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ANO XXV - edição 102

DEZEMBRO 2018

ANO xxvI edição 102 DeZ 2018

CAPA - 102 - SETEMBRO.indd 1 02/11/2018 18:10:04


ANO XXVI - Dezembro 2018 - Nº 102

Coordenação Editorial:
Vicky Safra
CHANUQUIÁ,
VIENA.
Assistentes de Coordenação:
FINAL DO SÉC. 19 Clairy Dayan
Fortuna Djmal
Assessora Internacional:
Muriel Sutt Seligson
Supervisão Religiosa:
Rabino Y. David Weitman
Rabino Efraim Laniado
Rabino Avraham Cohen
Jornalista Responsável:
Desirée Nacson Suslick
MTb 13603
Colaboradores especiais:
Jaime Spitzcovsky
Nimrod Etsion Koren
Reuven Faingold
Tev Djmal
Zevi Ghivelder
Revisão e tradução de texto:
Lilia Wachsmann
Consultor:
Marcello Augusto Pinto
Coordenação de Marketing:
Ernesto Chayo
Thais Sznajdleder Simeliovich
Produção Gráfica:
Joel Rechtman
JR Graphiks - Tel: 3873 0300
Projeto Gráfico:
LEN - Tel: 3815 7393
Serviços Gráficos:
C&D Editora e Gráfica - Tel: 3862 8417
Tiragem: 28.750 exemplares

A distribuição é gratuíta sendo sua comercialização


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Carta ao leitor
Chanucá é uma festa de oito dias que celebra milagres com os judeus, não medindo esforços para convertê-
ocorridos há mais de dois milênios. Sua história é los ou exterminá-los? Por que razão os líderes dessas
conhecida: após derrotar o exército sírio, os Macabeus nações se incomodavam tanto com um povo cuja
reconquistaram o Templo Sagrado de Jerusalém e população é estatisticamente insignificante comparada
reinauguraram os serviços religiosos. ao restante da humanidade?

Um dos rituais diários mais importantes do Templo Uma das respostas é que a chama do Judaísmo
era o acendimento da Menorá, que simbolizava a constitui uma ameaça a déspotas e ditadores. Na
luz da Torá e do Povo de Israel. A Menorá era acesa história de Chanucá, o Rei Antiochus, que exigia ser
com jarros de azeite de oliva ritualmente puro, que reverenciado como uma divindade, não tolerava uma
traziam o selo do Cohen Gadol. Quando os Macabeus nação cujo propósito de existência é a afirmação de
retomaram o Templo Sagrado, descobriram que os que o mundo tem apenas um D’us – o Rei Eterno
gregos haviam intencionalmente contaminado o azeite e Verdadeiro. A profanação proposital do azeite do
purificado de acordo com o ritual. No entanto, por Templo simboliza a tentativa dos gregos de extinguir
algum milagre inexplicável, um jarro permanecera uma fonte muito poderosa de luz, que ameaçava sua
imaculado. Continha azeite suficiente para acender a ideologia secular, e que, em muitos aspectos, constituía
Menorá por apenas um dia. Não obstante, os Macabeus a antítese do Judaísmo.
acenderam-na com esse único jarro. Um milagre
ocorreu: o azeite, que deveria ter durado apenas um Celebramos a festa de Chanucá mesmo que os milagres
dia, queimou durante oito. tenham ocorrido há mais de dois milênios, porque em
toda geração as trevas se levantam para tentar extinguir
O milagre do azeite é famoso – inspira e encanta as a Luz de Israel. O milagre do óleo – o fato de um
pessoas. Contudo, levanta muitas questões importantes. único jarro de azeite ritualmente puro ter sobrevivido
Uma delas é: por que os gregos propositalmente à profanação dos gregos e ter queimado por oito dias
contaminaram o azeite do Templo Sagrado? Eles – ensina que a Luz do Judaísmo, personificada pelo
não o usaram em benefício próprio; simplesmente o Povo Judeu, jamais será extinta. Todos aqueles que
profanaram. tentaram extingui-la, fracassaram.

Uma das respostas a essa pergunta é que, ao profanar O Zohar, obra fundamental da Cabalá, ensina que
o azeite utilizado para acender a Menorá, os gregos assim como o homem é mortal, todas as suas obras
transmitiam ao Povo de Israel a mensagem de que o também o são: é por esse motivo que mesmo o Templo
principal alvo de sua guerra contra eles era o Judaísmo. de Jerusalém, construído por seres humanos, pôde
ser destruído. Contudo, continua o Zohar, tudo que é
A guerra entre gregos e judeus não constituía apenas Divino é, por definição, imortal. O Judaísmo é Divino
mais um conflito entre nações – não concernia e, portanto, eterno.
território, política, economia ou poder. Constituía
uma guerra espiritual. Havia algo sobre o Judaísmo Na Festa das Luzes, milhões de judeus ao redor do
que muito incomodava aos gregos e, por esse motivo, mundo acenderão as velas de Chanucá, que simbolizam
profanaram o Templo Sagrado e macularam o azeite a eternidade do Fogo Divino e o triunfo da luz sobre
da Menorá. as trevas. As chamas das velas de Chanucá constituem
um vislumbre do dia em que a luz prevalecerá
Os gregos não foram os primeiros nem os últimos a definitivamente sobre a escuridão e o mundo inteiro
declarar guerra contra o Judaísmo. Cabe a pergunta: será iluminado pela Luz Divina.
por que esse poderoso império se incomodava
tanto com as práticas religiosas de uma nação
numericamente inexpressiva, que vivia sob sua
ocupação? Por que, ao longo da história, tantos regimes
poderosos se incomodaram tanto com o Judaísmo e
ÍNDICE

15 22

42 47

50 63
03 carta ao leitor 22 história
Espiões na Terra Santa
por zevi ghivelder

06 nossas festas
Chanucá e a guerra 30 israel
que salvou o Judaísmo Guerra cibernética:
uma ameaça à segurança

34
comunidades
15
nossas festas Os judeus de Livorno na Tunísia
Purim e o Holocausto por NIMROD ETSION KOREN

4
REVISTA MORASHÁ i102

06

34
42
música 57
arqueologia
Tributo a Charles Aznavour A antiga Shiló, morada do Tabernáculo

47
destaque 63 personalidade
Laços entre Israel e Rússia Claude Lanzmann
desafiados por Síria e Irã
por JAIME SPITZCOVSKy 70
shoá
“Shoah”, de Claude Lanzmann:
50
brasil o Holocausto em definitivo
Judaísmo na corte de D. Pedro II
por REUVEN FAINGOLD 75 cartas

5 DEZEMBRO 2018
nossas festas

Chanucá e a Guerra
que salvou o Judaísmo
Chanucá, Festa das Luzes, com a duração de oito dias,
inicia-se na noite do dia 25 do mês de Kislev, no calendário
judaico. A festa celebra eventos ocorridos há mais de
2.200 anos. Celebra o heroísmo do Povo de Israel – quando
os Macabeus, um grupo de rebeldes judeus que fundaram
a dinastia dos Hasmoneus, venceu os greco-sírios, que
ocupavam a Terra de Israel e buscavam impor aos judeus o
helenismo, cultura grega prevalente à época.

A
pós derrotar as forças greco-sírias, os de Chanucá, acendemos uma vela adicional – ou
Macabeus recapturaram o Templo Sagrado outra porção de óleo. Sendo assim, na segunda noite,
de Jerusalém, purificaram-no, reconstruíram acendemos duas velas ou dois recipientes de óleo; na
o Altar e retomaram os serviços religiosos. terceira noite, três velas ou três recipientes de óleo, e
Uma parte fundamental dos serviços diários assim por diante. Por fim, na oitava e última noite da
no Templo era o acender da Menorá com azeite de oliva festa, acendemos todos os oito braços da Chanuquiá.
ritualmente puro. Quando reconquistaram o Templo, os Deve-se acendê-la próximo a uma janela para que
Macabeus se depararam com um único jarro de azeite suas luzes possam ser vistas pelas pessoas do lado de
que não estivesse impuro. Acenderam a Menorá com fora. Assim, estaremos tornando públicos os milagres e
o conteúdo desse único recipiente. Devido à pouca mensagens da festa.
quantidade, sua luz deveria ter durado um único dia, mas,
milagrosamente, ardeu por oito dias. Esse era o tempo Chanucá constitui uma das festas mais populares do
necessário para a produção de mais azeite ritualmente calendário judaico, entre judeus e até muitos não
puro. Os judeus viram nesse fenômeno sobrenatural - judeus. É fácil entender a razão. Os seres humanos são
um suprimento de um dia durar oito dias - um sinal naturalmente atraídos para a luz e tudo o que simboliza.
Divino de que Sua Providência havia intervindo em Ademais, Chanucá é uma data cujos mandamentos são
favor dos Macabeus na luta contra o poderoso exército facilmente cumpridos. Diferentemente dos Yamim Tovim
greco-sírio. Para comemorar tais eventos, nossos Sábios – dias sagrados ordenados pela Torá-, nessa festa não há
instituíram a festa de Chanucá, que dura oito dias. restrições sobre o que podemos fazer nos oito dias de
celebração. As crianças gostam muito de Chanucá devido
O principal mandamento da festa é o acendimento da à tradição em algumas comunidades dos pais darem
Chanuquiá, o candelabro de oito braços. Na primeira presentes aos filhos na ocasião. Há, também, um costume
noite, acendemos uma vela – ou uma porção de azeite de celebrar o milagre do azeite comendo alimentos fritos,
de oliva (além da vela do Shamash, que é acesa em todas como sufganiot (sonhos), latkes (panquequinhas fritas de
as oito noites). A cada uma das noites subsequentes batata) e outras delícias.

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REVISTA MORASHÁ i 102

Chanucá tem todos os ingredientes de muitas pessoas, mundo afora. como um suprimento de azeite
de uma data comemorativa judaica Acendem-se Chanuquiot na puro para um dia ardeu durante oito.
muito alegre: um mandamento, Casa Branca, no Kremlin e em Contudo, contrariamente ao que
que é o acendimento de velas, fácil vários locais públicos, no Brasil; se pensa, esse milagre não é o foco
e agradável de se cumprir; uma e personalidades públicas, como principal de Chanucá. Essa festa não
emocionante história de heroísmo e presidentes, primeiros ministros se reduz a milagres e luzes e canções
milagres; Chanuquiot que enfeitam e governadores participam da e sufganiot. Chanucá trata, acima de
o lar e locais públicos; comidas cerimônia do acendimento de suas tudo, de auto sacrifício – trata dos
deliciosas e músicas que embalam velas. As luzes da festa encantam judeus que lutaram em uma guerra
gerações de judeus; brincadeiras a todos, bem como a história de longa e difícil contra um exército
com os dreidels – piões especiais da aparentemente invencível. Trata de
festa – e, em algumas comunidades, judeus que arriscaram e sacrificaram
presentes aos filhos. Além disso, os tudo, inclusive sua vida, para
temas de Chanucá são atemporais, assegurar a eternidade do Judaísmo.
universais e inspiradores: a vitória
da luz sobre a escuridão, do bem Chanucá fala de judeus que colocam
contra o mal, do fraco contra o forte D’us, a Torá e a sobrevivência
e, acima de tudo, a lição de que a do Povo Judeu acima de tudo.
Divina Providência é uma força Essa festividade traz mensagens
atuante no mundo, que garante que universais que são relevantes a todos
os justos sempre triunfem sobre os os seres humanos, mas traz, também,
perversos. lições dirigidas particularmente ao
Povo Judeu – algumas das quais são
Certamente Chanucá é uma linda especialmente relevantes para nossa
festividade que toca o coração geração.

7 DEZEMBRO 2018
nossas festas

A Luta dos Macabeus e do milagre ocorrido no Templo; Ao contrário de quase todas as


seu significado desconhecem o fato de que o ponto guerras ao longo da história humana,
principal é, justamente, a difícil a luta dos Macabeus não visava,
Durante os oito dias de Chanucá, vitória militar judaica. basicamente, a expulsar uma força
recitamos a passagem Al-Hanissim de ocupação estrangeira da terra
na oração da Amidá e de Bircat Para apreciar o significado de de um povo. A bem da verdade,
HaMazón (oração de graças após as Chanucá – por que os Sábios a durante centenas de anos, os judeus
refeições). Apesar de muito curta, a instituíram e por que continuamos a viveram em sua Terra sob domínio
passagem de Al-Hanissim resume a celebrá-la, apesar de nosso Templo estrangeiro. O Povo Judeu, à época,
história da guerra travada entre os Sagrado estar em ruínas há quase não acreditava que a independência
Macabeus e os greco-sírios, e seu 2000 anos –, é necessário entender política justificasse guerrear
desfecho. Menciona as perseguições o significado e alcance da guerra contra um império poderoso,
religiosas, as batalhas, a vitória dos travada pelos heroicos Macabeus. uma superpotência militar. Para
judeus, a purificação do Templo Por que entraram em guerra e qual a complementar, é interessante fazer
e a sua posterior consagração. natureza da vitória alcançada? um contraste entre essa atitude e um
A julgar por essa passagem, a revolta exemplo de guerra contemporânea –
dos Macabeus e sua surpreendente Para se ter uma ideia correta dessa a Guerra do Vietnã. Os vietnamitas
vitória são os pontos principais da guerra, basta olharmos a situação optaram por lutar contra uma força
de ocupação estrangeira. O Exército
do Vietnã do Norte lutou contra
os americanos por razões políticas –
para obter independência e unificar
o país sob domínio comunista – e
conseguiu expulsar as poderosas
Forças Armadas dos Estados Unidos
de sua terra. Os comunistas norte-
vietnamitas venceram e os poderosos
americanos perderam. No entanto,
se, por um lado, a guerra teve um
ônus de 58.000 soldados americanos,
acendendo uma chanuquiá. detalhe de manuscrito italiano de 1374. também tirou a vida de três milhões
british library, londres de vietnamitas. Algumas guerras
são vencidas, mas, na realidade, são
festividade. Essa passagem nem atual de nossa geração. Hoje, talvez derrotas. Será que vale o sacrifício
sequer menciona o milagre do mais do que em qualquer geração de milhões de vidas em troca de
azeite; é o Talmud que nos conta que nos antecedeu, podemos independência política?
esse milagre e quantos dias durou. entender a atmosfera prevalente
Al-Hanissim evidencia que a vitória nos anos em que os greco-sírios Talvez os judeus tolerassem o
militar é a razão para nossos Sábios ocuparam a Terra de Israel. Talvez domínio estrangeiro na Terra de
terem instituído a festa de Chanucá. agora, mais do que nunca antes, Israel porque uma nação sábia e
Obviamente o milagre do azeite possamos entender o significado da perspicaz (Deuteronômio, 4:6)
deu à vitória dos Macabeus uma guerra e as questões que eram o foco percebe que, às vezes, podemos
dimensão religiosa, pois sinalizou do empenho dos Macabeus. ganhar uma guerra e ainda assim
a nossos antepassados que deviam destruir um povo e um país em
seu triunfo à Divina Providência. É imperativo observar que, apesar meio a esse processo. Ao contrário
No entanto, teria constituído um dessa guerra ter resultado na de outros povos que são levados por
fenômeno sobrenatural quase independência política judaica, orgulho nacional cego e impulsivo,
irrelevante não fosse pela vitória o irromper da revolta contra as os judeus nunca se interessaram
dos Macabeus. Muitos, judeus ou forças de ocupação na Terra de em “vitórias de Pirro”, obtidas a alto
não, apenas associam a festa de Israel não foi motivado por razões preço. Apesar da alta crítica e dos
Chanucá à encantadora história nacionalistas ou políticas. fake news que, dia após dia, pipocam

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na mídia contra o Estado de Israel,


a verdade é que os judeus levam a
guerra muito a sério.

Não fosse por motivos nacionalistas


ou políticos, o que teria levado os
Macabeus a se levantar contra as
forças de ocupação greco-sírias?
Eles tinham consciência de que se
permanecessem passivos, o Judaísmo
e, consequentemente, o Povo Judeu,
deixariam de existir. Não ficariam
passivos enquanto o helenismo
tentava engolir sua religião e seu
povo. Em busca da consolidação
de seu império, os gregos não se
contentaram com a conquista
de outros povos – forçaram-nos,
também, a adotar o helenismo e,
dessa forma, assimilar-nos. E, para
tanto, os gregos transformaram o
helenismo – o idioma, estilo de vida
e religião – em cultura universal.
Destruíram templos de outras
religiões e combateram outras Chanuquiá em metal de fábrica fundada em 1880, ainda em funcionamento,
na cidade de Geislingen an Steige, Alemanha
crenças, mas longe de o fazer por
razões idealistas. Seu objetivo era, como a todas faltava verdade, não judeus à força, mas uma tentativa
pura e exclusivamente, mesclar a havia contradição significativa de levá-los à apostasia, isto é, a
cultura e religião gregas com outras entre as mesmas. Se a religião da abandonar nossa fé. Isto porque
formas locais que encontravam entre pessoa é falsa e sem valor, por que a visão de mundo dos gregos não
seus conquistados. lutar para preservá-la? Aos olhos considerava princípios e ideologias
dos povos conquistados, a adoção como sagrados, imutáveis. Eles não
A cultura helenística misturava-se, do helenismo – a mescla das suportavam a “intolerância judaica”.
com muito sucesso, à cultura local culturas, valores e crenças – era Acreditavam que a recusa dos
de vários povos que viviam em possível e até desejada, de modo judeus em comer carne de porco
proximidade ao Povo Judeu, entre a promover melhores relações e se curvar perante as divindades
os quais os sidônios e os filisteus. internacionais. gregas fossem mera teimosia de um
Esses povos não viram problema povo obstinado, que se recusava a se
em renunciar à sua cultura e suas Os princípios que norteavam a deixar absorver pelo helenismo. Por
convicções e adotar o helenismo. cultura helênica eram a aceitação isso, os gregos forçaram os judeus,
As pessoas esclarecidas entre essas mútua e a adoção de outras por meio da violência, a abandonar
nações não acreditavam em seus crenças e culturas. Todos os povos aquela “bobagem” e a se comportar
deuses – feitos pelo homem e concordaram, à exceção de um: de “modo adequado” – como tinham
claramente falsos – e viam seus os judeus. Os gregos exigiam que feito todas as demais nações.
cultos como puro folclore popular, o Povo de Israel aceitasse seus
despidos de verdade ou significado. deuses e suas crenças religiosas. Contudo, os judeus conscienciosos
A seus olhos, adotar qualquer deus É importante enfatizar que as não podiam abraçar algo que fosse
ou crença não era problema; pelo perseguições religiosas dos gregos um anátema ao Judaísmo.
contrário, estavam abertos a eles. não tinham motivação ideológica: A Torá não é uma religião feita
Havia diferenças entre as crenças não constituíam uma forma de pelo homem, e o Eterno, D’us de
religiosas das várias nações, mas Inquisição que queria converter os Israel, não é fruto da imaginação

9 DEZEMBRO 2018
nossas festas

humana, como o são outras usado em um rito idólatra deve ser


divindades. A Torá é a Verdade, a destruído e ao judeu é totalmente
Palavra de D’us, Sua Vontade e proibido ter qualquer tipo de
Sabedoria, e não um mero conjunto benefício do mesmo. Qualquer
de leis, produto da legislação forma de idolatria e tudo o que
humana, ou obra de ficção e fantasia possa mudar qualquer pontinho da
– como a mitologia grega. Ser judeu Torá é rejeitado e abominado por
significa, acima de tudo, rejeitar nós. Não é possível ser judeu e estar
a existência de quaisquer outros aberto a outros deuses, ritos ou leis
deuses. religiosas. Portanto, foi impossível
encontrar um meio-termo entre
O Midrash Rabá explica por que a essência do Judaísmo – que não
Mordechai, um dos heróis da cede sua exclusividade e lealdade
história de Purim, é chamado de chanuquiá em Jerusalém
a D’us e Seus Mandamentos – e a
Mordechai HaYehudi (o judeu), do helenismo, que não tem valores
ainda que não pertencesse à tribo sagrados nem princípios imutáveis.
de Yehudá. Por que razão ele é (escrito com um chet). O judaísmo é
chamado de “judeu” e não de basicamente caracterizado por sua O verdadeiro motivo de
“israelita”? O Midrash responde: singularidade, pois, por definição, celebração em Chanucá
porque ele repudiou a adoração a exclui qualquer outra fé ou divindade.
outros deuses. Ao que tudo indica, O relacionamento entre o Povo de O helenismo seduziu muitos judeus
a base desse ensinamento é a Israel e o D’us de Israel é puramente que se deixaram levar por sua
possibilidade de troca entre monogâmico. mensagem de tolerância, abertura
duas letras hebraicas similares e permissividade. É importante
em sua aparência, o Hei e o Chet: O Judaísmo tem tolerância zero para saber, no entanto, que os primeiros
a definição de Yehudi, judeu (escrito qualquer coisa que se assemelhe à judeus helênicos não eram rebeldes
com a letra hei), é Yechidi, único idolatria. Exemplificando: um objeto que transgrediam as leis da Torá
por despeito. Eram, sim, judeus que
queriam um Judaísmo mais flexível.
Os judeus helênicos, na verdade,
queriam abrir mão de suas crenças
e práticas religiosas de modo a se
misturar melhor entre a maioria.
Para eles – e para as pessoas que,
hoje, pensam e se comportam dessa
maneira – é possível ser judeu, mas
apenas se o Judaísmo que praticam
e em que creem for compatível com
a visão de mundo e os valores da
sociedade a que pertencem. Para eles,
qualquer lei ou costume judaico que
esteja em descompasso com as ideias
reinantes ou que pareça, de alguma
maneira, inflexível, deve ser deixado
de lado. Eles podem até seguir
algumas das leis judaicas, em virtude
de hábitos adquiridos em casa ou
no colégio, mas não os consideram
sagrados, invioláveis. Para quem
entende o Judaísmo como apenas
um amálgama de ritos e costumes

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REVISTA MORASHÁ i 102

despidos de verdade e significado


espiritual, fica fácil substituí-lo
por outras crenças e valores que
estejam “em voga”. O processo de
aculturação e assimilação se inicia
quando se vê o Judaísmo como
um conjunto de tradições sem
grande importância e com valor
apenas sentimental e nostálgico.
Quando se segue o Judaísmo apenas
como uma simples tradição ou
convenção social guardada para não
desagradar familiares ou amigos, o
comprometimento é muito limitado
e frágil. Quem assim o faz não se
sacrificaria nem lutaria e, muito
menos, estaria disposto a dar sua
vida pelo Judaísmo. Os helênicos
judeus não decidiram repentina
e espontaneamente abandonar o
Judaísmo e abraçar o helenismo.
chanuquiá em madeira; prata lavrada, perfurada e
Primeiro abandonaram a verdade, estampada; liga de cobre. florença 1781-1800
a singularidade e a exclusividade
judaicas.
Para a maioria das pessoas, hoje, uma desvalorização generalizada
Chanucá celebra eventos ocorridos não é muito importante a forma dos valores. Aqueles que toleram
há mais de 2.200 anos, mas seu como se leva a vida. Quando a qualquer coisa geralmente acabam
tema é tão relevante hoje como pessoa não crê em nada, e seus pares tolerando o mal. Aqueles que são
o foi na época dos Macabeus. A tampouco creem em algo, elas não permissivos acabam permitindo o
maior ameaça aos judeus, hoje, têm problemas entre si e vivem em que é nocivo e desprezível.
especialmente a nós que vivemos na paz. Contudo, esse tipo de paz tem
Diáspora, deixou de ser perseguição um alto preço, pois a tolerância Se hoje, um grupo de judeus se
e violência, como durante os 2.000 ampla e irrestrita não indica respeito revoltassem como o fizeram os
anos em que nosso povo não tinha pelos princípios do próximo, mas Macabeus, provavelmente seriam
seu país e seu exército. O que hoje condenados por inúmeros líderes
dizima o Povo Judeu é uma cultura comunitários e pela mídia. Seriam
universal, muito semelhante ao tachados de fanáticos ou pior. Nem
helenismo, que supostamente prega todos sabem, mas ao irromper, a
a tolerância e a liberdade, mas que revolta dos Macabeus contra os
não tolera a singularidade de um greco-sírios foi apoiada por uma
povo. A cultural universal de nossos minoria de judeus na Terra de
dias aparentemente permite tudo, Israel. Os rebeldes representavam
exceto crenças e princípios sagrados. cerca de ínfimos 10% da população
Atualmente, acreditar que haja o judaica. Apesar de poucos e de não
certo e o errado, e que algumas contarem com o apoio da maioria
coisas sejam aceitáveis e outras do Povo Judeu, os Macabeus
não, especialmente se tal sistema de estavam dispostos a enfrentar uma
valores é fundamentado em Leis superpotência militar para salvar o
Divinas, é arriscar-se a ser visto como Judaísmo. E para isso combateram
intolerante, fanático, pouco flexível e longa e duramente durante muitos
vários outros adjetivos negativos. dreidel em prata anos.

11 DEZEMBRO 2018
nossas festas

Portanto, é isto o que celebramos amonitas e moabitas – que se que se ancora na lealdade a D’us e à
em Chanucá: o auto sacrifício assimilaram, deixando de existir. Sua Torá, e um mundo secular que,
de poucos contra muitos – e aparentemente, tolera tudo, mas
não apenas pelos muitos Chanucá celebra nossa vitória militar, que não tolera aqueles que ousam
daquela geração, mas por todas que conteve a disseminação do ser diferentes e que acreditam
as subsequentes gerações de helenismo que consumia o Povo em valores e crenças sagradas e
judeus. Winston Churchill disse, Judeu, da mesma maneira como imutáveis.
em outro contexto: “Nunca, na a assimilação, hoje, dizima um
história da humanidade, tantos enorme número de comunidades No mundo de hoje, quase tudo é
ficaram devendo tanto a tão judaicas da Diáspora. Anualmente, negociável: em qualquer assunto
poucos”. Isto é verdadeiro e nesta festividade, devemos que seja, pode-se chegar a um
aplicável aos Macabeus. Não fosse recordar não apenas o milagre meio-termo, porque os valores são
por eles, é provável que nenhum do azeite e de tudo que as Luzes relativos e negociáveis, comprados
judeu estivesse vivo, hoje. Não de Chanucá representam, mas, e vendidos e permutados, já que
tivessem eles lutado e vencido, ainda mais importante, nosso quase ninguém os leva a sério. Hoje,
todos os judeus da época teriam empenho constante para manter quase todos os valores se equivalem,
acabado abraçando o helenismo, nossa identidade e singularidade, pois ninguém está disposto a se
assimilando-se. especialmente em nossos dias, sacrificar por eles. Mas, em um
quando enfrentamos problemas nítido contraste, a celebração de
Um ponto merece nossa reflexão: semelhantes de aculturação e Chanucá se baseia na noção de
se o milagre do azeite – que assimilação em massa. Chanucá que há certas coisas na vida e no
muitos acreditam ser a razão marca o encontro entre o Judaísmo, mundo, como o Judaísmo, que não
da festa de Chanucá – não podem ser negociadas. O Primeiro
tivesse ocorrido, quais teriam Ministro Menachem Begin, um
sido as consequências práticas? dos maiores líderes judeus de todos
A resposta é que os judeus os tempos, verdadeiro
teriam acendido a Menorá do Macabeu da geração que
Templo com óleo de azeite fundou o Estado de Israel,
ritualmente impuro – algo escreveu: “Há coisas mais
que, nas circunstâncias, horríveis do que a morte e
a Lei Judaica teria mais preciosas do que
permitido. Obviamente, vida”. Os Macabeus
o milagre do óleo foi um acreditavam nisso
importante sinal da Divina e por isso lutaram.
Providência, mas não foi Inúmeros judeus,
relevante, realmente, pois através dos séculos,
não mudou o curso da sempre acreditaram nisso
História Judaica. Mas, por e por isso escolheram o
outro lado, se os Macabeus martírio, não abrindo mão
não tivessem vencido os de seu D’us, sua fé e sua
greco-sírios, a consequência identidade espiritual.
teria sido o fim do nosso
povo. O que celebramos em O público maior
Chanucá é a sobrevivência do entende Chanucá como
Judaísmo. Se os Macabeus uma data muito festiva,
não tivessem enfrentado a caracterizada por muitas
luta, ou se tivessem perdido delícias culinárias e o
a guerra, o destino do cumprimento de um
Povo Judeu teria sido mandamento – o acender
semelhante ao dos demais das velas – que, aos olhos
povos da região – filisteus, da maioria, parece muito

