida ao
execrável e detestado Graham. Oh! Por que razão se torna cúmplice da vossafutura
infelicidade, atrasando-se a comunicar o plano que sem dúvida há muito possui a
sua imaginação? Uma união secreta asseguraria a felicidade de ambos. O amável
M"Kenrie, cuja modéstia, segundo nos garantiu mais tarde, fora a única razão que o
levara a esconder a violência do seu afecto por Janetta, ao receber este bilhete, voou
nas asas do amor para Macdonald Hall e exprimiu tão poderosamente os seus
sentimentos por ela que, ao fim de mais alguns encontros, eu e Sophia congratulámo-
nos de os ver partir para Gretna Green, local que escolheram,
40
entre todos os outros, para a celebração das suas núpcias,
apesar de ficar a uma considerável distância de Macdonald Hall. Adieu, Laura
A DÉCIMA TERCEIRA CARTA Laura, em continuação
Unham partido havia quase duas horas quando Macdonald e Granam suspeitaram do
sucedido. E não teriam suspeitado de todo, não fosse um pequeno acidente. Sophia,
tendo
um dia aberto uma gaveta particular na biblioteca de Macdonald com uma das suas
próprias chaves, descobriu ser esse o lugar onde ele guardava os seus papéis
importantes
e, entre eles, algumas notas de considerável valor. Ela partilhou comigo essa
descoberta, e, tendo concordado ambas que para um desprezível infeliz como
Macdonald
seria uma lição privá-lo do seu dinheiro, possivelmente ganho de forma desonesta,
decidimos que, da próxima vez que uma de nós passasse por ali, tiraria uma ou mais
notas da gaveta. Tínhamos já várias vezes posto em prática este plano bem
intencionado, mas, infelizmente, no preciso dia em que Janetta fugiu, quando Sophia
removia
majestosamente a quinta nota da gaveta e a colocava na sua bolsa, foi súbita
41
e impertinentemente interrompida no seu acto pela entrada do próprio Macdonald,
numa atitude abrupta e precipitada. Sophia (que, embora dotada de uma natureza
doce, podia, quando as circunstâncias o exigiam, fazer-se valer de toda a dignidade
do seu sexo) assumiu um ar hostil e, franzindo o sobrolho para o destemido
prevaricador, quis saber por que razão estava a sua privacidade a ser invadida daquela
forma insolente.
Macdonald, sem sequer ficar ruborizado e sem tentar desculpar-se do crime de que era
acusado, pôs-se a censurar Sophia por estar ignobilmente a privá-lo do seu
dinheiro. Sophia sentiu-se ferida na sua dignidade. - Infeliz-exclamou ela, apressando-
se a voltar a colocar a nota dentro da gaveta -, como se atreve a acusar-me
de um tal acto, cuja mera ideia me faz corar? O vil infeliz não se deixava convencer e
continuou a repreender a justamente ofendida Sophia numa linguagem tão
desapropriada
que, de tanto provocar a sua doce natureza, induziu-a a vingar-se dele contando-lhe da
fuga de Janetta e do nosso envolvimento na ocorrência. Neste momento da
disputa, eu entrei na biblioteca e, como é de imaginar, fiquei tão ofendida quanto
Sophia com as acusações infundadas do malévolo e desprezível Macdonald. - Vil
patife! - gritei. - Como ousa manchar a reputação imaculada de uma tal excelência? Por
que não suspeita antes da minha inocência?
42
- Fique descansada, minha senhora
- replicou ele. Suspeito, de facto, e é por esse motivo que exijo que saiam ambas desta
casa em menos de meia hora. - Iremos, de boa vontade - respondeu Sophia.
- Há muito que os nossos corações o detestam e foi apenas por amizade à sua filha que
permanecemos tanto tempo debaixo do seu tecto. -A vossa amizade pela minha
filha manifestou-se veementemente ao lançarem-na para os braços de um caça-fortunas
sem escrúpulos - replicou ele. - Sim-exclamei eu -, entre todas as contrariedades,
pelo menos retiramos alguma consolação ao pensar que, através deste acto de amizade
para com Janetta, nos isentámos de qualquer obrigação que tivéssemos para com
o seu pai. -Essa será, certamente, uma grata reflexão para as vossas elevadas mentes -
disse ele. Assim que colocámos nas malas o nosso vestuário e os nossos valores,
abandonámos Macdonald Hall e, depois de termos caminhado cerca de milha e meia,
sentámo-nos na margem de um límpido riacho para refrescar os nossos membros
exaustos.
O local inspirava a meditação. Um bosque de altos ulmeiros abrigava-nos a leste; um
tapete de crescidas urtigas a oeste. Diante de nós corria o riacho cantante e
nas nossas costas estendia-se a estrada. Encontrávamo-nos num estado de espírito
propício à
43
contemplação e na disposição de desfrutar de tão belo lugar. Um silêncio
mútuo que reinava havia algum tempo entre nós foi, finalmente, rompido por uma
exclamação minha: -Que belo quadro! Ai de mim, por que não estão Edward e
Augustus
aqui connosco, para desfrutarem destas maravilhas na nossa companhia? -Ah, minha
adorada Laura! - gritou Sophia. - Tem piedade, não me faças recordar a infeliz situação
do meu marido encarcerado. Ai de mim, o que eu não daria para conhecer o destino
de meu Augustus! Para saber se ainda se encontra em Newgate, ou seja foi enforcado.
Mas jamais conseguirei dominar a minha delicada sensibilidade, de forma a inquirir
sobre o que lhe aconteceu. Oh! Suplico-te que não voltes a pronunciar o seu amado
nome... Afecta-me demasiado... Não consigo suportar ouvi-lo mencionado; fere os
meus sentimentos. - Perdoa-me, minha Sophia, por te ter ofendido, embora sem
intenção
- repliquei, e em seguida, mudando o tema da conversa, incitei-a a admirar a nobre
grandeza dos ulmeiros que nos abrigavam do zéfiro de leste. - Ai de mim, minha
Laura! - devolveu ela. - Evita um tema tão melancólico como este, peço-te. Não voltes a
ferir a minha sensibilidade fazendo observações a propósito daqueles ulmeiros.
Fazem-me lembrar de Augustus. Ele era como estas árvores: alto, majestoso... Possuía
aquela nobre grandeza que admiramos neles.
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Fiquei em silêncio, receando voltar inadvertidamente a
afligi-la com algum outro tema de conversa que a fizesse lembrar de Augustus. - Por
que não falas, minha Laura?-perguntou Sophia, ao fim
de uma breve pausa. - Não suporto este silêncio... Não deves deixar-me entregue às
minhas reflexões, pois estas giram sempre em torno de Augustus. - Que lindo céu!
- disse eu. - Como é delicado o azul-celeste entrecortado por aquelas riscas de branco!
- Oh! Minha Laura-replicou ela, desviando apressadamente os seus olhos, após
um breve olhar na direcção do céu. - Não me aflijas desta forma, chamando a minha
atenção para algo que tão cruelmente me faz recordar o paletó azul de cetim às
riscas brancas! Tem piedade da tua infeliz amiga e evita um tema tão perturbante. Que
podia eu fazer? Os sentimentos de Sophia eram, naquele altura, tão refinados,
e a afeição pelo seu marido era tão intensa, que eu não podia abordar assunto algum,
receando que este pudesse, por alguma inesperada razão, despertar toda a sua
sensibilidade, dirigindo os seus pensamentos para Augustus. No entanto, permanecer
em silêncio seria cruel; ela implorara-me que falasse. Fui libertada deste dilema
por um acidente verdadeiramente oportuno; uma carruagem de cavalheiro que seguia
pela estrada atrás de nós virou-se. Foi uma feliz ocorrência, pois distraiu a atenção
de Sophia, afastando-a das melancólicas
45
reflexões a que ela se vinha entregando. Instantaneamente nos pusemos de pé e
corremos para socorrer aqueles que, momentos
antes, se encontravam numa posição elevada, numa carruagem alta, como dita a moda,
mas que se encontravam agora prostrados no chão, estendidos no pó. - Que amplo
tema de reflexão sobre os prazeres deste mundo não dariam esta carruagem, bem
como a vida do cardeal
Wolsey*4, a uma mente pensadora! - disse eu a Sophia, enquanto
nos dirigíamos apressadamente para o campo de acção. Ela não teve tempo de me
responder, pois todos os nossos pensamentos estavam agora concentrados no horrível
espectáculo que tínhamos à nossa frente. Dois cavalheiros elegantemente vestidos,
mas espojados no seu sangue, foi o que primeiro nos saltou à vista. Aproximámo-nos.
Eram Edward e Augustus. Sim, minha querida Marianne, eram os nossos maridos.
Sophia soltou um grito e caiu desmaiada no chão; eu gritei e fiquei imediatamente
enlouquecida...
Assim permanecemos, ambas privadas dos nossos sentidos, por alguns minutos e,
recuperando-os, voltámos a perdê-los. Durante uma hora e um quarto continuámos
assim,
nesta
*4 Thomas Wolsey (c. 1475-1530) foi um cardeal e arcebispo extraordinariamente
poderoso no reinado de Henrique VIII, até perder as boas graças do rei. A sua
vida foi registada na notável biografia The Life and Death of Cardinal Wolsey, da
autoria de George Cavendish (c. 1499-c. 1561)
46
triste situação: Sophia a desmaiar uma vez após outra e eu a enlouquecer o mesmo
número de vezes. Por fim, um gemido do infeliz Edward (o único que conservava
ainda um sopro de vida) devolveu-nos
a consciência. Se antes tivéssemos imaginado que algum deles vivia ainda, teríamos
poupado as manifestações da nossa dor, mas, uma vez que ao contemplá-los tínhamos
julgado ambos mortos, sabíamos que nada havia a fazer. Assim, mal ouvimos o
queixume do meu Edward, suspendemos as nossas lamentações, apressámo-nos a
correr para
junto do adorado jovem e, ajoelhando-nos uma de cada um dos seus lados,
implorámos-lhe que não morresse. - Laura - disse ele, fixando-me com os seus olhos
lânguidos.
- Receio bem que a carruagem se tenha virado. Fiquei felicíssima ao ver que estava
lúcido. - Oh! Edward, conta-me - disse eu -, conta-me, im- ploro-te, antes de
morreres, que foi de ti desde aquele infeliz dia em que Augustus foi preso e nos
separámos. - Contarei - disse ele e, de seguida, soltando um profundo suspiro,
expirou.
Sophia desmaiou imediatamente; a minha dor era mais audível. A minha voz
fraquejou, o meu olhar perdeu-se no vazio, o meu rosto ficou pálido como a morte e
os meus
sentidos ficaram consideravelmente aturdidos. - Não me falem de carruagens - disse
eu, balbuciando histérica e incoerentemente. - Dêem-me um violino...
47
Tocarei para ele, apaziguando-o nas suas horas
de melancolia. Acautelem-se, delicadas ninfas, com os raios de Cupido, fujam das
flechas de Júpiter... Olhem os bosques de
abetos... Vejo uma perna de carneiro... Disseram-me que Edward não estava morto;
mas iludiram-me... Tomaram-no por um pepino... - E assim prossegui, gritando
enlouquecida
devido à morte do meu Edward. Delirei loucamente durante duas horas e assim
continua- ria, pois não me sentia nem um pouco cansada, não me tivesse Sophia, que
acabara
de despertar, chamado a atenção para o facto de que a noite se aproximava e a
humidade começava a fazer-se sentir. - E para onde havemos de ir-questionei - para
nos abrigarmos? - Para aquela pequena casa branca - replicou ela, apontando uma
habitação simples que se erguia no meio do bosque de ulmeiros e na qual eu não
reparara
ainda. Concordei, e imediatamente nos encaminhámos para lá. Batemos à porta, que
foi aberta por uma mulher velha. Quando lhe pedimos que nos alojasse durante uma
noite, informou-nos de que a casa era pequena, dizendo que tinha apenas dois
quartos, mas que, ainda assim, seríamos bem-vindas para ficar num deles. Ficámos
contentes
e seguimos a boa mulher para o interior da casa, onde logo nos sentimos animadas ao
ver uma acolhedora lareira. A mulher era viúva e tinha uma filha, de dezassete
anos apenas... uma das
48
melhores idades; mas - ai de mim! - ela era muito sim- ples e chamava-se Bridget...
