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CLÁSSICOS
Amor e Amizade
JANE AUSTEN
Jane Austen (1775-1817), célebre escritora inglesa que em tempo de vida apenas viu
quatro das suas obras publicadas e, mesmo assim, anonimamente, é conhecida por
ser a autora de Sensibilidade e bom Senso e de Orgulho e Preconceito. Mas, na
realidade, é com Amor e Amizade que inicia a sua carreira aos 15 anos de idade.
Obra que trata dos amores de raparigas adolescentes, divide-se em duas novelas
epistolares e em cinco contos em forma de carta. Um dos grandes méritos desta obra
é a sua atualidade Jovens preocupadas exclusivamente com coisas de jovens - iguais às
jovens que conhecemos hoje -, monstros de hipocrisia enquanto fazem de tudo
para serem boas
- amuam, acusam, perdoam, choram, escarnecem, desmaiam, gritam de prazer ou de
ultraje, seduzem e rejeitam, são bondosas e cruéis, intuitivas e, contudo, obtusas.
Hoje em dia, usam os telemóveis para viverem a excitação do momento; há dois
séculos contentavam-se em escrever cartas. Mais uma vez, Jane Austen demonstra a sua
superior capacidade de observação, sendo que quando escreveu Amor e Amizade
estava, ela própria, na adolescência.
www.europa-america.pt
JANE AUSTEN
AMOR E AMIZADE
PUBLICAÇÕES EUROPA-AMÉRICA
Título original: Love and Friendship
Tradução de Patrícia Xavier
Tradução portuguesa (c) de P. E. A., 2006
Capa: estúdios P. E. A.
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Editor: Tito Lyon de Castro
PUBLICAÇÕES EUROPA-AMÉRICA, LDA.
Apartado 8
2726-901 MEM MARTINS
PORTUGAL
E-Mail: secretariado@europa-america.pt
Execução técnica: Gráfica Europam, Lda., Mira-Sintra - Mem Martins
Edição n.o: 1510938801 Maio de 2006
Depósito legal n.o: 24056306
JANEAUSTEN
(1775-1817)
Jane Austen nasceu em 1775, em Steventon, Hampshire, tendo sido a sétima criança
dos oito filhos do casal. O seu pai, o reverendo George Austen, era um homem culto
e com conhecimentos literários, e Jane recebeu a maior parte da sua educação em
casa. Já adulta, mudou-se com a família para Bath, cidade que surge muitas vezes
como cenário da sua ficção literária. Regressaria mais tarde a Hampshire, onde passou
os últimos anos da sua vida e onde veio a falecer da doença de Addison em 1817.
A vida de Jane Austen é quase invulgar pela ausência de acontecimentos - nunca casou
e raramente saía de casa -,
parecendo marcada apenas pela intensidade dos laços familiares que a rodeavam. A
linearidade biográfica é, no entanto, largamente compensada pela criatividade da
sua obra.
Amor e Amizade marca o início da sua carreira aos
14 anos de idade, seguindo-se A History ofEngland, aos dezasseis anos, e A Collection
ofLetters aos dezassete.
Jane Austen teve um olhar atento sobre a sociedade em
que se inseria, e uma postura crítica face ao excessivo sentimentalismo que
caracterizava a maior parte da literatura do seu tempo.
O ridículo que encontra nas tendências da época está bem patente em A Abadia de
Northanger (publicado postumamente em 1818) e em Sensibilidade e bom Senso
(1811).
Orgulho e Preconceito (1813) marca a transição para a fase de maturidade da sua
escrita, em que surgem os seus últimos e, possivelmente, melhores romances. Entre
estes encontra-se Parque Mansfield (1814), a par de Persuasão (também publicado
postumamente em 1818) e Ema (1816).
Nestas obras, apurando o seu estilo numa maior subtileza e numa rigorosa gestão da
ironia, Jane Austen retrata personagens que interagem em compartimentos rígidos
da sociedade, transformando a aparente trivialidade da sua existência numa impiedosa
comédia de costumes.
Apesar de não terem alcançado grande popularidade no seu tempo, as obras de Jane
Austen têm hoje um inequívoco lugar entre os grandes clássicos do século XIX, tendo
várias delas dado origem a filmes e séries televisas de grande qualidade. Sanditon, o
romance que estava a escrever por altura da sua morte, surgiu mais de cem anos
depois, em
1925.
ÍNDICE
Amor e Amizade
As Três Irmãs
Uma Coleção de Cartas
Pág.
9
61
85
Iludida na Amizade e Traída no Amor
A SEGUNDA CARTA
De Laura para Isabel
Apesar de não me ser possível concordar consigo, quando diz que não voltarei a estar
exposta a contrariedades tão imerecidas como aquelas por que passei, para evitar
que me culpem de obstinação ou mesquinhez, vou satisfazer a curiosidade de sua
filha; e que a coragem com que sofri as muitas aflições da minha vida passada lhe
possa servir
12
como uma útil lição para enfrentar aquelas que se lhe depararem
na sua vida.
Laura
A TERCEIRA CARTA
Laura para Maríanne
Como filha da minha amiga mais íntima, penso que tem o direito de conhecer a minha
triste história, a qual a sua mãe tantas vezes me pediu que lhe contasse.
O meu pai era de nacionalidade irlandesa e habitava o País de Gales; a minha mãe era
filha de um nobre escocês
e de uma bailarina italiana - nasci em Espanha e fui educada num convento em França.
Quando completei dezoito anos fui chamada pelos meus pais para viver sob o tecto
paternal, no País de Gales. A
nossa mansão situava-se numa das zonas mais românticas
de Vale of Usk. Apesar de os meus encantos estarem hoje consideravelmente
atenuados e algo prejudicados pelas adversidades por que passei, a verdade é que fui,
em
tempos, bela. Mas, por muito encantadora que fosse, a beleza da minha pessoa era o
menor dos meus atributos. Eu dominava todos os talentos usuais do meu sexo.
Enquanto
me encontrava no convento, o meu progresso sempre excedeu as instruções que me
eram dadas, o meu conhecimento era
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excelente para a minha idade e tinha rapidamente ultrapassado
as minhas mestras.
A minha mente reunia todas as virtudes que podiam adorná-la; era o encontro de
todas as qualidades e de todos os
sentimentos nobres.
Uma sensibilidade tão trémula e tão viva face às aflições dos meus amigos, das pessoas
das minhas relações e, particularmente, às minhas próprias era culpa minha,
se é que a isso se pode chamar de culpa. Infelizmente, como tudo mudou! Embora as
minhas desgraças não me causem uma menor impressão do que aquela que sempre
causaram,
hoje não
me condoo com a infelicidade dos outros. Também os meus
talentos começam a esmorecer-já não sou capaz de cantar tão bem ou dançar tão
graciosamente como em tempos que já lá vão - e esqueci por completo o Minuet Dela
Cour.
Adieu,
Laura
A QUARTA CARTA
De Laura para Marianne
A nossa vizinhança era pequena, pois consistia apenas na sua mãe. Provavelmente ela
própria já lhe terá contado que, tendo sido abandonada pelos seus pais em
circunstâncias
de indigência, ela se retirara para o País de Gales por motivos econômicos Foi então
que a nossa amizade teve início. Isabel tinha nessa altura vinte e um anos.
Ainda que fosse uma pessoa agradável e de boas maneiras, entre nós, ela nunca
possuiu a centésima parte da minha beleza ou dos meus talentos. Isabel viajara.
Passara
dois anos num dos primeiros colégios internos de Londres, passara duas semanas em
Bath e ceara uma noite em Southampton.
"Acautele-se, minha Laura", dizia-me ela tantas vezes.
"Acautele-se com as insípidas vaidades e a indolente libertinagem das metrópoles de
Inglaterra; tenha cuidado com os luxos desprovidos de sentido de Bath e com o
peixe de má qualidade de Southampton."