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REVISTA MORASHÁ i 102

bonito e interessante. Mas, não de importar o fato de termos empenho de nosso povo – não
esqueçamos que se trata de uma independência política, bandeira por nossa independência, mas por
festa religiosa, que celebra a coragem e hino nacional. Não basta viver nossa própria individualidade e
e o zelo de um pequeno grupo de na Terra de Israel, ter um país identidade espiritual. A vitória dos
judeus que optaram por lutar até a soberano e falar hebraico. Sem Macabeus, há mais de 2 mil anos,
morte em favor do Judaísmo. o Judaísmo, não temos nada. Os significou muito mais do que a
Macabeus o sabiam, assim como liberdade política da tirania greco-
Chanucá não se concentra em torno muitos judeus sempre souberam síria. Legou-nos como herança
do milagre do azeite, mas tampouco que a aculturação e assimilação nossa sobrevivência enquanto
apenas celebra uma milagrosa vitória podem danificar o Povo Judeu nação escolhida por D’us para ser
militar. Nós, judeus, tivemos muitas mais do que qualquer inimigo portadora de Sua Palavra, Suas
vitórias militares milagrosas, tanto estrangeiro. Quando abrimos mão Leis e Seus Mandamentos.
no antigo Israel como em nosso de nosso Judaísmo – quando se
moderno Estado, destacando-se arrefece nossa lealdade a D’us e A Festa das Luzes nos ensina que
a Guerra da Independência e consideramos os mandamentos não somos apenas mais uma nação
a Guerra dos Seis Dias. O que da Torá anacrônicos e simples a sobreviver, mas a personificação
Chanucá celebra é a sobrevivência folclore e costume –, estamos de uma entidade espiritual
do Judaísmo. Perdemos a soberania colocando-nos na posição de chamada Judaísmo, que irradia a
judaica pelo menos duas vezes, e nos transformar em modernos Luz Divina e pulsa, vibrante, com
vivemos na Diáspora durante helênicos. O resultado é, quase vida espiritual.
dois milênios – mas, ainda assim, sempre, a assimilação e a perda de
continuamos vivos enquanto povo. identidade espiritual.
Se, no entanto, a singularidade BIBLIOGRAFIA
de nosso povo se tivesse perdido – Em Chanucá, naquela época Rabi Steinsaltz, Adin (Even Israel),
ainda que uma única vez –, deixaria e hoje, lembramo-nos do Change and Renewal. Koren Publishers

13 DEZEMBRO 2018
nossas festas

acendendo a Chanuquiá
Todas as noites, antes de acender as velas Costuma-se colocar a Chanuquiá sobre
pronunciam-se as seguintes bênçãos: uma mesa no lado esquerdo da porta
de entrada, em frente à mezuzá, ou na
janela que dá para a via pública.
Os seguintes horários são referentes
apenas a São Paulo.
A cada noite, após recitar as bênçãos,
acendem-se as velas da Chanuquiá 1ª noite
com o shamash, que é colocado na 25 de Kislev
Domingo,
Chanuquiá de modo a ficar mais 2 de dezembro,
Baruch Atá A-do-nai, E-lo-hê-nu alto do que as demais chamas. Após a partir de 20:00 horas
Mêlech haolam, asher kideshánu acender as velas, recita-se em seguida
bemitsvotav, vetsivánu lehadlic ner
Hanerot halálu: 2ª noite
Chanucá.
26 de Kislev
Segunda-feira,
Bendito és Tu, Eterno, nosso D’us, Rei 3 de dezembro,
a partir de
do Universo, que nos santificaste com 20:00 horas
Teus mandamentos, e nos ordenaste
acender a vela de Chanucá. 3ª noite
27 de Kislev
Terça-feira,
4 de dezembro,
a partir de
20:02 horas

4ª noite
Baruch Atá A-do-nai, E-lo-hê-nu Hanerot halálu ánu madlikim, 28 de Kislev
Mêlech haolam, sheassá nissim al hanissim veal hapurkan, veal Quarta-feira,
laavotênu, bayamim hahêm, 5 de dezembro,
haguevurot veal hateshuot, veal 20:02 horas
bazeman hazê. haniflaot, sheassita laavotênu,
bayamim hahêm, bazeman hazê, al
Bendito és Tu, Eterno, nosso D’us, Rei yedê cohanêcha hakedoshim. Vechol 5ª noite
29 de Kislev
do Universo, que fizeste milagres para shemonat yemê Chanucá, hanerot Quinta-feira,
nossos antepassados, naqueles dias, halálu côdesh hem, veen lánu reshut 6 de dezembro,
nesta época. lehishtamesh bahem êla lir’otam 20:02 horas
bilvad, kedê lehodot lishmêcha,
Apenas na primeira noite, al nissêcha, veal nifleotêcha, veal
6ª noite
depois de recitar as duas yeshuotêcha. 30 de Kislev
bênçãos, recita-se o Sexta-feira,
shehecheyánu: 7 de dezembro,
Acendemos estas luzes em virtude 19:20 horas, antes de
dos milagres, redenções, bravuras, acender as velas de
Shabat
salvações, feitos maravilhosos e
auxílios que realizaste para nossos 7ª noite
antepassados, naqueles dias, nesta 1 de Tevet
Sábado
Baruch Atá A-do-nai, E-lo-hê-nu época, por intermédio de Teus 8 de dezembro, a
Mêlech haolam, shehecheyánu sagrados sacerdotes. Durante todos os partir das 20:23 horas
após a Havdalá
vekiyemánu vehiguiyánu lazeman oito dias de Chanucá, estas luzes são
hazê. sagradas, não nos sendo permitido 8ª noite
fazer qualquer uso delas, apenas mirá- 2 de Tevet
Domingo,
Bendito és Tu, Eterno, nosso D’us, Rei las, a fim de que possamos agradecer 9 de dezembro,
do Universo, que nos deste vida, nos e louvar Teu grande nome, por Teus a partir de 20:05 horas
mantiveste e nos fizeste chegar até a milagres, Teus feitos maravilhosos e
presente época. Tuas salvações.

14
nossas festas

Purim e o Holocausto

A festa de Purim, celebrada no dia 14 do mês judaico de Adar,


é a data mais feliz no calendário judaico. A Meguilat Esther,
o Livro de Esther, conta a história de Purim.

R
esumindo os principais pontos que têm ambos – e entre a história de Purim e a “Solução Final ao
relevância em nossa discussão: um homem de Problema Judeu” da Alemanha nazista – são espantosas.
nome Haman ascende ao poder como primeiro Obviamente, há uma grande e dolorosa diferença:
ministro do Rei Achashverosh da Pérsia. Haman não conseguiu implementar seu plano satânico,
ao passo que, ainda que Hitler tenha, no fim, falhado,
Ele pede permissão ao monarca para aniquilar todo isso não se deu antes de assassinar sete milhões de
o Povo Judeu – que vivia sob domínio persa -, e o judeus.
Rei aquiesce. A Rainha Esther, judia, esposa do rei,
juntamente com seu tio Mordechai, frustra o plano Uma ressalva importante: décadas atrás, acreditava-se
de genocídio de Haman, conseguindo, ainda, que o que o número de judeus assassinados no Holocausto
Rei Achashverosh se vire contra ele. Haman planejara girava em torno de seis milhões – número aceito em
enforcar Mordechai e exterminar todo o nosso povo, 1946 durante os Julgamentos de Nuremberg. Nos
mas, no final, são ele e seus dez filhos quem cai em últimos anos, novas evidências levaram historiadores e
desgraça e são enforcados. pesquisadores a concluir que o número de judeus mortos
no Holocausto chega a quase sete milhões.
A história de Purim – a ascensão de um inimigo dos
judeus que tentava aniquilá-los – tem sido um tema Nosso propósito, neste artigo, não é tentar explicar o
recorrente na história de nosso povo. Como lemos Holocausto – está além de qualquer um de nós tentar
na Hagadá de Pessach, “Em todas as gerações eles se explicar o inexplicável ou justificar o injustificável.
levantam para aniquilar-nos. E D’us, Abençoado é Seu Tampouco entraremos em discussões filosóficas ou
Nome, salva-nos de suas mãos”. É verdade que ao longo teológicas sobre o Holocausto, pois, quando as pessoas
da história, o Povo Judeu enfrentou muitos Hamans. o fazem, acabam insultando a memória dos sete
Contudo, nenhum deles personificou-o melhor do milhões. Nosso propósito aqui é explorar as assombrosas
que Adolf Hitler. Podemos até conjeturar que ele foi semelhanças entre o plano genocida de Haman e a
a reencarnação de Haman, pois as semelhanças entre campanha nazista para exterminar o Povo Judeu.

15 DEZEMBRO 2018
nossas festas

Os filhos de Amalek perseguido os judeus por diferentes origem de seu ódio obsessivo pelo
razões – políticas, econômicas, Povo Judeu. Um ódio puro e sem
Muitos acreditam, erroneamente, religiosas ou territoriais –, o ódio fundamento aos judeus, cravado no
que Haman e Hitler odiavam os de Amalek pelos Filhos de Israel é DNA espiritual de Amalek e seus
judeus por serem alucinados ou puro, despido de qualquer motivo ou descendentes. Na história de Purim,
porque acreditavam nas mentiras justificativa. Amalek odeia os judeus Haman alega que deseja exterminar
antissemitas que ambos fabricavam. simples e exclusivamente por serem os judeus porque um de seus líderes,
A verdade é que Haman odiava o judeus. Amalek e seus filhos não Mordechai, recusava-se a se curvar
Povo Judeu porque ele pertencia fazem distinção quando se trata de perante ele. Mas qualquer pessoa
ao povo de Amalek. No Livro judeus: adultos e crianças, homens sensata percebe que se tratava de
Deuteronômio, a Torá diz o seguinte e mulheres, religiosos e seculares, um pretexto ridículo. Se o poderoso
sobre Amalek: capitalistas e socialistas, liberais primeiro ministro da Pérsia se
e conservadores, sionistas ou não. sentia insultado por Mordechai,
“Lembra-te do que te Para Amalek, nós todos somos um ele poderia tê-lo prendido – e, se
fez Amalek em teu caminho de saída só – um fenômeno indesejável que fosse especialmente cruel, até podia
do Egito. Quando te encontrou no ele está determinado a extirpar da executá-lo. Mas como justificar a
morte de todo um povo, incluindo
as crianças, porque ele se sentia
insultado por um de seus líderes?

Haman não revela ao Rei


Achashverosh o verdadeiro motivo
por que deseja aniquilar todos
os judeus. Em vez disso, espalha
mentiras e falsas alegações que os
antissemitas têm disseminado desde
tempos imemoriais. Conta ao rei que
os judeus têm suas próprias leis e,
portanto, não podem ser servos leais
a ele. Afirma, também, que eles não
são confiáveis e representam uma
ameaça a seu reino. Diz, também,
que os judeus diferem de todos
Festa de Purim, cartão postal que reproduz um ólEo de Moritz Daniel Oppenheim. os outros povos: não se misturam,
Alemanha, c. 1910 vivem segregados com os seus e,
assim, não havia lugar para eles no
caminho e extirpou todos os que face da Terra. Assim como o mal reino de Achashverosh.
retardavam atrás de ti e tu estavas naturalmente odeia o bem, também
cansado e exausto e (Amalek) não Amalek – personificação da maldade Sabemos que Haman é um
temeu a D’us. Portanto, quando o e da escuridão – odeia os Filhos amalequita porque o Tanach revela
Eterno, teu D’us, te der descanso de de Israel, “uma luz entre as nações” sua linhagem, mas mesmo se a
todos os teus inimigos em volta de (Isaías 49:6). Meguilat Esther não tivesse exposto
ti, na terra que o Eterno, teu D’us, te essa ancestralidade, seria fácil
está dando por herança para possuí- A Meguilat Esther revela que Haman identificá-lo como filho de Amalek.
la, apagarás a memória de Amalek de era um agaguita. Agag, como nos Vimos, pois, que se trata de um
debaixo dos céus, não te esqueças.” ensina o Livro de Samuel, era o rei arqui-inimigo dos Filhos de Israel.
(Deuteronômio 25:17-19). de Amalek. Haman e seus filhos Amalek é obcecado com os judeus.
– dez filhos e uma filha – eram Vemos na história de Purim que o
A Torá identifica o povo de Amalek amalequitas. Uma vez identificada a ódio de Haman por Mordechai e
como arqui-inimigo do Povo Judeu. linhagem de Haman e de seus filhos, o Povo Judeu o consome. Todo o
Ainda que outros povos tivessem podemos facilmente identificar a restante tem importância secundária

16
REVISTA MORASHÁ i 102

Meguilat Esther, Itália, final séc. 18. Sépia sobre pergaminho

para ele. Ele tinha tudo para ser teorias absurdas nas quais nem ele que venceram e invadiram o país
um homem feliz: viera do nada e acreditava. Como Haman, o ódio que ele conduzira e amara. Mas,
se tornara primeiro ministro de um que Hitler tinham pelos judeus o em vez de amaldiçoar o socialismo,
vasto império. Conseguira, também, consumia. Se não tivesse empregado a União Soviética, os ingleses ou
amealhar uma grande fortuna: a tantos recursos para aniquilar os americanos, ele dirige seu ódio
Meguilá conta que ele ofereceu milhões de judeus, teria tido maior contra os judeus, chamando-os de
grande soma em dinheiro ao rei chance de vencer a guerra. É possível “envenenadores de todos os povos
em troca da permissão de aniquilar que se Hitler tivesse podido escolher do mundo”, ainda que eles jamais o
nosso povo. Além disso, ele tinha entre vencer a guerra ou matar tivessem prejudicado. Ele odiava o
uma família grande – mulher, dez todos os judeus, ele tivesse escolhido Povo Judeu muito mais do que as
filhos e uma filha. Tinha tudo o que a segunda opção. Ele expressou nações que o haviam vencido, bem
representa o sonho de muitos: poder seu ódio pelos judeus mesmo nos como a seu país, sua ideologia e tudo
extraordinário, influência, honra e momentos finais de sua vida. Vejam pelo que vivera, forçando-o a acabar
sucesso, riqueza, mulher e muitos como termina seu testamento: “Mas, com a própria vida. Como Haman,
filhos. Ainda assim, Haman não antes de mais nada, conclamo a Hitler respirava antissemitismo.
desfrutava a vida enquanto houvesse liderança da nação e aqueles que
judeus. Ele diz à mulher que nada a seguem a observar as leis raciais E por que odiava tanto o Povo
lhe importava enquanto Mordechai mais atentamente, a lutar sem Judeu? Porque ele era filho de
estivesse vivo. Seu ódio pelos judeus piedade contra os envenenadores de Amalek. Na verdade, ele era,
estava arraigado no centro de sua todos os povos do mundo, os judeus provavelmente, seu filho mais bem-
vida. internacionais”. Foram essas as suas sucedido, pois, diferentemente de
palavras finais. Poder-se-ia pensar Haman, conseguiu implementar
Assim como Haman, Adolf Hitler que seu testamento concluísse com seu plano genocida contra o Povo
também era obcecado pelos judeus. as palavras “Viva a Alemanha!”, ou Judeu. Felizmente não conseguiu
Como Haman, ele tentou justificar “Viva o nazismo”, ou, ao menos, com exterminar-nos todos, como
seu antissemitismo com mentiras e uma maldição contra os exércitos planejava, mas chegou perto disso.

17 DEZEMBRO 2018
nossas festas

Haman e Hitler também o fizeram Hitler e o povo Mas, se o seu Partido Nazista
alemão. Nem todos os alemães eram não tivesse sido o maior partido
São vários os paralelos espantosos nazistas e alguns se opuseram e até no Parlamento, ele jamais estaria
entre a vida de Haman e a de Hitler. tentaram assassinar Hitler. Contudo, em posição de o fazer. O povo da
Ambos vieram do nada e atingiram é fato histórico inquestionável que Alemanha e seu presidente foram
grande poder, tornando-se os líderes a Alemanha escolheu Hitler como diretamente responsáveis pela
de facto de países poderosos. Hitler seu líder, endossou suas ideias e, subida ao poder de Adolf Hitler
era um artista medíocre, sem um gradualmente, seus feitos. Pode- e pelo Nazismo. Apesar do ódio
lar e um soldado raso de 2a linha se dizer que os alemães lhe deram de Hitler aos judeus e do que ele
na 1a Guerra Mundial. Nem era a mesma mensagem que o Rei prometera fazer a eles, e apesar das
rico nem vinha de família nobre Achashverosh transmitiu a Haman: atrocidades cometidas pelos nazistas,
e nunca demonstrou grandes “Faça com o povo (judeu) o que você o povo da Alemanha estava bastante
habilidades intelectuais. Como ele, achar melhor” (Meguilat Esther, 3:11). satisfeito com seu líder, enquanto
também Haman serviu o exército, as coisas estivessem indo bem no
sem qualquer distinção. Antes disso É verdade que em julho de 1932, país. Assim como Haman não
trabalhara como barbeiro. Faltava nas eleições, Paul von Hindenburg teria tido poderes para ameaçar os
aos dois a maioria das qualidades derrotou Hitler e permaneceu na judeus sem a aquiescência e apoio de
que lançam os homens a posições presidência do país. Contudo, nessas Achashverosh, também Hitler não
de poder, mas ambos eram mestres mesmas eleições democráticas, os poderia ter executado o Holocausto
na manipulação e na mentira, e nazistas obtiveram mais assentos se o povo da Alemanha e seu
demagogos impiedosos e eloquentes. do que qualquer outro partido presidente não lhe tivessem dado
no Reichstag, o parlamento. Além carta branca.
Outra semelhança entre a história disso, assim como havia feito
de vida de ambos foi o seu ódio Achashverosh, dando poder quase É importante observar que os
pelos judeus, compartilhado por ilimitado a Haman, o presidente judeus não são os únicos a ver
aqueles que lhes haviam dado o Paul von Hindenburg nomeou paralelos entre a história de Purim
poder. Ao ler a Meguilat Esther, Hitler chefe do governo, em 30 de e o Holocausto. Os nazistas
podemos perguntar: Como é janeiro de 1933. É claro que Hitler também os viram. A história de
possível que Haman tivesse usou de intimidação, violência Purim perturbava, tremendamente,
convencido, tão facilmente, o Rei e engodo, como o incêndio no Adolf Hitler. É possível que ele se
Achashverosh a lhe dar permissão de Reichstag, para assumir o governo. tenha achado a personificação ou
aniquilar os judeus? De fato, como reencarnação de Haman. Em vez
alguém pode permitir o genocídio, de tentar desacreditar a história de
em seu império, com tamanha Purim, lançando dúvidas sobre sua
leviandade? A resposta é que o rei veracidade, que é a maneira mais
da Pérsia podia ter sido crédulo e eficaz de tornar irrelevantes os fatos
facilmente manipulável, mas no históricos, Hitler baniu e proibiu seu
fundo também queria se livrar dos cumprimento. Na verdade, não foi
judeus. Achashverosh só mudou apenas ele, mas seus “filhos” também
seu pensamento sobre o Povo Judeu ficaram profundamente perturbados
quando se lembrou que Mordechai com a história de Purim.
lhe havia salvo a vida e descobriu
que sua amada Esther era judia. Em uma discurso proferido em 10
Mas, até que isso acontecesse, ele de novembro de 1938, dia seguinte
achou ótimo o plano de Haman de à Kristallnacht, Julius Streicher
criar um mundo judenrein, livre de – editor do jornal antissemita
judeus. O Talmud (Bavli, Meguilá, Der Stürmer, elemento central na
14a) revela que Haman viu no Rei máquina de propaganda nazista –
Achashverosh um parceiro receptivo. fez a seguinte afirmação nefasta e
Assim como os dois juntaram mentirosa: assim como “os judeus
forças para exterminar os judeus, haviam assassinado 75.000 persas

18
REVISTA MORASHÁ i 102

(na história de Purim) em uma


noite”, a mesma sorte ter-se-ia
abatido sobre o povo alemão se os
judeus tivessem conseguido iniciar
uma guerra contra a Alemanha. Os
“judeus teriam instituído um novo
Purim na Alemanha”, alardeou.

Ataques nazistas contra os judeus


eram frequentemente coordenados
com as festas judaicas, especialmente
Purim. Em Purim de 1942, dez
judeus foram enforcados em
Zduńska Wola, cidade na Polônia,
para “vingar” o enforcamento dos
dez filhos de Haman. Em incidente
semelhante, em 1943, os nazistas
fuzilaram dez judeus do gueto Proeminentes líderes da Alemanha Nazista sentados no banco dos réus durante
de Piotrków. Mas a conexão mais o Julgamento de Nuremberg, entre novembro de 1945 e 1 de outubro de 1946
evidente feita pelo próprio Hitler
entre ele e Haman foi um discurso de Sucot. Nossos Sábios ensinam Quem lê essa passagem com atenção
que pronunciou em 30 de janeiro que Hoshaná Rabá é o dia em que percebe que há nela algo muito
de 1944, quando declarou que se os D’us julga as nações do mundo; enigmático. O rei informa a Esther
nazistas fossem derrotados, os judeus é, também, quando Ele inicia os que os dez filhos de Haman foram
celebrariam um “segundo Purim”. julgamentos selados por Ele em Yom mortos e pergunta a ela se tem
Kipur. algum pedido adicional. Ela pede
Os dez Filhos de Haman ao rei “...que também façam amanhã
e os Julgamentos Além do paralelo histórico entre os ..., e pendurem na forca os dez filhos
de Nuremberg 11 filhos de Haman e os 11 nazistas de Haman”. Mas, se os dez filhos de
sentenciados à morte – em ambos Haman já estavam mortos, qual o
Semelhanças realmente assombrosas os casos, dez foram enforcados e um propósito de enforcá-los “amanhã”?
entre a história de Purim e o cometeu suicídio –, alguns estudiosos Explicam nossos Sábios: há um
Holocausto vieram à tona durante encontraram alusões aos Julgamentos amanhã que é agora, e um amanhã
os Julgamentos de Nuremberg. de Nuremberg na própria Meguilat que é depois. Em outras palavras,
A Meguilat Esther conta que Esther. Lemos a seguinte passagem segundo nos ensinam eles, Esther
os dez filhos de Haman foram no Livro de Esther: pedia que o enforcamento dos dez
enforcados. O Talmud revela que filhos de Haman não fosse um
Haman também tinha uma filha, “O rei disse a Esther… ‘os judeus episódio isolado na História, mas
que cometeu suicídio e, assim, não mataram e destruíram 500 homens que também voltasse a ocorrer no
precisou ser enforcada. e os dez filhos de Haman… Qual é, futuro – “amanhã”. “O rei ordenou
pois, a tua petição e esta se dará a ti!’ que assim fosse feito”, segundo
Dos 23 criminosos de guerra … Então Esther disse: ‘Se parecer nossos Sábios, refere-se não apenas
nazistas julgados em Nuremberg, bem ao rei, conceda-se aos judeus a Achashverosh, mas ao verdadeiro
11 foram condenados à morte na que se acham em Shushán, que Rei, Mestre do Universo.
forca. Duas horas antes da sentença também façam amanhã segundo o
ser executada, Herman Göring edito de hoje, e pendurem na forca O curioso sobre os Julgamentos de
cometeu suicídio. O enforcamento os dez filhos de Haman’. Então o Nuremberg não é apenas o fato de
dos dez nazistas foi realizado em 16 rei ordenou que assim fosse feito e dez nazistas terem sido executados
de outubro de 1946, que era o dia 21 publicou-se o edito em Shushán e – exato número de filhos de Haman
do mês judaico de Tishrei – Hoshaná penduraram os dez filhos de Haman” também enforcados –, mas o método
Rabá –, sétimo e último dia da festa (Esther 9:12-14). de execução também ter sido o

19 DEZEMBRO 2018
nossas festas

mesmo. Como o julgamento foi Os estudiosos encontraram Um segundo Purim


conduzido por um tribunal militar, outra alusão aos Julgamentos de
o método de execução deveria ter Nuremberg na Meguilat Esther. Como mencionado acima, em
sido fuzilamento ou cadeira elétrica, Ensinam nossos Sábios que, 30 de janeiro de 1944, Adolf
como era costume nos Estados quando uma letra na Torá ou em Hitler declarou que se os nazistas
Unidos. No entanto, o tribunal qualquer dos demais livros do perdessem a guerra, os judeus
insistiu, especificamente, em forca, Tanach aparecem de tamanho celebrariam um segundo Purim.
exatamente como no apelo da maior ou menor, isso alude a Os nazistas foram, efetivamente,
Rainha Esther: “... amanhã ..., e algo muito significativo. Há uma derrotados; o Povo Judeu sobreviveu
pendurem na forca os dez filhos de tradição que conta que Mordechai, e seguiu em frente até reerguer o
Haman”. um profeta, escreveu a Meguilat Judaísmo e fundar o Estado de
Esther. No texto, encontramos Israel. Mas a derrota de Hitler não
Há quem possa ver com ceticismo três letras escritas com caracteres se configurou em um segundo Purim
esses paralelos entre a história menores; elas são encontradas – pelo menos não um Purim festivo.
de Purim e a “Solução Final ao em meio ao nome dos dez filhos Esse moderno Haman fracassou e
Problema Judeu”, da Alemanha de Haman. Essas letras são um morreu em desgraça, mas não sem
nazista. Mas um dos líderes Taf pequeno em Parshandatha, antes assassinar quase sete milhões
nazistas, Julius Streicher, acima um Shin pequeno em Parmashta de judeus.
mencionado, não era uma dessas e um Zayin pequeno em Vaizata.
pessoas. Streicher foi enforcado ao Durante milhares de anos, os Não sabemos por que razão a
amanhecer do dia 16 de outubro judeus ficavam imaginando a salvação que celebramos em Purim
de 1946. Seu enforcamento foi razão para essas três letras terem não ocorreu quando Hitler subiu
o mais melodramático de todos. sido escritas em tamanho menor. ao poder. No entanto, sabemos
Joseph Kingsbury-Smith, único Agora, já o sabemos: as três letras o seguinte: Haman e Hitler
representante da mídia americana misteriosamente escritas com perseguiram os judeus porque nosso
presente às execuções, fez uma letrinha pequena dentro dos povo vivia na Diáspora. Hitler e seus
matéria que foi publicada em todos nomes dos dez filhos de Haman, carrascos foram capazes de liquidar
os grandes jornais. A seguir, trechos que foram enforcados, formam milhões de judeus porque não
da mesma:  o ano do enforcamento dos dez tínhamos nossa terra – e nenhum
nazistas. O ano de Taf Shin Zayin país abriu seus braços para receber-
“Julius Streicher fez sua entrada foi o ano judaico que representa nos e salvar-nos do extermínio.
melodramática às 2:12h da outubro de 1946. Hitler e seus carrascos torturaram
madrugada…. Dois guardas, cada e exterminaram dois terços do
um segurando um de seus braços, judaísmo europeu porque éramos
conduziram-no ao cadafalso No 1, à vulneráveis e não tínhamos um
esquerda da entrada. Ele caminhou, exército judeu para nos proteger.
com firmeza, os seis pés de distância
até o primeiro degrau de madeira, A festa de Purim celebra a maneira
mas seu rosto se contorcia. Quando como a Divina Providência
os guardas o detiveram antes dos orquestrou uma série de eventos –
degraus para as formalidades de milagres ocultos, a que chamamos
identificação, ele bradou um grito de “coincidências” – para salvar o
pungente: ‘Heil, Hitler!’. O grito me Povo Judeu das garras de Haman.
causou um calafrio, coluna abaixo… E por que não houve tais milagres
Empurraram-no até os dois últimos quando Hitler e seus “filhos”
degraus até o ponto mortal sob a arquitetaram e executaram a
corda do carrasco... Streicher foi Solução Final? Não o sabemos.
balançado, subitamente, de modo Talvez o milagre tenha sido a
a olhar para as testemunhas e as derrota da Alemanha nazista.
encarou. E, de repente, grita: ‘Purim Qualquer estudioso da 2a Guerra
Fest 1946! (Festa de Purim de 1946)’”. Texto da Meguilat Esther Mundial sabe que as potências do

20
REVISTA MORASHÁ i 102

Eixo poderiam facilmente ter saído


vitoriosas não fossem os pequenos
erros e cálculos malfeitos de Hitler.

O escritor inglês, Graham Greene,


escreveu: “Você não consegue
conceber, nem eu, a espantosa
estranheza da misericórdia Divina”.
Não podemos, de fato. Somos gratos
à Divina Providência pelo fato de
Hitler e a Alemanha nazista terem
sido derrotados, e que seus dez
“filhos” tenham sido enforcados e
que o Povo Judeu tenha sobrevivido
e que, apenas três anos após o fim
da guerra, tenha podido realizar
o sonho de 2.000 anos de criar o
Estado Judeu na Terra de Israel.
Mas não conseguimos entender
o extermínio de sete milhões de quando alguém promete matar todos e afiada máquina de guerra, podem
pessoas. Talvez no Mundo Vindouro os judeus, devemos levar essa pessoa fazê-lo. Em nossa geração, os
possamos entender a espantosa muito a sério. amalequitas são aqueles que se
estranheza da misericórdia Divina; opõem à existência e legitimidade
mas neste nosso mundo, várias Um sábio conselho para todos do Estado Judeu; eles querem
coisas, como o Holocausto, escapam nós, judeus, na Diáspora e em destruir Israel por saberem que
à nossa compreensão. Israel. Amalek e seus descendentes os judeus, sem um país e sem seu
podem migrar e passar por muitas próprio exército, constituem presa
Nosso povo não pode permitir que a metamorfoses – podem até ocultar- fácil para os Hamans e Hitlers do
dor pelo Holocausto ofusque o júbilo se nas sombras, durante longo tempo. mundo.
de Purim. Contudo, talvez a morte Mas continuarão a existir até o dia
de sete milhões de judeus deva nos em que o Mashiach chegar a nosso Purim é o dia mais feliz do ano
fazer celebrar essa festividade com mundo. Mesmo nos dias de hoje, judaico e deve ser comemorado
menos inocência do que as gerações há homens como Haman e Hitler, como tal. Celebra a eternidade do
anteriores ao Holocausto o fizeram. e países como a Alemanha nazista, Povo Judeu. Apesar do Holocausto
Através dos séculos, muitos judeus que prometem e tramam aniquilar o – a perda de sete milhões de judeus,
zombavam da figura de Haman, Estado Judeu e o Povo Judeu. entre os quais um milhão e meio
cujos planos malignos se voltaram de crianças -, devemos celebrar essa
contra ele próprio. Contudo, após O Holocausto ensinou a nosso festividade com grande alegria. Mas,
voltar ao mundo na figura de Adolf povo inúmeras lições muito dolorosas. devemos fazê-lo não apenas com
Hitler, Haman deixou de ser uma Uma delas é que em um mundo um sorriso no rosto, mas também
figura da qual podemos zombar ou que tolera e, por vezes, até consente com uma férrea determinação em
desconsiderar. Menachem Begin, na existência de homens como nosso coração de defender o Povo
Primeiro Ministro de Israel, que Haman e Hitler, os judeus têm que Judeu até que chegue o dia em que a
perdeu a maior parte de sua família poder defender-se sem contar com memória de Amalek seja apagada de
em mãos dos nazistas, e que era ninguém. Podemos repetir “Nunca debaixo dos céus.
um homem religioso mas também mais” tantas vezes quanto quisermos,
um guerreiro judeu orgulhoso e mas não se trata de palavras mágicas
feroz, respondeu, em certa ocasião, à que, de alguma maneira, impeçam
BIBLIOGRAFIA
pergunta da lição que devemos tirar um outro Holocausto. Somente a
Avraham, Rachel: Strange Parallels between
do Holocausto. Ele respondeu que o Divina Providência e um Estado de the Purim Story and the Nuremberg Trials -
Holocausto deveria ensinar-nos que Israel forte, com sua feroz, implacável United with Israel.