Assim sendo, não havia nada a esperar dela; não podíamos
esperar que ela tivesse ideias elevadas, sentimentos delicados ou uma sensibilidade
refinada. Não passava de uma jovem de bom feitio, educada e obediente; assim,
nem sequer podíamos não gostar dela; era apenas um objecto de desprezo. Adieu,
Laura
A DÉCIMA QUARTA CARTA Laura, em continuação
Minha amável amiga, arme-se de toda
a filosofia que domina; reúna toda a coragem que possui, pois - oh! nas páginas que se
seguem, a sua sensibilidade será severamente posta à prova. Ah! Que tinham
sido as desventuras que eu antes experimentara comparadas com aquela que vou
agora descrever-lhe... A morte do meu pai, da minha mãe e do meu marido, apesar de
quase insuportáveis para a minha sensível natureza, foram ninharias ao lado da aflição
que em seguida lhe contarei. Na manhã que se seguiu à nossa chegada à pequena
casa, Sophia queixou-se de uma violenta dor nos seus delicados membros,
acompanhada de uma desagradável dor de cabeça. Atribuiu este mal-estar aos seus
sucessivos

49
desmaios ao ar livre, dado o orvalho que se fazia sentir na noite anterior. Receei que
fosse exactamente esse o motivo; assim se explicaria o facto de eu ter
escapado a essa mesma indisposição, pois talvez o esforço físico a que tinha estado
sujeita durante os meus repetidos ataques de histeria tivessem circulado com
eficácia e aquecido o meu sangue, protegendo-me contra as frias humidades da noite,
enquanto Sophia, prostrada no chão e totalmente inactiva, teria estado exposta
a toda a severidade das mesmas. Fiquei seriamente alarmada pela sua doença, a qual,
ainda que lhe possa parecer insignificante a si, uma certa sensibilidade instintiva
me segredava que acabaria por se revelar fatal para ela. Infelizmente, os meus receios
eram bem justificados; Sophia piorou gradualmente e, a cada dia que passava,
mais eu me alarmava com o seu estado. Por fim, Sophia teve de ficar confinada à cama
que nos fora cedida pela nossa boa senhoria. A doença de Sophia revelou-se
uma tuberculose galopante, que em poucos dias a venceu. Entre todas as minhas
lamentações pela sua sorte (e poderá imaginar como foram violentas), pude, no
entanto,
retirar alguma consolação do facto de lhe ter prestado todos os cuidados na doença.
Chorara à sua cabeceira todos os dias... Banhara o seu doce rosto com as minhas
lágrimas, e segurara continuamente as suas mãos brancas entre as minhas. -Minha
adorada Laura-disse-me ela, algumas horas
50
antes de morrer -, que o meu triste
fim te sirva de exemplo, e evita a imprudente conduta que o ocasionou... Acautela-te
contra os desmaios... Apesar de, na altura, parecerem retemperadores e agradáveis,
se repetidos com muita frequência e em épocas inadequadas, acredita-me, revelar-se-
ão destrutivos para a nossa constituição... Isto aprenderás com o meu destino...
Morro como mártir da minha dor pela perda de Augustus... Um desmaio fatal custou-
me a minha vida. Toma cuidado com os desmaios, querida Laura... Um ataque de
histeria
não é, de modo algum, tão pernicioso; é um exercício para o corpo e, quando não
demasiado violento, atrevo-me a dizer, pode até trazer consequências benéficas para
a saúde. Delira furiosamente quantas vezes quiseres, mas não desmaies. Foram estas as
últimas palavras que me dirigiu. Na hora da sua morte, este foi o seu conselho
para Laura, que sempre o seguiu fielmente. Depois de ter acompanhado a minha
chorada amiga à sua precoce sepultura, abandonei imediatamente (embora a altas
horas
da noite) a detestável aldeia em que se dera a sua morte, e perto da qual tinham
expirado o meu marido e Augustus. Não percorrera ainda muitos metros quando fui
alcançada por uma carruagem, para a qual logo entrei, determinada a seguir nela até
Edimburgo, onde esperava encontrar algum amigo bom e solidário que me recebesse
e me consolasse na minha aflição. *5; Quando entrei no coche, estava tão escuro que
não consegui distinguir quantos eram os meus companheiros de viagem; podia apenas
perceber que eram muitos. Sem, no entanto, lhes prestar atenção, mergulhei nas
minhas tristes reflexões. Um silêncio geral prevalecia, silêncio esse que nada
interrompia,
a não ser o ruidoso e constante ressonar de um dos viajantes. " Que vilão analfabeto
deve ser!" , pensei para comigo. " Deve ter uma total falta de delicadeza e
refinamento, para se atrever a chocar os nossos sentidos com um ruído de tal forma
brutal! Estou certa de que deverá ser capaz de toda a espécie de má acção! Não
há crime demasiado horrendo para um tal carácter!" Assim racionava eu, e essas eram
também, sem dúvida, as reflexões dos meus restantes companheiros de viagem.
Finalmente, a madrugada permitiu-me contemplar o patife sem princípios que tão
violentamente importunara os meus sentidos. Tratava-se de Sir Edward, o pai do meu
falecido marido. Sentada o seu lado estava Augusta e, no mesmo assento onde eu me
encontrava, estavam a sua mãe, minha cara Marianne, e Lady Dorothea. Imagine a
minha surpresa ao encontrar-me sentada entre os meus velhos conhecidos. Sendo
enorme a minha surpresa, esta viu-se ainda aumentada quando, ao olhar para fora da
janela, vi o marido de Philippa, com Philippa ao seu lado, na cabina, e quando, ao
olhar para trás, encontrei Philander e Gustavus no basket.
52
- Oh, valha-me Deus! - exclamei. - Será possível
que me encontre inesperadamente rodeada das minhas relações mais próximas? - Estas
palavras despertaram os outros, e todos os
olhares se dirigiram para o canto onde eu me encontrava sentada. - Oh, minha Isabel -
prossegui, atravessando-me sobre o colo de Lady Dorothea para me lançar nos
braços da minha amiga -, receba uma vez mais junto ao seu peito a sua desafortunada
Laura. Ai de mim! Desde que nos separámos em Vale of Usk, eu estava feliz por
me unir ao melhor dos Edwards; tinha então um pai e uma mãe, e não conhecera
ainda contrariedades. Mas agora, privada de todos os amigos, à excepção de si... -O
quê?! - interrompeu-me Augusta. - O meu irmão morreu, então? Conte-nos, suplico-
lhe, o que lhe aconteceu! - Sim, ninfa fria e insensível-retorqui -, esse infeliz
amante, seu irmão, perdeu a vida, e pode agora rejubilar por ser a única herdeira da
fortuna de Sir Edward. Embora sempre a tivesse desprezado, desde o dia em que
ouvira a sua conversa com o meu Edward, acedi, educadamente, às suas súplicas, bem
como às de Sir Edward, e informei-os de toda a triste história. Ficaram tremendamente
chocados... Até o endurecido coração de Sir Edward e o insensível coração de Augusta
foram tocados pela trágica narrativa. A pedido da sua mãe, relatei-lhes todas
as outras calamidades que se tinham abatido sobre mim desde que nos tínhamos
separado. A prisão de Augustus e a ausência
53
de Edward, a nossa chegada à Escócia,
o nosso inesperado encontro com o meu avô e os meus primos, a nossa visita a
Macdonald Hall, a singular ajuda que tínhamos fornecido a Janetta, a ingratidão do
pai desta, a sua atitude desumana, as suas inexplicáveis suspeitas e a forma Bárbara
como nos obrigara a partir, as nossas lamentações a respeito da perda de Edward
e de Augustus e, finalmente, a melancólica morte da minha adorada companheira. A
piedade e o espanto tomaram conta do semblante de sua mãe durante toda a minha
narração,
mas, lamento dizê-lo, para eterna censura da sua sensibilidade, o último predominou
significativamente. Além disso, apesar da minha conduta obviamente irrepreensível
no decurso de todas estas aflições e aventuras, ela declarou ter achado o meu
comportamento censurável em muitas das situações em que me encontrei. Estando eu
consciente
de que sempre agira de um modo que reflectia a honra e o refinamento dos meus
sentimentos, pouca atenção prestei ao que ela dizia e apressei-a a satisfazer a minha
curiosidade, explicando-me como ali tinha ido parar, em vez de ferir a minha
reputação imaculada com injustificáveis censuras. Assim que ela acedeu ao meu
pedido
e me explicou detalhadamente tudo o que lhe sucedera desde a nossa separação (e,
caso não os conheça já, a sua mãe poderá contar-lhe esses acontecimentos em
pormenor),
solicitei a Augusta que me contasse, por sua vez, o que lhe sucedera a ela, a Sir Edward
e a Lady Dorothea.
54
Augusta contou-me que, tendo um gosto particular
pelas coisas belas da natureza, a sua curiosidade fora despertada pela viagem de Gilpin
às Terras Altas
e sentira vontade de contemplar as encantadoras vistas5
que se encontram nessa parte do mundo. Assim, convencera o seu pai a levá-la numa
viagem à Escócia e persuadira Lady Dorothea a acompanhá-los. Contou-me que tinham
chegado a Edimburgo alguns dias antes e, desde então, tinham feito excursões diárias
aos campos em redor na diligência em que agora se encontravam, estando nesse
preciso momento a regressar de uma delas. As minhas perguntas seguintes diziam
respeito a Philippa e ao seu marido, e fiquei a saber que este último, tendo gasto
toda a fortuna dela, recorrera por uma questão de subsistência ao seu maior talento,
ou seja, a condução de carruagens. Fiquei ainda a saber que, tendo vendido
tudo o que possuíam à excepção do seu coche, ele tinha-o convertido numa diligência.
Para se afastar das pessoas das suas relações, deslocara-se para Edimburgo,
de onde diariamente partia para Stirling. Soube também que Philippa, conservando o
seu afecto por aquele marido ingrato, o seguira até à Escócia e geralmente o
acompanhava nas suas pequenas excursões a Stirling.
*5 A obra Observations on several parts ofGreat fintam, particularly the High-lands of
Scotland, relative chiefly
to picturesque beauty, made in the year 1776, de William Gilpin, teve a sua primeira
edição em 1789, um ano antes de Amor e Amizade ser escrito.
55
- Foi apenas para deixar algum dinheiro nos bolsos
deles - continuou Augusta - que meu pai tem viajado sempre na sua diligência para
contemplar as maravilhas do campo, desde
que chegámos à Escócia, pois ser-nos-ia certamente muito mais agradável visitar as
Terras Altas numa post-chaise do que viajar simplesmente de Edimburgo para Stirling
e de Stirling para Edimburgo todos os dias numa diligência desconfortável e cheia de
gente. Eu não podia concordar mais com ela a este respeito e censurei secretamente
Sir Edward por assim sacrificar o prazer de sua filha em favor de uma velhota ridícula
cuja loucura ao casar com um homem tão jovem merecia castigo. No entanto,
o comportamento de Sir Edward estava em absoluta concordância com o seu carácter
em geral; pois que se poderia esperar de um homem que não possuía o mais pequeno
átomo de sensibilidade, que mal conhecia o significado da palavra solidariedade e que
até ressonava... ? Adieu, Laura
A DÉCIMA QUINTA CARTA Laura, em continuação
Quando chegámos à cidade onde iríamos tomar o pequeno-almoço, eu estava
determinada a falar com Philander e
56
Gustavus e, com esse propósito, assim que saímos da
carruagem, dirigi-me ao basket e inquiri docemente a respeito da saúde de ambos,
mostrando-me solidária com o desconforto da sua situação. A princípio, pareceram
bastante confusos com a minha presença ali, receando, sem dúvida, que eu lhes
pedisse contas relativamente ao dinheiro que o meu avô me dera e do qual eles
injustamente
me tinham privado, mas, ao verem que eu não mencionava o assunto, convidaram-me
a entrar no basket, para conversarmos mais à vontade. Concordei em entrar e,
enquanto
os nossos companheiros de viagem devoravam chá verde e torradas, nós
banqueteámo-nos de uma forma mais sentimental e refinada, com uma conversa
confidencial. Informei-os
de tudo o que me acontecera do decurso da minha vida e, a meu pedido, eles
contaram-me todos os incidentes das suas. - Nós somos filhos, como já sabe, das duas
filhas
mais novas que Lorde St Clair teve com Laurina, uma bailarina italiana. As nossas mães
não podiam afirmar ao certo quem eram os nossos pais, mas consta que Philander
é filho de um tal de Philip Jones, um pedreiro, e que o meu pai era um tal de Gregory
Staves, um fabricante de espartilhos oriundo de Edimburgo. No entanto, isto
não traz consequências graves, pois, como as nossas mães nunca casaram com eles,
não houve desonra para o nosso sangue, que é de uma estirpe pura e antiga. " -
Bertha, a mãe de Philander, e Agatha, minha mãe,
57
sempre viveram juntas. Nenhuma delas era muito rica; as suas fortunas somadas
perfaziam, inicialmente, um total
de nove mil libras, mas como viviam deste dinheiro, quando nós completámos quinze
anos restavam apenas novecentas. Estas novecentas libras estavam guardadas numa
gaveta de uma escrivaninha que se encontrava na nossa sala comum, dado que era
conveniente ter o dinheiro à mão. Se foi devido a estas circunstâncias, ao facto
de ser de fácil alcance, ou se foi devido à nossa vontade de nos tornarmos
independentes, ou devido a um excesso de sensibilidade (característica que sempre
nos
distinguiu), não posso precisar. O certo é que, quando atingimos os nossos quinze
anos de idade, pegámos nas novecentas libras e fugimos. Tendo obtido este prêmio,
estávamos determinados a geri-lo com parcimónia e a não o gastar de forma estouvada
ou extravagante. Assim, dividimos a referida quantia em nove parcelas, uma das
quais destinámos aos bens essenciais; a segunda destinámos à bebida, a terceira à
manutenção da casa, a quarta ao aluguer de carruagens, a quinta reservámos para
cavalos, a sexta para criados, a sétima para a paródia, a oitava para roupa e a nona para
fivelas de prata. " - Tendo assim assegurado o pagamento das nossas despesas
ao longo de dois meses (pois tencionávamos fazer com que as novecentas libras
durassem todo esse tempo), partimos apressadamente para Londres e tivemos a boa
sorte
de as gastar em sete semanas e um dia, o que redundou
58
em menos seis dias do que o esperado. Assim que nos desembaraçámos alegremente
do peso de tanto dinheiro,
começámos a considerar a hipótese de voltar para junto das nossas mães. Porém,
tendo acidentalmente ouvido dizer que ambas tinham morrido à fome, desistimos
desta
intenção e decidimos juntar-nos a uma companhia de actores itinerante, uma vez que
sempre tivemos queda para o palco. Assim, oferecemos os nossos serviços a uma
delas e fomos aceites. A nossa companhia era, na verdade, muito pequena, uma vez
que consistia apenas no director, a mulher dele e nós mesmos. Mas, deste modo,
havia menos gente a quem pagar, e o único inconveniente era a escassez de peças que
podíamos representar, tendo em conta a falta de pessoas para encarnar as
personagens.