" Ai de mim!" , exclamava eu. " Como poderei evitar esses males aos quais nunca
estarei exposta? Que probabilidades existem de eu vir algum dia a provar da
libertinagem
de Londres, dos luxos de Bath ou do péssimo peixe de Southampton? Eu que estou
condenada a desperdiçar os meus dias e a minha juventude numa humilde casa em
Vale
of Usk?" Ah! Mal sabia eu então que estava destinada a deixar essa humilde e pequena
casa para ir ao encontro dos enganadores prazeres do mundo. Adieu, Laura 75
49
desmaios ao ar livre, dado o orvalho que se fazia sentir na noite anterior. Receei que
fosse exactamente esse o motivo; assim se explicaria o facto de eu ter
escapado a essa mesma indisposição, pois talvez o esforço físico a que tinha estado
sujeita durante os meus repetidos ataques de histeria tivessem circulado com
eficácia e aquecido o meu sangue, protegendo-me contra as frias humidades da noite,
enquanto Sophia, prostrada no chão e totalmente inactiva, teria estado exposta
a toda a severidade das mesmas. Fiquei seriamente alarmada pela sua doença, a qual,
ainda que lhe possa parecer insignificante a si, uma certa sensibilidade instintiva
me segredava que acabaria por se revelar fatal para ela. Infelizmente, os meus receios
eram bem justificados; Sophia piorou gradualmente e, a cada dia que passava,
mais eu me alarmava com o seu estado. Por fim, Sophia teve de ficar confinada à cama
que nos fora cedida pela nossa boa senhoria. A doença de Sophia revelou-se
uma tuberculose galopante, que em poucos dias a venceu. Entre todas as minhas
lamentações pela sua sorte (e poderá imaginar como foram violentas), pude, no
entanto,
retirar alguma consolação do facto de lhe ter prestado todos os cuidados na doença.
Chorara à sua cabeceira todos os dias... Banhara o seu doce rosto com as minhas
lágrimas, e segurara continuamente as suas mãos brancas entre as minhas. -Minha
adorada Laura-disse-me ela, algumas horas
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antes de morrer -, que o meu triste
fim te sirva de exemplo, e evita a imprudente conduta que o ocasionou... Acautela-te
contra os desmaios... Apesar de, na altura, parecerem retemperadores e agradáveis,
se repetidos com muita frequência e em épocas inadequadas, acredita-me, revelar-se-
ão destrutivos para a nossa constituição... Isto aprenderás com o meu destino...
Morro como mártir da minha dor pela perda de Augustus... Um desmaio fatal custou-
me a minha vida. Toma cuidado com os desmaios, querida Laura... Um ataque de
histeria
não é, de modo algum, tão pernicioso; é um exercício para o corpo e, quando não
demasiado violento, atrevo-me a dizer, pode até trazer consequências benéficas para
a saúde. Delira furiosamente quantas vezes quiseres, mas não desmaies. Foram estas as
últimas palavras que me dirigiu. Na hora da sua morte, este foi o seu conselho
para Laura, que sempre o seguiu fielmente. Depois de ter acompanhado a minha
chorada amiga à sua precoce sepultura, abandonei imediatamente (embora a altas
horas
da noite) a detestável aldeia em que se dera a sua morte, e perto da qual tinham
expirado o meu marido e Augustus. Não percorrera ainda muitos metros quando fui
alcançada por uma carruagem, para a qual logo entrei, determinada a seguir nela até
Edimburgo, onde esperava encontrar algum amigo bom e solidário que me recebesse
e me consolasse na minha aflição. *5; Quando entrei no coche, estava tão escuro que
não consegui distinguir quantos eram os meus companheiros de viagem; podia apenas
perceber que eram muitos. Sem, no entanto, lhes prestar atenção, mergulhei nas
minhas tristes reflexões. Um silêncio geral prevalecia, silêncio esse que nada
interrompia,
a não ser o ruidoso e constante ressonar de um dos viajantes. " Que vilão analfabeto
deve ser!" , pensei para comigo. " Deve ter uma total falta de delicadeza e
refinamento, para se atrever a chocar os nossos sentidos com um ruído de tal forma
brutal! Estou certa de que deverá ser capaz de toda a espécie de má acção! Não
há crime demasiado horrendo para um tal carácter!" Assim racionava eu, e essas eram
também, sem dúvida, as reflexões dos meus restantes companheiros de viagem.
Finalmente, a madrugada permitiu-me contemplar o patife sem princípios que tão
violentamente importunara os meus sentidos. Tratava-se de Sir Edward, o pai do meu
falecido marido. Sentada o seu lado estava Augusta e, no mesmo assento onde eu me
encontrava, estavam a sua mãe, minha cara Marianne, e Lady Dorothea. Imagine a
minha surpresa ao encontrar-me sentada entre os meus velhos conhecidos. Sendo
enorme a minha surpresa, esta viu-se ainda aumentada quando, ao olhar para fora da
janela, vi o marido de Philippa, com Philippa ao seu lado, na cabina, e quando, ao
olhar para trás, encontrei Philander e Gustavus no basket.
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- Oh, valha-me Deus! - exclamei. - Será possível
que me encontre inesperadamente rodeada das minhas relações mais próximas? - Estas
palavras despertaram os outros, e todos os
olhares se dirigiram para o canto onde eu me encontrava sentada. - Oh, minha Isabel -
prossegui, atravessando-me sobre o colo de Lady Dorothea para me lançar nos
braços da minha amiga -, receba uma vez mais junto ao seu peito a sua desafortunada
Laura. Ai de mim! Desde que nos separámos em Vale of Usk, eu estava feliz por
me unir ao melhor dos Edwards; tinha então um pai e uma mãe, e não conhecera
ainda contrariedades. Mas agora, privada de todos os amigos, à excepção de si... -O
quê?! - interrompeu-me Augusta. - O meu irmão morreu, então? Conte-nos, suplico-
lhe, o que lhe aconteceu! - Sim, ninfa fria e insensível-retorqui -, esse infeliz
amante, seu irmão, perdeu a vida, e pode agora rejubilar por ser a única herdeira da
fortuna de Sir Edward. Embora sempre a tivesse desprezado, desde o dia em que
ouvira a sua conversa com o meu Edward, acedi, educadamente, às suas súplicas, bem
como às de Sir Edward, e informei-os de toda a triste história. Ficaram tremendamente
chocados... Até o endurecido coração de Sir Edward e o insensível coração de Augusta
foram tocados pela trágica narrativa. A pedido da sua mãe, relatei-lhes todas
as outras calamidades que se tinham abatido sobre mim desde que nos tínhamos
separado. A prisão de Augustus e a ausência
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de Edward, a nossa chegada à Escócia,
o nosso inesperado encontro com o meu avô e os meus primos, a nossa visita a
Macdonald Hall, a singular ajuda que tínhamos fornecido a Janetta, a ingratidão do
pai desta, a sua atitude desumana, as suas inexplicáveis suspeitas e a forma Bárbara
como nos obrigara a partir, as nossas lamentações a respeito da perda de Edward
e de Augustus e, finalmente, a melancólica morte da minha adorada companheira. A
piedade e o espanto tomaram conta do semblante de sua mãe durante toda a minha
narração,
mas, lamento dizê-lo, para eterna censura da sua sensibilidade, o último predominou
significativamente. Além disso, apesar da minha conduta obviamente irrepreensível
no decurso de todas estas aflições e aventuras, ela declarou ter achado o meu
comportamento censurável em muitas das situações em que me encontrei. Estando eu
consciente
de que sempre agira de um modo que reflectia a honra e o refinamento dos meus
sentimentos, pouca atenção prestei ao que ela dizia e apressei-a a satisfazer a minha
curiosidade, explicando-me como ali tinha ido parar, em vez de ferir a minha
reputação imaculada com injustificáveis censuras. Assim que ela acedeu ao meu
pedido
e me explicou detalhadamente tudo o que lhe sucedera desde a nossa separação (e,
caso não os conheça já, a sua mãe poderá contar-lhe esses acontecimentos em
pormenor),
solicitei a Augusta que me contasse, por sua vez, o que lhe sucedera a ela, a Sir Edward
e a Lady Dorothea.