21 DEZEMBRO 2018
história

ESPIÕES NA TERRA SANTA

Como um heroico grupo de pioneiros judeus contribuiu


para a derrota do Império Otomano na antiga Palestina.
POR ZEVI GHIVELDER

N
a segunda metade do século 19, um dos Leon Pinsker, livro sobre o qual Theodor Herzl escreveu:
mais ilustres viajantes a percorrer a antiga “Se eu tivesse lido Pinsker, talvez não tivesse escrito
Palestina foi o icônico escritor americano O Estado Judeu”.
Mark Twain. Dessa viagem resultou seu
livro Innocents Abroad (sem tradução para Obviamente, os judeus que pretendiam emigrar da
o português), no qual descreve a Terra Santa de 1870 Rússia, da Romênia e da Galícia para a Palestina
como uma terra de paisagem desoladora a par da feiura Otomana não tinham meios para sustentar tal
de seus habitantes. Relata, ainda, a existência de aldeias empreendimento. Foi quando veio o socorro do
miseráveis com gente miserável, que qualifica como Fundo Rothschild, tendo à frente o barão Edmond
“humanidade esquálida”. Rothschild, da célebre família de banqueiros judeus
europeus, que, além de proporcionar o deslocamento
Foi com essa triste paisagem que os judeus da Primeira para homens, mulheres e crianças, também adquiriu
Aliá, que se estendeu de 1883 a 1903, se depararam propriedades para exploração agrícola na Palestina
quando chegaram à Palestina sob domínio turco. Esta Otomana, chegando a somar um total de 350 mil
chamada Primeira Aliá correspondeu a uma corrente metros quadrados de terras. Assim foi dada origem
imigratória que levou de 25 mil a 35 mil judeus da a uma série de novos assentamentos ocupados pelos
Europa Oriental e do Iêmen para Eretz Israel (Terra pioneiros. Esses imigrantes, dotados de uma energia
de Israel). A maioria dos recém-chegados era oriunda fora do comum, não mantinham convicções de caráter
da Rússia, onde, no final do século 19 e princípio do coletivo tal como aconteceria anos mais tarde com a
século 20, os pogroms (massacres contra judeus) se implantação dos kibutzim (colônias agrícolas coletivas).
multiplicavam. Por causa desses ataques sangrentos Eles não eram socialistas e optaram por incrementar
e impiedosos os judeus começaram a fortalecer sua atividades particulares nos moshavim (comunidades
identidade nacional, o que deu origem ao movimento rurais), em sistema de cooperativas. Em dezembro de
Hibat Zion (Amor a Sion), cuja base teórica e aclamada 1882, um grupo de cem judeus da Bessarábia, integrantes
era a obra precursora do sionismo, Autoemancipação, de do movimento Hibat Zion, instalou-se em uma das terras

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exterior do Museu NILI - BEIT ARONSOHN, EM ZICHRON YAAKOV

compradas pelo Fundo Rothschild, filhos, dois revelaram extraordinária Os ocupantes otomanos eram
a 35 quilômetros ao sul de Haifa, inteligência e firmeza de caráter, complacentes com os pioneiros e
nas escarpas do Monte Carmel. Aaron e Sarah. só passaram a se preocupar com os
Muitos dos agricultores foram judeus quando o Sionismo começou
acometidos pela malária e decidiram A eclosão da 1ª Guerra Mundial, a ser um movimento inspirador e
abandonar o projeto de se radicar na em 1914, não chegou a interferir propulsor da Segunda Aliá, de 1904
Palestina. Os que ficaram, deram à na rotina de Zichron Yaakov. a 1914, resultando na fundação
localidade o nome Zichron Yaakov, do primeiro kibutz, Degânia, às
em homenagem ao pai do barão, margens do Mar da Galileia,
de nome Yaakov. As primeiras em 1909. Esses pioneiros eram
atividades agrícolas não deram certo idealistas, nacionalistas e socialistas,
e, três anos mais tarde, Edmond portanto vistos de forma suspeita
Rothschild decidiu ali instalar a pelas autoridades otomanas. Muitos
primeira vinícola da Palestina, uma desses imigrantes passaram a ser
iniciativa bem-sucedida. monitorados, culminando com a
expulsão da Palestina de dois líderes
Efraim Aronsohn, possuidor sionistas, David Ben Gurion e
de razoáveis recursos próprios, Itzhak Ben Zvi. Ambos se exilaram
desembarcou em Jaffa com a mulher, temporariamente nos Estados
Malka, e dois filhos pequenos, Unidos. Os judeus só se mobilizaram
Aaron, seis anos, e Zvi, com quatro. quando lhes chegaram os primeiros
A família se estabeleceu em Zichron relatos sobre a Campanha de
Yaakov, onde nasceram mais dois Galípoli, que durou de 1915 até o
filhos, Shmuel e Alexander, e duas ano seguinte. Essa campanha foi
filhas, Sarah e Rivka. Dos seis Sarah aronsohn um dos mais trágicos momentos da

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história

Primeira Guerra Mundial. Tropas lhe uma tropa de 10 mil homens, que
inglesas, francesas, australianas combateu os turcos com ações de
e neozelandesas desembarcaram sabotagens e guerrilhas. Mais tarde,
na península de Galípoli com o Lawrence viria a manter importante
propósito de invadir a Turquia, contato com Aaron, filho mais velho
aliada da Alemanha no conflito, e da família Aronsohn.
capturar o estratégico Estreito dos
Dardanelos. Foram assombrosos Aaron Aronsohn, filho de
os milhares de mortos e feridos Efraim, nasceu na Romênia em
nas fileiras das forças invasoras. 1876. Patrocinado por Edmond
Estas contavam com cerca de 80 Rothschild, estudou agronomia e
mil homens que não conseguiram botânica na França. Embora muito
ultrapassar as ferozes defesas turcas. jovem, mas já distinguido como
Fora a resistência na península, o notável especialista nessas matérias,
Estreito dos Dardanelos permaneceu voltou para Zichron Yaakov e de
fechado, impedindo que os países lá partiu para o norte da Palestina
ocidentais, além de combalidos por com a finalidade de pesquisar a
terríveis baixas militares, pudessem estrangeira. Nesse contexto avultou a flora local. Na área de Rosh Piná,
levar auxílio à Rússia com a qual figura de um militar inglês chamado dedicou seus estudos a uma planta
estavam alinhados na guerra. Thomas Edward Lawrence, o mítico que recebeu o nome em latim de
Lawrence da Arábia. Fascinado pelo triticum, o principal componente
O insucesso de Galípoli fez com mundo árabe, ele ganhou a confiança do trigo para alimentação. O jornal
que o império britânico passasse a de Faissal, um dos líderes da rebelião The New York Times, do dia 26 de
dedicar maior atenção à ocupação árabe, que ficou impressionado outubro de 1905, noticiou: “Trigo
otomana na Palestina e a cogitar com os conhecimentos daquele histórico encontrado na Palestina”.
a invasão daquela região. A par do jovem oficial sobre as condições Na verdade, as pesquisas e estudos
fracasso militar na península turca, logísticas e o potencial militar turco, daquele rapaz judeu são até hoje
em 1916 teve início uma revolta conhecimentos adquiridos enquanto uma fonte mundial de referência
árabe contra os turcos e também ele servira durante dois anos no nessa matéria. Depoimentos de
de caráter nacionalista, que passou serviço secreto inglês, sediado no contemporâneos de Aaron apontam-
a agir por conta própria, sem a Cairo, sob o comando do general no como uma verdadeira força da
interferência de qualquer potência Allenby. Faissal acabou confiando- natureza: um homem alto, ombros
largos, musculoso, enfim, uma figura
humana imponente.

Por causa da notícia no jornal


americano, Aaron recebeu uma
correspondência assinada por
David Fairchild, cientista-chefe do
Departamento de Agricultura dos
Estados Unidos com um convite para
uma visita a Washington. Respondeu
que, por causa de uma crise agrícola
em Zichron Yaakov, não poderia
viajar naquele ano, acrescentando
que, quando possível, gostaria
de fazer pesquisas na Califórnia,
cuja geologia, conforme estudara
com meticulosidade, apresentava
Degânia, o primeiro kibutz fundado em Eretz Israel.
significativas semelhanças com certas
Umm-J’uni, o principal galpão, 1911 regiões da Palestina.

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Tendo Zichron Yaakov voltado armamentos. Para ter acesso a tais


a entrar nos eixos, Aaron pôde informações era preciso ganhar
partir para os Estados Unidos. a confiança dos dirigentes civis e
Recebido de forma entusiástica militares otomanos, uma tarefa
por Fairchild, percorreu o país quase impossível. Seu primeiro
durante quatro meses fazendo passo foi estabelecer as bases de uma
palestras em associações científicas rede de espionagem judaica sob a
e universidades. Ao mesmo tempo, seguinte égide, extraída do livro de
aproximou-se de pessoas físicas e Samuel: Netzach Israel Lo Ieshaker,
entidades filantrópicas judaicas, (A Glória de Israel Jamais Morrerá),
obtendo fundos para a instalação daí resultando o acrônimo NILI,
de um centro de pesquisas de formado pelas primeiras letras das
história natural na cidade costeira palavras no idioma hebraico.
de Atlit, ao sul de Haifa, que O ponto de convergência da rede de
abrigaria a primeira biblioteca espionagem em gestação seria em
especializada nessa matéria na Terra Aaron Aronsohn Atlit. Em março de 1915, uma praga
Santa. Anos mais tarde, Fairchild
escreveria sobre Aronsohn: “Eu
logo percebi que estava perante
um homem extraordinário.
Embora ele jamais tivesse estado
na Califórnia, conhecia aquele
estado tão bem como conhece a
Palestina. Nenhum estrangeiro
nunca esteve no meu escritório
com um acúmulo de informações
e conclusões tão profundas sobre
solos, climas, diferentes plantas e
suas adaptabilidades a diferentes
meio-ambientes”. A Universidade
de Columbia, em Nova York,
convidou-o para lecionar em caráter
permanente, mas Aaron recusou. AVSHALOM FEINBERG YOSEF LISHANSKY NA’AMAN BELKIND

Tinha pressa em voltar para casa.


Primeiro, para cuidar do centro a
ser criado em Atlit; segundo, porque se à Grã-Bretanha para o que desse de gafanhotos invadiu a Palestina
sentia que os judeus do ishuv (judeus e viesse. Aaron se preocupava com causando imensas devastações e
residentes na Palestina) sofriam as atitudes hostis de Djemal Pasha, prejudicando seriamente a produção
uma iminente e grave ameaça. comandante do Quarto Exército de alimentos. Informado de que o
Depois de tomar conhecimento do Otomano, contra o ishuv, a ponto de judeu Aronsohn havia estabelecido
massacre perpetrado pelo governo o chefe militar turco já ter ordenado um centro de pesquisas de história
da Turquia contra um milhão e em 1914, no início da grande guerra, natural, Djemal Pasha, verdadeiro
meio de armênios, gerando por a expulsão da Palestina de cerca de ditador da Palestina e da Síria
consequência hordas de refugiados mil judeus. otomanas, mandou chamá-lo num
expulsos de suas terras, era óbvio tom ameaçador. Se não obtivesse
concluir que a mesma desgraça Aaron Aronsohn nada sabia a ajuda para combater a praga, haveria
poderia abater-se sobre os judeus respeito do potencial militar do consequências desagradáveis. A
na Palestina. Portanto, era preciso regime turco e menos ainda de intimidação chegou ao ponto de
tomar alguma providência o quanto suas condições logísticas, tais Pasha dizer: “O que você diria se
antes, era imperioso participar da como transportes, combustíveis eu mandasse enforcá-lo? ”. Aaron
guerra contra os otomanos, aliando- e quantidade e qualidade de respondeu: “Como eu peso muito,

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história

qualquer interesse, nada daquilo


tinha o menor valor.

Aronsohn não desistiu, providenciou


outro passaporte falso e comprou
outra passagem com escala em
Alexandria. Desta vez a incumbência
de mensageiro foi dada ao jovem
Avshalom Feinberg, rapaz culto e
inteligente, noivo de Rivka e melhor
amigo de Aaron. Ele teve sorte
na aproximação com um oficial
que ficou impressionado com o
volume de informações que lhe
estava sendo exibido. De imediato
Rivka, Sarah e Ephraim Aronsohn. No meio, Alexander e Shmuel Aronsohn, com
Chaim Abraham, marido de Sarah, à direita. Atrás, Aaron Aronsohn. emitiu uma ordem para os navios de
guerra britânicos, em ação no mar
Mediterrâneo, entrarem em contato
a árvore quebraria e faria um passagens num navio que zarparia com a rede judaica através de luzes
tamanho barulho, que seria ouvido de Beirute para a Europa com com código Morse e, eventualmente,
até nos Estados Unidos”. Djemal escala em Alexandria. Os irmãos ali para contatos pessoais, se dirigissem
entendeu o recado. Não valia a desembarcaram e tomaram o rumo até a costa da Palestina em barcos
pena se indispor com os Estados do Cairo onde Alexander esbarrou a remo. Em 1916, somando-se
Unidos, que até então se mantinha nas maiores dificuldades para fazer às crescentes preocupações de
neutro na guerra, e estava sendo contato com alguém do serviço Aronsohn, os turcos continuaram
cortejado tanto pela Turquia, secreto inglês. Depois de muitas idas perseguindo e expulsando os
como pelos aliados europeus. Para e vindas, foi finalmente recebido por armênios. Somente um tolo não
erradicar os gafanhotos, Aaron um oficial. Do alto de sua arrogância, perceberia que logo os judeus
teve à sua disposição um veículo este deitou uma vista de olhos nos enfrentariam o mesmo destino.
militar, com escolta e motorista, documentos trazidos por Alexander Resolveu tratar da proteção do ishuv
no qual esquadrinhou a Palestina e disse que nada daquilo tinha diretamente com os ingleses, em
e também a Síria. Acumulou Londres, um passo da maior ousadia.
montanhas de informações sobre Mas, como justificar perante os
topografia, clima, recursos e turcos uma súbita viagem à Europa?
obstáculos naturais, inclusive tendo Disse-lhes que havia descoberto um
acesso não detectado a planilhas de tipo de sésamo que continha uma
armamentos e estratégias militares quantidade incomum de gergelim
turcas. Enfim, possuía grande parte e, portanto, algo com apreciável
do que os ingleses precisariam saber potencial econômico para o governo
na hipótese de optarem por uma de Istambul. Entretanto, para estar
intervenção militar na Palestina. seguro de que estava no caminho
Aaron conseguiu erradicar a praga científico correto, precisava consultar
dos gafanhotos e assim caiu nas famosos especialistas nessa matéria
graças das autoridades otomanas. em Berlim. Partiu para a capital da
Turquia e de lá para Berlim. Sob
Seu passo seguinte consistiu em pretexto de realizar um trabalho
estabelecer um contato produtivo científico, obteve um visto para a
com os serviços britânicos de Dinamarca, neutra no conflito.
inteligência. Chamou seus irmãos
Alexander e Rivka, providenciou Sarah Aronsohn em seu cavalo,
Em Copenhague, Aaron dirigiu-se
passaportes falsos e comprou Tayar, c. 1917 à embaixada inglesa onde revelou a

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um alto diplomata tudo sobre Sarah Aronsohn nasceu em Zichron


a já ativa NILI. Se quisesse, o Yakov no dia 5 de janeiro de 1890.
funcionário britânico poderia entrar Seu pai, Efraim, era a personalidade
em contato com a embaixada no proeminente da comunidade e
Cairo, onde teria a confirmação da ganhara boa quantia comerciando
pouca atenção que seus primeiros grãos. As maiores honrarias,
emissários ali haviam recebido, bem entretanto, eram devotadas a Aaron,
como das instruções de cooperação catorze anos mais velho do que
transmitidas para a Real Marinha de ela e que, portanto, assumira a
Sua Majestade. Aaron e o diplomata condição de seu mentor intelectual.
traçaram um plano para evitar que Era o mais velho dos seis irmãos
sua família e a rede NILI sofressem e todos personificavam a segunda
retaliações, caso os turcos viessem a geração dos pioneiros da Primeira
saber de sua presença em Londres. Aliá. Comportavam-se como se
Por conta de suas antigas amizades, já estivessem numa pátria judaica
Aaron obteve do Departamento de Jerusalém se rende aOS britânicos soberana, falando o idioma hebraico
Agricultura dos Estados Unidos em seu cotidiano e cultivando imensa
uma carta-convite para participar Sykes escreveu um relatório de 38 devoção às terras que, somente
de um congresso internacional páginas para o primeiro-ministro devido à sua presença, pareciam
em Washington. O navio no qual Asquith, destacando o inestimável despertar por conta própria após
embarcou, que navegaria para o valor da rede NILI para as presentes um pesadelo de muitos séculos. Ao
outro lado do Atlântico, fez uma e futuras pretensões do governo mesmo tempo, os jovens de Zichron
escala na Escócia e Aronsohn de Sua Majestade com relação Yaakov se organizavam em grupos, a
foi pretensamente preso pelas à Palestina. Sykes também se partir de treinamentos paramilitares
autoridades locais sob a acusação impressionou com as dissertações com a finalidade de defender suas
de ser um espião a mando da sobre o sionismo feitas por Aaron e, propriedades. Sarah pertencia
Turquia. Era um disfarce perfeito por conta disso, acabou exercendo ao grupo fundado por seu irmão
para enganar os turcos se, de alguma influência no gabinete para a Alexander, os gideonim, homenagem
maneira, fossem informados que emissão da Declaração Balfour. ao personagem bíblico Gideon.
ele estava em solo britânico. Em
Londres, foi primeiro interrogado
por um oficial especializado em
assuntos da Turquia e, depois de
atestada sua veracidade, passou
a ter longas conversas com Sir
Marks Sykes, parlamentar e chefe
da inteligência britânica. (Anos
depois, finda a guerra com a vitória
dos aliados, Sykes assinaria junto
com o francês Picot o acordo que
dividiu os territórios até então
pertencentes ao império otomano).
Ao longo de sucessivos encontros,
Sykes passou a admirar aquele judeu
orgulhoso de sua ancestralidade,
que se voluntariava para colaborar
com o esforço de guerra inglês e
não lhe pedira sequer uma libra
esterlina como contrapartida. Em
outras conversas, Aaron falou-lhe
longamente sobre o projeto sionista. Allenby se aproxima do Portão de Jaffa

27 DEZEMBRO 2018
história

sombria, e muito menos dos móveis


antigos e bolorentos. O contato
íntimo entre os dois era quase
inexistente. Semanas depois de vida
em comum, Chaim embarcou para
uma viagem de negócios à Europa,
deixando na casa uma irmã e um
cunhado, a pretexto de fazerem
companhia para Sarah, mas, na
verdade, encarregados de controlar
seus passos. O clima dentro da
casa era tenso e ficou ainda pior
quando Sarah soube do extermínio
dos armênios. Julgou que sua
Comissão sionista chega à Palestina. Chaim Weizmann (segundo, da dir. à esq.);
família corria igual perigo e sentia
Aharon Aronsohn (no trem, o segundo, da dir. à esq.) que precisava voltar para Zichron
Yaakov. Fez as malas e foi embora
Sarah cresceu como uma figura do gordo Chaim Abraham, sem olhar para trás.
jovem determinada, impetuosa, adornada pela enorme simpatia dos
independente e exímia cavaleira. Era pais, Efraim e Malka. A rigor, Sarah Pouco depois de seu regresso, Aaron
sempre vista ao lado de Avshalom até gostava dele, mas estava longe confiou-lhe responsabilidades nas
Feinberg, de um moshav nas de estar apaixonada. Por pressão dos atividades clandestinas da NILI. Ele
cercanias de Hedera. Biógrafos de pais, concordou com o casamento, mesmo viajara para o Cairo, onde
Sarah sustentam que ela manteve ainda sem data marcada. Coube, devia manter contato permanente
um caso de amor com Avshalom, então, a Efraim receber Chaim para com as forças militares britânicas
embora ele viesse a noivar com sua discutir qual o dote que daria para e também com seus serviços de
irmã mais nova. Sarah não teve uma o noivo em potencial. Ofereceu-lhe Inteligência. A organização de
educação formal, mas sob orientação uma porção de terra que possuía, espionagem judaica não promovia
de Aaron empenhou-se no estudo perto dos vinhedos do barão. Chaim atos de violência. Sua principal
de idiomas. Adolescente, falava logo percebeu que era um bom tarefa, coordenada por Sarah,
hebraico, iídiche, turco, francês, negócio, com perspectiva de lucros Avshalom e mais um amigo fiel,
inglês e rudimentos de árabe. Em futuros. Concordou e seguiu para Joseph Lishansky, consistia na
1914, por causa do noivado de Constantinopla, empenhado nos coleta de informações. Tudo era
Avshalom com Rivka, arrefeceu a preparativos para receber sua jovem importante e seria útil em caso de
amizade com o rapaz que, mesmo noiva. uma intervenção inglesa: localizações
assim, continuou a frequentar a casa de todos os moshavim e kibutzim da
dos Aronsohn e a marcar presença Quando Sarah soube do dote que Palestina; mapas e nomes de ruas das
no centro em Atlit. Sarah, por sua seu pai havia oferecido, ficou furiosa. principais cidades sob protetorado
vez, deu novo curso à sua vida. Não concordava que aquele rico otomano; quantidades e marcas de
comerciante fizesse questão de mais veículos civis e militares; nomes
Em 1914, começou a manter uma porção de terra. Escreveu-lhe dos principais comandantes turcos
um relacionamento com um rico uma carta: “Não consigo compreender estacionados na Palestina e seus
comerciante judeu de origem como você, sionista, quer se apossar patamares hierárquicos; nomes e
búlgara, chamado Chaim Abraham, de uma terra encharcada com o suor funções dos funcionários civis da
bem mais velho do que ela. Ao dos pioneiros”. administração turca; importações
mesmo tempo, Avshalom queria se e exportações a partir do porto de
casar com Rivka, mas seguindo uma Apesar dessa desavença, Sarah Jaffa; instalações militares e depósitos
tradição judaica ortodoxa, a irmã Aronsohn e Chaim Abraham se de munições.
menor não poderia se casar antes da casaram em março de 1915 e foram
mais velha. Mas, com quem Sarah viver em Constantinopla. Sarah No Cairo, Aaron participava
se casaria? No horizonte avultava a não gostou da casa, que lhe parecia dos planejamentos para a futura

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invasão da Palestina quando passou


a ser alvo da inveja de Lawrence
que julgava seus próprios planos
muito melhores. Aaron registrou
num diário a última conversa
que manteve com Lawrence da
Arábia: “Conversei com o capitão
Lawrence. Nossa conversa foi isenta
de amenidades. Ele tem tido tanto
sucesso com sua pouca idade que
está muito empolgado consigo
mesmo. Pretendeu dar-me lições
sobre o meu próprio povo. No fim
das contas, tive a impressão de
ver diante de mim um tradicional
Exterior do Museu Nili - Beit Aronsohn, em Zichron Yaakov
antissemita russo falando inglês. Ele
tem a idade na qual a pessoa não
tem a menor dúvida de tudo que Sarah foi presa e levada para um admiração. Em 1919, convocou-o
pensa e diz. Jovem e feliz rapaz! ” quartel otomano. Outros dois para ir a Londres, onde deveria
importantes dirigentes da NILI, dedicar-se aos desdobramentos
Em março de 1917, o alto Naman Belkind e Joseph Lishansy, políticos da Declaração Balfour.
comando militar britânico instituiu também foram presos. Ambos Depois chamou-o para participar da
oficialmente que a organização foram levados para Damasco e delegação sionista à conferência da
judaica NILI era a sua principal enforcados em praça pública. Sarah Liga das Nações, em Paris. O avião
fonte de inteligência em qualquer foi barbaramente torturada durante em que Aaron viajava caiu e afundou
assunto relacionado à Palestina. quatro dias, mas nada revelou sobre no Canal da Mancha. Seu corpo
Contudo, no mês de setembro, a organização clandestina. Quando nunca foi encontrado.
os contatos com a NILI foram lhe disseram que seu pai seria preso,
abruptamente interrompidos. Até Sarah tomou a única decisão que Existe hoje em Zichron Yaakov um
hoje há controvérsias referentes julgava cabível para evitar que o pequeno museu dedicado à NILI,
às circunstâncias pelas quais foi pai fosse torturado. Durante todo o contendo centenas de fotografias,
desmantelada a rede de espionagem. tempo da prisão, mantinha escondida diagramas que explicam a estrutura
Os espiões da NILI usavam uma arma. Suicidou-se com um tiro da organização, originais de cartas e
pombos-correios como forma na boca. Tinha 27 anos de idade. manuscritos de Aaron.
usual de comunicação. Segundo
um historiador, um desses pombos No Cairo, apesar de devastado pela Continua sendo reverenciada
pousou na varanda da residência morte da irmã, Aaron Aronsohn a memória de Sarah e Aaron
de um oficial turco, localizada nas forneceu ao general Allenby Aronsohn, heróis do povo
proximidades das ruínas romanas de todas as coordenadas referentes à de Israel.
Cesareia. Outro pesquisador afirma topografia do deserto do Neguev,
que os turcos prenderam um membro que seria percorrido pelas tropas
da NILI que pretendia ultrapassar inglesas na invasão da Palestina,
BIBLIOGRAFIA
a fronteira do Sinai com o Egito. rumo a Beersheva e depois a Gaza,
Desconfiaram dele e este homem Rhodes, James. “Spies in Palestine”, editora
abrindo caminho para o domínio Counterpoint, USA, 2016.
desconhecido revelou-lhes tudo da região central do país. Jerusalém Feith, Douglas J., artigo em “Mosaic”.
sobre as atividades de espionagem rendeu-se em dezembro, dando Setembro, 2017.
feitas pelos judeus. O fato é que a fim a mais de 400 anos de domínio Melman, Millie, “Women’s Orrients”,
comunidade Zichron Yaakov foi otomano na Terra Santa. No editora Palgrave Macmillan, UK. 1992.
cercada por um grande contingente decorrer dos últimos anos Aaron
turco que tinha como alvo principal a mantinha amizade com Chaim
casa da família Aronsohn. Weizmann, que lhe dedicava especial ZEVI GHIVELDER É ESCRITOR E JORNALISTA

29 DEZEMBRO 2018
ISRAEL

Guerra cibernética:
uma ameaça à segurança
O combate ao ciberterrorismo está no topo da lista de
prioridades do governo israelense. Hoje, além dos ataques
às suas fronteiras por seus vizinhos inimigos ao Norte e ao Sul,
Israel enfrenta atualmente uma ameaça invisível: ataques de
hackers aos seus sistemas de computação, que podem colocar
em risco a infraestrutura civil e militar do país.

o
s mísseis lançados pelo Hezbollah em ataques podem não apenas obter informações sigilosas
direção ao norte de Israel, a presença e estratégicas para o cenário geopolítico internacional,
iraniana na Síria e as ações do Hamas como chegar a desestabilizar ou paralisar a infraestrutura
na fronteira sul de Israel são manchetes nacional, criando o caos. Hoje, a ameaça cibernética à
constantes na mídia israelense. Mas, hoje, a segurança nacional deixou de ser apenas uma hipótese
proteção das fronteiras contra possíveis ataques inimigos e se tornou uma das prioridades do governo israelense
ou ações que, graças ao desenvolvimento da indústria diante do aumento na incidência de tentativas cada vez
armamentista mundial, atingem o território israelense, mais sofisticadas.
não são as únicas preocupações dos altos comandos
militares. Outra ameaça surgida há mais de 15 anos tem Em abril de 2017, Israel foi vítima de um ataque
ocupado a chamada Inteligência de Israel e tem sido até cibernético de grande escala à rede civil, incluindo
considerada por especialistas do país e do exterior tão empresas e infraestrutura. Na época, funcionários da
ou mais preocupante do que os ataques com mísseis: Autoridade Nacional de Defesa Cibernética de Israel
a guerra cibernética. Em seu livro “O Novo Oriente disseram que a infraestrutura vital do país não fora
Médio”, lançado em 1995, o líder israelense Shimon afetada e que o ataque fora neutralizado – porém, mais
Peres já alertava que, com o avanço da tecnologia, a de 120 organizações israelenses, públicas e privadas,
defesa das fronteiras já não seria suficiente para garantir foram de fato atacadas. O ataque veio sob a forma de
a segurança dos países. e-mails contaminados, enviados através de um servidor
de uma instituição acadêmica confiável com arquivos
As primeiras tentativas de invasão cibernética infectados do programa Microsoft Word. Os sistemas de
registradas nos anos 1990, facilmente controladas antivírus não conseguiram detectar o ataque.
pelos primeiros softwares de segurança lançados por
empresas israelenses, deram lugar à ataques cibernéticos De acordo com uma reportagem publicada pelo
estrategicamente organizados por indivíduos e grupos The Jerusalem Post, à época, o vírus conhecido como
ligados ou não a governos. Se bem-sucedidos, esses CVE-2017-0199 detectou um ponto vulnerável no