" - Mas não nos preocupamos com pormenores. Um dos nossos desempenhos mais
admirados foi Macbeth, na qual nos mostrámos verdadeiramente geniais. O director
representou
ele próprio o papel de Banquo, e a mulher dele representou Lady Macbeth. Eu fiz o
papel das Três Bruxas e Philander encarregou-se de tudo o resto. Para ser sincero,
esta peça não foi apenas a melhor, mas a única peça que alguma vez levámos a palco; e
depois de a termos representado em toda a Inglaterra e no País de Gales, viemos
para a Escócia, para a exibir no resto da Grã-Bretanha. Acabámos por vir para esta vila
para onde veio também, e onde encontrou o avô.
59
" - Encontrávamo-nos no pátio da estalagem
quando a carruagem dele entrou e, tendo compreendido pelas armas a quem
pertencia, e sabendo que Lorde St Clair era nosso avô, concordámos em
fazer os possíveis para ganhar alguma coisa dele revelando o nosso parentesco. Sabe
bem como tudo correu na perfeição. Tendo obtido as duzentas libras, abandonámos
imediatamente a vila, deixando o director e a mulher a representarem Macbeth
sozinhos, e tomámos a estrada para Stirling, onde gastámos a nossa pequena fortuna
em
grande aparato. Estamos agora de regresso a Edimburgo, para tentarmos conquistar
um lugar no mundo do teatro. E esta, minha querida prima, é a nossa história.
Agradeci
ao simpático jovem a sua interessante narração e, depois de ter expressado os meus
desejos de bem-estar e felicidades, deixei-os na sua pequena habitação e regressei
para junto dos meus amigos, que me aguardavam impacientemente. As minhas
aventuras aproximam-se agora do fim, minha querida Marianne; pelo menos por
agora. Quando
chegámos a Edimburgo, Sir Edward disse-me que, sendo eu a viúva de seu filho,
desejava que eu aceitasse da sua parte o valor de quatrocentas libras por ano. Aceitei
educadamente, mas não pude deixar de observar que o antipático baronete me fazia
aquela oferta mais por eu ser a viúva de Edward do que por ser a encantadora e
requintada Laura.
60
Escolhi para residir uma aldeia romântica nas Terras Altas da Escócia, onde desde
então tenho permanecido e onde posso, sem ser interrompida
por visitas inoportunas, entregar-me a uma solidão melancólica, lamentando
incessantemente as mortes do meu pai, da minha mãe, do meu marido e da minha
amiga. Augusta
uniu-se há vários anos a Granam, de entre todos os homens aquele que para ela era
mais adequado; conheceram-se aquando da estada dela na Escócia. Ao mesmo tempo,
Sir Edward, na esperança de conseguir um herdeiro para o seu título e para a sua
propriedade, casou com Lady Dorothea. Os seus desejos foram atendidos. Philander
e Gustavus, depois de terem ganho uma reputação no meio do teatro de Edimburgo,
mudaram-se para Covent Garden, onde ainda actuam sob os nomes artísticos de Lewis
e Quick. Philippa há muito que partiu; o seu marido, todavia, continua a conduzir a
diligência entre Edimburgo e Stirling. Adieu, minha querida Marianne. Laura

As Três Irmãs
Para Edward Austen1 Esq., o romance inacabado que se segue é-lhe respeitosamente
dedicado pela sua humilde serva, a autora Edward Austen (1767-18
52
) era o irmão mais velho de Jane Austen.
Da Menina Stanhope para a Sra. **
Minha querida Fanny, Não há no mundo criatura mais feliz do que eu, pois recebi um
pedido
de casamento por parte do Sr. Watts. É o primeiro pedido de casamento que me fazem
e nem sei como lhe dar o devido valor. Como triunfarei sobre as Duttons! Não
tenciono
aceitar, ou pelo menos assim o creio, mas, como não tenho a certeza absoluta, dei-lhe
uma resposta dúbia e deixei-o. E agora, minha querida Fanny, quero o teu conselho,
para saber se hei-de aceitar esta proposta ou não mas, para que fiques em posição de
avaliar os seus méritos e toda a situação, irei relatar-tos. Ele é um homem
já bastante velho, com trinta e dois anos, tão feio que nem suporto olhar para ele. É
extremamente desagradável e odeio-o mais do que a qualquer outra pessoa no
mundo. Tem uma vasta fortuna e fará de mim sua herdeira; mas, por outro lado, é
extremamente saudável. Em suma, não sei o que hei-de fazer. Ele praticamente
confessou
que, se eu o rejeitar, pedirá em casamento Sophia e, se ela o rejeitar, pedirá
Georgiana, e eu não suportaria que uma delas casasse antes de mim. Se o aceitar,
sei que serei infeliz para o resto da minha vida, pois ele tem mau gênio e é rabugento,
extremamente ciumento e tão avarento que deve ser impossível viver com ele.
Disse-me que ia falar no assunto à Mamã, mas insisti para que não o fizesse, pois
64
era bem provável que ela me fizesse casar com ele, querendo ou não; no entanto,
a esta altura, ele já deve ter falado com ela, pois nunca age como lhe pedem. Acho que
vou aceitá-lo. Será um tremendo triunfo casar antes de Sophy, de Georgiana
e das Duttons; e ele prometeu comprar uma nova carruagem para a ocasião, embora já
tenhamos discutido a respeito da cor, pois eu fazia questão de que fosse azul
e sarapintada de prata, e ele declarou que seria de um horrível castanho-chocolate; e,
para me provocar ainda mais, disse que seria tão baixa como a sua antiga
carruagem. Não aceitarei casar com ele, está decidido. Ele disse que voltaria amanhã,
para saber a minha resposta definitiva, por isso acho que é melhor agarrá-lo
enquanto é tempo. Sei bem que as Duttons me invejarão e que poderei fazer de
chaperon para Sophy e Georgiana em todos os bailes do Inverno. Mas, afinal, isso
também
não servirá de nada, já que é bem provável que ele não me deixe ir, pois sei que
detesta dançar e, quando detesta uma coisa, não se importa com os gostos das outras
pessoas. Além disso, ele fala muito a respeito de as mulheres ficarem em casa e outras
coisas do gênero. Estou certa de que não o aceitarei; recusá-lo-ia de uma
vez se tivesse a certeza de que nenhuma das minhas irmãs o aceitaria e de que, nesse
caso, ele não procuraria as Duttons. Não posso correr um tal risco, por isso,
se ele prometer encomendar a carruagem como eu gostava,
65
casarei com ele; se não, bem pode passear-se nela sozinho. Espero que te agrade a
minha determinação;
não consigo pensar em algo melhor. Tua muito dedicada, Mary
Stanhope Da mesma para a mesma
Querida Fanny, Tinha acabado de selar a minha última carta para ti quando
a minha mãe surgiu e disse que queria falar comigo a respeito de um assunto muito
particular. - Ah! Já sei a que se refere - disse eu. - Aquele velho tonto do Sr.
Watts já lhe contou tudo, apesar de lhe ter pedido que não o fizesse. Mas não me vai
obrigar a aceitá-lo se eu não gostar da ideia. - Não te obrigarei, filha, mas
quero saber qual é a tua resolução relativamente às suas propostas, e tenciono insistir
para que te decidas, de uma forma ou de outra, pois se não o aceitares,
talvez Sophy aceite. - com efeito - repliquei apressadamente. - Sophy não precisa de se
preocupar, pois estou certa de que casarei com ele eu própria. - Se é essa
a tua decisão - disse a minha mãe -, por que haverias de recear que eu forçasse as tuas
inclinações?
66
- Ora, porque ainda não decidi se quero ou não casar com
ele. - És uma rapariga muito estranha, Mary. Aquilo que dizes num instante, desdizes
no instante seguinte. Diz-me, de uma vez por todas, se pensas casar com o Sr.
Watts ou não! - Mamã, como posso dizer-lhe algo que eu própria ignoro? - Então,
desejo que o descubras, e depressa, pois o Sr. Watts diz que não quer ser mantido
na dúvida. - Isso depende de mim. -Não, não depende, pois se não lhe deres a tua
resposta final até amanhã, quando ele vier tomar chá connosco, ele tenciona declarar-
se
a Sophy. - Nesse caso, direi a toda a gente que ele se comportou muito mal em relação
a mim. - E de que adiantará isso? O Sr. Watts é maltratado por toda a gente
há demasiado tempo para se importar com isso agora. - Quem me dera ter pai ou um
irmão, pois lutariam com ele. - Seria engraçado se o fizessem, pois o Sr. Watts
fugiria primeiro. Bem, sendo assim, tens de te decidir a aceitar ou a rejeitar o seu
pedido até amanhã ao fim da tarde. - Mas, se eu não o quiser, porque é que
ele tem de pedir a mão às minhas irmãs?
67
- Ora essa! Porque ele deseja unir-se à nossa família, e porque elas são tão bonitas
como tu. - Mamã, mas, se ele a pedir
em casamento, será que Sophy o aceitará? - Muito provavelmente. Por que razão não
havia de aceitar? Todavia, se ela não o fizer, então Georgiana terá de casar com
ele, já que estou determinada a não deixar escapar esta oportunidade de conseguir um
casamento tão vantajoso para uma das minhas filhas. Posto isto, aproveita bem
o tempo; deixo-te, para resolveres o assunto sozinha. - E, assim dizendo, saiu. A única
ideia que me ocorre, querida Fanny, é perguntar a Sophy e a Georgiana se
o aceitarão, caso ele as peça em casamento, e, se me responderem que não, estou
resolvida a rejeitá-lo também, pois odeio-o mais do que possas imaginar. No que
se refere às Duttons, se ele casar com uma delas, terei sempre o triunfo de tê-lo
recusado primeiro. Assim, adieu, minha querida amiga. Da tua sempre, M.S.
68
Menina Georgiana Stanhope para Menina **
Quarta-feira Minha querida Anne, Sophy e eu temos vindo a pregar uma pequena
partida à nossa irmã mais velha, com a qual não estamos
ainda totalmente reconciliadas, e as circunstâncias foram tais que se alguma coisa o
puder desculpar, assim terá de ser. O nosso vizinho, Sr. Watts, fez um pedido
de casamento a Mary, pedido esse que ela não sabia como receber, pois apesar de
sentir um particular desagrado em relação a ele (e não é a única a senti-lo), ela
preferiria ainda assim casar com ele a arriscar que ele me fizesse o pedido a mim ou a
Sophy, que é o que ele disse que faria caso ela o recusasse. Bem sabes que
a pobre rapariga considera que nós casarmos antes dela seria a pior desgraça que lhe
poderia acontecer e, para a evitar, estaria disposta a garantir para si uma
vida de eterna infelicidade, casando-se com o Sr. Watts. Há uma hora atrás, Mary veio
ter connosco para sondar as nossas inclinações relativamente ao assunto, de
forma a decidir o que fazer. Um pouco antes de ela vir, a minha mãe fizera-nos saber
que estava decidida a fazer com que ele encontrasse uma mulher na nossa família.