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Augusta contou-me que, tendo um gosto particular
pelas coisas belas da natureza, a sua curiosidade fora despertada pela viagem de Gilpin
às Terras Altas
e sentira vontade de contemplar as encantadoras vistas5
que se encontram nessa parte do mundo. Assim, convencera o seu pai a levá-la numa
viagem à Escócia e persuadira Lady Dorothea a acompanhá-los. Contou-me que tinham
chegado a Edimburgo alguns dias antes e, desde então, tinham feito excursões diárias
aos campos em redor na diligência em que agora se encontravam, estando nesse
preciso momento a regressar de uma delas. As minhas perguntas seguintes diziam
respeito a Philippa e ao seu marido, e fiquei a saber que este último, tendo gasto
toda a fortuna dela, recorrera por uma questão de subsistência ao seu maior talento,
ou seja, a condução de carruagens. Fiquei ainda a saber que, tendo vendido
tudo o que possuíam à excepção do seu coche, ele tinha-o convertido numa diligência.
Para se afastar das pessoas das suas relações, deslocara-se para Edimburgo,
de onde diariamente partia para Stirling. Soube também que Philippa, conservando o
seu afecto por aquele marido ingrato, o seguira até à Escócia e geralmente o
acompanhava nas suas pequenas excursões a Stirling.
*5 A obra Observations on several parts ofGreat fintam, particularly the High-lands of
Scotland, relative chiefly
to picturesque beauty, made in the year 1776, de William Gilpin, teve a sua primeira
edição em 1789, um ano antes de Amor e Amizade ser escrito.
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- Foi apenas para deixar algum dinheiro nos bolsos
deles - continuou Augusta - que meu pai tem viajado sempre na sua diligência para
contemplar as maravilhas do campo, desde
que chegámos à Escócia, pois ser-nos-ia certamente muito mais agradável visitar as
Terras Altas numa post-chaise do que viajar simplesmente de Edimburgo para Stirling
e de Stirling para Edimburgo todos os dias numa diligência desconfortável e cheia de
gente. Eu não podia concordar mais com ela a este respeito e censurei secretamente
Sir Edward por assim sacrificar o prazer de sua filha em favor de uma velhota ridícula
cuja loucura ao casar com um homem tão jovem merecia castigo. No entanto,
o comportamento de Sir Edward estava em absoluta concordância com o seu carácter
em geral; pois que se poderia esperar de um homem que não possuía o mais pequeno
átomo de sensibilidade, que mal conhecia o significado da palavra solidariedade e que
até ressonava... ? Adieu, Laura
A DÉCIMA QUINTA CARTA Laura, em continuação
Quando chegámos à cidade onde iríamos tomar o pequeno-almoço, eu estava
determinada a falar com Philander e
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Gustavus e, com esse propósito, assim que saímos da
carruagem, dirigi-me ao basket e inquiri docemente a respeito da saúde de ambos,
mostrando-me solidária com o desconforto da sua situação. A princípio, pareceram
bastante confusos com a minha presença ali, receando, sem dúvida, que eu lhes
pedisse contas relativamente ao dinheiro que o meu avô me dera e do qual eles
injustamente
me tinham privado, mas, ao verem que eu não mencionava o assunto, convidaram-me
a entrar no basket, para conversarmos mais à vontade. Concordei em entrar e,
enquanto
os nossos companheiros de viagem devoravam chá verde e torradas, nós
banqueteámo-nos de uma forma mais sentimental e refinada, com uma conversa
confidencial. Informei-os
de tudo o que me acontecera do decurso da minha vida e, a meu pedido, eles
contaram-me todos os incidentes das suas. - Nós somos filhos, como já sabe, das duas
filhas
mais novas que Lorde St Clair teve com Laurina, uma bailarina italiana. As nossas mães
não podiam afirmar ao certo quem eram os nossos pais, mas consta que Philander
é filho de um tal de Philip Jones, um pedreiro, e que o meu pai era um tal de Gregory
Staves, um fabricante de espartilhos oriundo de Edimburgo. No entanto, isto
não traz consequências graves, pois, como as nossas mães nunca casaram com eles,
não houve desonra para o nosso sangue, que é de uma estirpe pura e antiga. " -
Bertha, a mãe de Philander, e Agatha, minha mãe,
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sempre viveram juntas. Nenhuma delas era muito rica; as suas fortunas somadas
perfaziam, inicialmente, um total
de nove mil libras, mas como viviam deste dinheiro, quando nós completámos quinze
anos restavam apenas novecentas. Estas novecentas libras estavam guardadas numa
gaveta de uma escrivaninha que se encontrava na nossa sala comum, dado que era
conveniente ter o dinheiro à mão. Se foi devido a estas circunstâncias, ao facto
de ser de fácil alcance, ou se foi devido à nossa vontade de nos tornarmos
independentes, ou devido a um excesso de sensibilidade (característica que sempre
nos
distinguiu), não posso precisar. O certo é que, quando atingimos os nossos quinze
anos de idade, pegámos nas novecentas libras e fugimos. Tendo obtido este prêmio,
estávamos determinados a geri-lo com parcimónia e a não o gastar de forma estouvada
ou extravagante. Assim, dividimos a referida quantia em nove parcelas, uma das
quais destinámos aos bens essenciais; a segunda destinámos à bebida, a terceira à
manutenção da casa, a quarta ao aluguer de carruagens, a quinta reservámos para
cavalos, a sexta para criados, a sétima para a paródia, a oitava para roupa e a nona para
fivelas de prata. " - Tendo assim assegurado o pagamento das nossas despesas
ao longo de dois meses (pois tencionávamos fazer com que as novecentas libras
durassem todo esse tempo), partimos apressadamente para Londres e tivemos a boa
sorte
de as gastar em sete semanas e um dia, o que redundou
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em menos seis dias do que o esperado. Assim que nos desembaraçámos alegremente
do peso de tanto dinheiro,
começámos a considerar a hipótese de voltar para junto das nossas mães. Porém,
tendo acidentalmente ouvido dizer que ambas tinham morrido à fome, desistimos
desta
intenção e decidimos juntar-nos a uma companhia de actores itinerante, uma vez que
sempre tivemos queda para o palco. Assim, oferecemos os nossos serviços a uma
delas e fomos aceites. A nossa companhia era, na verdade, muito pequena, uma vez
que consistia apenas no director, a mulher dele e nós mesmos. Mas, deste modo,
havia menos gente a quem pagar, e o único inconveniente era a escassez de peças que
podíamos representar, tendo em conta a falta de pessoas para encarnar as
personagens.
" - Mas não nos preocupamos com pormenores. Um dos nossos desempenhos mais
admirados foi Macbeth, na qual nos mostrámos verdadeiramente geniais. O director
representou
ele próprio o papel de Banquo, e a mulher dele representou Lady Macbeth. Eu fiz o
papel das Três Bruxas e Philander encarregou-se de tudo o resto. Para ser sincero,
esta peça não foi apenas a melhor, mas a única peça que alguma vez levámos a palco; e
depois de a termos representado em toda a Inglaterra e no País de Gales, viemos
para a Escócia, para a exibir no resto da Grã-Bretanha. Acabámos por vir para esta vila
para onde veio também, e onde encontrou o avô.