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sistema operacional Microsoft, Em uma época em que praticamente de um cyber-ataque, supostamente


especialmente no Microsoft Word. tudo é controlado por redes em represália a um confronto entre
Segundo especialistas, o ataque, um de computação, o trabalho dos manifestantes em Gaza e as Forças
dos piores sofridos pelo país até hackers poderia chegar até a de Defesa de Israel. A rede de
então, visava assumir o controle dos criar ataques cibernéticos que hospitais, autoridades locais, a Ópera
computadores corporativos. Para levem a descarrilamento de trens; de Israel, a União dos Professores
Israel, por trás do ataque estaria o superaquecimento nos reatores e a Organização das Viúvas e
seu grande inimigo – o Irã. nucleares, podendo causar um Órfãos das FDI, entre outras, foram
desastre nuclear; alteração nos atingidas. Por trás da ação, um
Estrategistas do setor dedicam seu semáforos provocando acidentes hacker conhecido como Dark-Coder
tempo a encontrar soluções para nos cruzamentos; manipulação ou TheFalcon. Nas telas dos websites
impedir o êxito desses ataques. criminosa em fármacos e dosagens atingidos apareciam imagens dos
Os cenários e as consequências são nos hospitais, que poderia levar à embates na fronteira de Gaza
assustadores, por exemplo, a quebra morte dos pacientes; alteração ou acompanhadas por música árabe e a
do sistema de navegação de um exclusão de registros de decisões mensagem “Jerusalém é a capital da
jato de passageiros, provocando seu governamentais, entre outros de Palestina”.
choque em uma área residencial igual gravidade e estrago.
lotada. Com as atuais capacidades Pouco depois, no seu Twitter, o
de hackear, um cenário semelhante Os inimigos de Israel não responsável pela operação escreveu
ao de 9 de setembro de 2001 não precisam de motivos para atacar uma mensagem afirmando que
exigiria terroristas que sequestrassem o país. Qualquer situação pode se a ação era parte de um esforço
aviões. Bastaria simplesmente que transformar em pretexto para uma coordenado de grupos anti-Israel,
eles assumissem o controle de seus ação. No primeiro semestre de 2018, denominados OpIsrael, que fazem
sistemas aéreos, causando os mesmos mais de uma dúzia dos principais parte de uma rede maior de hackers
danos sem se arriscarem. websites israelenses foram vítimas chamada Anonymous, cujo objetivo é

31 DEZEMBRO 2018
ISRAEL

sabotar as redes israelenses. Iniciada O diagnóstico apresentado ao a chamada Darknet. “Quem quer
em 2013, a OpIsrael realiza uma término do trabalho foi assustador que esteja por trás desta operação,
grande ação por ano contra os sites e Ophir exigiu que tudo fosse deseja saber tudo sobre nós, para
do país, divulgando mensagens novamente revisto. O resultado foi praticamente nos destruir”, afirmou
contra Israel. A data escolhida para o mesmo: inúmeros computadores o relatório final.
o ataque corresponde a Yom HaShoá, infectados com sofisticados
Dia de Lembrança do Holocausto. malwares (softwares maliciosos), Outra conclusão importante: os
Em resposta, hackers pró-Israel incluindo vários em instituições malwares utilizados não são do Irã,
também organizam ações visando civis como escolas, hospitais, o do Hezbollah ou do Hamas. “Seja
websites governamentais árabes. Ministério do Interior, entre outros. quem for o responsável pelo que
Os especialistas ficaram surpresos definimos como ‘a doença que se
Prioridade nacional ao descobrir malwares instalados espalha por todo lugar – para todos
tão profundamente dentro do os órgãos do cyber-espaço israelense’
O combate ao ciberterrorismo está sistema central dos computadores, – é algo completamente diferente,
no topo da lista de prioridades do e não apenas nos desktops pessoais um jogador muito mais preparado
governo israelense. Prova disso utilizados pelo governo, como se e perigoso do que qualquer outro
foi a iniciativa da Divisão de esperava. conhecido”.
Contraespionagem do Shin Bet de
convidar um experiente ex-agente da Para Ophir e sua equipe, uma Mas o Irã preocupa Israel, ainda mais
Inteligência para, juntamente com operação de tal porte, que consegue após a prisão do ex-ministro Gonen
uma equipe de especialistas, fazer um penetrar em diferentes sistemas Segev, acusado de espionagem
estudo profundo da área de segurança da infraestrutura nacional, não para esse país. O Departamento de
de todo o sistema computacional para é trabalho de uma pessoa só. Contraespionagem do Shin Bet já
avaliar sua vulnerabilidade e eficácia. Uma ação como essa exige altos vinha trabalhando no caso há algum
Segundo os responsáveis pela Divisão investimentos em termos financeiros tempo e, ao que tudo indica, Segev
do Shin Bet, alguém de fora teria mais e em recursos humanos, com é apenas a ponta do iceberg no
condições de identificar possíveis centenas de pessoas envolvidas. empenho iraniano em estabelecer
falhas e problemas que poderiam Não é resultado de um hobby ou uma infraestrutura secreta de
passar desapercebidos pelas equipes de pequenos grupos em trabalho Inteligência em Israel. Segev foi
da Casa. conjunto. Para eles, um ataque como ministro no início da década de
este exige tecnologias extremamente 1990, sendo anos depois preso
Para o ex-agente, identificado apenas sofisticadas e um profundo por tentar contrabandear 32 mil
como Ophir, não há dúvidas de que conhecimento das entranhas do comprimidos de ecstasy para Israel.
Israel está sob constante ameaça que mundo das redes, entre as quais, Condenado a cinco anos de prisão,
não se limita mais às tradicionais cumpriu três anos e meio. Solto,
formas de espionagem, com mudou-se para a Nigéria. Segundo
agentes duplos ou que se vendem uma fonte da Inteligência israelense,
por um bom dinheiro. Com estes, “os iranianos estão atirando para
diz Ophir, Israel está preparado todos os lados, tanto tentando
para lidar. Outras ameaças, menos recrutar informantes de alto nível
óbvias, exigem maior sofisticação e com bons contatos, como Segev,
e informações para serem quanto alvos menores, que pouco
neutralizadas. Segundo ele, o Irã têm a contribuir”.
representa hoje um dos principais
protagonistas da guerra cibernética Rússia e China,
contra Israel, pois conseguiu ameaças maiores
construir uma impressionante rede
própria de instituições e engenheiros Não é apenas o Irã que preocupa
especializados em roubar tecnologia, Israel. Rússia e China são também
hackear bancos de dados e considerados ameaças tão grandes
plantar vírus em sistemas inimigos. Diretor do Shin Bet, Nadav Argaman ou até maiores do que o Irã. Com

32
REVISTA MORASHÁ i 102

estratégias diferenciadas, cada um


dos dois países vem procurando
penetrar nos segredos israelenses.
As ferramentas (spyware) usadas
pelos russos em seus ataques
internacionais foram desenvolvidos
por dois grupos de hackers do país
denominados Fancy Bear e Cozy
Bear, os quais acredita-se estejam
associados a duas organizações russas Contraespionagem do Shin Bet: como principal potência cibernética, Israel
de Inteligência – Russian Military frustrou ataques em todo o mundo, no ano passado
Intelligence (GRU) e Russian Federal
Security Service (FSB). “Os russos Israel, principalmente porque grande realizados recentemente entre Israel
lançam ataques em grande escala parte da tecnologia usada pelo setor e China, muitas vezes o interesse
no mundo todo, com o intuito de de defesa do país é desenvolvida demonstrado não passa de uma
infiltrar-se no maior número de por companhias privadas que estratégia de aproximação para se
locais possíveis. Apostam no lema mantêm contratos com empresas familiarizar com as empresas e suas
de que quanto mais tentativas, maior internacionais. Ou seja, muitas tecnologias, sem a concretização
o sucesso. Poucas vezes focaram-se vezes para se obter informações de qualquer negócio. Segundo
em um alvo específico com uma basta se aproximar de determinada Avner Barnea, um ex-agente da
ação especialmente preparada”, companhia através de seus próprios contraespionagem do Shin Bet e um
disse Holger Stardk, vice-editor do funcionários sem que estes percebam dos maiores especialistas do setor,
jornal alemão Die Zeit, um dos mais o que está acontecendo. Para tentar muitas vezes tudo não passa de
importantes jornalistas da Alemanha. minimizar estes danos, o Shin Bet, encenação, sendo seu real interesse
nos últimos anos, chegou até a barrar a obtenção do maior número de
O desenvolvimento tecnológico a participação de empresas chineses informações.
tem tido um forte impacto na em licitações para implantação
forma como atualmente os países de projetos de infraestrutura para Para enfrentar essas ameaças a
espionam uns aos outros. Além sistemas de comunicação do país. Divisão de Contraespionagem
da figura do espião clássico, como do Shin Bet começou a contratar
Segev, se comprovada sua culpa, Algumas empresas israelenses profissionais de áreas até então
ganham maior relevância inovações também proibiram seus funcionários consideradas desnecessárias, entre
que permitem a obtenção de de usar telefones chineses depois os quais, economistas, engenheiros
informações estratégicas sem riscos que se tornou público o fato que os de computação, especialistas em alta
pessoais. Quem faz esta afirmação servidores do gabinete do primeiro- tecnologia e outros capazes de lidar
é Nimrod Kozlovsky, palestrante ministro indiano, fornecidos por com os novos desafios.
e coordenador do Departamento uma empresa chinesas, estavam
de Cyber Estudos da Escola de infectados por sofisticados vírus.
Administração da Universidade de A agência governamental chinesa BIBLIOGRAFIA
Tel Aviv. Cita, como exemplo, um por trás desse plano não estava Artigo de Eytan Halon, “Major Israeli
aparelho de escuta desenvolvido interessada apenas em temas ligados websites targeted in large anti-Israel
por companhias chinesas que pode à segurança, mas também em cyberattack”, 4 de abril de 2018,
The Jerusalem Post
ser plantado em equipamentos de segredos diplomáticos, econômicos e Artigo de Ronen Bergman. “Israel is under
comunicação e, por ser parte do políticos. massive Chinese, Russian cyber espionage
equipamento propriamente dito, é attack”, 31 de julho de 2018.
https://www.ynetnews.com
de difícil identificação. Com este Mostrar interesse em desenvolver
Artigo de Sandeep Singh Grewal,
aparelho é possível monitorar os relações comerciais com empresas “Report: Iran hacks Israel in cyber attack”,
telefones de altos funcionários e locais é uma das táticas mais usadas 2 de agosto de 2018,The Jerusalém Post
as mesas telefônicas ou painéis de pelos chineses em relação a Israel, Artigo de Toi Staff, “Highlighting cyber
vulnerabilities, rogue ex-soldier revealed
distribuição, propriamente ditos. nos últimos anos. Embora centenas to have hacked IDF”, 3 de maio de 2018,
Esse tipo de espionagem preocupa de negócios, de fato, tenham sido The Times of Israel

33 DEZEMBRO 2018
comunidades

Os judeus de Livorno
na Tunísia
POR NIMROD ETSION KOREN

A comunidade judaica livornesa em Túnis, também conhecida


como Grana, manteve laços estreitos com seu país de origem
e teve uma larga influência na esfera política da Itália,
durante os séculos 19 e 20, apesar de residir do outro lado
do Mediterrâneo. Diferentemente de outras comunidades de
origem judaica sefardita na bacia do Mediterrâneo, integradas
nas comunidades judaicas locais, Grana manteve fielmente
sua independência, defendendo sua “italianitá”.

D
esde o século 16, a população corrida colonial (1871-1914), e seu envolvimento
judaica em Túnis dividia-se entre na atividade secreta do movimento antifascista, às
a originária do local, Touansa, e os vésperas da 2a Guerra Mundial.
judeus livorneses que criaram uma
comunidade minoritária chamada Grana GRANA DURANTE A UNIFICAÇÃO ITALIANA
(Livorno traduz-se como El-Gorna, em árabe). Essa
comunidade judaica, que incluía judeus originários de A imigração da Itália para a Tunísia, nos séculos
Livorno1 e de outros locais da Itália, desenvolveu-se 17 e 18, teve motivação principalmente econômica,
separadamente do grupo majoritário local, a antiga mas, já em 1815, um novo motivo foi adicionado: o
comunidade arabizada de judeus tunisianos. político, principalmente relacionado à supressão do
movimento que levou à unificação da Itália. Tiveram
Uma das explicações para essa divisão única, sem papel central nesse movimento, conhecido como
paralelo no restante do judaísmo do Norte da África, Risorgimento, muitos judeus italianos, especialmente de
foi a constante relação da comunidade Grana com Livorno. Em razão de suas atividades revolucionárias
seu local de origem, a Itália. Exemplos dessas e perseguições sofridas, alguns deles optaram por se
conexões podem ser observados na cultura, educação exilar. Nos primeiros anos do movimento de libertação,
e vida religiosa. No contexto político, podemos a Carbonária, sociedade secreta liberal inspirada na
ressaltar os encontros clandestinos de Giuseppe Revolução Francesa, liderou rebeliões no Sul e Norte
Garibaldi (1807-1882) com seus seguidores judeus da Itália. A proximidade das revoltas na Toscana,
“livorneses”, em 1834; a participação dos “livorneses” no início da década de 1830, trouxe sua primeira
em revoltas contra o protetorado francês durante a onda de refugiados políticos a Túnis, na era pré-
colonial. Entre os proeminentes revolucionários
judeus chegados nessa onda, estava o republicano
1
Livorno é uma cidade na região da Toscana, Itália. Porém, Gaitano Fedriani (1811-1881) que, secretamente,
no texto, o termo “livorneses” refere-se aos judeus de Grana
- de origem italiana, mas que viviam na Tunísia. aporta em La Goulette, em 1834, junto com seu

34
REVISTA MORASHÁ i 102

muros da fortaleza de Ribat de Sousse, tunísia

amigo Joseph Fani, procurado pelas pela liberdade italianos – juntamente contribuiu para organização da
autoridades da Ligúria (Itália). Fani com a identificação da comunidade causa italiana, foi Giuseppe Raffo,
foi, na verdade, o pseudônimo usado judaica “livornesa” com a causa e conselheiro próximo ao Bey de Túnis,
por Garibaldi, um dos principais sua localização estratégica. Uma o governante da Tunísia. Raffo, filho
líderes do Risorgimento, durante sua das figuras centrais, que muito de um escravo italiano capturado
primeira estada em Túnis. Antes por piratas da Berbéria, acabou
de se refugiar nessa cidade, os dois sendo promovido pela corte do
camaradas se haviam filiado ao novo Bey. Simpatizante do nacionalismo
movimento clandestino fundado por italiano, patrocinava os seguidores de
Giuseppe Mazzini, ‘Giovine Italia’ Mazzini, permitindo que Fedriani
(Itália Jovem), com a promessa de e outros patriotas “livorneses”
se dedicar à libertação de sua pátria prosseguissem em suas atividades
da ocupação austríaca. Em 1834, subversivas.
ambos se haviam implicado em uma
revolta encabeçada por Mazzini, no Uma expressão da carte blanche
Piemonte, região no norte da Itália. dada a esses círculos de
Descoberta a conspiração, Garibaldi revolucionários italianos é
é sentenciado à morte in absentia e comprovada por uma furiosa carta
se refugia, com Gaetano Fedriani, anônima dirigida ao cônsul austríaco
em Túnis. às vésperas da 1ª Guerra
de Independência italiana (1848),
A política governamental local sobre as atividades clandestinas de
simpatizante foi uma das razões general gabriel valensi, de origem outro patriota, David Franco. Na
para Túnis ser escolhida como um livornesa, um dos raros judeus carta, dizia-se que Franco dirigia
tunisianos a alçar à função de
porto seguro para os combatentes oficial, no início do séc. 20 um clube político onde “um bando

35 DEZEMBRO 2018
comunidades

de toscanos que, em qualquer


outro lugar, teriam sido mortos
sumariamente, reuniam-se para
amaldiçoar o Grão-Duque e as
autoridades que trouxeram ordem e
paz para a Itália”.

Atividade livornesa e
o estabelecimento do
Reino da Itália

O período principal do processo


de libertação italiana (1850-1861), Giuseppe Garibaldi Giuseppe Raffo (1795-1862), óleo
ao final do qual estabeleceu-se o
Reino da Itália, está associado aos
empreendimentos de Camillo Benso, celebrou entusiasticamente as irmãos italianos. Sob a liderança do
Conde de Cavour e Primeiro- vitórias nacionais. Quando a Toscana ramo tunisino da ‘Giovine Italia’,
Ministro do Piemonte-Sardenha, se juntou à emergente União, em a capital tornou-se um centro
especialmente à sua aliança 1859, o jornal da comunidade, de distribuição da propaganda
secreta com o imperador francês. L’Educatore Israelita, declarou: de Mazzini, funcionando como
Esta aliança levou à retirada dos “Judeus de todas as classes sociais se um ponto de trânsito para a
austríacos da maior parte da Itália do uniram a outros cidadãos para apoiar correspondência clandestina (o
Norte e Central, durante a 2ª Guerra a bandeira tricolor e proclamar a que atraiu a atenção de várias
da Independência (1859), abrindo independência da Itália”. organizações de espionagem
caminho para a União Italiana. europeias). E, devido à atividade de
Em Livorno, a comunidade judaica A retórica do auto sacrifício pela Benedeto Calò, carbonário2 “livornês”
Pátria (a Itália) foi amplamente e seu contato direto com Mazzini
adotada, em Túnis, pelos membros em Londres, também como um
2
A Carbonária foi uma sociedade secreta da Grana, os ditos “livorneses”, centro de armas escondidas.
e revolucionária que atuou na Itália e em que compartilhavam sentimentos
outros países.
patrióticos semelhantes aos de seus As atividades dos judeus “livorneses”
na Tunísia se intensificaram e
O Palácio Gnecco, na Almedina de Túnis
partiram para o estágio seguinte
da campanha pela independência
italiana – ou seja, a conquista do
Reino da Sicília. Na realidade,
devido à dedicação dos exilados e
à singular localização geográfica,
Mazzini pensou em planejar a
chegada à Sicília vindo diretamente
da Tunísia. Em suas palavras,
“Estamos pensando em armamento
a ser transferido para a Tunísia e,
se necessário, atacar a Sicília”.

Um dos destaques do envolvimento


“livornês” ocorreu durante a
“Expedição dos Mil” (a conquista
do sul da Itália por Garibaldi), com
o carregamento de armas recolhidas
por Grana, diretamente para a

36
REVISTA MORASHÁ i 102

Sicília, durante o desembarque


das forças de Garibaldi. A derrota
e o desmantelamento do Reino
das Duas Sicílias levaram ao
estabelecimento do Reino da Itália
(1861), o que animou Grana a
estimular a naturalização da maioria
das famílias de elite da comunidade.
Ostensivamente, após ter passado
seus melhores anos no exílio, os
“livorneses” optariam por voltar à
Itália. Mas, a maioria decidiu ficar na
Tunísia, permanecendo, no entanto,
fiel a seu torrão natal.
antiga sinagoga de livorno, Itália
OS “LIVORNESES”
E A COMPETIÇÃO
COLONIAL, 1871-1914 surgiu em muitos círculos. Mas sua É um obstáculo que nunca seremos
adesão tardia à corrida colonial, capazes de superar”. Em contraste,
Embora o Risorgimento forçou a Itália a adaptar suas vários italianos argumentaram
supostamente resolvesse a questão ambições a seu poder real4. Portanto, que, desde a conquista francesa da
do nacionalismo italiano, a a relativa proximidade da Tunísia - Argélia, em 1830, a Tunísia havia
unificação era apenas o começo de sendo parte do glorioso passado da sido submetida à influência política
um debate interno sobre o novo Itália - e a existência de uma grande francesa. Um tipo similar de visão
estado-nação. Com a transferência comunidade italiana, que incluía a também foi compartilhado por
da capital para Roma (1871), as rica elite de Grana –, aumentou a Garibaldi, que atribuiu a recusa em
expectativas eram altas, o que atratividade daquele país como um permitir sua entrada em Túnis, em
dificultou que se contentassem com trunfo para a sua autodeterminação 1849, precisamente a essa influência.
as fronteiras existentes. A crença como potência europeia. Assim,
no direito da Itália ao seu próprio apesar das “naturais” ambições Nos anos que se seguiram, o
império e o desejo de fazer reviver o italianas e, aparentemente, por causa afundamento em dívidas do governo
conceito romano de Mare Nostrum3, delas, a França entrou em ação e, do Bey foi o fator que aumentou
no início de 1881, sem aviso prévio, a influência da Itália e da França
invadiu o país, estabelecendo um nos assuntos internos de seu país,
protetorado. Os italianos ficaram por meio dos seus súditos judeus,
3
Mare Nostrum (“nosso mar”, em chocados com a ‘Bomba Tunisiana’ e seus principais credores. Mas
latim) era o nome dado pelos antigos
romanos ao mar Mediterrâneo. Após a as relações com os vizinhos franceses enquanto os devedores parisienses
unificação da Itália, em 1861, o termo foi foram agravadas. usaram a alavancagem do governo
revivido por nacionalistas italianos, que
acreditavam que o país era o sucessor de Napoleão III para ameaçar
do Império Romano, devendo controlar No entanto, a base da competição o Bey, alguns dos “livorneses” se
os territórios que pertenceram a Roma por influência entre os dois poderes aproveitaram dessa posição para
em todo o Mediterrâneo. O termo
foi utilizado novamente por Benito durante a Regência de Túnis teve estabelecer seus status na Corte.
Mussolini na propaganda fascista, suas raízes implantadas durante o A consolidação e a expansão de
de maneira similar ao Lebensraum de
Adolf Hitler. período pré-colonial5, tendo Grana suas empresas toscanas aumentaram
desempenhado um papel vital nessa a presença e influência italiana
4
O atraso resultou principalmente da
unificação tardia do Estado (1871), disputa. Já em 1770, o cônsul francês na Regência, mas também a
mas se deveu, também, à influência do em Túnis escrevera: “O principal suspeita e o desejo franceses de
nacionalismo moderado das posições
defendidas por Mazzini e Garibaldi. fator que impede o desenvolvimento impedir a Itália de concretizar
do comércio francês é a competição novas ambições imperialistas. Uma
5
Era governada por Beys vassalos do sultão
de Istambul até 1881, quando o país foi com os comerciantes judeus [que, suspeita infundada, na verdade, pois
conquistado pela França. em sua maioria, eram “livorneses”]. o governo liberal italiano, liderado

37 DEZEMBRO 2018
comunidades

por Cairoli, aderia, aos poucos, a


uma política anti-imperialista de
“mãos limpas”. Cairoli, que lutou
pela libertação da Áustria durante 20
anos, declarou, em 1879, que todos
os países da Europa ou da África
tinham direito à autodeterminação.
Dois anos depois, quando o exército
francês invadiu a Tunísia, ele foi
ridicularizado como ingênuo e
perdeu seu cargo.

O protetorado porto de La Goulette


francês - e seu uso
como ferramenta para
enfraquecer Grana às camadas superiores. Assim, comunidade judaica, Grana, que se
enquanto a administração abria opunha à administração francesa,
Parecia que o estabelecimento do as portas à emigração de milhares era uma voz solitária. A comunidade
protetorado satisfaria a França de trabalhadores manuais da judaica tunisiana local (Touansa)
em termos de frustrar as futuras Sicília, essa nova política agia, estava convencida de que se
ambições da Itália na Tunísia. Na através de uma série de decretos, beneficiaria das mudanças feitas pela
prática, o regime serviu como uma para enfraquecer a burguesia França. Mas a recusa da França em
ferramenta eficaz para controlar a italiana incluindo seus industriais, conceder a cidadania francesa aos
influência italiana. mercadores, advogados e judeus tunisianos e a deterioração
engenheiros, a maioria dos quais de grande parte dos aspectos de sua
Para lidar com o “Perigo Italiano”, eram judeus “livorneses”. vida, levou-os a perceber o domínio
formulou-se uma política e o francês sob uma luz mais crítica. Em
primeiro grupo a ser afetado Durante os primeiros anos da 1887, foi estabelecida uma frente
pela mesma foi Grana. Apesar ocupação, o confronto não se que unificou a liderança de ambas
de abranger toda a colônia, seu deteriorou em violência. Uma as comunidades judaicas em um
principal objetivo foi direcionado das razões para isso foi que, na protesto conjunto.

Em 20 de março, protestando contra


uma tentativa de mudança das
regras funerárias judaicas, milhares
de manifestantes invadiram o
cemitério judeu em Túnis, entrando
em confronto com uma força militar
e gritando slogans antifranceses e
pró-italianos. Em sua busca pelos
iniciadores dos tumultos, o ministro
francês das Relações Exteriores
apontou um dedo acusador para
Grana. Definindo os distúrbios
como uma conspiração hostil à
França, advertiu: “Em tempos
de crise, aqueles que se levantam
contra nós encontram apoio entre
muitos no setor judaico”. Embora a
Entrada para o Souk (mercado) El Grana, Túnis validade da interpretação francesa

38
REVISTA MORASHÁ i 102

seja controversa, a visão das


autoridades de que membros de
Grana estavam por trás da revolta
teve implicações dramáticas
para todos os judeus da Tunísia.
Como resultado, o processo de
modernização da comunidade foi
adiado por décadas.