- Assim - disse ela -, se Mary não aceitar casar com ele, Sophy terá de o fazer, e se
Sophy não o fizer, então
69
Georgianaará. Pobre Georgiana! Nenhuma de nós tentou
alterar a resolução da minha mãe, a qual, lamento dizê-lo, é geralmente mantida de
forma rígida, apesar de não costumar ser formada de modo muito racional. Logo
que ela saiu, contudo, quebrei o silêncio para assegurar a Sophy que, se Mary
recusasse o Sr. Watts, eu não esperaria que ela sacrificasse a sua felicidade, tornando-se
mulher dele, num gesto de generosidade para comigo, coisa que receio que o seu bom
coração e a sua afeição de irmã poderiam induzi-la a fazer. - Vamos esperar -
replicou ela - que Mary não o recuse. No entanto, como posso eu desejar que a minha
irmã aceite um homem que não a fará feliz? - Ele não pode, é verdade, mas a sua
fortuna, o seu nome, a sua casa e a sua carruagem podem, e não tenho dúvidas de que
Mary irá casar com ele; na verdade, por que não havia de casar? Ele tem apenas
trinta e dois anos, uma idade muito decente para um homem se casar; é bastante feio,
efectivamente, mas o que é a beleza num homem? Se tiver uma figura elegante
e um rosto com um ar sensato, é suficiente. - Isso é tudo verdade, Georgiana, mas
infelizmente a figura do Sr. Watts é extremamente vulgar e a sua fisionomia é bastante
carregada. - E, no que se refere ao seu temperamento, tem sido considerado difícil,
mas as pessoas também podem tê-lo
70
avaliado mal. Há uma franqueza na maneira
de ser dele que fica bem a um homem. Dizem que é avarento; chamemos-lhe
prudente. Dizem que é desconfiado; isso deriva de um bom coração sempre
desculpável na juventude
e, resumindo, não vejo por que razão ele não daria um bom marido, ou por que
motivo Mary não haveria de ser muito feliz com ele. Sophy riu. - No entanto -
prossegui
-, quer Mary o aceite ou não, estou determinada. A minha decisão está tomada. Jamais
me casaria com o Sr. Watts, nem que a alternativa a isso fosse andar a pedir
esmola. Deixa tanto a desejar em todos os aspectos! Hediondo, e sem uma boa
qualidade que compense essa característica. A sua fortuna é, na verdade, apelativa.
Mas também não é assim tão grande! Três mil por ano. O que é isso? Apenas seis vezes
mais do que o rendimento de minha mãe. Nada que me deixe tentada. - Mas será
uma nobre fortuna para Mary - disse Sophy, rindo de novo. - Para Mary! Sim, com
efeito, ficarei contente de a ver com uma tal fartura. Assim continuei, divertindo
imensamente a minha irmã, até que Mary entrou no quarto em grande agitação.
Sentou-se. Arranjámos-lhe espaço junto à lareira. Parecia não saber como começar e,
por
fim, de uma forma algo confusa, disse: - Diz-me, Sophy, tencionas casar-te?
71
- Casar-me! De modo nenhum. Mas por que perguntas? Sabes de alguém que queira
pedir
a minha mão? -Eu... não... Como poderia saber? Mas posso fazer-te uma pergunta
comum? - Não demasiado comum, Mary, certamente - respondi-lhe. Ela fez uma pausa
e,
após alguns instantes de silêncio, continuou: - Gostarias de casar com o Sr. Watts,
Sophy? Pisquei o olho a Sophy e respondi por ela. - Quem não ficaria contente
de casar com um homem que ganha três mil por ano? - Isso é bem verdade - replicou
ela. - Realmente verdade. Então, casarias com ele, caso ele te pedisse, Georgiana,
e também tu, Sophy? Sophy não gostava da ideia de mentir e enganar a nossa irmã;
evitou a primeira situação e salvou metade da sua consciência criando um equívoco.
- Faria aquilo que Georgiana fizesse. - Muito bem - disse Mary, com uma expressão
triunfante. - O Sr. Watts pediu-me em casamento. Mostrámo-nos, claro, muito
surpreendidas.
- Oh! Não aceites - disse eu -, e talvez assim ele me queira a mim. Resumindo, o meu
esquema resultou, e Mary está decidida a casar com ele para evitar a nossa felicidade,
quando não seria capaz de fazer o mesmo para a garantir. Todavia,
72
afinal, o meu coração não consegue absolver-me e Sophy mostra-se ainda mais
escrupulosa. Tranquiliza
as nossa mentes, minha querida Anne, escrevendo-nos e dizendo-nos que aprovas a
nossa conduta. Pensa bem sobre o assunto. Mary sentir-se-á verdadeiramente satisfeita
por ser uma mulher casada, e por poder ser nossa chapemn, que é o que certamente
fará, pois considero-me na obrigação de contribuir tanto quanto possível para a
sua felicidade, numa situação que a levei a escolher. Provavelmente terão uma nova
carruagem, e ela sentir-se-á no paraíso por isso, e se conseguirmos convencer
o Sr. Watts a preparar o seuphaeton ela ficará realmente contente. Para mim ou para
Sophy, no entanto, estas coisas não serviriam de consolação pela infelicidade
doméstica. Tem tudo isto em mente e não nos condenes. Sexta-feira Na noite passada,
conforme marcado, o Sr. Watts veio tomar chá connosco. Assim que a sua carruagem
parou frente à nossa porta, Mary foi até à janela. - Consegues acreditar, Sophy - disse
ela - que o velho palerma quer a sua nova carruagem exactamente da cor da
antiga e igualmente baixa! Mas não será assim; eu levarei a minha ideia por diante. E se
ele não deixar que seja tão alta como a das Duttons, e azul sarapintada
de
73
prata, não caso com ele. Sim, na verdade, casarei. Aí vem ele. Sei que será mal-
educado; sei que estará maldisposto e que não me dirá uma única frase civilizada,
nem se portará como um apaixonado! - De seguida, sentou-se, e o Sr. Watts entrou. -
Minhas senhoras, um vosso humilde criado. - Cumprimentámo-lo e ele sentou-se.
- Que belo tempo que está, minhas senhoras. - Voltou-se em seguida para Mary. Bem,
menina Stanhope, espero que tenha chegado a uma conclusão, e que faça o favor
de me dizer se tenciona condescender a casar comigo. - Julgo, senhor - disse Mary -,
que poderia ter feito o pedido de uma forma mais delicada. Nem sei se devo aceitá-lo
quando se comporta de modo tão estranho. - Mary! - exclamou a minha mãe. - Bem,
Mamã, se ele vai ficar tão zangado... - Chiu, chiu, Mary, não vais ser mal-educada
com o Sr. Watts. - Peço-lhe, minha senhora, não reprima a menina Stanhope
obrigando-a a ser educada. Se ela não quiser aceitar a minha mão, posso oferecê-la a
outra
pessoa, pois não tenho qualquer preferência por ela em relação às irmãs. É-me
indiferente com qual das três vou casar. Nunca houve patife igual! Sophy estava
ruborizada
de raiva e eu senti-me cheia de rancor! - Muito bem - disse Mary, num tom irritado.
Casarei consigo se tiver de ser.
74
- Queria-me parecer, menina Stanhope, que
quando se faz uma proposta como aquela que lhe fiz, não deve existir grande violência
sobre a inclinação da pessoa que aceitará o pedido. A minha mãe murmurou alguma
coisa que eu, sentada bem junto dela, consegui apenas distinguir como sendo: - De
que serve uma excelente herança se os homens vivem para sempre?-E depois
prosseguiu,
audivelmente: - Não se esqueça do pin money2; duzentas por ano. - Cento e setenta e
cinco, minha senhora. - Duzentas, sem tirar nem pôr - disse a minha mãe. - E
lembre-se que quero ter uma carruagem nova, tão alta como a das Duttons, azul e
prateada, e espero um novo cavalo selado, um fato de renda de qualidade e um
número
infinito das jóias mais valiosas. Diamantes como nunca antes se viram! E pérolas, rubis,
esmeraldas e inúmeras contas. Tem de arranjar o seu phaeton, o qual deverá
ser creme, com um anel de flores prateadas em volta. Tem de comprar quatro dos
melhores bays3 do reino e levar-me a passear nele todos os dias. E não é tudo. Terá
de remobilar a sua casa de acordo com o meu gosto. Terá de contratar mais dois
criados para me servirem, duas mulheres para 2 Pin-money era a quantia dispensada
pelo marido à mulher, destinada à compra de roupa e de outros artigos. 3 Cavalo de
pelagem castanha com tons de dourado. (N. do E.)
75
me acompanharem, terá de me deixar fazer sempre
o que eu quiser e terá de ser um óptimo marido. Aqui ela interrompeu-se, suponho
que sem fôlego. -As expectativas da minha filha são muito razoáveis,
Sr. Watts. - E é muito razoável, Sra. Stanhope, que a sua filha se sinta desapontada. -
Ele preparava-se para continuar, mas Mary interrompeu-o. - Tem de me construir
uma estufa elegante e enchê-la de plantas. Tem de me deixar passar todos os Invernos
em Bath, todas as Primaveras na cidade, todos os Verões numa qualquer viagem
e todos os Outonos numas termas, e se passarmos o resto do ano em casa - Sophy e eu
ría- mos - deverá dar constantemente festas e bailes de máscaras. Terá de construir
uma sala para o efeito e um teatro onde serão exibidas peças. A primeira peça que
teremos será Which is the Man4, e eu representarei o papel de Lady Bell Bloomer.
- E diga-me, menina Stanhope - retomou o Sr. Watts -, que deverei esperar de si em
troca de tudo isto? - Esperar? Ora, pode esperar ver-me satisfeita. - Seria estranho
se não fosse esse o caso. As suas expectativas, minha senhora, são demasiado elevadas
para
4 Which is the Man é uma comédia sentimental da autoria de Hannah Cowley
(1
743 -1809), representada pela primeira vez em 1782.
76
mim, pelo que terei de fazer o pedido à menina Sophy, que talvez não tenha colocado
a fasquia tão alta. -Engana-se
na sua suposição, Sr. Watts - disse Sophy. - Pois apesar de não serem exactamente da
mesma natureza, as minhas expectativas são tão elevadas como as da minha irmã,
pois espero que o meu marido seja amável e alegre, que consulte a minha opinião em
todas as suas acções e que me ame com constância e sinceridade. O Sr. Watts olhou-a,
incrédulo. -Essas são, na verdade, ideias bem estranhas, menina. É melhor pô-las de
lado antes de se casar, ou ver-se-á obrigada a fazê-lo depois. Entretanto, a
minha mãe dava um sermão a Mary, que reconheceu que fora longe de mais e, quando
o Sr. Watts se preparava para se dirigir a mim, a voz dela fez-se ouvir, meio humilde
e meio zangada. - Engana-se, Sr. Watts, se pensa que eu falava a sério quando disse que
esperava tanto. Todavia, tenho de ter uma nova carruagem. - Sim, senhor,
tem de admitir que Mary tem direito a esperar que assim seja. - Sra. Stanhope, eu
tenciono e sempre tencionei ter uma carruagem nova para o meu casamento. Mas será
da mesma cor daquela que tenho agora. -Penso, Sr. Watts, que deveria conceder à
minha filha o desejo de ver o seu gosto consultado em assuntos como este.
77 O Sr. Watts não concordava com isto e, durante algum tempo, insistiu que a
carruagem devia ser cor de chocolate, enquanto Mary fazia questão de que fosse azul
e prateada.
Por fim, Sophy sugeriu que, para agradar ao Sr. Watts, deveria ser de um castanho
escuro, e que, para fazer a vontade a Mary, deveria ser alta e apresentar um rebordo
prateado. Acabaram, então, por chegar a um acordo, embora com alguma relutância de
ambos os lados, visto que ambos queriam fazer as coisas exactamente à sua maneira.
Prosseguimos então para outros assuntos, e ficou combinado que se casariam assim
que os papéis estivessem prontos. Mary queria muito uma licença especial e o Sr.