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" - Encontrávamo-nos no pátio da estalagem
quando a carruagem dele entrou e, tendo compreendido pelas armas a quem
pertencia, e sabendo que Lorde St Clair era nosso avô, concordámos em
fazer os possíveis para ganhar alguma coisa dele revelando o nosso parentesco. Sabe
bem como tudo correu na perfeição. Tendo obtido as duzentas libras, abandonámos
imediatamente a vila, deixando o director e a mulher a representarem Macbeth
sozinhos, e tomámos a estrada para Stirling, onde gastámos a nossa pequena fortuna
em
grande aparato. Estamos agora de regresso a Edimburgo, para tentarmos conquistar
um lugar no mundo do teatro. E esta, minha querida prima, é a nossa história.
Agradeci
ao simpático jovem a sua interessante narração e, depois de ter expressado os meus
desejos de bem-estar e felicidades, deixei-os na sua pequena habitação e regressei
para junto dos meus amigos, que me aguardavam impacientemente. As minhas
aventuras aproximam-se agora do fim, minha querida Marianne; pelo menos por
agora. Quando
chegámos a Edimburgo, Sir Edward disse-me que, sendo eu a viúva de seu filho,
desejava que eu aceitasse da sua parte o valor de quatrocentas libras por ano. Aceitei
educadamente, mas não pude deixar de observar que o antipático baronete me fazia
aquela oferta mais por eu ser a viúva de Edward do que por ser a encantadora e
requintada Laura.
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Escolhi para residir uma aldeia romântica nas Terras Altas da Escócia, onde desde
então tenho permanecido e onde posso, sem ser interrompida
por visitas inoportunas, entregar-me a uma solidão melancólica, lamentando
incessantemente as mortes do meu pai, da minha mãe, do meu marido e da minha
amiga. Augusta
uniu-se há vários anos a Granam, de entre todos os homens aquele que para ela era
mais adequado; conheceram-se aquando da estada dela na Escócia. Ao mesmo tempo,
Sir Edward, na esperança de conseguir um herdeiro para o seu título e para a sua
propriedade, casou com Lady Dorothea. Os seus desejos foram atendidos. Philander
e Gustavus, depois de terem ganho uma reputação no meio do teatro de Edimburgo,
mudaram-se para Covent Garden, onde ainda actuam sob os nomes artísticos de Lewis
e Quick. Philippa há muito que partiu; o seu marido, todavia, continua a conduzir a
diligência entre Edimburgo e Stirling. Adieu, minha querida Marianne. Laura
As Três Irmãs
Para Edward Austen1 Esq., o romance inacabado que se segue é-lhe respeitosamente
dedicado pela sua humilde serva, a autora Edward Austen (1767-18
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) era o irmão mais velho de Jane Austen.
Da Menina Stanhope para a Sra. **
Minha querida Fanny, Não há no mundo criatura mais feliz do que eu, pois recebi um
pedido
de casamento por parte do Sr. Watts. É o primeiro pedido de casamento que me fazem
e nem sei como lhe dar o devido valor. Como triunfarei sobre as Duttons! Não
tenciono
aceitar, ou pelo menos assim o creio, mas, como não tenho a certeza absoluta, dei-lhe
uma resposta dúbia e deixei-o. E agora, minha querida Fanny, quero o teu conselho,
para saber se hei-de aceitar esta proposta ou não mas, para que fiques em posição de
avaliar os seus méritos e toda a situação, irei relatar-tos. Ele é um homem
já bastante velho, com trinta e dois anos, tão feio que nem suporto olhar para ele. É
extremamente desagradável e odeio-o mais do que a qualquer outra pessoa no
mundo. Tem uma vasta fortuna e fará de mim sua herdeira; mas, por outro lado, é
extremamente saudável. Em suma, não sei o que hei-de fazer. Ele praticamente
confessou
que, se eu o rejeitar, pedirá em casamento Sophia e, se ela o rejeitar, pedirá
Georgiana, e eu não suportaria que uma delas casasse antes de mim. Se o aceitar,
sei que serei infeliz para o resto da minha vida, pois ele tem mau gênio e é rabugento,
extremamente ciumento e tão avarento que deve ser impossível viver com ele.
Disse-me que ia falar no assunto à Mamã, mas insisti para que não o fizesse, pois
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era bem provável que ela me fizesse casar com ele, querendo ou não; no entanto,
a esta altura, ele já deve ter falado com ela, pois nunca age como lhe pedem. Acho que
vou aceitá-lo. Será um tremendo triunfo casar antes de Sophy, de Georgiana
e das Duttons; e ele prometeu comprar uma nova carruagem para a ocasião, embora já
tenhamos discutido a respeito da cor, pois eu fazia questão de que fosse azul
e sarapintada de prata, e ele declarou que seria de um horrível castanho-chocolate; e,
para me provocar ainda mais, disse que seria tão baixa como a sua antiga
carruagem. Não aceitarei casar com ele, está decidido. Ele disse que voltaria amanhã,
para saber a minha resposta definitiva, por isso acho que é melhor agarrá-lo
enquanto é tempo. Sei bem que as Duttons me invejarão e que poderei fazer de
chaperon para Sophy e Georgiana em todos os bailes do Inverno. Mas, afinal, isso
também
não servirá de nada, já que é bem provável que ele não me deixe ir, pois sei que
detesta dançar e, quando detesta uma coisa, não se importa com os gostos das outras
pessoas. Além disso, ele fala muito a respeito de as mulheres ficarem em casa e outras
coisas do gênero. Estou certa de que não o aceitarei; recusá-lo-ia de uma
vez se tivesse a certeza de que nenhuma das minhas irmãs o aceitaria e de que, nesse
caso, ele não procuraria as Duttons. Não posso correr um tal risco, por isso,
se ele prometer encomendar a carruagem como eu gostava,
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casarei com ele; se não, bem pode passear-se nela sozinho. Espero que te agrade a
minha determinação;
não consigo pensar em algo melhor. Tua muito dedicada, Mary
Stanhope Da mesma para a mesma
Querida Fanny, Tinha acabado de selar a minha última carta para ti quando
a minha mãe surgiu e disse que queria falar comigo a respeito de um assunto muito
particular. - Ah! Já sei a que se refere - disse eu. - Aquele velho tonto do Sr.
Watts já lhe contou tudo, apesar de lhe ter pedido que não o fizesse. Mas não me vai
obrigar a aceitá-lo se eu não gostar da ideia. - Não te obrigarei, filha, mas
quero saber qual é a tua resolução relativamente às suas propostas, e tenciono insistir
para que te decidas, de uma forma ou de outra, pois se não o aceitares,
talvez Sophy aceite. - com efeito - repliquei apressadamente. - Sophy não precisa de se
preocupar, pois estou certa de que casarei com ele eu própria. - Se é essa
a tua decisão - disse a minha mãe -, por que haverias de recear que eu forçasse as tuas
inclinações?
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- Ora, porque ainda não decidi se quero ou não casar com
ele. - És uma rapariga muito estranha, Mary. Aquilo que dizes num instante, desdizes
no instante seguinte. Diz-me, de uma vez por todas, se pensas casar com o Sr.
Watts ou não! - Mamã, como posso dizer-lhe algo que eu própria ignoro? - Então,
desejo que o descubras, e depressa, pois o Sr. Watts diz que não quer ser mantido
na dúvida. - Isso depende de mim. -Não, não depende, pois se não lhe deres a tua
resposta final até amanhã, quando ele vier tomar chá connosco, ele tenciona declarar-
se
a Sophy. - Nesse caso, direi a toda a gente que ele se comportou muito mal em relação
a mim. - E de que adiantará isso? O Sr. Watts é maltratado por toda a gente
há demasiado tempo para se importar com isso agora. - Quem me dera ter pai ou um
irmão, pois lutariam com ele. - Seria engraçado se o fizessem, pois o Sr. Watts
fugiria primeiro. Bem, sendo assim, tens de te decidir a aceitar ou a rejeitar o seu
pedido até amanhã ao fim da tarde. - Mas, se eu não o quiser, porque é que
ele tem de pedir a mão às minhas irmãs?