Solução da Crise, 1896

Como mencionado, as relações


entre a Itália e a França entraram
em colapso após a invasão da véspera de um brit-milá na tunísia, na virada do século. O mohel, angelo nataf,
Tunísia. Por 15 anos, a Itália foi é o mais conceituado de túnis

a única potência europeia que se


recusou a reconhecer o protetorado portas para muitos judeus. Entre os outras estruturas ideológicas como
francês, mas, devido à colossal proeminentes estavam Enrico Rocca, a maçonaria, células anarquistas
derrota sofrida por seu exército, na o fundador do movimento, em ou republicanas. No entanto,
Etiópia, e à ascensão ao poder de Roma, e Angelo Olivetti, um de seus nesse período, a maior parte da
Antonio Starabba, iniciou-se um principais pensadores. Portanto, não comunidade vinculou seu destino
período de melhores relações com deveria surpreender que a resistência ao novo regime porque esperavam,
a França. Um tratado assinado inicial ao fascismo nos círculos como a maioria dos italianos,
em Paris pôs fim à guerra tarifária judaicos, na Itália e na Tunísia, não que servisse à nação italiana.
e, em troca do reconhecimento se tenha originado de uma política Portanto, muitos se juntaram a suas
italiano do protetorado, seus antissemita, mas sim, de um fundo organizações e, para comprová-lo,
súditos tunisianos passaram a ideológico – especialmente da portavam o símbolo do partido. Eles
desfrutar de um status único. No esquerda. também apoiaram reivindicações
entanto, os privilégios concedidos territoriais como aquela expressa por
pela França aos súditos italianos Em Túnis, durante a década de 1920, Mussolini, em 1923: “Os 120.000
não foram gratuitos e o preço pago vários judeus italianos atuavam nos na Tunísia, (...) que trabalham hoje
pelo governo liberal italiano por partidos comunistas, bem como em para a Regência francesa, mas que,
ajudar os mercadores “livorneses” amanhã, provavelmente trabalharão
seria cobrado, ao máximo, pelo sob a Regência italiana”.
regime fascista.
Em 1935, quando o Duce invadiu
ITÁLIA FASCISTA: a Etiópia, os judeus “livorneses”
UM DESAFIO PARA O estavam entre os que contribuíram
PATRIOTISMO ITALIANO para o esforço de guerra com suas
alianças de casamento, e alguns até
É comum identificar-se o fascismo se ofereceram para servir no exército
com o racismo e o antissemitismo fascista. Os judeus foram elogiados,
devido à sua proximidade política entre outros, por Piero Perrini,
e ideológica ao nazismo, mas, antes ministro do governo de Mussolini:
do estabelecimento do eixo Roma- “É um prazer enfatizar que esses
Berlim, em 1938, não existia voluntários judeus são filhos de
discriminação legal na Itália. De judeus de Livorno, que deixaram a
fato, com sua ascensão ao poder, no Itália antes de sua fundação. Este
início dos anos 1920, o movimento é realmente um bom exemplo de
fascista saiu contra qualquer sua devoção”. Uma semana antes,
ideologia racista e abriu suas o jornal Boker trazia a história

39 DEZEMBRO 2018
comunidades

do tenente Atias, de Grana: “(...) como relata o jornal Boker. Mas


comandante de um batalhão inteiro. mesmo essa política antissemita
Ele ocupa a posição mais importante não produziu uma reação uniforme
depois do comandante da Legião”. entre os judeus “livorneses” e os que
se diziam “patriotas” continuaram
Portanto, os “livorneses” ficaram a demonstrar extrema lealdade ao
muito desapontados quando ficou regime. Alguns procuraram ajuda
claro que, pela liberdade de ação das autoridades do protetorado, mas
dada pela França a Mussolini na outros preferiram intensificar sua
Etiópia, este último havia pago resistência.
com o sacrifício dos direitos dos
“livorneses”, como parte do acordo A intensificação das demandas
Mussolini-Laval, de 1935. Isso irredentistas6 fascistas também
levantou dúvidas no coração dos alimentou a luta. Semelhante
Loris Gallico e Maurizio Valenzi em
judeus italianos em relação ao Túnis, véspera da 2ª Guerra Mundial à Alemanha nazista, essas
regime e, ao mesmo tempo, motivou reivindicações territoriais italianas
os antifascistas. foram acompanhadas pela
invadiram seus escritórios, atiraram radicalização da política racial.
Os ativistas do movimento selvagemente em três membros Assim, na mesma semana em que as
underground “livornês” começaram a e mataram o secretário Micelli”, leis raciais foram adotadas, massas
atuar em uma variedade de arenas: como foi publicado no Palestine de estudantes fascistas marcharam
assistência a refugiados, apoio a Post. Referindo-se ao incidente, para a embaixada francesa,
círculos antifascistas em Paris e, até, Nadia Gallico, uma das líderes bradando: “Nós queremos a Tunísia”.
participação nos tumultos em Túnis. “livornesas” do movimento Para reforçar as reivindicações, a
As organizações fascistas chamavam comunista clandestino, disse que o marinha italiana realizou manobras
essas atividades de “traição da terra assassinato dividira a comunidade. no litoral de Bizerta. Naquela época,
natal” e os agentes da polícia política De fato, as diferenças de posição uma nova linha temática começou
secreta (OVRA) começaram a agir podem ser vistas a partir da versão a caracterizar a propaganda fascista;
contra eles. do evento publicada na imprensa em seu foco, uma tentativa de incitar
consular italiana, que contava com a maioria muçulmana contra a
Uma comunidade alguns burgueses de Livorno entre minoria judaica, usando a retórica
dividida - final da seus editores: “Os marinheiros foram de seus oponentes comunistas, como
década de 1930 atacados por pessoas com ideias relatado no jornal Davar: “Os judeus
revolucionárias, que disseminavam roubam dos árabes os frutos de seu
A tensão entre os lados aumentava panfletos de propaganda, levando o trabalho e vivem às suas custas”.
dia após dia, atingindo um dos secretário a se matar”. Também encorajou “as massas de
seus picos em setembro de 1937, Túnis a fazer um acerto final com
quando os marinheiros de um No entanto, um evento com os judeus, agentes britânicos e
navio fascista ancorado em Túnis implicações mais significativas ‘sanguessugas’ ”.
descobriram que, no porão da sede ocorreu pouco depois, na Itália. As
do Partido Comunista, estavam leis raciais que, em julho de 1938, Em resposta, o jornal antifascista
sendo preparados panfletos para foram recebidas com aplausos no publicou um manifesto contra as
distribuição a bordo. Mais tarde, Parlamento Romano, aturdiram tendências expansionistas da Itália,
naquela noite: ... “50 marinheiros os judeus da Itália (entre outras declarando: “O fascismo anseia
restrições, proibindo-lhes de casar pela Tunísia apenas para impor sua
com cristãos, servir no governo dominação terrorista”. Ao mesmo
O termo irredentismo indica a aspiração
6
e possuir terras). Embora Grana tempo, para aumentar o clamor
de um povo a completar a própria
unidade territorial nacional, anexando tivesse sofrido apenas em parte contra as leis raciais, Maurizio
terras sujeitas ao domínio estrangeiro com as regras, “a noção de que a Valenzi, outro proeminente ativista
com base em teorias de uma identidade
étnica ou de uma precedente posse Itália tinha aceito a teoria da raça “livornês”, foi a uma missão em
histórica, verdadeira ou suposta. nazista causou pânico entre eles”, Paris, onde ajudou a publicar o

40
REVISTA MORASHÁ i 102

jornal dos exilados, La Voce degli


Italiani. Esse jornal expressou
uma das vozes mais claras contra
o fascismo e o antissemitismo:
“Ao defender os judeus, que foram
confiscados, humilhados, espancados
até à morte, defenderemos a herança
da civilização italiana contra a
barbárie fascista”.

Contra esse pano de fundo de


enérgica atividade, pode-se entender
a afirmação de Paul Sebag, um
dos importantes historiadores
do judaísmo tunisiano, de que a
atividade “livornesa” na capital, “às
vésperas da 2ª Guerra Mundial,
transformou Túnis em um dos
bastiões de antifascismo fora da
Itália”. Interior DA GRANDE SINAGOGA DE TÚNIS (agosto de 2008)

Os motivos do
a tendência cultural, a tendência
envolvimento político
secular e o separatismo étnico
de Grana
tiveram um impacto significativo
na agenda política italiana dos
Dado o extenso envolvimento dessa
“livorneses”.
pequena comunidade de exilados
no destino político de seu país de
origem, surge a questão sobre seus
motivos e a razão para ser uma arena BIBLIOGRAFIA
tão vibrante para a atividade política. Clancy-Smith, Julia, Mediterraneans:
North Africa and Europe in an age of
A resposta parece envolver vários migration, c. 1800-1900, University of
fatores. A proximidade geográfica California Pres, 2012, Berkeley
entre Itália e Tunísia (apenas 145 km Ganiage, Jean. Les origines du protectorat
no Estreito da Sicília), os tratados franc¸aisen Tunisie (1861-1881), Paris:
Presses Universitaires de France, 1959.
bilaterais que garantiam privilégios Sa’adon, Haim. [Hebrew] Jews and
aos imigrantes toscanos/italianos, Muslims in Tunisia: Between French
o patrocínio dado pelos Beys de Colonialism and Tunisian Nationality,
a grande sinagoga de túnis
2003, Tel Aviv.
Túnis à atividade revolucionária e,
Sebag, Paul. Histoire des Juifs de
especialmente, o poder econômico, Tunisie: des origines à nosjours, Edition
cultural e social da comunidade que sua insistência intransigente L’Harmattan, 1991.
judaica italiana na Tunísia. em uma existência judaica separada
os ajudou a esquecer que eles não
No entanto, acima de tudo, esse mais viviam em sua terra natal. A O artigo é baseado em um trabalho
fenômeno do ativismo político compreensão de sua língua, nomes, apresentado em um seminário
enfocando o judaísmo norte-africano
diaspórico pode estar relacionado comércio, culinária e seus teatros e um estudo publicado no Journal of
à incomum divisão entre as duas permitia que ficassem, como afirmou Education, Society and Behavioural
science.
comunidades judaicas, Grana e o correspondente de Doar Hayom:
Touansa, sem as quais os “livorneses” “...mentalmente mais próximos dos Nimrod Etsion Koren é aluno de
teriam sido destinados à assimilação judeus da Itália do que dos judeus pós graduação no Departamento de
História, Filosofia e Estudos Judaicos
entre seus irmãos tunisianos. Parece da Tunísia”. Em outras palavras, na Universidade Aberta de Israel.

41 DEZEMBRO 2018
música

Tributo a
Charles Aznavour
Morreu, aos 94 anos, em 1º de outubro deste ano de 2018,
o cantor e compositor francês Charles Aznavour, um dos
mais populares artistas de todos os tempos. Era, também,
um dos mais declarados amigos dos judeus e de Israel,
na França.

c
hamado de o “Frank Sinatra da França”, Mas Aznavour não era apenas um artista, engajou-se
Aznavour era uma figura grandiosa na também em diversas causas filantrópicas e políticas.
música francesa. Encantou gerações Permaneceu, a vida toda, fiel à sua herança armênia,
com sua voz magnífica e sensível e as tendo sido uma das vozes mais conhecidas
letras poéticas de suas músicas. Quando nessa diáspora, entre os defensores de sua causa.
estava em seu auge, soltando sua nostálgica voz de Foi incansável militante em prol do reconhecimento,
tenor, arrebatava corações e inspirava sentimentos como genocídio, do assassinato de 1,5 milhão de
acalentadores até mesmo entre os frios parisienses. armênios pelos turcos otomanos durante a 1ª Guerra
Mundial. Em 2009, a Armênia o nomeou seu embaixador
Aznavour esteve muitas vezes em turnê no Brasil, sendo na Suíça, onde o cantor residiu nos últimos anos.
sempre calorosamente recebido pelo público. Sua última Foi, também, embaixador da UNESCO e delegado
visita ao País foi em 2017, a convite do KKL, Keren permanente da Armênia, em 1995.
Kayemet Le-Israel. O valor arrecadado foi destinado à
revitalização das florestas em Israel. A vida e trajetória artística de Aznavour foram narradas
em três livros autobiográficos. Mas, nesses livros, pouco
Desde os nove anos de idade, ele começou a se envolver ou quase nada se mencionou sobre o fato de sua família
no meio artístico, primeiro como ator, depois como ter escondido e salvo judeus e armênios durante a
cantor e, por fim, compositor. Sua grande estreia seria ocupação nazista, na França.
logo após a 2ª Guerra Mundial, quando abriu o show da
grande Edith Piaf, então uma estrela em ascensão. Em Até então, Aznavour nunca se prolongara sobre o assunto
1946, ela o contratou como empresário e compositor para por “não achar que o que sua família tinha feito fosse
acompanhá-la em uma turnê pelos Estados Unidos. tão especial”. Mas o professor Yair Auron, historiador e
A partir de então, sua carreira estava lançada: vendeu mais pesquisador israelense especializado no Holocausto, autor
de 100 milhões de discos em cerca de 80 países e escreveu do livro Matzilim Tzadikim Ve’Lohamim” (Salvadores
mais de 1.000 canções. e Combatentes Justos, em tradução livre), conseguiu

42
REVISTA MORASHÁ i 102

convencê-lo da importância de Shahnour Varinag Aznavourian, em sua família no genocídio armênio


contar sua história. O Prof. Auron uma família de refugiados cristãos perpetrado pelos turcos otomanos,
o entrevistou longamente, bem armênios. Quando adotou o nome em 1915. Mischa foi o único
como à sua irmã, Aida Aznavour- artístico de Aznavour, apenas cortou sobrevivente. Sua mãe, Knar
Garvarentz, dizendo-lhe que também o sufixo ‘ian’ de seu sobrenome. Baghdasaryan, nasceu em Esmirna,
entrevistaria parentes das pessoas em 1904. Apenas ela e sua avó
salvas por seus pais, em sua pesquisa Seu pai, Mischa Aznavourian, sobreviveram ao genocídio.
sobre a Shoá. Os atos de bravura nasceu na Geórgia, país da antiga
dos pais de Aznavour constam do URSS, em 1895, perdendo toda a Os pais de Aznavour fugiram dos
livro acima mencionado, lançado turcos em um navio italiano que os
em 2016. Originalmente escrito em levou até Tessalônica, na Grécia,
hebraico, será traduzido para francês onde, em 1923, nasceu sua irmã,
e armênio. “Tenho muito orgulho Aida. Em seguida foram para a
da história da minha família e de França. Charles nasceu logo após a
seu ato, nobre e humanitário, de chegada da família à Paris. Seus pais
salvar pessoas”, afirmou Aznavour estavam na cidade a espera do visto
por ocasião do lançamento do para os Estados Unidos – que nunca
livro. “Nada me faz mais feliz do lhes foi concedido.
que pensar que meus queridos pais
salvaram a vida de tantos.” Os Aznavourian decidem, então,
recomeçar a vida na Cidade das
Sua vida Luzes, estabelecendo-se no bairro
Les Marais, predominantemente
Charles nasceu em Paris, em 22 Retrato dos pais de Aznavour, na judaico, mas que abrigava imigrantes
década de 1920.
de maio de 1924, com o nome de Mischa e knar aznavourian de várias origens. Mischa era

43 DEZEMBRO 2018
música

1. 2. 3.

1. NO CASAMENTO COM ULLA THORSSE 2. Aznavour com a mulher Ulla, e a filha Katia, 1969 3. CHARLES AZNAVOUR (d) COM
O ATOR FRANCÊS MICHEL SERRAULT (C) E O DIRETOR CLAUDE CHABROL NO SET DE FILMAGEM DE “LES FANTOME DU CHAPELIER”, 1982

cantor de ópera e Knar, atriz. Para A principal pergunta do Prof. Charles acrescentou : “Temos tanto
complementar os ganhos do pai Yair Auron, durante as longas em comum, nós armênios e, vocês,
como cantor, o casal manteve, horas em que entrevistou Charles judeus, seja nos infortúnios, na
por algum tempo, um restaurante e a irmã, sobre a vida da família felicidade, no trabalho, na música
armênio. Ao descrever sua relação durante a ocupação alemã, foi o que e nas artes, e na facilidade de
com os judeus do Marais, Aznavour teria levado seus pais a esconder aprender diferentes idiomas e de nos
afirmou: “Crescemos juntos – jovens judeus em casa, apesar de saber o tornarmos importantes nos países
judeus e armênios, no distrito de risco que corriam. Tivessem sido que nos receberam... Crescemos
Les Marais.... A convivência era descobertos pelos nazistas, teriam juntos no bairro do Marais.
tanta que meu pai até falava iídiche sido fuzilados. Infelizmente, foram Tínhamos, praticamente, uma vida
melhor do que muitos deles. Eu poucos os franceses ou cidadãos em comum. Portanto, esconder
mesmo sabia algumas palavras”. de outros países que ajudaram judeus em nossa casa durante a 2ª
os judeus. Aida respondeu: Guerra, para nós era muito natural:
Disse, ainda, em entrevista ao jornal “Vivíamos muito próximo. Logo eles eram nossos vizinhos e amigos.
The New York Times: “Todos os meus compreendemos que os judeus Estávamos prontos para protegê-los,
amigos de infância eram judeus. seriam vítimas da brutalidade alemã. como eles a nós. Tínhamos que tentar
Por isso acabei por adquirir os Sentíamos tristeza e pena deles. ajudá-los, assim como era natural que
mesmos gestos, o jeito de falar e de Tendo escapado da perseguição na tentássemos ajudar os armênios que
contar piadas. Durante a ocupação Armênia, conhecíamos muito bem o desertavam do exército alemão”.
alemã, fui preso várias vezes por genocídio...”.
me confundirem com os judeus. Ele lembra ainda que o box de seu
Uma vez, fui levado à central de pai no mercado municipal ficava
comando nazista e mostrei meu próximo aos de alguns judeus. “E
certificado de batismo. Mas os os vendedores armênios, entre eles
alemães não acreditavam em mim o meu pai, cuidaram dos negócios
e até abaixaram minhas calças... desses judeus após terem sido presos
Eu costumava brincar e dizer aos na trágica deportação em massa dos
amigos que eu era o único ‘goi judeus de Paris, em julho de 1942.”
ashkenazi’ da França”.
O lar dos Aznavourian, o pequeno
A 2ª Guerra na França apartamento da Rue de Navarin,
tornou-se um esconderijo seguro
Durante a 2a Guerra, Charles, com não apenas para judeus como para
16, e a irmã Aida com 17, viviam com desertores armênios, para comunistas
seus pais no pequeno apartamento e para membros da Resistência.
de três quartos localizado no A primeira pessoa que se escondeu
número 22 da Rue de Navarin, no 9e com os Aznavourian foi um judeu
arrondissement de Paris. EDITH PIAF E CHARLES AZNAVOUR, 1951. romeno que fugira da Alemanha

44
REVISTA MORASHÁ i 102

após ser condenado à morte


por subversão. Chegara à Paris
disfarçando-se de soldado alemão.
Aida lembra que seus pais disseram
a esse homem que “ele estava em
casa, que se sentisse como um velho
amigo que tinha que ficar um tempo
1.
conosco. Durante alguns dias, até
dormiu na cama com o Charles”.
2.
Certo dia, uma conhecida da família
pediu-lhes que escondessem seu
marido, Simon, judeu, que havia
sido detido junto com outros judeus
parisienses e enviado ao campo de
Drancy, mas conseguira escapar.
Esse campo era para onde os judeus
franceses eram enviados antes de
serem despachados pelos nazistas
para o “Leste”, e para as câmaras
de gás. Os Aznavourian aceitaram 1. O CANTOR COM A FAMÍLIA.
escondê-lo e, em seguida, um 2. COM O FILHO NICOLAS, 2017

terceiro judeu passou a viver em seu


pequeno apartamento. AGRACIADO COM UMA ESTRELA
EM HOLLYWOOD, 2017 A relação com Israel
A família também deu guarida a
soldados armênios alistados à força no Marais. A família os ajudava a Charles Aznavour sempre foi
no exército alemão e que preferiram obter documentos de identidade próximo de Israel. Apresentou-se
desertar do que servir ao regime falsos com a Resistência. Ainda no país pela primeira vez em 1948,
nazista. Charles e sua irmã eram que seus pais não pertencessem logo após a criação do Estado Judeu.
encarregados de queimar os uniformes oficialmente à Resistência, eles Desde então, lá esteve várias vezes,
nazistas deles e se livrar das cinzas, colaboravam muito com a atividade encantando o público israelense com
bem longe de casa. underground. Sua mãe, por exemplo, sua voz inigualável e suas canções
ajudava o grupo que transportava românticas, em vários idiomas. Em
Seus pais tinham vários amigos armamento escondido em um 2011, recebeu o Prêmio Scopus,
armênios na cidade, entre os carrinho de bebê. outorgado pela Associação dos
quais um casal, Mélinée e Missak Amigos da Universidade Hebraica
Manouchian. Missak era um dos de Jerusalém por sua contribuição
chefes da Resistência Francesa, mais cultural.
especificamente do grupo conhecido
como “L’Affiche Rouge” (O Cartaz Em 2013, antes de um show em
Vermelho), o primeiro a executar Israel, encontrou-se com o então
ações da resistência armada contra presidente Shimon Peres, a quem
os nazistas. Quando a Gestapo chamava de “meu bom amigo”.
capturou Missak, os Aznavourian Um dos temas do encontro foi a paz.
esconderam Mélinée durante vários Ele fez outros shows no país, no ano
meses, já que seus outros amigos se seguinte e em 2017. Naquele mesmo
haviam recusado a abrigá-la. ano, a Fundação Internacional Raoul
Wallenberg concedeu à sua irmã e
Numa ocasião, eram 11 pessoas Presidente Reuven Rivlin, de israel,
entrega a Aznavour a medalha
a ele a Medalha Raoul Wallenberg
escondidas no pequeno apartamento “Raoul Wallenberg”, outubro 2017 em reconhecimento pelos atos de

45 DEZEMBRO 2018
música

Muitas de suas canções de sucesso,


entre as quais, “La Bohéme,” “Hier
encore” e “She” tornaram-se hits
internacionais nas vozes consagradas
de Ray Charles, Sammy Davis Jr.,
Liza Minnelli e Elvis Costello, entre
outros. Cantando em sete línguas,
estrelou mais de 60 filmes, sendo
conhecido principalmente por suas
lindas canções de amor.

Mesmo em sua vida artística, a


conexão de Aznavour com nosso
povo sempre foi forte e em inúmeras
COM A FILHA KATYA, EM 2006
ocasiões ele era identificado como
judeu. Apareceu em vários filmes
franceses vivendo personagens de
sua família na salvação de judeus, excessiva na operação, Hitler origem judaica. Atuou no vencedor
durante a 2ª Guerra Mundial. teria feito a seguinte declaração: do Oscar, “The Tin Drum”, na pele de
Apesar da sede da instituição ser “Alguém, por acaso, ainda fala sobre um gentil vendedor de brinquedos
em Nova York, o artista e sua irmã a aniquilação dos armênios?”. judeu. Sua versão da tradicional
preferiram receber o prêmio em canção “Yidishe Mame” é um de
Jerusalém, que lhe foi entregue pelo Em seu livro, Matzilim Tzadikim seus imortais sucessos. Lançada
presidente Reuven Rivlin. Este Ve’Lohamim, o Prof. Yair Auron em 2011, sua canção “J’ai Connu”,
falou de seu amor pelas músicas relata que os oficiais alemães conta a realidade dos campos de
de Aznavour, mencionando que a envolvidos no comando das forças concentração nazistas sob a ótica de
favorita era “La Bohéme”. armadas durante a 1ª Guerra um prisioneiro judeu. Diz a canção:
Mundial, e que assinaram as “Conheci as correntes
Há pouco tempo, Charles anunciou ordens em relação aos armênios, Conheci as chagas
que faria uma turnê global em posteriormente serviram no alto Conheci o ódio, a sede e a fome
2018, em comemoração ao seu 95o escalão da liderança nazista e Conheci o medo, de um dia para o
aniversário, e se apresentaria em participaram na organização do outro”...
Tel Aviv em junho de 2019 – o que processo para aniquilação dos
infelizmente não se realizou. Entre judeus.
esses planos também estava incluído
BIBLIOGRAFIA
o Brasil, no início de 2019. Uma vida de sucessos
Artigo de Alan Riding Aznavour,
Havia um ponto de atrito entre o “The Last Chanteur”, publicado em 18 de
artista e Israel: o fato do governo A vida de Charles Aznavour foi outubro de 1998, The New York Times
israelense não reconhecer, por longa e produtiva. Tinha uma Artigo de Dr. Yvette Alt Miller, “Charles
família grande, tendo se casado Aznavour and His Family Saved Jews
pressão e ameaças turcas, o massacre during the Holocaust”, publicado em 5 de
dos armênios como sendo um três vezes, e deixou seis filhos novembro de 2017, www.aish.com
genocídio. “Conhecemos a mesma e muitos netos. Artisticamente Artigo de Amy Spir, French Singer Charles
dor e o mesmo sofrimento. Sem sua vida foi um sucesso, como Aznavour Dies at the Age of 94, publicado
em 1 de outubro de 2018 , The Jerusalém
a aniquilação dos armênios entre dissemos acima: vendeu mais de Post
1915 e 1918, a dos judeus, durante o 100 milhões de discos, escreveu Artigo de Andy Levy-Ajzenkoft, Charles
Holocausto, não teria sido possível, mais de 1.000 canções, tendo Aznavour Always Felt Connected to the
Jewish Community, publicado em 1 de
pois os alemães aprenderam com os lançado cerca de 100 álbuns solo, outubro de 2018 ,The Canadian Jewish
que os antecederam... Às vésperas além de outros números em dueto News
da invasão da Polônia, em conversa com nomes consagrados como Artigo de Fiachra Gibbons, “Legendary
Plácido Domingo, Elton John, Liza French singer Charles Aznavour dies
com seus comandantes que estavam aged 94”, publicado em 1 de outubro de
preocupados com o uso de violência Minnelli, Frank Sinatra e Sting. 2018,The Times em Israel

46
DESTAQUE

Laços entre Israel e Rússia


desafiados por Síria e Irã
POR JAIME SPITZCOVSKY

As relações entre Israel e Rússia enfrentam, desde setembro,


seu maior desafio nos tempos da aproximação capitaneada, há
alguns anos, por Binyamin Netanyahu e Vladimir Putin. Apesar de
críticas de Jerusalém e Washington, Moscou entregou a Damasco
um sofisticado sistema de mísseis antiaéreos, após a derrubada
de um avião russo por disparos feitos a partir de base síria. O
novo armamento, chamado de S-300, deverá dificultar ações
israelenses contra inimigos entrincheirados em solo sírio.

n
o dia 17 de setembro, uma aeronave russa, Islâmico e de grupos ligados à Al Qaeda. Diante da
modelo Iliushin-20, com 15 militares numa iminência da queda do aliado, Putin decidiu intervir na
missão de reconhecimento, foi abatida perto Síria, interessado ainda em impedir a consolidação de
do porto sírio de Latakia por míssil dispa- bases do terror numa região relativamente próxima ao
rado pelo sistema de defesa do regime de sul da Rússia. O Kremlin também vislumbrou na ação
Bashar Al Assad. Todos os passageiros morreram. militar a valiosa oportunidade de demonstrar força e
prestígio perdidos desde o fim da Guerra Fria, há cerca
Disparos das forças sírias buscavam atingir quatro caças de 30 anos.
de Israel, que bombardearam um armazém com armas
destinadas ao grupo libanês Hezbolá e a outras milícias A partir de setembro de 2015, aviões russos passaram
financiadas pelo Irã. Nos últimos anos, foram registrados a controlar boa parte do espaço aéreo sírio. O Irã
centenas de bombardeios israelenses contra alvos enviou assessores militares e milicianos, por meio de
iranianos em território controlado pelo ditador Bashar grupos xiitas como o libanês Hezbolá. A combinação
Al Assad. O primeiro-ministro Binyamin Netanyahu russo-iraniana mudou o curso da guerra na Síria, com
já deixou claro a estratégia de impedir que o regime de a derrota dos rebeldes e a sobrevivência do regime de
Teerã enraíze presença militar na Síria. Bashar Al Assad.

Rússia e Irã intervieram na guerra da Síria em 2015, Para Putin, a vitória na Síria não significou apenas a
com o objetivo de impedir a queda de seu aliado, permanência no poder de um tradicional cliente de
Bashar Al Assad. Até aquele momento, o regime sírio armas, relacionamento alimentado desde os tempos de
colecionava sucessivas derrotas nos conflitos iniciados Hafez Al Assad, que morreu em 2000 e pai do atual
em 2011, enfrentando diversos grupos rebeldes sunitas, ditador. O Kremlin, com a força de sua intervenção
alguns deles apoiados pelos EUA e Arábia Saudita. iniciada em 2015, transformou-se no principal
A ditadura de Al Assad, controlada pela minoria alauíta personagem a decidir os contornos da realidade política
(aliada dos xiitas), enfrenta também terroristas do Estado e militar de Damasco.

47 dezembro 2018
DESTAQUE

Putin, portanto, equilibra-se entre


os compromissos assumidos com
Netanyahu e a aliança com o regime
de Teerã, com quem mantém laços
políticos, econômicos e militares.
O presidente russo cultiva laços
com Israel de olho em trocas
tecnológicas e também apostando
que pode usar canais israelenses
para ajudar a dialogar com os EUA,
num momento de deterioração
das relações entre Washington e
Moscou.

Equilibrar-se entre as demandas


de Israel e Irã permite a Putin
despontar como pivô a decidir
rumos da disputa entre arqui-
O governo israelense Passou, na Síria, a bombardear, de inimigos e a desenhar contornos
forma cirúrgica, comboios com atuais do Oriente Médio, numa
deixou claro a carregamentos bélicos e instalações flagrante demonstração de poder.
Moscou não tolerar destinadas a fortalecer a presença de Importante lembrar que os governos
Teerã e de seus aliados em território Obama e Trump, por diferentes
a transferência de
sírio. abordagens ideológicas, optaram
armas iranianas para por participação limitada no cenário
o Hezbolá Para os bombardeios, Israel precisa sírio.
contar com compreensão de
Moscou, responsável pelo controle Nas frequentes conversas com Putin,
de boa parte do espaço aéreo sírio. Netanyahu reitera a demanda de
Desde o final da União Soviética, Netanyahu investiu na aproximação retirada total do Irã e seus aliados
Moscou não contava com diplomática com Putin e obteve, do território sírio. Moscou não
tanta influência em uma crise do Kremlin, sinal verde para a acata a exigência na totalidade, mas
internacional. Vladimir Putin estratégia. E, a fim de evitar choques comprometeu-se a limitar a presença
certamente utiliza a realidade entre aviões israelenses e russos, foi iraniana a cerca de 80 quilômetros
síria como fator de fortalecimento instalada uma “hotline” entre militares da fronteira da Síria com Israel.
político nos cenários doméstico e dos dois países, para que Israel avise,
internacional. com antecedência, sobre seus ataques. No complexo tabuleiro geopolítico
e militar da Síria, Israel aposta na
Israel exemplifica a revitalização diplomacia com a Rússia e nos
da diplomacia de Moscou, em bombardeios contra alvos iranianos
especial no Oriente Médio. para impedir o fortalecimento de
Binyamin Netanyahu, interessado Teerã em mais um país fronteiriço,
em impedir o enraizamento do Irã lembrando que o Hezbolá, principal
na Síria, passou a investir no diálogo força militar e política do Líbano, é
com Vladimir Putin, a fim de ter movido a controle remoto pelo Irã.
sinal verde para implementar sua
estratégia de defesa. No episódio de 17 de setembro,
quando o avião russo de
O governo israelense deixou claro a reconhecimento foi abatido por fogo
Moscou não tolerar a transferência sírio, o Ministério da Defesa da
de armas iranianas para o Hezbolá. Rússia de imediato responsabilizou

48
REVISTA MORASHÁ i 102

O primeiro-ministro Bibi Netanyahu com o presidente da Rússia, Vladimir Putin

Israel, argumentando que um dos de defesa antiaéreo S-300, que Em Jerusalém, Netanyahu recebeu,
caças israelenses “se havia escondido” moderniza e eleva condições no começo de outubro, a visita de
atrás da aeronave enviada por militares da ditadura síria. Maxim Akimov, vice premiê russo.
Moscou. Argumentou ainda que As incursões aéreas na Síria vão
seus militares não haviam sido Havia mais de cinco anos que continuar, pois correspondem a
notificados do bombardeio com o regime de Bashar Al Assad “legítima autodefesa, já que o Irã e
suficiente antecedência. reivindicava a entrega do S-300. seus aliados afirmam sua intenção de
Damasco aproveitou o episódio nos destruir”, declarou o primeiro-
O governo Netanyahu rejeitou a de 17 de setembro para intensificar ministro israelense. E, acrescentou
acusação e apresentou evidências a pressão pela obtenção do sistema Netanyahu, as diferenças atuais com
de que seus caças, no momento do responsável por aumentar o alcance Moscou “serão resolvidas”.
disparo da defesa antiaérea síria, já de sua defesa antiaérea. Putin, ao
estavam em espaço aéreo israelense. final, calculou que a entrega seria Especialistas apontam a capacidade
Sobre a operação em Latakia, uma forma de aplacar pressão e israelense de superar o sistema
afirmou ainda ter avisado os russos de manter a política de buscar antiaéreo S-300. As operações,
com 12 minutos de antecedência. equilíbrio entre Israel e Irã. no entanto, deverão ficar mais
complexas. E Israel, certamente,
Putin, para diminuir a temperatura Na segunda quinzena de setembro, manterá a opção de se esforçar
na crise diplomática, descreveu o Netanyahu e Putin conversaram para evitar que o Irã se fortaleça no
episódio como “um encadeamento ao telefone pelo menos três vezes. território da vizinha Síria.
de circunstâncias acidentais e De Washington também veio
trágicas”. No entanto, quando pressão. O secretário de Estado
se imaginava o capítulo como Mike Pompeo descreveu a entrega
encerrado, o Kremlin anunciou a do S-300 como “uma séria Jaime Spitzcovsky foi editor
internacional e correspondente da
entrega, a Damasco, do sistema escalada”. Folha de S. Paulo em Moscou e em Pequim

49 dezembro 2018
brasil

JUDAÍSMO NA CORTE
DE D. PEDRO II
por REUVEN FAINGOLD

Em 2 de setembro de 2018, um incêndio devastou o Museu


Nacional do Rio de Janeiro, chocando a sociedade
brasileira e o mundo, e revelando o descaso total
das autoridades com o patrimônio cultural do país.
Esta instituição guardou durante anos uma Torá,
também conhecida como os “Pergaminhos Ivriim”.

f
elizemente, como tais manuscritos documento era parte do acervo, mas até então não
necessitavam nova restauração, a Torá foi havia sido estudado. Lá consegui, também, resgatar
trasladada, do Museu Nacional, na Quinta fontes históricas que me ajudaram a reconstituir
da Boa Vista, para a Seção de Obras a fascinante viagem de peregrinação de 24 dias
Raras da Biblioteca da Universidade, empreendida, em 1876, pelo monarca brasileiro e
situada no Horto Florestal, próximo ao museu. sua comitiva imperial. Sua Majestade percorreu
Esta ação acabou por salvar o precioso manuscrito lugares recônditos, conheceu várias personalidades
do fogo que devastou o museu. A Torá já havia e exercitou sua verdadeira vocação de orientalista
sido restaurada em novembro de 1998, pois os amador.
pergaminhos encontravam-se marcados por fungos e
orifícios decorrentes de ataque de micro-organismos. As cidades da Terra de Israel se agitaram com o
Restaurada, essa Torá permaneceu no 1º pavimento visitante ilustre. Em seu Diário encontramos os
do Museu Nacional, no Museu do Imperador, um três principais elementos da chamada literatura
espaço pouco citado na historiografia. E, ao que tudo de peregrinação: a reconstrução da cena “in loco”,
indica, pertenceu ao Imperador D. Pedro II. fundamental para estabelecer a passagem do profano
ao sagrado; a leitura e meditação de algum trecho
Que relação e que interesse o monarca teria tido bíblico, indispensável para identificar e valorizar o
com o universo judaico? Seguem-se alguns episódios fato histórico; e o poder espiritual da oração que gera
pouco conhecidos de sua relação com esse universo. devoção, envolvendo os sentimentos dos peregrinos.