Watts falava da afixação de um anúncio de casamento. Acabaram por concordar numa
licença comum. Mary ficará com todas as jóias da família, que, segundo julgo, não
têm grande valor, e o Sr. Watts prometeu comprar-lhe um cavalo selado, mas, a troco
disso, Mary não poderá ir à cidade ou a qualquer outro sítio público durante
três anos. Não terá estufa, teatro ou phaeton; terá de se contentar com uma criada,
sem um lacaio adicional. A noite prolongou-se com a discussão de todos estes
assuntos; o Sr. Watts ceou connosco e só se foi embora à meia-noite. Mal ele saiu, Mary
exclamou: - Graças a Deus! Até que enfim que saiu. Como eu o odeio! A Mamã
tentou, em vão, fazê-la ver como estava errado
78
falar assim do seu futuro marido, mas Mary persistiu em declarar a aversão que sentia
por ele, dizendo ainda que
esperava não voltar a vê-lo. Que casamento será este! Adieu, minha querida Anne Tua
sempre, Georgiana
Stanhope Da mesma para a mesma Sábado
Querida Anne, Mary,
desejosa de que todos soubessem do seu casamento que se realizará em breve, e mais
desejosa ainda de triunfar, como ela diz, sobre as Duttons, quis que fôssemos
com ela a Stoneham, esta manhã. Como não tínhamos mais nada para fazer, acedemos
prontamente, e demos um passeio tão agradável quanto era possível fazê-lo na
companhia
de Mary, cujo único tema de conversa consistiu em maltratar o homem com quem vai
casar e em expressar o desejo de ter uma carruagem azul e prateada. Quando
chegámos
a casa dos Duttons, encontrámos as duas raparigas no quarto de vestir com um jovem
muito atraente, o qual, naturalmente, nos foi apresentado. É o filho de Sir Henry
Brudenell de Leicestershire. O Sr. Brudenell é o rapaz mais
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bonito que alguma vez vi na minha vida; ficámos as três encantadas com ele. Mary, que
desde o momento
em que chegámos ao quarto estava a inchar com a sua própria importância e com o
desejo de a tornar conhecida, não conseguiu calar o assunto durante muito tempo
depois de estarmos sentadas, e pouco depois, dirigindo-se a Kitty, disse: -Não achas
que será necessário ter todas as jóias limpas? - Necessário para quê? - Ora!
Para a minha apresentação. - Peço desculpa, mas realmente não estou a compreender-
te. De que jóias estás a falar, e onde vai ser a tua apresentação? - No próximo
baile, evidentemente, depois do meu casamento. Podes imaginar a surpresa delas.
Primeiro mostraram-se incrédulas, mas depois, quando corroborámos a história,
finalmente
acreditaram. - E com quem vais casar? - foi, claro está, a primeira pergunta. Mary fingiu-
se muito tímida e respondeu com um ar confuso, de olhos postos no chão:
- com o Sr. Watts. - Também aqui foi necessária a nossa confirmação, pois era bem
difícil de acreditar por que razão uma rapariga com a beleza e as posses (embora
moderadas) de Mary casaria de livre vontade com o Sr. Watts. Estando o assunto
exposto, Mary viu-se o centro das
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atenções, abandonou o seu ar confuso e mostrou-se
perfeitamente extrovertida e comunicativa. -Estranho que não tenham sabido disto
antes, pois, normalmente, notícias desta natureza rapidamente se tornam conhecidas
na vizinhança. - Garanto-te - disse Jemina -, nunca tive a mínima suspeita de um tal
assunto. Já dura há muito tempo? - Oh! Sim, já desde quarta-feira. Todos sorriram,
em particular o Sr. Brudenell. - Devem saber que o Sr. Watts está muito apaixonado
por mim, é uma verdadeira afeição do lado dele. - E não só do lado dele, suponho
- disse Kitty. - Oh! Quando há tanto amor de um lado, não há oportunidade para que
exista do outro lado. No entanto, não desgosto inteiramente dele, apesar de ser
realmente feio. O Sr. Brudenell olhou-a fixamente, as meninas Duttons riram, e eu e
Sophia sentimos uma profunda vergonha da nossa irmã. Mary prosseguiu. - Vamos
ter uma nova post-chaise e muito provavelmente vamos arranjar o nosso phaeton.
Sabíamos bem que isto era mentira, mas a pobre rapariga estava tão feliz com a ideia
de persuadir os outros de que assim era que eu não iria privá-la de um prazer tão
inofensivo. Continuou. - O Sr. Watts vai presentear-me com as jóias de família,
que imagino que serão bastante consideráveis.
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- Eu imagino o contrário - não consegui impedir-me de segredar a Sophy. - São essas
jóias que terão de ser limpas
antes de poderem ser usadas. Só as usarei no primeiro baile a que for depois do meu
casamento. Se a Sra. Dutton não for a esse baile, espero que me deixem ser vossa
chaperon. Certamente que levarei também Sophy e Georgiana. - És muito amável -
disse Kitty -, e, uma vez que estás na disposição de assumir o cuidado de tantas jovens,
aconselho-te a convenceres a Sra. Edgecumbe a acompanhares as suas seis filhas. Dessa
forma, connosco e com as tuas duas irmãs, a tua entrée será verdadeiramente
respeitável. Kitty fez-nos a todos sorrir, à excepção de Mary, que não compreendeu o
que ela dissera e respondeu friamente que não tinha vontade de acompanhar tantas
jovens. Sophy e eu esforçámo-nos por mudar de assunto, mas conseguimos fazê-lo
apenas durante alguns minutos, pois Mary encarregou-se de voltar a centrar o tema
da conversa em si própria e no seu casamento. Senti pena da minha irmã, ao
aperceber-me de que o Sr. Brudenell parecia escutá-la com prazer, chegando mesmo a
encorajá-la
através das suas perguntas e dos seus comentários, visto ser óbvio que o seu único
objectivo era rir-se dela. Receio que a tenha achado bastante ridícula. Manteve
uma expressão séria, mas era fácil de ver que só com esforço conseguia conter-se.
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Todavia, por fim, pareceu ficar cansado e enjoado com a sua ridícula
conversa,
uma vez que desviava o olhar dela para nós, pouco falando com ela durante a última
meia hora que estivemos em Stoneham. Mal saímos da casa, pusemo-nos todas a
elogiar
a pessoa e as maneiras do Sr. Brudenell. Quando chegámos a casa, deparámos com o
Sr. Watts. - Então, menina Stanhope - disse ele -, bem vê que vim fazer-lhe a corte
à maneira de um verdadeiro enamorado. - Bem, não era preciso dizer-me isso. Percebi
muito bem o que o trazia aqui. Sophy e eu saímos da sala, imaginando que podíamos
estar a estorvar, caso se fosse desenrolar uma cena de namoro. Ficámos surpreendidas
ao ver Mary juntar-se a nós quase de seguida. - Já terminaram o vosso encontro?
- Encontro! - replicou Mary. - Estivemos a discutir. Watts é um tolo! Espero não ter de
voltar a vê-lo. - Receio bem que vás vê-lo - disse eu -, já que ele hoje
vai jantar connosco. Mas qual foi a razão do vosso desentendimento? - Ora, só porque
lhe disse que esta manhã tinha visto um homem muito mais bonito do que ele,
ficou louco de raiva e chamou-me de malvada, por isso fiquei apenas o tempo
necessário para lhe dizer que o achava um patife e depois vim-me embora.
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- Curta e doce - disse Sophy. - Mas, escuta, Mary,
como poderá isto resolver-se? - Ele terá de vir pedir o meu perdão. Mas, mesmo que o
faça, não o perdoarei. - A sua submissão
não será, nesse caso, de grande utilidade. Depois de trocarmos de roupa, regressámos
para a sala onde a Mamã e o Sr. Watts conversavam em voz baixa. Ao que parece,
ele tinha estado a queixar-se do comportamento de Mary, e a Mamã persuadiu-o a não
pensar mais no assunto. Assim, ele cumprimentou Mary com a sua habitual educação
e, à excepção de um comentário feito à carruagem e de outro relativo à estufa, a noite
decorreu em grande harmonia e cordialidade. Watts vai apressar os preparativos
para o casamento. A tua sempre amiga, G.S.

Uma Colecção de Cartas Para Miss Cooper Prima, Consciente da fascinante


personalidade que, em todo o país e em toda a
região da Cristandade é exaltada, a teu respeito, com cautela e cuidado submeto à tua
bondosa crítica esta espirituosa colecção de interessantes comentários, os
quais foram cuidadosamente seleccionados, coleccionados e classificados pela tua
divertida prima, a autora
PRIMEIRA CARTA De uma mãe para a sua amiga
As minhas filhas começaram agora a reclamar a minha atenção
de uma forma diferente daquela que foram habituadas a receber, uma vez que
chegaram agora a uma idade em que necessitam,
em certa medida, de contactar com o mundo. A minha Augusta tem dezassete anos e a
sua irmã nem sequer é doze meses mais nova. Orgulho-me de poder dizer que foram
educadas de forma a não desonrar a sua apresentação ao mundo e tenho todas as
razões para acreditar que elas não irão desonrar a sua educação. São, na verdade,
umas meninas encantadoras; sensatas, mas não afectadas; prendadas, mas de trato
fácil; cheias de vida, mas dóceis. Uma vez que o seu progresso em tudo o que
aprenderam
sempre foi o mesmo, estou determinada a esquecer a diferença de idades e a
apresentá-las juntas em público. Foi determinado que esta mesma noite terá lugar a
sua
primeira entrée na vida social, uma vez que vamos tomar chá com a Sra. Cope e a sua
filha. Estou satisfeita por não irmos encontrar-nos com mais ninguém, para bem
das minhas filhas, pois seria estranho para elas entrarem num círculo demasiado vasto
logo no seu primeiro dia. Mas iremos prosseguir por fases. Amanhã, a família
do Sr. Stanly virá tomar chá connosco e talvez a menina Philips se lhes reúna. Na terça-
feira, faremos visitas matinais; na quarta-feira jantaremos em Westbrook.
Na quinta, recebemos pessoas em casa. Na sexta-feira, assistiremos a um concerto
privado em casa de Sir John Wynna; e no sábado, esperamos que a menina Dawson
nos
venha visitar de manhã, o que completará a apresentação das minhas filhas à vida
social. Como irão suportar uma tal dispersão não sou capaz de imaginar; não receio
pelos seus espíritos, mas apenas pela sua saúde. Todo este tremendo acontecimento
está agora bem terminado, e as minhas raparigas estão apresentadas. À medida que
se aproximava o momento da nossa partida, não faz ideia de como as doces criaturas
tremiam de medo e de expectativa. Antes de a carruagem ser levada para a porta,
chamei-as ao meu quarto de vestir e, logo que se sentaram, falei-lhes da seguinte
forma: - Minhas queridas filhas, chegou o momento em que vou colher as
recompensas
por todas as minhas ansiedades e esforços ao longo da vossa educação. Esta noite,
entrarão num mundo em que encontrarão muitas coisas maravilhosas; deixem-me, no
entanto, preveni-las contra o deixarem-se miseravelmente arrastar pelas loucuras e
pelos vícios de outros, pois se o fizerem, acreditem, minhas queridas filhas,
que o lamentarei. Ambas me garantiram que para sempre lembrariam o meu conselho
com gratidão, e que o seguiriam atentamente; que estavam preparadas para encontrar
um mundo cheio
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de coisas capazes de as maravilhar e de as chocar, mas que estavam certas de que o seu
comportamento nunca me daria razão para me arrepender do
cuidado vigilante com que acompanhara a sua infância e formara as suas mentes... -
com tais expectativas e intenções - declarei -, nada tenho a temer de vocês...
E posso levá-las a casa da Sra. Cope sem o receio de que sejam seduzidas pelo seu
exemplo, ou contagiadas pelas suas loucuras. Venham, então, minhas filhas -
acrescentei
-, a carruagem dirige-se para a nossa porta, e não retardarei nem mais um momento a
felicidade que estão tão impacientes por desfrutar. Quando chegámos a Warleigh,
a pobre Augusta mal conseguia respirar, enquanto Margaret se mostrava muito viva e
enlevada. - O tão esperado momento chegou - disse ela -, e em breve entraremos
no mundo. Alguns instantes mais tarde, encontrávamo-nos na sala da Sra. Cope, a qual
estava sentada com a sua filha, pronta para nos receber. Observei deleitada
a impressão que as minhas filhas lhes causaram... São, na verdade, duas raparigas
encantadoras e de aspecto elegante, e, embora um pouco perturbadas devido à
peculiar
situação em que se encontravam, evidenciavam uma naturalidade nos seus modos e na
sua forma de falar que não podia deixar de agradar... Imagine, minha cara senhora,
o meu contentamento, ao contemplar, como foi o caso, o quão atentamente elas
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observavam cada objecto que viam, como se mostravam repugnadas com umas coisas,
maravilhadas com outras, impressionadas! Globalmente, no entanto, voltaram
fascinadas com o mundo, os seus habitantes e costumes. Sua sempre, A.F.