67
- Ora essa! Porque ele deseja unir-se à nossa família, e porque elas são tão bonitas
como tu. - Mamã, mas, se ele a pedir
em casamento, será que Sophy o aceitará? - Muito provavelmente. Por que razão não
havia de aceitar? Todavia, se ela não o fizer, então Georgiana terá de casar com
ele, já que estou determinada a não deixar escapar esta oportunidade de conseguir um
casamento tão vantajoso para uma das minhas filhas. Posto isto, aproveita bem
o tempo; deixo-te, para resolveres o assunto sozinha. - E, assim dizendo, saiu. A única
ideia que me ocorre, querida Fanny, é perguntar a Sophy e a Georgiana se
o aceitarão, caso ele as peça em casamento, e, se me responderem que não, estou
resolvida a rejeitá-lo também, pois odeio-o mais do que possas imaginar. No que
se refere às Duttons, se ele casar com uma delas, terei sempre o triunfo de tê-lo
recusado primeiro. Assim, adieu, minha querida amiga. Da tua sempre, M.S.
68
Menina Georgiana Stanhope para Menina **
Quarta-feira Minha querida Anne, Sophy e eu temos vindo a pregar uma pequena
partida à nossa irmã mais velha, com a qual não estamos
ainda totalmente reconciliadas, e as circunstâncias foram tais que se alguma coisa o
puder desculpar, assim terá de ser. O nosso vizinho, Sr. Watts, fez um pedido
de casamento a Mary, pedido esse que ela não sabia como receber, pois apesar de
sentir um particular desagrado em relação a ele (e não é a única a senti-lo), ela
preferiria ainda assim casar com ele a arriscar que ele me fizesse o pedido a mim ou a
Sophy, que é o que ele disse que faria caso ela o recusasse. Bem sabes que
a pobre rapariga considera que nós casarmos antes dela seria a pior desgraça que lhe
poderia acontecer e, para a evitar, estaria disposta a garantir para si uma
vida de eterna infelicidade, casando-se com o Sr. Watts. Há uma hora atrás, Mary veio
ter connosco para sondar as nossas inclinações relativamente ao assunto, de
forma a decidir o que fazer. Um pouco antes de ela vir, a minha mãe fizera-nos saber
que estava decidida a fazer com que ele encontrasse uma mulher na nossa família.
- Assim - disse ela -, se Mary não aceitar casar com ele, Sophy terá de o fazer, e se
Sophy não o fizer, então
69
Georgianaará. Pobre Georgiana! Nenhuma de nós tentou
alterar a resolução da minha mãe, a qual, lamento dizê-lo, é geralmente mantida de
forma rígida, apesar de não costumar ser formada de modo muito racional. Logo
que ela saiu, contudo, quebrei o silêncio para assegurar a Sophy que, se Mary
recusasse o Sr. Watts, eu não esperaria que ela sacrificasse a sua felicidade, tornando-se
mulher dele, num gesto de generosidade para comigo, coisa que receio que o seu bom
coração e a sua afeição de irmã poderiam induzi-la a fazer. - Vamos esperar -
replicou ela - que Mary não o recuse. No entanto, como posso eu desejar que a minha
irmã aceite um homem que não a fará feliz? - Ele não pode, é verdade, mas a sua
fortuna, o seu nome, a sua casa e a sua carruagem podem, e não tenho dúvidas de que
Mary irá casar com ele; na verdade, por que não havia de casar? Ele tem apenas
trinta e dois anos, uma idade muito decente para um homem se casar; é bastante feio,
efectivamente, mas o que é a beleza num homem? Se tiver uma figura elegante
e um rosto com um ar sensato, é suficiente. - Isso é tudo verdade, Georgiana, mas
infelizmente a figura do Sr. Watts é extremamente vulgar e a sua fisionomia é bastante
carregada. - E, no que se refere ao seu temperamento, tem sido considerado difícil,
mas as pessoas também podem tê-lo
70
avaliado mal. Há uma franqueza na maneira
de ser dele que fica bem a um homem. Dizem que é avarento; chamemos-lhe
prudente. Dizem que é desconfiado; isso deriva de um bom coração sempre
desculpável na juventude
e, resumindo, não vejo por que razão ele não daria um bom marido, ou por que
motivo Mary não haveria de ser muito feliz com ele. Sophy riu. - No entanto -
prossegui
-, quer Mary o aceite ou não, estou determinada. A minha decisão está tomada. Jamais
me casaria com o Sr. Watts, nem que a alternativa a isso fosse andar a pedir
esmola. Deixa tanto a desejar em todos os aspectos! Hediondo, e sem uma boa
qualidade que compense essa característica. A sua fortuna é, na verdade, apelativa.
Mas também não é assim tão grande! Três mil por ano. O que é isso? Apenas seis vezes
mais do que o rendimento de minha mãe. Nada que me deixe tentada. - Mas será
uma nobre fortuna para Mary - disse Sophy, rindo de novo. - Para Mary! Sim, com
efeito, ficarei contente de a ver com uma tal fartura. Assim continuei, divertindo
imensamente a minha irmã, até que Mary entrou no quarto em grande agitação.
Sentou-se. Arranjámos-lhe espaço junto à lareira. Parecia não saber como começar e,
por
fim, de uma forma algo confusa, disse: - Diz-me, Sophy, tencionas casar-te?
71
- Casar-me! De modo nenhum. Mas por que perguntas? Sabes de alguém que queira
pedir
a minha mão? -Eu... não... Como poderia saber? Mas posso fazer-te uma pergunta
comum? - Não demasiado comum, Mary, certamente - respondi-lhe. Ela fez uma pausa
e,
após alguns instantes de silêncio, continuou: - Gostarias de casar com o Sr. Watts,
Sophy? Pisquei o olho a Sophy e respondi por ela. - Quem não ficaria contente
de casar com um homem que ganha três mil por ano? - Isso é bem verdade - replicou
ela. - Realmente verdade. Então, casarias com ele, caso ele te pedisse, Georgiana,
e também tu, Sophy? Sophy não gostava da ideia de mentir e enganar a nossa irmã;
evitou a primeira situação e salvou metade da sua consciência criando um equívoco.
- Faria aquilo que Georgiana fizesse. - Muito bem - disse Mary, com uma expressão
triunfante. - O Sr. Watts pediu-me em casamento. Mostrámo-nos, claro, muito
surpreendidas.
- Oh! Não aceites - disse eu -, e talvez assim ele me queira a mim. Resumindo, o meu
esquema resultou, e Mary está decidida a casar com ele para evitar a nossa felicidade,
quando não seria capaz de fazer o mesmo para a garantir. Todavia,
72
afinal, o meu coração não consegue absolver-me e Sophy mostra-se ainda mais
escrupulosa. Tranquiliza
as nossa mentes, minha querida Anne, escrevendo-nos e dizendo-nos que aprovas a
nossa conduta. Pensa bem sobre o assunto. Mary sentir-se-á verdadeiramente satisfeita
por ser uma mulher casada, e por poder ser nossa chapemn, que é o que certamente
fará, pois considero-me na obrigação de contribuir tanto quanto possível para a
sua felicidade, numa situação que a levei a escolher. Provavelmente terão uma nova
carruagem, e ela sentir-se-á no paraíso por isso, e se conseguirmos convencer
o Sr. Watts a preparar o seuphaeton ela ficará realmente contente. Para mim ou para
Sophy, no entanto, estas coisas não serviriam de consolação pela infelicidade
doméstica. Tem tudo isto em mente e não nos condenes. Sexta-feira Na noite passada,
conforme marcado, o Sr. Watts veio tomar chá connosco. Assim que a sua carruagem
parou frente à nossa porta, Mary foi até à janela. - Consegues acreditar, Sophy - disse
ela - que o velho palerma quer a sua nova carruagem exactamente da cor da
antiga e igualmente baixa! Mas não será assim; eu levarei a minha ideia por diante. E se
ele não deixar que seja tão alta como a das Duttons, e azul sarapintada
de
73
prata, não caso com ele. Sim, na verdade, casarei. Aí vem ele. Sei que será mal-
educado; sei que estará maldisposto e que não me dirá uma única frase civilizada,
nem se portará como um apaixonado! - De seguida, sentou-se, e o Sr. Watts entrou. -
Minhas senhoras, um vosso humilde criado. - Cumprimentámo-lo e ele sentou-se.