A VIAGEM DE D. PEDRO À TERRA SANTA D. Pedro d’Alcântara, tido como “rei sábio”, foi criado
para as letras e as artes. Amado e elogiado, criticado
Em 1998, tive o privilégio de ter acesso à “Caderneta e censurado, foi um homem culto e uma figura ímpar
de viagens” de D. Pedro II à Terra Santa, guardada que merece um lugar de destaque na galeria dos
no Museu Imperial de Petrópolis. Há anos, o grandes vultos da Humanidade.

50
REVISTA MORASHÁ i 102

Monumento de D. Pedro II. Museu Imperial, palácio de verão do monarca. Petrópolis, Rio de Janeiro

PERGAMINHO DA TORÁ cada, manuscrito sobre pele de A nota da Veja levantou uma
novilho avermelhado. O texto teria pergunta: poderia o manuscrito
Em 23 de agosto de 1995, a sido copiado por um escriba que guardado no Museu Nacional ser o
revista Veja publicou uma nota habitava o Egito entre os séculos 1 mesmo mencionado pelo Imperador
intitulada “Pergaminho de 24 e 41. Escritos com pigmento vegetal, em seu “Diário de Viagem”, e que
metros”. A matéria falava da os pergaminhos estavam, como lhe teria sido apresentado em 1876,
existência dos três pergaminhos dissemos, no Museu Nacional do na sinagoga dos samaritanos, em sua
mais antigos da Torá: o primeiro, Rio de Janeiro. viagem?
no Museu de Israel, em Jerusalém;
outro, nos Estados Unidos, e um D. Pedro II aos 40 anos, c. 1865
Antes de examinar a questão é
terceiro, no Brasil. Este último necessário abrir um parêntese para
era um rolo de 24 metros de ressaltar que os samaritanos não
comprimento, dividido em 9 fazem parte do Povo Judeu, sendo
peças de 60 centímetros de altura uma seita muito antiga anterior
ao exílio judaico para a Babilônia.
Professam o Samaritanismo, religião
intimamente relacionada com
1
Há pesquisadores que acreditam que o Judaísmo, sendo seu culto
os Pergaminhos Ivriim tenham sido
confeccionados no Iêmen, por volta baseado no Pentateuco Samaritano.
do século 13. Há cerca de 6 mil diferenças entre
2
Texto massorético ou masorético é o
o texto samaritano e o massorético2.
texto hebraico  utilizado no Tanach para Em grande parte, são variações na
o judaísmo e também como fonte de grafia de palavras ou construções
tradução para o Antigo Testamento da
Bíblia cristã. Os massoretas eram os gramaticais, mas há também
escribas judeus. importantes mudanças semânticas,

51 DEZEMBRO 2018
brasil

Lamentavelmente não há registro


algum sobre sua procedência,
apenas suposições ... É bem
provável que tenha sido o próprio
Imperador, mesmo não se tratando
dos pergaminhos que lhe foram
apresentados na sinagoga samaritana.
D. Pedro tinha um fascínio por
manuscritos antigos. Em agosto de
1876, por exemplo, três meses antes
de chegar à Terra de Israel, havia
analisado manuscritos hebraicos
antigos em encontro com orientalistas
Folha dos Pergaminhos ivriim ou Pergaminhos da Torá.
Museu Nacional do Rio de Janeiro em São Petersburgo, Rússia.

GENEALOGIA E JUDAÍSMO
tais como o mandamento exclusivo Finalmente, a prova mais evidente
dos samaritanos de construir um de que os Pergaminhos guardados Em 2 de dezembro de 1825 nascia,
altar no Monte Guerizim. no Museu Nacional não eram os no Rio de Janeiro, Dom Pedro
mesmos aos quais D. Pedro tivera d´Alcântara. Desde cedo teve vida
Voltando ao Museu Nacional, em acesso na sinagoga samaritana reside calma, comparecendo ao Paço
rápida visita ao seu Departamento no formato dos caracteres hebraicos. Imperial somente nas solenidades.
de Arqueologia, constatei que o As letras dos escribas samaritanos A Quinta da Boa Vista passou
manuscrito samaritano, citado no eram diferentes das letras hebraicas a ser sua residência, e era lá que
“Diário de Viagem”, não é o que se utilizadas pelos judeus. O argumento estudava línguas exóticas, como
encontra tombado, desde 1998, no mais contundente é o fato de que a mandarim, tupi-guarani e sânscrito,
Museu. Esta tese é sustentada por promessa dos samaritanos de levar mergulhando fundo nas culturas
cinco argumentos, que descrevemos uma cópia do Pentateuco Samaritano clássicas e orientais. Mesclava-se em
abaixo. ao Imperador nunca foi cumprida. sua pessoa o bibliógrafo, o astrônomo
e o helenista. Sua enorme curiosidade
Em primeiro lugar, nesse diário Cabe, então, outra pergunta: pelas descobertas científicas
D. Pedro menciona um manuscrito quem teria trazido ao Brasil aproximou-o dos grandes espíritos da
em pele de gazela, enquanto que o os Pergaminhos Ivriim? época.
do Rio de Janeiro é todo em couro
de novilho. Em segundo, as letras D. Pedro II era um Bourbon e
do Pentateuco dificultavam a leitura, também um Bragança. Pertencia à
estando algumas apagadas, como estirpe dos reis de Portugal. Uma
relata o Imperador, enquanto são lenda narra a origem judaica dos
bem legíveis os caracteres dos rolos Bragança. Certa vez, durante o
do Sefer guardado, até há pouco, no governo do Marquês de Pombal,
Museu Nacional. Ademais, ainda apresentou-se um cortesão
segundo o Diário, os pergaminhos perante o rei, propondo-lhe que os
samaritanos supostamente datavam descendentes dos cristãos novos
da época de Avishua, filho de portassem um chapéu amarelo para
Pinchas, Cohen Gadol (Sumo diferenciá-los de outros grupos. O
Sacerdote) no tempo de Yehoshua rei, entusiasmado com a ideia, foi
bin Nun, sucessor de Moshé. Já o dissuadido por outro nobre, que
Pentateuco do Rio de Janeiro seria se apresentou diante dele com três
obra de um sofêr que viveu no Egito chapéus amarelos e disse: “Tomo o
entre os séculos 1 e 4, como vimos D. Pedro II montado num camelo.
primeiro para mim e entrego os outros,
acima. Viagem pelo Egito, 1871 um ao Inquisidor-mor e o terceiro à

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REVISTA MORASHÁ i 102

Vossa Majestade, em homenagem à Comtadin”3, escritas em 1890, D. Ferdinand Koch foi o segundo
formosa judia de quem precede a Casa Pedro registra o motivo pelo qual professor do Imperador; dominava
de Bragança”. se dedicara a aprender hebraico: grego, latim, hebraico e lecionava
“Quanto ao histórico de meus estudos sânscrito. Depois de anos no Rio,
Quem seria essa formosa judia? Era hebraicos empreendidos com o fito de Koch tornou-se amigo de Pedro II,
Inês Fernandes Esteves, filha do melhor conhecer a história e literatura morrendo em Petrópolis. No dia
judeu espanhol, o sapateiro Mem dos judeus, principalmente a poesia do enterro, seu aluno o perpetuou
ou Pero Esteves, conhecido como e os Prophetas (sic), assim como com uma inscrição em seu jazigo,
“Barbadão de Veiros”. Inês teve dois as origens do Christianismo (sic), tratando-o de “amigo” em latim,
filhos com um bastardo real, que tais estudos remontam aos anos que grego e hebraico.
depois seria rei de Portugal com antecederam à Guerra do Paraguai, em
o nome de D. João I. Um dos 1865. Encetei-os durante as minhas Karl Henning foi seu terceiro
filhos, D. Afonso (1377-1461), foi permanências em Petrópolis com o Sr. professor. Ancorou no Rio de
sagrado 1º Duque de Bragança, e Akerbloom, judeu sueco. Mais tarde, Janeiro em 1874, carregando livros
dele descenderiam os futuros reis de retomei-os com o Sr. Koch, ministro e manuscritos. Dois dias após sua
Portugal e do Brasil. protestante alemão. Após a morte chegada recebe a primeira carta de
súbita deste, prossegui-os com o doutor Pedro II que, entre outras, dizia:
OS ESTUDOS DE HEBRAICO Karl Henning e, desde 1886, com meu “..., há pouco mais de um mês não
sábio colaborador e professor de línguas converso e, desta forma, poderá conhecer
D. Pedro II era disciplinado nos orientais, Christian F. Seybold, com o quanto sei de hebraico pelas traduções
estudos. Seus “Diários” registram quem continuei o estudo sério do árabe”. do Gênesis. Traga sua Bíblia hebraica e
horários rígidos, mestres qualificados algo em sânscrito para leitura. Desculpe
e uma obstinada dedicação à O texto acima destaca o valor a minha pressa em querer demonstrar o
aprendizagem. Apreciava e era atribuído pelo monarca à literatura desejo de estudar. Seu devoto aluno,
versado nos idiomas sânscrito, judaica ao mencionar até os nomes D. Pedro II”.
grego, hebraico, árabe, mandarim de seus quatro mestres de hebraico.
e tupi-guarani. O poeta luso O primeiro, Leonhard Akerbloom O linguista alemão Christian
Ramalho Ortigão (1836-1915), (1830-1896), judeu oriundo dos Fredrich Seybold (1859-1921),
em “As Farpas”, rasga elogios cheios países nórdicos, escolhido para quarto erudito que lecionou hebraico
de ironia à importância atribuída ser o cônsul da Suécia e da Noruega ao Imperador, chegando ao Brasil em
à língua dos hebreus: “Apeteceu-lhe no Brasil entre 1867 e 1871. 1887, atuou como correspondente
o hebraico. Vossa Majestade provou o Ao começar as aulas com ele, da Real Academia de la Historia de
severo idioma bíblico dos Patriarcas, e D. Pedro tinha 42 anos. Madri, do Instituto Histórico e
sentiu-se refrigerado e satisfeito”.

Desde jovem D. Pedro II acalentava


o desejo de conhecer a língua
bíblica. Naquela época, o hebraico
não passava de idioma de liturgia
e culto. Não fora renovado pelo
escritor Eliezer Ben Yehuda, o que
só ocorreria na Era Moderna. Na
introdução às “Poesias hebraico-
provençais do Rito Israelita

3
Comtat, “condado” em francês. Comtadin,
comtadine é o adjetivo para os objetos
ou pessoas originárias do Condado de
Venaissin, região em torno de Avignon,
na França. Os judeus que lá encontraram
refúgio eram chamados de “os judeus
Contadins”. Família imperial completa. Rio de Janeiro, 1887. Acervo Instituto Moreira Salles

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brasil

Compositor Louis Moreau Gottschalk atriz Sarah Bernhardt MÚSICO ALEXANDRE LEVY

Geográfico Brasileiro e da Sociedade O professor Berliner, judeu alemão oferta de um manuscrito proveniente
Arqueológica da França. especialista em caligrafia, era o de Jerusalém. Desde Paris, um
responsável pelos livros entregues livreiro dos Rothschilds era também
O acervo do Museu Imperial de ao monarca. Estas obras chegavam cadastrado como fornecedor de Sua
Petrópolis conserva 19 folhas do em grandes quantidades. O judeu Majestade. O dentista judeu, Dr.
“Glossarium Hebraicum Liber Genesis italiano A. Curiel, redator do Samuel Eduard da Costa Mesquita
I-II & Psalmorum”, cadernos de “Corriere Israelitico”, enviou em 1877 (1837-1894), atendia D. Pedro II.
hebraico do monarca. Neles, os um fascículo de sua revista. O rabino Era casado com Mary Roberta
comentários de D. Pedro II não Isidor Halisch enviou-lhe, desde Amzalak, filha mais moça de Isaac e
aparecem em português, mas em os Estados Unidos, um livro em Grazia Amzalak, uma das três graças
inglês ou grego. As notas nas hebraico. Friedrich Israel enviou a eternizadas em “Hebreia”, belo poema
margens das páginas, com caligrafia obra “Conselho de Estado na Prússia” de Castro Alves. O dentista morava
miúda, foram feitas em latim. e os textos de Paul Herzberg (1878), em São Paulo e viajava até Campinas
Julius Gaspary (1883) e Joseph onde oficiava as rezas nas festas
FORNECEDORES E Hollmann (1889), todos lidos pelo judaicas.
SERVIDORES monarca. Em carta, D. Pedro II
agradece a Salomon Hurwitz pela A firma “Gabriel & Segrè” recebeu
Segundo o recenseamento de 1872, o título de “Alfaiate de Sua
apenas 2.309 eram judeus Majestade”, com permissão para
em uma população total de colocar o brasão das armas
10 milhões de habitantes. imperiais no frontispício do
Os fornecedores judeus estabelecimento. Entre os
credenciados pela corte vários membros dessa família
mantinham estreitos contatos judeu-italiana encontramos
com o exterior. escritores, professores e
militares.
A “Wallerstein Masset &
Company” era provedora A participação de famílias
oficial da Casa Imperial. judias na agricultura e na
Seu dono, o judeu Bernard colonização do Brasil foi
Wallerstein, conhecido significativa, principalmente
como “o rei da moda”, imigrantes chegados dos
encomendava em Paris Estados Unidos. Dentre
cristais, porcelanas e outros essas famílias aparecem os
objetos de decoração. Nathan. Em 1870, Charles

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REVISTA MORASHÁ i 102

Nathan expunha a D. Pedro II A segunda, programada para Paula Buchheim, Ida e Helen
a precária situação da “Fazenda alguns dias depois, não chegou a se Goldschmidt, Robert Kinsman
Funil”, futura cidade de Americana. concretizar, pois o compositor judeu Benjamin, entre outros.
Em consequência das enchentes e americano morreu, poucos dias
da seca, Nathan viu-se obrigado a depois. Alexandre Levy (1864-1892) BANQUEIROS E
sustentar 500 imigrantes sulistas era filho de Henrique Luiz Levy, o EMPREENDEDORES
para que não morressem de fome. fundador da “Casa Levy”,
Após algum tempo, viu-se forçado importante ponto de encontro dos Um dos primeiros financiers do
a solicitar a ajuda do governo artistas da época. Alexandre era Segundo Império foi Dennis Samuel
brasileiro, pois faltavam-lhe os meios um compositor romântico, sendo (1782-1860), judeu britânico,
suficientes para tão nobre fim. responsável por incorporar à música negociador respeitado na corte.
temas típicos do país, convertendo- “Rothschild & Sons” era um banco
LAZER E CULTURA se num verdadeiro precursor do espalhado pelos quatro cantos da
movimento musical brasileiro de Europa. Investidores britânicos
O casal Kahn, judeus originários caráter nacionalista. Entre suas atuavam no Brasil e tinham um
da Alsácia, era responsável pelos composições principais, “Variações portfólio que incluía os maiores
animados saraus do palácio. sobre um tema brasileiro (Vem cá, financiamentos da época. Num
Contratada pela corte, a Sra. Sarah
Kahn encarregava-se de organizar
atividades culturais, palestras,
conversas e encontros abordando
temas de viagens, língua hebraica e
Bíblia.

No teatro, as performances da atriz


Sarah Bernhardt (1844-1923)
eram incomparáveis. Filha de judia
holandesa, a “Diva Sarah” começou
a encenar no Teatro Odéon, e mais
tarde representou dramas clássicos
e românticos na Comédie Française.
Sua primeira tournée pelo Brasil,
em 1866, gerou grande agitação
nos círculos sociais e acadêmicos.
O preço dos ingressos para suas O Imperador D. Pedro II, Imperatriz e comitiva a bordo do vapor “Congo”,
apresentações era bem elevado, mas de volta da Europa. Acervo da Biblioteca Nacional, ano 1888
as pessoas acotovelavam-se nas
bilheterias para comprá-los. Bitu)”, “Comala”, “Suíte brasileira para mundo difícil para os negócios, o
D. Pedro II convidou-a para visitar Orquestra”, “Fantasias sobre motivos caso do cliente brasileiro era simples,
seu camarote, presenteando-a com do Guarani”, “Hino ao Quatorze de pois o governo nunca discordava
uma pulseira de ouro. Julho”, “Schumannianas” para Piano, de seu banqueiro, até porque o
“Sinfonia em mi” e seu famoso próprio barão Lionel Rothschild se
O maestro Louis Moreau “Tango Brasileiro”. encarregava de aplicar o dinheiro
Gottschalk (1829-1869) chegou do embaixador Carvalho Moreira,
ao Rio de Janeiro para reger Músicos judeus também se diplomata brasileiro que se tornou
grandes concertos, alguns inclusive destacaram no Império: o casal agente da grande casa bancária.
na presença do Imperador. Sua Joseph e Ada Heine (rabequista
primeira apresentação, a “Grande e pianista), Cecilia Silberberg Os empréstimos para a construção
Fantasia Triunfal sobre o Hino (pianista), as irmãs Mathilde e da Estrada de Ferro D. Pedro II
Nacional” realizou-se em novembro Virgínia Sinai (pianista e violinista), foram feitos pelos Rothschilds. Em
de 1869. de Belém do Pará, Harold H. Hime, 1859, na lista de acionistas da “São

55 DEZEMBRO 2018
brasil

José Buschenthal era um banqueiro maior dos modernos imperadores:


que efetuava transações com o D. Pedro II. Desejo que Vossa
Tesouro, recebendo o monopólio Majestade seja o primeiro a ler este
da venda do sal, de onde obteve livrinho que escrevi, quase todo,
imensos proventos. Nascido em um visando muito ao efeito que deve
lar judeu, acabou por se converter ao produzir, não só no estrangeiro, mas
luteranismo. Em 1830, Buschenthal principalmente no Brasil”.
negociou empréstimos e participou
no fornecimento de armas e PALAVRAS FINAIS
uniformes para o exército brasileiro.
José Bonifácio não simpatizava em O Imperador D. Pedro II
nada com ele, tendo desabafado, demonstrava fascínio pelo Judaísmo,
certa ocasião, com Sua Majestade: o hebraico e os judeus. Seu amor
“Não vai entregar nas mãos de um incondicional pela cultura judaica
traste [judeu] os meus interesses está balizado em sua enorme paixão
pecuniários”. pela Bíblia e, consequentemente,
em seu desejo por conhecer
O exílio de D. Pedro II foi um profundamente a História do Povo
fato lamentável. Durante anos foi Judeu.
explicado como algo que não passava
de uma “festa de despedida”. Longe Sua viagem de peregrinação à Terra
disso, a saída da família imperial do Santa, em 1876, com uma comitiva
país deixaria nos políticos da época de 200 pessoas, foi um verdadeiro
Paulo Railway” aparecem vários um clima de culpa e vergonha. sonho acalentado durante vários
judeus londrinos. anos, um acontecimento mágico
Desde Paris, cidade que acolheu que se concretizou ao completar, o
A firma “Samuel & Phillips & Sua Majestade, batia forte a saudade monarca, pouco mais de meio século
Company” atuava no Brasil desde pelo Brasil. No fim de seus dias, de vida.
1824. O judeu Samuel Phillips D. Pedro II conheceu o rabino de
era cunhado dos Rothschilds. Avignon, Benjamin Mossé, que
A empresa doava altas quantias lhe ofereceu uma tradução dos BIBLIOGRAFIA
para empreendimentos sociais e Salmos. O rabino sugeriu ao Faingold, R., D. Pedro II na Terra Santa.
filantropia, para encanamento das monarca que traduzisse poemas Editora e Livraria Sêfer. São Paulo 1999
litúrgicos da Provence. Este convite Faingold, R., Luzes do Império: Pedro II e
águas do rio Maracanã, para os o mundo Judaico. Exposição iconográfica
indigentes das Vilas de Diamantina deu origem às “Poésies hebraïco- apresentada pelo SESC e a Casa de
e do Príncipe, em Minas Gerais, e provençales du Rituel Israélite Cultura de Israel em São Paulo, Petrópolis
e Rio de Janeiro em 2000
para obras da Praça do Comércio, Comtadin” (1890), de autoria do
Faingold, R., D. Pedro II, manuscritos
no Rio de Janeiro. Samuel Phillips, Imperador. Para o centenário da hebraicos e orientalistas de São Petersburgo.
pelas suas excelentes relações incorporação do Comtat Venaissin à Arquivo Maaravi vol. 2, No. 2, ano 2008.
França, Pedro II traduziu as canções (Revista Digital de Estudos Judaicos da
comerciais e lealdade ao monarca, UFMG. Torah: Arquivos multidisciplinares
procurava obter taxas de juros mais que Benjamin Mossé lhe fornecera. da escritura)
baixas para o Brasil. Eram os “Piyutim”4 do ritual Faingold, R., Pioneirismo musical judaico no
Comtadin, eternizados em duas Brasil Império. Morashá, abril 2012
antigas publicações: o “Seder Ha- Faingold, R., Os mestres de hebraico de D.
Pedro II. Anais do V Encontro do Arquivo
Piyut, pl. piyutim, palavra que provém
4 Kontress” e o “Seder Ha-Tamid”. Histórico Judaico Brasileiro, São Paulo
do grego, significando “canto”. Poema O rabino Mossé escreveu ainda 2013 (Evento de 2009)
litúrgico judaico, geralmente cantado ou uma biografia em francês sobre o
recitado nos serviços religiosos. Os piyutim
foram escritos desde a época bíblica, monarca brasileiro. Em carta a Pedro Prof. Reuven Faingold é historiador
sendo a maioria em hebraico ou aramaico. II (09/08/1890), diz: “Uma das mais e educador; PHD em História e História
Judaica pela Universidade Hebraica de
Seguem um esquema poético, como um
acróstico na ordem do alfabeto hebraico, belas retribuições de minha vida, será Jerusalém. é responsável pelos projetos
educacionais do “Memorial da Imigração
ou soletrando o nome de seu autor. apresentar, como historiador francês, o Judaica e do Holocausto” de São Paulo.

56
arqueologia

A antiga Shiló,
Morada do Tabernáculo
Mencionada inúmeras vezes na Torá e nos Salmos,
encrustada nas Montanhas da Judeia, a antiga cidade de Shiló,
hoje chamada de Tel Shiló, abrigou por 369 anos o Mishkan,
o Tabernáculo, tornando-se o epicentro da vida religiosa
da antiga Israel durante a era dos Juízes, que precedeu a
formação do Reino de Israel. Em fevereiro de 2012,
Israel declarou Tel Shiló patrimônio arqueológico.

a
17km ao sul de Sh’chem ou Shechem, A Shiló judaica
Tel Shiló1 está situada 714m acima do nível
do mar e a 40m acima da área ao seu redor. Os Bnei Israel, Filhos de Israel, não foram os primeiros
A localização da antiga Shiló é claramente habitantes de Shiló. De acordo com historiadores e
identificada no Livro dos Juízes: “Eis que arqueólogos, o local foi habitado a partir do século 18
há anualmente uma festa do Eterno em Shiló, que está A.E.C. e, antes da chegada do Povo de Israel, o local
ao norte de Bet-El, a leste o caminho que sobe de Bet- ficou sob domínio canaanita e egípcio.
El a Shechem, e ao sul de Levoná” ( Juízes, 21:9). Em
Deuteronômio (Devarim), 12:9, Shiló é apontada como Shiló passou a fazer parte da História Judaica após os
“menuchá” (local de descanso), um precursor da “nechalá” Filhos de Israel, liderados por Yehoshua bin Nun, terem
(herança) que se alcançaria com a construção do Beit conquistado Canaã, a Terra que lhes fora prometida por
Hamikdash em Jerusalém. O nome Shiló vem da palavra D’us. Profeta e guerreiro, legislador e juiz, Yehoshua era
shalá, em hebraico “refúgio da tranquilidade”. o principal discípulo de Moshé, e D’us o escolhera para
suceder nosso maior profeta na liderança da geração de
Nas últimas décadas, milhares de visitantes têm ido a judeus nascida após a saída do Egito, no Deserto do Sinai.
Tel Shiló para admirar os tesouros arqueológicos Nos sete anos seguintes, o povo lutou arduamente pela
descobertos no local e nas redondezas, hoje parte do conquista da Terra Prometida2. No final desse período, o
sítio arqueológico “Ancient Shiloh” (Shiló Antiga), Eterno revelou a Yehoshua que chegara a hora dos “Filhos
localizado na entrada da moderna comunidade de Shiló. de Israel receberem sua herança, na terra de Canaã”.

Tornou-se necessário escolher um lugar fixo para o


1
Tel Shiló, a antiga Shiló como é chamada hoje.
Tel significa monte ou sítio arqueológico. Mishkan, o Tabernáculo. Este Santuário portátil havia
sido construído após o recebimento da Torá no
2
Os historiadores acreditam que a entrada dos Filhos de Israel
e conquista da Terra ocorreu durante a chamada 1ª Idade de Ferro, Monte Sinai, seguindo as instruções do Eterno. Treze
em meados do século 13 A.E.C. capítulos do Livro Êxodo detalham sua construção.

57 dezembro 2018
arqueologia

Tel Shiló

No Mishkan estavam os bens quão distantes estivessem do local da Palavra, que a partir da Revelação
mais preciosos de Israel: o Aron Revelação, no Monte Sinai, já que lá estariam para sempre com Israel. 
Hakodesh - a Arca Sagrada ou não havia santidade intrínseca.
Arca da Aliança, que abrigava as O que conferia santidade ao local era Após a entrada dos Filhos de
Tábuas da Lei, que continha os Dez a Presença Divina e a Sua Torá, Sua Israel em Canaã, o Mishkan ficou
Mandamentos (guardando, inclusive, provisoriamente guardado em
os fragmentos das primeiras Tábuas Guilgal. Mas, após Yehoshua ter
estilhaçadas), e o Sefer Torá original, dividido a Terra entre as Tribos de
que, ditado por D’us, fora transcrito Israel, o Tabernáculo é levado ao
por Moshé.  topo do Monte Shiló, no território
da Tribo de Efraim. O Livro
A Torá chama o Mishkan de Ohel de Yehoshua relata que “toda a
Mo’ed, “Tenda da Reunião”, pois era congregação dos Filhos de Israel
o local físico escolhido pelo Eterno reuniu-se em Shiló, ali armando a
para se comungar com o homem, a Tenda da Reunião - Ohel Mo’ed.
Morada de D’us na Terra; o lugar E a Terra estava conquistada diante
no qual o homem finito podia deles”, ( Josué, 18:1 e 2).
testemunhar e vivenciar a Presença
do Infinito. Nos 40 anos em que Ao ser realocada em Shiló, a
vagaram pelo deserto, os Filhos de estrutura do Mishkan deixou de ser
Israel levavam consigo o Mishkan, portátil. Suas paredes não eram de
de um lugar a outro. Para Israel, o madeira de acácia, como no deserto,
Mishkan era um sinal de que sempre mas de pedra, permanecendo
haveria uma via de comunicação RÉPLICA DO ARON HAKODESH, IMAGEM DO
como era apenas o teto, ou seja, em
com D’us, independentemente de LIVRO “LE TABERNACLE”, DE MOCHÉ LEVINE cortinas trançadas.