SEGUNDA CARTA De uma jovem infeliz no amor para a sua amiga
Por que razão esta última decepção havia de me perturbar tanto? Por que hei-de senti-
la mais, por que motivo me há-de
ferir mais profundamente do que aquelas que experimentei antes? Será possível que
tenha uma afeição muito mais forte por Willoughby do que tinha pelos seus amistosos
antecessores? Ou será que os nossos sentimentos se tornam mais vulneráveis quando
são magoados muitas vezes? Devo supor, minha querida Belle, que é este o caso,
uma vez que não me sinto mais sinceramente ligada a Willoughby do que me sentia a
Neville, Fitzowen, ou a qualquer um dos Crawfords, pelos quais em tempos senti
o mais duradouro afecto que alguma vez aqueceu o coração de uma mulher. Diz-me,
então, querida Belle, o que me faz ainda suspirar quando penso no desleal Edward,
ou por que choro quando vejo a sua noiva, pois é sem dúvida o que acontece... Todas
as minhas amigas estão preocupadas comigo; receiam pela minha saúde que se agrava;
lamentam a minha falta de alegria; temem as consequências de ambas. Na esperança
de aliviar a minha melancolia, tentando desviar os meus pensamentos, convidaram
vários dos seus amigos para virem passar o Natal connosco. A Sra. Bridget Dashwood e
a sua cunhada, a menina Jane, são esperadas na sexta-feira; e a família do
coronel Seaton estará connosco durante a
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próxima semana. Tudo isto resulta das amáveis intenções do meu tio e dos meus
primos, mas que efeito poderá ter sobre
mim a presença de uma dúzia de pessoas indiferentes, para além de me cansar e de me
angustiar? Terminarei a minha carta apenas depois de terem chegado algumas das
nossas visitas. Noite de sexta-feira A Sra. Bridget chegou esta manhã e, com ela, a sua
querida irmã, a menina Jane. Apesar de já conhecer esta encantadora mulher
há mais de quinze anos, nunca antes observara como ela é adorável. Tem agora cerca
de trinta e cinco anos e, apesar da doença, da tristeza e do tempo, está mais
viçosa do que qualquer rapariga de dezassete anos. Fiquei maravilhada com a sua
presença logo no instante em que entrou em casa, e ela pareceu igualmente agradada
comigo, ficando junto de mim durante o resto do dia. Há algo de tão doce, tão suave
na sua fisionomia que ela parece mais do que uma simples mortal. A sua conversa
é tão cativante como o seu aspecto; não pude deixar de lhe dizer como desperta a
minha admiração. -Oh, menina Jane! - dissê-lhe, interrompendo-me em seguida, na
impossibilidade de me expressar, naquele momento, da forma que queria. - Oh,
menina Jane! - repeti, não conseguindo pensar em palavras que se adequassem
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aos meus sentimentos. Ela parecia estar à espera que eu continuasse. Sentia-me
confusa, inquieta, os meus pensamentos estavam desorientados, e consegui apenas
acrescentar:
- Como tem passado? Ela viu e sentiu o meu embaraço e, com uma admirável presença
de espírito, aliviou-me daquela sensação, dizendo: - Minha querida Sophia, não
se sinta desconfortável por se ter exposto... Mudarei de assunto sem sequer dar a
entender ter notado. - Oh! Como a adorei pela sua gentileza! - Continua a praticar
equitação tanto como antes? - perguntou-me. - O meu médico aconselha-me a fazê-lo.
Temos excelentes pistas perto da nossa casa, tenho um óptimo cavalo, não me
canso deste divertimento - repliquei, já recomposta do meu estado de confusão-e, em
suma, saio muitas vezes para montar. -Faz muito bem, meu amor-disse ela. Depois,
repetindo o seguinte verso, improvisado e igualmente indicado para recomendar a
prática da equitação e a candura: - Vá até onde lho permitirem; seja cândida onde
for capaz de o ser. Também costumava sair a cavalo - acrescentou -, mas isso foi há
muitos anos atrás. - Falou numa voz tão baixa e trémula que me mantive em silêncio.
Perturbada com a sua forma de falar, não consegui responder. - Não saio a cavalo -
prosseguiu ela, fixando os seus olhos no
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meu rosto - desde o tempo em que
era casada. - Nunca me tinha sentido tão surpreendida. - Casada, minha senhora! -
repeti. - Bem pode fazer esse ar espantado - disse ela -, uma vez que aquilo que
lhe disse deverá parecer bastante improvável. Porém, nada é mais verdadeiro do que o
facto de eu ter sido casada. - Nesse caso, por que razão a tratam por menina
Jane? - Eu casei, minha Sophia, sem o consentimento ou o conhecimento de meu pai,
o falecido almirante Annesley. Assim, foi necessário esconder este segredo dele
e de toda a gente, até que surgisse uma feliz oportunidade de o revelar. Uma tal
oportunidade... ai de mim!... surgiu bem cedo, com a morte do meu querido capitão
Dashwood... Perdoe-me estas lágrimas - prosseguiu a menina Jane, enxugando os
olhos. - Devo-as à memória de meu marido. Perdeu a vida, minha cara Sophia,
enquanto
lutava pelo seu país na América, depois de uma feliz união de quase sete anos... Os
meus filhos, dois encantadores rapazes e uma menina, que sempre viveram comigo
e com o meu pai, passando por filhos de um irmão meu (apesar de eu ser filha única),
eram a consolação da minha vida. Mas pouco depois de eu ter perdido o meu Henry,
estas doces criaturas adoeceram e morreram... Imagine, querida Sophia, o que eu senti
no momento em que, como tia, acompanhei os meus próprios filhos até à sua
precoce sepultura... Meu pai não lhes
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sobreviveu muitas semanas... Morreu, pobre velhote, ignorante até à sua última hora
do meu casamento. - Mas não tinha, e
não assumiu o nome do seu marido, aquando da sua morte? - Não. Não tive coragem;
sobretudo depois de ter perdido com os meus filhos toda a razão para o fazer. Lady
Bridget e a Sophia são as únicas pessoas que conhecem o facto de eu ter alguma vez
sido esposa ou mãe. Como não fui capaz de me obrigar a assumir o nome de
Dashwood
(nome esse que, depois da morte do meu Henry, nunca mais pude ouvir sem
emoção), e como estava consciente de não merecer o nome de Annesley, renunciei a
ambos,
e fiz questão de usar apenas o meu nome de baptismo, após a morte de meu pai. - Fez
uma pausa. - Oh, minha cara menina Jane! - exclamei. - Fico- -lhe infinitamente
agradecida por uma história tão interessante! Nem pode acreditar como me distraiu!
Mas... Já terminou? - Tenho apenas a acrescentar, minha querida Sophia, que, tendo
o irmão mais velho do meu Henry morrido aproximadamente na mesma altura, Lady
Bridget ficou viúva, como eu própria, e como sempre nos adorámos em pensamento,
pela
forma como aquele notável homem falava de nós, apesar de nunca nos termos
conhecido, decidimos ir viver juntas. Escrevemos uma à outra sobre o mesmo assunto,
pelo
mesmo correio, tão exactamente coincidiam os nossos
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sentimentos e as nossas acções! Ambas recebemos avidamente a proposta que cada
uma fazia, a qual consistia
em tornarmo-nos uma família, e temos desde então morado juntas, no mais profundo
afecto. - E é tudo? - quis eu saber. - Espero que não tenha ainda terminado. -
Terminei, com efeito; e, diga-me, alguma vez ouviu uma história tão patética? -
Nunca... E é essa a razão de me agradar tanto, pois quando nos sentimos infelizes
não há nada mais delicioso para os nossos sentimentos do que ouvir falar de uma igual
infelicidade. -Ah! Mas, minha Sophia, por que motivo está infeliz? - Não ouviu
falar, minha senhora, do casamento de Willoughby? - Mas, meu amor, porquê lamentar
a crueldade deste homem, quando antes suportou tão bem a de outros jovens? -Ah,
minha senhora! Nessa altura, eu estava habituada, mas, quando Willoughby rompeu o
noivado comigo, havia já meio ano que ninguém me desapontava. - Pobrezinha! - disse
a menina Jane.
TERCEIRA CARTA De uma jovem em aflição para a sua amiga
Há alguns dias atrás, estive presente num baile privado dado pelo Sr. Ashburnham.
Dado que
a minha mãe nunca sai, confiou-me ao cuidado de Lady Greville, que me concedeu a
honra de me vir buscar de caminho e que me deixou ir sentada de frente, favor esse
que me é bastante indiferente, sobretudo porque sei que me deixa com obrigações
especiais. -" Bem, menina Maria - disse sua senhoria, quando eu me aproximava da
porta da carruagem -, tem um ar muito elegante esta noite... As minhas pobres
raparigas parecerão em desvantagem ao pé de si. Só espero que a sua mãe não se
tenha
sacrificado por sua causa. Traz um casaco novo? - Sim, minha senhora - repliquei, com
tanta indiferença quanta era capaz de demonstrar. - Exacto, e um bom casaco,
segundo julgo - disse ao tocá-lo, quando, de acordo com a sua permissão, me sentei ao
seu lado. - Devo dizer que tem um aspecto muito elegante, mas tenho de acrescentar
(pois, como sabe, digo sempre aquilo que penso) que considero tratar-se de um gasto
desnecessário... Será que não podia usar aquele seu velho casaco de riscas?
Não costumo culpar as pessoas por serem pobres, pois sempre pensei que devem ser
desprezadas e lamentadas, mais do que culpadas, sobretudo se
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não podem evitar a pobreza. Mas, ao mesmo tempo,
devo dizer que, em minha opinião, o seu velho casaco de riscas estaria muito bem para
a pessoa que o usa, pois para dizer a verdade
(e eu digo sempre o que me vai na alma), receio bem que metade das pessoas que se
encontrarão dentro daquela sala nem sequer saberão se a menina traz ou não casaco...
Mas suponho que tenciona conquistar a sua fortuna esta noite. Bem, quanto mais
cedo, melhor; desejo-lhe que seja bem sucedida. - Na verdade, minha senhora, tal não
é a minha intenção... - E quem é que alguma vez ouviu uma jovem admitir que andava
à caça de uma fortuna? A menina Greville riu-se, mas estou certa de que Ellen
sentiu pena de mim. - A sua mãe já se tinha ido deitar quando saiu? - perguntou sua
senhoria. - Cara senhora - disse Ellen -, ainda são só nove horas. - Bem sei,
Ellen, mas as velas custam dinheiro e a Sra. Williams é demasiado sensata para se dar a
extravagâncias. -Tinha acabado de se sentar para cear, minha senhora. - E
que tinha ela preparado para a ceia? - Não reparei. - Pão e queijo, suponho.
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- Nunca desejei nada melhor para a ceia-disse Ellen. - Nunca tiveste razão para isso
- replicou a sua mãe -, já que algo de melhor te é sempre providenciado. A menina
Greville riu excessivamente, como faz constantemente a propósito das tiradas
espirituosas da sua mãe. Tal é a humilhante situação em que sou forçada a encontrar-
me sempre que entro na carruagem de sua senhoria. Não me atrevo a ser
impertinente,
uma vez que a minha mãe me recomenda sempre que seja humilde e paciente se
quero ser alguém na vida. Ela insiste comigo para que aceite todos os convites de Lady
Greville, ou podes estar certa de que eu nunca entraria nem na sua casa, nem na sua
carruagem, tendo a desagradável certeza de que, quando me encontro numa das
duas, sou sempre insultada pela minha pobreza. Quando chegámos a Ashburnham,
eram quase dez horas, ou seja, cerca de uma hora e meia depois da hora a que éramos
esperadas, mas Lady Greville tem demasiada pose (ou assim o imagina) para ser
pontual. Todavia, o baile não tinha começado, uma vez que aguardavam a menina
Greville.
Pouco depois de termos chegado, fui convidada para dançar pelo Sr. Bernard, mas no
preciso instante em que nos íamos pôr de pé, ele lembrou-se que o seu criado
tinha levado as suas luvas brancas, e saiu imediatamente a correr para ir buscá-las.
Entretanto, o baile começou e Lady Greville, encaminhando-se para outra sala,
passou mesmo pela minha frente. Viu-me, parou instantaneamente e, apesar de se
encontrarem várias pessoas por perto, disse-me: -Então, menina Maria! Ora, não
me diga que não consegue arranjar um par? Pobre rapariga! Receio que o seu casaco
novo não lhe tenha servido de nada. Mas não desespere, talvez ainda consiga dar
um pezinho de dança antes de a noite terminar. Assim dizendo, seguiu em frente, sem
ouvir a minha repetida garantia de que tinha prometido aquela dança, e deixando-me
muito irritada por me ver exposta daquela forma diante de toda a gente. Todavia, o Sr.
Bernard regressou rapidamente e, visto que veio ter comigo assim que entrou
na sala e me conduziu para a pista de dança, o meu carácter ficou, segundo espero,
livre da insinuação que Lady Greville lhe lançara aos olhos de todas as velhotas
que tinham ouvido as suas palavras. Depressa o prazer de estar a dançar e de ter o par
mais agradável da sala me fez esquecer todas as humilhações. Sendo o Sr.