- Que belo tempo que está, minhas senhoras. - Voltou-se em seguida para Mary. Bem,
menina Stanhope, espero que tenha chegado a uma conclusão, e que faça o favor
de me dizer se tenciona condescender a casar comigo. - Julgo, senhor - disse Mary -,
que poderia ter feito o pedido de uma forma mais delicada. Nem sei se devo aceitá-lo
quando se comporta de modo tão estranho. - Mary! - exclamou a minha mãe. - Bem,
Mamã, se ele vai ficar tão zangado... - Chiu, chiu, Mary, não vais ser mal-educada
com o Sr. Watts. - Peço-lhe, minha senhora, não reprima a menina Stanhope
obrigando-a a ser educada. Se ela não quiser aceitar a minha mão, posso oferecê-la a
outra
pessoa, pois não tenho qualquer preferência por ela em relação às irmãs. É-me
indiferente com qual das três vou casar. Nunca houve patife igual! Sophy estava
ruborizada
de raiva e eu senti-me cheia de rancor! - Muito bem - disse Mary, num tom irritado.
Casarei consigo se tiver de ser.
74
- Queria-me parecer, menina Stanhope, que
quando se faz uma proposta como aquela que lhe fiz, não deve existir grande violência
sobre a inclinação da pessoa que aceitará o pedido. A minha mãe murmurou alguma
coisa que eu, sentada bem junto dela, consegui apenas distinguir como sendo: - De
que serve uma excelente herança se os homens vivem para sempre?-E depois
prosseguiu,
audivelmente: - Não se esqueça do pin money2; duzentas por ano. - Cento e setenta e
cinco, minha senhora. - Duzentas, sem tirar nem pôr - disse a minha mãe. - E
lembre-se que quero ter uma carruagem nova, tão alta como a das Duttons, azul e
prateada, e espero um novo cavalo selado, um fato de renda de qualidade e um
número
infinito das jóias mais valiosas. Diamantes como nunca antes se viram! E pérolas, rubis,
esmeraldas e inúmeras contas. Tem de arranjar o seu phaeton, o qual deverá
ser creme, com um anel de flores prateadas em volta. Tem de comprar quatro dos
melhores bays3 do reino e levar-me a passear nele todos os dias. E não é tudo. Terá
de remobilar a sua casa de acordo com o meu gosto. Terá de contratar mais dois
criados para me servirem, duas mulheres para 2 Pin-money era a quantia dispensada
pelo marido à mulher, destinada à compra de roupa e de outros artigos. 3 Cavalo de
pelagem castanha com tons de dourado. (N. do E.)
75
me acompanharem, terá de me deixar fazer sempre
o que eu quiser e terá de ser um óptimo marido. Aqui ela interrompeu-se, suponho
que sem fôlego. -As expectativas da minha filha são muito razoáveis,
Sr. Watts. - E é muito razoável, Sra. Stanhope, que a sua filha se sinta desapontada. -
Ele preparava-se para continuar, mas Mary interrompeu-o. - Tem de me construir
uma estufa elegante e enchê-la de plantas. Tem de me deixar passar todos os Invernos
em Bath, todas as Primaveras na cidade, todos os Verões numa qualquer viagem
e todos os Outonos numas termas, e se passarmos o resto do ano em casa - Sophy e eu
ría- mos - deverá dar constantemente festas e bailes de máscaras. Terá de construir
uma sala para o efeito e um teatro onde serão exibidas peças. A primeira peça que
teremos será Which is the Man4, e eu representarei o papel de Lady Bell Bloomer.
- E diga-me, menina Stanhope - retomou o Sr. Watts -, que deverei esperar de si em
troca de tudo isto? - Esperar? Ora, pode esperar ver-me satisfeita. - Seria estranho
se não fosse esse o caso. As suas expectativas, minha senhora, são demasiado elevadas
para
4 Which is the Man é uma comédia sentimental da autoria de Hannah Cowley
(1
743 -1809), representada pela primeira vez em 1782.
76
mim, pelo que terei de fazer o pedido à menina Sophy, que talvez não tenha colocado
a fasquia tão alta. -Engana-se
na sua suposição, Sr. Watts - disse Sophy. - Pois apesar de não serem exactamente da
mesma natureza, as minhas expectativas são tão elevadas como as da minha irmã,
pois espero que o meu marido seja amável e alegre, que consulte a minha opinião em
todas as suas acções e que me ame com constância e sinceridade. O Sr. Watts olhou-a,
incrédulo. -Essas são, na verdade, ideias bem estranhas, menina. É melhor pô-las de
lado antes de se casar, ou ver-se-á obrigada a fazê-lo depois. Entretanto, a
minha mãe dava um sermão a Mary, que reconheceu que fora longe de mais e, quando
o Sr. Watts se preparava para se dirigir a mim, a voz dela fez-se ouvir, meio humilde
e meio zangada. - Engana-se, Sr. Watts, se pensa que eu falava a sério quando disse que
esperava tanto. Todavia, tenho de ter uma nova carruagem. - Sim, senhor,
tem de admitir que Mary tem direito a esperar que assim seja. - Sra. Stanhope, eu
tenciono e sempre tencionei ter uma carruagem nova para o meu casamento. Mas será
da mesma cor daquela que tenho agora. -Penso, Sr. Watts, que deveria conceder à
minha filha o desejo de ver o seu gosto consultado em assuntos como este.
77 O Sr. Watts não concordava com isto e, durante algum tempo, insistiu que a
carruagem devia ser cor de chocolate, enquanto Mary fazia questão de que fosse azul
e prateada.
Por fim, Sophy sugeriu que, para agradar ao Sr. Watts, deveria ser de um castanho
escuro, e que, para fazer a vontade a Mary, deveria ser alta e apresentar um rebordo
prateado. Acabaram, então, por chegar a um acordo, embora com alguma relutância de
ambos os lados, visto que ambos queriam fazer as coisas exactamente à sua maneira.
Prosseguimos então para outros assuntos, e ficou combinado que se casariam assim
que os papéis estivessem prontos. Mary queria muito uma licença especial e o Sr.