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REVISTA MORASHÁ i 102

Segundo Rashi, na Torá, Shiló contra Israel, destruindo tudo em seu estruturas datadas desse período
é mencionada como um “lugar caminho, até o coração da Samaria, foram encontradas durante as
escolhido” por D’us. Pela primeira e arrasaram Shiló. O fim violento da escavações. Mas quando a Assíria
vez, a Presença Divina que permeava cidade também é descrito no Salmo invadiu o Reino de Israel, em
o Tabernáculo foi associada a uma 78: “Ele (o Eterno) abandonou o 722 A.E.C., Shiló foi novamente
localização específica. O lugar Tabernáculo em Shiló, a Tenda que destruída, assim como outras cidades
tornou-se o ponto de reunião do era Sua moradia entre os homens”. na Samaria.
Povo de Israel, um centro político, Escavações arqueológicas
religioso e de peregrinação. Três encontraram uma camada A partir de então a área foi pouco
vezes por ano os judeus se dirigiam estratigráfica3 cuja datação coincide habitada até o período romano, na
ao Santuário para orar e fazer suas com o período em que houve a época do Segundo Templo. Para
oferendas. Lá ouviam as palavras batalha de Eben-Ezer, indicando os romanos, Shiló tinha interesse
de Eli, o Cohen Gadol, na época que no local ocorrera uma grande estratégico. Localizada na espinha
Juiz e líder da nação, cujo túmulo
ali se encontra. Foi enquanto o
Tabernáculo estava em Shiló e
Eli era o Cohen Gadol que Hanna
implorou a D’us que a abençoasse
com um filho. Em resposta àquela
prece, D’us a fez mãe de Shmuel, um
profeta cuja estatura é comparada à
de Moshé e Aaron.

Segundo o Talmud, Shiló continuou


como capital religiosa por 369 anos,
até a derrota dos Filhos de Israel
pelos filisteus, em Eben-Ezer, e a
Arca Sagrada ser capturada por eles.
Após essa batalha (1050 A.E.C.),
Shiló é incendiada e arrasada.

A narrativa da batalha final e as


trágicas consequências da luta
de Israel contra os filisteus estão Jarros encontrados no Parque arqueológico Shiló
no Livro de Samuel. Em Eben-
Ezer, tombam 30 mil soldados
de Israel, entre os quais Hofni e destruição. Entre as descobertas Entre as descobertas
Pinchas, os dois filhos de Eli, o recentes, há fragmentos de jarros
Cohen Gadol. Este Livro também de barro em meio a uma camada de
recentes, há
revela que a Arca da Aliança, cinzas avermelhadas, o que poderia fragmentos de
levada de Shiló ao acampamento confirmar a destruição da cidade jarros de barro
dos soldados de Israel para dar- por um grande incêndio. A datação
lhes ânimo e coragem, acabou do jarro aponta para o ano 1050
em meio a uma
sendo capturada pelos filisteus, que A.E.C., data que coincide com camada de cinzas
a levaram consigo para Ashdod os eventos descritos no Livro de avermelhadas, o que
(Samuel, 4-5). O Livro de Jeremias Samuel.
menciona, ainda, que, após derrotar poderia confirmar
Israel, os filisteus continuaram a luta Anos após a destruição da cidade a destruição da
pelos filisteus, por volta do século cidade por um
8 A.E.C. ou um pouco antes, Shiló
3
Corte longitudinal do sítio arqueológico. volta a ser povoada. Inúmeras grande incêndio.

59 DEZEMBRO 2018
arqueologia

dorsal da alta região montanhosa ‘Eu fui a Shiló e senti o cheiro do desenvolvimento. Quatro igrejas
da Samaria, uma estrada principal incenso entre seus muros’”. foram construídas no sul de Tel
passava, na Antiguidade, a 2km Shiló, a primeira no século 4 E.C.
a oeste da cidade. A estrada era Nem após a destruição do Segundo e a última entre os séculos 6 e 7.
utilizada pelos romanos como rota Templo e o início da Diáspora, a As igrejas são uma clara indicação
entre Jerusalém e Sh’chem. localização de Shiló foi esquecida de que a cidade se tornou centro de
pelos judeus. A tradição de ir até peregrinação cristã. Apesar de não
Mas, de acordo com o Talmud a cidade para rezar manteve-se haver evidências que comprovem
(Talmud Bavli, Yoma), traços da através dos séculos. No século 4 da que a cidade era rota de peregrinos
antiga glória ficaram impregnados Era Comum (E.C.), o historiador depois da época dos Cruzados,
em Shiló. Assim relata Rabi romano Eusebius relatou sua fontes muçulmanas contam que os
Yehoshua ben-Korcha, um sábio do localização: a cerca de 30km de cristãos continuaram a passar por lá
Talmud: “Um judeu idoso me disse, Nablus. Sabe-se também que durante o domínio islâmico.

No livro Kaftor Vaferach, Rabi Ishtori


Haparchi, que deixou a França e
emigrou para a Terra de Israel em
1313, instalando-se em Beit Shean,
assim descreveu sua visita a Shiló:
“Nestes montes há um domo,
o Domo da Shechiná (Presença
Divina); e próximo a ele há um lugar
conhecido em árabe como a “mesa
dos Filhos de Israel”.

Nos séculos seguintes, foram


construídos povoados árabes ao redor
das montanhas, no Vale de Shiló,
chamado de Sahel Isstuniya, em
árabe. A leste, próximo ao deserto,
arqueólogos encontraram vários
povoados antigos abandonados.
O nome Isstuniya deriva-se do maior
Ao sopé do Monte Shiló, escavação da igreja bizantina em torno da mesquita,
deles – Hurvat Isstuniya, ainda
Jamia el Yeteim (em árabe, significa Mesquita dos Órfãos) habitado no início do século 20.
Localizado no alto do monte que
viajantes judeus e muçulmanos controla o vale, cercado por bosques
teriam por ali passado durante de pinheiros, abriga o túmulo do
a Idade Média. Um peregrino xeque Mohammed e restos de uma
muçulmano, que visitou a região estrutura bizantina decorada.
em 1173, falou sobre uma sinagoga,
e Rabi Jacob, que por ali passou A leste de Isstuniya está o antigo
no século 13, disse ter visitado os povoado de Hurvat Kalzun, onde
túmulos de Eli, o Cohen Gadol, e também foram encontradas ruínas
seus dois filhos. datadas da Idade do Ferro
e da época do Segundo Templo.
Período Bizantino, Ao sul do vale está o grande
Otomano e Árabe povoado de Turmus Aya. No alto
de uma montanha, a oeste, está o
Durante o período bizantino a vilarejo de Sinjil, cujo nome está
cidade chegou ao auge de seu relacionado a um dos líderes da

60
REVISTA MORASHÁ i 102

extensão – em alguns lugares chega


a medir 5,5m. Muitos jarros foram
também encontrados, assim como
antigas prensas para produção de
vinho e azeite de oliva e grandes
vasos com restos de uvas. As
descobertas mais importantes feitas
por essa equipe são as ruínas das
grandes igrejas da Era Bizantina,
erguidas na região mais ao sul: restos
de três delas, a mais antiga datada do
século 4 da E.C. e as outras duas do
século 5.

Encontraram, também, um arco


de pedra e pisos em forma de
mosaicos com padrão geométrico
na primeira igreja, denominada
pelos arqueólogos de Igreja dos
Peregrinos. Para proteger os achados,
Imagens do Parque Arqueológico de Shiló
ergueram uma construção de tijolos
simulando uma igreja bizantina. Esta
primeira cruzada, Raymond de Saint Escavações e Parque é a primeira parada dos visitantes
Gilles. arqueológico que chegam ao sítio.

Conder e Kitchener, arqueólogos As primeiras escavações em Tel A Sinagoga do Domo da Presença


que estudaram a área em 1882, Shiló foram realizadas em 1922 Divina está ao sul de Tel Shiló, sobre
afirmaram ter encontrado vestígios pelo dinamarquês Aage Schmidt. uma elevação da qual se tem uma
do sítio arqueológico de Tel Shiló De 1926 a 1932, mais três equipes visão geral do vale, da estrada para
nas ruínas próximas a Seilun da Dinamarca trabalharam no local, Jerusalém e da cadeia de montanhas
(Khirbet Seilun, a Antiga Shiló). sob a coordenação de Hans Kjaer. de Ba’al Hatzor. A sinagoga foi
No ano seguinte, Edward Robinson, Após sua morte, as escavações foram construída com os mesmos padrões
pai da chamada Arqueologia e suspensas até 1963, quando outro daquelas do Período Talmúdico, na
Geografia Bíblica, chegou à mesma dinamarquês, Svend Holm Nielsen, Galileia. Todas tinham três entradas
conclusão. retornou ao local.
Atualmente, no Monte Shiló, há um
Período amplo sítio arqueológico que permite
contemporâneo vislumbrar a passagem dos séculos
na região. Escavações arqueológicas
Os judeus retomaram da Jordânia confirmaram que os Filhos de Israel
a soberania de Shiló na Guerra dos não foram os primeiros habitantes da
Seis Dias, em 1967. Os primeiros região e que o local já era habitado
povoados judaicos foram criados em entre os séculos 18 e 19 A.E.C.
1979 exatamente no mesmo local Entre 1981 e 1985, o professor Israel
em que as Doze Tribos de Israel Finkelstein chefiou uma equipe da
ergueram seu centro político. Em Universidade Bar Ilan. Arqueólogos
2012, a cidade já contava com uma identificaram portões da antiga
população de aproximadamente cidade no lado sudeste de Tel Shiló.
2.500 pessoas e, em 2017, quase 4 Em 1985, suas escavações revelaram
mil, segundo dados do Escritório ruínas de casas de pedras e um muro
Central de Estatísticas de Israel. canaanita, impressionante por sua

61 DEZEMBRO 2018
arqueologia

escavações no leito da rocha que,


acredita-se, teria sido o local onde
ficava o Tabernáculo. Entre 2006
e 2007, foi a vez do Escritório de
Arqueologia da Administração Civil
da Judeia e Samaria fazer escavações
na área.

Quando, em 2010, reiniciaram-


se as escavações no Monte Shiló,
os arqueólogos encontraram um
cômodo contendo pilhas de pratos
quebrados da época em que o
Tabernáculo estava em Shiló. Em
escavações recentes realizadas na
subida do Monte, encontraram uma
grande plataforma que julgavam ter
sido o lugar do Tabernáculo.

Ofer Gat, da equipe que agora


participa das escavações no local,
acredita ser possível que o Mishkan
tenha realmente estado localizado
lá. Há uma grande semelhança
Um dos utensílios do Tabernáculo, a Mesa dos Pães da Preposição. topográfica entre essa suposta
IMAGEM DO LIVRO “LE TABERNACLE”, DE MOCHÉ LEVINE localização do Tabernáculo e a
do Templo no Monte Moriá, em
no muro ao Norte; e, no muro, ao alças, e no centro uma ânfora. Jerusalém.
Sul, um nicho para a Arca Sagrada, No interior da construção há três
voltado para Jerusalém. No centro da colunas. Em seu capitel, folhas de No lado norte do Monte Shiló,
construção podem ser vistos restos acanto. próximo ao local do Tabernáculo,
de colunas que sustentavam o teto. há uma caverna a partir da qual
Os muros externos chegam a atingir Ao longo do caminho, ainda ao sopé subdivide-se uma série de cavernas,
quase dois metros de altura, dando à do Monte Shiló, está outra mesquita, cisternas e labirintos. Na caverna
construção o aspecto similar à Tenda Jamia el Yeteim (em árabe, principal, no muro ocidental, veem-
da Reunião. Ao longo da entrada há Mesquita dos Órfãos). Data se resquícios de nichos para velas
imagens decorativas características do início da Idade Média e foi e lamparinas. A oeste da caverna,
de edifícios judaicos, como ramos construída com pedras de antigas próximo à entrada, há uma mikvê
de oliveiras e urnas. A construção igrejas bizantinas. com seis degraus, exatamente como
é conhecida também como “A está descrito no Tratado Mikvaot.
sinagoga onde Hannah orou”. Localização do Este local era usado pelos Cohanim e
Tabernáculo Levitas para se purificarem antes dos
Entre os vários achados serviços no Mishkan.
arqueológicos também estão ruínas Em 1873, o explorador Wilson havia
de uma mesquita, Jamia el Arbain sugerido que a planície norte de Tel Do ponto de vista nacional
(em árabe, Mesquita dos 40). A Shiló devia ser o local onde estivera e religioso, não há dúvida de
parte principal é um quadrado. o Tabernáculo e que a área deveria que a identificação do local do
Ao norte, a porta tem um suporte ter uns 235m de comprimento. Tabernáculo é de fundamental
na parte superior no qual estão importância para reafirmar o grande
esculpidas duas guirlandas de flores Mas, em 1981 e 1982, Zeev Yeivin vínculo histórico e religioso entre o
ladeadas por dois jarros com duas e Rabi Yoel Bin-Nun fizeram Povo Judeu e Tel Shiló.

62
personalidade

Claude Lanzmann

Claude Lanzmann, cineasta francês, intelectual e jornalista,


mais conhecido internacionalmente por seu documentário
“Shoah” sobre o Holocausto, faleceu em 5 de julho de 2018,
aos 92 anos. Judeu secular e sionista apaixonado, Lanzmann
sempre esteve na linha de frente em defesa de Israel.

c
omo Claude Lanzmann se autodefinia? com a família no início do século 20. Em 1934, Paulette
Em sua autobiografia, La Force des Choses abandonou marido e filhos, pondo um fim abrupto a
(Força das Coisas, em português), Simone seu casamento. Claude e seus dois irmãos passaram a
de Beauvoir relata que Lanzmann dizia: viver com o pai em uma fazenda, em Brioude, até ir
“Sou judeu (...) Quando, aos 13 anos de para o ginásio, em Clermont-Ferrand.
idade, descobri o antissemitismo, senti sacudir meu
mundo, não ficando pedra sobre pedra (...)”. Claude vivenciou o antissemitismo, pela primeira vez,
na década de 1930, no colégio. O evento vai marcá-lo
Tendo lutado na La Résistance, a Resistência Francesa, profundamente. Em uma entrevista em 2013 à revista
ainda adolescente, durante a ocupação da França pela The New Yorker, relembrou: “Escondido atrás de uma
Alemanha, ele afirmava que sua experiência durante a coluna no playground do colégio, fiquei olhando,
2ª Guerra Mundial lhe tinha revelado que a imagem dos petrificado. Não tentei intervir, aterrorizado de poder
judeus, como povo resignado, humilhado, perseguido, ser descoberto. Assisti aos meus colegas de classe
não refletia o que eles eram. O judeu, dizia, “(...) é praticamente lincharem um garoto judeu magricela,
um povo combatente”. “Os seis milhões de homens, ruivo, chamado Lévy, que tinha todas as feições das
mulheres e crianças exterminados pelos nazistas caricaturas antissemitas do pré-guerra. Eram 20 contra
pertenciam a um grande povo, não predestinado ao um – e bateram nele até sangrar”.
martírio, mas vítima de barbárie gratuita(...)”.
Em 1939, quando estoura a 2ª Guerra Mundial, Claude
Sua vida tinha 14 anos. Os nazistas ocuparam a França, e seu
pai, preocupado com a segurança dos filhos, cavou um
Nascido numa família de judeus, em Paris, em 27 de buraco, não maior do que um túmulo, no jardim da
novembro de 1925, Claude Lanzmann era o mais casa onde viviam, em Clermont-Ferrand, onde cabiam
velho de três irmãos. Armand, o pai, era já nascido na seus três filhos. Instruiu-os a se esconderem, rápida
França; sua mãe, Paulette, fugira dos pogroms russos e silenciosamente, no buraco, que lhes serviria de

63 dezembro 2018
personalidade

esconderijo da Gestapo. Claude Em entrevista ao Der Spiegel, em


se recorda que, em 1941, eram 2011, contou: “Estive envolvido em
4 horas da madrugada quando várias emboscadas, como artilheiro
soou a campainha. Poderia ter e carregador de metralhadoras
sido a SS. No mês anterior, todos (...). Certo dia, no verão de 1944,
os judeus da cidade tinham sido emboscamos um comboio alemão
reunidos e despachados para a caminho do front, na Normandia.
“algum lugar”. Os três jovens Atirei e certamente matei
tinham treinado inúmeras vezes alemães”. Seus pais e seus irmãos
para saber como agir caso as SS também sobreviveram à guerra.
aparecessem em sua residência.
Desceriam rapidamente as Mas a guerra nunca terminou,
escadas, voando porta afora de verdade, para Lanzmann,
e de lá para o esconderijo. As Claude Lanzmann, 1945 em Mont-
como Beauvoir escreve em suas
dobradiças das portas tinham Mouchet (Puy-de-Dôme) memórias, “(...) seu rancor contra
os não-judeus nunca desapareceu,
de verdade”.

Com o término da guerra,


Lanzmann se mudou para
Paris, onde cursou Filosofia, na
Sorbonne. No final da década
de 1940, lecionou Filosofia e
Literatura, na então Alemanha
Ocidental. Ao lhe perguntarem
por que decidira lecionar na
Alemanha, alegava que queria ver
alemães à paisana. Numa certa
ocasião, seus alunos pediram
que desse um seminário sobre o
antissemitismo. O adido militar
claude lanzmann e simone de beauvoir, c. 1952 francês em Berlim lhe ordenou que
desistisse, em sinal de respeito às
“sensibilidades políticas”.
sido bem azeitadas para não fazer Jeunesses Communistes ( Juventude
barulho. Escondidos no buraco, Comunista). O partido forneceu Lanzmann irritara os funcionários
os três irmãos viram, de repente, armas e panfletos da Resistência da Chancelaria francesa por ter
uma figura escura acima deles. Mas a ele e seus camaradas. À noite, publicado um artigo sobre a
não era a Gestapo, e sim seu pai eles praticavam tiro nos depósitos declarada simpatia pelos nazistas
testando-os uma vez mais. E os do colégio. Claude ingressou por parte da administração da
reprimiu dizendo, “Vocês fizeram nas fileiras da Resistência, universidade. Mas, Lanzmann não
barulho”. Claude se lembrava do em Auvergne, participando desistiu e deu o seminário.
fato nitidamente, apesar das várias ativamente da luta contra a
décadas transcorridas. ocupação alemã. Contrabandeava Ele acabou abraçando o
armas e munição para o jornalismo. Escreveu uma série
Durante a ocupação, seu irmão movimento. Seu pai era um dos de artigos para o jornal Le Monde
menor, seu pai e ele lutaram na líderes locais do Movimento enquanto viajava ilegalmente pela
Resistência Francesa contra os Unificado da Resistência (MUR). então recém-criada Alemanha
nazistas. Aluno interno no Liceu No entanto, apenas em fevereiro Oriental. Muito provavelmente foi
Blaise-Pascal, em Clermont- de 1944, ele e o pai descobririam o primeiro jornalista ocidental a
Ferrand, Claude filiou-se à o que o outro estivera fazendo. fazê-lo.

64
REVISTA MORASHÁ i 102

Lanzmann e Sartre específica de lógica: os judeus me parte do apoio financeiro para o


deixam desconfortável, não confio documentário “Shoah”.
Seus artigos atraíram a atenção neles, desprezo-os, portanto, isso
do filósofo existencialista, Jean- com certeza significa que há algo de Les Temps Modernes costumava
Paul Sartre (1905-1980), a quem errado neles. defender causas da esquerda
admirava muito. Em 1946, lera a francesa, tais como a independência
obra “Antissemita e Judeu”, de Sartre, Em 1952, Sartre convidou da Argélia. Claude juntou-se a
logo ao ser publicada, escrevendo: Lanzmann para uma de suas Sartre assinando um manifesto que
“Ele entendeu-nos como ninguém soirées parisienses, e lá este último conclamava os soldados franceses
mais”. Na obra, o autor atacava conhece Simone de Beauvoir, a se recusarem a lutar na Argélia, e
o antissemitismo, mal que havia escritora e filósofa existencialista. foi, mais tarde, indiciado por apoiar
tomado a França, tentando Sartre de pronto convida-o a Revolução Argelina.
entendê-lo. para colaborar em sua revista de
esquerda, Les Temps Modernes, Passou os 15 anos seguintes como
Entre outras, Sartre afirmava fundada em 1945, da qual Simone colaborador e, posteriormente, editor
que alguns de seus compatriotas também fazia parte. da revista. Escreveu longos artigos
consideravam que ser antissemita sobre Israel, a Coréia do Norte
era simplesmente “ter uma opinião”, Durante vários anos, Lanzmann e o Tibete. Em 1986, quando da
como tantas outras. Para ele, manteve estreito relacionamento morte de Simone, Lanzmann passa
qualquer ideia que negasse aos com Simone, 18 anos mais velha a ser editor-chefe, posto em que
outros a sua própria humanidade do que ele, e que se tornaria uma continuou pelo resto de sua vida.
não merecia ter o status de ser grande amizade. A experiência de
uma “opinião”. Afirmava, também, guerra de Claude também muito a Lanzmann e Israel
que o antissemitismo não era uma atraía, pois ela, como Sartre, pouco
forma de pensar, mas uma paixão tinha feito para resistir aos nazistas. Em 1952, quatro anos após a
racista estruturada por uma forma Foi dela que Claude recebeu grande fundação de Israel, Lanzmann

65 DEZEMBRO 2018
personalidade

faz sua primeira viagem ao justamente no dia 5 de junho de


país; queria fazer uma série de 1967 – primeiro dia da Guerra dos
reportagens sobre o jovem Estado. Seis Dias. Como veremos mais
Apaixonou-se de imediato. No adiante, a “resposta” de Lanzmann
navio que o levou até lá conheceu à edição especial do Les Temps
alguns heróis da Guerra de Modernes sobre o conflito palestino-
Independência, como o general e israelense seria seu primeiro
comandante das Forças de Defesa documentário, “Pourquoi Israel”.
de Israel (IDF), Ygal Allon.
Apesar da esquerda se distanciar
Ao relembrar essa viagem, Claude cada vez mais de Israel, Lanzmann
costumava mencionar outro mantinha sua posição de feroz
passageiro, Julius Ebenstein, defensor do país. Provavelmente,
musicólogo vienense que saiu da a única grande diferença entre
Áustria antes do Anschluss1, em Lanzmann e Sartre foi a questão
1938, e que se tornou um grande do Oriente Médio. Durante
amigo. “Mesmo sem ser um visita a Israel, o filósofo recusou
homem de posses, convidou-me
para ficar em sua casa se um dia
passasse por Tel Aviv. E foi
o que fiz. Acabei lá ficando por
três meses. Eram tempos muito
difíceis (...) os alimentos eram
racionados e chegava-se a passar
fome(...)”.

Enquanto permaneceu no país, o


cineasta procurou absorver todos
os aspectos da jovem nação e de
sua população, que lutava para
sobreviver. Lá, teve a oportunidade
de confrontar sua relação com o
judaísmo. E concluiu: “A existência
de Israel jamais representou um
risco ou incômodo para mim,
como francês (...). Jamais me
censurei pelos meus sentimentos o ministro de educação, Francois Bayrou, e Lanzmann visitam Auschwitz,
dezembro de 1993
como judeu”.

Ao retornar a Paris, escreveu mais Um de seus grandes projetos encontrar-se com qualquer pessoa
de 100 páginas de reportagens. foi uma edição especial de mil em uniforme militar, levando ao
Após a visita a Israel, pareceu- páginas de Les Temps Modernes que Lanzmann chamou de “uma
lhe que o livro de Sartre, o sobre o conflito árabe-israelense, visão drasticamente reduzida do
“Antissemita e judeu” – em editado e publicado por ele país”. Sartre via Israel como nação
particular a sua tese de que “é o juntamente com Sartre. A imperialista.
antissemita quem cria o judeu”, – edição, porém, concedeu mais
necessitava de uma revisão. de metade das páginas ao lado Em 1967, quando de Gaulle
dos árabes. Aliás, começava anunciou um embargo de armas
com ataques a Israel. Lanzmann a Israel, no início de junho,
1
Anexação da Áustria à Alemanha, em
passou dois anos editando esse Lanzmann pressionou Sartre a
1938. número, que foi publicado assinar uma petição pró-Israel; este

66
REVISTA MORASHÁ i 102

último imediatamente lamentou conhecido, onde ele chega ao restaurante, em Jerusalém, conhece
o fato e o relacionamento entre ponto de justificar o massacre Angelika Schrobsdorff, escritora
ambos nunca voltou ao que era. dos atletas israelenses em e atriz judia que, em 1939, fugira
Munique, nas Olimpíadas de de Berlim, com a mãe e a irmã,
Numa manifestação em Paris, em 1972, pela Frente Popular pela para Israel. Apaixonados, os dois
2 de junho daquele ano, Claude Libertação da Palestina, com se casam em 1974. Era o segundo
declarou que a destruição de Israel o argumento de que prevalecia casamento de Lanzmann; o primeiro
– “uma segunda aniquilação”, em um estado de guerra entre o tinha sido com Judith Magre. O
suas palavras, – seria pior do que “establishment” israelense e os casamento chegou ao fim em 1990.
o Holocausto. “Israel é a minha palestinos. Em sua polêmica em Cinco anos mais tarde, Lanzmann
liberdade. Sem Israel, sinto-me nu defesa dos assassinos, comparava se casa com a médica Dominique
e vulnerável”. Ele não era uma voz as forças revolucionárias que Petithory, especialista em Nutrição e
solitária entre os intelectuais judeus lutaram contra os franceses na Epidemiologia, com quem teve dois
franceses, que faziam coro a suas Argélia com a luta palestina filhos, Angélique e Felix.
preocupações e compartilhavam sua contra Israel. Não se podia apoiar
opinião de que Israel enfrentava os primeiros, dizia, sem apoiar os Ser judeu no mundo
sua iminente destruição. Estes segundos. contemporâneo

Considerado um inovador da
linguagem do cinema, suas três
principais obras “Por que Israel”, de
1973; “Shoah”, de 1985, e “Tzahal”,
de 1994, sobre as Forças de Defesa
de Israel, lidam essencialmente
com a mesma temática: o ser judeu
no mundo contemporâneo. São
diferentes facetas de um mesmo
tema e revelam os fortes vínculos
de Lanzmann com o judaísmo. Sua
trilogia também mudou a estrutura
tradicional dos documentários
em termos de filmagem, estilo e
sistemática.

Com três horas de duração,


“Pourquoi Israel” foi lançado em
Claude Lanzmann, no Begin Heritage Center, Jerusalém 1973. Lanzmann trabalhou cerca
de três anos no documentário,
que apresenta entrevistas com
intelectuais rejubilaram-se com Como jornalista, Lanzmann cobriu israelenses de todos os tipos e
a rápida vitória de Israel e se vários conflitos em Israel e no origens – intelectuais e operários,
sentiram traídos pela coletiva de Oriente Médio. Após a Guerra asquenazitas e sefarditas, religiosos
imprensa feita por de Gaulle, em dos Seis Dias, ele volta a Israel e seculares, judeus do kibutz e
27 de novembro de 1967, na qual, para fazer uma reportagem para judeus chassídicos. No documentário,
usando uma linguagem não ouvida a TV francesa sobre os combates ele procura retratar os conflitos
em público desde a 2ª Guerra, ele no Canal do Suez. Teve, então, a sociopolíticos, a questão das
descreveu os judeus como “um povo oportunidade de passar muito tempo imigrações e problemas de
elitista, seguro de si e dominador”. com as tropas na fronteira com o adaptação dos recém-chegados.
Egito durante a Guerra de Atrito. Passa-se no início da década de
A atitude de Sartre em relação Foi nessa época que conheceu Ariel 1970, época da primeira onda de
a Israel fica clara em artigo pouco Sharon. Na mesma viagem, num imigração dos judeus russos.