Bernard, além do resto, herdeiro de uma vasta fortuna, eu bem podia ver que Lady
Greville não estava muito satisfeita ao descobrir quem fora a escolha dele. Sua
senhoria estava decidida a torturar-me e, assim sendo, quando nos fomos sentar entre
as danças, veio ter comigo com uma importância ainda mais insultuosa do que
lhe é habitual, acompanhada pela menina Mason, e disse, suficientemente alto para ser
ouvida por metade das pessoas na sala:
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- Diga-me, menina Maria, qual
era o ramo de actividade do seu avô? É que eu e a menina Mason não conseguimos
chegar a acordo; era merceeiro ou encadernador? Compreendi que ela queria ver-me
mortificada
e decidi que, se me fosse possível, a impediria de ver o seu plano funcionar. -Nem uma
coisa, nem outra, minha senhora. Era negociante de vinhos. - Pois, bem me
parecia que era um negócio de baixo nível E foi à falência, não é verdade? - Não creio,
minha senhora. - Não teve de fugir? - Nunca tive conhecimento de tal coisa.
- Pelo menos, deve ter morrido falido? - Nunca antes mo tinham dito. - Ora essa, o seu
pai não era pobre como uma ratazana? - Não me parece. - Não esteve ele uma
vez no King"s Bench? - Nunca o vi em tal sítio. Ela olhou-me daquela forma, e afastou-
se, profundamente enraivecida, deixando-me meio satisfeita com a minha
impertinência,
e meio receosa de ter sido demasiado atrevida. Como estava extremamente zangada
comigo, Lady Greville não voltou a prestar-me atenção durante todo o resto da noite
e, em boa verdade, ainda que estivesse nas
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suas boas graças, teria sido igualmente negligenciada, uma vez que ela se juntou a um
grupo de pessoas importantes
e nunca me fala quando pode falar com qualquer outra pessoa. A menina Greville ceou
junto do grupo da sua mãe, mas Ellen preferiu ficar comigo, na companhia dos
Bernards. Foi um baile muito divertido e, como Lady G. dormiu durante todo o
caminho de regresso a casa, tive uma viagem muito agradável. No dia seguinte,
enquanto
estávamos a jantar, a carruagem de Lady Greville parou diante da nossa porta, pois
essa é a hora do dia em que ela geralmente gosta de aparecer. Enviou uma mensagem
por um criado, dizendo que não sairia da carruagem, mas que " a menina Maria
deveria vir até à porta da carruagem porque Lady Greville desejava falar-lhe, que se
apressasse e viesse imediatamente" . - Que recado impertinente, Mamã! - disse eu. -
Vai, Maria - retorquiu a minha mãe. Assim, lá fui, e vi-me obrigada a ficar na
rua a bel-prazer de sua senhoria, apesar de o vento estar extremamente forte e muito
frio. - Vejamos, menina Maria, hoje não está tão elegante como estava ontem
à noite. Mas não vim para examinar o seu vestido; vim para lhe dizer que pode vir
jantar connosco depois de amanhã. Não é amanhã, lembre-se, não venha amanhã, pois
iremos receber Lorde e Lady Clermont e a família de Sir Thomas Stanley. Não será
ocasião para se apresentar em grande requinte, pois não enviarei a carruagem
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para vir buscá-la. Se chover, poderá levar um chapéu-de-chuva. - Foi a custo que me
impedi de rir, ouvindo-a dar-me licença para me manter enxuta. - E peco-lhe que
chegue a horas, pois não tenciono esperar. Odeio os alimentos demasiado cozinhados.
Todavia, não precisa de chegar antes da hora marcada. Como está a sua mãe? Está
a jantar, não? - Sim, minha senhora, estávamos a meio do jantar quando sua senhoria
chegou. - Deves estar a sentir frio, Maria - disse Ellen. - Sim, está um terrível
vento de leste - disse a mãe. - Mal consigo suportar a janela aberta. Mas certamente
estará habituada a apanhar vento, menina Maria, e deve ser por isso que tem
a pele avermelhada e áspera. As jovens que não têm muitas oportunidades de andar de
carruagem não se importam com o tempo que faz, nem com o vento que exibe as
suas pernas. Eu não deixaria que as minhas filhas saíssem, como a menina, num dia
destes. Mas algumas pessoas não têm o sentido do frio ou da delicadeza... Bem,
lembre-se que a esperamos na quinta-feira, às cinco horas. Deverá dizer à sua criada
que vá buscá-la à noite... Não haverá luar, e terá uma horrível caminhada de
regresso a casa. Cumprimentos à sua mãe. Receio que o seu jantar esteja já frio.
Vamos. E lá foi ela, deixando-me furiosa, como sempre acontece. Maria Williams
QUARTA CARTA De uma jovem bastante impertinente para a sua amiga
Ontem, jantámos com o Sr. Evelyn, tendo sido apresentadas a uma rapariga de aspecto
muito agradável,
prima do mesmo. Fiquei extremamente agradada com o seu aspecto, visto que para
além do encanto de um rosto atraente, os seus modos e a sua voz tinham algo de
peculiarmente
interessante. De tal forma que me inspiraram uma grande curiosidade em saber a
história da sua vida, quem eram os seus pais, de onde vinha e que lhe sucedera, pois
até então sabia-se apenas que era parente do Sr. Evelyn e que o seu nome era
Grenville. No decorrer da noite, surgiu-me uma oportunidade favorável para pelo
menos
tentar saber aquilo que desejava, já que estavam todos a jogar às cartas, excepto a Sra.
Evelyn, a minha mãe, o Dr. Drayton, a menina Grenville e eu própria. Estando
as duas primeiras absorvidas por uma conversa em voz baixa e tendo o doutor
adormecido, vimo-nos obrigadas a conversar uma com a outra. Era exactamente isto o
que
eu pretendia e, determinada a não continuar na ignorância por não perguntar, iniciei a
conversa da seguinte forma: - Há muito que se encontra em Essex, minha senhora?
- Cheguei terça-feira. - Veio de Derbyshire? - Não, minha senhora! - disse ela,
parecendo surpreendida com a minha pergunta. - De Suffolk.
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Pensarás que talvez tenha sido ousado da minha parte,
minha cara Mary, mas bem sabes o atrevimento de que sou capaz quando tenho um
fim em mente. -A região agrada-lhe, menina Grenville?
Acha-a semelhante àquela que deixou? - Muito superior em beleza, minha senhora. -
Ela suspirou. Eu ansiava saber porquê. - Mas o aspecto de uma qualquer região,
por muito bela que seja - disse eu -, pode ser fraca consolação pela perda dos nossos
amigos mais queridos. - Ela abanou a cabeça, como se sentisse a verdade daquilo
que eu acabara de dizer. A minha curiosidade estava tão espicaçada que me resolvi a
satisfazê-la custasse o que custasse. -Arrepende-se, então, de ter deixado Suffolk,
menina Grenville? - Na verdade, sim. - Foi lá que nasceu, suponho. - Sim, minha
senhora, foi, e lá passei muitos anos felizes... - Esse é um grande conforto - retorqui.
- Espero, minha senhora, que não tenha tido anos mfelizes. -A felicidade perfeita não
está ao alcance dos mortais, e ninguém tem o direito de esperar uma felicidade
ininterrupta. Naturalmente, deparei com algumas contrariedades. - Que
contrariedades, minha cara senhora? - repliquei, ardendo de impaciência para saber
tudo.
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-Nenhuma, minha senhora, segundo espero, que tenha resultado de alguma culpa
deliberada da minha parte. - Não me atreveria a dizer o contrário, minha senhora, e
não duvido de que todas as aflições que possa ter experimentado terão advindo
apenas das crueldades de relações ou de erros de amigos. Ela suspirou. - Parece-me
infeliz, cara menina Grenville. Não estará no meu poder ajudar a suavizar as suas
angústias? - No seu poder, minha senhora! - respondeu ela, muito surpreendida.
- Não está no poder de ninguém alegrar-me. -Pronunciou estas palavras num tom de
tal modo pesaroso e solene que, durante algum tempo, não tive coragem de replicar.
Mantive-me em silêncio. Recompus-me, no entanto, ao fim de alguns instantes e,
olhando-a com toda a doçura de que era capaz, dissê-lhe: - Minha cara menina
Grenville,
parece-me extremamente jovem... e poderá precisar do conselho de alguém que se
preocupe consigo, alguém com mais idade, com um discernimento possivelmente
superior.
Eu sou essa pessoa e desafio-a agora a aceitar a oferta que lhe faço, da minha confiança
e amizade, pedindo-lhe apenas que retribua da mesma forma... - É extraordinariamente
amável, minha senhora disse ela -, e sinto-me profundamente lisonjeada pela atenção
que me dedica. Mas não me encontro em nenhuma
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dificuldade, nem em nenhuma situação de dúvida ou
de incerteza em que me fosse útil um conselho. Quando tal acontecer, porém -
prosseguiu ela, iluminando-se com um sorriso gentil -, saberei
onde me dirigir. Curvei-me, mas senti-me mortificada com esta rejeição; ainda assim,
não desistira do meu propósito. Tendo descoberto que através da aparência do
sentimento e da amizade nada tinha a ganhar, decidi, então, renovar os meus ataques
sob a forma de perguntas e suposições. -Tenciona demorar-se nesta região de
Inglaterra, menina Grenville? - Sim, minha senhora, acredito que ficarei durante algum
tempo. - Mas como poderão o Sr. e a Sra. Grenville suportar a sua ausência?
- Nenhum deles está vivo, minha senhora. Esta resposta eu não esperava. Fiquei em
silêncio, e nunca me senti tão embaraçada em toda a minha vida.
QUINTA CARTA De uma jovem muito apaixonada para a sua amiga
O meu tio fica mais avarento, a minha tia mais pedante e eu mais apaixonada a cada
dia que passa. Por este andar, como
estaremos todos nós no final do ano! Esta manhã tive a felicidade de receber a
seguinte carta do meu querido Musgrove. Sackville Street, 7 de Janeiro Faz hoje um
mês que contemplei pela primeira vez a minha doce Henrietta, e o sagrado aniversário
deverá ser, e será, assinalado de um modo adequado ao dia escrevendo-lhe. Jamais
esquecerei o momento em que os seus encantos surgiram diante de mim - tempo
algum, como muito bem sabe, poderá apagá-lo da minha memória. Foi em casa de
Lady Scudamore.
Bem-aventurada Lady Scudamore, por viver a não mais de uma milha de distância da
divina Henrietta! Quando a adorável criatura entrou na sala, oh! Que senti eu ?
Vê-la foi como terá visão de uma coisa maravilhosa e requintada. Sobressaltei-me -
olhei-a em admiração - ela parecia-me mais encantadora a cada momento que passava,
e o desafortunado Musgrove ficou cativo dos seus encantos antes de ter tempo de se
precaver. Sim, minha senhora, tive a felicidade de a adorar, uma
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felicidade pela qual nunca serei suficientemente grato.
" O quê?!" , disse ele para consigo. " Será permitido a Musgrove morrer por Henríetta?"
Invejável Mortal! E poderá
ele desejá-la, a ela, que é objecto de admiração universal, que é adorada por um
coronel, e brindada por um baronete! Adorável Henríetta, como é bela! Declaro que
há em si algo de divino! É superior aos mortais. É um anjo. É a própria Vênus. Em
suma, minha senhora, é a rapariga mais bonita que alguma vez, vi na minha vida
- e a sua beleza surge aumentada aos olhos de seu Musgrove por lhe permitir que a
ame, e por lhe permitir ter esperança. E, ah! Angélica menina Henríetta, o Céu
é testemunha de como espero ardentemente a morte do seu vil tio e da sua mulher
abandonada, uma vez que a minha amada não consentirá em ser minha antes de o
falecimento
deles lhe colocar nas mãos uma riqueza acima daquilo que a minha fortuna pode
proporcionar. Apesar de esta ser uma fortuna tendente a aumentar... Cruel Henríetta,
por insistir numa tal resolução! Encontro-me neste momento com a minha irmã e aqui
tenciono continuar até a minha casa, que apesar de excelente precisa de
remodelações,
estar pronta para me receber. Amável princesa do meu coração, adeus daquele coração
que estremece ao assinar, O seu mais ardente admirador e devoto humilde servo,
T. Musgrove
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Existe um padrão para uma carta de amor, Matilda! Alguma vez leste uma obra-prima
de escrita como esta? com um tal sentido, um tal sentimento, esta
pureza de pensamento, este fluir da linguagem e um tal amor sincero numa única
folha de papel? Não, nunca, posso eu responder, já que Musgrove não cruza o
caminho
de todas as raparigas. Oh! Como anseio por estar com ele! Tenciono enviar-lhe
amanhã a seguinte carta, em resposta à sua: Meu querido Musgrove, Não tenho
palavras
para exprimir o quanto a sua carta me deixou feliz; quase chorei de alegria, pois amo-o
mais do que a qualquer outra pessoa no mundo. Julgo-o o mais amável e o
mais atraente homem de Inglaterra, e certamente que o é. Nunca, na minha vida, lera
algo de tão doce. Escreva-me outra
carta igual a essa, e diga-me que está apaixonado
por mim em todas as outras linhas. Morro de vontade de vê-lo. Como poderemos
arranjar maneiras de nos vermos? Pois estamos tão apaixonados que não podemos
viver
longe um do outro. Oh! Meu querido Musgrove, nem imagina como aguardo
impaciente a morte de meus tios. Se não morrerem em breve, julgo-me capaz se
enlouquecer,
pois a cada dia que passa sinto-me mais apaixonada por si. Que felicidade a de sua
irmã, podendo desfrutar do
prazer da sua companhia na sua casa, e como devem estar felizes todas as pessoas em
Londres, uma vez que é aí que se encontra. Espero que tenha a gentileza de me
escrever em breve, pois nunca li cartas tão doces como as suas. Sou, meu muito
querido Musgrove, sinceramente sua, para todo o sempre, Henríetta Halton Espero
que
ele goste da minha resposta; é o melhor que consigo escrever, embora de modo algum
comparável à sua. com efeito, eu sempre tinha ouvido dizer como ele era talentoso
a escrever cartas de amor. Viu-o, sabes, pela primeira vez em casa de Lady Scudamore.