Watts falava da afixação de um anúncio de casamento. Acabaram por concordar numa
licença comum. Mary ficará com todas as jóias da família, que, segundo julgo, não
têm grande valor, e o Sr. Watts prometeu comprar-lhe um cavalo selado, mas, a troco
disso, Mary não poderá ir à cidade ou a qualquer outro sítio público durante
três anos. Não terá estufa, teatro ou phaeton; terá de se contentar com uma criada,
sem um lacaio adicional. A noite prolongou-se com a discussão de todos estes
assuntos; o Sr. Watts ceou connosco e só se foi embora à meia-noite. Mal ele saiu, Mary
exclamou: - Graças a Deus! Até que enfim que saiu. Como eu o odeio! A Mamã
tentou, em vão, fazê-la ver como estava errado
78
falar assim do seu futuro marido, mas Mary persistiu em declarar a aversão que sentia
por ele, dizendo ainda que
esperava não voltar a vê-lo. Que casamento será este! Adieu, minha querida Anne Tua
sempre, Georgiana
Stanhope Da mesma para a mesma Sábado
Querida Anne, Mary,
desejosa de que todos soubessem do seu casamento que se realizará em breve, e mais
desejosa ainda de triunfar, como ela diz, sobre as Duttons, quis que fôssemos
com ela a Stoneham, esta manhã. Como não tínhamos mais nada para fazer, acedemos
prontamente, e demos um passeio tão agradável quanto era possível fazê-lo na
companhia
de Mary, cujo único tema de conversa consistiu em maltratar o homem com quem vai
casar e em expressar o desejo de ter uma carruagem azul e prateada. Quando
chegámos
a casa dos Duttons, encontrámos as duas raparigas no quarto de vestir com um jovem
muito atraente, o qual, naturalmente, nos foi apresentado. É o filho de Sir Henry
Brudenell de Leicestershire. O Sr. Brudenell é o rapaz mais
79
bonito que alguma vez vi na minha vida; ficámos as três encantadas com ele. Mary, que
desde o momento
em que chegámos ao quarto estava a inchar com a sua própria importância e com o
desejo de a tornar conhecida, não conseguiu calar o assunto durante muito tempo
depois de estarmos sentadas, e pouco depois, dirigindo-se a Kitty, disse: -Não achas
que será necessário ter todas as jóias limpas? - Necessário para quê? - Ora!
Para a minha apresentação. - Peço desculpa, mas realmente não estou a compreender-
te. De que jóias estás a falar, e onde vai ser a tua apresentação? - No próximo
baile, evidentemente, depois do meu casamento. Podes imaginar a surpresa delas.
Primeiro mostraram-se incrédulas, mas depois, quando corroborámos a história,
finalmente
acreditaram. - E com quem vais casar? - foi, claro está, a primeira pergunta. Mary fingiu-
se muito tímida e respondeu com um ar confuso, de olhos postos no chão:
- com o Sr. Watts. - Também aqui foi necessária a nossa confirmação, pois era bem
difícil de acreditar por que razão uma rapariga com a beleza e as posses (embora
moderadas) de Mary casaria de livre vontade com o Sr. Watts. Estando o assunto
exposto, Mary viu-se o centro das
80
atenções, abandonou o seu ar confuso e mostrou-se
perfeitamente extrovertida e comunicativa. -Estranho que não tenham sabido disto
antes, pois, normalmente, notícias desta natureza rapidamente se tornam conhecidas
na vizinhança. - Garanto-te - disse Jemina -, nunca tive a mínima suspeita de um tal
assunto. Já dura há muito tempo? - Oh! Sim, já desde quarta-feira. Todos sorriram,
em particular o Sr. Brudenell. - Devem saber que o Sr. Watts está muito apaixonado
por mim, é uma verdadeira afeição do lado dele. - E não só do lado dele, suponho
- disse Kitty. - Oh! Quando há tanto amor de um lado, não há oportunidade para que
exista do outro lado. No entanto, não desgosto inteiramente dele, apesar de ser
realmente feio. O Sr. Brudenell olhou-a fixamente, as meninas Duttons riram, e eu e
Sophia sentimos uma profunda vergonha da nossa irmã. Mary prosseguiu. - Vamos
ter uma nova post-chaise e muito provavelmente vamos arranjar o nosso phaeton.
Sabíamos bem que isto era mentira, mas a pobre rapariga estava tão feliz com a ideia
de persuadir os outros de que assim era que eu não iria privá-la de um prazer tão
inofensivo. Continuou. - O Sr. Watts vai presentear-me com as jóias de família,
que imagino que serão bastante consideráveis.
81
- Eu imagino o contrário - não consegui impedir-me de segredar a Sophy. - São essas
jóias que terão de ser limpas
antes de poderem ser usadas. Só as usarei no primeiro baile a que for depois do meu
casamento. Se a Sra. Dutton não for a esse baile, espero que me deixem ser vossa
chaperon. Certamente que levarei também Sophy e Georgiana. - És muito amável -
disse Kitty -, e, uma vez que estás na disposição de assumir o cuidado de tantas jovens,
aconselho-te a convenceres a Sra. Edgecumbe a acompanhares as suas seis filhas. Dessa
forma, connosco e com as tuas duas irmãs, a tua entrée será verdadeiramente
respeitável. Kitty fez-nos a todos sorrir, à excepção de Mary, que não compreendeu o
que ela dissera e respondeu friamente que não tinha vontade de acompanhar tantas
jovens. Sophy e eu esforçámo-nos por mudar de assunto, mas conseguimos fazê-lo
apenas durante alguns minutos, pois Mary encarregou-se de voltar a centrar o tema
da conversa em si própria e no seu casamento. Senti pena da minha irmã, ao
aperceber-me de que o Sr. Brudenell parecia escutá-la com prazer, chegando mesmo a
encorajá-la
através das suas perguntas e dos seus comentários, visto ser óbvio que o seu único
objectivo era rir-se dela. Receio que a tenha achado bastante ridícula. Manteve
uma expressão séria, mas era fácil de ver que só com esforço conseguia conter-se.
82
Todavia, por fim, pareceu ficar cansado e enjoado com a sua ridícula
conversa,
uma vez que desviava o olhar dela para nós, pouco falando com ela durante a última
meia hora que estivemos em Stoneham. Mal saímos da casa, pusemo-nos todas a
elogiar
a pessoa e as maneiras do Sr. Brudenell. Quando chegámos a casa, deparámos com o
Sr. Watts. - Então, menina Stanhope - disse ele -, bem vê que vim fazer-lhe a corte
à maneira de um verdadeiro enamorado. - Bem, não era preciso dizer-me isso. Percebi
muito bem o que o trazia aqui. Sophy e eu saímos da sala, imaginando que podíamos
estar a estorvar, caso se fosse desenrolar uma cena de namoro. Ficámos surpreendidas
ao ver Mary juntar-se a nós quase de seguida. - Já terminaram o vosso encontro?
- Encontro! - replicou Mary. - Estivemos a discutir. Watts é um tolo! Espero não ter de
voltar a vê-lo. - Receio bem que vás vê-lo - disse eu -, já que ele hoje
vai jantar connosco. Mas qual foi a razão do vosso desentendimento? - Ora, só porque
lhe disse que esta manhã tinha visto um homem muito mais bonito do que ele,
ficou louco de raiva e chamou-me de malvada, por isso fiquei apenas o tempo
necessário para lhe dizer que o achava um patife e depois vim-me embora.
83
- Curta e doce - disse Sophy. - Mas, escuta, Mary,
como poderá isto resolver-se? - Ele terá de vir pedir o meu perdão. Mas, mesmo que o
faça, não o perdoarei. - A sua submissão
não será, nesse caso, de grande utilidade. Depois de trocarmos de roupa, regressámos
para a sala onde a Mamã e o Sr. Watts conversavam em voz baixa. Ao que parece,
ele tinha estado a queixar-se do comportamento de Mary, e a Mamã persuadiu-o a não
pensar mais no assunto. Assim, ele cumprimentou Mary com a sua habitual educação
e, à excepção de um comentário feito à carruagem e de outro relativo à estufa, a noite
decorreu em grande harmonia e cordialidade. Watts vai apressar os preparativos
para o casamento. A tua sempre amiga, G.S.
114
para me envergonhar de uma paixão que seria errada, uma vez que o objecto dela
seria indigno. Mas alguém com a figura, o rosto e o cabelo do seu primo, por que
motivo havia eu de corar ao reconhecer que um tal mérito superior me causou
impressão? - Minha querida menina - disse Lady Scudamore, abraçando-me com muito
afecto
-, como é delicada a sua forma de pensar estes assuntos, e que rápido discernimento
tem, para alguém com a sua idade! Oh! Como a admiro por tão nobres sentimentos!