67 DEZEMBRO 2018
personalidade

Além de atender seus anseios ele fizesse um filme não “sobre a imagens de arquivos, tampouco
pessoais, “Por que Israel” é, também, Shoá, mas que fosse a própria Shoá”. trilha musical. Apenas depoimentos
uma resposta à esquerda francesa e entrevistas – arrepiantes e
e aos que lutaram com ele contra Lanzmann passou 11 anos lendo inesquecíveis. Uma testemunha atrás
o colonialismo francês, na Argélia. sobre o assunto; entrou em contato da outra revive sua parte naquele
Queria deixar patente a diferença com historiadores especializados no horror. Intercaladas nas entrevistas
entre a luta justificada do Estado Holocausto, entrevistou e filmou há paisagens, locais onde os nazistas
Judeu pela sobrevivência e o mais de 350 horas. Dedicou mais haviam erguido os campos de morte
colonialismo europeu, na África e de cinco anos apenas à edição do – e tomadas de trens percorrendo os
na Ásia. O trabalho foi selecionado material bruto. As entrevistas que mesmos trilhos que, outrora, levaram
pelo Festival de Nova York e ele não incluiu no filme, totalizando às câmaras de gás.
exibido no Lincoln Center, em 220 horas, foram adquiridas pelo
outubro de 1973, no primeiro dia da Museu Memorial do Holocausto, de Quando “Shoah” estreou em 1985,
Guerra de Yom Kipur. No circuito Washington, em 1996. Claude Lanzmann tinha 59 anos.
de Paris, o filme estreou com uma Considerado uma obra prima,
crítica triunfal. Em sua autobiografia, “The recebeu muitos prêmios, inclusive
Patagonian Hare” (A Lebre da um Oscar na categoria Melhor
Sobre Israel, Lanzmann costumava Patagônia, em tradução livre), Documentário.
afirmar: “Até hoje, não há soluções de 2009, ele escreveu: “Durante
fáceis. Conheci o antissemitismo 12 anos tentei fixar meu olhar, Em seus demais filmes, ele usou
do pré-guerra, aterrorizante para implacavelmente, no sol negro da o mesmo método de exaustivas
uma criança. Tentem imaginar Shoá”. Falando ao The Arts Fuse, em entrevistas. “Tzahal” (1994) foi feito
o desaparecimento de Israel(...). 2012, declarou: “Se eu tivesse estado em conjunto com as FDI, de quem
Ser judeu é uma condição com a em um dos campos, jamais poderia obteve acesso pleno e irrestrito.
qual se nasce, mas é também uma ter feito esse filme. “Shoah” não trata O filme é constituído por uma série
conquista. E o Estado de Israel foi de sobrevivência. de entrevistas com soldados e civis
fundamental para a conseguirmos”. sobre o exército israelense.
Nem de sobreviventes. Trata da
“Pourquoi Israel” se inicia e termina morte”. O documentário não contém Outros
no Yad Va’shem, memorial ao
Holocausto, em Jerusalém. Ao Lanzmann utilizou várias entrevistas
assisti-lo, alguns de seus amigos que faziam parte do material bruto
israelenses sugeriram que ele fizesse de “Shoah” na produção de outros
também um documentário sobre documentários. “A Visitor from the
os campos de morte. Foi o que Living” (Um Visitante do Mundo
ele fez. “Shoah” seria seu segundo dos Vivos), de 1999, trata de um
documentário. funcionário da Cruz Vermelha que
fez um relatório favorável sobre
Com a duração de mais de 9 o Gueto de Theresienstadt. Em
horas, “Shoah” é um testemunho 2001, é a vez de “Sobibor: October
do Holocausto através de uma 14, 1943, 4 p.m.” – uma entrevista
angustiante seleção de entrevistas. com Yehuda Lerner, participante do
As gravações e filmagens do bem-sucedido levante no campo de
documentário começaram em 1974. extermínio de Sobibor.
Foi inicialmente encomendado
por Aluf Hareven, um de seus Em 2010, ele lançaria “The Karski
amigos no Ministério de Relações Report” (Relatório Karski). Em
Exteriores de Israel, que queria 1978, após um silêncio de mais
um filme de duas horas sobre o de 30 anos, Jan Karski concordou
Holocausto, contado “a partir da com o diretor Daniel Leconte, no
61º festival internacional do cinema
em ser filmado em sua casa
perspectiva judaica” e sugeriu que de cannes, maio 2008 durante dois dias. Mas no filme

68
REVISTA MORASHÁ i 102

“Shoah”, Lanzmann usaria apenas


39 minutos do perturbador
testemunho. Membro da resistência
polonesa, Karski foi contatado
em 1942 por líderes do Gueto de
Varsóvia para ver, com seus próprios
olhos, os horrores do Holocausto
e, a seguir, levar as informações aos
líderes aliados, pedindo ajuda.

Lançado em 2013, “The Last of the


Unjust” (O Último dos Injustos)
é uma entrevista com Benjamin
Murmelstein (1905-89), líder
judeu no campo de Theresienstadt,
“parada intermediária” para os
judeus que acabariam sendo
enviados aos campos de extermínio.
Theresienstadt pretendia ser um
com o “urso de ouro”, honraria recebida na 63ª berlinale, festival do cinema de
“gueto modelo” aos olhos do mundo berlim
e, como líder do Conselho Judaico,
cabia a Murmelstein garantir a vejo o que fiz na minha vida”, Los Angeles, 1985; e o Prêmio
fachada de “saúde e felicidade” dos afirmava, “acredito que tenha Peabody de Jornalismo, 1987,
judeus presos no gueto. vindo ao mundo para representar a pelo documentário “Shoah”.
verdade; nunca brinquei com ela”. Em 2004, recebeu o título de
Em 2017, com “Napalm” (2017), Doutor Honoris Causa da Escola
Lanzmann redireciona suas lentes Lanzmann foi um homem Graduada Europeia, na Suíça.
para a Coreia do Norte, visitando que viveu intensamente,
esse recluso país e recontando suas apaixonadamente. Defendia Lanzmann sofreu algumas
impressões de uma visita anterior, abertamente seu povo, em todas tragédias em sua vida. Em 1966,
durante o final da década de 1950, as ocasiões. Era um homem sua irmã, Évelyne, cometeu
após a Guerra da Coreia. de ação, combatente corajoso suicídio e, em 2017, seu filho
de la Résistance, esquiava Félix, de 23 anos, morreu de
Depois disso, Lanzmann dirigiu destemidamente, escalava câncer. Lanzmann morreria um
o seriado para a televisão lançado montanhas como poucos, era um ano depois, sem nunca parar
em 2018, “The Four Sisters”, (As piloto nato, um intelectual e autor trabalhar... até a sua morte.
Quatro Irmãs). O seriado, em de um jornalismo visionário. E
quatro episódios, volta a examinar triunfou como escritor e cineasta
as experiências dos sobreviventes graças ao seu talento de, em BIBLIOGRAFIA
do Holocausto. O seriado apresenta suas palavras, “entrar na razão e Lanzmann, Claude,The Patagonian Hare:
entrevistas com quatro sobreviventes na loucura, nas mentiras e nos A Memoir. eBook Kindle
que haviam sido cortadas do filme silêncios daqueles a quem eu quis Entrevista de Ed Vulliamy “Claude
retratar (...). Considero-me um Lanzmann: the man who stood witness for the
“Shoah”. world”. Publicado no The Guardian, março
vidente”. Até os filmes que ele de 2012 https://www.theguardian.com
Uma história de vida apenas esboçou e não realizou são Artigo de David H. Van Biema
única e multifacetada obras de arte. “Filmmaker Claude Lanzmann Devotes 11
Years of His Life to a Biography of Death”,
publicado em 10 fevereiro de 1986, , People
No início de sua autobiografia, Como cineasta, acumulou vários Magazine , https://people.com/archive/
“The Patagonian Hare”, ele declara prêmios, entre os quais o do Artigo de Richard Brody “Witness, Claude
Lanzmann and the making of “Shoah”.
que se tratava de uma “história Círculo da Crítica de Nova York Publicado no The New Yorker, 19 de março
única e multifacetada”. “Quando (1985); da Crítica de Cinema de de 2012 https://www.newyorker.com/

69 DEZEMBRO 2018
SHOÁ

“Shoah”, de Claude Lanzmann:


o Holocausto em definitivo
Com “Shoah”, Claude Lanzmann conquistou um lugar na
História. O documentário é o registro do Holocausto pela voz
das testemunhas. Durante mais de 9 horas os espectadores
assistem ao que ele chamou de “um coro de vozes e rostos que
emergem; vítimas, observadores e assassinos”, tornando-nos
“testemunhas da morte e dos atos de resistência à morte”.

L
ongo e angustiante,
o filme se inicia em
Chelmno, onde, em
dezembro de 1941,
os nazistas utilizaram
pela primeira vez gás asfixiante para
executar, de forma mais “rápida e
eficiente”, a “Solução Final para o
Problema Judaico”. Para produzir
sua obra prima, Lanzmann nos
leva, entre outros, a Treblinka,
Belzac, Sobibor, Auschwitz e
cidadezinhas adjacentes. E termina
em Israel, com o testemunho dos
combatentes do Levante do Gueto
de Varsóvia.

Iniciando a filmagem em 1974,


dedica os 11 anos seguintes à
Henryk Gawkowski, então condutor de locomotiva na estação de Treblinka,
produção do documentário. que transportava judeus para o campo.
“Senti-me como um cego, nos
12 anos de filmagem e edição do filmes, falou com sobreviventes e Até 1978 ele protelou a visita aos
“Shoah”; um cavalo com antolhos. historiadores, como Yehuda Bauer campos nazistas. “Quando vi que a
Não conseguia olhar à direita e Raul Hilberg, este último o “pai aldeia de Treblinka ainda existia e
nem à esquerda, apenas à frente, da história” do Holocausto e que que ainda havia pessoas que tinham
diretamente para dentro do aparece no documentário dando testemunhado o horror e que
círculo negro da Shoá”. Pesquisou mais detalhes sobre a Solução Final. ainda havia uma estação ferroviária

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REVISTA MORASHÁ i 102

funcionando normalmente... aí Shoá. E conseguiu. Quem assistiu ao “Holocausto é um termo impróprio,


explodiu dentro de mim a bomba- documentário dificilmente esquecerá inadequado, utilizado para as
humana em que eu me tornara”. os rostos, as vozes, os trens.... oferendas queimadas a D’us,
Muitos dos aldeões poloneses no Tabernáculo e no Templo
que encontrou continuavam Quebrou as regras cinematográficas Sagrado. O que se abateu sobre os
perturbadoramente indiferentes, até então aceitas. Adotou uma judeus da Europa foi uma catástrofe
alguns até risonhos, quanto à nova abordagem conceitual em de dimensões inimagináveis”.
tragédia que se abateu durante a 2ª sua concepção estética e duração
Guerra sobre seus vizinhos judeus, do documentário. Apesar de tratar O filme daria
e tantos outros que os trens levaram de eventos ocorridos durante voz aos mortos
à morte em Treblinka. a 2ª Guerra, o documentário é
exclusivamente filmado nos anos Lanzmann se perguntava como
Lazmann acreditava que o 1970 e 1980. Não há nenhuma estruturaria o filme? Qual seria o
Holocausto não podia ser imagem de arquivo, nenhuma foco principal... até perceber que,
interpretado, compreendido; filmagem de época, não há em tudo que leu e viu, “faltava o
foi um trauma que só podia imagens dos guetos ou dos corpos mais importante: as câmaras de gás,
ser transmitido e internalizado encontrados pelos Aliados ao a morte nessas câmaras das quais
através do testemunho dos que libertar os campos no final da ninguém jamais voltara para contar
sobreviveram. Durante três anos se Guerra. Tampouco há narração o horror. O dia em que percebi que
dedicou a localizar, em 14 países, em off explicando o contexto e os era isso o que faltava, soube que
o maior número de sobreviventes, eventos. Não há trilha sonora; ouve- o tema do documentário seria a
testemunhas oculares, observadores se apenas a voz de Lanzmann, dos morte (...). Isto era uma contradição
poloneses acidentais, oficiais entrevistados e dos tradutores. E o radical, pois, de certa forma, atestava
nazistas, e judeus combatentes que barulho dos trens. a impossibilidade do projeto no
haviam sobrevivido ao Levante do qual eu estava me aventurando: os
Gueto de Varsóvia. Entrevistou Até o título, Shoá - palavra em mortos não poderiam falar pelos
e filmou mais de 350 horas de hebraico para “catástrofe” – termo mortos. Meu filme assumiria o
material bruto. As entrevistas são totalmente desconhecido até desafio supremo: tomar o lugar das
intercaladas com paisagens dos então fora de Israel, provocou imagens inexistentes dos mortos
locais onde, na década de 1940, questionamentos. Ao lhe nas câmaras de gás”. Em entrevista
haviam sido construídos os campos perguntarem o porquê da escolha, ao The Guardian, disse: “Os alemães
de morte, e com tomadas dos trens Lanzmann respondia, enfático: não queriam deixar vivo nenhum
percorrendo os mesmos trilhos que, dos sobreviventes, para que não
outrora, levaram milhões de judeus pudessem dar seu testemunho (...).
às câmaras de gás. Nas entrevistas, os que sobreviveram
não queriam falar sobre como
Ele não foi o primeiro cineasta a haviam conseguido escapar à morte.
levar às telas o Holocausto, mas, na Falavam em nome dos mortos”. Seu
década de 1970, o assunto ainda filme deu voz aos mortos.
era uma espécie de tabu. A maioria
dos sobreviventes estavam mudos. Para gravar seus testemunhos,
Queriam tocar a vida, não reviver Lanzmann leva a maioria dos
o horror e, acima de tudo, sentiam- judeus sobreviventes de volta
se culpados de ter sobrevivido. aos lugares onde ocorreram os
Escritores como Elie Wiesel, eventos. Suas perguntas eram duras,
Primo Levi e Jean Améry haviam queria detalhes sobre o ocorrido
publicado relatos sobre o que e pressionava para contarem sua
vivenciaram nos campos de morte, história, mesmo sabendo que fazê-
mas com uma linguagem emotiva. lo era extremamente doloroso.
Lanzmann foi além, ele quis levar a Durante os relatos, o foco da câmera
público a brutalidade desumana da é mantido em seus rostos, captando

71 DEZEMBRO 2018
SHOÁ

emoções, dor, hesitação, olhares aquele “serviço” e o cheiro dos corpos


perdidos... incinerados que se alastrava por
quilômetros.
As descrições em primeira mão,
extremamente pessoais, não tinham É fácil perceber por que o governo
parâmetro em nenhum relato polonês classificou o documentário
anterior sobre o Holocausto. São um de “propaganda anti-polonesa”,
extenso conjunto de testemunhos argumentando que se tratava de uma
para as futuras gerações. As vozes clara acusação de “cumplicidade com
dos entrevistados transformam o o genocídio nazista”.
extermínio em massa do judaísmo
europeu num horror concreto, Como poderá o espectador esquecer
vivenciado por pessoas reais. Vizinho polonês dos judeus sendo a frieza dos assassinos, dos oficiais
O número de mortos, quase entrevistado por Lanzmann, à direita; nazistas ao relatar episódios em que
tradutora, à esquerda
7 milhões de judeus, e a rapidez participaram ou que testemunharam,
com que foi executada a Solução sempre negando conhecer o
Final nos levam a esquecer que que ocorria. Em sua busca por
cada um deles era um indivíduo com e algozes nazistas, ele perguntava: entrevistas com oficias nazistas,
uma vida, uma família, amigos. “Vocês sabiam que destino Lanzmann trabalhou com endereços
O documentário faz com que os aguardava os judeus? ”. A resposta, disponibilizados pelos julgamentos
judeus assassinados, os sobreviventes, invariavelmente, era “sim”. dos crimes de guerra, em Nuremberg.
os espectadores e os algozes saiam
do anonimato, colocando-os no O espectador dificilmente esquecerá A princípio, abordou-os diretamente,
centro do cataclismo que mudou o descaso com que os poloneses dizendo quem era e no que estava
nossa visão da própria humanidade. relatam o desaparecimento dos trabalhando. A recusa foi geral.
Os conceitos habituais utilizados nos judeus, as risadas mostrando o “gesto Passou, então, a usar nome e
estudos do Holocausto - nazismo, de degola” que costumavam fazer passaporte falsos e uma câmera
totalitarismo, genocídio, barbárie - quando passavam os trens com os escondida. Seu principal disfarce
tornam-se termos vazios perante a judeus amontoados. Tampouco as era de um “revisionista histórico”.
revelação brutal do sofrimento na risadas de um grupo de polonesas Prometia anonimato, mas estava
voz de quem o vivenciou. sobre o desaparecimento das “judias todo “grampeado” – um microfone
bonitas” que os homens costumavam sob a gravata, um mini transmissor
O resultado é uma narrativa admirar, em sua cidade. Ou a frieza em um coldre de ombro e uma
visual dos acontecimentos que dos vizinhos ao relatar terem visto os câmera fotográfica “espiando”
levaram à quase destruição do judeus serem levados a chicotadas, escondida na bolsa de sua assistente.
judaísmo europeu, tanto em termos mortos a tiros, ou enfiados nas Fora da casa dos nazistas, captando
geográficos quanto no dos vários camionetes que os iriam asfixiar. palavras e imagens, um caminhão
níveis de pessoas envolvidas na Ou as descrições dos habitantes com o equipamento receptor. Certa
Solução Final, desde nazistas de alta de vilarejos ao lado dos campos da vez, enquanto Lanzmann estava
patente até os observadores passivos, morte, que trabalhavam ao lado do no norte da Alemanha, na casa de
nos vilarejos poloneses. arame farpado. Eles ouviram tudo, um elemento das SS responsável
viram milhares entrar e não sair de por ordenar a morte dos judeus em
Vocês sabiam o lá, sentiram o cheiro insuportável de várias cidades ucranianas, os vizinhos
destino que aguardava morte e carne queimada. Lanzmann perceberam o caminhão receptor.
os judeus? chega a entrevistar Henryk Antes que ele pudesse escapar, cinco
Gawkowski, que durante a Shoá foi alemães marcharam sala adentro.
Lanzmann foi o primeiro a abordar condutor de locomotiva na estação Atacado e hospitalizado, acabou com
o papel dos habitantes da Europa de Treblinka. Ele revela que deve duas costelas quebradas.
Oriental e seu nível de conhecimento ter transportado cerca de 18.000
acerca do assassinato em massa dos judeus para o campo. Todas as vezes, Um dos nazistas entrevistados,
judeus. Ao entrevistar observadores enchia-se de vodka para aguentar Franz Suchomel, admitiu ter

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REVISTA MORASHÁ i 102

obrigado prisioneiros judeus nus, a os testemunhos mais contundentes, A longa entrevista com Jan Karski
caminho do extermínio, a fazer fila estão o de Abraham Bomba, judeu, é intensa e perturbadora, era a
do lado de fora, em temperaturas e de Jan Karski, polonês católico, primeira vez que concordava em
invernais de -20º C. E ainda membro da resistência. falar sobre o Holocausto. Durante
revelou que o campo de Belzec a guerra, seu papel na resistência
era “um estudo” sobre a execução Bomba, prisioneiro em Treblinka, era polonesa era atravessar as linhas
da Solução Final; Treblinka, uma barbeiro por profissão. Lanzmann o inimigas levando informações
linha de montagem da morte ainda levou de Nova York, onde ele vivia para os aliados. Ele conta como os
precária; mas Auschwitz, uma após a Guerra, a uma barbearia líderes da Resistência Judaica de
verdadeira fábrica. Outros nazistas em Tel Aviv, e lhe pediu que cortasse Varsóvia o infiltraram no Gueto
descrevem em detalhes operações o cabelo de um homem, durante a para ele ver com seus próprios olhos
empreendidas contra judeus. entrevista. Bomba praticamente não o que estava acontecendo, e levar
Franz Schalling, por exemplo, levanta a cabeça e narra com uma as informações aos líderes aliados,
descreve a operação em Chełmno. voz monótona como ele e outros pedindo ajuda. O rosto de Karski
Walter Stier, ex-burocrata nazista, barbeiros judeus eram forçados se contorce e os olhos se enchem
descreveu a operação das estradas a cortar o cabelo das mulheres de lágrimas ao relembrar o que ele
de ferro, insistindo que estava minutos antes que elas fossem queria jamais ter testemunhado: os
muito ocupado dirigindo o tráfego asfixiadas nas câmaras de gás. Mas, mortos jogados nas ruas, os uivos
ferroviário para perceber que seus quando ele chega na parte em que de dor, o odor terrível, as crianças
trens carregavam judeus para a relata que teve que cortar o cabelo famintas, judeus tão magros que
morte... das mulheres de seu próprio vilarejo, pareciam esqueletos ambulantes.
sem poder oferecer uma palavra
As testemunhas sequer de conforto, ele não se Sobrevivência
contém, desmonta. Mas Lanzmann
O documentário começa com as insiste: “Você tem que contar! ”. Para Lanzmann, sobrevivência
imagens do Rio Ner, próximo a Ele então revela, soluçando, como era um ato de resistência, e ele
Chelmno, e a história de Simon um amigo foi forçado a cortar o entrevista tanto judeus que haviam
Srebnik. Ele e outra testemunha, cabelo da própria esposa e da irmã. sido Sonderkommandos, como
Mordechai (Michael) Podchlebnik, combatentes da Resistência Judaica
foram os únicos dois a sobreviver. no Gueto de Varsóvia.
Com apenas 13 anos as SS
colocaram Srebnik a trabalhar na Os Sonderkommandos eram
“manutenção do campo”. Com prisioneiros judeus, forçados, sob
tornozelos acorrentados, ele se pena de morte, a “preparar” outros
arrastava diariamente pelo vilarejo judeus para a morte – ajudar os
carregando sacos contendo cinzas nazistas a encaminhá-los às câmaras
e restos dos judeus mortos, que de gás e, em seguida, “livrar-se”
devia despejar no rio. Srebnik dos corpos. Poucos sobreviveram,
que possuía uma voz de soprano, apenas 50, pois mantinham-nos
era ainda forçado a cantar para vivos por pouco tempo, já que
entreter as SS. Todos em Chelmno eram perigosas testemunhas da
o conheciam, e, quando ele voltou enormidade dos crimes nazistas.
com Lanzmann, para a entrevista, Lanzmann rejeitava enfaticamente
os poloneses o “congratularam por a acusação de colaboração feita
ainda estar vivo”. contra esses infelizes e, com as
entrevistas, revela o pesadelo que
Outra entrevista de importância viveram.
histórica foi a de Rudolf Vrba, um
dos poucos que conseguiu fugir Em seu testemunho, Motke Zaidel
de Auschwitz e revelou ao mundo Jan Karski, polonês, herói da relata que se calcula que 90.000
o horror dos campos. Mas, entre Resistência. judeus do gueto de Vilna tenham

73 DEZEMBRO 2018
SHOÁ

Família polonesa, que vivia ao lado de famílias judias, sendo entrevistada

sido levados e assassinados a tiros “Shoah”, em Israel vivido o terrível pesadelo e que por
na floresta de Ponary, seus corpos um longo tempo não conseguiam
amontoados em valas comuns. Lançado em Paris em abril de 1985, absorver, aceitar ou pior, eram cruéis
Zaidel foi um dos 84 judeus apenas em junho de 1986 ocorreria em seu julgamento sobre o que
obrigados a cavar com as mãos para sua première nacional, em Jerusalém. acontecera aos judeus da Europa,
retirar os corpos dos judeus das valas O filme tinha sido muito elogiado esses agora entendiam. Tinham
e queimá-los. Teve que incinerar em toda parte, mas o julgamento finalmente compreendido que a Shoá
os restos de seus amigos, vizinhos, do público israelense tinha especial era parte também da alma de Israel.
familiares. Durante as conversas importância para Lanzmann. Nenhum judeu, sobrevivente ou
com Zaidel, o Prof. Yehuda Bauer, O documentário era a apresentação não, israelense ou não, podia escapar
renomado estudioso do Holocausto, de seu relato sobre o evento mais disso. Muitas pessoas, e muitos de
introduziu o conceito de que os terrível da História Judaica no único seus filhos, tinham sido moldados
judeus da Europa foram para a país judeu no mundo – um país cujas – ou quebrados para sempre – pela
sua morte “como carneiros para o principais autoridades o tinham monstruosidade do Holocausto.
matadouro”. Hanna, filha de Zaidel, escolhido para a tarefa, confiando-
conta que seu pai, ao ouvi-lo dizer lhe esse exercício de lembrança. Ao final da exibição, não houve
isso, “levantou-se, deu um soco aplausos. Ao contrário, reinava um
na mesa e disse, ‘queria que você Sentados na recém-inaugurada silêncio absoluto, até que um a um,
estivesse lá’. E saiu da sala”. Cinematheque de Jerusalém, defronte levantaram-se e foram até Lanzmann.
das muralhas da Cidade Velha, Ao deixar a Cinemateca, Motke
O último a falar, em “Shoah”, é estavam o então primeiro-ministro Zaidel disse: “Graças a D’us. Agora
Simcha Rotem, um dos derradeiros Shimon Peres, com o presidente vão saber tudo. Agora vão entender”.
heróis sobreviventes do Levante do do país, o Rabino-chefe e até o Ele carregara o terrível peso por
Gueto de Varsóvia. Ele descreve chefe do Estado Maior. Entre o tanto tempo, ele que fora obrigado a
como, após a liquidação, voltou público presente, estavam vários dos queimar sua família – seu sangue –
ao gueto através dos esgotos, na entrevistados, muitos com filhos em Ponary. Como viver com aquilo?
esperança de encontrar algum pequenos a seu lado. Para o público Mas o filme de Claude Lanzmann
de seus companheiros, algum o filme foi devastador. Durante lhe tinha dado “algum respeito,
sobrevivente. “Não vi nenhuma alma mais de nove horas ficaram quietos, alguma compreensão”...
viva. Lembro-me que, em certo arrebatados. Alguns não aguentaram
momento, senti uma certa paz, uma –desmaiaram ou tiveram parada N.R.: O documentário foi digitalizado
certa serenidade. E pensei, sozinho, cardíaca. em 2012, estando desde então no
em meio àquela total desolação, YouTube, graças ao apoio da Fundação
‘sou o último judeu. Vou esperar Aqueles que tinham estado lá e visto para a Memória da Shoá e o Centro
que amanheça, e que os alemães Nacional do Cinema (França) e a
a morte de perto, entenderam que
cheguem’”. São as últimas palavras participação da IFC Films e Criterion
finalmente conseguiriam falar sobre
do filme. Collection (EUA).
o assunto. Aqueles que não tinham

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REVISTA MORASHÁ i 93

É um privilégio enorme termos na comunidade uma


revista de conteúdo do nível intelectual e estético,
de forma gratuita, como a Morashá. Destaco a história
das comunidades de países árabes e onde hoje já
não existem quase judeus. Sou da Hanagá Artzit
(Liderança Nacional) do Movimento Juvenil Judaico
Sionista Habonim Dror, movimento sem fins lucrativos
presente em dez comunidades no Brasil.
João Luis Koifman
Por e-mail

Agradecemos esta importante Morashá é a melhor revista judaica. Agradecemos o envio da maravilhosa
contribuição para a preservação Principalmente para nós, sefaraditas. revista Morashá, que minha família
e guarda da Coleção “Memória Muitas matérias estudo com minhas tão rapidamente recebeu na cidade de
Nacional’, composta pela produção netas, alunas do Colégio Beith Jacob Raanana, Israel. A família Vinic está
intelectual do País. Aclimação. muito empolgada em poder continuar a
Alessandra Moraes Shaná Tová e continuem com o seu ler suas futuras edições, com seus artigos
Chefe da Divisão de Depósito Legal maravilhoso trabalho. especiais e bem formulados.
Fundação Biblioteca Nacional
Carlos I. Abal Maria Elisa Goldberg de Aronovich
São Paulo - SP Raananá - Israel
Ler e poder contribuir anualmente
para a excelente revista Morashá Morashá é de importância Agradecemos o envio da revista
é motivo de orgulho. Vou doar fundamental para o aprendizado e Morashá à nossa biblioteca.
minha coleção a judeus portugueses cultura de meus cinco netos. Esmeraldo Siqueira
interessados. A edição comemorativa Biblioteca Pública Municipal
Carlos Segre
contemplou-me com um excelente São Paulo - SP
Natal - RN
artigo sobre os Judeus da Argélia
durante o período islâmico, entre Tive a oportunidade de obter várias
Morashá, cada vez mais caprichada e
tantos outros interessantes. Parabéns, edições da revista Morashá através de
ansiosamente esperada. Um ano bom
parabéns, parabéns!! um brasileiro que vive em Boston (EUA),
e doce para todos.
entre as quais, a de setembro de 2017.
Eliene Zlatkin
Rio de Janeiro - RJ
João Matos da Silva Gostaria muito de fazer uma assinatura
Botucatu - SP
desta publicação. Eu vivi em São Paulo,
Recebemos Morashá há muitos anos: no Pacaembu, de 1968 a 1970 com minha
É um privilégio receber a Morashá família e meus dois filhos estudaram em
belíssima revista, conteúdo excelente,
há tantos anos. Edições impecáveis escolas judaicas. Temos mantido algum
fascinante, enriquecedor.
do ponto de vista das informações contato com o Rabino Shabsi Alpern.
Celina Scheinowitz fidedignas e da qualidade do material Ainda lemos e falamos português.
Salvador - BA
impresso. H. Arnold Sherman
Calgary, Alberta - Canadá
Quero agradecer-lhes pelo exemplar Norma Bellini
Porto Alegre - RS
da revista Morashá. Vocês não podem Recebi a revista Morashá, sensacional
mensurar a felicidade em poder artigo de Zevi Ghivelder, “Segredos
lê-la. Enviem a edição de 25 anos Há 12 anos retornamos para Buenos
Guardados da Guerra de Iom Kipur”,
também para o Centro Cultural Aires, após 31 anos em Campinas.
45 anos depois, temos o privilégio de
São Paulo. Tenho indicado a Sempre é uma grande alegria quando
ler novas informações sobre um dos
publicação para amigos, parentes e o correio traz para nosso deleite a
acontecimentos mais importantes da
conhecidos para que visitem o site maravilhosa revista Morashá.
história da luta pela sobrevivência do
www.morasha.com.br. Osvaldo Luis Bejerman
Estado de Israel.
Eva Ventura Marchili
Juka Santos Ricardo Goldenberg
Por e-mail Buenos Aires - Argentina Lima - Peru

75 dezembro 2018
ANO XXV - edição 102
DEZEMBRO 2018

ANO xxvI edição 102 DeZ 2018

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