E, quando encontrei sua senhoria depois disso, ela perguntou-me o que achara
do seu primo Musgrove. - Dou-lhe a minha palavra - disse eu - em como o acho um
jovem muito bonito. - Fico contente por pensar assim - replicou ela -, pois ele está
loucamente apaixonado por si. - Valha-me Deus, Lady Scudamore! - disse eu. Como
pode falar dessa forma ridícula? - Não, é a mais pura verdade - respondeu ela -,
garanto-lho, apaixonou-se por si logo no momento em que a viu pela primeira vez. -
Quem me dera que fosse verdade - disse eu -, já
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que esse é o único tipo de
amor que eu valorizo. Faz algum sentido uma pessoa apaixonar-se à primeira vista. -
Bem, felicito-a pela sua conquista - replicou Lady Scudamore -, e acredito que
foi uma conquista bem completa; estou certa de que não é nada de desprezar, uma vez
que o meu primo é um homem encantador, conhece muito do mundo, e escreve as
melhores cartas de amor que eu alguma vez li. Isto deixou-me muito feliz, e fiquei
extraordinariamente satisfeita com a minha conquista. No entanto, achei que seria
adequado fazer-me um pouco difícil e dissê-lhe: - É tudo muito bonito, Lady
Scudamore, mas sabe bem que nós, jovens herdeiras, não devemos entregar-nos a
homens
que não tenham fortuna nenhuma. - Minha querida menina Halton - disse ela -, estou
tão convencida disso como a menina, e asseguro-lhe que seria a última pessoa a
encorajá-la a casar com alguém que não tivesse pretensões a uma fortuna, como é o
seu caso. Mas o Sr. Musgrove está muito longe de ser pobre, tanto que tem uma
propriedade com rendimento de várias centenas por ano, a qual pode ainda ser
bastante desenvolvida, e tem também uma excelente casa, apesar de precisar de alguns
consertos. -Se é esse o caso-retorqui -, nada mais tenho a dizer contra ele, e se, como
diz, é um homem culto e sabe escrever uma boa carta de amor, não vejo razão
para o impedir de
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me admirar; se bem que eu talvez não case com ele apesar de tudo isso, Lady
Scudamore. - É certo que não tem qualquer obrigação de casar com
ele - respondeu sua senhoria -, para além daquela que o próprio amor lhe ditar, pois
se eu não estou enganada, neste preciso momento, ainda que disso não tenha
consciência, está a demonstrar uma terna afeição por ele. -Valha-me Deus, Lady
Scudamore-repliquei, corando. - Como pode pensar uma coisa dessas? - Porque cada
olhar
e cada palavra sua a traem respondeu ela. - Vamos, minha querida Henrietta,
considere-me sua amiga e seja sincera comigo: não é verdade que prefere o Sr.
Musgrove
a todos os outros homens que conhece? -Peço-lhe que não me faça tais perguntas, Lady
Scudamore -disse eu, desviando a cara -, pois não é apropriado que eu lhes responda.
- Muito bem, meu amor-replicou ela -, agora vejo confirmadas as minhas suspeitas. Mas
por que razão, Henrietta, se envergonha de sentir um amor para o qual não há
impedimento, ou por que se recusa a confiar em mim? -Não me envergonho de o
sentir-respondi, ganhando coragem. - E não me recuso a confiar em si, nem coro ao
dizer
que amo o seu primo, o Sr. Musgrove, que estou sinceramente afeiçoada a ele, pois
não é desonra amar um homem bonito. Se ele fosse feio, então sim, teria razões

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para me envergonhar de uma paixão que seria errada, uma vez que o objecto dela
seria indigno. Mas alguém com a figura, o rosto e o cabelo do seu primo, por que
motivo havia eu de corar ao reconhecer que um tal mérito superior me causou
impressão? - Minha querida menina - disse Lady Scudamore, abraçando-me com muito
afecto
-, como é delicada a sua forma de pensar estes assuntos, e que rápido discernimento
tem, para alguém com a sua idade! Oh! Como a admiro por tão nobres sentimentos!
-Realmente, minha senhora?-disse eu.-É muitíssimo amável. Mas diga-me, Lady
Scudamore, foi o próprio Sr. Musgrove que lhe falou desta afeição por mim? Gostarei
ainda
mais dele se assim for, pois que é um amante sem uma confidente? - Oh, meu amor! -
replicou ela.-Nasceram um para o outro. Cada palavra que profere me deixa mais
convencida de que as mentes de ambos são movidas pelo invisível poder da empatia,
visto que as vossa opiniões e sentimentos coincidem na perfeição. Além disso,
a cor do vosso cabelo não é muito diferente. Sim, minha querida menina, o pobre e
desesperado Musgrove revelou-me a história do seu amor. Mas não me surpreendeu...
Não sei como, mas tinha uma espécie de pressentimento de que ele se apaixonaria por
si. - Bem, mas como foi que ele lho demonstrou? - Foi só depois da ceia. Estávamos
sentados junto à
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lareira, falando sobre temas indiferentes, se bem que, para dizer a verdade, a conversa
decorria sobretudo do meu lado, pois ele mostrava-se
pensativo e silencioso, quando de repente me interrompeu a meio de algo que estava
a dizer, exclamando num tom verdadeiramente teatral: " Sim, estou apaixonado,
agora o sinto. E Henrietta Halton destroçou-me." - Ohl Que maneira adorável -
repliquei - de declarar a sua paixão! Construir dois versos tão encantadores acerca
de mim! Que pena não rimarem! - Fico muito contente por ter gostado-respondeu ela.
- Sem dúvida que revelam bom gosto. " E está apaixonado por ela, primo?" , perguntei-
lhe.
" Lamento muito sabê-lo, pois, por excepcional que o primo seja sob todos os
aspectos, com uma bela propriedade capaz de grandes progressos e uma excelente
casa,
ainda que a necessitar de reparações, quem poderá aspirar com sucesso à encantadora
Henrietta, que teve uma proposta de um coronel e foi brindada por um baronete?
- Isso é verdade! - exclamei. Lady Scudamore prosseguiu: -E ele replicou: " Ah, querida
prima, estou tão convencido da pequeníssima hipótese que tenho de conquistá-la,
a ela que é adorada por milhares, que não preciso que a
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minha prima me diga mais. Mas, certamente, nem a minha prima, nem a própria bela
Henrietta me poderão
negar a excelente gratificação de morrer por ela, de sucumbir aos seus encantos. E
quando eu morrer..." - continuou ela. - Oh! Lady Scudamore - disse eu, enxugando
os olhos -, como pode uma criatura tão doce falar de morrer! ? -É, com efeito, uma
circunstância perturbante - replicou Lady Scudamore, prosseguindo - " quando eu
morrer" , disse ele, " levem-me e depositem-me a seus pés, e talvez ela não se recuse a
verter uma lágrima piedosa sobre os meus pobres restos mortais." - Minha
cara Lady Scudamore - interrompi -, não diga mais nada a respeito deste perturbante
assunto. Não posso suportá-lo. - Oh! Como admiro a doce sensibilidade da sua
alma, e como não seria capaz de a ferir demasiado profundamente, ficarei em silêncio.
-
Peço-lhe que continue - disse eu. Ela assim o fez. - E então ele acrescentou:
" Ah! Prima, imagine o meu enlevo ao sentir as queridas e preciosas gotas derramadas
sobre o meu rosto! Quem não morreria para experimentar um tal êxtase! E quando
for enterrado, que possa a divina Henrietta abençoar com a sua afeição algum outro
jovem com mais sorte; que ele lhe seja tão ternamente dedicado como o infeliz
Musgrove; e enquanto Musgrove se desfizer em pó, possam eles viver um exemplo de
felicidade no estado conjugal!
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Alguma vez ouviste alguma coisa tão patética?
Que fascinante desejo, ser prostrado a meus pés depois de morto! Oh! Que mente
elevada ele deve possuir para ser capaz de um tal desejo! Lady Scudamore continuou.
-E eu repliquei-lhe: " Ah, meu querido primo! Um comportamento tão nobre como
este deverá certamente fazer derreter o coração de qualquer mulher, por muito
insensível
que seja; pudesse a divina Henrietta escutar os seus generosos desejos para a sua
felicidade, doce como é a sua mente, não tenho dúvidas de que ela teria compaixão
do seu amor e esforçar-se-ia por retribuí-lo." Ele respondeu-me: " Oh, prima!, não
tente dar força às minhas esperanças com promessas lisonjeiras. Não, não posso
ter a pretensão de agradar a este anjo de mulher, e só me resta morrer." Repliquei-lhe,
então: " O amor verdadeiro é sempre desesperante, mas, meu caro tom, dar-lhe-ei
ainda maiores esperanças de conquistar o coração desta bela do que lhe dei até ao
momento, assegurando-lhe que a observei com minuciosa atenção durante todo o dia,
e pude facilmente descobrir que ela guarda no seu peito, embora o ignore ela própria,
uma terna afeição por si. -Querida Lady Scudamore-exclamei -, isso é mais do
que eu sabia! - Pois eu não disse que o ignorava? " Não o encorajei contando-lhe isto
logo de início, para que a surpresa pudesse tornar o prazer ainda maior" ,
acrescentei para ele. " Não,
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prima" , replicou ele, com uma voz lânguida, " nada poderá convencer-me de que
toquei o coração de Henrietta Halton e, caso a minha
prima esteja iludida, não tente iludir-me a mim." Em suma, meu amor, levei algumas
horas a persuadir o pobre jovem em desespero de que a Henrietta realmente tinha
uma preferência por ele; mas, quando ele finalmente já não podia combater a força
dos meus argumentos, ou desvalorizar aquilo que lhe dizia, o seu enlevo, o seu
entusiasmo, o seu êxtase estão para além da minha capacidade de descrever. -Oh, que
adorável criatura - gritei -, como me ama apaixonadamente! Mas, cara Lady Scudamore,
dissê-lhe que sou totalmente dependente dos meus tios? - Sim, contei-lhe tudo. - E que
disse ele? - Protestou com ódio contra tios e tias; acusou as leis de Inglaterra
por lhes permitirem possuir propriedades que são ambicionadas pelos seus sobrinhos
e sobrinhas, e desejou estar ele mesmo na Câmara dos Comuns, para poder reformar
a legislação e rectificar os seus abusos. - Oh, que homem doce! Que espírito tem! -
disse eu. - E acrescentou que seria impensável que a adorável Henrietta
condescendesse
por sua causa a renunciar a todo o luxo e ao esplendor ao qual foi habituada, e a
aceitar em troca apenas o conforto e a elegância que o seu limitado rendimento
lhe poderia permitir, mesmo supondo que a
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sua casa estivesse pronta para a receber. Eu dissê-lhe que, efectivamente, tal não seria
de esperar; estaríamos a ser
injustos para com ela se a supuséssemos capaz de abdicar do poder que agora detém e
que usa de forma tão nobre, ajudando os pobres que são parte dos nossos
semelhantes,
para mera gratificação de vocês os dois. - É verdade - disse eu -, que de vez em quando
sou muito caridosa. E que disse o Sr. Musgrove em relação a este assunto?
- Replicou que sentia uma melancólica necessidade de se apoderar da verdade daquilo
que eu lhe dizia e que, caso fosse ele a feliz criatura destinada a casar com
a bela Henrietta, tinha de se obrigar a esperar, ainda que impacientemente, pelo
afortunado dia em que ela se libertaria do poder de parentes indignos e em que
poderia
entregar-sê-lhe. Que nobre criatura ele é! Oh! Matilda, como sou afortunada, eu, que
serei sua mulher! A minha tia está a chamar-me para ir fazer as tartes, por
isso adieu, minha querida amiga, e acredita que sou a sempre tua, etc. H.

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