-Realmente, minha senhora?-disse eu.-É muitíssimo amável. Mas diga-me, Lady
Scudamore, foi o próprio Sr. Musgrove que lhe falou desta afeição por mim? Gostarei
ainda
mais dele se assim for, pois que é um amante sem uma confidente? - Oh, meu amor! -
replicou ela.-Nasceram um para o outro. Cada palavra que profere me deixa mais
convencida de que as mentes de ambos são movidas pelo invisível poder da empatia,
visto que as vossa opiniões e sentimentos coincidem na perfeição. Além disso,
a cor do vosso cabelo não é muito diferente. Sim, minha querida menina, o pobre e
desesperado Musgrove revelou-me a história do seu amor. Mas não me surpreendeu...
Não sei como, mas tinha uma espécie de pressentimento de que ele se apaixonaria por
si. - Bem, mas como foi que ele lho demonstrou? - Foi só depois da ceia. Estávamos
sentados junto à
115
lareira, falando sobre temas indiferentes, se bem que, para dizer a verdade, a conversa
decorria sobretudo do meu lado, pois ele mostrava-se
pensativo e silencioso, quando de repente me interrompeu a meio de algo que estava
a dizer, exclamando num tom verdadeiramente teatral: " Sim, estou apaixonado,
agora o sinto. E Henrietta Halton destroçou-me." - Ohl Que maneira adorável -
repliquei - de declarar a sua paixão! Construir dois versos tão encantadores acerca
de mim! Que pena não rimarem! - Fico muito contente por ter gostado-respondeu ela.
- Sem dúvida que revelam bom gosto. " E está apaixonado por ela, primo?" , perguntei-
lhe.
" Lamento muito sabê-lo, pois, por excepcional que o primo seja sob todos os
aspectos, com uma bela propriedade capaz de grandes progressos e uma excelente
casa,
ainda que a necessitar de reparações, quem poderá aspirar com sucesso à encantadora
Henrietta, que teve uma proposta de um coronel e foi brindada por um baronete?
- Isso é verdade! - exclamei. Lady Scudamore prosseguiu: -E ele replicou: " Ah, querida
prima, estou tão convencido da pequeníssima hipótese que tenho de conquistá-la,
a ela que é adorada por milhares, que não preciso que a
116
minha prima me diga mais. Mas, certamente, nem a minha prima, nem a própria bela
Henrietta me poderão
negar a excelente gratificação de morrer por ela, de sucumbir aos seus encantos. E
quando eu morrer..." - continuou ela. - Oh! Lady Scudamore - disse eu, enxugando
os olhos -, como pode uma criatura tão doce falar de morrer! ? -É, com efeito, uma
circunstância perturbante - replicou Lady Scudamore, prosseguindo - " quando eu
morrer" , disse ele, " levem-me e depositem-me a seus pés, e talvez ela não se recuse a
verter uma lágrima piedosa sobre os meus pobres restos mortais." - Minha
cara Lady Scudamore - interrompi -, não diga mais nada a respeito deste perturbante
assunto. Não posso suportá-lo. - Oh! Como admiro a doce sensibilidade da sua
alma, e como não seria capaz de a ferir demasiado profundamente, ficarei em silêncio.
-
Peço-lhe que continue - disse eu. Ela assim o fez. - E então ele acrescentou:
" Ah! Prima, imagine o meu enlevo ao sentir as queridas e preciosas gotas derramadas
sobre o meu rosto! Quem não morreria para experimentar um tal êxtase! E quando
for enterrado, que possa a divina Henrietta abençoar com a sua afeição algum outro
jovem com mais sorte; que ele lhe seja tão ternamente dedicado como o infeliz
Musgrove; e enquanto Musgrove se desfizer em pó, possam eles viver um exemplo de
felicidade no estado conjugal!
117
Alguma vez ouviste alguma coisa tão patética?
Que fascinante desejo, ser prostrado a meus pés depois de morto! Oh! Que mente
elevada ele deve possuir para ser capaz de um tal desejo! Lady Scudamore continuou.
-E eu repliquei-lhe: " Ah, meu querido primo! Um comportamento tão nobre como
este deverá certamente fazer derreter o coração de qualquer mulher, por muito
insensível
que seja; pudesse a divina Henrietta escutar os seus generosos desejos para a sua
felicidade, doce como é a sua mente, não tenho dúvidas de que ela teria compaixão
do seu amor e esforçar-se-ia por retribuí-lo." Ele respondeu-me: " Oh, prima!, não
tente dar força às minhas esperanças com promessas lisonjeiras. Não, não posso
ter a pretensão de agradar a este anjo de mulher, e só me resta morrer." Repliquei-lhe,
então: " O amor verdadeiro é sempre desesperante, mas, meu caro tom, dar-lhe-ei
ainda maiores esperanças de conquistar o coração desta bela do que lhe dei até ao
momento, assegurando-lhe que a observei com minuciosa atenção durante todo o dia,
e pude facilmente descobrir que ela guarda no seu peito, embora o ignore ela própria,
uma terna afeição por si. -Querida Lady Scudamore-exclamei -, isso é mais do
que eu sabia! - Pois eu não disse que o ignorava? " Não o encorajei contando-lhe isto
logo de início, para que a surpresa pudesse tornar o prazer ainda maior" ,
acrescentei para ele. " Não,
118
prima" , replicou ele, com uma voz lânguida, " nada poderá convencer-me de que
toquei o coração de Henrietta Halton e, caso a minha
prima esteja iludida, não tente iludir-me a mim." Em suma, meu amor, levei algumas
horas a persuadir o pobre jovem em desespero de que a Henrietta realmente tinha
uma preferência por ele; mas, quando ele finalmente já não podia combater a força
dos meus argumentos, ou desvalorizar aquilo que lhe dizia, o seu enlevo, o seu
entusiasmo, o seu êxtase estão para além da minha capacidade de descrever. -Oh, que
adorável criatura - gritei -, como me ama apaixonadamente! Mas, cara Lady Scudamore,
dissê-lhe que sou totalmente dependente dos meus tios? - Sim, contei-lhe tudo. - E que
disse ele? - Protestou com ódio contra tios e tias; acusou as leis de Inglaterra
por lhes permitirem possuir propriedades que são ambicionadas pelos seus sobrinhos
e sobrinhas, e desejou estar ele mesmo na Câmara dos Comuns, para poder reformar
a legislação e rectificar os seus abusos. - Oh, que homem doce! Que espírito tem! -
disse eu. - E acrescentou que seria impensável que a adorável Henrietta
condescendesse
por sua causa a renunciar a todo o luxo e ao esplendor ao qual foi habituada, e a
aceitar em troca apenas o conforto e a elegância que o seu limitado rendimento
lhe poderia permitir, mesmo supondo que a
119
sua casa estivesse pronta para a receber. Eu dissê-lhe que, efectivamente, tal não seria
de esperar; estaríamos a ser
injustos para com ela se a supuséssemos capaz de abdicar do poder que agora detém e
que usa de forma tão nobre, ajudando os pobres que são parte dos nossos
semelhantes,
para mera gratificação de vocês os dois. - É verdade - disse eu -, que de vez em quando
sou muito caridosa. E que disse o Sr. Musgrove em relação a este assunto?
- Replicou que sentia uma melancólica necessidade de se apoderar da verdade daquilo
que eu lhe dizia e que, caso fosse ele a feliz criatura destinada a casar com
a bela Henrietta, tinha de se obrigar a esperar, ainda que impacientemente, pelo
afortunado dia em que ela se libertaria do poder de parentes indignos e em que
poderia
entregar-sê-lhe. Que nobre criatura ele é! Oh! Matilda, como sou afortunada, eu, que
serei sua mulher! A minha tia está a chamar-me para ir fazer as tartes, por
isso adieu, minha querida amiga, e acredita que sou a sempre tua, etc. H.